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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Eder Martins
A MPB entre o nacional, o popular e o universal: Edu Lobo e Caetano
Veloso, engajamento político e atualização musical em debate
(1965-1968)
MESTRADO EM HISTÓRIA
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Eder Martins
A MPB entre o nacional, o popular e o universal: Edu Lobo e Caetano
Veloso, engajamento político e atualização musical em debate
(1965-1968)
MESTRADO EM HISTÓRIA
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em História Social
pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, sob a orientação da Prof.(a),
Doutor(a) Marcia B. Mansur D´Alessio
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
Embora a nossa memória mantenha constantemente alguns pontos de
lacuna e mesmo nos momentos de maior esforço imaginativo esta não se
repõe integralmente, ainda assim não posso deixar de agradecer as diversas
pessoas que contribuíram para a realização desta dissertação de mestrado.
Agradeço, à minha família por toda a atenção e compreensão
dispensada comigo desde a graduação até o mestrado, pelas conversas, pela
confiança depositada em mim por meu pai, Alberto e irmão, Elton, e,
especialmente, o incentivo dedicado por minha mãe, Dora. Ainda me lembro
como se fosse hoje do fato dela ter sido a primeira e única pessoa,
inicialmente, a me apoiar a cursar a graduação em história. Este foi um
pequeno, porém importantíssimo ato de incentivo, que sempre gerou em mim
uma enorme motivação para encarar os desafios colocados pelos estudos e,
consequentemente, para a elaboração desta dissertação de mestrado.
Aos meus amigos Tiago, Antonio, César, Marcelo, Adilson, Jéferson,
Daniel, Jomo, Toninho, Salvador, Xênia, Elaine, Joyce, Nayara, Carol, Marta e
a todos os colegas da graduação e pós-graduação, com os quais compartilhei
momentos de conversa, descontração e estudo que foram de fundamental e
prazerosa importância.
À minha companheira Rafaela por toda a paciência e atenção com as
minhas inúmeras dúvidas, dificuldades e elucubrações, que foi de fundamental
importância para que eu adquirisse força e empenho para continuar a travessia
do mestrado. Por todo o carinho e amor cultivado ao longo desses anos que,
sem sombra de dúvida geraram uma fonte inesgotável de prazer e motivação.
À professora Márcia Barbosa Mansur D´Alessio pela orientação desta
dissertação de mestrado. A todos os professores da graduação e pós-
graduação em história da PUC-SP pela inestimável atenção e amizade.
Aos professores Marcos Napolitano e Simone Luci pelas enormes
contribuições prestadas por suas críticas e sugestões apresentadas no exame
de qualificação. Ao professor Antonio Rago e novamente à professora Simone
Luci por aceitarem o convite para participar da banca de defesa do mestrado.
Ao CNPQ pelo apoio institucional e financeiro prestado para a realização
desta dissertação de mestrado.
5
Eder Martins. A MPB entre o nacional, o popular e o universal: Edu Lobo e
Caetano Veloso, engajamento político e atualização musical em debate
(1965-1968).
RESUMO
Esta dissertação analisa a relação estabelecida entre as propostas de
intervenção cultural e criação musical de Edu Lobo e Caetano Veloso com a
questão do engajamento político do artista e a atualização musical, no período
de 1965 a 1968. A partir disso, o trabalho identificou que ambos os artistas
definiram, por meio de suas criações musicais, sínteses específicas de
referências culturais populares e cosmopolitas, ao passo que elaboraram, em
meio ao conflito entre MPB e Tropicália, projetos diferentes de atualização da
música popular brasileira. Junto a isto, também foi possível localizar o diálogo
singular concebido pelas propostas de intervenção cultural de Edu Lobo e
Caetano Veloso com a produção teórica e literária dos modernistas, Mário de
Andrade e Oswald de Andrade.
Palavras-chave: música popular brasileira; Edu Lobo; Caetano Veloso.
6
ABSTRACT
This dissertation is making an analyze of the relation established between the
proposals of cultural intervention and musical creation of Edu Lobo e Caetano
Veloso with the matter of the politician involvement artist and the musical up to
date during 1965 and 1968. To leave of this, the project identify that the both
artists had defined, by his musical creations, specify synthesis regarding the
popular and cosmopolitan cultural references, whereas they prepared, during
the conflict between MPB and Tropicália, different up to date projects for the
popular brazilian musical. Besides, it was possible to find out the singular
dialogue conceived by the proposals of cultural intervention of the Edu Lobo
and Caetano Veloso with the theoretical and literary production of the modernity
authors, such as, Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
Key words: popular brazilian musical; Edu Lobo; Caetano Veloso
7
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO……………..……………………………………………....08
INTRODUÇÃO...............................................................................................11
I – MPB EM PROCESSO: ENTRE A ATUALIZAÇÃO MUSICAL E A
ARTICULAÇÃO CULTURAL
1. A composição de um ideário nacional-popular engajado......................…..28
2. “Um por todos e todos por um”
2.1. Música e Teatro………………………………………………..........……..42
2.2. Música e Cinema……………….………………………………....….........53
II - EDU E CAETANO: PONTEANDO IDÉIAS, ORGANIZANDO
PROPOSTAS
1. Edu Lobo, idéias em debate........................................................................62
2. Caetano Veloso, à procura de idéias…....………………………….............79
3. MPB X TROPICÁLIA: Edu e Caetano em debate………….……….........96
III - TRADIÇÃO E MODERNIDADE
1. Edu Lobo, entre o popular e o universal…………………..…………...….112
2. Caetano Veloso, em busca do som universal…..……………….……...….125
3. Modernismos……......………………………………….…..…………..…..135
CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………….………..……148
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................154
REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS…...……...……………….....................161
ANEXO..........................................................................................................164
8
APRESENTAÇÃO
Tendo em vista a importância que cada trabalho de pesquisa
desempenha para o aprofundamento das reflexões e debates no interior da
produção historiográfica, é sempre relevante a apresentação do processo de
pesquisa e das etapas percorridas para a estruturação de uma dissertação de
mestrado.
Não menos importante que a escrita de uma dissertação de mestrado, é
a socialização das informações, a descrição dos caminhos e das dificuldades
que um pesquisador enfrenta para a realização de sua pesquisa. Esta
exposição de dados se, por um lado revela uma comunicação aparentemente
simples e descritiva, por outro, colabora com todos que estão iniciando ou
desenvolvendo um projeto de pesquisa e possibilita a sondagem de novas
fontes e questões no campo da historiografia.
Após ingressar, em 2001, no curso de graduação de história na PUC-
SP, concretizei o primeiro passo para o aprofundamento dos estudos no
segundo semestre de 2002, quando passei a participar de um grupo de
estudos sobre a ditadura militar no Brasil.
As leituras e discussões, além de contribuírem para o aprofundamento
de diferentes questões que perpassam este período, abriram a possibilidade
para o desenvolvimento de um projeto de pesquisa. Esta pesquisa deixou de
ser projeto no quarto ano da graduação, em 2004, quando desenvolvi uma
iniciação científica.
À breve, porém significativa, experiência adquirida por meio da iniciação
científica somaram-se outros importantes elementos que impulsionaram a
escolha do objeto de estudos desta dissertação de mestrado, a saber, os
trabalhos e seminários desenvolvidos durante a graduação. Entre estes,
destaco um seminário apresentado para a disciplina Brasil V, voltado para o
entendimento das relações entre os diferentes grupos que compunham a cena
musical na década de 60, com especial atenção às propostas e realizações do
“movimento tropicalista”.
9
Depois de realizada a apresentação deste seminário, dediquei-me a
fazer um levantamento da literatura existente sobre a música popular brasileira
circunscrita à década de 60. Após tomar contato com as principais obras e
textos relacionados à música popular na década de 60, percebi que o
delineamento do objeto da minha pesquisa somente poderia ser definido a
partir do contato com as fontes documentais.
A partir disso, debrucei-me sobre periódicos, artigos e entrevistas
publicados na década de 60, a fim de localizar quais agentes e questões
poderiam ser exploradas por uma dissertação de mestrado. Nesta trajetória
muito contribuíram as pesquisas realizadas nas bibliotecas universitárias da
PUC e da USP (FFLCH e ECA), nas bibliotecas municipais Mário de Andrade e
do Centro Cultural Vergueiro, no Arquivo do Estado de São Paulo e no Museu
da Imagem e do Som de São Paulo. Ainda assim, devido à quantidade
insuficiente de fontes levantadas para o desenvolvimento do trabalho de
mestrado, procurei dialogar com alguns pesquisadores da área, que me
indicaram a pesquisa na Biblioteca Nacional e no Museu da Imagem e do Som
do Rio de Janeiro.
A pesquisa em ambas as instituições no Rio de Janeiro, além de
possibilitar o acesso a um conjunto específico de periódicos e entrevistas,
também foi fundamental para que eu adquirisse alguns LPs, em sebos e com
vendedores de rua, de notável importância para o desenvolvimento da minha
pesquisa.
Realizadas estas “expedições” de consulta e levantamento de fontes,
consegui, então, reunir um conjunto significativo de documentos que, ao serem
cruzados com as diferentes leituras e pontos elucidados pela historiografia,
passaram a me sinalizar para a questão da atualização da música popular
brasileira e do engajamento político por meio da canção, na década de 60.
Pelo fato de ambas as questões terem adquirido maior projeção e
tensão na segunda metade da década de 60, devido ao conflito que se
desdobraria entre a MPB e a Tropicália, a minha atenção se dirigiu para esse
espectro. Contudo, em razão da pluralidade de expressões musicais contidas
em cada grupo, assim como da complexidade subjacente às criações dos dois
movimentos, já estava ciente de que seria impossível a pesquisa de ambos
num projeto de mestrado.
10
Com base nessas avaliações, decidi selecionar como objeto de pesquisa
as intervenções culturais e as criações musicais de Edu Lobo e Caetano
Veloso, com o intuito de investigar as especificidades das idéias e propostas
encaminhadas por cada um destes agentes, entre 1965 e 1968, sobre a
questão do engajamento político do artista e da atualização musical.
Concomitantemente, esta pesquisa me abria a possibilidade de sondar as
relações entre MPB e Tropicália, de modo a analisar a relação de conflito
estabelecida entre dois projetos de intervenção cultural que buscavam se
afirmar no bojo do processo de constituição da “moderna música popular
brasileira” na década de 60.
11
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar o modo específico como as
propostas e intervenções culturais produzidas por Edu Lobo e Caetano Veloso,
entre 1965 e 1968, estabeleceram um diálogo com o quadro de idéias em torno
do processo de gestação da MPB, matizado pelo debate acerca do “resgate”
da cultura popular e da tradição musical brasileira enquanto base para se
pensar o engajamento político do artista
1
e a atualização da música popular
brasileira.
A partir disso o objeto de estudo desta dissertação constitui-se em
investigar o modo em que as idéias e criações musicais de Edu Lobo e
Caetano Veloso conceberam, no período demarcado, a questão do
engajamento político e da atualização musical, ao passo que sintetizaram
diferentes projetos no interior do movimento de constituição da MPB na década
de 60.
Embora exista uma quantidade expressiva de trabalhos acadêmicos que
investigam os “grandes grupos e movimentos musicais” da década de 60 e
enriquecem a reflexão historiográfica desse período, tem se tornado cada vez
mais candente a necessidade de pesquisas voltadas para os projetos de
agentes específicos, que se apresentam como importante chave historiográfica
para a compreensão das diferentes propostas que se debruçaram sobre o
campo musical brasileiro, neste período, e abrem a possibilidade de uma leitura
ampliada do processo de constituição da “moderna música popular brasileira”.
2
1
A acepção que embasará o conceito de engajamento, para os propósitos deste trabalho, tem por
referência as considerações de Arnaldo Contier que no artigo “Música no Brasil: história e
interdisciplinaridade, algumas interpretações (1926/1980)”, indica que a música, exatamente por seu
caráter polissêmico, permite a construção de múltiplos significados e “escutas musicais”, que engendram
um processo de comunicação, possibilitando a atribuição de um sentido político-ideológico à canção.
2
Faz-se necessário destacar que uma quantidade significativa de trabalhos acadêmicos se destinou à
análise da produção musical de Caetano Veloso, notadamente, a partir da eclosão do movimento
tropicalista, e em menor escala de Edu Lobo. Contudo, em termos de análise comparativa das trajetórias
artísticas de ambos os compositores consta somente um interessante artigo publicado por Marcos
Napolitano intitulado: “Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval”: uma leitura comparativa das
trajetória de Caetano Veloso e Edu Lobo nos anos 60”. In: Revista de Ciências Humanas. Curitiba: Ed.
UFPR, nº 10, 2001.
12
Assim, as lentes deste trabalho buscaram em meio a esse painel
examinar dois projetos peculiares, sem desconsiderar as questões que, em
voga naquele momento, atingiam um debate mais amplo e abarcavam o
conjunto das produções culturais.
Para a definição do recorte temático, estabelecido na questão do
engajamento e atualização musical, outro fator contribuiu para a ampliação e
enriquecimento do horizonte de análise dessa pesquisa, a saber, o fato de as
propostas de criação musical de Edu Lobo e Caetano Veloso, ao dialogarem
com a cultura popular e a tradição musical brasileira, se apropriarem de
referências ligadas à modernidade musical, de caráter cosmopolita. Com isso,
dilataram-se as possibilidades para investigar, a partir das intervenções
culturais grafadas por ambos os artistas, a relação entre tradição e
modernidade.
A inclusão de Caetano Veloso no roteiro desta pesquisa se deve às
questões que permearam e polemizaram a sua trajetória artística entre 1965 e
1968, principalmente no que tange à problematização do “resgate” da cultura e
da tradição musical popular e sua relação com o engajamento político do
artista. Além disso, Caetano definiu parâmetros peculiares para se pensar o
processo de composição da canção e, consequentemente, para a atualização
da música popular brasileira, a partir do tropicalismo.
A inserção de Edu Lobo se define fundamentalmente pelo fato de suas
canções engajadas se distanciarem de um simples modelo da canção de
protesto – geralmente identificadas como o conjunto de canções de orientação
nacional-popular
3
que afirmavam o seu sentido de engajamento somente
através de suas letras.
Ao articular materiais musicais diversos, de forma a combinar de modo
singular o cruzamento entre informações musicais populares e cosmopolitas,
3
O conjunto de idéias de orientação nacional-popular relacionadas à esfera cultural recebeu a sua
primeira elaboração teórica nas reflexões do filósofo italiano Antonio Gramsci sobre a literatura italiana,
quando percebeu a relação de distanciamento entre os intelectuais italianos e as camadas populares e as
suas implicações no processo formação de uma contra-hegemonia no campo cultural. No que tange à
esfera da musica popular no Brasil, as primeiras formulações teóricas que receberam maior
sistematização em torno de um ideário nacional-popular são atribuídas a Mário de Andrade, para quem os
músicos e compositores deveriam assentar o seu trabalho artístico a partir da pesquisa das formas
musicais populares para a elaboração de uma obra musical de caráter nacional. Apesar das diferenças
teóricas presentes nas reflexões e proposições de ambos intelectuais, Antonio Gramsci e Mário de
Andrade são duas importantes referências para se pensar a produção cultural na década de 60 e as suas
relações com a questão do engajamento político do artista.
13
Edu Lobo incorporou em suas canções as preocupações em torno do
engajamento político do artista, ao passo que não dispensou o diálogo com
referências musicais cosmopolitas ao buscar uma aproximação com a cultura e
tradição musical popular, como meio para se pensar o processo de atualização
da música popular brasileira.
Esses elementos, somados ao fato de Edu Lobo e Caetano Veloso
sintetizarem em suas produções releituras de referências modernistas ligadas,
respectivamente, a Mário e Oswald de Andrade, se apresentaram como um
eixo catalisador desta pesquisa, uma vez que possibilitaram o estabelecimento
de um diálogo entre tradição e modernidade, a partir das formas de
engajamento e crítica cultural inscritas por ambos.
Ademais, o recorte temático definido em torno das idéias e criações
musicais de Edu Lobo e Caetano Veloso permite tanto a sondagem da
singularidade de suas produções, como dos sinais culturais de influência e
tensão configurados na relação entre MPB e Tropicália, que no seu limite
definia o choque entre dois projetos voltados para o processo de atualização da
música popular brasileira.
O principal corpo de fontes selecionadas para o desenvolvimento desta
dissertação de mestrado é constituído por artigos, entrevistas e depoimentos
publicados pela imprensa periódica da época
4
, assim como por LPs gravados
por ambos os artistas. Vale sublinhar que a utilização de documentos
posteriores ao período delimitado pela pesquisa será eventual e mediada, no
sentido de se complementar as hipóteses levantadas pela análise das “fontes
principais”, ou seja, gestadas no período de 1965 a 1968, com o propósito de
se enriquecer o debate historiográfico e aprofundar a reflexão sobre as fontes
primárias.
O recorte temporal, estabelecido entre 1965 a 1968, se justifica em
razão de os projetos dos atores sociais que integram o objeto de investigação
terem se delineado de maneira mais expressa e orgânica a partir de 1965. Ao
passo que o final de 1968, com a instauração do Ato Institucional nº 5 – AI-5 –
4
A pesquisa documental esteve centrada na identificação junto à imprensa periódica – comercial e
acadêmica -, entre 1965 e 1968, de artigos relacionados com a temática da atualização da música popular
brasileira, bem como, de depoimentos e entrevistas de Edu Lobo e Caetano Veloso que envolviam a
questão do engajamento e a relação do artista brasileiro com a cultura popular e tradição musical
brasileira.
14
demarca outra baliza, uma vez que ambos os artistas deixaram o país rumo ao
exílio em 1969.
É importante destacar que os referidos agentes não dialogavam entre si,
necessariamente, de forma direta durante todo o período recortado por essa
pesquisa, mas se inseriam no interior de um amplo debate, acentuado após o
golpe militar de 1964, sobre os elementos e referências culturais que deveriam
ser selecionados e orientar um caminho de atualização para a música popular
brasileira.
Deve-se sublinhar que os debates em torno da incorporação da cultura
popular e da tradição musical brasileira – enquanto base para se pensar o
engajamento e a atualização musical – que estiveram na base do processo de
edificação da MPB se realizaram tanto nas discussões internas ao campo
musical brasileiro, como também por meio de um diálogo interativo com outras
áreas de criação cultural, como o cinema e o teatro.
Cabe ressaltar que a utilização da sigla MPB não é aqui entendida
enquanto mera abreviação do termo música popular brasileira, mas definida
como uma categoria, que ao longo da década 60, se constituiu em “senha”
identificadora de um grupo e de um conjunto de idéias específicas.
Desta forma, a expressão MPB é tomada como resultante de um
processo, no qual as criações e os debates em torno do engajamento através
da canção e da atualização da música popular brasileira, com base no
“resgate” da cultura popular e da tradição musical brasileira fundaram, no limiar
da década de 60, as bases de seu engendramento.
5
Com isso, não se pretende afirmar que música popular brasileira e MPB
são esferas invariavelmente distintas, mas salientar que enquanto a primeira
comporta uma definição extremamente ampla e difusa acerca do campo
musical brasileiro, a segunda se define por meio de preceitos estéticos e
ideológicos peculiares. No entanto, ambas as categorias conservavam uma
condição em comum que lhes atestava uma sólida identidade, visto que:
5
Para a consulta de um importante trabalho de pesquisa realizado em torno do processo de constituição
da MPB, na década de 60, junto à análise da questão do engajamento político e a indústria cultural, ver:
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). São Paulo: Annablume, 2001.
15
“Este campo [a música popular brasileira], embora amplo o suficiente para
conter o samba de um Nelson Cavaquinho (que poderia ser considerado
próximo do folclore) e a bossa nova de um Tom Jobim (que se procura
aproximar da música erudita), era suficientemente estreito para excluir
recém-chegados, como a música eletrificada influenciada pelo rock anglo-
saxão. A expressão música popular brasileira cumpria, pois, se é que se pode
dizer assim, certa função de “defesa nacional” (e nisso também ela ocupava
lugar que pertencera ao folclore nas décadas anteriores). Nos finais da década
[de 60], ela se transforma mesmo numa sigla, quase uma senha de
identificação político cultural: MPB.” (SANDRONI: 2004, 29)
Se o termo música popular brasileira designava um amplo universo,
porém delimitado pelos caracteres nacionais, no qual os dados da música
internacional não encontravam espaço, a expressão MPB, além de reafirmar o
processo de defesa nacional do campo musical brasileiro a partir da releitura e
incorporação da cultura e das tradições populares em suas criações, ao
mesmo tempo, articulava as proposições de engajamento político à canção
prescrevendo-lhe traços singularizantes.
Além disso, mais um importante elemento justificava este “estado de
alerta” da MPB em relação a “infiltração” de dados da música internacional, a
saber, a presença e ascensão de um grupo designado a Jovem Guarda que,
ao conquistar parcelas significativas do público jovem, passava a ser
identificado como um movimento condutor da alienação cultural da juventude
brasileira, seja pelas versões de canções ligadas ao iê-iê-iê, estruturadas a
partir de letras “despreocupadas”, seja pela introdução de guitarras, logo
associadas ao rock e às referências culturais estrangeiras, assim:
“Naquele momento, os vários paradigmas de canção nacionalista ajudaram a
delimitar os limites do estatuto estético e ideológico da MPB e definir os termos
da concorrência com a jovem guarda, permitindo a configuração de um produto
cultural reconhecível e socialmente valorizado. Os matizes que formavam o
leque da canção engajada e nacionalista, consagrados entre 1964 e 1966,
serviram como balizas do conceito de MPB aceita nos festivais da canção.”
(NAPOLITANO: 2001, 105)
16
No entanto, a referida canção engajada e nacionalista, que delimitou as
balizas estéticas e ideológicas da MPB na metade da década de 60, possuía
seus elementos embrionários no cerne da Bossa Nova. Pois, foi no interior
desse grupo que se forjou um movimento direcionado para a atualização da
música popular brasileira, no qual um ideário nacional-popular voltado para o
“resgate” da cultura e das tradições musicais populares, bem como para o
engajamento através da canção, adquiriu adensamento e se transfigurou na
formação de uma vertente nacionalista no próprio seio da bossa nova.
Acerca deste ideário nacional-popular que se disseminou de forma
extensa e ocupou papel de centralidade junto aos debates que buscavam
pensar a atualização da música popular brasileira na década de 60, faz-se
necessário ressaltar que os germes dessa estruturação ideológica já
permeavam o campo musical brasileiro desde fins da década de 20.
A pedra de toque que articularia as noções de popular e nacional no
espaço musical brasileiro seria o Ensaio sobre a música brasileira, escrito em
1928, por Mário de Andrade. A junção dos dados nacionais e populares
procurava o encontro dos nexos formadores de uma identidade nacional,
necessária à entidade sócio-cultural brasileira e ao seu ingresso na
universalidade, pois:
“O popular – ou populário, na acepção de Mário de Andrade – é bastante
valorizado, principalmente em sua configuração rural ou folclórica. Fonte
inesgotável de riqueza cultural, o popular nos forneceria a matéria prima para
esboçarmos os traços gerais de nossa identidade, sem a qual nos seria vedado
o ingresso na ordem universal. Assim, o modernismo que aqui se implanta é
impregnado de valores particularistas; mas esses valores importam por
viabilizarem o cosmopolitismo.” (NAVES, 1998: 56)
A procura constante e insaciável da alma popular em sua forma genuína,
passou a nortear a elaboração de um projeto estético e ideológico que, tecendo
de forma orgânica a relação entre os dados nacionais e populares, ventilou
sopros teóricos que se tornaram paradigmáticos dentro das discussões sobre o
universo musical brasileiro e se proliferam pelas próximas décadas, desse
modo:
17
“A idéia de que há um povo, cuja expressão mais límpida é sua música, e uma
música que reflete exemplarmente este povo, generalizou-se na discussão
musical brasileira. O mito ganhou versões dos mais variados matizes e está
presente em toda a discussão musical de relevo no país até, pelo menos, os
anos 60.” (PAIANO: 1994: 19)
Isso não significa que antes da publicação do Ensaio sobre a música
brasileira nenhum agente havia se preocupado com estas questões, mas a
sistematização dessas referências feita por Mário de Andrade propagou-se de
tal forma pelas décadas seguintes, a ponto de ser identificada como um texto -
manifesto, com isso:
"Se podemos ver um movimento que se delineia desde a virada do século, com
os concertos organizados no Rio de Janeiro por Luciano Gallet, com as
composições de Villa-Lobos, com os artigos de Mário de Andrade, com a
"História" de Renato Almeida, só a partir do ‘Ensaio [sobre a música brasileira]’
é que existe um alicerce ideológico acabado a partir de onde se descortina o
Nacionalismo Musical." (PAIANO, 1994: 22)
Entretanto, este ideário nacional-popular que tem as suas primeiras
sementes gestadas na década de 20 não se difundiu de maneira insolúvel e
intacta até a década de 60, mas passou por revisões e re-elaborações
constantes ao dialogar com músicos, compositores, críticos musicais,
jornalistas e historiadores ao longo dessas décadas.
As discussões acerca de um conjunto de idéias voltadas para a esfera
cultural que tinham por referência um ideário nacional-popular, também
povoaram as preocupações de diversos intelectuais em outros países no
desdobrar do século XX.
Antonio Gramsci, no início do século XX, também buscou através de
suas elaborações teóricas equacionar alguns problemas que atingiam a cultura
popular italiana. Gramsci identificava um distanciamento significativo entre os
intelectuais italianos e a cultura popular em seu país e apontava o insuflamento
sofrido pela literatura local com a entrada maciça de romances estrangeiros
como o principal fator de desagregação cultural.
18
Ou seja, Gramsci indicava as dificuldades para se localizar uma
literatura italiana que tivesse por base um repertório popular. Devido às
influências causadas pelo grande fluxo de obras estrangeiras, tornava-se cada
vez mais complicado pensar um processo de nacionalização e popularização
das linguagens artísticas na Itália:
“[...] já que falta uma identidade de concepção do mundo entre ‘escritores’ e
‘povo’, ou seja, os sentimentos populares não são vividos como próprios pelos
escritores nem os escritores desempenham uma função ‘educadora nacional’,
isto é, não se propuseram e nem se propõem o problema de elaborar os
sentimentos populares após tê-los revividos e deles se apropriado. (GRAMSCI,
2002: 40)
Apesar de reconhecermos as contribuições desenvolvidas pelas
reflexões do pensador italiano, há que se destacar que as questões presentes
no universo cultural brasileiro se configuram de forma diferenciada. Pois, aqui,
principalmente a partir do advento do modernismo, assiste-se a um movimento
contrário, no qual os intelectuais colocam-se na procura incansável dos
atributos genuínos e autênticos da nação que estariam em formato bruto,
petrificados no interior da cultura popular brasileira.
Ao desaguar na década de 60, a questão do “resgate” da cultura
popular, que se configura mais precisamente como uma releitura desta por
parte dos intelectuais e artistas, se coloca de forma ainda mais candente,
principalmente, após o golpe militar de 1964, quando a cultura popular
brasileira passa à condição de referência primordial para uma criação artística
nacionalista e, fundamentalmente, engajada.
Porém, esse ideário, longe de se realizar artisticamente como um
programa específico e/ou monolítico, possuía em suas bases um conjunto
complexo e diverso de idéias que balizavam os projetos de diferentes grupos,
críticos das condições sociais e da ordem social capitalista neste país. A
apropriação e re-elaboração dessa teia de idéias se conceberam de forma
plural entre os distintos grupos que lançavam água no moinho da vida cultural
brasileira.
19
O contato com as fontes populares era enfatizado por inúmeros
personagens como elemento imprescindível para uma produção musical
genuinamente brasileira, resultante de suas raízes que teriam origem na cultura
popular. Assim, a cultura popular passava a ser vista como expressão
verdadeira e autêntica da formação sócio-cultural brasileira, portanto,
ferramenta a confrontar com as influências estrangeiras e com os impasses
sociais e políticos deflagrados a partir do golpe militar.
Essas representações ressaltadas por artistas e intelectuais, apesar de
agregarem perspectivas e objetivos distintos, quando se voltam para a procura
de uma cultura popular “autêntica” ou “genuinamente” brasileira, expressão
“não deturpada” e “pura” das camadas populares, merecem algumas
considerações.
Inicialmente, qualquer forma de abordagem teórica que toma a cultura
popular como objeto de análise deve levar em conta o processo incessante de
relações e intercâmbios entre os diversos núcleos sociais que a produzem.
Além disso, não pode deixar de apreciar o movimento constante de
transformação pelo qual se insere o universo cultural desses grupos, que por
sua vez define historicamente o caráter mutável de suas produções, já que,
“não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do
campo de força das relações de poder e dominação culturais.” (HALL, 2003:
254)
Com base nessas premissas, seria pouco razoável sugerir que as
produções culturais se estruturam em dois pólos dicotômicos – dominantes e
dominados –, no qual são desconsideradas as relações e interações entre eles
que definem as formas de organização de seus universos culturais. Com base
nisso há que se reconhecer que:
“[...] o essencial em uma definição de cultura popular são as relações que
colocam a “cultura popular” em uma tensão contínua (de relacionamento,
influência e antagonismo) com a cultura dominante [e] Considera o domínio das
formas e atividades culturais como um campo sempre variável.” (HALL, 2003:
257)
20
Esses apontamentos são de inestimável importância para este trabalho,
uma vez que acenam para uma definição de cultura popular em que as tensões
e relações de poder não são entendidas somente como forças dominantes
contrapostas a ela, mas, também, enquanto elemento que se relaciona com a
cultura popular, portanto, a constitui.
A partir disso, deve-se salientar que o horizonte analítico desta pesquisa
não se volta para a investigação de quais agentes conseguiram se apropriar ou
não das propriedades autênticas da cultura popular brasileira, mas direciona o
seu foco para o entendimento das diferentes relações e representações
construídas por artistas e intelectuais sobre as múltiplas facetas que compõem
a cultura popular brasileira.
Desse modo, estas considerações sobre a cultura popular não se
limitam a defini-la conceitualmente, mas servem de base referencial para a
análise da forma particular de inserção da cultura popular brasileira e suas
representações nos debates sobre a questão do engajamento político do artista
e o processo de atualização da música popular brasileira na década de 60.
Como se pode perceber a escolha dos projetos de intervenção cultural
de Edu Lobo e Caetano Veloso como objeto de pesquisa, desdobra em seu
movimento uma gama variada de questões que extrapola a esfera de uma
única área de conhecimento.
Portanto, esta dissertação não pode se furtar de algumas considerações
em torno da música enquanto fonte e objeto de reflexão do historiador, assim
como, sobre as relações entre a música, a canção popular e o conhecimento
histórico, uma vez que essa apreciação vem a contribuir para uma análise mais
aprofundada do objeto de pesquisa selecionado por esta dissertação de
mestrado.
Theodor W. Adorno talvez tenha sido o primeiro teórico na área das
ciências sociais a pensar a música popular enquanto objeto de estudo e a se
preocupar com a construção de instrumentos teóricos para a criação de uma
sociologia da música
6
. A elaboração por Adorno de um aporte metodológico
6
“Idéias para a sociologia da música” In: Teoria e Prática, São Paulo: nº 3, 1968, “Sobre a música
popular” In: COHN, G. (org.). Adorno – Coleção grandes cientistas sociais, São Paulo: Ática, 1994. e “O
fetichismo na música e a regressão na audição” In: Os Pensadores. Vol. XLVIII. São Paulo, Editora
Abril, 1995.
21
para a investigação da música realizava assim um passo fundamental para
incorporá-la dentro do ângulo de análise e reflexão das ciências sociais.
No entanto, nas análises de Adorno predomina uma avaliação
pessimista em relação à música popular, em que se enfatiza a condição da
música inserida no mercado de bens culturais: “Como campo delimitado e
cultivado da irracionalidade em meio ao mundo racionalizado, ela [a música] se
transforma no estritamente negativo, tal como é racionalmente planejado,
produzido e administrado pela indústria da cultura de massas em nossos dias.”
(ADORNO, 1968: 128)
Diante desse quadro é possível notar que se uma das contribuições
mais significativas de Adorno explicitasse por encampar a música popular
como objeto de estudo, ao mesmo tempo, percebesse que para este pensador
a música popular se embrenha por um campo no qual não há outra forma de
realização, senão como mero fenômeno que oculta de maneira irracional as
contradições do mundo racionalizado burguês. Presa a esses ditames, a
música produzida e difundida na sociedade contemporânea para Adorno se
definia:
“[…] enquanto recurso imediato da dominação, mas também enquanto forma
de falsa consciência, enquanto achatamento e harmonização de contradições.
[…] Por sua mera existência, na sociedade tomada em conjunto, a música tem
– em boa medida – a função de alhear […] sustentar o véu cultural, a
ocupação com o espírito degradado em cultura genérica, que impede a muitos
de ver o que importaria mais.” (ADORNO, 1968: 125-26)
Se por um lado, é necessário registrar a relevância das reflexões
desenvolvidas por Adorno sobre a música popular na área das ciências sociais,
assim como, para a construção de relevantes instrumentos teóricos, por outro
não é possível tomá-las como conclusão acabada sobre a relação entre música
e sociedade, tornando-se imprescindível ponderar algumas de suas
considerações que se propõem pouco flexíveis.
Em sentido diferente ao preconizado por Adorno, José Miguel Wisnik
indica que a música popular se constitui como importante fonte para a
compressão de aspectos que não se resumem somente ao círculo cultural e
22
artístico, mas ventila conteúdos, símbolos e representações que atingem outras
esferas e questões da vida social brasileira.
Em artigo que analisa as relações entre música e política, intitulado
“Algumas questões de música e política no Brasil”, José Miguel Wisnik, ao
pontuar algumas das especificidades contidas na linguagem musical,
reconhece:
“[…] que a música não exprime conteúdos diretamente; [pois] ela não tem
assunto, e, mesmo quando vem acompanhada de letra, no caso a
canção, o seu sentido está cifrado em modos muito sutis e quase sempre
inconscientes de apropriação dos ritmos, dos timbres, das intensidades,
das tramas melódicas e harmônicas dos sons. E no entanto, em algum lugar e
de algum modo, a música mantém com a política um vínculo operante e nem
sempre visível; é que ela atua, pela própria marca do seu gesto, na vida
individual e coletiva, enlaçando representações sociais a forças psíquicas.”
(WISNIK, 2002: 114)
Distanciando-se de conclusões mais sistêmicas, porém sem deixar de
considerar as mediações entre música, sociedade e política, José Miguel
Wisnik salienta que a música popular brasileira, em seu processo de
realização, atua como meio e mensagem do Brasil:
“Meio e mensagem do Brasil, pela tessitura densa de suas ramificações
e pela sua penetração social, a canção popular soletra em seu próprio corpo as
linhas da cultura, numa rede complexa que envolve a tradição rural e a
vanguarda, o erudito e o popular, o nacional e o estrangeiro, o artesanato e a
indústria.” (WISNIK, 2002: 123)
Quanto às discussões que impulsionaram no interior da historiografia
brasileira as primeiras reflexões sobre a relação entre história e música, há que
se levar em conta consideração as contribuições dos textos e artigos
produzidos pelo historiador Arnaldo Contier
7
.
7
“Música e História”. In: Revista de História, nº 118. São Paulo: Depto. de História, FFLCH, junho/1985
e “Música no Brasil: história e interdisciplinaridade, algumas interpretações (1926/1980).” In: História
em Debate - ANPUH, Rio de Janeiro: CNPQ, 1991.
23
Partindo de pressupostos analíticos florescidos na historiografia
francesa, especificamente na Escola dos Annales, Contier em ambos os artigos
realiza uma espécie de balanço das produções historiográficas que envolveram
as duas áreas de conhecimento. Também atento às relações entre música e
sociedade, Contier, em 1985, já apontava uma importante questão que se
espraiava ao redor dos primeiros trabalhos historiográficos sobre a música no
Brasil:
“A bibliografia sobre a História da Música no Brasil durante o século XX, tem se
revelado, […] muito restrita, “frágil” teoricamente, não apresentando uma visão
mais abrangente das possíveis conexões entre arte e sociedade. Em geral, as
análises sobre a produção artística privilegiam a vida e a obra dos autores
considerados mais significativos, sem contudo tecer comentários mais
profundos sobre o caráter simbólico da linguagem musical, marcadamente
instrumental, ou os aspectos textuais da canção popular ou erudita e suas
possíveis vinculações com o contexto histórico, propriamente dito. (CONTIER,
1985: 77)
Desse modo, Arnaldo Contier já destacava naquele momento a
necessidade do desenvolvimento de pesquisas que, ao mesmo tempo,
matizassem as relações entre música e sociedade e sondassem de maneira
mais aprofundada as intersecções entre os aspectos musicais e poéticos que
integram a canção.
Dentre os trabalhos atuais que se debruçaram sobre as relações entre
história e música e as condicionantes teórico-metodológicas subjacentes, o
historiador José Geraldo Vinci de Moraes, em artigo publicado em 2000,
8
apontou breves, porém importantíssimas, considerações sobre as
possibilidades que se abrem a partir das investigações que privilegiam a
canção popular como fonte histórica.
Enveredando-se por uma análise que procura pontos de convergência
interdisciplinar entre história, música e cultura popular, Moraes centra-se no
mapeamento de caminhos que possibilitem a construção do conhecimento
histórico através da ampliação do conceito de fonte documental. Neste sentido,
8
MORAES, José Geraldo Vinci de. “História e Música: canção popular e conhecimento histórico”. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh/Humanitas Publicações, vol. 20, nº 39, 2000.
24
o artigo considera a canção popular como importante “vestígio” para a
constituição de um corpus documental específico, que traz em seu bojo
significativos elementos do universo social dos grupos produtores, difusores e
consumidores dessa produção.
Outro importante aspecto destacado por Moraes refere-se a um
procedimento analítico que fora utilizado de forma extensa em parte
considerável das teses e dissertações acadêmicas, principalmente nas áreas
de história, sociologia e letras, que privilegia a análise da estrutura poética em
detrimento do código musical das canções. Em razão disso, Moraes aponta
que:
“A música popular não deve ser compreendida apenas como texto, fato muito
comum em alguns trabalhos historiográficos que se arriscam por essa área. As
análises devem ultrapassar os limites restritos exclusivamente à poética inscrita
na canção, no caso específico a poesia popular, pois, ainda que de maneira
válida, estaria se realizando uma interpretação de texto, mas não da canção
propriamente dita. […] Por isso, para compreender a poesia da canção popular,
é necessário entender sua forma toda especial, pois ela não é para ser falada
ou lida como tradicionalmente ocorre. Na realidade, a letra de uma canção, isto
é, a “voz que canta” ou a “palavra-cantada”, assume uma outra característica e
instância interpretativa e assim deve ser compreendida, para não se distanciar
das suas íntimas relações musicais.” (MORAES, 2000: 215)
Ampliando as discussões em torno das relações entre história e música
e adentrando, especialmente, às discussões teórico-metodológicas em torno da
música popular enquanto objeto de estudo para o historiador, Marcos
Napolitano, em sua obra “História e Música: história cultural da música
popular”,
9
nos oferece contribuições significativas para pensar as relações
entre essas duas áreas do conhecimento, ao sugerir questões e
problematizações fundamentais para o desenvolvimento de um trabalho crítico
e interdisciplinar.
9
NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
25
Quanto aos apontamentos feitos por Moraes em torno dos trabalhos
acadêmicos que direcionaram o foco de análise para a letra das canções, que
dispensaram a apreciação do código sonoro ou da estrutura musical destas,
Napolitano indica a possibilidade, a princípio, de dissociação dos elementos
poéticos e musicais enquanto um instrumento inicial de análise das canções,
contudo, pondera:
“Se numa primeira abordagem é lícito separar os eixos verbal e musical, para
fins didáticos, procedimento comum e até válido, deve-se ter em mente que as
conclusões serão tão mais parciais quanto menos integrados estiverem os
vários elementos que formam uma canção ao longo da análise. O efeito global
da articulação dos parâmetros poético-verbal e musical é que deve contar,
pois é a partir deste efeito que a música se realiza socialmente e
esteticamente. Palavras e frases que ditas podem ter um tipo de apelo ou
significado no ouvinte, quando cantadas ganham outro completamente
diferente, dependendo da altura, da duração, do timbre e ornamentos vocais,
do contraponto instrumental, do pulso e do ataque rítmico, entre outros
elementos.” (NAPOLITANO, 2005: 80)
De acordo com esses pressupostos, uma análise não arbitrária da
canção popular deve, necessariamente, levar em consideração a articulação
poética e musical, atentando-se para os nexos, cruzamentos e diálogos entre
essas dimensões, a fim de se apreender a complexidade imanente à realização
estética e social de uma canção.
Em relação à distinção entre a poesia que se manifesta pelo texto escrito
e a dimensão poética de uma canção que se realiza por meio do canto, Mário
de Andrade em estudo que data de 1938, intitulado “Os compositores e a
língua nacional”, já acenava para as diferenças e particularidades contidas em
cada uma destas, ao comentar que a voz cantada pelo fato de buscar a
intensidade fisiológica do som musical, se distingue da voz falada que procura
a imediata intensidade psicológica e a inteligibilidade da palavra oral.
(ANDRADE, 1975: 43-44)
26
De modo semelhante a Mário de Andrade, José Geraldo Vinci de
Moraes e Marcos Napolitano e, igualmente, Luiz Tatit e Augusto de Campos,
10
por meio de áreas do conhecimento e estudos distintos, também adotam um
posicionamento teórico centrado na diferenciação da palavra falada em relação
à palavra cantada, pois a última não poderia ser tratada analiticamente apenas
como um poema-texto, posto que se realiza somente através do canto
integrado à composição musical.
É a partir das contribuições fornecidas por essas abordagens sobre as
relações entre história, música e a canção popular que se estrutura o quadro
de orientação teórico-metodológica e a base para o cotejamento das questões
que permeiam a discussão historiográfica e a análise documental desta
pesquisa.
A distribuição dos itens e capítulos que compõem esta dissertação se
definiu da seguinte forma: o primeiro capítulo tem por objetivo situar, em meio
ao movimento de constituição da MPB na década de 60, os primeiros debates
que, configurados no seio da bossa nova, acenavam para a necessidade de
atualização da música popular brasileira. Também, aborda-se nesse capítulo o
diálogo estabelecido entre as diferentes esferas de criação cultural – música,
teatro e cinema – e sua importância para o processo de estruturação da MPB,
bem como, para o desenvolvimento das trajetórias artísticas de Edu Lobo e
Caetano Veloso.
O objetivo do segundo capítulo é analisar as idéias tecidas por Edu Lobo
e Caetano Veloso acerca do engajamento político do artista e da atualização
musical, a partir dos debates de que ambos participaram em torno das idéias e
propostas que deveriam nortear o artista na relação com a cultura popular e a
tradição musical brasileira. Com isso, o propósito do último item deste capítulo
se resume em identificar e confrontar as referências que embasavam as
propostas de ambos os artistas, a fim de localizar as tensões delineadas entre
dois projetos distintos de intervenção cultural, que propunham caminhos
diferenciados para a atualização da música popular brasileira.
