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IARA HELENA MAGALHÃES
A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO, DE JÚLIO BRESSNE,
SEGUNDO UM DESENHO DO TEMPO
M
ESTRADO EM
C
OMUNICAÇÃO E
S
EMIÓTICA
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2007
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1
IARA HELENA MAGALHÃES
A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO, DE JÚLIO BRESSNE,
SEGUNDO UM DESENHO DO TEMPO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Comunicação e Semiótica.
Área de concentração: Signo e Significação nas Mídias
Orientador: Prof. Dr. Sílvio Ferraz Mello Filho
São Paulo
2007
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2
IARA HELENA MAGALHÃES
A TÉCNICA DO FILME SÃO JERÔNIMO, DE JÚLIO BRESSNE,
SEGUNDO UM DESENHO DO TEMPO
M
ESTRADO EM
C
OMUNICAÇÃO E
S
EMIÓTICA
P
ONTIFÍCIA
U
NIVERSIDADE
C
ATÓLICA DE
S
ÃO
P
AULO
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
3
Aos meus pais Francisco e Adenir
Pensando em vocês penso em brinquedos, criança e casa. Vocês são do tamanho do mundo.
Ao meu marido Jorge Abrantes
Você me traz o veleiro que ancorou num dia quente, o ruído da chuva no calçamento. Isso não é
inexplicável?
Aos meus filhos Rafael, Cauê, Taís
Vejo-os dormir, crescer e despertar. Tudo num piscar de olho. Não sei o que vejo, pode ser o
tempo, pode ser música. Sigo até a rua, folheio um livro, assisto um filme, sonho que sou vocês.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Sílvio Ferraz, pelos encontros das quartas-feiras na PUC, abrindo meus
sentidos para os delírios a enredar-me no tempo.
À Profª Drª Irene Machado, pelas orientações iniciais e pela apresentação da obra A
técnica do livro segundo São Jerônimo, de D. Paulo Evaristo Arns, me aninhando como
um pouco d’água e um pedaço de pão.
Ao mestre Waldemar Lima, amigo e professor, diretor de fotografia de Deus e o diabo
na terra do sol, a iluminar-me a cada semana com sua figura amorosa; mansa admiração
que me faz descobrir coisas perdidas ou esquecidas há muito tempo.
A minha irmã Jussara, que me acompanha neste trajeto desde o exame de proficiência,
te procuro secretamente toda vez que abro uma janela.
Aos meus irmãos que me apóiam nas desmesuras.
Ao amigo Wolney Mamede, irresistível amigo, dos computadores à cachaça, das
sessões de cinema à conversa na cozinha, tudo parece ficar pequeno na sua presença.
À Maria de Lourdes Barbosa, querida Lourdinha, sabor de flor a me acompanhar nas
gotas de florais, doce presença, imensa planície que me cura.
À Sônia Miralda, amiga e revisora, pelos dias e noites que passamos a ler cada palavra
e imagem desta dissertação, explorando insensatamente o labirinto da amizade e do
aprendizado.
A Waltuir Alves Pimenta Júnior, Guilherme Francisco Lopes, Gilson Goulart Carrijo,
Jair Moreira, professores do curso de Produção Audiovisual do Centro Universitário do
Triângulo, todos os dias ao ouvir suas vozes corro para buscá-los.
Ao Joel Pizzini, amigo e colega de trabalho, ele a fazer filmes e eu a falar de filmes,
parecem ter passado mil anos que nos conhecemos.
Aos Professores Alzira Jerônimo de Melo Almeida, Fábio Silva Oliveira, Marcílio
Ribeiro Borges e Edson Rodrigues Menhô, reitora e pró-reitores do Centro Universitário
do Triângulo, atraídos pelo puro sabor do perigo da jornada de quatro anos de um curso
de cinema em Uberlândia.
À Virgínia Flores e ao cineasta Júlio Bressane, montadora e diretor do filme São
Jerônimo, pelas informações referentes à trilha sonora do filme, e ao nosso encontro de
sete anos atrás em Uberlândia com o filme São Jerônimo, que agora me é dado
parcialmente contar.
5
À Marize Gandara, musicóloga, pela sua ajuda na percepção sonora do filme São
Jerônimo.
Ao Cássio Ribeiro Silva, jovem e talentoso violonista, pela sua sensibilidade ao ouvir e
a me ajudar a sentir o filme São Jerônimo.
À CAPES, pela bolsa concedida que me possibilitou mais esta etapa de estudo.
6
Iremos fingir por um instante que não conhecemos nada
das teorias da matéria e das teorias do espírito, nada das
discussões sobre a realidade ou a idealidade do mundo
exterior. Eis-me, portanto, em presença de imagens, no
sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra,
imagens percebidas quando abro meus sentidos,
despercebidas quando os fecho.
Henri Bergson
7
RESUMO
Esse trabalho destina-se a estudar a técnica composicional no cinema, pesquisando a
técnica de criação do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, segundo um desenho do
tempo. São Jerônimo foi construído a partir de uma série de documentos, leituras,
pinturas, teses que transitam entre o fascínio pela iconografia ligada ao santo e a
imanência do filme sendo realizado. Um processo de tradução do processo de traduzir.
O foco dessa pesquisa é o tempo. O tempo que nasce da emancipação do movimento
pela luz e pelo som. O tempo na imagem e no drama cinematográficos. Esse estudo
orientou-se pelas obras A imagem-movimento e A imagem-tempo, de Gilles Deleuze. O
estudo do conceito imagem-tempo, tempo emancipado do movimento, como o regime
original das imagens e signos da modernidade do cinema, possibilitou-nos pensar as
técnicas de ver, ouvir e sentir o tempo em São Jerônimo. Ancorando a pesquisa,
estudamos a semiótica Peirciana, os fundamentos da análise fílmica, o papel do som no
cinema, a produção teórica de pesquisadores brasileiros sobre análise e crítica de filmes,
e trabalhos inéditos sobre a fotografia na criação de filmes. A análise da técnica de
luteria do filme compreendeu três etapas: na primeira estudamos as qualidades, as
formas, os códigos e suas materializações nas composições das imagens audiovisuais,
observando os enquadramentos, as decupagens, os movimentos de câmera, as
montagens e as materializações de idéias rítmicas e suas interações; na segunda etapa
investigamos as imagens audiovisuais como objetos estéticos através do conceito
imagem-tempo; e na terceira etapa estudamos a disjunção entre as imagens visuais e
sonoras do filme. A análise de São Jerônimo nos conduziu a uma constatação: suas
imagens imobilizam o visual e o sonoro. O sonoro ensaia levar o filme para fora do
campo visual enquadrado na tela, num movimento centrífugo, mas se detém em
diversos desvios, tendendo à pureza do próprio som; e o visual se apressa a tragar-nos
para territórios fundados pelo excesso ou escassez de luz, o deserto e Roma, num
movimento centrípeto, todavia para lugares desconexos e sem centros, resistindo aos
fotogramas e às imagens em movimento. São Jerônimo, desenho de uma matéria
movente a cortar os planos e re-encadeando os cortes a nos apresentar o tempo.
Jerônimo intercessor de Bressane e de Deleuze.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
:
Cinema, técnica composicional, tempo, imagem-movimento,
imagem-tempo, comunicação.
8
ABSTRACT
This paper aims to study the compositional technique of cinema, researching the
technique of creation of the movie São Jerônimo, by Júlio Bressane, based in the design
of the time. São Jerônimo was constructed from a series of documents, readings,
paintings, thesis that traverse between fascination for iconography linked to the saint
and the immanence of the film construction. A process of translation of the process of
translating. The focus of this research is the time. The time that arises from the
emancipation of the movement through light and sound time in the cinematographic
image and drama. This paper was based theoretically in two works by Gilles Deleuze
The image-movement and The image-time. The study of the concept image-time time
emancipated from movement – as the original regime of imagine and sign of the modern
cinema, made it possible for us to see, hear and feel the time in São Jerônimo. We also
studied the Peircian semiotics, the principles of the filmic analysis, the role of the sound
in the cinema, the theoretical production of Brazilian researchers on critique of movies
and unpublished works about photography in the creation of films.The method used to
do the reading of the film involved three stages: in the first we studied the qualities, the
shapes, the codes and their materialization in the composition of the audio-visual
images, observing the framing, decoupage, the movement of the camera, the montage
and materialization of the rhythmical ideas and their interactions; in the second stage we
investigated the audiovisual images as aesthetical objects through the image-time
concept; in the third stage we analyised the disjunction between the visual and audio
images of the movie.The analysis of São Jerônimo made us to come to the following
conclusion: its images immobilized the visual and sound aspects. The sound tries to take
the film out of the visual field framed in the screen, in a centrifugal movement, but it
detains itself in several deviations, tending to the purity of sound, while the visual
aspect rapidly drags us to territories of excess or shortage of light – the desert and Rome
in a centripetal movement that leads, however, to disconnected and decentralized
places, resisting to the photo grams and the images in movement. São Jerônimo, design
of a moving material that cuts the cinematographic plan and rearrange the cuts that
present the time. Jerônimo, Bressane and Deleuze’s intercessor.
K
EYWORDS
:
Cinema, compositional technique, time, image-movement, image-time,
communication.
9
SUMÁRIO
I
NTRODUÇÃO
................................................................................................................. 10
1. JRNM – O mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente .................... 14
2. Um pouco de tempo em Deleuze ............................................................................. 18
3. São Jerônimo: elementos para uma análise .......................................................... 22
C
APÍTULO
I
J
ÚLIO
B
RESSANE APRESENTA
: S
ÃO
J
ERÔNIMO
....................................
26
1. São Jerônimo, de Bressane, plano a plano (7min) .................................................. 27
2. Os dois pontos (:) .................................................................................................... 36
3. Cristais de tempo ..................................................................................................... 43
C
APÍTULO
II – N
OTAS DE TEMPO EM
D
ELEUZE
...
....................................................... 50
1. Cinema 1 – A imagem-movimento ......................................................................... 51
1.1 Signos do tempo .............................................................................................. 56
2. Cinema 2 – A imagem-tempo .................................................................................. 59
C
APÍTULO
III – ... N
OTAS DE TEMPO EM
B
RESSANE
.................................................... 73
1.
Abertura ................................................................................................................... 76
2. Primeiro Movimento – Deserto / 23min45seg / 9’32” a 31’10”/ 64 planos ........... 78
2.1 Seqüência: No paraíso / 3 min / 9’32” a 12’32”/ 8 planos .............................. 79
2.2 Seqüência: Pedra-de-sino / 9min9seg / 12’33”a 21’02”/ 28 planos ............... 82
2.3 Seqüência: Vozes de Jerônimo / 2min50seg / 21’03” a 23’53”/ 5 planos ....... 94
2.4 Seqüência: Acontecimento / 7min56seg / 23’54” a 31’10”/ 23 planos ............ 98
3. Segundo Movimento: Roma de Bressane / 33min / 31’10”a 1h4’/ 79 planos ...... 105
4. Terceiro Movimento: Sertão / 8min38seg / 1h4’ a 1h12’38”/ 19 planos ............... 122
C
RÉDITOS FINAIS
......................................................................................................... 125
10
E
M TEMPO
....................................................................................................................
129
R
EFERÊNCIAS
.............................................................................................................. 133
A
NEXOS
........................................................................................................................ 137
INTRODUÇÃO
Estamos em Uberlândia, 18 de junho de 2000. O cartaz anuncia a pré-estréia do filme
São Jerônimo
12
continuidade do movimento que os registra, como também nas partes que eles não juntam. As
imagens sonoras e visuais ultrapassam suas próprias camadas, à procura de outras imagens e
de sons: imagens de fusão de rasgos.
O filme parece composto por imagens fixas, entretanto, no cinema o que parece fixo,
instantâneo (cortes imóveis) são cortes móveis de uma duração, são os planos. O plano é a
imagem-movimento. Os planos são conseguidos por filmagem de 24 fotogramas por segundo,
uma sucessão de imagens fixas escolhidas para serem enquadradas. Os fotogramas são
imagens instantâneas (cortes imóveis do movimento).
O diretor de um filme realiza o processo de decupagem, isto é, a determinação de uma
ordenação dos planos e seqüências e, conseqüentemente, a determinação dos movimentos
sonoros e visuais que se distribuem na sucessão dos planos e das seqüências. A montagem é
o processo que exprime a composição, o movimento e a variação dos planos e entre os planos
de um filme. Portanto, não há apenas imagens instantâneas (cortes imóveis do movimento), há
planos, que são cortes móveis da duração, para além do próprio movimento, imagens-
movimento.
O filósofo francês Gilles Deleuze diz que a tela enquanto quadro dos campos confere
uma medida comum àquilo que não a tem; exemplifica que o plano conjunto de uma
paisagem, o primeiro plano de um rosto, terra e mar são partes que não apresentam os
mesmos denominadores de distância, de relevo e nem de luz, e conclui que o quadro assegura
a desterritorialização da imagem (DELEUZE, 1985).
Contudo, uma tela enquanto quadro de campos contém um enquadramento, um
conjunto fechado. Um sistema ótico e sonoro que remete a um ponto de vista sobre o conjunto
de planos que a constitui; enquadram-se potências de naturezas diferentes, numa composição
de muitos quadros dentro do quadro. Nesse sentido, São Jerônimo é representante de uma
pesquisa de luz rigorosa; os longos planos fixos de dias se transformando em noites e noites
13
em dias induzem não a ações, mas a descrições; os encadeamentos das imagens sonoras e
visuais se rarefazem e libertam-se para movimentos e tempos novos.
A concepção física ou dinâmica do quadro induz a conjuntos vagos, gradações físicas,
graus de luz e sombra, escalas de claro-escuro. Na tela, as partes que não se juntam libertam
os intervalos entre os planos, entre as músicas, entre os atos de fala para uma outra relação:
não assistimos a São Jerônimo como um todo, mas como um filme partido, caracterizado pela
disjunção entre o visual e o sonoro.
Procederemos a uma leitura do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, refletindo sobre
a técnica composicional no cinema, pesquisando sua técnica de criação e o que surge na
temporalidade da imagem e do drama.
São Jerônimo é o 28º longa-metragem de Júlio Bressane um filme nuclear,
referencial na pesquisa do espaço, do tempo, da luz, da duração e dos movimentos: Bressane
estudou durante onze anos a vida e a obra de Jerônimo para traduzi-lo para o cinema. Desde a
Idade Média, São Jerônimo é considerado o mais sábio e culto dos “pais” (escritores
eclesiásticos dos primeiros séculos) da Igreja ocidental. Sua tradução da Bíblia para o latim, a
Vulgata, é a oficial da Igreja Católica desde o Concílio de Trento.
José Mario Pereira, em seu artigo “Atualidade de São Jerônimo” [200-], fornece
importantes informações a respeito da bibliografia de e sobre São Jerônimo publicada no
Brasil. É com base neste texto que delineamos a seguir, um perfil da figura de São Jerônimo,
que fascinou poetas e humanistas, escritores e pintores.
Júlio Bressane, por ocasião da primeira exibição do filme São Jerônimo no Festival de
Brasília (1999), disse: São Jerônimo é a evocação de um signo, mise-en-scène da palavra aos
sentidos, da pedra à câmera, numa geografia quente, árida, atingindo às vezes o branco sobre
o branco. No livro Cinema dos anos 90, a pesquisadora Liliane Heynemann termina seu artigo
intitulado “São Jerônimo” com a seguinte citação de Júlio Bressane:
14
O signo Jerônimo nos faz pensar no fascínio eterno que a escrita e o deserto
exercem na criação da imagem desde os seus primórdios, desde Lascaux,
desde o Piauí [...] Com o cinema podemos imaginar e recriar a verdadeira
“viagem”, o esforço no limite máximo, agônico, que se impôs Jerônimo em
sua tarefa de criar uma nova linguagem, modificando, civilizando a
sensibilidade de seu tempo e futuro (BRESSANE, 1996, p.61 apud
HEYNEMANN, 2005, p.305
).
E assim começamos a pensar intensamente nesses autores: São Jerônimo e Júlio
Bressane. Pensamos em escrever esta dissertação através deles, não como objetos, nem como
identificação, mas na tentativa de reconduzi-los a uma força, a uma alegria, a uma vida que
eles souberam inventar.
*
* *
O filme São Jerônimo, produzido em 1998, foi escolhido como corpus desse estudo
por se tratar de um filme nuclear na pesquisa do espaço, do tempo, da luz, da duração, dos
movimentos, nas materializações de idéias rítmicas e na construção de um sistema sonoro,
onde as palavras, os silêncios, as imagens e os sons desencadeiam uma “escrita” que pode
investigar uma complexa rede de afetos em trânsito a respeito do tempo.
São Jerônimo se inicia com uma seqüência do filme sendo produzido, o lugar do
espectador, do diretor, da equipe de produção, dos atores em cena, um travelling de conjuntos
de partes mostrando o filme se tornando filme. O som do vento e uma série de planos fixos de
pedras, rochas entre uma seqüência e outra jogam na tela o nascimento de uma cabra, uma
voz em primeira pessoa relata um sonho, uma iluminação, começa-se a encenação do famoso
sonho de São Jerônimo: diante de um Tribunal Universal, Jerônimo, amante das belas-letras e
cevado nos textos clássicos, deve escolher entre converter-se ao cristianismo, tornar-se leitor
dedicado e exclusivo das Sagradas Escrituras, ou continuar a ser um seguidor da filosofia de
Cícero. “Ciceroniano” ou cristão? A dúvida e a fé duelam em seu sonho.
15
O sangue no peito do personagem (Jerônimo) e o movimento pendular de um peito
humano tocando a câmera justaposta aos sons emitidos nos conduz à presença física de uma
pedra e a um ritual de suplício. A mesma pedra é vista, em seguida, batendo na câmera. Em
contrapartida, na seqüência final a câmera se desloca do corpo inerte do personagem São
Jerônimo e assume uma liberdade ficcional através das imagens de um entardecer, uma
paisagem, uma geografia ao som da antológica música do cancioneiro nordestino “Último
pau-de-arara”.
1
Territórios de vários domínios de sentido, mediados pela câmera e seus
dispositivos cinematográficos, o que nos faz perceber que a justaposição e a articulação entre
as imagens e os sons no filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, podem gerar formas
complexas de ver, sentir e ouvir o tempo como um lugar que mostra o próprio tempo.
O filme São Jerônimo, coloca de início uma questão: o que se pode ver na imagem?
Entre e nas imagens sonoras e visuais que se encadeiam? Um filme que implica e se explica
em inúmeras imagens de tempo. Um cinema que procura o tempo no cinema. Da escrita à
imagem. Da pedra à câmera.
1. JRNM – O mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente
Eusébio Jerônimo nasceu na Dalmácia (na atual Croácia), por volta do ano 347, em
uma família abastada. Sua educação, iniciada no lar, prosseguiu em Roma, onde estudou
gramática, retórica e filosofia. Possivelmente por volta do ano 366, foi batizado pelo papa
Libério. Nos anos seguintes, realizou inúmeras viagens pela Europa e sentiu-se
profundamente atraído pela vida monástica. Por volta do ano 373, foi para o Oriente e passou
1
Música de Venâncio, Corumbá & J.Guimarães, dos discos: "Manera Frufru Manera" e "Ao vivo (Duplo)" de
Raimundo Fagner.
16
algum tempo em Antioquia. Foi então que, após uma crise espiritual, prometeu a si mesmo
não voltar a ler nem a possuir literatura pagã.
Pouco tempo depois, iniciou um período de dois anos como eremita no deserto de
Cálcis, em busca de paz interior. Entregue à oração e ao jejum, estudou também grego e
hebraico. Como conseqüência do cisma de Antioquia, Jerônimo deixou o deserto e transferiu-
se para aquela cidade. Ali foi ordenado, e no ano 382 regressou a Roma como secretário do
Papa Damaso I. Nesse período, iniciou a revisão da versão latina do Antigo Testamento, obra
em que trabalharia toda a vida. Após a morte do papa, no ano 385, foi para Belém, na
Palestina, onde fundou um mosteiro em que permaneceu por mais de trinta anos, até a morte.
São Jerônimo desenvolveu uma atividade incessante, consagrada ao aperfeiçoamento
da vida monástica e à redação de tratados religiosos. Entre eles cabe destacar seus muitos
escritos sobre temas bíblicos e o De viris illustribus (Sobre os homens ilustres), coletânea de
biografias de autores cristãos. Também manteve extensa correspondência, em que defende os
ideais da vida ascética. Morreu no ano 419 ou 420, em Belém. Em 1295, foi declarado doutor
da igreja pelo papa Bonifácio VIII. É festejado em 30 de setembro.
No filme de Bressane, Jerônimo, acompanhado por outros padres, vive no deserto, em
um ambiente de agruras e penitência. Conhece Gregório que o inicia nos trabalhos de
recolher, copiar e traduzir os textos sagrados. Esse trabalho o leva até Roma, onde se
secretário e consultor de assuntos bíblicos do papa Damaso e na companhia de mulheres
aristocratas e cristãs como Marcela e Paula, Jerônimo refina seu espírito e aprimora seus
conhecimentos, transitando por textos de difícil acesso. Cria um centro de estudos bíblicos e,
enquanto orienta almas, divulga os textos sagrados.
Com a morte de Damaso, Jerônimo volta ao deserto e impõe-se uma tarefa
monumental: traduzir dos originais grego e hebraico a Bíblia Latina, Vulgata.
17
Não deve parecer estranho que o destaque neste filme sobre um escritor, tradutor, seja
o texto sendo escrito. O filme se centra no texto, ou melhor, nos textos e também no peso da
documentação a respeito de São Jerônimo. Esta tensão à procura do documento também se
apresenta como ficção. São Jerônimo, de Júlio Bressane, ou o texto de São Jerônimo sendo
escrito ou ainda a iconografia a respeito do santo, um dos maiores da igreja católica, são
componentes deste reconhecimento.
O filme São Jerônimo nasceu de um grande elenco de informações, documentos,
leituras, quadros, teses e elegeu como personagem principal o filme sendo realizado, uma
construção metalingüística, um personagem sendo interpretado por um ator, o que pressupõe
uma equipe e um processo de produção.
O filme passa pelo fascínio da iconografia à imanência do filme sendo realizado. Os
documentos constituem ora como passagens críticas, onde os atores se distanciam da
verossimilhança e se afastam da ficção, ora remetem a uma outra espécie de documento, onde
os atores se apresentam em situações de passagens representando personagens. O filme São
Jerônimo não se situa no sentido inverso da ficção, porque não apaga o gênero, mas inclui na
ficção um desejo de documento sendo feito entre os seus desejos. Um discurso de documento
reinvestido de ficção e uma ficção revestida do desejo do documento.
O filme São Jerônimo pertence à modernidade do cinema. Esta afirmação será
desenvolvida ao longo deste trabalho, considerando que o cinema criou nos filmes destes 112
anos uma grande quantidade de imagens e uma infinidade de composições entre elas, através
da montagem. Essas imagens do cinema em seu conjunto serão pensadas sob os conceitos
imagem-movimento
2
e imagem-tempo
3
, que Gilles Deleuze expõe em seus livros sobre
cinema, a saber A imagem-movimento e A imagem-tempo.
2
Imagem-movimento: conjunto centrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros.
3
Imagem-tempo: imagem liberada dos vínculos sensório-motores, liberada da ação.
18
A modernidade no cinema, segundo Gilles Deleuze, pertence aos filmes onde nasce
uma nova espécie de imagem que não remete mais a uma situação globalizante, e sim
dispersiva; onde a realidade lacunar substitui a ação pela perambulação, em que o espaço se
desfaz tanto quanto a história, provocando a indiscernibilidade entre o físico e o psíquico,
apresentando defasagem entre a ação e a fala, enfim, uma imagem além do movimento. Como
a imagem criada em São Jerônimo se vincula a uma história das imagens dos cinemas da
modernidade?
São Jerônimo, de Júlio Bressane, se inscreve num tipo de cinema que implica a ruína
do esquecimento do esquema sensório-motor, concentrando-se sobre si mesmo ganhando uma
autonomia audiovisual, novas formas de atos de fala, não mais ação e reação, nem interação -
é um cinema de composição em que aparece um novo tipo de imagem: a imagem-tempo.
Estudaremos a técnica composicional do filme, isto é, sua luteria, na tentativa de
traçar um desenho do tempo na imagem e no drama, e a questão: como as imagens do filme
São Jerônimo comportam a força do tempo? Escolhemos como primeiro objeto de reflexão o
tempo e o que surge na temporalidade da imagem cinematográfica, através da
problematização do tempo em Gilles Deleuze.
A problematização do tempo em Deleuze é recorrente em inúmeros textos e livros, ele
falou do cinema para “tramar” o atrelamento do tempo ao movimento na imagem, em teses
sistemáticas nos dois livros que escreveu sobre cinema: A imagem-movimento e A imagem-
tempo. Deleuze realiza nestes livros um minucioso estudo dos tipos de imagem, que ele divide
em dois regimes: a imagem-movimento e a imagem-tempo, as primeiras predominam no
cinema clássico e as segundas no cinema moderno. Dois tipos de narrativas e, sobretudo, dois
tipos de relação com o tempo: a representação indireta do tempo e a apresentação direta do
tempo.
19
O objetivo desta dissertação é o de refletir sobre a técnica composicional no cinema,
pesquisando a técnica de criação de São Jerônimo, de Júlio Bressane, tendo em vista o tempo
que nasce da emancipação do movimento pela luz e pelo som. Deste modo, visa analisar o
tempo na imagem cinematográfica e o que surge na temporalidade dessa imagem, indagando
sobre a existência de um tempo em estado puro e de cristais de tempo no filme. O que nos
levará a destacar as possíveis técnicas de ver, sentir e ouvir o tempo como um lugar a mostrar
o próprio tempo.
O filme São Jerônimo é uma obra que oferece aos nossos sentidos um cinema que
promove movimentos aberrantes na recepção da luz e do som, na ordenação e no
encadeamento dos próprios movimentos, libertando na superfície das imagens que serão
analisadas o sentido da emergência das idéias sobre o tempo e das formas de se ver o tempo
no desafiante momento lançado pelas novas tecnologias e os processos midiáticos.
Júlio Bressane realiza um filme tendendo a emancipá-lo do movimento: a
simultaneidade do filme sendo realizado e o peso da documentação a respeito de Jerônimo se
detém, diante de um jogo onde o tempo aparece paralisando a ação, interrogando-nos, de
modo urgente e agudo, sobre a emissão e a recepção nas mídias, um lugar do tempo na
comunicação ou quem sabe fora da comunicação.
2. Um pouco do tempo em Deleuze
Em dois livros, Gilles Deleuze pensa o tempo tendo o cinema como lugar de
pensamento: A imagem-movimento e A imagem-tempo. Deleuze realiza nestes livros um
minucioso estudo dos tipos de imagem, que ele divide em dois regimes: a imagem-movimento
e a imagem-tempo; as primeiras predominam no cinema clássico e as segundas no cinema
20
moderno. Dois tipos de narrativas e, sobretudo, dois tipos de relação com o tempo: a
representação indireta do tempo e a apresentação direta do tempo.
O cinema percorreu, segundo Deleuze, ao longo de sua história, de um regime a outro,
de uma narrativa a outra, de imagens que representam indiretamente o tempo (cinema
clássico) a imagens que o apresentam diretamente (cinema moderno). O cinema clássico
expõe situações sensório-motoras: cinema de ação, onde personagens se encontram em
determinadas situações e agem conforme o que percebem ou sofrem (DELEUZE, 1992, p.68).
Deleuze realiza um esforço em tentar classificar este tipo de imagem e diferenciá-la das
imagens do cinema moderno. Recorreu a Henri Bergson em Matéria e memória, de 1896, que
considera um livro único, extraordinário, em que Bergson delineia uma imagem-movimento e
uma imagem-tempo antes mesmo de conhecer o cinema; imagens que Deleuze utiliza
recolocando-as no campo do cinema.
A imagem-movimento é a base onde é constituído o cinema em seu conjunto, por
conseguinte o cinema criou diversas imagens e as compôs entre si através da montagem.
Através do sistema sensório-motor, todas elas se associam entre si e com um extracampo,
com o todo, com um tempo do mundo, numa representação indireta do tempo através da
sucessão de planos que elas encadeiam.
A imagem dita clássica é considerada por Deleuze segundo dois eixos, duas
coordenadas: primeiramente os elementos se encadeavam por leis associativas (contigüidade,
semelhança, contraste, oposição etc.), e em segundo lugar interiorizando-se num todo como
conceito, integrando e não parando de centrifugar-se em outras associações. O todo
permanecia sempre aberto e mutante. O extracampo se comunicava e um exterior exprimia-se
num todo em contínua mudança – o movimento e o tempo, o tempo e o movimento.
A imagem-tempo aparece nos cinemas da modernidade, Quais são os cinemas da
modernidade para Deleuze? Deleuze desenvolve uma importante análise da crise da imagem-
21
movimento no final e após a Segunda Guerra Mundial. Atribui ao conjunto do movimento
cinematográfico, ao neo-realismo italiano, a seus diretores e seus filmes a denominação de
cinema moderno, e depois à nouvelle vague francesa. No Capítulo II, intitulado Notas de
tempo em Deleuze..., desenvolvemos a questão do para além da imagem-movimento.
A imagem-tempo é, para Deleuze, uma imagem criada por uma câmera que não se
contenta em seguir o movimento das personagens, nem em fazer os movimentos para
descrevê-los no espaço, mas uma consciência-câmera: a câmera se torna “questionante,
hipinotizante, experimentante”, para um além do movimento, para revelações dos
movimentos na perspectiva do tempo. Uma nova concepção de cinema e formas de
montagem. O que mostra esta nova imagem? Mostra a força do tempo na imagem e nas
relações de tempo, relações que não se reduzem à sucessão, assim como a imagem também
não se reduz ao movimento.
Em São Jerônimo, de Bressane, podemos destacar imagens-tempo. Uma delas está
presente na seqüência “O sonho de Jerônimo”: quem narra é quem sonhou o sonho, nele um
tribunal julga o pecador. O pecador narra que recebia chibatadas, mas não ouvimos o ruído
das chibatadas, ouvimos o ruído de pedra batendo em uma superfície dura, vemos um corpo
se aproximar da câmera, repetidas vezes, em seguida uma pedra bater na câmera algumas
vezes.
Esta imagem não se confunde mais com o sonho, nem com o atual presente do
narrador contar o sonho, mas com a câmera, que também está contando; ela se embrenha no
acontecimento, se instala no interior do ato de contar, numa visão puramente óptica e sonora,
para depois desaparecer. Por fim, vemos um corpo machucado e com as espáduas a sangrar. A
câmera está, portanto, no tempo e apresenta-nos uma imagem de tempo pura, implicada no
interior do sonho que está sendo narrado através das imagens sonoras e visuais.
22
Os cortes se abrem para intervalos onde as imagens não mais se encadeiam, elas se
reencadeiam num movimento novo. O extracampo (a câmera que recebeu as batidas do corpo
e da pedra) não mais existe, nasce um fora, um novo tempo; não mais movimentos de
interiorização ou exteriorização, mas um afrontamento de um fora que se criou
independentemente da distância ou de um tempo do mundo. O extracampo deixa de ser um
espelho, o interstício entre as imagens surge como superfície, não mais como reflexo de um
todo e sim como a criação de um tempo, não mais uma imagem do tempo e sim uma imagem
de tempo.
Em A imagem-tempo, Deleuze discute a modernidade no cinema e cria novos circuitos
a respeito do conceito de imagem-tempo:
[...] quando o quadro ou a tela funciona com quadro de bordo, mesa de
impressão ou de informação, a imagem não pára de se recortar em outra
imagem, de se imprimir através de uma trama aparente, de deslizar para
outras imagens numa profusão incessante de mensagens, e o próprio plano se
assemelha menos a um olho que a um cérebro sobrecarregado que sem parar
absorve informações (DELEUZE, 1990, p.317).
Desse modo, o cinema moderno apresenta o tempo em seu estado puro, comportando
formas de tempo puras, criando formas de tempo em que os sentidos se libertam do
movimento, desatrelando o tempo do movimento. Uma imagem direta do tempo libertando-o
da cadeia de presentes e fazendo surgir um novo tipo de imagem: a imagem óptica e sonora
pura imagem que não se prolonga em uma ação deixando as imagens cinematográficas
revelarem o “em si” do tempo em sua virtualidade. Um tempo contra o presente ou a contra a
sucessão dos presentes.
Peter Pál Pelbart, em sua tese intitulada O tempo não-reconciliado (1998), menciona
algumas peças conceituais em que o tema do tempo é abordado por Deleuze: o Outro em
Platão, a Cesura em Hölderlin, o Intempestivo em Nietzsche, o Tempo Puro ou perplicado de
Proust, a Memória ontológica em Bergson, o Tempo como defasagem em Simondon, ou
23
como Forma em Kant, ou como Espera em Masoch, ou como Acontecimento em Péguy e
Blanchot e a forte inspiração de Jorge Luiz Borges presente em Deleuze.
Peter Pál Pelbart aposta que a filosofia de Deleuze pressupõe uma problemática
temporal própria, singular, em sua lógica e irredutível às fontes que ele menciona, utiliza e
com as quais dialoga. Além disso, escolhe para começar seu trajeto o cinema, e o primeiro
capítulo de sua tese, “O tempo do virtual”, ele escreveu a partir dos livros Deleuze, A
imagem-movimento e A imagem-tempo, que considera as suas maiores teses sobre o tempo, e
constituem um terreno privilegiado na apreensão das teses de Deleuze.
Pelbart desdobra, no capítulo “O tempo não-reconciliado”, do livro Gilles Deleuze:
uma vida filosófica, que os livros de Deleuze sobre cinema, acima citados, encadeiam-se no
tema da emancipação do tempo.
