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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Luís Eduardo Wexell Machado
A álgebra mágica de Guimarães Rosa e o gênero fantástico no horizonte de
expectativas dos séculos XVIII, XIX e XX
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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LUÍS EDUARDO WEXELL MACHADO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Literatura e
Crítica Literária sob a orientação da
Profa. Dra. Beatriz Berrini
São Paulo
2008
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Banca Examinadora:
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
Dedicatória
Aos meus mestres,
de quem obtive não só o
ensino gentil, mas também
a convivência amorosa.
Agradecimentos
Quero agradecer, com especial carinho, à professora Dra. Maria Rosa Duarte
de Oliveira pela parceria ao longo do curso de mestrado, sua sempre generosa
disponibilidade, sugestões e, principalmente, por não deixar esmorecer as
minhas convicções sobre as possibilidades e importância da literatura.
Quero, também, agradecer aos seguintes professores:
Dra. Beatriz Berrini, pelo incentivo e orientações constantes e por seu exemplo
de incansável dedicação à Literatura e ao magistério, que são, para mim,
inspiração e exemplo de vida;
Dr. José Osvando de Morais, não apenas por ter me apresentado o Grande
Sertão: Veredas, mas principalmente pelo ensino exemplar de postura, como
professor, pesquisador e ser humano.
Às professoras componentes da minha banca de qualificação, Dra. Maria José
Palo e Dra. Sandra Regina Chaves Nunes, por suas orientações,
disponibilidade e paciência, não apenas durante a qualificação, mas também
fora dela e que foram imprescindíveis para a conclusão deste trabalho e do
que há, aqui, de melhor.
Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da
PUC-SP, pelo apoio e pelas oportunidades recebidas.
Ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, pelo acesso aos materiais
relacionados a Guimarães Rosa, em especial, seus primeiros contos, somente
publicados no jornal O Cruzeiro.
À Capes, pelo apoio à pesquisa.
Resumo
MACHADO, L. E. W. A álgebra mágica de Guimarães Rosa e o gênero fantástico
no horizonte de expectativas dos séculos XVIII, XIX e XX. 2008. X f.116
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2008.
A dissertação desenvolve um estudo sobre a álgebra mágica de Guimarães
Rosa, à luz do desenvolvimento da literatura fantástica no horizonte de expectativas
dos séculos XVIII, XIX e XX. No século XVIII, as relações se estabelecem com o
romance Gótico e o elemento estranho que surge do exterior; no século XIX, com o
gênero fantástico e o estranho que irrompe do interior humano; já no século XX,
quando o universo humano se torna fantástico e o estranho faz parte do cotidiano, o
neofantástico é uma possibilidade interpretativa de um fantástico que se reconcilia
com o poético.
O objetivo do trabalho é, portanto, por meio do estudo do fantástico em
transformação a partir de horizontes de expectativas de épocas distintas,
estabelecer um conjunto de elementos que nos permitam refletir sobre a
aproximação estabelecida com a álgebra mágica roseana.
Para compreender o efeito da literatura fantástica, bem como o da álgebra
mágica, recorreu-se ao método hermenêutico de Paul Ricoeur, com ênfase no
aspecto da leitura integrativa entre o mundo do texto e o mundo do leitor, em função
do duplo horizonte de expectativas que a obra literária contém: o da obra em si, em
sua estrutura, e o da leitura, que reescreve a obra.
As relações estabelecidas à luz do corpus escolhido para análise – O Mistério
de Highmore Hall, Tempo e Destino e A Terceira Margem do Rio – demonstraram
que a álgebra mágica está bem distante dos conceitos da literatura fantástica dos
séculos XVIII, XIX e mesmo do início do século XX, embora os primeiros contos de
Guimarães Rosa guardem grande proximidade com essas tradições. A singularidade
da álgebra mágica se revela, assim, por meio do vínculo estabelecido com a
construção do efeito poético, em sintonia estreita com a concepção do neofantástico
e a de causalidade mágica de Borges, como mostra a análise de A Terceira Margem
do Rio.
Palavras-chaves: Guimarães Rosa; álgebra mágica; fantástico; Leitura; Alteridade.
Abstract
MACHADO, L. E. W. Guimarães Rosa’s magic algebra and the fantastic gender
in the horizon of expectations of the 18th, 19th and 20th centuries. 2008. X f.116
Dissertation (Ms) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
The present work develops a study on Guimarães Rosa’s magic algebra,
under the perspective of the fantastic literature development in the expectations
horizon of the 18
th
, 19
th
and 20
th
centuries. In the 18
th
century, relations are
established with the Gothic romance and the strange element that rises from the
exterior; in the 19
th
century, they are established with the gender fantastic and the
strange that burst from inside the human being; in the 20
th
century, when the human
universe becomes fantastic and the strange becomes part of the daily, the new-
fantastic is an interpretative possibility of a fantastic that reconciles with the poetic.
The objective of this work is, thus, through the study of the fantastic in
transformation as of expectation horizons of different times, to establish a group of
elements which allow us to reflect about the approximation established with the
rosena magic algebra.
In order to understand the effect of the fantastic literature, as well as the magic
algebra’s, we used Paul Ricoeur’s hermeneutic method with emphasis in the aspect
of the integrative reading between the text’s world and the reader’s world, due to the
double expectation horizon that the literary work contains: the book’s horizon, in its
structure, and the reading’s horizon, which rewrites the book.
The interrelations established, under the perspective of the corpus chosen for
analysis – O Mistério de Highmore Hall, Tempo e Destino and A Terceira Margem do
Rio – have shown that the magic algebra is quite distant from the concepts of the
fantastic literature from the 18
th
and 19
th
century and beginning of the 20
th
century,
although the first short stories of Guimarães Rosa are very close to these traditions.
The singularity of the magic algebra reveals itself through the connection established
with the poetic effect’s construction, in a tight harmony with the new-fantastic
conception and Borges magic causality as shown in the analyses of the Terceira
Margem do Rio.
Key-words: Guimarães Rosa; Magic algebra; fantastic; Reading; Alterity.
Sumário
PARTE I
1) Introdução……………………………………………………………………001
2) O método hermenêutico, o horizonte de expectativas
e o reconhecimento em Paul Ricoeur.....................................................007
3) A literatura fantástica………………………………………………………..018
3.1 O fantástico no século XVIII: o romance gótico
e o reconhecimento dos fantasmas no mundo
exterior.....................................................................................028
3.2 O fantástico no século XIX: o reconhecimento
das fantasmagorias no espaço da consciência.......................039
3.3 O fantástico no século XX: o reconhecimento da
realidade como fantasmática, absurda e paradoxal................049
PARTE II
1) A álgebra mágica Roseana e o novo fantástico.....................................060
2) O fantástico em O Mistério de Highmore Hall e Tempo e Destino.........076
3) O fantástico em A Terceira Margem do Rio...........................................089
4) Conclusão………………………………………………………………..…106
5) Referências Bibliográficas………………………………………..……….108
La imagen transmuta al hombre y lo convierte
a su vez en imagen, esto es, en espacio donde
los contrarios se funden. Y el hombre mismo,
desgarrado desde el nacer, se reconcilia
consigo cuando se hace imagen, cuando se
hace otro.
Octávio Paz
Quando nada acontece é porque está
acontecendo um milagre que ninguém vê.
Guimarães Rosa
1
PARTE I
1) Introdução
Eu não qualificaria meu conceito mágico de “realismo mágico”; eu o
chamaria antes “álgebra mágica”, porque é mais indeterminada e,
portanto, mais exata.
Guimarães Rosa
A motivação deste trabalho e sua justificativa residem na tentativa de compreender,
ainda que em parte, a “álgebra mágica” de Guimarães Rosa, termo admitido pelo próprio
Guimarães como um conceito metodológico de composição dos seus “contos críticos”,
semelhante ao realismo mágico latino-americano, mas com uma diferença: é um termo mais
preciso (ROSA, 1991).
O problema a ser enfrentado neste trabalho de investigação será a forma como o
elemento paradoxal característico da “álgebra mágica” se aproxima da tradição do fantástico
no qual o paradoxo está apenas implícito nas relações entre o “mundo real” e o “mundo
fantástico”. Entendemos por “mundo real” e “mundo fantástico” as construções ficcionais que
buscam respectivamente uma aproximação mimética da realidade e aquelas que retratam a
realidade a partir de outro ponto de vista, que se estende às leis naturais esperadas no pacto da
ficção realista a outros limites surpreendentes.
A tradição do fantástico engloba, segundo a crítica, manifestações estéticas como a do
realismo mágico, assim como o real maravilhoso, que, por sua vez, guardam uma relação de
proximidade e contigüidade com a literatura fantástica do século XIX e que mantêm uma
relação de semelhança também com a literatura gótica do século XVIII.
O objetivo geral deste trabalho consiste em percorrer esses gêneros literários, que se
associam em uma espécie de macro-gênero ou como um método de construção ficcional que
tem por objetivo a representação da realidade de uma outra maneira, cuja mimética-realista -
rompendo com os cânones desta por meio de referentes fantasmáticos, construídos
metodologicamente dentro de um “horizonte de expectativas” – recepciona-os como algo
surpreendente, inesperado, amedrontador, diferente do cotidiano.
O “horizonte de expectativas” (Erwartungshorizont) ou a maneira como a obra é
construída, visando um público particular, é um termo do crítico literário Hans Robert Jauss
(2002c) e designa o conjunto de pressupostos (de características mutáveis) que se pode
atribuir a uma geração de leitores, ou ainda, às características comuns que podemos encontrar
nas obras de uma determinada época. Assim, o significado elaborado por meio da
2
interpretação de uma obra muda conforme esse duplo “horizonte de expectativas” também
muda. Trata-se de “horizonte de expectativas” do público que recepciona tais pressupostos de
acordo a visão de mundo em que estão inseridos e os que fazem parte da obra e referem-se à
forma como as obras de um determinado gênero são estruturadas em cada época.
Esperamos que, com a compreensão das transformações nos métodos de apreensão do
elemento fantasmático em seu desenvolvimento sincrônico-diacrônico, seja possível
identificar um percurso de reconhecimento do elemento fantasmático, por meio de
semelhanças e distinções na forma como esse elemento se apresenta no texto. Isso será um
fator de ruptura dos padrões da narrativa realista, que obedece a uma estruturação mais
próxima da lógica cartesiana.
O reconhecimento almejado se apresenta com um duplo sentido: o elemento
fantasmático, como parte de uma tradição e aquele que diz respeito a uma nova concepção na
construção do elemento de ruptura, evidenciando uma nova forma de apresentação
fantasmática.
O método escolhido para o trabalho apóia-se principalmente na hermenêutica de Paul
Ricoeur (1975), que inclui em seu processo de interpretação da obra literária o conceito de
“horizonte de expectativas”, conforme definido por Jauss (2002c); o que possibilita a
interpretação da obra literária como um exercício de leitura em suas múltiplas significações,
sempre quando essa leitura obedeça aos limites que a estrutura da obra impõe. Dessa forma, o
texto abre-se, por meio da leitura, a uma interpretação que será, em parte, definida por sua
forma e, em parte, pelo conjunto dos elementos de compreensão do leitor. Da relação dialética
entre a obra e o leitor surge a interpretação que posiciona o leitor frente à obra e também
frente ao mundo em que ele habita.
A referência presente no texto literário que posiciona o leitor frente ao mundo, segundo
Ricoeur (1976), não é direta, mas de segundo grau, já que o texto escrito não faz referência
direta às coisas do mundo, embora não deixe de ser o autor o produto de um ser-do-mundo.
A referência narrativa não é, portanto, nem total nem direta; tampouco o mundo da
narrativa, dos “seres de papel”, aponta diretamente para o mundo real, mas há sempre
referências indiretas: os métodos adotados pelo autor para a construção de sua obra encontram
seus referentes nos métodos que fazem parte do sistema social, do pensamento comum da
coletividade na qual ele está inserido e para a qual ele escreve. Podemos pensar, assim, numa
referencialidade interna ao próprio texto, para a qual o mundo é transportado em seu projeto e
concepção. Como sugere Maria Augusta Babo (2007, p.2), “a escrita vai desenvolver, no seu
interior, todo o ambiente, um mundo, explicitando, elaborando esse mundo exterior”.
3
Se a referencialidade no discurso literário aparece apenas em segundo grau, é na
literatura fantástica que ela mais se distancia do próprio mundo, ou pelo menos do mundo
lógico-realista. Ela assim se manifesta como uma possibilidade de incorporação de outro
mundo não comumente contemplado; coloca-se como uma ruptura do mundo convencional e
seus parâmetros de razoabilidade.
Defendemos a hipótese de que o fato fantasmático surge como um elemento diferencial,
que, embora não aceito pela normalidade de uma comunidade interpretante, pode ser por ela
reconhecido. Esse reconhecimento por se dar na forma aristotélica, que se refere à philia.
Trata-se do reconhecimento mútuo que se dá entre os amigos, ou seja, o reconhecer algo que
já se conhece e que, tendo já passado por nossa percepção, ressurge e é identificado como já
conhecido. Isso pode ocorrer tanto na forma definida Ricoeur (2006a): reconhecimento como
abertura para o que foi esquecido e que se apresenta como algo novo; ou como algo que, por
meio de alguma marca, pode ser reencontrado. Tal marca permanece mesmo sob a ação
transformadora do tempo e, por sua singularidade e diferença, permite o reconhecimento,
mesmo que todos os demais elementos sejam desconhecidos ou tenham sofrido brutal
transformação - a ponto de produzir estranheza e medo; ou, ainda, o reconhecimento daquilo
que não se pode conhecer pela ausência de qualquer marca reconhecível.
A nossa hipótese é que, por meio do reconhecimento do elemento fantasmático presente
nos contos de Guimarães Rosa escolhidos como integrando o corpus desse trabalho (O
Mistério de Highmore Hall, Tempo e Destino e A Terceira Margem do Rio), possamos
penetrar, ainda que parcialmente, em seu método de trabalho do conto crítico: sua “álgebra
mágica”. Nesse sentido, nos associamos à interpretação que Liliana Willson faz de Casa
Tomada, de Julio Cortazar (2004), em Antología de la Literatura Fantástica Argentina,
comentando a análise de Rosmary Jackson em Todos os fogos, o fogo, quando diz que
o relato fantástico costuma ser o lugar onde aparece, de maneira sinistra, o excluído
da cultura: mostra o que não se vê; articula o que não se diz. O radicalmente distinto
é aquele que constitui uma ameaça para a ordem estabelecida da sociedade e,
portanto, segundo as normas dessa, deve ser excluído: o estrangeiro, o forasteiro, o
intruso, o marginal social, aquele que fala uma língua desconhecida ou que atua de
maneira desconhecida, alguém cujas origens se ignora ou que tenha poderes
extraordinários, tende a ser excluído como o outro, como o mal. (WILLSON, 2003,
p. 116)
1
.
1
A tradução é de minha responsabilidade: el relato fantástico suele ser el lugar donde aparece, de manera
siniestra, lo excluido de la cultura: muestra lo que no se ve; articula lo que no se dice. Lo radicalmente distinto es
aquello que constituye una amenaza para el orden establecido de la sociedad y, por tanto, según las normas de
ésta, debe ser excluido: el extranjero, el forastero, el intruso, el marginado social, el que habla una lengua
desconocida o actúa de manera desconocida, alguien cuyos orígenes se ignoran o que tenga poderes
extraordinarios, tiende a ser excluido como el otro, como el mal.
4
O discurso fantástico representaria, em maior grau, a capacidade de reconhecimento
desse “outro”, pelo contraste entre o comum e o não comum, aquilo que faz parte da
normalidade em contraste com os elementos estranhos que surgem como destituídos de lógica
e de razão para determinado horizonte de expectativas.
Segundo Francisca Suárez Coalla em seu livro Lo fantástico en la obra de Adolfo Bioy
Casares (1994, p.40-1), o fantástico se apresenta, dentro do horizonte de expectativas de cada
um dos recortes escolhidos, a partir da seguinte proposta:
No século XVIII, o fantástico irrompe do exterior, não é produto da loucura nem
da alucinação; surge na forma de fantasmas, vampiros e monstros, presentes no
romance gótico, que se caracteriza pelo terror e pela busca do efeito do medo.
No século XIX, o sobrenatural se interioriza e se manifesta relacionado à
loucura, às drogas, ao hipnotismo ou ao sonho; há uma alteração das leis de
causalidade, do tempo e do espaço.
No século XX, o fantástico será absorvido pelo cotidiano das personagens e
aceito, pelo leitor, como elemento não questionável, em função da relativização
das fronteiras entre realidade e ficção, razão e imaginação, possível e absurdo.
As hipóteses estabelecidas se desdobram da seguinte forma em relação ao recorte
temporal selecionado para este trabalho:
No século XVIII, o reconhecimento do outro surge a partir dos elementos
contraditórios e fantasmagóricos do mundo exterior e, segundo Todorov (2004),
se apresenta como uma hesitação temporária entre duas explicações possíveis:
uma explicação sobrenatural, que, para ele, configuraria uma fuga do fantástico
para um gênero limítrofe, o maravilhoso; ou uma explicação racional, o que
lançaria o fantástico no universo do estranho.
No século XIX, com os estudos de Freud sobre o inconsciente e com as
repercussões da teoria da evolução das espécies, de Darwin, o reconhecimento
do outro surge como resultado do questionamento da própria identidade do
homem, que perde a sua referência de centro do Universo. Isso dá lugar, por um
lado, ao surgimento de uma angústia niilista, principalmente a partir das idéias
5
de Schopenhauer e, por outro lado, a uma grande expectativa pelos avanços da
ciência como promessa de transformação da vida cotidiana.
No século XX, com os estudos de Jung sobre o inconsciente coletivo e com a
relativização das questões do verdadeiro e do falso, o reconhecimento do outro
sofre uma grande reviravolta. Segundo Sartre (2005), o próprio homem passa a
ser o elemento fantástico, ou seja, o reconhecimento do outro se faz a partir da
conscientização da própria natureza do homem e do mundo humano, onde as
questões paradoxais e absurdas podem, agora, ser incorporadas com naturalidade
à rotina familiar, sem que com isso se chegue a uma situação de grande espanto
ou medo.
Procuraremos nos acercar das várias definições do fantástico, por meio do estudo
diacrônico e sincrônico do gênero, com a intenção de extrair dele suas características
peculiares e seu modo de representação como síntese de abertura e adentramento à “álgebra
mágica” roseana. Pressentimos que há uma relação entre as propostas e o método histórico de
construção do fantástico e a “álgebra mágica”, principalmente no que respeita às relações com
os elementos da alteridade e da projeção fantasmática de um entre-lugar, próprio do homem
inacabado e em “fazimento”, entre a finitude e a infinitude da vida.
A diversidade de definições do fantástico na literatura responde ora à questão do método
adotado – antropológico, psicanalítico, social, hermenêutico, literário, etc. – ora às próprias
definições do discurso fantástico, que, não raro, confunde-se com fantasia – os mirabilia em
geral, encontrados principalmente nas literaturas antiga e medieval – e também com a
moderna ciência-ficção, o romance de mistério e o romance policial, etc.
Seria impossível organizar uma teoria única do fantástico, capaz de abarcar o
desenvolvimento metodológico do gênero ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, já que sua
construção obedece a métodos diferentes e se endereçam a diferentes horizontes de
expectativas. Por isso escolhemos associar o evento fantasmático ao reconhecimento do outro,
que se apresenta como fator de ruptura, como elemento excluído e não contemplado no duplo
horizonte de expectativas: o da lógica textual e o da comunidade receptora da obra.
Com este trabalho, dentro do recorte escolhido, pretendemos, num primeiro momento,
nos integrar a essa tradição, que busca romper com os padrões da lógica cartesiana e, num
segundo momento, pretendemos penetrar na “álgebra mágica” roseana, despidos dos
preconceitos interpretativos de uma única época, a nossa,.
6
Talvez essa álgebra mágica de Guimarães Rosa seja do mesmo caráter do fantástico de
Jorge Luiz Borges (2005a): única possibilidade ou a possibilidade mais adequada para
ficcionalizar a experiência humana, como aponta Francisca Suárez Coalla, comentando
Borges e Bioy Casares:
As considerações de Borges e de Bioy Casares os aproximam dos que acreditam que
o fantástico remonta à tradição oral, e pensam que seja um componente do qual não
podem eximir-se nem mesmo as chamadas obras realistas. (COALLA, 1994, p. 20).
2
As várias definições e métodos de construção do efeito fantástico na literatura expurgam
assim, naturalmente, os elementos do maravilhoso, muito comuns na Antigüidade e na Idade
Média, embora a própria definição do termo remeta à questão do maravilhoso. A palavra
"fantástico" deriva da palavra latina phantasticus e essa da grega phantastikós, que se refere,
segundo o dicionário Houaiss, a algo de caráter extravagante, fora do comum, que tem sua
origem na imaginação ou na fantasia, que se relaciona com a idéia do admirável; que por sua
vez vem do latim admirabilis, maravilhoso, de onde se extrai o conceito dos mirabilia, tão
comum ao Mundo Antigo e Medieval.
Acreditamos que, por suas características de oposição à normalidade cotidiana, a
literatura fantástica possa servir de chave ou ser ela mesma um elemento expressivo da
álgebra mágica. Lembremos a definição de álgebra que dá o dicionário Aurélio: “Do ár. al-
1abAra (t), 'reunião, reintegração daquilo que se quebrou', 'restauração de ossos fraturados';
em árabe, aparece no início de uma expressão que designava os cálculos algébricos e significa
'ciência da reintegração e equiparação'.” (AURÉLIO, 1999).
Pensamos que a literatura fantástica faz parte também dessa ciência reintegrativa, de
busca de unidade, ao incluir o outro, aquele que é excluído por seu caráter de estranheza e de
confronto com os princípios da razoabilidade, desenhando um território, espécie de terceira
margem, onde é possível conviver com o paradoxo.
2
A tradução é de minha responsabilidade: Las consideraciones de Borges y de Bioy Casares les aproximan a
cuantos creen que lo fantástico se remonta ya a la tradición oral, y piensan que es un componente del que no
pueden eximirse ni aún las llamadas obras realistas.
7
2) O método hermenêutico, o horizonte de expectativas e o reconhecimento em
Paul Ricoeur
Falar do fantástico em literatura de uma maneira ampla confunde-se com o próprio
exercício do poético: é falar de um fenômeno ficcionalmente construído e percebido como um
discurso não realista, possuidor de uma lógica diferenciada, que não é a do discurso
meramente comunicativo.
Dentro desse discurso não realista, podemos enquadrar obras míticas da Antigüidade,
como a Ilíada e a Odisséia; da Idade Média, como os romances de cavalaria, entre eles, A
história de Carlos Magno e os doze pares de França e A Demanda do Santo Graal;
também do romance gótico inglês, como O Castelo de Otranto. Daí por diante, do século
XIX para cá, podem-se citar os contos de Edgar Allan Poe e de E.T.A. Hoffmann; Kafka; a
literatura mágico-realista latino-americana e européia e até os romances pós-modernos, nos
quais aparecem elementos de ruptura e de estranhamento, graças a uma inversão ou negação
da lógica. Assim, surge o estranho, o excluído, o não contemplado, aquilo que possui outra
lógica, que interfere no desenvolvimento da narrativa por meio de acontecimentos insólitos e
fantasmáticos.
A inclusão desse elemento estranho na estrutura do texto passa por diferentes métodos
de construção, de acordo não só com as características das obras mas também,
fundamentalmente, com as épocas em que foram concebidas, dentro de um singular horizonte
de expectativas: a maneira pela qual a obra é criada e recepcionada dentro dos marcos de
determinada cultura.
Segundo Jauss (2002a, p.73), a obra estética enfrenta um duplo horizonte: o do efeito,
específico de um determinado texto, e o da recepção, relacionado ao destinatário do texto. O
primeiro é interno à própria obra, à sua estrutura, e o segundo está relacionado ao leitor –
inerente ao contexto social –, que pode, em função de seu próprio momento, resignificar a
obra de arte. O processo de resignificação ou, dito de outra maneira, a interpretação com base
no horizonte externo à obra de arte, explica-se pela influência da experiência e da expectativa
do público leitor.
Em função desse duplo horizonte, podemos levantar algumas questões: a) quais seriam
os elementos constitutivos que tornam possível o reconhecimento do elemento estranho no
discurso fantástico dos séculos XVIII, XIX e XX?; b) quais seriam as relações e as
transformações metodológicas da narrativa fantástica, ao longo do tempo, com a alteração da
percepção das comunidades receptoras - os leitores aí implicados? c) como o processo de
8
construção do fantástico evidenciou e alterou a questão do reconhecimento dentro do
horizonte de expectativas do século XX? e, finalmente, como essas transformações podem
servir para uma interpretação dos três contos de Guimarães Rosa de nossa escolha , em seu
conjunto, como corpus de aplicação deste trabalho; deve-se levar em conta que entre os dois
primeiros e o terceiro há uma diferença de mais de 30 anos, a partir de sua publicação?
Para responder a essas questões, recorreremos ao método hermenêutico de Paul Ricoeur
sobre o discurso e o reconhecimento, em cruzamento com o estudo diacrônico-sincrônico do
fantástico nos séculos XVIII, XIX e XX, a partir de vários autores. Acreditamos que deva ser
dada especial ênfase ao conto A terceira margem do rio, que nos parece o mais significativo e
que deve ser trabalhado com base nas três leituras propostas pela hermenêutica, na forma
defendida por Jauss (2002c): a Poiesis, a obra de arte, sua estrutura; a Katharsis, aquilo que
ela comunica; e a Aisthesis, sua visão de mundo.
Para Ricoeur (1976), o estudo hermenêutico frente aos elementos propostos por Jauss
(2002b) – Poiesis, Katharsis e Aisthesis – configura uma questão a ser explorada pelo estudo
do discurso, porém evitando-se o reducionismo a que se viram submetidos os estudos do
discurso em função do exagero estruturalista, que realçam as características da língua não
como habilidade de fala, mas como código lingüístico, isto é, “estrutura” e “sistema”.
A causa principal dessa redução do discurso ao seu aspecto apenas estrutural se deve,
segundo Ricoeur (1976, p.15), ao desenvolvimento da lingüística a partir de Ferdinand de
Saussure e sua distinção entre langue - o código geral da língua - e parole - o uso particular da
língua pelo falante.
O estudo do discurso que não se limita às questões lingüísticas deve abarcar elementos
da fala, sem desconsiderar que a fala é de caráter fugaz e relega o discurso ao evento onde ela
se dá. O discurso como evento se aproxima da idéia de Zumthor (2000) sobre a performance:
é um acontecimento que comunica e, comunicando, marca.
Qualquer ênfase no conceito abstrato de um evento de fala justifica-se apenas como
um modo de protesto contra a redução anterior mais abstrata da linguagem, a
redução dos aspectos estruturais da linguagem como langue, pois a noção de fala,
enquanto acontecimento, fornece a chave para a transição de uma lingüística do
código para uma lingüística da mensagem. Recorda-nos que o discurso se realiza
temporalmente e num momento presente, ao passo que o sistema da língua é virtual
e fora do tempo. Mas, este traço aparece somente no movimento de atualização da
língua para o discurso. Por conseguinte, toda a apologia da fala como evento é
significativa se, e somente se, torna visível a relação de atualização, graças à qual a
nossa competência lingüística se atualiza na performance. (RICOEUR, 1976, p.23).
9
Como defende Ricoeur, é a mensagem que atualiza a língua, enquanto “o discurso funda
a existência genuína da língua, visto que só os atos de discurso discretos e únicos em cada
tempo atualizam os códigos” (RICOEUR, 1976, p.21). O discurso diz e se re-diz por outras
palavras ou em outras línguas; em parte se transforma e em parte mantém sua identidade.
A significação do discurso mostra-se dialeticamente entre o que o falante quer dizer e a
função predicativa denotada na frase. O evento se dá pela fala de alguém e o discurso se
referencia na intenção desse falante e se evidencia no discurso por meio de elementos
gramaticais ou “conectores”. O sujeito da fala refere toda a frase a si mesmo.
Mediante a atenção aos dispositivos gramaticais da auto-referência do discurso,
obtemos duas vantagens. Por um lado, conseguimos um novo critério da diferença
entre discurso e códigos lingüísticos. Por outro, somos capazes de fornecer uma
definição do locutor. Nenhuma entidade mental precisa de ser hipnotizada ou
hipostasiada. O sentido da enunciação aponta o significado do locutor graças à auto-
referência do discurso a si mesmo enquanto acontecimento. (RICOEUR, 1976,
p.25).
A significação por meio dos “conectores” pode ser intensificada pelos “atos
locucionários e ilocucionários”. Os atos ilocucionários relacionam-se estreitamente com os
“performativos”, que são ações implicadas no próprio dizer, como as promessas, por exemplo.
O ato ilocucionário, enquanto discurso da voz, se faz presente entre o falante e seu
interlocutor numa estrutura dialogal: é um jogo de perguntas e respostas, em que cada
asserção é também um entendimento corroborado pelos gestos e pela entoação da voz, que, ao
passarem para a escrita, se perdem ou se atenuam.
No entanto o ato ilocucionário não está desprovido de marcas lingüísticas, as quais
incluem o uso dos modos gramaticais como o indicativo, o conjuntivo, o imperativo
e o optativo, bem como os tempos dos verbos e os termos adverbiais codificados ou
outros dispositivos perifrásticos equivalentes. A escrita não só preserva as marcas
lingüísticas da enunciação oral, mas também acrescenta sinais distintivos
suplementares como sinais de citação, os pontos de exclamação e de interrogação,
para indicar as expressões fisionômicas e gestuais, que desaparecem quando o
locutor se torna um escritor. Por conseguinte, os atos ilocucionários podem, de
muitos modos, comunicar-se a ponto de sua “gramática” fornecer o evento como
uma estrutura pública. (RICOEUR, 1976, p. 29).
Porém, a significação de um texto não é ato exclusivo de um locutor. O aspecto objetivo
da significação de um texto deve ser buscado também no nível da frase, enquanto o aspecto
subjetivo se exercerá por meio da auto-referência, do ato ilocucionário e da intenção que o ato
de locução tem de ser reconhecido em relação ao ouvinte.
10
Além desses aspectos, que não esgotam o sentido do discurso, podemos estabelecer as
relações que surgem sobre “o ‘quê’ do discurso ou o ‘acerca do quê’ do discurso. O ‘quê’ do
discurso é o seu sentido, o ‘acerca do quê’ é a sua referência.” (RICOEUR, 1976, p.31).
A referência surge a partir das análises que se instauram no nível da frase, pois é ela que
diferencia o “dito” do “acerca do que se diz”. Nas estruturas menores do que a frase, o sistema
é fechado, pois os signos se referem sempre a outros signos; já com a frase, a linguagem
transcende a si mesma:
Por outras palavras, o sentido correlaciona a função de identificação e a função
predicativa no interior da frase, e a referência relaciona a linguagem ao mundo. É
um outro nome para a pretensão do discurso a ser verdadeiro. (RICOEUR, 1976,
p.31).
Embora no discurso literário, e principalmente no fantástico, exista um corte de vínculo
entre o que o texto supostamente designa e o mundo, não podemos deixar de levar em conta
que, em meio ao dito do texto, há ações humanas que nunca se desvinculam totalmente da
ação real, apenas “se tornam mais complexas, mais indiretas, pela ruptura entre signum e res.”
(RICOEUR, 2004, p.12).
A relação dialética entre sentido e referência permite estabelecer uma relação entre a
linguagem e a condição do “ser-no-mundo”, ou seja, a linguagem não é um mundo à parte. O
ser que habita o mundo traz à linguagem sua experiência; aí reside a condição ontológica da
referência:
Mas este apontar intencional para o extralingüístico basear-se-ia num mero
postulado e permaneceria um salto discutível para além da linguagem se a
exteriorização não fosse a contrapartida de um movimento prévio e mais originário,
que começa na experiência do ser-no-mundo e avança desde a sua condição
ontológica para a sua expressão na linguagem. É porque existe primeiramente algo a
dizer, porque temos uma experiência a trazer à linguagem que, inversamente, a
linguagem não se dirige apenas para significados ideais, mas também se refere ao
que é. (RICOEUR,1976,p.33).
Para Ricoeur, a linguagem é fundamentalmente referencial, pois do contrário não
poderia ser significativa e não seria uma extensão do ser-no-mundo. Mesmo quando um signo
se põe “em vez de alguma coisa”, esse algo substituído deve ser apontado no discurso para
que a substituição possa ser percebida.
A significacão universal do problema da referência é tão ampla que mesmo o
significado do locutor se tem de exprimir na linguagem de referência enquanto auto-
referência do discurso [...] O discurso refere-se ao seu locutor ao mesmo tempo que
11
se refere ao mundo [...] O discurso na ação e no uso tem uma referência retrógrada
ou anterretrógrada ao locutor e ao mundo. Tal é o critério último da linguagem como
discurso. (RICOEUR, 1976, p. 33).
Visto dessa maneira, o problema hermenêutico como interpretação do texto escrito se
instaura como teoria interpretativa do discurso, por meio de sua permanência na passagem do
texto oral para o texto escrito. Dito de outra forma, o evento e a significação presentes no
momento da performance oral - com gestos e entoações, o ambiente e o ouvinte em diálogo
com o intérprete - podem permanecer como marcas na escritura, mesmo sofrendo a distância
que a mediação da letra cria para a voz viva.
Para Paul Zumthor (2000), a característica permanente do texto literário é a presença da
vocalidade, de elementos performatizáveis através do tempo e mais facilmente reconhecíveis
nos textos orais, mas também presentes no texto escrito. Zumthor define a vocalidade como
“um dos planos da realização do ritmo”
3
(ZUMTHOR, 1989, p. 223). É essa força
organizadora vocal que permite, para Zumthor (2000, p. 53), a performance que ele nomeia
em seu conjunto como ritual e que se compõe de emergência, reiterabilidade e
reconhecimento, ou, como define a hermenêutica, os três momentos da leitura. Zumthor
(2000) toma a literatura como um processo de ritualização da linguagem que evidencia o seu
aspecto performativo.
Como elemento ritualístico, o texto literário produzido como tal deve ser, assim,
identificado por um público “iniciado”: Zumthor direciona o peso principal da evidência do
literário para o leitor e não mais para a intenção autoral. É o leitor que atualiza o texto literário
como tal, por meio dos efeitos que a leitura comunica e marca, até corporalmente, nele
mesmo:
O que produz a concretização de um texto dotado de uma carga poética são,
indissoluvelmente ligadas aos efeitos semânticos, as transformações do próprio
leitor, transformações percebidas em geral como emoção pura, mas que manifestam
uma vibração fisiológica. realizando o não-dito do texto lido, o leitor empenha sua
própria palavra às energias vitais que a mantêm. (ZUMTHOR, 2000, p. 62).
Da fala oral à leitura silenciosa, abre-se, para Zumthor, uma “dessimetria de percepção”,
já que a escrita apenas sugere o que a fala, em presença de todos os participantes, plenamente
enuncia. Em ambos os casos, Zumthor registra a presença ocular, uma relação “olhar versus
ler”. No primeiro caso, o olhar participa junto com os demais sentidos e seu registro é caótico,
salta de um aspecto a outro do evento global. A compreensão é “emblemática e fugidia”, e por
3
A tradução é de minha responsabilidade: uno de los planos de la realización del ritmo.