O terceiro capítulo propõe-se a discutir a relação entre tradição e
modernidade a partir das criações musicais de Edu Lobo e Caetano Veloso,
10
Respectivamente em suas obras, O Cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp,
1996 e Balanço da bossa e outras bossa. São Paulo: Perspectiva, 1993.
27
uma vez que suas canções realizam cruzamentos específicos entre
informações musicais populares e cosmopolitas. Além disso, examina as
principais referências poéticas que estruturam a forma canção para ambos os
artistas. O último item deste capítulo analisa as releituras de determinadas
idéias do modernismo brasileiro articuladas por Edu Lobo e Caetano Veloso, e
particularmente, o diálogo estabelecido por ambos os artistas com as propostas
modernistas de Mário e Oswald de Andrade para a estruturação de seus
projetos.
28
I - MPB EM PROCESSO: ENTRE A ATUALIZAÇÃO MUSICAL E A
ARTICULAÇÃO CULTURAL
1. A composição de um ideário nacional-popular engajado
Observando pelo binóculo do tempo a película da cena musical brasileira
na década de 60, vem aos nossos olhos uma diversidade de formas e
expressões musicais que, associadas a referências e finalidades variadas,
deram um acento particular à produção musical brasileira desse período.
Direcionando, porém, o foco de nossas lentes para o final da década de
50 e início da década seguinte, é possível identificar a gestação de um núcleo
musical que, designado por bossa nova, passava a se apresentar como síntese
de um processo de renovação musical, ao conjugar um estilo intimista de
interpretação a novas estruturas rítmicas e harmônicas de composição.
Destacando, predominantemente, o espaço urbano carioca como o locus
de sua sociabilidade, a bossa nova desenhava um conjunto de representações
que projetava em suas canções um país – refletido a partir de uma cidade –
que “emancipando-se” junto à música brasileira, encontrasse a chave para a
sua “modernização”.
J. Jota de Moraes teceu as seguintes considerações acerca dessa
articulação produzida pela bossa nova, que gerava uma unidade entre o retrato
de um “novo país”, espelhado musicalmente na incipiente configuração urbana
do Rio de Janeiro:
“Todas essas composições [iniciais da bossa nova] refletem e transfiguram, de
maneira um tanto idealizada, a realidade de um Brasil que deixava de ser
fundamentalmente agrário e que, em meio a duras contradições, adentrava a
sua fase industrializada. Deixam a perceber, assim, que são músicas urbanas
(quase sempre muito peculiarmente cariocas) e que concretizam as visões do
novo homem da cidade, vivendo dentro de um certo tipo de conforto gerado
pelo repentino enriquecimento da sociedade. Essa nova riqueza, mesmo que
duvidosa, encontra-se na música da bossa nova. Só que metaforizada em um
novo tipo de materialidade, na materialidade do discurso musical.” (MORAES,
1982: 2)
29
Deve-se salientar que esta afirmação, para além das análises de causa
e efeito, não pretende reconhecer o surgimento da bossa nova como extensão
linear do projeto nacional-desenvolvimentista implementado pelo governo J.K.,
em que a primeira é vista como resultante direta do segundo. Mas, tem por
função considerar as mediações possíveis entre estas esferas, de modo que as
especificidades da bossa nova possam também ser entendidas a partir da
intersecção de idéias entre os universos político e cultural brasileiros, onde um
horizonte grafado pelas inscrições de modernização e modernidade, por vez
constituiu a tônica de ambas as dimensões.
Seguindo o rol de referências trazidas pela bossa nova, logo se percebe
que estas não se resumiam somente ao plano do discurso musical, mas à sua
própria condição enquanto grupo social, com origem na classe média. No plano
musical, a articulação entre novas células rítmicas e estruturas harmônicas,
associadas a uma forma original de interpretação e composição musical, a
colocava como resultante atualizada da tradição musical brasileira, mais
especificamente do samba, não obstante, integrasse elementos provenientes
do jazz e da música impressionista, porém sem se reduzir a esses.
11
Em razão da integração desses elementos, um extenso e polêmico
debate passou a fazer parte da agenda musical brasileira. Em questão a
“autenticidade” e as “raízes” da bossa nova, frente às influências musicais
estrangeiras.
Com isso, no desenrolar da década de 60, as críticas e artigos
produzidos pela imprensa, com o intuito de explicar o surgimento da bossa
nova, ora apontavam o seu “desenraizamento” diante da tradição musical
brasileira, sobretudo, em relação ao samba, tido como gênero matriz e
essencialmente brasileiro, ora indicavam a “sofisticação” de seus acordes e das
técnicas de composição, que demarcavam a sua identificação com os
parâmetros musicais internacionais, leia-se, ocidentais.
11
Para uma análise da “batida” de violão, estilizada por João Gilberto, junto ao processo de composição
musical configurado pela bossa nova e estabelecido não a partir de uma ruptura, mas de um diálogo e re-
elaboração de princípios rítmicos, melódicos e harmônicos do samba, do samba-canção e do jazz,
consultar: WALTER, Garcia. Bim Bom: a contradição sem conflitos em João Gilberto. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2000.
30
Assim, o circuito de idéias em torno desse debate, apesar de agregar
diferentes idéias e projetos para o campo da música popular brasileira,
enveredava-se por um eixo comum, qual seja: como equacionar a relação a ser
estabelecida entre os compositores e letristas, diante das inovações
implementadas pela bossa nova, principalmente no âmbito da harmonia, em
intenso diálogo com referências musicais estrangeiras, sem, contudo,
dispensar as referências nacionais e populares presentes na tradição musical
brasileira?
As palavras do compositor e letrista Sérgio Ricardo acerca das
colocações que o cineasta Glauber Rocha lhe fazia para a elaboração da trilha
musical do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, produzido em 1964,
evidenciam alguns desses impasses, constituídos ao redor da procura de uma
trilha musical que expressasse as condições autênticas de vida do povo
brasileiro:
“Uma das coisas que o próprio Glauber defendia muito era o seguinte: se
tecnicamente nós quiséssemos que aquilo [a trilha sonora do filme] fosse
bonitinho, bem feitinho, bem acabado, nós iríamos acabar urbanizando a coisa
[a imagem dos personagens]. O importante era conseguir tirar aquela angústia
do povo brasileiro, que vem de uma forma subdesenvolvida nas suas queixas.
Se nós déssemos uma forma evoluída na comunicação [na música], aquilo
soaria falso. Então havia de uma certa forma, uma ausência de individualização
Filosoficamente era muito mais válido.” (in MELLO, 1976: 115)
As advertências assinaladas por Sérgio Ricardo sobre a
incompatibilidade entre uma trilha musical tecnicamente elaborada e a forma
de expressão das condições de vida do povo brasileiro, apesar de pontuais,
revelam parte do debate que se estruturava no campo musical e artístico
brasileiro no limiar da década de 60. A denúncia dos problemas que “cobriam”
a realidade brasileira, junto às condições sociais que lhe expressavam, se
tornava “matéria-prima” para uma produção cultural crítica e, necessariamente,
engajada.
A partir disso, os dilemas e problemas que afetavam as camadas
populares e a realidade nacional passaram a ocupar maior espaço no seio das
31
canções. Ao assumirem uma postura de protesto, porém não restrita a essa
dimensão, as canções conjugaram no metabolismo de suas composições um
universo multifacetário que agregava lirismo, amor, crítica social, dedicatórias
ao povo e aos problemas nacionais e idéias que projetavam o historicamente
novo.
Além disso, há que se considerar o fato de parte significativa da
produção cultural elaborada no decorrer dos anos 60 estar em contato direto
com as tensões sociais e políticas desencadeadas pelo projeto nacional-
reformista do governo de João Goulart
12
, assim como por estar em diálogo com
diversos setores da esquerda brasileira, portanto, imersa em condições que:
“[...] ajudavam a produzir a atmosfera cultural e política do período,
impregnada pelas idéias de povo, libertação e identidade nacional – idéias que
já vinham de longe na cultura brasileira, mas traziam especialmente a partir dos
anos 50 a novidade de serem mescladas com influências de esquerda,
comunistas ou trabalhistas.” (RIDENTI, 2000: 25)
Esses ventos ideológicos que insuflavam o redemoinho cultural brasileiro
obtinham os seus principais impulsos através dos sopros teóricos que
transitavam do Partido Comunista Brasileiro (PCB) ao Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB), passando pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da
União Nacional dos Estudantes (UNE). Propagando idéias e projetos que se
articulavam ao redor de propostas reformistas e nacionalistas, direcionadas em
grande lastro para as demandas da classe trabalhadora do campo e da cidade,
para o combate ao latifúndio e ao imperialismo norte-americano.
A referida massa teórica adquiriu o seu molde em formato de “caráter
nacional” a partir da proposta apresentada pelo PCB, em 1958, para a
formação de uma Frente Única
13
. Esta deveria ser construída a partir de uma
grande aliança de classes, reunindo, inclusive, o proletariado e frações
supostamente progressistas da burguesia brasileira, para a conclusão da
revolução democrática e nacional. Tese “derrubada” com golpe de 1º de abril
12
A plataforma nacional-reformista do governo João Goulart (1961-1964), apoiada num amplo projeto de
reformas sociais, procurava se ancorar num movimento de maior participação política da classe
trabalhadora, se direcionado para a ampliação do mercado interno e questões como: reforma agrária,
urbana, tributária e educacional, entre outras, que compunham o quadro das Reformas de Base.
13
Ver: “Declaração sobre a Política do Partido Comunista Brasileiro, março de 1958.”
32
de 1964, quando a fração progressista da burguesia brasileira se revelou uma
falácia ao apoiar os militares.
Quanto ao caráter nacionalista da política cultural do PCB, Antonio A. C.
Rubim indica que esta na década de 60, fora, em grande parte, definida pelas
propostas do CPC, voltadas para a atuação e engajamento no campo
cultural.
14
Assim, as proposições que davam sustentação teórica para a
formulação das políticas culturais do PCB e CPC no início da década de 60,
tinham no ideário nacional-popular o seu ponto nuclear. No interior desse
movimento de idéias:
“Reinava um estado de espírito combativo, segundo o qual o progresso
resultaria de uma espécie de reconquista, ou melhor, da expulsão dos
invasores. Rechaçado o Imperialismo, neutralizadas as formas mercantis e
industriais de cultura que lhe correspondiam, e afastada a parte antinacional da
burguesia, aliada do primeiro, estaria tudo pronto para que desabrochasse a
cultura nacional verdadeira, descaracterizada pelos elementos anteriores,
entendidos como corpo estranho. A ênfase, muito justa, nos mecanismos da
dominação norte americana servia à mitificação da comunidade brasileira,
[…subtraindo a] analise de classe que a tornaria problemática por sua vez.”
(SCHWARZ, 1987: 96)
Com o golpe de 1964, estavam, então, desmontados os pressupostos da
esquerda brasileira acerca da aliança classista para a revolução democrática e
nacional. No entanto, o processo de cerceamento da vida social, estendido
através do fechamento de sindicatos e organizações da classe trabalhadora, ao
mesmo tempo, sinalizaria para outras respostas da esquerda na esfera cultural.
Analisando em conjunto as criações culturais brasileiras após o golpe, é
possível identificar que as diferentes dimensões da produção artística nacional
apresentavam, em sua maioria, no sentido e significado de suas obras, um
14
Rubim indica que após a crise de 1956, decorrente das declarações apresentadas no XX Congresso do
Partido Comunista da União Soviética sobre os crimes cometidos por Stalin: “Nos anos 60, as propostas
de estímulo e produção de uma cultura nacional e popular, gestadas fora do partido em organizações
como o Centro Popular de Cultura - CPC da UNE, onde a presença de jovens militantes do Partido
Comunista Brasileiro é marcante, influenciam e são assimiladas por este partido. Diversos dos mais
importantes intelectuais próximos ao PCB defendem esta alternativa cultural ainda que como (sic) visões
diferenciadas […]” (1986: 324)
33
diálogo crítico e contestatório da ordem social vigente.
15
O historiador Jacob
Gorender, em seu livro Combate nas Trevas, resgata elementos fundamentais
para a compreensão desse universo no pós-64:
“O golpe militar truncou uma fase de excepcional florescimento da cultura
brasileira. A politização das massas se tornou o terreno fértil sobre o qual
frutificaram iniciativas de cultura popular como nunca havia ocorrido em épocas
anteriores. Partiram da UNE (União Nacional dos Estudantes) os Centros
Populares de Cultura, pródigos no âmbito do teatro, da poesia, do cinema. Com
apoio dos setores progressistas da Igreja, expandiu-se o Movimento de
Educação de Base, atuante nos bairros pobres. O método de alfabetização de
adultos do educador Paulo Freire teve aplicação em Pernambuco e daí se
difundiu pelo país. Um sopro de entusiasmo renovador percorria a música
popular, o teatro e a literatura. É a fase de ouro da bossa nova, do cinema
novo, do Teatro de Arena, da arquitetura de Brasília. [...] Impulso tão criativo e
poderoso que se revelou capaz de passar por cima do golpe antidemocrático e
ainda brilhar intensamente até o fechamento completo da ditadura militar no
final de 1968.” (1987: 48-49)
Ou seja, se por um lado o golpe de 1964 havia alterado o sentido do
barco rumo ao porto da revolução brasileira, reprimindo e perseguindo aqueles
que se engajaram e remaram na maré política dos idos de 60, por outro lado,
os piratas – contra-revolucionários – se depararam com o novo alento que a
vela cultural deu a vida social neste país após o golpe.
Diferentes artistas, da música ao teatro, passando pelo cinema às artes
plásticas, procuravam através de suas produções artísticas denunciar e romper
com as contradições que assolavam a sociedade brasileira. Para esses
agentes, as produções culturais desempenhariam um papel primordial, já que
cumpririam a função de impulsionar através da consciência transformada em
ação, uma série de transformações sociais no bojo da realidade brasileira.
15
Se havia um espírito que rondava as produções culturais neste momento, este foi traduzido da seguinte
forma por Leandro Konder: “Hoje em dia se reconhece, em geral, que a produção artística significativa de
nosso século se fez e se faz em oposição à sociedade. O mesmo se admite, igualmente, em relação aos
frutos do exercício crítico da inteligência. São cada vez mais raros e mais inexpressivos os apologistas do
status quo. O mal-estar e o espírito de negação se acham generalizados. E, mais do que em qualquer outra
época da história da humanidade, a cultura vive atualmente sob o signo da rebeldia.” (RCB, 1967: 135)
34
No escopo deste raio, um ideário voltado para as referências nacionais e
populares da cultura brasileira teve ressonância significativa nos debates que
se voltavam para a identificação dos elementos centrais e orientadores do novo
processo de criação musical.
No decorrer da década de 60, esta “ida ao povo” por parte dos artistas,
caracterizada por uma maior aproximação com a cultura popular, além de
expressar o contato com as fontes da cultura brasileira, remetia a um
posicionamento ideológico voltado para o engajamento através da canção,
transformando-se a cultura popular para alguns grupos, em substrato essencial
para um projeto de intervenção cultural potencialmente revolucionário.
16
Renato Ortiz, em sua obra “Cultura Brasileira e Identidade Nacional”,
levanta pertinentes aspectos sobre o movimento de formação de uma
intelligentsia brasileira, na década de 50, preocupada em elaborar categorias
de análise e diagnósticos em torno de um projeto nacionalista, que teve grande
ressonância de idéias junto à esfera cultural:
“[…] Quando, nos artigos de jornais, nas discussões políticas ou acadêmicas,
deparamos com conceitos como “cultura alienada”, “colonialismo” ou
“autenticidade cultural”, agimos com uma naturalidade espantosa, esquecendo-
nos de que eles foram forjados em um determinado momento histórico, e creio
eu, produzido pela intelligentsia do ISEB. Penso que não seria exagero
considerar o ISEB como matriz de um tipo de pensamento que baliza a
discussão cultural no Brasil dos anos 60 […] nos meios do cinema, do teatro,
da literatura e da música”. (1984: 46)
A partir disso, Renato Ortiz aponta que a extensão assumida pelo
pensamento isebiano fez com ele se tornasse o “cimento teórico” fundamental
– e não determinante – para a formação de um quadro referencial de idéias
que informou dois dos principais movimentos culturais de esquerda na década
de 60, ambos em busca de uma forma de aproximação com a cultura popular
brasileira:
16
Ver: MARTINS, Carlos Estevam. “Por uma arte popular revolucionária”, Movimento nº 2, maio, 1962.
35
“Na esfera cultural a influência do ISEB foi profunda. Ao me referir a este
pensamento como matriz, o que procurava descrever é que toda uma série de
conceitos políticos e filosóficos que são elaborados no final dos anos 50 se
difundem pela sociedade e passam a constituir categorias de apreensão e
compreensão da realidade brasileira. No início dos anos 60 dois movimentos
realizam, de maneira diferenciada, é claro, os ideais políticos tratados
teoricamente pelo ISEB. Refiro-me ao Movimento de Cultura Popular do Recife
e ao CPC da UNE. […] Carlos Estevam foi assistente de Álvaro Vieira Pinto e
trabalhava no ISEB no momento em que assume a direção do CPC. […] A
teoria isebiana, ou pelo menos parte dela, penetra tanto as forças de esquerda
marxista quanto o pensamento social católico. Um instrumento teórico que era
posse exclusiva de alguns intelectuais da cultura brasileira se distribui
socialmente, e gradativamente é integrado nas peças teatrais, […] na música,
[…] e nas cartilhas escolares”. (1984: 47-48)
O CPC vinculado à UNE, que por sua vez contava com um conjunto
significativo de artistas vinculados ao PCB, se constituiu como a principal
organização de esquerda, na década de 60, a propagar um ideário acerca do
engajamento político do artista e da função social da arte, a fim de estabelecer
um vínculo orgânico entre os intelectuais e a cultura popular brasileira. Esses
elementos encontrariam a sua primeira sistematização em um artigo escrito,
em maio de 1962, por Carlos Estevam
17
, então diretor-executivo do CPC, no
qual são apresentados os princípios que deveriam nortear o artista no bojo do
processo de criação artística, segundo ele:
“Os membros do CPC optaram por ser do povo, por ser parte integrante do
povo, destacamentos de seu exército no front cultural. E eseta (sic) opção
fundamental que produz no espírito dos artistas e intelectuais que ainda não a
fizeram [gera] alguns equívocos e incompreensões quanto ao valor que
atribuímos a liberdade individual no processo de criação artística e quanto à
17
Deve-se salientar que as idéias veiculadas por Estevam através desse artigo, posteriormente,
identificado como manifesto, não expressa a desconsideração da pluralidade de criações que surgiram no
interior do CPC seguindo orientações diversas. No entanto, não é possível desconsiderar a ressonância
que essas idéias tiveram sobre os diferentes setores da produção artística, ligados ou em diálogo com essa
organização. Ver: SOUZA, Miliandre Garcia. Do Arena ao CPC: o debate em torno da arte engajada
(1959-1964). Dissertação de Mestrado, UFPR: Curitiba, 2002. Miliandre tece uma pertinente crítica às
diferentes análises que homogeneizaram as produções cepecistas reduzindo-as às idéias apresentadas por
Carlos Estevam Martins no artigo supracitado.
36
nossa concepção de essência da arte em geral e da arte popular em
particular”. (ESTEVAM, 1962)
Apesar de reconhecer a importância da liberdade no processo de
criação artística, Carlos Estevam argumentava que no processo de criação da
arte popular revolucionária, o artista depara-se com determinadas limitações
frente à sua autonomia. Estas restrições se expressam de forma mais
acentuada, sobretudo, no que tange à relação entre forma e conteúdo
18
, visto
que:
“O balanço das relações entre a arte popular revolucionária e a arte ilustrada
das elites dirigentes só pode ser levado a efeito metodicamente se
distinguimos, num primeiro momento, as questões relativas à forma daquelas
que dizem respeito ao [seu] conteúdo. Os artistas e intelectuais do CPC não
sentem qualquer dificuldade em reconhecer o fato de que, do ponto de vista
formal, a arte ilustrada descortina para aqueles que a praticam as
oportunidades mais ricas e valiosas, mas consideram que a situação não é a
mesma quando se pensa em têrmos de conteúdo.” (ESTEVAM, 1962)
Segundo Carlos Estevam, as possibilidades formais abertas pela arte
dirigida às elites atingiam um patamar de superioridade inegável, se
comparadas à forma tomada pelas manifestações culturais populares.
Contudo, de acordo com Estevam, o artista revolucionário decide elaborar as
suas obras a partir de condições estéticas inferiores pelo fato de haver a
necessidade de se apropriar da linguagem popular para desenvolver o seu
processo de comunicação com o povo.
Desse modo, era criada uma gradação cultural entre arte popular e arte
de elite que revelava uma diferenciação hierárquica entre expressão e
comunicação, na qual a primeira se associava à forma e a segunda se remetia
ao conteúdo.
A partir disso, Estevam aponta mais um elemento que desdobra a sua
análise acerca do ato de produção da arte popular revolucionária, qual seja, a
18
O dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, que teve participação direta na fundação do CPC,
em entrevista a Luís Werneck Vianna, ao ser questionado sobre a subordinação da expressão estética ao
conteúdo político em suas obras, respondeu: “É, o estético ficou subordinado ao político e o CPC da
UNE, o Centro Popular de Cultura da UNE, radicalizou essa posição.” (PEIXOTO, 1983: 161)
37
decisão que o artista deveria tomar ao delimitar o sentido de suas criações,
pois, a resolução dos impasses entre expressão e comunicação evidenciaria o
seu engajamento ou não frente à realidade:
“A chave que elucida todos os problemas relativos às possibilidades formais
da arte ilustrada [para a elite] e da arte revolucionária [para o povo] é
descoberta quando se compreende que o ato de criar esta determinado em sua
raiz pela opção original a que nenhum artista pode se esquivar e que consiste
no grande dilema entre a expressão e a comunicação.” (ESTEVAM, 1962)
Ou seja, Carlos Estevam estabelecia uma distinção fundamental entre
expressão – forma – e comunicação – conteúdo –, na qual a última deveria ser,
necessariamente, o vetor a conduzir o processo de criação artística, uma vez
que a inversão dessa operação expressaria uma arte deslocada de seu núcleo,
em que o artista, preocupado com os princípios formais, somente atenderia aos
seus pares, alienando-se através de sua produção. O artista centrado no
conteúdo, ou seja, na apreensão da linguagem presente nas tradições
populares, criava, por sua vez condições para se dirigir ao povo, tornando-se,
portanto, revolucionário.
Essa questão associada à definição do que seria cultura popular viria a
tensionar a relação entre determinados artistas e o CPC. Exemplo notável
localiza-se no momento inicial de construção da organização, quando, em
reunião, alguns agentes propuseram que esta recebesse o nome de Centro de
Cultura Popular – CCP. Carlos Lyra foi o primeiro a se levantar contra,
indicando que:
“Eu Carlos Lyra sou de classe média e não pretendo fazer arte do povo,
pretendo fazer aquilo que eu faço. Posso ser alienado, mas não há como fugir:
[…] faço bossa nova, faço teatro […] a minha música, por mais que eu
pretenda que ela seja politizada, nunca será uma música do povo”. (in:
BARCELLOS, 1994: 97)
Este seria um dos dilemas que acompanharia toda a história do CPC,
polarizando posições e críticas, inclusive internamente, principalmente, acerca
dos procedimentos voltados para se estabelecer a submissão da forma ao
38
conteúdo, com o intuito de se realizar uma produção artística didática e
engajada, que encaminhasse o processo de conscientização política das
massas.
No que se refere à esfera musical, deve-se destacar, fundamentalmente,
a aproximação de dois agentes que, nascidos no berço da bossa nova,
passavam a dialogar com as propostas disseminadas pelo CPC. São estes,
Carlos Lyra
19
e Sérgio Ricardo. Ambos seriam os principais agentes que
catalisariam, através de suas criações, os debates acerca da necessidade de
atualização da música popular brasileira, gestando no interior da bossa nova a
formação de uma vertente nacionalista, ou segunda geração, que passaria a
incorporar elementos da arte engajada.
20
Além destes, outro agente social teve papel relevante no sentido de
ampliar e demarcar um posicionamento favorável, através de artigos, em
relação às discussões sobre as necessidades de se encontrar um caminho de
atualização para a bossa nova e, consequentemente, para a música popular
brasileira, o compositor Nelson Lins e Barros.
Os artigos escritos por esse compositor, publicados na Revista
Movimento, produzida pela UNE, além de insuflarem a questão da urgência
quanto a um processo de renovação musical brasileiro, ao mesmo tempo,
valorizavam as criações da vertente nacionalista da bossa nova. Não por
acaso, Barros, que estava conectado com os projetos do CPC, teve as suas
primeiras canções gravadas no início da década de 60, em parceria com Carlos
Lyra, portanto, envolvendo-se diretamente com a formação da ala nacionalista
da bossa nova:
19
Carlos Lyra, além de compor em parceria com Vinícius de Moraes o hino da União Nacional dos
Estudantes, envolveu-se diretamente com a elaboração do LP “O povo canta”, produzido pela UNE em
1962, no qual se destaca a canção “O Subdesenvolvido”, que concretizaria o primeiro passo para a
formação daquilo que se convencionou chamar de canção de protesto ou participante.
20
Para Sérgio Ricardo, as necessidades quanto à atualização da música popular brasileira se constituíam
em demandas urgentes. Com base nisto, afirmava: “A música popular brasileira atravessa um momento
crítico, parece até que se distanciou de nossa cultura. Verdade a bossa nova trouxe certa renovação,
abrindo um campo de aproveitamento largo, mais ele foi logo tomado de falsos valores, gente que
confundia alhos com bugalhos. Os iniciadores do movimento não lutaram bastante para conquistar o
público, sei lá por que. Mas podiam tê-lo conquistado através da pesquisa de harmonia, do ritmo, da
melodia, da linguagem popular, rica e comunicativa. Este material bem trabalhado, faria sucesso no
mundo inteiro. O que não é possível é tolerar essa falsa exuberância de nossos falsos jazzístas. Sua
música não é sentida sequer porque não é feita para o povo.” (INTERVALO, 05/02/1966: 17)
39
“A parceria entre Carlos Lyra e Nelson Lins e Barros que inicialmente remetia a
temas amorosos e seus desdobramentos, passou a apresentar uma crítica até
então não evidenciada. Uma das primeiras polêmicas da Bossa Nova está
relacionada ao conteúdo temático das suas primeiras canções.
Consequentemente, Carlos Lyra e Nelson Lins e Barros foram os primeiros a
transferir para a música as intenções de criação de uma estética nacional-
popular, cujo enfoque não era destinado apenas ao amor, ao sorriso e à flor,
mas também às tradições populares e aos problemas sociais.” (SOUZA, 2003:
301)
É interessante notar que a preocupação inicial desse intelectual, em
artigo publicado em outubro de 1962, dirige-se especificamente à infiltração
dos gêneros estrangeiros que, influenciando internamente o celeiro musical
brasileiro e se veiculando extensamente através dos meios de comunicação,
poderiam destruir as possibilidades de construção de uma música
autenticamente brasileira. De acordo com Barros:
“Atualmente há um impasse na música popular brasileira. Não é fácil dizer, de
maneira generalizada, até que ponto os compositores estão conscientes desta
situação e da responsabilidade que lhes cabe, em grande parte, no rumo que
nossa música deverá tomar. Êsse impasse consiste em não se saber como
alcançar uma música genuinamente brasileira, atualizada, com fôrça popular e
artística suficiente para vencer a tremenda pressão da música estrangeira,
principalmente da música americana.” (BARROS, 1962: 23)
Apesar de nesse artigo já reconhecer as influências do jazz sobre a
bossa nova, nem por isso Barros entendia ser este o fenômeno crucial que
assolava a música brasileira naquele período, já que considerava a bossa nova
ainda pouco comercializada e distanciada das audições das camadas
populares. A sua principal advertência tinha por objetivo primordial explicitar o
processo de propagação maciça da música estrangeira, em detrimento da
divulgação das raízes genuínas da música brasileira. Processo que demandava
soluções, pois, de modo contrário:
40
“[…] a nossa música autêntica regional desaparecerá como expressão cultural
do povo, tornando-se coisa do passado, conhecida, apenas pelos folcloristas,
[...] a música das elites continuará hermética, sem representar a expressão do
povo, isto é, sem ser, propriamente, música brasileira [e] a música comercial
será dominada cada vez mais, pela música americana, por ser esta de melhor
apresentação [...] Se não forem encontradas soluções para êsses problemas, a
música brasileira, no seu sentido tradicional, como expressão autêntica de seu
povo, poderá desaparecer. A situação é grave e não se restringe a um
problema artístico, mas a problemas de caráter social, cultural e político. Os
compositores conscientes deverão ponderar sôbre êsses problemas e lutar
pela sua solução.” (BARROS, 1962: 26)
Em seu segundo artigo, publicado em maio de 1963, “Bossa Nova–
Colônia do Jazz”, Nelson Lins e Barros direcionava o seu foco de análise para
a relação entre Bossa Nova e Jazz, porém, a tônica do discurso voltou-se para
dois pontos que se tornariam divisores de águas do movimento. Conforme
Barros:
“De repente a Bossa Nova apareceu de novo. Muita gente talvez não sabe que
a Bossa Nova já apareceu uma vez. Teve seu surto na burguesia por volta de
59. Depois, vacilante, vítima de suas próprias contradições, chegou a um
impasse do qual evoluiria para uma nova bossa superior.” (BARROS, 1963 :13)
O primeiro momento destacado, após 59, demarca um posicionamento
específico de Nelson Lins e Barros diante do conturbado show da bossa nova
no Carnegie Hall, em 1962, em Nova York. O show organizado por Sidney
Frey, empresário de uma grande gravadora norte-americana – Áudio Fidelity –
e auxiliado pelo Itamaraty, além de ter sido um grande alvo de ataque,
principalmente, para os opositores de primeiro momento da Bossa Nova,
colocava mais uma questão para Barros: como pensar a construção de uma
música de caráter nacional a partir de um movimento musical que, agregando
influências estrangeiras, despertava-se comercialmente, tornando-se ativo não
somente nacionalmente, mas no circuito internacional?
A resposta ou alternativa a esse impasse do qual a bossa nova evoluiria
para uma nova bossa superior expressava-se na opinião de Barros, na
41
consolidação de uma ala nacionalista dentro da Bossa Nova, grupo em que
passariam a ser depositadas as novas expectativas, voltadas, essencialmente,
para o processo de atualização da música popular brasileira:
“Com essa atitude [de formação de uma ala nacionalista], os compositores BN
[da bossa nova] entraram em uma fase que eu chamo de Nova Bossa – uma
fase bem superior à original. Carlos Lyra, por exemplo, descobriu-se
compositor dramático musicando e continuando a musicar teatro e cinema em
um nível dificilmente igualado pelos demais compositores brasileiros da bossa
ou fora da bossa. Tom, Sérgio Ricardo, Baden Powell e Vinícius de Morais
alcançaram, dentro da linha popular nacionalista, níveis artísticos, na minha
opinião, nunca atingidos antes pela música brasileira. [...] A estética da bossa
nova original continuou em suas linhas gerais no que havia de bom. O
preciosismo tanto dos acordes como da linha melódica cedeu lugar a um
expontaneísmo natural e tradicionalmente brasileiro sem nunca descer ao
vulgar ou comercial. A letra não perdeu em poesia e ganhou em conteúdo
social.” (BARROS, 1963: 15)
A partir das idéias expressas no artigo, ficam evidentes as novas
referências que, de acordo com Barros, deveriam nortear o processo de
atualização da música popular brasileira. Primeiro, articulação dos artistas
engajados com as demais áreas de criação cultural, tal como, Carlos Lyra
estava fazendo através de um diálogo com o teatro e o cinema; segundo, a
diluição do preciosismo presente na estrutura musical das canções cederia
lugar a um espírito de criação tradicionalmente brasileiro, distanciado da
vulgaridade e do comercialismo; e, finalmente, as letras das canções, sem
dispensarem a dimensão poética, haveriam de se aproximar das temáticas
voltadas para os problemas sociais brasileiros.
Na realidade, nem todos os compositores citados no artigo
demonstrariam a partir desse momento uma postura engajada ou nacionalista.
Contudo, não é possível desconsiderar a contribuição de todos para a
formação de um novo panorama, visto por lentes que se voltavam para o Brasil
e a cultura popular. Atitude levada adiante, substancialmente, por Carlos Lyra e
Sérgio Ricardo.
42
A apreciação das ações desses personagens, das idéias e propostas
centradas no engajamento através da canção, tendo por referência o ideário
nacional-popular, são de fundamental importância para o entendimento do
processo que catalisaria os debates em torno do processo de atualização da
música popular brasileira, no qual personagens como Edu Lobo e Caetano
Veloso estruturariam projetos distintos, ao entrar em diálogo com esse quadro
de idéias que, por sua vez, permearia a própria gênese da MPB.
2. “Um por todos e todos por um”
2.1. Música e Teatro
A análise esboçada no item anterior sobre o processo de composição de
um ideário nacional-popular, que por sua vez passava a ganhar espaço no seio
da Bossa Nova e com isso adquiria uma expressiva visibilidade, torna-se vital
para visualizarmos a movimentação dos grupos preocupados com o
engajamento, assim como para entendermos a articulação das relações
culturais em torno da gestação da MPB na década de 60.
Além disso, outro fator viria a agregar maior unidade junto aos germes
embrionários da MPB, angariando, assim, um conjunto mais amplo e difuso de
artistas e intelectuais no espectro do engajamento. Trata-se da “operação”
estética e ideológica que teve a sua base fundamental a partir do diálogo e
interação entre três áreas de expressão cultural: música, teatro e cinema, na
qual a música popular brasileira se fortaleceu e cristalizou uma posição de
destaque junto ao público, consolidada mais adiante com os festivais da
canção.
21
21
Os festivais de música popular brasileira teriam início em 1965, na TV Excelsior, a partir da realização
do Festival Nacional de Música Popular, seguindo modelos e versões semelhantes aos do Festival de
Música Popular Brasileira pela TV Record e o Festival Internacional da Canção, organizado pela
Secretaria de Turismo da Guanabara e transmitido pela TV Globo, ambos iniciados em 1966. Esses
consistiam num concurso nacional de canções com etapas distintas de classificação, definidas de acordo
com as regras estabelecidas por cada emissora. O Festival Internacional da Canção dividia-se em duas
fases: primeira nacional que encaminhava os vencedores para uma segunda fase, internacional.
43
A apreciação do processo de interação entre as três áreas de criação
cultural se torna necessária, já que as trajetórias peculiares de Edu Lobo e
Caetano Veloso teriam a sua compreensão impossibilitada, se não fossem
consideradas as relações que estabeleceram com outras áreas de expressão
cultural para a condução de suas próprias carreiras musicais, pois, conforme
apontou Eric Nepomuceno:
“[...] receberam uma carga de informação e foram permeáveis a uma ampla
variedade de influências. Além disso, e este é um aspecto fundamental, essa
geração consolidou-se em estreito contato com outras áreas da criação:
cineastas, dramaturgos, diretores de teatro, atores e atrizes, artistas plásticos,
escritores, jornalistas. Eram consumidores da produção cultural, por certo. Mas
conviviam com outros produtores de arte, num clima de permanente ebulição, e
num país efervescente.” (in: LOBO, 1994: 9)
Haja vista as criações musicais de Edu Lobo, que elaboraria parte
significativa de suas primeiras composições em parceiras com o cineasta Ruy
Guerra, com os poetas Vinícius de Moraes e José Carlos Capinam, como
também, com o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, que o convidaria
para compor a trilha de Arena conta Zumbi. Caetano Veloso, de forma
semelhante, no início de sua carreira, também estendeu vínculos com o teatro
por meio da peça Arena canta Bahia, no entanto, o diálogo e a interação mais
aprofundada com as demais áreas de criação cultural se generalizariam entre
1967 e 1968 com a formação do grupo tropicalista, que definiria traços
singulares em sua obra.
Edu Lobo e Caetano Veloso apresentam assim uma dupla unidade
caracterizadora de suas trajetórias, pois se, de um lado, foram costurados por
uma grande teia sócio-cultural propiciadora de condições extremamente
particularizantes, ao mesmo tempo, eles atuaram como artífices desta, de
modo que se tornaria inviável analisar as produções de ambos de forma
isolada das condicionantes que circunscreveram a própria especificidade
histórica de suas criações.
Uma síntese elucidativa dessa situação se encontra nas palavras de Edu
Lobo, que argumentava de maneira enfática sobre as necessidades do artista
44
de integrar elementos e conhecimentos de outras áreas de expressão cultural
como meio imprescindível para manter a sobrevivência das suas próprias
criações:
“O estudo, ou trabalho, não é só ficar devorando livros de harmonia não. É
você pesquisar e não só em música: em todas as coisas, em todas as artes.
Esse trabalho de leitura, esse relacionamento entre as artes é que é
fundamental. O músico que não lê jornal – essa é uma estória que o Lyra
falava – é um músico quase que condenado a ser esmagado pela sua própria
apatia. ‘O meu negócio é o som, sou músico, não tenho nada a ver com
pintura, nada a ver com política.’ E só tem que ver. Essa é a única fórmula para
você poder elevar suas músicas a uma outra conseqüência. Não é preciso que
a gente tenha conhecimento profundo [de tudo], mas que esteja sempre atento
às coisas que estão acontecendo [ao nosso redor].” (in: MELLO: 1976, 218-19)
Sérgio Ricardo, caminhando na mesma esteira, expõe de modo
exemplar não somente a forma como se concebia o processo de interação
entre música, cinema e teatro na década de 60, mas como a influência
exercida pelos atores sociais ligados ao teatro engajado e ao cinema novo
sobre a música popular brasileira se convertia em diretriz estética e ideológica,
interferindo diretamente no sentido e significado de suas produções culturais:
“Não havia um grupo [fechado], havia inicialmente uma perspectiva em que
Chico Assis, Rui Guerra e Glauber Rocha tiveram muita influência em nós
todos [da música]. Ao mesmo tempo que faziam teatro e cinema, estavam
ligados à música popular por necessidade. Tanto é que os 3 são letristas. Eles
eram mais voltados às letras e à filosofia, porque o teatro e o cinema abrangem
uma área muito vasta, […] Então esses 3 foram os intelectuais desse
movimento: vinham conversar conosco separadamente. Conversavam com
Carlinhos Lyra, com Geraldo Vandré, comigo, da necessidade de se fazer uma
música de protesto. E davam de uma certa forma as diretrizes culturais para a
coisa: era necessário que não se fizesse música urbana e que se fosse buscar
a fonte no próprio povo pra poder falar-lhe das suas coisas.” (in: MELLO, 1976:
114-115)
45
De acordo com a explanação feita por Sérgio Ricardo, observa-se o
processo de aproximação e cruzamento das diferentes dimensões do campo
cultural brasileiro, tal como a relevância atribuída por este agente social ao
papel desempenhado por cineastas e teatrólogos sobre os caminhos do
engajamento tomados pelos compositores e letristas atrelados à música
popular brasileira.
Além disso, Sérgio Ricardo evidenciava a necessidade da construção de
uma musicalidade distanciada dos centros urbanos, onde o interior, o morro e o
sertão se apresentavam como fonte “autêntica” da cultura popular e,
consequentemente, do próprio povo brasileiro.
Essa dinâmica interativa entre as três áreas de expressão cultural
produziu um vasto universo de intercâmbio de idéias e projetos, ventilados por
diferentes grupos, contribuindo, assim, de maneira significativa para o processo
específico de ampliação de público, reconhecimento social e consagração da
MPB, no qual a indústria fonográfica e os meios de comunicação tiveram
papéis predominantes.
22
Deve-se ainda reconhecer que, entre as três áreas de expressão
cultural, a música possuía maior infiltração junto ao público,
23
haja vista a sua
divulgação na década de 60 através de mecanismos que, usufruindo das
transformações tecnológicas, objetivavam a sua veiculação por meio de
compactos simples, LPs, imprensa, publicidade, programas de rádio e
televisão.
O teatro, a partir de 1958, com a apresentação da peça “Eles não usam
black-tie”, escrita por Gianfrancesco Guarnieri, agregaria uma quantidade de
público até então desconhecida dos palcos brasileiros, especialmente se for
22
Para o maior aprofundamento da questão relacionada ao processo de constituição da MPB, na década
de 60, e seus vínculos com a indústria fonográfica e os meios de comunicação, ver: NAPOLITANO,
Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo:
Annablume, 2001.
23
Marcos Napolitano, em ensaio sobre “A arte engajada e seus públicos (1955/1968)”, indica que “Após
1965, ao contrário do teatro que se consagrou como espaço da ‘catarse’, o cinema optou pelo viés da
autocrítica e reflexão”, ao relegar uma linguagem simples e didática, distanciou-se progressivamente de
um público mais amplo e diverso, ao passo que “A música, aliada ao teatro, tornou-se o grande espaço de
sociabilidade da juventude de esquerda, cada vez mais carente de espaços públicos para se expressar”.
(2001: 12-17)
46
considerado que a sua encenação foi concebida por uma pequena companhia,
o Teatro de Arena.
24
A união, em 1956, dessa companhia ao TPE – Teatro Paulista do
Estudante –, ligado ao Partido Comunista, viria a selar uma parceria que se
revelaria extremamente criativa, frente aos problemas de financiamento que
assolavam o teatro comercial brasileiro e, necessariamente, em relação à
construção de uma dramaturgia que tinha por centro o autor nacional e a
realidade social brasileira.
Essas questões, que vieram a se tornar paradigmáticas na década
seguinte, sobre o “telhado” do teatro brasileiro já ocupavam as preocupações
de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha em artigo publicado pela Revista
Movimento, em outubro de 1962. Vianinha, ao analisar os pilares do teatro
comercial brasileiro e a gênese do Teatro de Arena, comentava:
“O Teatro de Arena apareceu com outro jeito desde o início. Começou como
simpático: “o simpático teatrinho da rua Theodoro Bayma”. Essa “simpatia” era
expressão de seu esfôrço, de sua característica insólita dentro do panorama
empresarial de teatro. Mesmo sem uma linha cultural definida, o Arena surgia
mais adequado às condições econômicas e sociais. Sem poder se apoiar em
figuras de cartaz, em cenários bem feitos, em peças estrangeiras de sucesso
comercial (o “avaloir” é alto) o teatro de Arena, mais cêdo ou mais tarde, teria
que apoiar sua sobrevivência na parcela politizada do público paulista
identificada com aquelas condições econômicas. Um público que via muito
mais Brasil nos esfôrços culturais de conscientização do que nas realizações
externas e desvinculadas.” (FILHO, 1962: 31)
Apesar de o povo e a cultura popular serem extremamente valorizados
por grande parte dos artistas e intelectuais que estavam debaixo do “guarda-
chuva nacional-popular”, nem por isso era possível desconsiderar um dado
importante que passava a interferir decisivamente no sistema de produção e
consumo de canções, peças teatrais e filmes. O fato dessas produções se
realizarem, principalmente, a partir de demandas advindas de setores
24
“O fato de [Eles não usam black-tie] constituir uma obra artística, cujos méritos inegáveis foram
reconhecidos imediatamente, foi compensado com um sucesso de público inusitado para o teatrinho da
[rua] Teodoro Bayma. Seus 150 lugares permaneceram lotados durante um ano, compensação financeira
extremamente afortunada para uma companhia que pensava fechar as portas.” (MOSTAÇO, 1988: 36)
47
localizados na classe média, particularmente, universitária, quanto às questões
e problemas referentes ao engajamento e à realidade nacional, potencializados
após o golpe de 1964.