Um tempo liberado do movimento, isto é, do movimento centrado em torno
de seu eixo e encadeado e direcionado conforme a sucessão de seus
presentes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania do
presente que antes o envergava, e disponível, doravante, às mais excêntricas
aventuras.[...] Deleuze salienta um procedimento cinematográfico que
consiste em desvincular as pontas do presente de sua própria atualidade,
subordinando esse presente a um acontecimento que o atravessa e o
transborda. [...] o tempo passa então a ser concebido não mais como linha,
mas como emaranhado, não como rio, mas como terra, não fluxo, e sim
massa, não sucessão, porém consistência, não um círculo, mas turbilhão, não
ordem, e sim variação infinita, de modo que não se trata mais de remetê-lo a
uma consciência a consciência do tempo –, mas à alucinação (PELBART,
2000, p. 90-91).
3. São Jerônimo: elementos para uma análise
A análise do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, vai focalizar a sua técnica
composicional e o que surge na temporalidade da imagem e do drama. Recortaremos
seqüências, cenas e planos, utilizando os instrumentos, condutas e ferramentas de análise
desenvolvidas no livro de Goliot-Lété (1999), Ensaio sobre a análise fílmica.
24
A análise compreenderá três etapas. A primeira envolverá: estudo das qualidades,
formas, códigos e suas materializações nas composições das imagens fílmicas, observando os
enquadramentos, as decupagens, os movimentos de câmera, as montagens e nas
materializações de idéias rítmicas em seus diversos modos de interação; na segunda etapa
investigaremos as imagens sonoras e ópticas puras como objetos estéticos apresentados no
filme, através da música, do silêncio, dos ruídos, das palavras, da montagem das imagens
visuais e sonoras gerando significações; e na terceira etapa estudaremos efetivamente o
processo de criação do filme, a sua técnica composicional e a sua técnica de luteria, na
tentativa de compor um desenho do tempo na imagem e no drama São Jerônimo, de Júlio
Bressane.
Os estudos de Sergei Eisenstein (1990a; 1990b) sobre a montagem fílmica, sobre a
relação entre as imagens de um filme e sua música serão nucleares nesse processo de análise
fílmica. O autor destaca o papel da obra de arte no movimento interno da seqüência
cinematográfica e de sua ação dramática, as relações entre a estrutura rítmica da música e o
movimento interno das imagens, ou mesmo suas qualidades de sentido estético.
Especialmente a respeito do som no cinema, elegemos os estudos do compositor
eletroacústico e crítico de cinema Michel Chion (1994, 2003) em que desenvolve uma série de
conceitos aplicados ao estudo do som, da voz e da música no cinema. Entre eles o de valor
adicionado, que consiste na forma pela qual um som enriquece uma imagem, resultando num
valor expressivo e informativo.
Ainda a respeito do som, destacamos um artigo de Pascale Criton (2000), incluído no
livro Deleuze: uma vida filosófica, intitulado “A propósito de um curso do dia 20 de Março de
1984: O Ritornelo e o Galope”. Como demonstra a autora, Deleuze lança uma pista de um
trabalho por vir, que se conecta com o objetivo de nossa pesquisa: a noção de cristal de tempo
e o esboço da imagem cristal, de um ponto de vista sonoro.
25
Segundo Deleuze (1990), o cinema não apresenta apenas imagens, mas as cerca de um
mundo. Cristais de tempo são imagens em que vemos o tempo. Vemos tempo às vezes se
bifurcando, às vezes como lençóis de passado, e ainda como simultaneidade. A imagem-
cristal, o cristal de tempo, não é o tempo, mas nós vemos o tempo no cristal. É um ponto
limite de imagens, é um tempo em estado puro, é um jorrar do tempo. É um autor tornando-se
outro, e o personagem também. O cristal de tempo expressa uma gênese, não uma imagem
especular, mas um presente que passa e que pode encaminhar-se para a morte, um passado
que se conserva e que contém uma semente de vida.
Deleuze (1990) afirma que o que se no cristal não é o tempo cronológico, não é
apenas a imagem óptica, mas que o cristal tem também propriedades acústicas, portanto a
imagem cristal é também sonora; e conclui: todo cristal revela o tempo.
À primeira vista, a noção de cristal de tempo insinua-se nos movimentos musicais no
filme São Jerônimo. Deparamo-nos, por exemplo, com a música “Último pau-de-arara” nos
instantes finais do filme, que parece constituir-se num cristal sonoro revelando o tempo. Esse
é um aspecto a ser estudado, devido à impactação que essa música cria no filme.
26
São Jerônimo
São JerônimoSão Jerônimo
São Jerônimo
/ Foto da capa do filme
/ Foto da capa do filme/ Foto da capa do filme
/ Foto da capa do filme
4
44
4
4
Cabe uma ressalva quanto à cópia do filme utilizada para este estudo. Utilizamos a cópia em VHS, lançada pelo
Consórcio Europa e Filmark em 2001. Fizemos um DVD, que acompanha esta dissertação. Chamamos a
atenção para o fato de que pouquíssimas locadoras no Brasil ainda têm uma pia da versão original de São
Jerônimo.
F
ICHA TÉCNICA
Filme São Jerônimo, de Júlio Bressane (1998)
Direção e roteiro: Júlio Bressane; Assistentes de direção: Noa Bressane e Leonardo
Lassance; Fotografia: José Tadeu Ribeiro; Música: Fábio Tagliaferri; Produção: TB
Produções, Guilherme Spinelli e Mirian Porto; Ano de produção: 1998; Duração: 79
minutos; Distribuição em cinema: Riofilme; Distribuição em vídeo: Riofilme,
Consórcio Europa e Filmark; (Cor).
Elenco: Everaldo Pontes. Hamilton Vaz Pereira, Helena Ignez, Bia Nunes, Sílvia Buarque.
27
CAPÍTULO I
JULIO BRESSANE APRESENTA : SÃO JERÔNIMO
Neste capítulo procuramos pensar sobre os dois pontos do título que demos a ele. Dois
pontos que separam Júlio Bressane de São Jerônimo. Os dois pontos como sendo o lugar de
um processo de nascimento de uma obra cinematográfica. Dois pontos ressoam e se
desdobram na declaração de Júlio Bressane: “Cada filme meu é uma nova e estranha aventura,
feita por uma nova e estranha pessoa” (apud TEIXEIRA, [200-], p.100).
São Jerônimo é uma obra que se agita entre dois pontos. Primeiramente, pelo destaque
de que apresenta o filme sendo feito, e com isso elegendo como um de seus personagens
principais o filme sendo realizado, uma construção metalingüística, o que pressupõe uma
equipe e um processo de produção; e em segundo lugar, pelo peso da documentação a respeito
de São Jerônimo. São Jerônimo, de Júlio Bressane, ou o texto de São Jerônimo sendo escrito,
ou ainda a iconografia a respeito do santo, um dos maiores da igreja católica, são os
componentes desta aventura o filme passando pelo fascínio da iconografia à imanência do
filme sendo realizado.
Júlio Bressane disse que São Jerônimo é a evocação de um signo, mise-en-scène da
palavra aos sentidos, da pedra à câmera, numa geografia quente, árida, atingindo às vezes o
branco sobre o branco. E Gilles Deleuze (1992, p.84) afirma que no cinema, as imagens são
signos. Um signo é uma imagem particular; “a imagem é uma figura que não se define por
representar universalmente, e sim por suas singularidades internas, pelos pontos singulares
que ela junta”.
28
No filme, os documentos sobre Jerônimo se constituem como passagens críticas, ora
se aproximam da verossimilhança e ora se afastam dela , para novamente remeterem a
uma outra espécie de documento, o filme sendo encenado.
Todavia, o filme São Jerônimo não se situa no sentido inverso da ficção, porque não
apaga o gênero, mas inclui na ficção um desejo de documento sendo feito entre os seus
desejos. Um discurso de documento reinvestido de ficção, e uma ficção revestida do desejo de
documento. O filme se inicia com uma seqüência do filme sendo produzido, deixando ver o
lugar do espectador, do diretor, da equipe de produção, os atores em cena, em um travelling
de conjuntos de partes que mostra o filme tentando se tornar filme.
Vejamos a abertura, a seqüência inicial de São Jerônimo.
1. São Jerônimo, de Bressane, plano a plano (7min)
O início do filme é simultaneamente apresentado com os créditos iniciais, e é
composto por três planos com duração total de 2’12’’. Descrevemos a seqüência plano a
plano, detalhando sua construção sonora em conjugação com a articulação das imagens.
5
Plano 1 Duração 3” - Plano fixo
Imagem Som
Apresentação e letreiro:
Um fundo no qual se distingue uma pedra ocre
repleta de escavações e impressões sulcadas onde
se lê: Júlio Bressane apresenta
Nenhum som
Plano 2 Duração 4”- Plano Fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
5
Legenda:
PC= Plano conjunto; PA= Plano americano; PP= Plano próximo ou primeiro plano; PPP= close up; CAM=
câmera; PDC= Profundidade de campo; Trav. Lat.= travelling lateral; Trav. Fr.= Travelling para frente;
Trav.Tr.= Travelling para trás; Trav. de Ac= travelling de acompanhamento; Trav. Circ= Travelling circular;
Pan-trav. = Panorâmica com travelling; Pan=Panorâmica; Mvt= Movimento; Plongée; Contra-plongée.
29
PC de uma claquete à esquerda e à frente de uma
rocha, ao fundo uma paisagem desértica, terra e
céu no mesmo quadro. (PDC)
Som off de um homem falando com sotaque
nordestino
Homem 1: Avisa aí, viu, Sílvio.
Voz de outro homem ao longe: Silêncio, por
favor, rodando.
Cria-se um espaço off: o espaço do filme sendo
filmado.
Plano 3. Duração 2’5”- Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PC. Pan-Trav.Lat. para a esquerda.
Paisagem árida, filmada de um objeto qualquer em
movimento, este objeto está margeando a paisagem
e continua em movimento para a esquerda e em
plongée, até parar.
PM.Plano Fixo a Pan-Trav. Lat para a direita.
Inverte-se o movimento para a direita da mesma
paisagem árida, filmada a partir do ponto de vista
do objeto em movimento, agora se deslocando para
a direita e para cima, em Plongée mais acentuado.
PP. Pan-trav. até parar. Em seguida, do lado
direito do quadro, um caule o reenquadra
insistentemente até o final desse plano seqüência.
PP.Trav. lat. lento até parar. Plano Fixo.
O objeto pára e a CAM quase pára .
Um homem de camisa vermelha se coloca na frente
da câmera.
PM. Pan-Trav. A CAM continua seu movimento
PAN-Trav. para cima e para a direita através da
vegetação secas, sempre à margem.
PC. Pan –Trav. No lado esquerdo do quadro,
distingue-se um homem com vestes religiosas no
meio da vegetação árida.
Som (em off) de várias pessoas falando,
conversando umas com as outras, não se distingue
o que vem antes ou depois:
Uma outra voz diz: Seqüência 28 off
Homem 1: Pode sentar?
Homem 2 (sotaque carioca): Pode.
Mulher 1 : Deixa eu sentar aqui?
Homem 2: Pode
Mulher 1: Deixa eu sentar aqui?
Homem 2: Senta aqui.
Mulher 1: Não. Deixa eu sentar aqui.
Sons (em off ) de pássaros cantando
Continuam os sons (em off) de várias pessoas
conversando. Parecem repetir as mesmas falas,
mas com uma defasagem em relação às anteriores
e com espacialidade diferente:
Homem 2 diz : Cê tá sentada no chão.
Mulher responde: Não
Homem 2: No lixo
Homem 3: No chão
Sons de pássaros
Outra voz: Qual o número que tá aí?
Homem 3: 28
Homem 2: Seqüência 28 off
Homem 3: Vamo
Homem 1: (sotaque nordestino): Falta claquete
Várias vozes ao longe, criando o espaço de
trabalho de uma produção cinematográfica.
Todos em off
Homem (sotaque carioca): Tem que bater e sair,
senão quebra este detalhe e tal...
Várias vozes se alternam, não mais respondendo
umas às outras, mas dando consistência para a
criação do espaço de produção do filme, do filme
sendo realizado, não como uma sucessão, mas
como instantes fragmentários de uma equipe
falando durante a produção do filme.
Vozes masculinas diversas:
- 5
- Silêncio, por favor.
- Som
- Seqüência 5
- Monge superior
30
PC. Pan-trav.A CAM continua seu movimento para
a direita e para cima como se voasse, e no meio da
paisagem vemos uma camionete azul parada e
algumas pessoas se movimentando em torno dela.
A CAM pára , e um corpo de homem se aproxima
da câmera ocluindo seu visor. Alguém de camisa
branca está na frente da câmera. A tela vai se
tornando escura.
Fade in. A tela se torna negra.
Em seguida, através de uma fusão vemos a
apresentação e letreiro novamente, repetindo o
primeiro plano do filme. Sobre o mesmo fundo, no
qual se distingue a pedra repleta de escavações e
impressões sulcadas, lê-se : São Jerônimo.
Fade in. A tela se torna negra novamente
- Seqüência 15. CDC
- OK
- Seqüência 1. Corte
- O sonho de Jerônimo
- Som. Silêncio, por favor.
- Silêncio. Som.
- Tá descansando aí na praia?
- Vamo lá
- Silêncio
- Atenção
- Som
- Vamo lá
- Som
- Rodando
- Câmera
- Atenção. Som
- Mulher 1:12.7. Primeira
- Câmera
- A carta. Atenção. Som
- Mulher 1:12.7. Segunda
- Câmera
- Levanta a mão um pouco. Tá muito no limite.
- Câmera
- E aí?
- Câmera
Som de tempestade de vento
Som de tempestade de vento continua
Som de tempestade de vento
Segue-se uma sucessão de planos fixos de pedras, de pedras enormes, de pedras-
casulos sempre em primeiro plano, ao som do insistente vento. Entre os planos, os cortes
secos, as naturezas mortas de partes que não se juntam, que se excedem na imagem de um
parto de uma cabra. O rebento cai no chão e com dificuldade se põe de pé. O som do vento
sempre à superfície como um personagem-testemunha de uma nova criação, de uma nova
paisagem, do nascimento de um novo mundo.
31
Transcreveremos a seqüência seguinte do filme São Jerônimo, plano a plano, com
destaque para a encenação do famoso sonho de São Jerônimo, conforme está creditado no
filme, ele foi traduzido por Francisco Achcar, com duração de 4’13”.
Plano 1 Duração 40’’ - Plano seqüência
Exterior, dia
Imagem Som
PP. Plano fixo Plongée
Solo com nervuras e sulcos (árido)
PP. Plano fixo Plongée
Mesmo plano anterior, mesmo solo com nervuras
profundas e sulcos (árido)
Pan-Trav. lentamente até encontrar o horizonte. A
CAM se fixa - PC
Dois terços do quadro é a terra seca, rachada,
sulcada, marcada, e vemos em um terço da tela o
horizonte, nuvens e muita luz.
Tempestade de vento
Plano 2 Duração 13’’ - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PC - Distingue-se uma paisagem desértica, muita
luz, à direita quatro grandes pedras brancas, com
partes de terras próximas e brancas, e outras
pedras distantes, compondo um quadro que chega
ao horizonte, ao céu e às nuvens, todos muito
claros. (PDC)
Tempestade de vento
Plano 3 Duração 11’’ - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PA - Vemos pedras enormes sobre rochas, pedras
marrons situadas em cima de uma rocha da mesma
cor tomam toda a tela. No horizonte nuvens,
menos luz que no plano anterior (Contra-plongée).
Tempestade de vento
Plano 4 Duração 14’’ - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PC - Luz mortiça - Vegetação predominante:
mandacaru e pequenas árvores retorcidas
(Plongée).
Tempestade de vento
Plano 5 Duração 5’’
32
Exterior, dia
Imagem Som
PM- Trav. lat. Paisagem seca , muita luz , árvores
sem folhas, só caules (Plongée). Tempestade de vento
Plano 6 Duração 5’’ - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PG -Paisagem seca, pequenas árvores e
mandacarus (Ao entardecer)
Tempestade de vento
Plano 7 Duração 3’’- Plano fixo
Exterior, dia (Ao anoitecer)
Imagem Som
PP - Vemos um cabra em pé, seu corpo preenche
a tela , o abdômen inchado está no centro do
quadro, não vemos as patas e nem a cabeça.
Tempestade de vento
Plano 8 Duração 2’’ – Plano fixo
Exterior, dia (Ao anoitecer)
Imagem Som
PPP - A cabeça da cabra está à esquerda do
quadro. CAM Lat. Esquerda
Tempestade de vento
Plano 9 Duração 6’’
Exterior, dia (Ao anoitecer)
Imagem Som
PC . Trav. de Ac.
A cabra se movimenta e a câmera a acompanha
em seu trajeto, a cabra começa a subir um morro.
Tempestade de vento
Plano 10 Duração 3’’ - Plano fixo
Exterior, dia
Som
PC - (Ao entardecer)
Vemos uma terra exígua de água, pés de
mandacarus, em um ângulo de CAM em Plongée
acentuado.
Tempestade de vento
Plano 11 Duração 2” - Plano fixo
Exterior , dia (Ao anoitecer)
Imagem Som
PM - Mandacarus e outras espécies de região árida
– (Plongée).
Tempestade de vento
Plano 12 Duração 5’’ - Plano fixo
Exterior, dia (Ao anoitecer)
Imagem Som
33
PA- A genitália da cabra se contrai e se distende
abrindo-se em um grande orifício e dele sai um
rebento.
Tempestade de vento
Plano 13 Duração 10” - Plano seqüência
Exterior, dia
Imagem Som
PM - Plano fixo. A cabra em pé expele o filhote
PA- Trav. para baixo acompanha a queda do ser
que acaba de nascer e do sangue que escorre
morro abaixo.
Tempestade de vento
Plano 14 Duração 2” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PP- Vemos o filhote deitado ao pé do morro Tempestade de vento
Plano 15 Duração 3’’
Exterior, dia (Anoitecendo)
Imagem Som
Pan-Trav. da direita para a esquerda. Vemos a tela
preenchida por um céu crepuscular.
Tempestade de vento
Plano 16 Duração 4” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PP - A cabra lambe seu filhote Tempestade de vento
Plano 17 Duração 9’’ - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PC– Vemos pedras enormes, marrons, assentadas
na terra desatando-se para nascer, pedras-casulos.
.
Tempestade de vento
Plano 18 Duração 5” - Plano fixo
Exterior, dia (Ao entardecer)
Som
PP - Uma grande pedra toma todo o quadro. Pedra
sulcada, parecendo larva prestes a se transfigurar
(entardecer).
Tempestade de vento
Voz ( em off )
O Homem 1 (sotaque nordestino), a mesma voz
que nos planos iniciais do filme pedia claquete,
relata em primeira pessoa um sonho, uma
iluminação: Como muitos anos, por causa do
reino dos céus, eu tivesse castrado a mim mesmo
de casa, pais, irmãs, parentes e, o que ainda mais
difícil, do hábito da mesa lauta,
Plano 19 Duração 13” – Plano fixo
Exterior, dia
34
Imagem Som
PP- Vemos um cajado segurando na ponta um
crânio, ora abaixando ora se levantando, em
contra-luz. Ao fundo o céu, nuvens e sol. No subir
e descer do cajado, o objeto encobre e descobre o
sol: luz e sombra, dia e noite (Contra-Plongée).
Tempestade de vento
Continua a voz (em off):
e me dirigisse a Jerusalém, não pude privar-me da
biblioteca que em Roma eu reunira com enorme
esforço e trabalho. Assim, eu jejuava infeliz antes
de ler Cícero, depois de noites inteiras de vigília,
depois das lágrimas que a recordação dos meus
antigos pecados arrancava do fundo de minhas
entranhas. É Plauto que me vinha às mãos. Se
voltado
Plano 20 Duração 9”
Exterior, dia
Imagem Som
PC- Trav. de Ac. Vemos a sombra de um homem
com vestes largas sobre o chão árido e marrom
movimentando-se da esquerda para a direita.
(Plongée)
Tempestade de vento
Continua a voz ( em off):
a mim, começava a ler um profeta, a linguagem
inculta me horrorizava. E como meus olhos não
viam a luz, eu julgava que a culpa fosse do sol,
não dos olhos.
Plano 21 Duração 20”
Exterior, noite
Imagem Som
PM- Trav. Lat. Da esquerda para a direita
acompanhando o corpo de uma serpente (Plongée)
Tempestade de vento
Continua a voz (off):
Enquanto desta maneira a serpente antiga
zombava de mim, em meados da quaresma uma
febre se introduziu em minhas medulas, invadiu
meu corpo exaurido e sem qualquer descanso,
embora seja incrível dizê-lo, de tal forma que
devorou os tristes membros
Plano 22 Duração 14” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PC- Uma grande pedra , em forma de teta de um
animal (uma ponta e um arco) nos 2/3 do quadro
encobre o horizonte; à sua sombra um homem está
encostado e se contorcendo (Contra-plongée).
Tempestade de vento
Continua a voz (off):
que eu mal pendia de meus ossos. Entretanto
preparavam-se minhas exéquias e o calor do
espírito vital. Estando o corpo já todo frio,
palpitava num canto ainda tépido meu pobre peito.
Plano 23 Duração 2” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PG- Uma sombra disforme toma quase toda a tela
, se distinguindo ao longe a figura de um homem
com um cajado. O quadro se enche de luz: branco
Tempestade de vento
Continua a voz (off):
De súbito, arrebatado, sou conduzido ao tribunal
35
sobre o branco. do juiz, onde havia tanta luz
Plano 24 Duração 2” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
Só vê a luz (branco sobre branco) Tempestade de vento
Continua a voz off:
e tanto era o brilho dos circunstantes,
Plano 25 Duração 14”- Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PPP- Um peito de homem vem de encontro à tela
repetidas vezes, lembrando um pêndulo.
Tempestade de vento
Continua a voz off:
que prostrado por terra eu não ousava levantar os
olhos. Interrogado sobre minha condição,
respondi que era cristão; mas aquele que estava
sentado disse: mentes,
Plano 26 Duração 10” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PPP -Vemos um antebraço e uma mão segurando
uma pedra, e no mesmo compasso do plano
anterior inicia um movimento também pendular
contra a câmera (falso raccord).
Tempestade de vento
Ruído de pedra batendo conta um objeto em
movimento rítmico periódico como um pêndulo
Continua a voz (em off):
tu és ciceroniano, não cristão. Onde está o teu
tesouro também está o teu coração. Calei-me
imediatamente em meio às chicotadas, pois ele
ordenara o meu suplício. Mais me torturava o
fogo de minha consciência enquanto eu
considerava aquele versículo: “Mas no inferno,
quem te louvará?” Comecei então a gritar e a me
lamentar, dizendo: Tende piedade de mim, Senhor,
Plano 27 Duração 29”- Plano seqüência
Exterior, dia
Imagem Som
PPP - CAM fixa: Vemos o peito de um homem
sangrando. Em seguida, CAM - PA - Trav. de Ac:
Um homem moribundo e com o peito machucado
é erguido do chão e amparado por dois homens.
(Plongée); CAM Fixa; PC Ressurge a paisagem
árida. Os três homens caminham devagar sob o sol
escaldante, até saírem do quadro. (PDC).
Tempestade de vento
Ruído de pedra batendo conta um objeto em
movimento rítmico periódico como num pêndulo
Continua a voz (em off):
tende piedade de mim. Essa voz ressoava entre os
açoites. Enfim, ajoelhados diante do presidente, os
presentes
suplicavam-lhe que fosse tolerante com a minha
juventude, que concedesse ao meu pecado alguma
penitência. Que eu fosse torturado se alguma vez
eu voltasse a ler dos livros dos gentios. E em uma
situação de tal premência eu faria ainda maiores
36
promessas, e comecei a jurar e a rogar em seu
nome: Senhor, se alguma vez eu possuir obras
profanas, se eu ler, eu te terei renegado. Com
esses juramentos sou libertado e retorno para
junto dos homens. E com surpresa geral abro os
olhos de tal forma banhados que até os incrédulos
eram levados a acreditar em minha dor. Na
verdade, não se tratou de sono ou de sonhos vãos,
que tantas vezes nos enganam. É testemunha o
tribunal ante o qual eu jazia, é testemunha o
julgamento que tanto me apavorou. Tomara eu
nunca tenha que enfrentar tal questão. E o fato de
que eu tinha as espáduas machucadas, senti as
feridas depois de acordado e li os escritos divinos
mais empenhadamente do que antes lera as obras
mortais.
Diante de um Tribunal Universal, Jerônimo, amante das belas-letras e cevado nos
textos clássicos, deve escolher entre converter-se ao cristianismo, tornar-se leitor dedicado e
exclusivo das Sagradas Escrituras, ou continuar a ser um seguidor da filosofia de Cícero.
“Ciceroniano” ou cristão? A dúvida e a fé duelam em seu sonho.
A câmera desenha, através dos falsos-raccords
6
de imagem e som trânsitos entre
corpos (escorpião e mandacuru), coisas (espinho e cacto), vozes (monólogo e diálogo),
geografias (sertão e deserto), ruídos (som do vento e som de pássaros) e sentimentos (amor e
paixão).
Os falsos-raccords, no filme São Jerônimo, por serem passagens perceptíveis de um
plano a outro, de uma seqüência a outra, serão identificados na análise das seqüências no
Capítulo III, intitulado ... Notas de tempo em Bressane. As mudanças bruscas de luz, ou de
espaço, ou de movimentos de câmera – no espaço fílmico onde o todo age como se impedisse
as partes de se fecharem, os falsos-raccords se mostram como fendas, como rupturas.
Indagaremos o que se passou através dos cortes e dos intervalos.
6
“O falso-raccord é por si mesmo uma dimensão do aberto, que escapa aos conjuntos e às partes. Ele realiza
outra potência do extracampo, este alhures ou esta zona vazia este branco sobre branco impossível de filmar [...]
Longe de romper com o todo, os falsos-raccords são o ato do todo, a cunha que crava nos conjuntos e suas
37
O filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, foi visto e lido muitas vezes, em nosso
objetivo de realizar um trabalho de análise fílmica rigorosa, entre segmentos e planos,
movimentos de câmera e enquadramentos, na tentativa de tramar uma armadilha para buscar
o tempo.
2. Os dois pontos (:)
Por que “Julio Bressane apresenta: São Jerônimo”? Por que os dois pontos? Os dois
pontos são nossa questão neste capítulo, eles se preenchem em parte com as seqüências que
acabamos de descrever, e a questão continua a se agitar em torno do peso da documentação a
respeito do santo Jerônimo.
Júlio Bressane estudou Jerônimo por onze anos e teve acesso a um vasto elenco de
informações, documentos, quadros, teses sobre esse homem casto, isolado no deserto a
escrever em texto latino, no final do terceiro para o começo do quarto culo de nossa era,
falando e ditando as suas traduções blicas, “os comentários e sobretudo as maravilhosas e
inimitáveis cartas às amigas e amigos”. Entre esses documentos destacamos a tese de
doutoramento de Dom Paulo Evaristo Arns, de 1953, A técnica do livro segundo São
Jerônimo, uma vez que é de Júlio Bressane o texto da contracapa da tese publicada em livro
em 1993. Procedemos a uma leitura e estudo da obra em questão, em que Dom Paulo, no
referido livro, assim expressa sua motivação para este estudo sobre São Jerônimo:
Queria saber como esse homem ditava as suas traduções bíblicas todas, os
comentários e sobretudo as maravilhosas e inimitáveis cartas às amigas e aos
amigos. Já me parecia ver, diante dele, aqueles escribas, que têm uma estátua
guardada no Museu do Louvre. Esses escribas mantinham uma tabuinha de
38
copistas que as transcreviam em pairo e em pergaminho. Enquanto eles
ainda se ocupavam da transcrição, já se ouvia, ao lado de Jerônimo, alguém
reclamando que apressassem o trabalho, porque o navio estava partindo ou o
cavaleiro se mostrava nervoso e impaciente (ARNS, 1993, p.6).
A tese de Dom Paulo é brilhante; às vezes temos mesmo a impressão de ver Jerônimo,
não o gênio irascível e indomável do escritor que se dizia “eu sou um dálmata, portanto
tenho o direito de ser violento”, mas também os seus sentimentos mais ternos e generosos
para com as “filhas espirituais e suas amigas”
7
, que o incitavam a não descansar no estudo e
na propagação da Palavra de Deus, até então conhecida no mundo ocidental através de
traduções literais.
São Jerônimo, segundo Dom Paulo Evaristo Arns, é o melhor escritor latino-cristão de
todos os tempos, opinião compartilhada por Júlio Bressane que, na contracapa do livro-tese,
escreve:
[É] o mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente [...] encarna o
momento onde se impunha o saque ao melhor do mundo que se cerrava.
Transformar, adaptar, contrabandear algumas algemas do passado (greco-
latino) para o novo mundo (cristão) inevitável e urgente. Criou a Bíblia
latina Vulgata [...].
A tarefa de Dom Paulo para redigir a tese foi para buscar as minúcias, e chegou a isso
através da leitura de dez mil colunas dos Tomos da Patrologia Latina, Tomos 22 a 29 (a obra
fora publicada no fim do século XIX por Migne e andava meio apagada nas bibliotecas), das
cartas, dos pequenos bilhetes e das críticas feitas a Jerônimo. Também visitou os maiores
especialistas em Jerônimo, na Alemanha e na França, assim como buscou a orientação de
Fernando Cavallera, reconhecidamente o maior especialista em Jerônimo do início do século
XX (ARNS, 1993, p.5-6).
A tese/livro nos mostra um esquema cronológico de observação de São Jerônimo, do
momento em que este reunia o material (papiro, pergaminho, tabuleta e estilete), o trabalho
das reproduções sucessivas de seus escritos por inúmeros leitores ou copistas, até o momento
7
Citação de Dom Paulo a respeito das mulheres castas e estudiosas do texto sagrado com Jerônimo.
39
em que estes vão repousar no fundo dos arquivos. Nessa tentativa de se aproximar de um dos
maiores escritores cristãos do final do século IV, o autor reconstitui em parte a história do
livro nos séculos IV e V.
Dom Paulo Evaristo Arns escreveu sua tese doutoral sobre Jerônimo reunindo textos
por ele produzidos, procurando descobrir como é que ele conseguira levar seus escritos para
dentro da história da literatura cristã e do mundo ocidental, e ao mesmo tempo desvelando o
que passa despercebido aos que lêem os volumosos escritos do “santo doutor”, em uma
pesquisa que durou 12 anos. A obra compõe-se de cinco capítulos. No capítulo 1 O
material apresenta o papiro, o pergaminho, a tabuleta e o estilete; o capítulo 2 – A redação
se resumirá no ditado, na transcrição e no acabamento do exemplar-modelo; no capítulo 3,
intitulado A edição, somos apresentados a definições sobre a publicação, formas do livro e
suas subdivisões; no capítulo A difusão evocará o esforço dos amigos e dos inimigos
para garantir uma sorte mais ou menos feliz à obra literária de São Jerônimo, e o capítulo 5,
denominado O livro e os arquivos, mostra os lugares onde serão conservados os manuscritos
já bem modificados pelas reproduções sucessivas.
As palavras de Dom Paulo Evaristo Arns “queria saber quando é que ele usava o
papiro, folhas prensadas no Egito em forma de papel primitivo e quando ele se servia do
pergaminho, couro curtido de boi para transformar em material de escrita” demonstram o
despojamento, a clareza e a simplicidade com que o autor desenvolve suas reflexões,
parecendo o livro/tese exprimir-se por si mesmo como a seda se refere ao bicho que a produz.
Segundo o autor, a técnica singular de redação do santo revela Jerônimo: um homem doente
que “ditava” incansavelmente aos escribas quase sempre às pressas, parecendo carecer de
tempo, com urgência, e ao mesmo tempo encontrando condições físicas para rever as cópias
cheias de erros.
40
Dom Paulo nos apresenta um Jerônimo preso à tradição romana, seu gosto pela
retórica, a busca da correção, seu temperamento impetuoso e sua independência, e sua
determinação em divulgar o exemplar a primeira cópia-modelo. Vemos São Jerônimo ora
como um filólogo assistindo impassível ao trabalho do copista, preocupado com a difusão,
com as diferenças singulares entre escrever e ditar, em que o ato de escrever se associa como
primeiro-ato à vontade de difundir. Ora como um intelectual apegado ao zelo excessivo na
transcrição, ora como um literato ou como um crítico atento aos arquivos, à conservação e
propagação das cópias, à produção de sentidos e à difusão política de suas obras, bem como
esboça o que denominamos hoje de crítica textual.
Júlio Bressane escreve na contra-capa deste livro editado em 1993:
JRNM na expressão de JRNM é umbrae futurorum”: sombras dos que hão
de ser. JRNM: o mais importante e desconhecido intelectual do Ocidente. O
pano de fundo da vida de JRNM é a queda do Império Romano. É o fim de
um mundo. JRNM encarna o momento onde se impunha o saque ao melhor
do mundo que se cerrava. Transformar, adaptar, contrabandear algumas
gemas do passado (greco-latino) para o novo mundo (cristão) inevitável e
emergente. Criou a Bíblia latina, Vulgata, num século (o de nossa era)
onde as diversas versões existentes da Bíblia não passavam de um roto
tecido de fábulas orientais. O homem estudioso em seu ambiente recluso, no
deserto, em martírio criando beleza, buscando e conhecendo, mastigando,
como Santo, sementes amargas que produzem os frutos doces... eis JRNM.
Este admirável livro do cardeal Paulo Evaristo Arns é a primeira publicação
de um estudo sobre JRNM em língua portuguesa.É muito.