12
isso Zumthor nomeia o processo como “semiótica selvagem”, na qual a conduta é resultado
“mais da acumulação das interpretações do que de sua justeza intrínseca.” (ZUMTHOR,
2000, p.85). Por outro lado, “a ação visual se orienta de vez para a decifração de um código
gráfico, não para a observação de objetos circundantes” (ZUMTHOR, 2000, p.85). Há aqui
uma relação única, não complementada por outros signos, como ocorre na “semiótica
selvagem”. A leitura é interiorizada apenas pelos grafismos da escrita: aquilo que se lê, passa
para a mente.
O emblemático, para Zumthor, refere-se a um conjunto de signos em relação
multidimensional, que fazem da interpretação, através do olhar, um processo de movimento
ao mesmo tempo centrípeto e centrífugo. As imagens que esse olhar capta não estão
justapostas, ou racionalmente ordenadas, mas animadas por uma vitalidade própria capaz não
só de comunicar como também de marcar, de imprimir essa vitalidade no receptor das
imagens. E não seria também essa a finalidade da álgebra mágica contida nos contos críticos
de Guimarães Rosa?
Baseando-se no artigo Lingüística e poética
4
, de Roman Jakobson, Ricoeur (1976)
elabora uma série de elementos modificadores do discurso quando esse se fixa na escrita.
Mais do que simples mudança de meio, a passagem do oral para o escrito configura uma
mudança significativa de âmbito cultural, dando surgimento, pela estabilidade de
armazenagem de informação, a diversos tipos de atividades culturais e científicas. A
mensagem, que na oralidade é plena em gestos e referências, na escrita é transportada apenas
pelas marcas materiais; “o fato humano desaparece” (RICOEUR, 1976, p.38). Mas não é
apenas o evento em si que se vê afetado pela mudança do meio, já que no primeiro ele não
existe na duração e, no segundo, permanece como registro; a significação também se vê
afetada por essa mudança do meio. Para demonstrar essa questão, Ricoeur deixa claro que o
que é fixado na escrita é o discurso e não a linguagem como langue. A fixação do alfabeto é
uma decorrência da necessidade de se fixar o discurso: “a escrita pode salvar a instância do
discurso porque o que ela efetivamente fixa não é o evento da fala, mas o ‘dito’ da fala”
(RICOEUR, 1976, p. 39).
Também a escrita tem suas características próprias, visto que ela não é só uma mudança
de meio ou o registro escrito de uma fala prévia, mas também a realização única de um
pensamento: “a escrita toma o lugar da fala” (RICOEUR, 1976, p.40).
4
JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo:. Cultrix, 1995.
13
Pensar no fantástico como um tipo de discurso e não apenas como gênero permite que
nos posicionemos dialeticamente frente a dois extremos de difícil conciliação na crítica
literária: o que defende que o fantástico é um gênero historicamente demarcado – algumas
décadas do século XIX –, e aquele que associa o fantástico a toda uma série de
acontecimentos fantasiosos que o remete à própria condição do literário, sem nenhum tipo de
fronteira definida com os demais gêneros.
O discurso fantástico, diacronicamente pensado, se apresenta frente a um duplo
horizonte, como define Jauss (2002c), ou seja, tem uma estrutura portadora de um efeito
estético e uma receptividade que atende às expectativas de uma comunidade interpretante e
sua experiência de leitura. A interpretação do discurso fantástico responde, portanto, ao
horizonte da própria obra – sua estrutura e a marcas interpretativas que ela aponta – e aos
espaços vazios do texto que podem ser preenchidos pelo leitor. Esses vazios já estão
condicionados, em parte, pela própria estrutura da obra e, em parte, pelas questões temporais
da leitura e dos elementos ideológicos do leitor, que preencherá os vazios do texto com sua
visão de mundo. Para que esse preenchimento seja teoricamente adequado e não se deixe
arrastar apenas pelas questões ideológicas, Ricoeur (2006b) defende o estudo histórico do
objeto como forma de eliminação dos preconceitos interpretativos de uma única época por
meio da inclusão de outras visões e procedimentos.
Por isso, Tinianov defendia a idéia de que deveria haver, para a construção de uma
ciência literária, um vínculo entre a literatura viva, contemporânea, e a história da literatura,
conforme dois pontos de vista a serem adotados: o estudo da gênese dos fenômenos literários e
o da variabilidade literária.
O ponto de vista adotado para estudar um fenômeno determina não somente sua
significação, mas seu caráter: a gênese toma, no estudo da evolução literária, uma
significação e um caráter que, certo, não são os mesmos que aparecem no estudo da
gênese mesma.
O estudo da evolução ou da variabilidade literária deve romper com as teorias de
estimação ingênua que resultam da confusão dos pontos de vista: tomam-se os
critérios próprios de um sistema (admitindo que cada época constitui-se num sistema
particular), para julgar os fenômenos em relevo de um outro sistema. Deve-se então
suprimir toda a marca subjetiva; o “valor” de tal ou qual fenômeno literário deve ser
considerado como “significação e qualidade evolutiva”. (TINIANOV, 1978, p.106).
Ressaltamos que, embora o trabalho de análise da obra, para Tinianov, se relacione
sempre com a série histórica, nunca se desprende do fato literário, que é a própria obra em
questão: “Embora ultrapassado por teorização mais sofisticada, a idéia do procedimento
14
literário permanece o traço preliminar com que os formalistas sempre trabalhavam.” (LIMA,
2002, p. 270).
Com consideração semelhante, mas foco diferenciado, Ricoeur (2006b) enfatiza a
imanência da obra como elemento de entrada e aprofundamento nas camadas mais profundas
do texto, como exercício de uma primeira leitura, porém, a interpretação se estabelece por
meio de uma segunda e terceira leituras; são os aspectos da Poiesis, da Katharsis e da
Aisthesis, como quer Jauss (2002b), que tomarão a obra em sua unidade discursiva e em sua
relação com o horizonte de expectativas. Essa tríplice leitura resignifica a obra em cada tempo.
Bakhtin, ao tratar dos gêneros do discurso, mostra como eles são construídos a partir da
atividade humana, ligada ao uso da linguagem que os elabora por meio de enunciados -
composições lexicais, fraseológicas e gramaticais da língua:
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas por que são
inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada
campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se
diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.
(BAKHTIN, 2003, p.262).
Costa Lima (2002) adota uma posição que, segundo ele, vem crescendo desde 1920, na
qual a análise sociológica dos gêneros deve, necessariamente, ajustar-se às questões
imanentistas do poético, resultando desse confronto a idéia de situação: o literário como
discurso ajusta-se a um efeito que é reconhecido como literário. Por isso ele fala das estéticas
da recepção e do efeito, que, por sua vez, vêm ao encontro da hermenêutica de Paul Ricoeur.
Notemos apenas ser um absurdo supor que as aludidas teorias se diferenciem das
imanentistas por centrarem-se nas opiniões dos receptores! O que a elas é
fundamental é a observação de que o discurso literário – e ficcional, em geral – se
distingue dos demais porque, não sendo guiado por uma rede conceitual orientadora
de sua decodificação, nem por uma meta pragmática que subordina os enunciados a
uma certa meta, exige do leitor sua entrada ativa, através da interpretação que
suplementa o esquema trazido pela própria obra. (LIMA, 2002 vol.1, p.284).
Ricoeur (1976) defende a idéia de que a análise estrutural de um texto é a entrada para o
que ele considera, fazendo referência a Eco (1971), “a obra aberta”. Cabe ao leitor interpretá-
la e compreendê-la com o único objetivo de incorporar aquilo que Ricoeur chama de “meu
outro do texto”, que é buscado nas estruturas profundas do texto, mas não se limitará a elas: o
leitor será a sua própria chave de abertura.
Com isso, queremos demonstrar que falar de um gênero fantástico que abarque desde o
Mundo Antigo até a Contemporaneidade sem sofrer transformações seria impossível. Melhor
15
seria falar de um discurso do fantástico que se transforma ao longo do tempo, de acordo com
os processos metodológicos que determinam a construção desse discurso, sempre atento às
marcas aproximativas e distintivas da corrente histórica na qual se insere. Segundo Ricoeur
(2002), compreender um texto do passado é compreender essa série histórica; porém a série
histórica como encadeamento articulado também é uma concepção interpretativa.
Se, por um lado, podemos alargar a definição de literatura fantástica para aquém e para
além do século XIX, em função da relação dialética que o discurso do fantástico pemite, por
outro lado, tomaremos o fantástico na literatura como o lugar privilegiado do reconhecimento
do outro. De fato, o sujeito da fala - e com ele o leitor - será o alvo da relação “eu-outro”, na
qual se dá o jogo de identidade e alteridade. Por isso, nos relatos fantásticos vamos encontrar,
na maior parte das vezes, um narrador homodiegético, que se redimensiona ao contar sua
própria história. Trata-se, portanto, de uma identidade narrativa em que o sujeito se reconhece
na história que conta de si mesmo. Aqui, a ficção narrativa se torna auto-compreensão, da
qual o leitor participa, por meio da leitura e da interpretação do texto: é o encontro do eu do
leitor com o eu do texto. Mas como se dá a operação de reconfiguração identitária de um eu
leitor através de um eu do texto, que, no caso da literatura, é um eu figurado?
Para Paul Ricoeur (2002), toda narração, seja ela histórica ou literária, é a dimensão
lingüística que se dá à condição temporal de uma vida. A reconfiguração identitária é o
processo de esvaziamento de si mesmo para o encontro desse outro eu do texto, seja ele um
texto filosófico, religioso, histórico ou ficcional. É por isso que a compreensão de uma série
histórica nos ajuda mais como filtro de nossas próprias condições, de nosso próprio horizonte
de expectativas, do que como elemento de interpretação do texto.
A literatura fantástica aparece, segundo pensamos, como um discurso típico de
evidenciação desse outro eu do texto, em função de suas características de oposição entre o
racional e o não-racional, o real e o irreal, o convencional e o anti-convencional, criando um
conflito que se apresenta no texto como um jogo de relação entre esses pares de opostos.
Para Ricoeur, a literatura não é mais do que a projeção do texto como mundo, uma
colisão com o mundo real que tem como objetivo a reconfiguração do próprio mundo. Por
isso ele admite que a relação da “arte com a realidade seria incompreensível se a arte não
descompusesse e não recompusesse nossa relação com o real” (RICOEUR, 2002, p.21).
Ricoeur toma o discurso literário como distinto dos demais tipos de discursos,
principalmente os científicos, pelas relações que se estabelecem entre os sentidos explícito e
implícito, próprios da literatura, mas que foram arbitrariamente transportados para o
16
vocabulário como denotação e conotação, atribuindo-se ao primeiro termo um valor maior por
seu caráter cognitivo.
Para contrapor essa visão interpretativa, Ricoeur desenvolve sua teoria da metáfora, na
qual, para ele, os sentidos literais e figurados são internalizados pela significação global. Não
apenas o cognitivo, aquele que tem valor denotativo, teria valor semântico, mas também o
conotativo ou figurado; ambos configurariam a metáfora e, por conseguinte, à literatura na
qual aquilo que se anuncia se relaciona com aquilo que ela sugere, formando globalmente um
campo semântico. Para Ricoeur, as implicações da teoria da metáfora se aplicam ao discurso
literário:
A literatura é o uso do discurso em que várias coisas se especificam ao mesmo
tempo e onde o leitor não é intimado a entre elas escolher. É o uso positivo e
produtivo da ambigüidade.
Se abstrairmos agora do mundo da obra revelado pela interação dos sentidos,
poderemos concentrar a nossa análise no desígnio verbal, isto é a obra do discurso,
que gera a ambigüidade semântica característica de uma obra literária. É esta obra
do discurso que se pode ver em miniatura na metáfora. (RICOEUR, 1976, p.59).
Exposta dessa forma, a teoria da metáfora se levanta do plano da palavra e emerge no da
oração, segundo Ricoeur. Já não são mais as palavras que comportam a metáfora, mas o
enunciado como um todo. “Se adverte então que a metáfora é um trabalho com a linguagem
que consiste em atribuir a sujeitos lógicos predicados incompatíveis com eles” (RICOEUR,
2004, p. 23). Assim, o discurso literário, por seu significado semântico global, também pode
ser objeto de uma interpretação hermenêutica.
Ao relacionar o discurso fantástico com o reconhecimento do outro, do elemento
excluído, estamos equacionando a forma como o reconhecimento se dá com a forma com que
a literatura fantástica é, metodologicamente, construída, dentro de seu horizonte de
expectativas nos séculos XVIII, XIX e XX.
Para Ricoeur (2006a), a questão da identidade formada a partir do reconhecimento
implica a junção do igual e do diferente; o reconhecimento se dá pelo jogo de relações entre o
mesmo – o idem – e o que varia – o ipsen –, estabelecendo uma relação entre o eu e a
alteridade.
Em relação à literatura fantástica, tal qual está recortada neste trabalho, procuraremos
relacionar o reconhecimento às questões metodológicas que norteiam as teorias do fantástico
dentro do horizonte de expectativas em que as obras surgem.
Assim, poderíamos dizer – de forma projetiva – que, no romance gótico do século
XVIII, o fantástico instaura o outro como um elemento externo ao ser humano, apresentando-
17
o na forma de objetos e seres fantásticos que terão sua explicação alternada entre o
maravilhoso e o estranho. No primeiro caso, não há uma razoabilidade para a aparição
fantástica, que só poderá ser entendida enquanto manifestação sobrenatural. No segundo caso,
aquilo que parecia inexplicável num primeiro momento, com o desenrolar da história se
manifesta como um recurso da ciência ou da subjetividade humana.
No século XIX, com o desenvolvimento da psicologia, da teoria do inconsciente, de
Freud, e com o deslocamento do homem a partir da teoria da Origem das espécies, de Darwin,
há uma crescente inquietude e um aprofundamento nas questões existenciais, que farão
emergir o fantástico como uma espécie de suspensão insolúvel entre uma explicação por meio
dos mecanismos da ciência ou da loucura.
Nesse caso, as manifestações fantásticas surgem mais como conseqüência dos fatores
existenciais do ser humano em conflito entre o reconhecer-se e o ser reconhecido. O homem
luta para entender-se a si mesmo dentro da nova dinâmica existencial, ao mesmo tempo em
que protagoniza a ação do conhecimento por meio da ciência progressista.
Já no século XX, com as relativizações entre os pares de opostos: racional e irracional;
real e irreal; convencional e anti-convencional, o fantástico perde seu caráter estranho e
sobrenatural e se instaura no universo humano; como defende Sartre (2005), o elemento
fantástico será o próprio homem. Em nível do texto, o fantástico surge como elemento insólito
registrado e absorvido como um evento comum, pela narrativa, porém sua aparição promove
transformações no desenrolar da história, ainda que o evento em si não seja questionado. As
transformações costumam ter implicações sociais que podem ser familiares ou ainda mais
amplas e o reconhecimento do outro sofre uma grande reviravolta, projetando um mundo
desconhecido e relegando o homem a uma espécie de terceira margem, na qual ele repousa
nesse paradoxo.
18
3) A literatura fantástica
A reflexão conduz o homem à verdade? Pressuponho, é claro, um
cérebro lúcido e exercitado. Sem isto, pensar é como fazer avançar um
carro sem governo: sempre desastroso o resultado. Mas, ainda que eu
possua o instrumento e o tenha provido de ciência, estarei a salvo do
erro? Não. Se imagino, entretanto, nunca me engano: o imaginário é
autônomo e plana sobre as mudanças.
A Rainha dos Cárceres da Grécia - Osman Lins
Adolfo Bioy Casares (2003) define a ficção fantástica, tomando esse termo em seu
sentido mais amplo, como um fenômeno anterior à própria escritura e que culturalmente
encontra-se associado ao medo. Para Casares, o fantástico como ficção já está presente no
“Avesta, na Bíblia, em Homero, nas Mil e uma Noites” (BORGES, CASARES e OCAMPO,
1999, p.7). Porém admite que, “como gênero mais ou menos definido, a literatura fantástica
aparece no século XIX e no idioma inglês” (BORGES, CASARES e OCAMPO, 1999, p7) e
apresenta o percurso de antecessores à estruturação do fantástico como gênero:
No século XIV, o infante Dom João Manuel; no século XVI, Rabelais; no século
XVII, Quevedo; no século XVIII, De Foe e Horácio Walpole; já no século XIX,
Hoffmann. (BORGES, CASARES e OCAMPO, 1999, p.7).
Para Casares (BORGES, CASARES 1999), a literatura fantástica teria as seguintes
características temáticas:
Aparição de fantasmas - contos de Ireland e de Loring Frost;
Viagens no tempo - A máquina do tempo, de H. G. Wells;
A presença dos três desejos - contos orientais e também W.W. Jacobs;
A ida aos infernos - Arcana Coelestia, de Swedenborg, e Donde su Fuego
Nunca se Apaga, de May Sinclair;
Personagens em sonho - the Looking-Glass, de Lewis Carrol;
Operações com metamorfose - Sábanas de Tierra, de Silvina Ocampo;
Ações paralelas que trabalham por analogia - La Sangre en el Jardín, de
Ramón Gómez de la Serna;
A imortalidade - Mr. Elvisham, de H.G. Wells;
Fantasias metafísicas, quando o fantástico aparece mais ligado a questões
interiores de raciocínio do que às ações das personagens, como o Orbis Tertius,
de Borges;
19
Contos e novelas de Kafka;
Aparição de vampiros e castelos, como em Drácula, de Bram Stoker.
Quanto à sua caracterização a partir de uma explicação, Casares classifica os contos
fantásticos em três tipos:
Os que se explicam pela intervenção de um ser ou ação sobrenatural;
Os que têm explicação fantástica, mas não sobrenatural;
Os que se explicam pela intervenção de um ser ou de um feito sobrenatural, mas
insinuam, também, a possibilidade de uma explicação natural (Sredni Vashtar,
de Saki); também admitem uma explicação através da alucinação. Essa
possibilidade de explicações naturais pode ser um acerto ou pode criar uma
complexidade maior, mas geralmente é uma debilidade, uma escapatória do
autor, que não soube propor com verossimilhança o fantástico. (BORGES,
CASARES e OCAMPO, 1999, p13).
5
Em resumo, poderíamos dizer que, para Bioy Casares (2003), o que caracteriza o
fantástico, quanto à sua explicação, seria:
Primeiro, a presença do sobrenatural e, nesse item, poderíamos colocar uma
numerosa série de exemplos que vão desde o Oriente Antigo até os contos de
horror da atualidade. Seguramente, no Ocidente, sua origem estaria nas tradições
orais do mundo antigo, preservadas, em parte, ao longo da Idade Média, e que
respondem a necessidades humanas universais, no âmbito do desejo;
Segundo, a ausência do sobrenatural, embora exista a presença de algo estranho
que pode ter uma explicação aceitável pela razão. Nesse caso, estaríamos mais
limitados nos exemplos e, com segurança, não poderíamos oferecê-los em
períodos anteriores ao século XIX, no qual as questões da ciência e da
racionalidade emergem de maneiras distintas;
5
A tradução é de minha responsabilidade: a) Los que se explican por la agencia de un ser o de un hecho
sobrenatural. b) Los que tienen explicación fantástica, pero no sobrenatural (“científica” no me parece el epíteto
conveniente para estas invenciones rigurosas, verosímiles, a fuerza de sintaxis). c) Los que se explican por la
intervención de un ser o de un hecho sobrenatural, pero insinúan, también, la posibilidad de una explicación
natural (Sredni Vasthat, de Saki); los que admiten una explicativa alucinación. Esta posibilidad de explicaciones
20
Terceiro, quando há a presença do sobrenatural, mas a explicação sobrenatural
não é a única possibilidade de esclarecimento; insinua-se, assim, uma explicação
natural como opção.
A abertura diacrônica da manifestação do fantástico na literatura que Bioy
Casares(2003) defende está bem ao gosto de seu grande parceiro literário, Jorge Luis Borges.
Segundo Francisca Suárez Coalla, “as considerações de Borges e Bioy Casares aproximam-
nos dos que crêem que o fantástico remonta à tradição oral e julgam tratar-se de um
componente do qual ninguém pode eximir-se nem mesmo as chamadas obras realistas”
6
(COALLA, 1994, p. 20). Para Coalla, o fantástico, nesse tipo de literatura, tem orientação
nitidamente antropológica, segundo a opinião de Borges e Bioy Casares.
H.P. Lovecraft também faz coro com Bioy ao admitir que “o medo é uma das emoções
mais antigas e poderosas da humanidade” (LOVECRAFT, 1998, p.7).
7
Porém, ao fazer essa
afirmação, Lovecraft recorre aos psicólogos como autoridades na questão e diz ser essa a
condição da validação dos contos sobrenaturais como formas legítimas da literatura.
Lovecraft assume uma postura psicológica:
E aqui nos encontramos com um modelo psicológico ou tradicional tão genuíno e
tão profundamente enraizado na experiência mental como possam sê-lo outros
modelos ou tradições da humanidade; um elemento paralelo aos sentimentos
religiosos e intimamente vinculado a muitos de seus aspectos, participando em tal
medida de nosso legado biológico que dificilmente perde sua poderosa influência de
uma parte minoritária, ainda que importante, de nossa espécie. (LOVECRAFT,
1998, p. 10)
8
.
Porém, Lovecraft deixa claro que seu conceito de literatura de terror vai além da mera
produção do medo, pois não basta que seja uma criação simplória, com base em um horror
físico, explicitamente construído:
naturales puede ser un acierto, una complejidad mayor; generalmente es una debilidad, una escapatoria del autor,
que no ha sabido proponer con verosimilitud lo fantástico.
6
A tradução é de minha responsabilidade: Las consideraciones de Borges y Bioy Casares les aproximan a
cuantos creen que lo fantástico se remonta ya a la tradición oral, y piensan que es un componente del que no
pueden eximirse ni aún las llamadas obras realistas.
7
A tradução é de minha responsabilidade: El miedo es una de las emociones más antiguas y poderosas de la
humanidad.
8
A tradução é de minha responsabilidade: Y aquí nos encontramos con un modelo psicológico o tradicional tan
genuino y tan profundamente enraizado en la experiencia mental como puedan serlo otros modelos o tradiciones
de la humanidad; un elemento paralelo a los sentimientos religiosos e íntimamente vinculado con muchos de sus
aspectos, participando en tal medida de nuestro legado biológico que difícilmente pierda su poderosa influencia
en una parte minoritaria, aunque importante, de nuestra especie.
21
Os genuínos contos fantásticos incluem algo mais que um misterioso assassinato,
ossos ensangüentados ou espectros agitando suas correntes, segundo as velhas
normas. Deve-se respirar neles uma definida atmosfera de ansiedade e inexplicável
temor ante o ignoto e o que existe no mais além; há de se insinuar a presença de
forças desconhecidas e de sugestões, com pinceladas concretas, esse conceito
escurecedor para a mente humana: a maligna violação ou derrota das leis imutáveis
da natureza, as quais representam nossa única salvaguarda contra a invasão do caos
e dos demônios dos abismos exteriores.
9
(LOVECRAFT, 1998, p. 12).
Nas colocações de H.P. Lovecraft sobre o fantástico, não há uma distinção clara entre
romance de horror e literatura fantástica; parece até que esses conceitos se complementam ou
para ele são inseparáveis. Mesmo as obras relacionadas às tradições antigas e medievais,
como o Romance Gótico inglês, entram nessa classificação. Para ele, a característica da
literatura fantástica será a presença do que ele chamava “horror cósmico”, capaz de produzir,
por meio de sua elaboração, “a presença de forças desconhecidas”.
Jean Bellemin-Noël, em seu livro Psicanálise e literatura (1983), retrata o fantástico
como um processo emergente do subconsciente do ser humano. Para defender sua tese, toma
como exemplo o trabalho de Freud sobre o conto de E.T.A. Hoffmann, O homem de areia,
onde há a manifestação do que Freud batizou de “Unheimlich”, traduzido por Bellemin-Noël
como uma inquietante estranheza.
Para Bellemin-Noël, a presença do estranho é o elemento técnico caracterizador do
fantástico na literatura e sua raiz reside na manifestação dos fatores inconscientes do ser
humano, que deveriam permanecer ocultos:
... aquilo que nos surpreende, quando poderíamos sem dificuldade descobrir que é
bem conhecido; aquilo que nos vem de fora e que fazia parte do dentro; em suma,
um recalque que retorna de maneira súbita, tanto na vida cotidiana como na cena de
arte. (BELLEMIN-NOËL, 1983, p. 63).
Psicanaliticamente, o fantástico surge de um estranhamento que, por sua vez, é a
manifestação consciente de um recalque que subjazia no inconsciente do ser humano;
funciona como um reconhecimento de algum elemento interior não percebido até então que,
por alguma razão, se manifesta na vida cotidiana.
Não há nessa análise uma diferenciação entre o fantástico na arte e aquele presente nos
acontecimentos da vida cotidiana, embora Freud admitisse que algo não estranho na literatura
9
A tradução é de minha responsabilidade: Los genuinos cuentos fantásticos incluyen algo más que un misterioso
asesinato, unos huesos ensangrentados o unos espectros agitando sus cadenas según las viejas normas. Debe
respirarse en ellos una definida atmósfera de ansiedad e inexplicable temor ante lo ignoto y el más allá; ha de
insinuarse la presencia de fuerzas desconocidas, y sugerir, con pinceladas concretas, ese concepto abrumador
para la mente humana: la maligna violación o derrota de las leyes inmutables de la naturaleza, las cuales
representan nuestra única salvaguardia contra la invasión del caos y los demonios de los abismos exteriores.
22
pudesse ser estranho na vida das pessoas, dando como exemplo os acontecimentos que
ocorrem nos contos de fadas.
Tomado como um fator inconsciente que se exterioriza em algo extraordinário, o
estranhamento está presente em grande parte dos mitos de heróis da Idade Média e da
Antigüidade. Em A conquista psicológica do mal (1990), Heinrich Zimmer, a partir de
estudos de mitos de heróis, principalmente medievais, retrata a condição inicial do herói como
a de alguém de grande virtude, mas inconsciente de seu papel. Há um mal interior não
percebido que deve ser resgatado; esse mal se manifesta na forma de um feiticeiro ou bruxa
ou de algum tipo de inimigo que encarna as forças do mal. O herói é lançado em uma jornada
na qual passa por várias provas e, ao final, conquista um prêmio, símbolo do processo de
vivência e conscientização de sua natureza; com isso, o mal é vencido. O relato das provas é
sempre repleto de seres mágicos e acontecimentos insólitos, que se encaixam bem na
definição do estranhamento freudiano.
A questão do fantástico, mais uma vez, se confunde com outras formas narrativas. É
essa advertência que faz Francisca Suárez Coalla (1994) ao defender que, com base nessas
duas abordagens, a antropológica e a psicológica, tomaríamos o fantástico como uma
concretização, no plano da literatura, dos desejos e do medo que, na realização da experiência
artística, podem ser liberados. Também defende que essas vias de aproximação ao fantástico
requerem muito cuidado, pois não raro cai-se em uma relativização que leva a confundir o
fantástico com a fantasia, com a construção imaginária ou com outros tipos de discursos,
como o mítico, por exemplo, no qual há sempre uma forma de explicação do mundo, objetivo
não almejado pelo discurso fantástico. Este apresenta, ao contrário, a contradição como
elemento da inquietude, que caracteriza o gênero; o mito é organizador, o fantástico somente
existe no caos dos espaços abertos e sem fronteiras.
Louis Vax, em seu estudo sobre o fantástico, Arte y literatura fantásticas (1965), sem
buscar uma definição para o fantástico, trata de diferenciá-lo de outros discursos semelhantes:
“o feérico, o poético, o trágico, etc.” (VAX, 1965, p. 5).
Vax considera o fantástico e o feérico como espécies do gênero maravilhoso, sendo a
característica distintiva do fantástico o relato não de um mundo de seres extraordinários, mas
do “mundo real”: “Enquanto o feérico coloca fora da realidade um mundo onde o impossível
23
e, portanto, o escândalo, não existe; o fantástico se nutre dos conflitos entre o real e o
possível.”
10
(VAX, 1965, p.6).
A presença do escândalo constitui, para Vax, o fato fantástico. O termo escandaloso se
associa ao que a crítica chama de insólito, pois o escandaloso, para Vax, significa o fato de
alguém ser levado a crer no incrível. Disso resulta que a maneira melhor de representar o
fantástico na literatura é por meio da narrativa, já que a poesia não contrapõe o crível e o
incrível, mas transfigura o real.
Além da proximidade do maravilhoso e de não se utilizar da forma poética, o fantástico
necessita da presença de um elemento sobrenatural, em contraponto à racionalidade do
mundo; mas não basta um sobrenatural que possa ser bem acolhido, como a manifestação de
um anjo. Assim como Lovecraft (1998), Vax defende a idéia do terror como elemento
indispensável do fantástico. Os elementos macabros que surgem no relato seriam
representações de tendências psicológicas do ser humano:
“O monstro representa nossas tendências perversas e homicidas; tendências que,
liberadas, aspiram gozar de uma vida própria. Nas narrações fantásticas, monstros e
vítimas simbolizam esta dicotomia de nosso ser, nossos desejos inconfessáveis e o
horror que eles nos inspiram. O “mais além” do fantástico, na realidade, está muito
próximo, e quando se revela, nos seres civilizados que pretendemos ser, uma
tendência inaceitável para a razão, nos horrorizamos como se se tratasse de algo tão
alheio a nós que até então acreditamos que venha do além. Então traduzimos esse
escândalo ‘moral’ em termos que expressam o escândalo físico. A razão que
distinguia as coisas e as subdividia no espaço cede seu lugar à mentalidade mágica.
O monstro atravessa os muros e nos alcança onde quer que estejamos; nada mais
natural, posto que o monstro está em nós. Já se havia instalado no mais íntimo de
nosso ser, quando fingíamos crer que estava fora de nossa existência.”
11
(VAX,
1965, p.11).
Além dos fatores interiores do ser humano, que se manifestariam por meio do
monstruoso, Vax dá um sentido externo ao fantástico ao aproximá-lo do trágico, comparando
Fedra, como vítima dos deuses, a Hyde, personagem de O Médico e o monstro, de
Stevenson, que não consegue se libertar de seu destino que o arrasta para os prazeres
grosseiros e sensuais.
10
A tradução é de minha responsabilidade: Mientras que lo feérico coloca fuera de la realidad un mundo donde
lo imposible y, por lo tanto, el escándalo no existen y lo fantástico se nutre de los conflictos entre lo real y lo
posible.
11
A tradução é de minha responsabilidade: El monstruo representa nuestras tendencias perversas y homicidas;
tendencias que aspiran a gozar, liberadas, de una vida propia. En las narraciones fantásticas, monstruo y víctima
simbolizan esta dicotomía de nuestro ser; nuestros deseos inconfesables y el horror que ellos nos inspiran. El
“más allá” de lo fantástico en realidad está muy próximo; y cuando se revela, en los seres civilizados que
pretendemos ser, una tendencia inaceptable para la razón, nos horrorizamos como si se tratara de algo tan ajeno a
nosotros que lo creemos venido del más allá. Entonces traducimos ese escándalo “moral” en términos que
expresan el escándalo “físico”. La razón que distinguía las cosas y subdividía el espacio, cede lugar a la
mentalidad mágica. El monstruo atraviesa los muros y nos alcanza donde quiera que estemos; nada más natural,
puesto que el monstruo está en nosotros. Ya se había deslizado en lo más íntimo de nuestro ser, cuando
fingíamos creerlo fuera de nuestra existencia.
24
A relação entre tragédia e fantástico, estritamente falando, é bastante discutível, visto
que a tragédia se guia pela força do mito e tem sentido retificador, enquanto o fantástico não
busca retificar, já que não alcança harmonizar sua própria contradição:
“Uma mesma origem poderia reunir o relato mítico e o fantástico, mas,
diferentemente daquele que harmoniza o mundo que apresenta, conquistando a
superação do contraditório, o relato fantástico supõe um fracasso desse mesmo
intento.”
12
(COALLA, 1994, p. 36).
Além de não ser representado em poemas, o fantástico, para Vax, não se aparenta nem
com a fábula, pois “a linguagem dos animais é apenas uma convenção literária” (VAX, 1965,
p.17), nem com a ironia e o humor, pois o riso diminui o efeito do horror.
Já para Ítalo Calvino (2004), o fantástico é uma produção característica do século XIX, é
a manifestação dos fatores do inconsciente, da repressão e do esquecimento. São elementos
que se distanciam da luz da consciência e da racionalidade. Para ele, o nascimento do
fantástico se dá pela relação entre a realidade do mundo percebido e o mundo do pensamento
que nos comanda.
Essa relação tensa entre os mundos da razão e do inconsciente dá nascimento à hesitação
e à perplexidade do ser humano diante de um fato extraordinário. Calvino (2004) assume a
tese todoroviana do fantástico, como um processo de hesitação da personagem e, com ela, do
leitor, diante de um fato que pode ter uma dupla explicação, racional e/ou sobrenatural, mas
que não consegue se definir com clareza. Definir-se pelo sobrenatural seria escorregar do
fantástico para o maravilhoso; definir-se diante do racional seria assumir o fato como algo
estranho, embora passível de explicação.
Para Calvino, o fantástico se relaciona com o sentimento, não apenas por meio do medo,
mas também do prazer, que “radica no desenvolvimento de uma lógica cujas regras, cujos
pontos de partida e cujas soluções reservam surpresas.”
13
(CALVINO, 1995, p. 240).
Estabelecer uma relação entre o fantástico e o prazer, ou mesmo o medo ou a hesitação,
ainda que atrelados à personagem, é estabelecer uma relação entre o fantástico e o leitor.
Nesse sentido, a literatura fantástica pode ser reconhecida pelo efeito do fantástico que nela
habita e que pode ser experimentado pelo leitor que a interpreta como tal. A definição do
gênero, ainda que obedeça a questões estruturais e históricas, também fica condicionada a
12 A tradução é de minha responsabilidade: Un mismo origen podría aunar el relato mítico y el fantástico pero, a
diferencia de aquél, que armoniza el mundo que presenta, logrando la superación de lo contradictorio, el relato
fantástico supone un fracaso de ese mismo intento.
13
A tradução é de minha responsabilidade: ...radica en el desarrollo de una lógica cuyas reglas, cuyos puntos de
partida y cuyas soluciones reservan sorpresas.
25
uma comunidade interpretante, como defende a Teoria da interpretação (1976), de Paul
Ricoeur, e também Italo Calvino, quando diz que
o processo da composição literária, o momento decisivo da vida literária será a
leitura. Nesse sentido, ainda que se confie à máquina, a literatura continuará sendo
um lugar privilegiado da consciência humana, uma explicação das potencialidades
contidas no sistema de signos de cada sociedade e de cada época; a obra continuará
nascendo, sendo julgada, sendo destruída ou permanentemente renovada, em contato
com o olho que lê...
14
(CALVINO, 1995, p.195).
Também Liliana Wilson, na introdução que faz à Antología de la literatura fantástica
argentina, dá ao leitor a possibilidade de situar um texto como fantástico em função de sua
capacidade de reconhecê-lo como tal: “...é o próprio leitor, com sua hesitação ou surpresa ante
os feitos narrados - que julga anormais -, quem classifica o relato que está lendo dentro do
gênero fantástico.”
15
(WILSON, 2003, p. 25).
Em relação à forma de classificação dos relatos fantásticos, Wilson (2003) admite duas
possibilidades: a primeira, respaldada no trabalho de Todorov, e a segunda, no trabalho de
Irène Bessière.
A primeira classifica o gênero fantástico pela hesitação que não se resolve no texto,
causando impacto nas personagens e, por meio delas, no leitor. Caso a hesitação possa ser
explicada por alguma forma racional, mesmo através dos sonhos, da ilusão ou da alucinação,
o relato fantástico passa a ser qualificado como estranho e, caso o elemento fantástico seja
aceito pelas personagens sem nenhum mal-estar, o relato seria classificado como maravilhoso.