25
No entanto, o problema referente à divulgação da arte engajada e a
ampliação de seu público remete ao final dos anos 50 e início da década
seguinte. Pois foi entre 1959 e 1960, quando parte considerável dos artistas
vinculados ao Teatro Arena decidiu imprimir maior ritmo à difusão de suas
peças, excursionando pelo Rio de Janeiro para a apresentação de Eles não
usam black tie, Chapetuba F.C. e Gente como a Gente, que esse grupo
engendrou uma proposta voltada para a formação de um público não somente
mais amplo, como, também, mais “popular”:
“Sob a liderança de Oduvaldo Vianna Filho e, contando com o apoio de Flávio
Migliaccio, Chico Assis, Vera Gertel, Nelson Xavier e Milton Gonçalves, acaba-
se propondo, no Rio, à época da excursão de 1960, a criação de um elenco
que percorresse sindicatos, escolas, favelas e organizações de bairro, com o
intuito de levar à população que não frequentava os teatros do centro os
espetáculos montados pelo Arena. […] A partir da nuclearização formada para
organizar e preparar […] espetáculos num circuito universitário e popular,
aprofundam-se as necessidades de uma central para a produção de uma
cultura específica destinada à difusão da propaganda política. A idéia é bem
recebida pelos estudantes e, organizados sob a tutela da UNE e do ISEB, é
fundado o Centro Popular de Cultura.” (MOSTAÇO, 1988: 57)
Ou seja, desde o seu germe inicial, o CPC já se constituía como uma
organização atenta às questões relacionadas ao engajamento e à função social
da arte, com projetos voltados para a ampla difusão das criações culturais,
buscando, assim, diminuir a ponte entre as obras engajadas e os seus
receptores, os intelectuais e o povo brasileiro.
25
Este apontamento não implica homogeneizar o público que tinha contato e acesso a essas criações
culturais, mas reconhecer a constituição de um importante grupo que, contrário aos rumos tomados após o
golpe, passava a acompanhar com maior proximidade a ação e posicionamento dos artistas frente à
situação que se delineava no pós-64. Pois, conforme aponta Miliandre Garcia de Souza (2002: 64), grande
parte da produção historiográfica, ao analisar a atuação do CPC, somente identificou como destinatário de
suas obras o “povo brasileiro”, deixando de reconhecer que suas políticas culturais também se
direcionavam para a formação de uma intelectualidade engajada no campo artístico.
48
A articulação orgânica entre teatro e música, no intuito de alcançar uma
parcela de público cada vez maior e promover uma profusão generalizada de
seus conteúdos ideológicos, não encontraria a sua primeira versão no CPC,
mas exatamente em seus escombros.
Em abril de 1964, logo após o golpe, a UNE, além de ter o seu prédio
sede no Rio de Janeiro incendiado por paramilitares, passava, juntamente com
o CPC, para a ilegalidade. Apesar do desmantelamento oficial, os agentes
ligados a essas organizações – estudantes, artistas e intelectuais –,
encontraram a saída para a atuação no final desse ano, com a fundação do
Grupo Opinião. Através do espetáculo homônimo, o grupo formado por
Vianinha, Paulo Pontes, Armando Costa e Ferreira Gullar, entre outros,
apresentaria em dezembro de 1964 o Show Opinião.
26
Apontado como a primeira ação da esquerda brasileira no campo
cultural contra a ditadura militar, o Show Opinião redimensionaria o “fazer
teatral” ao articular a linguagem musical à performance teatral, de forma que a
primeira não fosse mais utilizada como “pano de fundo” da peça, mas como
instrumento a potencializar o processo de comunicação entre palco e platéia,
portanto, eixo catalisador no movimento de divulgação das idéias engajadas.
Desse modo, esse espetáculo, que contava com a participação de João
do Vale, um cancioneiro do nordeste, Zé Kéti, um sambista do morro carioca, e
Nara Leão, ex-musa da Bossa Nova, com texto de Vianinha, Paulo Pontes e
Armando Costa, sob direção de Augusto Boal e direção musical de Dori
Caymmi, além de se tornar um marco fundamental para as peças que,
posteriormente, conjugaram à performance teatral a nascente MPB, contribuía
diretamente para que a última construísse um novo espaço de atuação, o
teatro, que juntamente com a televisão catalisariam o processo de ampliação
de seu público.
Assim, a proposta de fortalecimento dos laços comunicativos entre
artistas e público encontrava, por meio da música, uma linguagem que tomava
um caminho fluído, de forma que o “conteúdo ideológico” a expressar fosse
26
Entretanto, há que se destacar um dado importante. A realização desse espetáculo só foi possível
devido ao auxilio prestado pela equipe do Teatro de Arena, pois, em dezembro de 1964, o Grupo Opinião
não possuía regularização para a atuação.
49
veiculado de forma cada vez mais direcionada para com os objetivos
almejados.
27
Apropriando-se de referências estéticas e ideológicas que orientavam as
produções cepecistas, o Show Opinião, a partir da participação desses três
personagens, reforçava o projeto de aproximação entre artistas de classe
média e as camadas populares, concebido através da incorporação de um
repertório musical “popular”,
28
visto que:
“Em Opinião, através de canções, de depoimentos feitos em cena pelos
intérpretes, procura-se construir um painel da realidade brasileira urbana e
rural, do Norte e do Sul, orientando sempre para a denúncia de problemas
sociais e para o aproveitamento de formas populares de expressão musical,
tais como os versos de partido alto e os desafios.” (CAMPOS, 1988: 8)
Reforçada a proposta de aproximação através da arte, no pós-64, entre
setores engajados da classe média e as classes populares, ainda assim,
permanecem fragmentos das idéias que haviam conduzido ao naufrágio da
esquerda brasileira em 1964.
Protagonizado por um cancioneiro do nordeste, um sambista do morro e
com interpretações de uma cantora que tinha o seu “berço” localizado na
classe média, o espetáculo voltado para a denúncia dos diferentes problemas
que se perfilavam na sociedade brasileira, entre eles, o próprio golpe, ainda
projetava metaforicamente, em seu palco, determinados elementos que
orientaram a organização da Frente Única, evidenciados tanto na articulação
27
“A música popular é um dos mais amplos modos de comunicação que o próprio povo criou, para que as
pessoas contassem umas às outras, cantando, suas experiências, suas alegrias e tristezas. É fato que, na
maioria dos casos, êsses sentimentos se referem a situações individuais, a que os compositores
conseguem dar amplitude. Mas existem outros problemas, outras tristezas e outras alegrias, não menos
profundas e não menos ligadas à vida de todo dia. E os compositores, como Zé Kéti, João do Vale ou
Sérgio Ricardo, entre outros, falam dessas coisas. Êles revelam que, além do amor e da saudade, pode o
samba cantar a solidariedade, a vontade de uma vida nova, a paz e a liberdade. E quem sabe se, cantando
essas canções, talvez possamos tornar mais vivos na alma do povo idéias e sentimentos que o ajudem a
encontrar, na dura vida o seu melhor caminho.” Texto de Nara Leão para a contra capa do LP Opinião de
Nara, de 1965. Philips, P 632.732L.
28
Cabe ressaltar que no conjunto de canções selecionadas para compor a peça constam "Borandá", canção
de autoria de Edu Lobo, e “De manhã”, de autoria de Caetano Veloso.
50
das personagens que compunham o trio, como nas proposições veiculadas
pelo espetáculo.
29
Apesar disso, a importância do espetáculo não pode ser menosprezada
ou inferiorizada por esses fatores, uma vez que se apresentou como uma
alternativa para o processo de ampliação de público do teatro, ao incorporar a
MPB e estabelecer uma nova dinâmica comunicativa entre palco e platéia,
procurando repensar, ainda que de forma ambígua, as questões relacionadas
ao engajamento, após o golpe.
Em 1º de maio de 1965, estreava em São Paulo, no Teatro de Arena,
um espetáculo que superaria todas as marcas anteriores de público. Com texto
assinado por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri e com composições de
Edu Lobo, a peça “Arena conta Zumbi” demarcaria uma nova posição frente ao
golpe de 1964. Incorporando algumas das propostas encaminhadas pelo Show
Opinião, como a associação entre a MPB e a performance teatral, vale
destacar que essa peça apresentaria novas respostas para os impasses
aflorados após o golpe.
O mote para o esquadrinhamento da peça se deu através da
apresentação para Guarnieri de uma canção de Edu Lobo, composta em
parceria com Vinícius de Moraes, “Zambi no Açoite”, que definiria o eixo
temático desse espetáculo. Segundo Edu lobo:
“Quando eu vim [para São Paulo], o musical não estava estruturado, era só a
idéia de uma peça em que a música seria minha. O Guarnieri tinha umas idéias
a respeito de um romance que ele queria transpor para o teatro (eu tinha feito
uma canção com Vinícius sobre a estória de Zumbi dos Palmares) e […] surgiu
então a idéia de se fazer a partir desse tema que já estava pronto e se prestava
ao movimento político da época. Daí […] surgiu o Arena Conta Zumbi com
todas as músicas criadas para a peça.” (MELLO: 1976: 126)
29
Embora o golpe tenha desmantelado o quadro de idéias estruturantes da Frente Única, nota-se ainda,
num dos principais grupos de resistência à ditadura, a permanência de alguns princípios que se
coadunavam com as estratégias utilizadas no pré-64. As proposições de unidade e integração nacionais,
que acompanhavam o projeto para uma revolução democrático-burguesa no Brasil, se estampavam no
texto-programa do espetáculo, ao passo que, na canção “Sina de Caboclo” (João do Valle e J.B. de
Aquino), que compõe o espetáculo, é possível identificar uma sutil referência à aliança de classes. A
respeito da proposta de engajamento encaminhada através do Show Opinião, Mostaço (1988: 79) afirma:
“A práxis cultural da pretendida revolução fechava-se assim, em inteiro acordo e dentro de um
acomodamento exemplar na estratégia preconizada pelo PCB a nível político e tático […].”
51
Retratando o processo de resistência contra a escravidão, constituído
através da construção do Quilombo de Palmares no século XVII, a peça
buscava rememorar as lutas sociais estabelecidas entre negros – escravos e
ex-escravos – e brancos – proprietários fundiários e comerciantes –, com o
intuito de “saudar” a organização e a força daqueles que se empenharam em
prol da liberdade.
Entretanto, o espetáculo não se limitava à representação dos conflitos
gerados em torno de Palmares, mas ampliava o seu raio de espacialidade e
temporalidade, de modo a dialogar com as questões que explodiram a partir de
1º de abril de 1964. Com base nisto, Arena conta Zumbi:
“[…] é carregada de paródias a discursos oficiais da época ou alusões a
acontecimentos tais como as ‘marchas-com-deus-e-a-família’, rosários
erguidos contra a ameaça comunista. Por todo o texto semeiam-se expressões
como ‘exterminar a subversão’, ‘infiltração’, ‘perigo negro’ (leia-se vermelho).
Pormenores – a grande alusão está no destacar-se o momento em que os
negros começam a perder a guerra: a prosperidade de Palmares atraíra a
atenção dos ‘brancos comerciantes’ que lhe[s] fornecem armas em troca de
levarem, a preço vil, os produtos dos quilombos. Confiantes na produção desse
‘aliado’ os negros deixam de comprar armas (afinal, só desejam a paz) e
ousam aumentar o preço de suas mercadorias. Feridos nos interesses mais
‘sensíveis’, os brancos comerciantes aliam-se aos senhores de terra na furiosa
escalada repressiva.” (CAMPOS, 1981: 12)
Ou seja, se o resgate do sentido de liberdade que permeava as ações
dos escravos se apresentava como parte dos objetivos da peça, ao mesmo
tempo, não se deve desconsiderar que o roteiro também tinha por finalidade
expor as razões que levaram ao aniquilamento do Quilombo, sobretudo a
aliança estabelecida entre os negros quilombolas e os comerciantes brancos.
Desta forma, a derrota da esquerda brasileira em 1964 recebia a sua
versão teatral a partir do desmembramento de Palmares. Pois, se o último,
segundo a peça, havia derrocado por conta de uma vil aliança – com os
comerciantes brancos – aquela também confiara num aliado – o setor
supostamente progressista da burguesia nacional – que, mais adiante, se
revelaria ausente, porém decisivo para o golpe de 1964.
52
Tendo por procedimento de representação teatral o sistema coringa, no
qual há um revezamento constante entre os artistas para a encenação das
diferentes personagens, revelando esse recurso uma intensa versatilidade por
parte dos atores, a encenação de Arena Conta Zumbi evidenciava, entretanto,
uma dinâmica dual na representação de suas personagens, em que a lógica
entre “bem” e “mal” adquiria uma transposição para a definição, respectiva, de
negros e brancos. Elemento também expresso em sua trilha musical, já que:
“[…] Nenhuma das belas composições de Edu Lobo serve à construção do
mundo dos brancos. Do lado dos oprimidos estão os gêneros musicais mais
populares e brasileiros, aqueles que se tomam por autênticos e em cuja
execução transparecem a sinceridade e a emoção. Na representação dos
brancos entram dois tipos de efeito musical: o hino paródico, através do qual
revelam seu pensamento, como a canção dos “brancos comerciantes”, ou o ié,
ié, ié, que se dança na cena da “conquista da opinião pública” e que tem o
duplo efeito de aludir ao entorpecimento da referida opinião e de desmentir a
solenidade dos propósitos enunciados pelos brancos.” (CAMPOS, 1981: 86-87)
Assim, a música de Edu Lobo se canalizava para o despertamento da
percepção e dos sentimentos do público em relação às agruras que habitavam
o passado e o presente da história brasileira, assim como para a definição do
universo cultural do grupo social que representava o seu vínculo com o
processo de luta contra a opressão.
Ao incorporar sambas e batuques para a composição das canções do
espetáculo, Edu Lobo promovia uma interação entre gêneros e ritmos afro-
brasileiros, com o intuito de construir uma musicalidade que se relacionasse de
forma autêntica com aqueles que eram projetados como os “verdadeiros
sujeitos” da peça, a fim de que a identificação da platéia com estes renovasse
a conscientização sobre a necessidade da luta pela liberdade no presente.
Giafrancesco Guarnieri, ao comentar a função que a música de Edu
Lobo cumpria no espetáculo, sublinhava exatamente essa integração entre
autenticidade cultural e engajamento como fator de atualização e
enriquecimento musical da peça: “Edu é negrão […] a música dêle é música de
53
hoje, mas não tem nada de quadradinha. É música cheia de tradição,
expressão autêntica de uma classe que é a nossa.” (JB, 21/05/1965: 3)
Novamente uma peça se utilizava das potencialidades da canção para
mediar o processo de comunicação entre palco e platéia, a fim de didatizar os
seus conteúdos e objetivos. Desta forma, a canção tinha por função introduzir o
público no universo a ser retratado pela peça, dinamizando as possibilidades
de relação desse com o circuito de idéias que orientavam o espetáculo.
Através desses recursos, o espetáculo direcionava o seu eixo para a
relação passado/presente, a fim de abrir novas perspectivas para a situação
atual, a começar pela própria denúncia do golpe e das alianças vitais que o
estruturaram.
30
No diálogo entre passado e presente, Arena Conta Zumbi não
somente defendia uma opinião, mas colocava a condição de liberdade como
norte de ação daqueles que se engajavam na realização do espetáculo.
A música, mais uma vez, apertaria os laços entre palco e público e
selaria a relação entre teatro e música como uma das mais significativas
experiências para a gestação de novos espaços de resistência e contestação
ao golpe.
31
2.2. Música e Cinema
Este processo de diálogo e interação cultural também receberia as suas
contribuições por parte do cinema. No entanto, para a compreensão do raio de
difusão atingido por este, deve-se levar em consideração as particularidades da
produção cinematográfica brasileira no período. Pois, como já havia sido
apontado anteriormente, entre as três áreas de expressão artística de maior
divulgação no Brasil, o cinema, após 1965, ocupava uma posição subordinada
30
Com base nesses pressupostos, a tese principal do espetáculo era sublinhada em seu texto de
apresentação: “O Arena conta a história prá você ouvir gostoso / quem gosta nos dê a mão e quem não
tem outro gozo / história de gente negra, da luta pela razão / que se parece ao presente pela verdade em
questão / pois se trata de uma luta, muito linda na verdade / Que luta é essa? É luta que vence os tempos,
luta pela liberdade.” In: Lp “Arena Conta Zumbi”, RGE. 320.6021-A, 1989. [1968]
31
O impacto causado por Opinião e Zumbi já atingia ressonância significativa a ponto despertar a atenção
não somente do público de esquerda, mas também dos órgãos da censura. Conforme nota publicada:
“Censura funcionou ativamente em São Paulo, cortando os espetáculos Opinião e Arena Conta Zumbi.
Em Opinião, ao que parece, foi eliminada a expressão “camponesa de Guantánamo”. (JB, 21/05/1965: 9)
54
em relação à música e ao teatro. Haja vista que o Cinema Novo, ao trabalhar
com uma narrativa não-linear, articulada a um complexo quadro de
representações acerca dos diferentes grupos e sujeitos que compunham um
Brasil contraditório, se distanciava progressivamente de uma linguagem
simples ou didática. Com isso:
“O choque entre a linguagem moderna e a representação do arcaico, [uma vez]
costuradas por uma cinematografia que demandava um espectador atento e
formado, tinha alguns vícios. As sutilezas e meandros das narrativas e o
caráter alegórico dos personagens nem sempre eram bem resolvidos, em
função de um certo descuido, intencional na maioria dos casos, na roteirização
do argumento e na direção de atores (marcas do cinema brasileiro desde
então), relegados em prol da “idéia” e da “palavra”, substratos privilegiados da
composição filmica do Cinema Novo. Esses vícios, em certa medida, ajudaram
no processo de fechamento do público, pois apostavam num produto artesanal
que ia na contramão da industrialização crescente do cinema.” (NAPOLITANO,
2001: 12-13)
Apesar dessa estrutura específica configurada pelo Cinema Novo, deve-
se ressaltar que as questões referentes à realidade nacional e ao engajamento
também tangenciavam o foco de suas produções
32
, todavia, singularizadas por
expressões e representações – metafóricas, alegóricas e caóticas - nem
sempre de fácil assimilação. Outro dado importante que se integrava à
linguagem do cinema novo era a incorporação da incipiente MPB em suas
gravações.
Irineu Guerrini Júnior, em sua tese de doutorado “A música no cinema
brasileiro dos anos sessenta: inovação e diálogo”, aponta que, até a década de
50 no Brasil, a elaboração da trilha sonora de parte significativa das produções
cinematográficas se baseava na contratação de orquestras e de diversos
músicos. Fenômeno que, durante a década de 60, sob os “ares” das
32
Em relação às obras cinematográficas que refletiram de forma mais direta os dilemas, no pós-golpe, em
torno da realidade brasileira e as condições para o engajamento, ver: “O Desafio” de Paulo César
Saraceni, 1965 e “Terra em Transe” de Glauber Rocha, 1967.
55
proposições vicejadas pelo Cinema Novo, seria revisto e equacionado de forma
distinta daquela.
33
Se num primeiro momento as orquestras atendiam as necessidades e
demandas advindas da composição da estrutura musical dos filmes brasileiros,
num segundo momento, seja pela falta de recursos, seja pelas orientações de
ordem estética e ideológica, o Cinema Novo passava a utilizar o trabalho de
compositores e pequenos grupos, geralmente envolvidos com o circuito cultural
engajado naquele momento, para expressar de forma mais extensa as idéias
que encaminhavam as suas premissas ideológicas.
A síntese dessa articulação talvez encontre a sua expressão máxima em
1965, com a produção de “O Desafio”, de Paulo César Saraceni. Esse filme ao
abordar as ressonâncias da crise social instalada no país, após o golpe, sobre
os conflitos vivenciados por um casal – Ada e Marcelo –, tem o núcleo do seu
círculo de idéias traçado de forma orgânica com a trilha musical que o compõe.
Assim:
“A presença da MPB na própria estruturação de O Desafio e sua
documentação do momento (1965) traz, de modo sintomático, um tipo de
inserção da música brasileira no debate político que será [posteriormente]
ironizado pela Tropicália em 1967/68, movimento cuja concepção política da
produção musical implica o abandono dos rituais do humanismo nacional-
popular.” (XAVIER, 1993: 17)
Ao produzir um filme no qual há um íntimo diálogo com o quadro de
idéias e criações colocadas pela incipiente MPB, Paulo César Saraceni não se
absteve de integrar, no conjunto da obra, tanto canções de compositores que
estavam transitando pela arena cultural engajada, quanto canções de dois dos
33
Irineu Guerrini indica que: “Conversando com Nelson [Pereira do Santos], ele estava lembrando isso e
quando fez Rio 40 graus e depois Rio Zona Norte foram o Radamés e o Alexandre Gnatalli que fizeram
as músicas e ele disse pois é, naquele tempo [até a década de 50] a gente tinha condições de ter uma
orquestra tocando para gravar a música do filme. Mas depois, me parece que não só […] as coisas vão se
conjugando, não só por falta de recursos que enfim, é uma marca desse cinema dos anos 60, mas também
por questões estéticas, ideológicas, há um emagrecimento da trilha musical. Então, nos anos 60, não tem
mais uma grande orquestra tocando, tem ou uns poucos músicos ou então um músico só como foi o caso
do Sérgio Ricardo fazendo a música para Deus e o Diabo [na Terra do Sol] ou então se usam fonogramas.
Entrevista realizada por Irineu Guerrini Júnior em 17/10/01, disponibilizada em anexo em sua tese de
doutorado: “A música no cinema brasileiro dos anos sessenta: inovação e diálogo.” Tese de Doutorado,
ECA/USP, São Paulo, 2002.
56
principais eventos – o Show Opinião e Arena Conta Zumbi
34
– que haviam
articulado os vínculos entre a MPB e o teatro.
Vale ressaltar que não somente as canções tratam de situar o universo
no qual se inserem as personagens de O Desafio, mas determinados trechos
gravados do Show Opinião são incorporados ao próprio filme, tornando-o ainda
mais realista frente à atmosfera na qual se buscava a imersão e
problematização.
Os conflitos ganhariam maior definição no final dessa década sobre o
“uso da canção”, com vistas ao engajamento e à transmissão de uma
determinada “mensagem”, são sutilmente explanados nesse filme, de forma a
sublinhar as tensões que já perfilavam esse universo, bem como o debate que
se tornava cada vez mais presente sobre as possibilidades e caminhos a se
seguir na música popular brasileira.
As distensões entre os pólos, que defendiam ou criticavam o “uso da
canção” para o protesto e o engajamento, se traduzem de forma latente numa
das passagens desse filme, na qual Marcelo discute com um amigo numa
mesa de bar, sobre o sentido para o qual se encaminhava a música popular
brasileira naquele momento. O amigo de Marcelo entoa: “Vocês estão usando
a música popular num sentido completamente errado, ela pode dá mais do que
ela é…, ópio do povo”; Marcelo retruca: “E no entanto é preciso cantar e
alegrar a cidade”
35
; o amigo desse encerra de modo visceral: “Bobagem, o que
precisa é espalhar o pessimismo, o sentido trágico das coisas, prá que as
pessoas criem vergonha na cara e se tornem fortes”.
Apesar de o amigo de Marcelo inicialmente apontar a sua crítica para o
uso instrumental da canção, com vistas a transmitir uma mensagem, tornando-
a “ópio do povo”, num segundo momento, aquele, para além de qualquer
comentário voltado para a defesa da forma em detrimento do conteúdo,
arrebatava o debate afirmando a necessidade de se atingir um sentido ainda
mais trágico e pessimista na canção. Ou seja, enquanto para um o didatismo
34
Dentre as canções selecionadas para esse filme constam: “Carcará” (João do Vale e José Cândido) e
“Notícia de Jornal” (Zé Kéti) que faziam parte do Show Opinião e “Eu vivo num tempo de guerra” (Edu
Lobo e Gianfranscesco Guarnieri) de Arena Conta Zumbi. Além disso, integravam este filme: “De
manhã” (Caetano Veloso), “Arrastão” (Edu Lobo e Vinicius de Moraes), “A minha desventura” (Carlos
Lyra e Vinicius de Moraes).
35
Essa frase refere-se a um trecho da canção “Marcha da quarta-feira de cinzas” (Carlos Lyra e Vinicius
de Moraes) que, por sua vez, integrava o Show Opinião.
57
político seria o norte para alinhar o processo de criação e interação com o
público, para o outro, somente uma proposta mais agressiva poderia
encaminhar a radicalização desse processo.
36
Observando agora as palavras de Cacá Diegues, que também integrava
o grupo de cineastas envolvidos com o movimento de idéias em torno do
Cinema Novo, verifica-se a importância que esse agente social atribuía à
função que a música passava a desempenhar no interior das proposições do
novo grupo:
“Quer dizer, um momento imediatamente anterior ao Cinema novo e que chega
a conviver com o Cinema Novo, você tem uma tradição de Guerra Peixe, que
fazia muita música para o cinema, Radamés Gnatalli, que também fazia muita
música para cinema, mas que era uma coisa meio tradicional, de sublinhar a
narração. Já o Cinema Novo, mesmo quando a música tem um caráter
sinfônico, orquestral, ela é muito mais detonadora de um universo cultural a
que aquele filme pertence do que propriamente um suplemento de narração.
Eu acho que essa é a grande diferença. E eu diria que, de certo modo, a gente
deixa de fazer a música que corresponde à imagem e passa a fazer a música
que corresponde aos sentimentos do personagem ou até mesmo às idéias do
autor. […ou seja] eu não estou somente sublinhando o que esta sendo visto,
mas estou tentando dizer alguma coisa sobre o universo cultural e político
naquele momento, que tinha uma importância muito grande.
37
Nas palavras de Cacá Diegues é possível localizar um elemento que ele
identificava como particularizador do Cinema Novo em relação à música, se
comparado ao cinema produzido anteriormente, qual seja, o uso específico e
integrado da música à composição fílmica. Conforme Diegues, a trilha musical,
ao invés de se situar como “pano de fundo” desta, passava a compor a
estrutura dos filmes produzidos pela geração cinema-novista, de modo não
somente a traduzir os sentimentos e aspirações dos agentes em cena, mas,
36
Procedimento que adiante seria incorporado e re-elaborado pelas criações do grupo tropicalista, para a
construção de uma crítica corrosiva, que tinha por função denunciar os paradigmas da esquerda brasileira.
37
Entrevista concedida por Cacá Diegues a Irineu Guerrini Júnior, disponibilizado em anexo, em sua tese
de doutorado: “A música no cinema brasileiro dos anos sessenta: inovação e diálogo”. Tese de
Doutorado, ECA/USP, São Paulo, 2002.
58
também, a cumprir uma função voltada para caracterização do meio e das
condições sociais em que se situavam as personagens.
Em se tratando de um agente que teve ligação direta com a formação do
grupo denominado Cinema Novo, é evidente que esse ator social apontaria
elementos que distinguem radicalmente as produções cinema-novistas do
passado da cinematografia brasileira, no qual as “chanchadas” tiveram papel
predominante. O próprio nome do “novo movimento” já tratava de resolver essa
questão.
Contudo, não se trata aqui de identificar qual foi o primeiro grupo a
utilizar a música com a função de sublinhar ou analisar o contexto abordado
pelo filme, mas de reconhecer que entre os ideólogos ligados ao Cinema Novo
a música, para além de uma função descritiva, passava a ser compreendida
como uma linguagem que implementaria o processo de difusão de idéias,
definindo, ao mesmo tempo, o universo das personagens de um determinado
filme e tangenciando a caracterização da realidade brasileira e de seus
problemas sociais.
Tendo em vista as idéias propostas pelo manifesto “Estética da Fome”,
escrito por Glauber Rocha em 1965, que aglutinaria um conjunto de princípios
nodais na constituição da expressão estética e ideológica do Cinema Novo,
constatam-se duas questões que orientam esse manifesto e abrem a
possibilidade de entendimento do movimento de inserção da MPB nas trilhas
do Cinema Novo.
Inicialmente, nesse manifesto, Glauber Rocha situa a fome como
elemento definidor e imanente às contradições que permeiam a sociedade
brasileira e latino-americana, para apontar que a originalidade do Cinema Novo
perante o cinema mundial reside exatamente no fato de sua criatividade
germinar dessa tensão:
“A fome latina [...] não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua
própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do
cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que
esta fome, sendo sentida, não é compreendida.” (ROCHA, 1978: 16)
59
Desse modo, se o Cinema Novo é resultante de uma forma de
organização societária que tem na fome a sua base, aquele define a sua
originalidade a partir da apropriação criativa dos caracteres emergidos dessa
situação. De outro modo, o Cinema Novo funda a sua singularidade por meio
da transformação criativa da precariedade, portanto, das condições e mazelas
da qual é produto.
De acordo com essas proposições, a MPB incorporada às criações do
Cinema Novo respondia a duas demandas latentes vivenciadas por seus
cineastas, já que apresentava um custo menor e atendia aos princípios de uma
produção “artesanal”, diante do distanciamento da indústria do cinema, e, ao
mesmo tempo, dilatava as possibilidades de explanação das idéias e das
questões que compunham os seus filmes.
Quanto à opção estética e ideológica feita pelo Cinema Novo e seus
agentes em relação à incorporação da MPB, junto ao deslocamento das
grandes orquestras e compositores “eruditos”, Jorge de Freitas Antunes acena
para mais um fator que teria favorecido a aproximação entre a MPB e o
Cinema Novo. Em artigo intitulado “Nosso cinema, nossa música”, Antunes
indica que a presença e afirmação do cosmopolitismo na vanguarda musical
“erudita” brasileira na década de 60, formada especificamente ao redor do
grupo Música Nova,
38
haveria contribuído decisivamente para o seu
distanciamento em relação à produção de trilhas sonoras para o Cinema
Novo.
39
“Desta forma verifica-se que as vanguardas musicais brasileiras dos anos 30,
40 e 50 estiveram presentes no cinema brasileiro da época, mas nossa nova
música erudita não foi convocada pelo novo cinema dos anos 60 e 70. Em
outras palavras: […] Almeida Prado, Willy Corrêa de Oliveira, Gilberto Mendes,
Edino Krieger, Marlos Nobre e outros foram alijados do compromisso assumido
38
Grupo formado por um conjunto de músicos e maestros que buscavam, por meio de uma proposta
contemporânea, cosmopolita e de um diálogo com a música concreta, eletrônica e aleatória, se distanciar
de uma plataforma musical de cunho nacionalista. Consta entre os integrantes que assinaram, em 1963, o
Manifesto Música Nova: Damiano Cozzela, Willy Corrêa, Rogério e Regis Duprat, Júlio Medaglia,
Gilberto Mendes, Sandino Hohagen e Alexandre Páscoa.
39
Antunes aponta que: “Dentre as centenas de realizações cinematográficas dos anos 60, vamos encontrar
apenas dois casos de aproximação entre o “nosso cinema” e a “nossa música erudita”: Noite Vazia
(1964)
de Walter Hugo Khoury, com a música de Rogério Duprat (que começava a embrenhar-se na música
popular, abandonando a erudita) e A Derrota
(1966), de Mário Fiorani, com música de Esther Scliar.”
(ANTUNES, 1980: 163)
60
pela geração Glauber Rocha, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Rogério Sganzerla,
Maurice Capovilla. O mais surpreendente é que este compromisso era o
mesmo daquela contemporânea geração de músicos: compromisso com o
mundo contemporâneo, aliado à atitude crítica da realidade brasileira na sua
forma anímica, social e cultural.” (ANTUNES, 1980: 163)
Se por um lado, o cosmopolitismo se constituiu num dos fatores de
alijamento dos maestros e arranjadores que buscavam afirmar um projeto de
vanguarda, por outro lado, os compositores que estavam afinados com
princípios estéticos em consonância com o caráter nacional obtiveram um lugar
diferenciado na produção fílmica do Cinema Novo.
Luiz Antônio Afonso Giani, em seu estudo sobre a música de protesto na
década de 60, acena para a participação de diversos compositores “eruditos”
de orientação nacionalista, como Guerra Peixe, Radamés Gnatalli, Camargo
Guarnieri, Lindolfo Gaya, Geni Marcondes e Haeckel Tavares, no processo de
composição de trilhas musicais para o Cinema Novo e na realização de “[…]
uma parcela significativa dos ‘arranjos’ e orquestrações para as músicas de
protestos lançadas em filme e disco” e reconhece que “[…] é extremamente
significativo que Villa-Lobos (1887-1959) tenha sido o compositor com maior
número de obras incluídas nas trilhas musicais do Cinema Novo.” (GIANI,
1986: 127)
Articulada com determinados parâmetros estabelecidos pela Escola
Musical Nacionalista, junto ao seu direcionamento para com a questão e
temática nacional-popular, somado ao seu baixo custo, se comparado à
contratação de orquestras e diversos músicos, a MPB e seus compositores
selariam assim um posicionamento de destaque no conjunto das obras
produzidas pelo Cinema Novo.
Assim, ao introduzir as canções de compositores ligados à atmosfera de
debates centrada no engajamento e na formação de uma cultura nacional-
popular, nucleada em torno da MPB, o Cinema Novo encampava um pólo
dinâmico e ativo nas discussões que se debruçavam sobre os problemas que
afetavam o campo cultural e a realidade nacional.
A MPB, de outro lado, ao encontrar no cinema um novo espaço de
atuação, não somente criava mais um circuito para a sua divulgação, mas
61
gestava uma importante experiência de interação entre as diferentes
linguagens artísticas, que, além de criativa, produzia uma sintonização das
diversas áreas de expressão cultural com a problematização das questões
latentes à sociedade brasileira.
62
II - EDU LOBO E CAETANO VELOSO: PONTEANDO IDÉIAS,
ORGANIZANDO PROPOSTAS
1. Edu Lobo, idéias em debate
Feito esse vôo panorâmico sobre as ações e projetos desenvolvidos no
interior do campo musical brasileiro, como também em diálogo com este, cabe
agora analisar o modo específico de inserção das propostas de intervenção
cultural de Edu Lobo e Caetano Veloso, em meio aos debates que buscavam
pensar o engajamento político do artista e um caminho de atualização para a
música popular brasileira.
Esse processo, não por acaso, estava sendo acompanhado por uma
importante transformação que começava a se configurar em torno da música
popular brasileira e abria novas possibilidades para os grupos que se
despertavam musicalmente após a “explosão” da Bossa Nova, haja vista que:
“Por volta de 1965, houve uma redefinição do que se entendia como Música
Popular Brasileira, aglutinando uma série de tendências e estilos musicais que
tinham em comum a vontade de “atualizar” a expressão musical do país,
fundindo elementos tradicionais a técnicas e estilos inspirados na bossa nova,
surgida em 1959” (NAPOLITANO, 2001: 12)
Essa conformação musical resultante da vontade de “atualizar” a
expressão musical do país, fundindo elementos tradicionais a técnicas e estilos
inspirados na bossa nova, associada a um ideário nacional-popular engajado,
talvez seja a expressão maior que inscreve a definição da sigla MPB neste
momento, assim como sintetiza os traços estruturadores das criações iniciais
de Edu Lobo.
Apesar de ser carioca, Edu Lobo é filho de uma família pernambucana,
fator que teria grande relevância em sua formação musical. O trânsito
incessante, durante a adolescência, entre o Rio de Janeiro e Recife permitiu-
lhe uma aproximação com os gêneros musicais produzidos no Nordeste, os
quais lhe propiciariam uma base de “escutas musicais” que, posteriormente,
63
seriam fundidas ao aprendizado harmônico proporcionado pelo contato com o
grupo bossa-novista.
40
Não obstante, as primeiras composições de Edu Lobo caminhavam num
sentido diferente daquele colocado pela primeira geração bossa-novista, ao
adquirir maior proximidade com as proposições colocadas pela ala nacionalista
e com personagens de outras dimensões da arena cultural engajada. Edu
Lobo, ao comentar sobre o caminho percorrido para compor as suas primeiras
canções, sublinha estas transformações, afirmando que:
“[…] uma maneira de eu fazer alguma coisa que não fosse repetir o que estava
sendo feito, foi misturar essa informação que eu tinha de música nordestina
com toda a escola harmônica que eu tinha aprendido na bossa nova. E a minha
música começou a se desenvolver dessa maneira. Acho que foi uma saída
para ter uma assinatura, para ter uma característica própria. […] Eu acho que
concorreu então essa lembrança toda das músicas [da adolescência], das
canções, dos frevos… [e] Eu comecei a fazer frevos e baiões, o que não era
comum na época. Existiu um primeiro movimento da bossa nova que era mais
ortodoxo, que não permitia muitas coisas. Tinha aquela coisa: era bossa nova e
tinha que ser aquilo. O Sérgio Ricardo, o Carlinhos Lyra e o Baden [Powell]
foram três pessoas que começaram a procurar outros caminhos. O Carlinhos
começou a fazer samba de morro, a misturar, a conhecer os compositores mais
de perto. O Baden, com Vinícius, partiu para os afro-sambas […] E começaram
a perceber que o Brasil não é só Rio de Janeiro. (in: NAVES, 2004: 224)
Desse modo, se o discurso poético-musical na gênese da Bossa Nova
engendrava uma unidade entre as representações da vida urbana carioca e a
possibilidade de construção de um “novo país”, agora, aquele passava a
receber um tratamento diferenciado, a partir da “nova safra” de atores sociais
que entrava para a cena musical. Tratamento que, ao integrar elementos e
materiais musicais de origens diversas, passaria a ser acompanhado por letras
40
Conhecimento que se aprimorou tanto pelas “reuniões de apartamento” organizadas pelo grupo bossa-
novista, quanto pelas aulas oferecidas na Academia de Violão no Rio de Janeiro por Roberto Menescal e
Carlos Lyra, nas quais a aproximação com o último se revelou decisiva para a canalização de suas idéias,
composições e consequentemente, para a sua carreira musical.
64
que retratavam outros espaços e sujeitos, deslocando progressivamente o Rio
de Janeiro de sua posição de centralidade no interior das canções.
41
Não por coincidência, quando questionado sobre como iniciou o
movimento de formação da MPB, Edu Lobo não titubeou e apontou que o
nascimento desta se originou “Com dois compositores: Baden Powell, fazendo
“Berimbau”, uma aproximação com a Bahia, e o Carlos Lyra, que fazia uma
samba ligado ao morro. Eles tiraram um ranço elitista da bossa nova.” (GIRON,
29/10/1990: E-1)
Longe de pretender elencar quais seriam “os primeiros e legítimos”
representantes da nascente MPB, importa aqui destacar que essa escolha de
Edu Lobo não se realiza pela mera amizade com Baden Powell e Carlos Lyra,
mas se define a partir de idéias e critérios específicos. Pois, se o primeiro
buscava novas formas de composição, ao realizar uma fusão entre as
harmonias bossa-novistas e os ritmos afro-baianos, o segundo, por sua vez,
incorporava às suas preocupações engajadas uma aproximação com a
tradição musical popular e brasileira, através do contato com o samba de
morro.
Integradas e sistematizadas, essas referências formariam uma espécie
de tríade fundamental, balizadora das propostas e criações musicais de Edu
Lobo neste período, expressa pela síntese entre o conhecimento harmônico
legado pela Bossa Nova e a releitura de elementos rítmicos e melódicos
presentes em gêneros populares, acondicionados a uma perspectiva engajada
que acompanharia de forma destacada as primeiras composições de Edu
Lobo.
42
A síntese realizada por Baden Powell, em parceria com Vinícius de
Moraes, na produção dos afros-sambas e, especialmente, na composição de
“Berimbau”, na qual não somente a estrutura harmônica, mas a linha rítmico-
41
Quanto à relação estabelecida entre as canções da primeira geração bossa-novista e as representações
em torno do espaço urbano e sociabilidade cariocas, ver o estudo de PEREIRA, Simone Luci. A bossa
nova é sal, é sol, é sul. Dissertação de Mestrado – PUC/SP, São Paulo, 1996.
42
A articulação concebida por Edu Lobo pelos compositores acima mencionados, entre pesquisa de
ritmos populares e engajamento no plano da canção, também pode ser identificada no trabalho
desenvolvido por Geraldo Vandré, que além das pesquisas sobre moda de viola do centro-sul do país, se
voltou para a musicalidade presente no nordeste brasileiro, indicando que: “Se insisto na temática do
Nordeste é por que vejo na nordestinidade a maior fôrça de resistência nacional […] O mérito reside
justamente em que vejo no Nordeste o esteio fundamental da nacionalidade.” (O CRUZEIRO,
09/09/1967: 43)
65
melódica também recebia maior elaboração, seria um dos elementos que mais
despertariam a atenção de Edu Lobo para com o sentido alcançado pelo
trabalho desse compositor.
43
A aproximação de Edu Lobo com Carlos Lyra, sem dúvida, se coadunou
de maneira decisiva para a construção das referências que norteariam as suas
propostas e criações musicais. Em relação à influência de Carlos Lyra sobre as
suas produções e, consequentemente, na definição de seu posicionamento
ideológico perante a música e a realidade brasileiras, Edu Lobo, em entrevista,
em 1967, deixou evidente o grau de importância que este compositor teve em
sua trajetória: “Eu ia muito à casa do Carlinhos [Lyra], um cara que foi
fundamental para a minha música e em relação às coisas que penso hoje em
dia.” (MANCHETE, 25/11/1967: 58)
Deve-se enfatizar que Carlos Lyra, além de ser um dos principais
artistas engajados de esquerda no pré-1964, também atuou como importante
mediador cultural no interior desse cenário. Os seus trabalhos desenvolvidos
no interior do CPC, associados à produção musical que se espraiava do
cinema ao teatro, agregavam um rol de atuações que lhe atestavam uma
posição de destaque frente à ala nacionalista da Bossa Nova e às outras áreas
de expressão cultural.
Como Carlos Lyra deixou o país em 1964 rumo ao desenvolvimento de
sua carreira musical no exterior, optando por aquilo que denominou de auto-
exílio, paralelamente, havia mediado uma série de contatos com artistas de
diversas áreas do circuito cultural engajado, criando para Edu Lobo uma base
de relações que se tornariam fundamentais para o decolar de sua carreira na
década de 60.