Insistindo assim na importância da documentação e ainda tentando desenhar e
apresentar o lugar dos dois pontos no título do capítulo, encontramos um texto em que
Bressane desenvolve outras idéias a partir de São Jerônimo, intitulado Vida luz deserto, em
uma reflexão sobre literatura e cinema através do filme Vidas secas, de Nelson Pereira dos
Santos. O autor não faz observações históricas ou ideológicas, mas sobretudo estéticas,
propondo um novo centro de observação, evocando dois temas: a tradução e o deserto, e um
signo por onde esses dois temas poderiam se cruzar, que é o signo de São Jerônimo.
São Jerônimo é o padre do deserto que criou a monumental tradução latina
da Bíblia, a Vulgata, centro de onde saíram todas as traduções da Bíblia em
línguas românicas. São Jerônimo foi um dos escritores que moldou a
linguagem e o imaginário ocidental, pela forte influência de sua tradução,
41
passou grande parte de sua vida nos desertos de Cálcis e depois Belém, entre
o Oriente e o Ocidente, o primeiro de um dos grandes humanistas a sentir a
dificuldade, a impossibilidade de se traduzir (BRESSANE, 1998, p.98).
Bressane reproduz literalmente as palavras de São Jerônimo sobre a sua maneira de
traduzir:
Traduzir palavra a palavra me parece deplorável. É preciso respeitar o
caráter próprio de cada língua e visar na língua traduzida, um sentido, uma
certa elegância e harmonia, a euphonia, preconizada pelos grandes críticos
de Alexandria. Repudiar altamente a cacozélia, o zelo errado da literalidade
que muitas vezes desemboca em cacofonias absurdas e linguagem ruim...
(BRESSANE, 1998, p.98).
Segundo Bressane, São Jerônimo cria e inicia a literatura dos padres do deserto, que
se estende até hoje (biografias dos santos anacoretas: Paulo, Hilário e Malco). O deserto
principia a ser objeto da literatura, do pensamento, da filosofia, como um lugar do radical, do
extremo, privilegiado centro de percepção dos rumores e ecos da inquietação espiritual.
Bressane (1998) reflete sobre o deserto e a tradução sob o signo Jerônimo, inicialmente
destacando o deserto como a geografia de um espaço tradutor silencioso, gestador inclemente
de pensamentos nômades, lugar de um colapso do tempo, espaço pleno de luz, intraduzível
em sua beleza visível: mundo material de luz, luz como movimento e como energia, lugar de
metamorfoses de luz em vozes, em palavras, em gestos em música e em homem.
Deserto e tradução se tocam no signo Jerônimo signo de luz na apreensão da luz
em seus diversos estados e técnicas, e em seus reflexos e refrações nos diversos meios pelos
quais se movimentam, levando-nos a concluir que no filme Vidas secas a luz é a matéria que
o precede e que o compõe. Vidas secas – um filme de cenas de luz.
Identificamos no filme São Jerônimo, de Júlio Bressane, uma referência explícita ao
filme Vidas secas, de Nelson Pereira do Santos, na cena em que uma das religiosas,
estudiosas da palavra de Deus com o mestre São Jerônimo, repete por quatro vezes: inferno,
inverno, inverno, inferno. As palavras inferno, inferno, inferno, inferno são proferidas
também por um dos filhos do casal de retirantes nordestinos, numa das cenas inesquecíveis do
42
filme Vidas secas, em que a câmera se movimenta como se tentasse atingir o sol, ou ir além
do sol, como se buscasse alcançar as chamas do inferno.
A partir das conexões expostas, nos defrontamos com uma trama de tempos, Júlio
Bressane apresenta: São Jerônimo. Respiremos. Um vento atravessa a elaboração, a feitura
desta dissertação, e uma imagem predomina: o deserto.
O filme não se apresenta como sendo um filme não de causas, mas de efeitos, efeitos
de um trabalho continuado, o trabalho de um tradutor do hebraico para o grego, para o
Latim e para o Latim Vulgar em que os efeitos dos “outros”, através dos sons e das
palavras, se tornam verdadeiras aventuras para o espírito. Um efeito de muitos “outros” que
escreveram em diferentes línguas, percebendo em cada objeto (sons e palavras) ou em cada
idéia organizações de mundos que passavam à margem, ou ainda como passagem de outras
idéias de uns aos “outros”.
Com respeito a esta discussão sobre o lugar dos “outros”, Gilles Deleuze, no livro
Lógica do sentido, no apêndice quarto, intitulado “Michel Tournier e o mundo sem outrem”,
afirma:
O primeiro efeito de outrem é, em torno de cada objeto que percebo ou de
cada idéia que penso, a organização de um mundo marginal, de um arco, de
um fundo que outros objetos, outras idéias podem sair segundo leis de
transição que regulam a passagem de uns aos outros. Olho um objeto e me
desvio; deixo-o voltar ao fundo, ao mesmo tempo em que se destaca do
fundo um novo objeto da minha atenção. Se este novo objeto não me fere, se
não vem me chocar com a violência de um projétil (como quando batemos
em alguma coisa que vimos), é porque o primeiro objeto dispunha de toda
uma margem em que eu sentia a preexistência dos seguintes, de todo um
campo de virtualidades e de potencialidades que eu sabia capazes de se
atualizarem. Ora, um tal saber ou sentimento de existência marginal não é
possível a não ser por intermédio de outrem (DELEUZE, 2003, p-2.53846(e)8(o)-0.3000.7 1845(m)16.6752(.)-0.0346(a2(.)-0.034.300048(u)-0.300048(.91712( )0.300048(3)9.785pé48(,0300048(ua)3585(s)-53846(e)444.00e)444.00e)444.00e)444.00
43
As diversas línguas são como o que cresce pelas bordas, pelas contigüidades; o
trabalho do tradutor relativiza o não-sabido, o não-percebido, pois introduz o signo do não-
percebido naquele que ele percebe, e assim impulsiona-o a apreender o que ele não percebe e
que é perceptível para “outro”.
Nesse sentido, é sempre pelo “outro” que passa o desejo de São Jerônimo. Pode ser
este o fundamento do desejo no filme. O “outro” em São Jerônimo é um campo perceptivo
organizado: o dos “outros” e o dele. A estrutura do mundo possível expresso no filme existe
perfeitamente, mas não existe atualmente, fora do que o exprime.
A linguagem é a realidade do possível enquanto tal, desse modo o tradutor é um tipo
de explicador dos possíveis e de seu próprio processo de realização no atual. O mundo
possível de São Jerônimo, no filme de Júlio Bressane, situa-o no século IV, no início do
cristianismo, ao lado dos padres do deserto e como consultor do Papa Damaso. O filme fixa a
imagem de um deserto – sumário e superficial – em torno do qual se organizam esses
elementos, e nesse imenso lugar pleno de luz está São Jerônimo com seus livros, um leão e o
esqueleto de um crânio. Por mais central que seja esta imagem no filme, ela é marcada pelo
signo do provisório, do efêmero, condenada a ser desviada pelos sons do vento, trazendo
canções de outros lugares, palavras e sotaques também de outros lugares.
O nosso caminho se bifurca novamente e a palavra técnica nos detém. Ela se encontra
no título e no objetivo da tese de Dom Paulo Evaristo Arns, como também no objetivo de
nossa dissertação, que é problematizar a técnica composicional no cinema, pesquisando a
técnica de criação de São Jerônimo, de Júlio Bressane, através de uma reflexão sobre o
tempo e o que surge na temporalidade da imagem cinematográfica, e as possíveis técnicas
de ver, sentir e ouvir o tempo como um lugar que mostra o próprio tempo.
Dom Paulo esclarece que “palavra técnica, aos olhos dos modernos, toma um sentido
cada vez mais complexo. Em geral, é empregada significando o conjunto dos procedimentos
44
de uma arte, de um ofício” (ARNS, 1993, p.10). Júlio Bressane realiza um filme utilizando
na técnica de sua composição movimentos aberrantes de recepção da luz e do som, ordenando
e encadeando movimentos, libertando as imagens da cadeia do presente, à procura de outras
“falas”, outras imagens. Não mais como ação e reação, mas forçando passagens entre a
tradição dos clichês cinematográficos: tradição dos making off, dos espaços iluminados, das
imagens objetivas e subjetivas, da câmera na mão, dos enquadramentos, dos movimentos de
câmera e dos planos fixos. São Jerônimo, parece projetar uma mise-en-scène do tempo no
deserto.
Muitas terras parecem ter passado pelo filme sendo feito. A luminosidade nos leva a
lugares onde nada está seguro de estar lá, somos conduzidos para fissuras, instantes,
civilizações, literaturas, pinturas e cinema, elementos ultrapassando a direção que criam, tudo
preenchendo a superfície. Pensamentos se desenvolvem e se recobrem, obstáculos do
pensamento, mas também a morada e a potência do pensamento.
Repousamos novamente no circuito o filme sendo feito e o peso da documentação;
nesse pequeno circuito, uma imagem bifacial ora um filme que se reflete num filme sendo
feito, ora ele se toma por objeto de um processo a se constituir. Uma imagem de um espelho
que se recria. São Jerônimo é um filme que nos apresenta um modo de composição a mostrar
o próprio tempo.
3. Cristais de tempo
Gilles Deleuze, no capítulo “Os cristais de tempo”, do livro A imagem-tempo, se
reporta a Bergson (1999) para desenvolver suas teses sobre o tempo. Inicialmente reflete que
o atual é sempre um presente, e que o presente muda ou passa, ele se torna passado, quando
não é, ou seja, quando um novo presente o substitui. E ainda, para que o presente passe é
45
condição que ele já seja uma imagem presente e passada, pois se assim não fosse passada
ao mesmo tempo que presente, não passaria. O passado coexiste com o presente que foi.
Segundo Deleuze (1990, p,102), o que constitui uma imagem-cristal é a operação mais
fundamental do tempo; como o passado não se constitui depois do presente que ele foi, e sim
ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado,
que por natureza diferem um do outro, ou que desdobre o presente em duas direções
heterogêneas, uma se lançando em direção do futuro e a outra caindo no passado. O tempo se
cinde, à medida que se afirma ou se desenrola: ele se cinde em dois jatos assimétricos, um
fazendo passar todo o presente e o outro conservando todo o passado. O tempo consiste nessa
cisão. Concluindo, é esta cisão que se vê no cristal. A imagem-cristal, portanto, não é o
tempo, mas podemos ver o tempo no cristal. O que vemos é a fundação do tempo, o tempo
não-cronológico dentro do cristal.
As grandes teses de Bergson sobre o tempo se expressam numa afirmação que parece
um lugar-comum, de que nós somos interiores ao tempo e não o inverso. No entanto, esse é
um grande paradoxo: o tempo não é o interior em nós, é justamente o contrário, é ele a
interioridade na qual estamos, nos movemos, vivemos e desviamos. Portanto, as teses do
tempo para Bergson assim se apresentam: a) o passado coexiste com o presente que ele foi; b)
o passado se conserva em si, como passado em geral (não-cronológico); c) o tempo se
desdobra a cada instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva.
O filme São Jerônimo nos mostra como somos habitantes do tempo, como nos
movemos nele, em formas de tempo que nos levam, nos prendem e nos desviam.
O filme, por estar sendo filmado, desempenha o papel de uma imagem virtual, ao
mesmo tempo que é uma imagem atual. O que vai acontecer no filme, acontece e já
aconteceu, uma simultaneidade, onde os presentes nunca cessam sem estarem passando,
46
tornando o tempo inexplicável. Esses presentes implicados coexistem e se cristalizam num
circuito, conferindo à narração do filme um novo valor, que apaga as ações sucessivas.
O tempo no filme São Jerônimo parece possuir uma arquitetura envolvendo Bressane
e a equipe técnica no ato de fazer o filme, como formas de presentes nas imagens visuais e
sonoras e na montagem. Simultaneamente, as próprias imagens sonoras e visuais e a
montagem saltam do passado em que foram realizadas para outro presente que é o próprio
filme, e um passado envolvido no filme feito. Estamos no domínio do tempo, um tempo
enrolado.
Os atores se apresentam também fundando tempos, eles se apresentam como duplos,
como atores e como personagens. Everaldo Pontes ao interpretar Jerônimo não se afasta do
ator Everaldo e nem do seu sotaque nordestino. Todas as irmãs religiosas se apresentam lendo
pausadamente textos numa imobilidade de ão que chega a nos incomodar. Ambos
provocando fissuras, buracos na encenação deixando emergir à superfície do filme diferentes
imagens de tempo.
Os inúmeros quadros vivos, ópticos e sonoros apresentados no filme são imagens
especulares da rica iconografia a respeito de São Jerônimo. Realizamos um levantamento dos
quadros pintados entre 1400 e 1800, cujo tema é São Jerônimo e relacionamos 89 obras
(Anexo B). Abaixo, o St. Jerome de Caravaggio, de 1607 Oil on canvas 117x157, que
compõe uma belíssima cena do filme, com duração de aproximadamente um minuto.
47
A encenação do sonho de São Jerônimo, descrito plano a plano no início deste
capítulo, é narrado em primeira pessoa, nos apresenta uma imagem-tempo. Esta imagem-
tempo é construída tecnicamente através da montagem de dois planos: as batidas de um peito
de homem em direção à câmera e o de uma pedra no mesmo movimento e no mesmo ritmo
também em direção à câmera.
O que vemos não é o tempo, não é uma montagem de planos como continuidade de
tempo ou de espaço. O que vemos é a criação de um tempo: ora o corpo na câmera, ora a
pedra na câmera. Os efeitos de um passado (corpo batendo na câmera) e de um futuro (corpo
recebendo as batidas da pedra), e a câmera e o objeto de registro dessa imagem. A imagem de
um corpo caído com as espáduas machucadas uma imagem-tempo. O que vimos não foi o
tempo da ação de alguém ser castigado, mas sim um tempo não-cronológico. A câmera se
apresenta como corpo de homem na passagem de um plano a outro. Um falso-raccord, uma
passagem perceptível de um plano a outro.
Os inúmeros planos fixos de paisagens áridas, os enquadramentos insistentes e a
profundidade de campo das pedras na paisagem quase desértica, se assemelham a uma
contemplação. Nos espaços vazios, sob a ação implacável da luz, as imagens parecem nos
mostrar o tempo, o tempo que não muda, através de uma imagem para além das pedras, para
além do deserto, para além do sertão, e para além do homem.
A coexistência em uma mesma cena da imagem atual do personagem Jerônimo e a
virtual do leão e do esqueleto de um crânio, acompanham Jerônimo no deserto e em Roma em
várias cenas do filme. Aparecem como imagens especulares escalonadas em profundidade,
ora ópticas, ora sonoras, imagens de tempo, traduções entre o peso da documentação a
respeito do santo e a escritura cênica do filme mise-en-scène a projetar no filme o que os
textos projetaram no tempo.
48
Em alguns diálogos, as palavras proferidas pelos personagens parecem serem lidas,
elas são expressas pelos atores como se eles estivessem lendo os escritos do Santo Doutor, e
assim compondo uma indiscernibilidade entre a encenação, a obra e a vida.
A vida ensaia sair do palco e o som efetua este movimento, ele ensaia derramar a vida
em outros lugares. Nos arrastam o som do vento, os cantos dos pássaros e as músicas, ou
poderíamos dizer que quem nos arrasta é o tempo, são imagens sonoras puras.
São Jerônimo é o presente que passa, e nesse sentido a seqüência de abertura do filme
é exemplar. Tecnicamente os movimentos do travelling apreendendo a equipe de produção do
filme, mergulhando nela, poderiam ter sido registrados por um objeto alhures em
movimento, algo do fora, da superfície; e ao final da seqüência quando uma pessoa da equipe
se coloca diante da câmera, a tela escurece estamos diante de uma imagem de um passado, um
passado que se conserva, o passado da câmera desligada e dá-se início ao filme. Assim, o
passado que se conserva assume as virtudes do começo do filme e do recomeço.
Realizamos uma primeira apresentação do tempo no filme São Jerônimo, o tempo
fluindo na imagem do filme São Jerônimo, e mostrando aquilo que permanece. Começamos a
apreender o tempo em sua forma pura, iniciamos nosso desenho à procura da forma imutável
do que muda?
Os dois pontos nos colocaram frente a frente com o mundo e com o cinema. O peso da
documentação a respeito de São Jerônimo e o filme sendo feito, um instante que se desdobra
em uma pergunta: o que do peso da documentação sobre Jerônimo se deixa envolver no filme
sendo feito? É o acontecimento
8
, estranho local de um ainda-aqui-e-já-passado e ainda-por-
vir-e-já-presente. É o tempo, o tempo de Aion. Transcrevemos o conceito de Aion, formulado
Deleuze, em Lógica do sentido:
8
O conceito de acontecimento é exposto por Gilles Deleuze no livro Lógica do sentido (2003, p.177- 178).
49
Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo.
Em lugar de um presente que reabsorve o passado e o futuro, um futuro e um
passado que dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao infinito
em passado e futuro, em ambos sentidos ao mesmo tempo. Ou melhor, é o
instante sem espessura e sem extensão que subdivide cada presente em
passado e em futuro, em lugar de presentes vastos e espessos que
compreendem, uns em relação aos outros, o futuro e o passado (DELEUZE,
2003, p.193).
Desenvolveremos no Capítulo II, um estudo do tempo em Deleuze, por considerarmos
que São Jerônimo, de Bressane, é um cinema da imagem-tempo. A obra de arte apreende um
tempo que ainda não está desdobrado em suas séries e dimensões, e que remete a um estado
complicado do tempo, afirma Peter Pál Pelbart em O tempo não-reconciliado, o estado mais
complicado do tempo, que ainda não está desdobrado e desenvolvido em suas séries e
dimensões:
A obra de arte “constitui e reconstitui sempre o começo do mundo” [...] “A
essência artista nos revela um tempo original, que ultrapassa suas séries e
suas dimensões; um tempo ‘complicado’ em sua própria essência, idêntico à
eternidade” [...] A arte revela a eternidade, não no sentido de uma ausência
de tempo, mas como um tempo original absoluto, complicado, tempo de
essências, que não m, diferentemente de Platão, a estabilidade e a
identidade garantidas. É esse “tempo redescoberto” através dos signos da
arte, “tempo primordial, que se opõe ao tempo desdobrado e desenvolvido,
isto é, ao tempo sucessivo que passa, ao tempo em geral que se perde”
(PELBART,1998, p.10-11).
Os dois pontos nos colocaram, de um lado, diante da pedra e de outro, diante da
câmera; de um lado diante do silêncio e de outro do rumor do vento, de um lado diante da
50
passado e do futuro. E completa Borges: o pensamento mais fugaz obedece a um desenho
invisível e pode coroar ou inaugurar uma forma secreta.
Os dois pontos nos colocam diante de uma desarticulação do tempo, ou de uma forma
secreta do tempo. Um tempo complicado numa dramatização cinematográfica de múltiplas
faces: faces de espelhos de múltiplas faces, faces que contaminam de falsidade os fatos, os
acontecimentos, as imagens sonoras e visuais, mas não a memória deles.
Os dois pontos, nas gramáticas, têm por função, em geral, serem definidos pela
interseção de dois parâmetros, de dois valores: um de pausa e um semântico, marcando a
relação indissolúvel entre dois sentidos, cada um parcialmente completo em si mesmo. Não
usamos os dois pontos pensando identidades entre os dois lados, J
ÚLIO
B
RESSANE APRESENTA
e S
ÃO
J
ERÔNIMO
, nem conexão lógica entre eles. Colocamos os dois pontos como abertura,
como um deslocamento além da imagem de Júlio Bressane e da imagem de São Jerônimo,
como um pensamento fugaz, passagem para continuar a procurar as técnicas de ver, sentir e
ouvir o tempo como um lugar a mostrar o próprio tempo.
51
CAPÍTULO II
NOTAS DE TEMPO EM DELEUZE ...
Então, [Alice] ficou sentada ali, com os olhos fechados, e quase acreditando
estar mesmo no País das Maravilhas. Mas sabia que bastava abrir os olhos
para que tudo voltasse à realidade enfadonha: a grama se agitaria somente
pelo vento; as águas da poça se ondulariam apenas pelo remexer dos bambus
soprados pela brisa; o tinido das xícaras se transformaria no soar dos sinos
das ovelhas; e os gritos estridentes da Rainha na voz do pastorzinho. O
espirro do bebê, o guincho do Grifo, todos os outros sons estranhos se
transformariam (ela bem sabia) no barulho que vinha da fazenda vizinha...
Enquanto os mugidos do gado ao longe tomariam o lugar dos soluços tristes
da Tartaruga Falsa. Finalmente, ficou imaginando como seria aquela mesma
irmãzinha no futuro, quando fosse adulta, e como conservaria, em sua idade
mais madura, o coração simples e amoroso de sua infância. E como reuniria
em sua volta tantas outras crianças, e faria seus coelhinhos curiosos
brilharem com muitas histórias estranha, talvez até com a mesma história do
País das Maravilhas um sonho de um tempo tão distante! E como reagiria
diante das tristezas mais contidas dessas crianças, e como se sentiria feliz
com as alegrias mais singelas de seus coraçõezinhos, lembrando sua própria
infância e aqueles felizes dias de verão.
Lewis Carroll, As aventuras de Alice no País das Maravilhas.
Os dois livros de Gilles Deleuze A imagem-movimento e A imagem-tempo se
apresentam como práticas de conceitos que o cinema suscita e que estão relacionados com
outros conceitos que correspondem a outras práticas. Deleuze escreve esses livros
respectivamente em 1983 e 1990 e ele afirma no último parágrafo de A imagem-tempo:
Os conceitos do cinema não são dados no cinema. E, no entanto, são
conceitos do cinema, não teorias sobre o cinema. Tanto assim que sempre há
uma hora, meio-dia ou meia-noite, em que não se deve mais perguntar “o
que é o cinema? mas “o que é a filosofia?”. O próprio cinema é uma nova
prática das imagens e dos signos, cuja teoria a filosofia deve fazer como
prática conceitual. Pois nenhuma determinação técnica, nem aplicada
(psicanálise, lingüística), nem reflexiva, basta para constituir os próprios
conceitos do cinema
(DELEUZE, 1990, p.332).
Neste capítulo pesquisaremos a imagem-tempo como um regime original das imagens
e dos signos dos cinemas da modernidade, através das teses de Gilles Deleuze.
52
1. Cinema 1 – A imagem-movimento
Cinema 1: A imagem-movimento, um livro em que se é obrigado a saltar a
fenda que desloca o pensamento, a reencadear fragmentos de discurso, restos
de imagens, pedaços de sentido e de não-sentido! É como uma superfície,
um plano em que, de folha em folha, erguem-se imagens do pensamento, um
cartoon filosófico (MARTIN, 2000, p.99).
Os livros de Deleuze sobre cinema não são livros de filosofia sobre o cinema e nem
reflexões sobre o cinema, mas sobre os conceitos que o cinema suscita e que não são dados no
cinema. Os livros de Deleuze propõem uma alternativa à leitura estrutural ou fenomenológica
do cinema. As imagens cinematográficas, para ele, não constituem uma língua ou uma
linguagem e sim uma massa plástica, uma matéria sinalética com traços de modelos sensoriais
(visuais e sonoros), cinésicos, intensivos, afetivos, rítmicos, e até verbais (orais e escritos)
(DELEUZE, 1990, p.43-44).
Partiremos do filósofo francês Henri Bergson sir Hesrqununfrue He88(L)10.6459(E)015(0048(e)-1.é01872(u)6558(n)-10..4(r3383(H)-8.43027(e88(L)585(.)-0.147792( )-10.15383(H)52 -27.6 Td[(()2.847792(p)-0.295585(.)-0.147792(4)-0.295585(3)-10.3015(-)2.80561(4)-0.294363(H)52 -27.6 Td)2.80561(4)-0.294363015(0048.383(H)-8.4302)-76(u)-06239(a2585( )-1040026(U)-868(i)-2.16558(r)2.80561(e)2r147792(u)-0.295585(m)-2.45995(a)3.74( )-0.147792(m)-.295.43027(e)3.(s)-1.5H)-8)-.295.43027(e)3.(s).( )-150.236(c525(q)-0.29792.147792(m)-t2”042875( )-230.284(c)3.7436(m)-71.74(o)-0.2955)-10.299(r)2592.147792(m)3.74( 2(m)-t2”(m)-t2”.284(c)3.7436(m)-7”.284(c)3.743636(6.2884(c)To)-0.295585(r)2.80439(a6(m)-2.4599586(m)-t2”.284(c)3.7435235(v)-10.307”.284(c)3.743z)2.80439(i)7436(m)-7312( )-400.7436(m)-383(H)-8.43027(e88(L)50.3000847585( )-400.383-400.400400.400400.400)-10.3015(c)3.74(ê)3.7477920.293142(s)3.7594(N)4.c)3.74(ê)3.7477920.293142)3.74( )-10.1525(c)3.74(o)-0.295585(m)-2.45995( )-10.1525(t)-2.16436(r)20.1525(c)3.74(o)-758(n)-0.294974(e)3.7833628f585( )-1040026(U)-868(i)-2.16558(r67439(i)7436(m)-733e846(,)-0.148D3égu5585(m)-2.45995( )-10.1525(t)-2.16436(e)-1.91977(n)10.576(s57312( )-40.433)-4.585(.765)10.576(s5439(i)7436(mu5585(m)-2.45c)3.7435235(v)-10 25( )-24383(H)-)-733e846(,)-b5.231..1500075u.4599586(me5000751525(c)81(02.195(c)81(02.l(me5000715.231mu558586u5585865000712.45995( )-)3.74(u5585869Td[(r)2.805p210.576(r)-4-)-7332)0.640026(,)-0.1477920048(e)-1.92( )-400.383(H)-8.4302bu.459958630439(e)3195585(3)-10.35235(v)-10 25( )-2)-01525(c)9805,)-0.14779200487958(g)10.57fl9(e)u.459958383(H(v)-10 25(0.519027(e88(L)10.645)9805,)-0.10.35235(vé.39.293146cu5585865000-2.45995(a)3.74( )-230.282(l)-2.16436(í)d[(r)2.8051661(4)-0.294363(H)52 -27.6 T0h9t9.295.43027(e.45c)3.7435235(v-241.45995(525(t)-2.16)-0.295585(m616(s)-2.538463843846746cu55858609500071430585( )-10-4(ê)3.7477929805,)-0.1477920048m)-2.45u5585863.74(o)-7.1537(p)-0.295585(l)-459958945u5585863.74(0048m)T(p)-0.295585(l)-44-)-7332E58630439(e)10.576(e)-1.91977(a)-9(e)10.576(e)-1.9199.142.29576(e)-1A10.294974(1A10.294974(1A10.25c)3.7435235(v-m5( )-10m)-2.4541.22997(o)-0.295585(f)2.8056.25c)3.7435235(v.4541.22997m)-2.4541.229( )-10.1525(n)-10.301.4302bu.4599586g1)p94974(1A10.2599586g1)p94974(0.1525(n)-1n)-1n)-1.5(n)-10.301.4dema ceee5995e5( )-10.91977–1(50005(e)3.95(o)-0.2950.14869610-15(n)-1n.57,)-0.14octosneee59954–3.95(o)-0.16436( )-30.1643(o)-0.295585(u)-0.295585T2Q.o746c74(e)3.78336g235(v.4541.22997m)-2.45995fã7833628f585( )-1040026(U1995585(b)-96c73b5(u)-0.295585T2)1o941 0 0 1 120.48 602.í5(o)-0.3.743c(o)-0.293142(s)-14(n)-4.33111.21602.í5(o)-0.3.7431.188 0 Td[(e)3.74: (u
53
Mas como pensar imagem neste mundo em movimento? Como pensar no conceito
imagem-movimento? Imagem-movimento pode ser definida como matéria fluente ou como
luz. Entre uma imagem e um movimento, entre imagens e movimentos surge uma identidade
absoluta, o conceito de imagem-movimento, não uma imagem à qual se acresce o movimento.
Bergson se colocava na contracorrente da psicologia clássica, e as imagens não estavam na
consciência, e o movimento já não estava no espaço.
Entre todas as imagens que agem e reagem sobre todas as suas faces surgem os
intervalos, os hiatos, imagens que têm reações retardadas e, ao contrário de prolongar-se em
excitação, selecionam ou organizam a própria excitação em um movimento novo. São as
imagens-movimento. São a própria matéria, matéria não-lingüisticamente formada, matéria
sinalética. São como um centro de indeterminação, obstáculo à propagação indefinida da luz,
écran
9
negro em que esta se reflete e se revela. Um ser vivo, ou uma câmera são, portanto,
subtrativos, no sentido que retêm aquilo que chega a eles.
Deleuze e Bergson nos dizem sobre a luz: a luz está nas coisas e não em quem as vê. A
luz é imanente à matéria; ao propagar-se indefinidamente ela será revelada quando refletir ou
rebater sobre outras imagens que lhes servirão de écran negro (nossa consciência como
opacidade).
Preensão retardada, indeterminação, imprevisibilidade. A subjetividade, por um lado,
como seleção e onde uma espécie de alucinação devolve o sujeito à vibração pura da matéria,
e por outro lado, a materialidade de uma onda luminosa se ultrapassando no limite da câmera
perder o centro. Filmar a interação universal de imagens que variam umas sobre as outras, a
câmera pode registrar uma paisagem sem presença humana, a câmera como um aparelho
9
O termo écran tem, em francês, uma série de usos, em virtude de seu sentido de anteparo que veda a passagem
da luz que ele é usado por Bergson e por Deleuze. Bergson mostra que a imagem é luminosa ou visível em si
mesma, ela precisa apenas de um écran negro que a impeça de se mover em todos os sentido
54
automático que varia continuamente seus movimentos e ângulos, libertando o olho de sua
condição, a visada da câmera não mais centrada na visão frontal perspectiva.
10
A câmera cinematográfica é um dispositivo transdutório
11
, quer seja óptica
12
ou
digital
13
, ela capta uma quantidade insana de fótons e registra uma informação já tradutória.
Uma breve invocação sobre a técnica da fotografia cinematográfica se faz necessária.
Recorremos aos conhecimentos
14
do professor e diretor de fotografia Waldemar Lima, que
assina a direção de fotografia de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.
Waldemar Lima afirma que na fotografia óptica a sensibilidade à luz é uma qualidade
da película. No vídeo, diferentemente da câmera cinematográfica, a imagem é produzida
quando um sensor eletrônico, o CCD
15
, é colocado no plano focal. São os CCDs e os
circuitos associados na câmera que se encarregam de transformar os diferentes níveis de luz e
cor em sinais elétricos e criar imagem. Com o advento da digitalização, vimos desaparecer
grande parte do ruído analógico produzido pelos CCDs, na captura da luz.
10
Brakhage, Michel Snow, Belson e Jacobs, expoentes do cinema experimental americano, reconheceram a
influência de Vertov, filmaram signos de uma gênese, de uma percepção gasosa, o livre percurso de cada
molécula. Filmaram respectivamente os verdes vistos por um bebê em um campo; a câmera perdendo o centro
em A região central e as formas e movimentos coloridos remontando às forças moleculares ou atômicas.
11
Segundo o dicionário Houaiss, em Física diz-se de ou sistema ou dispositivo capaz de transformar uma forma
de energia em outra.
12
A imagem se forma diretamente na película (acetato).
13
No sistema digital, sinal de vídeo é registrado sob a forma de números, podendo serem registrados
diretamente, ou derivados de um sinal analógico. A qualidade de um sinal de vídeo digital é determinada pela
precisão e freqüência de uma leitura, periodicamente medida e numericamente gravada. Quanto mais preciso o
“sistema de leitura” (maior os números dos espaços decimais) e quanto mais freqüente a ocorrência da “leitura”
(maior o índice de leitura) mais exata será a representação da imagem pelo sinal de vídeo digital. Os sinais dos
vídeo digitais podem ser gravados, transmitidos e manipulados repetidamente sem a introdução de ruídos,
distorções ou adulteração do sinal.
14
Apostila “Workshop – A fotografia na criação de filmes”.
15
São os CCDs que fazem a transformação da imagem captada pelos raios de luz em impulsos elétricos que
serão gravados na fita. Em vídeo, as imagens estão em movimento, e portanto não basta registrar estas
intensidades de corrente em determinado instante e sim a todo instante. Para tanto um circuito eletrônico “varre”
periodicamente o CCD, percorrendo-o e “anotandoem cada ponto a intensidade da corrente naquele momento.
À medida que essa leitura é feita, uma seqüência de valores de intensidade de corrente é produzida pelo circuito
leitor do CCD. Para registrar esta seqüência, uma fita magnética passa em velocidade constante sobre um
dispositivo de gravação (cabeça de vídeo) e um processo eletrônico transforma essas variações de intensidade de
corrente, em variações equivalentes de campo magnético, magnetizando a fita. Desta forma, a imagem projetada
no CCD é registrada na fita.
55
Ainda sobre fotografia e imagem cinematográfica, obrigatoriamente temos de abordar
o papel dos filtros
16
. Waldemar Lima afirma que parece haver tantos filtros para quantas
aplicações se desejar. E todos os filtros atuam restringindo a luz e outras radiações que
chegam à superfície terrestre. Os filtros alteram a luz que impressiona a película e o CCD,
alterando a imagem cinematográfica. Os filtros podem ainda ser usados para corrigir
distorções de cores, variações de temperatura da luz, como também para conseguir uma
fotografia colorida com brancos mais puros (sem infiltração de azul) e em que os tons da
epiderme sejam mais naturais. Existem também os filtros polarizadores, utilizados para
reduzir o reflexo ou para escurecer o céu; exemplificando, um filtro Ultra Violeta elimina a
névoa atmosférica. Ou ainda, os filtros azuis ou misturas de filtros criam cenas noturnas.