A segunda linha que Liliana Wilson defende, apoiada no trabalho de Irène Bessière,
define a literatura fantástica por sua capacidade de construir novas ordens, diferentes e
questionadoras da ordem estabelecida. Por essa linha de análise, a literatura fantástica não
seria de nenhuma maneira uma literatura evasiva, mas sim “uma das formas literárias de
oposição às ordens dominantes” (WILSON, 2003, p.28).
Nesse sentido, o fantástico não seria a literatura da irracionalidade nem do irreal, mas
uma literatura denúncia, que se utiliza de outras formas da razão e da realidade,
transfigurando-as para, no exercício de rompimento do lógico e do aceito, apresentar outras
possibilidades de racionalização e realidade, diferentes daquelas estabelecidas dentro de uma
14
A tradução é de minha responsabilidade: ...el proceso de la composición literaria, el momento decisivo de la
vida literaria será la lectura. En este sentido, aunque se confíe en la máquina, la literatura seguirá siendo un lugar
privilegiado de la conciencia humana, una explicación de las potencialidades contenidas en el sistema de signos
de cada sociedad y de cada época; la obra seguirá naciendo, siendo juzgada, siendo destruida o permanentemente
renovada, en contacto con el ojo que lee…
15
A tradução é de minha responsabilidade: ...es el propio lector quien, con su vacilación o su sorpresa ante los
hechos narrados, que juzga anormales, clasifica el relato que está leyendo dentro del género fantástico.
26
ordem dominante. Isso quer dizer que os elementos da razão e da realidade são construções
que podem ser modificadas:
... ao apresentar o que não pode ser, o fantástico expõe as concepções de uma
cultura sobre o que pode ser: traça os limites de seu marco ontológico e
epistemológico. Em outras palavras, mostra que coisas podem ser esperadas e são
críveis em uma sociedade determinada, precisamente por colocar em cena o outro.
16
(WILSON, 2003, p.28).
Segundo Liliana Wilson (2003), esta concepção relacional do fantástico, permite pensá-
lo por meio de um processo de transformação histórica:
Nas sociedades religiosas, o fantástico identificava-se com as forças do mal; era
uma espécie de manifestação exterior, que deveria ficar fora dos contornos da
sociedade. O mal representava uma entidade externa ao homem.
Com a perda gradativa da fé, por um lado, e o avanço da ciência, por outro, o
fantástico como manifestação do outro se acerca da própria condição humana e
já não é possível saber com certeza se o elemento fantástico é externo ou interno
ao homem.
No século XX, as crenças são maculadas pela incerteza: a física mecânica é
contraposta à teoria da relatividade; a humanidade passa pela experiência de
duas grandes guerras mundiais, que rompem com as visões de certeza do
progresso e da prosperidade. Nesse cenário, diferentemente do século XIX, é
difícil avaliar quais são os elementos característicos de uma literatura fantástica,
já que, o que era a exceção no século XIX, no século XX vira regra. O evento
inexplicável passa a inserir-se no familiar, no cotidiano.
Esses três momentos de representação do fantástico, historicamente demarcados,
carregam três concepções de visão do outro, ou três maneiras de relacionar-se com a
alteridade. Constituem também três formas de construção dos elementos do imaginário, sejam
eles elementos de origem antropológica ou psicológica - como querem uns e outros críticos do
16
A tradução é de minha responsabilidade: Al presentar lo que no puede ser, el fantástico expone las
concepciones de una cultura sobre lo que puede ser: traza los límites de su marco ontológico y epistemológico.
En otras palabras, muestra qué cosas son esperables y creíbles en una sociedad determinada, precisamente por
poner en escena “lo otro”.
27
fantástico -, estejam eles relacionados com questões profundas do inconsciente ou façam parte
de uma estrutura antropológica.
Gilbert Durand, em seu livro As estruturas antropológicas do Imaginário, relaciona o
fantástico com a imaginação, mas, ao tratar da memória, acrescenta uma característica
importante, que liga o fantástico à idéia de reconhecimento. Para ele, “a memória pertence de
fato ao domínio do fantástico, dado que organiza esteticamente a recordação” (DURAND,
1997, p.402). A memória permite o reencontro com o tempo passado e carrega as imagens
que nos possibilitam reconhecer e nos reconhecer diante dos demais. Em Durand, o fantástico
é o próprio processo artístico, constituído a partir da memória e da imaginação. Tratar o
fantástico como uma ars memoriae é tratar as imagens como uma “presença de alguma coisa
ausente que essa imagem representa”, como defende Ricoeur (2006, p.125). Por um lado, é
uma recordação passiva, algo que vem à lembrança; é uma imagem do passado sob a forma de
traços dependentes de um pensamento que os interpreta como signos de alguma coisa; por
outro lado, é uma lembrança ativa, não é mais algo que me vem ao espírito, como diz Ricoeur,
algo de que me lembro pela associação de idéias, “uma espécie de curto-circuito entre
memória e imaginação” (RICOEUR, 2006, p.127). Memória e imaginação estão relacionadas
no ato da reminiscência; não é um simples lembrar, mas uma lembrança produzida na trilha
da imaginação, fazendo com que o reconhecimento do passado seja também o
reconhecimento de si próprio.
O reconhecimento é recuperar algo que já se conhece previamente e é, também,
reconhecer aquilo que se ignora e que somente pode ser alcançado pela imaginação.
O fantástico como elemento de reconhecimento do outro é também o elemento de
reconhecimento de si, através de uma reavaliação das próprias crenças e paradigmas, que a
insurgência do fantástico possibilita no mundo do texto e, através das personagens, no mundo
do leitor.
28
3.1 O fantástico no século XVIII: o romance gótico e o reconhecimento dos
fantasmas no mundo exterior
Com o objetivo de entender a literatura fantástica, consideramos como fator relevante
o estudo do romance Gótico do século XVIII, com suas características projetivas do fantástico
como gênero literário. O fantástico do século XIX se apresentará como uma reação à
racionalidade positivista presente na construção do romance realista e naturalista desse século,
porém já no século XVIII - considerado o século da razão – encontramos a construção de um
modelo da proposta fantasmática, que se opõe ao racionalismo, sedimentado pelas fortes
influências nominalistas do século XVI e do cartesianismo do século XVII.
Descartes, no século XVII, estabelece um modelo para o desenvolvimento da razão, a
partir de uma teoria do juízo. Integra-se a essa teoria do juízo o discurso do método, o qual
oferece um quadro biográfico de seus anos de aprendizado por meio da fábula, que se verá
superada por uma visão epistemológica e que será descartada com o desenvolvimento e
maturidade do filósofo. Seus primeiros anos são alimentados pela literatura, pois ele
acreditava que, nos livros, estava a fonte da erudição. Mais tarde, Descartes tomará o
verossímil como falso, considerando verdadeiro apenas aquilo que evidentemente pode ser
reconhecido como tal, clara e distintamente, “sem nenhuma possibilidade de dúvida”.
O reconhecimento dentro do cogito cartesiano é, segundo Ricoeur (2006, p.43),
“simplesmente conhecer”; a hesitação será superada e dará lugar à clareza do entendimento,
sem que com isso Descartes abdique das questões que, para ele, somente poderiam ter sua
origem, como explicação, em Deus. Ricoeur (2006) evidencia que, na filosofia cartesiana, a
identidade individual seria fruto de uma autoconsciência criada a partir da consciência da
própria existência, juntamente com uma consciência da existência de Deus. Esse duplo motor
da consciência estabelecia outro duplo integrativo do ser humano: o pensamento e o corpo,
um distinto do outro, mas que juntos capacitam o ser humano motivado pela busca da
verdade.
O binômio pensamento e corpo, ou, dito de outra forma, reflexão e experiência em
busca da verdade, encontrava sua sombra, como contrapartida do processo, no risco do
engano, aceitando como verdadeiro aquilo que não o é.
Dentro do marco cartesiano que anima o século XVIII, o romance Gótico não
consegue manter um efeito fantástico que permaneça com a duração do tempo; é necessário
que tal efeito passe para a claridade da razão como algo natural e compreensível ou, ainda,
que seja aceito como um ato da vontade superior, mas que saia, por uma ou outra via, à luz do
29
reconhecimento como fenômeno natural ou sobrenatural, mas sempre mediante uma
explicação. No cartesianismo, a teoria do reconhecimento é antes uma teoria do
conhecimento, já que nunca prescinde de uma explicação, que seja capaz de distinguir
claramente a relação dialética que se estabelece entre o mesmo e o outro. O fantasma, ou o
fenômeno sobrenatural, deverá ser incorporado à rotina da mesmice, àquilo que a razão
explica, que é distinguido como outra coisa, algo não explicável pela razão, mas entendida e
aceita pela fé ou pela mística.
O reconhecimento, por essa via, torna-se incompleto, já que não explora a
interioridade do ser humano, apenas orienta-se da periferia de um ser humano para outro,
como manifestação autônoma externa. Uma maldição familiar, por exemplo, é tratada na
narrativa apenas como força sobrenatural opositora e não como elemento derivado da própria
atitude e condição interior das personagens. Quando o curso da narrativa leva à compreensão
de que o mal que se manifesta é fruto do próprio homem, e não do acaso ou da vontade de um
ente superior, a narrativa chega ao seu desenlace e assim se conclui. Por isso as personagens
são bem distintas quanto à natureza do bem e do mal. Para Devendra P. Varma, “o ideal
Gótico, forjado em melancólicos castelos e sombrias catedrais, parecia escuro e bárbaro para a
mente Renascentista”
17
(VARMA, 1966, p. 10, tradução nossa); e acrescenta ele que a
característica básica do romance Gótico seria a não presença de matizes humanas
acinzentadas: “as personagens são normalmente dotadas de aspecto sombrio, de infâmia
diabólica ou virtude pura, angelical”
18
(VARMA, 1966, p. 19, tradução nossa).
Nos jogos de luz e sombra, da luta do bem contra o mal, o romance Gótico retira seus
temas de construção dos elementos fantásticos, que aparecerão como elementos deslocados
temporalmente, já que o século XVIII, época das luzes, não é mais o espaço dos castelos
sombrios medievais, nem dos demônios e anjos presentes em uma tradição religiosa, que não
é a religião dos ingleses do século XVIII. O romance Gótico faz um resgate dos elementos
medievais, não só em relação aos temas, mas também na construção das tramas fantásticas,
que, na maior parte das vezes, eram elaboradas como uma novela de cavalaria. O
distanciamento, ora geográfico (retratando terras distantes), ora de época (retratando eventos
históricos da Idade Média), abre espaço para o surgimento de um olhar recuperado, aquilo que
a razão havia deposto e cuja falta, de alguma forma, essa sociedade se ressente.
17
A tradução é de minha responsabilidade: The Gothic ideal wrought in gloomy castles and sombre cathedrals
appeared dark and barbarous to the Renaissance mind.
18
A tradução é de minha responsabilidade: …the characters are mostly either endowed with sombre, diabolical
villainy or pure, angelic virtue.
30
Dorothy Scarborough (1917) também defende a idéia de que o romance Gótico surge
como uma reação ao racionalismo do século XVIII, por meio da utilização do horror e da
reconstrução de temas medievais. Para ela, O castelo de Otranto, de Horace Walpole, é a
obra inaugural do gênero, embora haja a utilização do fantástico antes dessa obra, “pois se
admite que o romance de terror surja com a curiosidade Romântica”
19
(SCARBOROUGH,
1917, p. 6).
No período de sua primeira publicação, em 24 de dezembro de 1764, O castelo de
Otranto foi apresentado como uma tradução de um texto medieval baseado numa história
real, que teria acontecido entre os séculos XII e XIII. O próprio prefácio do livro induz a essa
crença ao dizer que, “se a história tiver sido escrita na mesma época dos fatos, isso teria
acontecido entre 1095, período da primeira cruzada, e 1243, a época da segunda cruzada”
(WALPOLE, 1996, p.13). Depois de um ano da publicação, Walpole confessou ser o
verdadeiro autor da obra, que logo alcançou uma segunda edição.
Horace Walpole não era um escritor, escrevia apenas por diletantismo. Homem rico
em sua época, dedicava-se a colecionar peças exóticas, principalmente medievais. Era tanta
sua paixão pela Idade Média que construiu um palácio em Londres - ao estilo das construções
góticas medievais - que pode ter servido de modelo ou inspiração para a sua criação
romanesca.
Pouco seguro de suas habilidades literárias, editou O castelo de Otranto como se
fosse apenas tradutor da obra, e não o autor. No prefácio à primeira edição, Walpole diz que a
obra havia sido descoberta na biblioteca de uma família católica e que havia sido impressa em
Nápoles, no ano de 1529, em letras góticas. Talvez uma de suas inspirações para adotar tal
procedimento advenha do prestígio que em sua época adquiriram os manuscritos traduzidos -
do árabe para o francês e do francês para as demais línguas européias - inclusive das
Histórias das mil e uma noites, também de autoria anônima.
O recurso do distanciamento histórico e geográfico que o autor apresenta, assim como
o próprio título da obra, ajuda sua caracterização como algo exótico e diferente e, portanto,
passível de acontecimentos raros que, como adverte o autor, não são imagináveis nos
romances de sua época, e são muito mais apropriados para a mentalidade do século XI, época
dos acontecimentos relatados, ou mesmo para o século XVI, época em que o livro
supostamente teria sido escrito, em um país católico como a Itália.
19
A tradução é de minha responsabilidade: but the terror novel proper is generally conceded to begin with
Romantic curiosity.
31
Milagres, visões, adivinhações, sonhos e outros eventos sobrenaturais foram banidos
atualmente até mesmo dos romances. O mesmo não se dava quando nosso autor
estava escrevendo; muito menos quando a história estaria supostamente se passando.
(WALPOLE, 1996, p.14).
Segundo Walpole, o objetivo pretendido com a apresentação de algo exótico é
enquadrar com naturalidade a manifestação do sobrenatural e também o efeito do medo que
costura a narrativa e que lhe dá unidade.
O exotismo e o distanciamento histórico e geográfico dos acontecimentos são
contrabalançados pelo realismo das descrições dos espaços dos acontecimentos:
O autor freqüentemente parece, sem intenção premeditada, descrever algumas
divisões internas. O aposento, diz ele, da ala direita; a porta na ala esquerda; a
distância da capela ao apartamento de Conrado; essas e outras passagens são fortes
indícios de que o autor tinha um prédio determinado diante de seus olhos. Os
curiosos, que têm tempo livre para embrenhar-se em tais pesquisas, talvez possam
descobrir nos escritores italianos a fundação a partir da qual nosso autor edificou sua
obra. (WALPOLE, 1996, p.17).
Por um lado, o romance se reveste de uma aparência realista; com isso o elemento
estranho se evidencia como algo crível frente a um horizonte de expectativas racionalistas
para as quais a obra se destinava; por outro lado, à narrativa de O castelo de Otranto utiliza-
se do fato sobrenatural como elemento dissolvente das relações aparentes e superficiais das
personagens e como elemento de reconhecimento de uma verdade. Devemos, portanto, tomar
as personagens como seres de papel, como indica Todorov (2004), com suas angústias e
hesitações, para que, por meio do elemento fantástico, possamos descortinar a possibilidade
de um reconhecimento. O sobrenatural aparece como o outro que desfaz a miopia causada
pela incapacidade de se conhecer a si próprio e evidencia a essência das personagens por meio
de fantasmas externos.
Como nas novelas medievais, a real natureza do protagonista, nesse caso, Teodoro,
revela-se através de aparições externas. A manifestação do velho Afonso, o bom, dará
reconhecimento da natureza do herói como legítimo herdeiro de Otranto:
No instante em que Teodoro apareceu, as paredes do castelo atrás de Manfredo
desabaram, impelidas por uma força poderosa, e a figura de Afonso, ampliado a uma
imensa grandeza, apareceu no centro das ruínas.
- Este é Teodoro, o legítimo herdeiro de Afonso! – disse a visão. (WALPOLE, 1996,
p. 132).
32
Também H.P. Lovecraft (1998) dá, como data de surgimento do Romance Gótigo
inglês, a publicação de O Castelo de Otranto de Horace Walpole, em 1764. Para ele, há
precedentes do gênero tanto na Inglaterra, como por exemplo as poesias de Keats, quanto na
Alemanha, como as baladas de Gottfried. De fato, a base sobre a qual se constrói o Romance
Gótico inglês - o terror – é para Lovecraft tão antiga quanto a própria humanidade:
Os sentimentos definidos baseados no prazer e na dor nasciam em torno dos
fenômenos compreensíveis, enquanto que em torno dos fenômenos
incompreensíveis se teciam as personificações, as interpretações maravilhosas, as
sensações de medo e terror tão naturais em uma raça cujos conceitos eram
elementares e sua experiência limitada.
20
(LOVECRAFT, 1998, p.10).
Para o escritor e crítico norte-americano, o romance Gótico inglês nasce a partir de um
efeito psicológico que responde a causas antropológicas: o medo e a fascinação diante do
inexplicável. Lovecraft acrescenta que a base de inspiração para a construção da narrativa no
romance Gótico inglês virá das tradições populares e do folclore, legados da humanidade
graças a uma tradição oral. Esta é mais uma aproximação às concepções de Bioy Casares em
relação à literatura fantástica.
Embora Lovecraft (1998) considere Walpole um escritor de poucos recursos e muito
“pomposo”, admite o enorme prestígio que conquistou em função de sua publicação,
inicialmente lançada como uma mera adaptação de um mítico autor chamado Onofrio
Muralto.
O castelo de Otranto foi reeditado inúmeras vezes e se tornou um ícone da literatura
gótica. Copiado por diversos autores da época, sua fama se estendeu para além do Gótico.
Segundo Lukács (1989), O Castelo de Otranto tem a fama de ser o mais famoso “romance
histórico” do século XVIII, embora frise que o Romance Histórico do século XVIII ainda seja
apenas uma história de costumes, e o gênero em questão somente apareça de fato no século
XIX, com Walter Scott.
Também Otto Maria Carpeaux (1961) atribui a Walpole a virtude de precursor do
gênero: “O romance ‘gótico’ é criação de Horace Walpole” (CARPEAUX, 1961, p.1456).
Para Carpeaux, Walpole havia tentado imitar Shakespeare, que se acreditava, erroneamente,
ser um escritor medieval.
20
A tradução é de minha responsabilidade: Los sentimientos definidos basados en el placer y el dolor nacían en
torno a los fenómenos comprensibles, mientras que alrededor de los fenómenos incomprensibles se tejían las
personificaciones, las interpretaciones maravillosas, las sensaciones de miedo y terror tan naturales en una raza
cuyos conceptos eran elementales y su experiencia limitada.
33
Para Lovecraft, o valor da obra de Walpole reside mais no que ela inspirou em relação
às gerações seguintes do que na obra em si. Entre os inspirados, H.P. Lovecraft (1998) cita
Poe, a quem considera “um dos artífices do horror cósmico”. O modelo que deixa Walpole,
segundo Lovecraft, e que será tomado como roteiro por diversos escritores da época e
posteriores, baseia-se na construção temática de seu romance: o castelo, que às vezes aparece
como um casarão antigo e decadente; com cenários amplos, nichos escuros (porões, salas
secretas, grutas, covas, calabouços, etc.); alas ou salas fechadas e sem uso; galerias sombrias e
aterrorizantes; a presença de um vilão ou tirano como antagonista; a presença de uma donzela,
muitas vezes associada à idéia de pureza; o herói que, muitas vezes, apresenta-se disfarçado
de uma forma mais humilde; objetos raros ou antigos, muitas vezes em forma de manuscrito.
Lovecraft considera que esses temas são trabalhados de forma ingênua em quase todo o
romance Gótico, embora Varma defenda a idéia de que
... os romancistas Góticos contribuíram com componentes vitais ao romantismo. O
conteúdo, o estilo e o espírito do romance Gótico: suas imagens, temáticas,
personagens e cenários, perderam sua casca grosseira e emergiram, transformados,
nos elementos mais finos da poesia Romântica.
21
(VARMA, 1966, p. 189).
É inegável que, embora muito representativo para a literatura inglesa, o romance
Gótico tenha nascido como uma literatura menor e, com raras exceções, continuará assim até
sua transformação nos séculos XIX e XX, quando será incorporado a outros gêneros: a
literatura fantástica, o romance policial, weird tales
22
, a ficção científica e o romance de
horror e fantasia.
Para Railo, o despertar do romance Gótico não pode ser atribuído apenas às
influências góticas de Walpole e sim a um espírito de época, visto que há outras
manifestações similares acontecendo na mesma época:
Não se deve pensar que as atividades de Walpole em seu edifício gótico de
Strawberry Hill foram as únicas geradoras, na literatura, de seu desejo de
experimento, com espírito Gótico. A atenção daqueles dias estava, em geral – e de
forma expressamente calculada para inspirar os autores –, dirigida para o Gótico.
Edmund Burke, em 1756, publicou seu estudo de nossas idéias do sublime e do belo,
formulando assim a teoria que toda a escola do terror irá seguir na prática. Em 1762,
dois anos antes do surgimento de O castelo de Otranto, Bishop Hurd (1720-1808)
21
A tradução é de minha responsabilidade: The Ghotic novelists contributed some vital components of
romanticism, The matter, style, and spirit of Gothic romance, its images, themes, characters, and settings,
sloughed their gross husk and emerged transformed into the finer elements of Romantic poetry.
22
Literatura fantástica norte-americana, que tem seu precursor em Poe e seu auge na década de 1930, com H.P.
Lovecraft.
34
publicou as Cartas sobre Cavalaria e Romance, que deu grande suporte aos
irmãos Warton em sua admiração e interesse em antiguidades.
23
(RAILO, 1974, p. ).
A obra O castelo de Otranto, e com ela o romance Gótico, surge a partir das
inspirações da época, de um reavivamento do Gótico, especialmente da arquitetura,
juntamente com o espírito arqueológico e de coleta, não apenas dos elementos da Idade
Média, mas também do Oriente. Esses elementos, deslocados da Europa do século XVIII, não
eram tomados apenas como exóticos, mas principalmente como uma forma mais natural de
viver.
Poderíamos mesmo dizer que o romance Gótico é a adaptação das estórias de terror da
Idade Média para o gênero que se instaurou com o desenvolvimento da Burguesia: o
Romance.
Coleridge diz, em sua Biographia Literaria, que o segredo da literatura Gótica
consiste na “confusão e subversão da ordem natural das coisas em suas causas e efeitos”
(Apud KIELY, 1972, p.36). Robert Kiely admite que haja uma subversão social em grande
escala no romance Gótico pela aceitação do fora-da-lei e do excluído, mas defende que, mais
do que amplidão social, a revolução trazida pelo Gótico limita-se às questões das relações
humanas, não subvertendo as estruturas:
... “a confusão não existiu entre legislador e renegado, mas entre pai e filho, irmão e
irmã, amante e esposa. Relações humanas básicas foram apresentadas em uma
desordem extrema, simbolizada mais comumente em questões sexuais – adultério,
incesto, pederastia.”
24
(KIELY, 1972, p. 36).
O romance Gótico, na linha de oposição romântica ao classicismo, também se coloca
contra o racionalismo do século XVIII. Sua inspiração, como evidencia O Castelo de
Otranto, está na arquitetura gótica, que representa uma ruptura medieval dos padrões greco-
romanos de construção, com a utilização de arcos verticais, esculturas decorativas e vitrais.
23
A tradução é de minha responsabilidade: This is not be taken as implying that Walpole’s Gothic building
activities at Strawberry Hill were the sole generators of his desire to experiment with the Gothic spirit in
literature. The attention of those days was in general, and in a manner expressly calculated to inspire authors,
directed towards the Gothic. Edmund Burke had, in 1756, published his study of our ideas of the sublime and
beautiful, thereby formulating the theory which the whole school of terror followed in practise. And in 1762, two
years before the appearance of The Castle of Otranto, Bishop Hurd (1720-1808) had published those Letters on
Chivalry and Romance, which furnished powerful support to the brothers Warton in their delight and interest in
antiquities.
24
A tradução é de minha responsabilidade: The confusion existed not between lawmaker and renegade, but
between father and son, brother and sister, lover and mistress. Basic human relationships were thrown into an
extreme disorder which was symbolized most commonly in sexual terms – adultery, incest, pederasty.
35
Essa tendência arquitetônica é retomada na Inglaterra no século XVIII, havendo um
ressurgimento do Gótico que repercutirá também na literatura, como uma retomada do
maravilhoso medieval, dando-lhe, porém, um novo sentido.
O romance Gótico exercerá grande influência na literatura do final do século XVIII e
do início do século XIX, tornando-se uma influência de grande impacto na literatura mundial
e principalmente no surgimento do gênero fantástico, através de seus elementos de mistério e
de relações sobrenaturais ou anormais, combinadas agora com o espírito do realismo e do
naturalismo:
A contribuição do romance Gótico para a ficção do século XIX não foi apenas no
sentido da estrutura, mas também em um espírito de curiosidade e admiração diante
do mistério das coisas. Estruturalmente, combinou-se o método gótico de suspense
dramático com o tipo picaresco e, na temática, o espírito romântico se mesclou com
o espírito do realismo.
25
(VARMA, 1966, p. 199).
Em relação às influências do romance Gótico no século XIX, Varma defende a idéia
de que o romance Gótico
... influenciou surpreendentemente o curso principal da literatura inglesa de várias
formas e, para seguir a corrente irregular da literatura nos primeiros anos do século
XIX, deve-se estar familiarizado com os notáveis exemplares do romance Gótico.
26
(VARMA, 1966, p.3).
Como descendentes do Gótico, Varma aponta H.G. Wells e C.S. Lewis, na Europa, e
Hawthorne e Poe, na América. Scarborough (1917) alinha uma série de autores que receberam
influência direta ou indireta do Gótico, entre eles: Poe e Hawthorne, influenciados por E.T.A.
Hoffmann e Ludwig Tieck; Balzac, que escreveu Melmoth Reconcilié, uma alusão direta ao
romance Melmoth, de Maturin; Oscar Wilde, com seu romance O retrato de Dorian Grey;
Guy de Maupassant, entre muitos outros escritores na Europa e na América.
Para Scarborough, essa influência do Gótico não é total, mas vem acrescida de outros
elementos próprios do final do século XVIII e principalmente do século XIX:
A ficção sobrenatural que se seguiu utilizou as mesmas fontes e ainda sofreu várias
outras influências e veias de inspiração literária não abertas ao Gótico. A ciência
25
A tradução é de minha responsabilidade: The contribution of the Gothic novel to nineteenth-century fiction
was nor merely a sense of structure, but also a certain spirit of curiosity and awe before the mystery of things. In
structure the ‘Gothic’ method of dramatic suspense was combined with the picaresque type, and in theme the
romantic spirit was made to blend with the spirit of realism.
26
A tradução é de minha responsabilidade: ...influenced the main course of English literature in a
surprising number of ways, and in order to follow the wayward current of literature through the early
years of the nineteenth century, one must be familiar with the notable exemplars of Gothic romance.
36
moderna, com os novos milagres de seus laboratórios, sugestivamente inspirou
incontáveis enredos; o novo estudo do folclore e as investigações acadêmicas nesse
campo deram nascimento a uma riqueza inesperada de material sobrenatural;
sociedades de pesquisas físicas, com seus registros pacientes e acolhedores das
forças do invisível; o espiritualismo moderno, com suas tentativas de ligar este
mundo ao outro mundo; a magia dos sonhos estudados cientificamente. Tudo isso
sugeriu novos temas, complicações de enredo, até então elementos desconhecidos,
continuadores do sobrenatural na ficção.
27
(SCARBOROUGH, 1917, p. 55).
O romance Gótico, ao tentar incorporar os elementos medievais, encontra os
impedimentos das barreiras do racionalismo do século XVIII, o qual se opõe à aceitação do
sobrenatural e do fenômeno ilógico ou irracional. E assim, no romance Gótico, o fantástico
tende a ser explicado por meio da racionalidade, como fazia Ann Radcliffe, ou já vem como
produto da ciência, como o Frankenstein de Mary Shelley. Lembramos que a arte Gótica na
Idade Média já é uma tentativa de harmonização de forças em conflito. Criado a partir dos
interesses da Igreja, mas financiado pela burguesia e pela nobreza, “o gótico estava ligado à
cultura que se desenvolvia nas escolas urbanas, ao pensamento que redescobrindo a obra de
Aristóteles procurava harmonizar Fé e Razão” (FRANCO JUNIOR, 1998, p.135).
A arte Gótica medieval, segundo Franco Junior, não era apenas uma manifestação da
religião, visto que também incorporava elementos da cultura laica ou popular: monstros, seres
fantásticos, dragões e demônios. Esses dois elementos estão presentes na arte Gótica esses
dois elementos: um, representativo do religioso e, portanto, do sagrado medieval, e o outro,
introdutor do elemento laico ou profano, estreitamente associado às lendas e tradições. Mircea
Eliade, em seu livro O sagrado e o profano (1996), fala em hierofania como a interface entre
esses dois mundos e, mais do que pensar em fenômenos sobrenaturais, dever-se-ia pensar
nesse espírito hierofânico, pois como afirma Hilário Franco Junior:
De fato, tendo uma cosmologia pela qual todas as partes do Universo estão estreita e
indissoluvelmente ligadas entre si, o medievo entendia a natureza num sentido
amplo. Não havia propriamente aquilo que chamamos sobrenatural: a própria
palavra surgiu apenas no século XIII, no contexto do desenvolvimento de uma nova
concepção da natureza, ocorriam freqüentemente, isso sim, hierofanias ou
‘manifestações do sagrado’ em setores da vida que hoje consideramos profanos,
diferenciados do campo ‘religioso’, como a política ou a economia. (FRANCO
JUNIOR, 1998, p.151).
27
A tradução é de minha responsabilidade: The supernatural fiction following it still had the same sources on
which to draw, and in addition had various other influences and veins of literary inspiration not open to
Gothicism. Modern science, with the new miracles of its laboratories, proved suggestive of countless plots; the
new study of folk-lore and the scholarly investigations in that field unearthed an unguessed wealth of
supernatural material; Psychical Research societies with their patient and sympathetic record of the forces of the
unseen; modern spiritualism with its attempts to link this world to the next; the wizardry of dreams studied
scientifically, - all suggested new themes, novel complications, hitherto unknown elements continuing the
supernatural in fiction.
37
Esses “setores da vida que hoje consideramos profanos” não eram assim considerados
na Idade Média, cuja religiosidade, cristã e ainda derivada de outras tradições, está presente
como um laço que unifica todos os setores da vida. Vive-se a religiosidade de uma forma
mítica, como elemento fundador da sociedade, e todas as atividades derivam do processo de
reatualização mítica do mistério: o trabalho da terra e os fatores econômicos que dela surgem
não são o resultado da exploração da terra. Mircea Eliade, ao referir-se ao mito nas sociedades
religiosas, diz que “o trabalho agrícola é um ritual revelado [...] É por isso que constitui um
ato real e significativo.” (ELIADE, 1996, p. 85). Essa é uma das concepções que a Idade
Média herdou do Mundo Antigo e que tem uma relação com o maravilhoso.
A Idade Média, assim como as demais sociedades agrárias, é mítica por excelência.
Há nela um cruzamento de tradições pagãs e cristãs. O ciclo arturiano é um exemplo desse
entrecruzamento, além de se constituir em um modelo mítico das ações exemplares, marcadas
pelos heróis que fundam modelos de vida. A Idade Média está repleta de monstros, bruxas,
milagres, feitiçarias, anjos, demônios, seres híbridos, aparições e acontecimentos
sobrenaturais; mas todos eles têm lugar na visão de mundo daquela época; todos os elementos
do sobrenatural e do maravilhoso são muitas vezes relegados às horas noturnas, à escuridão -
por sinal bastante ampla numa sociedade praticamente sem iluminação artificial; constituíam-
se em elementos da realidade social. Mesmo as regiões do mundo não humano, origem do
mágico e do maravilhoso, tanto de caráter religioso, como a representação do bem, da luz,
quanto de caráter maligno - sombras, escuridão, o mal, o diabo -, eram acessíveis ao mundo e
ao homem comum. Paraíso e inferno e, mais tarde, também o purgatório, são crenças comuns
a todos e as várias lendas, contos e estórias que narram aventuras por esses espaços, mais do
que imagens poéticas, são elementos presentes na psicologia do homem medieval.
O maravilhoso perturba o menos possível a regularidade quotidiana; e
provavelmente é exatamente este o dado mais inquietante do maravilhoso medieval,
ou seja, o fato de ninguém se interrogar sobre sua presença, que não tem ligação
com o quotidiano e está, no entanto, totalmente inserida nele. (Le GOFF, 1985, p. 28
APUD FRANCO JUNIOR, 1998, p.154).
Essa visão hierofânica não se rompe de vez com o final da Idade Média; ela perdura
ainda por muito tempo e não podemos deixar de ver o Gótico no romance como uma espécie
de retomada desses elementos, uma espécie de arqueologia literária, que busca nas ruínas da
Idade Média os motivos para uma reelaboração do tema do sobrenatural, do mágico, do
maravilhoso e do fantástico.
38
No romance Gótico, esses elementos aparecem não apenas transformados, mas
também deslocados. “O romance ‘gótico’, porém, preferiu os castelos italianos e espanhóis –
atração irresistível dos ‘mistérios do catolicismo’ para ingênuos leitores protestantes do século
racionalista”, diz Carpeaux (1961, p. 1457).
Há um deslocamento da religião predominante, o catolicismo, para o protestantismo.
A transformação ocorre em função da mudança do paradigma social: de uma sociedade
hierofânica, crente nas ciências ocultas e mágicas, para uma sociedade burguesa e
racionalista.
O romance gótico, com sua aparência de maravilhoso, traveste-se também de literatura
de ruptura, surgindo como elemento aparentemente revolucionário frente à estética classicista;
porém apenas na aparência, já que, como diz Carpeaux, “a classe que os criou – a dos
intelectuais a serviço do novo público – não era capaz de fazer Revoluções nem o pretendeu”
(1961, p. 1459). O romance Gótico como literatura “para o povo” tornou-se uma literatura
secundária, sempre à margem do romance Romântico e por ele foi eclipsado, ainda que tenha,
como vimos, exercido forte influência em muitos autores de prestígio. Enquanto no
maravilhoso medieval o sobrenatural não se apresenta como índice de exclusão - está
incorporado na dinâmica social e o fato narrado não pode ser realizado sem a inclusão desse
maravilhoso -, no romance Gótico, o sobrenatural se relaciona com o diferente, o exótico e
assustador. Esse último remete a uma visão de mundo diferente da esperada; representa o
elemento excluído, que não faz parte da dinâmica da sociedade, porém esse elemento não se
refere ao marginalizado social; inclusive, sobre ele há uma visão romântica que o acolhe
ternamente. A exclusão se dá mais no âmbito das relações, dos distanciamentos afetivos, da
convivência familiar, das relações sexuais, dos elementos que fazem parte da vida, mas que
não são expostos à “luz do dia”. Ao contrário, no romance Gótico, são expostos pelas
sombras, pelos cantos, nos castelos antigos, nos porões, por meio dos fantasmas, das bruxas,
dos feiticeiros, dos sortilégios e das maldições: estão sempre fora do alcance e acobertados.
39
3.2 O fantástico no século XIX: o reconhecimento das fantasmagorias no
espaço da consciência
Podemos apontar a origem do fantástico como gênero literário na Europa do século
XIX. É o ambiente desse século, com suas forças socioculturais, que formam o local e o
momento propício para o surgimento do gênero que, como demonstra Todorov (1968) em seu
trabalho basilar sobre a literatura fantástica, pode agora apoiar-se em elementos estruturais
que conferem ao gênero seu caráter literário.