Por conta disso, antes de gravar o seu primeiro disco, Edu Lobo já havia
composto algumas canções que circulariam pelo teatro engajado. As canções
“Borandá” e “Chegança”, que, posteriormente, integrariam o seu primeiro LP,
44
43
Em 11/03/2007, em show realizado Sesc Vila Mariana - SP, Edu Lobo, ao comentar a influência de
Baden Powell sobre as suas composições, declarou que havia selecionado para essa apresentação a canção
“Berimbau” (Baden Powell e Vinícius de Moraes), pois foi a partir do contato com ela que aprendeu a
“tocar violão”.
44
LP A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Elenco: ME-19, 1965.
66
faziam parte, respectivamente, da trilha musical do “Show Opinião” e da peça
“Os Azeredos mais os Benevides”.
45
No que tange à relação com os dados da tradição musical brasileira e
com as novas informações colocadas pela Bossa Nova, Edu Lobo procurava
uma solução que encontrasse um ponto médio de fusão e diálogo entre estas,
a fim de equacionar as questões que haviam tensionado o ambiente musical
brasileiro desde o surgimento da bossa nova.
De acordo com Edu Lobo, a forma encontrada para responder ao
impasse entre tradição e modernidade, foi concebida a partir do contato com
artistas de outras áreas de expressão cultural, inclusive com o crítico musical
Flávio de Macedo Soares: “[…] que me fêz ver que o melhor caminho para a
minha música estava na sincronização do velho – as raízes nacionais e sua
problemática – com o novo estilo a bossa nova”. (MANCHETE, 02/10/1965: 14)
Essa articulação entre o histórico e musicalmente “velho” com o “novo”
tornar-se-ia uma tônica na obra inicial de Edu Lobo, através da conjugação em
suas canções de materiais musicais “tradicionais” e técnicas de composição
“modernas” – aspecto que será analisado no item um do terceiro capítulo.
Nesse espectro, tradição musical popular e Bossa Nova deixavam de ser
colocadas em pólos contrapostos para, agora, se situarem como elementos
complementares, tanto no processo de formulação das idéias e projetos de Edu
Lobo, como no interior do movimento de composição de suas canções.
Entre as diversas personagens que colaboraram para o
encaminhamento tomado pelas criações musicais de Edu Lobo, há que se
destacar, também, a participação de Vinícius de Moraes como importante
mediador cultural
46
e parceiro com o qual compôs as suas primeiras canções,
dentre as quais, a canção vencedora do primeiro Festival de Música Popular
realizado pela TV Excelsior, “Arrastão”.
45
Entretanto, a última peça, de autoria de Vianinha, não chegou a ser apresentada pelo fato de o teatro do
CPC ter sido incendiado após o golpe, em 1964. Ambas as canções se voltam para o retrato do processo
de constante trânsito pelo Brasil, vivenciado pelos retirantes, nas quais as questões relacionadas à seca,
miséria e migração são matizadas a partir da memória e consciência desses agentes.
46
De acordo com Edu Lobo: “Através do Vinícius conheci o Baden e o Lyra, que na minha fase inicial
tiveram uma participação muito grande no sentido de orientação no que eu estava fazendo. Através do
Lyra tive um contato com o Vianna [Vianinha] e comecei a musicar uma peça chamada Os Azeredos
mais os Benevides, que não foi levada por que o teatro foi queimado. […] Depois, acompanhei bastante o
trabalho do Baden e, ao mesmo tempo do pessoal da minha geração […]” (MELLO, 1976: 118)
67
Ademais, se, por um lado, Vinícius de Moraes não era o protótipo
perfeito do artista engajado, por outro, havia se envolvido com inúmeras
iniciativas do CPC, inclusive com Carlos Lyra. Possuía trânsito fluente “[…]
entre as duas margens [da bossa nova] e passava de uma a outra com a maior
desenvoltura.” (CASTRO, 2001: 356)
Vale ainda ressaltar a importância de mais um agente que interferiu de
forma direta para o delineamento estético e ideológico do trabalho artístico
desenvolvido por Edu Lobo, a saber, a parceria com o cineasta moçambicano
Rui Guerra, que contribuiu de modo extremamente significativo com a
elaboração de diversas letras para as suas composições. Conforme relata Edu
Lobo:
“[Foi] A partir do trabalho com Rui Guerra, [que] minha música começou a
procurar caminhos mais afros, começou a ser mais enraizada
, mais
preocupada com [o] folclore, mas sem ser aquela linha radical de só o que é
folclore é nacional. Não era exatamente elaborar temas folclóricos, mas era
uma música feita com características mais regionalista
, mais ritmadas, mais
fortes. A letra menos melosa, mais dura, mas ao mesmo tempo mais eficaz […]
Foi o trabalho com Rui, com as letras que ele me apresentava, que me
sugeriram esse trabalho […]” (grifos nossos) (in: MELLO, 1976: 125)
O depoimento de Edu Lobo enfatiza um importante ponto que permeia a
sua produção musical, qual seja, o fato de compor a maior parte de suas
canções por meio de parcerias. Embora Edu Lobo seja essencialmente um
compositor, portanto, envolvido com o processo de organização do código
sonoro, faz-se necessário grafar que o conteúdo presente nas letras de suas
canções esteve distante de se realizar de maneira aleatória e casual, pois a
escolha de seus parceiros sempre se delineou de maneira direcionada, de
acordo com as demandas poéticas e musicais colocadas por suas idéias e
criações.
47
A partir dos termos destacados, logo se percebe que Edu Lobo indica
elementos específicos que deram contornos singulares às suas produções. A
47
Segundo Edu Lobo: “[…] Não sou letrista, mas fico muito envolvido com o processo de letra, dou
palpite porque eu sei mais ou menos algumas coisas que eu quero, como sonoridade das palavras e tal.
Quer dizer, eu não sou desligado desse troço, não […]” (MOREIRA, 28/07/1979: s/p)
68
lente do artista se voltava para a cultura e tradição musical popular – folclore –,
a fim de sondar outros ritmos que não somente aqueles presentes no espaço
urbano, articulando uma letra que, expressando essa realidade regional, como
também nacional, se encaminhava de forma menos melosa e mais dura para
defini-la.
Outro aspecto essencial é que Edu Lobo não tomava o contato com o
folclore, como matriz única para as suas composições, já que esse
procedimento implicaria excluir outras influências que integravam o seu
trabalho, sobretudo aquelas advindas da Bossa Nova. Com isso, a relação com
o material folclórico não se traduzia em mera exortação deste, uma vez que
este tratamento redundaria em exotizá-lo, mas representava a sua
incorporação como fonte e lastro para a pesquisa das diversas condicionantes
culturais populares que teciam regionalmente a enorme colcha chamada Brasil.
No entanto, a relação de aproximação com o material folclórico, em
grande parte buscada nos ritmos regionais do nordeste brasileiro, esteve longe
de se realizar de maneira harmoniosa e pacífica para Edu Lobo. O compositor
recebeu inúmeras críticas, inclusive de amigos, devido ao fato de suas canções
não somente explorarem temas folclóricos, mas se direcionarem,
concomitantemente, para questões como: seca, migração e miséria:
“Havia muitas críticas a mim particularmente, o carioca que faz música do
nordeste: ‘Não tem sentido, quem usa calça Lee não pode falar coisas assim.’
Se você for pensar assim, um trabalho de Villa-Lobos em relação a coisas do
nordeste, seria jogado no lixo pelo simples fato dele não ter nascido no norte. A
função do artista é mostrar a sua visão do mundo e não é preciso que ele
passe fome para falar da fome.” (in: MELLO, 1976: 212)
Caetano Veloso, ao comentar sobre essa questão, que, naquele
momento, matizava o trabalho de diferentes compositores, também concordava
com a possibilidade de se abordar a temática que envolvia os problemas
sociais deflagrados no nordeste brasileiro tecendo, por um caminho diferente,
uma reflexão semelhante à de Edu Lobo:
69
“Há artistas brasileiros que falam da seca e da fome no nordeste e nunca
estiveram lá. Mas em primeiro lugar, é preciso saber o seguinte: se o que eles
escolheram como tema, foi realmente a sensação pessoal de fome por ter
vivido numa região seca e subdesenvolvida, ou se foi o esteriótipo desse
assunto. Porque também o esteriótipo é um tema. Acho que nos 2 casos o cara
pode fazer uma coisa boa. O fato de não ter passado fome no nordeste não diz
necessariamente que esse assunto não seja da vivência do autor. O cara pode
ser carioca ou paulista ou do Rio Grande do Sul, e querer falar do nordeste
porque isso o preocupa.” (sic) (MELLO, 1976: 212-12)
Contudo, em meio às diferentes críticas recebidas por Edu Lobo, uma
merece destaque exatamente por seu caráter de resposta a esse
posicionamento tomado por Edu Lobo. Trata-se da canção composta pelos
irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle intitulada “Resposta”.
48
Em sua letra,
encaminha-se uma atitude de ironia e desprezo para com os grupos que
identificavam nos ritmos populares e nos problemas sociais brasileiros, o
substrato para a canção engajada:
“Se alguém disser que teu samba não tem mais valor / Porque ele é feito
somente de paz e amor / Não ligue não, que essa gente não sabe o que diz
[…] O samba bom é aquele que o povo cantar / De fome basta a que o povo
na vida já tem / Pra que lhe fazer cantar isso também? // Mas é que é tempo de
ser diferente / E essa gente / Não quer mais saber / De amor. // Falar de terra
na areia do Arpoador / Quem pelo pobre na vida não faz um favor / Falar de
morro morando de frente pro mar / Não vai fazer ninguém melhorar.”
49
Não obstante, a ação de ataque àqueles que encontravam nas
condições de seca e miséria a bandeira para a elaboração de suas canções
não se limitaria às dissonâncias produzidas pela canção dos irmãos Valle, pois
a referida atitude iria adquirir organicidade a partir do espetáculo “Reação”, que
em seu título já definia a sua intenção e posicionamento diante das
48
Vale ressaltar que Edu Lobo e Marcos Valle já se conheciam desde a adolescência, aliás, antes de se
profissionalizarem no início dos anos 60, ambos formaram um trio vocal com Dori Caymmi.
49
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias da bossa nova. 3º ed. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2001, p.357. Castro afirma que após a composição dessa canção, “[…] segundo Marcos [Valle],
eles sofreram represálias: Edu Lobo e outros velhos amigos passaram algum tempo sem falar com eles.”
70
intervenções realizadas pela ala engajada e nacionalista, junto aos caminhos
tomados pela música popular brasileira nos últimos anos.
Contrapondo-se, fundamentalmente, às propostas empenhadas por
“Opinião” e “Arena conta Zumbi”, o espetáculo “Reação”, com direção de
Roberto Jorge e participação do Trio 3D, formado por Marcos Valle, Chico
Feitosa e Luisa, iniciava a sua “tarefa” poucas semanas após a estréia da peça
paulistana que matizava as questões em torno do Quilombo de Palmares e da
realidade nacional no pós-1964. Frente a esse cenário, a “Reação”:
“Utiliza trechos de declarações registradas nos jornais e flagrantes e de outros
shows, e seu objetivo, segundo [o] diretor, é demonstrar a improdutividade de
certas paixões de minoria (sic) espalhadas em shows como Opinião, o próprio
Liberdade, Liberdade e Zumbi [...] Segundo o diretor [...] o seu musical é
autêntico na medida em que desenvolve um espetáculo com liberdade
absoluta, evitando qualquer tipo de politização da música e procurando atingir
um espetáculo de arte inteiramente sem política.” (JB, 23/05/1965: 8)
Porém, além de não produzir as ressonâncias adquiridas pelos
espetáculos que haviam consagrado o teatro enquanto pólo ativo no processo
de constituição da MPB, a “Reação”, ao contrário, reforçava-os. De acordo com
o crítico teatral Yan Michalski:
“[…] Ora, é evidente que, se não fosse o sucesso alcançado recentemente por
Opinião, os intérpretes desta infantil Reação jamais teriam acesso a um palco,
pois não possuem ainda, obviamente, as mais elementares noções de show-
business que justifiquem a sua exibição num teatro. Mas a ética e a autocrítica
não parecem ser os pontos fortes dos jovens de a Reação: êles existem graças
a Opinião, mas só existem para atacar Opinião, sempre de uma maneira
gratuita e primária, e freqüentemente com grosseria, que eles parecem
confundir com ironia. (JB, 27/05/1965: 2)
Diante dessas condições, fica expressa a formação de um grupo que, no
bojo do processo de gestação da MPB, buscou através de uma proposta
fragmentária e apolítica criticar as referências que, naquele momento,
engendravam o estatuto da MPB. Além disso, “A Reposta” e “Reação”
71
evidenciam a primeira tentativa de questionamento ao grupo que tinha na
releitura da tradição musical popular e no engajamento através da canção o
norte para o processo de atualização da música popular brasileira.
Situado o cenário no qual se estampavam as incipientes idéias de Edu
Lobo, cabe agora analisar como estas se colocavam diante dos debates que,
impulsionariam as discussões em torno do processo de atualização da música
popular brasileira e forneceriam as referências centrais para a afirmação do
projeto de intervenção cultural desse artista.
Conforme apresentado no item um do primeiro capítulo, as
preocupações com o processo de atualização da música popular brasileira já
se faziam presentes desde o início da década de sessenta, quando a ala
nacionalista da Bossa Nova passava a avaliar as conquistas formais da bossa,
e seu “distanciamento” em relação à tradição musical brasileira e aos
problemas que afetavam a realidade nacional.
Não obstante, seria a partir de 1965 que essas discussões tomariam
maior sistematização e delineariam um quadro mais amplo de propostas para
superar estes impasses. Já que, em março deste ano, a Revista Civilização
Brasileira
50
– RCB – nascia como um novo centro de debate intelectual, ao criar
um importante espaço para entrevistas e debates, voltados para a reflexão
sobre os caminhos que se encaminhavam a música popular brasileira.
Com as primeiras páginas editadas em março de 1965, a RCB lançava
em seu primeiro número um artigo de Nelson Lins e Barros, intitulado “Música
Popular – Novas Tendências”, no qual, o autor, novamente, destacava o papel
desempenhado pela corrente nacionalista da Bossa Nova e, como o próprio
título sugere, acenava para a formação de um grupo que, ao estreitar os seus
laços com a tradição musical popular e com uma proposta engajada, atingia o
seu ápice com o Show Opinião.
51
50
Com circulação entre 1965 e 1968, a Revista Civilização Brasileira contava com um conjunto
expressivo de intelectuais, com perspectivas teóricas e analíticas diversas, que tinham em comum a
oposição ao golpe de 1964. Através de seus artigos e ensaios, dedicava atenção privilegiada para a análise
da realidade brasileira em seus diferentes aspectos, concedendo expressivo espaço para debates sobre as
áreas de literatura, cinema, teatro e música.
51
Nas palavras de Barros ficam evidentes a valorização das referências que dariam organicidade à MPB:
“A partir de 1964, a integração entre a bossa nova nacionalista – ou outro nome que tenha ou venha a ter
– com as tradicionais músicas brasileiras e com os vários setores artísticos nacionais tem se firmado cada
vez mais em tôrno de uma cultura popular nacionalista e participante contra tôda música nacional e
estrangeira de baixo nível comercial e se distanciando cada vez mais da bossa nova ortodoxa que, embora
de bom nível, procure suas soluções fora de nossas bases culturais autênticas.” (BARROS, 1965: 236)
72
Perante esse quadro no qual se evidenciam os germes nucleares da
MPB, Barros encerrava o seu artigo indicando os novos agentes e a gama de
elementos que constituíam a base fundamental de irradiação da “nova
tendência”:
“Nesse caminho estão compositores da antiga e da nova geração, da bossa
nova e da velha guarda, do teatro e do cinema, das praias e do morro, das
cidades e do sertão. Dessa integração não resultará, certamente, uma música
uniforme, com as mesmas características culturais para tôdas as classes que
representa. Mas, com o inevitável processo de interação, inclusive com a boa
música de outras tendências, surgirá, sem dúvida, uma música popular de
maior nível cultural e artístico, onde os artistas […] trocarão técnica e tradição,
lirismo e epopéia, amor e protesto, forma e conteúdo.” (BARROS, 1965: 237)
A aglutinação dessas referências, para além da diversidade musical e
cultural que expressava, representava para Barros a resolução do impasse
entre forma e conteúdo que assolava a música popular brasileira e
acompanhava os seus artigos desde o início da década de 60. Agregando
técnica e tradição, lirismo e epopéia, amor e protesto, ou na integração de
elementos da Bossa Nova à tradição musical popular, do lirismo subjetivo à
epopéia universalista, dos sentimentos amorosos ao protesto contra os
problemas sociais, o novo panorama musical ao apresentar novas tendências,
distante de ser uniforme, sintetizava os traços que forjariam a base de
delimitação estética e ideológica da MPB.
Em seu terceiro número, de julho de 1965, a Revista Civilização
Brasileira convidava dois compositores, Edu Lobo e Luis Carlos Vinhas, e um
crítico musical, José Ramos Tinhorão, para uma entrevista que propunha três
pontos para o debate: situação atual – ou impasse – na música popular
brasileira, música participante e autenticidade. Edu Lobo, ao apontar os
critérios que deveriam orientar os artistas brasileiros, com o intuito de que as
proposições destes assumissem uma perspectiva participante ou engajada,
apresentava uma citação de Mário de Andrade e fazia das palavras do
intelectual modernista a sua posição:
73
“O período atual do Brasil, especialmente nas artes, é o de nacionalização.
Estamos procurando conformar a produção surgida no País com a realidade
nacional. O critério atual de música brasileira deve ser não filosófico, mas
social, deve ser um critério de combate. Todo artista brasileiro que no momento
atual fizer arte brasileira é um ser eficiente como valor humano. O que fizer arte
internacionalizante ou estrangeira, se não for gênio é um inútil, um nulo. E é
uma reverendíssima besta.” (in: COUTINHO, 1965: 311)
Segundo Edu Lobo, urgia nesse momento a necessidade de se
sintonizar o conjunto das manifestações artísticas com a realidade nacional e
social. Além disso, essas manifestações deveriam estar em consonância com
uma postura de combate, ou seja, voltadas para o engajamento. Os artistas
brasileiros teriam dentro do leque de opções, a possibilidade de elaborar uma
arte internacionalizante, entretanto, a sua advertência logo expressava as
tensões que provinham desse posicionamento e evidenciavam uma pequena
faceta do latente processo que acompanhava os debates acerca da “infiltração”
de informações da música internacional no celeiro musical brasileiro.
Esse ponto, contudo, receberia maior explanação em outro trecho desta
entrevista, no qual Edu Lobo, a partir das considerações sobre as infinitas e
intermináveis discussões em torno da autenticidade ou não da Bossa Nova, em
relação à tradição musical brasileira, situa a questão da abertura do espaço
musical brasileiro às influências estrangeiras. Novamente, Edu Lobo apoiaria o
seu pensamento nas teses de Mário de Andrade relativas à defesa de um
modo específico de contato com o dado externo:
“Lembrando as influências iniciais do jazz [junto à bossa nova] cabe aqui uma
citação de Mário de Andrade. “A reação contra o que é estrangeiro deve ser
feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dêle, não pela repulsa.
O artista não deve ser exclusivista, nem unilateral. O compositor brasileiro tem
que se basear quer como documentação, quer como inspiração no folclore.”
(in: COUTINHO, 1965: 309)
52
52
Ambas as citações feitas por Edu Lobo, apoiadas no pensamento musical de Mário de Andrade, tem por
referência a obra Ensaio sobre a música brasileira de 1928.
74
Em consonância com as colocações que já havia feito sobre o sentido
inicial tomado por suas criações, quando indicou que a sua música começou a
ser mais enraizada, mais preocupada com folclore, Edu Lobo, novamente,
reiterava a importância de o compositor se basear no “folclore”, seja como fonte
de inspiração para a construção de uma musicalidade nacional, seja enquanto
fonte documental que, por meio da pesquisa, gera a possibilidade de
compreensão dos caracteres culturais que compõem a brasilidade.
Quanto à relação a ser estabelecida com as influências estrangeiras,
Edu Lobo, ciente de que estas interferiam historicamente no processo de
formação de diferentes gêneros musicais brasileiros, adotava uma posição
aberta frente à apropriação de ingredientes da música internacional para a
composição de uma musicalidade nacional. No entanto, as referências internas
deveriam ocupar uma posição de centralidade no interior do processo de
criação musical.
Para aquele que se consagrou como o principal crítico da Bossa Nova, o
sociólogo e crítico musical José Ramos Tinhorão, também entrevistado pela
Revista Civilização Brasileira, a questão do engajamento através da música
não passava de uma falácia, pois:
“O problema da chamada participação se prende a um desejo de fugir da
alienação representada pelo fenômeno de importação do jazz. A fuga se daria
pela letra das composições. Isto é, diante da aberração que consiste em
descobrir que se estava falando musicalmente de temas universais, [porém]
com sotaque americano, o que a chamada participação pretende é falar
nacionalisticamente de temas nacionais, mas sem perder o sotaque. Noutras
palavras, só há participação na letra da composição, mas e a música que não é
nossa?” (in: COUTINHO, 1965: 312)
De acordo com as colocações de Tinhorão, as propostas de
engajamento do artista por meio da canção seriam inócuas, já que somente se
definiam por meio das letras e não através da estrutura musical das canções.
Portanto, para Tinhorão, não havia necessidade de se tratar da questão da
autenticidade na música popular brasileira atual, mas exatamente de seu
contrário:
75
“A inautenticidade na música popular brasileira está na preocupação
consciente em assimilar e incorporar à produção musical ritmos, estilos e
harmonias de músicas estrangeiras. Nesse ponto é preciso que se diga que a
música popular brasileira sempre sofreu influência estrangeira. A valsa, a polca
os schoties (lê-se chotes), por exemplo, são todos gêneros de música
estrangeira. Mas a maneira pela qual os velhos conjuntos de choros as
tocavam acabou lhes dando um acento brasileiro.” (in: COUTINHO, 1965: 312)
Embora Tinhorão reconhecesse o acento peculiarmente brasileiro dado
pelos velhos conjuntos de choro às influências externas, ao mesmo tempo o
crítico musical deixava de seguir a sua própria linha de pensamento, pois não
apontava a Bossa Nova como gênero singular da produção musical brasileira,
uma vez que também dera acento particular à fusão entre elementos advindos
da tradição musical brasileira e da música internacional, sobretudo, do jazz e
da música impressionista.
Novamente, os debates em torno da atualização da música popular
brasileira se dicotomizavam entre as noções de autenticidade e inautenticidade
cultural. A polarização acabava por fixar em pontos antitéticos formas de
criação musical que estavam em interação, cristalizando no seio dos debates
um posicionamento refratário em relação às propostas que, naquele momento,
processavam um diálogo entre tradição e modernidade.
A distinção apontada por Tinhorão sobre a “autenticidade nacional” dos
velhos conjuntos de choro frente às influências externas, que não se assentava
no caminho tomado pela Bossa Nova e, posteriormente, pela MPB, prescrevia-
se, para o referido autor, pelo fato de ambos os núcleos musicais haverem sido
gestados por setores de uma nova classe média que, através do processo de
industrialização e urbanização, catalisados com colorações mais acentuadas
durante o governo J.K., se distanciavam economicamente das camadas
populares, refletindo-se o fenômeno numa aproximação cada vez mais intensa
dessas camadas sociais com os gêneros internacionais e no desvio
progressivo das fontes tradicionais da música popular.
Seria a partir dessa análise que Tinhorão grafaria as suas principais
críticas em torno da Bossa Nova e da MPB, ao apontar a relação de ambas
76
com os dados da música internacional como fator de deturpação da genuína
cultura popular e da tradição musical brasileira.
As formulações vicejadas por esse ideário ampliavam o seu diapasão
teórico alçando o samba e o morro ao patamar de redutos culturais e espaciais
da autenticidade musical brasileira, ao caracterizar as suas propriedades como,
supostamente, “puras”, logo, “não deturpadas” pelo mercado musical ou por
modas internacionais. Assim, suas formas e conteúdos adquiriam condições
legítimas de autenticidade cultural.
Com um posicionamento distanciado em relação ao pólo do debate
representado por Tinhorão, que, contrário ao processo de abertura da música
brasileira às demais influências, defendia a “preservação” e “proteção” dos
atributos autênticos da música popular brasileira, Edu Lobo tecia as seguintes
considerações:
“Em primeiro lugar eu sou contra o rótulo. Quando se chama de autêntico só o
samba, comete-se um equívoco. Dizer que bossa nova sofreu influência do
jazz como fator negativo, chega a ser cômico porque então seria preciso
lembrar que o samba tem influência africana e chegaríamos ao caos, sem
encontrar nenhuma música autêntica. Por que dizer que um é autêntico e outro
não? […] Hoje em dia de qualquer modo o samba deve ser considerado mais
como fonte. Esta é a visão do futuro. Os que querem o samba sempre igual
não passam de conservadores derrotados de saída.” (in: COUTINHO, 1965:
312)
Com essas palavras que encerravam a entrevista/debate realizada pela
Revista Civilização Brasileira, Edu Lobo concluía a sua exposição acenando
para um caminho de atualização da música popular brasileira em que as
referências internas deveriam ocupar uma posição de centralidade na
conformação de uma musicalidade nacional. No entanto, essa atitude não
implicava rejeitar as influências externas, mas incorporá-las através de um
“filtro” que as re-elaborava em sintonia com a realidade nacional.
O samba, apesar de não se constituir como o principal objeto do trabalho
artístico de Edu Lobo, a partir dessa perspectiva, passava a ser valorizado, não
como totem a ser reverenciado como símbolo puro e intocável da brasilidade,
77
mas como fonte de pesquisa e inspiração para a construção da musicalidade
brasileira.
Demarcados os traços que davam contornos às idéias e projetos de Edu
Lobo para a música e realidade brasileiras, apresenta-se agora como questão
pensar o modo como essas referências eram sintetizadas, em sua proposta de
engajamento através da canção. Pois, como o próprio Edu Lobo salientava:
“Nenhum artista vive um só momento da vida sem refletir no que faz o seu
julgamento das coisas; a obra de arte é, essencialmente, como o próprio
homem, uma obra política.” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 29/08/1965: s/p)
Dentro dessa perspectiva, a obra de arte deveria assumir através de seu
conteúdo e forma as próprias condições da existência humana, incorporando
portanto as suas principais questões e problemas e se realizando enquanto
ação política frente à realidade. Com base nisso, Edu Lobo afirmava: “Em
todas as músicas deve haver uma preocupação política por parte do
compositor, [...] tudo numa música – mesmo a que fala das coisas mais simples
como o amor, o céu e o mar – deve retratar a época em que surgiu.” (O
JORNAL, 20/08/1967: s/p)
Assim, para Edu Lobo, todo e qualquer tema poderia ser abordado em
sua particularidade pela canção, por meio de um posicionamento político do
artista, que teceria os vínculos entre o universo da produção artística e as
relações sociais:
“Uma canção de amor é sempre política, [apenas] depende da maneira com
que seja colocada. Todos os atos humanos são políticos. A canção de amor
pode ser muito mais política se for feita com convicção e não para atender um
modismo da época.” (MELLO, 1976: 205)
Preocupado em estruturar uma proposta de criação musical que não se
concebesse de maneira superficial e panfletária, Edu Lobo procurava em suas
canções mediar a importância das dimensões poética e musical e, num plano
mais geral, entre forma e conteúdo, com o intuito de definir um posicionamento
engajado que não se realizasse como mera atitude de protesto. A partir disso,
Edu Lobo tentava fazer uma distinção entre música de protesto e música de
reivindicação, a fim definir a sua escolha e postura como artista:
78
“É preciso não confundir música de protesto com música de reivindicação, pois
há grande diferença entre elas. O protesto apresenta um aspecto agressivo e
sua letra fere, agride, ao passo que o outro tipo apenas mostra o problema,
conscientiza.” (O JORNAL, 20/08/1967: s/p)
Apesar de buscar um meio para diferenciá-los, em grande parte, os
termos música de protesto e música de reivindicação apresentavam poucas
distinções, já que ambos clamam por uma demanda social não contemplada. O
elemento que mais desperta a atenção, frente aos comentários tecidos por Edu
Lobo, se revela exatamente no fato de eleger não a agressividade, mas a
conscientização, como procedimento para encaminhar o processo de criação
artística. Ou seja, o artista deveria buscar na catarse o fundamento para o
encaminhamento do processo de comunicação com o público e,
consequentemente, de sua conscientização, ao invés de incitá-lo por meio de
uma prática agressiva. Retomando a questão anterior, haveria então meios
para se criar uma obra musical engajada e não panfletária? Segundo Edu
Lobo:
“Sim, desde que a letra não seja considerada a parte mais importante deixando
a música em segundo plano, como é o caso de Bob Dylan, dos Estados
Unidos, que faz do acompanhamento apenas um fundo musical para as suas
letras. Ele é, então, um ótimo cantor de protesto, mas um mau músico.” (O
JORNAL, 20/08/1967: s/p)
Desta forma, Edu Lobo frisava a necessidade de uma intervenção de
cunho didático, como meio para a elaboração de uma proposta catártica e
conscientizadora. No entanto, ao mesmo tempo, ressaltava a importância vital
da integração das estruturas poética e musical, de modo que a canção não se
simplificasse ou se subordinasse à letra.
“Penso que a função de qualquer tipo de arte é didática, sempre. O que
acontece é que a gente não pode chegar jamais a um raciocínio assim: “Não,
essa música é complicada demais para o povo, vou simplificá-la.” Se faço isso,
estou me anulando. Você pode e deve combinar as duas coisas: que a música
seja harmônica e que possa pegar o pessoal mais facilmente e, ao mesmo
79
tempo, seja simples. Uma coisa é a música ser simples e pobre; outra é ser
simples e boa. […] A música tem que ficar no assovio do povo, mas com muita
coisa e muito estudo por trás.” (MANCHETE, 25/11/1967: 61)
Utilizando esta base de referências, Edu Lobo definia parâmetros
específicos para sintetizar a questão do engajamento através de suas canções,
sem deixar de cruzar elementos musicais diversos, que remetiam a princípios
rítmicos, melódicos e harmônicos de gêneros musicais populares e
cosmopolitas – os quais serão analisados no próximo capítulo.
Com isso, Edu Lobo sintetizou informações distintas que acenavam para
um caminho singular de atualização musical, distanciando-se,
progressivamente, de um paradigma da canção de protesto, definido, em
grande parte, pela letra que veicula uma “mensagem”, sem, contudo, deixar de
se engajar por meio da canção.
2. Caetano Veloso, à procura de idéias
Antes de analisar as propostas e intervenções culturais configuradas por
Caetano Veloso entre 1965 e 1968, faz-se necessário sondar parte da
experiência gestada por esse agente no período anterior à sua ida para o
sudeste, ou seja, quando ainda estava situado nos limites da vida cultural
baiana. O significado dessa experiência pode ser observado de maneira mais
detalha em uma entrevista concedida por Caetano Veloso, em 1975, a Luís
Carlos Maciel. Ao ser questionado sobre a origem das inquietações que haviam
engendrado o tropicalismo e se essas provinham da Bahia ou se foram
codificadas no sudeste, Caetano respondeu:
“[…] eu posso responder as duas. É claro que se você está inquieto é porque
você já vem inquieto, já é, desde Santo Amaro. Mas mesmo as preocupações
básicas que geraram o tropicalismo e que deram impulso para batalhar aquela
transação naquela época, já estavam em mim na Bahia. Eu tenho não só
memória disso, muito clara, como tenho material. Tenho um artigo meu, da
80
Bahia, na Revista Ângulos, de antes de eu vir pro Rio. Você lê aquilo e já vê
tudo. Em 65 já escrevi aquele negócio e você vê que em 65 a inquietação já
estava toda ali. Agora, o contato com o meio mais profissionalizado, aqui e em
São Paulo, sem dúvida acelerou e esclareceu vários pontos e confirmou uma
série de dúvidas – “Confirmou uma série de dúvidas” é uma frase interessante
– e acentuou muita das preocupações e tornou urgente certas exigências.
Então a vinda pra foi um dado concreto que teve influência. (Correio do
Povo, 28/08/1975, s/p)
O depoimento de Caetano Veloso, associado às conclusões trazidas
pelo trabalho de pesquisa efetuado por Antônio Risério,
53
fornece relevantes
subsídios para se pensar o processo de formação das referências que
orientariam a trajetória e as criações desse artista.
Risério, em sua obra Avant-Garde na Bahia, apresenta uma interessante
análise sobre a vida cultural em Salvador entre as décadas de 50 e 60,
centrando o seu foco na sociabilidade artística e acadêmica articulada ao redor
da Universidade da Bahia. O autor identifica na figura de seu reitor, Edgar dos
Santos, um personagem essencial para a construção de projetos voltados para
a integração de atividades universitárias junto à comunidade local, assim como,
para a contratação de pesquisadores e profissionais estrangeiros.
Nesse processo, Risério destaca que a fundação do Centro de Estudos
Afro-Orientais, sob direção do antropólogo português Agostinho dos Santos, a
publicação de revistas acadêmicas, entre as quais, a própria Revista Ângulos,
e o financiamento da ida para Salvador de artistas considerados de vanguarda,
tal como a dançarina polonesa Yanka Rudska, o músico alemão Hans Joaquin
Koellreutter e a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, foram ações imprescindíveis
para a estruturação de um espaço de diálogo entre as esferas
“local/cosmopolita” e “popular/erudita”.
54
Com isso, Risério não pretende
53
RISÉRIO, Antonio. Avant-Garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e p. m. Bardi, 1994.
54
Essa interlocução produzida pela Universidade da Bahia entre diferentes esferas culturais é apontada
por Risério a partir da incorporação do candomblé aos trabalhos do grupo de dança coordenado por
Yanka Rudska, da realização dos Seminários Livres de Música por Hans Joaquim Koellreutter, do qual
Tom Zé fora aluno, do envolvimento de Lina Bo Bardi com os projetos de construção do Museu de Arte
Moderna da Bahia e, posteriormente, com o prédio sede do grupo Olodum. As atividades cineclubistas de
Walter da Silveira e os trabalhos de Martim Gonçalves junto à Escola de Teatro da Bahia, além de
enriquecerem o processo de difusão cultural na capital baiana, ainda teriam sedimentado a formação do
principal ideólogo do Cinema Novo, a saber, Glauber Rocha.
81
afirmar que em “solo baiano” já estavam determinados os fatores que
resultariam no surgimento posterior do Tropicalismo e do Cinema Novo, pois:
“A existência das bases antropológica e institucional e a realidade de uma
juventude inquieta, num regime democrático, não produziram,
necessariamente, o Cinema Novo e a Tropicália. [Mas] O conjunto de
circunstâncias encontráveis na Bahia, naquela época, configurava um quadro
que potencialmente, teria como gerar criações estético-culturais sincréticas,
colocadas sob o signo da invenção […assim como] criou uma teia
informacional em cujo espaço se criaram jovens que, por sua formação e
desempenho, aliando espírito de combate e intelleto d´amore, produziram
modificações notáveis no espaço estético-intelectual brasileiro, deixando
marcas visíveis (e, provavelmente, invisíveis) no corpo cultural do país.”
(RISÉRIO, 1994: 144)
Mesmo o contato com referências musicais que, naquele momento,
estavam em evidência, como, por exemplo, o jazz, mas que não ocuparam
papel de centralidade na obra de Caetano Veloso, já fazia parte do processo de
“escuta musical” desse artista quando estava situado no espaço soteropolitano.
Conforme Caetano: “O contato direto mesmo [com o jazz] eu vim ter […] em
1960 quando fui para Salvador e ouvi discos de cantores e músicos.” (MELLO:
1976: 191)
As condições cristalizadas nesse ambiente também foram propícias para
o conhecimento e aproximação de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria
Bethânia, Gal Costa e Tom Zé, que, embora tenham consolidado as suas
trajetórias profissionais no eixo Rio-São Paulo, já organizavam shows em
Salvador.
55
Outro dado importante que tomaria os seus primeiros contornos na
Bahia, mas que se adensaria no transcorrer da trajetória de Caetano pelo
sudeste, seria a questão do engajamento através da canção. A questão da arte
engajada e a sua relação direta com partidos e organizações de esquerda,
desde a passagem de Caetano por Salvador, já suscitava um certo
55
Em 1964, este grupo apresentou no Teatro Vila Velha os espetáculos: “Nós, por exemplo” e “Nova
bossa velha, velha bossa nova”, nos quais, se buscava expor um painel sobre as caminhos trilhados pela
música popular brasileira até o aparecimento da bossa nova.
82
distanciamento. Marcelo Ridenti, a partir de depoimento concedido por Carlos
Nelson Coutinho
56
, evidencia que a questão do engajamento não seria
questionada e criticada em seus pressupostos por Caetano, somente quando
condensada as idéias em torno do Tropicalismo, em 1967, visto que:
“Carlos Nelson Coutinho contou-me que foi colega de Caetano na faculdade de
Filosofia, em salvador, e, certa vez o convidou para uma reunião da base do
Partido [Comunista] na faculdade: ‘O Caetano foi, acho que porque gostava de
mim. Simpático, ouviu aquelas coisas todas e depois me disse; ‘Não é a minha.
Você me desculpe, eu sou de esquerda mas não quero me vincular a partido
nenhum’.” (in: RIDENTI, 2000: 279)
É evidente que, de modo semelhante ao depoimento cedido por Caetano
a Luis Carlos Maciel, no qual comentava o surgimento do tropicalismo, a
questão do engajamento do artista, especificamente por meio da canção,
apesar de apresentar determinadas fissuras nas ações de Caetano em
Salvador, só viria a se firmar na relação com o meio artístico profissionalizado
no sudeste e com a presença hegemônica do ideário nacional-popular no
cenário cultural.
Delimitadas as condições fornecidas pela realidade sócio-cultural
baiana, e as relações tecidas por Caetano Veloso em seu interior, cabe agora
analisar como o seu primeiro artigo escrito sobre a musica popular brasileira,
em 1965, em Salvador,
57
sintetizaria um conjunto de idéias e referências que
balizariam os projetos futuros desse agente.
Estruturado no formato de resposta ao principal crítico e estudioso sobre
a música popular brasileira, o referido artigo, na parte introdutória, já
evidenciava o seu propósito de opor-se às análises desdobradas nos artigos de
José Ramos Tinhorão, acenando para o fato de que as suas idéias
representavam “a sistematização de uma tendência equívoca da inteligência
brasileira com relação à música popular.” (FERRAZ, 2005: 143)
56
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de
Janeiro: Record, 2000.
57
“Primeira feira de balanço” in: FERRAZ (org.). Caetano Veloso: o mundo não é chato. São Paulo: Cia.
das Letras, 2005, p. 143-153. Publicado originalmente em Ângulos, Revista dos Alunos da Faculdade de
Direito da Universidade Federal da Bahia, 1965.
83
Caetano Veloso, ao criticar as idéias de Tinhorão que estabeleciam um
vínculo linear entre as manifestações culturais e a estrutura socioeconômica
brasileira
58
e definiam as criações musicais de artistas de classe média como
fenômeno não-autêntico e alienado da tradição musical brasileira, procurava
uma linha de raciocínio que rejeitasse a idéia de “pureza” e “autenticidade”
frente às produções culturais que não fossem consideradas “primitivas”,
afirmando que, para Tinhorão:
“[…] somente a preservação do analfabetismo asseguraria a possibilidade de
fazer música [autêntica] no Brasil. […] a atuação dos artistas da classe média é
– se levarmos até o fim esse raciocínio – apenas um acidente nefasto: não
houvesse ocorrido isso e o futuro nos asseguraria pobres autênticos
cantando sambas autênticos, enquanto classe-médias (sic) estudiosos, como o
Sr. Tinhorão, aprenderiam os nomes das notas. Restando apenas saber para
que aprendê-los.” (FERRAZ, 2005: 143)
Para Caetano Veloso, o grande problema colocado pelo aporte teórico
sistematizado por Tinhorão estava em avaliar o processo de constituição da
“moderna música popular brasileira” como fenômeno de expropriação cultural e
econômica das classes médias junto às camadas populares. Desse modo, as
primeiras passavam a ser identificadas como deturpadoras de uma produção
supostamente, autêntica, pois, devido à sua maior articulação junto ao mercado
interno, intermediavam um processo de integração econômica e desintegração
cultural das criações musicais gestadas pelas camadas populares.
No interior desse processo as críticas de Tinhorão se acentuavam, ainda
mais, quando direcionadas para a Bossa Nova, uma vez que tomavam o
universo social de seu grupo – jovens de classe média – como determinante
para a efetivação de um movimento de cisão entre a “autêntica” tradição
musical brasileira e as camadas sociais que a produziam. A Bossa Nova, para
Tinhorão, convertia-se em simples versão brasileira do jazz norte-americano ou
mera expressão da alienação cultural frente à realidade brasileira, já que,
produto da internacionalização do mercado interno.
58
Segundo Caetano: “[…] sabemos a que proximidade do ridículo tem-se chegado [Tinhorão] no afã de
fazer uma ligação direta entre a construção de Brasília, a pretensa indústria automobilística e a bossa
nova.” (FERRAZ, 2005: 144)
84
Caetano Veloso, sem desconsiderar as questões que se abriam a partir
da relação entre os bens culturais e o mercado, definia uma postura crítica
frente às transformações que se materializavam no processo de
comercialização da música popular.
59
Apesar disso, Caetano esteve distante de
descartar o mercado enquanto espaço de intervenção cultural, já que as
propostas posteriormente articuladas em torno do tropicalismo se efetivariam
em estreita relação com esse meio.
Quanto às críticas de Tinhorão à Bossa Nova, definida como filial
brasileira do jazz, Caetano argumentava que as influências do jazz na música
popular brasileira já se faziam presentes desde a primeira metade do século
XX. Ele avaliava o diálogo entre bossa nova e o jazz norte-americano não
como produto mecânico da dominação cultural estrangeira, mas como
resultante do processo de sintetização de diferentes tradições musicais
articuladas por aquele gênero musical e por seu principal intérprete, João
Gilberto, no qual “[…] o jazz não é senão um enriquecimento da sua formação
musical, um ensinamento de outras possibilidades sonoras, com as quais se
está mais armado para compor, cantar e mesmo interpretar […].” (FERRAZ,
2005: 146)
Identificados esses elementos, importa agora analisar como as
referências iniciais de Caetano Veloso se reorganizariam após a sua ida para o
sudeste e, principalmente, após a conseqüente profissionalização de sua
carreira artística. Embora tivesse se deslocado, em 1965, para o Rio de
Janeiro,
60
e residido os primeiros anos nessa cidade, deve-se registrar que
parte significativa dos trabalhos iniciais de Caetano seria desenvolvida em São
Paulo.