Voltemos ao movimento e ao cinema como mundo. Deleuze cria sua classificação das
imagens a partir de um movimento de variação constante, que tem durações variáveis e
também denominando imagem aquilo que aparece o fenômeno. As imagens como
acontecimentos. Nada pára de se mover no plano das imagens-movimento. Entre movimento
e imagem adentra o tempo.
Cada imagem-movimento exprime o todo que muda em função dos objetos entre os
quais o movimento se estabelece. A imagem-movimento se comporta como uma matriz ou
uma célula de tempo.
Entre percepção e imagem um menos (), retemos da imagem alguma ação, que
selecionamos em função das reações retardadas. Subtraímos da imagem o que não nos
interessa; Deleuze conclui que uma das características da subjetividade é ser subtrativa. Eis o
primeiro tipo de imagem-movimento, este centro de indeterminação que elimina da imagem
faces ou partes, é o que percebemos, é o que aparece, e é denominada imagem-percepção.
16
Os filtros são geralmente placas de cristal, pintados com tinta colorida transparente e servem para absorver
parte das radiações que incidem sobre ele. Exemplificando, um filtro vermelho absorve as outras cores e deixa
passar somente a luz vermelha.
56
O centro de indeterminação é assim denominado porque a reação não se encadeia
imediatamente à ação sofrida, o intervalo modifica o contínuo movimento das faces a se
tocarem em outras faces, portanto existem ações que são percebidas pelas partes com
imobilidade relativa de outras reações executadas pelas partes da imagem que tem graus de
liberdade. Nesta operação percebemos a ação das coisas sobre nós e a nossa ação possível
sobre as coisas, reporta-se o movimento a “atos” (verbos), passa-se da percepção à ação, da
imagem-percepção à imagem-ação.
Mas o que se passa entre a percepção e a ação, no intervalo? É uma afecção. É um “eu
sinto qualquer coisa”, um sentir interior. O intervalo não é ação, nem percepção, é sentimento.
Afeto. Um afeto é como um espaço entre uma ação sofrida e uma reação executada. Quando
tenho um afeto, não sei mais o que percebo ou o que faço. Eis a imagem-afecção, a que ocupa
o intervalo.
Em nosso trajeto de relacionarmos Deleuze e Bergson, relacionamos também a
afecção com o movimento em geral, não apenas interrompido por intervalos ou nos
movimentos de translação, mas apresentando o movimento tornando-se expressão, qualidade,
tendência, ritmo de um elemento imóvel.
A imagem-movimento tem duas faces, segundo Deleuze, uma em relação aos objetos e
outra em relação a um todo. Ou ainda, a primeira face é o enquadramento, e a montagem a
outra; a primeira voltada para os objetos e a segunda para o todo.
A montagem é o que constitui o todo, e nos uma imagem do tempo. Ela é o ato
principal do cinema, segundo Deleuze. E o tempo é necessariamente representado
indiretamente, porque resulta da montagem, que liga uma imagem-movimento a outra.
Montagem não é justaposição, não se faz por sucessão de presentes e nem adição; cada
imagem-movimento exprime o todo que muda, em função dos objetos entre os quais o
57
movimento se realiza, portanto o plano é uma montagem particular. E a imagem-
movimento uma matriz, um bloco de espaço tempo.
O tempo já está implicado no plano, porque depende do movimento, o tempo é
interior ao plano, portanto, o tempo depende da montagem e do plano. O tempo depende do
movimento dos objetos no plano. No cinema o tempo nos é dado como uma percepção.
Um movimento normal de alguém atravessar uma porta, conseguido através de dois
planos, nos dá uma representação indireta do tempo, o subordina a um movimento do mundo,
a um espaço conectado reconhecido do mundo. O corte pressupõe uma sucessão, intervalo
entre movimento recebido e movimento executado.
Todavia, é através deste intervalo que Deleuze propõe sua classificação das imagens-
movimento: imagem-percepção (movimento recebido), imagem-ação (movimento executado).
O próprio intervalo se torna centro, e o esquema sensório-motor restaura a proporção,
preenche o corte. A percepção adentra ao intervalo, restaura o movimento. A salvação do
movimento nos apresenta o tempo. Uma imagem do tempo.
Chegamos a um tipo de imagem do tempo, à imagem indireta do tempo.
1.1 Signos do tempo
No cinema dizemos há pessoas que se movem, mas é mais do que pessoas e coisas que
se movem, é imagem-movimento, portanto o que é imagem-movimento que não está na
imagem em movimento? Deleuze responde que é a câmera e os movimentos de câmera.
Em aula sobre “Os aspectos do tempo, Bergson e o movimento, Kant e o sublime
dinâmico”, ministrada no dia 12/04/1983, no Cours Vincennnes - St. Denis
17
, Deleuze busca
capturar na imagem-movimento figuras do tempo.
17
(Web Deleuze. DELEUZE/IMAGE MOUVEMENT IMAGE TEMPS Cours Vincennes - St Denis: Leibniz
(Foucault-Blanchot-Cine)-1982 - Télécharger ce cours en: pdf (disponible) rtf (disponible)
58
A câmera equivale a todo movimento possível, o movimento de câmera se relaciona
com o movimento ou o veículo do movimento. A imagem cinematográfica faz uma imagem-
movimento, ou uma modulação de luz e extrai movimento de algo que é móvel e também de
seu veículo. A imagem cinematográfica é indissoluvelmente imagem-luz, imagem-movimento
porque extrai movimento de seus móveis e de seus veículos e é imagem-luz porque modula a
luz.
Segundo Deleuze, Bergson declara que para compreender o movimento em sua
concretude, haveremos de chegar por um “ato do espírito” que ele chama de intuição, que o
separa e o extrai de seu móvel e de seu veículo. Imagem-movimento é o movimento em si.
No contexto cinematográfico, Deleuze pensa o conceito bergsoniano de imagem-movimento
afirmando que na imagem cinematográfica o movimento não é separado de um móvel ou
veículo: o movimento de um homem, de um leão, ou de um pássaro, de um trem (isto é,
personagens e veículos). Paradoxalmente, imagem-movimento é o movimento separado do
que move ou de qualquer veículo que move; e no cinema, o movimento que não está naquilo
que move é a câmera e seus movimentos. A câmera é o ecran que capta os movimentos,
independentemente do móvel estar se movendo ou não, a mobilidade da câmera captura o
movimento puro, a câmera se faz transformadora de movimento.
O cinema extrai também o movimento puro por outro meio a montagem dos planos
fixos. Imaginemos uma sucessão de planos: um homem está rezando no deserto, recebe uma
carta e um convite para ir a Roma; num outro plano uma construção arquitetônica
exuberante, e o homem conversa com outro homem. A montagem extrai movimento puro da
viagem deste homem a Roma.
Como poderemos apreender o tempo nas composições das imagens-movimento no
cinema ? Apreendemos o tempo como imagens indiretas, como uma figura indireta do tempo.
O tempo como imagem indireta tem um duplo aspecto: como intervalo (parte do movimento)
59
60
profundidade, abismo de tempo que tem também por outro signo o zero, ou melhor, em sua
distância de zero. Toda intensidade é apreendida no instante e o instante é este aspecto do
tempo, portanto os aspectos do tempo intensivo, indireto ao movimento são: a ordem do
tempo e o instante.
Temos portanto quatro signos, quatro potências do tempo, a saber: o intervalo e o
imenso, para a cinecronia, e o instante e ordem do tempo, para a cromocronia.
2. Cinema 2 - A imagem-tempo
O cinema serve a Deleuze, sem dúvida alguma, para revelar determinadas
condutas de tempo, dando delas imagens diversas, evolutivas, circulares,
espiraladas, declinantes, salvadoras, declinantes, salvadoras, desembestadas,
até as cindidas, duplicadas, ilocalizadas, multivetoriais, vibratórias,
moleculares (PELBART, 1998. p.27).
O livro de cinema A imagem-tempo, e mais especificamente o primeiro capítulo “Para
além da imagem-movimento” nos permite apreender das noções utilizadas de forma
recorrente por Deleuze tempo em estado puro, o tempo em pessoa e imagem direta do
tempo. Escolhemos este primeiro capítulo por ele se constituir numa transição entre as
imagens-movimento do cinema clássico e as imagens-tempo do cinema moderno, transição
que se observa no corpo do próprio livro e que vem ao encontro de um dos objetivos de nosso
trabalho, que é pesquisar como as imagens de São Jerônimo, de Júlio Bressane, comportam a
força do tempo.
Relacionamos as noções e os exemplos empregados por Deleuze através das citações
dos filmes, dos autores e dos personagens, um conjunto de imagens agindo e reagindo umas
sobre as outras em todas as suas fases, na tentativa de pesquisar que elemento novo surge no
conjunto das imagens-movimento que colocava em crise a ação? Estaria esse novo elemento
relacionado com novos signos que o levassem para além do movimento? Este elemento
61
envolve o tempo em estado puro? E que relações se estabelecem entre o tempo em estado
puro e a imagem direta do tempo?
Deleuze inicia o primeiro capítulo deste livro traçando um diagrama do neo-realismo
italiano, afirmando que o neo-realismo inventou um novo tipo de imagem.
Zavattini
18
define o neo-realismo como uma arte do encontro encontros
fragmentários, efêmeros, interrompidos, fracassados. Deleuze descreve o primeiro encontro
na seqüência de Umberto D:
A jovem empregada entrando na cozinha de manhã, fazendo uma série de
gestos maquinais e limpando um pouco, expulsando as formigas com um
jato d’água, pegando o moedor de café, fechando a porta com a ponta do
esticado. E, quando seus olhos fitam sua barriga de grávida, é como se
nascesse toda a miséria do mundo. Eis que, numa situação comum ou
cotidiana, no curso de uma série de gestos insignificantes, mas que por isso
obedecem, muito, a esquemas sensório-motores simples, o que subitamente
surgiu foi uma situação ótica pura, para qual a empregada não tem resposta
ou reação. Os olhos, a barriga: um encontro [...] (DELEUZE, 1990, p.10).
A respeito dos encontros nos filmes de Rossellini, podemos observar personagens em
trânsito, em viagens, uma criança visita um país estrangeiro e morre pelo que vê, como no
filme Alemanha ano zero; em Stromboli, uma estrangeira se as voltas com uma
revelação; em Europa 51 uma burguesa que, a partir da morte do filho, atravessa grandes
conjuntos residenciais de favelas a fábricas; em Viagem a Roma, uma turista ao olhar para
lugares antes não vistos descobre algo insuportável. O que ela nós também vemos, mas ao
mesmo tempo não conseguimos encontrar nas situações que ela vê, o horrível, o terrível. Um
estranhamento nos invade: o que ela viu que nós não conseguimos ver?
Deleuze então define que o neo-realismo é caracterizado pela ascensão de situações
puramente óticas e sonoras distintas das situações sensório-motoras da imagem-ação no
antigo realismo. E completa: “talvez isso seja tão importante quanto a conquista de um
espaço puramente ótico na pintura, ocorrida com o impressionismo” (DELEUZE, 1990).
18
Zavattini é considerado um dos principais cineastas do neo-realismo italiano.
62
E observa que em inúmeros filmes clássicos os personagens também se defrontam
com situações óticas e sonoras, com “descrições”, mas que no caso do neo-realismo elas não
reagiam às situações, havia uma impotência, um certo tipo de amordaçamento.
Deleuze se desvia do neo-realismo reportando-se a Alfred Hitchcock, indicando-o
como o inaugurador da reversão do ponto de vista, incluindo o espectador na cena em
contraposição ao neo-realismo onde o personagem se torna uma espécie de espectador. Esse
espectador está entregue a uma visão, parece perseguido por ela, não mais engajado em agir, e
cita como exemplo. Luchino Visconti, no filme Obsessão, em que a personagem vestida de
preto é possuída por uma sensualidade alucinatória, uma visionária, uma sonâmbula ao invés
de sedutora.
O autor recapitula os caracteres pelos quais define a crise da imagem-ação:
forma/perambulação, a difusão dos clichês, os acontecimentos mal acoplados a quem vê, o
afrouxamento dos vínculos sensório-motores, mas adianta que esses caracteres ainda não
definem a nova imagem: a imagem direta do tempo. Acompanhamos Deleuze no seu percurso
de encontrar a nova imagem, quando ele afirma que ela começa a aparecer em Obsessão, de
Visconti,
[...] onde os objetos e os meios conquistam uma realidade material autônoma
que os faz valerem por si mesmos [...] em Obsessão o herói chegando e
tomando posse visual do albergue, ou em Rocco e seus irmãos, a chegada da
família que, toda olhos e ouvidos, tenta assimilar a imensa estação e a cidade
desconhecida (DELEUZE, 1990, p.13).
Complementa Deleuze, a situação não mais se prolonga diretamente em ação,
não é mais sensório-motora, como no realismo, mas antes sonora e ótica,
investida pelos sentidos, antes de a ação se formar, utilizar e afrontar seus
elementos. Tudo permanece real nesse neo-realismo (quer haja cenário ou
exteriores), porém a realidade do meio e a da ação, não é mais um
prolongamento motor que se estabelece, é antes uma relação onírica, por
intermédio dos órgãos dos sentidos, libertos (DELEUZE, 1990, p. 13).
A diferença principal entre situações óticas e sonoras e uma situação puramente ótica
e sonora se estabelece a partir do espaço: um espaço qualquer, espaço desconectado,
63
esvaziado, perturbado, explicitando a crise da imagem-ação. A imagem não mais é induzida
por uma ação, como também não se prolonga em ação.
Fellini e Antonioni, respectivamente, em diferentes imagens subjetivas (lembranças
de infância, sonhos ou fantasmas visuais e auditivos) e objetivas (constatação, evidências),
transformam as personagens em espectadoras dos papéis que elas mesmas representam, não
agindo sem se ver agir, ou então transformando ações em deslocamentos de figuras no espaço
(Aventura, de Antonioni).
Esta imobilidade está presente nos filmes neo-realistas, através dos tempos mortos e
dos espaços vazios, como os efeitos de acontecimentos sendo constatados, tendendo a perder
importância a distinção entre objetivo e subjetivo à medida que não se sabe se a situação é
real ou imaginária, física ou mental, é como se eles se refletissem um no outro.
A descrição realista pressupõe independência de seu objeto (portanto, distinção entre
real e imaginário), diferentemente da descrição neo-realista, que apaga ou rarefaz a realidade
e com isso faz surgir uma outra realidade que o imaginário ou o mental cria pelos sons e
imagens.
19
Em Fellini, as imagens subjetivas entram num grau de objetividade através do próprio
espetáculo, dos que o fazem e de outros personagens, trazendo à superfície quase como um
“aplainamento” das perspectivas, um exemplo é o filme Oito e meio. Inversamente,
Antonioni constrói uma cadeia de imagens objetivas penetrando uma cadeia de estranhas
subjetividades, como em Crimes da alma, O grito, A aventura, Identificação de uma mulher,
O eclipse, Passageiro profissão repórter, substituindo o drama tradicional pelo drama de um
olhar imaginário de personagens. Independentemente dos pólos subjetivo e objetivo, real ou
imaginário, físico ou mental, as situações sonoras e óticas puras dão lugar a comunicações
entre eles, tendendo à indiscernibilidade.
19
Deleuze (1985, p.16) se refere a Robbe-Grillet e a seu texto “Temps et description”, in Pour un nouveau
roman. Paris, Ed. Minuit.
64
O segundo movimento cinematográfico destacado por Deleuze, no referido capítulo
inicial de A imagem-tempo, é a nouvelle vague francesa, em que aproxima a nouvelle vague
do neo-realismo. Aproximação defendida pelas características expostas anteriormente: o
afrouxamento dos vínculos sensório-motores (personagens em perambulação) e a ascensão de
situações óticas e sonoras (cinema vidente).
Nesse sentido, Godard é exemplar, diz Deleuze. De Acossado a Pierrot le fou, de
filmes-baladas ao afrouxamento sensório-motor até a quase alucinação em Made in USA,
onde uma testemunha fornece sucessivas constatações sem conclusão nem traços lógicos;
depois Duas ou três coisas que sei dela, em que reflete sobre o conteúdo da imagem, mas
também sobre sua forma e funções, suas falsificações, até Salve-se quem puder (a vida), onde
assistimos a decomposição de um fantasma sexual em seus objetivos separados, visuais e
depois sonoros; em seguida Passion, ascensão de imagens pictóricas e musicais como quadros
vivos e a inibição do sensório-motor (gagueira da operária e tosse do patrão), até O desprezo,
em que assistimos ao fracasso sensório-motor do drama de um casal e ascensão literal de
subida aos céus da representação do drama de Ulisses. E Deleuze conclui: “através de todos
esses filmes, assistimos a evolução criadora: a de um Godard visionário” (1990, p.19)..
O terceiro encontro de Deleuze é com o cineasta Ozu, o primeiro a realizar uma obra
no contexto japonês com situações óticas e sonoras puras. A citação seguir, de Donald Richie,
a respeito do processo de criação de Ozu, é esclarecedora no que tange aos tempos mortos
desse cineasta:
No momento de atacar a escrita do roteiro, confiante em seu repertório de
temas, ele raramente se perguntava qual seria a história. Perguntava-se,
antes, com que pessoas o seu filme ia se povoar [...] Um nome era atribuído
a cada personagem, como também uma panóplia de características gerais
apropriadas a sua situação família, pai, filha, tia, mas poucos traços
discerníveis. Esta personagem crescia, ou melhor, o diálogo que lhe dava
vida crescia [...] fora de qualquer referência a intriga ou a história [...]
Embora as cenas de abertura sejam sempre cenas dialogadas, o diálogo não
gira aparentemente em torno de nenhum assunto preciso [...] A personagem
era assim construída modelada, quase exclusivamente através de conversas
65
que tinha. E sobre o princípio “para cada plano, uma réplica” (RICHIE apud
DELEUZE, 1990, p.24).
O objeto da obra de Ozu é a banalidade do cotidiano, apreendida como a vida
rotineira de famílias japonesas. Encontramos em seus filmes as formas de um cinema de
perambulação, como no neo-realismo e na nouvelle vague: viagem de trem, corrida de táxi,
excursões, voltas de bicicleta ou a pé, férias, idas e retornos com movimentos de câmera raros
(travellings lentos, câmera sempre baixa, planos fixos e frontais constantes, cortes ao invés
das fusões), montagem-cut. A montagem-cut que é uma característica que dominao cinema
moderno como uma passagem ou uma pontuação puramente ótica entre as imagens, operando
diretamente, rarefazendo os efeitos de síntese entre os planos. O som é também afetado pela
montagem-cut culminando no procedimento “cada plano, uma réplica”. Deleuze conclui :
[...] esses procedimentos associados à ausência de intriga fazem aparecer
uma imagem puramente visual do que é uma personagem, e da imagem
puramente sonora do que ela diz, uma natureza e uma conversa
absolutamente banais constituindo o essencial do roteiro (DELEUZE, 1990,
p.24).
Segundo Deleuze, os tempos mortos produzem e recolhem o efeito do plano ou da
réplica, em seu prolongamento através dos silêncios e dos vazios bastante longos, mas nada
de extraordinário ou relevante, nem situações-limite, nem situações banais. Tudo é banal,
é ordinário, nem os célebres contrários: vida e morte se distinguem em seus filmes como
tempos fortes, não há ações decisivas.
Deleuze afirma que os filmes de Ozu, do pós-guerra, continuam confirmando e
reforçando sua máxima de que tudo é cotidiano, e cita o que a personagem do filme A rotina
tem seu encanto (Sanma no aji) indaga, uma intrigante pergunta que tira tudo do lugar
deixando tudo imóvel novamente: “e se tivesse ocorrido o inverso, se o sakê, o samisen e as
perucas de gueixa tivessem de repente se introduzido na banalidade cotidiana dos
americanos...?” (DELEUZE, 1990, p.25). Bela pergunta, tira tudo do lugar deixando tudo
novamente imóvel.
66
Estas são evidências de que em seu cinema as ligações sensório-motoras são fracas e
substituem as imagens-ação por imagens óticas e sonoras puras, opsignos
20
e sonsignos. Sobre
os espaços de Ozu, Deleuze dedica um importante olhar: desconexão, vacuidade, constantes
falsos raccords
21
de olhar, de direção, de posição de objetos.
Um caso de movimento de câmera um bom exemplo de desconexão: em
Também fomos felizes (Bakushu), a heroína avança na ponta dos pés para
surpreender alguém num restaurante, a câmera recuando para mantê-la no
centro do quadro; depois a câmera avança num corredor, mas este corredor
não é mais o do restaurante, é o da casa da heroína, de volta (DELEUZE,
1990, p.26).
Uma outra característica que adquire em Ozu particular importância são os espaços
vazios sem personagens e movimentos: os interiores sem seus ocupantes, os exteriores
desérticos e as paisagens da natureza. Eles se tornam contemplações puras, imagem do
absoluto, identificação do mental e do físico, do real e do imaginário, do sujeito e do objeto.
Deleuze reporta-se a Cézanne, afirmando que as paisagens vazias ou abertas não têm
o mesmo princípio de composição que as naturezas mortas. Uma natureza morta não se
confunde com uma paisagem, um espaço vazio se caracteriza pela ausência de conteúdo
possível. Entretanto, natureza morta se define pela presença e composição de objetos que se
envolvem, que se complicam, como o longo plano de um vaso, no final de Pai e filha; os
objetos do plano não se envolvem apenas no vazio, mas também podem deixar outros
personagens aparecerem como a natureza morta com um vaso e frutas de As mulheres de
Tóquio (Tokyo no onna), ou como com as frutas e o campo de golfe de O que a senhora
esqueceu? (Shukujo wa nani wo wasureta ka). A distinção entre espaço vazio e natureza
20
Opsigno e sonsigno: Imagem ótica e sonora pura que rompe os vínculos sensório-motores, extravasa as
relações e não se deixa mais exprimir em termos de movimento, mas se abre diretamente sobre o tempo. Estes
signos tornam sensíveis o tempo e o pensamento, tornam-os visíveis e sonoros (DELEUZE, 1985, 1990).
21
O falso-raccord é por si mesmo uma dimensão do aberto, que escapa aos conjuntos e às suas partes. Ele
realiza outra potência do extracampo, este alhures ou esta zona vazia, este “branco sobre branco impossível de
filmar...” Longe de romper o todo, os falsos-raccords são o ato do todo, a cunha que crava nos conjuntos e suas
partes, assim como os verdadeiros raccords são a tendência inversa das partes e dos conjuntos de se reunirem em
67
morta está na diferenciação entre o pleno e o vazio, mesmo sendo em situações puramente
óticas e sonoras.
O vaso de Pai e filha se intercala entre o leve sorriso da moça e as lágrimas
que surgem. devir, mudança, passagem. Mas a forma do que não muda
do que não passa. É o tempo, o tempo em pessoa, um pouco de tempo em
estado puro: uma imagem-tempo direta, que ao que muda a forma
imutável na qual se produz a mudança (DELEUZE, 1990, p.27).
Deleuze cita outros exemplos de imagem de tempo. Nos filmes Sono yo no tsuma
(Mulher de uma noite) e Kigogkro (Coração caprichoso), a noite que se muda em dia, ou o
inverso, remete a uma natureza morta aonde a luz vai enfraquecendo ou aumentando, são
exemplos de natureza morta, exemplos do tempo, porque tudo o que muda está no tempo, mas
o próprio tempo não muda, não poderia mudar senão num outro tempo, ao infinito. No
momento em que as coisas mais se aproximam, mais se distinguem. As naturezas mortas com
duração de 5 a 10 segundos de qualquer objeto são precisamente a representação daquilo que
permanece, através de estados que mudam. Deleuze cita o exemplo da bicicleta num plano
longo, mostrando a forma imutável do que se move, permanecendo imóvel apoiada em um
muro, como no filme Ukigusa nomogari (História de ervas flutuantes) e completa:
A bicicleta, o vaso, as naturezas mortas são imagens puras e diretas do
tempo. Cada uma é o tempo, cada vez, sob estas ou aquelas condições do que
muda no tempo. O tempo é o pleno, quer dizer a forma inalterável
preenchida pela mudança. “O tempo é a reserva visual dos acontecimentos
em sua justeza” (DELEUZE, 1990, p.28).
Continuando o percurso do aparecimento da imagem direta do tempo, Deleuze
desenvolve um estudo sobre clichês cinematográficos. Inicialmente afirma que, a exemplo dos
filmes de Ozu, cujo objeto é a banalidade cotidiana, podemos começar a pensar que a
imagem-ação no cinema tende a desaparecer em função de situações óticas e sonoras puras,
em ligações não mais sensório-motoras, mas em situações que libertam os sentidos em
relação direta com o tempo. E que a função dos opsignos é tornar sensíveis o tempo e o
pensamento, torná-los visíveis e sonoros.
68
O neo-realismo e a nouvelle vague colocaram em cena situações óticas e sonoras que
não mais se prolongavam em ação. No filme Stromboli, de Rossellini, a beleza é tão grande
como uma dor muito forte, em Tempo de guerra, de Godard, a beleza novamente é tão
fulgurante que a revolucionária recitando fórmulas, clichês tem seu rosto coberto por um
lenço, os carrascos tampam seu rosto e ela murmura (“irmãos, irmãos, irmãos...”). algo
muito forte tomando conta da imagem.
22
Deleuze coloca uma questão: não seria o próprio intolerável inseparável de uma
revelação ou de uma iluminação? Esta pergunta se conecta com o sonho de São Jerônimo,
com todo o peso da documentação a respeito do santo e com as imagens do sonho de São
Jerônimo no filme homônimo de Júlio Bressane, para em seguida se desviar de São
Jerônimo, através do filme sendo realizado.
Federico Fellini em seus filmes, diz Deleuze, simpatiza com a decadência apenas sob a
condição de prolongá-la, de distendê-la, até o insustentável, através de técnicas como o
movimento de câmera (travelling) como meio de deslocar
23
, de inventar outros movimentos,
outras impressões visuais. Conecta-se, assim, com Ozu na apresentação do intolerável,
estendendo sobre a vida cotidiana a força da contemplação é importante que personagem e
espectador se tornem, juntos, visionários.
As situações puramente óticas e sonoras despertam a vidência (fantasma, constatação,
crítica e compaixão), enquanto as sensório-motoras por mais violentas que sejam remetem a
uma função visual pragmática que “tolera” ou “suporta” a partir do momento em que um
sistema de ações e reações pode nascer dali.
Nasce uma nova série de personagens. No Japão e na Europa, a crítica marxista
denunciou esses filmes e seus personagens como passivos e negativos, de burgueses a
22
Paul Rosenberg isso essencial no romantismo inglês: apreender o intolerável ou o insuportável, o império
da miséria, e com isso tornar-se visionário, fazer da visão pura um meio de conhecimento e de ação (DELEUZE,
1990, p.29).
69
marginais que não mais modificavam, através de suas ações, o mundo; uma visão confusa e
não-transformadora. Deleuze repudia esta denúncia justamente argumentando que a fraqueza
dos encadeamentos sensório-motores, tem a capacidade de liberar grandes forças de
desconstrução. Como exemplo ele cita os inúmeros personagens estranhamente vibrantes em
Rossellini, e estranhamente informados em Godard. Tanto no Japão como no Ocidente esses
personagens são apreendidos como uma mutação, eles são formas mutantes. A mutação da
Europa depois da guerra, a mutação do Japão americanizado, a mutação da França em 68.
Deleuze, categoricamente afirma: “não é o cinema que dá costas à política, ele se torna
inteiramente político, mas de outra maneira”.
Ainda no que se refere aos personagens, a imprevisibilidade de alguns, a ambigüidade
de outros colocam em cena esse outro tipo de personagem, e um novo cinema aparece,
juntamente com um novo tipo de ator o ator não-profissional capaz de ver e de nos fazer
ver mais do que agir.
Os lugares-comuns do mundo estão perto de nós, mas ao invés de reconhecermos os
personagens em situações cotidianas, os vemos imobilizados. Gilles Deleuze quase define o
que é um clichê cinematográfico, citando Bergson literalmente:
Nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre
menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou
melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses
econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas.
Portanto, comumente, percebemos apenas clichês (BERGSON apud
DELEUZE, 1990, p.31).
O novo tipo de imagem que nasce no cinema moderno se apresenta bloqueando os
esquemas sensório-motores ou esfacelando-os, e um novo tipo de imagem ótica-sonora pura
pode aparecer, uma imagem inteira e sem metáfora fazendo surgir a coisa em si mesma,
literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, radicalmente ou injustificavelmente,
como bem ou como mal.
23
Descolar no sentido de mostrar que o que parecia à primeira vista ligado, de mostrar que o natural são
70
Finalizando sua reflexão a respeito dos clichês, Deleuze afirma:
Os clichês foram criados para nos dar impressão de que vemos tudo na
imagem. Nós não vemos tudo. Se através da montagem eu colocasse uma
imagem de uma prisão em sucessão a de uma escola, eu estaria indicando
uma semelhança uma metáfora. Quando eu mostro como e em que uma
escola é uma prisão eu realizo uma passagem, mostro como uma escola pode
ser prisão ou como as duas podem ser uma prisão (DELEUZE, 1990, p.32,
grifos do autor).
Os novos personagens visionários ou videntes se constituem numa possibilidade de
tentar apreender aonde vai a imagem, ou ainda tentar encontrar o que foi retirado dela, ou
ainda, ao contrário, introduzir vazios, espaços em branco, refazê-la. Nesse processo, Deleuze
adverte que o difícil é saber em que uma imagem ótica e sonora não se torna ela mesma um
clichê.
Poderíamos dizer que quando os diretores apresentam enquadramentos obsedantes,
espaços vazios ou desconectados, e até naturezas mortas, eles estão interrompendo o
movimento, inventando outras tensões nos planos fixos, eles estão esvaziando os clichês,
perturbando as ligações sensório-motoras e transportando-as para além do movimento.
A imagem-movimento não desaparece do cinema moderno, mas é reposicionada sob
outras condições, descreve Deleuze:
a) A imagem-movimento e seus signos sensório-motores estão relacionados apenas à
imagem indireta do tempo (dependendo da montagem), enquanto na imagem ótica e sonora
pura , seus opsignos e sonsignos ligam-se diretamente a uma imagem-tempo que subordinou o
movimento e essa reversão faz não mais do tempo a medida do movimento, mas do
movimento a perspectiva do tempo. A imagem-tempo constitui todo um cinema do tempo,
com uma nova concepção e formas de montagem.
b) Ao mesmo tempo que o olho acede a uma função de vidência, os elementos da
imagem, não visuais, mas sonoros, entram em relações internas que fazem com que a
imagem inteira seja lida e não menos vista, legível quanto visível. A literalidade do mundo
máscaras (DELEUZE, 1990, p.29).
71
sensível, não desaparece totalmente, mas o subordina aos elementos e relações internos que
tendem a substituir o objeto, a suprimi-lo à medida que aparece, deslocando-o sempre. O
cinema se constitui como uma analítica da imagem, implicando numa nova concepção de
decupagem (por exemplo: Ozu, última fase de Rosselini, Godard). Portanto a fixidez da
câmera não é a única alternativa ao movimento. A mobilidade da câmera não se contenta em
seguir o movimento das personagens, ou fazer movimentos dos quais as personagens são
apenas o objeto, mas em todos os casos subordinar a descrição de um espaço a funções do
pensamento. O princípio da indiscernibilidade (sujeito e objeto, real e imaginário etc.) é que
72
Resnais, o achatamento da profundidade e a planeza da imagem em Dreyer, os longos planos
fixos de Antonioni e muitos outros. Os opsignos e os sonsignos são apresentações diretas do
tempo, os falsos-raccords são a não-ligação entre os planos e a imagem-tempo rompe o
círculo, do plano à montagem: o plano não comporta mais o tempo e a montagem deixa de ser
a sucessão. A imagem-tempo se abre sobre o tempo como uma matéria signica alijada do
movimento.
André Parente, em sua tese de doutorado, Narratividade e não-narratividade fílmicas,
orientada por Gilles Deleuze, apresenta três regimes de imagens no cinema. Primeiramente as
imagens-matérias ou imagens não-narrativas, isto é, imagens abordadas do ponto de vista do
regime gasoso de variação universal. Elas são acontecimentos que antecedem o homem e sua
relação sensório-motora com o mundo. São as próprias coisas, as coisas em si, as coisas tais
como reagem umas às outras em todas as suas faces e partes.
Em segundo lugar, as imagens-substantivas. As imagens substantivas são
acontecimentos que expressam as relações sensório-motoras entre o homem e o mundo
(percepção, afecção, sonho etc.). As imagens ou acontecimentos sensório-motores
confundem-se com sua realização no espaço hodológico (espaço que pode ser medido) vivido
que elas expressam.
Finalmente, as imagens-tempo ou acontecimentos ideais, que não se confundem com
as imagens-movimentos (imagens-matérias ou imagens-puras, imagens-substâncias ou
imagens-ação), que se realizam no curso empírico do tempo. As imagens–tempo são
acontecimentos ideais, abordadas do ponto de vista de um regime de temporalização ou
regime falsificante, no qual cada imagem implica necessariamente uma rachadura do “eu”,
uma fissura do espaço campo de interioridade, uma bifurcação do tempo, um esquecimento
fundador, uma memória vertical consistente, uma repetição fundamental.
73
A imagem-tempo é um acontecimento, abordada do ponto de vista de um ato de
presentificação e ato de presentificação é uma narração que fazemos de nossa ação a nós
mesmos ou a outras pessoas no mesmo momento em que a realizamos.
