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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA
A
TESSITURA DA REDE: ENTRE PONTOS E ESPAÇOS.
P
OLÍTICAS E PROGRAMAS SOCIAIS DE ATENÇÃO À
JUVENTUDE A SITUAÇÃO DE RUA EM CAMPINAS, SP
Ana Paula Serrata Malfitano
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Saúde Pública para obtenção do título de
Doutor em Saúde Pública.
Área de Concentração: Saúde Materno-Infantil
Linha de Pesquisa: Sociedade Contemporânea,
Ciências Sociais e Saúde Pública
Orientador: Prof. Dr. Rubens de Camargo
Ferreira Adorno
São Paulo
2008
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A TESSITURA DA REDE: ENTRE PONTOS E ESPAÇOS.
P
OLÍTICAS E PROGRAMAS SOCIAIS DE ATENÇÃO À
JUVENTUDE A SITUAÇÃO DE RUA EM CAMPINAS, SP
Ana Paula Serrata Malfitano
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Saúde Pública da Faculdade de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Doutor em Saúde
Pública.
Área de Concentração: Saúde Materno-Infantil
Linha de Pesquisa: Sociedade Contemporânea,
Ciências Sociais e Saúde Pública
Orientador: Prof. Dr. Rubens de Camargo
Ferreira Adorno
São Paulo
2008
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É expressamente proibida a comercialização deste documento tanto na sua forma
impressa como eletrônica. Sua reprodução total ou parcial é permitida
exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, desde que na reprodução figure a
identificação da autora, título, instituição e ano da tese.
Nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o teu silêncio.
No teu gesto mais frágil, há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar, porque estão demasiado perto...
(...)
Nalgum lugar...
Restituindo a morte e o sempre cada vez que respira...
Não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas...
Ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
*
À Brígida, pela insistência na vida...
*
Poema de E. E. Cummings. Tradução em português por Augusto de Campos. Musicado por Zeca
Baleiro (CD Líricas – Faixa “Nalgum Lugar”).
AGRADECIMENTOS
Agradecer, reconhecer, retribuir... Pessoas importantes nessa trajetória.
Muitos momentos, formação, crítica, esperança, vida... Àqueles que contribuíram
com o meu caminhar e, também, para a efetivação deste trabalho, meu terno
‘obrigada’.
Agradeço, em destaque:
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
pela concessão das relevantes bolsas de estudo que possibilitaram essa pesquisa
nesses quase quatro anos. Pela Bolsa de Doutorado no País e pela Bolsa de Estágio
de Doutorado no Exterior, que viabilizou a realização do Estágio Doutoral junto ao
Centre de Recherche Médecine, Science, Santé et Société (CERMES), da Ecole des
Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, França.
Àqueles que, em Paris, contribuíram para o meu trabalho. A toda equipe do
CERMES, em especial à Dra. Sylvie Faizang, pela acolhida e atenção, e aos demais
pesquisadores que se disponibilizaram a discutir minha proposta de investigação.
Aos amigos da Maison du Brésil que possibilitaram uma estada estrangeira mais
“calorosa”: Monique Sanches, Mariana Barreto, Thiago Rodrigues, Matheus
Hidalgo e Fernando Igansi. Em especial à Ana Marques pelo compartilhar do
momento, do trabalho, pela generosa acolhida familiar e pela companhia, tão
importantes.
No Brasil, ao Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Sociais em
Saúde Pública (LIESP) da Faculdade de Saúde Pública da USP, pelas discussões e
fomento de pesquisas na área de ciências sociais em saúde pública. Aos colegas e
professores do LIESP, em especial aos amigos Reginaldo Mendonça, e as muitas
longas conversas à distância, e à Luciene Jimenez, pelo compartilhar da experiência
no além-mar. À Profa. Dra. Maria da Penha Costa Vasconcellos, pela
disponibilidade e atenção sempre presentes e as muitas contribuições refletidas, entre
outros momentos, por meio das participações nas bancas de qualificação e de defesa.
Às Profas. Dra. Marília Sposito e Dra. Chiara Pussetti por aceitarem o
convite para participar dessa discussão.
À Profa. Dra. Denise Barros pela sua maneira ímpar de ser e de compreender,
com uma ternura e disponibilidade aconchegantes.
Ao Grupo Metuia pelos muitos trabalhos em conjunto, pelos valores,
produções, ideais e investimentos em uma terapia ocupacional crítica e pautada nos
direitos. Em especial às amigas Carla Silva e Patrícia Borba, pelos compartilhares.
Aos colegas de trabalho na construção da rede e das ações para os meninos e
as meninas em situação de rua em Campinas, SP. Minha admiração e desejo do
estabelecimento de muitas práticas a serem analisadas. Em especial à Renata
Bellenzani, por me sentir mais forte ao seu lado para tantas lutas.
Aos profissionais e gestores que me disponibilizaram seu tempo, sua visão e
sua compreensões, formando um rico material de análise e constituição de pensares.
Aos jovens que tive o prazer de conhecer, compartilhar momentos, angústias,
alegrias e com eles aprender. Mestres da crueza e da beleza da vida real e cotidiana.
E, por fim, um agradecimento singular:
À Profa. Dra. Roseli Lopes pela presença fundamental e afetuosa em meu
percurso. Pelo seu profissionalismo, ética e beleza indispensáveis.
Ao Prof. Dr. Rubens Adorno, meu orientador, pela gentileza com que
conduziu esse caminho, mostrando-me a importância e a possibilidade de tecer
reflexões sobre o micro, sobre sujeitos, sobre trajetórias. Minha admiração pela sua
constante batalha ante à normatividade.
À Tereza Serrata e Ana Carolina Malfitano, fontes inesgotáveis de alegria.
Ao Cristiano Rodrigues, meu companheiro, por estar e caminhar ao meu
lado, sempre...
RESUMO
MALFITANO, A. P. S. A tessitura da rede: entre pontos e espaços. Políticas e
programas sociais de atenção à juventude – a situação de rua em Campinas, SP.
[Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP; 2008.
A temática da juventude tem sido construída como categoria sociológica e abre o
debate sobre a necessidade da criação de políticas sociais que se direcionem para a
promoção de acesso aos direitos de crianças, adolescentes e jovens, destacando-se
aqueles provenientes de grupos populares. As políticas sociais, entendidas como um
conjunto de ações articuladas e reconhecidas como “necessidades humanas”,
realizam intervenções consoantes ou distantes dos ideários estabelecidos. Propõe-se
descrever um dos programas do Plano Municipal para a Infância e Juventude,
implementado em Campinas, SP, durante a gestão 2001-2004. O Plano era composto
de dez programas temáticos, sendo analisado o “Criando Rede de Esperança”, o qual
tinha meninos e meninas em situação de rua como população-alvo. Investiga-se a
rede de serviços componente do Programa no período de 2001 a 2006, questionando-
se o estabelecimento efetivo de inovações sociopolíticas e a produção de mudanças
na vida de seus usuários. Os procedimentos de investigação foram: entrevistas
semidirigidas com gestores das diferentes Secretarias componentes da rede,
coordenadores e técnicos dos serviços e os meninos e as meninas; grupos de
atividades com os adolescentes nas instituições; e observação participante no
equipamento da Saúde. Lançou-se mão ainda do acompanhamento de alguns
adolescentes nas ruas. Foram utilizadas trajetórias de vida de cinco jovens para a
apresentação dos serviços e temáticas que as perpassavam. Observou-se que a
dinâmica entre os atores configura-se sob uma tensão com compreensões nem
sempre congruentes entre os objetivos institucionais e de seus usuários, gerando
pouco avanço na produção de direitos para esse grupo populacional. Aponta-se que
as políticas sociais concentram limites nas ações desenvolvidas, marcados pela
estrutura política neoliberal do Estado democrático capitalista, bem como
evidenciados pela execução de ações que se dirigem para a individualização de
problemas e pouco progresso na compreensão e enfrentamento coletivos. Todavia,
produzem também um nível de cuidado e atenção que se constitui como pontos de
apoio para essa população. As políticas sociais armazenam as possibilidades de
consolidar efetivamente inovações sociopolíticas e caminham para a promoção dos
direitos dos jovens brasileiros de grupos populares. Para tanto, demarca-se o desafio
de as ações sociais, entre elas as de saúde pública, estabelecerem práticas inovadoras
e efetivas para a promoção de direitos.
Descritores: Juventude, Juventude de Rua, Política Social, Defesa da Criança e do
Adolescente, Estado.
ABSTRACT
MALFITANO, A. P. S. The weaving of the network: among points and spaces.
Policies and social programs on youth caring – the street situation in Campinas,
SP. [Thesis]. São Paulo (BR): Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo; 2008.
The theme of youth has been built as a sociological category and it opens the debate
on the need for the creation of social policies which would drive access to child,
teenagers and youth rights, mainly those who come from popular groups. Social
policies, understood as "human needs", make interventions which are accorded to or
different from the ideas previously set. The proposal is to analyze one of the
programs from the City Plan for Childhood and Youth, implemented in Campinas,
SP during 2001-2004 term. The Plan was composed of ten thematic programs, from
which it was analyzed “Criando Rede de Esperaça” (“Creating Hope Network”),
whose target population was boys and girls who live in streets. The program's
services network is analyzed from 2001 to 2006, and it is held a discussion on
whether there was social-political innovations and changing in life of its users. The
investigation procedures were the following: semi-driven interviews with managers
from different secretaries which compose the network, with coordinators and
technicians, and also with the girls and boys; activity groups with teenagers inside
the institutions; and participating observation on Health system facility. Besides that,
some teenagers were accompanied in the streets. Life stories from five youths were
taken to present both the services and the themes regarding them. It was noticed that
the dynamic among actors was set under a tension with understandings not always
congruent between institutional objectives and their users' objectives, what has
generated little advance on the promotion of rights to this population group. It was
pointed out that social policies focus borders on developed actions, marked by the
capitalist democratic State's neoliberal political structure, as it was evidenced by the
execution of actions which point to individualization of the problems and little
advance on the collective understanding and facing. Nevertheless, they also produce
a level of caring and attention which constitutes itself as support points to this
population. The social policies keep the possibilities of effectively consolidating
social-political innovations and they walk to the promotion for rights of youth
Brazilians from popular groups. To do so, it was emphasized as the challenge for
social actions, among which those on public health, to set innovative and effective
practices to the promotion of rights.
Descriptors: Youth, Homeless Youth, Public Policy, Child Advocacy , State
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
11
1. POLÍTICAS SOCIAIS E O APARATO JURÍDICO BRASILEIRO
DE ATENÇÃO À INFÂNCIA E À JUVENTUDE:
APONTAMENTOS INICIAIS
17
1.1 Criança e adolescente: a construção do lugar de prioridade
nacional
19
1.2 Do princípio legislativo do ECA ao contexto das políticas sociais
27
2. CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO PELA REDE DE SERVIÇOS
35
2.1 Nossa trajetória
35
2.2 Tempos da pesquisa de campo: escolhas, métodos e coleta de
dados
41
2.2.1 Trajetórias de vida: interfaces, interrogações e traços em
comunicação com a rede de serviços
48
3. O CENÁRIO DA PESQUISA
52
3.1 Campinas-SP
52
3.1.1 A população infanto-juvenil: alguns dados estatísticos
57
3.2 Plano de Atendimento a Infância e Juventude em Campinas
62
3.2.1 Grupo de Trabalho Criando Rede de Esperança
71
3.2.2 A rede de serviços
78
4. TRAJETÓRIAS DE VIDA E SUAS PASSAGENS PELA REDE DE
SERVIÇOS: FRAGMENTOS VIVOS E INTERROGAÇÕES
PULSANTES
84
4.1 João
85
4.2 Cíntia
144
4.3 Lucas
190
4.3.1 Serviços em destaque: o Pernoite Protegido
213
4.3.2 Serviços em destaque: a Sala de Transição
218
4.4 Maria e Rafael
224
5. TEMAS EMERGENTES DA VIDA DOS JOVENS E SUAS TENSÕES
COM A DINÂMICA INSTITUCIONAL
255
5.1 Moradia
256
5.2 Uso de substâncias psicoativas
260
5.3 Saúde mental e população em situação de rua: iatrogenia?
265
5.4 Cultura e Educação
271
5.5 Adaptação à rede de serviços: há lugar para todos?
275
5.6 Maioridade e juventude
278
5.7 Execução da política para a infância e juventude via projetos
sociais
286
6. POSSIBILIDADES E LIMITES DO CIRCUITO DE ATENÇÃO À
ADOLESCÊNCIA E À JUVENTUDE DE GRUPOS POPULARES
291
6.1 Chaves de leitura sobre as políticas para a juventude
292
6.2 Ações em rede: entrelaces e desenlaces
296
6.3 Limites das ações
301
6.4 Possibilidades das ações
306
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
311
7.1 Trajetórias de vida: dinâmica viva
313
7.2 Entre outros pontos e espaços
317
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
320
9. ANEXOS
337
9.1 Roteiros de Entrevistas
337
9.2 Roteiro para os Grupos de Atividades
339
9.3 Termos de Consentimento
341
9.4 Apresentação resumida da autora e do orientador da tese
350
LISTA DE FIGURAS
Figura Título da figura Pág.
Figura 1 Mapa da Região Metropolitana de Campinas 53
Figura 2 Foto aérea da cidade de Campinas 54
Figura 3 Mapa da Cidade de Campinas – Índice de Condição de
Vida, por bairro
56
Figura 4 Pirâmide Etária Populacional de Campinas 58
Figura 5 Distribuição populacional de Campinas, segundo faixa
etária
59
Figura 6 Plano Municipal para a Infância e Juventude 66-67
Figura 7 Natureza da intervenção dos serviços com interface no
atendimento aos meninos e às meninas em situação de rua
80
Figura 8 Áreas de intervenção para a situação de rua 81
Figura 9 Áreas de interface com a situação de rua 82
Figura 10 Período de Permanência no abrigo 106
Figura 11 Educadora e jovem jogando basquete em praça pública 134
Figura 12 Jovens tocando pandeiro 135
Figura 13 João jogando capoeira 135
Figura 14 Morador de rua almoçando em uma praça 136
Figura 15 Jovem trabalhando nas ruas 138
Figura 16 Trabalho nas ruas 138
Figura 17 João no Projeto Ponto Jovem de acesso à Internet 140
Figura 18 Colchão na rua abandonado 141
Figura 19 Túnel de pedestres no centro da cidade 143
Figura 20 Cíntia realizando atividades artesanais 147
Figura 21 Cartaz do grupo de atividades 171
Figura 22 Cartaz do grupo de atividades 209
Figura 23 Cartaz do grupo de atividades 209
Figura 24 Cartaz do grupo de atividades 211
SIGLAS UTILIZADAS
AFAGAI Associação Fraterna de Apoio Global ao Adolescente e à
Infância
C.T. Conselho Tutelar
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CMDCA Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente
CRAISA Centro de Referência e Atenção Integral à Saúde do
Adolescente
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FEBEM Fundação para o Bem-Estar do Menor
FUMEC Fundação Municipal para Educação Comunitária
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
L.A. Liberdade Assistida
N.A. Narcóticos Anônimos
ONG Organização Não-Governamental
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
SUAS Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
11
APRESENTAÇÃO
A temática da juventude vem ganhando a agenda de discussões e ações
públicas em proporções ascendentes, na busca de meios de intervenção com essa
população, que tem sido caracterizada como um grupo social plural e emergente. No
Brasil, os jovens vêm sendo encarados como objetos específicos de intervenção do
Estado, notadamente pelas esferas federal e municipais.
O final do século XX demonstrou a visibilidade da juventude a partir do
parâmetro de “crise” contemporânea, acarretada pelas transformações no mundo do
trabalho, pelas novas formas de pobreza e marginalidade (ATTIAS-DONFUT, 1996)
e pelo crescimento da violência em nossa sociedade. O jovem, que sempre foi
acompanhado de um imaginário de transformação e de rebeldia, passou a ser visto
como agente de práticas violentas. Fato influenciado pela expressiva veiculação, pela
mídia brasileira, de notícias relacionadas a comportamentos violentos por parte de
adolescentes e jovens. Essa caracterização, em sua maior parte, descreve os jovens
negros e moradores das periferias das grandes cidades, e cria uma associação entre
juventude, violência e pobreza.
Tal associação resulta na interpretação dos jovens como “problema político”,
instalado na esfera pública e que interfere na dinâmica social (ABAD, 2003). Tem
sido observada uma visão predominante do jovem como ameaça à ordem social, para
o qual se compreende que a intervenção política é capaz de criar respostas. Essas
ações podem reproduzir a ideologia dominante ou, em contraposição, “contemplar
configurações inovadoras que compõem o campo de forças e de disputas que
constituem o jovem como categoria social no interior dos espaços públicos da
sociedade brasileira” (SPOSITO, 2007, p. 6).
As definições de juventude são polissêmicas, não consensuais e conflitantes,
englobando as influências socioculturais contemporâneas. A juventude, como
categoria formada por sujeitos concretos: os jovens, pode ser caracterizada do ponto
12
de vista de uma geração, compreendida em suas ações e desdobramentos no tempo e
espaço histórico ocupado; e ainda como uma “fase da vida” (ATTIAS-DONFUT,
1996). Afasta-se dos conceitos estabelecidos de “ciclos de vida”, com influência
unicamente da biologia, e aproxima-se da idéia de “cursos de vidas”, que não
menospreza a biologia, mas considera também o contexto social em que se insere
(FEATHERSTONE, 1994). Nos cursos da vida, a juventude pode ser compreendida
como processos múltiplos e diversificados, que devem ser abordados com uma
vertente interdisciplinar.
Uma das definições sobre a juventude recai na faixa etária que a compõe,
questionando sobre os marcos delimitadores inicial e final dessa fase, sobre os ritos
de passagem da infância para a adolescência e juventude e, posteriormente, sobre o
demarcador de entrada na vida adulta.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica como jovens aqueles com
idade entre 15 e 24 anos. Em alguns países da Europa – como Áustria, Bélgica e
Alemanha –, é considerado jovem aquele que tem idade entre 25 e 30 anos; na
França, Noruega e Reino Unido, é compreendido o intervalo de idade entre 11 e 25
anos; na Dinamarca, Espanha, Grécia, Itália e Portugal, é dada a marca do fim da
educação secundária como entrada na juventude e seu término aos 30 anos (IARD,
2001). No Brasil, não há um consenso estabelecido, sendo atualmente debatido o
limiar entre 15 e 29 anos.
Tal debate se amplia e ganha complexidade em um contexto sociocultural
contemporâneo de constantes e rápidas mudanças em que a sociabilidade, valores e
modos de vida enquadram-se e diversificam-se em uma sociedade moderna, liberal,
contemporânea, pós-contemporânea ou reflexiva, conforme as nomenclaturas
aplicadas nesse campo por alguns teóricos.
Nesse arcabouço investigatório sobre quem é o jovem na sociedade
contemporânea insere-se a multiplicidade de juventudes, que pode ser tratada sob as
perspectivas social, cultural, econômica e outras (ABRAMO e LEÓN, 2005). Porém,
há uma demarcação fundamental sempre presente, assinalada aqui como necessária
para a discussão: a classe social a que o indivíduo pertence. A estrutura
13
socioeconômica capitalista da sociedade ocidental define uma importante vertente de
análise que também cria diferenças nas possibilidades de vivência da juventude. O
acesso aos direitos sociais – como educação, cultura, saúde e outros –, aos bens
materiais e à possibilidade de inserção no mundo do trabalho são elementos
relevantes para se refletir sobre quem é o jovem e quais as perspectivas e
possibilidades nesse estágio de liminaridade e transição para a vida adulta. As
diferenças entre as juventudes passam, também, pelas classes sociais, pela
desigualdade socioeconômica, pelo acesso aos direitos, pela diferenciação cultural de
alguns grupos, dentre outros muitos elementos. Notadamente no Brasil, mas não só,
pertencer a uma classe desfavorecida economicamente determina, mesmo que não
totalmente, alguns grupos de jovens e suas possibilidades de inserção na sociedade.
Enfoca-se, neste trabalho, jovens de grupos populares urbanos, enfatizando a
presença da relacionada discussão entre sociabilidade, acessos, desigualdades e
direitos. Demarca-se o conceito de sociabilidade enquanto construção do próprio
social a partir da interação dos sujeitos, definindo e redefinindo simbolicamente as
diferenças socioculturais (FRÚGOLI Jr., 2007).
Dentro, ainda, do múltiplo universo dos jovens advindos de grupos populares,
focalizamos a pesquisa com os que se encontram em situação de rua, especificamente
aqueles que fazem da rua o seu lugar de morada e vivência, apropriando-se do espaço
público de circulação para sua vida privada, ou seja, para suas trocas,
experimentações, estadas.
A presença de pessoas nas ruas e o uso das ruas para uma forma de vida
divergente da padronizada socialmente, ou mesmo em confronto com a ordem social
citadina (MAGNI, 2006), consiste em um temário com diferentes inferências na
história e foi (e ainda é) nomeado de múltiplas maneiras em determinadas épocas:
errantes, desviantes, marginais, vagabundos, coitados, miseráveis, excluídos, entre
outros termos.
Quando se trata de crianças e adolescentes, a discussão sobre estar na rua e
fazer dela o espaço de vida e sobrevida preocupa-se com a proteção, o cuidado e a
tutela daqueles que ainda não podem responder por si mesmos, por estarem em uma
14
condição peculiar de desenvolvimento, conforme termos preconizados pela lei
brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
Nesse contexto, a vivência dessas crianças e adolescentes adquire uma
dimensão particular e um universo de sociabilidades, códigos e necessidades de
capitais e habilidades que se apresentam sob outro viés, sob uma realidade
específica, que pontua diferentes elementos para essa população.
Diante da diversidade da infância, da adolescência e da juventude,
extremamente presente na sociedade brasileira, há a compreensão social desse grupo
como um problema político para o qual deve haver investimentos estatais com o
intuito de intervir e solucioná-lo. Dessa forma, a sociedade expressa a necessidade de
intervenções assistenciais com essa população, seja para a promoção de seu cuidado
e proteção, seja para a tentativa de controle da transgressão e infração, o que cria o
debate e as possíveis intervenções com esses meninos e meninas. Essas ações são
realizadas por uma gama de atores com diferentes finalidades. A preocupação em
torno da criação e administração das intervenções com a população infanto-juvenil
tem raízes causais históricas, calcadas no discurso da benemerência e da caridade,
que compreendiam, e ainda compreendem, um leque de atos para sua defesa,
intervenção e “controle”.
Nesse caldo de cultura criado, de diferentes interfaces, arrola-se a necessidade
de análise das políticas públicas desenvolvidas para que se indague sobre as
convergências e divergências entre as proposições, o planejamento e a execução dos
diferentes projetos em andamento, bem como sobre a produção de mudanças nos
espaços e na população com que atuam.
Sendo assim, intencionamos contribuir no campo das análises das
intervenções com a população infanto-juvenil advinda de grupos populares,
questionando uma política social realizada, seus princípios estabelecidos, e se houve,
pelos usuários dessas ações, meninos e meninas, mudanças na sua trajetória de vida.
Busca-se compreender o campo da política quando este se debruça sobre as questões
sociais brasileiras, vislumbrando conhecer as possibilidades de intervenções para o
15
acesso aos direitos, a promoção de cidadania, a proteção da infância e da juventude e
as tentativas de diminuição das desigualdades sociais.
Com estas bases, realizamos a análise da política desenvolvida no município
de Campinas-SP, direcionada para a atenção às crianças e aos adolescentes em
situação de rua, através de um programa denominado “Criando Rede de Esperança”.
Esse programa compôs o Plano Municipal de Atenção a Infância e Juventude,
prioridade de investimento municipal, e articulava organizações governamentais e
não-governamentais que se dedicavam a atender a população em situação de rua. A
totalidade das instituições trabalhava com crianças e adolescentes até a idade de 17
anos e 11 meses. Portanto, nossas análises referem-se a esse período e demonstram a
ausência de ações com aqueles que cruzam a fronteira da maioridade. Fazemos,
assim, uma análise de uma política para crianças e adolescentes, sendo enfocados
como sujeitos especificamente os adolescentes.
O Plano Municipal iniciou-se em 2001, na gestão municipal de 2001-2004, e
prosseguiu após a mudança de governo, no cotidiano da assistência ofertada às
crianças e aos adolescentes locais. Nossa análise refere-se ao período de 2001 e
estende-se até 2006, quando finalizamos a permanência e o acompanhamento em
campo. Utilizamos como procedimentos de investigação a realização de entrevistas
semidirigidas, de grupos de atividades e de observação participante. Na busca de
ampliar o prisma de análise sobre os serviços componentes do Programa, escolhemos
alguns interlocutores singulares, por meio de passagens de parte de sua história de
vida pelos equipamentos sociais. Assim, direcionaram nossa apresentação da rede de
serviços, questionando as incorporações e inovações sociopolíticas estabelecidas.
Segue o desenvolvimento deste texto com um capítulo inicial, que pretende
traçar alguns apontamentos sobre o conceito de políticas sociais e seu embasamento,
as quais foram circunscritas como possibilidade de implantação, inovação e
ampliação de ação na estrutura capitalista. Nesse mesmo item, apresenta-se o atual
referencial jurídico legislativo do Estado brasileiro na atenção às suas crianças e aos
adolescentes, que se estrutura como a base teórica para o desenvolvimento das
políticas sociais. Apresenta-se também a incongruência da realidade brasileira,
16
caracterizada por um alto nível de desigualdade social, os princípios plenos sociais
das leis em voga e, nessa ambigüidade, as análises são contextualizadas.
No capítulo 2 discutem-se os métodos utilizados para o desenvolvimento do
trabalho, a partir de uma dupla e desafiadora inserção nesse local: inicialmente como
técnica social, seguida de pesquisadora.
Em seguida, demonstram-se alguns dados sobre o município de Campinas, SP
e a situação da infância e juventude locais. A partir daí, observa-se a priorização, na
gestão 2001-2004, do desenvolvimento de ações com essa população, materializada
pelo Plano Municipal de Atendimento a Infância e Juventude, do qual são
apresentadas as diretrizes gerais e, especificamente, o programa para os meninos e
meninas em situação de rua, o Grupo de Trabalho Criando Rede de Esperança.
O capítulo 4 é construído pela apresentação e discussão da rede de serviços
através de cinco trajetórias de vida singulares, de três meninos e de duas meninas.
Busca-se a realização de um diálogo entre a vida real, dinâmica e pulsante, e a
análise dos serviços, para as quais colocou-se nossa lente, com a finalidade de traçar
encontros e desencontros, problematizar questões vivenciadas no cotidiano
institucional, de forma implícita ou explícita, expressas por essas trajetórias.
Seqüencialmente, são apresentadas as tensões entre os discursos dos
diferentes atores, dando luz às categorias empíricas surgidas: a concretude da rede de
serviços, suas intenções, possibilidades e limites. Foram confrontados os referenciais
presentes no capítulo 1, sobre as políticas sociais e o legado do direito com a
realidade de campo observada.
Desse modo, no capítulo 6 foram pontuadas as políticas de atendimento à
infância e à juventude, suas ações e inserção na ordem capitalista vigente, na busca
de princípios que permitam pensá-las concretamente e, assim, efetivar o desafio de
atender à população juvenil, com o pressuposto do direito, tendo como base nossa
experiência e os elementos que ela nos oferece.
Por fim, vislumbramos denotar mecanismos que se direcionem para o
estabelecimento real de uma política para a juventude de grupos populares, visando à
inserção social, autonomia e ampliação de acesso a direitos.