A estréia de Caetano Veloso no circuito cultural paulistano se deu em 8
de setembro de 1965, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), com o
espetáculo musical “Arena Canta Bahia”, sob direção de Augusto Boal. O
espetáculo apresentado em conjunto com o grupo baiano, não só esteve
distante de atingir o sucesso de público conquistado pelo “Show Opinião” e
59
De acordo com Caetano, em 1965: “O que chamamos, hoje, de música popular não passa de uma forma
vulgar de expressão poético-musical” (FERRAZ, 2005: 151)
60
A ida de Caetano, em 1965, para o Rio de Janeiro não fazia parte de uma ação programada, mas deveu-
se ao acompanhamento de sua irmã, Maria Bethânia, contratada para substituir Nara Leão no Show
Opinião.
85
“Arena conta Zumbi”, como, também, não adquiriu a estruturação e
organicidade entre performance cênico-teatral e música popular, concebidas
por aquelas peças.
61
Para além dos problemas encontrados para organização da peça, talvez
o aspecto mais pertinente a ser pensado resida exatamente no significado que
essa experiência teve para Caetano Veloso. Pois o encontro selado nesse
espetáculo foi responsável pelo desenvolvimento de um trabalho em conjunto
com os “[…] autênticos representantes de um movimento nacional-popular que,
em parte, viria a insurgir-se contra o tropicalismo, em resposta às críticas que
este lhe formulou no final dos anos 60.” (RIDENTI, 2000: 275)
Desta forma, o trabalho e o contato inicial de Caetano Veloso com um
dos principais grupos vinculados ao teatro engajado de orientação nacional-
popular, expuseram determinadas fissuras que, dois anos depois,
manifestariam posições irreconciliáveis com as proposições do grupo
tropicalista, visto que:
“Carregando nas tintas, Boal idealizou [para a peça] uma Bahia
excessivamente nordestina, que causava estranhamento àqueles que, como
Caetano, Bethânia e Gal, conheciam por dentro o universo particular do
Recôncavo mais […] opulento do que o resto do Nordeste do país. No entanto,
temas como seca, pobreza, injustiça social ou luta pela terra, inevitavelmente
associados ao cotidiano nordestino, ajustavam-se com perfeição à visão teatral
e política de Boal. (CALADO, 2004: 71)
62
Sendo assim, é fundamental enfatizar que esses contrastes iniciais com
os quais Caetano Veloso se deparou expressam uma rejeição a determinados
parâmetros ideológicos que encaminhavam a produção da arte engajada de
61
De acordo com Paulo Mendonça: “[…] o espetáculo [Arena Canta Bahia] é praticamente só música,
estando o vago desenvolvimento dramático […] implícito na dialética dos números de canto. […] E esses
esquemas, desprovidos de um fio condutor sólido, se dispensaram ao acaso de efeitos superficialmente
procurados.” (FSP, 19/09/1965: 4)
62
Embora não despreze o trabalho desenvolvido em Arena Canta Bahia, Caetano, em seu livro de
memórias, não deixa de evidenciar certa decepção com essa experiência: “Essas discrepâncias com o
gosto de Boal eram um fator a mais a trazer infelicidade à minha estada em São Paulo. Eu não apenas
estava numa cidade que me parecia feia e inóspita: eu também descobria que minha visão das coisas nem
sequer poderia insinuar-se nos ambientes geradores de cultura [engajada], e que a chegada de Bethânia ao
estrelato, se tinha aberto portas para mim no terreno profissional, não necessariamente significava que a
intervenção estética que me parecia correta se fazia possível.” (VELOSO, 2004: 88)
86
esquerda
63
e não representavam, necessariamente, uma atitude de desprezo à
incorporação de referências ligadas à tradição musical brasileira e ao nacional-
popular.
Essa incorporação e relação de diálogo estabelecidos por Caetano com
a tradição musical brasileira, na qual se encontrava a base das referências
nacionais populares, se evidenciam em entrevista concedida por esse agente,
em 1968, ao comentar sobre os procedimentos que balizavam as suas criações
musicais antes da “explosão” tropicalista: “Antes eu só fazia um tipo de música,
procurando acompanhar uma tradição [musical brasileira]. Rompi com tudo.
Sou mais pra frente. [Agora] Faço qualquer negócio.” (JB, 09/03/1968: 1)
No entanto, faz-se necessário observar que Caetano não tomava o
diálogo com a tradição musical brasileira e o nacional-popular como elemento
de centralidade que atestaria à sua obra uma identidade orgânica e autêntica
com a brasilidade. Ao contrário, a atenção de Caetano no início de sua carreira
estava mais voltada para o tratamento musical que a base das criações bossa-
novistas poderia lhe fornecer, tanto no plano da composição musical quanto no
da interpretação, para o estabelecimento de uma releitura da tradição musical
brasileira que lhe possibilitasse uma espécie de recriação atualizada desse
material musical, sem exotizá-lo.
Ou seja, se, por um lado, Caetano procurava, entre 1965 e 1966, através
de suas criações musicais, objetivar um diálogo com a tradição musical
brasileira, por outro, as preocupações com a elaboração de uma produção
musical que tivesse por base a incorporação de um material musical folclórico
“puro” ou “autêntico” não faziam parte dos seus projetos. Além disso, Caetano
preconizava um contato com a tradição musical brasileira a partir de uma
filtragem seletiva de seus elementos, de modo que essa intervenção se
efetivasse de forma atualizada. Com isso, Caetano não descartava, de forma
alguma, as transformações sintetizadas pela Bossa Nova no interior do
processo de composição musical e, principalmente, por João Gilberto, agente o
63
Anos depois, Caetano afirmaria: “Meu pensamento não tem linha. Essa é a minha divergência mais
profunda com essas pessoas. Eles [artistas engajados de esquerda] têm uma idéia de linha e eu não tenho
linha. Esperam uma orientação ideológica do artista e foi isso que o tropicalismo matou nos anos 60.
Nunca participei nem acreditei nisso. Ao contrário, meu maior esforço sempre foi no sentido de destruir
isso. Até me tornei famoso por isso. […] Será que as pessoas se esqueceram ou nunca compreenderam o
que nós queríamos dizer? Nunca tive nada a ver com arte engajada.” (OESP, 09/12/1978: s/p)
87
qual Caetano dedicava enorme reconhecimento, ao tomá-lo como ponto de
encontro entre tradição e modernidade musical.
Essas idéias se expressariam de modo ainda mais orgânico em
entrevista concedida por Caetano Veloso, em 1966, num debate promovido
pela Revista Civilização Brasileira, em que se inquiria aos entrevistados a
seguinte questão: “Que caminho seguir na música popular brasileira?”.
Juntamente com Caetano Veloso, participaram dessa entrevista/debate os
críticos musicais Flávio Macedo Soares e Nelson Lins e Barros, a cantora Nara
Leão, o cineasta Gustavo Dahal e os poetas José Carlos Capinam e Ferreira
Gullar.
Seria através desse debate que o termo “linha evolutiva” seria cunhado
por Caetano Veloso, passando a expressar um conjunto de idéias e propostas
que remetiam um projeto específico de atualização da música popular
brasileira. Desse modo, Caetano, em seu comentário inicial, buscava situar os
impasses que circundavam a produção e a difusão da música popular brasileira
naquele momento:
“A questão da música popular brasileira vem sendo posta ultimamente em
têrmos de fidelidade e comunicação com o povo brasileiro. Quer dizer: sempre
se discute se o importante é ter uma visão ideológica dos problemas
brasileiros, e se a música é boa, desde que exponha bem essa visão; ou se
devemos retomar ou apenas aceitar a música primitiva brasileira. A única coisa
que saiu neste sentido – [foi] o livro do Tinhorão, [que] defende a preservação
do analfabetismo como uma única salvação da música popular brasileira. Por
outro lado se resiste a êsse “tradicionalismo” – ligado ao analfabetismo
defendido por Tinhorão, com uma modernidade de idéia ou forma imposta
como melhoramento qualitativo.” (BARBOSA, 1966: 377-78)
Caetano, então, situava o impasse existente na música brasileira
acenando para a formação de dois grupos que expunham idéias e referências
conflitantes quanto ao processo de produção da música popular brasileira. A
saber, o grupo que buscava encampar, em suas canções, gêneros e ritmos
populares, sem dispensar as transformações operadas pela Bossa Nova no
plano da composição musical, e o grupo orientado pelas idéias de José Ramos
Tinhorão, que se declarava inteiramente contrário às transformações
88
encetadas pela Bossa Nova, se colocando em defesa não de um processo de
atualização musical, mas de um retorno e da revitalização dos gêneros
populares considerados “tradicionais” e “autênticos”.
É evidente que essa leitura de Tinhorão sobre o campo musical
brasileiro colocava em xeque qualquer possibilidade de encaminhamento de
uma proposta de atualização da música popular brasileira. Principalmente, a
atualização que, mais adiante, seria materializada pelos tropicalistas, a partir
da interação de informações musicais diversas, na qual se dispensava o papel
de centralidade até então atribuído aos elementos da música nacional. Ciente
desta situação, Caetano afirmava:
Ora, a música brasileira se moderniza e continua brasileira, à medida que tôda
informação é aproveitada (e entendida) da vivência e compreensão da
realidade cultural brasileira. Realmente, o mais importante no momento […] é a
criação de uma organicidade de cultura brasileira, uma estruturação que
possibilite o trabalho em conjunto, inter-relacionando as artes e os ramos
intelectuais. Para isto, nós da música popular devemos partir, creio, da
compreensão emotiva e racional do que foi a música popular brasileira até
agora; devemos criar uma possibilidade seletiva como base de criação. Se
temos uma tradição e queremos fazer algo de nôvo dentro dela, não só
teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este conhecimento que vai nos dar a
possibilidade de criar algo nôvo e coerente com ela.” (BARBOSA, 1966: 378)
De acordo com essa explanação feita por Caetano, explicitam-se dois
pontos que deveriam ser contemplados pelos projetos que se propunham a
pensar a atualização da música brasileira, qual seja, a interlocução entre as
diferentes esferas de produção cultural, enquanto condição para o
desenvolvimento de criações culturais que se articulassem organicamente com
a realidade nacional, e a necessidade de se estabelecer um diálogo com a
tradição musical brasileira, através de um contato seletivo que possibilitasse a
sua incorporação e recriação para a construção de bases culturais atualizadas
e sintonizadas com o leque de questões aberto pela realidade social brasileira
e contemporânea. Desta forma, Caetano situava a intervenção de João
Gilberto no universo musical brasileiro como o caminho que, para ele, haveria
89
de ser tomado como referência para a condução de um projeto de atualização
da música popular brasileira, sugerindo que:
Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para
selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com
frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema.
Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir
contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza que, se puder levar essa
necessidade ao fato, êle terá contrabaixo e terá samba, assim como João
Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás
João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a
informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no
dar um passo a frente da música popular brasileira. (BARBOSA, 1966: 378)
A posição defendida por Caetano não encontraria aderência entre todos
os entrevistados presentes neste debate. Nelson Lins e Barros seria o primeiro
a se manifestar contrário a essas idéias, considerando-as saudosistas, porém,
apresentando uma proposta de intervenção cultural na qual a introdução de
novos elementos e recursos – ligados à modernidade – no interior da música
popular passava a ser vista como um impulso de renovação formal
contraditório, pois se convertia somente em aspecto denotador de maior
elaboração estética, para a qual o “povo não está preparado”. Sendo assim,
segundo a concepção didática de criação cultural defendida por Barros, o
artista deveria reter e controlar o seu impulso renovador, já que isso implicaria
a produção de uma linguagem artística não acessível às camadas populares.
Caetano responderia imediatamente, salientando que não se
considerava saudosista, pois, para ele, a valorização da tradição musical
brasileira não se concebia como “uma volta àquele momento” de modo a
reverenciá-la passivamente, mas integrá-la seletivamente a partir dos
elementos que lhe possibilitassem a sua recriação e atualização.
64
64
Seria por conta deste debate em torno da integração de elementos musicais “tradicionais” e recursos
“modernos” no corpo da música popular, sendo o último identificado como fator de deturpação da
musicalidade brasileira, que Caetano selaria as premissas iniciais tropicalistas, afirmando: “Nego-me a
folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a
Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também
lanchonetes e hot dogs, como em todas as cidades grandes.” (MANCHETE, 16/12/1967: 36)
90
No desenrolar desse debate, as considerações de José Carlos Capinam
acerca da necessidade de atuação dos artistas engajados no interior do
mercado, como meio para se criar alternativas mais eficientes de contato com o
público, também situariam outro ponto relevante desta discussão, pois,
segundo ele, outros grupos, tal como a própria Jovem Guarda, estariam se
utilizando de forma “eficiente” dos recursos possibilitados pelo mercado, para a
difusão de sua produção junto à juventude brasileira. Desse modo, Capinam
conduzia a sua exposição argumentando que:
“Preservar a música dos riscos do mercado é uma posição negativa de
acanhamento que terá como efeito o contínuo afastamento desta música das
áreas onde deveria estar agora, e influindo, trocando recursos, informando,
alimentando a nossa juventude […] Como todos nós discutimos povo e
queremos que a nossa arte seja por êle aceita e consumida, jamais poderemos
esquecer a urgência que êle tem diante das coisas que obtém e consome. […]
e quando Roberto Carlos, Altemar Dutra, Orlando Dias […] assume melhor
posição nas paradas de disco e, não só isso e muito mais grave, concorre na
influência da formação de nossos músicos, é porque êles foram mais rápidos e
conseqüentes na utilização destas máquinas. E só podemos suster estas
deformações se possuímos, se montamos máquinas semelhantes de
informação, promoção e venda. Não basta fazer música boa e esperar a
recompensa e aceitação popular. A música popular brasileira deve surgir
reconhecendo a necessidade de organizar sua infra-estrutura e revitalizar sua
linguagem em intensa pesquisa de raízes e recursos contemporâneos da
música. (BARBOSA, 1966: 380-81)
Segundo Capinam, o artista engajado não poderia desconsiderar, para a
realização de suas criações, as interferências produzidas pelo mercado e pela
inserção de novos recursos tecnológicos no seio da música popular, bem como
as possibilidades abertas por esses meios. Já que estes possibilitariam a
objetivação de uma intervenção cultural, que encampando um público cada vez
mais amplo, efetivasse uma frente de defesa em relação aos avanços
conquistados pela Jovem Guarda em meio ao mercado musical e ao público
brasileiro.
91
Encerrando a sua participação nesse debate, Caetano Veloso colocava
em destaque a preocupação quanto à necessidade de suas criações
integrarem em seu escopo os problemas que afetavam a juventude e a
realidade brasileiras. Contudo, logo ressaltava determinados impasses que
limitavam o seu “engajamento”, principalmente quando pensado e direcionado
para as camadas populares, afirmando que:
“[…] é exatamente criando uma cultura, correspondente com a necessidade
que começam a ter os jovens brasileiros, que eu encontro minha única
possibilidade – justa – de estar integrado nela. Sei que a arte que eu faço
agora não pode pertencer verdadeiramente ao povo. Sei também que a Arte
não salva nada nem ninguém, mas que é uma das nossas faces. Me interessa
que corresponda o que faço à posição tomada por mim diante da realidade
brasileira.” (BARBOSA, 1966: 384)
Assim, as palavras finais de Caetano demonstravam certa atenção em
relação à sintonização de suas produções com as questões que assolavam o
universo sociocultural brasileiro, porém, apontavam de antemão o raio restrito
de ressonância que teria o seu “engajamento” perante o povo e a
transformação da realidade brasileira.
É exatamente neste momento, na passagem entre os anos de 1966 e
1967, que Caetano Veloso gravou o seu primeiro LP,
65
com canções situadas,
em grande parte, dentro de uma atmosfera lírico-subjetiva, na qual as
influências bossa-novistas se sobressaem, que de modo sutil se evidenciaria a
primeira referência de Caetano Veloso, remetida à elaboração de uma nova
proposta de intervenção cultural no campo da música popular brasileira.
Apesar de esse LP não apresentar, em nenhum ponto, uma expressiva
cisão em relação às referências ventiladas pela Bossa Nova e pelo paradigma
nacional-popular, que ocupavam as principais fileiras da MPB, é possível
identificar no texto de contracapa, escrito por Caetano, os primeiros traços
alusivos a um novo projeto:
65
LP Domingo – Gal Costa e Caetano Veloso, Phillips, P 765.007P, 1967.
92
“Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração
agora está tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui.
Algumas canções deste disco são recentes (UM DIA, por exemplo), mas eu já
posso vê-las todas de uma distância que permite simplismente gostar ou não
gostar, como de qualquer canção. A minha inspiração não quer mais viver
apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa
saudade num projeto de futuro. Aqui está – acredito que gravei este disco na
hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já
fiz e não tenho [mais] vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma nota. (GAL
COSTA E CAETANO VELOSO, 1967)
Remetendo-se às influências que passavam então a orientá-lo enquanto
artista, ainda que não contempladas neste disco, Caetano Veloso reiterava as
idéias que acenavam para a incorporação de novos procedimentos num projeto
futuro, as quais expressariam as inquietudes que já lhe cercavam. Essas
inquietações somadas às idéias re-elaboradas por Gilberto Gil, em 1967, após
uma viagem para apresentações em Pernambuco,
66
tornar-se-iam os
elementos embrionários para a formulação das propostas tropicalistas.
(VILLAÇA, 2004: 153)
Embora não exista uma relação de linearidade entre as proposições
lançadas, em 1967, pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e a peça O
Rei da Vela, de José Celso Martinez Corrêa, ambas associadas,
posteriormente, ao tropicalismo, há, contudo, um diálogo com essas
produções, encaminhado pelos agentes que articulariam as propostas de
intervenção tropicalista na música popular brasileira.
Ou seja, apesar de o grupo tropicalista atuante no campo musical não
ser resultante direto das experimentações do Cinema Novo ou do Teatro
Oficina, há, sem dúvida, um diálogo com determinados princípios adotados por
Glauber Rocha em Terra em Transe, em que se tece uma ácida crítica ao
66
Conforme Caetano, Gil: “[…] chegou no Rio querendo mudar tudo, repensar tudo – e, sem descanso,
exigia de nós uma adesão irrecusável a um programa de ação que esboçava com ansiedade e impaciência.
Ele falava da violência da miséria e da força da inventividade artística: era a dupla lição de Pernambuco,
da qual ele queria extrair um roteiro de conduta para nós. A visão dos miseráveis do Nordeste, a mordaça
da ditadura num estado onde a consciência política tinha chegado a um impressionante amadurecimento
[…] e onde as experiências de arte engajada tinham ido mais longe, e as audições de mestres cirandeiros
nas praias, mas sobretudo a Banda de Pífanos de Caruaru […] deixaram-no exigente para com a eficácia
de nosso trabalho”. (VELOSO, 2004: 130-31)
93
intelectual de esquerda, bem como com as técnicas utilizadas por José Celso
em O Rei da Vela, para a elaboração de uma estética do mau gosto e da
agressividade contra a classe média, nas quais predominam uma atmosfera de
rompimento com as criações culturais de orientação nacional-popular e
engajadas. (NAPOLITANO, 2001: 242)
De forma semelhante, tanto o título da canção de Caetano, Tropicália,
quanto a homônima nomeação do movimento não são produtos do contato
desse agente com os preceitos estéticos e ideológicos incutidos na obra
ambiência Tropicália, instalação criada pelo artista plástico Hélio Oiticica e
exposta, em 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, na qual se
buscava um sentido de aproximação em relação aos problemas que afligiam a
cultura brasileira.
67
É a partir da interação com as proposições vicejadas por essas criações
que as idéias em torno do Tropicalismo se adensariam e adquiririam o seu
formato inicial sob a proposta de construção de um som universal. Por meio da
incorporação de referências “arcaicas” e “modernas”, propunha-se uma nova
chave de leitura do universo cultural brasileiro, na qual a síntese entre
elementos presentes na tradição musical nacional e na música contemporânea
– do pop às vanguardas internacionais –, buscava, ao mesmo tempo, erigir um
processo de atualização da canção brasileira e expor as contradições latentes
no seio da vida cultural nacional.
Portanto, para Caetano, nesse momento, a necessidade de se apropriar
de novas linguagens e recursos musicais, a fim se renovar o modo de
produção e realização social da canção, expressava uma faceta de um
processo maior, que envolvia o lugar social da canção no mundo
contemporâneo e a sua transformação em mercadoria. Conforme, pontuou o
próprio artista:
“O que a gente chama de música popular hoje, está ligado à tradição nacional
popular, mas se industrializou e se transformou numa coisa que não é mais
música popular, nesse sentido da música rural ou mesmo do folclore urbano,
como existe no Rio de Janeiro o samba de morro, etc. Mas é uma música de
67
A comparação estabelecida entre a instalação e a canção, não advêm do conhecimento de Caetano
sobre a obra de Oiticica, mas do cineasta Luís Carlos Barreto que propôs à canção, até então, não
nomeada por Caetano, a utilização do termo tropicália.
94
todas as classes, e de classe nenhuma, é uma música vulgar, é um produto
para consumo geral. A arte que a gente faz é a arte do disco, isso é que é uma
coisa, e nesse lugar está a música do nosso tempo. Tenho a impressão que a
música dos Beatles e dos Rolling Stones talvez seja a manifestação musical
mais importante do nosso tempo. […] E é sob o signo de produto que a música
está existindo.” (MELLO, 1976: 199)
Devido aos laços tecidos entre a música popular e o mercado, Caetano
considerava que não havia mais sentido, para o compositor, em procurar
“resgatar” uma tradição musical autenticamente brasileira, pois, a sua
produção, veiculada a partir do mercado, se transformava num outro objeto,
que não mais representava um grupo e seu universo cultural, genuinamente
brasileiros, mas um produto re-elaborado e massificado pela sociedade de
consumo.
Apesar da crítica ao lugar social ocupado pela canção na sociedade
capitalista, Caetano Veloso de forma alguma pretendia dispensá-la enquanto
elemento para a sua nova intervenção cultural. Ao contrário, tinha por objetivo
incorporá-la junto às novas linguagens disseminadas em massa pela sociedade
de consumo, a fim de integrá-las num projeto crítico e atualizado que não se
voltasse somente para a realidade nacional, mas que o situasse frente às
principais questões e problemas que figuravam no mundo contemporâneo.
No que se referia ao processo de desenvolvimento da música popular
brasileira, Caetano passava a observar que, embora a Bossa Nova houvesse
representado, inicialmente, um movimento de inovação musical que acenava
para um caminho de liberdade, num segundo momento, as suas criações
haviam se institucionalizado e se tornado um conjunto de referências
padronizadas. De acordo com o próprio Caetano:
“Aos poucos fui compreendendo que tudo aquilo que gerou a BN [Bossa Nova]
terminou por ser uma coisa resguardada, por não ser mais uma coragem. […]
E quando no Rio [de Janeiro] eu comecei a me enfastiar com o resguardo em
seriedade da BN, o medo, a impotência, tendo tornado a BN justamente o
contrário do que ela era, as coisas menos sérias começaram a me atrair. E a
primeira dessas coisas foi a que mais assustaria os meus colegas de
95
resguardo: o iê-iê-iê. Passei a olha-lo de outra forma […]” (CAMPOS: 2005:
202-3)
Seria imbuído desses elementos, de leitura e análise do caminho que
estava sendo tomado pelo ambiente cultural brasileiro, assim como, pela MPB,
que Caetano Veloso, dias antes da apresentação da primeira intervenção
tropicalista no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, deixaria
evidente em uma entrevista, a saliência das novas idéias e uma grande
expectativa quanto à objetivação no campo da música popular brasileira de
uma ação impactante:
“Engraçado, estou falando de coisas que atualmente estão ficando passadas
para mim. É a primeira vez que estão ficando envelhecidas essas coisas sobre
a BN [bossa nova], porque até pouco tempo atrás estavam todas muito vivas.
Agora não. Como eu falei que começo a ver coisas novas, então agora elas
estão ficando um pouco passadas. […] Acho que a música brasileira depois da
BN, ficou discutindo tudo que a BN propôs mas não saiu dessa esfera, não
aconteceu nada maior. Eu, pessoalmente, sinto a necessidade de violência,
acho que não dá pé pra gente ficar se acariciando, me sinto mal já de estar
ouvindo a gente sempre dizer que o samba é bonito e sempre refaz o nosso
espírito. Me sinto meio triste com essas coisas e tenho vontade de violentar
isso de alguma maneira, é a única coisa que me permite suportar e aceitar a
idéia de manter uma carreira musical, porque uma coisa é inegável: a música é
a arte mais viva em todo o mundo.” (MELLO, 1976: 156-256)
Desta forma, as apresentações de Caetano Veloso, com Alegria, Alegria,
e Gilberto Gil, com Domingo no Parque, no III Festival de Música Popular
Brasileira da TV Record, acompanhados, respectivamente, pelas bandas de
rock Beat Boys e Mutantes
, munidas de guitarras, logo, por instrumentos
alijados pelo estatuto da MPB, se coadunavam no sentido de encaminhar uma
intervenção que, a um só tempo, se apropriava do espaço em que haviam se
cristalizado as principais referências constituintes da MPB e lançava as bases
para a crítica ao ideário nacional-popular engajado, que atuava como substrato
nuclear dessa sigla.
96
Colocando sob questionamento os preceitos ideológicos hegemônicos
no interior da MPB, o grupo tropicalista, através da construção de
representações alegóricas, irônicas e debochadas, edificaria outros
procedimentos de criação cultural, ao encampar novas propostas, linguagens e
gêneros musicais, com o intuito de se renovar e superar determinados limites
estéticos que permeavam o ambiente cultural engajado, atuando de modo não
menos crítico diante dos problemas relacionados à realidade social brasileira.
Com isso, os tropicalistas não só adicionavam novos ingredientes ao
caldeirão cultural brasileiro, como encetavam outras questões, propulsoras de
novas dúvidas,
68
por meio de uma crítica aparentemente não empenhada à
ditadura militar, às mazelas sociais, à esquerda brasileira e seus paradigmas.
Assim, o grupo tropicalista estabelecia uma nova relação entre as
dimensões estéticas e ideológicas de suas criações, ao proporcionar não
somente uma abertura para o experimentalismo, mas gerando uma forma
peculiar de crítica cultural, provocadora, tanto para os grupos à esquerda como
à direita.
3. MPB X TROPICÁLIA: Edu e Caetano em debate
Para a compreensão do ambiente conflituoso que se configuraria entre o
grupo formado pelos emepebistas e pelos tropicalistas, no decorrer dos anos
de 1967 e 1968, é imprescindível ter em mente que os dois principais agentes
articuladores das propostas tropicalistas para o campo musical, Gil e Caetano,
advinham do celeiro da MPB.
69
Desse modo, as intervenções tropicalistas
68
Principalmente no que tange à articulação entre elementos “arcaicose “modernos”, os tropicalistas,
diferentemente, dos emepebistas, não optavam pela proposição de superação do dualismo
arcaico/moderno como chave para resolução dos problemas nacionais, mas apontavam, exatamente, para
a exposição contraditória desses traços, enquanto condição definidora da realidade brasileira.
69
Deve-se frisar que antes da formação do movimento tropicalista atuante no meio musical, Gilberto Gil
e o empresário Guilherme Araújo – que teve destacada participação no lançamento e divulgação do grupo
tropicalista – organizaram duas reuniões no Rio de Janeiro, durante o 1º semestre do ano de 1967, com os
seguintes artistas: Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Chico Buarque, Sidney Miller, José Carlos Capinam,
Torquato Neto, Francis Hime, Dori Caymmi, além do próprio Caetano Veloso, a fim de apresentar a nova
proposta de atuação que efetivaria as bases do futuro movimento. No entanto, devido à ampla diferença
de posicionamentos e, conseqüentes, discordâncias em relação às proposições de Gil, o projeto não
conseguiu encampar um conjunto maior de artistas.
97
deflagradas a partir do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record,
em 1967, passavam a ser vistas por grande parte dos emepebistas como um
ato de traição aos ideais de defesa da cultura nacional-popular engajada e,
imediatamente, identificadas como mero fenômeno de ação mercadológica e
alienadas.
70
Faz-se necessário ressaltar que, desde julho de 1967, o meio musical
brasileiro se encontrava num de seus momentos de maior conflito, expresso
pelos embates entre MPB e Jovem Guarda e potencializado pelo lançamento
do programa Noite da Música Popular Brasileira, transmitido pela TV Record e
também conhecido como Frente Única da Música Popular Brasileira.
71
O lançamento desse programa adquiriu maior evidência devido a uma
passeata realizada em 17 de julho de 1967, desde o Largo São Francisco ao
Teatro Paramount, em São Paulo, também conhecida como passeata contra as
guitarras, que contou com a presença dos seguintes artistas: Elis Regina, Edu
Lobo, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Zé Kéti e os integrantes do conjunto MPB-4.
Apesar de a passeata se voltar mais para a divulgação do novo programa,
portanto, atendendo com maior ênfase os interesses comerciais da emissora,
nem por isso é possível desconsiderar o clima nacionalista que permeou a
manifestação, expresso na letra distribuída na abertura do programa: “Moçada,
querida / cantar é a pedida / Lá Lá Lá, Lá Lá Lá, Lá Lá Lá / Cantando a canção
/ Da Pátria querida / Cantando o que é nosso / Com o coração.” (JT,
18/07/1967: 11)
Foi sob este cenário que se forjou um clima de tensão em torno das
participações de Gil e Caetano no III Festival da TV Record. Antes de suas
apresentações se consumarem, a imprensa já estampava artigos e
depoimentos que evidenciavam a atmosfera de pressão ao redor desses
artistas. Caetano, momentos antes da apresentação de “Alegria, Alegria” no
referido festival, em entrevista, reafirmava o novo sentido que as suas criações
passavam a buscar e a insatisfação com os parâmetros musicais edificados
pela MPB:
70
Gilberto Gil, antes de se apresentar no festival com “Domingo no Parque”, desabafava: “Sinto-me hoje
como num tribunal, onde sou acusado de trair a verdadeira música popular brasileira.” (JT, 04/10/1967: 8)
71
Vale lembrar que o termo Frente Única fora concebido em sua origem pelo PCB para o projeto de
aliança de classes que tinha por objetivo a conclusão da “revolução democrática nacional”.
98
“Acho que não podemos mais ficar presos a regionalismos para compor
e apresentar músicas […] Gosto muito da música brasileira mas não pelo fato
de ser brasileiro também. Vejo-a agora dentro do campo universal. […] Sei
que a experiência de trazermos conjuntos de ié-ié-ié e suas guitarras elétricas
podem não agradar a turma da linha dura da música brasileira. Posso também
receber vaias, mas não estou ligando […] o público que esta indo ao festival no
teatro Paramount não representa o povo brasileiro. Uma prova disto é que
chegaram a vaiar até Roberto Carlos, o artista mais querido no Brasil hoje em
dia.” (JT, 13/10/1967: 13)
72
A
lém da crítica feita por Caetano, à elaboração de uma musicalidade
regionalista presa às referências nacionais populares, enaltecida pelos
emepebistas, outro dado mencionado em seu depoimento desperta a atenção,
qual seja, o fato de se referir à participação de artistas ligados à Jovem Guarda
neste festival.
Os festivais, naquele momento, já não poderiam ser vistos somente
enquanto espaço reservado à competição entre letristas e compositores para a
premiação de uma canção, mas estavam se constituindo em importante campo
de cristalização das referências orientadoras da MPB, portanto, espaço que lhe
atestava legitimidade e reconhecimento no interior da hierarquia sociocultural
brasileira. (PAIANO, 1994: 165)
Não obstante, este festival revelava mais uma novidade no que se refere
à participação de personagens associados ao iê-iê-iê, que não se resumia
somente ao acompanhamento dos incipientes astros tropicalistas, mas à
apresentação de canções que procuravam uma forma de aproximação com
gêneros, ritmos e temas de orientação nacional-popular, logo, com os
elementos que davam estruturação nuclear à MPB.
73
É interessante notar que a participação de integrantes do iê-iê-iê no
festival impulsionaria o conflito inaugural entre os emepebistas e o incipiente
72
A utilização do termo linha dura da música brasileira, por Caetano, se faz em referência ao conjunto de
letristas e compositores ligados à MPB, que se colocavam contrários à inserção de recursos eletrônicos e
de informações presentes em gêneros musicais que não fossem considerados nacionais, no processo de
composição da música popular brasileira.
73
Ronnie Von participou com a canção “Uma dúzia de rosas” (Carlos Imperial), uma marcha-rancho,
Roberto Carlos, com “Maria carnaval e cinzas” (Luiz Carlos Paraná), um samba, e Erasmo Carlos, com
“Capoeirada” (Erasmo Carlos), uma tentativa de aproximação com os afro-sambas, consagrados por
Baden Powell e Vinícius de Moraes.
99
grupo tropicalista. Isso se deve ao fato de que, precisamente, no momento em
que os ícones do iê-iê-iê se retraíam frente à MPB, assumindo as suas
referências para participarem do festival, Gil e Caetano procuravam revitalizar
as suas canções, apoiando-se exatamente em recursos musicais que haviam
sido hostilizados quando utilizados pela Jovem Guarda.
Por conta disso, a relação entre Caetano Veloso e Edu Lobo ficou tensa,
principalmente, em razão de uma entrevista concedida por este último ao
Jornal do Brasil, antes da apresentação de Caetano no festival. Nesta
entrevista, Edu Lobo focalizava dois pontos: primeiro, declarava que não
concordava com as vaias recebidas por Roberto Carlos e Ronnie Von no
festival, já que ambos haviam se apresentado com canções que expressavam
gêneros genuinamente brasileiros; o segundo mais complicado ponto elucidado
por Edu Lobo se referia ao comportamento da platéia presente nos festivais,
que deveria endossar a vaia aos compositores baianos:
Não entendo porque vaiar o Roberto Carlos – um excelente cantor – que se
apresentou com a maior dignidade, cantando um samba cem por cento
brasileiro, e nem o Ronnie Von, que interpretou uma marcha-rancho com
discreção e humildade. Acho inclusive uma atitude muito bonita a de quem
abandonou seu público e seus milhares de discos de iê-iê-iê
para prestigiar um
concurso de música brasileira, onde só tem a perder. O meu mais sincero
aplauso aos injustamente vaiados, embora eu considere um direito do público
aplaudir ou vaiar.” (JB, 12/10/1967: 10)
Apesar de soarem estranhos os elogios e o reconhecimento prestados
por Edu Lobo a Ronnie Von e Roberto Carlos, logo se percebe que as suas
considerações se direcionavam a esses artistas, mais pelo fato de terem
apresentado, em suas canções, gêneros autenticamente brasileiros do que
propriamente por suas qualidades musicais.
Ou seja, para Edu Lobo, o ponto mais importante das apresentações de
Roberto Carlos e Ronnie Von, que o público deveria reconhecer, estava no
distanciamento destes dos parâmetros poéticos e musicais estilizados pela
Jovem Guarda, com suas guitarras elétricas, já que esses artistas se
100
aproximavam de temáticas e ritmos embebidos no caldo de sustentação
estética e ideológica da MPB.
No entanto, o ponto crucial dessa entrevista, que acirraria as tensões
com Caetano Veloso,
74
se definiria na seguinte declaração concedida por Edu
Lobo para esta entrevista: “Seria mais compreensível para mim se o público da
Record – fanatizado pela música brasileira – vaiasse os compositores de
samba que se apresentaram com elementos de iê-iê-iê, nas músicas ou nos
acompanhamentos.” (JB, 12/10/1967, 10)
Segundo as declarações feitas por Edu Lobo, a reação mais apropriada
do público seria a de repudiar as canções de Gil e Caetano, que se
apresentavam com elementos de iê-iê-iê, nas músicas ou nos
acompanhamentos, portanto, com elementos tidos como deturpadores da
musicalidade brasileira, e reconhecer as atuações de Roberto Carlos e Ronnie
Von, que não apresentaram canções que se colocavam como versões do iê-iê-
iê estrangeiro e, supostamente, se aliavam à defesa da legítima música
brasileira.
Na realidade, a apresentação dessas canções pelos ícones do iê-iê-iê
se coadunava com uma estratégia que lhes possibilitassem maior aceitação e
reconhecimento junto ao público e ao júri, ação que em parte se concretizou,
uma vez que Roberto Carlos conquistou o quinto lugar neste festival. Ao
comentar a premiação no festival, Roberto Carlos logo justificou o resultado,
indicando que, pelo fato de interpretar um samba, não poderia mais ser
considerado um alienado, pois havia se dedicado a interpretar um gênero
autenticamente brasileiro: “Viram só? Agora todo mundo sabe que não sou um
alienado. Eu canto samba”. (FF, 04/11/1967: 102)
Erasmo Carlos, em entrevista concedida à Revista Intervalo, deixava
evidente, com certo tom satírico, que a incorporação de referências ligadas à
MPB seria a única forma de outros compositores sobreviverem no ambiente de
competição dos festivais. De acordo com o entrevistado:
74
É fundamental sublinhar que Edu e Caetano no início de suas carreiras possuíam uma notável amizade
e admiração por seus trabalhos. Aliás, Caetano conheceu Edu logo no primeiro dia de sua estadia, em
1965, no Rio de Janeiro. Contudo, após a guinada de Caetano para o tropicalismo, ambos se distanciaram.
101
“Do jeito que vão as coisas, posso dar 3 conselhos para quem quiser ganhar
festivais:
1º) Deteste o iê-iê-iê e adore jazz.
2º) Seja ou finja-se universitário.
3º) Passe 2 meses no sítio de um amigo e volte dizendo que foi ao norte para
fazer pesquisas de folclore. Bem, se puder arranjar uma torcida bem forte,
também vai ajudar muito, porque festival esta parecendo futebol.”
(INTERVALO: 1968: 5)
Em 16 de outubro de 1967, em entrevista ao Jornal da Tarde, Caetano
Veloso arrebatava as declarações de Edu Lobo, argumentando que na
entrevista concedida pelo compositor de “Ponteio”, este se exprimia de maneira
contraditória, até mesmo com relação à letra de sua canção, uma vez que se
definia de modo retraído frente às inovações que poderiam ser suscitadas
pelas apresentações de “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”:
“Edu Lôbo disse que o público deveria ter vaiado também a turma da música
popular brasileira que foi acompanhada de conjuntos de iê-iê-iê, ao invés de
vaiar Ronnie Von que segundo êle “foi lá com toda humildade”. É espantoso
que o autor de Ponteio venha se pronunciar em favor da humildade e contra a
audácia. Assim fica meio difícil de entender a letra de Ponteio. Sua declaração
é pouco jovem e eu não gosto de nada pouco jovem.” (JT, 13/10/1967: 13)
Caetano, ao frisar que a declaração de Edu Lobo se colocava de
maneira pouco jovem, procurava acenar para o fato de que a defesa de Ronnie
Von e Roberto Carlos se realizava por conta de ambos aderirem de forma
passiva aos parâmetros estatutários da MPB, como meio para serem aceitos
no festival. Assim, o depoimento de Edu Lobo se situava de modo conservador,
já que se demonstrou refratário ao diálogo que poderia ser proporcionado entre
gêneros, linguagens e instrumentos musicais diversos, a fim de se encaminhar
novas informações estéticas e ideológicas, que revigorassem o processo de
atualização da música popular brasileira.
Embora as canções tropicalistas tenham sido muito bem recepcionadas
pelo público, descartando qualquer possibilidade de vaia ou rejeição em
massa, ainda assim, nenhuma delas conseguiu arrebatar o primeiro lugar, que
102
ficou com “Ponteio”, de Edu Lobo. Entretanto, os prêmios de segundo e quarto
lugares respectivamente, para Gilberto Gil e Caetano Veloso, junto ao prêmio
de melhor arranjador para Rogério Duprat em “Domingo no Parque”,
proporcionaram a sensação de tarefa cumprida, já que a investida contra a
MPB havia tido ótima recepção junto ao público e ao júri. Conforme Caetano
salientou: “Acho que minha música resultou muito bem. Abri meu coração e
deu certo […] Estou calmo. Minha missão no festival esta cumprida.” (JT,
21/10/1967: 16)
A dimensão do conflito entre a utilização de recursos musicais elétricos e
eletrônicos, que se convertia na polarização ideológica quanto ao uso de
instrumentos nacionais e estrangeiros, ocupou a agenda de discussões desse
festival. Se a temática da deturpação da música popular brasileira, por um lado,
não se resolveu completamente, por outro, suscitou algumas revisões por parte
de críticos, jornalistas e compositores.
75
Evidência lapidar desse processo pode ser observada na imprensa,
particularmente em um artigo escrito por Nelson Motta, publicado em 2 de
fevereiro de 1968, em sua coluna Roda Viva, no jornal Última Hora, intitulado A
Edu Lôbo. Neste artigo, Nelson Motta tece uma extensa crítica a Edu Lobo, por
este não reconhecer a importância das novas experimentações produzidas
pelo grupo baiano:
É estranho que um homem sensível, espírito permanentemente aberto às
novas experiências, reaja assim [contrário] diante da linguagem de Tropicália
ou Soy Loco por ti, América. É certo que as melodias são fracas, primárias,
quase ridículas diante da obra anterior de Gil e Caetano, mas é tão importante
o que dizem as letras que as melodias ali funcionam como meros acessórios.
[…] Aceitar estas novas experiências não implica em negar Tom, Carlos Lyra,
Baden ou Chico Buarque. Pelo contrário, é mais uma frente aberta pela música
75
A questão da integração de instrumentos e recursos musicais que não fossem de origem nacional
atingiu um grau tão elevado de politização que se tornou alimento, até mesmo, para anedotas. Logo após
ser divulgado o resultado final do festival, Caetano ao ser entrevistado por jornalistas da Rádio Jovem Pan
e questionado em relação aos novos elementos que passava a incorporar em suas canções, comentou que
na imprensa carioca havia circulado o seguinte recado: “[…] lá no Rio, escreveram assim: Caetano vai
usar guitarras [e] quando chegar na Bahia vai tomar uma surra de berimbau.” Depoimento disponibilizado
na reapresentação dos festivais em programa de homenagem aos 35 anos da TV Record.