André Parente (2000) conclui que ao fazer isso, nós nos despojamos de nosso “eu”, e o
que nos acontece sempre já aconteceu. A narração falsificante reúne em uma única história o
passado, o presente o futuro, que por si só, são fabulações.
As reticências fecham e deixam em aberto o título deste capítulo, os três pontos fazem
as palavras que compõem o título Notas de tempo em Deleuze ... dançarem para o fora e
alcançarem o poema de Júlio Bressane (2000, p.545-548) e as ... Notas de tempo em
Bressane.
Cinema Deleuze
Júlio Bressane
[...]
E nesse domínio em que a Imagem-afeto e a Imagem-ação não podem representar
surge a Imagem-pulsão,
ela rasga, desarticula o próprio tempo...
É uma desmontagem-remontagem da mancha Losey.
Por escolha e mistura de verdadeiros topoi visuais,
expressão de um movimento do espírito transformado em imagem.
É um cinema inatual, novo.
(Ele pertence à tradição do novo, que ele contra-efetua.)
Cinema do cinema.
Ele fez outros filmes: com Dreyer, Bresson, Hitchcock (“a câmera desvelada”: o
enquadramento, o movimento de câmera que manifestam relações mentais. Não é câmera-
olho, mas olho-espírito, cinema-vidência onde a descrição substitui o objeto), com Orson
Welles, sobretudo.
Ele foi o primeiro cineasta filósofo.
É a primeira vez.
Porque os filósofos não se ocuparam do cinema, mesmo quando o freqüentavam,
por um temor de precedência:
pois a filosofia estava por si só ocupada numa tarefa análoga à do cinema.
Pôr movimento no pensamento, como o cinema o põe na imagem.
Se há toxicófago e taxicófago em Gilles Deleuze , ele o deve ao cinema.
Durante mais de quarenta anos, ele viu nos filmes, filmes que ninguém viu.
Pensou cinema quando este foi desprezado por intelectuais e acadêmicos.
Com ele, o signo cinematográfico contaminou a filosofia.
Só uma vontade de arte pode nos salvar – escreve, sentencioso, o filósofo da imanência.
Chamado selvagem a duas ou três coisas de um deserto vermelho...
74
CAPÍTULO III
... NOTAS DE TEMPO EM BRESSANE
[...] eu estava trabalhando, desde a década de 80, as cartas e os escritos de
São Jerônimo, pensando em como poderia realizar aquela obra irrealizável,
como transformar aquele texto, como criar alguma imagem para isso... Essa
imagem me foi como que dada, essa imagem do sertão.
Júlio Bressane (sobre o filme São Jerônimo)
24
[...] criou-se uma relação, uma associação entre literatura e cinema de
maneira incompleta, insatisfatória: como tradução. De certa maneira, a
literatura foi para o cinema sem a literatura, foi apenas como enredo, não
é? É que começa a se colocar a questão da tradução, que é ainda uma
terra incógnita. É um terreno de pensamento experimental, sem dúvida. Um
pensamento de tentativa.
Júlio Bressane (sobre o cinema em proximidade com outras artes)
25
Os filmes de Júlio Bressane apresentam como característica a prática da
experimentação; a diferença entre cada um deles é o que confere ritmo ao conjunto de sua
obra. De 1967 até hoje, são aproximadamente 38 filmes, incluindo Cleópatra, ainda inédito
nas telas brasileiras. Estas Notas de tempo foram redigidas tentando “ver” como ele fez São
Jerônimo.
O que se pode ver na imagem de São Jerônimo, de Júlio Bressane? A questão ecoa
numa afirmação: este filme pertence à modernidade do cinema.
24
BRESSANE, Júlio. Trajetória. In: Cinema Inocente: retrospectiva Júlio Bresane. São Paulo, 2003, p.28.
25
BRESSANE. Júlio. Conversa com Júlio Bressane / Miramar, Vidas Secas e o Cinema no vazio do texto.
Cinemais, Rio de Janeiro, n. 6, p. 7-42, jul/ago 1997. Entrevista a SARNO, Geraldo & AVELLAR, Carlos.
75
Invocamos ao longo deste trabalho diversas diferenças entre o cinema clássico e o
cinema moderno, e uma delas ressoa em todas elas, é a característica da imagem no cinema
moderno de adquirir o estatuto de leitura, de percepção da percepção, nos fazendo ver algo
nela, tornando-a legível.
O que vem a ser a legibilidade da imagem moderna? E como pensar o conceito de
imagem-tempo em São Jerônimo? E por fim, o que isso nos ajudará no nosso escopo de
desenhar um traçado do tempo no filme? Primeiramente bifurcando-nos das próprias
perguntas e instalando-nos em uma afirmação de Gilles Deleuze: O que define o cinema
moderno é um vaivém entre palavra e imagem que vai inventar a nova relação delas
(1990,p.293). Afirmação reiterada em um curso em St. Denis:
Porque todo un aspecto del cine moderno, y sin duda los más grandes
autores contemporáneos definiéndolos de la manera más sumaria, podríamos
decir que han introducido una falla en el cine, una béance fundamental entre
lo audio y lo visual. Sin duda por ahí han promovido lo audio-visual a un
nuevo estadio, haciendo pasar una falla entre ver y hablar, entre lo visible y
la palabra.
26
São Jerônimo é um filme de imagens que imobilizam o visual e também o sonoro.
Esta afirmação será dissecada no decorrer deste capítulo.
Para efeito de análise. classificamos São Jerônimo em Abertura e três movimentos: o
primeiro movimento é o Deserto descrito plano a plano em seus 31 minutos, de um lado
descrevemos minuciosamente as imagens visuais e de outro as sonoras, assim procedemos por
apostarmos na hipótese de que São Jerônimo pode ser considerado um cinema de imagem-
tempo; ao segundo movimento denominamos Roma de Bressane, e escolhemos transcrever
todos os atos de fala dos personagens em suas aparições como atos de criação sonora das
imagens audiovisuais; e no terceiro movimento, Sertão, destacamos seus planos finais.
Terminamos este capítulo, e com ele este trabalho, nos desviando dos dois pontos, nossa
26
(Web Deleuze. DELEUZE/IMAGE MOUVEMENT IMAGE TEMPS Cours Vincennes - St Denis: Leibniz
(Foucault-Blanchot-Cine)-1982 - Télécharger ce cours en: pdf (disponible) rtf (disponible)
76
preocupação no início desta dissertação, a saber: o peso da documentação a respeito de São
Jerônimo e o filme sendo feito.
Convidamos o leitor à percorrer este capítulo através das palavras, dos espaços, dos
sons, das pontuações de um texto que se propõe a criar um desenho do tempo no filme São
Jerônimo. Estamos perfeitamente conscientes de suas insuficiências, mas esperamos que a
maneira de colocar o problema do tempo na imagem e no drama cinematográficos seja
pertinente ao estudo de teorias do cinema como prática de conceitos que o cinema suscita.
Na classificação do filme em movimentos, divisão em partes que permanecem
divididas, fragmentadas, o parâmetro que utilizamos, foi a construção do filme, respeitando o
processo de criação do diretor, entretanto salientamos que o terceiro movimento poderia ser o
primeiro, como o segundo poderia ser o terceiro ou o primeiro. São Jerônimo, de Bressane,
será lido através do Deserto, de Roma de Bressane e do Sertão, mas sobretudo através do
vento implacável, mensageiro que também é parte das partes, não se unindo a nenhuma delas,
sempre provocando encontros. O vento será o primeiro objeto de nossa investigação.
Apostamos que o filme foi escrito como uma partitura, não aprisionando o tempo ao
movimento, ao contrário, libertando o tempo do próprio movimento. Apresentando o tempo
em inúmeras aparições, cabe aqui, pensar nas reticências do título do capítulo. O tempo não é
um todo, o tempo impede o todo.
As reticências ressoam na constatação de que Bressane é leitor de Deleuze, e que para
estudarmos a técnica composicional no cinema e pesquisarmos a cnica de criação do filme
São Jerônimo nos orientamos pelas obras A imagem-movimento e A imagem-tempo, de Gilles
Deleuze. Entretanto, este trabalho de classificar as imagens audiovisuais do filme pensar as
imagens como signos a se colocarem a falar, a nos indicar maneiras, jeitos e formas de ver,
ouvir, pensar e apreender o tempo no filme nos colocou num espaço vazio: entre Deleuze e
Bressane.
77
1. Abertura
Comecemos pelos créditos iniciais. A abertura é particularmente a apresentação do
cineasta/diretor JúlioBressane realizando o filme São Jerônimo, não o seu making off
27
, esta
afirmação julgamos oportuno precisar.
A tela/pedra com a inscrição J
ÚLIO
B
RESSANE APRESENTA
é seguida por um plano de
uma mão segurando uma claquete à esquerda em um conjunto enquadrado de paisagem árida,
estratificada em profundidade de campo. O próximo plano é um travelling lateral para a
esquerda e abruptamente um lateral para direita; vemos uma vegetação de região árida,
“vegetação como se um teto invisível houvesse a lhes impedir a subida”
28
, caules retorcidos,
poucas folhas e alguns homens. Tecnicamente, os movimentos do travelling apreendendo a
equipe de produção, tangenciando e pousando; só poderiam ter sido registrados por um objeto
alhures em movimento, algo do fora, ou da superfície. Os sons passam pelas imagens
cortando-as, as vozes da equipe e o gorjeio de um pássaro não coincidem com o que vemos na
tela.
O olhar/câmera que registrou as imagens, assim como a captação do som não parecem
guiados pela equipe técnica numa decupagem previamente estabelecida, portanto o conjunto
das imagens, o áudio e o visual poderia ter sido registrado por equipamentos que tivessem
c 2( )-(a)- si d 03(s)-1.2312(i)-3n6m
78
sido esquecidos ligados. Entretanto, fica evidente a elaboração da montagem das imagens
audiovisuais como ato consciente da vontade do autor.
O visual nos a ver um território árido, pessoas vestidas como monges, uma breve
visada de uma casa branca, um objeto vertical assemelhando-se ao caule de uma árvore
oblitera a tela do lado direito do quadro; o sonoro se constitui dos atos de fala de homens e
mulheres integrantes da produção do filme. Não os identificamos em relação a uma fonte
sonora única, como também não os identificamos visualmente, são os sons e imagens
traçando um caminho do tempo no filme .
Os sons se fazem ouvir sem serem vistos por si mesmos (não vemos a fonte sonora), e
à medida que a câmera é coberta por um corpo de homem, a tela se torna negra, o visual cede
lugar ao sonoro, e o som do vento traz a segunda inscrição: S
ÃO
J
ERÔNIMO
. O ruído do vento
insiste e a imagem visual sucede à tela negra em longos planos fixos de paisagens secas e
áridas.
São Jerônimo é revelado a partir do filme sendo feito. A abertura guarda um opsigno,
uma imagem atual em que a tela encoberta pelo corpo do homem impede o prolongamento do
que estávamos vendo. O visor se torna opaco, cristaliza-se na tela a imagem do que não pode
mais se prolongar, do que não pode mais aparecer, sua própria quebra; a imagem atual
cristaliza a sua própria imagem virtual.
A inscrição J
ÚLIO
B
RESSANE APRESENTA
entalhada na tela/pedra é a primeira face
desta seqüência, e a segunda é a inscrição S
ÃO
J
ERÔNIMO
. Entre elas (a fenda, os dois pontos
(do Capítulo I deste estudo)), o que se parte é a pedra e o que surge é o filme sendo feito. O
filme se introduz dentro do filme sob a forma de um germe que, ritmado pelo vento, constitui
o filme se fazendo.
Nota de tempo nº 1
79
São Jerônimo
, descrição cristalina, esculpido pelo vento, imagem-cristal.
François Zourabichvili, em O vocabulário de Deleuze, expõe uma leitura de verbetes,
de conceitos utilizados por Deleuze, num encontro com o pensamento desse autor,
denominando este livro “um estado provisório de amostras”. Em primeiro lugar precisemos o
verbete conceito: ”um conceito não é um tema, nem uma opinião particular pronunciada sobre
um tema. Cada conceito participa de um ato de pensar que desloca o campo da
inteligibilidade, modifica as condições do problema por nós colocado”
(ZOURABICHVILI,
2004, p.12).
Sobre o conceito de cristais de tempo, Zourabichvili inicia o verbete com uma citação
de Deleuze (1990, p.105): “A imagem-cristal pode ter muitos elementos distintos, sua
irredutibilidade consistindo na unidade indivisível de uma imagem atual e de sua imagem
virtual”. Esta frase inicial vai sendo comentada ao longo do verbete. Zourabichvili afirma que
o conceito de imagem-cristal foi um dos últimos criados por Deleuze, e “apresenta a
dificuldade de condensar praticamente toda a sua filosofia”:
O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo:
uma vez que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas
ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a
80
O movimento Deserto se inicia com a encenação do Sonho de São Jerônimo (já
descrita plano a plano no Capítulo I desta dissertação) e termina aos 31minutos e 10segundos
de filme. Dividimo-lo em quatro seqüências: No paraíso, Pedra-de-sino, Vozes de Jerônimo,
e Acontecimento.
A primeira seqüência tem a duração de quatro minutos, o som do vento cede lugar ao
Réquiem de Fauré. O título No paraíso foi tomado de Gabriel Fauré (1845-1924) e
corresponde ao movimento homônimo do réquiem escolhido por Bressane para esta
seqüência.
Neste ato de música desfilam imagens de monges no deserto: enfermos e imóveis. Um
ato de silêncio, no sentido em que o som encontra um lugar nos planos das imagens visuais.
2.1 Seqüência: No paraíso / 3 min / 9’ 32” a 12’ 32” / 8 planos
29
Plano 1 - Duração 22” - Plano seqüência
Exterior – Dia
Imagem Som
PC–Trav. lat. para a esquerda: Paisagem seca,
pedras e árvores esparsas e monges: um em pé,
outro deitado, outro ajoelhado, outro rastejando
para a direita.
Réquiem de Fauré
Plano 2. – Duração 19” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
Trav. lat. para a direita: o corpo de um homem
morto, estirado no chão com as mãos unidas sobre
o peito (gesto de oração). A CAM acompanha
lentamente o moribundo a partir dos pés até
encontrar a cabeça e pára.
Réquiem de Fauré
29
Legenda:
PC= Plano conjunto; PA= Plano americano; PP= Plano próximo ou primeiro plano; PPP= close up; CAM=
câmera; PDC= Profundidade de campo; Trav. Lat.= travelling lateral; Trav. Fr.= Travelling para frente;
Trav.Tr.= Travelling para trás; Trav. de Ac= travelling de acompanhamento; Trav. Circ= Travelling circular;
Pan-trav. = Panorâmica com travelling; Pan=Panorâmica; Mvt= Movimento; Plongée; Contra-plongée.
81
Plano 3 – Duração 22” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP. Trav. vert. para cima: A CAM acompanha, dos
pés à cabeça, um homem que está em pé. As folhas
das árvores balançam.
Réquiem de Fauré
Plano 4. – Duração 17” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PA. - (câmera na mão) A CAM em plongée mostra
um monge sentado, imóvel, catatônico.
Réquiem de Fauré
Plano 5 – Duração 1’ - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP. CAM na mão - Trav. vert. para baixo. A CAM
em contra-plongée desce em diagonal do céu quase
branco de nuvens até o solo. A CAM continua em
contra-plongée. A CAM em Trav. Acomp.- um
monge se arrasta no solo.
Réquiem de Fauré
Plano 6 – Duração 12” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC. CAM fixa. Monge anda lentamente da
esquerda para a direita, em diagonal atravessa o
quadro.
Réquiem de Fauré
Plano 7- Duração 9” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC. CAM fixa. Homem caído. Réquiem de Fauré.
Plano 8 – Duração 19” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC. Homens carregam um corpo e atravessam o
quadro da esquerda para a direita.
Réquiem de Fauré
A presença da música é o primeiro plano sonoro da seqüência. A imagem audiovisual,
o áudio (música) e o visual se afirmam distintos. Esta música, sabemos, está fora do espaço
82
visual, afastada das imagens que vemos, liberta da imagem visual uma imagem audiovisual,
uma imagem em primeiro plano, um primeiro plano sonoro de uma imagem audiovisual.
Ao longo da seqüência a câmera parece desenhar uma cruz: primeiramente à esquerda,
depois à direita, em seguida para cima e por fim para baixo, a câmera sempre no meio a cortar
os corpos maltratados dos monges em vestes maltrapilhas a peregrinar e a orar no deserto. A
presença da morte como a da vida está registrada na superfície dos planos e a superfície do
quadro continua sendo traçada da esquerda para a direita, para cima e para baixo.
Os quatro minutos do Réquiem de Fauré nos oito planos de Bressane tendem a
encadear os planos, a encontrar a cruz que o movimento de câmera realizou, mas ao tentar
ligá-los caímos no interstício, nem som nem imagem. Caímos no vazio, no silêncio, quem
sabe num ato de silêncio. Nenhum dos dois sentidos, nem a visão, nem a audição: as imagens
visuais têm componentes sonoros, mas que tendem para o limite do próprio som, por isso,
talvez um ato de silêncio. Silêncio a cortar a cruz que o movimento de câmera realizou nas
imagens visuais e a cortar a música. Que música é essa? Os quatro minutos do Réquiem de
Fauré
30
estão no visual e no sonoro e se abrem para duas imensas imagens: a da vida e a da
morte e a da vida à morte.
Nota de tempo nº 2
O cinema de Bresane se encontra com a afirmação de Deleuze sobre a
modernidade cinematográfica afirmando uma potência audiovisual, um
audiovisual criador e não um conjunto audiovisual, mas uma distribuição do
áudio e do visual de um lado, e de outro um vaivém.
30
Informações do encarte do Cd Harmonia Mundi/France. Fauré. Réquiem (version 1893). Movimento: In
Paradisum 3’54”. Faurée quando interrogado sobre a gênese do seu réquiem, respondeu que o compôs por
nada... “por prazer se pode se dizer assim”. A obra data de 1887 e foi executada pela primeira vez em 1888.
Ordem de composição Introit et Kyrrie, Ofertoire, Sanctus, Pie Jesu, Agnnus Dei, Libera me, In Paradisum.
83
O vento retorna, se repete, se permuta. A segunda seqüência tem duração de 9’9” e é
composta por 28 planos. Trata-se de um trecho que de certa forma fecha-se em si mesmo,
além de introduzir um outro centro de atenção do filme que é a tarefa de São Jerônimo,
estudioso das palavras divinas juntamente com os outros padres do deserto. A seqüência
começa e termina com sons de sino: da pedra-de-sino
31
e da sineta no pescoço de um animal.
2.2 Seqüência: Pedra-de-sino/ 9min9seg/ 12'33” a 21’02”/ 28 planos
Plano 1 - Duração 31” - Plano fixo
Exterior –dia
Imagem Som
PC. Grande pedra em forma de sino (Pedra-de-
sino) ao fundo, e à frente um homem atravessa o
quadro da esquerda para direita devagar,
arrastando uma cruz
32
apoiada no ombro. O vento
sopra suas roupas para a esquerda e ele caminha
para a direita.
Som (em off) de badalada de sino
Som do vento soprando
Som da cruz sendo arrastada (ampliado por ruídos
do microfone utilizado na captação do som).
Plano 2 - Duração 20” - Plano fixo
Exterior -dia
Imagem Som
PG Cinco homens rezam em torno da cruz
bifurcada no ápice.
Som do vento
Sons (em off) de cantos de pássaros
Plano 3 - Duração 5” - Plano fixo
Exterior – dia
Imagem Som
PM- Pedra em formato de sino ocupa os 2/3
superiores verticais da tela e quase 3/3
longitudinais.
Som do vento assobiando
Música eletroacústica (em off ): Liquid Dreams
[Dois sons iniciam a música:
a) sons simulam instrumento de sopro (médio grave);
b) sons simulam ações de cordas friccionadas
(grave)].
31
Júlio Bressane, em entrevista, declara: “o ator do filme Everaldo Pontes, extraordinária figura e ator, sugeriu
que filmássemos num lugar, chamado Pedra do Pai Mateus... uma meseta no meio do sertão, com pedras ocas
que fazem sons como sinos, chamadas pedras-de-sino, uma coisa espantosamente simbólica. Foi que eu vi a
tradução de São Jerônimo, a chave para entrar com o filme no Brasil e na língua portuguesa” (BRESSANE.
2003, p.28-29).
32
Cruz – galho amarrado a uma haste transversal com cipó.
84
Plano 4 – Duração 27” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PG– Frontal, peregrinação de cinco monges, seus
trapos arfam ao vento, caminham com vagar em
direção à câmera. No quadro a terra é colorida: do
laranja ao marrom, do branco ao negro. Não plana
com ondulações de relevo e textura. Os monges,
entre eles Jerônimo mudam de direção ao
chegarem próximos à câmera, um para a esquerda,
outros para direita e outros para frente.
Música: Liquid Dreams (em off)
[Esta música tem como característica tímbrica a
simulação de instrumentos de cordas friccionadas,
mantendo uma linha melódica pulsativa (iniciada pelo
som (b) já exposto), conjuntamente com um outro som
contínuo e a entrada de sons de várias alturas].
Plano 5 - Duração 58” – Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PC- CAM fixa.em plongée. Uma porção de pedra
amarelada com traços brancos e cinco pedaços de
alimento negro. Sombra de um homem e de cinco
mãos apanhando os pedaços.
PM-.Trav.vert. para cima. Segue as mãos dos
homens levando o alimento à boca. Corte.
CAM Fixa. Os cinco homens mastigam
lentamente.
Música: Liquid Dreams (off):
[Som contínuo descrescendo, e mantido (piano)]
Voz em off de Jerônimo:
Devemos comer andando porque alimento aqui é
coisa passageira.
Música Liquid Dreams ( off) :
[A música cresce após a narração (off) e se mantém no
tom meio forte para forte e vai diminuindo até a
entrada do som do vento. A linha melódica de padrão
pulsativo é mantida pontuando os próximos planos].
Plano 6 - Duração 15” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP CAM fixa em Contra-plongée. Rosto de
Jerônimo, que olha para a esquerda, barba e
cabelos tremulando ao vento. Corte. RACCORD
MOVIMENTO
PA CAM fixa. Plongée. CAM no alto sobre a
cabeça de Jerônimo, o qual em seguida vira-se
para direita e começa a andar.
Som do vento assobiando juntamente com a
música Liquid dreams:
[
O som (b), da música Liquid Dreams se apresenta no
final do plano pontuando a saída de Jerônimo do
quadro].
Plano 7 - Duração 6” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC PDC. Uma pedra imensa escavada no centro
em formato de arco se destaca. Ela reenquadra
Som do vento e música em (off): Líquid Dreams:
[o som (b) marca a saída de Jerônimo do quadro e
continua].
85
próximo a sua abertura a figura de Jerônimo que
atravessa o quadro da esquerda para a direita
carregando papéis. Livros o vistos no chão
protegidos do sol. Ao fundo a terra se encontra
com um céu claro. O solo apresenta diferentes
estratos que vão do laranja ao amarelo e ao branco;
desníveis leves têm diversas tonalidades: marrom,
cinza e branca. O céu ao fundo exibe gradações de
azul.
Plano 8 – Duração 19” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PG- Pan. lateral. Parede de uma rocha com
inscrições, sulcos, marcas de figuras e traços.
Jerônimo acaricia a pedra com cuidado.
Imagem da capa do filme, lançado em VHS, no Brasil.
Idem plano 07
[Com graduações de intensidade na mesma linha
melódica pulsativa].
Plano 9 - Duração 38” - Plano fixo
Exterior, Noite
Imagem Som
PM- CAM fixa à esquerda. Jerônimo papiros,
sob uma luz amarela. A luz principal incide sobre
a pilha de livros. e sobre os livros um crânio e uma
pena.
Idem ao plano 07, acrescido de sons de pássaros.
Plano 10 – Duração 15”
Exterior, dia
Imagem Som
PC- Trav. lat. para esquerda. Monges são vistos
em e ajoelhados, lendo no meio da vegetação
semi-árida.
Possivelmente, repetição de partes da seqüência de
abertura do filme.
O som do vento pára
Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano
09.
Plano 11 - Duração 15” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PC- Jerônimo têm nas mãos um grande
pergaminho desenrolado, cuja extensão excede o
quadro.
Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano
10.
Plano 12 - Duração 19” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP- Trav. vert. para cima sobre o pergaminho
distendido.
PA. A CAM fixa em Jerônimo segurando o rolo
de pergaminho.
Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano
11.
[O som percussivo continua crescendo e se mantém]
86
Plano 13 - Duração 12” - Plano seqüência
Exterior, dia
Imagem Som
PPP- Trav. vert. A CAM, em movimento
acelerado e desfocado, percorre o pergaminho de
baixo para cima, em seguida se fixa na face de
Jerônimo.
Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano
12.
[Continua o desenvolvimento e mantém].
Plano 14 - Duração 2” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PG - Cobra comprida e fina atravessa o quadro. Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano
13.
Som de guizos de cobra balançando.
Plano 15 – Duração 2” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
.
PP – Rosto de Jerônimo desfocado. Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano
14.
Som (em off) de guizos de cobra balançando.
Plano 16 – Duração 4” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC- Jerônimo deixa o manuscrito e sai do quadro
com as mãos na cabeça.
Música (em off): Liquid Dreams. Aumenta a
velocidade.
Plano 17 – Duração 18” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PG – PDC - Areia branca cobre toda a tela.
Música (em off): Liquid Dreams. Idem ao plano
16.
A música Liquid Dreams pára e tem início uma
ária da ópera Sansão e Dalila, de Camille Saint-
Saëns, também em off.
Plano 18 - Duração 19” - Plano seqüência
Exterior, dia
Imagem Som
PM - Jerônimo olha para a direita. CAM na mão
Pan- trav. lat. para a direita até encontrar um leão,
deitado na areia com uma das patas machucada.
Som (em off) : ária de Sansão e Dalila, de Saint-
Saëns.
Plano 19 – Duração 17”
87
Exterior, dia
Imagem Som
PP CAM na mão. Pan-Trav. lat. esquerda. A
CAM explora lentamente todo o corpo do leão, no
sentido anti-horário até parar.
Som (em off): ária de Sansão e Dalila, de Saint-
Saëns.
Plano 20 – Duração 7” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PPP- Jerônimo segura o espinho encravado na pata
do leão. FALSO RACCORD
Som (em off:) ária de Sansão e Dalila, de Saint-
Saëns.
Plano 21 - Duração 7” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PM Contra-plongée acentuado. O corpo verde
de um cacto com tidos espinhos e ao fundo
nuvens brancas deslizam num céu muito azul.
Som (em off:) ária de Sansão e Dalila, de Saint-
Saëns.
Plano 22 – Duração 6” - Plano seqüência
Exterior, dia
Imagem Som
PP– Pant-trav. O leão se levanta, a CAM
acompanha o animal liberto da dor.
Som (em off) ária de Sansão e Dalila, de Saint-
Saëns.
Plano 23 - Duração 24” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC Contra-plongée. Jerônimo está ajoelhado no
alto de um morro, rezando diante de uma cruz. A
mesma cruz amarrada com cipó. A CAM está na
lateral direita. Uma sombra se movimenta
clareando e escurecendo a paisagem. No início
pouca luz e no final muita luz.
Som (em off:) ária de Sansão e Dalila, de Saint-
Saëns.
A música pára.
Plano 24 – Duração 36” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PG PDC. Plongée. Jerônimo no centro de uma
paisagem, sozinho, ajoelhado e rezando, não mais
vemos a cruz. A CAM está na lateral esquerda. O
solo escuro é cheio de estrias grossas e brancas.
Um imenso lugar sem fim e sem começo, um meio
de mundo. Inicialmente muita luz, depois
escurece. Jerônimo no chão sofre uma convulsão.
Silêncio
Som (em off): canto de pássaros, ruídos de animais
e folhas.
88
Clareia, escurece, clareia novamente e seu corpo
continua estrebuchando.
Plano 25 - Duração 58” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC – PDC - Cinco homens rezam ajoelhados Som (em off): música (xaxado
33
)
Plano 26 - Duração 4” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PPP Plongée. Mão fechada, mão aberta e dentro
dela um escorpião. FALSO RACCORD
Som (em off) música (xaxado)
Plano 27 – Duração 2” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PM Mandacaru encravado na pedra, sua forma
se assemelha ao corpo de um escorpião.
Som (em off) música (xaxado)
Plano 28 - Duração 37” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP A CAM na mão - Trav. de Ac. A CAM se
aproxima da mão do homem que segura o
escorpião e depois se abre mostrando os monges.
Jerônimo olha para o escorpião, que está na mão
de um deles, vira-se bruscamente e se afasta
parecendo contrariado com o que vê.
Som (em off) música (xaxado)
Silêncio
Som (em off): Ruído de sineta em pescoço de
animal (cabra?)
Silêncio
Voz (em off) É fraqueza entre as ovelhas ser leão.
Nesta seqüência a imagem visual se estende em espaços abertos de um lugar imenso,
geografia de deserto e sertão. Os enquadramentos dessa superfície luminosa nos fazem sentir
o descentramento, deixando a impressão de que o espaço excede os planos.
33
Xaxado. Conforme Dicinário Houaiss (2001, p.2984): Rubrica: etnografia, dança, música. Regionalismo:
Brasil.dança pernambucana orign. restrita ao sexo masculino, que se expandiu pelo Nordeste levada por
cangaceiros [Sem acompanhamento instrumental para o canto, pode apresentar a marcação rítmica de pancadas
de rifles no chão].
89
Uma característica dos planos de São Jerônimo é a estratificação, em cada plano a
imagem visual deixa ver divisões de relevo, de solo dividido em camadas de superfícies, ora
vertical, ora horizontal, ora transversal, ora combinação delas. Se as cores do solo e do céu
criam divisões horizontais e verticais, se as imensas pedras separam a terra do céu, também
projetam sombras; a profundidade de campo desproporciona o tamanho dos objetos
desencadeando figuras que chamam nossa atenção, contornando mistérios desse espaço.
Quais figuras? As diversas pedras, a compor os primeiros planos, o plano de fundo,
como também a cartografia do solo em imagens que justapostas tornam o percurso desta
seqüência abstrato. O que mais podemos ver? As camadas afetadas pela presença do
personagem Jerônimo. Ele atravessa as camadas. Da oração ao lado da cruz à convulsão, da
deglutição lenta de pedaços de alimento à leitura e estudo de sinais na rocha e no pergaminho,
da tranqüilidade da ascese ao tormento do pensamento, da contemplação da beleza do leão à
retirada do espinho que lhe causava sofrimento. E o que não podemos ver? E os cortes? O
enquadramento visual dá a se ver como cortes, cortes de pedras, às vezes até trituradas (areia),
às vezes sulcadas de rasgos e de cores quentes, às vezes superfície de um quadro de imagens
táteis, às vezes pintura de infinitos traços brancos como uma colcha a se estender e a servir de
abrigo aos corpos frágeis dos peregrinos.
Nota de tempo nº 3
A imagem visual de Bressane é corte de pedra. Pedaços que giram e
reviram. A simetria está afetada, tanto pelos enquadramentos excessivos
que a câmera realiza (
plongée
e
contra-plongée
) quanto pela duração e
fixidez dos planos. O filme solicita um esforço de memória, ou quem sabe
um esquecimento do mundo. A imagem é tanto lida como vista.
90
Por outro lado, os personagens não ligam os planos. Eles os cortam. Estão na
superfície por cima dos cortes e dos intervalos entre os cortes. Os planos não se encadeiam
numa ligação com um plano anterior e nem posterior, como numa sucessão de instantes. A
montagem entre os planos é entrecortada por paradas, por giros, inversão de escala Norte, Sul,
Leste e Oeste.
A seqüência é marcada quase inteiramente por planos fixos, o personagem Jerônimo
entra e saí do quadro sete vezes, as sombras das mãos dos monges aparecem no quadro, eles
têm partes de seus corpos fora do quadro, a câmera realiza poucos movimentos, mas o quadro
nunca está vazio. Ele faz parte de um espaço, de um cenário, que se estende além do quadro.
De onde surgiu Jerônimo? Das entradas e saídas do quadro e dos deslocamentos da câmera se
inscrevendo ao mesmo tempo no percebido e no rememorado, na percepção da percepção, no
deserto e no sertão, convertendo o vazio em pleno.
Nota de tempo nº 4
Inscrições petrificadas de blocos de planos, no espaço dos falsos-
raccords
: sertão e deserto, disjuntos tendendo a um limite que não lhes
pertence, criando um tempo, imagens de tempo que não mais se encadeiam,
não pertencem aos planos anteriores ou posteriores, os cortes valem por si
(interstícios).
Os falsos-raccords nos colocam diante da necessidade de analisar as imagens sonoras
da seqüência Pedra-de-sino. Os sons de sinos demarcam o início e o final desta seqüência,
91
mas não rimam. O tratamento meticuloso dado por Bressane às imagens sonoras nos ajudará a
fazer considerações a respeito das relações entre som e imagem.
Comecemos pela narração off. As duas únicas frases ouvidas nesta seqüência são
pronunciadas por uma voz off; Jerônimo diz: Devemos comer andando porque alimento aqui
é coisa passageira; e no final da seqüência: É fraqueza entre as ovelhas ser leão. A fonte
sonora nos dois casos está no extracampo relativo, um lugar “ao lado” da imagem visual: no
primeiro, Jerônimo está entre quatro monges segurando pequenos pedaços negros de alimento
e todos estão parados, e no segundo caso, ele sai de campo e ouvimos a segunda frase.