17
1. POLÍTICAS SOCIAIS E O APARATO JURÍDICO
BRASILEIRO DE ATENÇÃO À INFÂNCIA E À JUVENTUDE:
APONTAMENTOS INICIAIS
Não será a primeira vez que o saudável exercício de
olhar para trás ajudará a iluminar os caminhos que
agora percorremos, entendendo melhor o porquê
de certas escolhas feitas por nossa sociedade.
Mary del Priori
As questões sociais contemporâneas requerem do Estado moderno a busca de
respostas às problemáticas apresentadas pela realidade vivida. Reconhecer a presença
de demandas sociais e a necessidade de intervenção estatal sobre essas questões é
condição prévia para se falar sobre políticas sociais.
Vivemos um modelo de Estado capitalista contemporâneo, com o
componente democrático como pressuposto implícito, definido por OFFE e RONGE
(1984) como a forma institucional de poder público que, em sua relação com a
produção material, caracteriza-se, basicamente, pelas determinantes funcionais:
privatização da produção (propriedade privada dos meios de produção); dependência
estrutural do processo de acumulação (orçamento do Estado atrelado à acumulação-
impostos); e legitimação democrática (mecanismos representativos).
Dentre as possibilidades de análise dos Estados capitalistas, a política pública
pode ser um dos primeiros recursos de dados empíricos sobre o Estado, pois elas são
o “Estado em ação”, nos seus aspectos determinados e intencionais, distintos através
de meios institucionais mobilizados (LECA, 2004). Nesse Estado, a política pública
visa à manutenção das relações de troca a ele inerentes, como uma forma de
reprodução de todos os valores da sociedade capitalista, e as políticas sociais, um
caso particular das políticas estatais, buscam criar condições para que cada cidadão
seja incluído em tais relações de troca (OFFE e LENHARDT, 1984).
As políticas sociais representam a incorporação de “necessidades humanas”,
segundo os “interesses” do sistema. Em muitos momentos, é gerada uma tensão a fim
de que haja uma ampliação do reconhecimento dessas “necessidades”, que se
18
traduzirão na implantação de inovações sociopolíticas. Elas serão decorrentes dos
resultados das tensões ocasionadas pelas relações de força entre a sociedade civil, a
sociedade política e os seus demais atores sociais. Nesse conflito de interesses, no
interior do jogo político, há a ação de agentes da sociedade civil para pressão e
mobilização social: os movimentos sociais. Eles intervêm na arena cultural e política
como um ator que propõem a luta pelo alargamento e acesso aos direitos sociais,
ajudando a demarcar uma visão ampliada de democracia (DAGNINO, 2000).
Para que novas “necessidades” sejam incorporadas, o Estado responsabiliza-
se, com maior ou menor grau de envolvimento, segundo parâmetros democráticos e
sociais estabelecidos na esfera dos direitos conquistados, reconhecidos e legitimados.
As políticas sociais apresentam as diretrizes nacionais para o encaminhamento e o
enfrentamento de problemáticas sociais criando, ou não, os mecanismos para a
operacionalização de direitos em diversas áreas, tendo como base a Constituição
Brasileira, cumprindo seu papel para o desenvolvimento da cidadania social,
conciliando, contudo, (...) as exigências admitidas para a reprodução do capital e as
necessidades humanas socialmente sancionadas (LOPES e MALFITANO, 2007,
p.233).
Ainda para OFFE e LENHARDT (1984) as inovações sociopolíticas no
campo das políticas sociais serão implementadas na medida em que haja mudanças
na forma de gerar, financiar e distribuir as prestações de serviços sociais pelos
gestores do Estado. Esses elementos determinarão o alcance das políticas sociais,
caracterizadas de acordo com a natureza de sua intervenção, entre promotoras de
ações universais ou focais. As políticas focais, recortadas para um público e
objetivos específicos, serão, na maioria das vezes, dirigidas aos grupos populares.
O conceito de grupos populares urbanos, utilizado nesse estudo, circunscreve-
se na estrutura da divisão social do trabalho, entendendo-se como “populares”
aqueles advindos dos grupos de “trabalhadores”, ou seja, os agentes que, nas práticas
sociais de trabalho, ocupam um lugar determinado na esfera econômica, pois
dependem da venda de sua força de trabalho. Compreende-se desde os trabalhadores
assalariados com um emprego “estável” até o conjunto dos trabalhadores que
realizam atividades precárias e mesmo aqueles que vivenciam o desemprego
19
estrutural, pois configuram a “totalidade do trabalho social, a classe trabalhadora e o
mundo do trabalho” (ANTUNES, 2003, p. 98, grifo original). Buscando uma não
delimitação da questão popular somente pela categoria econômica, aglutina-se a
dimensão sociocultural que representa mecanismos organizativos de cotidiano,
submissão e resistência, observados pelos comportamentos, modos de vida,
linguagem, dentre outros elementos (BOURDIEU, 1983). Na totalidade deste texto, é
feita referência a um grupo de jovens populares, filhos de trabalhadores ou pessoas
excluídas do universo do trabalho, que tem uma sociabilidade e um cotidiano
marcados pela sua vinculação à sua posição social.
Assim, seguimos traçando o percurso de incorporação de necessidades,
inovações sociopolíticas e direitos para as crianças e os adolescentes brasileiros, no
plano das leis, e sua inconcretude cotidiana na realidade social contemporânea.
1.1 Criança e adolescente: a construção do lugar de prioridade nacional
A constituição do aparato jurídico brasileiro contemporâneo de atenção às
crianças e aos adolescentes brasileiros efetivou-se pelas ações dos movimentos
sociais pelos direitos da infância e da adolescência junto aos movimentos pela
democratização do Brasil, na década de 1980, que estavam juntos na luta pelo fim da
ditadura brasileira. Como uma das conseqüências desse momento histórico, a
Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) declara a criança e o adolescente como
“absoluta prioridade” (Artigo 227), inaugurando o reconhecimento do princípio
jurídico brasileiro na atenção a essa população, que se apresenta consoante com
declarações internacionais, como a Declaração de Genebra sobre os Direitos da
Criança (1924) e a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), revista e
ampliada na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança (1989).
20
Em continuidade a esse movimento, em 1990 há a promulgação do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), o qual busca uma universalidade para os
direitos e intervenções com todas as crianças e adolescentes brasileiros (VOGEL,
1995). O ECA estabelece os direitos básicos para todos, “proteção integral à criança
e ao adolescente” (Artigo 1.º), definindo criança como a pessoa com “até 12 anos de
idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade” (Artigo 2.º). A
partir deste delega: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária” (Artigo 4.º), reconhecendo uma “condição peculiar da criança e do
adolescente como pessoas em desenvolvimento” (Artigo 6.º) (BRASIL, 1990).
A Constituição Brasileira e o ECA determinam, no plano formal, a
priorização desse grupo etário no âmbito da política social nacional, devendo garantir
orçamento para a realização de uma série de serviços pela lei estabelecidos, que
visem à promoção do acesso aos direitos básicos, elencados para todos, assim como
uma estrutura de suporte para aqueles que não tenham acesso a alguns direitos por
meio da família ou da sociedade – como casos de ausência da família –, e ainda um
sistema de reeducação para aqueles que entram em conflito com a lei, por causa de
delitos. Em outras palavras, o aparato legislativo brasileiro reconhece a infância e a
adolescência como temática prioritária de investimento pelas políticas socais, sob
uma perspectiva universalista, e estabelece a necessidade de criação de serviços, a
serem efetuados pelo Estado e pela sociedade, em três níveis: acesso aos direitos
básicos (para todos), acesso a serviços que atendam condições especiais (para
aqueles que não tiveram seus direitos assegurados) e, por fim, atenção diferenciada
aos adolescentes que estão em conflito com a lei (BRASIL, 1990, Livro I, Título II;
Livro II, Título I e II).
Para que a lei seja traduzida em ações cotidianas é primordial que se discuta a
destinação orçamentária para o setor, uma vez que a concretização das políticas
sociais ocorre por essa via. Pela relevância do tema, a VII Conferência Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente, realizada em dezembro de 2007 pelo Conselho
21
Nacional dos Direitos da Criança e do e Adolescente (Conanda), elegeu o
investimento orçamentário como assunto norteador das discussões. Em suas
deliberações, destacou: a necessidade de monitoramento dos orçamentos municipais,
estaduais e federal; a regulamentação e implementação de Fundos para a Infância e
Juventude; a implementação da metodologia de “Orçamento Criança e Adolescente
(OCA)” com o intuito de criar a transparência sobre os investimentos destinados para
esse setor, que, comumente, é difícil de serem acompanhados em razão de as
destinações serem espalhadas entre as diferentes secretarias e órgãos administrativos
dos governos; a viabilidade do controle social pelos Conselhos; e o incentivo para o
desenvolvimento de mecanismos de pressão para ampliação dos recursos para essa
população
1
.
A análise concreta de dados orçamentários demonstra a necessidade desse
debate. Na esfera federal, por exemplo, um estudo da destinação orçamentária de
2005 para projetos dirigidos a crianças e adolescentes (contemplando as áreas de
Educação, Saúde e Assistência Social e Direitos de Cidadania) mostrou que o
investimento total foi de R$ 30.078,10, o que representou 2,7% dos gastos do
governo federal ou ainda 1,6% do Produto Interno Bruto do país daquele ano
(INESC, 2006). Esses dados denunciam, claramente, o não cumprimento legislativo
de priorização das crianças e adolescentes brasileiros.
O gasto do governo federal com cada criança e adolescente do Brasil atingiu R$
516,41 em 2005, o que representa aproximadamente R$ 1,41 por dia. Questionamos
o cumprimento da legislação, que determina prioridade absoluta à população
infanto-juvenil, já que é gasta uma quantia tão irrisória por dia com cada uma delas
(INESC, 2006, p. 7).
Outra análise sobre o Plano Plurianual 2004/2007 do governo federal apontou
a diminuição de recursos para políticas públicas voltadas a essa parcela da população
1
CONANDA. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do e Adolescente. Deliberações da VII
Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente “Concretizar Direitos Humanos de
Crianças e Adolescentes: Um Investimento Obrigatório”. Brasília de 3 a 6 de Dezembro de 2007.
Informações disponíveis em:
http://ww2.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/secretarias/participacao_parceria/conferencias/2007
/deliberacoes-VII_Conf_Nacional.pdf. Acesso em 05 nov 2008.
22
deflagrada pela redução de valores e por “uma falta de planejamento do governo
federal para elaborar as leis orçamentárias e executar o gasto público nas áreas
sociais” (INESC, 2007, p. 12).
Com isso, questiona-se a viabilização do aparato jurídico instaurado, pois o
quadro retratado denuncia que a incorporação e inovação sociopolítica circundante as
crianças e os adolescentes na sociedade brasileira estão “apenas” no plano formal e
bem distantes da realidade cotidiana. O mesmo cenário é observável no plano das
ações de Assistência Social, área privilegiada para as intervenções com os grupos de
crianças e adolescentes que se encontram em “situação especial”. A área avançou
recentemente no plano jurídico, porém mantém o desafio de tornar-se concreta.
Sobre os mesmos pressupostos do ECA e concernentes com a Carta
Constituinte, a política e legislação brasileira da Assistência Social define a área
como: “A Assistência Social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de
Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através
de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir
o atendimento às necessidades básicas” (BRASIL, 1993, Artigo 1.º). Este escopo
legislativo rege, também, os serviços que intervêm com a população infanto-juvenil,
somando suas ações à legislação específica, o ECA. Seu processo culmina no recente
Plano Nacional da Assistência Social que prevê como base operacional a matriz
sociofamiliar e contextualiza:
As reconfigurações dos espaços públicos, em termos dos direitos sociais assegurados
pelo Estado Democrático de um lado e, por outro, dos constrangimentos
provenientes da crise econômica e do mundo do trabalho, determinaram
transformações fundamentais na esfera privada, ressignificando as formas de
composição e o papel das famílias. Por reconhecer as fortes pressões que os
processos de exclusão sociocultural geram sobre as famílias brasileiras, acentuando
suas fragilidades e contradições, faz-se primordial sua centralidade no âmbito das
ações da política de assistência social, como espaço privilegiado e insubstituível de
proteção e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas
que precisa também ser cuidada e protegida. Essa correta percepção é condizente
com a tradução da família na condição de sujeito de direitos, conforme estabelece a
Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei
Orgânica de Assistência Social e o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2004c, p, 39).
23
A Política Nacional de Assistência Social propõe a organização da política
pública da área através da constituição e implementação – pela federação, estados e
municípios, com participação e mobilização da sociedade civil – do Sistema Único
de Assistência Social (SUAS), caracterizado como “um sistema público não-
contributivo, descentralizado e participativo que tem por função a gestão do
conteúdo específico da Assistência Social no campo da proteção social brasileira”
(BRASIL, 2005a, p.15) visando, a partir da nomeação e identificação de diferentes
níveis de complexidade: básica, média e alta, à implementação de serviços de
garantia de acesso ao direito de uma proteção social mínima. Para esse sistema, a
atenção aos meninos e às meninas em situação de rua ocorre nos eixos de média
complexidade (ações de abordagem, referenciamento e atenção em serviços) e alta
complexidade (projetos de moradia).
Determina-se, então, a proposição jurídica de intervenção direcionada numa
perspectiva universalista de ações, incorporando todas as crianças e adolescentes a
partir do referencial básico de acesso aos direitos por todos e, posteriormente, há a
especificação da abordagem focal daqueles que tiveram seus direitos violados ou
encontram-se em conflito com as normas sociais, bem como o patamar de legislação
sobre as ações de Assistência Social que configurarão o direito de uma proteção
mínima para todos.
Esses referenciais foram constituídos pela contestação dos movimentos
sociais sobre a visão e os patamares executados para as intervenções com crianças e
adolescentes, especialmente na área da Assistência Social, e representam uma
disputa de forças, no jogo político, na qual avançou-se, efetivamente, na mudança
sobre o reconhecimento formal da categoria social de criança e de adolescente.
O ECA substitui o Código de Menores (BRASIL, 1927) que trazia um
progresso por meio do estabelecimento de normatizações que respondiam às
mudanças sociais vivenciadas, incorporando novas “necessidades” reconhecidas
socialmente. Isso se exemplifica com a proibição do trabalho para menores de 12
anos (Art. 101), com a regulamentação do trabalho e aprendizado em alguns
estabelecimentos com periculosidade à saúde (Art. 103) e ainda com a proibição aos
menores de 18 anos de trabalhar em locais perigosos à saúde e à vida (Art. 105).
24
Com relação específica ao trabalho, crianças e adolescentes ocupavam, até
então, um lugar relevante no sistema produtivo, uma vez que eram “trabalhadores” e
“mão-de-obra” ativa, compondo um montante numérico considerável para a
indústria, até o final do século XIX. Por exemplo, em 1894, “25% do operariado
proveniente de quatro estabelecimentos têxteis da capital [paulista] eram compostos
por menores” (RIZZINI, 2004, p. 377). Até o início do século XX, as crianças
tiveram expressão como trabalhadora, entretanto, gradualmente, foram retirada dessa
posição, devido a um relevante movimento da sociedade civil contra a exploração do
trabalho infantil, com representatividade, inclusive, nas fábricas (RIZZINI, 2004),
refletindo-se na primeira lei específica para essa população: o Código de Menores.
Nesse processo, há também as influências da mudança contemporânea da categoria
“trabalho” na sociedade (CASTEL, 1998).
Por outro lado, o Código de Menores destacava uma política pautada pelo
“controle da ordem” e pela “correção”. Legislava sobre a intervenção com os
menores, os menores de 18 anos, referindo-se ao grupo de abandonados e/ou
delinqüentes. Em seu artigo 1.º, o Código de Menores dizia: “o menor, de um ou
outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos de idade, será
submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas
neste Código” (BRASIL, 1927). Definia o “menor” como o público-alvo da
legislação, caracterizando-o como o “abandonado ou delinqüente”.
Com isso, fixou-se a categoria “menor” como sendo a criança e o adolescente
pobres, na medida em que os enquadrava na condição de orfandade ou infração, ou
ainda nas duas situações, criando-se uma mistura de interpretações que se configurou
como o estabelecimento de um rótulo de “minoridade social”. Para tal situação foi
promulgada a legislação que previa a intervenção institucional, a partir da figura da
autoridade pública, que decidiria a medida a ser aplicada, dentro do prospecto de
retorno do menor à guarda dos seus pais até sua internação em instituição de
proteção. Os termos aplicados, contudo, estavam circunscritos ao discurso da
assistência e proteção daquela população. “A autoridade, a quem incumbir a
assistência e proteção aos menores, ordenará a apreensão daqueles de que houver
25
notícia, ou lhe forem presentes, como abandonados e os depositará em lugar
conveniente, ou providenciará sobre sua guarda, educação e vigilância (Art. 55)” .
Com a conjunção, no texto jurídico, da situação “dos menores abandonados”
(capítulo IV) e “dos menores delinqüentes” (capítulo VII), há a contribuição para a
constituição de um imaginário popular sobre a infância e a adolescência que
associou, e associa, a pobreza e o delito, o abandono e a infração, reforçando um
pensamento causal sobre origem de classe e condição jurídica de vida. Soma-se, ao
estabelecimento deste imaginário popular, a questão de raça/etnia como elemento
componente da associação: abandono, delinqüência e repressão. A criança e o
adolescente negro e pobre são, rapidamente, relacionados à infração, para os quais é
necessário o controle por meio da violência e punição. Portanto, a denominação
“menor” tornou-se sinônimo de criança e adolescente pobres, a maior parte negra.
Para esse grupo, as intervenções sociais realizadas calcavam-se nos princípios
da moral, do controle e também da caridade e da benemerência praticadas pelas
instituições, majoritariamente religiosas. Esse contexto mostra-se na contramão
daqueles contemporaneamente estabelecidos e em vigor que, ao menos no aparato
jurídico, são baseados nos direitos.
A história brasileira de intervenção social é tributária de um modelo europeu
que investiu na criança como população específica para abordagem, quando elas
deixaram de ser vistas como “adultos em miniatura” e ganharam um status cultural
próprio, no qual se apóia o discurso sobre a preocupação com o acesso à educação,
com o desenvolvimento de ações programáticas em saúde, com o controle de
doenças, com a realização de ações higienistas. Para garantia de tais aspectos, houve
a instauração de programas especiais de assistência social para os grupos populares,
direcionados para as mães e para as crianças pequenas. As crianças assumem, desde
o início, um lugar central no trabalho com as famílias, a partir do momento em que
se nomeia a mulher como mãe e como alguém que precisa de ajuda para garantir o
bem-estar de seus filhos. O que possibilitou as ações de “gestão” das famílias
populares, com intervenções para sua educação moral (DONZELOT, 1977 e
BATTAGLIOLA, 2000).
26
Para as famílias populares consideradas incapazes de cuidar dos seus filhos,
instauraram-se as intervenções públicas – realizadas pela esfera privada e estatal,
porém, prioritariamente pela esfera privada sem fins lucrativos.
Assim, engendrou-se uma trajetória de intervenções institucionais, que
repercutem nas ações hoje desenvolvidas, que foi fixada pelo trabalho com os grupos
populares, na qual “a identificação da assistência social – prática social de ajuda
científica ou empírica – com a filantropia e a benemerência é comum”
(MESTRINER, 2001, p. 13), demonstrando o legado sócio-histórico construído, que
perpassa do ideário da caridade benemerente ao princípio dos direitos reconhecidos e
juridicamente estabelecidos no final do século XX.
Desenrola-se, então, um processo histórico-social de criação de instituições,
institucionalizações e cuidados com essa população
2
que culminaram na criação de
um imaginário social sobre o lugar da população infanto-juvenil de grupos populares
e a delimitação de suas esferas de acesso. Esse imaginário permeia a visão cultural
predominante, fazendo com que não só historicamente, mas também ainda hoje, o
olhar direcionado para essa população seja baseado na piedade e no medo.
Portanto, “fazer o bem ao próximo”, sem que se discutam as causas dessa
problemática nem mesmo as ações que demandam, originou uma cultura da dádiva e
da benemerência, na qual a cidadania é concedida e configurada pela subserviência,
associada à dimensão do “favor”, regendo, e em muitas ocasiões continuando a reger,
as relações de cidadania no Brasil (SALES, 1994). Articuladamente, o imaginário
cultural de “correção” e “governamentalidade das crianças” (PASSETTI, 2004),
baseado na lógica instalada na prisão e no orfanato, previa “corrigir comportamentos
ou reeducar o jovem” (p. 356) e instituiu o valor da “educação pelo medo”,
apontando esse fundamento também como princípio para a esfera estatal e trazendo a
dimensão do “medo” e da “correção” para a constituição do imaginário social frente
às crianças e aos adolescentes populares.
2
Não serão abordados em profundidade os aspectos históricos da atenção à infância e juventude de
grupos populares no Brasil em razão de este tema não ser nosso objeto principal. Contudo, é
fundamental o estudo sobre seus elementos e a compreensão sobre o lugar sócio-histórico dessa
população atualmente, bem como vislumbrar caminhos para as políticas sociais dirigidas a ela. Para
aprofundamento da temática sugerimos RIZZINI (2008), MARCÍLIO (1998) e PRIORE (2004).
27
Temos hoje a vigência de outros princípios que, segundo o referencial de
BOURDIEU (1995), o Estado brasileiro incorporou, juridicamente, o acesso aos bens
sociais para a população de crianças e de adolescentes como sua função, declarando
que sua “mão esquerda”, relacionada aos direitos, deve intervir para todos os sujeitos
em situação peculiar de desenvolvimento. Diferentemente da maioria dos artigos do
Código de Menores (promulgado em 1927 e revisto em 1979) que enfocava o papel
do Estado sob o aspecto oposto, ou seja, pela sua “mão direita”, através da qual
desempenhava sua função de regulação social pelas instituições como a prisão, a
polícia e a justiça.
O legado histórico construído, porém, ainda influencia o imaginário social, a
compreensão e as intervenções desenvolvidas com a população de crianças e de
adolescentes. É importante assinalar o ganho histórico da promulgação oficial, na
medida em que os avanços teóricos intrínsecos ao reconhecimento jurídico
consagrado não são poucos. Entretanto, a lei encontra o desafio de tornar-se
realidade em um contexto cultural de princípios divergentes e de forte desigualdade
social, como aquele vivido pela sociedade brasileira.
1.2 Do princípio legislativo do ECA ao contexto das políticas sociais
O princípio jurídico de prioridade da nação em torno das crianças e
adolescentes pode ser compreendido como uma inovação sociopolítica conquistada
pelos movimentos sociais brasileiros, no escopo de análise dos fundamentos das
políticas sociais. Todavia, é necessário olhar o cotidiano das práticas instituídas para
que se apreendam as contradições e distanciamentos entre a proposição jurídica e seu
legado real estabelecido.
A realidade brasileira é fortemente marcada pela desigualdade social,
observada pela elevada concentração de renda vigente no país (IBGE, 2007b) e,
conseqüentemente, pela miséria sofrida por grande parte dos brasileiros. Para PERES
28
et al. (2008), os problemas advindos da pobreza, da desigualdade e da exclusão
social são relacionados à esfera da justiça social, pois “o aprofundamento das
desigualdades sociais (...) deve ser compreendido como resultado de um processo de
consolidação democrática incapaz de reduzir o hiato entre os direitos políticos, por
um lado, e os sociais, por outro” (p. 269). Fato agravado no enraizamento cultural e
político da sociedade na qual “ser pobre significa não apenas privação econômica e
material, mas também ser submetido a regras culturais que implicam uma completa
falta de reconhecimento das pessoas pobres como sujeitos, como portadores de
direitos” (DAGNINO, 2000, p. 82).
Portanto, a junção de aspectos econômicos, políticos e culturais consolidou,
no plano teórico, “altos ideais para uma sociedade ideal” (FONSECA e
CARDARELLO 1999, p. 84), como aqueles estabelecidos nos princípios jurídicos
brasileiros para atenção à infância e à adolescência, porém, encontram um grande
distanciamento da realidade vivenciada, considerando que, é necessário admitir “a
premissa de que os direitos humanos em sua forma abstrata e descontextualizada
pouco significam” (p. 85).
Tal situação se agrava quando encontra um desenvolvimento de intervenções
sociais enraizadas em práticas focais, na contramão da perspectiva universalista
proposta pelo ECA.
A década de 1990, além de um marco legislativo na esfera dos direitos para a
população brasileira, é também o momento político do estabelecimento dos
princípios neoliberais no Estado democrático. As reflexões sobre o papel do Estado e
das políticas sociais ofertadas confluíram para um debate internacional acerca das
possibilidades de enxugamento e minimização das ações estatais, dentro de uma
perspectiva de um “Estado Mínimo”, o que significa, nas explicações de
ANDERSON (1998), um Estado parco em gastos sociais e em intervenções
econômicas, mas forte no controle dos sindicatos, além de garantidor da estabilidade
monetária e de uma taxa “natural” de desemprego. Ainda para esse autor, trata-se de
uma “reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-
estar” (p. 9) vivenciado na Europa no século XX. Na América Latina, DRAIBE
(1993) pontua que as políticas públicas de caráter social foram enquadradas dentro
29
da discussão do Estado Mínimo e são submetidas “aos rigores dos ajustes
macroeconômicos e à devastação social” (p.92) conseqüentes. Apresentam, então, a
“deterioração dos serviços sociais públicos, a par do empobrecimento da população”
(p. 101).
No Brasil, a assunção pública pelo governo do modelo neoliberal ocorreu,
inicialmente, pela Reforma do Estado, proposta e realizada, na época, pelo ministro
da Fazenda Luis Carlos Bresser Pereira, no final da década de 1980. Foi uma
resposta à crise fiscal vivenciada, apontando, entre outros temas, o enxugamento das
ações do Estado em relação aos gastos com as políticas sociais. A opção para o
“enxugamento” deu-se, segundo PEREIRA (1992), por meio de um processo que
denominou de “publicização”, ou seja, o avanço para a propriedade pública não
estatal, a qual prevê a passagem de serviços, classificados como não necessários para
a permanência no âmbito estatal, para “organizações sociais”, definidas como
entidades públicas de direito privado que celebram contratos de gestão com o Estado
e são financiadas, parcial ou totalmente, pelo orçamento público.
No meio, entre as atividades exclusivas de Estado e a produção de bens e serviços
para o mercado, temos hoje, dentro do Estado, uma série de atividades na área social
e científica que não lhe são exclusivas, que não envolvem o poder do Estado.
Incluem-se nesta categoria as escolas, as universidades, os centros de pesquisa
científica e tecnológica, as creches, os ambulatórios, os hospitais, entidades de
assistência aos carentes, principalmente aos menores e aos velhos, os museus, as
orquestras sinfônicas, as oficinas de arte, as emissoras de rádio e televisão educativa
ou cultural, etc. (...) estas são atividades competitivas, que podem ser controladas
não apenas através da administração pública gerencial, mas também e
principalmente através do controle social e da constituição de quase-mercados
(PEREIRA, 1997, p.388, grifo nosso).
Essa reforma emplacou no país pela disseminação da discussão de parcerias
público-privado, no reconhecimento da constituição de um “espaço público não
estatal”, (...) voltado para o interesse dos indivíduos e suas famílias” (PEREIRA,
1997, p. 389).
Contudo, esse processo de reformismo, segundo NOGUEIRA (1998), causou
uma significativa mudança na configuração de oferta de serviços públicos, com
30
perdas relevantes nas áreas social e de ciência e tecnologia, embasando argumentos
críticos contrários a essa proposição, como apresentado por MONTAÑO (2003):
a dita “publicização” é, na verdade, a denominação ideológica dada à transferência
de questões públicas da responsabilidade estatal para o chamado “terceiro setor”
(conjunto de “entidades públicas não-estatais”, mas regido pelo direito privado) e ao
repasse de recursos públicos para o âmbito privado. Isto é uma verdadeira
privatização de serviços sociais e de parte dos fundos públicos. Esta estratégia de
“publicização” orienta-se, numa perspectiva, na verdade, desuniversalizante,
contributivista e não constitutiva de direito das políticas sociais (p. 45-6, grifo do
original).