Precursor ao trabalho de Todorov, encontramos o ensaio de Tomachevski, Temática
(1915), que analisa o fantástico sob a perspectiva da motivação realista, que aspira ser real e
fictícia ao mesmo tempo, e que “tem como fonte seja a confiança ingênua, seja a exigência de
ilusão” (TOMACHEVSKI, 1976, p.188). A necessidade de ajustar a literatura, graças à
pressão de um público leitor, aos padrões realistas, não impede a existência de uma literatura
fantástica que se apóia, fundamentalmente, nas tradições populares.
Porém, ainda segundo Tomachevski, em um meio mais evoluído que o da tradição
popular, o relato fantástico ganha uma dupla interpretação fabular: “Podemos compreendê-los
de uma só vez como acontecimentos reais e como acontecimentos fantásticos
(TOMACHEVSKI, 1978, p.189).
Essa dupla interpretação fabular proposta pelo formalista russo está na base da definição
de Todorov do fantástico na literatura:
O fantástico se fundamenta essencialmente numa hesitação do leitor – um leitor que
se identifica com a personagem principal – quanto à natureza de um acontecimento
estranho. Esta hesitação pode se resolver seja porque se admite que o acontecimento
pertence à realidade; seja porque se decide que é fruto da imaginação ou resultado
de uma ilusão; em outros termos, pode-se decidir se o acontecimento é ou não é. Por
outro lado, o fantástico exige um certo tipo de leitura: sem o que, arriscamo-nos a
resvalar ou para a alegoria ou para a poesia. (TODOROV, 2004, p.166).
Essa é a síntese da definição da literatura fantástica para Todorov, que encontramos na
sua Introdução à literatura fantástica (1968).
O termo “introdução” deve-se ao fato de que seu trabalho de pesquisa não esgota uma
obra, mas, ao contrário, pincela vários estudos sobre o fantástico no século XIX, bem como
obras consideradas pertencentes a gêneros limítrofes, como o maravilhoso e o estranho.
Partindo da obra de Cazotte, Le Diable amourex, Todorov mostra a hesitação da
personagem, e do leitor, em explicar um fenômeno que pode ter uma explicação racional –
ilusão ou sonho - ou uma explicação que admita a existência de entidades sobrenaturais. Não
40
assumir uma ou outra definição mantém a narrativa na ambigüidade e, portanto, no plano do
fantástico:
... o fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o
fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O
fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais,
face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 2004, p. 31).
Assim, quando a narrativa deixa de imprimir no protagonista e, através dele, no
narratário o caráter hesitante e se define como um acontecimento sobrenatural desloca-se para
o maravilhoso; se a perda da hesitação se dá pela explicação racional, surge o estranho.
A hesitação para Todorov é o fluxo vital que antepõe o real e o irreal ou as noções da
realidade e da literatura, que caracterizam o fantástico como gênero: “o conceito de fantástico
se define em relação aos de real e de imaginário” (2004, p.31). A hesitação ocorre a partir do
surgimento de um acontecimento inexplicável em um mundo até então normal, como define
Felipe Furtado em seu livro A construção do fantástico na narrativa:
Tais manifestações não irrompem de forma arbitrária num mundo já de si
completamente transfigurado. Ao contrário, surgem a dado momento no contexto de
uma acção e de um enquadramento espacial até então supostamente normais.
(FURTADO, 1980, p.19).
Em vez de nomear o evento como sobrenatural, Furtado prefere o termo meta-empírico
para significar todo acontecimento que esteja para além do verificável por meio da
experiência, incluindo nesse tipo de fenômeno não apenas o sobrenatural, mas também
aqueles fatos que não podem ser explicados empiricamente devido ao erro ou ao
desconhecimento. Assim, algo que se manifesta como sobrenatural, em algum momento,
poderá ter uma explicação racional; e ainda: o sobrenatural para um grupo ou comunidade
pode ser tomado como natural por outra comunidade.
Com isso, Furtado acrescenta outra característica ao gênero fantástico: além da
hesitação, já definida por Todorov (1978), o fantástico necessita que o fenômeno sobrenatural
tenha uma característica negativa, ou seja, a manifestação sobrenatural terá que estar
associada a algum tipo de mal, para que haja o confronto com os aspectos realistas da
narrativa:
Assim, só o sobrenatural negativo convém à construção do fantástico, pois só
através dele se realiza inteiramente o mundo alucinante, cuja confrontação com um
sistema de natureza de aparência normal à narrativa do gênero tem de encenar.
(FURTADO, 1980, p.22).
41
O sobrenatural positivo se manifesta representado pelos elementos axiologicamente
associados ao bem, que não são transgressores da ordem do real; pelo contrário, são
coadjuvantes na restauração dessa ordem e não são capazes de produzir a angústia necessária
ao processo de hesitação que deverá espraiar-se pelo texto.
Para Todorov (1978), o agente da hesitação é o leitor integrado ao mundo das
personagens; não se trata de um leitor real e sim de um leitor implicado no texto, ou,
utilizando um termo de Genette, do narratário. A hesitação do narratário, portanto, será a
primeira exigência para que o fantástico se dê.
Para Furtado. o narratário intradiegético, aquele que atua na ação como personagem, ou
mesmo o narratário extradiegético, que se coloca exterior à história, embora tenha
importância na transmissão da ambigüidade, a partir da ocorrência de um fenômeno meta-
empírico, não pode, por si só, definir o gênero:
Assim, facilmente se depreende que afastar o traço distintivo do fantástico da sua
situação própria (a ambigüidade) para o colocar no papel (nem sempre explícito ou
convincente) destinado ao narratário, como o faz Todorov, equivale a dar prioridade
ao acessório sobre o essencial, privilegiando um factor aleatório em desfavor de uma
característica constante de qualquer narrativa que se inscreva no gênero.
(FURTADO, 1980, p.76).
Furtado não se contenta com a tentativa de definir o gênero fantástico nem a partir de
seu impacto no leitor real, pela carga subjetiva que essa escolha implicaria, nem a partir de
apenas um elemento da narrativa, como a personagem ou o narratário. Para ele, a hesitação
deve permear toda a intriga, deve ser intrínseca à ação e deve se alastrar a todas as estruturas
do discurso: “assim serão vários traços do género realizados no texto que irão conduzir o
narratário (e com ele uma desejável maioria de leitores reais) à reacção esperada”
(FURTADO, 1980, p. 78).
Outra questão sobre a qual Todorov e Furtado estão de acordo diz respeito ao fato de
que, para existir o fantástico, não pode haver nem uma leitura poética nem uma leitura
alegórica. A leitura poética está vedada ao fantástico, já que ele necessita do processo de
ficção, e se assemelha à narrativa elementar. Recusar o processo de representação, ainda que
minimamente, e considerar “cada frase como pura combinação semântica” (TODOROV,
2004, p. 68) exclui a possibilidade de surgimento do fantástico.
Já a alegoria carrega um duplo sentido que pode permanecer presente ou pode apagar-se,
mas remete o termo sempre a outro sentido. O fenômeno meta-empírico, por sua vez, precisa
42
ser tomado literalmente, caso contrário poderá ser remetido a um sentido fora de sua
condição: o fantástico logo desaparece.
O fantástico é, pois, um gênero instável: não admite o poético nem o alegórico, e
necessita de uma constante hesitação presente em boa parte da estrutura do texto. A hesitação
deve ser permanente, caso contrário o fantástico desaparece; além de instável, ele é acossado
pelo estranho, de um lado, e pelo maravilhoso, de outro.
Todorov e Furtado, para elaborarem suas análises, partem de várias obras, inclusive
algumas que não estão estritamente ligadas ao gênero, mas que incorporam elementos do
maravilhoso o do estranho, como é o caso de As mil e uma noites, pertencente ao
maravilhoso, e A queda da casa de Usher, de Poe, que, por sua explicação final racional,
desloca a narrativa para o campo do estranho.
Dentro da linha do fantástico, como proposto por Todorov, encontramos, também de
Poe, O gato Preto (1843). O conto se inicia com uma apresentação bastante provocadora:
“Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto,
bastante doméstica que vou narrar.” (POE, 1981, p.41).
O título do conto já nos prepara para uma ação instigadora, já que o gato preto, ainda em
nossa época, está carregado de fortes conotações negativas próximas ao maravilhoso. O
narrador-personagem inicia o processo de ambigüidade já nas primeiras linhas, criando uma
identificação com o leitor. A oposição entre o extraordinário, por um lado, que nos prepara
para um grande evento do qual poderíamos duvidar, como fingidamente espera o narrador,
coloca-se, por outro lado, em oposição à questão doméstica e, portanto, trivial, que cria o
ambiente para a aceitação do evento sobrenatural. A continuação do conto reforça, na
estrutura do texto, essa ambigüidade: “Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um
caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com
toda a certeza, não sonho.” (POE, 1981, p.41).
Já nas primeiras linhas se estabelece a condição da ambigüidade entre o estranho e o
maravilhoso que, ao se manter até o final, confere à narrativa de O gato preto sua participação
no gênero fantástico. Segundo Todorov, esse seria um dos poucos contos de Poe que se insere
no fantástico. A obra do autor seria uma “experiência dos limites” (TODOROV, 2004, p.54),
capaz de encenar as questões da realidade em seus limites transgressivos que, em certo
sentido, marcam muito o século XIX, com suas reflexões sobre o homem e sua interioridade.
O elemento fantasmático insere-se na consciência individual e apresenta-se relacionado
ao tema das drogas, da ilusão, da loucura, do mundo onírico. O fantástico guardará
proximidade com essa temática, sem abrir mão porém de outra explicação que não possa, pelo
43
menos naquele momento, ser acolhida pela razão. Por isso o narrador do O gato preto faz um
apelo para que:
Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo
comum – uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que
a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do
que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais. (POE, 1981, p.41).
Nessas linhas de Poe podemos antever todo o desconforto da sociedade européia do
século XIX, na qual, como evidencia Roger Bozzeto, em seu texto Le fantastique “fin de
siècle”, hanté par la réalité (2007), há na sociedade européia uma agitação causada por três
forças vetoriais sobrepostas. A primeira diz respeito a uma visão otimista causada pelas
questões da razão, do desenvolvimento da ciência e do poder da tecnologia, que marcavam,
para o cidadão daquela época, um futuro feliz, identificado com o progresso. A segunda fala
de uma visão pessimista, encarnada pelo romantismo tardio, com sua visão de sofrimento e
perda, da idealização romântica da Idade Média e das paisagens, enquanto que, por contraste,
há um acentuado avanço no processo de urbanização. A terceira apresenta uma visão niilista,
com grande influência sobre vários autores desse final de século, a partir das teorias de
Schopenhauer.
A interação dessas três forças tem significativo impacto no pensamento do final do
século XIX. Segundo Bozzetto, “esta crise, e os meios empregados pelos criadores desta
época para sair da crise – pelo menos para dar-lhe uma solução estética viável – apesar de
seus aspectos heterogêneos, contraditórios, desenharam uma nova base epistemológica, a
saber, a base da modernidade”
28
(BOZZETTO, 2007).
Para Bozzetto, os acontecimentos que embasam sua interpretação seriam os seguintes:
A consideração, pela psicologia, dos fatores relacionados com o inconsciente: Charcot
(1825) e Freud (1856);
O posicionamento do homem em relação à natureza, com a publicação da Origem das
Espécies, por Darwin, em 1859;
O Manifesto do partido comunista, em 1848, e o fim da Comuna, em 1872;
A divisão do mundo pelas grandes potências e o domínio da China pelos europeus
(1860);
O desenvolvimento tecnológico e as grandes invenções.
28
A tradução é de minha responsabilidade: ...cette crise, et les moyens employés par le créateurs de cette époque
pour en sortir – au moins pour en donner une solution esthétique viable – malgré leurs aspects hétérogènes,
contradictoires, dessinent un socle épistémologique nouveau, qui sera celui de la modernité.
44
As mudanças velozes do final do século contrastam com a mentalidade conservadora da
época. Por um lado, há um sentimento de grande insegurança frente às mudanças e, por outro,
verifica-se uma insatisfação pelo tipo de vida comum, ainda não transformada por tão
maravilhosos acontecimentos.
Na literatura, tem-se o Romance Realista, seguido pelo Naturalista e ainda pelo
Simbolismo, como duas formas de apreensão e expressão literárias. É na confluência dessas
duas tendências, a partir de um ponto de vista original, que surge o fantástico como gênero
literário que se utilizará dos elementos da realidade, como em toda a literatura, de forma
fingida, ou, como defende Furtado, com uma falsidade verossímil:
Tal como o género maravilhoso, o fantástico propõe ao destinatário da enunciação
um universo em que algumas categorias do real foram abolidas, ou alteradas,
passando a funcionar de uma forma insólita, aberrante, inimaginável. Tal como o
maravilhoso, o fantástico não permite que uma explicação racional venha repor a
lógica nesse mundo aparentemente “outro” e reinstale, por completo, o leitor no real.
Porém, ao invés do maravilhoso, o fantástico não apresenta a imagem desse universo
alucinado com o seu valor facial, não chama as coisas pelos seus nomes. Pelo
contrário falseia constantemente tal imagem, procurando suscitar a indecisão entre
considerar ou não esse mundo como real. (FURTADO, 1980, p.44).
O mundo que o fantástico anuncia não é um mundo de certezas, mas de indefinição, que
busca levar o narratário, e com ele o leitor real, a um mundo com a falsa aparência de
normalidade. Por isso o narrador de O gato preto fala de acontecimentos “domésticos”,
tentando insinuar, com isso, a mais absoluta normalidade, embora já prepare o receptor de seu
texto para o acontecimento sem explicação possível:
Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu
propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem
comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas
conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No
entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão
horror – mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotescos.
(POE, 1981, p 41).
Vê-se que o narrador quer fazer uma confissão, já que “amanhã” pode morrer, e quem
não aceita de bom grado uma confissão? Quemo toma a confissão de alguém que está para
morrer como algo sério e verdadeiro? Assim, o narrador prepara o espírito de seu destinatário
para o acontecimento insólito que ocorrerá, não sem antes graduar com mais intensidade essa
preparação:
45
Minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia
freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são
feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato
apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento. (POE, 1981, p 41).
O gato, Pluto – referência a Plutão, que na mitologia romana é o deus do mundo dos
mortos – é, na seqüência da narrativa, agredido pelo narrador-personagem, em função de seu
estado cada vez mais lastimável de alcoolismo, acabando finalmente morto por enforcamento.
A violência, a morte do gato, o nome do gato, a relação entre gatos pretos e a feitiçaria,
o tom confessional do discurso, o alcoolismo e a condução fingida do narrador de um tom
envolvente e de efeito graduado na preparação de um destinatário para a seqüência narrativa
fazem eclodir quase que espontaneamente o evento estranho: um incêndio ocorre no mesmo
dia em que o gato é enforcado e destrói toda a casa e os bens do protagonista da história. Uma
única parede permanece de pé, e nela se estampa, em baixo relevo, a figura gigantesca de um
gato com uma corda no pescoço. “A imagem era de uma exatidão verdadeiramente
maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço do animal.” (POE, 1981, p. 45).
A expressão “maravilhosa”, assim como outras de mesmo teor presentes no texto, como
“estranho” e “singular”, se contrapõe a “não pretendo estabelecer relação de causa e efeito”
e “estou descrevendo uma seqüência de fatos”, bem como as explicações racionais que
surgem no texto para dar conta do fenômeno do estampamento do gato na única parede que o
fogo não havia destruído. Essa oposição mantém o texto na ambigüidade, não dando ao
narratário nenhuma pista em direção a uma solução do enigma. Mesmo o narrador-
protagonista alterna entre estados de razão e de alucinação, em função de sua constante
embriaguez.
O clima sobrenatural aumenta quando o narrador-personagem se depara com um gato
preto que o olhava fixamente e que tinha a mesma aparência de Pluto, inclusive a mesma
deficiência em um dos olhos. A única diferença era uma mecha branca, que o outro não
possuía, em forma de forca em volta do pescoço.
Agoniado e atormentado pelo pesadelo que era a presença daquele gato, o protagonista,
munido de uma machadinha, arremete contra o animal:
Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria
demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no
cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido. (POE,
1981, p. 48).
46
O mal, ou como nomeia Furtado, o maravilhoso negativo, que no século XVIII se
manifestava por meio da aparição de entidades maléficas, como o demônio, no século XIX
transfere-se para o interior do indivíduo e passa a ser um estado psicológico do ser humano,
passando à categoria de “fúria demoníaca”. Há, nesse caso, um reconhecimento do outro em
si mesmo, e também de si mesmo no outro, que será objeto de estudo da psicanálise no século
XX. O fantasma instala-se no interior da consciência ou, como define Todorov,
é o apagamento do limite entre sujeito e objeto. O esquema racional nos apresenta o
ser humano como um sujeito que entra em relação com outras pessoas ou com coisas
que lhe são exteriores, e que têm o estatuto de objeto. A literatura fantástica abala
esta separação abrupta (TODOROV 2004, p.124-5).
Ou ainda: “Olha-se um objeto; mas não há mais fronteiras entre o objeto, com suas formas
e suas cores, e o observador.” (TODOROV, 2004, p. 125).
No caso do conto em questão, aproveitando-se da reforma do porão, o narrador-
personagem empareda sua mulher e, com sua morte, o gato não é mais visto. Justifica a
ausência da mulher dizendo que ela o havia abandonado e gaba-se consigo mesmo de, após
três visitas da polícia com revista à casa, nada ter sido encontrado. Mas o fantasma
exterioriza-se. Há uma necessidade de reconhecimento, de poder ser reconhecido por algo que
se fez bem, ainda que seja perverso.
Uma declaração do tipo: fui eu que fiz. É o que o personagem homérico e o herói
trágico eram capazes de afirmar. Para nós, modernos, essa frase de apropriação
perdeu sua inocência; ela deve ser reconquistada com operações de objetivação que
alinham os acontecimentos que se faz ocorrer intencionalmente sobre os
acontecimentos que simplesmente ocorrem. (RICOEUR, 2006, p.111-2).
Em uma quarta visita da polícia, não suportando a sensação de triunfo, nosso herói, às
avessas, se entrega:
--- Senhores --- disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada ---, é para
mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os
senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores,
que esta é uma casa muito bem construída...(Quase não sabia o que dizia, em meu
insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa
excelentemente construída. Estas paredes --- os senhores já se vão? ---, estas paredes
são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a
bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o
corpo da esposa de meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou
no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro
entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com
47
um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um
uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia
ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios
exultantes com a sua condenação. (POE, 1981, p 51).
O gato havia sido emparedado junto com o corpo da mulher.
Essa é uma explicação racional, porém não totalmente convincente, em função da
própria construção narrativa. Primeiro, há o desejo, quase confesso, do narrador-personagem
de ser pego e reconhecido como astuto e brilhante perante os demais, como se uma força
externa que conduzisse sua ação. Segundo, a maneira como o gato responde, ou seja, trata-se
do volume de seu miado, criando a sensação de que algo está se manifestando de forma
concreta naquele momento: um choro abafado, soluços de criança, gritos prolongados,
estridentes, contínuos, inumanos e agudos de horror e de triunfo. O aspecto do triunfo,
inclusive, confere ao grito a particularidade da inteligência, do contentamento feito com a
reflexão, conferindo ao gato características para além de sua natureza.
Há a possibilidade de uma explicação racional: o gato era muito semelhante ao anterior
e a mecha em forma de forca, apenas uma coincidência. O emparedamento do gato, por
descuido, não apaga o caráter amplamente reforçado na narrativa da possibilidade do
sobrenatural. Como defende Furtado,
a racionalização não só não desfaz a manifestação insólita encenada na narrativa,
como tem até um papel freqüentemente importante na sua consolidação, dado que,
além de a não pôr globalmente em causa, suscita no destinatário do enunciado uma
ilusão de confiança na “imparcialidade” do narrador, tornando-se assim um
importante fator de verossimilhança. (FURTADO, 1980, p.67).
No conto O gato preto, os gritos demoníacos emitidos de dentro da parede pelo animal,
bem como o qualificativo de monstro que o narrador dá ao gato ao final da narração, não
devem ser tomados em um sentido figurado, mas ao pé da letra, como nos alerta Todorov
(2004, p.85), para que a condição da hesitação, e por conseguinte a do fantástico, se instale na
narrativa.
Outro quesito importante, ainda segundo Todorov (2004, p.90), para o discurso
fantástico, diz respeito ao narrador, que diz “eu”. O narrador é aquele que tem uma história
para contar, que sabe, que viveu ou testemunhou uma experiência e pode, agora, narrá-la.
Sobre a narrativa paira uma aura de verdade; acreditamos no narrador, porém, como diz
Todorov (2004, p. 91), “a linguagem literária é uma linguagem convencional em que a prova
de verdade é impossível”.
48
O narrador-personagem acentua a ambigüidade por meio do jogo verdade-encenação e
é, por isso, o mais apropriado para o fantástico em função da própria natureza ambígua que
permeia o gênero.
Em O gato preto, o “eu-narrador” é também o “eu-alcoólatra” (que se torna violento
com seu animal doméstico e é também o “eu-assassino” que mata a mulher) são questões
domésticas e de horror. Essas três dimensões do “eu-narrador” já estão concentradas nas
primeiras linhas do conto, o qual, como diz Poe na sua Filosofia da Composição (1846), deve
ter em vista, desde o início, o efeito final: “Não espero nem peço que se dê crédito à história
sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar.” (POE, 1981,
p.41).
49
3.3 O fantástico no século XX: o reconhecimento da realidade como
fantasmática, absurda e paradoxal
Sartre, em seu texto sobre o Aminadab, de Blanchot, publicado em Situations I,
Gallimard, 1947, explora o texto fantástico a partir da linguagem. Ao analisar o estilo do autor
em comparação com o estilo de Kafka, Sartre explicita os elementos comuns a ambos:
O mesmo estilo minucioso e cortês, a mesma polidez de pesadelo, o mesmo
cerimonial afetado, extravagante, as mesmas buscas vãs, pois não levam a nada, os
mesmos raciocínios exaustivos e improfícuos, as mesmas iniciações estéreis, pois
não iniciam a nada. (SARTRE, 2005, p. 136).
Sem se preocupar muito com a coincidência dos elementos presentes na obra de ambos os
autores – Blanchot diz não ter lido Kafka antes de escrever o Aminadab – Sartre envereda
pelo que chama de o “’derradeiro estágio’ da literatura fantástica.” (SARTRE, 2005, p. 136).
Nesse estágio, os elementos comuns a Kafka e Blanchot levam a condição do fantástico a
um estado limite. Poe foi considerado, no século XIX, o autor que expressava a condição
humana em seu limite, no século XX; essa condição limite se estenderá para todo o ambiente,
não se restringindo apenas ao homem.
Não se atribui ao fantástico seu quinhão: ou ele não existe ou se estende a todo o
universo; é um mundo completo, onde as coisas manifestam um pensamento cativo e
atormentado, ao mesmo tempo caprichoso e acorrentado, que lhe corrói por baixo as
malhas do mecanismo, sem jamais chegar a se exprimir. Nele, a matéria nunca é
totalmente matéria, já que oferece apenas um esboço perpetuamente contrariado do
determinismo, e o espírito nunca é totalmente espírito, já que sucumbiu à escravidão
e a matéria o impregna e o empasta. Tudo é desgraça: as coisas sofrem e tendem à
inércia sem jamais atingi-la; o espírito humilhado, em escravidão, se esforça para
obter a consciência e a liberdade sem alcançá-las. O fantástico oferece a imagem
invertida da união da alma e do corpo: a alma toma o lugar do corpo e o corpo o da
alma. E para pensar essa imagem não podemos usar idéias claras e distintas;
precisamos recorrer a pensamentos embaçados, eles mesmos fantásticos, deixar-nos
levar em plena vigília, em plena maturidade, em plena civilização à “mentalidade”
mágica do sonhador, do primitivo, da criança. Assim, não é necessário recorrer às
fadas; as fadas tomadas em si mesmas são apenas mulheres gentis; o que é fantástico
é a natureza quando obedece às fadas, é a natureza fora do homem e no homem,
apreendida como um homem ao avesso. (SARTRE, 2005, p. 136-7).
Para Sartre, a inversão do corpo pela alma é o reflexo de uma reação à grande desilusão
advinda do pós-guerra. O desastre de uma busca metafísica não alcançada leva os escritores e
artistas, “por orgulho, por humildade, por espírito de seriedade” (SARTRE, 2005, p.137), a
um retorno às questões humanas. O homem se vê só; não que não exista a transcendência, ela
50
existe, mas é inalcançável. A incerteza contesta a certeza: um elétron pode ser uma partícula,
mas também pode ser uma onda (Heisenberg-Bohr).
Nesse processo maior que envolve as artes, de forma geral, a literatura fantástica sofrerá
o que Sartre (2005) chama de processo de domesticação, e terá de se adaptar a essa nova
realidade. Haverá, portanto, um abandono dos elementos transcendentais e sobrenaturais em
favor das condições interiores e exteriores do homem, levando a um deslocamento do
estranhamento.
O elemento estranho na literatura fantástica do século XX responde às condições da
sociedade nesse século, em que “cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de
estranhos e os produz à sua maneira, inimitável” (BAUMAN, 1998, p.27). O excesso da razão
continua sendo o elemento recorrente ao qual a literatura fantástica se opõe.
Nesse sentido, o século XX mantém recursos semelhantes àqueles que tenham sido
utilizados nos séculos XVIII e XIX, como o acontecimento inexplicável, indicador da ruptura
com a linearidade cartesiana do pensamento e da percepção cotidiana.
A diferença básica não reside nos recursos fantásticos, mesmo em uma definição mais
ampla, mas em como esse elemento fantasmático se apresenta e é reconhecido. No século
XVIII ele é exterior ao homem, que o incorpora como o outro que falta nele mesmo; é uma
indicação da própria natureza e da condição individual do ser humano: sua origem, sua classe,
seu caráter. No século XIX, o fantástico se apresenta interior ao ser humano e é reconhecido
como um atributo próprio da sua condição intelectual e psicológica e sua explicação oscila
entre os avanços da ciência, a loucura e o universo onírico. No século XX, o fantástico é o
próprio homem em seu amplo universo. Nesse sentido, o homem, em suas ações ordinárias ou
extraordinárias, se apresenta como o elemento estranho. O fantasmático já não está apenas
fora ou dentro do homem, mas é um atributo do próprio homem, fruto de sua natureza.
Já não há senão um único objeto fantástico: o homem. Não o homem das religiões e
do espiritualismo, engajado no mundo apenas pela metade, mas o homem-dado, o
homem-natureza, o homem-sociedade, aquele que referencia um carro fúnebre que
passa, que se barbeia na janela, que se ajoelha nas igrejas, que marcha em compasso
atrás de uma bandeira. Esse ser é um microcosmo, é o mundo, toda a natureza: é
somente nele que se mostrará toda a natureza enfeitiçada. (SARTRE, 2005, p. 138).
O elemento fantástico ou estranho se apresentará, portanto, como uma inversão de ordem.
A matéria disposta é submetida a uma ordem racional com um propósito que a ordena e tem
como finalidade o cumprimento de uma função, que responde a uma necessidade humana.
Sartre (2005, p. 139) dá o exemplo de uma cafeteria onde tudo está ordenado para uma
51
finalidade: servir o consumidor, que é o próprio homem. Todos os materiais, dispostos e
organizados para esse fim, conformam a matéria a serviço de uma finalidade espiritual: servir
ao homem. “É o meio que faz aqui a função de matéria, enquanto a forma – a ordem espiritual
– é representada pelo fim” (SARTRE, 2005, p.139).
O reverso dessa condição, ou seja, a primazia da matéria sobre o espírito se dá pela
autonomia dos elementos materiais a serviço de uma finalidade que, agora, deixa de existir:
“o fantástico humano é a revolta dos meios contra os fins” (SARTRE, 2005, p.140). Essa
inversão entre meios e fins, ou do corpo e da alma, se manifesta no texto fantástico por meio
da ambigüidade...
... que oscila entre a regra e o capricho, entre o universal e o singular, está presente
em todo lugar, ela constrange, sobrecarrega, a violamos quando pensamos estar
seguindo e, quando nos revoltamos contra ela, descobrimo-nos obedecendo-a à
revelia. Supõe-se que ninguém a ignore e no entanto ninguém a conhece. Ela não
tem por finalidade conservar a ordem ou regulamentar as relações humanas; ela é a
Lei, sem objetivo, sem significado, sem conteúdo, e ninguém pode lhe escapar.
(SARTRE, 2005, p. 143).
Sartre admite que a entrada no mundo fantástico se dá principalmente por meio do
protagonista, e que, para melhor penetrar nesse universo, deve se tornar fantástico, como o
Thomas do Aminadab:
Não sabemos de onde ele vem nem por que se obstina a encontrar aquela mulher que
lhe acenou. Como Kafka, como Samsa, como o agrimensor, Thomas jamais se
espanta: escandaliza-se, como se a sucessão dos acontecimentos aos quais assiste
lhe parecesse perfeitamente natural mas reprovável, como se possuísse dentro de si
uma estranha norma do Bem e do Mal. (SARTRE, 2005, p.144).
O que caracteriza a literatura fantástica no século XX, segundo Sartre, é a sua capacidade
de descrever o mundo pelo avesso, e sua função social é a de nos chamar a atenção para esse
mundo invertido, que a princípio pensamos não ser o nosso, porém teríamos que levar em
conta que, para alguém fantástico, o mundo fantástico também parece normal e ordenado, não
espanta nem assombra: “não posso julgar esse mundo, pois meus juízos fazem parte dele”
(SARTRE, 2005, p.145).
Assim a ficção nos aponta uma possível condição do mundo ou, como afirma Bauer
(1998, p. 150-1), “a ficção artística é uma sessão de treinamento para viver com o
ambivalente e o misterioso”, já que há o...
... colapso da oposição entre realidade e sua simulação, entre a verdade e suas
representações, vêm o anuviamento e a diluição das diferenças entre o normal e o
52
anormal, o esperável e o inesperado, o comum e o bizarro, o domesticado e o
selvagem – o familiar e o estranho, “nós” e os estranhos. (BAUMAN, 1998, p.37).
A conseqüência desse processo é o apagamento das diferenças entre verdadeiro e falso na
própria interioridade humana; a ficção se levanta da arte e tinge o mundo. Se antes, para se
relacionar com a literatura, era necessário aceitar o acordo explícito ou implícito de assumir a
ficção como real, pelo menos no âmbito do texto, agora há necessidade da mesma operação
para viver: “é a própria realidade que agora necessita da ‘suspensão da descrença’, outrora a
prerrogativa da arte” (BAUMAN, 1998, p.158). A literatura fantástica, desse modo, anula, ou
ao menos dilui, as fronteiras entre o sujeito e o outro, como defende Todorov:
O esquema racional nos apresenta o ser humano como um sujeito que entra em
relação com outras pessoas ou com coisas que lhe são exteriores, e que têm o
estatuto de objeto. A literatura fantástica abala esta separação abrupta. (TODOROV,
2004, p. 124-5).
A inversão entre os meios e os fins dá nascimento ao mundo em reverso e ao caráter geral
da ambigüidade pela oscilação entre esse mundo e seu oposto, destaca o efeito do fantástico
no século XX a partir da própria condição fantástica a que o homem se vê submetido: ele
mesmo se tornou fantástico.
Poderíamos dizer que a oscilação contínua entre meio e fins confere ao reconhecimento
do outro um valor dramático e a autonomia plena do reconhecimento emerge dessa
possibilidade imanente do contínuo desconhecimento. O outro se torna tão distante pela
oscilação e tão sem traços próprios que já não há marcas – nem mesmo uma cicatriz como a
de Ulisses – que possibilitem o reconhecimento: todos são iguais.
A partir de Kafka, porém, há o surgimento de um novo fantástico, no qual “o mundo
inteiro do livro e o próprio leitor nele são incluídos” (TODOROV, 2004, p.182). Nesse
“mundo inteiro do livro”, já não é mais o sobrenatural que ampara a visão do outro, mas sim
uma nova postulação da realidade, como admite Alazraki:
Se para a literatura fantástica o horror e o medo constituíam o caminho de acesso ao
outro, e o relato se organizava a partir desse caminho, o relato neofantástico
prescinde de medo, porque o outro emerge de uma nova postulação da realidade, de
uma nova percepção do mundo, que modifica a organização, seu funcionamento e
cujos propósitos diferem consideravelmente dos perseguidos pelo fantástico.
(ALAZRAKI, 1983, p. 28)
29
.
29
A tradução é de minha responsabilidade: Si para La literatura fantástica el horror y el miedo constituían
la ruta de acceso a lo otro, y el relato se organizaba a partir de esa ruta, el relato neofantástico prescinde
del miedo, porque lo otro emerge de una nueva postulación de la realidad, de una nueva percepción del
mundo, que modifica la organización del relato, su funcionamiento, y cuyos propósitos difieren
considerablemente de los perseguidos por lo fantástico.
53
No século XX, além da transformação do fantástico do século XIX em um neofantástico,
como propõe Alazraki, surgem outras correntes que às vezes se misturam, outras vezes se
distinguem ou se confundem: o realismo mágico e o real maravilhoso, ambos com grande
repercussão na América Latina.
Emir Rodrigues Monegal, em seu prefácio ao livro de Irlemar Chiampi, O realismo
maravilhoso, demonstra como esses conceitos tão em voga na América Latina e
freqüentemente mal assumidos a partir de Carpentier têm, na verdade, origem européia, já que
foram...
... os descobridores e conquistadores, os que o aplicaram primeiro à América para
documentar sua estranheza de forasteiros diante de uma realidade exótica; e que já
tinha sido aplicado (com a mesma intenção retórica) ao mundo das novelas de
cavalaria, à Grécia clássica dos deuses pagãos, à China de Marco Polo. Poucos
viram o erro de Carpentier ao atribuir um conceito cultural (o maravilhoso) a uma
realidade específica. (MONEGAL, 1980, p. 11).
O conceito de maravilhoso, como se pode observar pelo comentário de Monegal (1980),
guarda relação estreita com uma visão cultural que aproxima do Mundo Antigo, do Oriente e
da Idade Média da América. O realismo maravilhoso mantém uma relação de proximidade
com o maravilhoso medieval e conseqüentemente com o já estudado romance Gótico,
afastando-se, assim, daquilo que conhecemos como literatura fantástica em seu modelo mais
estrito do século XIX, conforme proposto por Todorov.
Para Chiampi, o realismo mágico surge nas décadas de 1940-1950 como uma resposta
vigorosa à crise da estética realista, tão comum nas primeiras décadas do século XX,
encampando, de um só golpe, toda uma variedade temática que buscava “uma nova visão
(‘mágica’) da realidade” (CHIAMPI, 1980, p.19).
O termo “realismo mágico” foi cunhado pelo historiador e crítico de arte alemão Franz
Roh, em 1925, com a publicação de seu livro Nach-expressionismus, magischer Realismus.
Probleme der neuester europäischer Malerei.
30
Não apenas o conceito de maravilhoso é europeu, como defende Monegal (1980), como
também o termo “realismo mágico” deve sua origem à Europa e à pintura. Franz Roh
elaborou sua tese da pintura mágico-realista a partir de vinte e duas características que, ao
longo do tempo, foram sofrendo transformações e que Menton (1999) sintetizou em sete
características, que podem ser aplicadas tanto à pintura quanto à literatura:
30
Em português: Pós-expressionismo, Realismo mágico. Problemas da nova pintura européia.