Invocamos o estudo de Deleuze, no livro A imagem-tempo, no capítulo “Os
componentes da imagem”, quando ele afirma que a composição sonora de um filme é
constituída de elementos inseparáveis, e mesmo se diferenciando conforme a apresentação das
imagens visuais se constitui como uma quarta dimensão da imagem.
É na medida em que se rivalizam, se recobrem, se atravessam, se cortam,
que traçam um caminho cheio de obstáculos no espaço visual, e não se
fazem ouvir sem serem também vistos, por si mesmos independente da
fonte, ao mesmo tempo fazem com que a imagem seja lida, mais ou menos
como uma partitura (DELEUZE, 1990 p. 278).
Nota de tempo nº 5
Na seqüência
Pedra-de-sino
, os ruídos, os dois únicos atos de fala em
off
,
a música do vento, o canto dos pássaros, a música
Liquid Dreams
, o xaxado
e a ária de
Sansão e Dalila
, de Saint-Saëns, foram editadas na sala de
montagem. Esses materiais sonoros integram um jogo temporal além dos
limites das imagens audiovisuais, se apresentam, se bifurcam mesmo
quando simultâneos. Serão elas imagens do tempo ou imagens de tempo?
92
Este continuum sonoro pertence à imagem visual cinematográfica do campo, mas
também ao extracampo, povoando um filme de “não-vistos visuais”. Isto não significa que o
som não seja um componente da imagem visual; na qualidade de ser componente é que ele
não devia ser redundante com o que pode ser visto no visual.
Deleuze adianta que no célebre manifesto soviético de 1928, Eisenstein, Pudovkin e
Alexandroff (Le film, sa forme, son sens, Bourgois, p. 19-21) propunham que o som remetesse
a uma fonte no extracampo, como um contraponto visual e não como um duplo ponto de
vista. Eles acreditavam nas virtudes do extracampo, completa Deleuze, elevando a imagem
visual a uma nova síntese. A citação a seguir, embora extensa, conta da importância do
manifesto dos três autores, considerado visionário ao traçar um percurso do uso de som no
cinema:
A gravação do som é uma invenção de duas extremidades, e é mais provável
que proceda ao longo da linha de menor resistência, isto é, a linha de
satisfação da simples curiosidade. Primeiramente haverá exploração
comercial da mercadoria mais vendável, FILMES FALADOS. Aqueles, nos
quais, a gravação de som ocorrerá num nível naturalista, correspondendo
exatamente ao movimento na tela e proporcionando certa “ilusão de
pessoas falando, de objetos audíveis etc. Um primeiro período de sensações
não prejudica o desenvolvimento de uma nova arte [...] dessa primeira
percepção das novas possibilidades técnicas, e que irá se acentuar numa
época de sua utilização automática para “dramas altamente cultos” e outras
performances [...] Dessa forma, o uso do som i destruir a cultura da
montagem, pois toda ADESÃO de som a um trecho de montagem visual
aumenta sua inércia como trecho de montagem, e aumenta sua
independência de significado e isto sem dúvida dar-se-á em detrimento da
montagem, operando em primeiro lugar não nos trechos de montagem, mas
em sua JUSTAPOSIÇÃO, SOMENTE UM USO CONTRAPONTUAL, do
som em relação ao trecho da montagem visual proporcionará uma nova
potencialidade de desenvolvimento, de perfeição da montagem. O
PRIMEIRO TRABALHO EXPERIMENTAL COM SOM DEVE SER
DIRECIONADO PARA SUA LINHA DE NÃO-SINCRONIZAÇÃO COM
AS IMAGENS VISUAIS. É somente tal investida que dará a palpabilidade
necessária, que conduzirá mais tarde à criação de um CONTRAPONTO
ORQUESTRAL, de imagens visuais e auriculares [...]. O PRIMEIRO
IMPASSE é o subtítulo e todas tentativas em vão de ligá-lo à composição da
montagem, como partes da montagem (tais como quebrá-lo em frases ou
mesmo palavras, aumentar ou diminuir o tamanho do tipo usado,
empregando movimento de câmara, animação e assim por diante). O
SEGUNDO IMPASSE são os trechos explanatórios (por exemplo, certos
close-ups inseridos) que sobrecarregam a composição da montagem e
retardam o tempo. O som, tratado como um novo elemento de montagem
(como fator dissociado da imagem visual), inevitavelmente introduzirá
93
novos meios de grande poder para a expressão e a solução das tarefas mais
complicadas que hoje nos oprimem com a impossibilidade de superá-los
através de um método fílmico imperfeito, trabalhando somente com imagens
visuais (MANZANO, 2003, p.92-93, destaques do autor).
Deleuze considera que o extracampo pode, perfeitamente, ser o ao lado e o alhures, de
modo que um som pode suprimir uma imagem. Quando o extracampo remete a um espaço
visual que prolonga o espaço visto na imagem, denominamos de som off; um som que
provém de algo que logo será visto, ou que poderá ser visto nas imagens seguintes.
A voz off que destacamos nos dois trechos desta seqüência corresponde, portanto, ao
extracampo – parte de um conjunto vasto que engloba imagens visuais de uma mesma
natureza.
Cabe ressaltar também que a sonoridade da seqüência é elaborada por outras imagens
sonoras. A tensão singularmente criada entre os planos 11 a 16 (ver p.84-85) é plasticamente
construída a partir de planos do pergaminho intensificando o sentimento de desespero de
Jerônimo e a iminência de uma explosão. A montagem acelerada acrescida ao som dos
instrumentos amplifica o sentimento da tarefa infindável do mestre doutor, da tortura
espiritual deste homem.
Os vários instrumentos que criam a sonoridade da sucessão dos planos não estão mais
ao lado, estão no extracampo absoluto e em relação com o todo, com o tempo, o tempo de um
homem e sua função terrena. Seguindo o raciocínio de Deleuze, esta relação sonora ainda
está em relação com o visual.
O contínuo sonoro da seqüência: os ruídos, as músicas, os atos de fala,
correspondências entre eles seus deslocamentos, seus cortes rivalizando-se traçam caminhos
na imagem visual, passam a serem vistos independente das fontes sonoras, é o que faz com
que a imagem seja lida como uma partitura. O sonoro povoa não só a imagem visual como
também o extracampo, o som excede o espaço, expressa o todo, o tempo se expressando na
duração, no movimento.
94
Michel Chion propõe a noção de acúsmero para a voz cuja fonte não é vista, e ainda
distingue acúsmero relativo e integral. Acúsmero relativo para voz que ainda será vista e
integral para as relações atualizáveis possíveis com outras imagens, efetuadas ou não e suas
relações virtuais com um todo das imagens, não efetuável (DELEUZE, 1990).
Procurando ampliar nosso raciocínio sobre a aplicação do som no cinema, recorremos
novamente a Eisenstein, que desenvolvendo a teoria da polifonia. Ele parte do conceito de
montagem vertical estabelecendo a relação do cinema com a música:
Todos estão familiarizados com o aspecto de uma partitura orquestral.
várias pautas, cada uma contendo a parte de um instrumento ou de um grupo
de instrumentos afins. Cada parte é desenvolvida horizontalmente. Mas a
estrutura vertical não desempenha um papel menos importante, interligando
todos os elementos da orquestra dentro de cada unidade de tempo
determinada. Através da progressão da linha vertical, que permeia toda a
orquestra, e entrelaçado horizontalmente se desenvolve o movimento
musical complexo e harmônico de toda a orquestra. [...] montagem
polifônica, na qual um plano é ligado ao outro não apenas através de uma
indicação de movimento, valores de iluminação, pausa na exposição do
enredo, ou algo semelhante –, mas através de um avanço simultâneo de uma
série de múltiplas linhas, cada qual mantendo um curso de composição
independente e cada qual contribuindo para o curso de composição total da
seqüência (EISENSTEIN apud MANZANO, 2003.p.96).
Recortamos após a teorização de Deleuze e de Eisenstein, que a voz off, nesta
seqüência, remete ao extracampo relativo do filme, e por outro lado as músicas, os sons do
vento, e sons dos cantos dos pássaros encadeiam-se no todo e o todo exterioriza-se nas
imagens. O todo muda ao mesmo tempo, que as imagens se movem.
Nota de tempo nº 6
Estamos no circuito da imagem-movimento. Imagens do tempo no filme. A
imagem se torna legível. O componente sonoro não tem elementos rivais, é
como uma partitura que ele é escrito e lido. A imagem sonora e a imagem
visual se interpenetram. Entre os elementos sonoros, a música é um
95
elemento separável, mas com liberdade para se diferenciar e para se
comunicar com campo e com o extracampo.
A terceira seqüência foi recortada para análise devido a uma outra maneira como a voz
off é utilizada. É válido enfatizar que o cinema moderno utilizou os atos de fala tendendo-os a
se libertarem da imagem visual e ganhando um valor de autonomia: o estilo indireto livre
34
. O
sentido do discurso na seqüência não existe fora do autor e nem de seu personagem. Ele é
uma passagem constante de Bressane a Jerônimo, e vive-versa; o autor se situa no mesmo
nível de seu personagem, e essa relação tem a aparência de um diálogo.
A descrição plano a plano desta seqüência será agora analisada, e a denominamos,
Vozes de Jerônimo.
2.3 Seqüência: Vozes de Jerônimo / 2min50seg / 21’03” a 23’53”/ 5 planos
Plano 01 - Duração 20” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PC- Grande arvore com galhos enormes, secos e
retorcidos sob o céu azul nublado. Figura escura/
fundo claro.
Voz (em off) de Jerônimo, tom normal:
Os ares grossos feridos e feios, a secura e aridez
da paisagem contaminaram o espírito de alguns
monges obssesionados pela penitência deixaram
de educar seus sentidos broncos. são todos
excessivamente ignorantes.
Som ambiente (em off) canto de pássaros e ruídos
de animais.
Plano 2 – Duração 40” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PG. PDC- Cinco monges estão de pé, o vento
sopra suas roupas, o solo possui várias tonalidades
e várias texturas, pedras grandes limitam o espaço
mais ao longe, depressões, um pouco de verde, em
seguida um platô marrom e cinza e negro e mais
ao longe, montes e o céu colorir de azul a borda
Som ambiente (em off), canto de pássaros
Som do uivo do vento
Voz de Jerônimo, tom normal: Bárbaros,
ignorantes inúteis.
Voz de Jerônimo, tom grave:
Jerônimo, você incorreu em erros. O deserto é o
34
Pier Paolo Pasolini introduziu o discurso indireto livre no cinema.
96
superior do quadro.
Jerônimo está entre eles, está imóvel, suas vestes
balouçam ao vento, mas não move os lábios.
mundo do invisível e do sobrenatural, repetição da
vida de Cristo, sobretudo a crucificação. Morrer
para o mundo. No deserto seu pasto é seu
coração. Com seu coração e olhos postos no céu,
você esqueceu-se dos deveres de cortesia e foi
esquivo, impaciente, inflexível e exigente com seus
companheiros. Você deve partir.
Plano 3 - Duração 10” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PC- Grande pedra branca com uma concavidade
na base preenche toda a tela.
Voz (em off) de Jerônimo, tom grave:
Você está desejoso de estudar e conhecer, por
isso, penso em enviá-lo para ser discípulo de
Gregório.
Plano 4 - Duração 27” - Plano fixo
Exterior, dia.
Imagem Som
PM- Jerônimo está em baixo da sombra de uma
grande pedra enrolando um pergaminho.
Voz (em off) de Jerônimo, tom grave:
Gregório é um eloqüente orador. Teólogo
competente e defensor apaixonado da virgindade e
da vida ascética. Vocês são dois temperamentos
fortes para se entenderem. Gregório escreveu a
Apologia da fuga que lhe ensinará muito
Voz (em off) de Jerônimo, tom mais grave:
Viva a sua sombra Jerônimo. A sombra desta
piedosa e douta eloqüência consagrada à
orientação dos pobres.
Plano 5 - Duração 1’13” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP- Trav. lat. para a direita, lento. Inscrições em
uma pedra.
CAM fixa. Jerônimo está sob a sombra de outra
pedra, acomoda escritos e livros, amarra-os
lentamente. Carrega a pilha de livros para o lado,
levanta o corpo e olha para a direita.
Voz (em off) de Jerônimo, mantendo o tom mais
grave:
Faz com que o ato de ver e a coisa vista, o
espectador e o espetáculo, o duvidador e a dúvida
sejam um só. Vemos o mundo peça por peça: o
sol, a lua, a árvore, o animal, mas o todo do qual
são partes resplandecentes é a alma!.
Voz (em off) de Jerônimo, tom normal:
Dai-me sua benção Senhor!.
Silêncio
Som do vento
Som (em off) de canto de pássaros.
97
Mikhail Bakhtin, na terceira parte do livro, Marxismo e filosofia da linguagem,
defende que o discurso indireto livre indica a identificação do narrador com o herói e ao
mesmo tempo conserva a posição autônoma desse narrador, que não se dissolve na atividade
mental do herói. O discurso indireto livre não nos transmite uma impressão passiva através da
enunciação de outrem, e sim, ao contrário, uma orientação ativa; não simplesmente passagem
de primeira pessoa para a terceira, porém acrescenta na enunciação as entoações que entram
em contato com as palavras citadas, interferindo nela (BAKHTIN, 1997).
O filme São Jerônimo foi encenado a partir de textos escritos em estilo direto e
indireto, sendo que alguns tomaram a forma de discurso indireto livre. A voz off se bifurca em
uma seqüência singular do filme, em que o personagem Jerônimo dialoga com duas vozes: a
voz de um recriminando Jerônimo e lhe encaminhando para outros estudos e uma outra voz
materializando a voz de Ralf Waldo Emerson, nesta citação literal:
Viva a sua sombra, Jerônimo. A sombra desta piedosa e douta eloqüência
consagrada à orientação dos pobres faz com que o ato de ver e a coisa vista,
o espectador e o espetáculo, o duvidador e a dúvida sejam um só. Vemos o
mundo, sua presença, mas o todo do qual são partes resplandecentes é a alma
(São Jerônimo, de Júlio Bressane).
35
Com efeito, nós ouvimos o personagem Jerônimo, não o vemos falar, ele varia de
entonação quando se mudam os narradores. A própria voz off se apaga quando o personagem
Jerônimo entra em relação direta com o outro narrador, o estilo indireto deixa suas marcas em
relação direta com um outro narrador, mas de modo que o estilo direto também conserva suas
marcas no estilo indireto. Nada se fixa, vemos as vozes se bifurcarem.
35
Adriano Carvalho Araújo e Souza, em sua dissertação intitulada Devir-deserto no São Jerônimo: poética
tradutória e cartografia da cultura (2005, p.55), afirma que o trecho em questão corresponde a uma fala de
Ralph Waldo Emerson, que viveu no século XIX e que os escritos de Ralph sobre a leitura se alinham com a
orientação de Jerônimo. Júlio Bressane (1997) afirma ainda que esta colagem é como um colapso do tempo,
enfatizando a importância do texto e da leitura.
98
André Parente, no artigo “O discurso indireto livre no cinema” (1996), diz que o
cinema enquanto discurso indireto livre é possível porque produz narrativas que conservam o
mesmo princípio do diálogo, característico do discurso indireto livre literário.
Nesta seqüência Vozes de Jerônimo, ele não está na tela em dois planos. E nos outros
três o vemos, mas não o vemos falar. A imagem sonora mostra uma preponderância sobre a
imagem visual, ao mesmo tempo que a imagem visual adquire independência em relação à
imagem sonora. Esta seqüência de curta duração concentra uma questão muito discutida nos
cinemas da modernidade, a apresentação do falso tanto na imagem sonora como na visual.
Estamos numa região de fronteira, o que vemos é a fenda, o interstício, não o todo, mas a
criação de um tempo não condicionado ao movimento das imagens visuais e sonoras. Um tipo
de discurso indireto livre que liberta o tempo, emancipa o tempo da sucessão de presentes, tira
o tempo dos eixos. O encontro com a fenda rompendo com a imagem-movimento, um
acontecimento de nascimento de um tempo ainda sempre por vir e sempre passado. Não é
Jerônimo, não é Ralf Emerson, não é o ator Everaldo, é Bressane através deles.
Independentemente de Jerônimo estar ou não estar na tela, sua voz é diálogo com
Bressane/autor.
Esta voz off é uma apresentação direta do tempo e passa a valer como um discurso
indireto livre. Uma imagem de tempo. Não mais se trata de ação e reação, nem interação, nem
reflexão, estamos presenciando o nascer de uma lenda.
A entonação de Everaldo é um sonsigno, um signo do falso, ele dirige-se a si mesmo
em terceira pessoa, como também refere-se a si como um outro.
A respeito da peculiaridade da voz de Everaldo Pontes, que interpreta o personagem
Jerônimo, destacamos o apreço de Bressane por esse ator:
[
...] Aquela dicção do Everaldo, com aquele sotaque, uma leitura do texto,
uma coisa extremamente elegante. Eu não poderia ter tido uma coisa que
desse mais sentido àquilo do que a voz do Everaldo. Eu devo o filme a ele, o
filme foi feito em função do Everaldo, do trabalho dele e da paixão que ele
99
teve pelo personagem [...] (BRESSANE, 2003, p.28-29 apud SOUSA, 2005,
p.71).
Nota de tempo nº 7
São Jerônimo tem na força do discurso indireto livre uma apresentação
direta do tempo, através da ruptura do vínculo sensório-motor. Imagens-
tempo quebram a sucessão cronológica, a separação do antes e do depois,
e introduzem um intervalo que dura no próprio momento.
A seqüência seguinte foi escolhida por ser a primeira vez que vemos o personagem
Jerônimo falar, como também, por conter as primeiras imagens visuais de outros personagens
falando. Um longo trecho recortado e comentado quadro a quadro, escolhido por sua
resistência ao texto e ainda por respeito ao próprio texto. Jerônimo estuda e Gregório a
carta do papa Damaso convidando-o para ir a Roma ser seu consultor bíblico.
2.4 Seqüência : Acontecimento / 7min56seg / 23’54” a 31’10”/ 23 planos
Plano 1 - Duração 8” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP- CAM na mão. Trav de Acomp. A CAM
acompanha Jerônimo que anda rapidamente. O
vento balança suas roupas. Jerônimo é enquadrado
à esquerda.
Som (em off): Música (duo violino e violoncelo).
Som de panos ao vento
[A melodia vai crescendo]
O homem das orelhas grandes/ Carnaval dos Animais,
de Saint Saëns
Plano 2 - Duração 35” - Plano seqüência
Exterior, dia.
Imagem Som
PP- CAM na mão. Trav de Acomp. Tecidos
vermelho e marrons e amarelos balançam ao
vento. Passam pela câmera. Vemos Jerônimo de
costas. A CAM tangencia o trajeto de Jerônimo. O
Som (em off): Música (duo violino e violoncelo)
[O diálogo entre os dois instrumentos decresce e cede
lugar ao som do vento]
100
vento sopra com muita força. Jerônimo é
enquadrado à direita.
Som do vento
Som de panos ao vento
Plano 3 – Duração 25” - Plano seqüência
Interior , dia.
Imagem Som
PP- Pan.trav. A CAM se lança abruptamente para
baixo, para o solo esburacado. A CAM pára, não
estamos no solo. Uma parede de pedra texturizada
é o fundo do quadro, e à frente dela está um
monge (Gregório). Corte abrupto.
Som do vento.
Som (em off) de percussão e som ambiente (em
off) de canto de pássaros.
Plano 4 - Duração 9” - Plano fixo
Interior , noite
Imagem Som
PC- Tela negra e no centro uma luz em forma de
vela, cria uma sombra: um homem com um chapéu
pontiagudo e capa comprida carrega alguma coisa
com forma cilíndrica, suas roupas trepidam. Uma
outra sombra passa por ele, é a sombra de um
homem.
Som (em off) de sino
Som do vento
Plano 5 - Duração 9” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PC- Jerônimo em baixo de uma pedra. Sentado, lê
e a seu lado Gregório também lê.
Som do vento
Som ambiente (em off) de canto de pássaros,
ruídos de animais e plantas.
Plano 6 - Duração 5” - Plano fixo
Interior, noite
Imagem Som
PA- Contra-plongée. Gregório entrega uma pluma.
Seu braço se estende e esconde seus lábios. Corte
seco.
Som do vento
Som ambiente (em off) de canto de pássaros,
ruídos de animais e plantas
Gregório: Esta pena caiu do céu
Plano 7 - Duração 7” - Plano fixo
Interior, noite
Imagem Som
PP. Plongée. Aranha no chão. Som do vento
Som ambiente (em off) de canto de pássaros,
ruídos de animais e plantas
Voz (em off) de Gregório: das asas de uma
pomba divina. Fará voar seus escritos.
Plano 8 – Duração 13” - Plano fixo
Interior , noite
Imagem Som
101
PP- Plongée. Jerônimo recebe a pluma. A CAM
está à direita e acima.
Vemos Jerônimo falar.
Voz (em off) de Gregório:
A dor que se escreve ou a dor como se escreve a
dor.
Jerônimo: O meu tormento é comigo, que eu
mesmo sou o meu perigo!
Som do vento
Som (em off) de ruído elétrico
Plano 9 - Duração 20” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PG - Jerônimo e Gregório segura um
manuscrito. Eles estão na sombra de uma grande
pedra como vultos, o vento balança roupas e
papéis. Ao fundo o solo plano se encontra com o
céu azul.
Som do vento
Som (em off) de canto de passarinhos
Diálogo.
Gregório: Orígenes e Dídimo. Vamos tatear duras
paredes, descobrir pequenas janelas por onde
uma escassa luz nos oriente, uma idéia
germinando em terra ingrata como um
interrogador ao porvir, água opaca
Plano 10 - Duração 9” - Plano fixo
Exterior dia
Imagem Som
PP- Jerônimo escreve no papiro, e o papiro está
escorado na rocha. Na rocha vemos inscrições
circulares e traços. O vento balança o papel.
Som do vento
Som ambiente (em off) de canto de pássaros.
Voz (em off) de Gregório:
onde se reflete a maravilha das constelações.
Plano 11 - Duração 9” - Plano fixo
Exterior , noite
Imagem Som
PG- Por do sol Som ambiente (em off) de canto de pássaros
Som do vento
Plano 12 - Duração 26” - Plano fixo
Exterior , dia
Imagem Som
PG- Contra-plongée. Quatro rochas imensas estão
na tela. Em uma delas no alto está Jerônimo.
lendo, estudando, ele está sob um platô, abaixo no
centro de escavação de uma grande pedra e acima
dele a pedra apresenta uma fenda, que com a
incidência de luz cria a forma de uma cruz de
malta. O céu é visto pelo espaço deixado pelas
pedras, ao fundo, muito azul.
Som do vento
Som (em off) de badalar de sino inicia um discurso
musical entre percussão e cordas.
Plano 13 - Duração 15” - Plano fixo
Interior , dia
Imagem Som
102
PM- Caverna. Pouca luz, de um lado o sol ilumina
a parede grossa, texturizada e alguns papéis, a
sombra preenche 2/3 do quadro.
Idem ao plano 12
[Acordes tensos e pulsáteis]
Plano 14 - Duração 26” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PG- PDC. A CAM está à esquerda e de frente.
Paisagem seca e plana. Céu e terra se encontram
no horizonte. Um homem caminha em diagonal
em direção à borda esquerda do quadro e uma
grande pedra o encobre.
Idem ao plano anterior
Som (em off) de canto de passarinhos
Plano 15 - Duração 10” - Plano fixo
Exterior , dia
Imagem Som
PC- Gregório e Jerônimo conversam sentados num
banco de pedra.
Som (em off) de canto de passarinhos
Gregório: O Papa Damaso convida-o para ir a
Roma ser seu secretário e seu consultor bíblico.
Plano 16 - Duração 13” - Plano fixo
Exterior , dia
Imagem Som
PG- PDC- Plongée. Paisagem de pedra e pequenos
vegetais num declive acentuado desenham um
mapa particular, as pedras são brancas e traçam
um reticulado iluminado pelo sol.
Idem ao plano 14
Som (em off) de canto de pássaros
[Discurso musical :cordas e percussão (piano)]
Plano 17 - Duração 10” - Plano fixo
Exterior , dia
Imagem Som
PM - Jerônimo parado no alto de um morro, o céu
escuro está dividido no quadro por uma linha de
pedras, oblíqua bem nítida em 1/3. Abaixo das
pedras 2/3 de solo árido e Jerônimo segura um rolo
de pergaminho. O vento faz trepidar suas roupas e
seus cabelos.
Idem ao plano anterior
[Discurso musical: passagem para forte]
Plano 18 - Duração 27” - Plano seqüência
Exterior , noite
Imagem Som
PP- Pan-trav Acom. Jerônimo anda sozinho da
esquerda para a direita no sentido do vento. A
paisagem divide o quadro: 2/3 de céu ao anoitecer
e 1/3 de solo, sombra dura, onde o negro
predomina.
.
Idem ao plano anterior
Som ambiente (em off) de canto de pássaros, de
gritos e de guizos.
[Reverberam como se estivessem num lugar vazio e
imenso]
103
Plano 19 - Duração 17” - Plano fixo
Exterior , noite
Imagem Som
PP- Trav Acom. Jerônimo pára de costas. A
paisagem da noite chegando se derrama. O vento
balança as vestes de Jerônimo.
Idem ao plano anterior
Plano 20 – Duração 56” - Plano fixo
Exterior, noite
Imagem Som
PC- PDC. Os vultos de Gregório e Jerônimo estão
de ao vento, e ao fundo o céu tinge-se de tons
amarelos, vermelhos e negros. O sol está baixo,
entre as pernas de Gregório.
O discurso musical do plano 19 continua como
pano de fundo do diálogo.
Gregório: A sociedade cristã está desunida e
revolta, são divergências dogmáticas. Ambrósio
não com bons olhos a excessiva independência
dos bispos orientais. No concílio de
Constantinopla depois da morte de Melazo
indicaram a mim para Papa e os bispos orientais
elegeram o arrepio. Um tal de Flaviano, com isso
racharam a unidade da igreja. Ambrósio e
Damaso reagiram. Damaso chegou a ser violento.
Este concílio que Damaso lhe convida para
participar será para resolver esta discórdia.
Jerônimo você tem que ir é além de sua vontade.
Plano 21 - Duração 25” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PC- Sombras de Jerônimo e Gregório no chão, à
esquerda do quadro, suas vestes tremulam. Em
seguida, a sombra de um jumento puxado por um
homem passa por eles.
O discurso musical pára
Som do vento
Som (em off) de canto de pássaros
Gregório: Jerônimo, da sua boca sai a ligação que
aproxima e une docemente as almas. Voz que se
empenha em reformar os costumes e consolar os
aflitos.
Jerônimo: Adeus, grande mestre santo.
Plano 22 - Duração 55” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PG- CAM frontal. Jerônimo se despede de
Gregório, as costas e caminha. O vento revolta
as roupas dos dois. O terreno onde se esta
despedida é um terreno acidentado, sulcado e seco
apresentando uma grande fenda profunda no
centro do quadro.
Som do vento
Som (em off) de canto de pássaros
104
Plano 23 - Duração 25” - Plano fixo
Exterior, dia
Imagem Som
PG - CAM lat. Os três: Jerônimo, o jumento e um
homem cortam a tela da direita para a esquerda. O
vento balança os trajes dos viajantes.
Som do vento
Som (em off) de canto de pássaros
Bressane é um cineasta brasileiro da modernidade do cinema. São Jerônimo, um filme
moderno em que os atos de fala não são dependentes da imagem visual, eles se tornam
imagens sonoras. Assim como o ruído do vento, as músicas, o canto dos pássaros, o badalar
dos sinos ganha autonomia cinematográfica, os atos de fala também. Cinema de composição.
O ponto de partida de Júlio Bressane é São Jerônimo, o Santo Doutor, um dos mais
importantes escritores latinos ocidentais, tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata, uma
monumental obra, versão da Bíblia Latina, feita diretamente dos originais em grego e em
hebraico, centro de onde saíram todas as traduções da Bíblia em línguas românicas.
São Jerônimo cria e inicia a literatura dos padres do deserto nos finais do século IV,
ditando incansavelmente para os copistas. Seu nome é ligado no Brasil ao Santo do raio, do
trovão, da justiça e do fogo. Costuma-se dizer que São Jerônimo corresponde ao orixá
Xangô
36
, castiga os mentirosos, os ladrões e malfeitores.
Bressane estudou os textos de São Jerônimo por onze anos, o peso da documentação
a respeito de São Jerônimo é um dos pontos onde se agita o filme de Bressane, os textos de
Jerônimo estão nos atos de fala do filme como vozes, se remetendo a si mesmas, rompendo o
esquema sensório-motor afetando a imagem visual. Afastadas da imagem visual, as falas
(re)fundam o texto do santo doutor desconhecido no ocidente. Da pedra à câmera. Da palavra
aos sentidos.
36
Adriano Carvalho Araújo e Sousa (2005, p. 95) em informação concedida por Marlyse Meyer em entrevista , a
ensaísta ressalta aspectos da formação da literatura brasileira, a relação entre popular (massas) e erudito, informa
que São Jerônimo possui uma face bem brasileira, porque sincretiza com Xan na religião afro-brasileira.
105
Não há mais voz off, em nenhum sentido. O falado e conjunto sonoro conquistaram
autonomia, as imagens visuais também. A imagem sonora nasce no filme de sua ruptura com
a visual. O sonoro e o visual não são nem mesmo dois componentes autônomos, são duas
imagens, uma visual e uma sonora, com uma falha, corte entre elas.
Recortamos deste Movimento um plano, o 12. Ele tem duração de 26 segundos e não
facilita o desenvolvimento da seqüência e nem do filme. O quadro é uma composição de
quatro pedras imensas, luz e sombra desenham um cenário articulado em camadas geológicas
de pedaços de rochas que denunciam abstrações de mundos que se passaram por ali, como
também dissimulam faces, lacunas, do que se esconde nele.
O olho é impedido de ver além das pedras, elas preenchem todo o quadro, mas deixam
entre elas um pequeno espaço por onde o céu é visto ao fundo. Sobre uma delas, no alto, está
Jerônimo, lendo, estudando sob um platô, abaixo no centro de escavação de uma grande
pedra, e acima dele a pedra apresenta uma fenda, que com a incidência de luz cria a forma de
uma cruz de malta. Os elementos visuais estão unidos e disjuntos. A rocha não se deixa tocar
pelas palavras, nem por qualquer som e nem pela câmera.
Paisagem imóvel, como um cartão postal audiovisual, o movimento é sentido pela
presença do vento a movimentar as folhas dos escritos. Jerônimo está com uma das mãos na
(Folha de São Paulo, São Paulo, 02 de agosto, 1998. Mais! Entrevista a Maurício Santana. As mil faces do
romance).
106
cabeça. O trinado dos pássaros, o som dos sinos e o discurso musical, percussão e cordas são
ouvidos, estão nesse cartão não mais como vozes em off, porque não interessa mais se eles
vão aparecer ou não. Eles entram no filme e o perturbam, ao mesmo tempo que as imagens
visuais não os prendem, mesmo nesta armadilha de um espaço de pedras, eles são sons de
vários lados.
A imagem visual é enquadrada de baixo para cima, mas poderia ter sido enquadrada de
outros muitos diferentes pontos de vista, estamos num espaço puro. As imagens visuais e
sonoras não mais implicam ou explicam a imagem do deserto ou do sertão.
Nota de tempo nº 8
O ato sonoro inventará música e silêncio dos sons audíveis, não mais há
extracampo, o ato sonoro livrou-se de sua dependência ao visual, conquista
um enquadramento independente da imagem visual, tende ao puro som. As
imagens visuais renunciam à exterioridade, separam-se do mundo. O filme
das vozes e o filme do visual.
3. Segundo Movimento: Roma de Bressane / 33min / 31’10”a 1h 4’/ 79 planos
Jerônimo tem que partir, tem que sair do deserto, ir a Roma e ser consultor bíblico do
Papa Damaso. No decorrer deste movimento aparecem os personagens: Papa Damaso,
Marcela, e oito mulheres estudiosas do texto bíblico, alguns monges, Jerônimo, o leão e a
caveira. Todos participam da trama romana entremeada de diálogos e leituras de cartas.
107
Jerônimo, Damaso e as mulheres estudiosas estão à procura da verdade da palavra
tradutória que poderá unir a igreja católica, este é o principal aspecto deste segmento. Os
signos dessa procura se apresentam sob diversos pontos de vista.
O ponto de partida para pensarmos esses signos são as qualidades das imagens
sonoras e visuais que eles contêm, mas tomadas em suas variações, em “fusões mútuas”
(DELEUZE, 1987, p.107). O uivo instável do vento cede lugar para o som dos trinados dos
pássaros, a luz em sua escala de gradação é agora a sombra, o grande desejo sexual é também
o voto de castidade, os burburinhos a respeito do trabalho de Jerônimo estudando com as
jovens virgens é inseparável dos grandes ruídos, a solidão de Jerônimo é povoada por
pensamentos, idéias e criações, a vida freqüenta a morte. Signos violentos, uma série de
signos; em instável oposição .
O filme São Jerônimo tem por sujeito o tempo, diz respeito a fragmentos que não
podem se (re)ajustar. Uma composição de partes, não de um quebra-cabeças a apresentar
uma totalidade.
Em Roma de Bressane o descreveremos as imagens visuais e sim os atos sonoros,
criamos um encontro com as palavras como sons. Realizamos uma cesura em nossa análise
fílmica, transcrevendo os atos de fala do filme para indagarmos como os personagens e o
diretor roubaram os textos de Jerônimo. Acreditamos que uma visão palavra a palavra nos
ajudará na análise.
Jerônimo, como sabemos, ditava incansavelmente para os escribas, seu texto chega até
nós com um ritmo, como um tempo de resistência da palavra e do ato de fala. Bressane
arranca do texto de Jerônimo a fala do ator Everaldo Pontes. O ato de fala também é música.