Todas essas conformações em torno das recentes reformas e redefinições de
papéis do Estado contemporâneo trazem o questionamento sobre suas funções como
regulador, fiscalizador e executor de ações, orientando a direcionalidade e o
reconhecimento do que, efetivamente, o Estado pode e quer protagonizar na esfera
social. Para OSZLAK (1997) o Estado contemporâneo tem o desafio de instalar um
segundo processo de reforma, mais árduo e trabalhoso que o primeiro, que teve como
norte a diminuição do papel do Estado. Reconhecendo:
“uma ordem que inevitavelmente será capitalista, mas que sua adjetivação será o
resultado de uma luta política ainda incerta quanto aos seus resultados. (...) [O
Estado] Será “social”, “renano”
3
ou com “rosto humano” nos pressupostos éticos de
eqüidade distributiva em que se funde, ou se limitará a suprir e conter as
conseqüências mais ostensivas e prejudiciais que conduzem à marginalidade e à
desigualdade social?” (p.25)
4
.
No interior desses conflitos políticos e embates, ora mais direcionados para
um “rosto humano”, ora mais “neoliberais”, as instituições de assistência à infância,
grande parte caracterizadas como entidades sociais privadas sem fins lucrativos, as
3
Referência à região de Reno, na Europa, e seu modelo de Estado de Bem-Estar Social, de “rosto
humano”.
4
Un orden que inevitablemente será capitalista, pero cuya adjetivación es el resultado de una lucha
política todavía incierta en cuanto a sus resultados. (..) Será "social", "renano" o "con rostro
humano", en cuanto a los presupuestos éticos de equidad distributiva en que se funde, o se limitará a
suprimir o contener las consecuencias más ostensiblemente oprobiosas que produzcan en términos de
marginalidad y desigualdad social?
31
chamadas organizações não-governamentais (ONGs), constituem um campo da
“nova filantropia” que se aproximam da proposição de “publicização” de Bresser
Pereira, institucionalizando meios “para a contenção de custos do Estado” e,
simultaneamente, gerando “empregos no âmbito privado” (PASSETTI, 2004, p.368).
Esse processo ganha força e expressão, na década de 1990, na medida em que
corrobora a proposição de Reforma do Estado em curso e retira do serviço público a
responsabilidade de assunção e oferta de serviços para a população infanto-juvenil,
passando para a esfera privada ou pública não estatal essa tarefa
5
.
Com isso, as necessidades incorporadas e assumidas como responsabilidade
da esfera estatal são diminuídas e muito aquém dos pressupostos garantidos pelos
princípios jurídicos, sendo, na maior parte das gestões governamentais, realizada a
execução de projetos pontuais, algumas vezes viabilizados por recursos externos, a
partir da focalização de suas ações. MENDES (1993) pontua:
a focalização, decorre do fato de que os gastos sociais públicos chegam, em pequena
proporção, aos setores pobres da sociedade e que, portanto, para eles, devem ser
dirigidos, prioritariamente, os recursos para os programas sociais. Contudo, a
pequena força política desses grupos populacionais, decorrentes de sua
desorganização, e a pouca sensibilidade social dos neoliberais com relação a eles
fazem com que a política de focalização termine por transformar-se numa
neofilantropia (p.51).
A proposta da focalização abarca o discurso das necessidades mais urgentes,
dirigindo-se para apelos humanitários, de difícil crítica, por se direcionarem para
carências reais e urgentes, numa proposição de ação radial, a partir das partes para o
todo. Entretanto, representam, na maior parte de suas ações, a decomposição do todo,
o esvaziamento, ou a minimização, das ações e responsabilidades estatais. Por
exemplo, discursos sobre a erradicação da pobreza e o atendimento aos mais
5
Uma das conseqüências vivenciadas, no contexto econômico, é a criação de uma nova possibilidade
de ator para o investimento no setor filantrópico: o empresariado, que se beneficia das leis
implementadas de isenção de impostos para o investimento no campo cultural e social. As empresas
têm visto como um “negócio”, uma estratégia de Mercado com resultados de marketing, o
financiamento de projetos sociais, via ONGs ou mesmo no setor público, ganhando visibilidade e
associação no imaginário sociocultural popular de suas ações e produtos. Para isso, os projetos
sociais escolhidos são pulverizados, fragmentados, decididos e priorizados no escopo privado,
raramente sob a ótica daqueles para quem as ações são direcionadas (PAOLI, 2002).
32
necessitados, apropriados de ideários democráticos, ganham destaque, dificultando a
compreensão dos reais intuitos da política pública de corte social no neoliberalismo.
Da mesma maneira, o apelo pela participação da sociedade civil, a evocação da
cidadania e dos direitos, entre outros termos e temas, aparecem no espaço público,
camuflados por uma nebulosidade sobre seus significados, mascarando, sobre a
mesma nomenclatura, projetos políticos distintos, compreendendo projetos políticos
como o conjunto de interesses, crenças e valores que representam e orientam a ação
política de diferentes atores. Esse processo resulta no que DAGNINO (2004)
nomeou de “confluência perversa”, na medida em que, para projetos distintos,
utilizam-se discursos semelhantes.
As relações entre Estado e ONG parecem constituir um campo exemplar da
confluência perversa (...) [As ONGs] são freqüentemente vistas como os parceiros
ideais pelos setores do Estado empenhados na transferência de suas
responsabilidades para o âmbito da sociedade civil. Uma eventual recusa deste papel
se dramatiza quando ela se defronta com a possibilidade concreta de produzir
resultados positivos – fragmentados, pontuais, provisórios, limitados, mas positivos
– com relação à diminuição da desigualdade e à melhora das condições de vida dos
setores sociais atingidos (DAGNINO, 2004, p.101).
Nessa híbrida dinâmica são desenvolvidos os programas e políticas sociais,
buscando uma conjunção entre os princípios jurídicos universalistas, a
contextualização focal da política social atual junto a um histórico e imaginário da
minoridade social das crianças e dos adolescentes pobres. Esse imaginário se
apresenta notório no linguajar popular, muito refletido na forma de relato da
imprensa brasileira ao noticiar fatos concernentes a esse grupo.
Vale destacar que os avanços teóricos formais jurídicos, acima apresentados,
concernem ao universo de crianças e adolescentes, segundo seus termos, mas não
alcançam a juventude. Embora haja referências a esse grupo e também exista uma
fase de idade congruente entre adolescência e juventude, segundo algumas divisões
etárias, trata-se de categorias diferentes, com problemáticas e demandas
diferenciadas que, portanto, requerem ações públicas diversas. O ECA caracteriza
criança e adolescente segundo a faixa etária, porém não aborda a juventude,
33
apontando-a apenas como nomenclatura de alguns órgãos, como a relacionada à
justiça, a “Vara da Infância e Juventude”. Porém, trata-se de um órgão de
atendimento de crianças e de adolescentes. Existe, portanto, um legado de proteção
instituído para a infância no Brasil, alguns apontamentos para a adolescência, porém
nenhum aprofundamento jurídico sobre a juventude. Essa mistura de termos
estabelecida cria uma confusão de interpretações e compreensões, além da
invisibilidade da ausência de ações realizadas com a juventude. Pode-se dizer que,
“se tomadas exclusivamente pela idade cronológica e pelos limites da maioridade
legal, parte das políticas acaba por excluir um amplo conjunto de indivíduos que
atinge a maioridade, mas permanecem no campo possível de ações, pois ainda vivem
efetivamente a condição juvenil” (SPOSITO e CARRANO, 2003, p. 19).
Neste trabalho trata-se, prioritariamente, de meninos e meninas classificados,
pelos serviços, como adolescentes, uma vez que têm até 18 anos, sendo que quando
completavam a maioridade, não tinham mais a possibilidade de freqüência aos
mesmos. O foco de intervenções com adolescentes, sustentado pelo aparato jurídico
do ECA, “deixou na sombra como sujeito de direitos os jovens que atingem a
maioridade legal” (SPOSITO, 2003, p. 65). Grande parte de nossos sujeitos é, hoje,
quando esse texto foi elaborado, jovens adultos; porém permanecem, na nossa
avaliação, enquanto população que demanda ações. Tem-se um debate atual e
relevante para as políticas sociais: a população juvenil de grupos popular. O lugar do
jovem encontra um vazio maior de ações sociais, uma vez que não há respaldo
formal jurídico na lei. Esse fato é notável, por exemplo, no nosso caso, quando
investigamos um programa do Plano Municipal para a Infância e Juventude do
município de Campinas, SP, mas que intervinha, em sua totalidade, com crianças e
adolescentes até 18 anos.
Tal fato agrava-se pela questão de esse público expressar, de forma mais
veemente, uma condição de “sobrante” na estrutura econômica, uma vez que as suas
possibilidades de inserção são pequenas, pois há uma nova configuração do universo
do trabalho, a partir de uma crise da sociedade salarial (CASTEL, 1998), ocasionada,
entre outros fatores, por uma outra forma de desenvolvimento e circulação do capital,
que prescinde de mão-de-obra pouco qualificada.
34
A soma desses fatores conjunturais resultou em um lugar de não prioridade,
insuficiência, fragmentação e pouca visibilidade das ações direcionadas para a
juventude, sendo que RUA (1998) classifica-as como um “estado de coisas”, pois
não são enfrentadas como um “problema político”, permanecendo como “paisagem”
para os diferentes governos e não como problemática a ser enfrentada.
Esse quadro tem sofrido modificações, nesta década, quando dá criação e
ampliação de ações federais e municipais direcionadas especificamente para a
população juvenil, que vem ganhando as agendas políticas e sendo estruturada como
população-alvo de programas em desenvolvimento (SPOSATI, 2007). O governo
federal tem fomentado, atualmente, o debate em torno dessa temática e promovido
conferências de discussão e criação de setores para que se caminhe na constituição de
uma política para a juventude. Nessa direção, NOVAES et al. (2006) relatam a
experiência e o desafio da “consolidação das Políticas de Juventude como Política de
Estado” (p. 133), em um momento no qual há a pauta e a militância, por alguns
setores, do reconhecimento formal do jovem como sujeito de direitos. Trata-se,
ainda, de um desafio.
35
2. CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO PELA REDE DE SERVIÇOS
2.1 Nossa trajetória
Nossa trajetória profissional, até a efetivação dessa pesquisa, iniciou-se na
formação na graduação, como terapeuta ocupacional, e a constante indagação em
torno da função social da nossa profissão.
Pensando nas reais demandas dos sujeitos, na sua autonomia e nas ações
possíveis e necessárias para sua concretização, questionávamos as possibilidades do
universo da saúde, quando parte de uma abordagem exclusivamente clínica, de
realizar intervenções com as demandas sociais e suas complexidades. Reconhecendo
a necessidade e relevância do desenvolvimento e implantação de ações clínicas,
enraizadas no campo das ciências biológicas – vertente predominante na nossa
formação universitária –, indagávamos a possibilidade de diálogo com as ciências
humanas e a criação de outras chaves de leitura da realidade que nos possibilitassem
novos diálogos e novas abordagens de temáticas sociais, as quais avaliávamos,
influenciadas pela formação de alguns professores na Universidade – notadamente
do Projeto Metuia
1
, local de nossa inserção e permanência – como importantes e
necessárias de serem realizadas a partir de nosso núcleo profissional.
Nesse processo, a partir da apreensão sobre a complexidade da sociedade e as
intervenções técnicas e profissionais sobre ela, o campo das políticas públicas passou
a ser relevante, na medida em que a compreensão da organização social em torno das
políticas, em particular das políticas sociais, no interior da lógica do sistema
1
O Projeto Metuia tem se dedicado à realização de estudos e pesquisas, à formação de estudantes de
graduação e pós-graduação e à implementação de intervenções no campo social que busquem a
inovação por meio da criação de novas metodologias participativas, assim como a discussão sobre o
papel social dos técnicos, em especial do terapeuta ocupacional, dedicando-se ao enfrentamento das
problemáticas contemporâneas da sociedade brasileira. É formado por professores, técnicos e
estudantes da Universidade Federal de São Carlos e Universidade de São Paulo (BARROS, LOPES e
GALHEIGO, 2002).
36
capitalista, propiciou-nos um olhar sobre o contexto social que não partia apenas de
uma individualização das demandas e particularização de problemáticas, que são, na
maioria dos casos, coletivas.
Para continuidade desse percurso e aprofundamento de nossos estudos,
conciliar a participação técnica, em experiências desenvolvidas no campo social, e
manter nossa inserção na academia, com o intuito de realizar reflexões críticas sobre
as possibilidades e limites das práticas de intervenção, foi nossa opção. O que
culminou no nosso enraizamento na Universidade a partir do lugar de pesquisadora e
de professora.
Realizamos nosso projeto de mestrado
2
e demos continuidade aos estudos
naquele momento desenvolvidos, pautados pela discussão das análises das políticas
sociais, a participação dos movimentos sociais e as intervenções direcionadas aos
grupos em situação de vulnerabilidade social e desfiliação, ou seja, dupla fragilização
social (CASTEL, 1998). Como continuidade da proposição de realização de
reflexões críticas aprofundadas sobre uma prática profissional em desenvolvimento,
nasceram as indagações que originaram a pesquisa de doutorado aqui apresentada, a
partir de nossa experiência profissional no município de Campinas, SP.
Em 2002, iniciamos nossa atuação em Campinas por meio de uma
organização não-governamental voltada para a atenção de crianças e adolescentes em
situação de rua. A partir da coordenação técnica dessa instituição, engajamo-nos
fortemente na criação da rede de serviços locais, através do Grupo Criando Rede de
Esperança, compartilhando o projeto em implementação com a Prefeitura local.
Posteriormente, em 2004, saímos da ONG e recebemos um convite a permanecer
nesse grupo de trabalho, por solicitação de seus demais membros, e aceitamos a
proposição
3
, sob uma perspectiva de continuidade do trabalho em desenvolvimento e
militância na área da infância e juventude. Ainda em 2004, cerca de quatro meses
depois, viemos ocupar um cargo dentro de um projeto municipal, realizando o
2
MALFITANO, A. P. S. Políticas públicas e movimentos sociais: atenção à infância e o Programa de
Saúde da Família. 2004. 180p. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, SP.
3
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Ata da reunião realizada
em 13 abr 2004. 2004.
37
trabalho de intervenção técnica e, posteriormente, acumulando a função de
coordenação das ações ligadas ao campo da saúde. Permanecemos nessa função até
abril de 2005. Essa inserção profissional e participação intensa na rede de
atendimento aos meninos e às meninas em situação de rua, a partir do lugar da ONG
e do poder público, conduziu-nos ao questionamento sobre a eficiência da política
pública com aquele grupo, mesmo quando eles são formalmente declarados
prioritários por uma gestão municipal, e interrogamo-nos sobre a forma como as
ações institucionais são recebidas pelos seus usuários, tendo como base a passagem
de suas trajetórias pela rede de serviços a eles direcionada.
Os questionamentos sobre os métodos de intervenção, a sua eficiência, a sua
representatividade histórico-social, os direitos da população infanto-juvenil, bem
como o desenvolvimento das políticas públicas e o melhor investimento do dinheiro
público estavam cotidianamente enunciados seja na nossa intervenção direta com
aquela população, seja por meio das atividades de gestão e planejamento das ações
na rede. Esses processos nos conduziram ao desejo de aprofundamento do tema e
investigações sobre as políticas e programas sociais, resultando na proposição do
projeto de doutorado, tendo seu resultado final apresentado nesta tese.
Compartilhamos da proposição de que é possível e benéfica a realização de
um trânsito constante entre a intervenção e a efetivação da pesquisa, abrindo espaço
para a reflexão acerca das experiências realizadas no ambiente microssocial e suas
conexões com o contexto macrossocial das políticas públicas. Buscamos tecer
reflexões sobre uma prática que possibilite a troca de saberes e a entrada do técnico
no contexto social como intermediário para as ações (BRANDÃO, 1984), através da
proposta de um diálogo entre o contexto local, a política social e a investigação
científica sobre as mudanças produzidas com um dado grupo populacional.
Partindo do referencial materialista histórico, para o qual o método de
pesquisa traduz-se como uma possibilidade de apreensão radical da realidade, temos
o objetivo de que as reflexões racionais, derivadas das análises da concretude social,
possam dar expressão abstrata às idéias e proposições de mudanças e transformações
dos fenômenos sociais (FRIGOTTO, 1989). Dessa maneira:
38
No processo dialético de conhecimento da realidade, o que importa
fundamentalmente não é a crítica pela crítica, o conhecimento pelo conhecimento,
mas a crítica e o conhecimento crítico para uma prática que altere e transforme a
realidade anterior no plano do conhecimento e no plano histórico-social. (...) A
reflexão teórica sobre a realidade não é uma reflexão diletante, mas uma reflexão em
função da ação para transformar (FRIGOTTO, 1989, p. 81).
Posicionamo-nos em um trânsito entre a teoria e a ação, por meio de um
caminho trilhado a partir de nossa prática e da apreensão dela como reflexões críticas
sobre a realidade, para buscar contribuições para a implementação de mudanças
sociais que, evidentemente, enlaçam-se na complexidade político-social e econômica
da sociedade moderna. Tendo como base uma leitura da nossa experiência,
pontuamos este trabalho em seu contexto histórico, político, técnico e local, com o
desafio de tecer uma conexão entre a formulação das políticas sociais, seu processo
de implantação e os resultados alcançados na vida daqueles sujeitos. Realizou-se esse
processo a partir do microcontexto, acreditando que este possa expandir-se para
levantar pistas sobre o macro, pois “é na análise que se estabelecem as relações entre
as partes e a totalidade” (FRIGOTTO, 1989, p. 89).
Desse modo, nossa inserção original no campo, na qualidade de técnica em
intervenção, foi o elemento fomentador e potencializador para a realização de nossa
pesquisa, com o intuito de apreender a realidade e pensar nos caminhos para
transformá-la, segundo os pressupostos apresentados. Contudo, é importante
assinalar que nosso duplo pertencimento ao campo – técnica de intervenção e,
posteriormente, pesquisadora – cria também uma contradição, na medida em que
nossas análises sejam provenientes do lugar de quem participou ativamente da rede
de serviços e, portanto, orientadas sobre essa experiência. Por um lado, a
participação na intervenção contribuiu para um aprofundamento na realidade
estudada, ofertando uma maior riqueza em quantidade e em qualidade de
informações. A partir dessa participação, houve o desejo de sua apreensão, tendo em
vista as angústias profissionais que visavam à maior efetividade da política social e,
no limite, à promoção de direitos para a população infanto-juvenil em situação de
rua. Por outro lado, esse mergulho em campo, por meio desse papel que precede a
pesquisa, direciona o olhar e conduz as reflexões para os aspectos da formulação e do
39
desenho de proposições, acompanhados de seus ideais. Essa dubiedade foi trabalhada
pelo acompanhamento da implementação das ações políticas e pela nossa tentativa de
dar voz às interrogações constantes feitas pelas histórias reais de vida que por nós
passaram. Trata-se do desafio de realizar o movimento de “estranhar o familiar”,
conforme descrito por VELHO (2003) e, a partir de então, estudar o próximo,
reconhecendo-nos como parte dele.
Caminhamos para uma proposição denominadas por BOURDIEU (2003) de
objetivação
4
participante (l’objectivation participante), ou seja, “a objetivação do
sujeito da objetivação, do sujeito em análise, do pesquisador por ele mesmo”
5
(p.43), consistindo, portanto, em:
observar-se observante, observar o observador no seu trabalho de observação ou de
transcrição de suas observações, no e pelo retorno sobre as experiências de campo,
sobre o relato aos informantes e, por último, mas não menos importante, sobre o
relato de todas essas experiências, que conduzem, freqüentemente, à conclusão, tão
desesperante, que tudo isso não é, jamais, um discurso definitivo, texto, ou pior,
pretexto ao texto (p. 43-44)
6
.
Há, portanto, limites nessa auto-observação, mas também ela fornece
elementos relevantes para a compreensão da realidade (BOURDIEU, 2003) e
intervenção sobre ela (FRIGOTTO, 1989).
Enfim, esse nosso lugar de inserção, como ator da política, foi um elemento
que alimentou o desejo de aprofundamento e investigação da política realizada e
fomentou o constante questionamento sobre a produção de mudança de aspectos na
trajetória de vida de sua população-alvo: crianças e adolescentes do município de
Campinas que utilizavam a rua como espaço de moradia. Assim, nessa nossa
4
Objetivação, segundo o dicionário Houaiss (HOUAISS e VILLAR, 2001), significa o “ato ou efeito
de objetivar”, ou, ainda, no marxismo, “o processo por meio do qual o trabalho humano,
transformando a natureza circundante, é materializado em objetos, o que pode ser empreendido
conscientemente (...) ou de forma alienada” (p. 2.041).
5
l’objectivation du sujet de l’objectivation, du sujet analysant, bref, du chercheur lui-même.
6
s’observer observant, à observer l’observateur dans son travail d’observation ou de transcription de
sés observations, dans et par um retour sur l’espérience du terrain, sur le rapport aux informateurs
et, last but not least, sur le récit de toutes ces expériences, qui conduit, bien souvent, à la conclusion,
assez dédespérante, que tout cela n’est jamais en définitive que discours, texte, ou, pire, prétexte à
texte.
40
trajetória, passamos da condição de trabalhadora da rede de serviços para a categoria
de pesquisadora de doutorado. Tendo, portanto, afastado-nos do campo como técnica
em intervenção e gestão e nele permanecido para a realização específica das
atividades metodológicas propostas pela pesquisa, efetivadas no período de abril de
2005 a julho de 2006. Tais atividades foram produzidas pela continuidade de nossa
participação no Grupo Criando Rede de Esperança, do acompanhamento das ações
da rede de serviços, da observação participante no serviço ambulatorial de saúde, e
também da realização de atividades de observação na rua e acompanhamento dos
percursos nas ruas dos meninos, a partir do convite deles. Por fim, retiramo-nos
totalmente do campo para a realização do estágio de doutorado no exterior e
dedicação exclusiva, posteriormente, às análises do material de campo e redação da
tese.
Após nossa saída de campo, ingressamos no Programa de Estágio Doutoral
no Exterior, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes), do qual recebemos uma bolsa de estudos para permanecer um ano em Paris,
França, junto ao Centro de Pesquisas, Medicina, Ciência, Saúde e Sociedade
(CERMES – Centre de Recherche, Médecine, Science, Santé et Société), filiado à
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Nesse período, obtivemos uma
complementação de nossa formação – por meio do acompanhamento de seminários,
discussão do projeto com pesquisadores locais e acesso às bibliografias; e realizamos
também um estudo exploratório de campo para conhecimento da política francesa de
intervenção com a juventude, em especial a juventude das periferias – periferias
nomeadas de “bairros sensíveis” –, as quais são compostas, predominantemente, por
imigrantes e/ou filhos de imigrantes.
Essa experiência possibilitou um alargamento da visão de análise em torno
das políticas públicas com as juventudes de grupos populares, a partir de um
contexto social diferenciado, com maior proteção e direitos sociais garantidos.
Pudemos perceber que a discussão das intervenções com os jovens está presente no
mundo ocidental, permeada pela visão de “perigo” e “ameaça” social ocasionados
por esse grupo. A discussão de ações, políticas e perspectivas de inserção social de
jovens é uma preocupação generalizada, cada vez menos orientada pela inserção
41
formal pelo trabalho e cada vez mais calcada em valores morais constitutivos,
normativos e controladores. Observamos, ainda, a forte presença do estigma e do
lugar social de não pertencimento dessa população naquela sociedade, mesmo
quando salvaguardados benefícios sociais mínimos. Tangenciamos este texto com as
reflexões produzidas a partir dessa experiência, embora não tenhamos feito uma
análise específica sobre o contexto de proteção social francês e suas políticas para as
juventudes, mas utilizamos nossas reflexões lá produzidas para ampliação do escopo
de análise sobre a realidade local brasileira, com recorte na nossa experiência de
campo em Campinas, e da visão em torno das ações públicas para com essa
população.
2.2 Tempos da pesquisa de campo: escolhas, métodos e coleta de dados
Os tempos referenciados para o trabalho de campo foram dados a partir da
soma dos nossos distintos papéis ocupados nesse contexto. No período entre 2002 e
abril de 2005 exercemos a função de técnica de intervenção da rede, durante três
anos; e entre abril de 2005 a julho de 2006 realizamos as atividades de campo,
durante quinze meses. Totalizamos, portanto, “os tempos” de mais de quatro anos,
com atividades distintas entre nossos dois papéis, porém, caracterizando-se como
fontes igualmente relevantes.
No nosso tempo dedicado à coleta de dados, durante os últimos quinze meses,
utilizamos como procedimentos: pesquisa documental nos arquivos de registro do
Grupo Criando Rede de Esperança e do Plano Municipal a Infância e Juventude, e
em nossos registros pessoais do processo de trabalho que compúnhamos (cadernos de
anotações); entrevistas semidirigidas com diferentes atores; grupos de atividades com
os adolescentes, tendo como base a metodologia dos grupos focais; observação
participante em uma instituição e na rua; e, também, o acompanhamento de
trajetórias de vida, trechos biográficos, de alguns adolescentes.
42
A pesquisa documental foi realizada a partir dos arquivos do Grupo Criando
Rede de Esperança, mantidas no Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente (CMDCA), local que, atualmente, sedia o grupo. Com uma autorização
do CMDCA, por meio de sua presidência e coordenação da comissão de crianças e
adolescentes em situação de rua, acessamos as atas passadas do grupo e o Plano
Municipal para a Infância e Juventude, da gestão 2001-2004, com seus relatórios de
avaliação. Complementamos essas fontes com nossos registros pessoais, realizados
quando da participação das reuniões e seminários, como atores do processo de
constituição e ação do Grupo Criando Rede de Esperança.
Com o intuito de acessar o discurso de diferentes atores sobre as políticas e
programas sociais, realizamos entrevistas semidirigidas
7
, a partir de um roteiro
preestabelecido (anexo), com três grupos diferentes, a saber: gestores, serviços
(coordenadores e técnicos) e usuários (adolescentes). Com os gestores, entrevistamos
os coordenadores da área da criança e do adolescente das Secretarias Municipais de
Assistência Social
8
e Saúde; a supervisora educacional do projeto da Sala de
Transição, voltada para o atendimento em educação formal dos meninos e meninas
em situação de rua, da Secretaria Municipal de Educação; e a agente cultural do
Departamento de Ação Cultural, responsável pela implementação de atividades de
lazer e cultura na região central, voltadas para adolescentes e jovens, da Secretaria
Municipal de Cultura, Esportes e Turismo. Entrevistamos também um representante
de cada Conselho Tutelar da cidade, dois representantes do CMDCA e o coordenador
do Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Campinas,
organização da sociedade civil caracterizada como movimento social para a defesa
de direitos dessa população.
Nos vinte programas que compõem ou tangenciam a rede para o atendimento
as crianças e os adolescentes em situação de rua, entrevistamos o coordenador e um
técnico que trabalhasse diretamente com os usuários locais. Em algumas instituições,
7
Seguindo as recomendações do Comitê de Ética, que tem por base a resolução do Conselho
Nacional de Saúde 196/96, as pessoas que nos concederam as entrevistas não foram identificadas,
para garantir sigilo. São destacadas apenas, quando necessário, as instituições a que pertencem.
8
A Secretaria Municipal de Assistência Social de Campinas passou, a partir de 2005, a ser chamada
de Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência, Trabalho e Inclusão Social.