103
brasileira em busca de uma linguagem atual e coerente com a nossa época,
buscando uma visão crítica do mundo.” (UH, 02/02/1968: 7)
76
Além dessas investidas por meio da imprensa que, mesmo gerando
polêmicas, contribuíram para a divulgação e valorização dos preceitos estéticos
do grupo tropicalista, deve-se salientar que a consagração dos novos
procedimentos efetivou-se no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV
Record, em 1968, no qual se inscreveram uma quantidade expressiva de
canções que se utilizavam de recursos elétricos e eletrônicos como
componentes predominantes de suas composições:
“A música popular brasileira entrou, finalmente, na era da eletrônica: agora,
quando se realiza um festival, as figuras mais importantes não são os cantores
ou compositores são os eletrecistas. […] Êste momento eletrônico da música
popular brasileira, esta sendo representado no IV Festival da TV-Record de
São Paulo por uma profusão de guitarras elétricas em quase todos os
acompanhamentos, ao lado do emprêgo de mecanismos mais complicados,
como a bateria eletrônica manejada por Olavo Bastos em “São Paulo, Meu
Amor”, e a caixa de sons inventada pelo russo Theremim em 1928,
ressuscitada por Os Mutantes. (VEJA, 20/11/1968: 55)
Contudo, a aderência de um conjunto maior de compositores à
incorporação de instrumentos e recursos “modernos” não representou de forma
alguma o aliciamento das tensões entre emepebistas e tropicalistas. Edu Lobo,
um ano após o início do conflito delineado entre os dois grupos, apesar de
reconhecer um intuito renovador na proposta do movimento tropicalista, que
inicialmente não havia entendido, ainda mantinha uma posição de discordância
e distanciamento:
O movimento tropicalista é uma coisa conjunta com bastante unidade,
realmente é uma proposta inteiramente nova. Mas eu tenho uma série de
críticas, uma série de coisas que boto em jogo: fui fundamentalmente contra o
movimento no seu começo, não cheguei a entender bastante e depois talvez
76
É importante frisar que três dias depois de publicar este artigo, Nelson Motta lançaria na imprensa o
artigo “A cruzada tropicalista”, que apesar de seu teor irônico e debochado, contribuiria para a divulgação
do movimento tropicalista.
104
com mais lucidez, entendi muito mais o tipo de trabalho que eles se
propuseram a fazer.” (MELLO, 1976: 130)
As discordâncias de Edu Lobo, antes de se dirigirem, especificamente,
para o conteúdo das propostas do movimento tropicalista, se encaminhavam
mais propriamente para os procedimentos utilizados por esse grupo, pois o uso
da agressão em muito se distanciava das técnicas voltadas para uma proposta
didática com base na conscientização catártica do público. Desse modo, Edu
Lobo indicava que: “[…] a agressão não é a única maneira de subverter o que
há de ruim e a qualidade musical [daí derivada] é insatisfatória […]” (FF,
14/11/1968: 85)
O posicionamento de discordância em relação ao uso de procedimentos
que se ativassem por meio da agressão contra o público sinalizava para um
outro impasse, que se configurava entre as propostas de Edu Lobo e Caetano
Veloso. Para o primeiro, engajamento e qualidade musical se apresentavam
como objetivos paralelos e congruentes, em que o aperfeiçoamento técnico-
musical se colocava como instrumento essencial para o aprimoramento da obra
e do processo de comunicação com o público. Para o segundo, o uso da
agressão não tinha por função a revitalização da qualidade musical ou do bom
gosto, ao contrário, encontrava substrato em elementos considerados cafonas,
de modo a se apropriar do kitsch como meio para subverter os parâmetros de
hierarquização sociocultural estabelecidos e denunciar os limites de uma
proposta de conscientização catártica, que por vezes se realizava de modo
paternalista e autoritário.
Ou seja, esses procedimentos de criação cultural centrados no
deslocamento e oscilação das fronteiras entre culto e cafona, bom e mau
gosto, popular e erudito, manejados por Caetano e pelos tropicalistas, se
fundiam numa proposta que “reaproveita e tematiza a ambigüidade, as
interferências tradicionalmente mal dominadas entre diferentes níveis culturais,
típicas da situação brasileira, transformando-as numa estética.” (MAMMI, 1996:
190)
No transcorrer de 1968, as polêmicas que envolviam o grupo tropicalista,
seja na imprensa, seja em suas apresentações, tomariam formato adensado
nos festivais e catalisariam o embate entre MPB e Tropicália. Se no ano
105
anterior o centro dos conflitos havia se delineado especificamente no festival
promovido pela TV Record, neste ano, devido à enorme quantidade de festivais
promovidos por diversas emissoras, as tensões se pulverizariam de forma mais
abrangente no IV Festival de Música Popular Brasileira e no III Festival
Internacional da Canção, transmitidos, respectivamente, pelas TVs Record e
Globo.
No IV Festival de Música Popular Brasileira, de 1968, a influência e
domínio do grupo tropicalista se manifestavam não somente em relação à
presença de um grande número de compositores que se apresentavam com
instrumentos elétricos e eletrônicos, mas no próprio resultado final estabelecido
pelo júri, que premiou três canções tropicalistas no conjunto das quatro
primeiras posições.
77
O clima de tensão entre emepebistas e tropicalistas se insuflou a tal
ponto, que até mesmo nos títulos das matérias publicadas pela imprensa era
possível identificar as cisões entre os grupos. Após a divulgação do resultado
final do IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, que premiava
Tom Zé e Edu Lobo, respectivamente, com o primeiro e segundo lugar, o
Jornal da Tarde, em 10 de dezembro de 1968, publicou uma matéria com o
seguinte título: “Depois da vitória, duas festas na Augusta”. Embora, os dois
compositores tenham decidido comemorar a premiação do festival em casas
noturnas localizadas na mesma rua, em São Paulo, de forma nenhuma
aceitariam se reunir no mesmo espaço, por conta dos conflitos entre os dois
grupos.
Edu Lobo, ao comentar a premiação definida pelo júri, deixava evidente
certo desprezo com relação ao fato de não ter conquistado o primeiro lugar,
com o intuito de não valorizar, ainda mais, o desempenho tropicalista no
festival. Ao ser questionado, inicialmente, sobre o primeiro lugar alcançado pela
canção de Tom Zé, Edu Lobo logo desviou o foco de sua resposta,
enaltecendo as qualidades da canção “Sentinela” de Milton Nascimento: “Olha,
77
Tom Zé ficou em 1º lugar com “São, São Paulo, Meu Amor” (Tom Zé), seguido por Edu Lobo, em
lugar, com “Memórias de Marta Saré” (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), Gal Costa, em 3º lugar,
com “Divino e Maravilhoso” (Caetano Veloso), e os Mutantes, em 4º lugar, com “2001” (Os Mutantes).
106
Sentinela é música aqui e na China. É um verdadeiro banho. Aquilo é que é
música. E o Milton [Nascimento] é genial […]” (JT, 10/12/1968: 29)
78
Retomada a questão, Edu Lobo novamente deslocou o seu centro,
apontando que o primeiro lugar neste festival, tanto para ele quanto para o seu
parceiro, Gianfrancesco Guarnieri, nada significava, destacando somente a
conquista do prêmio de melhor arranjador:
“Olha, pensa um pouco. O que é que representa para o Guarnieri um primeiro
lugar num festival nacional de música popular. Nada, representa quase nada.
Agora, eu gostei, já disse, foi do prêmio de melhor arranjo. Isso é que foi
bacana. (JT, 10/12/1968: 29)
Quanto à participação de Caetano no III Festival Internacional da
Canção, de 1968, a relação de conflito não se deu diretamente com os
emepebistas, mas sim com o público estudantil de esquerda, que nutria grande
empatia pelo sentido engajado das canções produzidas pelos compositores
vinculados à MPB.
A apresentação de Caetano e sua canção “É proibido proibir”, que se
realizou, mais precisamente, como um happening, conjugava uma dança com
forte apelo erótico, citações de um poema de Fernando Pessoa, a presença de
um hippie aos gritos, além de uma perturbadora introdução atonal, suscitando a
provocativa interação desses elementos, uma ampla rejeição por parte do
público, que logo se desdobrou numa cena de difusa agressão entre palco e
platéia.
Rogério Duprat, que realizou os arranjos de “É proibido proibir”, em
entrevista três dias antes da apresentação de Caetano, ao comentar a função
dos arranjos e a inserção de novas sonoridades junto à canção, já sugeria
sutilmente o que poderia ocorrer na noite de apresentação de Caetano no
festival, deixando evidente o caráter consciente e programado do futuro
happening: “Veja, Caetano e Gil não pensam em música só na hora em que
compõem. Eles pensam, inclusive, no local que essa música será apresentada,
78
Este posicionamento, que revela certo desconforto de Edu Lobo em relação ao tropicalismo, distante de
ser uma ação isolada, até hoje se manifesta de modo semelhante. Em entrevista recente, ao ser
questionado sobre qual seria o grande mérito do tropicalismo, Edu Lobo, novamente, deslocou o foco da
questão e respondeu: “Na verdade, quando explodiu a história do tropicalismo, eu estava bem mais
interessado no Clube da Esquina.” (in: NAVES, 2004: 266-69)
107
para adaptá-la aos efeitos de luz, à técnica de som [e ao público].” (JT,
12/09/1968: 19)
O discurso efusivo feito por Caetano, em meio aos palavrões, vaias e
objetos que eram jogados contra o palco, se dirigia de maneira específica ao
público estudantil, identificado com o engajamento de orientação nacional-
popular e, de forma mais ampla, à estrutura comercial dos festivais, de modo a
situar o caráter de perseguição que passava a ser incorporado pelo público de
esquerda em relação às propostas de atuação artística que não evidenciassem
um cunho imediatamente político de defesa nacional:
“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? […] O
problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira!
[…] Gilberto Gil está comigo pra nós acabarmos com o festival e com toda a
imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com isso tudo de uma vez! Nós só
entramos em festival pra isso, não é, Gil? Não fingimos, não fingimos que
desconhecemos o que seja festival, não. […] Nós, eu e ele, tivemos [a]
coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas, e vocês? E vocês?
Se vocês, se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!
(in: LUCCCHESI, 1993: 274)
Apesar de todo o incidente causado, a apresentação de “É proibido
proibir” no Teatro da Universidade Católica (TUCA), em São Paulo, esteve
distante de representar um fracasso total para Caetano, já que a participação
pensada por ele estava mais voltada para instigar o público estudantil do que
necessariamente, para agradar os jurados.
79
Conseqüentemente, a sua
atuação neste festival não se voltava para o reconhecimento e premiação, junto
ao público e ao júri, mas procurava se expressar diante destes de modo
provocativo e impactante. De acordo com Caetano: “[…] não estou ligando prá
classificação. O que me interessa é desclassificar as coisas.” (JT, 16/09/1968:
23)
79
A idéia de participar desse festival provinha mais precisamente das intenções de Guilherme Araújo,
empresário de Caetano, do que de sua vontade própria em adentrar à competição. Após concordar com a
inscrição e pela apresentação de uma canção que carregasse o lema grafado pelas manifestações dos
estudantes franceses, em maio de 1968, Caetano se interessou, ainda mais, por sua apresentação,
principalmente, depois de pensar em sua polemização através de um happening.
108
Assim, o ato interessado de desclassificar as coisas se direcionava para
a crítica às referências hegemônicas erigidas pela MPB, lastreadas no ideário
nacional-popular e cultuadas pelo público estudantil ali presente – que
mantinha uma posição refratária em relação às intervenções que não
expressavam uma ligação direta com a tradição musical brasileira –, bem
como, para o espaço do festival que lhe atestava legitimidade. A partir da
interação desses fatores, Caetano explicava a sua participação no festival:
“Entrei no Festival para destruir a idéia que o público universitário, soit disant
de esquerda
, faz dêle. Êles pensam que Festival é uma arma defensiva da
tradição da música popular brasileira. E a verdade mesmo é que Festival é um
meio lucrativo que as televisões descobriram.” (JB, 26/09/1968: 1)
A crítica feita por Caetano ao público estudantil e, consequentemente,
aos festivais, possuía duas facetas distintas, porém complementares. Primeiro,
tinha por objetivo diluir as representações construídas em torno dos festivais,
enquanto espaço de defesa da tradição musical brasileira, confrontando-as
com a proposta das emissoras que encontravam na música popular brasileira
um produto altamente valorizado, portanto, em condições de ser
comercializado em larga escala. Em segundo lugar, colocava em xeque o
próprio estatuto da obra de arte, pois a principal preocupação do artista não
estava mais centrada na construção de uma obra musical articulada em sua
forma e conteúdo, para a ampla compreensão do público, mas para as
intervenções que se produziam num determinado espaço, de modo que essas
atingissem um grau impactante, a ponto de se tornarem o próprio
acontecimento artístico, consumando-se num happening.
Desse modo, a ação de Caetano, assim como outras intervenções
tropicalistas, tinha por finalidade expor as condicionantes comerciais que
passavam a “borrar” e, ao mesmo tempo, se tornavam o elemento constituinte
da obra de arte na sociedade contemporânea, gerando um objeto que somente
se materializa artisticamente na sociedade capitalista, como produto que se
realiza a partir do mercado.
Além disso, a intervenção de Caetano se articulava com uma
determinada leitura realizada pelos tropicalistas, na qual a obra de arte tinha o
109
seu estatuto problematizado enquanto criação com elevado grau de elaboração
e reconhecimento, a partir do deslocamento dos critérios de apreciação
estética que a produção artística, até então, entificava. Dentro dessa
perspectiva, a problematização, através de sátiras e paródias, se consumava
por meio de uma crítica corrosiva da própria idéia de obra de arte, na qual o
happening adquiria uma posição de centralidade e se tornava o próprio
acontecimento artístico.
80
Guilherme Araújo, o empresário do grupo tropicalista,
em entrevista concedida à Revista Intervalo, em 1968, explicitou uma leitura
semelhante acerca da diluição do caráter contemplativo e estatutário da obra
de arte:
“Não é possível fazer arte hoje. Quando Caetano e Gil faziam arte, passavam
fome. Hoje são atores, personagens que sabem o que fazem para ganhar
dinheiro. […] amor à arte é coisa de gente atrasada. Conheço artistas que não
quiseram apelar e que aconteceu? Acabaram virando comerciantes de tecidos
ou de perfume. […] É preciso acabar com a idolatria a obra de arte.”
(INTERVALO, 1968: 36)
Assim, a idéia de destruição das propriedades que coferiam um sentido
de idolatria à obra de arte passava a se tornar o alvo privilegiado dos
happenings, que nas intervenções tropicalistas, ao articular a ligação dos
aspectos estéticos e comerciais da produção artística contemporânea, assumia
e denunciava o espaço ocupado pela arte na sociedade capitalista, a partir de
uma visão dessacralizadora da obra de arte. Conforme aponta Celso Favaretto:
“No tropicalismo, a colocação do aspecto estético e do aspecto mercadoria no
mesmo plano faz parte do processo de dessacralização, da estratégia que
dialetiza o sistema de produção de arte no Brasil por distanciamento-
aproximação do objeto-mercadoria. Esta posição destoava de outras, quer de
esquerda, quer de direita, que, embora com justificativas diversas,
condenavam, unanimemente, o envolvimento comercial da arte, considerado
naquele momento como compromisso com a indústria cultural. A atitude
80
É interessante notar que o próprio discurso proferido por Caetano contra a platéia no TUCA se tornou
objeto comercializável, já que, após o incidente, a Philips lançou um compacto com a canção “É proibido
proibir” e a gravação do discurso feito por Caetano em sua apresentação no festival. Com isso, o
happening alcançava um lugar de destaque, tal qual aquele ocupado por suas principais criações artísticas.
110
tropicalista foi de desafio frente ao maniqueísmo cultural […]” (FAVARETTO,
2000: 140)
Desta forma, a proposta de intervenção tropicalista que selava a sua
atuação no mercado, estava longe de representar uma aderência passiva ao
circuito de comercialização de bens culturais. Ao contrário, tinha por objetivo a
afirmação de um projeto no interior da indústria cultural, com o intuito de
subverter as suas estruturas por dentro. Intervenção que, como salientou Ismail
Xavier: “[…] conseguiu, por certo tempo, manter um teor subversivo dentro da
engrenagem do mercado através de uma reinvenção acelerada na composição
das canções e nos seus modos de apresentação.” (1993: 20)
Ao adotar procedimentos não convencionais e provocadores, tanto para
aqueles que demandavam uma atitude consciente e engajada, como para os
que exigiam uma postura de respeito à moral e aos bons costumes,
81
os
tropicalistas, em diálogo com o incipiente cenário contracultural, agregavam
técnicas que ultrapassando os limites da canção, se revolviam nos aspectos
comportamentais.
Com base nesse diálogo, as ações do grupo tropicalista se
distanciavam, enormemente, das proposições contidas nos shows e
apresentações de artistas vinculados à MPB, nos quais a postura de atenção e
respeito se voltava para o processo de comunicação com o público, no sentido
de se transmitir, via canção, um conjunto particular de idéias. Para os
tropicalistas, o ato de polemizar valores e práticas sociais estabelecidas tinha
por finalidade problematizar determinados aspectos comportamentais que não
se apresentavam, de modo imediato, como conservadores, com o intuito de
expor as suas fissuras e contradições.
Neste sentido, ao invés de priorizarem, no processo de criação cultural,
um sentido de crítica social com vistas à transformação da realidade brasileira,
os tropicalistas definiam os seus procedimentos por meio de uma crítica
cultural e, ao mesmo tempo, comportamental que, sintonizada com o ideário
contracultural “[…] em lugar de ‘planejar uma revolução futura’, trata-se de viver
81
A Rede Tupi que contou com a participação do grupo tropicalista para a apresentação do programa
Divino, Maravilhoso, entre setembro e dezembro de 1968, recebeu inúmeras cartas de telespectadores e
prefeitos de cidades interioranas para a retirada do programa do ar, uma vez que o consideravam
altamente agressivo à família e a ordem social.
111
a mudança na transgressão direta e cotidiana, o que significa parodiar tanto a
sociedade quanto a si mesma.”(ADELMAN, 2001) Transgressão paródica que,
fundamentada em atitudes incômodas e ironicamente contestatórias, se
tornava instrumento para uma prática que procurava se afirmar enquanto verve
subversiva e dessacralizadora.
112
III - TRADIÇÃO E MODERNIDADE
1. Edu Lobo, entre o popular e o universal
Para se pensar a relação entre tradição e modernidade, assim como o
diálogo estabelecido entre informações musicais populares e cosmopolitas, a
partir das criações musicais de Edu Lobo e Caetano Veloso, torna-se
importante retomar parte do debate historiográfico que cristalizou, entre as
décadas de 70 e 80, um posicionamento teórico específico acerca da canção
engajada e nacionalista, que forneceu os parâmetros nodais para a formação
da MPB na década de 60.
Este debate que teve papel predominante no processo de criação de
determinadas categorias para a análise da produção cultural da década de 60,
também foi responsável pela condensação do termo canção nacional-populista
de protesto, enquanto elemento principal e definidor da produção musical que
se aglutinaria em torno da MPB. Além disso, o referido termo assumiu uma
definição na qual o conjunto de canções que este passou a caracterizar tornou-
se sinônimo de criação cultural desprovida de preocupações formais, logo
expressão da pobreza estética associada ao engajamento.
Seguindo esta esteira, trabalhos como Música Popular: de olho na
fresta, de Gilberto Vasconcelos, e Cultura e Participação nos anos 60, de
Heloísa Buarque de Holanda e Marcos Augusto Gonçalves assumem
posicionamentos específicos, ao desconsiderar o diálogo entre informações
musicais “locais” e “cosmopolitas”, “populares” e “eruditas”, promovido pelas
composições de diversos artistas vinculados à MPB, na década de 60.
Relegando-as a segundo plano, esse autores reduzem um conjunto expressivo
de canções a meros instrumentos panfletários de politização.
Gilberto Vasconcelos, na referida obra, no próprio título do capítulo
dedicado à análise da canção de protesto e à tropicália, “Da redenção do
impasse: canção de protesto e tropicália”, deixa evidente o posicionamento que
lhe seria subjacente e forneceria o suporte para a sua argumentação. Desta
forma, aponta que:
113
“[…] em seu empenho de veicular uma mensagem de conteúdo “participante”,
a canção de protesto cometeu o equívoco de relegar a segundo plano
o que é
fundamental na música: sua dimensão estética
. Diante das contradições que
explodiam por todos os lados da vida nacional, ela se incumbiu de subordinar
despoticamente o elemento estético às exigências imediatas da agitação
política
. Resultado: a questão da função social da música popular acabou
sendo concebida de maneira unilateral e esquemática
.” (grifos nossos) (1977:
42)
Os elementos destacados não deixam dúvida quanto à posição de
Vasconcelos em relação à produção musical sintonizada com o engajamento
de orientação nacional-popular na MPB. Segundo o autor, as exigências
imediatas da agitação política subordinaram despoticamente o elemento
estético. Desse modo, a dimensão estética foi deslocada para o segundo
plano, uma vez que as canções foram concebidas de maneira unilateral e
esquemática.
Heloísa Buarque de Holanda e Marcos Augusto Gonçalves, na
mencionada obra, apesar de percorrerem um caminho diferente ao de
Vasconcelos, para abordar a produção cultural nos anos 60, chegam a uma
conclusão semelhante ao indicar que:
“Em meados da década [de 60], o panorama crítico e criativo da música
popular era dominado pela presença de uma forte corrente nacionalista e
engajada que, com o declínio da Bossa-Nova e a subida ao poder das forças
conservadoras, encontrava um terreno propício para se desenvolver,
especialmente entre o público estudantil, avesso às formas culturais que
pudessem ser relacionadas a uma indesejável “invasão cultural imperialista”.
Músicas empenhadas, de temática insistentemente nordestina, mais
preocupadas com o “conteúdo” do que com a renovação formal. Essa espécie
de protest song nacional contava com o apoio de um considerável setor da
crítica que tratava de zelar pela “autenticidade de nossas raízes” e pela
adequação das mensagens propostas pelas canções
. (grifos nossos) (1982:
53)
114
Ou seja, enquanto a tese da politização como elemento de depreciação
estética da canção se apresenta para Vasconcelos como fator de limitação que
condicionou a produção musical a procedimentos unilaterais e esquemáticos,
para Holanda e Gonçalves, a politização se reveste do caráter conteudístico
das canções, que, por conta disso, se retinham frente à renovação estética e
formal.
Em ambas as interpretações predomina uma apreciação que centra o
seu foco de análise somente nas letras das canções, nas quais,
evidentemente, não se pode desconsiderar o sentido de engajamento.
Contudo, ao dispensar maior atenção ao código musical, esses trabalhos
acadêmicos contribuíram para a construção de uma linha interpretativa que
caracterizou de modo homogeneizador um universo multifacetado e balizou o
debate historiográfico em torno do conflito entre MPB e Tropicália.
Aliás, para a compreensão da parcela da crítica musical e da produção
historiográfica que cristalizou o conceito de canção nacional-populista de
protesto, por vezes utilizado como adjetivo e único elemento definidor da
produção musical em torno da MPB, há que se levar em consideração a
relação de identificação de parte considerável desses trabalhos com o ideário
tropicalista e com a formação de uma sólida memória social que gerou um
outro binômio, no qual o grupo tropicalista passou a ser identificado como
sinônimo de movimento de vanguarda.
Assim, a memória construída em torno do movimento tropicalista, que
em determinados casos assumiu um tom exaltado para reafirmar a trajetória e
as conquistas obtidas pelo movimento, neutralizou diferenças e colocou em
segundo plano um amplo conjunto da produção musical associada à MPB, que
buscava encontrar caminhos e procedimentos específicos para sintetizar
diferentes referências musicais que não se restringiam ao âmbito nacional-
popular.
Num sentido diferente a este, parte da produção acadêmica atual tem
procurado rever determinadas dicotomias, ao se direcionar para a construção
de uma linha de interpretação mais voltada para a identificação da diversidade
de elementos, formas e estilos musicais que caracterizaram a MPB na década
115
de 60. Essa perspectiva está presente nos trabalhos de Luiz Antonio Giani
82
,
Arnaldo Contier
83
e Marcos Napolitano
84
, que procuraram revisar algumas
interpretações dualistas – conteudistas/panfletários versus formalistas/
experimentais – que informaram, durante um período considerável, o debate
historiográfico.
Luiz Antonio Giani faz uma pertinente ressalva que deve ser considerada
ao se pensar a relação entre arte e política, junto às questões que ventilavam o
debate em torno do engajamento do artista e politização das linguagens
artísticas, nos anos 60, pois “[…] é importante observar que o imediatismo
político, mesmo nas práticas em que este se coloca de forma claramente
definida e intencional, não determina necessariamente o rebaixamento
estético”. (1985: 15)
Este apontamento é de fundamental importância, uma vez que a
produção musical de Edu Lobo, ao se sintonizar com a questão do
engajamento político e com elementos da tradição musical brasileira, de modo
algum, deixou de dialogar com caracteres cosmopolitas da modernidade
musical. Assim, coloca-se como condição primordial para este trabalho, a
análise dos principais aspectos e características musicais integrados pelas
criações deste artista, como meio para se investigar as hipóteses levantadas
por Vasconcelos, Holanda e Gonçalves.
Quanto à estruturação harmônica das canções de Edu Lobo, na qual
transparece um dos elementos que mais desperta a atenção em sua obra, é
recorrente o uso de dissonâncias que se apóiam em acordes de 7a., 9a., e
13a., que atestam um sentido de enriquecimento musical e maior exploração
do campo harmônico em suas composições. Estrutura harmônica construída,
essencialmente, com base no piano e violão. Junto a isto, também se identifica
a combinação voz e violão, característica fortemente cristalizada em torno da
Bossa Nova, num conjunto significativo de suas canções.
82
GIANI, Luiz Antonio. A canção de protesto: d´O subdesenvolvido à canção do bicho e proezas de
satanás (1962-1966). Dissertação de Mestrado, IFCH/Unicamp, Campinas: 1985.
83
CONTIER, Arnaldo Daraya. “Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto
(os anos 60)”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh/Humanitas Publicações, vol. 18,
35, 1998, p. 13-52.
84
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a Canção: engajamento político e indústria cultural na MPB
(1959-1969). São Paulo: Annablume, 2001.
116
A formação instrumental em termos de conjunto que acompanhava Edu
Lobo, geralmente ao violão, em grande parte esteve definida pela utilização do
piano, contrabaixo, bateria e flauta. Estrutura semelhante ao combo, entendido
como um pequeno conjunto de jazz. Por conta disso, não por mero acaso, são
bastante comuns nos primeiros discos de Edu Lobo a presença de timbres
instrumentais que se aproximam do jazz norte-americano.
Não obstante, ao se analisar o processo de formação das referências
musicais que se articularam em torno da obra de Edu Lobo neste período,
deve-se ponderar as influências diretamente ligadas ao jazz. Pois, ao se
remeter ao contato que teve com esse gênero musical, no momento inicial de
sua carreira, Edu Lobo frisou: “Ouvi muito pouco Jazz, quase nada. Só nas
boitezinhas. Mas realmente eu nunca fui muito ligado no Jazz, nunca fui
conhecedor profundo, sempre meio por fora.” (MELLO, 1976: 190)
Com isso, a presença de determinadas características, como o uso
constante de acordes e harmonias dissonantes, a formação de conjunto e
timbres instrumentais geralmente associados à influência do jazz, talvez
possam ser entendidas pela última frase citada por Edu Lobo, ao indicar que
estes elementos foram apreendidos sempre meio por fora. Desse modo,
acredita-se que tais características foram, em grande parte, incorporadas por
este artista através do filtro realizado pela Bossa Nova, ao sintetizar diversos
elementos musicais ligados ao jazz, assim como, em relação à música
impressionista, cujas depurações foram assimiladas por Edu Lobo, atestando
às suas composições um sentido mais cosmopolita.
85
Aliás, Arnaldo Contier, em artigo que analisa a relação entre o
engajamento artístico e a criações musicais de Edu Lobo e Carlos Lyra
86
,
observou, em relação a esse aspecto universalista da obra musical de Edu
Lobo, que:
85
Em entrevista concedida, em agosto de 1999, para os pesquisadores do Núcleo de Estudos Musicais do
Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes, Edu Lobo, ao ser indagado sobre
o seu contato com o jazz, respondeu: “[Hoje] Eu escuto muito. Mas o meu contato com o jazz, no início,
foi através da bossa nova. Eu não era um ouvinte de jazz antes da bossa nova. A partir da bossa nova, que
era influenciada pelo jazz, é que eu fui me ligando.” (in: NAVES, 2004: 238)
86
Idem.
117
“A aproximação da obra de Edu Lobo com o simbolismo ou impressionismo
musical francês na música erudita (Claude Debussy, Maurice Ravel) ou com o
neoclassicismo (Igor Strawinsky, Heitor Villa-Lobos) ou ainda com o jazz (Miles
Davis) vem exposta em algumas canções escritas durante os anos 60. Em
Ponteio (1967); Memórias de Marta Saré (1968), notamos de um lado, traços
do classicismo e do romantismo – preservação do sistema tonal; e, de outro, a
presença de algumas inovações timbrísticas inspiradas no Prélude à l´après-
midi d´un faune: Reflets dans l´eau (Debussy) ou as Bachianas (H. Villa-
Lobos). Na realidade, estas canções denotam as belas sonoridades, refinadas
e expressivas. Essa predileção incidiu nas pesquisas timbrísticas, incorporando
em sua música acordes paralelos (acordes utilizados conforme uma função
mais timbrística do que tonal), de escalas pentatônicas com algumas
colorações dissonantes.” (1998: 50)
Diante desta gama diversa de componentes musicais que tangenciaram
as produções musicais de Edu Lobo, Contier afirma que o diálogo
proporcionado pelas composições desse artista com as principais tendências
da música internacional do século XX, como o impressionismo, o jazz e a
própria Bossa Nova, resultaria na própria implosão das dicotomias entre
música “popular” e “erudita”.
Esta observação de Contier quanto ao caráter integrador da obra
musical de Edu Lobo, em que as dicotomias ente música “popular” e erudita”
cedem lugar a uma criação que sinaliza para um complexo e hábil cruzamento
de informações e referências musicais, se revela importante. Visto que, o
próprio Edu Lobo, até mesmo em entrevista recentes, mantém um
posicionamento de discordância diante das interpretações que classificam a
sua obra como música popular extremamente elaborada e sofisticada, logo,
conceituada como criação musical “semi-erudita”. Com base nisso, Edu Lobo
ressaltou:
“É. Eu tenho lido muito, às vezes, assim: “sofisticado demais”. O que quer dizer
sofisticado demais? Parece que é um erro, que é um engano, se for popular
não pode ser sofisticado. Se for popular de verdade, segundo este
pensamento, tem que se preocupar em se ater às raízes populares. É aquela
118
velha história das harmonias mais elaboradas profanando a música popular
“pura”. (in: NAVES, 2004: 235)
Assim, para Edu Lobo, o principal problema subjacente às definições
que reconhecem no estilo sofisticado as propriedades “eruditas”, portanto
informações estranhas e distanciadas da música “popular”, está na dilatação do
distanciamento entre essas esferas, de modo não só a pontuar as suas
diferenças, mas a acentuar o grau de hierarquização entre estas.
A partir disso, as definições que deixam de reconhecer a intersecção de
diferentes matizes e matrizes em seu trabalho artístico, polarizando
informações congruentes e dividindo de modo antitético dados
complementares, tornam-se um empecilho para a construção de uma análise
que pretende compreender o sentido de um determinado trabalho musical.
Para Edu Lobo, os significados contidos numa obra só podem ser
compreendidos dentro de uma apreciação global de seus elementos, pois,
como o próprio artista ressaltou:
“Eu vejo o artista não como o compositor de uma canção só, mas de todas as
suas canções, num trabalho global. Não vejo sentido em existir uma música
que não tenha que ver com as outras da obra. Acho que é assim que se
analisa a obra de um artista e, é dessa forma que ela pode ficar.” (MELLO,
1976: 218)
No que diz respeito aos gêneros musicais com os quais Edu Lobo
buscou dialogar para a estruturação de sua obra musical, no período
demarcado por esta pesquisa, faz-se necessário sublinhar que a incorporação
destes não se concebia, necessariamente, de maneira integral e completa no
plano de suas composições. Uma vez que, em diversas canções é possível
identificar a presença de constâncias melódicas e desenhos rítmicos que
remetem o ouvinte a determinados gêneros musicais, acondicionados,
entretanto, a estruturas harmônicas e arranjos apoiados sobre outras bases
musicais.
Com isso, é possível verificar em suas canções a presença de traços
musicais ligados predominantemente a gêneros como: samba, baião,
119
embolada e ciranda, porém, em interação com informações musicais de
origens diversas. Devido ao cruzamento de elementos musicais variados,
proporcionado pelas criações deste artista, também nota-se a referência a
gêneros e ritmos populares, como os já citados, porém, manifesta somente em
algumas frases musicais da canção que constroem uma espécie de clima ou
ambientação em seu interior, na qual a linha rítmico-melódica reforça o tema e
conteúdo explanado na narrativa poética.
87
Neste quesito, Edu Lobo adotou certa filiação aos procedimentos que
haviam definido a formação da ala nacionalista da bossa nova, tendo Carlos
Lyra e Baden Powell como principais referências. Estes ambos procuravam no
diálogo com os gêneros populares, geralmente com o samba, a afirmação de
um sentido de engajamento da canção, ao se aproximar das formas musicais
populares e, tematicamente, dos problemas que afligiam as camadas
populares.
Com base nas premissas estéticas e ideológicas adotadas por estes
compositores, Edu Lobo também sintetizou procedimentos semelhantes ao
centrar o seu foco nos ritmos populares presentes no nordeste brasileiro, sem,
contudo, dispensar maiores elaborações na estrutura harmônica e arranjos de
suas composições.
A exploração de gêneros e ritmos populares, enquanto elo identificador
da brasilidade e elemento caracterizador das camadas populares que os
produziam, se apresentava como linguagem que, incorporada pelo artista,
reforçava o sentido de engajamento da sua obra, a fim de se estabelecer uma
criação e comunicação mais fluida com estes grupos sociais. Assim, as
composições de Edu Lobo, em que se evidenciam a criação de sonoridades e
ambientações próximas aos gêneros e ritmos populares do nordeste brasileiro,
se apóiam, em grande parte, no uso de determinadas escalas modais.
O próprio Caetano Veloso, em seu livro de memórias, Verdade Tropical,
reconhece que Edu Lobo, na década de 60, já se destacava pelo trabalho que
desenvolvia com a utilização do “modalismo nordestino”, ao indicar que “[…na
verdade o modalismo nordestino chegava a nós [compositores e letristas] mais
87
Canções como “Arrastão” (Edu Lobo e Vinícius de Moraes), “Chegança” (Edu Lobo e Oduvaldo Viana
Filho), “Borandá” (Edu Lobo) e “Aleluia” (Edu Lobo e Ruy Guerra), geralmente voltadas para a
exploração de temáticas ligadas às camadas populares e aos problemas sociais, podem ser citadas como
exemplos que se utilizam destes recursos e procedimentos.
120
através do carioca Edu Lobo do que da divisa da Bahia com Pernambuco […]”
(2004: 80)
A diversidade musical presente no nordeste brasileiro em larga escala
está assentada no emprego do modalismo
88
, que lhe atesta, principalmente no
plano rítmico e melódico, uma característica bastante peculiar. Não por
coincidência, foi através do uso de determinadas escalas modais que diversos
compositores, na década de 60,
89
buscaram uma forma de aproximação com
as sonoridades “caracterizadoras” da música regional, disseminadas pelo
nordeste brasileiro.
De acordo com o trabalho de pesquisa realizado por Ermelinda A. Paz,
90
que se volta para a identificação das diferentes manifestações do modalismo
na música “folclórica”, “popular” e “erudita” brasileiras, as escalas modais ou
modos mais recorrentes nas composições de Edu Lobo são o Dórico e o
Mixolídio.
91
Vale sublinhar que o modo mixolídio, identificado por Paz como um dos
mais presentes nas canções de Edu Lobo, também “É comum em
manifestações folclóricas de diversos países e regiões, a exemplo do baião
nordestino brasileiro”.
92
É interessante notar que Edu Lobo utilizou escalas modais específicas, a
fim de construir um sentido particularizador de suas composições, assim como
de seu engajamento por meio da canção. Seus procedimentos em muito se
distanciaram do trabalho de diversos compositores “eruditos” nacionalistas que
construíam as suas peças musicais baseadas no uso de citações. Conforme
observa Giani:
88
O uso que se fará neste trabalho da expressão “modalismo nordestino” se refere à presença de
determinados modos ou escalas modais que foram incorporadas, a partir de diferentes matrizes, pela
musicalidade do nordeste brasileiro. Para maior aprofundamento da questão do modalismo na música
brasileira, ver: PAZ, Ermelinda A. O modalismo na música brasileira. Brasília: Musimed, 2002.
89
Além de Edu Lobo, poderíamos citar Geraldo Vandré e Gilberto Gil, notadamente em seus primeiros
discos, como exemplos de compositores que produziram um conjunto significativo de canções baseadas
no uso do “modalismo nordestino”.
90
PAZ, Ermelinda A. O modalismo na música brasileira. Brasília: Musimed, 2002.
91
No período demarcado por esta pesquisa, Paz identifica a presença desses modos nas seguintes canções
de Edu Lobo: “Arrastão” (Edu Lobo e Vinícius de Moares), “Borandá” (Edu Lobo), “Chegança” (Edu
Lobo e Oduvaldo Viana Filho), “Memórias de Marta Sare” (Edu Lobo e Gianfrancesco Guanieri), “Reza”
(Edu Lobo e Ruy Guerra) e “Upa Neguinho” (Edu Lobo).
92
DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de Termos e Expressões da Música. Rio de Janeiro: Editora
34, 2004.
121
“A ‘literalidade’ geralmente reconhecida como ‘literalidade folclórica’ nos
estudos musicológicos, consiste na utilização de citações folclóricas na
construção musical. Principalmente as primeiras gerações de compositores
nacionalistas (até os anos 40) fizeram largo uso de citações.” (1985: 44)
Júlio Medaglia afirma que os procedimentos utilizados por Edu Lobo
para elaborar um tratamento específico do “material folclórico” dentro de uma
visão cosmopolita, representaram um caminho capaz de superar, no âmbito da
música popular, um impasse que haviam permeado toda a produção musical
“erudita” brasileira de orientação nacionalista durante o século XX:
“Neste aspecto ele [Edu Lobo] concretizou, no âmbito da música popular uma
aspiração que toda uma série de compositores – entre eles Villa-Lobos,
[Camargo] Guarnieri e [Cláudio] Santoro – pretenderam realizar no terreno da
chamada música “clássica”, desde o início do século. Do Arrastão ao Zumbi, do
Ponteio a Marta Saré Edu desenvolveu toda uma técnica de tratamento do
material folclórico a partir de uma visão urbana que em nada fico a dever aos
chamados mestres da música no Brasil.” (MEDAGLIA, 1971)
Apesar de um conjunto significativo de canções, em seu desenho
rítmico-melódico se estruturarem a partir do emprego de escalas modais
peculiares, aproximando-se de variadas formas musicais populares, contudo,
no que tange à percussão, as canções de Edu Lobo não se apoiaram no
emprego de instrumentos comumente associados à música popular ou à
tradição musical brasileira. A percussão, na maioria das canções, esteve
centrada na bateria, nos movimentos da baqueta sobre os seus aros, bem
como no uso da escova ou vassourinha, percutida sobre as caixas, tambores
ou pratos da própria bateria. Se por um lado esses componentes musicais não
lhe aproximavam da percussão tradicionalmente arraigada nas formas musicais
populares, por outro atestavam às suas canções maior identificação com as
sonoridades discretas e intimistas dos conjuntos de Jazz e Bossa Nova.
Estes elementos se adequavam perfeitamente ao estilo de interpretação
definido por Edu Lobo, no qual, ao invés da impostação carregada, sobreposta
aos instrumentos, predomina uma entoação mais intimista, de estilo cool,
122
notadamente influenciada pela forma de interpretação consagrada pela Bossa
Nova.
Cabe salientar que as diferentes referências musicais sintetizadas pelas
composições de Edu Lobo, além de apresentarem uma variedade
enriquecedora de suas canções, ao mesmo tempo expressam certa unidade
caracterizadora de sua obra musical. Pois, a relação entre modalismo,
impressionismo e dissonância longe de ser um conjunto disperso de
fragmentos, agrupados aleatoriamente, ao contrário, se definiu essencialmente
por seu inter-relacionamento e fusão na história da música ocidental, já que se
colocou como uma forma possível de construção musical, cuja estrutura se
distanciava dos parâmetros do sistema tonal europeu consolidado no século
XIX.
93
No que tange aos arranjos se apresenta outro aspecto, em que traços da
música “erudita” são associados às composições de Edu Lobo. A utilização de
naipes de cordas e metais predomina no interior de uma estrutura polifônica,
cuja execução, não necessariamente, explora efeitos contrapontísticos com
relação à interpretação, mas que reforça, principalmente, o conteúdo temático
ao longo da narrativa poética das canções.
Aliás, quanto ao conteúdo temático, Julio Medaglia aponta um elemento
específico que gerou uma marca distinta na produção musical de Edu Lobo e
grafou a narrativa poética de suas canções, neste período, a saber, a
exploração de temas épicos:
“Se a BN [bossa nova] havia se caracterizado pela prática do detalhe e da
linguagem camerística, segundo a bula rara e clara que nos deu João Gilberto,
através do grito de Elis Regina, Edu Lobo iria explodir novamente o grande
espetáculo musical. Se a BN, por suas próprias características básicas, tendia
para o intimismo Zona Sul, a abertura musical de Edu [Lobo] e suas relações
93
Segundo a definição contida no verbete “impressionismo”, no Dicionário de Termos e Expressões da
Música: “Termo surgido no século XIX, referia-se inicialmente à pintura de franceses como Renoir e
Monet. Chegou a ser usado na música de forma pejorativa, mas após o Prelúdio à tarde de um fauno, de
Debussy, a idéia acabou associada à obra do compositor, estendendo-se igualmente a alguns de seus
contemporâneos, como De Falla, Ravel e Dukas. Algumas das características musicais do movimento
foram O PARALELISMO, as ESCALAS DE TONS INTEIROS, O MODALISMO, as DISSONÂNCIAS
e a não-resolução harmônica de seqüências de acordes. In: DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de
Termos e Expressões da Música. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004.
123
com o teatro naturalmente o levariam a fazer uso de material folclórico e temas
épicos.” (MEDAGLIA, 1971)
Embora Edu Lobo tenha composto uma quantidade expressiva de
canções que hasteiam a temática lírico-amorosa, verifica-se, ao mesmo tempo,
um modo diferenciado de tratá-la. Esta temática, para além do mero encontro
ou desencontro amoroso, recoloca-se sobre outra ótica, na qual a conquista do
amor demanda esforços e lutas dos indivíduos, que se deparam
constantemente com as tensões da vida cotidiana, não mais caracterizada pela
paisagem e sociabilidade harmoniosas, mas pelos conflitos que regem a
sociedade.
Os meios para a concretização do amor no universo das canções de
Edu Lobo deixam de ser tratados de forma isolada e aglutinam-se a outras
questões que se atinam no bojo da vida social, como: trabalho, terra e
propriedade. Assim, as agruras sociais e os sentimentos humanos revolvem-se
no interior dos versos, ao sintetizarem as condições de indivíduos que estão no
mundo: ”Sem ter nação para viver / Sem ter um chão para plantar / Sem ter
amor para colher / Sem ter voz livre pra cantar”.