54
1. Enfoque ultrapreciso: um dos fatores dominantes da pintura mágico-realista, tem
por objetivo causar no observador o estranhamento, realçando todas as minúcias
da tela. É a precisão excessiva dos detalhes da realidade que imprimem um
aspecto mágico ao conjunto.
2. Objetividade: baseia-se na idéia de não colorir emocionalmente o objeto retratado,
o que levaria a uma espécie de expressionismo. Menton (1999) dá como exemplo,
na literatura, a maneira como Borges desenvolve seus contos de forma objetiva,
sem deixar que a emoção transpareça, causando assombro no leitor.
3. Frigidez: a pintura e a literatura mágico-realistas são apreciadas mais por fatores
intelectuais do que emotivos.
4. Visão simultânea: a reação intelectual é provocada pela fragmentação da atenção
por meio de uma visão simultânea daquilo que está próximo e do que está
distante, fazendo com que a visão escape a todo momento do centro da tela para
sua periferia; transforma assim a cena em uma espécie de mosaico, o que também
aparece nas narrativas mágico-realistas, como Cem anos de Solidão, de Gabriel
García Marquez.
5. Camadas finas de pintura: não se buscam efeitos especiais por meio da aplicação
de capas de pintura, e sim de pinceladas leves que imprimem um efeito de
fotografia à pintura. Na narrativa, apresentam-se relatos destituídos de adornos,
construídos por meio de uma linguagem simples e direta.
6. Miniaturização: a realidade aparece como se fosse um jogo de objetos
miniaturizados, a fim de que possam ser manipulados como brinquedos ou
maquetes.
7. Representação da realidade através de um procedimento contrário ao
abstracionismo e ao surrealismo. O realismo mágico trabalha com os elementos
possíveis, embora improváveis, enquanto o surrealismo trabalha com o
impossível.
Pelas características que Menton (1999) utiliza para definir os postulados de Roh,
percebe-se que o “mágico” do realismo-mágico se refere a um ato de percepção revestido de
uma aura mágica, invocada pelos traços de um ultra-realismo causado pelo excesso de
detalhamento da realidade – fenômeno que deve estar sob o controle da razão para não cair na
subjetividade emotiva.
55
O papel do artista pós-expressionista seria, assim, o de associar objetos específicos,
conferindo-lhes um estatuto paradigmático, pelo controle da sua subjetividade
deformadora. (CHIAMPI, 1980, p.22).
Para Menton (1999), a caracterização do realismo mágico fica evidente quando ele é
comparado ao fantástico, pois o fantástico seria um gênero possível de encontrar em qualquer
período cronológico e que está ligado à fantasia; enquanto que o realismo mágico é uma
tendência artística com base em fenômenos históricos e culturais e que se prolonga até os
nossos dias.
A definição de realismo mágico por esta via, mais do que esclarecer, dificulta o seu
entendimento já que a definição de fantástico que Menton assume é o de ficção, ignorando a
outra linha da crítica que considera o fantástico um gênero historicamente definido; anulando,
portanto, as diferenças que Menton quer estabelecer entre o realismo mágico e o fantástico.
Mais ainda, ao definir as características da narrativa mágico-realista, Menton não se
afasta muito das definições de Todorov (20004) para o fantástico e para o estranho:
A cena, conto ou romance mágico-realista é predominantemente realista com um
tema cotidiano, mas contém um elemento inesperado ou improvável que cria um
efeito estranho, deixando assombrado o espectador ou o leitor.
31
(MENTON, 1999,
p.36-7, tradução nossa).
Além de buscar uma diferenciação, ainda que confusa, entre o fantástico e o realismo-
mágico, Menton considera também a existência de uma diferença entre este e o real
maravilhoso:
A semelhança entre os termos “realismo mágico” e “o real maravilhoso”, mais o
feito de que Asturias e seus devotos tenham descrito suas obras narrativas como
mágico-realistas, impediram que os americanistas reconhecessem as diferenças entre
os dois termos. Além disso, Asturias, Carpentier e outros escritores que buscam
captar o mundo estranho, maravilhoso e mágico dos índios e dos negros, tendem em
utilizar um estilo adornado, neobarroco, que é a antítese do estilo de Jorge Luiz
Borges, por exemplo, cujo realismo mágico provém de sua própria visão de mundo,
que se parece muito com a de vários pintores e literatos europeus, norte-americanos
e latino-americanos no período entre mais ou menos 1918 e a atualidade.
32
(MENTON, 1999, p. 163, tradução nossa).
31
A tradução é de minha responsabilidade: El cuadro, cuento o novela mágicorrealista es predominantemente
realista con un tema cotidiano, pero contiene un elemento inesperado o improbable que crea un efecto extraño,
dejando asombrado al espectador o al lector.
32
A tradução é de minha responsabilidade: La semejanza entre los términos “realismo mágico” y “lo real
maravilloso”, mas el hecho de que Asturias y sus devotos hayan descrito sus obras narrativas como
mágicorrealistas, ha impedido que los americanistas reconozcan las diferencias entre los dos términos. Además,
Asturias, Carpentier y otros escritores que intentan captar el mundo extraño, maravilloso e mágico de los indios
y de los negros, tienden a utilizar un estilo adornado, neo barroco, que es la antítesis del estilo de Jorge Luiz
Borges, por ejemplo, cuyo realismo mágico proviene de su propia visión del mundo, que se parece mucho a
aquélla de varios pintores y literatos europeos, estadunidenses y latinoamericanos de entre más o menos 1918 y
la actualidad.
56
Comentando o romance El reino de este mundo, de Alejo Carpentier, Chiampi
estabelece um modelo para o “real maravilhoso americano”. Nele se mesclam elementos
culturais, que dimensionam a obra como uma narrativa de ruptura com os padrões europeus:
Essa expressão [real maravilhoso], associada amiúde ao realismo mágico pela crítica
hispano-americana, foi cunhada pelo escritor cubano para designar, não as fantasias
ou invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que
singularizam a América no contexto ocidental. (CHIAMPI, 1980, p. 32).
Assim, o real maravilhoso americano proclama sua independência do “merveilleux”
surrealista, embora as influências deste sobre aquele estejam muito presentes nas primeiras
reflexões de Carpentier, principalmente no prólogo ao El reino de este mundo.
Chiampi conclui a questão do relacionamento entre o surrealismo e o real maravilhoso
apontando as influências e as divergências, que conformam o real maravilhoso a partir de uma
orientação americana:
A afirmação do real maravilhoso como signo de nossa cultura foi motivada pela
dissidência de Carpentier com o surrealismo, mas as teses expostas no prólogo a El
reino revelam a dupla postura de aceitação dos postulados surrealistas (os aspectos
mágicos e irracionais do real) e de recusa dos mecanismos de busca da sobre-
realidade na literatura, propugnados pelos poetas franceses dos anos vinte. É inútil
reivindicar qualquer valor referencial para o real maravilhoso americano. Seu valor
metafórico, contudo, oferece um teor cognitivo que bem pode ser tomado como
ponto de referência para indagar sobre o modo como a linguagem narrativa tenta
sustentar essa suposta identidade da América no contexto ocidental. (CHIAMPI,
1980, p. 39).
Ao analisar a obra de Cortázar, Jaime Alazraki (1983) considera que o surrealismo em
Cortázar ultrapassa uma técnica literária, pois é uma visão de mundo libertadora, na qual a
realidade se mostra poética:
Cortázar encontra no surrealismo algumas das idéias chaves (a busca de um reino
perdido, a poesia como magia e como força capaz de mudar a realidade, a arte como
revelação mais que como invenção, o anúncio de uma idade de ouro, o amor como
uma forma de possessão da realidade) que cruzam o romance com suas artérias
maiores e que formam esses trampolins desde os quais Horacio Oliveira se lança em
suas buscas.
33
(ALAZRAKI, 1983, p.95).
33
A tradução é de minha responsabilidade: Cortázar encuentra en el surrealismo algunas de las ideas claves (la
búsqueda de un reino perdido, la poesía como magia y como fuerza capaz de cambiar la realidad, el arte como
revelación mas que como invención, el advenimiento de una edad de oro, el amor como una forma de posesión de
la realidad) que cruzan la novela como sus arterias mayores y que forma esos trampolines desde los cuales
Horacio Oliveira se lanza a sus búsquedas.
57
Segundo Alazraki, o surrealismo para Cortázar é uma alternativa ao pensamento racional,
uma técnica de apropriação do real de forma direta, sem a manipulação do homem; são os
postulados do surrealismo, mais que as aplicações que dele surgem, que interessam.
Ao contrário de Menton (1999), que busca distinguir o realismo mágico do real
maravilhoso, atribuindo ao segundo uma aura de sobrenaturalidade, Chiampi adota uma única
terminologia para abarcar os dois fenômenos: realismo maravilhoso.
Tal escolha se deve à concentração da questão no próprio fenômeno literário, no qual o
termo maravilhoso já faz parte da tradição literária como oposto à realidade, enquanto o termo
mágico remete a fatores culturais gerais:
À diferença de mágico, o termo maravilhoso apresenta vantagens de ordem lexical,
poética e histórica para significar a nova modalidade da narrativa realista hispano-
americana.
A definição lexical de maravilhoso facilita a conceituação do realismo maravilhoso,
baseada na não contradição com o natural. Maravilhoso é o “extraordinário”, o
“insólito”, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano. Maravilhoso é o
que contém a maravilha, do latim mirabilia, ou seja “coisas admiráveis”.
(CHIAMPI, 1980, p.48).
O maravilhoso se desdobra em duas acepções básicas, que cobrem a literatura latino-
americana: a primeira é uma extensão dos limites do humano; os mirabilia relacionam-se com
o mirar, o olhar do próprio homem diante dos acontecimentos que desafiam as normas e a
compreensão; a segunda é sobre-humana, pertence à esfera dos seres sobrenaturais e
enquadra-se dentro da tradição histórica do maravilhoso.
O realismo maravilhoso latino-americano reedita o velho sentido do maravilhoso
medieval, de uma sociedade hierofânica, marcada pelas ciências ocultas, e reinstaura o não
questionamento do acontecimento maravilhoso, frente aos realia: “os personagens do
realismo maravilhoso não se desconcertam jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a
natureza do acontecimento insólito” (CHIAMPI, 1980, p.61).
O realismo maravilhoso, segundo Chiampi (1980), preenche duas necessidades da
literatura latino-americana: a primeira, de ordem representativa, como expressão de uma
identidade e a segunda, vinculada a uma experimentação estética renovadora.
Enquanto o discurso realista se apóia na isotopia do natural, o discurso realista-
maravilhoso, assim como o fantástico, combina o natural e o sobrenatural. Porém,
diferentemente do discurso fantástico, no qual as relações isotópicas do natural e do
sobrenatural são ambíguas e tensas, no discurso do realismo maravilhoso elas não são
58
conflitivas: “a operação consiste em buscar o modo de reunir o natural e o sobrenatural numa
relação não disjuntiva das isotopias” (CHIAMPI, 1980, p.140).
Chiampi busca, com isso, definir a forma do discurso realista-maravilhoso diferenciando-
o do maravilhoso, que teria em sua raiz mais elementos religiosos e mitológicos do que
históricos, relacionando-se, portanto, com o sobrenatural. O discurso maravilhoso apoiar-se-ia
numa isotopia do sobrenatural, enquanto o realismo-maravilhoso conjuga o natural e o
sobrenatural. Sua afirmação vem principalmente dos estudos de Propp, ao tratar do conto
russo, mas pode ser incluído na realidade medieval, que, como já demonstramos, se apóia
numa visão hierofânica que também conjuga o natural e o sobrenatural, sem contestá-los ou
contrapô-los. Esse é o caso do ciclo arturiano, no qual os elementos históricos, mitológicos,
religiosos e folclóricos se misturam em uma saga única.
Também o realismo maravilhoso, ao ir às fontes da tradição indígena e negra, resgata
elementos dos povos que habitaram as regiões da América e da África, inclusive seus
elementos religiosos. Parece, portanto, muito tênue a diferenciação entre “maravilhoso” e
“realismo maravilhoso”. Ao contrário, quando se trata da oposição ao realismo, a diferença é
clara:
A narração tética (do realismo) e a não tética (do maravilhoso) associam-se, não já
para codificar a mensagem transparente dos verossímeis exclusivos, mas para erigir
Outro Sentido, inteligível no contato dialógico entre as naturalia e as mirabilia.
(CHIAMPI, 1980, p. 148).
Ou ainda:
O discurso realista maravilhoso, articulado sobre a negação do princípio da
contradição, enuncia poeticamente esse impossível lógico e ontológico. Ao dizer-se
‘é possível que uma coisa seja e não seja’ estamos diante de algo mais que um
objeto verbal. Sendo uma distorção da lógica habitual, a ideologia do realismo
maravilhoso persegue a reviravolta da concepção racional-positivista da constituição
do real. (CHIAMPI, 1980, p. 155).
A verossimilhança, como exigência discursiva do gênero, não se prende às questões
referencias da realidade do leitor; afinal, o que haveria de real numa discussão entre fantasmas
que habitam um “povoado mexicano que padece as misérias do latifundismo, como a Comala
de Pedro Páramo?” (CHIAMPI, 1980, p.165). Para Chiampi, a verossimilhança será o
produto de um acordo entre o narrador e o narratário, que assumem um mesmo código “lógico
e ideológico”, que dá sentido à obra.
Estabelece-se assim um horizonte de expectativas interno à obra que convida o leitor real
a descobrir, por trás dos fantasmas, dos acontecimentos inesperados e dos eventos
59
sobrenaturais, uma significação lógica, ideologicamente demarcada dentro de um horizonte de
expectativas externo à obra. O efeito do realismo maravilhoso, bem como o da literatura
fantástica em geral, postula uma nova visão da realidade e busca, através de uma mirada
diferenciada, a observação do outro, que é o próprio homem, e o mundo que o cerca, nos seus
avessos.
São os axiomas desse universo revirado que a literatura fantástica busca contestar. O
discurso fantástico se abre para uma resignificação das coisas, do mundo e do homem. Ao
penetrarmos no texto fantástico, temos a oportunidade de encontrar ali um outro-do-texto que
não deixa de ser o outro de nós mesmos, como defende Ricoeur (1976). O texto se coloca
como uma obra aberta, em movimento, como quer Umberto Eco, uma obra de arte que “nasce
de uma rede complexa de influências” (ECO, 1971, p. 34).
60
PARTE II
1) A álgebra mágica Roseana e o novo fantástico
A poesia é também uma irmã tão incompreensível da
magia.
Guimarães Rosa
Relacionar a “álgebra mágica” roseana ao fantástico pode parecer um paradoxo, e talvez
seja. A “álgebra mágica” é irmã da poesia e, como define Todorov (2004), todo texto poético
destrói a ambigüidade que dá existência ao fantástico. A “álgebra mágica” substitui o diabo
pelo “homem humano” e coloca Deus em todas as coisas; faz do mundo um meio e da
mística uma finalidade e não inverte os meios pelos fins, como quer Sartre (2005), que ainda
acrescenta:
Enquanto se acreditou possível escapar à condição humana pela ascese, pela mística,
pelas disciplinas metafísicas ou pelo exercício da poesia, o gênero fantástico foi
solicitado a exercer um ofício bem definido. Ele manifestava nosso poder humano
de transcender o humano: buscava-se criar um mundo que não fosse este mundo,
seja porque se tivesse, como Poe, uma preferência de princípio pelo artificial, seja
porque se acreditasse, como [Jacques] Cazotte, como Rimbaud, como todos os que
se exercitavam em “ver um salão no fundo de um lago”, numa missão taumatúrgica
do escritor, seja ainda porque se quisesse, como Lewis Carrol, aplicar
sistematicamente à literatura esse poder incondicionado que o matemático possui de
engendrar um universo a partir de algumas convenções, seja enfim porque se tivesse
reconhecido, como [Charles] Nodier, que o escritor é antes de tudo um mentiroso, e
se quisesse alcançar a mentira absoluta. O objeto assim criado se referia apenas a si
mesmo, não visava retratar, queria tão-somente existir, impunha-se apenas por sua
própria densidade. Se ocorria a certos autores tomar de empréstimo a linguagem
fantástica para expressar algumas idéias filosóficas ou morais sob a aparência de
ficções agradáveis, eles reconheciam de bom grado que haviam desviado esse modo
de expressão de seus fins costumeiros e apenas criado, por assim dizer, um
fantástico em trompe-l`oeil. (SARTRE, 2005, p. 137).
Onde, então, está o fantástico em Guimarães Rosa?
Se, por um lado, a narrativa fantástica guarda semelhanças com a narrativa elementar e,
por isso, dificilmente poderá se apresentar na forma de poema, por outro lado, é um jogo
ficcional que em suas camadas abriga o valor estético que a singulariza, e é justamente no
âmbito do poético que esse efeito estético se evidencia pelo ato da leitura.
E, ainda, se, como quer Sartre (2005), o universo humano se tornou fantástico, já que o
próprio homem o é, romper com a ordem da realidade é também colocar em crise esse
fantástico preconizado por Sartre, que se espalhou pelo cotidiano humano e se vulgarizou nas
61
ações diárias do “mundo em reverso”. É na linguagem poética que o novo fantástico pode
reivindicar seu estatuto original de elemento de ruptura e, portanto, voltar à origem, que nada
mais é do que voltar ao poético:
A poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica e, por isso, associa-se à
magia, à religião e outras tentativas para transformar o homem e fazer de “deste” e
de “aquele” esse “outro” que é ele mesmo. [...] A poesia põe o homem fora de si e,
simultaneamente, o faz regressar a seu ser original: faz com que retorne a si próprio.
O homem é sua imagem: ele mesmo e aquele outro.
34
(PAZ, 2003, p.126).
E ainda, segundo Guimarães Rosa:
Queria libertar o homem desse peso, devolver-lhe a vida em sua forma original. [...]
Não há nada mais terrível que uma literatura de papel, pois acredito que a literatura
só pode nascer da vida, que ela tem de ser a voz daquilo que eu chamo
“compromisso do coração”. A literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que
ele escreve. (ROSA, 1991, p.84).
Uma narrativa somente será fantástica – num mundo onde o fantástico é a própria
realidade – se ela incorporar elementos inusitados de outra ordem, capazes de trazer à vista
do leitor implicado no texto uma perspectiva de ruptura que instaure um espaço onde o outro
possa ser reconhecido. Esse é o elemento da alteridade que, diacronicamente, tem sido objeto
da literatura fantástica e talvez explique a comparação que Günter Lorenz faz entre
Guimarães Rosa, Borges e Cortázar:
Assassínio e violência, ternura e incesto, realidade, horrores e coisas
fantasmagóricas (mais pavoroso e fantástico do que nas construções intelectuais de
um Jorge Borges e Julio Cortázar) se revezam, criando o quadro de composição
caprichoso de um acontecimento de febril dramaticidade. (LORENZ, 2003, p. 378).
Assim podemos encontrar em Guimarães Rosa uma aproximação aos fundamentos da
literatura fantástica, embora tal aproximação não se configure como participante dos
modalizadores canônicos das obras aceitas como tal, porém, certamente devem ser fiéis às
leis que determinam sua poética:
34
A tradução é de minha responsabilidade: La poesía es metamorfosis, cambio, operación alquímica, y
por eso colinda con la magia, la religión y otras tentativas para transformar al hombre y hacer de “éste” y
de “aquél” ese “otro” que es él mismo. […] La poesía pone al hombre fuera de si y, simultáneamente, lo
hace regresar a su ser original: lo vuelve a si. El hombre es su imagen: él mismo y aquel otro. (PAZ,
2003, p.126).
62
Não se deve confundir a possibilidade de um código geral e permanente, com a
possibilidade de leis. Talvez a Poética e a Retórica de Aristóteles não sejam
possíveis; mas as leis existem; escrever é, continuamente, descobri-las ou fracassar.
Se estudamos a surpresa como efeito literário, ou os argumentos, veremos como a
literatura vai transformando os leitores e, em conseqüência, como esses exigem uma
continua transformação da literatura. Pedimos leis para o conto fantástico; mas já
veremos que não há um tipo, senão muitos tipos, de contos fantásticos. Há que
indagar as leis gerais para cada tipo de conto e as leis especiais para cada conto. O
escritor deverá, pois, considerar seu trabalho como um problema que se pode
resolver, em parte, por leis gerais e preestabelecidas e, em parte, por leis especiais
que ele deve descobrir e acatar.
35
(BORGES, CASARES e OCAMPO, 1999, p.8).
A maneira como Monegal (1991) descreve o processo pelo qual A terceira margem, por
exemplo, “encarna-se” na imaginação do leitor, demonstra a fidelidade de Guimarães Rosa às
leis que seus contos exigem:
Porém esta história conseguia, pelos meios mais simples e intensos, criar para o
leitor a impossível promessa de seu título: uma terceira dimensão da realidade (a
terceira margem) se fazia patente, convertia-se em experiência, encarnava-se na
imaginação. (MONEGAL, 1991, p.48).
Essa lei da poética roseana vincula-se à “álgebra mágica” pela relação que ela guarda
com a poesia e com a ciência, amalgamadas num paradoxo que não se manifesta no texto
roseano como um absurdo, mesmo porque, como defende Sartre, o absurdo faz parte do
mundo racional, já que
[...] é o objeto de um pensamento claro e distinto; ele diz respeito ao mundo “em
anverso” como limite efetivo dos poderes humanos. No mundo maníaco e alucinante
que tentamos descrever o absurdo seria um oásis, um repouso, de modo que aí não
há lugar algum para ele. Nesse mundo não posso me deter por um só instante: todo
meio me remete sem descanso ao fim fantasmagórico que o assombra e todo fim me
reenvia ao meio fantasmagórico pelo qual eu poderia realizá-lo. (SARTRE, 2005, p.
140).
O paradoxo algébrico mágico se concretiza, então, na poética roseana, tendo como
único intuito dizer o indizível, pois “os paradoxos existem para que se possa exprimir algo
para o qual não existem palavras” (ROSA, 1991, p.66). É pelo indizível que a poética de
Guimarães Rosa se presentifica como elemento de alteridade capaz de subtrair o homem de
um mundo que, segundo Otávio Paz, ruma sem sentido e sem direção:
35
A tradução é de minha responsabilidade: No debe confundirse la posibilidad de un código general y
permanente, con la posibilidad de leyes. Tal vez la Poética y la Retórica de Aristóteles no sean posibles: pero las
leyes existen; escribir es, continuamente, descubrirlas o fracasar. Si estudiamos la sorpresa como efecto literario,
o los argumentos, veremos cómo la literatura va transformando a los lectores y, en consecuencia, cómo éstos
exigen una continua transformación de la literatura. Pedimos leyes para el cuento fantástico; pero ya veremos
que no hay un tipo, sino muchos, de cuentos fantásticos. Habrá que indagar las leyes para cada cuento. El
escritor deberá, pues, considerar su trabajo como un problema que puede resolverse, en parte, por las leyes
generales y preestablecidas, y, en parte, por leyes especiales que él debe descubrir y acatar.
63
O mundo moderno perdeu sentido e o testemunho mais cru dessa ausência de
direção é o automatismo da associação de idéias, que não está regida por nenhum
ritmo cósmico ou espiritual, senão pela sorte [...] Tudo é alheio a ele (o homem
moderno) e ele em nada se reconhece. É a exceção que desmente todas as analogias
e correspondências. O homem não é árvore, nem planta, nem ave. Está só em meio à
criação.
36
(PAZ, 2003, p.98).
O paradoxo substitui as palavras (que não existem) pelas imagens, que nos dão, por
meio do uso intenso dos elementos sensoriais, uma impressão mais viva e uma possibilidade
de conhecer sem o uso das palavras. Também o fantástico, com suas habituais imagens, abusa
da nossa capacidade de experimentar, viola a linearidade de nosso raciocínio cartesiano e
instaura um processo mágico que atribui aos objetos novas significações.
O fantástico não economiza no uso de possibilidades que possam causar estranheza e
desconforto; para isso, disfarça e camufla os objetos cotidianos e desautomatiza nossa visão,
como quem esconde um tesouro atrás de algo que estamos cansados de ver sem ver.
“É um processo em que a expressão ideal é a álgebra, ou onde os objetos são
substituídos por símbolos”, como diria Chklovski (1978, p.44). Para o formalista, no método
do pensamento algébrico, os objetos não são explorados em suas possibilidades, nem são
registrados devidamente pela consciência; são apenas reconhecidos por seus traços: “o objeto
passa ao nosso lado como se estivesse empacotado, nós sabemos que ele existe a partir do
lugar que ele ocupa, mas vemos apenas sua superfície” (CHKLOVSKI, 1978, p.44).
Para Guimarães Rosa, porém, o que distingue a álgebra mágica, elemento fundamental
da sua poética, é justamente a exatidão de seu inacabamento e indeterminação; sua natureza
se refere ao “indeterminado, vago, mágico, algébrico” (ROSA, BIZZARRI, 2003, p. 165).
Essa imagem (paradoxal) cria um espaço terceiro, onde a magia é também álgebra e esta é
magia, o que é um paradoxo. Campo de forças em movimento dialógico de concentração-
dispersão, no qual as diferenças podem conviver sem necessidade de coincidirem, sendo, ao
mesmo tempo, o próprio e o alheio, o “um” e o “outro”, abolindo qualquer possibilidade de
contradição.
A reflexão sobre o fantástico afinado com a “álgebra mágica” tem como conseqüência a
aproximação da poesia, essa “irmã misteriosa da magia”, como diz Rosa. Mas para isso
36
A tradução é de minha responsabilidade: El mundo moderno ha perdido sentido y el testimonio más crudo de
esa ausencia de dirección es el automatismo de la asociación de ideas, que nos está regido por ningún ritmo
cósmico o espiritual, sino por el azar […] Todo es ajeno a él (el hombre moderno) y él en nada se reconoce. Es a
excepción que desmiente todas las analogías y correspondencias. El hombre nos es árbol, ni planta, ni ave. Está
solo en medio de la creación.
64
temos que pensar numa reformulação do próprio gênero, que abrirá espaço para o universo
poético.
Tomachevski, em Temática, define os gêneros como criações temáticas, que diferenciam
as obras segundo o procedimento que as estruturam:
[...] falamos da diferenciação natural quando ela provém de uma certa afinidade
interior entre os procedimentos particulares que lhes permite combinarem-se
facilmente; da diferenciação literária e social, quando ela decorre dos objetivos
propostos nas obras literárias, das circunstâncias de sua criação, de seu destino, do
acolhimento destinado à obra; e falamos de diferenciação histórica, quando ela
procede da imitação de obras antigas e tradições literárias.(TOMACHEVISK, 1978,
p. 200.).
Os traços distintivos dos gêneros, nesse caso, se atêm às questões dos procedimentos:
alguns são formais, como o poético e o prosaico, e outros mais externos, como a maneira de
apresentação da obra, que define o que é dramático e o que é narrativo. Para esse autor, os
gêneros têm vida e capacidade de desenvolvimento. Também têm a capacidade de assumirem,
dentro de si, grandes mudanças; mas permanecem vivos com a mesma identificação (ainda
que as que os compõem variem muito):
Entretanto, por causa do interligamento habitual da obra aos gêneros já definidos,
seu nome se conserva, ainda que uma modificação radical se tenha produzido na
construção das obras pertencentes a ele. O romance de cavalaria da Idade Média e o
romance contemporâneo de Andrei Bieli ou Pilniak podem não ter nenhum traço em
comum e, entretanto, o romance contemporâneo aparece como resultado de uma
lenta evolução secular do romance primitivo. A balada de Jukovski e a balada de
Tikhonov são totalmente diferentes, mas existe entre elas um vínculo genético e
podemos uni-las através de faixas intermediárias que testemunham a passagem
progressiva de uma forma à outra. (TOMACHEVSKI, 1978, p.201).
Para Todorov (2004, p.8), a idéia de gênero implica uma hipótese geral, extraída de uma
observação científica, que pode ser corrigida ou rejeitada posteriormente: “... podemos aceitar
já a idéia de que os gêneros existem a diferentes níveis de generalidade e que o conteúdo
dessa noção se define pelo ponto de vista escolhido” (TODOROV, 2004, p.9).
Todorov não apenas aceita uma variedade grande de gêneros, muito além dos
tradicionais lírico, dramático e épico, como também crê que, em se tratando de arte, todo novo
exemplar pode modificar seu conjunto. Isto significa que o novo nunca é totalmente novo,
mas participa de uma tradição preexistente da qual herda suas propriedades, ao mesmo tempo
em que transforma essa tradição, dando-lhe um novo corpo de manifestação: a obra singular.
Podemos dizer que, dessa forma, o autor entrelaça, conecta, recita e recria uma tradição,
ao mesmo tempo em que a rompe, e assim renova constantemente. O autor é o regente de uma
65
orquestra de vozes: as de uma determinada tradição, as vozes de outros textos, as de seu meio,
além de emitir sua própria voz. Ele se coloca na fronteira de todos esses espaços e dá
estabilidade a uma nova construção estética; é o criador ativo, como define Bakhtin:
O autor deve estar situado na fronteira do mundo que ele cria como seu criador
ativo, pois se invadir esse mundo ele lhe destrói a estabilidade estética. Nós sempre
podemos definir a posição do autor em relação ao mundo representado pela maneira
como ele representa a imagem externa, como ele produz ou não uma imagem
transgrediente integral dessa exterioridade, pelo grau de vivacidade, essencialidade e
firmeza das fronteiras, pelo entrelaçamento da personagem com o mundo
circundante, pelo nível de completude, sinceridade e intensidade emocional da
solução e do acabamento, pelo grau de tranqüilidade e plasticidade da ação, de
vivacidade das almas das personagens (ou estas são apenas tentativas vãs do espírito
de transformar-se por suas próprias forças em alma). Só quando se observam todas
essas condições o mundo estético é sólido e se basta a si mesmo, coincide consigo
mesmo na visão estética ativa que temos dele. (BAKHTIN, 2003, p. 177).
A visão estética do século XX pede uma nova imagem da realidade, e toda a literatura
contemporânea busca se opor às “normas ou leis que configuram de maneira unívoca nossa
imagem da realidade” (ALAZRAKI, 1983, p.29).
Alazraki, com base nos estudos de Umberto Eco sobre a indeterminação da arte
contemporânea, diz que não é apenas o neo-fantástico que busca, no século XX, romper com
as normas estabelecidas por essa visão da realidade. Para ele, toda a literatura contemporânea,
por meio das imagens, amplia as possibilidades de transmissão comunicativa, que deixa,
assim, de ser unívoca:
O caráter experimentalista da arte contemporânea não responde senão a essa perdida
segurança, à necessidade de substituir uma imagem do mundo regido por imovíveis
axiomas e leis inapeláveis por uma imagem que possa não responder a essas leis,
mas que se sabe mais próxima da experiência humana e que, se está governada por
certas normas, estas permanecem não formuladas.
37
(ALAZRAKI, 1983, p.30).
Se toda a literatura do século XX busca a imagem da ruptura, que não é governada pelos
princípios da lógica cartesiana, qual seria, então, a imagem buscada pelo neo-fantástico?
Segundo Alazraki, o centro do neo-fantástico reside na metáfora, cuja definição “se
afasta da definição aristotélica e se aproxima, em troca, da noção nietzscheana” (ALAZRAKI,
1983, p.42). Enquanto para Aristóteles a metáfora implica a substituição de um termo por
37
A tradução é de minha responsabilidade: El carácter experimentalista del arte contemporáneo no responde
sino a esa perdida seguridad, a la necesidad de reemplazar una imagen del mundo regida por inamovibles
axiomas y leyes inapelables por una imagen que puede no responder a esas leyes pero que se sabe más próxima a
la experiencia humana y que, si está gobernada por ciertas normas, estás permanecen aún informuladas.
66
outro com o qual mantém algum tipo de analogia, para Nietzsche a metáfora não substitui,
mas carrega no termo substituto o substituído, levando-o em sua essência.
Segundo Ricoeur (1976), a teoria aristotélica da metáfora e seu desenvolvimento dentro
da retórica implicam as seguintes características:
1) A metáfora é um tropo, uma figura do discurso que diz respeito à denominação;
2) Representa a extensão do sentido de um nome mediante o desvio do sentido
literal da palavra; 3) A razão deste desvio é a semelhança; 4) A função da
semelhança é fundamentar a substituição do sentido figurativo de uma palavra em
vez do sentido literal, que se poderia ter usado no mesmo lugar; 5) Por isso, a
significação substituída não representa nenhuma inovação semântica. Podemos
traduzir uma metáfora, isto é, repor o sentido literal de que a palavra figurativa é um
substituto. Com efeito, a substituição mais restituição é igual a zero; 6) Visto que
não representa uma inovação semântica, uma metáfora não fornece qualquer
informação nova acerca da realidade. Eis porque se pode considerar como uma das
funções emotivas do discurso. (RICOEUR, 1976, p. 60-1).
Nos estudos mais modernos da metáfora, Paul Ricoeur, citando Monroe Beardsley, diz
que “a metáfora é um poema em miniatura” (RICOEUR, 1976, p.58) e acrescenta: “a relação
entre o sentido literal e o sentido figurado numa metáfora é como uma versão abreviada
dentro de uma frase singular da complexa interação de significações, que caracterizam a obra
literária como um todo.” (RICOEUR, 1976, p.58).
A metáfora não é apenas um significado deslocado; mais do que uma semântica da
palavra, ela pode se estender para uma semântica da frase, criando novas significações. Na
frase, os termos da metáfora aparecem em tensão: “quando o poeta fala de um ‘anjo azul’ ou
de um ‘manto de tristeza’, põe em tensão dois termos que, segundo Richards, podemos
chamar de o teor e o veículo. E só o conjunto constitui a metáfora.” (RICOEUR, 1976, p. 58).
Para Alazraki (1983), a tensão entre os termos da metáfora cria significações múltiplas,
que caracterizam o neo-fantástico por sua ambigüidade e “responde a leis inéditas, a uma
poética da indeterminação” (1983, p. 73):
A metáfora de Cortázar, ao prescindir do desdobramento teor-veículo, ao oferecer
um destinatário sem remetente, uma imagem capaz de múltiplos teores, exige do
leitor uma leitura ativa e criadora. Teor e veículo andam juntos. O veículo expressa
de alguma maneira o teor é a forma que Cortázar escolheu para explicar o
inexplicável de sua experiência, é a solução literária para suas fobias e obsessões,
mas uma solução que, em vez de traduzir tal causalidade, aquilo que a experiência
tem de irredutível, ela encontra sua própria linguagem. Como toda linguagem, as
metáforas da literatura neo-fantástica procuram também estabelecer pontes de
comunicação, só que agora o código que decifra esses signos já não é o do
dicionário estabelecido pelo uso. É um código novo, inventado pelo escritor para
dizer de alguma maneira essas mensagens incomunicáveis na chamada “linguagem
da comunicação”. Tratar de encontrar referencias convencionais na metáfora de
Cortázar, isto é, traduzir esses coelhinhos segundo nosso dicionário, do uso,
67
equivaleria a ver no conto um puro jogo, uma charada, na qual se sabe, desde o
começo, que há uma ordem ludicamente ocultada pelo autor e que o leitor, usando
seu engenho, deve reconstruir. Os coelhinhos estão aí para dizer e representar algo
não enunciável.
38
( ALAZRAKI, 1983, p.75).