43
esse cargo era acumulado pela mesma pessoa e, nessa situação, realizamos apenas
uma entrevista. Passamos pela totalidade dos programas que formam a rede de
serviços para essa população.
Entrevistamos também, em profundidade, cinco adolescentes que
freqüentavam a rede de serviços. Destacamos que essas entrevistas pouco avançaram
sobre a avaliação pessoal por parte deles com relação às instituições. Eles não faziam
muitas distinções entre os equipamentos e salientavam a busca por pessoas e
benefícios específicos, em vez da especificidade do serviço propriamente. As
entrevistas terminaram por ofertar um material rico sobre a vivência nas ruas e as
redes pessoais de suporte construídas, incluindo pontos nos equipamentos, e não uma
opinião pessoal sobre esses locais. Devido a esse fator resultante do campo, o
discurso literal dos meninos e das meninas sobre a rede é minoritário no
desenvolvimento da tese, enfocando-se mais na nossa observação realizada. Porém,
procurando dar voz a essa população, destacamos episódios de suas trajetórias pelos
serviços.
Compusemos um material de 44 entrevistas, que foram gravadas e transcritas,
em sua totalidade
9
, as quais são apresentadas, em suas partes, no interior do texto. A
transcrição foi enviada aos entrevistados para eventuais correções. Não encontramos
todos as pessoas, devido a mudanças eventuais de trabalho ou forma de contato,
obtendo o retorno de 75% dos colaboradores. O processo de realização das
entrevistas foi considerado desde o momento da sua solicitação até os comentários
feitos após o gravador ser desligado.
Nossa permanência em campo, para além das entrevistas, ocorreu por meio da
observação participante semanal em uma instituição de saúde – local que
trabalhamos formalmente até 2005
10
–, por um período de quatro horas.
Permanecemos com essa atividade entre os meses de abril a dezembro de 2005,
9
Entrevistas realizadas no período médio de 1 hora cada. A totalização das transcrições somou 472
páginas.
10
Observação, na qualidade de pesquisadora, registrada no Centro de Educação dos Trabalhadores
de Saúde (CETS) da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Campinas.
A coordenadora local solicitou-nos, como contrapartida, a realização de encontros de discussão de
textos, por nós sugeridos, junto aos profissionais locais, com a finalidade de realizar formação
continuada de sua equipe. Realizamos, em 2006, quatro encontros com esse fim.
44
momento em que observávamos a dinâmica institucional e os adolescentes que ali
freqüentavam, através de nossa permanência no espaço de convivência da instituição.
A observação participante, como expressa seu nome, é compreendida como
uma metodologia de pesquisa que prevê a participação do observador/pesquisador no
contexto em análise, realizada pelo estabelecimento de uma “comunidade” entre o
pesquisador e os sujeitos de sua pesquisa. Entendendo “comunidade” como o
encontro, a empatia e a harmonia estabelecidos (CICOUREL, 1980). Essa
metodologia ganhou destaque na antropologia e na sociologia na década de 1950, a
partir das manifestações da Escola de Chicago (CEFAÏ, 2003). Ganhou um status
que chegou a ocupar um lugar “místico”, segundo esse último autor, na medida em
que passou a ser reconhecida como a forma de melhor apreensão da realidade que se
investiga. Entretanto, como todo método, não garante por si só tal apreensão, mas
possibilita a aproximação, dentro do que as circunstâncias permitem, das atividades,
dos interesses e dos afetos de um dado grupo (p. 502).
Juntamente com a observação participante, na busca de uma apreensão e
composição do discurso dos adolescentes sobre a rede de atendimento, realizamos
grupos de atividades em 12 instituições da rede (em um universo de 17 locais),
aplicando um roteiro semidiretivo de atividades e discussão, tendo como base o
método de grupos focais (roteiro aplicado anexo). Os grupos tinham duração de 1
hora e 30 minutos, em média, e contamos com a participação de 86 adolescentes no
total. O objetivo era o de levantar suas opiniões sobre as instituições, por meio de
dinâmicas e debates, nas quais utilizamos as atividades como elementos mediadores
que possibilitassem a emergência de discursos, entre eles o verbal, criando
dinâmicas, imagens e representatividades.
Ainda percorrendo o levantamento de material junto aos adolescentes,
permanecemos nas ruas de Campinas no período de 15 dias, por toda a jornada, em
julho de 2006, visando à aproximação com os meninos em um espaço extra-
institucional. O interesse em realizar “entrevistas” nas ruas apresentava dois
aspectos: primeiramente, em seu sentido mais direto, pelo conteúdo; e,
posteriormente, pela proximidade com o contexto de vida cotidiana, por meio de sua
inscrição territorial e rede de relações.
45
Partimos do pressuposto de que nossa presença na rua poderia favorecer um
outro discurso, mesmo que influenciado pelas relações vividas entre nós e os
meninos e as meninas que já conhecíamos. Desde o princípio de nossas atividades na
qualidade de pesquisadora, informamos que estávamos realizando uma pesquisa e
não trabalhávamos mais nos serviços que eles freqüentavam. Para eles, essa
informação parecia pouco influenciar e referenciavam-se nas relações já constituídas
conosco e no conhecimento prévio acumulado. Ainda assim, apostávamos que o
lugar dessa conversa, as ruas, apresentaria um impacto sobre seu conteúdo, além de
uma composição entre o conteúdo, por ele mesmo, e a observação do contexto onde
o encontro foi realizado.
Todavia, na nossa experiência, a aproximação com o contexto de vida nas
ruas sobressaiu-se aos conteúdos formalmente alcançados, além de ter permitido, a
partir do nosso trânsito em encontro com o deles, a apreensão de sua inscrição
territorial e a circulação em contextos por nós desconhecidos, incluindo aqueles que
não foram por eles verbalizados. Apesar da declaração de conteúdos relevantes, nas
entrevistas realizadas, pontuamos que o maior ganho dessa etapa do trabalho
redundou na nossa aproximação com o universo da rua, fator de extrema importância
para a compreensão sobre a passagem daqueles meninos e meninas pelos serviços e,
com isso, traduziram-se nos elementos mais utilizados nas nossas análises, no que
tangencia essa fase do campo. Inscrevemos a nossa passagem pelas ruas no âmbito
da observação participante, na medida em que ela possibilitou a abertura do campo
de observação e apreensão sobre a sociabilidade e as vivências daqueles meninos em
seu contexto
11
.
11
Sublinhamos que o objetivo de nossa pesquisa não era a apreensão sobre o modo de vida daqueles
meninos e meninas nas ruas, mas sim a sua passagem sobre a rede de serviços. Uma vez que nosso
objetivo fosse outro, seria fundamental uma temporalidade de permanência maior nas ruas. Contudo,
partíamos da mediação institucional e, com isso, da relação prévia estabelecida com aqueles
adolescentes. Tal ponto caracteriza nossa pesquisa na esfera da análise da política social,
diferenciando-se de relevantes experiências que teceram encontros com a população nas ruas a partir
de uma “relação direta”, como denomina GIROLA (1996) sobre seu estudo com a população de rua
em Paris, na qual ela se apresentava diretamente para os moradores de rua e, a partir das relações
estabelecidas, realizou sua pesquisa etnográfica; ou ainda em uma “relação aberta”, denominada
por RULLAC (2006), onde ele abordava os moradores de rua na condição de habitante do bairro em
que morava.
46
Nesse período, o elemento mais marcante vivenciado ocorreu pelo convite de
dois meninos para permanecermos alguns dias com eles, em suas caminhadas pelas
ruas, fato que orientou nossas atividades nesse espaço. Aceitamos e seguimos os
percursos por eles estabelecidos, com a nossa sugestão, que não teve objeções, de
uso de uma máquina fotográfica, com a qual fizemos algumas fotos, e solicitamos
que eles também as fizessem, com a proposição de mostrar-nos “a vida nas ruas”
12
.
Pareceu claro que esse convite foi decorrência de dois aspectos. Primeiro, pelo
vínculo que já tínhamos e o conhecimento mútuo de quatro anos, a partir de serviços
diferentes que, tanto nós quanto eles – em posições diferentes, evidentemente, –
freqüentamos, o que facilitou nosso contato. Outro aspecto que pode ser apontado,
trata-se da negociação do encontro e dos ganhos, para ambas as partes, derivados
daqueles momentos. Da nossa parte, estavam postos os interesses da pesquisa. Para
os meninos, havia a possibilidade de ganhos secundários a partir da permanência
conosco. Um exemplo ocorreu quando solicitaram alguma intermediação
institucional e sabiam de nossas possibilidades nessa direção, mesmo que não
representássemos mais, oficialmente, nenhum serviço da rede. Por alguns momentos,
contribuímos para o retorno deles para algum serviço, para a realização de um exame
clínico e para outras atividades que nos solicitaram. Tais fatos representam
benefícios secundários que desfrutaram ao permitirem o nosso acompanhamento em
seu universo: as ruas. Em contrapartida, possibilitaram-nos uma abertura e circulação
conjunta, atuando como nossos informantes e proporcionando a entrada em lugares
que, na qualidade de técnicas, desconhecíamos. Nessa negociação subjetiva,
permitiram-nos a aproximação com o trânsito presente no seu cotidiano.
As populações em situação de rua são conhecidas e nomeadas pela sua
dinâmica de movimento, denominadas de circularidade (GREGORI, 2000),
nomadismo (MAGNI, 2006) ou trânsito (FRANGELLA, 1996 e ADORNO, 1997),
que representam uma ocupação não tradicional do espaço urbano. Para
FRANGELLA (1996), a partir de uma pesquisa também com os meninos em
12
Algumas das fotografias realizadas nessas caminhadas encontram-se apresentadas no relato sobre
João, tendo sido realizadas por nós ou pelos meninos, estando, nesses casos, identificadas. Todas as
demais fotos apresentadas nesse texto são de nossa autoria, com algumas poucas exceções com sua
fonte nomeada.
47
situação de rua de Campinas, o acompanhamento de seus trajetos representou o
desenho de trânsitos, os quais contribuíram para as reflexões sobre as múltiplas
identidades daqueles sujeitos. Acrescenta-se que esses trânsitos representam também
a constituição de redes no tecido social, que deflagram a multiplicidade de espaços e
pontos que os sujeitos podem percorrer e enlaçar, de maneira mais ou menos sólida.
Com base nos conceitos de Simmel, FRÚGOLI Jr. (2007) define que a “sociedade
significa uma rede empírica de relações humanas, num dado tempo e espaço” (p. 36).
Logo, a vivência nas ruas, permeada por relações, possibilita, entre outras coisas,
formas de construções de redes pessoais de proteção e de suporte (GALVANI,
2008), nas quais os serviços compõem um ponto, podendo atuar para interações e
sociabilidades dessa dinâmica.
Por fim, sugerimos que fomos “capturadas” pelos diversos métodos de
trabalho de campo, a partir da permanência e “mergulho” nele (DALMOLIN et al.,
2002), com um diálogo entre nossas representações, e com apoio nas análises
etnográficas possibilitadas, reconhecendo-as como um recurso metodológico que
contribuiu para o trabalho desenvolvido. Destacamos que a multiplicidade de
métodos utilizados revela a nossa tentativa de aproximação, apreensão dos objetivos
da pesquisa, reconhecendo a complexidade do campo, da temática da vida nas ruas,
assim como influenciadas pelo nosso lugar ocupado para o seu desenvolvimento.
Consideramos que “o método aqui é entendido como o exercício reflexivo de
apreensão de uma dada realidade, ou como a expressão da relação sujeito/objeto, isto
é, da forma como o pesquisador enquadra a realidade e nela se enquadra” (ADORNO
e CASTRO, 1994, p. 173) e as suas possibilidades “de intervir não só sobre o campo
de pesquisa, mas também sobre nossas percepções a seu respeito” (p.183).
Como último elemento utilizado para a constituição de nossos caminhos pela
pesquisa, da tessitura de nossa rede de compreensões e análises, lançamos mão do
trânsito de trajetórias de vida dos meninos e meninas que, pessoalmente,
acompanhamos, para o levantamento e enlace de temáticas suscitadas e advindas
para os serviços, a partir das interrogações decorrentes dos seus percursos de vidas.
48
2.2.1 Trajetórias de vida: interfaces, interrogações e traços em
comunicação com a rede de serviços
O reconhecimento dos aspectos individuais de vida para a compreensão da
dimensão macrossocial ganha visibilidade na medida em que a cidade e suas
manifestações assumem o lugar de interesse de investigações e potencializam
reflexões sobre modos de vida e sociedade, traçando tentativas de comunicação entre
as partes e a sua totalidade, ou entre a vivência micro, local, e a sua
macrorrepresentatividade global.
O espaço das cidades e seu processo de urbanização caracterizam a dinâmica
social calcada nas desigualdades socioeconômicas e em seus fenômenos
desagregadores, colocando a cidade como elemento manifestador da estruturação
social, bem como espaço para interação e produção de sentidos, no interior de sua
lógica constituinte. As grandes metrópoles assumem as características de um local de
crescimento desordenado, no qual a economia monetária personifica o signo da
modernidade, juntamente com a “criação de novos padrões de troca e de espaços
para a sociabilidade e para os rituais da vida pública” (MAGNANI, 2002, p. 26).
Assim, investigar o meio urbano pode ser interpretado como uma tarefa de olhar “de
perto e de dentro”, em contraposição ao ideário neutro “de longe e de fora”
(MAGNANI, 2002), suscitando conexões no interior de uma sociedade desigual
contemporânea. A cidade, com a exigência de uma vida prática, situa os indivíduos
entre o anonimato e uma multiplicidade de papéis em diferentes círculos,
constituindo uma polaridade que culmina em um caráter reservado, insensível e
indiferente diante do cenário, e seus atores, moderno e urbano (FRÚGOLI Jr., 2007).
Nesse contexto, a utilização metodológica de biografias, histórias de vida e
trajetórias individuais destaca-se nas ciências humanas, no bojo de pesquisas que se
dedicam ao aprofundamento sobre as múltiplas experiências no meio urbano,
buscando um diálogo entre a vivência de fenômenos sociais e sua manifestação e
percepção nos e pelos indivíduos, fortalecendo a temática “indivíduo e sociedade”.
Tal tema assume centralidade na produção brasileira, a partir da década de 1970.
49
Segundo VELHO (2003), “os indivíduos, na sua singularidade também se tornaram
matérias da antropologia, à medida que eram percebidos como sujeitos de uma ação
social constituída a partir de uma rede de significados (...) enfatizando-se uma visão
dinâmica da sociedade e procurando-se estabelecer pontes entres os níveis micro e
macro” (p. 16).
A pesquisa com fontes biográficas pode assumir diferentes vertentes,
dependendo de seus usos e interpretações. Elas têm a possibilidade de constituírem-
se como um material potencial que permite que a história de vida exista e circule,
dando voz “a via da subjetividade”, “através dos seus relatos” pessoais,
“desenvolvendo uma lógica narrativa que procura dotar de sentido o que se conta”
(PAIS, 2005a, p. 87). Entretanto, quando descontextualizadas e isoladas, podem
constituir-se como uma “ilusão”, não enraizadas à “superfície social”, sendo
necessário sublinhar que o indivíduo ocupa uma pluralidade de papéis e representa as
respectivas dinâmicas sociais neles envolvidos (BOURDIEU, 1986a). Ou seja, se a
biografia ou a história de vida for analisada de forma isolada, ela não permite a
conexão com a sua inserção social, resultando em análises pontuais e fragmentadas
que não se comunicam com a estrutura social. “Os eventos biográficos se definem
igualmente como posição e mudança de posição, ou seja, mais precisamente, nos
diferentes estados sucessivos da estrutura de distribuição das diferentes espécies de
capital que estão em jogo no campo considerado”
13
(p. 71, grifo original).
LEVI (1989) faz uma distinção entre os tipos e usos de biografias,
classificando-as em: prosopografias e biografias modais, ilustrando os
comportamentos e aparências mais freqüentes, em termos estatísticos, buscando
dados individuais que comprovem generalizações, com menor enfoque nas
singularidades e trajetórias particulares; biografias e contextos, as quais buscam a
associação entre as trajetórias individuais e o contexto sócio-histórico em que estão
inseridas, compreendendo os fenômenos individuais, incluindo os “desvios” e
singularidades, no contexto em que se inserem, por meio da análise sobre o equilíbrio
da especificidade individual no sistema social; as biografias e casos limites, as quais
13
Les événements biographiques se définissent comme autant de placements et de déplacements dans
l’espace social, c’est-à-dire, plus précisement,dans les différents etats sucessifs de la structure de la
distribution des différents espèces de capital qui sont en jeu dans le champs considéré.
50
podem ser utilizadas para explicações sociais de casos extremos, que acumulam
pouco conhecimento, dirigindo-se para o contexto das “margens”; e, por fim,
biografias e hermenêutica, as quais, a partir do ato dialógico, analisam o material
biográfico na totalidade dos significados que ele pode representar, interpretando o
conhecimento como resultado do diálogo entre pessoas e entre culturas
14
.
A partir das reflexões de BOURDIEU (1986a) e da utilização, segundo LEVI
(1989), de biografias e contextos, pautamos, neste trabalho, a utilização de trechos
biográficos, ou trajetórias, contextualizados, com o intuito de alavancar as reflexões
sobre a rede de serviços, por meio do diálogo entre instituições, biografias e
trajetórias que por lá passavam (para as quais tais equipamentos sociais se dirigiam).
Os dados para a composição das descrições apresentadas foram formados
pela junção entre o discurso direto dos adolescentes, em momentos individuais
conosco, as informações de prontuários dos serviços que integramos, o nosso
acompanhamento profissional realizado com eles, bem como nossas anotações
pessoais do processo de intervenção e de campo. A “escolha” dos sujeitos das
trajetórias ocorreu pelo maior vínculo, conhecimento e abundância de informações
que dispúnhamos sobre os meninos e as meninas que ilustram nosso texto, e pela
possibilidade de encontrá-los, na época em que estávamos em campo, para solicitar a
autorização para este trabalho e realizar a entrevista individual. Buscamos enfatizar,
pelas trajetórias, as categorias levantadas pelo campo, ofertando outro prisma de
análise, dado a partir da priorização de elementos de suas vidas.
Para tanto, baseamo-nos na metodologia escolhida por PAIS (2005b), para
identificação de traços e riscos sociais envoltos na juventude classificada,
comumente, de “desenquadrada social”, em que ele enfatiza os traços de vida para
dar visibilidade àqueles jovens e buscar a identificação de elementos que se associem
aos riscos, mas que permitam a emergência de discursos menos normativos e que
demonstrem “quão diversos e contrastantes são os quadros de vida juvenis” (p. 15).
Para tanto, aborda:
14
Prosographie et biographie modale, biographie et contexte, la biographie et les cas limites et
biographie et herméneutique.
51
Traços de vida que matizam quotidianos juvenis, grafias dançantes de significados
de vida em sua errância semântica. Um traço instaura (por inclusão) um lugar de
escrita – ávida que se escreve, inscreve e descreve – lugar de exceção e gestão de
desejos e vontades, ansiedades e frustrações, expectativas e desilusões. Gestão de
gestos, gestos de vida, tocados e retocados, preenchendo modos ou quadros de vida.
Traços de vida que a ajudam a moldar, combinado diferentes estilos e usos,
acentuando singularidades, estabelecendo códigos. Traços de vida que,
eventualmente, projectam riscos de vida (p. 14).
Portanto, a partir das particularidades e singularidades das trajetórias, pois “a
vida não é apenas duração, mas também descontinuidade de actos, é necessário não
desprezar a singularidade, o pormenor, o acidental” (p. 16), dentro de sua
contextualização social, o autor analisa os traços de vida, sob uma dimensão objetiva
e também subjetiva, questionando que políticas podem ser “tracejadas” para essa
juventude “desenquadrada”.
Com essa mesma finalidade, de interrogação sobre as políticas a serem
implementadas para as juventudes, partimos da “sopa metodológica” (FRIGOTTO,
1989) aqui explanada, visando à apreensão de categorias empíricas que expressem o
próprio trabalho de campo, articulado aos sistemas de relações componentes
(MAGNANI, 2002) e à direcionalidade da análise dada.
52
3. O CENÁRIO DA PESQUISA
3.1 Campinas-SP
Campinas é um município do Estado de São Paulo, distante cerca de 95
quilômetros a noroeste da capital paulista, reconhecida na categoria de cidade desde
1842. Forma, juntamente com outros 19 municípios, a região metropolitana de
Campinas, oficializada pela Lei Complementar Estadual 870, de 19 de junho de
2000, sendo a nona maior região metropolitana do Brasil, contando com 2.633.523
habitantes (SÃO PAULO, 2008).
53
Fonte: SÃO PAULO, 2008, p. 2.
Figura 1 – Mapa da Região Metropolitana de Campinas
54
A região destaca-se por ser uma das mais atuantes do interior paulista no
quesito econômico, responsável por 9,1 % de seu Produto Interno Bruto (PIB).
Possuía, em 2005, uma taxa de urbanização de 97,3% (SÃO PAULO, 2008).
Campinas se sobressai por ser a maior cidade da região metropolitana e por
ser o pólo industrial local. Portadora de características de um grande centro urbano,
contava, em 2007, com 1.039.237 habitantes (IBGE, 2008), ou seja, cerca de 40% da
população da região metropolitana, e é a terceira cidade mais populosa do estado de
São Paulo, após Guarulhos, em segundo lugar, e a capital (IBGE, 2008).
Figura 2 – Foto aérea da cidade de Campinas
Fonte: http://www.nossosaopaulo.com.br/Reg_10/Reg10_CampinasVista.jpg
Configura-se uma cidade com elevado índice de riqueza, alta arrecadação de
impostos, além de sua produção marcante, no cenário nacional, no campo da ciência
e tecnologia. É considerada a 11.ª cidade mais rica do Brasil, com um PIB de R$
20,6 bilhões/ano, ou seja, 0,96% de todo o PIB brasileiro (IBGE, 2007a). Sua receita
orçamentária realizada na cidade, em 2006, foi de R$ 1.487.356.149,25 (IBGE,
55
2008). É também fortemente marcada pela presença de universidades, instituições e
centros de pesquisa, constituindo a localidade como uma das referências para a
difusão, o conhecimento e o desenvolvimento tecnológico do estado e do país.
Não obstante, a cidade de Campinas e sua região possuem uma discrepância
entre os índices sociais, quando comparadas com as taxas de riqueza e crescimento
local, pois, para o Índice Paulista de Responsabilidade Social (SÃO PAULO, 2006),
o município tem a característica de um local que congrega bons indicadores de
riqueza, porém apresenta aspectos socioeconômicos insatisfatórios, por exemplo, sua
taxa de riqueza e longevidade são pouco acima da média estadual e sua taxa de
escolaridade é pouco abaixo desse mesmo índice
1
.
Trata-se, portanto, de um município de grande porte que apresenta taxas de
desenvolvimento e riqueza, porém acumula grande desigualdade socioeconômica em
seu território, com bolsões de pobreza que expressam condições inadequadas de vida
e sobrevivência. Segundo a Prefeitura Municipal de Campinas (PMC, 2001) 16,2%
da população vive em sub-habitações, caracterizadas por favelas e ocupações, e, em
termos de violência, a cidade acumulava o índice de 55,7 mortes por homicídio por
100.00 habitantes, tendo bairros com o índice de 192,6 e outros com a proporção de
7,8 homicídios, o que demonstra a franca desigualdade nas diversas regiões da
cidade. Tais dados comprovam a realidade de grandes cidades brasileiras espelhando
a desigualdade vivenciada no país.
O mapa abaixo apresenta a divisão distrital dos bairros na cidade e suas
condições de vida, segundo a classificação realizada pela Secretaria Municipal de
Saúde (PMC, 2001)
2
. É possível caracterizar uma geografia da exclusão territorial
urbana no município, na medida em que algumas regiões específicas (sul, sudoeste e
1
A taxa estadual de riqueza, em 2004, atingiu o escore de 52, sendo que Campinas obteve o valor de
55. Em termos de região administrativa, atingiu o quarto índice de riqueza do estado. O valor da
longevidade estadual foi de 70, e para o município de Campinas foi de 73, já o índice de escolaridade
atingiu a marca de 54 no estado, ficando em 51 em Campinas (SÃO PAULO, 2006).
2
Para a produção dos índices e classificação dos bairros com melhores ou piores condições de vida,
foram utilizados os dados: 1) Proporção de população em sub-habitação; 2) Proporção de chefes de
família sem ou com menos de 1 ano de instrução; 3) Taxa de crescimento anual; 4) Proporção média
de mães com menos de 20 anos de idade; 5) Coeficiente médio de mortalidade infantil; 6) Coeficiente
médio de mortalidade por homicídio; 7) Incidência média de desnutrição entre os menores de 5 anos;
8) Incidência média de tuberculose (PMC, 2001, p.1).
56
noroeste), periféricas da cidade, concentram a maior quantidade de bairros com
piores condições de vida, apontando uma segregação socioespacial que revela uma
desigualdade socioeconômica.
Fonte: PMC, 2001, p. 18. Evidenciando os limites distritais.
Figura 3 – Mapa da Cidade de Campinas – Índice de Condição de Vida, por bairro
Legenda:
Grupo I: Pior Índice de Condição de Vida (número de bairros)
Grupo II: Índice Médio (número de bairros)
Grupo III: Melhores Índices (número de bairros)
Em termos político-administrativos a cidade é, atualmente (gestão 2005-
2008), gerida pelo prefeito Hélio de Oliveira Santos, membro do PDT (Partido
Democrático Trabalhista) e eleito pela coligação formada pelos partidos: PDT, PFL
(Partido da Frente Liberal, renomeado para DEM – Democratas) e PMDB (Partido
57
do Movimento Democrático Brasileiro). Esta gestão sucedeu a prefeita Isalene Tiene,
do PT (Partido dos Trabalhadores), que assumiu a gestão em setembro de 2001 em
virtude do assassinato do então prefeito Antônio da Costa Santos, também do PT. A
gestão 2001-2004 havia sido eleita pela coligação “coragem de mudar” formada
pelos partidos PT e PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados).
As análises apresentadas neste trabalho ocorreram com relação às ações
desenvolvidas no período de 2001 a 2006, envolvendo as duas gestões municipais
citadas.
3.1.1 A população infanto-juvenil: alguns dados estatísticos
Com relação à sua população, Campinas possui um pouco mais de 1 milhão
de habitantes, distribuídos, segundo a faixa etária, em, aproximadamente: 51% da
população com idade entre 0 e 24 anos; 20% entre 30 e 49 anos; 11% entre 50 e 64
anos; 9% entre 25 e 29 anos e 9% com 65 anos ou mais. De maneira mais detalhada,
ou seja, com mais intervalos analíticos, utilizando a base de faixa etária do IBGE,
para especificar a distribuição populacional, segundo a pirâmide etária:
58
15% 10% 5% 0% 5% 10% 15%
00A04
05A09
10A14
15A19
20A24
25A29
30A34
35A39
40A44
45A49
50A54
55A59
60A64
65A69
70A74
75A79
80e_+
Homens
Mulheres
Fonte: Prefeitura Municipal de Campinas (PMC, 2008)
Figura 4 – Pirâmide Etária Populacional de Campinas
A pirâmide etária acima demonstra que a população do município encontra-se
em diminuição do coeficiente de natalidade e com um baixo coeficiente de
mortalidade, representando um momento de transição. Campinas apresenta uma
característica populacional predominantemente jovem e caminha, no futuro, para um
gradual envelhecimento de sua população. A distribuição apresentada é consoante
com a mudança do padrão populacional etário brasileiro em curso.