94
As intempéries humanas e sociais, distante de receberem uma versão
voltada para o lamento ou consolo daquele que se viu diante dessas situações,
são colocadas como barreiras que devem ser transpostas, pois: “É preciso ter
força para amar / E o amor é uma luta que se ganha / É preciso ter terra prá
morar / E o trabalho que é teu, ser teu / Só teu, de mais ninguém / Só teu, de
mais ninguém.”
95
A relação entre as personagens e o meio em que vivem deixa de ser
experimentada como simples contemplação passiva do espaço: “Barco deitado
na areia, não dá pra viver, não dá / Lua bonita sozinha não faz o amor, não
faz”, e passa a ser regida pelas intermitentes pressões que afloram da
realidade, onde as demandas por ações e decisões colocam os indivíduos na
94
“Canção da Terra” (Edu Lobo e Ruy Guerra) In: LP A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Elenco: ME-
19, 1965.
95
Idem.
124
condição de sujeitos da história: “Toma a decisão, aleluia / Lança o teu saveiro
no mar / Bê-a-bá de pesca é coragem, ganha o teu lugar.”
96
Nas canções de Edu Lobo, o mar enquanto paisagem a ser admirada
cede lugar a um ambiente em que o trabalhador – pescador – se depara a todo
o momento com situações que incitam a sua atenção e a ação para a
superação dos obstáculos colocados pelas forças da natureza: “Ê, tem jangada
no mar / Ê, iê, iêi, hoje tem arrastão / Ê, todo mundo pescar / Chega de
sombra, João”.
97
Junto às temáticas lírico-amorosas e às remetidas aos problemas e
questões sociais ligados ao nordeste e sertão brasileiros, as canções de Edu
Lobo ainda exploram motes relacionados ao mar e à sua experiência em
Recife, em que se apresentam referências à cultura popular e aos ritmos
musicais dessa região, como o frevo, embolada e cirandas.
98
Desse modo, as canções de Edu Lobo se direcionam para a busca de
outros espaços e sujeitos que compõem a formação sociocultural brasileira, ao
apresentar, por exemplo, o cotidiano das camadas populares e as contradições
sociais que permeiam a vida social no nordeste e sertão brasileiros.
Com isso, Edu Lobo concretiza em suas composições uma forma
específica de engajamento por meio da canção, na qual a politização do código
poético entrelaça um interessante diálogo com o signo sonoro, ao aglutinar
referências musicais populares, sem, contudo, dispensar elementos e
informações musicais cosmopolitas no processo de composição das suas
canções.
96
“Aleluia” (Edu Lobo e Ruy Guerra) In: LP A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Elenco: ME-19,
1965.
97
“Arrastão” (Edu Lobo e Vinícius de Moraes) Lp A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Elenco: ME-19,
1965.
98
Dentre o conjunto de canções que integram essas características constam: “Cirandeiro” (Edu Lobo e
Capinan), “Veleiro” (Edu Lobo e Torquato Neto), “O tempo e o rio” (Edu Lobo e Capinan), “No cordão
da saideira” (Edu Lobo), “Corrida de jangada” (Edu Lobo e Capinan) e “Embolada” (Edu Lobo,
Guranieri e Boal).
125
2. Caetano Veloso, em busca do som universal
Tendo como mote a questão entre tradição e modernidade nas criações
musicais de Caetano Veloso, cabe agora analisar como as canções produzidas
por este artista conceberam a relação entre a tradição musical brasileira e as
informações ligadas à modernidade musical, com o intuito de se identificar os
pontos de fusão e tensão, configurados tanto no plano da canção, como em
seu projeto de intervenção cultural.
Ao se enveredar pela literatura produzida sobre a trajetória artística de
Caetano Veloso, no período recortado por esta pesquisa, faz-se necessário
ressaltar que parte considerável dos trabalhos acadêmicos direcionou as suas
lentes para a produção musical desse artista, a partir do seu vínculo com o
movimento tropicalista.
Com isso, um pequeno, porém, importante, período da trajetória
artística, entre os anos de 1966 a 1967, no qual está situada a gravação do seu
primeiro disco, fora deslocado por conta da evidência adquirida pela fase
posterior – tropicalista -, na qual se efetiva a consagração da carreira musical
de Caetano Veloso.
Desse modo, ao invés de analisar as canções que se dividem entre o
primeiro e o segundo disco de Caetano Veloso, apreciando de forma antitética
os aspectos que as diferenciam, torna-se mais interessante verificar como
determinados aspectos e elementos musicais foram re-elaborados no processo
que se desdobra entre estes discos, a partir da incorporação de novas
questões que passaram a matizar a produção musical desse artista.
Entre os gêneros e ritmos musicais com os quais Caetano Veloso
buscou dialogar para elaboração das canções que compõem o primeiro LP,
verifica-se de modo mais predominante a presença da marcha rancho e do
samba. Gêneros que, sedimentados dentro da tradição musical brasileira, se
constituíam naquele momento como referência importante para os
compositores que procuravam imprimir nas suas canções um sentido engajado
de orientação nacional-popular. Entretanto, neste quesito, não se identifica nas
canções de Caetano Veloso esse propósito, tal como acontece na produção
musical de Edu Lobo, com o uso de escalas modais, no sentido de se obter
126
efeitos peculiares no plano rítmico e melódico, com vistas a se aproximar de
determinadas sonoridades tidas como “genuinamente” brasileiras.
99
Neste LP, percebe-se muito mais uma forma de aproximação com os
parâmetros musicais sedimentados pela Bossa Nova, do que,
necessariamente, um diálogo e incorporação de sonoridades ligadas à tradição
musical brasileira. Característica que se revela, principalmente, no plano da
interpretação. Se Caetano Veloso, por um lado, em seu livro de memórias, se
remete à ressonância dos estilos interpretativos, como o de Orlando Silva
sobre a sua formação musical, por outro não se pode desconsiderar a
influência e aproximação de Caetano Veloso a uma forma de interpretação
intimista que tinha por referência máxima a figura de João Gilberto.
100
No que tange à formação instrumental, predomina outra marca bossa-
novista, a saber, a combinação voz e violão, geralmente, acompanhados por
piano e bateria. Quanto à percussão, de modo semelhante a Edu Lobo, as
composições não se apóiam em instrumentos de percussão “tipicamente”
brasileiros. Ao contrário, as canções de Caetano Veloso, neste LP, se
sintonizam, diretamente, com os parâmetros ligados à Bossa Nova,
concentrando-se nos movimentos sobre o aro da bateria, bem como, no uso da
escova ou vassourinha, que favorecia a criação de ambientações intimistas.
Contudo, os efeitos obtidos, não se aproximam, de forma alguma, dos timbres
instrumentais associados ao jazz que predominam nas composições de Edu
Lobo.
Caetano Veloso, diferentemente de Edu Lobo, mantinha certo
distanciamento em relação aos procedimentos ligados ao jazz. Posição que já
revelava na década de 60, ao demonstrar maior interesse pelos cantores de
jazz do que, necessariamente, por seus músicos e instrumentistas
101
e,
atualmente, ao afirmar “[…] eu um joãogilbertiano radical, me agastava com a
vulgaridade dos efeitos jazzísticos pré-cool […]” (1998: 124). Segundo ele,
99
Apesar do modalismo não ser um traço predominante nas composições de Caetano Veloso, Paz aponta
para a utilização de distintos modos ou escalas modais nas seguintes canções desse artista: “Tropicália”
(Caetano Veloso), “Sol negro” (Caetano Veloso), “No dia em que eu vim-me embora” (Caetano Veloso)
e “Onde nasci passa um rio” (Caetano Veloso).
100
Aproximação que se revela, seja nas interpretações de Caetano Veloso, seja na de Gal Costa, em que
prevalece uma forma de interpretação anticontrastante.
101
Conforme depoimento concedido por Caetano a Zuza Homem de Mello: “Interesso-me muito mais por
cantores de Jazz, é o que gosto realmente, tenho a impressão que não sou músico, não me interesso muito
por toda música.” (MELLO, 1976: 190)
127
esses se faziam presentes, de modo excessivo, nas apresentações de Elis
Regina.
Os arranjos orquestrais em poucas canções mantêm passagens com
naipes de metais. Os naipes de cordas se sobressaem na maior parte das
canções, uma vez que contribuem para a formação da atmosfera lírica que
permeia todas as faixas desse LP. Com isso, a estrutura polifônica dos arranjos
não se direciona, necessariamente, para a construção de efeitos que têm por
base a exploração de movimentos contrapontísticos.
A estrutura harmônica das canções está assentada, fundamentalmente,
com base no violão e, em menor escala, no piano. Apesar de diversas
canções, nesse LP de Caetano Veloso, se utilizarem de acordes com 7ª e 9ª de
harmonias dissonantes, contudo, em sentido diferente ao preconizado por
diversos compositores da década de 60, em que transparece maior elaboração
na parte harmônica e forte influência bossa-novista, contatasse na linha
melódica um dos elementos que mais desperta atenção nas canções desse
artista. O uso de largos intervalos musicais nas primeiras canções de Caetano
Veloso, conforme observara Augusto de Campos (2005: 144-45) e, em alguns
casos, em permanente alternância entre graves e agudos, além de revelarem
certa inventividade na parte melódica, ao mesmo tempo, exigiam uma ampla
flexibilidade por parte do cantor ou intérprete.
102
Quanto aos temas mais constantes nas canções que integram esse LP
verifica-se a presença reiterada de motes subjetivos e intimistas, que se
alternam entre as temáticas amorosas e associadas à migração, à memória e à
sociabilidade vinculadas à “terra natal” desse artista, a Bahia.
103
A apresentação deste quadro geral de referências, relacionadas ao
primeiro LP de Caetano, se revela importante, uma vez que serve de base para
pensar o processo de seleção dos elementos que são incorporados ou estão
em diálogo no segundo e terceiro LPs de Caetano Veloso, nos quais as
102
Campos acena para a presença desses elementos, no primeiro LP de Caetano Veloso, nas seguintes
canções: “Coração vagabundo” (Caetano Veloso), “Quem me dera” (Caetano Veloso) e “Um dia”
(Caetano Veloso).
103
A única canção que se distancia dessas temáticas é “Maria Joana” (Sidney Miller), na qual se realiza
uma sutil crítica social ao comportamento da personagem homônima, expressa na decisão de rompimento
da relação com o eu-lírico – narrador – que encerra a narrativa afirmando: “Eu vou perguntar Joana o que
aconteceu, dinheiro não faz você mais rica do que eu.”
128
questões colocadas em pauta pelo tropicalismo assumem forma e conteúdo no
interior de suas canções.
O próprio desenho rítmico das canções adquire maior complexidade ao
incorporar variações melódicas mais extensas e diversificadas, que se
enriquecem, principalmente, pela “massa sonora” construída pelos arranjos
polifônicos de Duprat, os quais exploravam de modo acentuado os movimentos
contrapontísticos que:
“[…] “dialoga” com a melodia através de intervenções instrumentais,
citações e linhas melódicas independentes que fazem contraponto à linha
principal, fornecendo códigos que muitas vezes complementam ou
contradizem as idéias que estão sendo cantadas.” (VILLAÇA, 2004: 173)
Esta forma de elaboração dos arranjos se sintonizava, diretamente, com
as proposições estéticas das canções tropicalistas, cujas composições não
mais privilegiavam a escolha de um gênero musical nacional, mas
encampavam diferentes informações e estilos musicais, no quais os arranjos
assumiam uma função primordial ao sublinhar ou entrar em choque com a
dimensão rítmica, melódica ou narrativa da canção. Segundo Caetano Veloso:
“Em vez de trabalharmos em conjunto no sentido de encontrar um som
homogêneo que definisse o novo estilo, preferimos utilizar uma ou outra
sonoridade reconhecível da música comercial, fazendo do arranjo um elemento
independente que clarificasse a canção mas também se chocasse com ela. De
certa forma, o que queríamos fazer equivalia a “samplear” retalhos musicais, e
tomáva-mos os arranjos como ready-mades. Isso nos livrou de criar uma fusion
qualquer, uma maionese musical vulgarmente palatável […] Eu tinha a
consciência de que estávamos sendo mais fiéis à bossa nova fazendo algo que
lhe era oposto. De fato, nas gravações tropicalistas podem-se encontrar
elementos da bossa nova dispostos entre outros de natureza diferente, mas
nunca uma tentativa de forjar uma nova síntese ou mesmo um
desenvolvimento da síntese extraordinária bem-sucedida que a bossa nova
tinha sido” (VELOSO, 2004: 168)
129
Neste sentido, as canções de Caetano, que integram esses dois LPs
apresentam maior variedade de gêneros e ritmos musicais, como: marcha,
marcha-rancho, samba, baião e ritmos latinos que mesmo não sendo
incorporados, necessariamente, de modo integral no plano das composições,
recebiam nova roupagem ao integrarem uma ou outra sonoridade reconhecível
da música comercial, expressa, na maior parte das canções, através da
presença de elementos da música pop.
Assim, a introdução de guitarras e teclados, por exemplo, passou a
condicionar a criação de sonoridades, nas quais os timbres elétricos e
eletrônicos adquiriam maior visibilidade no interior das canções. A percussão,
que no primeiro LP se mantinha presa a movimentos sutis nos aros da bateria,
com a utilização de escova e vassourinha, agora passava a explorar outros
pontos da bateria, como os pratos e as caixas, e novos instrumentos
percursivos – bongô, tumbadora, agogô, reco-reco e caxixi, que ao se
somarem à introdução de ruídos, recursos de estúdios e sons incidentais
ampliavam a “massa sonora” e adensavam o caráter polifônico e
contrapontístico dos arranjos, bem como, a complexidade estrutural das
canções.
104
Este conjunto de elementos sintetizados no seio das canções, que
possibilitou um diálogo mais dinâmico entre as informações musicais “eruditas”
e a canção popular, só foi possível devido às contribuições dos maestros e
arranjadores: Júlio Medlagia, Sandino Hohagen, Damiano Cozzela e,
principalmente, Rogério Duprat, vinculados ao grupo “Música Viva”, pois:
“A experimentação que estes realizavam com música aleatória, concreta e
eletrônica, desde o início da década [de 60], centrava-se em pesquisa de novos
materiais, a relação entre música de vanguarda e música tradicional e relações
dessas pesquisas com o sistema de produção-consumo. […] Quando se
produziu o tropicalismo, estavam disponíveis, sem horizontes de trabalho: o
encontro com Caetano e Gil foi, de lado a lado, um encontro de interesses. A
área da música popular era a mais propícia para aplicar a concepção do
104
Esses traços podem ser identificados, em maior ou menor parte, na quase totalidade das canções que
constam em ambos os LPs, mas se apresentam de forma mais acentuada nas canções: “Baby” (Caetano
Veloso), “Clara” (Perinho Albuquerque/Caetano Veloso), “Eles” (Caetano Veloso/Gilberto Gil)
“Enquanto Seu Lobo Não Vem” (Caetano Veloso), “Panis et Circensis” (Gilberto Gil/Caetano Veloso) e
“Tropicália” (Caetano Veloso).
130
compositor de vanguarda como “designer sonoro” […] Trabalhavam segundo
uma idéia não artesanal, voltados para o fato da urbanização e consumo, e
para a renovação da tradição musical brasileira. Como os tropicalistas,
preocupavam-se com a questão do nacionalismo na arte.” (FAVARETTO,
2000: 41-42)
Assim, a aproximação entre os tropicalistas e o grupo “Música Viva”,
além de possibilitar àqueles o acesso a um conjunto de materiais e
informações musicais originais a serem utilizadas no campo da música popular,
ao mesmo tempo, atestou certo grau de experimentalismo às canções
tropicalistas.
105
Vale ressaltar que apesar dos recursos “modernos” contidos no universo
musical das canções de Caetano, embebidas pelas proposições tropicalistas,
ainda assim, estas não deixavam de estabelecer um diálogo com a tradição
musical brasileira. Aliás, este ponto é de fundamental importância para a
compreensão das propostas de intervenção cultural tropicalista, em que se
buscava não só um cruzamento entre o popular/nacional e o internacional, mas
também um diálogo entre tradição e modernidade.
Quanto ao diálogo efetuado por Caetano Veloso com a tradição musical
brasileira, Luiz Tatit defende a hipótese de que este se concebeu,
principalmente, por meio da releitura e re-interpretação das canções e
cancionistas do rádio
106
:
“Creio, assim, que Caetano detinha, nos idos de 1967 e 1968, dois projetos
para a canção brasileira. Um projeto explícito e ruidoso comprometido com a
ruptura e dessacralização de padrões coercitivos que imperavam na MPB da
época e outro implícito e em tom mais paciente que buscava reaver, na nova
era, o ethos da canção de rádio.” (TATIT, 1996: 275)
105
Sobre a questão do experimentalismo musical no movimento tropicalista, ver: VILLAÇA, Mariana
Martins. Polifonia Tropical: experimentalismo e engajamento na música popular (Brasil e Cuba, 1967-
1972). São Paulo: Humanitas, 2004.
106
Em entrevista concedida a Augusto de Campos, em 1968, Caetano, ao comentar sobre as influências
musicais e literárias que incidiram sobre a sua formação, respondeu: “Nunca ouço música erudita, a não
ser casualmente. Mas a música de rádio sempre me apaixonou.” (CAMPOS: 2005: 201)
131
Assim, os dois projetos de Caetano, salientados por Tatit, se concebiam
de forma complementar, uma vez que a releitura e re-interpretação das
canções do rádio representavam não somente a incorporação de um novo
material musical, mas também o “resgate de dicções esquecidas” do
cancionista brasileiro, que se apresentavam como parte da tradição musical
não integrada pelo estatuto estético da MPB.
Com base nesses elementos, as interpretações de Caetano em canções
como “Paisagem Útil” (Caetano Veloso), “Coração Materno” (Vicente Celestino)
e “Onde Andarás” (Caetano Veloso/Ferreira Goulart), além de conjugarem
releitura e paródia, também expressavam um diálogo com a tradição de
cancionistas brasileiros que teria o seu lastro musical em Sílvio Caldas, Vicente
Celestino, Orlando Silva e Nelson Gonçalves.
“Paisagem Útil", considerada a primeira canção tropicalista, em
referência à canção Inútil Paisagem, de Tom Jobim e Aluízio de Oliveira, além
de operar uma inversão no título da canção bossa-novista, ao mesmo tempo,
deslocava o foco de sua narrativa do plano da natureza para a realidade
urbana, em que esta última sobrepõe-se à primeira de forma a expressar os
aspectos do modo de vida urbano, principalmente, ligados à indústria e ao
consumo, que integravam de maneira subordinada a paisagem natural. Estes
elementos adquirem maior conotação e caracterização nos seguintes versos da
canção:
“[…] o céu vai longe e suspenso / em mastros firmes e lentos / frio palmeiral
de cimento / o céu vai longe do outeiro / o céu vai longe da glória / o céu vai
longe suspenso / em luzes de luas mortas / luzes de uma nova aurora / que
mantém a grama nova / e o dia sempre nascendo […] mas já se acende e
flutua / no alto do céu uma lua / uma lua oval vermelha e azul / no alto do céu
do Rio / uma lua oval da Esso […]” (VELOSO, 1967)
Ou seja, as imagens fragmentadas que conduzem a narrativa poética
expõem um conjunto de elementos da natureza que não se apresenta como
paisagem rica e vibrante a ser contemplada, mas como aspectos que se
integram, de forma desfigurada, ao acelerado ritmo de vida presente nas
cidades. Aspectos evidenciados nas frases que apresentam um “frio palmeiral
132
de cimento” sob “luzes de luas mortas” que, agora, para a sua iluminação
depende das “luzes de uma nova aurora”. Porém, as luzes que provêm de uma
lua nova e expressam a aurora do novo dia nada mais são que a iluminação
gerada pelos “mastros firmes”, os quais mantêm o logotipo de uma empresa
transnacional – a Esso – suspenso sobre o céu desta cidade. Situação em que
o choque entre o natural e o urbano, o arcaico e o moderno, não produzia uma
síntese resolutiva de suas ambigüidades, mas expunha os seus traços
contraditórios.
Na canção “Alegria, Alegria”, a qual Caetano, em diversas entrevistas,
indicou ser uma extensão e resultante de “Paisagem Útil”, uma vez que
pretendia resolver a partir daquela as questões abertas pela última, também se
identificam aspectos semelhantes à primeira canção tropicalista, tal como a
referência às dimensões conflitantes da realidade urbana, em processo de
fragmentação.
No entanto, em “Alegria, Alegria”, no mínimo mais dois elementos
podem ser destacados como nodais para a sua interpretação. O primeiro é a
caracterização da personagem que conduz a narrativa poética, um jovem que
anda pela cidade sem maiores preocupações em relação às questões sociais
ou ao engajamento político, ao contrário, toma “uma coca-cola”, pensa “em
cantar na televisão” e ainda menciona, frente ao clima de engajamento no
plano musical, a frase “uma canção me consola”. O segundo elemento a ser
destacado se revela, principalmente, nas referências feitas ao consumo e ao
moderno mundo das comunicações, que insuflavam o cotidiano social com
uma quantidade imensurável de informações, de modo que a própria
personagem se questiona “Quem lê tanta notícia”.
Em ambas as canções é possível identificar que a narrativa poética não
assume, tal como em Edu Lobo, uma dimensão épica e totalizante, na qual se
apresenta o herói popular, mas, se volta para realidade urbana e fragmentária,
em que a colagem de imagens e referências culturais são justapostas,
prevalecendo a dispersão.
Acerca do conjunto de representações suscitadas pelas canções de
Caetano e, especificamente, sobre a relação entre a alegoria e a fragmentação
enquanto procedimentos de criação cultural manejados pelo grupo tropicalista,
Celso Favaretto afirma:
133
“Com o tropicalismo, pela ênfase nos processos, instala-se a intransitividade: o
sensível-fragmento torna-se independente através do conflito com a
significação. Por isso, o seu tema não é o Brasil, seu trabalho é, antes, o de
estilhaçá-lo – as imagens-alegorias, parodiando-o, rompem a totalidade. […]
Nesta permutabilidade contínua no heteróclito, fluxo constante e descontínuo
de imagens, é excluída toda a idéia de totalidade ou de totalização. Daí o
caráter ativo e subversivo da alegoria tropicalista, pois, ao libertar o desejo da
totalidade, lança-o no fragmentário puro. O fragmento é agressivo porque
ironiza o todo, desapropriado pela operação parodística: é neste sentido que se
pode dizer que o tropicalismo é interpretação de interpretação.” (2000: 127-28)
A canção “Tropicália” talvez seja a maior síntese da proposta tropicalista,
na qual a canção-colagem integra em seu caleidoscópio uma gama de
imagens, fragmentos e referências culturais diversas, ao se conceber de forma
não-linear e em profusa dispersão.
As referências à “bossa” e a “palhoça”, ao “monumento bem moderno”, o
qual “não tem porta”, situado numa “rua antiga estreita e torta” em que “no
joelho uma criança sorridente feia e morta estende a mão”, colocam em choque
os elementos arcaicos e modernos que compõem a formação social brasileira,
de forma a apresentar não uma resolução ideal para essa situação, mas com o
intuito de expor as ambigüidades e contradições que lhes entranham.
As referências à esquerda e à direita são colocadas num mesmo nível,
de modo que o “pulso esquerdo” permanece “com muito pouco sangue” e a
“mão direita” prevalece sobre o primeiro, pois continua “autenticando a eterna
primavera” das relações de poder neste país.
Ao articular esses elementos, as criações musicais de Caetano Veloso
estabelecem um diálogo peculiar entre a tradição musical brasileira e a
modernidade musical, sem, contudo, reiterar a tônica do engajamento que
permeava a MPB, mas, questionando-a, principalmente através de
procedimentos que tinham por referência a paródia e o deboche.
Aliás, a canção “Enquanto seu lobo não vem” se concebe como uma
síntese primorosa destes procedimentos, na qual se instaura uma crítica que
revela, com certo sabor de ironia, os limites e a condição de impasse
vivenciada pelo artista e intelectual engajados de esquerda.
134
A canção se remete a um passeio sugerido pelo narrador que se
desenrola pelas ruas, floresta e avenidas do Brasil, onde se processam cenas
constantes de liberação e contenção dos caminhos e desejos das
personagens, expressas nas frases “Vamos passear escondidos” ou “Vamos
desfilar pelas ruas”. No entanto, do mesmo modo que é feita uma referencia à
principal festa popular, o carnaval, que se espraia pela avenida, paralelamente,
indica-se que “há uma cordilheira sob o asfalto”.
A menção às estruturas de poder se revela na extensão do passeio que
“passa por debaixo da avenida Presidente Vargas” e se estende ao longo dos
“Estados Unidos do Brasil”. Porém, em sua continuidade, as personagens se
defrontam com a repressão instalada nas ruas, por conta disso é necessário
passar “por debaixo das ruas / debaixo das bombas, das bandeiras, debaixo
das botas / debaixo das rosas dos jardins, debaixo da lama”.
Por fim, o passeio que, em seu desenvolvimento, incitou e demandou
um reiterado engajamento das personagens perante as esferas de poder e
repressão, se encerra de forma patética, “Debaixo da cama”, diluindo-se, o que
revela o “Modo cômico do passeio – patifaria, ridículo. A proposta subversiva é
relativizada ao máximo, des-heroicizada, desmarcarando-se”. (FAVARETTO,
2000: 101)
Estruturado esse quadro de referência, percebe-se que os elementos em
dispersão, as representações fragmentadas e as imagens-ícones – tanto à
esquerda, como à direita – sendo desconstruídas em íntima relação com a
paródia e o deboche adensavam o caráter alegórico das canções,
distanciando-as das imagens épicas e totalizadoras. Com base nestes
procedimentos, Caetano Veloso, juntamente com o grupo tropicalista, efetivou
uma crítica aguçada e corrosiva em relação ao ideário nacional-popular e as
representações que encaminhavam o sentido das proposições engajadas e
nacionalistas, residentes na MPB.
135
3. Modernismos
No movimento de formação das referências que balizaram a
estruturação dos projetos de intervenção cultural de Edu Lobo e Caetano
Veloso, um interessante diálogo foi estabelecido por ambos os artistas com
determinados princípios estéticos e ideológicos da produção teórica e literária
dos modernistas brasileiros Mário e Oswald de Andrade.
O arcabouço teórico construído por Mário de Andrade erige os seus
pressupostos fundamentais a partir da construção de um projeto musical
nacionalista voltado para a pesquisa da cultura musical popular, como meio
para se apreender elementos caracterizadores da entidade sócio-cultural
brasileira. Sendo assim, Mário de Andrade desenvolve uma reflexão centrada
nos procedimentos que deveriam orientar o artista no processo de pesquisa e
incorporação do populário musical brasileiro em sua obra.
O processo de pesquisa das formas musicais populares, num primeiro
momento, tinha por finalidade a elaboração de uma música artística nacional,
distanciada da reprodução dos modelos europeus, sem, contudo, conter, traços
de xenofobia ou exotismo. Após ser integrado e internalizado o conhecimento
pleno das manifestações populares que revelavam a identidade cultural e
nacional de um compositor, se consumavam as condições para o
desdobramento da autonomia estética do artista.
A necessidade da pesquisa dos elementos musicais disseminados no
universo da cultura popular brasileira, se concebia para Mário de Andrade, com
base num pressuposto acerca da origem da musicalidade nacional, que,
distante de ser uma construção artificial, possuía uma base inconsciente na
essência da cultura popular. Pois, para Mário de Andrade:
"[...] Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de
elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo. O artista
tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça
da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada.[...]"
(ANDRADE, 1962: 15-16)
136
É importante observar que Mário de Andrade cria duas categorias para
caracterizar formas diferentes de manifestações musicais, associadas a
funções sociais distintas. Para o intelectual modernista, a música interessada
indicaria o conjunto de cantos e canções populares vinculados ao cotidiano das
práticas sociais de uma comunidade – no trabalho, nos rituais e nas
comemorações. A música desinteressada, por sua vez, estaria desvinculada de
uma função social imediata que respondesse às necessidades de um corpo
coletivo, ao contrário, representaria o momento da realização e satisfação
individual do artista, portanto, expressão de sua afirmação subjetiva e
autonomia estética.
Com isso, é possível identificar o significado contido na expressão
"música artística", base do projeto musical de Mário de Andrade, no qual o
elemento popular não se emancipa a partir de sua forma original, mas
transforma-se em substrato nuclear da música erudita nacional. Na passagem
entre as décadas de 20 e 30, momento em que sistematiza as principais idéias
em torno da plataforma musical modernista, Mário de Andrade reconhecia em
Villa-Lobos o compositor brasileiro que conseguia obter os melhores resultados
em sua obra, por meio da pesquisa e da transposição dos elementos musicais
populares para o campo da música erudita, afirmando que:
“O que carece pois é que o músico artista assunte bem a realidade da
execução popular e a desenvolva. Mais uma feita lembro Vila-Lobos. É
principalmente na obra dele que a gente encontra já uma variedade maior de
sincopado. E sobretudo o desenvolvimento da manifestação popular. Isso me
parece importante. Si de fato agora que é período de formação devemos
empregar com freqüência e abuso o elemento direto fornecido pelo folclore,
carece que a gente não esqueça que a música artística não é fenômeno
popular porêm desenvolvimento dêste (sic).” (ANDRADE, 1962: 37)
Analisando as idéias e propostas que nortearam as criações musicais de
Edu Lobo na década de 60, logo se percebe uma evidente ressonância do
137
ideário marioandradino sobre determinados procedimentos que orientaram a
conformação em sua obra de certo sentido nacionalista.
107
Embora Edu Lobo tenha escolhido a canção popular como meio e
suporte para a sua expressão musical, o diálogo com determinadas referências
presentes no campo da música “erudita” ou “clássica”, como prefere Edu Lobo,
nunca deixou de se realizar em suas canções. Ou seja, se Edu Lobo não
elegeu a música “erudita” como o seu campo de atuação, tal como Mário de
Andrade indicava, ao mesmo tempo, sempre revestiu o material musical
popular de maior elaboração, por meio de sua estilização, concretizando no
universo da música popular um tratamento musical que muitos compositores,
sob a tutela teórica de Mário de Andrade, aspiravam alcançar na música
“erudita”.
De modo semelhante a Mário de Andrade, Edu Lobo também
identificava Villa-Lobos como uma importante referência dentro música
brasileira, ao passo que admitia grande reconhecimento pelo caminho tomado
por sua obra, baseada num criativo diálogo entre elementos clássicos e
populares. Reconhecimento que se evidencia em depoimento concedido por
Edu Lobo no início de sua carreira musical:
“Tudo que componho tem, a meu ver, algo de clássico e algo de folclórico […]
talvez seja por isso que gosto tanto de Vila-Lôbos […por] ligar tão bem as duas
coisas […e tratar] com a maior nobreza temas tão puros e autênticos como as
cantigas de roda e as canções populares (sic).” (JB, 06/05/65: 5)
Quanto ao tratamento musical definido por Edu Lobo, no qual a estrutura
harmônica adquiria maior elaboração, bem como, uma dimensão cosmopolita,
e no plano ritmo-melódico se processava um diálogo mais íntimo com
determinados elementos presentes nas formas musicais populares, faz-se
necessário sublinhar que esses procedimentos estavam distantes de entrar em
107
A influência do pensamento musical de Mário de Andrade, junto à sua presença concreta na trajetória
de Edu Lobo, pôde ser constatada empiricamente por José Cândido de Carvalho, que ao entrevistá-lo, em
1967, relatou: “Vejo, com prazer, meu querido Mário de Andrade à cabeceira de sua cama. [Edu Lobo]
Gosta dêle e diz os motivos dêsse gostar. Admira o velho Mário pelo que de renovador existe nêle. Um
homem sempre repleto de novidades. As palavras mais banais e surradas pelo uso, uma vez retorcidas
pelos seus alicates mágicos, ficam novinhas em fôlha, como se fôssem criadas naquela justa hora.” (sic)
(CRUZEIRO, 28/10/1967: 55)
138
conflito com o arcabouço teórico de Mário de Andrade. Pois, o autor do Ensaio
sobre a música brasileira também ressaltava a importância e atenção que o
compositor deveria ter com as componentes rítmicas, melódicas e timbrísticas,
assim como a maior liberdade que poderia ser explorada na parte harmônica
de suas composições, já que:
“É na rítmica destas manifestações [populares] principalmente que a gente
encontra base nacional. […] Além disso existem as peculiaridades, as
constâncias melodicas nacionais que o artista pode empregar a todo momento
pra nacionalisar a invenção. […já] O problema da Harmonia não existe
propriamente na música nacional. Simplesmente porquê os processos de
harmonização sempre ultrapassam as nacionalidades.” (sic) (ANDRADE, 1962:
39-49)
Assim, Mário de Andrade acena para a maior liberdade do artista quanto
à incorporação de princípios harmônicos, até mesmo aqueles difundidos em
escala universal, justamente por identificar a presença predominante do
sistema tonal europeu, inclusive no universo da música popular, e por
considerar os “processos harmônicos populares, pobres por demais” e
possuírem um caráter “pouco nacionalizado”. (ANDRADE, 1962: 49)
Além disso, para Mário de Andrade o processo de harmonização estava
muito mais assentado na experiência individual – que após difundir-se se
universalizava, do que no espectro coletivo, o qual expressaria os traços
culturais de caráter nacional. Do mesmo modo que, para o intelectual
modernista, a individualidade grafava com maior ênfase os processos
harmônicos, universalizando-os, não havia sentido em procurar uma música
universal, já que havia apenas os gênios nacionais que se tornavam patrimônio
universal:
“Si um artista brasileiro sente em si a fôrça do genio, que nem Beethoven e
Dante sentiram, está claro que deve fazer música nacional. Porquê como genio
saberá fatalmente encontrar os elementos essencias da nacionalidade. […]
Terá pois um social enorme. Sem perder em nada o valor artístico porquê não
tem genio por mais nacional […] que não seja do patrimonio universal. “ (sic)
(ANDRADE, 1962: 19)
139
Por conta disso, de acordo com Mário de Andrade: “Não há música
internacional e muito menos universal: o que existe são gênios que se
universalizam […]” (ANDRADE, 1975: 29) Desse modo, o artista que se
dedicasse intensamente aos estudos a fim de adquirir domínio pleno sobre as
técnicas de composição e conjugasse esforços pela pesquisa das
manifestações musicais populares, com o intuito de incorporá-las, sem
reproduzi-las, como por exemplo, por meio de citações, teria as condições
fundamentais para, posteriormente, se universalizar e se tornar esteticamente
livre.
É interessante notar que Edu Lobo, ao comentar sobre o processo de
conquista da liberdade para a criação musical, centra o núcleo de sua
argumentação exatamente na questão do estudo e conhecimento técnico,
como recursos indispensáveis para a gestação de condições que possibilitem
novas criações. Conforme Edu Lobo:
“Só através do conhecimento técnico é que se pode dar esse sentido perene.
[…] Aquele negócio de que estudo serve para deturpar a criação, que quando
você acrescenta, o estudo, vai ficar preso a regras e não vai ser livre para
compor, também acho isso errado. O estudo é uma acessório indispensável
para que você possa criar alguma coisa. […] O que eu procuro é,
fundamentalmente, dedicar-me o máximo possível à composição e pesquisar.
(MELLO, 1976: 218-249)
108
Além deste ponto que revela uma sintonia muito expressiva de Edu Lobo
com a proposta de formação do compositor brasileiro colocada por Mário de
Andrade, outro aspecto sugere uma significativa aproximação de suas idéias
com o projeto musical modernista, qual seja, o papel da nacionalidade na
música. Longe da mera casualidade Edu Lobo, ao situar os elementos que,
segundo ele, universalizam a obra de Tom Jobim, reproduzia um raciocínio
semelhante ao de Mário de Andrade quanto à condição que o caráter nacional
adquiria no processo de universalização da obra de um determinado artista:
108
Se para Edu Lobo o conhecimento técnico tinha uma função primordial para o estabelecimento de
novas criações, para o tropicalista Gilberto Gil este não seria suficiente, já que “Há pessoas, por exemplo,
que são excelentes músicos e não conseguiram nada de significativo num trabalho, às vezes de muitos
anos. O conhecimento técnico não é determinante para fazer as melhores músicas.” (MELLO, 1976: 219)
140
“Olha, eu queria dizer que acho que o som nacional é o que tem mais
capacidade de se tornar um som internacional. Isso é uma coisa que eu
continuo pensando da mesma maneira. Eu acredito muito na nacionalidade, na
marca de um país que a música carrega, e acho ainda que a única forma dela
se internacionalizar é carregando essa sua marca, essa sua bossa […] Por
exemplo, a música do Tom [Jobim], hoje é internacional, talvez por ser
essencialmente brasileira, mesmo com todas as possíveis influências. Isso é
outro negócio. O que importa é que ela é brasileira e, hoje em dia, do mundo.”
(CORREIO DA MANHÃ, 08/05/1971: 3)
Na linha de raciocínio desenvolvida por Edu Lobo fica evidente não
somente a sua aproximação com o pensamento de Mário de Andrade, como
também o seu contraponto teórico ao projeto tropicalista, ao estabelecer o
ponto central de universalização de uma obra não apenas nas informações
musicais internacionais integradas à composição musical, mas nas marcas do
país de origem, que internacionalizaria os traços nacionais da obra de um
compositor.
A partir disso, Edu Lobo, em posição explicitamente contrária aos
procedimentos tropicalistas, passava a questionar a proposta de construção de
um “som moderno e universal” como resultante da interação entre informações
musicais internacionais e instrumentos musicais elétricos, ao argumentar que a
sonoridade moderna não dependia “deste ou daquele” instrumento, mas do
modo que se toca um instrumento e se extraem as suas diferentes
possibilidades sonoras:
“Eu acho que instrumentos feitos para efeito não podem ser usados sempre,
que cansam, enchem o saco. O som, pra ser pop, ser moderno, não tem que
obrigatoriamente ser elétrico, isso é furado. Às vezes um som antigo, de mil
anos atrás então você põe um instrumental elétrico e todo mundo diz: “Olha
que som moderno, cara!”, e não é nada disso. Não é o instrumental – só
instrumental – que faz de um som atual ou não […] Continuo achando [mais]
importante o papel do dedo no instrumento, e isso a gente sente muito mais no
comum do que no elétrico. Há mais sons a serem tirados, pelo menos mais
possibilidades sonoras.” (CORREIO DA MANHÃ, 08/05/1971: 3)
141
Tendo as marcas da nacionalidade como parâmetros balizadores para a
universalização de uma obra musical e o processo de estudo e pesquisa como
base para o estabelecimento da autonomia estética em novas criações, Edu
Lobo estruturou um quadro peculiar de referências, em nítida sintonia com o
ideário musical modernista de Mário de Andrade.
Em razão dessa sintonia com o pensamento de Mário de Andrade,
Marcos Napolitano sugere que Edu Lobo ensaiou uma tentativa de construção
das fases do nacionalismo musical, conforme as propostas do autor do famoso
Ensaio de 1928, concebidas nas seguintes etapas:
“1 – tese nacional (pesquisa inicial do material);
2 – sentimento nacional (empatia do compositor com os materiais
pesquisados);
3 – inconsciência nacional (internalização difusa da pesquisa e do
procedimento técnico consciente);
4 – afirmação da cultura nacional (surgimento de um ‘gênio’ criador que a partir
da linguagem nacional extrapolaria as fronteiras da nação).” (NAPOLITANO,
2001: 147)
Entretanto, por conta das condições deflagradas após ser decretado o
AI-5 em dezembro de 1968, e das dificuldades encontradas para o
aprofundamento dos estudos musicais no Brasil, Edu Lobo decidiu, em 1969,
optar por uma espécie de auto-exílio, seguindo para Los Angeles, nos Estados
Unidos, onde se dedicou durante dois anos ao estudo da orquestração.
Se nas propostas de intervenção cultural de Edu Lobo é possível
identificar uma expressiva ressonância do ideário marioandradino, em Caetano
Veloso é necessário localizar o momento e a interferência pontual das
propostas antropofágicas de Oswald de Andrade sobre as suas idéias e
criações.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que Caetano só tomou contato
com a produção teórica e literária de Oswald após compor a canção que se
tornou síntese e manifesto do movimento. Em depoimento para Campos,
Caetano declarou: “Você sabe, eu compus Tropicália uma semana antes de ver
o Rei da Vela, a primeira coisa que eu conheci de Oswald.” (CAMPOS, 2005:
204)
142
Além disso, há que se frisar que a apresentação da obra de Oswald para
Caetano se realizou por intermédio do poeta concretista Augusto de
Campos,
109
que, por sua vez, fundamentou a organização da principal obra em
torno da defesa e do reconhecimento do tropicalismo como movimento de
vanguarda, O Balanço da Bossa e outras Bossas. Além disso, este se tornou o
principal crítico da questão do nacionalismo na MPB. Já na introdução do seu
livro, Campos deixava expresso parte dos objetivos que impulsionaram a
organização da publicação:
“Embora escritos em épocas diversas e por autores diversos […os artigos]
Estão, todos, predominantemente interessados numa visão evolutiva da música
popular, especialmente voltados para os caminhos imprevisíveis da invenção.
Nesse sentido, estou consciente de que o resultado é um livro parcial, de
partido, polêmico. Contra. Definitivamente contra a Tradicional Família Musical.
Contra o nacionalismo-nacionalóide em música. O nacionalismo em escala
regional ou hemisférica, sempre alienante. Por uma música nacional universal.”
(CAMPOS, 2005: 14)
Apesar de a crítica à orientação nacionalista inscrita na MPB ficar em
primeiro plano, cabe enfatizar que a obra organizada por Campos também se
direcionava para outros interesses que não se restringiam somente à defesa do
“som universal”, mas, conforme observou Mariana Villaça, também
fundamentou a construção de uma memória histórica que elevou o grupo
tropicalista à condição de:
“[…] vanguarda herdeira da maturidade alcançada pelo antropofagismo
modernista e da universalidade atingida pelos movimentos da Poesia Concreta
e da Música Nova (ambos sintonizados com as vanguardas norte-americana e
européia de suas épocas). […com isso] A ponte feita entre Tropicalismo,
Modernismo e Música Nova ganhou outras intenções além da valorização do
“som universal” ou da postura cosmopolita, Campos buscou associar a
109
Segundo Caetano Veloso: “Através de Augusto [de Campos] e seus companheiros tomei
conhecimento da poesia a um tempo solta e densa, extraordinariamente concentrada de Oswald [de
Andrade]. […] A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. […] Nossas
argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e
exaustiva.” (VELOSO, 2004: 246-47)
143
produção dos baianos à Poesia Concreta e situar os três movimentos no hall
das legítimas “vanguardas brasileiras” […]” (VILLAÇA, 2004: 145-47)
Desta forma, a obra organizada por Campos, além de proporcionar
maior fundamentação teórica à investida tropicalista frente aos impasses
colocados pela crítica de cunho nacionalista, também alçou o tropicalismo à
condição de movimento de vanguarda, que teria aglutinado e entificado as
conquistas alcançadas na escala evolutiva pela maturidade antropofágica e a
universalidade concretista.