Os termos em tensão – o teor e o veículo – se referem, respectivamente, ao sujeito
original, ao qual um atributo é conferido, e à imagem, que confere uma nova significação às
palavras. A relação entre o teor e o veículo forma a base que se abre em vários graus de
significação, dependendo da característica da metáfora. Comentando sobre A metamorfose,
de Kafka, Alazraki define da seguinte forma o teor, o veículo e a base:
Poderíamos descrever a condição de Gregório Samsa como o teor da metáfora, ou
seja, como a parte da imagem que se busca definir ou descrever e sua metamorfose
como seu veículo, ou a parte da imagem que define ou descreve, por comparação, o
sujeito ou teor da metáfora. A comparação estabelece uma relação na qual o teor e o
veículo se reconhecem e que Richards chama de “base”. Em A metamorfose, a base
alcança uma abertura ou ângulo de relação de 360º graus: dentro do espaço limitado
que proporciona um círculo entre um número ilimitado de possíveis interpretações
ou relações entre o teor e o veículo. Em uma metáfora elementar como “sonoro
cristal”, o ângulo da base é limitado e imediatamente reconhecível. A comparação
da água de uma fonte com “um cristal sonoro” desvenda sem maior esforço o
elemento comum que relaciona o teor com seu veículo: a transparência.
39
(ALAZRAKI, 1983, p.39-40).
A metáfora assim configurada ultrapassa o efeito retórico e consegue conferir ao texto
uma ampliação de sua capacidade semântica. Dessa forma, a metáfora neo-fantástica se
distancia daquelas em que a base é limitada e busca as de 360º graus, que são as que rompem
com o processo axiológico das leis determinadas e podem exprimir o indizível:
38
A tradução é de minha responsabilidade: La metáfora de Cortázar, al prescindir del desdoblamiento tenor-
vehículo, al ofrecernos un destinatario sin remitente, una imagen capaz de múltiples tenores, exige del lector una
lectura activa y creadora. Tenor y vehículo marchan juntos. El vehículo expresa de alguna manera el tenor, es la
forma que Cortázar ha escogido para explicarnos lo inexplicable de su experiencia, es la solución literaria a sus
fobias y obsesiones, pero una solución que, en vez de traducir al lenguaje de la causalidad lo que esa experiencia
tiene de irreductible, encuentra su proprio lenguaje. Como todo lenguaje, las metáforas de la literatura neo-
fantástica buscan también establecer puentes de comunicación, sólo que ahora el código que descifra esos signos
ya no es el diccionario establecido por el uso. Es un código nuevo, inventado por el escritor para decir de alguna
manera esos mensajes incomunicables en el llamado “lenguaje de la comunicación”. Intentar encontrar
referencias convencionales en la metáfora de Cortázar, esto es, traducir esos conejitos según nuestro diccionario,
del uso, equivaldría a ver en el cuento un puro juego, una charada, en la cual se sabe, desde el comienzo, que hay
un orden lúdicamente oculto por el autor y que el lector, usando su ingenio, debe reconstruir. Los conejitos están
ahí para decir y representar algo no enunciable.
39
A tradução é de minha responsabilidade: Podríamos describir la condición de Gregorio Samsa como el tenor
de la metáfora, es decir, como la parte de la imagen que se busca definir o describir, y su metamorfosis, como su
vehículo, o la parte de la imagen que define o describe, por comparación, al sujeto o tenor de la metáfora. La
comparación establece una relación, en la cual el tenor y el vehículo se reconocen y que Richards llama “base”.
En la metamorfosis, la base alcanza una apertura o ángulo de relación de 360º: dentro del espacio limitado que
proporciona un círculo entra un número ilimitado de posibles interpretaciones o relaciones entre tenor e
vehículo. En una metáfora elemental como “sonoro cristal”, el ángulo de la base es limitado e inmediatamente
reconocible. La comparación del agua de una fuente con “un cristal sonoro” descubre sin mayor esfuerzo el
elemento común que relaciona al tenor con su vehículo: la transparencia.
68
Tal transgressão, que Nietzsche define com a característica distintiva da metáfora é,
sem dúvida, o coração do neo-fantástico. Se o mundo, como escreve Nietzsche “é
uma invenção, uma pobre soma de observações”, o neo-fantástico é uma tentativa de
reinventá-lo a partir de uma nova linguagem, a partir de uma transgressão dos nomes
das coisas.
40
(ALAZRAKI, 1983, p.44).
Para Alazraki, o neo-fantástico, por suas características transgressoras e recriadoras da
realidade, assume-se como uma via gnosiológica diferente da racional, e apela, em contra-
partida, para uma visão mais intuitiva e dionisíaca, que representa “a unidade ontológica da
vida, a unidade original de todos os seres” (ALAZRAKI, 1983, p. 46). Assim, o
conhecimento aparece não apenas como um atributo da ciência racionalista, mas também da
“arte animada pelo espírito dionisíaco” (ALAZRAKI, 1983, p.46).
O neo-fantástico não só se vincula ao poético como também faz dele uma alternativa de
conhecimento e de recriação da realidade, possibilitando ao homem o encontro consigo
mesmo. Talvez por isso Guimarães Rosa defendesse “o primado da intuição sobre a megera
cartesiana”:
Ora, você já notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência, são “anti-
intelectuais” – defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da
inspiração sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera
cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os
Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff –
com Cristo, principalmente. (ROSA, BIZZARRI, 2003, p. 90-1).
O desenvolvimento do fantástico ao longo do tempo implica, segundo Alazraki, uma
relação com o ambiente social. Para ele, cada época elabora uma visão de mundo e uma forma
de transgredi-la:
É extremamente significativo que as obras mestras do gênero fantástico tenham sido
escritas nas três décadas que vão de 1820 a 1850. Que vários países, em um
momento determinado, produzam as obras por meio das quais o fantástico como
gênero seja definido não é, não pode ser, uma casualidade, e Caillois tentou explicar,
como vimos, as forças que geram essa nova poética do fantástico. O neo-fantástico
responde a uma dinâmica semelhante. Suas metáforas são tentativas de alcançar a
representação de percepções ou visões que ultrapassam os limites da poética realista.
Para conquistar tal objetivo, essa literatura instaura uma nova poética, da mesma
maneira que, para compreender certas formas especiais, intoleráveis, dentro dos
limites da geometria euclidiana, se torna indispensável a formulação de uma nova
40
A tradução é de minha responsabilidade: Tal transgresión, que Nietzsche define como el rasgo distintivo de la
metáfora, es, sin duda, el bulbo de lo neo-fantástico. Si el mundo, como escribe Nietzsche “es una invención,
una magra suma de observaciones”, lo neo-fantástico es un intento de reinventarlo a partir de un lenguaje nuevo,
a partir de una transgresión de los nombres de las cosas.
69
geometria. Nessa poética não há lugar para as leis de identidade, contradição e
exclusão da lógica aristotélica.
41
(ALAZRAKI, 1983, p.59-60).
Para Alazraki, o século XX não é mais a época do domínio isolado da geometria
euclidiana, mas sim da mistura de outras geometrias, como a projetiva e a afim. Enquanto a
geometria euclidiana atua sobre as três dimensões do plano, e nele as figuras geométricas
permanecem sempre a uma distância fixa umas das outras a partir de um ponto de origem, a
afim não se relaciona com qualquer noção de origem, extensão ou ângulo, mas com a de
subtração de pontos que geram vetores; já a projetiva implica a descrição das propriedades
das figuras geométricas. Alazraki resume as propriedades dessas três geometrias da seguinte
forma:
Na geometria euclidiana, triângulos similares, que são distinguíveis somente através
de sua posição no espaço e na longitude de seus lados, não são figuras diferentes,
senão uma só figura. Na geometria afim, em troca, na qual o problema de longitude
e ângulo não se coloca, a distinção entre circulo e elipse deixa de existir. Se
passamos para a geometria projetiva, a distinção entre extensão infinita e finita,
mantida na geometria afim, desaparece.
42
(ALAZRAKI, 1983, p.60).
A explanação sobre as geometrias possíveis no século XX, por parte de Alazraki,
confere um redimensionamento do conceito de realidade. No século XVIII, uma geometria
que não fosse a euclidiana pareceria irreal, suspeita e impossível; dito de outra maneira:
fantástica. Assim, se ainda hoje concebemos o espaço pelo viés da geometria euclidiana, a
própria realidade, frente aos avanços da matemática e da ciência em geral, poderá nos parecer
fantástica; mas se, ao contrário,
concebemos a realidade como um espaço onde o causal é uma geometria ainda que
não a única, e onde há lugar para outras geometrias não causais, que contradizem a
razão, mas que expressam novas formas dentro desse espaço, é natural que o
fantástico adquira também uma condição de realidade. Mais ainda: a realidade
expressa pelo fantástico alcança um grau de complexidade semelhante ao da
41
A tradução é de minha responsabilidade: Es extremamente significativo que las obras maestras del género
fantástico hayan sido escrita en las tres décadas que van de 1820 a 1850. Que varios países, en un momento
determinado, produzcan las obras a través de las cuales lo fantástico como género queda definido no es, no
puede ser, una casualidad, y Caillois ha intentado explicar, como hemos visto, las fuerzas que generan esa nueva
poética de lo fantástico. Lo neo-fantástico responde a una dinámica semejante. Sus metáforas son intentos de
alcanzar la representación de percepciones o visiones que rebasas los límites de la poética realista. Para lograr tal
cometido, esta literatura instaura una nueva poética, de la misma manera que para comprender ciertas formas
especiales, intolerables dentro de los límites de la geometría euclidiana, se torna indispensable la formulación de
una nueva geometría. En esta poética no hay lugar para las leyes de identidad, contradicción y exclusión de la
lógica aristotélica.
42
A tradução é de minha responsabilidade: En la geometría euclidiana, triángulos similares, que son
distinguibles solamente a través de su posición absoluta en el espacio y la longitud de sus lados, no son figuras
diferentes sino una figura única. En la geometría afín, en cambio, donde el problema de longitud y ángulo deja
de plantearse, la distinción entre círculo y elipse deja de existir. Si pasamos a la geometría proyectiva, la
distinción entre extensión infinita y finita, mantenida en la geometría afín, desparece.
70
geometria não-euclidiana em relação com a geometria métrica.
43
(ALAZRAKI,
1983, p. 62).
A compreensão dos espaços reconfigurados, para Alazraki, é melhor apreendida pela
via da intuição do que pela via da razão; e é justamente em função disso que ele levanta sua
crítica a Sartre. Para ele, Sartre teria sido mais filósofo do que artista ao analisar o Aminadab,
de Blanchot. Sua visão da literatura fantástica reduz a condição do fantástico ao nível da
linguagem convencional comunicativa, afirma Alazraki; seria como traduzir um poema para a
linguagem convencional.
Ainda que as considerações de Alazraki sobre o neo-fantástico não esgotem as
possibilidades da “álgebra mágica” de Guimarães Rosa, ela se aproxima, por considerar as
múltiplas possibilidades significativas que a linguagem poética, através de suas imagens,
oferece. Como diria Otavio Paz (2003, p.114), “Cada Imagem – ou cada poema feito de
imagens – contém muitos significados contrários ou díspares, que abarca ou reconcilia sem
suprimi-los.”
44
O mesmo se passa com as metáforas do neo-fantástico e sua geometria não-euclidiana,
que pede uma prosa revestida de poeticidade que possa se relacionar com o aspecto dionisíaco
de cada leitor, o aspecto não racional. É a poeticidade que instaura uma nova linguagem,
como defende Paz: “Cada vez que surge um grande prosador, nasce de novo a linguagem.
Com ele começa uma nova tradição. Assim, a prosa tende a se confundir com a poesia, a ser
ela mesma poesia.”
45
(PAZ, 2003, p.108).
A “álgebra mágica” de Guimarães Rosa implica, também, a utilização de uma língua
única, a sua própria, formada metodologicamente em função da poeticidade de seus “contos
críticos”:
Primeiro, há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela
tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e
reduzi-la a seu sentido original. Por isso, e este é o segundo elemento, eu incluo em
43
concebimos la realidad como un espacio donde lo causal es una geometría, aunque no la única, y donde hay
lugar para otras geometrías no causales, que repugnan a la razón pero que expresan nuevas formas dentro de ese
espacio, es natural que lo fantástico adquiera también su carta de realidad. Mas aún: que la realidad expresada
por lo fantástico alcance un grado de complejidad semejante al de la geometría no-euclidiana en relación con la
geometría métrica.
44
A tradução é de minha responsabilidade: Cada imagen – o cada poema hecho de imágenes – contiene muchos
significados contrarios o dispares, a los que abarca o reconcilia sin suprimirlos
45
A tradução é de minha responsabilidade: Cada vez que surge un gran prosista, nace de nuevo el lenguaje. Con
él empieza una nueva tradición. Así, la prosa tiende a confundirse con la poesía, a ser ella misma poesía.
71
minha dicção certas particularidades dialéticas de minha região, que são linguagem
literária e ainda têm sua marca original, não estando desgastadas e quase sempre são
de uma grande sabedoria lingüística. Além disso, como autor do século XX, devo
me ocupar do idioma formado sob a influência das ciências modernas e que
representa uma espécie de dialeto. E também está à minha disposição esse magnífico
idioma já quase esquecido: o antigo português dos sábios e poetas daquela época dos
escolásticos da Idade Média, tal como se falava, por exemplo, em Coimbra. (ROSA,
1991, p.81).
Por um lado, como o neo-fantástico, a álgebra mágica em seu aspecto lingüístico, abre-
se para o campo das ciências modernas, abarcando todas as geometrias e concretizando-as no
objeto poético multisignificativo, com suas metáforas elaboradas em 360º graus de base;
como aliás aconteceu com Kafka e outros grandes autores do século XX, que exploraram as
regiões do indizível; por outro lado, reveste-se de uma mística que tem na fé seu sustentáculo
da verossimilhança; a narrativa conduz, diz e mostra e assim o leitor é levado a acreditar que
aquilo que se narra é, pelo menos, possível, se não completamente verdadeiro. Essa
veracidade construída pelo escritor é, para Borges, o primeiro elemento de importância na
construção do romance para que este não se afaste de sua raiz milenar: a magia. Em sua
análise da obra de William Morris, Life and Death of Jason (1867), diz o seguinte:
Esta necessitava, antes de mais nada, de uma forte aparência de veracidade, capaz de
produzir essa espontânea suspensão da dúvida, que constitui para Coleridge, a fé
poética. Morris consegue despertar essa fé. (...) Morris pode não comunicar ao leitor
sua imagem do centauro e nem mesmo convidar-nos a ter uma, basta-lhe nossa
contínua fé em suas palavras, como no mundo real. (BORGES, 2005, p. 240-1).
A fé defendida por Borges é aquela capaz de fazer com que a narrativa não precise
nomear os objetos, mas apenas fazer alusões a eles. Borges, inclusive, cita, em A Arte
Narrativa e a Magia, o possível, mas improvável, comentário de Mallarmé sobre essa
questão: “Nomear um objeto é suprimir as três quartas partes do prazer do poema, que reside
na felicidade de ir adivinhando; o sonho é sugeri-lo” (BORGES, 2005, p.244). No poema de
Morris analisado por Borges, as figuras fantásticas, como a do centauro, por exemplo, que é
apresentada após uma longa digressão sobre a genealogia desses seres, vão ganhando
consistência na narrativa ao se relacionarem com outras classes de seres, algumas mais
próximas, outras mais distantes do ser humano, tornando suas existências mais críveis: pelo
uso adequado das palavras, a fé poética permite tomar a ficção como uma verdade.
Outra questão defendida por Borges refere-se à causalidade que, no “amoroso romance
de personagens”, por exemplo, "imagina ou dispõe uma concatenação de motivos que se
propõem não diferir daqueles do mundo real" (BORGES, 2005, p. 245), enquanto que, no
72
“romance de contínuas vicissitudes", esse procedimento se torna inadequado, vinculando-se
ao aspecto da magia por sua “ordem diversa, lúcida e atávica” (BORGES, 2005, p.245).
Enquanto a causalidade singular da ficção mantém-se muito próxima às do mundo real,
a causalidade mágica não apenas afasta-se desta, mas rege-se por uma outra ordem; sua
relação entre causa e efeito não é dada por elementos próximos e encadeados, e sim por uma
“simpatia que postula um vínculo inevitável entre coisas distantes” (BORGES, 2005, p.245) e
aparentemente inconciliáveis, mas que guardam relação ou de igualdade – magia homeopática
ou imitativa –, ou de proximidade ancestral, que é a magia contagiosa.
Podemos observar as influências dos conceitos de “fé poética” e “causalidade”
desenvolvido por Borges na análise que elabora Alazraki ao estudar a obra de Cortázar, já que
esses conceitos se aproximam das idéias de geometria não-euclidiana e de metáfora de 360
graus.
Em relação à álgebra mágica, poderíamos dizer, de forma projetiva, que, além dos
aspectos lingüísticos, há, também, esses dois procedimentos identificados por Borges: o da fé,
que sutilmente leva o leitor a incorporar as imagens ficcionais como verdade, criando um
pacto de aceitação por meio da construção literária; e a questão da causalidade, paradoxal e
diversa daquela que preside a concatenação lógica dos acontecimentos.
Essa proximidade entre Borges e Guimarães afasta-os de todos aqueles escritores latino-
americanos que buscaram ficcionalizar a realidade por meio de um realismo-mágico ou
maravilhoso, como defende Nunes, afinada com o crítico Monegal:
O crítico uruguaio Emir Monegal ressalta bem a impossibilidade de se assimilar o
conceito de Borges de literatura fantástica a qualquer espécie de realismo, ainda que
se acrescente o “mágico” ou o “maravilhoso”. Ao pensar em uma poética da
narrativa, o escritor argentino parte da concepção de arte narrativa como artifício, ou
construção. Isso impossibilita uma tentativa de leitura realista da literatura.
(NUNES, 2002, p. 197).
Borges busca “na causalidade o mecanismo central que permite diferenciar a ficção
supostamente“realista” da ficção que ele agora chama de “mágica” e que, em trabalhos
posteriores, chamará de “fantástica”. (MONEGAL, 1980, p.163). Acrescenta, ainda, que:
Examinando a causalidade da ficção, Borges distingue duas formas básicas que
correspondem às duas formas de causalidade que se manifestam no mundo real: a) a
mimética, que imita a causalidade do mundo real, tal como é apresentada pela
ciência, e que corresponde ao que ele chama de “romance de tipos”, mas que
geralmente se designa como “romance realista”; b) a que segue a causalidade da
magia, que corresponde ao “romance tumultuado e progressivo”, isto é: o romance
de aventuras. (MONEGAL, 1980, p. 165).
73
É ao segundo tipo de causalidade, aquela relacionada com a magia, que Borges
acrescentará os adjetivos “lúcido”, “primitivo”, “ancestral”; e, ainda, “primitiva clareza”,
demonstrando não apenas sua predileção por esta causalidade, mas também reforçando a idéia
de precisão e de “rigor e lucidez intelectual”, afastando-se dos conceitos de realismo mágico e
de real maravilhoso, como também esclarece Monegal:
Uma narrativa “mágica” fundamenta-se aqui, mas uma narrativa em que o termo
mágico pouco ou nada tem a ver com as vaguezas que, desde Franz Roh e Massimo
Bontempelli, até Uslar Pietri e Alejo Carpentier, vêm-se atribuindo na crítica
contemporânea. (MONEGAL, 1980, p. 168).
Outro texto basilar sobre a literatura fantástica, também citado por Monegal, é o
prefácio ao livro de Bioy Casares, publicado em 1940, A invenção do Morel. No prólogo,
Borges contesta a primazia do romance psicológico defendido por Ortega y Gasset: “anota
com justiça Ortega y Gasset que a ‘psicologia’ de Balzac não nos satisfaz; cabe observar o
mesmo de seus argumentos” (BORGES, 2001, p.28).
Ortega y Gasset, em A desumanização da Arte (1925), analisando a obra de Stevenson,
defendia a idéia de que o romance de aventura não teria mais interesse algum e não seria
capaz de sensibilizar. Borges defende o romance de aventuras, que, ao não se propor a
transcrever a realidade, não teria partes injustificadas, e sim um argumento mais rigoroso. Por
isso, “diante da desordem do romance psicológico ou realista, diante de sua falta de forma ou
de rigor, Borges apresenta a ordem, a forma, o rigor do romance de aventuras”
(MONEGAL,1980, p.171).
Em seu estudo sobre a obra de Borges, Monegal aponta os três tipos de narrativas que se
depreendem das suas teorias e cujo elemento orientador é a causalidade:
Haveria, assim, uma narração mimética, realista, psicológica, que imita a
causalidade natural e que é, portanto, caótica, como o mundo real. Em segundo
lugar, haveria uma narração mágica, ou fantástica, que tem, ao contrário, como
fundamento a causalidade mágica e que é extremamente rigorosa. Em terceiro lugar,
haveria uma narração maravilhosa, ou milagrosa, em que a causalidade seria
sobrenatural, isto é: totalmente arbitrária. (1980, p.174).
Por esta concepção, a literatura em geral é, em si mesma, fantástica, porém Borges
distingue claramente entre a causalidade, que está na raiz de uma literatura mimética, daquela
que preside ao fantástico ou, como diz Nunes, "O de que fala o fantástico não tem uma
diferença qualitativa do que fala a literatura em geral, mas há uma diferença de intensidade
que atinge seu ponto máximo com o fantástico” (NUNES, 2002, p. 202).
74
Pensando no fantástico como um modo narrativo, Ceserani (2006) diz que:
Não existem procedimentos formais e nem mesmo temas que possam ser isolados e
considerados exclusivos e caracterizadores de uma modalidade literária específica.
Isso vale para o fantástico, mas também para todos os outros possíveis modos de
produção literária. Cada procedimento formal, ou artifício retórico e narrativo, ou
tema ou motivo, pode ser utilizado em textos pertencentes às mais diversas
modalidades literárias. O que caracteriza o fantástico não pode ser nem um elenco
de procedimentos retóricos nem uma lista de temas exclusivos. (CESERANI, 2006,
p. 67).
Não nos importando com as questões temáticas ou retóricas, ou pelo menos, não as
considerando como elementos fundamentais de caracterização do fantástico na literatura,
como sugere Ceserani, podemos nos libertar das definições mais restritivas que modalizam o
gênero.Vamos, portanto, apoiar-nos na concepção borgiana de fantástico, que se estende para
toda literatura como construção ficcional, mas que, ao se manifestar mais intensamente em
algumas obras do que em outras, caracterizará o pólo oposto ao das literaturas mimético-
realistas em função da causalidade empregada em cada uma delas: singular, para a primeira e
mágica, para a segunda, além da fé poética necessária para que cada leitor aceite o texto
ficcional como verdade pactuada.
O próprio neo-fantástico, termo definido por Alazraki ao percorrer a obra de Cortázar,
não deixa de evidenciar as influências do pensamento borgiano que se espelha em uma grande
parcela da literatura fantástica argentina.
O centro do neo-fantástico é a metáfora em 360 graus de base, que não se limita ao
retórico, mas atinge o grau máximo de poeticidade ao não apenas substituir um termo por
outro, mas carregar em si o substituído. Essa comunicação em 360 graus de base somente é
possível pela relação que estabelece entre os termos distantes que compõem a metáfora,
possibilitando leituras multisignificativas e, ao mesmo tempo, indefiníveis no horizonte das
referências comuns.
A metáfora do neo-fantástico, considerada para além do efeito retórico, cria a
indeterminação do texto e abre a possibilidade de expressão do indizível por meio de uma
experiência íntima que estabelece com o leitor. Mais do que de uma poética, aqui falamos da
capacidade que tem a obra de arte de marcar o seu receptor.
Embora ainda devamos extrair de A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, a
poética da álgebra mágica, de forma projetiva, pensamos que as características do neo-
fantástico, como expressão da literatura Latino-Americana da segunda metade do século XX,
possam servir de porta de entrada para a compreensão de seus mecanismos e significações.
75
Antes, porém, queremos avaliar se a tradição do fantástico, em seus princípios, meios e
finalidades, está presente em Guimarães Rosa ou se fazem parte de seu projeto literário de
juventude, anterior à expressão mais elaborada da álgebra mágica, como fundamento de seus
contos críticos.
76
2) O fantástico em O Mistério de Highmore Hall e Tempo e Destino
Escrevia friamente, sem paixão, preso a moldes alheios. Na verdade,
o importante eram os cem-mil réis do prêmio...
Renard Perez
As temáticas propostas por Guimarães Rosa nesses dois contos anunciam sua disposição
em buscar elementos literários não restritos à questão regionalista. Se, por um lado,
Guimarães Rosa se declarava regionalista, como se percebe por suas afirmações a Lorenz:
“portanto, estou plenamente de acordo, quando você me situa como representante da literatura
regionalista” (ROSA, 1991, p.66); por outro lado, o cenário regionalista roseano é composto
por elementos espirituais e místicos que configuram Guimarães Rosa como um escritor
síntese dessas duas tendências, como quer Walnice Nogueira Galvão (2000), ao afirmar que
“sua obra vai representar uma síntese feliz das duas vertentes [a regionalista e a espiritual]”
(p.8).
Nos primeiros contos, essa peculiar linguagem regionalista ainda não está presente, mas
já vemos seu método de ir “costeando o sobrenatural, em demanda da transcendência”
(GALVÃO, 2000, p.8). O próprio Guimarães Rosa elabora uma tabela de pontuação dos
elementos de sua obra: “...assim gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1
ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.”
(ROSA, BIZZARRI, 2003, p. 90-1). A prosa de Rosa “revela um traço regionalista mais
amplo e mais sonhador, se comparado com o dos escritores que haviam anteriormente
explorado o filão sertanejo” (CASTRO, 1993, p.5).
O regionalismo de 1930 se vê afetado pelos fenômenos sociais que se situam entre as
duas guerras mundiais. Segundo Galvão, no panorama brasileiro há uma nítida influência da
literatura social norte-americana, que, além da inspiração de Zola e da crise causada pela
quebra da bolsa de Nova Yorque, em 1929, produz uma literatura documento, que se torna
“best-seller” tanto nos Estados Unidos como no resto do mundo. Como marco oposto à visão
regionalista, aparece no Brasil, sob inspiração francesa, segundo Galvão, uma literatura de
inquietação metafísica, dentro da qual os problemas de “miséria, injustiça, opressão – nada
significavam quando comparados à salvação ou perdição da alma, esses escritores e seus
escritos operam por dentro de uma introspecção levada ao limite” (GALVÃO, 2000, p.23). É
preciso dizer também que, nos Estados Unidos, na década de 30, há uma corrente literária que
postula a supremacia dos elementos de mistério sobre a literatura jornalística e documental,
77
que domina o cenário do país: são os contos fantásticos, que têm como principal escritor H.P.
Lovecraft, fiel discípulo de Poe.
Não encontramos nos primeiros contos de Guimarães Rosa a temática regionalista, que
só surgirá mais tarde e que ele utilizará, de forma adaptada, como pano de fundo para o
desenvolvimento dos enlaces que deixam vislumbrar por entre os jogos de imagens sua
inquietação metafísica. Esta, sim, já está presente nos primeiros contos e é valorizada como
algo de maior importância em toda a sua obra.
Na biografia dos Escritores brasileiros contemporâneos, publicada originalmente em
1960 pela “Civilização brasileira” e, posteriormente, na Coleção Fortuna crítica 6, sob
direção de Afrânio Coutinho e seleção de textos de Eduardo Coutinho, também da
“Civilização brasileira”, Renard Perez levanta a questão a respeito dos primeiros contos de
Guimarães Rosa, publicados no jornal O Cruzeiro, que obedecem mais a uma necessidade
econômica do então estudante de medicina do que a um exercício da escrita “algébrico-
mágica”.
Wilson Madeira Filho (2000), em seu artigo “Retorno a Highmore Hall”, diz que,
embora os primeiros contos de Guimarães Rosa tenham sido “relegados pelo autor em sua
maturidade por não transcenderem” (p.709), eles demonstram a qualidade de Rosa para
elaborar chaves anagramáticas através dos nomes, com o intuito de atribuir mais significações
às palavras.
Os dois contos escolhidos como corpus deste trabalho de investigação são de fato muito
diferentes daqueles que logo surgiriam em Sagarana, escrito em 1937, que inegavelmente
obedece a outra matriz. Nessa matriz não se vislumbra o sertão, nem os bois, nem a
linguagem elaborada, nem os paradoxos que fizeram de João Guimarães Rosa um grande
escritor, a quem “uma única palavra ou frase podem [...] manter ocupado durante horas ou
dias” (ROSA, 1991, p.79). Porém, acreditamos que, de forma bruta, já é possível encontrar
elementos da “álgebra mágica” que só em futuro próximo seriam lapidados pelo trabalho
contínuo e que só então integrariam a personalidade de Rosa em seu processo de travessia
como escritor. Os contos que escolhemos não foram redigidos com o primor do joalheiro que
pule sua jóia, mas sim com as mãos brutas do garimpeiro que peneira seus primeiros
diamantes.
O Mistério de Highmore Hall foi publicado em 07 de dezembro de 1929, no jornal O
Cruzeiro, quando Guimarães Rosa tinha 21 anos. Seu modelo é nitidamente inspirado em Poe
e Walpole; inclusive Guimarães Rosa faz menção direta a este último em uma nota de pé de
página em um dos prefácios de Tutaméia, Sobre a escova e a dúvida:
78
Encontrei o nome: SERENDIPITY. Feliz neologismo cunhado por Horace Walpole
para designar a faculdade de fazer por acaso afortunadas e inesperadas
“descobertas”. Numa carta a Mann (28 de janeiro de 1754) ele diz tê-lo tirado do
título de um conto de fadas, “os três príncipes de Serendip” que – “estavam sempre
obrando achados, por acidente ou sagacidade, de coisas que não procuravam”.
(ROSA, 1994, p. 680).
De Poe, há a experiência ficcional como condição limite da experiência humana,
apresentando também o paralelismo com o conto A queda da casa de Usher. De Walpole,
Rosa herda a tradição do romance Gótico: o horror.
Como em Grande Sertão: Veredas, o conto inicia-se com um diálogo e, com as
primeiras palavras, a história já está em andamento:
- Não, Highmore Hall fica mais para diante, á beira do lago, junto ao clã de
Glenpwy. Este aqui é o castelo de Duw-Rhoddoddag, pertencente ao jovem Sir
Francis Lawen, que está agora em Londres. Se quiser aceitar nossa hospedagem,
preparar-lhe-emos um quarto.
- Obrigado. Preciso continuar minha viagem. E ainda está muito longe o solar
dos Highmore?.
- Não muito. Poderá chegar até lá antes do anoitecer. Mas... afinal, será o
senhor parente do velho, para vir se meter nessa lura de raposa? (ROSA, 1929, p.11).
O cenário do conto é a Escócia e os nomes são adaptações de palavras em inglês que
Guimarães Rosa elabora com o intuito de explorar outros significados possíveis.
46
Não,
Angus Dumbraid não é parente do velho; é um médico que se juntou a ele a pedido de John
Highmore, que sofria de uma estranha doença. Do início da narrativa até chegar ao solar dos
Highmore, nosso protagonista passa por um processo que vai do claro ao escuro, de uma
idealização mental a uma realidade concreta: do dia ensolarado ao anoitecer.
O efeito de escurecimento se acentua em função de sua comparação com o solar, um
“velho casarão”, e da comparação do senhor do solar com uma coruja: “o velho casarão não é
nada convidativo, e menos ainda o é Sir John, que vive lá enfurnado como uma coruja”
(ROSA, 1929, p.11). O tom de envolvimento do discurso acrescenta mais um elemento: a
intriga. O velho Highmore havia perdido a esposa para um rival, Sir Elphin Lowen, com
quem a mulher fugira há 15 anos e nunca mais foram encontrados, criando uma rivalidade
entre os dois clãs. Além da intriga, há um fato misterioso: Sir Elphin havia abandonado um
filho e toda a sua fortuna sem nunca mais dar notícias.
A descrição do solar dos Highmore também contribui para o tom resultante do efeito:
79
O casarão cinzento, denegrido, meio desmantelado, acocorava-se no alto da colina,
rodeado de paisagem tristemente árida. Reinava em torno a desolação e o silencio. O
lago avançava num golfo estreito e alongado, apertado entre as costas rochosas. O
solo pedregoso e nu de vegetação estendia-se em ondulações crescentes para o norte,
onde negrejavam os cimos dos Grampians. E vapor opaco baixava continuamente,
velando o horizonte com brumas espessas. A gente de Glenpwy nunca chegava até
lá, e raramente algum pescador de salmão abicava aquela margem do lago. (ROSA,
1929, p.11).
Esse mesmo tom mórbido está presente no conto de Poe, no momento em que ele
descreve a casa de Usher; a diferença é que, em A queda da casa Usher, a casa e os
personagens da família Usher estão intimamente relacionados entre si, já que os irmãos vivem
um amor incestuoso, aparente causa, aliás, da maldição que recai sobre ambos, além da
loucura de Usher, causada pela culpa e pelo medo. No caso de Highmore, a conexão entre a
casa e o velho é mais sutil, pois a decadência da casa parece estar ligada ao aparente
abandono pela esposa: “E até hoje não deixou mais a velha casa. Nunca mais sorriu. Parece
uma alma do outro mundo! O castelo vai se desmoronando aos poucos.” (ROSA, 1929, p.11).
Também o velho Highmore padece de loucura, pois havia aprisionado a mulher e o
amante no calabouço do castelo, assim como Usher, que havia enterrado a irmã viva, signo de
sua angústia. Ana, a mulher adúltera, morre logo em tal situação, porém Sir Elphin sobrevive
durante quinze anos, com a pouca alimentação que Sir John jogava por um alçapão.
O efeito do medo e do terror aumenta na cena em que Rosa descreve a tentativa
desesperada de Sir Elphin em se comunicar com alguém que possa socorrê-lo: pinta com seu
sangue mensagens de pedido de socorro nos restos da roupa e os amarra nas costas dos ratos,
únicos mensageiros disponíveis:
“... só Deus poderá ...
... de tão horrorosa prisão !
Socorrei-me por tudo...”
Essa primeira parte do conto, que não mostra Sir Elphin aprisionado no castelo, chega
ao final com o pedido desesperado de socorro. Todos os elementos do conto apontam para um
horror negro, sem um desfecho satisfatório, já que Dumbraid, o médico com acesso às
mensagens de socorro, volta a Londres e acaba não dando maior importância às mesmas.
Porém, essa supressão do efeito do horror não perde de vista o desenlace do conto, como aliás
Poe solicitara em A filosofia da composição, de 1845, que deve ter inspirado Rosa em seus
primeiros anos: “nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas desse nome, ser
46
Para um estudo parcial dos nomes, leia-se “Retorno a Highmore Hall”, de Wilson Madeira Filho.
80
elaboradas em relação ao epílogo antes que se tente qualquer coisa com a pena” (POE, 1965,
p.911).
Poe preferia sempre iniciar seus contos com a consideração de um efeito, sem perder
de vista o caráter de originalidade necessário para que tal efeito não perdesse força. O
efeito, para ser concretizado, passa por uma apreciação do tom da narrativa e dos
incidentes que comporão a trama. No caso de O mistério de Highmore Hall, fica clara a
relação de incidentes que o aproxima de A queda da casa de Usher: o mistério familiar, a
loucura, o amor proibido, o sepultamento em vida, a casa decadente à beira do lago, a
aparição fantasmática final e a morte do dono da casa. Quanto ao tom, ambos são solenes
e carregados de tristeza, mistério e horror – como Poe gostava –, mas com a diferença de
que Rosa, ao narrar em terceira pessoa e não em primeira, como Poe, cria um menor
envolvimento do leitor com a narrativa. O tom poético, segundo Poe, pode ser obtido por
meio da morte de uma bela mulher – como Leonora, de O corvo, Madeline Usher, de A
queda da casa de Usher, e Ana Highmore, de O mistério de Highmore Hall. O ritmo
poético é criado graças à cadência do efeito que, prematuramente, não pode ser intenso:
“tivesse eu sido capaz, na composição subseqüente, de construir estâncias mais vigorosas,
não teria hesitações em enfraquecê-las propositadamente, para que não interferissem com
o efeito culminante” (POE, 1965, p. 917).