Com relação específica à população infanto-juvenil, em 2005, Campinas
somava 259.725 crianças e adolescentes com idade entre 0 e 14 anos, 98.181
adolescentes de 15 a 19 anos e 195.919 jovens de 20 a 29 anos, sendo o grupo de 20
a 24 anos a faixa mais populosa da cidade atualmente (PMC, 2008). A
predominância deste último estrato é influenciada também pela presença local de
campos universitários importantes do país e pelos empregos gerados pelo pólo
industrial, que atrai essa população para o município.
59
Esses dados indicam a alta incidência juvenil na cidade, totalizando, na faixa
etária de 15 a 29 anos, a presença de 294.100 pessoas. O universo de 0 a 19 anos
representava cerca de 40% da população, e se somado aos jovens de 20 a 29 anos,
totalizava, aproximadamente, 61% da população local.
Com o intuito de propiciar a visualização da prevalência numérica do grupo
infanto-juvenil, construímos uma pirâmide etária com dados mais aglutinados, entre
a distribuição por faixa etária, na totalidade dos munícipes de Campinas.
50% 40% 30% 20% 10% 0% 10% 20% 30% 40% 50%
0 a 19 anos
20 a 29 anos
30 a 49 anos
50 a 64 anos
65 anos ou mais
Homens
Mulheres
Figura 5 – Distribuição populacional de Campinas, segundo faixa etária
Esses dados são um pouco acima da a proporcionalidade de crianças,
adolescentes e jovens no estado de São Paulo e no país. No estado, a população de 0
a 29 anos era composta, em 2005, por 20.659.836 pessoas (SÃO PAULO, 2008),
representando cerca de 52% da população estadual. Se comparada com a de
Campinas haveria 61% da população nessa mesma faixa etária.
60
No território brasileiro, em 2005, a população de 0 a 24 anos somava
84.265.156 pessoas, representando, aproximadamente, 50% da população brasileira.
Em uma projeção realizada pelo IBGE, no ano de 2020 esse grupo populacional
representará 40,2% da população, embora aumentado numericamente – passaria a
84.770.862 pessoas –, diminuirá sua representatividade percentual, em virtude da
queda das taxas de natalidade, do envelhecimento da população brasileira e da
inversão que vem ocorrendo em termos de proporcionalidade por faixa etária. Em
Campinas a faixa etária de 0 a 24 anos, em 2005, era quadro exemplificativo da
média nacional do mesmo período, pois contava com 51% da sua população de
crianças, adolescentes e jovens. O grupo populacional infanto-juvenil tem uma
grande representatividade numérica na sociedade brasileira e permanecerá, ainda, por
vários anos, se pensada a projeção realizada pelo IBGE para 2020.
Especificamente com relação aos dados sobre a incidência de crianças e
adolescentes que utilizam a rua como espaço de trabalho e/ou moradia, não há muitas
pesquisas veiculadas. Na década de 1980, quando ocorreu a primeira menção aos
chamados “meninos de rua” (FERREIRA, 1980), havia a divulgação de números
superestimados com relação a essa população (ROSEMBERG, 1994), trazendo uma
visibilidade para o fenômeno que criou uma perigosa associação no imaginário
popular de circularidade e identificação direta entre pobreza, situação de rua e
marginalidade (ROSEMBERG, 1995)
3
. Isso criou uma dificuldade de compreensão e
apropriação real do que seria a situação de rua e quantos estariam nela.
Em Campinas, os dados disponíveis e utilizados são desmembrados entre
aqueles que utilizam a rua para o trabalho e os demais que fazem dela seu espaço de
moradia e “estruturação”. Com relação à população infanto-juvenil ligada
preferencialmente às atividades com retorno financeiro para si e para sustento da sua
família, a Secretaria de Assistência Social e o seu Programa de Enfrentamento ao
Trabalho Infantil (PETI) utilizavam os dados de uma pesquisa realizada pela
Universidade Estadual de Campinas (GIOVANNI, 2002), que indicava o número de
171 crianças e adolescentes de Campinas trabalhando nas ruas, em 2001. E dizia,
ainda, que havia mais 81 crianças de municípios da região metropolitana que
3
Essa temática é aprofundada na história de João.
61
utilizavam as ruas de Campinas diariamente para trabalhar. Posteriormente, quando
implementado o PETI, as estatísticas do serviço municipal da Secretaria de
Assistência Social (analisadas no trabalho de CÂNDIDO, 2005) apontavam 90
usuários na sua instituição, sendo esperada a sua saída das atividades nas ruas, e 36
crianças e adolescentes realizando, ainda, trabalhos nas ruas. A coordenadora do
serviço, e também a assessora da área da criança e adolescente da Secretaria de
Assistência Social, em entrevistas individuais para esta pesquisa, apontava uma
diminuição da população trabalhadora nas ruas, nos últimos anos, em virtude do
trabalho ali desenvolvido. Todavia, CÂNDIDO (2005) destaca que há uma
continuidade do fluxo de ida de crianças e adolescentes dos bairros com maior
vulnerabilidade social para atividades de trabalho nas ruas da cidade.
O segundo grupo de meninos e meninas em situação de rua, aqueles que
permanecem de forma mais “fixa” nelas, contém a característica de trânsito
cotidiano. Isso cria a dificuldade de eles serem “contados”, uma vez que não se
fixam em um único lugar, permanecendo em mobilidade, particularidade que
dificulta a produção de estatísticas confiáveis sobre “quantos são”. A única
informação local disponível, utilizada pela rede de serviços, era um estudo realizado
em 2001 (Projeto Casa Amarela
4
), que contabilizava cerca de 90 crianças e
adolescentes morando nas ruas do município.
Percebe-se, portanto, que ambos os grupos em situação de rua não formam
um percentual consistente dentro da população de crianças e adolescentes. Em
Campinas, em 2005, havia 357.906 pessoas com idade entre 0 e 19 anos (PMC,
2008). Se forem somados os números do serviço de enfrentamento ao trabalho
infantil (126), em 2004, e de abordagem àqueles moradores nas ruas, em 2001, (90),
haverá uma representatividade de, aproximadamente, 0,65% da população infanto-
juvenil municipal. Trata-se, evidentemente, de uma aproximação, na medida em que
foram contabilizados dados de anos diferentes devido à indisponibilidade de
informação.
4
O Projeto Casa Amarela, atualmente desativado, era pertencia à Secretaria de Assistência Social e
trabalhava com os meninos e as meninas “estruturados” nas ruas. Detalhes sobre seu funcionamento
e desdobramentos na rede de serviços são apresentados na história de Cíntia.
62
3.2 Plano de Atendimento a Infância e Juventude em Campinas
A gestão municipal de Campinas, de 2001 a 2004, elegeu, como uma de suas
prioridades de atenção, a área da criança e do adolescente, de uma forma geral, para
representar a marca daquele governo. A proporção de jovens de 18 a 29 anos, mesmo
que fortemente expressiva em quantidade na cidade, não entrou na pauta de
discussões. A decisão por essa marca acarretou, como um dos seus desdobramentos,
a inscrição da cidade no programa “Prefeito Amigo da Criança”, da Fundação Abrinq
pelos Direitos da Criança e do Adolescente
5
. O programa tem como objetivo o
comprometimento de gestões municipais com a implementação de políticas voltadas
para a intervenção com crianças e adolescentes, visando à melhoria de sua qualidade
de vida. A Fundação realiza análises das ações em curso, por meio de avaliações
periódicas, ofertando para o governo comprometido um selo de qualidade que o
identifica, pela figura do prefeito, como “amigo da criança”
6
, o que é utilizado como
uma estratégia de marketing político pelos gestores.
Com isso, em 2001, a gestão municipal campineira realizou um seminário
interno para identificação dos problemas locais, na área da infância e juventude, e
análise da governabilidade municipal sobre eles para a criação de planos de ação. O
seminário foi viabilizado pelo gabinete do prefeito, por meio de um colegiado gestor,
com a proposição de criação de uma proposta intersetorial de intervenção.
Nesse seminário participaram as secretarias de Saúde, de Assistência Social, de
Educação e de Cultura, a Coordenadoria da Juventude e da Saúde da Mulher. Além
das 4 secretarias tinha o CMDCA e algumas outras ONGs, que estavam envolvidas
com a área da criança. E, nessa oficina, foram se identificando quais os problemas
que cada área tinha. Aí, então, se agrupou e, vendo a governabilidade que a gente
teria para atuar, construiu-se uma proposta, um projeto de intervenção conjunto.
Com a identificação de nós críticos, metas, prazos e custos, tudo isso para melhorar a
questão da atenção à criança e adolescente, em geral (Assessora da área da criança e
do adolescente da Secretaria Municipal de Saúde, no período de 2002 a 2005).
5
A Fundação Abrinq é uma instituição sem fins lucrativos fundada em 1990 com o objetivo de
mobilizar a sociedade para questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência.
Informações disponíveis em: http://www.fundabrinq.org.br
. Acesso em 23 jun 2008.
6
Informações em “Fundação Abrinq”. Ver nota 5.
63
Com a escolha dos “nós críticos” a serem enfrentados, segundo nomenclatura
utilizada na metodologia de planejamento aplicada (Planejamento Estratégico
Situacional), elaboraram o Plano Municipal para a Infância e Juventude, lançado,
oficialmente, em 2002, com a inscrição de nove programas prioritários da gestão –
em 2004 foi incluído o décimo programa – com o intuito de que o conjunto de
programas cumprisse as metas e tivesse, como resultado, a aquisição da marca de
governo (concreta, com a premiação da cidade
7
, e simbólica, no imaginário dos
cidadãos locais).
Para implementação e análise das ações e atividades programadas no Plano
foi constituído um Comitê Intersetorial de Atenção à Criança e ao Adolescente, pela
equipe do gabinete do prefeito. O Comitê tinha a finalidade de ser um espaço
intersetorial e sua coordenação foi assumida pela assessora da Secretaria de Saúde,
que, posteriormente, veio a ser a secretária municipal de Saúde. Ela permaneceu na
coordenação desde o início até o final da gestão, em 2004.
A realização da coordenação das ações pela área da Saúde mostra-se como
um elemento diferenciado da maior parte das atividades direcionadas para crianças e
adolescentes, que tem sua concentração, comumente, na área de Assistência Social
ou Educação. Oficialmente, as pessoas da gestão que entrevistamos, justificaram o
fato pela posição de liderança interna ocupada pela Coordenadora, além de sua
trajetória profissional no trabalho com crianças.
Acrescentamos, entretanto, alguns episódios locais. Em Campinas, até então,
as intervenções com o público infanto-juvenil eram protagonizadas pela Assistência
Social. Uma crise interna, porém, instaurou-se por meio de uma mobilização dos
trabalhadores de parte da Assistência Social, especificamente aqueles que
trabalhavam com a população em situação de rua, ganhando notícias na mídia e
criando um desconforto interno para os gestores e uma conjuntura adversa para ser
administrada
8
. A área da Saúde auxiliou no encaminhamento das circunstâncias
pendentes, assumindo inclusive grande parte dos trabalhadores insatisfeitos
7
No início de 2004 a gestão recebeu, oficialmente, o prêmio de “Prefeito Amigo da Criança”.
8
Detalhes sobre esse episódio, da desativação do serviço Casa Amarela (Assistência Social) e
mudança da missão do CRAISA (Saúde), que influenciaram na configuração da rede de serviços
campineira, são destacados na história de Cíntia.
64
vinculados à Assistência Social, e, a partir de então, ocupou a liderança naquela
gestão, das intervenções com o público infanto-juvenil, prioridade do governo.
Manteve-se um clima tenso durante todo o processo de administração municipal do
Plano, refletindo numa fala generalizada dos atores, do âmbito governamental e não-
governamental, sobre a “briga” entre os setores da Assistência Social e da Saúde.
O Plano construído foi detalhado em programas, com proposições realizadas
por setores, por eixos eleitos como prioritários, segundo recortes por problemáticas
escolhidas como alvos preferenciais de intervenção da gestão. Eram eles
9
:
- Criando Rede de Esperança
Objetivo: Construir uma rede integrada de serviços que atendam integralmente
crianças e adolescentes em situação de rua, promovendo sua recuperação
e inclusão na sociedade.
- Terreiros e Quintais da Alegria
Objetivo: Aumentar o número de espaços concebidos para o esporte, a cultura e o
lazer, ajudando na formação dos jovens e oferecendo atividades culturais
nos bairros periféricos.
- Quebrando o Silêncio
Objetivo: Quebrar o silêncio que cerca a questão da violência doméstica. Cuidar
integralmente da vítima e sua família.
- Erradicação do Trabalho Infantil
Objetivo: Ampliar o atendimento às famílias que estão trabalhando, com
orientações às crianças que se encontram no mercado informal e
complementando a renda familiar.
9
Baseado em: PMC. Prefeitura Municipal de Campinas. Plano Municipal para a Infância e
Juventude. Campinas. 2002. Folder de Divulgação. e PMC. Prefeitura Municipal de Campinas.
Seminário de Avaliação do Plano Municipal para a Infância e da Juventude. Campinas. 2004.
65
- Escola Viva – Nem um a menos
Objetivo: Ampliar o acesso à educação infantil para crianças de 0 a 6 anos.
- Construindo Novas Histórias:
Objetivo: Criar ações para a recuperação de jovens em conflito com a lei.
- Ceprocamp: Centro de Educação Profissional de Campinas – Antônio da Costa
Santos
Objetivo: Criar cursos gratuitos profissionalizantes que resgatem o jovem cidadão e
possibilitem sua atuação no mercado de trabalho.
- Protegendo a Vida
Objetivo: Implementar uma rede de solidariedade e responsabilidades com o
objetivo de diminuir o alto índice de homicídio de adolescentes.
- Crescer Antes
Objetivo: Informar e orientar os adolescentes para que tenham condições de adiar a
primeira gravidez.
- Rotas Recriadas: crianças e adolescentes livres da exploração sexual
Objetivo: Criar condições para crianças e adolescentes não se submeterem à
exploração sexual, oferecendo condições de recriar seu modo de levara
vida.
66
67
Fonte: PMC. Prefeitura Municipal de Campinas. Plano Municipal para a Infância e Juventude. 2002.
Folder de divulgação.
Figura 6 – Plano Municipal para a Infância e Juventude.
68
Durante o desenvolvimento desses programas, os projetos “Construindo
Novas Histórias” e “Protegendo a Vida” não foram implementados, pois, apesar de
terem sido criados grupos de trabalho e iniciadas reuniões para discussão sobre essas
temáticas, foram identificados problemas, segundo os gestores, que impediram sua
continuidade. No primeiro caso, concluíram que não estava sob a governabilidade da
gestão municipal intervir sobre a questão do adolescente em conflito com a lei, uma
vez que todos os projetos, nesse campo, são de responsabilidade estadual, e a
prefeitura apenas se posiciona como uma parceira que tangencia o atendimento a
essa população. No segundo caso, avaliou-se que o alto índice de homicídios de
jovens é um problema de ampla magnitude, que envolve diversas áreas e poderiam
resultar em um pequeno impacto as ações pensadas e desenvolvidas a partir de um
grupo de trabalho focal, tendo sido também retirado.
Em outubro de 2002 a gente lança o plano e no final de 2003 tem o primeiro
seminário de avaliação e planejamento. A gente fez a avaliação de todos os
programas, de todos os grupos de trabalho em andamento, e decidiu-se quem e como
daria seguimento (Assessora da área da criança e do adolescente da Secretaria
Municipal de Saúde, no período de 2002 a 2005).
Pode-se inferir que os programas retirados do Plano representavam temáticas
complexas e com a participação de outros atores, criando um campo conflituoso e de
disputa de interesses. Isso fica mais claro quando se aborda o programa que pretendia
atuar no segmento de adolescentes em conflito com a lei. Trata-se de uma área
envolta por uma esfera valorativa e que requer a execução de negociações diretas
com os gestores estaduais, podendo criar dificuldades nas relações e, talvez, na
liberação de recursos financeiros, na medida em que haja o embate sobre as
intervenções realizadas sob gerência dessa esfera. Outro elemento que pode ter
influenciado a avaliação é o fato de constituir um setor que contava com a atuação da
sociedade civil organizada, por meio do Fórum Municipal dos Direitos da Criança e
do Adolescente de Campinas, que mantinha assento em um comitê de
acompanhamento das ações realizadas nas unidades de internação do município.
69
Já o grupo responsável pelo programa voltado para a diminuição do
homicídio de jovens buscou alguns financiamentos no governo federal e recebeu
respostas negativas, o que se repetiu na esfera municipal que, no interior do próprio
Plano, visualizava outros interesses e programas como prioritários.
Para assessorar o Plano, no âmbito do planejamento e da gestão, foi
contratada uma empresa de consultoria externa ao governo e ao município, que
auxiliava o trabalho do Comitê Intersetorial de Atenção à Criança e ao Adolescente.
Foi designada, ainda, uma assessora, no período de 2002 até o fim de 2003, para
acompanhar dois grupos escolhidos como estratégicos: o Grupo de Erradicação do
Trabalho Infantil e o Grupo Criando Rede de Esperança. Esses grupos foram
lançados como prioritários no interior do Plano por se compreender e declarar que,
entre a prioridade público-administrativa de elaboração e implementação de políticas
para as crianças e adolescentes, os meninos e meninas em situação de rua estavam
em condição de maior “vulnerabilidade” e representavam um quadro compreendido
como de “urgência social” e, por isso, demandavam maior intervenção.
Numericamente representavam, entretanto, a menor população-alvo dentro dos
projetos componentes do Plano. Segundo nossas estimativas aproximadas, cerca de
0,65% da população de crianças e adolescentes do município. Ainda assim, as ações
direcionadas para os dois subgrupos que se encontravam nas ruas, seja por meio do
mercado informal ou mendicância, seja pela sua estruturação e vivência nas ruas,
foram escolhidas como centrais.
Essa opção deflagra um processo interno de tomada de decisão ocorrido para
a formulação da agenda pública
10
. A argumentação oficial que obtivemos dos
gestores circundava a justificava da relevância social em torno desse grupo
populacional. Sem questionar o argumento, podemos acrescentar a conjuntura local
como elemento influente. A administração municipal foi composta, nessa gestão,
10
A fase de formulação de programas e políticas ocorre a partir de uma conjunção de poder
desenvolvida pelos gestores, podendo assumir um caráter mais democrático, participativo ou
autoritário, criando respostas para demandas provindas de pressões e conflitos da sociedade. Os
conflitos podem ser dos tipos aberto, encoberto ou latente (COSTA e DAGNINO, 2008). Eles
impulsionarão decisões e elaborações para a implementação de intervenções com o objetivo de
interferir na realidade. Poderão, ainda, resultar na não-tomada de decisão, como uma estratégia
possível quando se trata de respostas a conflitos encobertos (HAM e HILL, 1993).
70
pela participação de militantes da sociedade civil, incluindo aqueles advindos da área
da criança e do adolescente. Eles ocuparam cargos públicos, tendo a própria prefeita
o histórico de trabalho e de pesquisa (TIENE, 2004), como assistente social, com a
população em situação de rua. Contava-se, portanto, com um quadro em que o debate
sobre a necessidade de intervenção com esse grupo era impulsionado pelos membros
da própria gestão.
Somado a essa circunstância é conhecido o fato de que há uma opinião
predominante, entre a população das grandes cidades, sobre o incômodo trazido pela
presença de pessoas nas ruas, tanto do ponto de vista pessoal, de quem é abordado
por esses sujeitos, quanto do julgamento e argumentação valorativa sobre a ausência
de condições de habitabilidade nas ruas. É possível considerar que essa escolha não
se conflitava com a sociedade local que, freqüentemente, expressa a necessidade de
“retirada” das pessoas da rua.
O discurso da urgência social e da necessidade de intervenção com aqueles
meninos e meninas encontrava eco também entre as organizações não-
governamentais. Elas já realizavam trabalhos nessa área e viam, com essa proposta, a
possibilidade de ampliação de parcerias com o setor público, o que representava o
alargamento de suas ações por meio da oferta de execução de projetos sociais.
Do ponto de vista orçamentário, o investimento necessário para
implementação dos programas não somava grandes montantes, uma vez que a verba
seria aplicada em projetos pontuais desenvolvidos para um público-alvo pequeno. O
que não criava uma expectativa de destinações financeiras elevadas, pelo contrário,
adequava-se ao orçamento em curso nas Secretarias, através de remanejamentos
internos, ou de acréscimos reduzidos.
O financiamento das ações foi feito, majoritariamente, pela Secretaria de
Assistência Social, que assumiu o custeio do Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil, auxiliada pelos repasses do governo federal
11
, e protagonizou as destinações
relacionadas aos projetos desenvolvidos pelas ONGs e integrantes do Grupo Criando
11
Em 2005 a Secretaria investiu R$ 115.560,00 de recursos municipais para o financiamento do
projeto Convivência e Cidadania, destinado ao público de 12 a 17 anos que realizava trabalhos nas
ruas da cidade. Contava também com repasse do Ministério do Desenvolvimento Social, do governo
federal, para pagamento de bolsas às famílias dos adolescentes participantes (PMC, 2005).
71
Rede de Esperança, pois essa Secretaria é responsável pelos co-financiamentos das
ONGs, parceiras para a execução das ações já desenvolvidas ou concebidas pelo
Grupo. As Secretarias de Cultura, Educação e Saúde realizaram a aplicação de
recursos em um equipamento específico para essa população, dentro de sua estrutura
em funcionamento. Houve a oferta de oficinas culturais para esse público, a criação
de uma sala especial em uma escola pública e a reorientação e ampliação de um
serviço de saúde. A Secretaria de Assistência Social, portadora do menor orçamento
entre as Secretarias que compuseram o Grupo, contava com cerca de 3,5% do total
da arrecadação municipal, nos anos de 2005 (PMC, 2005)
12
e 2006
13
.
Dessa maneira, conclui-se que o investimento nesse grupo populacional não
colidia com nenhum segmento atuante no jogo político, tampouco implicava a
alteração de investimentos orçamentários, demonstrando que a priorização escolhida
pelo poder público para a intervenção não se defrontava com resistências e
direcionava-se mais para a composição organizativa, explicitada pelo Grupo Criando
Rede de Esperança, do que para a alteração efetiva de prioridades de investimentos
pela administração pública. Esse importante fato causou rebatimentos sobre o
alcance e a produção de inovações sociopolíticas no contexto social.
3.2.1 Grupo de Trabalho Criando Rede de Esperança
O Grupo Criando Rede de Esperança era formado pela estrutura
administrativa local, por intermédio das Secretarias de Cultura, Educação e Saúde, e
por instituições contratadas pela Prefeitura para execução de projetos sociais. Tinha o
objetivo de constituir uma rede de serviços que atendesse os meninos e as meninas
em situação de rua, de maneira exclusiva ou dentro do rol de populações-alvo local,
12
Correspondente ao valor de R$ 43.164.213,36 (PMC, 2005, p. 146).
13
Correspondente ao valor de R$ 46.116.747,00. Disponível pela PMC em:
http://www.campinas.sp.gov.br/trabalho/uploads/pdf/orcamento/orcamento_2006.pdf
. Acesso em 18
dez 07.
72
com a finalidade de articular os diversos equipamentos, levantar demandas comuns e
apresentá-las aos gestores públicos para seu encaminhamento.
A definição de menino de rua utilizada foi discutida pelos membros do
Grupo, com a argumentação sobre a importância de um termo comum que unisse os
diferentes serviços componentes da rede. Para tanto, buscaram algo amplo que
incluísse as diversas ações desenvolvidas com aquela população. A partir da sugestão
de uma representante da Secretaria de Educação, adotou-se a seguinte definição
14
:
Por menino de rua, definiu-se aquele que foi visto quando estava trabalhando em
biscates, esmolando, perambulando ou exercendo atividades ilícitas. (...) abrange
crianças que trabalham nas ruas, mantém vínculos familiares e freqüentam escolas,
crianças que moram nas ruas com as famílias e crianças cujos vínculos familiares
estão mais esgarçados (GREGORI, 2000, p.20).
O nome do grupo chama atenção por expressar seus valores e objetivos
intrínsecos. Pode-se dizer que almejava, primeiramente, a construção de uma rede,
cujo conceito pode ser definido pelas relações estabelecidas entre diferentes grupos
de interesses, entendidos como uma multiplicidade de atores, e o Estado.
A questão fundamental desses trabalhos é de demonstrar que o processo de
elaboração de políticas é fragmentado, e que os grupos de interesses participam de
maneira ativa para a tomada de decisão e sua colocação em prática, entrelaçando
relações muito próximas com as elites político-administrativas (p. 384)
15
. Podem ser
compreendidas (...) como instituições, no que concerne, principalmente, sua
capacidade de estabelecer regras e esquemas de relações sociais duráveis pela
interação nas políticas públicas (reduzindo as incertezas e os custos de transações,
através do desenvolvimento de relações de confiança que facilitem as trocas)
(THATCHER, 2004, p. 389)
16
.
14
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Ata da reunião realizada
em 22 jul 2003. 2003.
15
L’apport fondamental de ces travaux est de montrer que le processus de policy-making est
fragmenté, et que eles groupes d’intérêt participent de façon active à la prise de décision et à sa mise
en oeuvre, en nouant des relations très proches avec les élites politico-administratives.
16
comme des institutions, en ce qui concerne notamment leur capacité à établir des régles et des
schémas des relations sociales durables pour les interactions dans le processus de politique publique
(en réduisant l’incertitude et les coûts de transaction et en favorisant le développement de relations de
confiance qui facilitent les échanges).
73
Evidencia-se, portanto, um jogo de interesses políticos no qual o governo se
beneficia desse processo pelas facilidades criadas e previamente acordadas na “rede”,
estabelecendo um contexto favorável para que ele atinja a sua meta de
implementação de seu programa escolhido, a partir de seus valores ideológicos e
políticos, intencionando, também, um reconhecimento no imaginário da população
local que pudesse resultar em um ganho de espaço eleitoral, nesse caso a partir do
desenvolvimento de intervenções com a população infanto-juvenil. Esses interesses
são explicitados na medida em que a rede foi formalmente constituída a partir de um
chamado do governo, desdobrando a ação dos seus atores, de partida, como uma
resposta a uma demanda interna da gestão. Isto, por um lado, implicava maiores
possibilidades de concretizações das ações planejadas, uma vez que havia
comunicação direta com o âmbito governamental central e representatividade e
legitimidade em tal lugar; mas, por outro lado, fixava a existência e o trabalho do
Grupo no governo.
O conceito de “rede” foi tema de discussão interna, tendo sido definida como:
“sistema complexo de conexões e cooperação, opondo-se à organização hierárquica e
competitiva atual”
17
, partindo do princípio de que a rede seria a construção de uma
teia de serviços comunicantes, enfocando a comunicação como um elemento
relevante, dada a partir das relações pessoais estabelecidas e expandidas para o
interior de cada instituição, com a finalidade de promoção de ações para a população
em situação de rua, uma vez que os mesmos meninos transitavam pela maioria dos
serviços ali representados.
O segundo elemento do nome do grupo, “esperança”, trazia a sua meta
revelada na primeira elaboração do programa, em 2002, que dizia: “Oferecer
programas integrados de atendimento, despertando a vontade e a possibilidade de
sair da rua. Acabar com número de crianças e adolescentes estruturados nas ruas”;
significando, então, a “esperança” de que essa população, por fim, saísse das ruas e,
conseqüentemente, “acabaria”.
17
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Ata da reunião realizada
no dia 13 abr 2004. 2004.