É no interior desse movimento de idéias que as propostas de Oswald de
Andrade são apresentadas a Caetano, que identifica nessas um elaborado
suporte teórico para os tropicalistas, diante do embate ensejado pelas questões
ligadas ao engajamento de sentido nacionalista presente na MPB. Como o
próprio Caetano relatou:
“Uma outra importância muito grande de Oswald para mim é a de esclarecer
certas coisas, de me dar argumentos novos para discutir e para continuar
criando, para conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas idéias
sobre a poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente [me] oferecem
argumentos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se
estabeleceu como novo.” (CAMPOS, 2005: 204-05)
Com isso, percebe-se que a incorporação por Caetano da proposta
oswaldiana, com base no procedimento antropofágico, não se concebeu como
a primeira matriz de influência que incitou a formação do grupo tropicalista,
mas foi incorporada em meio ao processo de radicalização das intervenções
tropicalistas, sendo apropriada como importante ferramenta teórica para a
afirmação de uma proposta de vanguarda.
110
Se ambos os movimentos – antropofagia e tropicalismo – estabeleceram
um diálogo com caracteres culturais de escalas local e universal, de modo a
110
De acordo com Caetano Veloso: “O encontro com as idéias de Oswald [de Andrade] se deu quando
todo esse processo [em torno do tropicalismo] já estava maduro e o essencial da produção já estava
pronto. […] Oswald de Andrade, sendo um grande escritor construtivista, foi também um profeta da nova
esquerda e da arte pop: ele não poderia deixar de interessar aos criadores que eram jovens nos anos 60.
Esse “antropófago indigesto”, que a cultura brasileira rejeitou por décadas, e que criou a utopia brasileira
de superação do messianismo patriarcal por uma matriarcado primal e moderno, tornou-se para nós o
grande pai.” (VELOSO, 2004: 256-57)
144
deslocar as proposições nacionalistas que em determinados momentos
representaram, conforme Oswald de Andrade, uma cena de “triste xenofobia
que acabou numa macumba para turistas”, no entanto, o tropicalismo, como
bem salientou Celso Favaretto, não pode ser reduzido “[…] a uma simples
adaptação da teoria antropofágica à situação cultural dos anos 60.” (2000: 58-
59)
A relação desenvolvida pelos dois movimentos com o processo de
criação cultural se distinguia, seja pelas questões particulares que cada grupo
enfrentou no momento específico de gestação de suas propostas, seja pela a
escolha e privilegiamento dos materiais culturais a serem trabalhados
artisticamente.
Oswald de Andrade procurou equacionar as questões que envolviam a
construção de uma nova poética a partir de uma proposta que fizesse frente ao
academicismo, ao “lado doutor” bacharelesco, o qual informava a intelligentsia
brasileira.
Ao mesmo tempo, o poeta modernista elaborou uma concepção na qual
a relação da cultura brasileira com o processo de assimilação de informações
culturais internacionais passava a ser pensada por meio da proposição
antropofágica, que, como propôs Benedito Nunes, se desdobrava como
símbolo da devoração em três elementos específicos, porém, organicamente
complementares:
“Como símbolo da devoração, a Antropofagia é a um tempo metáfora,
diagnóstico e terapêutica: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira
da imolação pelos tupis do inimigo valente apresado em combate, englobando
tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de
nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira como
sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o
crescimento, e cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia ritual
pelos Jesuítas; e terapêutica, por meio dessa reação violenta e sistemática,
contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos, as manifestações
literárias e artísticas, que, até a primeira década do século XX, fizeram do
trauma repressivo, de que a Catequese constituiria a causa exemplar, uma
instância censora, um Superego coletivo. Nesse combate sob forma de ataque
verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o mesmo instinto
145
antropofágico outrora recalcado, então liberado numa catarse imaginária do
espírito nacional. E esse mesmo remédio drástico, salvador, serviria de tônico
reconstituinte para a convalescença intelectual do país e de vitamina ativadora
de seu desenvolvimento futuro.” (NUNES, 1990: 15-16)
Desse modo, Oswald elaborou uma proposta de intervenção cultural que
articulava a potencialidade adquirida pela “originalidade nativa”,
consubstanciada na simbologia do ritual de devoração antropofágica, à técnica,
como expressão das novas demandas sociais e culturais colocadas pela
sociedade industrial contemporânea.
Esta concepção voltada para a valorização da “originalidade nativa”, com
base na especificidade de seus elementos regionais, não a idealizava como
mero objeto exótico ou representava a busca de um sentido cultural
homogêneo e purista,
111
mas, tinha por finalidade situar o seu caráter
universalista, que articulado à técnica, enquanto meio material que catalisaria a
libertação humana, revestiriam a base das idéias forjadoras da “metafísica
bárbara”, que fora pensada por Oswald a partir da interação dos seguintes
fatores em processo:
“Como animal em contínuo processo de adaptação biopsíquica, reagindo
contra o meio e criando seu ambiente, o homem tem a sua existência limitada a
coordenada espaciais que passam pelo lugar em que habita, e que o ligam,
para sempre a uma região determinada. A metafísica bárbara é também
localista e tribal […] E é ainda nos limites de seu aspecto regional que o
homem antropofágico se converte em bárbaro tecnizado […] ávido de
progresso, assimilando a técnica e utilizando-se da máquina para acelerar a
sua libertação moral e política. Criaríamos assim, pelo caminho do máximo
progresso material, um novo estado de natureza, que nos devolve à infância da
espécie, onde, numa sociedade matriarcal, alcançaremos na alegria […] a
prova dos nove de nossa felicidade.” (NUNES, 1990: 23)
111
Haroldo de Campos, ao analisar o roteiro de construção desta proposição de Oswald, indica que esta
concepção, “[…] a partir da demolição e da dessacralização do edifício artístico tradicional, buscava
retomar o sentido puro (“puro” não como “purismo”, mas na acepção fenomenológica de disposição
inaugural: “O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude de espírito”)
[…]” (CAMPOS, 1990: 24)
146
É no interior dos desdobramentos filosóficos dessa concepção que
Oswald acena para a gestação de um projeto utópico, o qual espelha no
horizonte um processo de transformação social que, ao englobar e sintetizar
diferentes temporalidades, idealiza a construção de uma futura sociedade
matriarcal.
Enquanto Oswald centra a sua atenção no potencial desestabilizador
atingido pela “originalidade nativa” junto aos projetos de vanguardas
desenvolvidos no início do século XX, com o intuito de impingir um ataque
frontal às referências culturais tradicionalistas, o tropicalismo, de outro modo,
entra em embate com o universo cultural tradicionalista e anti-tradicionalista, do
qual emerge a linguagem da juventude universitária de esquerda e, ao invés de
tematizar o “popular”, ao contrário explorou os mitos urbanos. (FAVARETTO,
2000: 49)
Ou seja, se o antropófago modernista elegia os “elementos primitivos” e
seu efeito de choque quando confrontados com os princípios da cultura
ocidental, os tropicalistas, por outro lado, buscaram revolver o modo de vida da
sociedade urbana e industrial, o habitat da classe média e os seus traços
conservadores, as ambigüidades da juventude brasileira e o universo de
consumo, que articulados ao raio de expansão e influência dos meios de
comunicação passavam a se tornar o alvo privilegiado de suas críticas e
criações.
Além das diferenças demarcadas pelos momentos históricos específicos
em que o grupo da antropofagia e os tropicalistas instauraram as suas
intervenções, outros fatores também engendraram distinções fundamentais
entre situação cultural e as questões enfrentadas por ambos os movimentos,
uma vez que:
A distância entre as duas antropofagias é histórica; correspondeu ao
processo de instauração no Brasil das propostas do modernismo e ao de
revisão crítica de suas formulações estéticas e culturais. [Além disso] O
interesse pelo tema da originalidade nativa e a conseqüente reação à
fascinação da cultura européia, no modernismo, sofreram mudanças
substanciais na década de 60 [com o tropicalismo]. As discussões sobre a
originalidade da cultura brasileira foram deslocadas pelo debate sobre a
147
indústria cultural, transferindo-se o enfoque dos aspectos étnicos para os
políticos-econômicos […]” (FAVARETTO, 2000: 61)
Portanto, se para Oswald de Andrade o aspecto etnográfico associado à
questão da “originalidade nativa e brasileira” se colocou como um dos pontos
centrais do projeto antropofágico, para os tropicalistas a íntima relação que
passava a ser estabelecida entre o processo de criação cultural, com base na
tematização da cultura popular brasileira e as correspondentes políticas e
econômicas abertas pela inserção destes na indústria cultural, adquiriu um
lugar peculiar no conjunto de suas propostas e intervenções.
No que tange à apropriação das idéias antropofágicas por parte de
Caetano e dos tropicalistas, destaca-se, sobretudo, a incorporação de um
referencial teórico de caráter cosmopolita que respondia, diretamente, aos
impasses colocados pelo ideário nacional-popular na década de 60, a partir de
um posicionamento articulado às vanguardas.
Além disso, sobressai-se a assimilação de procedimentos com base na
utilização da paródia e no deboche, como instrumentos cristalizadores de uma
proposta de atuação crítica e dessacralizadora diante do processo de criação
cultural.
É com base na aproximação e re-elaborão destes princípios estéticos
e ideológicos que Caetano Veloso, em entrevista, em 1968, ao ser questionado
se o tropicalismo se constituía como um movimento musical ou um
comportamento vital, declarou: “O tropicalismo é um neo-Antropofagismo”.
(CAMPOS, 2005: 207)
148
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Delineados os itens e capítulos que compõem esta dissertação, cabe
agora situar as considerações finais sobre algumas hipóteses encaminhadas
no decorrer deste trabalho, para a análise das questões relacionadas ao
engajamento político do artista e a atualização musical, a partir das
intervenções culturais arquitetadas por Edu Lobo e Caetano Veloso, entre 1965
e 1968.
Para a realização de tal empreitada, o primeiro capítulo foi dedicado à
análise do processo de integração do ideário nacional-popular às proposições
da ala nacionalista da Bossa Nova, que, por sua vez, conduziu de maneira
decisiva os debates em torno do movimento de atualização da música popular
brasileira na década de 60. Além disso, foi analisada a articulação cultural
engendrada por meio de um diálogo entre a música popular, o teatro e o
cinema, que obteve um papel de relevo na formação da MPB, assim como no
delineamento das trajetórias artísticas de Edu Lobo e Caetano Veloso, as quais
se conceberam em constante interação com agentes ligados a outras áreas de
criação cultural.
No interior deste processo os compositores Carlos Lyra e Sérgio
Ricardo, que se articularam a um conjunto significativo de projetos e produções
culturais do CPC, obtiveram uma atuação proeminente no sentido de afirmar
uma proposta de atualização musical com base no engajamento político do
artista e na incorporação da tradição musical brasileira.
Junto a isto também foi possível identificar as intervenções de Nelson
Lins e Barros, importante agente no processo de produção de artigos e
formação de parcerias, direcionadas para a afirmação e legitimação da
produção musical de orientação nacionalista, que tinha por referência a
releitura das tradições populares.
Esta proposta centrada no engajamento de orientação nacional-popular
adquiriu adensamento por meio de um amplo diálogo estabelecido por letristas
e compositores com artistas de diferentes esferas de criação cultural, como o
teatro e o cinema, a qual constituiu uma experiência fundamental para a
estruturação da MPB nos anos 60.
149
A partir deste diálogo, o Show Opinião e a peça Arena Conta Zumbi
gestaram uma articulação orgânica entre a música popular e o teatro engajado.
Além de criarem um importante espaço de difusão da nascente MPB e de
resistência ao golpe militar de 1964, ambos os espetáculos estruturaram o seu
repertório musical com canções de Edu Lobo e Caetano Veloso. Enquanto o
Show Opinião incorporou uma canção de cada deles, no espetáculo Arena
conta Zumbi as composições ficaram a cargo de Edu Lobo.
A MPB também conquistou um expressivo espaço de atuação junto ao
cinema brasileiro, ao ocupar um lugar que, até então, se reservara à “música
erudita”. A sintonização da MPB com a questão do engajamento político do
artista e com os problemas que afligiam a realidade social brasileira foi
determinante para a sua inserção nos quadros do Cinema Novo.
O filme O Desafio, de Paulo Cesar Saraceni, que se apresenta como
uma das principais obras cinematográficas do período, desenvolve uma sagaz
reflexão sobre a situação do intelectual de esquerda no pós-golpe, ao passo
que promove um intenso diálogo com a incipiente MPB, incorporando,
inclusive, canções de Edu Lobo e Caetano Veloso.
O segundo capítulo se volta para a análise das propostas de intervenção
cultural de Edu Lobo e Caetano Veloso, com o intuito de investigar o modo
como as idéias de ambos os agentes adentraram ao debate, ao redor do
processo de atualização da música popular brasileira, bem como se
encaminharam para a estruturação das referências que balizariam os seus
respectivos projetos e criações musicais.
Desse modo, foi possível analisar o núcleo das idéias que deram
condução à trajetória artística de Edu Lobo, centradas no engajamento de
orientação nacional-popular e, ao mesmo tempo, comprometidas com a
realização de uma obra musical que conjugasse qualidade musical e uma fluida
comunicação com o público.
Dentro do quadro de relações e influências que balizaram as criações
musicais de Edu Lobo, sobressaem as presenças de Baden Powell e Carlos
Lyra, que apresentavam a partir de suas composições uma interessante base
de experimentação e engajamento, que articulava referências musicais
cosmopolita em conexão com as formas musicais populares.
150
A influência de Carlos Lyra no desenvolvimento da carreira musical de
Edu Lobo é apresentada não somente no plano das idéias e interferências
ideológicas junto ao seu trabalho artístico, mas também pelo fato de o
compositor bossa-novista ter atuado como importante mediador cultural e por
isso, proporcionado o contato com uma teia de relações que se tornaram
fundamentais para a projeção da carreira musical de Edu Lobo.
Apesar de frisar a necessidade quanto à construção de uma obra
musical com caráter didático, Edu Lobo, de forma alguma traduziu esta
proposta a partir da simplificação das suas criações. Ao contrário, sempre as
revestiu de maior elaboração, tanto no plano poético, quanto musical e, assim,
se distanciou de um “modelo” de canção de protesto que teria o seu centro
definido somente nas letras das canções.
A trajetória artística de Caetano Veloso foi analisada, inicialmente, a
partir das condições fornecidas pela realidade sociocultural baiana na década
de 60, na qual se manifesta uma intensa sociabilidade artística e acadêmica,
como também, por sua atuação na realização de shows e apresentações que
selaram a sua estréia musical com o grupo baiano.
Em seguida, foi avaliado o impacto decorrente da mudança de Caetano
para o sudeste, com a rápida e conseqüente profissionalização de sua carreira
musical. É enfatizado o impasse constituído em torno do espetáculo Arena
conta Bahia, no qual Caetano localiza determinados impasses, ao tomar
contato com o principal grupo teatral ligado aos preceitos de engajamento
político de orientação nacional-popular.
Após a gravação do primeiro disco de Caetano é localizada a
insatisfação que passa a incitar a gestação de uma nova intervenção no bojo
da música popular brasileira, junto à tensão proveniente da busca de novas
referências, que propiciassem a revisão dos paradigmas que insuflavam o
cenário cultural brasileiro.
Em meio a esse processo, a proposta de composição de um “som
universal”, que não estaria mais assentado na tradição musical brasileira, se
desdobra por meio de um amplo diálogo com diversas áreas de criação cultural
que buscavam um sentido de rompimento com o ideário nacional-popular, e
resulta na formação do tropicalismo.
151
A partir disso, a dissertação se direciona para a apreciação das relações
de conflito configuradas entre a MPB e a Tropicália nos Festivais de Música
Popular, realizados em 1967 e 1968, e para a análise dos pontos de tensão
delineados entre os distintos procedimentos selecionados por Edu Lobo e
Caetano Veloso, para a estruturação de seus respectivos projetos de criação
cultural.
Assim, foi possível localizar na demarcação das proposições de ambos
os agentes, a definição de Edu Lobo por uma proposta de criação didática que,
embora distante de se colocar de forma simplista, elegia a catarse como meio
para uma proposta engajada e conscientizadora.
Caetano Veloso e os tropicalistas, em sintonia com o quadro de
questionamento do ideário nacional-popular e em articulação com a cena
contracultural, optaram pela agressão e pela paródia como instrumentos para
incitar uma nova relação com o público, predominantemente universitário e de
esquerda, para questionar determinados paradigmas estéticos, com vistas ao
estabelecimento de uma crítica cultural.
O terceiro capítulo teve por objetivo analisar a relação entre tradição e
modernidade a partir das criações musicais de Edu Lobo e Caetano Veloso,
bem como, pensar o processo de assimilação e re-elaboração, por parte dos
dois artistas, de determinadas referências culturais ligadas ao modernismo
brasileiro.
Com isso, identifica-se que a produção musical de Edu Lobo, neste
período, buscou no diálogo com elementos presentes nas formas musicais
populares, na bossa nova, no jazz e na música impressionista a edificação de
um quadro de referências que lhe possibilitasse a construção de uma obra
musical que, a um só tempo, estivesse sintonizada com a tradição musical
brasileira e com a modernidade musical.
O diálogo com a tradição musical brasileira, geralmente, se concebeu
por meio da incorporação de determinadas escalas modais que se
transfiguravam no plano rítmico e melódico das canções de Edu Lobo.
Enquanto o contato e a integração de referências musicais associadas à Bossa
Nova lhe possibilitaram o acesso a elementos do jazz e da música
impressionista, importantes para a construção de composições e harmonias
com estruturas notadamente elaboradas e cosmopolitas.
152
Caetano Veloso, por sua vez, percorreu um caminho que adquiriu uma
definição e uma expressão musical específica, na produção do primeiro LP, no
qual se coloca de forma evidente a sua aproximação com os parâmetros
musicais bossa-novistas. Porém, foi a partir do segundo LP que a articulação
dos preceitos estéticos tropicalistas tomou definição.
Para Caetano Veloso o diálogo entre tradição e modernidade se
encaminhou através da assimilação de referências musicais diversas, com
lastro no material produzido pela música pop e pelas vanguardas, ao passo
que buscou na releitura interpretativa dos cancionistas brasileiros a apropriação
de outros ramos da tradição musical nacional, que não aqueles privilegiados
pelo estatuto da MPB.
Ao final, é feita uma apreciação de determinadas propostas modernistas
engendradas por Mário e Oswald de Andrade, a fim de se avaliar a sua
incorporação e re-elaboração por parte de Edu Lobo e Caetano Veloso, para a
constituição do sentido de seus projetos e produções.
Em Edu Lobo, localiza-se a presença marcante das idéias de Mário de
Andrade, sobretudo a ressonância de suas teorizações acerca da pesquisa
rigorosa que deveria ser empreendida pelos compositores em prol da
construção das bases musicais nacionais.
Já em Caetano Veloso, a interferência das idéias de Oswald de
Andrade, resultou de uma importante mediação feita por Augusto de Campos e
foi “digerida” num momento em que o grupo tropicalista buscava aglutinar às
suas bases culturais, referências que atestassem a afirmação de uma proposta
crítica e de vanguarda no bojo do cenário cultural brasileiro.
Desta forma, foi possível identificar a estruturação de dois projetos que
equacionaram de modo diferenciado as suas respectivas propostas de
atualização da música popular brasileira, como também conceberam de forma
distinta a questão do engajamento político do artista.
A análise das principais referências musicais integradas pelas criações
musicais de Edu Lobo e Caetano Veloso não somente permitiu repensar
determinadas hipóteses que informaram uma parcela considerável da produção
historiográfica acerca da MPB na década de 60, mas possibilitou a abertura de
um caminho de reflexão, no qual as produções musicais de ambos os artistas
podem ser compreendidas como definidoras de um “som universal”, ao
153
conjugarem elementos locais e cosmopolitas, todavia, balizadas por
procedimentos e objetivos distintos. Uma vez que o diálogo entre informações
musicais nacionais e internacionais não se restringiu, exclusivamente, às
propostas do grupo tropicalista.
Com isso, esta dissertação, para além de tentar esgotar as
possibilidades de leitura e compreensão do objeto pesquisado, buscou
apresentar mais uma contribuição para o campo da historiografia ao analisar os
elementos e relações constituintes dos projetos de intervenção cultural de Edu
Lobo e Caetano Veloso, junto ao campo da música popular brasileira na
década de 60.
Neste sentido, se as questões que envolveram as relações entre arte e
mercado, cultura popular e imperialismo, engajamento e experimentalismo, por
um lado, não receberam uma proposta resolutiva diante de todas as
contradições que emergem da interação desses elementos em processo, por
outro, as intervenções culturais de Edu Lobo e Caetano Veloso expressaram
um interessante e não menos conflitante caminho de proposições e
significados desenhados pela canção popular no Brasil.
154
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164
ANEXO
165
Canções de Caetano Veloso
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
Caminhando contra o vento
Sem lenço sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não? Por que não?
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço sem documento
Eu vou
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do Brasil
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
166
Sem lenço sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor
Eu vou
Por que não? Por que não?
BABY (Caetano Veloso)
Você precisa saber da piscina
Da margarina
Da Carolina
Da gasolina
Você precisa saber de mim
Baby baby
Eu sei que é assim
Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete
Andar com a gente
Me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto
Baby baby
Há quanto tempo
Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais
Não sei, comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul
Da América do Sul
Você precisa
Você precisa
Não sei
Leia na minha camisa
Baby baby
I love you
CLARA (Caetano Veloso)
Quando a manhã madrugava
Calma
167
Alta
Clara
Clara morria de amor
Faca de ponta
Flor e flor
Cambraia branca sob o sol
Cravina branca amor
Cravina amor
Cravina e sonha
A moça chamava Clara
Água
Alma
Lava
Alva cambraia no sol
Galo cantando
Cor e cor
Pássaro preto
Dor e dor
O marinheiro amor
Distante amor
Que a moça sonha só
O marinnheiro sob o sol
Onde andará o meu amor
Onde andará o amor
No mar amor
No mar sonha
Se ainda lembra o meu nome
Longe
Longe
Onde
Onde estiver numa onda num bar
Numa onda que quer me levar
Para o mar de água clara
Clara
Clara
Clara
Ouço meu bem me chamar
Faca de ponta
Dor e dor
Cravo vermelho no lençol
Cravo vermelho amor
Vermelho amor
Cravina e galos
E a moça chamada Clara
Clara
168
Clara
Clara
Alma tranqüila de dor
CORAÇÃO VAGABUNDO (Caetano Veloso)
Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher
Que passou por meu sonho sem dizer adeus
E fez dos olhos meus um chorar mais sem fim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo em mim
ELES (Caetano Veloso / Gilberto Gil)
Em volta da mesa
Longe do quintal
A vida começa
No ponto final
Eles têm certeza
Do bem e do mal
Falam com franqueza
Do bem e do mal
Crêem na existência do bem e do mal
O florão da América
O bem e o mal
Só dizem o que dizem
O bem e o mal
Alegres ou tristes
São todos felizes durante o Natal
O bem e o mal
Têm medo da maçã
A sombra do arvoredo
O dia de amanhã
Eis que eles sabem o dia de amanhã
Eles sempre falam num dia de amanhã
Eles têm cuidado com o dia de amanhã
Eles cantam os hinos no dia de amanhã
Eles tomam bonde no dia de amanhã
Eles amam os filhos no dia de amanhã
Tomam táxi no dia de amanhã
169
É que eles têm medo do dia de amanhã
Eles aconselham o dia de amanhã
Eles desde já querem ter guardado
Todo o seu passado no dia de amanhã
Não preferem São Paulo, nem o Rio de Janeiro
Apenas tem medo de morrer sem dinheiro
Eles choram sábados pelo ano inteiro
E há só um galo em cada galinheiro
E mais vale aquele que acorda cedo
E farinha pouca, meu pirão primeiro
E na mesma boca senti o mesmo beijo
E não há amor como o primeiro amor
Como primeiro amor
Que é puro e verdadeiro
E não há segredo
E a vida é assim mesmo
E pior a emenda que o soneto
Está sempre à esquerda a porta do banheiro
E certa gente se conhece no cheiro
Em volta da mesa
Longe da maçã
Durante o Natal
Eles guardam dinheiro
O bem e o mal
ENQUANTO SEU LOBO NÃO VEM (Caetano Veloso)
Vamos passear na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto
(Os clarins da banda militar…)
A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar…)
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)
Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear escondidos
Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Vamos por debaixo das ruas
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das bombas, das bandeiras
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das botas
170
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das rosas, dos jardins
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da lama
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo da cama
NO DIA EM QUE EU VIM-ME EMBORA (Caetano Veloso / Gilberto Gil)
No dia em que eu vim-me embora
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais
Mala de couro forrada com pano forte, brim cáqui
Minha avó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal
Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
ONDE ANDARÁS (Caetano Veloso / Ferreira Gullar)
Onde andarás nesta tarde vazia
Tão clara e sem fim
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces de mim?
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces…
171
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração
A cigarra do apartamento
O chão de cimento existem em vão
Não serve pra nada a escada, o elevador
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor
E é por isso que eu saio pra rua
Sem saber pra quê
Na esperança talvez de que o acaso
Por mero descaso me leve a você
Na esperança talvez de que o acaso
Por mero descaso
Me leve… eu sei
ONDE EU NASCI PASSA UM RIO (Caetano Veloso)
Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual sem fim minha terra
Passava dentro de mim
Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar
O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui
Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais
O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração
PAISAGEM ÚTIL (Caetano Veloso)
Olhos abertos em vento
Sobre o espaço do Aterro
Sobre o espaço sobre o mar
O mar vai longe do Flamengo
172
O céu vai longe e suspenso
Em mastros firmes e lentos
Frio palmeiral de cimento
O céu vai longe do Outeiro
O céu vai longe da Glória
O céu vai longe suspenso
Em luzes de luas mortas
Luzes de uma nova aurora
Que mantém a grama nova
E o dia sempre nascendo
Quem vai ao cinema
Quem vai ao teatro
Quem vai ao trabalho
Quem vai descansar
Quem canta, quem canta
Quem pensa na vida
Quem olha a avenida
Quem espera voltar
Os automóveis parecem voar
Os automóveis parecem voar
Mas já se acende e flutua
No alto do céu uma lua
Oval, vermelha e azul
No alto do céu do Rio
Uma lua oval da Esso
Comove e ilumina o beijo
Dos pobres tristes felizes
Corações amantes do nosso Brasil
PANIS ET CIRCENSES (Caetano Veloso / Gilberto Gil)
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos, sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões, nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer
De puro aço, luminoso um punhal
Para matar o meu amor, e matei
Às cinco horas na Avenida Central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar
173
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
QUEM ME DERA (Caetano Veloso)
Adeus, meu bem
Eu não vou mais voltar
Se Deus quiser, vou mandar te buscar
De madrugada, quando o sol cair dend’água
Vou mandar te buscar
Ai, quem me dera
Voltar, quem me dera um dia
Meu Deus, não tenho alegria
Bahia no coração
Ai, quem me dera o dia
Voltar, quem me dera o dia
De ter de novo a Bahia
Todinha no coração
Ai, água clara que não tem fim
Não há outra canção em mim
Que saudade!
Ai, quem me dera
Mas quem me dera a alegria
De ter de novo a Bahia
E nela o amor que eu quis
Ai, quem me dera
Meu bem, quem me dera o dia
De ter você na Bahia
O mar e o amor feliz
Adeus, meu bem
Eu não vou mais voltar
Se Deus quiser, vou mandar te buscar
Na lua cheia
Quando é tão branca a areia
Vou mandar te buscar
174
SOL NEGRO (Caetano Veloso)
Na minha voz trago a noite e o mar
O canto é a luz de um sol negro e dor
É o amor, que morreu na noite do mar
Valha Nossa Senhora
Há quanto tempo ele foi-se embora
Para bem longe, pra além do mar
Para além dos braços de Iemanjá
Adeus, adeus
TROPICÁLIA (Caetano Veloso)
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central
Do país
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada de uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira
Entre os girassóis
Viva Maria-ia-ia
175
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
No pulso esquerdo bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhora e senhores ele põe os olhos grandes
Sobre mim
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Domingo é o Fino da Bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da
Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da
UM DIA (Caetano Veloso)
Como um dia, numa festa
Realçavas a manhã
Luz de sol, janela aberta
Festa e verde o teu olhar
Pé de avenca na janela
Brisa verde, verdejar
Vê se alegra tudo agora
Vê se pára de chorar
Abre os olhos, mostra o riso
Quero, careço, preciso
De ver você se alegrar
Eu não estou indo-me embora
Estou só preparando a hora de voltar
No rastro do meu caminho
176
No brilho longo dos trilhos
Na correnteza do rio
Vou voltando pra você
Na resistência do tempo
No tempo que vou e espero
No braço, no pensamento
Vou voltando pra você
No raso da Catarina
Nas águas de Amaralina
Na calma da calmaria
Longe do mar da Bahia
Limite da minha vida
Vou voltando pra você
Vou voltando, como um dia
Realçavas a manhã
Entre avencas, verde-brisa
Tu de novo sorrirás
E eu te direi que um dia
As estrelas voltarão
Voltarão trazendo todos
Para a festa do lugar
Abre os olhos, mostra o riso
Quero, careço, preciso
De ver você se alegrar
Eu não estou indo-me embora
Estou só preparando a hora de voltar
177
Canções de Edu Lobo
ALELUIA (Edu Lobo / Ruy Guerra)
Barco deitado na areia, não dá pra viver
Não dá...
Lua bonita sozinha não faz o amor
Não faz...
Toma a decisão, aleluia
Que um dia o céu vai mudar
Quem viveu a vida da gente
Tem de se arriscar
Amanhã é teu dia
Amanhã é teu mar, teu mar
E se o vento da terra que traz teu amor, já vem
Toma a decisão, aleluia
Lança o teu saveiro no mar
Bê-a-bá de pesca é coragem
Ganha o teu lugar
Mesmo com a morte esperando
Eu me largo pro mar, eu vou
Tudo o que eu sei é viver
E vivendo é que eu vou morrer
Toma a decisão, aleluia
Lança o teu saveiro no mar
Quem não tem mais nada a perder
Só vai poder ganhar
ARRASTÃO (Edu Lobo / Vinicius de Moraes)
Ê, tem jangada no mar
Ê, iê, iêi,
Hoje tem arrastão
Ê, todo mundo pescar
Chega de sombra, João
J'ouviu
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
Ê, meu irmão, me traz Yemanjá prá mim
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
Ê, meu irmão, me traz Yemanjá pra mim
Minha Santa Bárbara
Me abençoai
Quero me casar com Janaína
Ê, puxa bem devagar
Ê, iê, iêi, Já vem vindo o arrastão
178
Ê, é a Rainha do Mar
Vem, vem na rede João
Pra mim
Valha-me Deus Nosso Senhor do Bonfim
Nunca jamais se viu tanto peixe assim
Valha-me Deus Nosso Senhor do Bonfim
Nunca jamais se viu tanto peixe assim
BORANDA (Edu Lobo)
Vam'borandá
Que a terra já secou, borandá
É borandá
Que a chuva não chegou, borandá (bis)
Já fiz mais de mil promessas
Rezei tanta oração
Deve ser que eu rezo baixo
Pois meu Deus não ouve não
Deve ser que eu rezo baixo
Pois meu Deus não ouve não
Deve ser que eu rezo baixo
Pois meu Deus não ouve não
Vou-me embora
Vou chorando
Vou me lembrando
Do meu lugar
Vam'borandá
Que a terra já secou, borandá
É borandá
Que a chuva não chegou, borandá (bis)
Quanto mais eu vou pra longe
Mais eu penso sem parar
Que é melhor partir lembrando
Que ver tudo piorar
Que é melhor partir lembrando
Que ver tudo piorar
CANÇÃO DA TERRA (Edu Lobo / Ruy Guerra)
Olorum bererê
Olorum bererê
Olorum ici beobá
Olorum bererê
Olorum bererê
179
Olorum ici beobá
Avê meu pai
O teu filho morreu
Avê meu pai
O teu filho morreu
Sem ter nação para viver
Sem ter um chão para plantar
Sem ter amor para colher
Sem ter voz livre pra cantar
É, meu pai morreu
É, meu pai morreu
Salve meu Pai, o teu filho nasceu
Salve meu Pai, o teu filho nasceu
E preciso ter força para amar
E o amor é uma luta que se ganha
É preciso ter terra prá morar
E o trabalho que é teu, ser teu
Só teu, de mais ninguém
Só teu, de mais ninguém
Salve meu Pai, teu filho cresceu
Salve meu Pai, teu filho cresceu
E muito mais é preciso é não deixar
Que amanhã por amor possas esquecer
Que quem manda na terra tudo quer
E nem o que é teu bem vai querer dar
Por bem, não vai, não vai
Por bem, não vai, não vai
Salve meu Pai, o teu filho viveu
Salve meu Pai, o teu filho viveu
Olorum bererê
Olorum bererê
Olorum ici beobá
CHEGANÇA (Edu Lobo / Oduvaldo Viana Filho)
Estamos chegando, daqui e dali
E de todo lugar que se tem prá partir
Estamos chegando, daqui e dali
E de todo lugar que se tem prá partir
Trazendo na chegança
Foice velha, mulher nova
180
E uma quadra de esperança
E uma quadra de esperança
Ah! se viver fosse chegar
Ah! se viver fosse chegar
Chegar sem parar
Parar pra casar
Casar e os filhos espalhar
Pôr o mundo num tal de rodar
Pôr o mundo num tal de rodar
O mundo, num tal de rodar
CIRANDEIRO (Edu Lobo / Capinan)
Oh cirandeiro
cirandeiro, oh
a pedra do seu anel
brilha mais do que o sol (BIS)
Ah, ciranda de estrêlas
caminhando pelo céu
é o luar da lua cheia
é o farol de Santarém
Não é lua, nem estrêla
é saudade clareando
nos olhinhos do meu bem
é saudade clareando
nos olhinhos do meu bem
Oh cirandeiro
cirandeiro, oh
a pedra do seu anel
brilha mais do que o sol (BIS)
Ah, ciranda de sereno
visitando a madrugada
o espanto achei dormindo
nos sonhos da namorada
que serena dorme e sonha
carregada pelo vento
num andor de nuvem clara
Oh cirandeiro
cirandeiro, oh
a pedra do seu anel
brilha mais do que o sol (BIS)
São sete estrelos correndo
181
sete juras a jurar
Três Marias, Três Marias
se cuidem de bom cuidar
do amor e o juramento
que a estrêla d'Alva chora
de nos sete acreditar
que a estrêla d'Alva chora
de nos sete acreditar
CORRIDA DE JANGADA (Edu Lobo / Capinan)
Meu mestre deu a partida
É hora, vamos embora
Pr'os rumos do litoral
Vamos embora
Na volta eu venho ligeiro
É hora, vamos embora
Na volta eu chego primeiro
Pra tomar seu coração
É hora, vamos embora
É hora, vamos embora
É hora, vamos embora
É hora, vamos embora
Viração, virando vai
Olha o vento, a embarcação
Minha jangada não é navio, não
Não é vapor nem avião
Mas carrega muito amor
Dentro do meu coração
Sou meu mestre, meu proeiro
Sou segundo, sou primeiro
Olha a reta de chegar
Olha a reta de chegar
Mestre, proeiro, segundo, primeiro
Reta de chegar
Reta de chegar
Meu barco é procissão
Minha terra é minha igreja
Minha noiva é meu rosário
No seu corpo vou rezar
Minha noiva é meu rosário
No seu corpo vou eu rezar
EMBOLADA (Edu Lobo / Gianfrancesco Guarnieri / Boal)
182
De toda forma e qualidade tem
oi tem pindoba, embiriba e sapucaia
tem titara, catulé, ouricurí
tem sucupira, sapucais, putumujú
teu pau-de-santo, tem pau d'arco, tem tatajubá
sapucarana, canzenzé, maçaranduba
tem louro paraíba e tem pininga (bis)
Pare meu irmão
de falar em tanta mata
com tanta planta eu não sei o que fazer
mas diga lá se tem bicho pra comer
se tem bicho pra comer. se tem bicho pra comer
De toda forma e qualidade tem,
onça pintada, sussuarana e maracajá
E tem guará, jaguatirica e guaxinim
e tem tatu, tatu-peba, tatu-bola
tem preguiça, tem quatí, tamanduá
E coelho que tem, tem, tem
queixada que tem, tem, tem
caititú oi tem também
oi diz que tem, tem
oi diz que tem, tem (bis)
Pare meu irmão
de falar em tanta fera
com tanto bicho eu não sei o que fazer
ah, um bichinho pra comer
eu só quisera
com tanto assim eles vão é me comer
Mas tem os peixes que ainda não falei
de toda forma e quailidade tem
oi tem traíra, tem cará e jundiá
e tem caborge, tem piaba e carapó
e pitú e caranguejo e aruá (repete mais 3 vezes)
Mas também tem cobra
que é um nunca se acabar
tem jacaré, cobra-rainha e tem muçu
tem caninana, tem jibóia e tem jericoá
tem jararaca, cascavel, surucucú
e papa-ovo e cobra verde assim não dá (bis)
Mas tem sabiá, tem canário e curió
tem passarinho tão bom de se olhar
papa-capim, cardeal e arumará
e tem xexéu, guriatã e tem brejá
E se quiser comer galinha
183
tem de todas pra fartar
tem pomba de tres côcos, tem pato mergulhão
aracuâ, jaçanã e tem carão
juriti e cardigueira e paturí (repete mais 3 vezes)
Mas e nessa abençoada região
será que tem o que faz falta na verdade
O que é, o que é, o que é ?
O que é, o que é, o que é ?
Me diga meu irmão
se nessa grande mata (BIS)
é possível, é possível ter mulher
Aí esta uma coisa que não...
Aí esta uma coisa que não...
Pois sendo assim eu prefiro o cativeiro
Pois sendo assim eu prefiro o cativeiro
Meu irmão tá com toda razão !
Meu irmão tá com toda razão!
MEMORIAS DE MARTA SARÉ (Edu Lobo / Gianfrancesco Guarnieri)
A casa lá na fazenda
A lua clareando a porta
Deixando um brilho claro
Nas pedras dos degraus
Cristal de lua
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro...
O rosário obrigatório
O jantar, lá na cozinha
Todo dia à mesma hora
As histórias de Dorinha
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro
Pra dentro
A lanterna azul partida
A dor, a palmatória, a raiva
A cantiga mais sentida
Um galope de cavalo
184
Moço Severino
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro
Bate forte o coração
Dor no peito magoado
O sorriso mais sem jeito
Do primeiro namorado
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro, Marta Saré
Pra dentro
Pra dentro
NO CORDÃO DA SAIDEIRA (Edu Lobo)
Hoje não tem dança,
Não tem mais menina de trança
Nem cheiro de lança no ar
Hoje não tem frevo
Tem gente que passa com medo
E na praça ninguém pra cantar
Me lembro tanto
E é tão grande a saudade
Que até parece verdade
Que o tempo inda pode voltar
Tempo da praia
De Ponta de Pedra
Das noites de lua
Dos blocos de rua
Do susto e a carreira
Na caramboleira, do bumba-meu-boi
Que tempo que foi
Agulha frita, mungunzá
Cravo e canela
Serenata eu fiz pra ela
Cada noite de luar
Agulha frita, mungunzá
Cravo e canela
Serenata eu fiz pra ela
Cada noite de luar
Mas hoje não tem dança
Não tem mais menina de trança
Nem cheiro de lança no ar
185
Hoje não tem frevo
Tem gente que passa com medo
E na praça ninguém pra cantar
Me lembro tanto
E é tão grande a saudade
Que até parece verdade
Que o tempo inda pode voltar
Tempo do corso na Rua da Aurora
É moço no passo
Menino e senhora
Do bonde de Olinda
Pra baixo e pra cima
Do caramanchão
Esqueço mais não
E frevo ainda
Apesar da quarta-feira
No Cordão da Saideira
Vendo a vida se enfeitar
E frevo ainda
Apesar da quarta-feira
No Cordão da Saideira
Vendo a vida se enfeitar
E frevo ainda
Apesar da quarta-feira
No Cordão da Saideira
Vendo a vida se enfeitar
O TEMPO E O RIO (Edu Lobo / Capinan)
O tempo é como o rio
onde banhei o cabelo
da minha amada
água limpa
que não volta
como não volta aquela antiga madrugada
Meu amor, passaram as flôres
e o brilho das estrelas passou
no fundo de teus olhos
cheios de sombra, meu amor
Mas o tempo é como um rio
que caminha para o mar
passa, como passa o passarinho
passa o vento e o desespero
passa como passa a agonia
186
passa a noite, passa o dia
mesmo o dia derradeiro
ah, todo o tempo há de passar
como passa a mão e o rio
que lavaram teu cabelo
Meu amor não tenhas medo
me dê a mão e o coração, me dê
quem vive, luta partindo
para um tempo de alegria
que a dor de nosso tempo
é o caminho
para a manhã que em seus olhos se anuncia
apesar de tanta sombra, apesar de tanto medo
apesar de tanta sombra, apesar de tanto medo
REZA (Edu Lobo / Ruy Guerra)
Por amor andei, já
Tanto chão e mar
Senhor,
Já nem sei
Se o amor não é mais
Bastante para vencer
Eu já sei o que vou fazer
Meu senhor, uma oração
Vou cantar para ver se vai valer
Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria
Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria
Ó meu santo defensor
Traga o meu amor
Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria
Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria
Se é fraca a oração
Mil vezes cantarei
Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria
Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria
UPA NEGUINHO (Edu Lobo / Gianfrancesco Guarnieri)
Upa, neguinho na estrada
Upa, pra lá e pra cá
Virge que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
Upa, neguinho na estrada
Upa, pra lá e pra cá
187
Virge que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
começando a andar
começando a andar
E já começa a apanhar
Cresce neguinho me abraça
Cresce e me ensina a cantar
Eu vim de tanta desgraça
Mas muito te posso ensinar
Mas muito te posso ensinar
Capoeira, posso ensinar
Ziquizira, posso tirar
Valentia, posso emprestar
Mas liberdade só posso esperar
VELEIRO (Edu Lobo / Torquato Neto)
Ê, ô
tá na hora e no tempo
vamos lá que esse vento
traz recado de partir
beira de praia
não faz mal que se deixe
se o caminho da gente
vai pro mar
Eu vou
tanta praia deixando
sem saber até quando eu vou,
quando eu vou, quando eu vou
voltar
Ê, ô
vou pra terra distante
não tem mar que me espante
não tem, não
Anda, vem comigo que é tempo
vem depressa que eu tenho
o braço forte e o rumo certo
ah, que o dia está perto
e é preciso ir embora
ah, vem comigo
nesse veleiro
Ê, ô
tá na hora e no tempo
vamo embora no vento
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