A pausa no desenvolvimento da intensidade do efeito, presente entre a primeira e a
segunda parte do conto, é uma espécie de respiração, para que o efeito não se perca
prematuramente e possa seguir seu curso até o desenlace final:
E de repente um grito horroroso, desesperado, agudíssimo, dominou a
orquestração uivante do temporal. Eletrizado, Dumbraid teve um susto, um calafrio e
um estremecimento.
Reconheceu a voz de sir John, não obstante o timbre nada ter de humano,
parecendo o estertor de um animal que se estrangula.
E, numa reação corajosa, abriu a porta e precipitou-se na galeria alagada.
Vergastado pelas lufadas impetuosas, teve de se encostar ao frio da parede; e
esgueirou-se, aproveitando o clarão momentâneo dos relâmpagos.
Só ao alcançar o gabinete de sir John, cuja porta encontrava pela primeira vez
escancarada, lembrou-se de não ter arma nenhuma consigo.
Receou entrar, e de fora perscrutou o aposento. E então evaporou-se-lhe o
ímpeto de ousadia, e ele quedou, não mais com medo, mas estupidamente paralisado
ante a coisa concreta, assistindo horrível cena de pesadelo.
Não havia luz no gabinete, mas os relâmpagos, agora contínuos, iluminavam-
lhe os mínimos detalhes.
De pé, hirto, os olhos esbugalhados, os cabelos arrepiados, o castelão tremia,
levando as mãos á frente, num gesto instintivo de defesa. E diante dele via-se um
corpo hediondo, nu, hisurto, negro, sujo, a escorrer água, os ombros largos
sustentando a juba cerdosa de uma cabeça e a grenha barbuda de um rosto bestial.
Os olhos faiscavam chamas de ódio – olhos de leopardo numa cara de gorila.
81
E o mais terrível era que esse monstro falava, ou antes rugia, com sotaque
absurdo, com voz entrecortada, exprimindo-se dificilmente mas numa entonação
feroz e decidida. (ROSA, 1929, p.12).
O ambiente, o temporal e a aparição vão se somando para gerar o tom de horror e medo,
até ficar claro que o monstro é Sir Elphin, que havia escapado de seu calabouço e buscava
vingança. Os quinze anos de prisão, a dor de ver sua amada morrer e se decompor em sua
frente e de ter que utilizar seus ossos para cavar um túnel o haviam transformado, de fidalgo,
em monstro: uma das mais horríveis metamorfoses, que leva John Highmore imediatamente à
morte, por medo.
O conto de Guimarães Rosa, apesar de escrito no século XX, mantém uma matriz mais
próxima dos séculos XVIII e XIX. Não combina com o neo-fantástico, conforme a
formulação de Alazraki; nem tampouco com o fantástico, conforme elaborado por Todorov;
também não se enquadra na “álgebra mágica” que vamos encontrar no trabalho posterior de
Guimarães Rosa, a partir de Sagarana. Mas já há uma evidente preocupação com a busca do
efeito, com a construção das palavras e de metáforas que agreguem significação e poeticidade
ao texto. Há também a busca de uma trama que não seja racionalista e cartesiana e que
ofereça, por meio do horror, bem característico do romance Gótico, uma apreciação dos
limites das possibilidades do ser humano.
Por sua vez, Tempo e Destino, também publicado no jornal O Cruzeiro, em 22 de junho
de 1930, tem uma clara temática fantástica à maneira do século XIX. Zviazline, jogador de
xadrez com grandes conquistas como amador, mas sem muita experiência profissional, tem
que enfrentar profissionais experientes em uma grande competição e necessita do prêmio em
dinheiro para se casar com Efrozine, sua amada.
O tom do conto obedece ao de uma narrativa elementar: dois amantes que se vêem
impedidos de concretizar seu amor por causa de um obstáculo – nesse caso, a falta de
dinheiro. Durante uma partida de treinamento, Zviazline percebe uma figura diferente entre os
espectadores:
Então Zviazline olhou pela primeira vez os assistentes. E viu na sua frente uma
figura estranha de grifo, que relembrava os retratos de Satanás: fronte
desmedidamente ampla; sobrancelhas oblíquas; olhos pequenos, maliciosos,
faiscantes; nariz adunco como bico de falcão; lábios finos frisados por sorriso
diabolicamente irônico. (ROSA, 1930, p.12).
O sujeito parece exercer um estranho poder sobre ele, já que sua aproximação coincidiu
com o crescimento da capacidade enxadrística de Zviazline, possibilitando que ele ganhasse
82
as partidas com outros mestres mais experientes como parceiros. O enigma sobre o sujeito
estranho aumenta quando o mesmo profere uma sentença também estranha: “- Enfim, já se
começa a compreender e a jogar o xadrez entre os homens!” (ROSA, 1930, p.12).
O tom sobrenatural é trabalhado pelo narrador em terceira pessoa quando ele completa a
descrição da figura enigmática, sugerindo que talvez ele não seja humano, o que acentua o
efeito da frase anterior, quando parece falar dos homens como se não pertencesse à mesma
espécie:
A sua voz estalou fanhosa, esganiçada, como se viesse de muito longe; e, não fora o
ar sobrenatural de quem a pronunciara, qualquer um se sentiria insultado pela ironia
da expressão. E, sem esperar resposta, o enigmático homenzinho se afastou num
passo miúdo, como o saltitar de um pássaro.
Os circunstantes indagaram-se mutuamente, mas nenhum conhecia a esdrúxula
criatura de sortilégio. Era de certo algum brincalhão de mau gosto, que quisera se
divertir à custa deles. (ROSA, 1930, p.12).
Ao mesmo tempo em que a figura do ser estranho, de aparência não humana, é sugerida,
há o ar de galhofa que remete o acontecido para uma condição de brincadeira de “mau gosto”,
surgindo uma explicação racional para aquele homem estranho e para as vitórias de Zviazline,
que podem ser tomadas como coincidência apenas. Não há, ainda, uma hesitação
caracterizadora do fantástico do século XIX; é necessário que a história siga...
As vitórias na seção de treinamento repercutiram por todo o círculo enxadrístico e,
numa atitude criminosa, Zviazline foi drogado momentos antes de iniciar o torneio. Em estado
de delírio, deixa seu quarto e passa a vagar pelas ruas até se deparar com uma sala circular
onde dois homens jogavam xadrez. A decoração era feita com signos raros; queimavam o
incenso e a mirra. Um dos jogadores era o conhecido misterioso e “o outro tinha cabelos e
barba cor de neve; mas a fisionomia austera e majestosa não era absolutamente a de um velho.
Ele parecia acima das idades! Tinha uma ampulheta ao seu lado num canto da mesa.” (ROSA,
1930, p.46).
Os jogadores eram o Tempo e o Destino e o jogo de xadrez era o “único tarot absoluto,
chave de todo simbolismo!...” (ROSA, 1930, p.46). Zviazline havia sido atraído por ser o
escolhido que receberia o ensinamento arcano daquilo que era, para quase todos, “um jogo,
para alguns uma arte, e uma ciência para muito poucos...” (ROSA, 1930, p.46). O Destino
passa a ser o narrador e começa a explicar quem ele é, qual sua característica e quem é seu
parceiro, que continuava impassível a manejar as peças do jogo que tinha à frente. Também
reforça a herança humana como uma gênese de Prometeu, ao falar da chama humana por
meio de uma profecia:
83
- Sim, não passáveis primitivamente de meros autômatos, com menos independência
e arbítrio talvez que estes trabelhos em que tocam as nossas mãos!... Entretanto, uma
força imensa, formidável, desabrochou e cresceu na chama microscópica de vossos
cérebros embrionários... Essa potencia que não sabeis ainda manejar, mas que vos há
de transformar em deuses, é a vontade!... (ROSA, 1930, p.46).
O fogo sagrado roubado dos deuses e doado à humanidade se apresenta como uma
vontade capaz de realizar grandes feitos, à altura dos deuses. Essa é a revelação arcana que
recebe Zviazline em sua iniciação. Logo a seguir, ele é levado pelas mãos do Tempo para
contemplar a história, que passa em sua frente por meio de mil imagens e acontecimentos
insólitos. Por fim, o movimento desacelera e ele entra em um estado de grande calma e
tranqüilidade; então desperta e se lembra da competição de xadrez. Corre em direção ao salão
do torneio, na esperança de não ter perdido o início da competição, mas quando chega lá
percebe que o torneio, que durou 20 dias, já havia finalizado e que ele havia ganhado a
competição com 11 vitórias em 11 partidas e era o novo campeão mundial. A explicação para
o fato: “Haviam decorrido vinte dias desde o começo da sua amalucada excursão! E enquanto
o velho Cronos o distraíra com as visões fantasmagóricas, “Anágke”, disfarçado, substituíra
Zviazline no torneio, alcançando estrondosa vitória.” (ROSA, 1930, p.46).
Esse desenlace remete o conto para o maravilhoso, pois sua explicação sobrenatural
invalida a possibilidade do fantástico. Depois dessa experiência, Zviazline cumpre seu trajeto
heróico e se casa com Efrozine, mas nunca mais joga xadrez: “mais forte que Adão, recusava
provar do fruto da ciência, e mais humano que Prometeu, se não atrevera a roubar o fogo do
céu.” (ROSA, 1930, p.46).
O conto descreve o trajeto iniciático que leva Zviazline à aquisição de um conhecimento
arcano: a ciência do jogo de xadrez, que se reveste da metáfora da vida. Abandonar o jogo é
abandonar a busca incessante das combinações que a vida oferece pelo exercício da vontade
herdada de Prometeu e essa é a síntese de toda a ciência. O texto estabelece uma relação entre
o Tempo e o Destino, entre Ormuz e Ariman, deuses masdeístas que representam o bem e o
mal. Enquanto o Tempo, e portanto Ormuz, o bem, não retira sua atenção do jogo, como um
todo, e do movimento frenético das peças, Ariman intervém nas ações humanas através da
providência ou da fatalidade: são as duas caras do destino. Porém, não fica claro para o leitor
se o destino é um ser em si ou se apenas responde à condição humana, pois, apesar da
explicação final de que o destino havia assumido o lugar de Zviazline no torneio, poder-se-ia
argumentar que a conclusão não passa de uma explicação superficial, pois, ao se apresentar
84
usando a voz do narrador, assume um valor de verdade. O narrador, porém, está narrando uma
história que ouviu do próprio Zviazline:
O jovem enxadrista acordou cedo e bem disposto. Como de costume, o criado lhe
trouxe o café preto, ainda fumegante. E logo após começavam os efeitos
estramonizantes de uma droga criminosamente misturada!...
O que depois se passou, nem o próprio Zviazline soube contar direito. Lembra-se,
muito mal, de ter saído desesperado, numa excitação doida, pondo-se a girar a esmo
pelas ruas, esquecido por completo do torneio a começar daí a pouco. Tomara em
seguida um automóvel, e, já fora dos arrabaldes, ao norte da cidade, despedira o
chofer, caminhando num automatismo de sonâmbulo, como se arrastado por
chamamento superior e invisível. (ROSA, 1930, p.12).
Toda a narrativa, passada através do narrador em terceira pessoa, tem sua origem no que
Zviazline contou depois; é uma forma sutil de transferir a narrativa em terceira pessoa para
um narrador-personagem que esteve sob o efeito de drogas: passamos, portanto, de uma
explicação sobrenatural do fenômeno para uma explicação natural, o que remeteria o conto
para a condição do estranho. Na dúvida entre um e outro, ao não podermos decidir se o relato
em primeira instância é a história contada por um narrador em terceira pessoa ou se é a
história da personagem, resvalamos para a dúvida entre as seguintes alternativas: maravilhoso
ou estranho, e, ao não podermos decidir, por meio dos elementos textuais, entre uma ou outra,
entramos no âmbito do fantástico.
A dúvida instaurada nos remete a outra dúvida Roseana, a que permeia O grande
Sertão: Veredas: a dúvida de Riobaldo sobre a existência do diabo ou se o que existe mesmo
é “o homem humano” em seu projeto de travessia.
Riobaldo, religioso e místico, dialoga com um interlocutor mudo que não acredita na
existência do demo, pois sua formação científica e criação urbana afastam a possibilidade de
tal entidade. Em O grande Sertão: Veredas, Deus se apresenta fora dos acontecimentos
pontuais, pairando sobre todas as coisas, enquanto o diabo, este sim, “está na rua, no meio do
redemoinho”. Também em Tempo e Destino, o Tempo, ou Ormuz, contempla os infinitos
movimentos do xadrez da vida, enquanto o Destino, Ariman, se intromete nas ações humanas;
é ele quem supostamente, se aceitamos o tom maravilhoso do conto, leva seu iniciado à
vitória. Caso optemos pelo estranho, é o próprio Zviazline, com a consciência alterada, que
alcança a vitória. Outra relação com O grande Sertão: Veredas é que Zviazline, o ucraniano,
assim como Riobaldo, o urucuiano, ao atingir o auge de sua carreira, se aposenta e
aparentemente vive a contar os fatos de seu passado. Foi por esse meio que o narrador se
inteirou do acontecido; a diferença é que Zviazline conquista o amor de sua vida, Efrozine,
enquanto Riobaldo perde Diadorim, embora se case com Otacília.
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Se os primeiros contos de Guimarães Rosa receberam, por parte do próprio autor, o
adjetivo de contos que não transcenderam, é impossível negar que Tempo e Destino contém,
de forma embrionária, elementos que transcenderão em O grande Sertão: Veredas. Tempo e
Destino, ou Ormuz e Ariman, são representações do bem e do mal na religião masdeísta e
que, transpostas para o cristianismo, recebem os nomes de Deus e diabo. O jogo de xadrez se
apresenta como metáfora da existência, da vida humana, como já havia ensaiado Machado de
Assis, quando escreveu: “das qualidades necessárias ao xadrez, Iaiá possuía as duas
essenciais: vista pronta e paciência beneditina; qualidades preciosas na vida, que também é
um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas”
(MACHADO, 1992, p. 464). Guimarães Rosa, na trilha de Machado, insiste na representação
do xadrez como uma metáfora da vida e por isso diz que é, para poucos, uma ciência arcana; a
grande maioria apenas vê o jogo e não sabe que, por detrás de cada jogada, estão as mãos do
Tempo e do Destino ou, dito de outra forma, de Deus e do diabo.
Também Borges explorou a temática do xadrez. Publicou, em 1960, um poema- Xadrez,
incluído no livro O Fazedor, no qual presta uma homenagem à arte de Caissa, ao mesmo
tempo em que toca em questões como o tempo e o destino:
Quando os jogadores tiverem ido,
Quando o tempo os tiver consumido,
Certamente não terá cessado o rito.
No Oriente acendeu-se esta guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.
Também a relação do xadrez com o mundo pode ser observada no verso que distingue o
xadrez por sua infinitude. Mais revelador ainda é o conto O Milagre Secreto, publicado em
Ficções, em 1994, depois, portanto, da publicação do conto Tempo e Destino, de Guimarães
Rosa.
O conto inicia com o relato de um sonho ocorrido na noite de quatorze de março de
1939, em um apartamento da Zeltergasse de Praga. Jaromir Hladik sonhava que duas famílias
inimigas disputavam um grande e extenso jogo de xadrez, jogo iniciado há muitos séculos e
sem data para acabar, quando foi despertado por uma patrulha do Terceiro Reich que o fez
prisioneiro, devido à sua ascendência judia.
Ao longo da narrativa, atributos do jogo de xadrez são emprestados a objetos e situações
narradas: “um quartel asséptico e branco”, “tentava esgotar absurdamente todas as variantes”,
“antecipava infinitamente o processo”, “em pátios cujas formas e cujos ângulos esgotavam a
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geometria”, “com lógica perversa inferiu que prever um detalhe circunstancial é impedir que
este suceda” e outros, que impregnam a narrativa de artifícios que vão culminar no desfecho
da história. Na noite anterior à sua execução, Hladik, depois de perceber que “o tempo é uma
falácia”, sonha que um anjo vem lhe conceder seu desejo: ter mais um ano para concluir sua
melhor obra, que é um livro intitulado Os inimigos.
Na hora da execução, no dia 29 de março, às 09:00 da manhã, Hladik foi levado ao
paredão de fuzilamento. No instante do tiro, porém, o tempo se deteve para Hladik:
“Surpreendeu-lhe não sentir nenhuma fadiga, nem sequer vertigem de sua demorada
imobilidade. Dormiu, ao cabo de um prazo indeterminado. Ao despertar, o mundo continuava
imóvel e surdo.” (BORGES, 2005, p. 572).
Hladik contava com sua memória para cumprir com seu destino: concluir seu livro, e,
para isso, o tempo se deteve. Passado um ano, Hladik recebeu uma bala de chumbo em seu
peito. Era o dia 29 de março, às 09h02min da manhã do mesmo dia em que descera ao pátio.
Não apenas o tema do xadrez, do tempo e do destino se aproximam do conto de
Guimarães Rosa, mas também a utilização da magia como elemento orientador.
Evidentemente, nesta comparação o trabalho de Borges aparece muito melhor elaborado do
que o do iniciante escritor mineiro. A álgebra mágica ainda está em fase embrionária e, talvez
por isso, mais do que pela falta do linguajar regionalista, Guimarães Rosa tenha classificado
seus trabalhos dessa época como “contos que não transcendem”.
De fato, estes dois contos, comparados com o conto A Terceira Margem do Rio,
parecem escritos por outro autor; são filhos de outro pai. Qual pai corresponderia a tais filhos?
Renard Perez nos dá apenas uma sugestão em seu depoimento sobre Guimarães Rosa,
publicado na Coleção Fortuna Crítica n
o.
6 (1991). Filho de pequeno comerciante,
Guimarães Rosa nasceu na pequena cidade de Cordisburgo em 27 de junho de 1908, uma
“zona de fazendas e engorda de gado”, e cursou o ginásio na mesma escola que Drummond, o
que talvez o tenha inspirado a se tornar um grande leitor e freqüentador de bibliotecas,
embora as línguas fossem a sua maior paixão. Matriculou-se na faculdade de medicina em
1925 e, em 1929, foi nomeado funcionário do Serviço de Estatística de Minas Gerais. Em
1930, casou-se pela primeira vez e se formou no curso de medicina. É justamente no período
do curso de medicina, que coincide com o entre-guerras, que Guimarães Rosa escreve os dois
contos analisados neste trabalho, período que também coincide com grandes mudanças
políticas no cenário mundial:
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No período entre as duas guerras mundiais, de 1918 a 1939, viveu-se intensa
polarização política. Solicitados por crises sociais sem precedentes, ainda em pleno
rescaldo daquela que foi a primeira guerra total, envolvendo o planeta por inteiro
numa globalização armada até então inédita – e às voltas com a escalada de conflitos
que prenunciava a próxima guerra, mais cruel ainda -, intelectuais e artistas no
mundo todo, bem como no Brasil, se arregimentavam à direita ou à esquerda. De
preferência, à esquerda. Um período que assistiu à ascensão dos totalitarismos por
toda a parte – fascismo na Itália, Espanha e Portugal, nazismo na Alemanha,
peronismo na Argentina, ditadura e Estado Novo de Getúlio Vargas no Brasil, para
não falar no integralismo de Plínio Salgado – só podia mesmo convocar os
intelectuais a uma maior participação na luta contra os regimes de exceção.
(GALVÃO, 2000, p. 18).
Guimarães Rosa nunca foi um ativista radical e nunca utilizou meios radicais para
expressar sua indignação; ao contrário, fez da língua sua espada e da literatura seu ponto de
integração. Mas é difícil deixar de acreditar que o processo de mudanças e ocorrências
mundiais e locais deixasse de causar algum impacto no jovem escritor e que uma linguagem
mais realista, com a influência de Zola, deixasse de influenciar Guimarães Rosa nesta época,
embora, mais tarde, ele tenha considerado Zola um escritor menor, um não-sertanejo.
O mapa dessa influência está bem desenhado no trabalho de Flora Süssekind, Tal
Brasil, qual romance? (1984), no qual traça o perfil da influência realista no plano da
literatura brasileira:
Não é o romanesco, o literário, o que importa, mas a possibilidade de tais narrativas
retratarem com “verdade” e “honestidade” aspectos da “realidade brasileira”.
Importa que o trabalho com a linguagem, os recursos narrativos, a literatura, cedam
lugar à perseguição naturalista de um décor brasileiro, personagens típicos e uma
identidade nacional. Repete-se, no que diz respeito à literatura brasileira, a exigência
de que radiografe o país. Mais que fotografia, o texto se aproxima do diagnóstico
médico a captar sintomas e mazelas naconais. A ordenar descontinuidades e
diferenças. A buscar uma identidade chamada Brasil e uma estética naturalista que
permitam uma simetria perfeita à máxima: Tal Brasil, tal romance. (1984, p.38).
E quanto às influências estrangeiras, acrescenta Süssekind:
Tentando dar conta fotograficamente de um país, ele mesmo envolvido num projeto
de aproximação a modelos (culturais ou não) estrangeiros, a literatura fica mais
longe de seu desejo mimético. Em busca de um modelo que, por sua vez, também
tenta reduplicar outro, mais parece tratar-se de uma casa de espelhos, onde todos
querem refletir uma imagem que, de sua parte, é igualmente o reflexo da outra.
(1984, p.39).
Guimarães Rosa, além das influências de época, mantém estreito vínculo com as
ciências, em função da escolha da carreira, que viria a ser sua primeira profissão, resultando
em uma previsível tendência a esquemas e modelos.
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Já nesses dois primeiros contos, vê-se a tentativa de fugir dos padrões mais realistas e
racionalistas. No primeiro conto, O mistério de Highmore Hall, por meio do horror muito
característico do Gótico, já mapeado, quando falamos do fantástico no século XVIII. Porém
não é uma influência direta, mas mediatizada por Poe, este sim influenciado diretamente pelos
escritores góticos. A imitação é tanta que, não só o modelo, mas toda a estrutura responde às
características do gótico, até mesmo a utilização dos nomes e do cenário. O que há no estilo
ainda incipiente de Guimarães Rosa é apenas a tentativa de quebrar com o padrão realista da
literatura de sua época por meio de um estilo que, como já vimos, pertence a outro século.
No caso do segundo conto, Tempo e Destino, vê-se outro tipo de fantástico, o do século
XIX, ao se situar entre a explicação de um acontecimento maravilhoso e a alucinação, sem se
definir por nenhum deles. Apesar do conto já mostrar correlações mais refinadas entre o jogo
de xadrez e as relações bem-mal e tempo-destino - como encenações da vida - a estrutura se
faz por oposições, sem o esteio do paradoxo da álgebra mágica, isto é, aquele espaço possível
para dizer o indizível. Falta ainda uma identidade para o escritor; sua escritura é ainda linear,
presa a modelos alheios que utiliza como matriz para se opor a matriz realista/regionalista de
larga utilização na década de 30, herdeira dos conceitos de Zola e sob a influência do
marxismo; assim como Lovecraft, sob grande influência de Poe, buscava com seu horror
cósmico, na mesma época, se opor ao “romance de sociedade” norte-americano.
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3) O fantástico em A terceira margem do rio
João Guimarães Rosa e Luís Jardim
O conto A Terceira Margem do Rio pertence ao conjunto Primeiras Estórias,
publicado pela primeira vez em 1962 e que se caracteriza, segundo Castro (1993), por um
conteúdo de significação esotérica, com forte relevância da camada sonora. De acordo com a
organização do enredo, Castro divide as 21 estórias nos seguintes temas: loucura, infância,
violência, misticismo e amor, enquadrando A Terceira Margem do Rio no tema do
misticismo.
Segundo Guimarães Rosa, a composição de A Terceira Margem do Rio, conforme o
prefácio Sobre a escova e a dúvida, de Tutaméia, foi quase que um evento de inspiração
única: “veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão ‘de fora’, que instintivamente
levantei as mãos para ‘pegá-la’, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro.”
(ROSA, 1994, p.680).
Os desenhos utilizados em epígrafe fazem parte da primeira edição de Primeiras
estórias e foram concebidos e rascunhados por Guimarães Rosa e, depois, finalizados por
Luís Jardim para representar o conto A terceira margem. Castro (1993) dá, em síntese, as
seguintes interpretações para eles:
1 A flecha se relaciona com o signo de sagitário, com o pensamento divino, com a
capacidade do homem de transcender; também é símbolo da intuição e da busca da
individualidade.
2 O símbolo de libra, associado a Zeus, representa o início de um processo evolutivo.
3 A canoa com o remador representa a busca de um novo estágio de percepção supra-
racional, o retorno a Deus.
4 O oito deitado, símbolo do infinito, sugere o mundo da matemática.
Em sua análise de A Terceira Margem do Rio, Bragança (2000), por sua vez, dá as
seguintes definições:
90
1 Flecha: o retorno à natureza, às origens, ao útero da Mãe-Terra. Uma busca cada vez
mais profunda: eis porque a figura parece uma flecha (direção) unida à outra. Um
caminho que interliga consciências distintas, opostas, antagônicas, mas
harmônicas dentro de uma consciência mística, transcendental;
2 Balança: equilíbrio, ordem, o não-questionamento, o momento de imobilidade, o
momento de introspecção que antecede a ação;
3 Canoa: a condição humana, a individualidade e a consciência de que cada um tem seu
lugar no mundo e no tempo para agir. Somente na sua solidão, o homem pode
descobrir que o diabo não existe, que o mal está em outro lugar e que “inferno” é
um estágio que precede a sua transformação, lugar de identidade absoluta.
“Inferno” como o próprio lugar da história humana.
4 Infinito: o próprio infinito. Consciência cósmica de sua ligação com o universo. No
infinito está sua felicidade, seu paraíso. É o não-espaço; o não-tempo. É apenas o
ser, o estar. (BRAGANÇA, 2000, p.664).
Sem desconsiderar as relações simbólicas que Castro e Bragança apontam, também
podemos atribuir às figuras outros significados. Podemos pensar nas figuras de libra, que se
repetem, como duas margens que separam dois mundos: o mundo concreto e finito da flecha
e o mundo das idéias, do infinito. Entre esses dois mundos, a álgebra mágica surge como
processo de travessia do “homem humano”. A idéia da passagem de uma margem a outra da
existência está fortemente enraizada na cultura oriental, tanto por budistas quanto por
hinduístas, e sabemos que essas são duas fontes importantes para Guimarães Rosa,
principalmente as doutrinas contidas nos upanishades. A travessia, portanto, pode ser vista
pelo do ponto de vista metafísico, que se dá por essa terceira margem: a margem da
linguagem, a margem do rio adentro. Não é uma travessia linear e reta; ela percorre todo o
infinito que o rio representa em seu processo associativo com o poético e o multisignificativo.
Porém, considerar apenas essa interpretação não possibilita extrair uma idéia completa do que
seja a álgebra mágica em sua relação com o fantástico. Para isso, será necessário penetrar rio
adentro, em busca dessa terceira margem.
É nela que os dois mundos se unem: o finito, representado pela canoa, e o infinito,
representado pelo rio, ou ainda, a palavra de uso cotidiano e a que se faz presença poética
entre os vãos do dito. Há um entrelaçamento entre o mundo das idéias puras e o mundo das
coisas concretas, que se unem nesse terceiro plano, aquele que funde o transcendente com o
imanente. Nesse vão de passagem, configura-se o plano da “álgebra mágica”, que se apóia na
91
poesia do indizível; elemento paradoxal, finito e infinito ao mesmo tempo, como o homem na
canoa e no rio. O efêmero e o eterno, juntos, abrem espaço para a travessia:
Em outras palavras: gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O
crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é
um oceano, um mar da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade.
Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como
a alma do homem. Na superfície, são muito vazios e claros, mas nas profundezas são
tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa
de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar
eternidade. (ROSA, 1991, p.72).
Poderíamos, então, a partir de um primeiro patamar de leitura, olhar A Terceira
Margem do Rio como um exercício de travessia e, portanto, de busca do infinito, por meio da
linguagem.
Se nos primeiros contos de Guimarães Rosa - aqueles que não “transcendem” -
podemos perceber relações estreitas com o fantástico, não há neles, porém, o mesmo
tratamento configurador da álgebra mágica, tal qual ocorrerá em A Terceira Margem do Rio.
Com efeito, é possível visualizar, nesses primeiros contos de Rosa – O mistério de
Highmore Hall e Tempo e Destino – os estreitos vínculos com uma tradição do fantástico,
seja a do romance Gótico, seja a do século XIX ou, mais especificamente ainda, a de Poe,
conforme evidenciamos anteriormente.
É natural que, em uma fase ainda incipiente, o escritor buscasse padrões já explorados e
que, de alguma forma, se aproximavam de sua concepção literária, avessa aos modelos
regionalistas/realistas então em voga. Esses primeiros contos, de qualquer forma, podem ser
considerados precursores, ainda que distantes, daqueles nos quais a álgebra mágica determina
o fluxo da narrativa, numa outra dimensão de fantástico.
Pensamos que a investigação das camadas de sentido da álgebra mágica de Guimarães
Rosa implica buscar, no discurso, esse espaço de confluência entre opostos, gerando um
efeito de indeterminação, que, conforme Hansen (2008) aponta, é projeto intencional,
objeto artificialmente construído pelo trabalho técnico do autor evidenciado na
forma como posição autoral comunicada funcionalmente ao leitor. [...] Falando e
escrevendo por paradoxos e sempre insistindo no valor da enunciação paradoxal por
oposição ao “lógico” [...] como prática de um autor e efeito num leitor pretende
deslocar os limites explícitos das linguagens literárias estabelecidas. (2008, p. 1).
Vê-se essa tentativa de deslocar os limites da linguagem literária no próprio projeto do
autor que se diz um contista de “contos críticos” e que, paradoxalmente, diz que “a poesia
profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia
92
verdadeira” (ROSA, LORENZ, 1991, p.70). Rosa imprime em sua prosa toda a energia lírica
da poesia. Em A Terceira Margem do Rio, o narrador em primeira pessoa conta (ou canta)
com lirismo sua dor; e as linhas, recortadas e truncadas, bem como as assonâncias e
aliterações, conferem ritmo de verso às linhas da narrativa.
A noção de paradoxo estabelecida por Rosa pode ser vista em sua conversa com
Lorenz. A primeira aparição da palavra “paradoxo” se dá logo no início da conversa, quando
Rosa relaciona os trabalhos que teve ao longo da vida: “médico, rebelde e soldado. Foram
etapas importantes de minha vida, e, a rigor, essa sucessão constitui um paradoxo” (ROSA,
LORENZ, 1991, p.67). Vê-se que a noção de paradoxo não remete a algo necessariamente
maravilhoso, mas se vincula à vida e aos seus afazeres e, por isso, acrescenta: “a vida, a
morte, tudo é, no fundo, paradoxo.” (1991, p.67). Esse “no fundo” ressalta a diferença entre
os acontecimentos ordinários e os paradoxos, já que estes penetram nas camadas mais
profundas da realidade para evidenciarem outras visões de mundo:
Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não
existem palavras. Por isso, acho que um paradoxo bem formulado é mais
importante que toda a matemática, pois ela própria é um paradoxo, porque cada
fórmula que o homem pode empregar é um paradoxo. (ROSA, LORENZ, 1991, p.
68).
O paradoxo roseano, nesse aspecto, guarda uma proximidade com a metáfora do
neofantástico, como possibilidade de dizer o que não pode ser dito com palavras, embora
Hansen classifique a álgebra mágica de Guimarães Rosa apenas como uma “operação
produtora de efeitos de indeterminação por meio da classificação, recategorização e
combinatória do léxico e da sintaxe; como estilo que destrói a acepção clássica de estilo.”
(2008, p.1). Dessa forma, as estratégias para se atingir a indeterminação, que tem na lógica
inclusiva e ternária do paradoxo sua figura de base, se evidenciam por meio de uma “língua
ficcional”, que opera nos interstícios da outra:
A recategorização e a reclassificação substituem os signos indiretos dos usos
gramaticalmente normativos e literariamente realistas, como usos mediados pela
representação, por figurações imediatas e como que colhidas na aurora de uma
língua fictícia anterior às classificações gramaticais, conceituais e estilísticas.
Pontualmente, a álgebra mágica opera por analogia, que lhe permite inventar
nomes, adjetivos e verbos inesperados; por transposição, com que reclassifica
classes gramaticais e usa artigos definidos como nomes, adjetivos como advérbios
etc.; por derivação e composição, com que usa prefixos e sufixos de maneira
inaudita. Também falsifica etimologias; usa arcaísmos como predicados de
neologismos e vice-versa; tem predileção pela frase nominal encabeçada por
anacolutos ou acumulada de particípios passados acompanhados da predicação
visualizante etc. Esses usos, como disse, deslocam a língua literária de sua
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convenção como morphe mimética ou determinação sensata da forma da expressão
e da forma do conteúdo recortadas diferencialmente de um fundo, a substância
sonora e a substância do conteúdo. Os usos soltam o fundo, não só como fundo ou
substância da forma, mas principalmente como indeterminação semântica muitas
vezes interpretada como não-simbólico. (HANSEN, 2008, p. 1).
Pensamos que essa é uma boa definição do estilo literário de Guimarães Rosa, mas que
pode ser enriquecida com o conceito borgiano de causalidade mágica, o que o aproxima do
fantástico de Borges. Operar nos interstícios de uma língua é operar no seu entre-dito ou no
seu não-dito. A analogia da álgebra mágica não apenas inventa nomes ou outras categorias da
língua, nem tampouco se limita a reclassificar e recategorizar os elementos já existentes, mas,
ao apontar para uma causalidade mágica que cria sintonias insuspeitadas entre eventos
aparentemente díspares, revela novos significados, os quais só podem ser apreendidos como o
outro do leitor. O texto revela esse outro aos olhos do leitor, que o decifra e o incorpora
multisensorialmente; os artifícios retóricos são apenas a aproximação gradativa para o efeito
poético pretendido, cujo clímax se concentra nas imagens paradoxais, nas quais causas e
efeitos ganham uma ordem diversa.
Assim, quando lemos na Terceira Margem que: “Nosso pai era homem cumpridor,
ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas
sensatas pessoas, quando indaguei a informação.” (ROSA, 1994, p.409), já incorporamos os
sinais de uma aparente ordem em que vive o pai e, por conseqüência, a família; uma ordem
cotidiana, rítmica e bem marcada. Interessante é perceber que, sob o lingüístico da frase, é
possível ouvir a presença sonora do rio na narrativa por meio das assonâncias em i e o. O rio,
correndo por debaixo, já anuncia os desvios que hão de vir, inundando a geografia do conto.
O relato do narrador-personagem é quase memorialista; ergue-se em monumento ao pai,
não como discurso exaltado, vibrante e elogioso, mas calmo e sereno: “Do que eu mesmo me
alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos.
Só quieto” (ROSA, 1994, 409).
O filho se esforça para encenar um pai “normal”, apesar de toda a situação insólita que
se instala ao longo de toda a narrativa, como resposta construída que se confronta com a
opção da loucura, enquanto justificativa para os acontecimentos: “A estranheza dessa verdade
deu para estarrecer de todo a gente [...]. Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita
cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira”
(ROSA, 1994, 409-10).