74
O grupo iniciou seus trabalhos sob a coordenação da representante da
Secretaria Municipal de Saúde para a área da criança e do adolescente, pois devido
ao episódio de saída dos trabalhadores da Secretaria de Assistência Social que
intervinham com esse público e a transferência deles para a Secretaria de Saúde, a
convite do então Secretário, a Saúde liderou a gerência dessa área, ficando para a
Secretaria de Assistência Social a administração do Grupo de Erradicação do
Trabalho Infantil.
A coordenadora permaneceu nessa função no período de outubro de 2002 a
abril de 2005, quando ela interrompeu suas atividades devido a questões de ordem
pessoal. Ela foi substituída por outra pessoa da mesma Secretaria, que permaneceu
até março de 2006, quando saiu para licença gestante. A partir dessa data o grupo foi
coordenado por um conselheiro, representante da sociedade civil, e não do poder
público, do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
A função de fomento e, posteriormente, de alimentação e manutenção do
grupo era dada pela figura da coordenação, lugar, inicialmente, ocupado por uma
representante do governo com o objetivo maior de contribuir, naquela ação, com a
implementação da totalidade do programa. Na discussão sobre as articulações
políticas em rede, é reconhecida a importância de uma pessoa que desempenhe essa
tarefa e mantenha a rede ativa. Nesse caso, tal atividade era fundamental para a
existência do grupo, na medida em que o cotidiano institucional exigia bastante dos
trabalhadores ali envolvidos e não havia uma cultura instalada de discussão coletiva
entre diferentes atores, representantes de diversos serviços.
Em uma análise sobre o jogo político, POLLITT (2003) defende a presença
de alguém para a “ordenação” conjunta (co-ordination) de processos coletivos,
apontando a existência de tal profissional como um dos elementos para o sucesso das
ações programadas e implementadas. Em uma outra perspectiva, para os franceses,
trata-se de um trabalho incorporado em diferentes cotidianos institucionais, nomeado
de “animador” (animateur), ou seja, alguém designado para a função de preparo,
apresentação, explicação e coordenação dos elementos constitutivos de um coletivo,
assegurando tanto a “animação” quanto a continuidade, podendo ser um animador
sociocultural, um animador de crianças e adolescentes, um animador político, entre
75
outros campos. Tal pessoa deve ter características e dinâmicas para o
desenvolvimento grupal e desempenho da “animação” (MIGNON, 2005).
A coordenação realizada no interior do Grupo Criando Rede de Esperança,
interpretada como “ordenação” e “animação” da rede, conduziu as atividades
desenvolvidas com uma ampliação contínua de atores para sua constituição.
Inicialmente, o grupo formou-se com a participação do serviço de saúde municipal e
da ONG responsável pelo abrigo recém-inaugurado para essa população, tendo uma
planilha de pautas, que havia sido constituída no interior do governo. Eram elas
18
:
- Levantamento quanti-qualitativo das crianças e adolescentes estruturados nas ruas
- Abordagem e acolhimento/ Educação Social de Rua
- Reabilitação psicossocial para crianças e adolescentes usuários de substâncias
psicoativas
- Atendimento a interocorrência clínica e emergências em saúde
- Desintoxicação por uso abusivo de substâncias psicoativas/Internação para
tratamento em fase aguda do uso abusivo de substâncias psicoativas
- Composição de uma rede integrada e articulada
- Criação de um sistema de informação unificado e informatizado
- Compartilhamento/divulgação do plano do Criando Rede de Esperança com a
sociedade
- Implantação de um abrigo
No decorrer do desenvolvimento das reuniões e com a participação de novas
representações, foram incluídas as pautas
19
:
- Espaço para educação formal dessa população/Sala de Transição
- Local para dormida protegida, em uma fase anterior ao abrigamento/Pernoite
Protegido
- Discussão de projetos alternativos de moradia: república, pensão, lar abrigado
- Ações com a juventude
18
PMC.Prefeitura Municipal de Campinas. Plano Municipal para a Infância e Juventude. Campinas.
2002.
19
PMC. Prefeitura Municipal de Campinas. II Encontro sobre o Plano Municipal para a Infância e
Juventude. GT Criando Rede de Esperança. 2004.
76
O Grupo reunia-se quinzenalmente para a discussão das pautas escolhidas
como prioritárias. Quando finalizado, era encaminhada uma demanda formal para o
governo, caso houvesse a necessidade de implantação de um projeto ou serviço novo
na rede. Esse encaminhamento era feito pela coordenadora, que era uma gestora
municipal.
Dentre as pautas inicialmente levantadas e efetivadas, até 2006, tiveram
20
,
21
:
- Sala de Transição (Projeto de Educação formal específico para os meninos e
meninas em situação de rua, com início efetivo do novo projeto);
- Pernoite Protegido (Local transitório de passagem para os jovens que estão
dormindo nas ruas, implementado pelo governo, inicialmente com recursos
externos, em parceria com uma ONG);
- Realização do I Seminário pelos Direitos das Crianças e Adolescentes em Situação
de Rua (2004), juntamente com o CMDCA, resultante na Resolução 040/03 que
regulamenta os atendimentos aos meninos e às meninas em situação de rua
(CMDCA, 2003b), e II Seminário (2006), com a finalidade de avaliar a Resolução
em andamento;
- Abordagem e referenciamento nas ruas (Iniciada as atividades em parceria com
uma ONG);
- Discussão sobre oficinas culturais;
- Proposição de um seminário sobre uso, abuso e dependência de substâncias
psicoativas (não efetivado);
- Proposição de criação de uma rede informatizada de comunicação (não efetivado);
- Discussão e elaboração de um projeto para internação em fase aguda decorrente do
uso abusivo de substâncias psicoativas e internação compulsória (não efetivado).
20
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Seminário de Avaliação e
Planejamento 2004/2005. Campinas, dez. 2004. 31p.
21
CMDCA. Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente. Criando Rede de
Esperança. Relatório de Atividades 2006. Campinas, dez. 2006. 4 p.
77
No final de 2004, com a mudança de gestão municipal, havia uma dúvida
sobre a continuidade dos grupos de trabalho ligados ao governo, uma vez que se
discutia a hipótese de que as ações com a infância e juventude não seriam mais a
marca prioritária de investimento da gestão. Por esse motivo, fez-se uma discussão
interna e optaram por transferir-se para o CMDCA, na categoria de comissão de
discussão de políticas públicas. Tal proposição já havia sido ventilada pelo CMDCA,
uma vez que o Conselho havia, no passado, abrigado uma comissão sobre população
em situação de rua e queria retomá-la. Entretanto, os técnicos que compunham o
Grupo argumentaram, na ocasião, que seria uma sobreposição de papéis, na medida
em que já realizavam a discussão das políticas necessárias e seus encaminhamentos,
uma das funções do CMDCA. Todavia, com a mudança de gestão, a ida para o
CMDCA, constituindo-se como uma comissão, tornou-se uma estratégia para sua
manutenção e garantia de espaço e horário para encontro e discussão coletiva.
O Grupo manteve a mesma pessoa na coordenação, a partir de um pedido
formal aos novos gestores municipais e aos conselheiros do CMDCA, porém as
atividades foram interrompidas no início de 2005, quando a coordenadora desliga-se.
Nesse período, não houve um movimento dos participantes do grupo para um
processo auto-organizativo para continuidade de suas ações e discussões,
demonstrando a fragilidade de seu enraizamento nas instituições que compunham a
rede de serviços e a carência de lideranças que levassem um processo autônomo
adiante. A comunicação conjunta da rede e seus encontros e debates coletivos
estavam enlaçados na figura de uma coordenadora e seu desempenho como
“ordenadora” e “animadora” daquele espaço. Sua saída foi um elemento notório de
desarticulação daquele coletivo.
Posteriormente, as reuniões periódicas foram retomadas, em torno dos novos
coordenadores que assumiram esse papel, contudo o coletivo perdeu sua vertente
institucional no poder público, já que não representava mais os interesses do governo
e, conseqüentemente, não possuía mais o poder de influência para implementação e
condução de ações com a população de crianças e adolescentes em situação de rua.
Isso demonstra o elemento cíclico presente nas políticas de governo implementadas,
modificando prioridades e escolhendo alvos de intervenção, isto é, dependendo dos
78
valores éticos e políticos do governo em ação, uma determinada temática pode ser
alvo ou “paisagem”, para a qual não se focam intervenções. Há, sempre, a associação
do componente da “vontade e priorização política” como questão estruturante para
alguns programas. Vale lembrar que “as políticas e programas têm vida. Nascem,
crescem, transformam-se, reformam-se. Eventualmente estagnam, às vezes morrem.
Percorrem, então, um ciclo vital, um processo em desenvolvimento, de maturação e,
alguns deles, de envelhecimento ou decrepitude” (DRAIBE, 2001, p. 26).
Com essa nova conjuntura, em 2005, a rede reestruturou-se para um novo
modo de funcionamento, passando a realizar uma alternância entre uma reunião de
aspectos organizacionais, na mesma linha que vinha desenvolvendo, e outra de
discussão de casos, que visava à responsabilização das instituições para o debate e
encaminhamento coletivo de alguns adolescentes, principalmente aqueles que tinham
um trânsito maior entre diferentes instituições e serem considerados mais “difíceis”.
O Grupo permanece até hoje em atuação, na categoria de comissão do
CMDCA, porém vivenciou, gradualmente, a saída dos gestores, permanecendo os
técnicos das esferas governamentais e não-governamentais no trabalho de
manutenção da rede ativa.
3.2.2 A rede de serviços
A rede de serviços era composta por instituições governamentais e não-
governamentais que executavam vinte programas desenvolvidos em dezessete
instituições diferentes, das quais seis eram serviços públicos e onze eram projetos
Organizações Não-Governamentais (ONGs). Todas as ONGs recebiam verba pública
municipal e algumas, também, financiamento estadual, além de outros recursos
advindos de doações – individuais, empresariais, de ordens religiosas e outros, a
depender da filiação institucional. Dentre as ONGs, seis eram caracterizadas, por si
mesmas, como católicas, quatro não se nomeavam pela vertente religiosa e uma
79
apresentava condição atípica, pois vinculava-se exclusivamente ao poder público
municipal, como forma de financiamento e gestão, perdendo sua origem institucional
caritativa, a partir de parcerias realizadas com o poder público desde 1991, ocupando
o lugar, atualmente, de um braço de um setor da Prefeitura (especificamente da
Secretaria Municipal de Saúde), mantida, oficialmente, por convênio e co-gestão.
Dentre os vinte programas, dez eram executados por ONGs de natureza
religiosa católica e quinze eram exclusivos para os meninos e meninas em situação
de rua, sendo os cinco restantes programas que não eram direcionados para esse
público, mas eram ocasionalmente ali recebidos.
Das dezessete instituições, treze compunham o Grupo Criando Rede de
Esperança por meio da participação de, no mínimo, um técnico e/ou coordenador,
que representassem o serviço. Dentre as quatro instituições que não tinham
representatividade nesse grupo, mas que incluímos para as nossas atividades de
campo, tínhamos: um projeto de prestação de serviço à comunidade para
adolescentes em conflito com a lei, de natureza pública, que raramente recebia a
população em situação de rua e, por isso, apesar de convites para a composição do
Criando Rede, não veio a integrá-lo; uma ONG que participou pontualmente da rede,
por meio de um projeto que ligava várias instituições, permanecendo pouco tempo
nele e não compondo o grupo; uma ONG que iniciou suas atividades na rede e
também angariou o recebimento de verbas públicas para o trabalho com essa
população, no início de 2006, e integrou o grupo, a partir do segundo semestre
daquele ano; e, por fim, os serviços de internação para adolescentes em conflito com
a lei
22
. Apesar de esses espaços não serem oficialmente representados no Criando
Rede de Esperança, eram equipamentos sociais com interface à rede de serviços para
o atendimento da população em situação de rua. Houve também instituições que
participaram em algumas épocas e em outros momentos retiraram-se do grupo, tendo
como elemento influente a maior ou menor concentração de meninos em situação de
rua no seu público atendido. O Grupo era composto também pelos serviços que
22
Utilizamos, em diferentes passagens desse texto, a nomenclatura Febem (Fundação para o Bem-
Estar do Menor) para se referir à medida de internação de adolescentes em conflito com a lei, por ser
o nome em curso na época em que realizávamos o trabalho de campo. Atualmente, trata-se da
Fundação Casa.
80
foram criados a partir de sua demanda, ocupando um lugar especial na representação
coletiva, pois haviam sido “gestados” por aqueles atores.
Dentre a natureza das atividades realizadas, havia serviços em execução na
rede para as áreas:
Crianças e
adolescentes
“estruturados
” nas ruas
Mercado
Informal
e
Mendicância
Combate à
Adolescentes
em
exploração
sexual conflito com
a lei
Figura 7 – Natureza da intervenção dos serviços com interface no atendimento aos meninos e às
meninas em situação de rua
Os serviços do Grupo Criando Rede de Esperança estavam direcionados para
as crianças e adolescentes “estruturados” nas ruas, havendo, porém, alguns
equipamentos que não se dirigiam para esse público e que incluímos nessa categoria,
com o intuito de agrupá-los para uma apresentação visual. Reafirmamos que os
setores listados desempenhavam interfaces entre si.
Dentre os serviços voltados especificamente para aqueles “estruturados” nas
ruas, as áreas compreendidas eram
23
:
23
A apresentação visual da distribuição das áreas dos programas não pretende configurar-se como
um organograma hierárquico, não apresenta, portanto, possibilidades de ligações e comunicações
entre as áreas, uma vez que o objetivo é apenas listá-las.
81
81
Lazer e Cultura Educação
Saúde Mental/Tratamento
para uso abusivo de
substâncias psicoativas
Moradia
Oficinas
Culturais
Sala de
Transição para a
Educação
Formal
Educação
Social de
Rua
Atenção à Crise
em Saúde
Mental
Comunidade
Terapêutica
Internação para
Dependência
Química
(desintoxicação)
Serviço
ambulatorial/
CAPS
Abrigo
Pernoite
Protegido
Casa de
Passagem
República
Serviços para crianças e
adolescentes “estruturados”
nas ruas
Figura 8 – Áreas de intervenção para a situação de rua
82
Prestação de
serviço à
Comunidade
Trabalho Infantil e
Mendicância
Exploração
Sexual
Apoio Socioeducativo Bolsas para as famílias
Abordagem e
referenciamento nas
ruas
Conflito com a lei
Detalhamentos das ações do Programa
de Combate à Exploração Sexual, ver
Capítulo 4.4.
Liberdade
Assistida
Unidade de
Internação
Provisória
Unidade de
Internação
Figura 9 – Áreas de interface com a situação de rua
82
83
Essas áreas compunham, em meados de 2006, o escopo de campos de
intervenção que meninos e meninas em situação de rua poderiam acessar na política
de atendimento para eles direcionada.
O processo de escolha da população de crianças e adolescentes como
prioridade e marca de governo da gestão 2001-2004 foi o elemento que trouxe esse
grupo populacional para a agenda política e possibilitou a institucionalidade de
serviços para o cotidiano da rede. A gestão 2005-2008, por sua vez, não repetiu a
prioridade declarada com ações voltadas às crianças e aos adolescentes, optando por
outros setores para investimento e pela criação de uma nova marca de governo,
realizada por outros atores, por outros partidos políticos. Todavia, houve uma
proposição majoritária de continuidade dos trabalhos em desenvolvimento, porém
sem entrar no encaminhamento da demanda de novos equipamentos, assim como
também não foi priorizada a condução, via poder público, de projetos direcionados a
essa população. Na linha da continuidade, os co-financiamentos realizados pela
Prefeitura para as ONGs foram mantidos e os serviços públicos permaneceram
operando com as mesmas missões, demonstrando que a entrada de uma temática na
agenda governamental influencia os processos subseqüentes de manutenção da
mesma e, conseqüentemente, facilita seu reconhecimento e sua institucionalidade,
mesmo com a alternância de governo. Assim, os projetos desenvolvidos mantiveram-
se, basicamente, os mesmos durante todo o período das duas administrações
municipais.
Seguimos, descrevendo o percurso singular de alguns meninos e meninas pela
rede de serviços e os encontros e desencontros ocorridos na sua comunicação com as
instituições.
84
4. TRAJETÓRIAS DE VIDA E SUAS PASSAGENS PELA REDE
DE SERVIÇOS: FRAGMENTOS VIVOS E INTERROGAÇÕES
PULSANTES
O senhor mire e veja, o mais importante e
bonito do mundo é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
não foram terminadas, mas que
elas vão sempre mudando.
Guimarães Rosa
A análise sobre a constituição dos serviços, suas ações realizadas e os
resultados alcançados junto à população-alvo de intervenção, pode ser realizada sob
diferentes metodologias, constituindo, inclusive, um campo específico na área das
políticas públicas, com as diferentes proposições de avaliação – quantitativa e
qualitativa, de processo e de resultado – caracterizando-se como importantes
instrumentos para alimentação do processo de planejamento, implementação e
avaliação das ações públicas.
Neste trabalho, optamos pela apresentação das análises da rede de serviços a
partir de situações de trajetórias de vida de três meninos e de duas meninas.
Buscávamos pessoas que fossem usuárias dos serviços e pudessem trazer
informações sobre a rede, a partir dessa perspectiva. Para isso, escolhemos aqueles
com os quais tínhamos um vínculo estabelecido, compreendendo que esse critério é
um elemento importante do campo no trabalho de pesquisa aliado à intervenção.
Privilegiamos esse vínculo, sem discriminação entre relações, independentemente da
posição social e das condições que representam. Assim, utilizamos suas trajetórias e
pulsões intrigantes que ocasionavam para iluminar a caracterização dos serviços e de
suas intervenções.
Trata-se de amplificar os processos singulares para que se articule a discussão
entre o cotidiano individual e a rede de serviços, o micropessoal e a macropolítica, na
tentativa de interrogar os equipamentos e a política social local.
85
O campo das políticas públicas define-se em uma dimensão macro, com a
perspectiva de atendimento ao maior número de usuários possível, através de
temáticas reconhecidas como “necessidade” de grupos representativos na sociedade.
A partir da perspectiva do Estado e do seu gestor, pensar a política pública alia-se à
escolha de problemas a serem enfrentados, em uma perspectiva macrossocial.
Todavia, as ações sociais são direcionadas para indivíduos e grupos que apresentam
percursos, histórias e singularidades, que criam o constante desafio, para os
executores locais, de traçarem caminhos e diálogos entre o campo macro e
microssocial e o político.
Os trajetos descritos suscitavam diferentes temáticas, que estão
cotidianamente na rede de serviços, algumas esperadas e outras não, mas que
aparecem na roda-viva do trabalho. Decidimos privilegiá-las para tecer a discussão
sobre serviços, políticas e percursos de vida juvenis.
4.1 João
João dizia estar na rua desde os 11 anos de idade e foi encaminhado ao abrigo
AFAGAI pelo Conselho Tutelar. Na ocasião desse encaminhamento, ele afirmava que
estava em situação de rua havia seis meses, momento em que sua mãe tinha falecido e ele
não permaneceu com seus tios, que foram legalmente estabelecidos como seus tutores.
Quando fizemos contato para este trabalho, ele estava com 16 anos, havia cerca de quatro
anos em trânsito entre as ruas e as instituições.
A ocasião em que João iniciou contato com o universo institucional era
considerada um momento “bom para o trabalho”, segundo a avaliação dos
profissionais que intervêm com essa população, pois ele não tinha enraizada em si a
cultura de rua, por estar recentemente nela.
A cultura de rua é entendida como o desenvolvimento de hábitos e
habilidades que inserem o adolescente na rua, para um pertencimento a ela e ao
86
grupo que nela está. Permanecer em situação de rua implica buscar novos códigos e
aprendizagens que requerem outros conhecimentos, diferentes daqueles socialmente
estabelecidos como prioritários e aprendidos no contexto familiar e/ou escolar. Tais
códigos remetem-se à aquisição de outros conhecimentos, outros capitais sociais,
segundo o conceito de BOURDIEU (1980). O capital social pode ser referido como o
conjunto de recursos potenciais ligados a uma rede de relações, mais ou menos
institucionalizada, de interconhecimento e inter-reconhecimento propiciado pelo
pertencimento a um grupo. Esses capitais desenvolvidos serão transformados em
recursos pessoais e coletivos para a vivência nesse novo espaço apresentado: no
nosso caso, a rua. Para PÉREZ LÓPEZ (2006) nesse novo contexto marginal, da rua,
os meninos desenvolverão “recursos adaptados”, os quais são considerados “frágeis”
pela sociedade “normativa” e que precisam ser interrompidos para sua reinserção na
lógica predominante. Porém, por um lado, os capitais sociais da via social
“normativa” não são úteis para a vida na rua; por outro lado, eles adquirem outros
capitais, que são essenciais para a sobrevivência nesse contexto, mas não são
avaliados segundo a norma social “moral” (PÉREZ LÓPEZ, 2006, p. 127).
O conceito de cultura de rua pode ser referido não apenas para aqueles que
fazem da rua seu espaço de morada, subsistência, lazer e vivência, mas também para
os grupos que transitam nelas e as utilizam como espaço de pertencimento e
desenvolvimento dos seus capitais sociais. Quando pensamos nas possibilidades de
espaços para vivência das juventudes populares, defrontamo-nos com uma
precariedade de recursos e uma ausência crescente de espaços públicos, notadamente
nos bairros populares, que fragilizam as possibilidades de pertencimentos diversos. O
não pertencimento, somado a um estigma social presente em torno de ser jovem e de
periferia, resulta na simbologia de que a presença física e grupal nas ruas reafirma
uma identidade, a colocação explícita de um conflito – vivenciada pelos estigmas e
medos de violência estabelecidos pela classe média em torno da possibilidade de ser
vítima desses jovens – e a busca de lazer e vivências, que são propiciadas pelo grupo,
pela rua, pelos capitais ali desenvolvidos. A rua permite se fazer respeitar, ser
reconhecido, dar-se um nome, características, muitas vezes, adquiridas a partir do
imaginário social de “incivilidade” sobre esse grupo.
87
(...) a rua, ou seja, o grupo de pares e o ethos que lá estão associados, funcionam
como proteção contra o exterior, como recurso, símbolo de autonomia e de
dignidade, ao mesmo tempo em que se apresenta como deficiência, quando faz
referência a um lugar fora do bairro. É o que constitui o capital simbólico positivo na
cultura da rua e que funciona como capital simbólico negativo, estigmatizado, fora
do bairro
1
(...) (COUTANT, 2003, p. 145)
2
.
Podemos associar o pertencimento à rua nos bairros ou nos centros, quando
são espaços de vivência mais permanente, e dali apreender a lógica singular que se
apresenta, solicitando novos códigos, novos capitais, novos trânsitos, novas estadas,
novas formas e possibilidades de inserção no contexto social.
Permanecer na rua exige, por exemplo, uma agilidade para as situações de
conflito com a polícia; um deslocamento constante, devido à ação dos diferentes
atores urbanos que se mobilizam para a “retirada” dessa população dos espaços
públicos; uma busca pela alimentação; a aquisição de dinheiro, para as necessidades
básicas e para aquelas compreendidas como lazer; e outros diversos aspectos que se
colocam dentro da produção de um circuito próprio e particular que associa
necessidade e prazer, sofrimento e sociabilidade, precariedade e diversão,
pertencimento e ruptura. Fala-se, então, da construção de um circuito de
sociabilidades advindo da permanência na rua, o qual tem uma dimensão complexa,
a todo momento.
A sociabilidade pode ser definida, segundo FRÚGOLI Jr. (2007), pelas
“possibilidades de construção temporária do próprio social” (p.23) partilhadas entre
atores sociais em interação. Contém uma qualidade “intraclassista” na qual a
interação ocorre principalmente entre iguais (p.30), que tecem “relações de
sociabilidade como espécies de espaços comunicacionais, onde, através da interação
entre grupos, rede e indivíduos, se definem e redefinem simbolicamente certas
1
No original cité, que no contexto social francês refere-se aos bairros de habitação populares e
periféricos, construídos na década de 1960, que são, atualmente, região de conflitos sociais e
freqüentes manifestações juvenis.
2
la rue, c’est-à-dire le groupe de pairs et l’ethos qui y sont associés, fonctionnent à la fois comme
protection contre l’exteriéur, comme ressource, symbole d’autonomie et de dignité et en mêmem
temps comme handicap dès lors qu’il s’agit de se faire une place en dehors du quartier. Ce qui
constitue un capital symbolique positif dans la culture de la rue fonctionne comme capital symbolique
négatif, stigmate, en dehors de la cité.
88
diferenças socioculturais” (p.25). Dessa forma, são constituídos e partilhados valores
e capitais que caracterizam a sociabilidade nas ruas e em seus circuitos.
Na análise sobre a juventude, sua ocupação do espaço urbano e sua interação
com a cidade, MAGNANI (2005) define circuito a partir do uso do espaço urbano,
seus equipamentos e sociabilidades traçadas, e diz que o circuito tem uma “existência
objetiva e observável: pode ser identificado, descrito e localizado” (p. 179).
ADORNO (1997/98), referindo-se especificamente ao circuito de jovens na rua,
define como: “a caracterização de um grupo que passa a freqüentar, circular e adotar
comportamentos e práticas que o tornam reconhecido e reconhecível por outros que
também freqüentam este circuito, e que reflexivamente passam a incorporá-los como
parte das suas identidades” (p.13).
A passagem para a rua e a ruptura com a vida familiar e do bairro,
notadamente em bairros populares e empobrecidos, caracterizam-se por uma
transição de liminaridade, definida por TURNER (1994) como um momento de
passagem entre uma “estrutura” e a filiação a outra “estrutura”, podendo cristalizar-
se como uma situação permanente. Para HECHT (1998), em pesquisa com os
meninos de rua de Recife, essa passagem era referida, por uma diferenciação feita
pelas próprias crianças e pelos próprios adolescentes, entre aquilo que chamavam de
“essa vida”, aludindo-se às ruas, e o “domínio da mãe” (motherdom), na qual havia a
vida moral, em casa e com a figura materna.
TERROLLE (1995) discursa que a passagem para a rua se associa a uma
“irreversibilidade”, seguindo as fases subseqüentes e liminares de: desagregação de
uma vida precedente, passagem para a vida nas margens entre duas vidas (a anterior
e a atual) e, por fim, a integração a uma nova vida com um novo estatuto: o morador
de rua. Posteriormente essa degradação social soma-se aos outros níveis da vida
social, como degradação do estado de saúde, da condição de escolarização, de
trabalho, de moradia, das relações familiares, das relações na rua e outras dimensões,
caracterizando uma identidade de “ser de rua”, a partir de uma vida vivenciada à
margem daquela formalmente estabelecida, compondo novas relações de tempo,
espaço e pertencimento. É nesse momento, anterior à terceira fase definida por
TERROLLE – de integração à rua –, em que os profissionais que intervêm com essa
89
população acreditam que seja a situação “ideal” de interferência na trajetória deles,
na busca de afastar essa cristalização e interromper o ciclo de liminaridade e vivência
nas ruas.
João suscitava esse questionamento no momento de sua chegada à rede de
serviços, na medida em que apresentava a possibilidade de estar em uma fase anterior
àquela conhecida no trabalho com a maior parte dos meninos e meninas, a de
interiorização da identidade de rua, e criava, no imaginário dos profissionais, a
possibilidade de sua reintegração social.
O discurso da “boa hora” para intervenção remete-se, diretamente, à
proposição de retorno para casa, pensando ser essa a função base do trabalho da rede
de serviços que atende aos meninos em situação de rua. Os documentos de alguns
equipamentos sociais apontam que a sua missão é dedicada à “recuperação dos
adolescentes das ruas” e, a partir daí, fazer seu “reencaminhamento para a família,
quando possível” ou ainda promover a sua “reinserção social”. É apresentado o
retorno para a família, para a situação “regular” de vida, como o objetivo norteador
dos serviços que atuam com essa população. O próprio Criando Rede de Esperança,
enquanto grupo articulador de instituições, declarava ter sido criado devido “à
presença de muitas crianças e adolescentes em situação de rua, sendo que muitas
delas fazem uso de drogas” e apontava como seu norte a construção “de uma rede
articulada de serviços que atendam integralmente estas crianças, promovendo sua
recuperação e inclusão na sociedade” (PMC, 2002, s/p.)