Qual a natureza desses atos? São especiais porque evocam a própria voz, o comentário, a
leitura, o estudo, e não a interação entre o que se o que se ouve. Dividimos portanto em
108
duas colunas, uma das imagens visuais congeladas e a outra das vozes (atos de fala, ruídos e
música).
Vamos à leitura.
Plano Duração Descrição sonora
01 - 36”
Exterior, dia.
A CAM verticalmente desce do céu às árvores, a um grupo de mulheres, monges,
Damaso e Jerônimo.
Som (em off) de canto de pássaros
02 - 46”
Exterior, dia.
Todos estão parados e calados, inclusive Damaso.
Som (em off ) de canto de pássaros.
Voz (em off) de Damaso, apresenta Jerônimo: O amante das Belas letras. O sábio
tradutor. O monge do deserto e do martírio, Jerônimo, de quem se fala muito e
bem. Mas,sabemos de seu mau humor, muitas vezes violento, mordaz, incendiário.
03 - 28” -
Interior, noite.
Conversam Jerônimo e Damaso. Damaso fala, mas não olha para Jerônimo.
Som (em off) de canto de pássaros
Damaso: Todos sabemos de seu grande esforço, sua dedicação pelo texto sagrado.
Gregório me fez saber de seus enormes avanços na decifração e tradução de
passagens obscuras das várias versões existentes. Isso é muito louvável, mais do
que isso penso ser o seu trabalho imprescindível. Quanto a isso estamos todos de
acordo.
04 - 23”
Interior, dia.
A conversa continua, eles não se olham.
Som em off, de canto de pássaros.Canto do pássaro da abertura do filme.
Damaso: Mas você, melhor do que ninguém sabe dos obstáculos que nos inibem,
Você querido Jerônimo precisa conhecer alguns escritos, conversar com outros
irmãos, atentar para o que foi feito e dedicar-se as leituras de outras línguas,
juntar os textos compará-los.
109
05 - 1’33"
Interior, pouca terit,peca941(p)10.5770340 0 .577633 692.996 5870.67 -309q4bbbbbé1496 5870.67 I70.67 480I70.640 0 .57796.52 Tm[(1)-819(e)-1.9700 bé149 692.996é149 692.994872(’)-4.1996é149 692.9g
110
11 - 20”
Interior, noite.
A música pára.
Jerônimo fala às nove mulheres, estão estáticos, em.uma sala ampla. O som
reverbera.
Jerônimo: Eu não enumerarei os aborrecimentos do casamento, os seios inchados,
o vagido da criança, a irritação da vida doméstica com seus encontros
inoportunos. Depois de toda a felicidade que imaginamos.
12 - 4”
Interior, noite.
Sombras das mulheres na parede.
Som (em off) de zumbidos.
Voz (em off)de Jerônimo: Vem a morte. A devastação.
13 - 44”
Interior, noite.
Jerônimo discursa com veemência
Jerônimo: Não caminho tranqüilo entre as serpentes e escorpiões. Uma carne
frágil e que logo se tornará cinza deverá sozinha lutar contra muitos adversários.
O nosso inimigo o diabo ronda como um leão rugindo que procura sua presa para
devorá-la. Vou exprimir-me com audácia. Deus que tudo pode, nada pode contra a
ruína da virgindade. Ele pode livrá-la da pena de seu pecado. Não pode coroá-la
depois do defloramento.
14 - 3”
Interior, noite.
Repetem-se as sombras na parede.
Som (em off) de zumbidos
Voz (em off) de Jerônimo: A virgindade pode perder-se simplesmente
15 - 17”
Interior, noite.
Jerônimo e as mulheres continuam na sala.
Som (em off), de ruídos, de zumbidos.
Jerônimo: pelo pensamento. O que fazer? O canto da sereia é atraente, mas
mortal. As núpcias preenchem a terra, a virgindade.
Jerônimo interrompe a pregação e inicia um monólogo interior: Paraíso. Eva no
paraíso era virgem. Paraíso.
16 - 41”
Interior, noite.
Jerônimo está sozinho na tela e fala.
Jerônimo: Paraíso da luz. O deserto é meu paraíso. Branca e serena abstração.
Vertigem de eternidade. Deserto onde mastigam as sementes amargas que dão
frutos doces. Longe, longe das pegadas humanas, contra-mundo, antinatureza.
Adão antes da queda. Paraíso celeste e terrestre. Deserto adorado.
111
17 – 1’41”
Interior, noite.
Jerônimo continua a discursar, enquanto fala duas mulheres caem e duas se
agacham como se sentissem dores.
Jerônimo: Os animais que Noé introduziu em sua arca aos pares são impuros. O
número ímpar é que é puro. O apóstolo nos ordena a rezar a rezar sem cessar. Os
deveres do casamento nos obrigam a interrompermos a orações. Rezamos o tempo
todo e permanecemos virgens. Interrompemos as orações para atender as
necessidades e obrigações do casamento. Nenhum vaso de ouro ou de prata é tão
valioso como um corpo virginal. A virgem deve fugir do vinho como de um veneno.
Para que colocar lenha em um corpo que está fervendo? Deus não proíbe o
matrimônio. Proibi-lo, seria como se quisesse que os homens vivessem como os
anjos. O que devemos fazer não é magnificar a castidade, mas vivê-la, carne sem
carne. Evitem a avareza. A raiz de todos os males é a avareza.
Inicia-se um diálogo entre Jerônimo, o leão, a caveira e a CAM.
18 - 5”
A caveira está em cima dos escritos de Jerônimo.
Sons (em off) de zumbidos de moscas
19 - 23”
Interior, noite.Tela negra, em seguida a câmera percorre o corpo do leão. O leão
ruge e se mexe incomodado.
Sons (em off), de zumbidos, e discurso musical de cordas friccionadas e metais
(música’ Liquid Dreams)
20 - 9”
Interior, noite.
Jerônimo está em uma biblioteca e segura um rolo de pergaminho.
Sons do leão rugindo
Sons (em off ) zumbidos, desenvolvimento da música Liquid Dreams e de canto de
pássaros.
21 - 4”
Interior, noite.
Jerônimo está sentado em cima de uma mesa e lê em silêncio.
Som (em off), do leão rugindo.
22 - 4”
Interior, noite.
O leão se mexe, inquieto.
Som: rosnados do leão
23 - 4”
Interior, noite.
O leão continua inquieto.
Som: rosnados do leão
112
24 - 8”
Interior, noite.
O leão anda e rosna inquieto.
Som: rosnados do leão
25 - 16”
Interior, noite.
ACAM se aproxima de Jerônimo como a dar um “bote”, Jerônimo olha com ar
ameaçador.
Som (em off) de rosnado de leão.
26 - 5”
Interior, noite. O leão está em pé, em cima da mesa de Jerônimo.
Som: rosnado do leão, canto de pássaros e de água pingando.
27 - 23”
Exterior, dia.
Lugar úmido. Monges lêem em silêncio.
Som (em off) de rosnado do leão, água caindo e trinado de pássaros.
28 - 43”
Exterior, dia.
Diálogo entre Damaso e Jerônimo em uma gruta ou caverna.
Som (em off), de canto de pássaros.
Damaso: Jerônimo, vejo que você progride num estudo mais refinado e sistemático
das escrituras. Finalmente, você está em trânsito por um textos e obras de difícil
acesso. É necessário uma religião nova, um texto sólido traduzido dos originais
em que foram escritos por Deus. Mesmo que a princípio isso cause um certo
estranhamento. A tarefa é monumental, mas o homem para realizá-la, a Igreja
possui, é você, Jerônimo.
29 - 17”
Exterior, dia.
Jerônimo está sob a copa de uma grande árvore. Lugar úmido.
Som (em off) de canto de pássaros e de água pingando.
Jerônimo: Você me força a uma obra nova, a de analisar e decidir que exemplar
das escrituras entre todas difundidas pelo mundo se ajusta melhor à verdade do
texto grego e hebraico.
30 - 28”
Exterior, dia.
Muitas árvores e suas copas verdes repletas de folham balançam ao vento.
Som (em off) de canto de pássaros e de água escorrendo.
Damaso: Não podemos nos manter. O cristianismo não triunfará sem um texto
sólido e verdadeiro. Esses ricos e desesperados aristocratas romanos consideram
as nossas diversas versões do texto sagrado, um roto tecido de fábulas orientais.
Não poderemos nos manter firmes sobre um chão movediço.
113
31 - 16”
Exterior, dia.
Árvores imensas ao fundo, Jerônimo e Damaso caminham atravessando da
esquerda para a direita.
Som (em off) de canto de pássaros
Damaso (em off): Deus lhe ilumine Jerônimo. Qual é a origem da palavra
Hosana?
32 - 44”
Exterior, dia.
Os dois continuam a conversar, agora num lugar fechado de pedras e árvores,
como um jardim natural.
Som (em off ) de canto de pássaros.
Jerônimo: Eis uma dificuldade não notada nas diversas traduções. Hilário em seus
comentários sobre Mateus diz: “Hosana, em hebraico significa redenção da casa
de Davi”. Deus que me perdoe, mas redenção em hebraico significa fedutti e casa
se diz bet. Quanto a Davi, esse nome não consta na palavra. Isto parece evidente a
todos, não? Outros dizem que Hosana significa glória, mas glória se diz chagode.
33 - 10”
Interior, noite.
A caveira e vista novamente sob os papéis.
Som em off de canto de pássaros.
Jerônimo (em off)Outros dizem ainda que quer dizer graça, mas graça se traduz
por todahuana. Perdoai-me,
34 - 16”
Interior, noite.
O leão é visto parado.
Som (em off ) de canto de pássaros.
Jerônimo(em off): Sei que é um esforço penoso, mas necessário.
Damaso (em off): Sim, entendo perfeitamente. Eis aí a evidência da necessidade da
sua grande missão. Continue, Jerônimo.
35 - 43”
Interior, dia.
Os dois continuam a conversar nesta espécie de jardim, esplêndido em tonalidades
de luz e de texturas.
Som (em off ) de canto de pássaros e ruídos de água escorrendo em pedras.
Jerônimo: Vamos recorrer à fonte de onde os evangelistas tiraram .estas minúcias.
Esta dissertação aviscossa certamente fadiga, vou tentar uma explicação minha e
abreviada. A palavra Hosana por ser intraduzível para o grego como aleluia e
amém, foi traduzida pelo próprio hebreu e diz Hosana. São particularidades
idiomáticas que não tem tradução, daí penso ser necessário sempre a criação de
neologismos. Palavras novas, mesmo que isso a princípio dificulte a leitura.
36 - 45”
Exterior, dia.
O diálogo continua, eles estão agora aos pés de uma escada de pedra em forma
circular.
Som (em off) de canto de pássaros e ruídos de água escorrendo
Jerônimo: Mateus,que escreveu em hebraico, diz “Hosana barrama”, isto é,
“Hosana nas alturas”. As questões são difíceis, mas é mais honrado penar um
pouco para alcançarmos a verdade e adaptar o nosso ouvido a uma língua que nos
é estranha do que aceitar uma versão truncada de um idioma que não está em
questão. O cristianismo ganha e muito com os elementos da literatura secular.
Não devemos servir a Deus desastradamente, por ignorância das belas-letras.
37 - 7’
Exterior, dia.
Damaso fala.
Som (em off) de canto de pássaros.
Damaso: Uma grande e nova época, uma era gloriosa que se formará para todos
os homens.
114
Os ouvidos de Roma...
38 - 9”
Exterior, dia.
Escultura em pedra de uma águia cinza.
Som (em off) de pássaros, trinados de diversos pássaros.
39 - 33”
Interior, noite.
Som ambiente de crepitar de vela e trinados de pássaros
A sombra de Jerônimo é vista na parede falando às nove mulheres.
Voz de Jerônimo: Eu, por modéstia afastava os meus olhos destas nobres
mulheres, mas Paula me fazia questões nem sempre oportunas. Para superar o
meu recato e meu nome, era muito estimado, quando se tratava de estudos do texto
bíblico. Não falavam de outro assunto que não fosse perguntas sobre alguns
pontos obscuros para elas. Às vezes, não satisfeitas com minhas respostas,
40 - 24”
Interior, noite.
A silhueta de um crânio corre sobre um pergaminho, em seguida o pergaminho
puxado para cima e deixa ver o crânio.
Voz (em off) de Jerônimo: insistiam cm outras perguntas, não apenas para
discutir, mas com desejos de encontrar soluções e objeções que lhes ocorriam.
Encontrei neste ciclo sensibilidades que perceberam a necessidade de um imenso
esforço intelectual concernente à escritura sagrada.
41 - 17”
Exterior, noite.
Damaso e Jerônimo conversam no jardim.
Sons (em off) de água corrente e de trinados de pássaros.
Damaso: Semeará a terra inteira, sagradas palavras recolhidas que ecoarão pelos
próximos e muitos séculos. Verbo de onde sairá a nossa humanidade. Luz sensível
e adorável que brilhará como sorriso de uma aurora eterna.
42 - 23”
Exterior, dia.
Jerônimo e Damaso estão andando, Damaso à frente e Jerônimo atrás.
Sons (em off) de pássaros.
Damaso: Língua mãe de todas as línguas, que respira o aroma paradisíaco de um
milagre, de um amanhecer, de um abrir de rosa, cuja musa é o amor. Fios
translúcidos que pendem de uma abobada, como os cabelos de um anjo.
43 - 46”
Exterior, dia.
Os dois estão agora em um outro lugar, pedras de vários tamanhos calçam o solo,
sombras de árvores e umidade delimitam o ambiente.
Sons (em off) de trinado de pássaros entrecortam os atos de fala de Damaso.
Repetição dos trinados de pássaros.
Damaso: Jerônimo, existem velhas vozes vazias e vingativas, que vivem nestas
vielas viscosas dessa vila vil. Imunda cidade, onde canta a canalha
contemporânea, este teu trabalho sagrado com as virgens, a formação religiosa, o
educador de almas, olhos postos à santificação, esse ambiente estudioso que você
criou, nem assim a infâmia se inibe, ou se intimida. A infâmia sai em cortejo com
músicas pelas ruas, ruas da mentira e do mau.
44 - 8”
Exterior, dia.
Damaso: Me perguntam porque você Jerônimo prega para as mulheres’ “Não
homens sensíveis em Roma”?
Após falar, Damaso mexe a cabeça para a esquerda.
115
45 - 2”
Interior, noite.
O leão mexe a cabeça (mesmo movimento de Damaso)
Silêncio.
46 - 57”
Exterior, dia.
Jerônimo fala com violência.
Sons (em off) de trinados de pássaros.
Jerônimo: Mulheres santas. Platão nos apresenta Aspásia em discussão; Safo se
correspondia com Píndaro e Alceu’ Temista dissertava filosofia entre os grandes
sábios da Grécia; uma multidão de romanas veneravam e veneram Cornélia, a
mãe dos Gracos, isto é nossa mãe. Poderei, ainda lembrar, a filha de Catão,
esposa de Brutus. Implantar o ideal monástico em alguém é lutar com árduos e
tenazes esforços. Moralistas mundanos! Joviniano é escravo da luxúria. Epicuro
dos cristãos, cachorro que comeu o próprio vômito. O padre Vigilâncio, eu o
chamo de Dormitâncio. Deus pode tudo menos consertar um vaso quebrado.
47 - 8”
Exterior, dia.
Damaso: Sem misericórdia, contra seus adversários, mas isso é um descuido!
Os atos de fala criam acontecimentos atravessados pelas imagens visuais. As
trajetórias das palavras e das imagens visuais não se encaixam, às vezes se cruzam, outras
vezes nem se tocam. O que esse vaivém cria no filme? Uma sensação materializada de
distanciamento entre o ato de fala e a imagem visual. Damaso e Jerônimo falam como se
ouvissem suas próprias palavras, eles não reagem a elas, elas não causam emoções nos
personagens e nem em nós espectadores. Jerônimo fala às mulheres, eles estão no mesmo
espaço visual, mas distanciados, como sombras de onde elas foram retiradas.
Os atos de fala são contínuos e descontínuos, Damaso e Jerônimo, Jerônimo e as
mulheres, são também silêncios de palavras entre Jerônimo e ele mesmo cedendo lugar aos
rugidos do leão e aos zumbidos das moscas na materialidade da caveira. Há algo entre eles de
indiscernível, optamos por indicar som em off o que é emitido por algo que está fora do
campo da imagem visual, ou seja um som pertencente ao extracampo. Entretanto, é preciso
dizer que nesta seqüência os atos de fala são em todos som in. Em Roma de Bressane não
extracampo, os atos sonoros são um filme e as imagens visuais são outro filme, e, que se
116
atravessam Ao tentarmos preencher as imagens visuais com os atos de fala, o que daria a
perceber seriam as fissuras entre eles.
Roma é um lugar de fabulação, um dos lugares de criação do filme São Jerônimo. Os
atos de fala fundam um tempo, uma imagem de tempo de uma Roma de subterrâneas
armadilhas, mentiras e artimanhas pelo poder, imagem de tempo de grandes temáticas cristãs
através da viscosidade, umidade e impenetrabilidade dos espaços visuais do filme. Não
verdades sobre Roma, sobre o cristianismo, sobre São Jerônimo, ou sobre o todo do filme,
imagens de tempo do cinema fabulando sobre São Jerônimo, entre o peso da documentação a
respeito do santo e o filme sendo feito, imagem de tempo de Roma de Bressane.
Um pouco de silêncio se faz necessário. Destacamos um trecho deste segmento, um
trecho muito belo, um pequeno fragmento entre tantas palavras. Os planos deste trecho serão
analisados um a um, separados e juntos. Descreveremos as imagens visuais e sonoras: a
seqüência, St. Jerome, de Caravaggio (1607 - Óleo sobre tela), e o adágio da Sinfonia nº 2, de
Schumann.
37
Uma frase cinema-pintura-música de aproximadamente um minuto de duração.
Expusemos esta imagem no Capítulo I, quando nos referíamos aos inúmeros quadros vivos,
ópticos e sonoros apresentados no filme; imagens especulares da rica iconografia a respeito de
São Jerônimo. E agora a repetimos, diferentemente, nos referindo a um outro sentido desta
imagem. Imagem que cria afetos, talvez como o vento inventa o filme de Bressane. E ainda
um outro sentido, provocando gestar um entre-tempo nesta dissertação, entre sua escrita e
leitura.
Caravaggio, Schumann e Bressane nos ajudaram a criar este meandro. Este rodeio se
fez necessário. Arrastamos fragmentos, cada um se dirigindo a um conjunto diferente, e
37
Depoimento de Júlio Bressane a escolha de Schumann, para esta seqüência: “... Schumann... para mim,
contém a sombra de Schumann, o adágio espressivo da Sinfonia número dois, os acordes gélidos do parto e da
morte. A visão da eternidade como uma geleira com nervos de aço” (BRESSANE, 1996, p. 44 apud ARAÚJO,
2005, p.72).
117
assim, não remetendo a conjunto nenhum ou, quem sabe, remetendo à técnica do filme e a
apresentação do tempo no filme São Jerônimo
38
.
Plano 48 – ( 49’44” – 49’49”). Plano fixo
Interior , noite.- Duração 5”
Imagem Som
PG-PDC. Um corredor apresentando lateralmente
diversas portas e uma porta fechada ao fundo. De
uma das portas laterais, o leão atravessa da direita
para a esquerda
.
Som (em off): Música: Sinfonia nº 2, de Schumann
(adágio).
Plano 49 - (49’49” – 50’36”) Plano fixo
Interior , noite – Duração 47”
Imagem Som
PM- Jerônimo sentado escreve com uma pena em
um grosso livro. As gradações de cores vão do
118
Sensação congelada, de e entre dois planos fixos e um plano seqüência de
aproximadamente 1 minuto de duração. Uma cena para ser contemplada. Envolvimento de
uma pena, livros, Jerônimo a escrever, pano vermelho e pano branco, volumes na horizontal
direita e esquerda se envolvem e se tornam mundo. Um pouco de tempo em estado puro,
tempo do que não muda, não uma fotografia ou reprodução do quadro de Caravaggio. Se
difere dele pela duração do que permanece na sucessão de planos mutantes. Uma imagem que
torna sensível o tempo no filme São Jerônimo.
Retornemos às palavras.
Plano Duração Descrição sonora - Atos de fala
51 - 1’06”
Interior, noite.
Jerônimo à direta do quadro em primeiro plano, no mesmo lugar ocupado pelo leão
do plano anterior, fala às mulheres. Elas lêem.
Jerônimo: Escolhendo a escritura sagrada. Escolhemos tudo. Vejo nas traduções e
versões existentes da escritura sagrada, sobretudo as latinas, arrepiantes erros de
linguagem, imundas imperfeições nas variantes. Pouco a pouco veremos essas
insuficiências dos livros canônicos desfigurados por grosseiras traduções.
Sofridamente iniciaremos o conhecimento do texto original e distinguiremos a
beleza nova desorientada por tantos barbarismos. Devemos pensar antes de tudo
em inverter a idéia, o sentido, mais do que as palavras. Traduzir do hebraico
palavra a palavra como fez Áquila é deplorável. É preciso respeitar o caráter
próprio de cada língua e visar na língua traduzida uma certa elegância e
harmonia. A eufonia preconizada fortemente pelos grandes críticos de Alexandria.
52 - 43”
Interior, noite.
As mulheres estudam.
Jerônimo: Repudiemos altamente a cacozélia, o zelo errado da literalidade que
acaba por desembocar em cacofonias absurdas e linguagem ruim. A tradução deve
ser compreendia por todos, pelos mais simples, sem perder de vista a elegância
latina. O Oriente está mais equipado com suas diversas traduções gregas dos
escritos sagrados. Porque não dotar o mundo latino de uma tradução correta e
fiel? O trabalho é mortificador, longo, mas vivificador. Um sacrifício delicioso.
53 - 8”
Exterior, dia.
Beiral de uma construção arquitetônica, mostrada de baixo para cima.
Sons (em off) de trinados de muitos pássaros.
54 - 10”
Exterior, dia.
Ângulos vivos dede beirais, de baixo para cima (plongée).
Sons (em off) de trinados de muitos pássaros e o som do canto do pássaro da
abertura de São Jerônimo.
119
55 - 17”
Exterior, dia.
Outro ângulo vivo, triangular de um outro beiral., de baixo para cima (plongée).
Sons (em off) de trinados de muitos pássaros e o canto do pássaro da abertura de
São Jerônimo e chibatadas.
Som (em off) de tosse
56 - 1’ 11”
Exterior, dia.
Damaso: Você já deve ter notado Jerônimo, que vivemos uma cidade de ciladas,
ciladas executadas na noite negra da infâmia. Flor enferma, leprosa, envenenada.
Os que mandam em Roma pela primeira vez sentem o perigo evidente. O mundo
porcão que desaba e nós colocamos as primeiras pedras rijas na construção de um
novo mundo. O nosso texto sagrado latino consagrará e dará existência a toda
humanidade.
Som (em off) de trinados de pássaros
57 - 7”
Exterior, dia.
O grosso caule de uma árvore preenche quase toda a tela. O lugar é úmido. O
caule apresenta um entalhe profundo.
Sons (em off) de tosse, escarro.
58 - 7”
Exterior, dia.
Plano próximo do mesmo caule. Uma grande fenda está no centro da tela.
Som: Idem ao plano anterior
59 - 14”
Interior, dia.
Jerônimo e Damaso estão numa caverna.
Sons (em off) de água corrente , tosse, escarro e respiração arfante.
60 - 9”
Exterior, dia.
Grande raiz de uma árvore cobre a tela. Lugar úmido com pouca luz.
Sons (em off) de água corrente , tosse, escarro e respiração arfante.
61 - 15”
Exterior, dia.
Caule de uma grande árvore.
Sons (em off) de água corrente, escarro, tosse, pássaros.
62 - 18
Interior, dia.
Água escoa em uma tina repleta de líquido
Som de água caindo
63 - 26”
Interior, noite.
Jerônimo recebe a notícia da morte do papa Damaso. O leão espreita.
Som (em off): música Liquid Dreams
64 - 14”
Interior, noite.
O rosto de Jerônimo preenche toda a tela. Os olhos estão lacrimejantes.
Som: música Liquid Dreams (em desenvolvimento)
120
65 - 13”
Interior, noite.
O leão se debate, anda, rola, ataca com patadas, vira para a esquerda e para a
direita.
Som (em off ): música Liquid Dreams (em desenvolvimento)
66 - 3”
Interior, noite.
O leão se debate
67 - 4”
Interior, noite.
Crânio em cima de folha de pergaminho gira 180º
Som (em off ): música Liquid Dreams (em desenvolvimento)
68 - 29”
Reflexo de Jerônimo na água
Som (em off): música Liquid Dreams (em desenvolvimento), som de bigorna e de
pássaros.
69 - 25”
Mulheres velam o corpo do Papa
Som (em off) de bigorna, pássaros, animais da noite.
70 - 4”
Interior, noite.
O leão atravessa o corredor novamente.
71 - 1’ 47”
Interior, dia.
As nove mulheres estão em pé não se olham. Todas olham para frente falam
pausadamente e parecem hipnotizadas.
Mulher 1: Monge do deserto com os profetas sempre às mãos. Da seda ao silício.
Da riqueza ao trapo. Vestir os dois. Alimentar quem está com fome. Consolar os
doentes. O miserável não tem como solicitar. Quem não tem como solicitar,
solicita com mais insistência.
Mulher 2: Por que – o- i men so - mau - es tar. O - gran de - trans tor no - cau
sa do - pe la - ado ção - de -nos sos - bi tos - mo nás ticos, por quê? por quê?
É- a - nos sa - con de na ção - aos - pri vi lé gi o s- da - ri que za -e - do- po der.
Mulher 3: A versão da escravidão, recusa ao banho, a mesa lauta, aos perfumes,
às futilidades.
Mulher 1: Atenção e vista. Primeiro atenção e depois vista.
Mulher 2: Ver - sem - atenção - é - ver - e - não - ver.Do - trapo-ao-je jum- são-
as-ar mas. Pri me iro - o- je jum- de po is- o - tra po. Pri me iro- o - que- não-se -
vê-de po is- o - que - es ta-à - vis ta. Se-des ses - a lia dos - ne ces sá ri os - ti ver
mos- que- es co lher- um. Es co lhe ria - o - je jum. Je jum - sem - tra po- em- vez
- de- tra po- sem - je jum. O- je jum - nos- une- a - todas.
Mulher 3: Ler, ler, ler, ler sempre. Nossas virtudes são a amabilidade e acuidade
nas orações. A paciência. A caridade. A vigília. O jejum e o repouso sobre o chão.
Se tudo está bom, alguma coisa não está bem. Sem Ceres, sem Baco, Vênus a frio.
Sombras, sombras. Sombras dos que hão de vir. Ler, ler, ler sem cessar.
Mulher 1: Nossas leituras se efetuarão a partir do hebraico.
121
72 - 56”
Interior, dia.
Mulher 4: A literatura hebraica está na origem de todas as demais. Não, não é o
grego. A primeira cítara foi obra de Tubal e não de Apolo. Ocultar a verdade é
sobre-véus. Moisés, mais antigo profeta da antiguidade viveu antes de Orfeu.
Orfeu morreu.
Mulher 5: Estamos assistindo a uma cena. A uma cena do fim. A uma cena do fim
do mundo. Mundo que desaba e isso nos obriga, ainda mais, ao recolhimento e ao
silêncio.
Mulher 6: Cristianismo mundano.
73 - 24”
Interior, dia.
Mulher 7: Teu perfil no vácuo perpassando, Ver rubros flamejando.
Mulher 8: Por toda parte escrito em fogo eterno, Inf...erno, inf...erno, inf...erno,
inf...erno.
74 - 3”
Interior, dia.
Silêncio
Vemos duas sombras no piso.
75 - 18”
Interior, dia.
Jerônimo se despede das mulheres.
Jerônimo: Não sofram com minha ausência. Que falte um homem a outro homem, é
a pequena falta. Logo os supre Deus. E tudo melhora.
76 - 4”
Sombras na parede
Som (em off) de água escorrendo
77 - 23”
Jerônimo caminha por um longo corredor.
Som (em off) de água escorrendo
78 - 7”
O leão atravessa o corredor
Som: o leão ruge
Música (em off) Carnaval do Animais, de Saint Saëns, Imagem d’O Cisne.
79 - 6”
Sombra do leão na parede.
Som (em off): Música Carnaval dos Animais, de Saint Saens, Imagem d’O Cisne.
Destacamos o ato de fala das mulheres, todas falam vagarosamente, cada uma uma
entonação diferente, mas a sensação que se materializa é de que o tempo borbulha, elas falam
no vazio de suas presenças. A primeira a falar está com pergaminho às mãos e lê um trecho de
122
uma carta se referindo a Jerônimo e sua vida no deserto; a segunda mulher fala pausadamente
sílaba por sílaba sobre a escolha entre jejuar ou vestir trapos; a terceira, sobre as privações
para cumprir a tarefa de propagar a palavra divina; e as outras, lentas, parecem hipnotizadas,
arrancadas das leituras de Bressane, limites da própria palavra: mulheres-silêncio.
Qual a natureza desses atos de fala em Roma de Bressane? Como eles nos ajudarão
apreender o tempo no filme? Vejamos, os atos de fala são a apresentação de tempos, tempos
de Bressane, tempos de São Jerônimo. O tempo como variável independente não preenche
nem o todo nem o vazio, ele também vem de outro lugar. De que lugar? Será possívns g
123
espaços mostrados anteriormente ou posteriormente, novamente o interstício é o lugar, um
lugar do Fora. A imagem visual é puro convite à leitura.
A voz se torna visível no filme São Jerônimo, a palavra abre caminho a uma matéria
em movimento. Bressane filmou a palavra sonora como algo visível, como uma matéria em
movimento, como a luz. O ato de fala torna-se visível ao mesmo tempo que se faz ouvir. O
visual e o sonoro transcorrem criando aparições de imagens e sons que se ligam, não na
continuidade do movimento que os registra, como também nas partes que eles não juntam, o
movimento esbarra nos sons e nas imagens re-encadeando-se num filme partido, que parece
não passar.
Nota de tempo nº 9
A imagem audiovisual em São Jerônimo é ato de resistência, aos textos de
Jerônimo e ao filme sendo feito. Relação que separa a imagem visual da
sonora compondo um outro tipo de relação.
4. Terceiro Movimento: Sertão / 8min38seg / 1h4’ a 1h12’38”/ 19 planos
Este movimento se inicia com volta de Jerônimo ao deserto. Em voz off escreve cartas
em que ressoam o atual e o antigo: os estudos na areia e a perambulação descalça sobre uma
terra salpicada de buracos escuros, numa mistura de dor e prazer, na contração desordenada
do abdômen, no escurecimento da pele, na proximidade da morte.
124
A morte pode ser sentida na imagem visual, parece haver um perigo. A imagem visual
parece tátil, os planos não se comunicam um com o outro mesmo numa ação de andar, ou de
delirar. As paradas, as mudanças de eixo da câmera são sentidas, é o tempo que se torna
sensível .
Jerônimo está de volta ao deserto. Escolhemos para analisar os dois últimos planos-
seqüências do filme, mais precisamente o espaço entre os dois. O primeiro tem duração de 40
segundos e o segundo 2min22seg. No primeiro, a câmera na mão acompanha a morte de
Jerônimo, e no segundo uma longa e lenta panorâmica nos mostra um horizonte da esquerda
para a direita, da aurora ao poente. Chegamos aos créditos finais, ao fim do filme.
Plano 1 – Duração 40” - Plano seqüência
Exterior, dia
Imagem Som
Pan-Trav. Plongée. A CAM na mão realiza um
movimento do alto para baixo acompanhando a
descida do corpo de Jerônimo que cai sobre as
pedras.
Silêncio
Música (em off): Último pau-de-arara
125
Plano 1 – Duração 2’22” -
Exterior, dia
Imagem Som
PAN A CAM acompanha lentamente a linha do
horizonte, da esquerda para a direita.
Música (em off): Último pau-de-arara
No primeiro plano seqüência a sensação da queda suave é criada pela câmera, pela
distância mantida constante entre a descida dos dois corpos: Jerônimo e câmera. O
movimento de descida delicado encontra seu limite no solo, que se deixa perceber cravejado
de pedras, textura irregular. Uma morte suave, uma bela morte.
Uma música atravessa o primeiro plano seqüência até o seu término e continua no
seguinte. A música é “Último pau de arara” , ela se opõe ao que vemos na tela, distinguimos
o antes e o depois. A música demarca um território, o território do sertão. O que essa música
faz ver? O que este ouvir nos faz ver? Primeiramente um sertão, um lugar, não o sertão das
memórias, mas um sertão de tempo.
O que seria para Bressane uma pura imagem? Será que Bressane procura uma pura
imagem? O circuito do filme sendo feito se desenrola do virtual, ao mesmo tempo nos
encontramos neste horizonte de uma lente teleobjetiva que deixa os pontos de fuga paralelos
alterando a sensação de profundidade. Estamos na superfície de uma reta, de um belo
horizonte. A consistência é vista, assim como o infinito, num entre-imagens, numa dimensão
expressa na criação de um tempo.
A música “Último pau de arara” pode ser considerada um tipo de relação sonora,
assim como os trinados dos pássaros e o vento a revelar o tempo no filme São Jerônimo.
Nota de tempo final
O vento, potência centrífuga espalhando o filme e o canto dos pássaros,
força centrípeta a dar consistência. O “Último pau de arara”, entre os
126
movimentos sonoros do vento e dos pássaros, fissura os dois termos (vento e
pássaro), eles não mais se trocam e nem se simultaneizam, agora é a imagem da
vida e da morte que aparece sob a aparência de um signo de sertão.