Surge uma tensão entre a explicação de difícil aceitação – a loucura – e uma não-
explicação. A primeira, potencialmente verbalizável, mas sempre evitada, induz ao silêncio; a
94
segunda, por seu caráter inexplicável, é a própria representação do silêncio. A narrativa,
dessa forma paradoxal, se apóia no silêncio. A luta do filho é pela construção e preservação
da imagem do pai e, por extensão, da sua própria imagem como herdeiro da sina familiar:
A um filho parecido com o pai diz-se com orgulho: Tal pai, tal filho. Quanto maior a
semelhança, maior a ênfase orgulhosa no tal que se repete. E o reconhecimento de
algum gesto, de alguma característica paterna marcante, seja ela física ou intelectual,
costuma ser o que de mais sublime se vê no filho. Dele se exige, quando nada, a
duplicação de qualquer marca registrada da família. (SÜSSEKIND, 1984, p.21).
O pai “quieto”, mudo em sua canoa, e a família, sem palavras para explicar essa atitude,
acabam por estabelecer uma nova relação familiar, de convivência estranha, longe e perto ao
mesmo tempo; um presente-ausente que metamorfoseia a presença do pai em uma imagem;
vaga lembrança que não se desmaterializa totalmente: não é um espírito, nem um corpo
presente. Em seu remar contínuo, entre a finitude da canoa, presa ao vai-e-vem do mesmo
lugar do rio, e a infinitude das águas, que fluem continuamente, o pai emerge, convertido em
fantasma, como o capitão do Holandês Voador, condenado a navegar pelos mares,
eternamente, sem nunca poder aportar em um pedaço de terra e, nesse caso, sem nunca
abandonar a mesma paisagem. Dupla condenação, mais dura ainda por ser auto-imposta. Em
Rosa, ao contrário da estória do capitão do Holandês Voador, o pai na canoa não é o efeito
de um acontecimento, resultado de uma maldição, mas sim a causa dos acontecimentos e dos
infortúnios; causa sem causa aparente, lógica de uma ordem diversa.
Em Guimarães Rosa, não só a sonoridade das palavras, convertidas em ritmos musicais,
invade o texto, mas também as imagens visuais se disseminam em nosso imaginário.
Sonoridade e visualidade se justapõem, fazendo com que a palavra encene uma presença
verbo-voco-visual, isto é, que soa e diz algo similar, por semelhança ou contraste, afinal, a
discrepância entre significado e significante é, também, uma das estratégias geradoras de
indeterminação, como defende Hansen (2008).
Ao mesmo tempo em que a sonoridade cria um rio que invade o texto por meio das
assonâncias, aliterações e anáforas, as imagens paradoxais nos confrontam com o indizível.
Diante delas, estupefatos, nossa mente se paralisa e, como na estratégia dos mestres zen,
somos confrontados com uma espécie de koan que estanca o raciocínio lógico-dedutivista. A
materialidade sonora das palavras invade todos os nossos sentidos; primeiro, o auditivo e,
depois, pelo ouvido, os demais sentidos. O texto se torna uma experiência pessoal da verdade,
incomunicável... O texto roseano de A Terceira Margem do Rio se aproxima dos antigos
textos orientais, nos quais o conhecimento “não é transmissível em fórmulas ou raciocínios.
95
A verdade é uma experiência e cada um deve buscá-la por sua conta e risco [...] O
aprendizado não consiste na acumulação de conhecimentos, e sim na afinação do corpo com
o espírito”
47
(PAZ, 2003, p.118).
Em Otávio Paz, e também em Guimarães Rosa, espírito e matéria se harmonizam para
produzirem uma experiência pessoal e única de acesso à verdade, a mesma que o leitor pode
encontrar ao se deixar invadir pela sonoridade e pelas imagens que o texto oferece.
Hansen define a relação com a leitura do texto roseano da seguinte maneira:
Afirmando-se como imaginação produtiva que passa ao lado das reproduções da
semelhança modelar, seu jogo de linguagem reativa o sentido primeiro do poiein
grego , não só como um ver e um dizer aplicados à representação de coisas e ações
empíricas, mas como produção de significações que fazem o leitor ler o dizer do
texto como o outro da visão interna de algo secreto que murmura no devir da
sensação. Esse algo indeterminado faz com que a fala e a ação de seus personagens
sejam figuras hieroglíficas da força que determina as palavras como um teatro do
mundo. (2008, p. 1).
É assim que o narrador de A Terceira Margem, como o Riobaldo de Grande
Sertão:Veredas, vai tecendo, por meio da narrativa, os fios constituintes da palavra-som-
imagem nas tramas de um passado reelaborado pela memória/sentimento do narrador-
protagonista e, com ele, a do próprio leitor. Trata-se da construção de um outro, como mostra
Hansen, ao comentar sobre Riobaldo, que, ao contar sua história, a reconstrói e, ao fazê-lo,
reconstrói-se a si mesmo:
Na leitura, o princípio de analogia que o constitui como ato de fala compõe o corpo
de papel de Riobaldo como unidade imaginária de um sujeito que lembra; mas,
como sujeito de uma enunciação que tenta dizer o sentido da experiência passada,
só pode produzir metáforas como figuração provisória do que supõe ser no presente
o sentido do que imagina ter sido no passado. O tempo corroeu a unidade da
experiência e o que consegue dizer dela no seu presente, que também passa, é sua
reverberação prismática em imagens nas quais já é outro. (2008, p. 1).
A transformação do pai em imagem é uma tentativa de reconciliação que somente se
concretiza pela transformação do próprio filho. Pai e filho devem se encontrar em uma
margem terceira, na qual possa acontecer o pleno reconhecimento de ambos. Sem esse entre-
lugar, o reconhecimento carrega a sensação de estranhamento, do Unheimliche freudiano:
O próprio do Unheimliche é ser duplo: esse termo alemão remete tanto à idéia de
familiaridade (presente no radical heim) quanto ao significado de inquietação,
47
A tradução é de minha responsabilidade: no es transmisible en fórmulas o razonamientos. La verdad es una
experiencia y cada uno debe intentarla por su cuenta y riesgo. [...] El aprendizajem no consiste en la acumulación
de conocimientos, sino en la afinación del cuerpo y del espírito (PAZ, 2003, p.118)
96
suspeita, assombro, radical estranhamento. O adjetivo unheimlich é utilizado tanto
como sinônimo de heimlich quanto como seu oposto. Freud o definirá como “aquela
categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito
familiar”. Ele se refere portanto ao recalcado, em primeiro lugar, o que parece
confirmado pela significação dada a unheimlich por Schelling: “Unheimlich é o
nome de tudo que deveria ter permanecido...secreto e oculto, mas veio à luz”. Em
segundo lugar, Freud verá no inquietante o ressurgimento dos modos arcaicos de
funcionamentos e crenças, como o animismo, o pensamento mágico e a confusão
entre o eu e o outro. (RIVERA, 2005, p.14-5).
A imagem é agente de transmutação dos contrários num produto, paradoxalmente, uno
e diverso, que faz com que o ser humano “desgarrado desde o nascimento se reconcilie
consigo quando se faz imagem, quando se faz outro.”
48
(PAZ, 2003, p.126). O esforço do
narrador-personagem, ao longo da narrativa, parece sempre remeter a essa reconstrução da
figura paterna por meio da memória, como forma de superar o distanciamento instaurado pela
ausência do pai:
E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos
mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e,
se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo,
de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos. (ROSA, 1994,
411).
A recordação opera não como lembrança pura, mas associada às imagens que recriam a
figura do pai, produzindo um “curto-circuito entre memória e imaginação” (RICOEUR, 2006,
p. 127). Os fluxos de correntes da memória se misturam com aqueles vindos da imaginação,
de modo que a lembrança é um ato de recriação do passado, abrindo espaço para o seu outro:
o esquecimento. Lembrar é, também, selecionar aquilo que se quer recordar e, por
conseguinte, aquilo que se quer esquecer. Mas há esquecimentos astuciosamente dissimulados
e há, também, aqueles apenas aparentes, que buscam esconder algo que, no entanto,
“permanece, pelo contrário, inapagável na experiência memorial.” (RICOEUR, 2006, p. 126).
Os traços do pai-fantasma rondam como assombração o ambiente familiar; lembrá-lo é
tornar visível sua possível loucura; é se deparar com o efeito do Unheimliche e, para o filho,
franquear seu possível destino, seu cruel destino: “Às vezes, algum conhecido nosso achava
que eu ia ficando mais parecido com nosso pai” (ROSA, 1994, 411).
Reconstruir o pai é a esperança da salvação. Pelas vias reconfigurativas das imagens, o
filho busca destruir o Minotauro e se libertar de um destino fatal, atribuindo sentido àquela
crucificação inexplicável do pai na canoa, no meio do rio, num ir-e-vir sem fim.
48
A tradução é de minha responsabilidade: ...desgarrado desde el nacer, se reconcilia consigo cuando se hace
imagen, cuando se hace otro.
97
As frases curtas, entrecortadas por vírgulas, as variações no uso dos tempos verbais “só
ele soubesse”, “ninguém soubesse”, acentuam o ritmo, a canção submersa do rio, que corre
por dentro da prosa e, pelas repetições e pausas alternadas, faz ver a poesia e a indeterminação
que as imagens reforçam. Assim, o filho reinventa o pai:
Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam,
por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que
um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas,
que era mentira por verdade. (ROSA, 1994, 411).
A imagem é a possibilidade de reconciliação dos contrários, “mentira por verdade” cria
a imagem paradoxal daquilo que não somente pode ser uma ou outra coisa, mas que é, ao
mesmo tempo, ambas as coisas; assim as imagens paradoxais vão percorrendo o indizível e
dando voz ao silêncio do pai, ainda que seja na voz do filho; imagem que é a mediação entre o
que se pode comunicar e o incomunicável: “mais para cá da imagem, está o mundo do idioma,
das explicações e da história. Mais para lá, se abrem as portas do real: significação e não-
significação se tornam termos equivalentes.”
49
(PAZ, 2003, p. 125).
O mundo fantasmático das imagens, dessa terceira margem buscada, se abre como
possibilidade de harmonização entre o mundo da palavra e o mundo do silêncio; do dito-
narrado e do indizível. É o encontro do eu com o outro, termos distantes e análogos, por meio
do poético, mas também é o encontro do pai e do filho. O pai, a autoridade, aquele que deve
ser buscado e seguido, mas que, visto de fora de uma terceira margem, de um entre-lugar, não
pode ser compreendido. O pai é o dono de uma sabedoria, o herdeiro de um legado, de uma
tradição que naturalmente deve ser passada para o filho, o qual, no entanto, não incorpora este
saber. Frente à prova de substituir o pai na canoa, ele recua: “Sou homem de tristes palavras.
De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?” (ROSA, 1994, 412).
Para o filho, sua dor é inexplicável; a recordação não pode retomar a experiência
originariamente acontecida, de forma integral, como diz Fantini ao se referir a um conceito de
Nietzsche:
Tendo em vista a impossibilidade de cada exemplar produzir correta e
fidedignamente a forma primordial, Nietzsche constata a ineficácia da palavra em
expressar, como recordação, a vivência primitiva, completamente individualizada e
única. Se a “coisa em si” é literalmente incapturável, ela só poderá ser transposta à
linguagem não per se, mas através do suplemento de conceitos e de imagens.
(FANTINI, 2004, p. 214).
49
A tradução é de minha responsabilidade: Más acá de la imagen, yace el mundo del idioma, de las
explicaciones y de la historia. Más allá, se abren las puertas de lo real: significación y no-significación se
vuelven términos equivalentes.
98
A álgebra mágica necessita das imagens paradoxais para produzir o indizível,
demonstrando a causalidade mágica que há na origem de todo poético, inspirando,
dionisiacamente, um saber intuitivo, que, no conto, é representando pela imagem de não
verbalização do pai, em oposição à narrativa empreendida pelo filho. É a impossibilidade do
filho de compreender plenamente a imagem que o pai representa, levando-o a vagar entre a
aceitação e a não-aceitação da loucura do pai e, por extensão, da sua própria:
Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.
Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido
não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava
ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. (ROSA, 1994,
p.412).
O narrar, para a personagem, passa a ser sua forma de expiação e sobrevivência; é a
maneira de se desvencilhar do seu sentimento de culpa e extrair do passado a imagem
reconstruída do pai, assim como a sua própria; é fazer com que do passado permaneçam
apenas as marcas eleitas e idealizadas para a união final - tal pai, tal filho -, já que este deve
ser o herdeiro do pai:
Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e
declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez
o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem,
e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o
seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração
bateu no compasso do mais certo. (ROSA, 1994, p.412).
“Jurado e declarado”, o filho promete tomar o lugar do pai na canoa. A força necessária
para o engajamento por meio de uma promessa somente pode ser sustentada pela própria
vontade de manter a promessa, sob quaisquer circunstâncias. É aqui, nesse ponto, que a
questão do reconhecimento toma seu papel mais destacado, conjugando, por um lado, a
memória, por meio da reconstrução idealizada de um passado, e, por outro lado, a promessa,
que aponta para uma ação futura, inscrita, no texto, como um performativo: ao prometer, a
ação já passa a acontecer, mas não se cumpre da forma desejada, na medida em que o filho
renega sua herança, abandona o pai e, com isso, perde-se a si mesmo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha
levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de
tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os
cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado.
99
Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo,
pedindo, pedindo um perdão. (ROSA, 1994, p.412).
O narrador admite que é o que não foi, ou, dito de outro modo, que seu projeto
fracassou; ele não substituiu o pai na canoa e também não foi capaz, por medo, de se juntar ao
pai na terceira margem, já que o pai-fantasma parecia uma visão vinda do além:
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais
dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que
vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida,
nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte,
peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada,
nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,
rio a dentro — o rio... (ROSA, 1994, p.412-3).
A quebra da promessa e a não substituição do pai pelo filho também têm outra
implicação bastante importante para a narrativa, que é dar origem ao próprio relato.
Paradoxalmente, o destino não foi perdido, ou, ao se perder, se cumpriu; a história do pai é
reconstruída poeticamente pelo narrador por meio da memória e da imaginação; cria-se um
entre-lugar fantasmático, no qual filho e pai podem ser um e outro, ao mesmo tempo; imagens
líquidas, permutáveis e intercomunicantes. É justamente a partir desse espaço permeável e
movente, onde os vazios são os agentes promotores de sentido, que a álgebra mágico-poética
opera, estando exemplarmente expressa em A Terceira Margem do Rio, conforme Fantini
observa: “Ao inventar uma nova margem para abrigar o insondável, Guimarães Rosa produz
estratégias para desierarquizar as certezas que põem marcos na nebulosa fronteira entre
sanidade e loucura, a doxa e o paradoxo, a verdade e a incerteza.” (FANTINI, 2004, p. 168).
A Terceira Margem obedece a uma lógica algébrico-mágica, afeita à natureza dúplice
do ser poético, isto é, rigorosa na sua arquitetura construtiva, onde nada é fruto do mero
acaso, e imprecisa nos seus efeitos, porque somente é perceptível pela presença multisensorial
de uma escritura que se faz corpo no aqui e no agora da experiência compartilhada entre
autor, narrador e leitor. É uma obra no sentido zumthoriano do termo; uma realização que se
dá por meio de um ato performático que exige três condições: a reiterabilidade, o que a faz
partícipe de uma tradição; a emergência, ou os elementos da tradição que se fazem presentes,
mesmo transformados, no novo texto, e o reconhecimento, que possibilita, por meio da
leitura, a incorporação dos efeitos emergentes da obra pelo leitor: “A performance é então um
momento da recepção: momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido”
(ZUMTHOR, 2000, p.59).
Em A Terceira Margem do Rio, o conhecimento é resultado de uma experiência pessoal
e intransferível, que somente pode ser atingido pela própria vivência do poético. É a narração
100
que cria, por meio do evento inexplicável – o pai na canoa no meio do rio - essa terceira
margem que se presentifica na escritura poética, na qual os paradoxos são a única
possibilidade de expressar aquilo que ultrapassa o universo do dizível e se inscreve em
regiões submersas do código padrão da língua. Não é à toa que Rosa vai em busca de termos
já esquecidos pelo uso, mas que estão na raiz da história da língua, na busca por um ponto uno
e múltiplo onde todas elas possam se encontrar, antes de Babel. Esse também seria um lugar
que está e não está; cheio e vazio, ao mesmo tempo. Um tempo-espaço nômade, como o rio
onde está a canoa, produzido por um método de compor alquímico-científico, que faz da
álgebra mágica sua “terceira margem”. O método alquímico-científico, por um lado, requer da
linguagem a capacidade de concretizar não o lógico e provável, mas o indeterminado de uma
lógica terceira e aparentemente improvável, que requer da linguagem sua máxima exatidão;
dentro do método, a exatidão é o resultado da indeterminação.
Com isso, a linguagem ganha uma função encantatória; os signos se transmutam em
objetos, e o texto se abre, por meio da leitura, para o mundo em que o leitor habita. A voz
fixada na escritura emerge como objeto real no corpo do leitor que a performatiza; o eu do
texto captado pelo leitor e o eu do leitor se unem no espaço fantasmático da terceira margem
para criarem uma obra vocal, como define Zumthor:
Toda palavra poética (passe ou não pela escrita) emerge de um lugar interior e
incerto, bem ou mal, se nomeia por metáforas: fonte, fundo, eu, vida...Ela nada
designa, propriamente falando. Um acontecimento se produz, de modo quase
aleatório, (o próprio rito não é mais que uma apropriação do acaso), num espírito
humano, sobre os lábios, sob a mão, e eis que se dilui uma ordem, revela-se outra,
abre-se um sistema, e interrompe-se a entropia universal. (1997, p.167).
A escrita mágico-algébrica busca não romper com as ambigüidades que os jogos
metafóricos vocais produzem, permitindo sempre a manutenção de espaços intra-discursivos,
que, na oralidade, ocorrem por meio de outras linguagens não-verbais e que Zumthor (2000)
chama de “semiótica selvagem”.
Esse é o lugar do fantástico roseano, mais próximo daqueles que o vincularam ao
exercício poético, já no século XX, como Borges e o neo-fantástico, na concepção de
Alazraki. O fantástico se mostra como correlato da voz poética inserida na escritura,
reiterável, emergente e reconhecível em seu horizonte de leitura; portanto, o fantástico se
elabora como uma performance, por meio de seus efeitos, que são concretizados no corpo do
leitor.
101
Embora esses sejam os traços gerais de todas as poéticas que têm em seu efeito artístico
o seu sentido de existência, o efeito produzido pela poética do fantástico excede aquele
produzido por uma literatura mimético-realista, em função das imagens criadas a partir de sua
causalidade: a mágica, no caso do fantástico, e a singular, no caso da realista. Essas
causalidades definem ordens diferentes em cada uma dessas poéticas. Enquanto a causalidade
singular estabelece uma ordem lógica de causa e efeito como reflexo da lógica do mundo e
utiliza metáforas simples de substituição de termos, a causalidade mágica rompe com a
linearidade de causa e efeito e estabelece outra ordem lógica para os acontecimentos, neles
incluindo a espontaneidade do acaso, que cria outras possibilidades de ordem num universo
dissipativo e em expansão contínua, tal qual as metáforas transgressoras de 360 graus de base
e os paradoxos roseanos. Estes abrem a visão para uma ordem terceira que se concretiza na
leitura, nas relações que o leitor tece entre sua apreciação dionisíaca dessa ordem terceira e
sua vivência da ordem que conhece do mundo.
A vivência experimentada pelo narrador ao longo de sua história, em A Terceira
Margem do Rio, na tentativa de reconstrução memorial do passado e imaginativa do futuro, é
vividamente experimentada pelo leitor, participante ativo dessa experiência por meio da
leitura, em função da indeterminação e desestabilização criadas: o final não é a confirmação
daquilo que espera: a definição do estado de loucura do pai ou a descoberta, por parte do
filho, de uma sabedoria maior guardada por aquele, como se fosse um novo Noé. Também
não há nenhuma explicação racional: não é lepra, não é pagamento de promessa; então, o que
é? Não sabemos, hesitamos entre muitas explicações possíveis sem que possamos nos definir
por uma única:
Através das imagens e do próprio silêncio, somos levados para dentro do universo
de “A terceira margem do rio” que desfere seu caráter de iluminação, de olhar súbito
para dentro do indizível, de figurado relatório hermético de quem retorna de
iniciação em elêunicos mistérios. (BRAGANÇA, 2000, p.662)
O leitor participa, também, da mesma dor e culpa que vive a personagem em relação
“ao nosso pai”. Esquecer não é possível. É necessário contar, despir-se do mal e trazê-lo à luz.
Por isso o paradoxo: o filho narra, apesar de dizer que é “o que vai ficar calado”. Narrar é a
possibilidade de viver e de conviver com a vida, por isso o filho narra o silêncio do pai, e “não
seria esse discurso sobre o silêncio uma defesa da experiência, uma tentativa de dar sentido às
coisas?” (OLIVEIRA, 2000, p.646). Não seria o paradoxo a voz do silêncio?
102
Narrar é a tentativa de juntar os tempos: unificar o passado e o futuro no presente do
relato. É também uma operação da álgebra mágica, já que o paradoxo do tempo é não ter
diferenciação entre passado, futuro e presente, criando a indeterminação e o rompimento com
o deslocamento cartesiano da consciência sobre a linha do tempo. Assim como a álgebra
mágica reside no entre-lugar, no entre-dito, também reside no entre-tempo ou no não-tempo,
ou ainda no tempo original, anterior à diversidade das línguas, tempo da palavra mágica que
permitia o entendimento e a convivência, anterior à Babel.
Há também, em A Terceira Margem do Rio, o substrato mítico, como mais um
elemento da álgebra mágica, já que esse substrato acentua o caráter de reiterabilidade e de
emergência do texto, conferindo-lhe a capacidade de ser reconhecível pelo leitor, por meio
das relações possíveis que pode tecer entre a estória e seu próprio universo de leitura.
Os contos e lendas, tão apreciados por Guimarães Rosa, o fizeram um escritor de
“sagas”, “lendas” e “contos simples”, como ele declara a Lorenz (1991, p.70), que
incorporam, além da voz popular, os elementos eruditos de muitas tradições. Em sua
entrevista a Günter Lorenz, ele mesmo revela essa sua pré-disposição, como verdadeiro
sertanejo: “Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho.” (LORENZ,
1991, p.65).
Também é possível detectar o legado das tradições orientais, com seus textos e
narrativas, conformando outras influências inscritas nos textos de Rosa, entre elas o
Chandogya Upanisahd, apontado por Suzi Sperber como uma das fontes de Cara-de-Bronze:
A citação do Chandogya Upanishad (livro que se encontra na sua biblioteca) feita
por Guimarães Rosa, em “Cara-de-Bronze”, fez-nos pensar na qualidade desta
leitura. O Ser (purusha), para o Upanishad, está preso ao corpo na sua existência
temporal. Está aparentemente prisioneiro da ilusão terrena – mulher, filhos e
propriedades – mas sua libertação é possível. A tomada de consciência da sua
liberdade eterna traz consigo a compreensão de que a vida não é senão uma cadeia
de momentos dolorosos, em que o drama da personalidade não poderia ser
contemplado pelo verdadeiro espírito do indivíduo. (SPERBER, 1976, p.57).
Podemos perceber que há também influência deste texto em A Terceira Margem do
Rio. Esse upanishad faz parte da tradição hinduísta dualista, que contempla a existência
material como parte da natureza divina e fala do caminho de transcendência, que deve ser
percorrido pelas mônadas. Em A Terceira Margem do Rio, esse caminho, feito de renúncia, é
empreendido pelo pai.
Essa relação com o substrato mítico oriental, porém, não se evidencia como algo a ser
decifrado, enquanto significado que explique o texto ou os acontecimentos; sua função é
103
outra: a de se constituir como um dos elementos do plano matematicamente construído pela
álgebra mágica, cujo objetivo é o criar a indeterminação e o estranhamento por meio da
contaminação inter-cultural: numa tradição do interior do Brasil, os traços de uma tradição
oriental. Essa estratégia intensifica os contrates, cria paradoxos aparentes e subliminares para
os leitores mais atentos, além de instaurar, no presente da escritura, os constituintes de outros
tempos e espaços, criando um movimento de dissipação e deslocamento que acentua o caráter
de infinito “que admite em si todos os tempos.” (SPERBER, 1976, p. 59).
Assim, o sagrado, no texto roseano, se estabelece como um jogo que acentua a
indeterminação do texto. Na tradição, o sagrado é aquilo que une a comunidade e que está
para além das circunstâncias cotidianas. Em A Terceira Margem do Rio, o sagrado desagrega,
não é uma visão coletiva, pois o coletivo já está tomado pela racionalidade cartesiana, pela
geografia euclidiana, pelas significações diretas das palavras; o outro já é o mesmo e, quando
foge das características comuns, é doido, como “nosso pai”.
O outro aparece como algo incompreensível. Em A Terceira Margem do Rio, a
decisão do pai fragmenta a família; os filhos, com exceção do narrador, são espectadores
passivos dessa decisão e nada podem fazer para se oporem a ela; a mãe é a real antagonista da
estória, já que, ao não poder harmonizar a visão de mundo do pai à dela, e, por extensão, à de
toda a família, coloca-se como a portadora da palavra, aquela que, em oposição ao silêncio do
pai, ergue um monumento à palavra simbolizada na simples expressão "Cê vai, ocê fique,
você nunca volte!". Não é apenas o “você” que cresce nas frases; as próprias frases crescem,
como numa construção, uma obra de engenharia que instaura a separação – o você – em
oposição à saga do narrador que busca o “nosso pai”.
O mítico, em Guimarães Rosa, não é o pano de fundo a ser localizado como raiz do
texto; pelo contrário, trabalha no mesmo nível dos demais recursos da álgebra mágica para a
criação do efeito:
Por isso, o mito, o passado, o arcaico, a metafísica não consistem num efeito
positivo que espera a identificação e adesão cúmplice do leitor: não estão instalando
nada, pois dão-se como máquina mítica de exibição de singularidades nômades que
investem contra os fundamentos mesmos que hipostasiam os agentes do discurso na
loucura, na debilidade, na puerilidade, na excepcionalidade. (HANSEN, 2000, p.66).
A escrita roseana é “medussada pelo imaginário do estilo, escrita que recusa cânone,
forma e regra, fixando-se como objeto fantasmático a exploração de um campo aberto de
falas...” (HANSEN, 2000, p.19). Ela descentraliza todas as fronteiras, desestabiliza as normas
104
rígidas, as diferenciações claras e o eu do outro em uma mescla que, mais uma vez, acentua o
caráter de indeterminação do texto.
Apesar da amplitude e variedade de formas que o fantástico assumiu ao longo do tempo,
pensamos que a série histórica que selecionamos - séculos XVIII, XIX e XX - em correlação
com seus respectivos horizontes de expectativas, pode nos ajudar a entender melhor, seja por
semelhanças ou por distinções, a álgebra mágica de Guimarães Rosa.
Em princípio, o fantástico associado ao algébrico mágico se mantém fora dos domínios
do gótico, do século XVIII, e do modelo de fantástico do século XIX. Com efeito, o horror, a
aparição sobrenatural e os castelos medievais não fazem parte do universo da álgebra mágica,
assim como as imagens refinadas desta não se associam com as imagens representativas do
romance Gótico, no qual o acontecimento estranho se vincula, normalmente, ao sobrenatural
ou aos recursos da ciência, elementos desestabilizadores que se insurgem contra o ambiente
social onde a obra aparece e onde o leitor habita. Tais influências somente podem ser
percebidas nos primeiros contos de Rosa aqui analisadosO mistério de Highmore Hall e
Tempo e Destino, estes sim, próximos das premissas do Gótico, especialmente pelas vias de
Poe, cuja influência se faz sentir nesses primeiros exercícios de Rosa com o fantástico.
O modelo de fantástico do século XIX guarda as mesmas pretensões básicas do gótico,
pois explora os fenômenos sobrenaturais com a intenção de arremeter o homem para fora de
seus condicionamentos sociais, abrindo-lhe um novo espaço para a investigação; nesse caso, a
de sua própria interioridade. A aparição já não é expressão de uma ordem universal, como no
Gótico, mas do interior do homem, que hesita frente à incerteza de um mundo onde os
avanços da ciência o deslocaram de seu centro. Porém, tal fantástico não rompe com a
racionalidade, mas a incorpora em seu projeto, pelo menos como possibilidade; afinal, a
explicação racional estará sempre à disposição, ainda que posta sob dúvida. Esse tipo de
fantástico é mais atuante em Tempo e Destino do que em HighMore Hall, este mais próximo
do Gótico.
Ambos, porém, segundo o próprio Rosa, não “transcendem”, ou seja, não incorporam a
poeticidade e a indeterminação de seus textos posteriores. Guardam, portanto, distanciamento
da perspectiva poética de fantástico, entendido na sua dimensão de “álgebra-mágica”, tal qual
ocorre em a Terceira Margem do Rio.
As relações de proximidade que possamos fazer entre a álgebra mágica de Rosa e a
poética do neofantástico dizem respeito, principalmente, à metáfora de 360 graus de base, isto
é, aquela que “transcende” a figura retórica por implicar mais do que a simples substituição de
termos, carregando consigo o termo substituído. Nesse sentido, cumpre uma função próxima à
105
do paradoxo dentro do processo alquímico da álgebra mágica: ambos operam “sob um
princípio lógico no qual a casualidade está invertida [...] e é, deliberadamente, não realista”
(OLIVEIRA, 2007, 553).
Também podemos dizer que, tanto a metáfora não retórica do neofantástico quanto a
álgebra mágica, trabalham com a associação de termos distantes, aproximando-se do conceito
de causalidade mágica de Borges, no qual nada é fortuito e casual, mas atende ao princípio
lógico da analogia, que opera por correspondência entre coisas aparentemente distantes, como
ocorre nas figuras poéticas da metáfora e do paradoxo, vistas enquanto processos de
pensamento poético-literário. É uma causalidade que parte de um outro conceito de campo de
forças e de modelos matemáticos que incluem o acaso como fonte modeladora de nova ordem
dissipativa e não-linear.
Na álgebra mágica, por isso, o poético se expressa em seu mais alto grau: isto é aquilo e
aquilo é isto, ao mesmo tempo e em todos os tempos, já que futuro e passado são sempre
presentes. A fusão dos tempos e a imbricação de todos os elementos que emanam dos
paradoxos abrem uma margem terceira, onde o reconhecimento do outro deixa de fazer
sentido: não há outro distinto de um eu, mas sim um eu-outro.
Por isso, assume-se nela a quintessência do sentido de fantasma, fantasmático, invisível-
visível; presença que está - não está; o indizível, como os vazios por onde “vaza” o poético,
que não está na informação, no que se diz, mas no rio subterrâneo que perpassa por entre os
vãos do dito: a voz zumthoriana dos tons, da não-palavra, dos silêncios e vazios sob a camada
dos símbolos lingüísticos. É ainda o locus do virtual como categoria nômade de realidade e de
outra dimensão de verdade e fé - a poética - que opera a partir de uma dupla transgressão: a da
irrealização do real e a de tornar-se real (ISER, apud LIMA, 2006, p.283), erigindo uma
outra dimensão de realidade auto-indicativa, que se faça presença e não representação ou
simulacro no espaço fugaz de uma terceira margem... “e o rio-rio-rio, o rio.”.
106
4) Conclusão
Ao longo do percurso da dissertação e do fantástico, pudemos notar as influências dessa
literatura em Guimarães Rosa. O mistério de Highore Hall e Tempo e Destino, apesar de
fazerem parte da fase imatura do autor, guardam relação de grande proximidade com o
romance Gótico do século XVIII e com o gênero fantástico do século XIX, além de denotar
uma grande influência de Poe no jovem escritor.
A construção do romance Gótico e do gênero fantástico está relacionada com o processo
de descobertas dos séculos XVIII e XIX. No século XVIII, a Europa descobriu a própria
Idade Média, com seus encantamentos e aventuras, suas construções góticas e suas
superstições; no século XIX, descobriu a interioridade do homem, por um lado, e as
perspectivas do desenvolvimento da ciência, por outro. Assim, no romance Gótico, o
assombroso e o fantasmático vêm de um plano exterior e estão associado ao exótico e ao
temporal ou geograficamente distante, enquanto que no século XIX são produtos do interior
humano, do inconsciente: a loucura, o sonho e o delírio, ou dos avanços da ciência: o
magnetismo, a hipnose, a eletricidade e as máquinas em geral.
Estes elementos do fantástico se aproximam dos primeiros contos de Guimarães Rosa,
mas neles não percebemos nada da álgebra mágica. Somente na poética do neofantástico
vamos encontrar uma relação de proximidade, já que o neofantástico, não como gênero, mas
como efeito, se apóia no poético, estabelecendo uma relação com a idéia de fantástico de
Borges, ao compor em sua poética a relação com a causalidade mágica que relaciona
elementos distantes como os elementos da metáfora de 360 graus de base.
Também faz parte dessa poética a relação não linear entre causa e efeito, a não
correspondência com a geometria euclidiana e a busca do aspecto dionisíaco do leitor, para
que a poética, convertida em sensibilização estética, invada o corpo do leitor e se torne
presença marcante, como elemento da arte.
Ao contrário do gênero fantástico do século XIX, o neofantástico não dispensa nem o
alegórico nem o poético, mas mescla-se com eles na busca do efeito estético; descola-se da
noção de gênero e adquire estatuto literário, mas recusa aproximar-se da poética realista, que
se utiliza da causalidade singular e busca representar o mundo mimeticamente. A poética do
neofantástico se opõe a ela. O neofantástico não quer representar, mas apresentar algo
transgressor, que implica uma visão desautomatizada e intuitiva. Suas metáforas não são
analisáveis do ponto de vista da lógica do mundo. Somente com o olhar interior é que
podemos compreender algo sobre elas e, mesmo assim, talvez não possamos contar o que
107
entendemos, já que cumprem o papel de dizer aquilo para o qual não há palavras. O
neofantástico se apresenta como o discurso de uma voz silenciosa – pelo menos para a lógica
do mundo racionalista.
Em relação ao corpus escolhido para análise, podemos dizer que os dois primeiros
contos, O Mistério de Highmore Hall e Tempo e Destino, obedecem a matrizes oriundas da
tradição do fantástico; já o conto A terceira margem do rio é uma expressão mais próxima do
neofantástico, e nele podemos encontrar a álgebra mágica roseana.
É evidente que, com a análise de apenas um conto de Guimarães Rosa, não conseguimos
extrair todas as implicações da álgebra mágica. Para isso, seria necessária uma análise de toda
a sua obra ou uma parte bastante representativa dela, porém, acreditamos que os fatores aqui
destacados, por meio da análise, permitem uma compreensão básica sobre os elementos
construtivos do fantástico no horizonte de expectativas dos séculos XVIII, XIX e XX.
A álgebra mágica, como o neofantástico, se apóia em uma lógica terceira em que os
paradoxos criam as imagens fantasmáticas capazes de romper com a linearidade da lógica
cartesiana e instalar, no leitor, a percepção dos vazios do texto que escoam entre o dito e o
não-dito. Em A Terceira Margem, o silêncio do pai é amplamente compensado pelo vigor
comunicativo das imagens; a poeticidade do texto performatiza no corpo do leitor uma
vivência do que ali se passa, não tanto por aquilo que o narrador conta, mas pelo que não diz,
o que fica invisível, flutuando, como um crocodilo camuflado sob as águas escuras de um rio.
“E, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”
108
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