3
.
Pensando no princípio jurídico estabelecido pelo ECA e no direito à família e
à convivência familiar e comunitária, promulgados pelo aparato jurídico em vigor, o
objetivo declarado pelos serviços são congruentes com os aspectos da lei, porém
mostram-se de pouco alcance quando comparados com a realidade encontrada na
vivência dos meninos em situação de rua e no acompanhamento longitudinal das
ações desses serviços na intervenção com eles. Poucos retornam para as suas casas,
segundo esse princípio estabelecido.
3
PMC. Prefeitura Municipal de Campinas. Plano Municipal para a Infância e Juventude. Campinas.
2002.
90
As proposições da “missão”, dos “objetivos” e das “finalidades” desses
serviços centram-se, então, na saída deles da rua, entretanto há a leitura
predominante de que a rua é o espaço de sofrimento, precariedade e onde as
necessidades básicas não são supridas. Para alguns autores, que reforçam o
argumento da permanência nas ruas como sinônimo de sofrimento, esses fatores são
verificados quando se fala sobre as más condições de saúde física desse grupo
(SCANLON, 1998), como as baixas condições nutricionais, as inadequadas
condições de higiene e indumentárias, comparadas ao padrão social; os episódios de
violência física e psicológica, que, segundo PANTER-BRICK (2002), são associados
às questões de saúde mental e resiliência; além da vivência de situações de
sofrimento diversos, como estar sob as variações climáticas, submetidos à
permanência na chuva e no frio, dentre muitos outros fatos por eles relatados e
vivenciados.
Esse quadro referente ao sofrimento vivenciado a partir da situação de rua é
encontrado freqüentemente no discurso de alguns profissionais e, como resposta, é
comum a verbalização de uma sensação de “pena”, “dó”, com relação aos meninos e
às meninas.
eu, pessoalmente, vejo com muita pena, não é uma pena de dó, mas é uma pena, da
falta de uma solidariedade em conjunto com eles, porque a gente sabe que ali o
destino está marcado para um faixa etária da vida que vai parar ali (Representante do
Fórum dos Direitos das Crianças e Adolescentes de Campinas).
Não é nossa intenção aqui apresentar uma listagem das problemáticas
vivenciadas na rua, apenas demarcá-las como importantes e reais, e, então,
complementá-las com o debate da complexidade de interpretações da vivência na
rua, que suplementa os aspectos da precariedade e do sofrimento. Essa primeira
vertente é a predominante e mais presente nos discursos e imaginários em torno da
situação de rua, do senso comum aos técnicos de intervenção, porém é preciso
apreender a vivência na rua sobre outros diferentes aspectos.
91
Inicialmente, é importante demarcar a diversidade de situações que se
encontram nas ruas, apesar de seus pontos em comum, e não uniformizá-los como
um “grupo sociológico único” (ALVIM, 2001). Dentro das contradições,
multiplicidades e vivências no universo da rua, alguns autores trabalham com a idéia
de sociabilidades, prazeres e inserções pelo universo da rua, ou seja, tornam
complexa a situação de rua e questionam-se sobre outras possibilidades de
interpretação em torno dela. MAGNI (2006) aponta o modo de vida nas ruas como
um confronto direto à ordem social citadina, calcada no sedentarismo, em oposição
ao nomadismo, uma resistência à pressão socioeconômica de expulsão de grupos
populares para as periferias dos grandes centros urbanos. “(...) ele [morador de rua,
chamado pela autora de ‘nômades urbanos’] usa livremente os espaços da cidade,
construindo circuitos territoriais e invadindo fronteiras que deveriam demarcar os
limites das classes sociais (p.39)”. PANTER-BRICK (2002) critica o termo “criança
de rua” (street children) e a dualidade presente entre o apelo emocional, do lugar da
pena e da “vitimização” da criança, e, em contraposição, a visão de hostilidade e
medo em torno dessa população, colocando-a como “vilã”. Acrescenta a necessidade
de relação entre os fatores sociais e a pobreza associados à condição de estar na rua
para se falar de seu controle e intervenção. ADORNO (1997/98, 1999) discute sobre
as sociabilidades vivenciadas nos circuitos de rua e os prazeres, adrenalinas e
diversões em oposição às oportunidades que o bairro de onde eles vêm oferecem,
criando outros territórios que permitam o rompimento com a dimensão do tempo e
dos limites, em uma experimentação sobre o possível e o impossível (p. 95). HECHT
(1998) faz uma descrição detalhada sobre as possibilidades de brincadeiras e
diversão que constituem o perambular pelas ruas, envolvendo algumas situações de
perigo e emoção.
Nessa linha, PÉREZ LÓPEZ (2006) defende a idéia da rua como um modo de
vida alternativa permanente, que se caracterize por uma inserção social alternativa,
pelas margens.
A vida nas ruas é freqüentemente percebida como um episódio passageiro nas
trajetórias das crianças e jovens da rua (...), parece-nos importante considerar a
possibilidade deles se tornarem jovens das ruas como um modo de vida permanente.
92
Dessa forma, está dada (...) a possibilidade de uma integração pela margem, que
agora é necessário de refletir nessa possibilidade em longo prazo (p. 310). Há a
inversão do senso normativo e (...) a adoção de modos de vida não reconhecidos pela
sociedade hegemônica, permitindo aos indivíduos, geralmente estigmatizados,
colocados de lado e condenados à exclusão social e às dificuldades econômicas
permanentes, de exercer sua cidadania e ascender a uma vida reconhecida, não pela
sociedade como um todo, mas igualmente excluídos da dinâmica social dominante
(p. 315)
4
.
A compreensão sobre o estar na rua pode suplantar as interpretações
dominantes, principalmente aquelas guias das ações dos equipamentos sociais, e
indagar, dessa forma, as funções das políticas sociais com essa população. Na
medida em que há a análise sob a rua como sociabilidade e inserção, pela margem
social, põe-se a questão sobre o objetivo dos serviços que trabalham com essa
população, o papel das intervenções sociais e os investimentos que se fazem
necessários para o acolhimento e atenção dessa população. Cria-se o difícil desafio
de conciliar o princípio legislativo da proteção e do direito com uma realidade de
degradante desigualdade social na qual estar na rua possa ser compreendido como
uma maneira possível de inserção e vivência.
A função dos serviços para seus gestores, coordenadores e técnicos, quando
comparada ao uso e à compreensão deles pelos seus usuários, assume posições
bastante distintas e não convergentes. Pela vertente da política, predomina o olhar
sobre necessidades específicas, como as de saúde, educação, cultura e assistência
social, na focalização da problemática escolhida como prioritária para abordagem
com esse grupo. Vale destacar que já estamos no interior de uma intervenção focal,
na medida em que falamos sobre ações desenvolvidas com crianças e adolescentes
em situação de rua. Porém, dentro dessa focalização, há as áreas que traçam as
especificidades e subpopulações a serem atendidas, dentro do recorte focal já
4
La vie dans la rue est souvent perçue comme un épisode passager dans les trajectoires des enfants
et des jeunes de la rue (...), il nous paraît important de considérer la possibilité qu’elle devienne pour
plusiers jeunes de la rue, un mode de vie permanent. Par ailleurs, étant donné (...) de la possibilité
d’une intégration ‘par la marge’, il est maintenant nécessaire de réfléchir à cette possibilité sur le
long terme. L’inversion du sens normatif et l’adoption de modes de vie non reconnus par la société
hégémonique, permettent aux individus généralement stigmatisés, mis à large et condamnés à
l’exclusion sociale et aux difficultés économiques permanentes, d’exercer leur citadinité et d’acceder
à une vie reconnue, si ce n’est pas par la société dans son ensemble, du également exclus de
dynamique sociales dominantes.
93
estabelecido. Para os equipamentos sociais, a função do serviço é dada por meio de
missões e objetivos declarados a partir do referencial da área de atenção, no princípio
de cuidado e proteção da criança e do adolescente, distante da proposição de
abordagem das sociabilidades e inserções pela rua.
GABORIAU (2004) assevera que a estruturação dos serviços para as pessoas
em situação de rua é pensada a partir da lógica de atenção para alguém que tem
faltas, que se identifica pelo prefixo “des”, ou ainda pela preposição indicativa de
ausência, “sem”, ou seja, são os “desestruturados, desorganizados, desconstruídos, ou
‘sem’, sem alojamento, sem abrigo, sem domicílio” (p. 118). Trata-se da organização
da atenção dos serviços para “ajudar” o usuário, pautado em uma idéia de caridade,
em que o outro será “refeito, reconstruído, reorganizado” (p.118)
5
, colocando-o em
uma posição de passividade e recepção, somente. E nesse processo, segundo NEVES
(2006), emergem identidades modernas constituídas a partir da falta e que buscam,
no contexto da exclusão, serem incluídos. Nesse debate, os autores fazem uma crítica
contundente com o intuito de amplificar o fato explicitado e bastante presente na
intervenção institucional com jovens populares, para NEVES, e com a população em
situação de rua, para GABORIAU.
Percebemos que esse fato é introjetado, inclusive, na fala dos meninos,
usuários dos serviços. Quando perguntamos diretamente a eles sobre a importância
da rede de serviços, o discurso majoritário referia-se à idéia de “ajuda” e “caridade”
recebida nos locais, os quais eles não fazem nenhuma distinção sobre sua natureza,
se governamentais ou não-governamentais, pois interpretam todos locais como o
conjunto de equipamentos que podem procurar quando precisam de ajuda, fazendo a
classificação entre os mais e menos acessíveis, com maior ou menor possibilidade de
entrada, que exigem mais ou menos requisitos para o ingresso.
- O que você acha sobre os serviços que atendem aos meninos?
- Eu vejo que é só para o meu bem, que quer me ajudar. Ah, me dá força para eu
mudar de vida, ser alguém na vida (João, 16 anos, entrevista individual).
5
déstructuré, désorganisé, déconstruit, ou « sans », sans-logis, sans-abri, sans-domicile, SDF. (...)
« refaire », « reconstruire », « réorganiser ».
94
O que eu acho que precisava também era ser mais fácil as coisas... Eu acho que é
difícil, pra mim, tá sendo difícil. Quer ajudar, não é? O certo é se você tá com força
de vontade, aproveitar e já levar você... É difícil, meu, viu que o menino é de
Campinas, viu que ele quer se recuperar, vamos conversar mais rápido, vamos fazer
uma comunicação mais rápida... (Adolescente de 16 anos em grupo de atividade na
instituição).
A imagem da ajuda é acompanhada pela responsabilização pessoal de aceitá-
la e aproveitá-la como dispositivo para “sair da situação de rua”, valor compreendido
e passado como mensagem pelas instituições.
- E quando os tios passam na rua, conversam, como é?
- Ah, ajuda, vai colocando na cabeça da gente, vai pesando, porque depois se
acontecer alguma coisa de ruim com aquela pessoa que você tentou ajudar, sei lá, vai
pensar: ‘pô, oportunidade eu tive, né, se eu tô agora aqui é porque sou burro
mesmo’. E você foca descansado porque sua parte você fez. Não é? (Adolescente de
15 anos, entrevista individual).
Esses discursos configuram-se pela utilização de “falas prontas” que se
repetem no universo das ruas nesse diálogo com as instituições. Criam códigos
comuns que se transformam, algumas vezes, no acesso aos serviços, na possibilidade
de algum ganho ocorrido pela repetição massificada do discurso sobre si e sobre
aquele que oferece “ajuda”. Isso irrompe a lacuna criada entre a visão e os objetivos
dos meninos e aqueles das instituições. Pode-se dizer:
elementos do repertório cultural de cada grupo são permanentemente selecionados e
manipulados pelas coletividades em processos de definição e redefinição identitária,
em função das necessidades políticas, econômicas e sociais, fazendo com que os
mesmos definam e sejam definidos ao longo de um processo permanente de
interação (FRÚGOLI Jr., 2007, p.43-44).
A incongruência entre os propósitos institucionais e os de seus usuários é
percebida quando se confrontam o ideal “de retorno para a casa” e o tempo em que
esses meninos são atendidos nos serviços e o número concreto dos que respondem
positivamente à “saída das ruas”. Os serviços, em sua grande parte, não dispõem de
95
estatísticas dessa natureza, relacionando o encaminhamento dos usuários atendidos,
porém há um discurso generalizado entre os profissionais com relação à “não
adesão” dessa população e ao retorno constante dos meninos às instituições, o que
justamente aponta a dificuldade de abordagem à saída das ruas. Eles passam e
repassam pelos serviços, retornando após alguns encaminhamentos, desfazendo
trajetórias propostas e interpelando, com seus percursos de idas e vindas, a
viabilidade das ações para eles realizadas, demonstrando necessidades diferentes
daquelas compreendidas pelos locais.
Para GREGORI, a utilização dos serviços da rede pelos meninos em situação
de rua acontece em um processo por ela denominado de “viração”, no qual a
passagem pelos serviços ocorre quando há interesse dos usuários em desfrutar aquilo
que os locais podem oferecer como benefício, no que eles avaliam como positivo.
Eles fazem um giro, uma virada, entre todas as instituições, por isso o nome
“viração” – que, segundo seu estudo, os serviços mantêm pouco diálogo entre si e
repetem ofertas e ações – para buscar apoio para sua permanência nas ruas,
dirigindo-se às instituições para resolução de problemas pontuais, acesso a benefícios
que viabilizem essa permanência, e, para tanto, fazem o discurso necessário e
demandado como código de acesso ao universo institucional.
Tal fato é também apontado por PÉREZ LÓPEZ (2006) através da utilização
das instituições pelos jovens que se estruturam nas ruas da cidade do México. Ela
destaca que as instituições representam uma oportunidade para os jovens melhorarem
seu cotidiano nas ruas, fazendo uso delas com um objetivo inverso àqueles apontados
como diretivos do seu trabalho. Enquanto os serviços apontam a necessidade de
‘reintegração na sociedade’, de ‘nova vida’ e da oferta de ‘meios de sair da rua’, os
jovens percebem seu trabalho como uma solução passageira para alguns de seus
problemas e contatam os educadores como um meio de acessar facilmente as
instituições (p. 186).
Esse objetivo está presente principalmente nas instituições denominadas
abrigo. O abrigo, por definição, é um lar provisório, devendo ser a última medida de
proteção a ser aplicada a uma criança ou a um adolescente, pois rompe com os
princípios anteriores do direito à família e à convivência com ela, segundo o ECA.
96
Esse ponto não tem sido respeitado e vem sendo questionado, atualmente, quando se
analisa a situação dos abrigos, de uma maneira generalizada, no Brasil.
Caracterizados como instituições religiosas (segundo pesquisa do IPEA
6
, 67,2% dos
abrigos no país estão alocados em instituições religiosas, predominantemente
católicas) e fundados, ainda, no princípio anterior do Código de Menores do
estabelecimento orfanato, eles trazem, em si, uma contradição entre a necessidade de
acolhimento daqueles que não contam com um aporte familiar e a real necessidade
da saída do núcleo familiar para o ambiente institucional. É o que se percebe no
índice de 24,2% das crianças serem abrigadas por pobreza, fator não justificável
segundo o texto jurídico em vigor, e 86,7% do total de crianças e adolescentes
abrigados terem famílias (SILVA, 2004).
Com referência aos meninos que estão em situação de rua, essa questão se
apresenta de uma maneira um pouco diferente, pois eles já estão fora do seu núcleo
familiar, na maioria dos casos pela sua saída voluntária, e ainda permanecem com
alguma convivência e contato por meio de visitas espontâneas em suas casas.
João, porém, vivenciava uma situação diferente da maioria dos meninos em
situação de rua, que têm e mantêm laços com suas famílias, pois a sua chegada na rede de
serviços referia-se, justamente, ao início de sua orfandade e à perda de referências
familiares em sua trajetória. Por isso, ele foi encaminhado para um abrigo, com a
proposição de esse equipamento buscar, resgatar ou (re)criar laços familiares para sua
saída das ruas. Já de início foi feita a tentativa de contato com sua família, e trabalhou-se
com a possibilidade de reinserção familiar; contudo, sua tia, que estava com sua guarda
oficial, não possuía nenhuma proximidade afetiva nem de vínculo com João, e estava,
naquele momento, morando de favor na casa de uma irmã, com seus filhos, devido ao
fato de seu marido (irmão da mãe falecida de João) estar preso. Assim, não havia nem
espaço físico para o acolhimento de João, caso fosse essa uma proposta, e nenhum laço
de família aparente a ser resgatado. Os demais parentes estavam em Minas Gerais, origem
de sua família, não tendo ele, portanto, outras referências em Campinas. A única pessoa
próxima localmente era uma vizinha que conhecia bem João e sua mãe e quem ofereceu
6
Pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada – IPEA e publicada em SILVA,
2004.
97
alguns outros dados do histórico dele no bairro, porém sem traçar possibilidades de
localização de outros parentes ou outros locais aos quais se pudesse pensar o “retorno” de
João. A proposição de permanecer no abrigo era, para ele, a possibilidade de estar em
uma casa e a dimensão vislumbrada, naquele momento, como possibilidade.
O abrigo, segundo o ECA, caracteriza-se como medida de proteção provisória
e excepcional, que busca, quando possível, a reinserção familiar das crianças e
adolescentes atendidos. Além disso, essa medida não implica em privação de
liberdade (conforme Art. 101 – Parágrafo Único – ECA, BRASIL, 1990). O
destaque assinalado é de absoluta relevância, uma vez que está presente no
imaginário social o conceito de abrigo para adolescentes como local para aqueles que
descumpriram a lei, cometendo alguma infração. Exemplo claro desse fato é a
instituição Febem – Fundação para o Bem-Estar do Menor – do Estado de São Paulo,
que, por muitos anos, foi o único órgão provedor de abrigos e de internação para
adolescentes – na época “menores” – infratores (MARCONDI, 1997).
Na mudança desse processo, o ECA, na busca de redimensionar conceitos e
distinguir as situações, define medidas socioeducativas e de proteção, sendo as
primeiras destinadas aos adolescentes em conflito com a lei, e as segundas para
quaisquer crianças e adolescentes que tenham alguns de seus direitos violados, que é
onde se enquadra a medida de abrigamento. O abrigo, a despeito de seus estigmas
históricos, apresenta-se, muitas vezes, como o único local, mesmo que temporário,
para a permanência de alguns meninos e meninas.
Na verdade, a instituição [abrigo] muitas vezes se apresenta como a melhor
alternativa para um grande número de crianças e adolescentes, o que determina a
necessidade de um comprometimento ainda maior de suas ações, pois esse é o único
caminho para a superação dos trágicos estereótipos de sua história (ARPINI, 2003,
p.179).
A presença de um abrigo para composição da rede de atendimento a crianças
e a adolescentes é ponto de partida, mesmo que para pensar no desenvolvimento de
98
outras propostas e encaminhamentos para essa população
7
. Na rede de Campinas, o
abrigo referência para o atendimento aos meninos e às meninas em situação de rua
era, inicialmente, a AFAGAI – Associação Fraterna de Apoio Global ao Adolescente
e à Infância, ONG de natureza católica. Iniciou seu trabalho de atendimento em 1998
e, por intervenção dos organismos jurídicos locais, que alegaram inadequação no
atendimento realizado, encerrou em 2001 temporariamente suas atividades e passou
por uma reestruturação de caráter organizacional, pedagógico e terapêutico, no que
concerne os serviços prestados. Em outubro de 2002, retomou sua oferta de
assistência a partir de um convênio com a gestão municipal, que havia feito um
convite para sua reentrada na rede de atendimento a essa população. Sua reabertura
ocorreu com a assinatura de um convênio de subsídio financeiro junto à Secretaria de
Assistência Social. A proposição, por parte da Secretaria, originou-se no não
atendimento a essa população pelos abrigos já presentes no município.
Campinas conta com um abrigo municipal, que realiza atendimentos para 58
crianças de zero a catorze anos, e cinco instituições não-governamentais, que
realizam abrigamentos de 328 crianças e adolescentes, de zero a dezessete anos e
onze meses (PMC, SMCTAIS, 2005). Tem-se, entre os abrigos, a visão de que o
atendimento aos meninos em situação de rua requer uma “especialização”, devido a
conciliação com a questão do uso de drogas. Sendo assim, os abrigos “recusam” a
entrada de alguns adolescentes na sua instituição alegando falta de preparo para
intervenção com “usuários de drogas”, passagem daquele adolescente no serviço e
sua não adesão à proposição local de funcionamento, a reincidência no
descumprimento de regras locais e outras justificativas. Por esses motivos, a
Secretaria de Assistência Social realizou a parceria com a AFAGAI no intuito de
garantir a possibilidade de abrigo para essa população, uma vez que ela estava
elencada como uma das prioridades daquela gestão.
7
Há a iniciativa de trabalhos de famílias substitutas, sendo que em Campinas há a experiência
municipal do Sapeca – Serviço de Apoio e Proteção Especial à Criança e ao Adolescente, referência
nacional na temática e que vem debatendo alternativas menos impactantes e menos
institucionalizantes do que o abrigamento. Contudo, para adolescentes, permanece o debate sobre a
viabilidade ou não da inserção em famílias substitutas. ARPINI (2003) propõe que, para esse grupo,
a inserção em abrigos pequenos e com perspectiva de abordagem individual podem ser alternativas
mais adequadas e com maiores possibilidades de inserções sociais futuras.
99
Inicialmente, a demanda por esse convênio foi apresentada pela Secretaria de
Saúde devido à reorganização do seu servo (CRAISA – Centro de Atenção Integral
à Saúde do Adolescente). Houve a sua configuração enquanto CAPS – Centro de
Atenção Psicossocial, destinado para o tratamento de usuários de álcool e drogas, na
categoria de atenção às crianças e aos adolescentes. Na nomenclatura do Ministério
de Saúde tratava-se de um CAPS II AD i
8
. A preocupação da Secretaria era garantir
a retaguarda dos adolescentes ali atendidos através da disponibilidade de “leitos”
para aqueles que precisassem. Sendo assim, ventilaram a proposição de parceria
direta com o abrigo AFAGAI, nos termos de financiá-lo e ter exclusividade no uso
das suas vagas. A direção da instituição, porém, na época, considerou que esse
convênio a descaracterizaria enquanto um abrigo e a colocaria como um braço do
equipamento de saúde, o que não a interessava. A partir de então, a Secretaria de
Assistência Social concretizou a proposta de convênio, com repasse de verbas
mensais
9
, e o abrigo foi reaberto com a missão de atender crianças e adolescentes em
situação de rua, inclusive aquelas usuárias de drogas, sendo um dos seus parceiros
prioritários para o trabalho o equipamento da Secretaria de Saúde, o CRAISA, por
realizar o atendimento ambulatorial dessa população.
A AFAGAI foi reinaugurada sob a proposição de oferta de uma atenção
“especializada” para essa população e com o desafio de constituir-se como uma
“casa” para 16 adolescentes, meninos e meninas, que buscassem, na maioria dos
8
A organização do Ministério da Saúde, através de sua política de reforma psiquiátrica, ocorre por
meio dos CAPS – Centros de Atenção Psicossocial, que são “um lugar de referência e tratamento
para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja
severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo,
comunitário, personalizado e promotor de vida” (BRASIL, 2004a, p.13). Os CAPS podem ser
classificados em CAPS I e II, com funcionamento de 8 horas dia em 5 dias/semana; CAPS III aberto
24 horas por dia sem interrupção; o CAPS i, direcionads para atenção da infância e adolescência; e,
por fim, o CAPS ad, voltado para usuários de álcool e outras drogas. Segundo documentação do
Ministério da Saúde (BRASIL, 2007) no final de 2006 o país contava com 1.011 CAPS, sendo 430
CAPS I, 320 CAPS II, 37 CAPS III, 75 CAPSi e 138 CAPSad, presentes em todos os estados da
federação.
Campinas é um município de referência na reforma psiquiátrica no Brasil, devido ao seu pioneirismo
para implementação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, acompanhado de outras
cidades, e contava, no final de 2004 (PMC, SMS, 2004), com 5 CAPS III, 1 CAPS II, 1 CAPS II i, 1
CAPS ad e 1 CAPS ad i (CRAISA).
9
Convênio em 2002 de repasse de R$ 10.000,00/mês. Tendo sido renovado em 2003 e 2004, segundo
avaliações da própria Secretaria. O abrigo contava ainda com outros co-financiamentos advindos da
própria Secretaria de Assistência Social e doações esporádicas de voluntários.
100
casos, voluntariamente, seus abrigamentos. Os adolescentes eram encaminhados
pelos demais serviços da rede, pelo Conselho Tutelar ou diretamente pela Vara da
Infância e da Juventude.
O funcionamento da casa ocorria, na sua reinauguração, do ponto de vista de
seu quadro profissional, pela presença de oito educadores sociais, que faziam plantão
em duplas para o acompanhamento dos adolescentes 24 horas na casa. Eles
trabalhavam com o apoio de uma assistente social, uma psicóloga e uma terapeuta
ocupacional, responsáveis pelo trabalho institucional e pela representação junto aos
órgãos competentes, bem como pelo desenvolvimento dos encaminhamentos diretos
e personalizados com cada adolescente. Havia ainda um professor de educação física
e dois arte-educadores. A equipe contava também com pessoal de apoio, na presença
de uma auxiliar administrativa, uma cozinheira e uma faxineira. Estavam presentes
sempre alguns membros da direção, que conduziam o trabalho administrativo e
coordenavam o trabalho técnico, além da presença de voluntários para a realização
de atividades religiosas, alimentares e de recreação.
O desafio posto era sua configuração enquanto casa, a casa de seus abrigados,
respeitando-os e oferecendo-lhes novas possibilidades, que incluíam os limites para a
convivência. A construção de um paradigma de casa passa necessariamente pela
construção da convivência e do respeito ao outro. A construção da convivência era
um objetivo remoto, pois a linguagem reconhecida e utilizada pelos meninos e
meninas caracterizava-se, inicialmente, pela violência. A resolução dos conflitos
cotidianos ocorria por meio da violência física, na maioria das vezes direcionada a
eles próprios e, em outros momentos, aos funcionários da casa.
Para preparar melhor os recursos humanos para a tarefa colocada, antes da
reabertura da casa foi ofertada, para a nova equipe, uma capacitação direcionada,
realizada por uma assessoria externa contratada para seleção e realização da
habilitação dos profissionais. Todo o processo de trabalho apresentou-se bastante
diferenciado, uma vez que não é comum no campo social a presença de uma figura
externa, como uma assessoria, para a efetivação dessas etapas, pois a escassez de
recursos financeiros é uma constante. Porém, o convênio com a AFAGAI
contemplava uma verba para essa fase e o posterior repasse mensal para seu
101
funcionamento, que era, de saída, insuficiente para arcar com a folha de pagamento
local proposta.