O homem se sabe imortal em algumas religiões, em credor da bondade em outras, mas
também de toda traição, por suas infâmias do passado e do futuro. O pensamento mais
fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar ou inaugurar uma forma secreta.
Jorge Luis Borges. O Aleph.
CRÉDITOS FINAIS
127
Balduíno Lélis
Servilho Gomes
Nanego de Lira
Ronald de Lira
Elieser Filho
Dyn Sganzerla
Sinai Sganzerla
Carol Raso
Guilherme Zarvos
Alfeu França
Pedro Rocha
Marina Bezze
Lívia Larissa
Fernanda Branco
Gustavo Duarte
Leonardo Lassance
Produção Roteiro Direção
Júlio Bressane
Diretor de Fotografia
José Tadeu Ribeiro
Direção de Arte
Rosa Dias
Montagem
Virgínia Flores
Figurinista
Daniella Aparecida Galvadão
Música
Fábio Tagliaferri
Músicos
Fábio Tagliaferri (viola)
Adriano Busko (percussão)
Lincon Monteiro (piano)
Técnico de som
Toninho Muricy
Produção
TB Produções Ltda.
Produção Executiva
Guilherme Spinelli
128
Diretora de Produção
Myriam Porto
Assistente de Direção
Leonardo Lassance
Noa Bressane
Assistente de Montagem
Noa Bressane
Assistente de Fotografia
Maritza Caneca
Alberto Belezio
Eletricistas
Carlos Alberto Ribeiro
Francisco Carlos Barreto
Maquiadora
Cida Maia
Adericista
José Carlos
Domadores
Prof. Jayro Fagundes e Mario
Fotografia de Cena
Renato Menezes
Estagiárias
Olívia Rabocov
Miria Altberg
Colaboração na Pesquisa e Roteiro
Rosa Dias
Tradução do “Sonho de São Jerônimo”
Francisco Achcar
Sugestão ao Roteiro
Gustavo Dahl
Editores de Som
Virginia Flores
Fernando Ariani
Música
Liquid Dreams
Fernando Ariani
129
Trecho do filme “A cabra na região semi-árida”,
de Ruccker Vieira, cedido pela Cinemateca do MAN
Consultor: Francisco Moreira
Letreiros e Créditos
Guilherme Spinelli
Trucagem
Movedoll
Ronald Palatinik
Agradecimentos
Crisóstomo Lucena
Débora Danowski
Eduardo Viveiros
Embaixador José Rache
Mayra EL-Jaick
Mônica Serpa
Rosa Bandeira
Tande Nressane
Vicentina E. Jorge Serpa
Cia Fábrica de tecidos S. Pedro de Alcântara
Escola de Artes Visuais do Parque Lage
Fazenda Tapera
Hotel Carlton
IBAMA
Ingá –Trajetos Turismo
Ministério das Relações Exteriores
Palácio do Itamarati
PBTUR
Prefeitura de Cabo Frio
TELERJ Celular
Tintas Guarany
Trajetos Turismo
Laboratório Líder Cinematográfica
Som ROBFilmes
Dolby Digital
Consultor Carlos B. Klachquin
Apoio Banco Fator
FIM
130
EM TEMPO
Assisti nos últimos vinte anos de minha existência a aproximadamente 10 mil filmes, a
grande maioria deles em VHS, acervo de filmes de minha videolocadora, que esteve aberta ao
público durante todo este tempo, videolocadora conhecida na cidade de Uberlândia e região
do Triângulo Mineiro por seu nome fantasia: Sétima Arte.
131
A Sétima Arte fechou suas portas em meados de 2005, e até hoje recebo telefonemas
de pessoas pedindo filmes, que elas chamam de raridade. Como não os alugo, peço para que
as pessoas os assistam e façam uma cópia em DVD para um novo acervo neste novo formato
– o acervo das raridades.
Todos os filmes, exceto os que foram danificados pelo uso, ainda estão comigo.
Guardados num quarto. As paredes deste quarto são texturizadas com caixas contendo filmes,
filmes destes 20 anos, filmes lançados no mercado de vídeo brasileiro, mês a mês, de cruzeiro
a cruzeiro-novo, de cruzeiro novo a real, diretor por diretor, capa por capa, título por título. A
numeração dos filmes nessas prateleiras começa pelo mero sete, organizada por ordem de
chegada. São 1600 dramas, 1000 aventuras, 500 policiais, 600 comédias, 600 infantis, 300
terrores, 300 musicais, 200 filmes nacionais, 200 documentários e musicais, 400 pornôs.
Eu os assisti a todos e esqueci de todos. Na medida que os esqueci, eles me vêem ao
pensamento um por um. Uma imagem é o que me constrói em cada um deles e em todos eles.
Uma imagem qualquer, uma letra de um título, o nome de um diretor, os pés de um
personagem, o olhar de outro, um lugar, um objeto, um ato de fala, um ruído, uma canção,
todos na parede, parede texturizada de imagens que não se separam do mundo e nem de mim.
Ruínas de tempo. De começos de mundos.
Onde estará o tempo num filme? O tempo num filme de Eiseinstein, num filme Fritz
Lang, num filme de Humberto Mauro, de Glauber Rocha, de Fellini, de Orson Welles,
Resnais, de Godard, assim como no de um elenco de diretores anônimos? Ele está entranhado
na imagem, no que aparece. E o que aparece? Emaranhado de tempos que um diretor
escolheu para enquadrar uma imagem/palavra, que estava no roteiro, que estava na luz que o
diretor escolheu para criar o plano, no ângulo de filmagem, no movimento de câmera, na
montagem de planos, nunca se constituindo num todo, pelo contrário o tempo salta das
partes, num movimento dessas partes. Seria o tempo no cinema?
132
Todos eles me ajudaram a ver São Jerônimo. Que tarefa dolorida escolher um filme
para pensar o tempo. O tempo é imagem do que não muda, do que permanece, percebemos o
tempo através da sensação de não passar. Paradoxo que envolve a experiência de assistir
filmes. De ver vidas passarem em qualquer tela: do cinema à televisão, do computador ao
celular, passarem imóveis num retângulo ou quadrado que não sai do lugar. Uma experiência
de tempo.
Os cinemas da modernidade fazem passar imagens que dissociam o visual do sonoro,
um tipo de montagem que nos faz ler a fissura, ler o corte, antes mesmo do passar de um
plano depois do outro. Uma parada, uma imobilidade, uma imagem de tempo.
Um signo puro de tempo, a parada do movimento de ir e vir, justamente no vaivém, no
acontecimento: a criação da imagem (desde o primeiro esboço do roteirista, do diretor, do
diretor de fotografia e do montador), paradoxalmente uma interrupção do pensamento que cria
o pensamento.
A parada, a descentralização, os escuros, os silêncios, (re)enquadramento de tempo. A
introdução da falha nos faz criar um tempo.
No filme São Jerônimo o tempo está desenhado traçando direções na montagem dos
planos e entre os planos. O sonoro – os atos de fala, quer sejam a voz em diálogos, quer sejam
na voz da narração off, nos ruídos e na música ensaiam levar o filme para fora, para fora do
campo visual enquadrado na tela, levar para os ares os atos de fala de seus personagens. Eles
gaguejam ao interpretar, eles parecem ler, lêem o tempo todo: primeira cisão.
O sonoro é um tempo resistente a espraiar-se além das palavras que São Jerônimo
deixou escritas, a maior parte delas foi ditada aos escribas. São Jerônimo pensava na leitura,
falava incessantemente. De desvios em desvios, os atos de fala recolhidos por Bressane se
desviaram de muitos outros, e a resistência do texto de Jerônimo compõe o sonoro do filme
São Jerônimo.
133
As músicas, entre elas as árias de músicas reconhecidas como patrimônio da cultura
dos homens ocidentais (Carnaval dos Animais e Réquiem de Fauré), e os ruídos que são
também música, porque as colocam em uma outra partitura, as reposicionam num outro
tempo, expandem seus sons para além das partituras em que foram compostas e até mesmo
por quem estão sendo executadas no filme. Outro desvio que resiste: o sonoro tende a uma
pureza do próprio som. O lugar para este traço é um lugar do indeterminável da procura de
outros mundos.
São Jerônimo, de Bressane e a primeira heresia: a voz de um tradutor da palavra
divina, na tarefa de traduzir para o latim vulgar as palavras divinas. Para que elas pudessem
representar e proporcionar a unidade do cristianismo, explicar e implicar todos os homens, o
diretor as conduz no filme para um limite delas próprias, para a rachadura, para o lugar do
fora, do que não tem unidade. Movimento centrífugo. Imagem de tempo.
O visual se apressa em nos tragar para territórios outros, territórios fundados pela luz,
pela fotografia: deserto e Roma. Lugares extensos e intensos. O traçado visual no filme é
centrípeto, exuberante na qualidade e quantidade da luz, os fotogramas transcorrem como
quadros, um monumento à luz, à terra enquadrada por uma câmera. Câmera que realiza
movimentos de superfície. A superfície do solo desértico escancara as rachaduras, as securas
e as falhas, e em Roma a umidade e a sombra se expõem também como superfície: Jerônimo
e as irmãs seguidoras e estudiosas estão sob o teto de uma casa, Jerônimo e o papa discutem
nos porões, os exteriores se revelam na chegada de Jerônimo a Roma, no debate a seus
opositores e na apresentação da enfermidade do papa.
São Jerônimo, de Bressane e a segunda heresia: deserto e Roma são apresentados
como lugares desconexos, sem centro, e o visual resiste aos fotogramas, às imagens em
movimento. Os longos planos fixos, os movimentos abruptos de mudança de eixo da câmera,
os cortes secos desterritorializam tanto Roma como o deserto. A câmera nos convida o olhar
134
da esquerda para a direita, de cima para baixo, de baixo para cima, gira, pendula complicando
nossa percepção. Que terra é esta? Que mundo é este?
São Jerônimo, de Bressane se afasta da determinação e da indeterminação: a palavra
divina (o sagrado) e a tradução desta palavra para os homens (o profano) se distanciam do
sonoro a caminhar para fora, e o visual na sua insistência de ir para dentro. O filme fissura o
som como fissura o visual. Desenho de uma matéria movente na superfície da tela de São
Jerônimo e dos filmes que eu esqueci.
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139
A N E X O S
140
ANEXO A
– L
UZ TROPICAL BRASILEIRA
L
UZ
T
ROPICAL
B
RASILEIRA
Waldemar Lima
Diretor de Fotografia ABC
A qualidade da luz do sol, originalmente branca, que chega à terra, pode ser dura ou
suave dependendo da incidência e da largura da camada atmosférica que ela atravessa. Nas
141
regiões tropicais, a largura da atmosfera é estreita, a luz do sol a atravessa perpendicularmente
e chega à superfície da terra como uma luz dura e branca com sombras negras e cores fortes.
Se não houvesse absolutamente nada no espaço terrestre, nem poeira nem gases (como
acontece no espaço sideral), o céu seria negro. A luz do sol, ao atravessar a atmosfera
terrestre, encontra moléculas de gases de várias densidades, poeira e minúsculas gotas de água
em suspensão, que refletem, refratam, difundem e dispersam a luz. O céu tem, dependendo da
hora do dia e da região, luz de diferentes intensidades. As minúsculas gotas de água em
suspensão são os principais dispersadores das ondas luminosas curtas (a extremidade azul de
espectro) e responsáveis pela tonalidade azulada do céu.
As variações das condições atmosféricas também provocam mudança de cores nos
objetos sobre a terra. Quando o sol está alto e a atmosfera relativamente limpa e seca, ele
aparece quase branco e o céu azul bem escuro. À medida que o sol abaixa no horizonte, sua
luz chega à terra num ângulo mais agudo. Nesta angulação, a luz solar atravessa maior
quantidade de poeira e vapor, sendo assim, grande parte da cor azul é subtraída.
Na natureza geralmente as cores se produzem por reflexão. A luz branca que atinge
um meio reflete com maior intensidade algumas áreas do espectro em detrimento de outras.
Quando a luz branca do sol incide numa planta ou árvore, a clorofila seletivamente absorve
mais azul e vermelho 558(n)-0.2955l2.16436(i)-2.16439294974(a)3.74(d)-addtam3.74(6558(s)-1.2312(s)-11.237/2( )-70.1879(d)-0.0(m3.74(65Q3.74(z)-6.2659(u)-b9110.212(c)3.74(o)-00.2312(s)(á)-6.2659(r)]TJ)-20.15585(r)-7.20151(e)3.z)-6.2659(u)-b9110d3.74(x)-10.32.1703(r)2.80439(i)-2.16)2.80295585(e5585(l)-2.1.32.1703(r)ga)-6.265439294974(a206(s)-1.2312(e)3.74()3.74(m)]TJ252.795585(a)3.74(s)-1.él)-2.16558(h)-0.2955ntuel(e)3.74()3.74(6(o)-0.29-6.2659(016436(e)3( )-100.205(m)-2.46239(a)3.742)-2.46239(a)3.7)-2.16558(o)-0.295585( )-60.1832(r4( )-90.2001u2.16436-2.16558(o)-0.295585( )-607961938(á)3.74244(r2.80439(i)-2.16)x2.74(s)-1.2312( )-110.212(c)3.74( )-90.1997(p)-)-110.212(c)3.o3eo, o s d61(lçc80439(e)3.74(f)-0.295585( 8095585( )]TJ263.79i)-2.16558(s)-1.22997( )-20.151816558(h)-0.2955)3.74(n660.183b)-0.293142(a39(e)3.74(f)-0.2953.740439(i)-2.166(i)-2.16436(d)-10.3015(74(l)5(r)2.80439(o)-0)-10.305( )-90.2009(s)1.57442(u)-0.294363(a)879(ú.8043.295585( )-70(d)-10.3015(7.229974(20.217(q)-0.2980ê( )-70(d)-10.3015(7.2296(r)2.80561(e)3.74-70.1855(m)-2.45995(e)3.74(d)]TJ267.158 0 Tdn660.183b)-0.293142(a39(e)3.74(.)(a)3.740439(i.u2e(e)3.74(m)-2.45995(i)-2.o)-)3.)-0.295585(l)-2.16436(a)3.74(40439(i.u2ed.00)-0-2.16558(s)-.80561(e)3.1-27.6 Td[439(a)3.74(v)-10.3015(e)6.2659(n)-0.2659(n)-0.2659(n)-0.265éTd[439(a)3.74(v)(e)3.z)-6.2659(u)2( )-90.1997(á)-6.25850561(e)3.95582-0.265éTd[439(a)3.74(v)(e)74(i)-2.165510. )-70.1879(o)-0.293142(u)-0.293142(t)3142(s)-1.2Td[439(a)3.74(v)(e)3.p)-0.295585(a)3.74( )-1405(e.299(g)-0.29)-90.2009(s)d0)-10.0. oe poeira aveeiar4244(z)-6.s d. a e.29436(i)-2.16439294974.1( )-10en34-20.1584(d)(.)-0.146-3.74( )-1405d.ot p.og4( )-20.5(a)3.7-70.1855(m)-2d3.9(o)-0.29314.1.30(m)-27142(a39(e)3.74(.).74(i)-2.1643.4599 )59(s)-1.22875(o)-0.29558585(d)-0.295585(o)-0.25.4599 s
142
Vejamos alguns exemplos. O meridiano que separa a região tropical e a subtropical no
Brasil passa acima da cidade de São Paulo, logicamente não poderemos afirmar que de um
lado é região tropical e de outro subtropical. A cidade de São Paulo, vítima da poluição, é
iluminada por uma luz difusa e o sol tem a cor amarelada e o céu cinza. Já em Araraquara,
cidade do interior do estado de São Paulo a luz é transparente e o céu é azul.
A luz do sol no Brasil tem várias nuanças, e a luz tropical, em seu estado natural,
pode ser bela ou feia esteticamente falando. Como já vimos anteriormente, a luz tropical não é
inclinada, portanto não é modeladora, nem produz tons agradáveis de pele. Ela é vertical e
produz sombras negras nos olhos. Uma sombra dura não realça a beleza, acentua os
contornos. Mas defendo que esta é a nossa luz. As paisagens brasileiras, na maior parte do
dia, apresentam alto contraste de luz e sombra; a padronização dessa luz com um artificial
contraste, com um tipo de luminosidade e um padrão de cor poderá fazer dela uma luz sem
identificação.
É importante pensar e refletir um pouco. A luz solar do território brasileiro e sua vasta
gama de características possibilitam uma gama de criações estéticas fotográficas nas regiões
acima ou abaixo do Trópico de Capricórnio.
O nordeste do Brasil é uma região tropical, e por ter um clima seco com menos vapor
e em algumas regiões pouca poluição, o céu se apresenta com a cor azul bem escuro e um sol
quase branco estas são características marcantes desta região brasileira. A luz do norte e
nordeste do interior é mais dura, de sombras contrastadas e negras, do que no litoral, onde as
cores são mais vivas e brilhantes.
Em contrapartida, o sul e o sudeste brasileiros, regiões subtropicais, onde a luz solar é
mais inclinada, onde o clima é úmido, o azul do céu se apresenta mais esbranquiçado e o sol
amarelado.
143
As diferenças de luminosidade, as diferenças cromáticas e as diferenças de contraste
acentuam as diferenças entre a luz brilhante, as sombras negras, a luz suave e sombras pouco
marcadas, portanto manter a característica da luz em um determinado espaço constrói uma
identificação com o lugar, reconhecimento e afetividade de espaços.
Se originalmente ela é assim, para fotografá-la deve-se respeitar suas características e
não, dessa ou daquela maneira, lhe dar formas suaves, modificando sua feição e as feições de
quem ou o quê ela ilumina.
Por outro lado, os tipos de solo, a umidade e a vegetação no espaço geográfico da
região tropical possibilitam criar diferentes tipos de luz e contrastes. Exemplificando, no
Maranhão, em Pernambuco e no Espírito Santo, estados inseridos na zona tropical, assim
como a caatinga, os lençóis maranhenses e a ilha de Marajó possuem cores e contrastes
particulares. Imaginemos um filme ser produzido numa fazenda marajoara e com a luz de um
filme produzido no Rio Grande do Sul. Ou um filme ser realizado na Serra Gaúcha com luz
contratada, ou ainda, um filme onde o espaço geográfico é a caatinga baiana com uma luz
suave.
Essa qualidade cambiante da luz natural brasileira é um bom ponto de partida para
uma breve análise da dramaturgia cinematográfica. Um espaço a ser tratado, ou criado com
suas características de luminosidade, cor e contraste. Por que não respeitar as diferenças
modeladoras das geografias, identificadoras das paisagens? Acredito que se não procedemos
dessa maneira, a fotografia passa a ser utilizada como suporte ilustrativo e não elemento
participante como deve ser.
O cinema é uma arte cuja leitura é feita através de imagens, uma arte que se manifesta
através de fotografia. Se o filme conta uma história em uma determinada região, a fotografia
deve fazer parte da história, as luzes e as cores da região estão lá. Caso isso não aconteça, de
que valeria ir a uma região fotografar os seus habitantes, os seus costumes, as suas danças, sua
144
arquitetura? Não estaríamos descaracterizando a textura da luz? A luz que é também uma
característica daquela região?
Fotografia é arte engajada, ela pode estar engajada na composição de luz, nas cores e
nas texturas “globalizadas” de um filme comercial privilegiando o produto, ou deve ser
engajada retratando a luz de uma obra cinematográfica sem distanciar e ou maquiar suas
características regionais. Da mesma maneira as considerações sobre a textura do filme estão
intimamente ligadas com o tipo de luz de cada região. Uma fotografia pode ser dura e
contrastada e por isso ser bela e ser também personagem de um filme.
Uma seqüência de trabalhadores negros nas salinas de Mossoró, fotografada
suavizando exageradamente a dureza característica de sua luz, é comprometedora para o
cinema brasileiro, para a estética dos filmes brasileiros. As gravações deverão acontecer nas
primeiras e últimas horas do dia, quando o sol está mais inclinado e suave. Imaginemos nas
primeiras horas do dia os habitantes daquela região estão dormindo e nas últimas horas em
suas casas descansando. Esta população vive, nasce e morre sob aquele sol.
A luz de filmes p&b brasileiros é referência para estudiosos do cinema, eles elogiam
justamente a forma contrastada dessa luz, caracterizando além de uma região, uma geografia.
O que parece estranho é sabermos que os filmes coloridos também podem trabalhar uma luz
cheia de contrastes, com nítida demarcação de claros e escuros, podendo recriar a beleza
luminosa da região e do drama, e isso raramente acontecer.
Por que não fazer com as diversas e cambiantes luzes brasileiras a contrastada no
Norte e Nordeste, a mais suave na região subtropical uma fotografia participante? Bela ou
não, deveríamos pensar conceitualmente propostas para o cinema nacional, para os produtores
para os diretores e para os fotógrafos. Sobre a participação do fotógrafo, acho que ela deveria
ir além. O fotógrafo de cinema, estando numa região de luz dura, poderia assumir a
responsabilidade de captar a luz, de modelá-la, de contrastá-la sem lhe tirar a autenticidade.
145
O fotógrafo cinematográfico poderia ser mais participativo e, juntamente com o
diretor dos filmes, compor uma fotografia levando em consideração a luz da região e do
drama. O diretor de fotografia de um filme está naquela equipe para ajudar e colocar seus
conhecimentos técnicos e sensibilidade artística a serviço do filme, para que as imagens
resultem afinadas com estética que o filme suscita.
A luz pode ser captada em função de vários fatores: a temática, a dramaturgia, a
estética, juntas ou separadamente. É importante frisar que utilizando a luz original de um
lugar podemos inventar e alcançar a luz desejada, pelo clima, pelo sentido da obra
cinematográfica. Nenhuma luz é feia ou bonita se for bem realizada tecnicamente, sim a
boa luz que pensa o quadro como fazendo parte de um desejo de criar sentido, e uma luz
que pasteuriza, que uniformiza todas as luzes dos filmes.
É tarefa do diretor pedir cores e contrastes que não se distanciem do sentido que ele
quer dar ao filme. E se a história é contada sob o sol tropical e personagens ao sol, por que
tirar as características de sol tropical? De luz vertical durante a maior parte do dia criando as
sombras negras? Por que maquiá-la exageradamente? Por que não manter suas características?
A paisagem, a luz, as cores e os contrastes interagem, dialogam e dão vida aos personagens.
Se os estudos da arquitetura, dos costumes, das tradições estão presentes no processo
de realização de filmes, criando através das imagens cinematográficas lugares, regiões e
dramas de nosso cotidiano, por que não estudar a luz do sol nesta região? Luz que é também
imagem desse lugar e dessa gente a nascer e a viver sob essa luz?
É importante que cada filme feito neste país, iluminado com esse sol de várias luzes e
variadas regiões, da mais contrastada à mais suave, seja fotografado o mais íntimo possível
com as características de sua luminosidade, qual seja uma luz tropical, uma luz vertical, uma
luz dura e contrastada.
146
Que a imagem de uma região árida seja mostrada ao
147
ANEXO B – R
ELAÇÃO DE
89
TELAS SOBRE
S
ÃO
J
ERÔNIMO
- 1400
A
1900
RELAÇÃO DE 89 TELAS SOBRE SÃO JERÔNIMO
- 1400
A
1900
1- ANDREA DEL CASTAGNO - The Holy Trinity, St Jerome and Two Saints - c. 1453 - -
Fresco
2- ANTONELLO da Messina - St Jerome in his Study - c. 1460 - - Wood, 46 x 36,5 cm
3- BAROCCI, Federico Fiori - St Jerome - c. 1598 - - Oil on canvas
148
4- BASSANO, Jacopo - St. Jerome - 1556 - - Oil on canvas, 119 x 154 cm
5- BELLINI, Giovanni - St Jerome Reading in the Countryside - 1480-85 - - Oil on wood, 47
x 34 cm
6- BELLINI, Giovanni - St Jerome Reading in the Countryside - 1505 - - Oil on wood, 49 x
39 cm
7- BELLINI, Giovanni - Sts Christopher, Jerome and Ludwig of Toulouse - 1513 - - Oil on
panel, 300 x 185 cm
8- BERNINI, Gian Lorenzo - Saint Jerome - 1661-63 - - Marble, height 180 cm
9- BIGOT, Trophîme - St Jerome - 1630s - - Oil on canvas, 105 x 138 cm
10- BLANCHARD, Jacques - St Jerome - 1632 - - Oil on canvas, 145,5 x 116 cm
11- BOSCH, Hieronymus - St Jerome in Prayer - c. 1505 - - Oil on panel, 80,1 x 60,6 cm
12- BOSCH, Hieronymus - St Jerome in Prayer (detail) - c. 1505 - - Oil on panel
13- BOTTICELLI, Sandro - St Jerome in Penitence - 1490-92 - - Tempera on panel, 21 x 269
cm (entire predella)
14- BOTTICELLI, Sandro - The Last Communion of St Jerome (detail) - c. 1495 - - Tempera
on panel
15- BOTTICELLI, Sandro - Transfiguration, St Jerome, St Augustine - c. 1500 - - Tempera
on panel, 27,5 x 35,5 cm
16- CARAVAGGIO - St Jerome - 1605-06 - - Oil on canvas, 118 x 81 cm
17- CARAVAGGIO - St Jerome - 1607 - - Oil on canvas, 117 x 157 cm
18- CARAVAGGIO - St Jerome - c. 1606 - - Oil on canvas, 112 x 157 cm
19- CARPACCIO, Vittore - Funeral of St Jerome - 1502 - - Tempera on canvas, 141 x 211
cm
20- CARPACCIO, Vittore - St Jerome and the Lion - 1502 - - Tempera on canvas, 141 x 211
cm
21- CARPACCIO, Vittore - St Jerome and the Lion (detail) - 1502 - - Tempera on canvas
22- CORREGGIO - Madonna with St. Jerome (The Day) - about 1522 - - Oil on canvas,
205,7 x 141 cm
23- COSTA, Lorenzo - St Jerome - 1485 - - Panel
149
24- CRIVELLI, Carlo - St Jerome and St Augustine - c. 1490 - - Tempera on wood, 187 x 72
cm
25- DÜRER, Albrecht - St Jerome - 1492 - - Woodcut, 190 x 133 mm
26- DÜRER, Albrecht - St Jerome - 1521 - - Oil on panel, 60 x 48 cm
27- DÜRER, Albrecht - St Jerome by the Pollard Willow - 1512 - - Drypoint, 208 x 185 mm
28- DÜRER, Albrecht - St Jerome in His Study - 1511 - - Pen, 190 x 151 mm
29- DÜRER, Albrecht - St Jerome in his Study - 1514 - - Engraving, 259 x 201 mm
30- DÜRER, Albrecht - St Jerome Penitent in the Wilderness - c. 1496 - - Engraving, 324 x
228 mm
31- EYCK, Jan van - St Jerome - 1442 - - Oil on parchment on oak panel, 20 x 12,5 cm
32- FRANCÉS, Nicolás - St Jerome in his Cell - 1450s - - Tempera on wood, 160 x 80 cm
33- FRANCESCO DI GIORGIO MARTINI - St Jerome in the Desert - c. 1485 - - Bronze, 55
x 37 cm
34- FRANCIA, Francesco - Crucifixion with Sts John and Jerome - c. 1485 - - Oil on wood,
52 x 33,5 cm
35- FRANCIA, Francesco - Crucifixion with Sts John and Jerome - c. 1485 - - Panel, 52 x
33,5 cm
36- GHIRLANDAIO, Domenico - St Jerome - c. 1471 - - Fresco
37- GHIRLANDAIO, Domenico - St Jerome in his Study - 1480 - - Fresco, 184 x 119 cm
38- GHIRLANDAIO, Domenico - St Jerome in his Study (detail) - 1480 - - Fresco
39- GOZZOLI, Benozzo - Madonna and Child with Sts John the Baptist, Peter, Jerome, and
Paul - 1456 - - Tempera on panel, 122 x 212 cm
40- GOZZOLI, Benozzo - St Augustine's Vision of St Jerome (scene 16, east wall) - 1464-65
- - Fresco
41- GOZZOLI, Benozzo - St Jerome Pulling a Thorn from a Lion's Paw - 1452 - - Fresco
42- GOZZOLI, Benozzo - The Departure of St Jerome from Antioch - 1452 - - Fresco
43- GRECO, El - Saint Jerome Penitent - 1610-14 - - Oil on canvas, 166 x 110 cm
44- GRECO, El - St Jerome as a Scholar - 1600-14 - - Oil on canvas, 108 x 89 cm
45- GRECO, El - St Jerome as Cardinal - c. 1600 - - Oil on canvas, 59 x 48 cm
150
46- HEMESSEN, Jan Sanders van - St Jerome - - Oil on panel, 103 x 81 cm
47- LA TOUR, Georges de - Penitent St Jerome - c. 1630 - - Oil on canvas, 152 x 109 cm
48- LA TOUR, Georges de - Saint Jerome Reading - 1621-23 - - Oil on canvas laid down on
wood, 62.2 x 55 cm
49- LA TOUR, Georges de - St Jerome - 1630-35 - - Oil on canvas
50- LEONARDO da Vinci - St Jerome - c. 1480 - - Oil on panel, 103 x 75 cm
51- LIPPI, Filippino - St Jerome - 1490s - - Oil on wood, 136 x 71 cm
52- LIPPI, Fra Filippo - Funeral of St Jerome - 1460-65 - - Panel, 268 x 165 cm
53- LOTTO, Lorenzo - Penitent St Jerome - 1506 - - Oil on wood, 48 x 40 cm
54- LOTTO, Lorenzo - Penitent St Jerome - 1509-10 - - Oil on wood, 85 x 61 cm
55- MASACCIO - St Jerome and St John the Baptist - 1428 - - Panel, 114 x 55 cm
56- MASACCIO - St Jerome and St John the Baptist - 1428 - - Panel, 114 x 55 cm (full
panel)
57- MASTER of the Isaac Stories - The Doctors of the Church (detail of St Jerome) - 1290-95
- - Fresco
58- MASTER THEODERIC - St Jerome - 1360-65 - - Tempera on wood, 113 x 105 cm
59- MATTEO di Giovanni - St Jerome - 1460s - - Tempera on wood, 42 x 25 cm
60- MEMLING, Hans - St Jerome - 1485-90 - - Oil on oak panel, 87,8 x 59,2 cm
61- MEMLING, Hans - St Jerome and the Lion - 1485-90 - - Oil on oak panel, 37 x 24,5 cm
62- MONTAGNA, Bartolomeo - St Jerome - c. 1500 - - Oil on canvas, 51 x 58 cm
63- PARMIGIANINO - The Vision of St Jerome - 1527 - - Oil on wood, 343 x 149 cm
64- PATENIER, Joachim - Rocky Landscape with Saint Jerome - - Oil on wood, 47,2 x 37,3
cm
65- PATENIER, Joachim - St Jerome in Rocky Landscape - c. 1520 - - Oil on oak, 36,5 x 34
cm
66- PATENIER, Joachim - St Jerome in the Desert - c. 1520 - - Oil on wood, 78 x 137 cm
67- PEREDA, Antonio de - St Jerome - 1643 - - Oil on canvas, 105 x 84 cm
151
68- PIERO della FRANCESCA - St Jerome and a Donor - 1451 - - Panel, 40 x 42 cm
69- PIERO della FRANCESCA - The Penance of St. Jerome - 1450 - - Panel, 51 x 38 cm
70- PINTURICCHIO - The Crucifixion with Sts Jerome and Christopher - c. 1471 - - Oil on
wood, 59 x 40 cm
71- PITTONI, Giambattista - Sts Jerome and Peter of Alcantara - - Oil on canvas, 275 x 143
cm
72- RENI, Guido - St Jerome - c. 1635 - - Oil on canvas, 278 x 238 cm
73- REYMERSWAELE, Marinus van - St Jerome - 1541 - - Oil on panels, 78 x 107 cm
74- REYMERSWAELE, Marinus van - St Jerome - 1541 - - Wood, 80 x 108 cm
75- RIBERA, Jusepe de - St Jerome - 1637 - - Oil on canvas, 128,5 x 102 cm
76- RIBERA, Jusepe de - St Jerome and the Angel - 1621 - - Etching, 318 x 238 mm
77- RIBERA, Jusepe de - St Jerome and the Angel - 1626 - - Oil on canvas, 262 x 164 cm
78- SASSETTA - St Jerome (detail) - 1423 - - Panel
79- SIRANI, Elisabetta - St. Jerome - - Oil on canvas, 102 x 84 cm
80- SPADA, Lionello - St Jerome - 1610s - - Oil on canvas, 112 x 143 cm
81- STOSS, Veit - High Altar of St Mary (Jerome) - 1477-89 - - Wood
82- TINTORETTO - St Jerome and St Andrew - c. 1552 - - Oil on canvas, 235 x 145 cm
83- TIZIANO Vecellio - St Jerome - c. 1560 - - Oil on canvas, 235 x 125 cm
84- TURA, Cosme - Saint Jerome - 1474 - - Oil on wood, 100 x 57 cm
85- UCCELLO, Paolo - Sts Paul, Francis and Jerome - c. 1435 - - Fresco, 120 x 46 cm (each)
86- VALDÉS LEAL, Juan de - St Jerome - - Oil on canvas, 211 x 131 cm
87- VITTORIA, Alessandro - St Jerome - 1565 - - Marble
88- VOUET, Simon - St Jerome and the Angel - 1620s - - Oil on canvas, 144,8 x 179,8 cm
89- WEYDEN, Rogier van der - St Jerome and the Lion - c. 1450 - - Oil on oak panel, 31 x
25 cm
152