Após a fase de capacitação
10
e o início efetivo do trabalho, alguns
profissionais não se identificaram com a população atendida e terminaram por se
demitir e saíram da equipe recém-criada. O contato com os meninos de rua e seus
outros códigos, habilidades e capitais apresentados; a violência como instrumental de
diálogo; o uso de substâncias psicoativas e sua não interrupção a partir da acolhida
pelo abrigo; a dificuldade em constituir uma casa e preservá-la, sem que para isso
fosse necessária a instituição de regras e procedimentos excludentes; juntamente com
a intervenção constante da direção da instituição, e sua condução do trabalho técnico
realizado; foram fatores de desestruturação para alguns profissionais, que optaram
pela saída do trabalho recém-iniciado. As vagas não foram repostas, pois a direção
argumentava que não faria sentido a inclusão de novos profissionais que não
tivessem vivenciado toda a capacitação e constituição da equipe local. Apenas os
educadores foram substituídos, pois eles faziam o plantão, no turno do dia ou da
noite, mantendo o acompanhamento dos adolescentes e funcionamento da casa.
O cargo de educador, com o desenrolar do trabalho, foi o posto que mais
sofreu rotatividade, pois não apresentava a possibilidade de não ser substituído –
devido à necessidade dos plantões –, além de ser o cargo com maior dificuldade para
o processo de trabalho, seja na questão prática-estrutural, pois os profissionais
realizavam uma carga horária de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso; seja
pela intervenção direta e ininterrupta com os adolescentes, momentos em que os
conflitos eram vivenciados mais intensamente.
Essa troca representativa dos recursos humanos depreciou os esforços de
capacitação da equipe e constituição de um grupo de trabalhadores diferenciados, na
medida em que não houve permanência e continuidade para concretização da
proposta. O fator mais marcante nessa rotatividade, na nossa opinião, foi a
10
A capacitação ocorreu de 9 de setembro a 27 de outubro de 2002, por meio da oferta de palestras e
vivências de temas relacionadas ao trabalho, como: família, abordagem psicológica, rede de
serviços, redes familiares, redes de sociabilidades etc; bem como a discussão com profissionais da
rede de atendimento que seriam parceiros do serviço, como Conselho Tutelar, CRAISA, equipe de
Redução de Danos do Município e outros. O primeiro abrigamento ocorreu em 28 de outubro de
2002.
102
dificuldade encontrada justamente para a criação da rotina e convivência na casa,
pois, para isso, a tessitura do vínculo é fundamental, principalmente em um serviço
que se propõe a constituir-se como uma casa. E os educadores sociais assumiam
função predominante nesse processo por serem os técnicos com contato permanente
com os adolescentes.
O vínculo é referido, em diversos trabalhos no campo social, como o
elemento fundamental a ser buscado com os indivíduos e grupos, isto porque se
reconhece que, desprovido deste tipo de relação, qualquer processo comprometido
com a transformação social estaria ameaçado. Considera-se o fato de que
a inexistência do vínculo faz com que não se acessem desejos, necessidades e valores
dos sujeitos, não se produzam autonomia em suas vidas e instituem-se relações de
poderes hierarquizadas que resultam no insucesso das intervenções (LOPES,
MALFITANO e BORBA, 2006). COSTA (1997), autor bastante utilizado para a
elaboração de projetos de intervenção social, afirma que a presença é uma categoria
importante e estruturante para o desenvolvimento de ações sociais.
Em uma instituição como um abrigo, moradia provisória daqueles meninos e
meninas, há um trânsito entre o público e o privado, entre a publicidade da
instituição e a privacidade da casa. O conceito de casa se constrói quando são
qualificadas as relações ali vivenciadas – entre os próprios adolescentes e entre os
adolescentes e os técnicos – enraizando-se de forma bem ou malsucedida, conforme
o processo de vínculos se estabelece. Assim, a passagem de muitas pessoas,
representam perdas, vivenciadas pela entrada e saída abrupta de técnicos, que se
adicionam às suas perdas pessoais, deixando marcas nas relações vinculares e nas
possibilidades de estabelecimento delas com outros.
Esse fator reforça uma vivência marcante dessa população com relação à
“constante transitoriedade”: a passagem por diversos equipamentos sociais, a
vivência nas ruas e circulação por diversos espaços, construindo uma lógica de não-
permanência e não-vínculo. Portanto, criar rotinas e estruturar o cotidiano são
elementos que se afastam da realidade concreta vivenciadas pelos meninos, mas que
eram ambicionados pelo abrigo (MALFITANO e LOPES, 2005).
103
A questão que se coloca ao técnico é a capacidade de identificar, dentre as
‘atividades simples do cotidiano’ (simples no sentido daquilo que se faz todos os
dias), as quais apresentam um grau importante de significação na vida dos
adolescentes, pontuando-se a convivência como instrumento chave de criação de
vínculos. Almoçar junto, brincar, jogar bola, ajudar a acabar com os piolhos do
cabelo, desenhar, assistir à televisão, arrumar o quarto, permitir-se o contato físico, o
abraçar, entre outras tantas atividades. Em seus históricos de vida, é freqüente a
ausência dos cuidados, da afetividade, e deparar-se com o cuidado e com o afeto é
atraente e, ao mesmo tempo, assustador e desconhecido. Trata-se de uma relação
dual de troca, na qual o ‘saber’ técnico não está em protagonismo na ação (LOPES,
MALFITANO e BORBA, 2006, p. 128).
Dentro desse processo, na AFAGAI, agravou-se o fato da insuficiência de
recursos financeiros e a necessidade de cortes para a manutenção da instituição. Com
um convênio que dispunha de um montante insuficiente para o desenvolvimento do
trabalho, sabido desde o início de suas atividades, a direção optou por fazer a
substituição do cargo “educador social” para “monitor”, exigindo, assim, menor
escolaridade e ofertando um salário mais baixo. Houve a mudança de um perfil de
profissional que influenciou, diretamente, na questão do vínculo e na dinâmica da
casa.
Esses fatores amplificavam o desafio do trabalho que, por si só, não era
pequeno. A AFAGAI buscava encontrar uma metodologia de abordagem que não se
fixasse no limite de uma radicalidade das regras inflexíveis, presentes em muitas
instituições que intervêm com essa população, nem ao liberalismo total e a ausência
de limites, caminho possível, porém também não eficiente. O questionamento de
como fazer era uma discussão permanente. Experiências de políticas e proposições
em outros municípios no atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de
rua apontam desafios semelhantes (PAICA-RUA, 2002; LANCETTI, 1996),
principalmente no que se refere a abrigos para essa população (ZIETI, 1996),
demonstrando também que o enfrentamento dessa problemática e a construção de
alternativas não acontecem por meio de modelos predeterminados.
Propor uma rotina na qual se deve acordar e fazer as refeições em um mesmo
horário, respeitar limites, cuidar de suas coisas, ir à escola, participar de atividades
em diferentes locais, entre outras tantas tarefas e obrigações era uma mudança grande
na realidade daqueles meninos.
104
Porém, é justamente esse ambiente de casa que é citado verbalmente por
alguns adolescentes como o ponto positivo dessa instituição. João, com sua vivência
de um “despertencimento” familiar no momento de seu abrigamento, identifica:
- Adolescente entrevistador: No que o AFAGAI tá te ajudando?
- João: O AFAGAI tá me ajudando na escola e em tudo que eu preciso para o dia-a-
dia.
- Técnica: Você quer falar mais alguma coisa?
- João: o AFAGAI está sendo a família que eu não tenho (2004)
11
.
Havia uma constante evasão dos adolescentes do abrigo, ou seja, os meninos
saíam com freqüência da casa, às vezes por horas, outras vezes por dias. Nesses
momentos alguns perdiam sua vaga, pois a mesma era preenchida por outro
adolescente ou, ainda, os técnicos decidiam pela impossibilidade de retorno daquele
menino devido à constante quebra de contrato, mas, tempos depois, retornavam para
outros serviços para pedir o reabrigamento e os profissionais, daquele local,
mobilizavam-se para rearticular a vaga para o adolescente no abrigo. A AFAGAI
assumiu sempre a postura, diferentemente dos demais abrigos locais, de não criar
regras de admissão que restringisse o acesso ao abrigo, com isso aceitava a qualquer
um que precisasse de um abrigo, independentemente de já ter sido abrigado na casa,
de ter histórico de infração, de estar ameaçado de morte e precisando de refúgio,
enfim, a diversidade de situações que acompanha essa população
12
.
A questão da admissão de qual público, em quais condições, nos abrigos do
município foi tema de um debate no Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente de Campinas (CMDCA) com o intuito de inibir uma “pré-triagem” de
público-alvo que ocorria, com freqüência, nas instituições, por meio de critérios
11
Extrato do vídeo “Entre a rua e o abrigo: tecendo cotidianos no fazer de uma casa”. Realização de
Lopes et al. Campinas: Outra via soluções, 2004. 12 min., color, CD.
12
Com isso a AFAGAI transformou-se em referência para os técnicos sociais da Febem (psicólogos e
assistentes sociais que acompanham e encaminham os internos) para o abrigamento dos adolescentes
que não dispunham de família para retornarem, após a medida de internação. Eles não conseguiam
acessar aos demais abrigos do município, criando um fluxo direto para a AFAGAI, que absorveu essa
demanda e passou a contar com uma porcentagem importante desse perfil na casa (em dezembro de
2003, 23% dos adolescentes abrigados haviam sido encaminhados pela Febem, por não possuírem
referência familiar ou as não terem sido contatadas e responsabilizadas pela desinternação,
AFAGAI, 2003).
105
previamente estabelecidos. Assim, o CMDCA promulgou, em 2003, uma resolução
para abrigos, ainda em vigor, que prevê a não discriminação para o atendimento e a
atenção para todos.
Os abrigos deverão receber, sem discriminação, todas as crianças e adolescentes que
lhes forem encaminhados, inclusive os que apresentem condições específicas, tais
como: problemas de saúde mental, de saúde física, portadores de necessidades
especiais, diferentes orientações sexuais e adolescentes em cumprimento de medidas
sócio-educativas, após esgotados todos os recursos para colocação em suas famílias
ou comunidade (Parágrafo Único, Título IV, Resolução n
o
. 27/03, CMDCA, 2003a).
A AFAGAI, contudo, já seguia esse princípio, sendo um local de reingresso
fácil, diferentemente dos demais abrigos locais, pois já dispunha de uma
predisposição para aceitar o retorno. Tal fato culminou na caracterização da
instituição como um local de trânsito com a rua, porque lá era um ponto de encontro
de determinados grupos, havia a possibilidade de saídas, autorizadas e não
autorizadas, e configurou-se como um elemento da rede pessoal dos adolescentes,
aspecto divergente de seu objetivo de “reingresso familiar” e “saída das ruas”, como
pensado pela instituição e pela rede.
O abrigo configurava-se como uma casa de passagem tanto para seus
usuários, que por lá transitavam, como para uma parte de seus funcionários, que
também ali não se fixavam, ficando “apenas” nos planos a proposição de uma casa,
e, no cotidiano, a realidade de um lugar transitório. Do início de suas atividades,
outubro de 2002, ao final do ano de 2003, o abrigo AFAGAI realizou 82
abrigamentos, sendo de 58 adolescentes diferentes (39 meninos e 19 meninas); entre
os atendimentos, 31% foram de reabrigamento de adolescentes que já haviam
passado pela casa. A rotatividade, que também compõe o elemento da evasão, é uma
outra característica bastante marcante, conforme apresenta o gráfico a seguir.
106
21%
19%
15%
17%
16%
10%
2%
1
2
3
4
5
6
7
1 – Um a três dias
2 – Três dias a uma semana
3 – Uma semana a três semanas
4 – Três semanas a dois meses
5 – Dois a quatro meses
6 – Quatro a oito meses
7 – Mais de oito meses
Fonte: AFAGAI, 2003
13
.
Figura 10 – Período de Permanência no abrigo
João, inicialmente, ficou cinco meses abrigado na AFAGAI, período bem
superior à média institucional, porém com alguns episódios de saída, nesse tempo. Ele,
por um lado, adaptou-se às proposições da casa, e, por outro, integrou-se
profundamente com os demais meninos de rua que pela casa passavam, inserindo-se,
também através do abrigo, na
cultura de rua
. Dentre as proposições ofertadas pela casa, e
por ele realizadas, fazia acompanhamento de saúde no CRAISA, como resposta à
constante demanda de atenção ao uso de drogas. Era notória sua aproximação com os
inalantes, inicialmente mais marcante do que a atração pela maconha e pelo crack, drogas
mais citadas pelos meninos nas ruas
14
, e havia muitos episódios de saídas não autorizadas
nas quais, quando ele retornava, comumente no mesmo dia, estava em estado alterado de
consciência. No CRAISA participava de oficinas de atividades, de atendimento em terapia
ocupacional, e passagem por consultas médicas esporádicas, incluindo a psiquiatra, que fez
a administração de medicação por alguns meses, para contenção da “fissura”.
13
AFAGAI. Associação Fraterna de Apoio Global ao Adolescente e à Infância. Relatório de
atividades de 2003. Campinas, 2003. 10 p.
14
Segundo estudo do CEBRID (NOTO et al., 2004), sobre uso de drogas com crianças em situação de
rua em capitais brasileiras, há um uso regular de 44,5% das crianças e adolescentes entrevistados
para o tabaco; 43% para bebidas alcoólicas; 28,7% para solventes; 25,4% para maconha; 12,6%
para cocaína, crack e merla; e 5% para medicamentos psicotrópicos. Um estudo anterior de
BUCHER et al. (1991) aponta que 100% dos meninos de rua pesquisados em Brasília faziam uso de
inalantes (cola de sapateiro), sendo interpretado como uma estratégia de sobrevivência na intenção
de construção de um espaço cultural próprio.
107
No âmbito educativo, João foi matriculado em uma escola estadual regular, no
bairro do abrigo. Iniciou a freqüência e depois se manteve muito irregular, com mais
ausências do que presenças, alegando que não se sentia integrado, estudando com
crianças pequenas, e que não tinha interesse pela continuidade dos estudos. Iniciou a 4.ª
série do Ensino Fundamental em fevereiro de 2003 e desistiu em abril do mesmo ano,
quando evadiu-se do abrigo.
A escola e a permanência nela são sempre motivos de discussão para jovens
de grupos populares e tema de intenso debate, pois, de um lado, a escola pública é o
equipamento social presente em todos os bairros periféricos dos grandes centros,
atendendo efetivamente aos jovens em uma perspectiva universalizante, uma vez que
todos têm direito à escola; todavia, as práticas de violência e estigmatização
realizadas no contexto escolar são extremamente refinadas e afastam – e, por muitas
vezes, expulsam – uma parte dessa população, considerada “inapropriada” e
“perigosa”, desse equipamento social. A escola, dessa maneira, configura-se com a
sua componente democrática cada vez mais distante e minimiza a potencialidade de
si mesma como equipamento social e como política para essa população,
possivelmente o recurso mais presente e universalizante no contexto das periferias
dos grandes centros urbanos (SILVA, 2007).
No debate sobre o retorno à escola, João tinha também o fato de ser um
adolescente abrigado, o que já causava um estranhamento na escola e uma
diferenciação prévia. Tinha, ainda, a questão de que a demanda dos estudos estava no
contexto institucional, dos serviços que ele freqüentava, que se direcionava para o
objetivo de aquisição de conhecimentos reconhecidos socialmente e capitais sociais e
culturais importantes para a realidade social predominante. Porém, esses capitais não
são congruentes com os capitais necessários para outras inserções sociais, como a
rua, por exemplo. Os jovens repetem constantemente o discurso sobre a necessidade
de retorno para a escola e têm, em seu imaginário, que esse seria um passaporte para
uma nova colocação social, de um outro lugar, no entanto, as respostas de suas
trajetórias demonstram a não adesão e a não atratividade da escola, como um local de
pertencimento e aprendizagem. Isso mostra que há muito que se pensar, discutir e
intervir no campo escolar e na sua interface com a juventude de grupos populares.
108
João evadiu-se do abrigo em abril de 2003 e solicitou o retorno para a
instituição cerca de quatro meses depois, por meio dos profissionais do CRAISA,
momento em que lhe foi concedida uma nova vaga. Nesse período, esteve entre a rua e a
casa de uma senhora no bairro em que morava, onde diz ter ido tentar encontrar sua tia,
detentora de sua responsabilidade legal. Seus tios e primos partiram para Minas Gerais, de
onde são provenientes, sem dizerem nada a ele, e João ficou sem nenhuma referência
familiar em Campinas. Uma vizinha, que era amiga de sua mãe, dispôs-se a ficar com João
na casa dela. Ele ficou com ela por uma temporada, uma profissional do abrigo AFAGAI
visitou-o nessa casa, porém, passado um tempo, João retornou para o movimento entre
as ruas e a casa dessa vizinha, dizendo ter sofrido violência doméstica quando ela se
encontrava alcoolizada. Com esse argumento, solicitou o retorno ao abrigo e os
profissionais do CRAISA fizeram a intermediação para sua recolocação. João retornou à
AFAGAI e iniciou um novo abrigamento, com o discurso de que buscava uma casa para
permanecer e “mudar de vida” (sic), referindo-se à saída das ruas.
Entre os interesses apresentados por João no abrigo, uma constante estava
direcionada para a realização de atividades de cultura e lazer. Ele participava da oficina de
capoeira, oferecida pelo arte-educador na instituição, estava inserido em grupos de
atividades e na oficina de malabarismo, ambos no CRAISA, e ainda participava das demais
proposições que encontrava nesse campo. Sua adesão nessas atividades não se consolidava
a ponto de tecer uma continuidade nos grupos de que fazia parte. Declarava sempre o
interesse, demonstrava ter prazer no desenvolvimento das propostas, porém, no
momento efetivo, participava de forma inconstante, permeado sempre pela rua, pela
passagem por ela e pelas drogas no seu dia-a-dia. As atividades de cultura eram mais um
elemento em seu cotidiano desarticulado e de não pertencimento.
Atividades de cultura e esporte são abundantemente utilizadas em projetos
sociais sob o argumento de criarem uma atratividade, acessarem o universo juvenil,
promoverem uma possibilidade de diálogo, além de viabilizarem o acesso à cultura.
São poucas as propostas que se direcionam para a formação profissional dos jovens
no âmbito das atividades realizadas – como a dança, a música, o futebol, a capoeira e
outras especialidades – pois, embora tais propostas existam e ganhem destaque na
109
mídia sobre sua associação entre projeto social e atividade cultural
15
, elas são
minoritárias no universo de ações sociais com jovens de grupos populares. O que se
encontra, de forma freqüente, é o uso das atividades de cultura e esporte como um
recurso de trabalho institucional para intervenção com essa população.
Tal proposição levanta o questionamento sobre as razões, para além das
oficialmente apresentadas, da utilização desse recurso. Indaga-se a presença de um
objetivo de realização de “ocupação” e, conseqüentemente, “controle” desses jovens.
Quando se discute a totalidade da juventude, constata-se que esse tipo de intervenção
é criado e oferecido aos grupos populares. NEVES (2006) discute que os “jovens
pobres” não se enquadram nas conceituações modernas de juventude que enfatizam a
questão etária como passagem, maturação e liminaridade, portanto, dessa forma,
passam a ser suspeitos devido à sua “aptidão a desordens e transformações e a
necessária canalização de energias para fins positivos” (p. 106). Com isso, em uma
sociedade na qual o acesso ao universo do trabalho torna-se cada vez mais raro, em
que há um “reconhecimento dos limites da escola e do processo de
profissionalização, evidencia-se a valorização do lazer e dos pobres como artistas
potenciais” (p.106).
Assim, a utilização das atividades de cultura e lazer com essa população
demonstram, também, uma lacuna no campo da escola e do trabalho e podem
representar uma “alternativa” com a finalidade de exercer a ocupação e controle
desse grupo; no entanto, podem, sob outra perspectiva, representar ações para a
valorização das artes e a possibilidade de diálogos com a juventude.
Na tentativa de “comunicação”, “aproximação” e “compreensão” do grupo de
jovens há uma oferta diversificada de atividades para criar uma atmosfera atrativa e
ganhar a adesão desse grupo para as propostas institucionais. Por isso, iniciam-se
tentativas que buscam se aproximar da sociabilidade juvenil para que eles estejam e
permaneçam na instituição, bem como façam seu programa nos seus diversos
aspectos. Esse diálogo com a juventude tem se tornado um pouco mais distante na
medida em que há uma multiplicidade de circuitos jovens e identidades (MAGNANI,
15
Para profundidade do tema ver MALVASI (2004) em suas análises sobre o projeto Meninos do
Morumbi, em São Paulo, SP.
110
2005) que se constituem e, do ponto de vista institucional, há a continuidade de
ofertas que não acompanham essa dinâmica.
Dessa forma, o leque de atividades assume o discurso de entrada no universo
juvenil, bem como a proposição de “concorrência” com a trajetória que se pretende
alterar, como a rua. Na visão da representante da Secretaria de Cultura no grupo
Criando Rede de Esperança, tal oferta direcionada para essa população se justificava
pela valorização e pela possibilidade de mudança pessoal por meio da cultura.
Eu acho fundamental! Acho um instrumento, não vou falar da maior, que eu vou
puxar sardinha, mas com certeza dentre as maiores prioridades para tentar melhorar
a qualidade de vida das pessoas que passam por estas situações [de rua]. Eu acho que
tem um potencial de realização, potencial de transformação enorme. Claro que não
adianta ter a ilusão que é só chegar lá e fazer só aula de música, teatro, dança,
qualquer coisa que seja e está tudo resolvido. Mas eu acho que é um local muito
importante onde se pode abrir portas, ter prazer, elevar a auto-estima, possibilitar
perspectivas de vida e tudo mais. Estabelecer uma relação com um mundo que não
seja só da rua, não criticando que eles não possam praticar arte também na rua, mas
eu acho que essa interface com a vida em todas as esferas pode ser muito facilitada
através do meio cultural, do meio artístico. Porque é algo que é forte diante de
qualquer indivíduo que tem um pouco de sensibilidade para essas coisas
(Representante da Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo e membro do Criando
Rede de Esperança).
Nesse contexto, o grupo Criando Rede de Esperança debatia a relevância e a
necessidade de atividades de cultura e lazer para os meninos de rua e apontava como
objetivo o estabelecimento de uma entrada de contato e uma possibilidade atraente
de abordagem. Por isso, a presença da Secretaria de Cultura no grupo foi interpretada
como uma conquista e concretização de diálogo com mais um campo de
conhecimento que tangencia o trabalho em rede com essa população.
Na avaliação de um educador, essa seria a área a ser investida na atenção a
essa população:
Estes meninos têm que trabalhar com arte, eles precisam se manter ocupados. Eles
não têm um lugar, um espaço, um galpão onde eles possam se direcionar, e ali fazer
aula de capoeira, de rap, de hip-hop, de spray, de skate, de música, de violino, do
que ele quiser, não precisa ser só cultura popular. Tem um lugar, atualmente, que se
chama ninho das artes [referência ao projeto iniciado por uma ONG pesquisada], ele
111
não é tão próximo do centro e surge, agora, como um projeto interessante. Não é
direcionado para a população em situação de rua, mas tem profissionais que dão
conta, esse é o diferencial, porque além de existir o projeto, tem que ter profissionais
habilitados para trabalhar com este público, porque não são meninos que devem ser
tratados com discriminação, mas exigem uma especialidade, uma formação do
profissional para trabalhar com ele. O profissional pode falar alguma coisa, ter
alguma atitude e este menino não voltar lá mais. Isso falta: dar uma ocupação
interessante para eles (Educador de uma instituição da rede).
No Plano Municipal de Atenção a Infância e Juventude foi planejada a
implantação do Projeto “Terreiros e Quintais da Alegria”, que se direcionava para
oferta de “espaços para o esporte, cultura e o lazer, ajudando na formação dos jovens
e oferecendo atividades culturais nos bairros periféricos”
16
. Entre os “terreiros”
planejados para serem implantados estava previsto um na região central da cidade,
com foco de trabalho para a população de rua. Com esse propósito, uma
representante da Secretaria de Cultura compôs o grupo Criando Rede de Esperança
para discussão sobre a forma como fazer essa proposta e articular os demais atores
para viabilização e utilização desse recurso.
Iniciou-se, dessa maneira, no final de 2002, a participação de um
representante da Secretaria de Cultura no grupo de trabalho Criando Rede, a qual
permaneceu até o fim de 2004. Em 2005, quando houve a mudança da gestão
municipal, o próprio grupo Criando Rede de Esperança mudou sua configuração,
assim como as secretarias e suas representatividades externas, e a Secretaria de
Cultura retirou-se desse espaço. A representante, que até então participava do grupo,
não compôs o novo governo e não houve mais interlocução formal entre a rede e a
Secretaria de Cultura.
Essa parceria foi celebrada por uma festa realizada no final de 2002,
organizada por algumas instituições que começavam a integrar o Criando Rede de
Esperança, sediada por um órgão da Secretaria de Cultura: o Museu da Cidade. Essa
festa marcou simbolicamente a fundação do Grupo e caracterizou-se pela
participação dos representantes de gestores, pelos profissionais e pelos usuários das
instituições, com uma comemoração pelo final daquele ano.
16
PMC. Prefeitura Municipal de Campinas. Plano Municipal para a Infância e Juventude. 2002.
Folder de divulgação.
112
Após uma discussão no Grupo sobre a proposição que se adequava mais
àquela população, iniciou a oficina “Batuque Menino”, no Museu da Cidade, a qual,
após oito meses de organização interna na Secretaria de Cultura, pôde ser ofertada.
Tratava-se de uma oficina de percussão desenvolvida, em que os técnicos das
instituições acompanhavam os jovens interessados em participar. A oficina não
contou com a adesão de um grande grupo, tendo uma participação inconstante de
alguns jovens que a procuravam diretamente ou iam acompanhados por algum
educador da instituição que freqüentavam. Como conseqüência, mudou-se seu
propósito e ela foi direcionada para um outro público: adultos jovens, de um local de
moradia por ocupação próxima ao museu, que eram assíduos às aulas de percussão.
No Criando Rede de Esperança, houve uma avaliação interna dos porquês da
não adesão dos jovens, já que a proposição da oficina era uma resposta à demanda
deles próprios. A análise feita pelos profissionais direcionava-se em torno das
instabilidades das vidas e trajetórias e as dificuldades de continuidades e
prosseguimentos, com esse público. Assim, insistiam na necessidade e relevância da
oferta. Na avaliação da representante da Secretaria de Cultura:
eu vi que a música era algo que ‘pegava’ para eles. Algo que pega forte para quem
tem esse tipo de desejo artístico, esse tipo de vontade. Mas o que impulsionaria
mais? O que despertaria mais vontade, mais desejo neles? Eu acho que a variedade
de estímulos. Talvez não ser só a música, também ir ao meio da rua apresentar, ir aos
abrigos que, por ventura, eles freqüentassem (...) Acho que fazer uma interface
maior com a vida deles. Apresentar num lugar que eles costumam ficar pedindo
dinheiro, como nos semáforos, enfim... Colocá-los em um outro papel, que era o que
a gente queria, pensar na questão da auto-estima e da música. Colocá-los num
despertar artístico onde pudessem sentir essa importância, esse processo, de coisas
que deram certo na vida deles, que eles conseguiram, que eles aprenderam. Acho
que eles não devem ter tantas experiências assim, de se sair bem em coisas que a
sociedade valorize. Imagine a alegria se eles pudessem mostrar a esta sociedade –
inclusive no campo onde eles trabalham – sua arte, seu potencial desenvolvido.
Dessa forma apareceriam para a comunidade vistos com outros olhos, olhares de
admiração, que leva ao feedback de elevação de auto-estima (Representante da
Secretaria de Cultura no Grupo Criando Rede de Esperança).
Com esse contexto, quando houve a segunda oficina para essa população, o
grupo optou por inseri-la no interior de uma instituição, do abrigo AFAGAI, que se
113
encontrava em um momento institucional delicado, com poucas atividades para seu
público, por conta da saída de grande número de profissionais. Não havia mais a
presença de arte-educadores e as opções para os abrigados eram restritas. Assim,
com a não adesão dos adolescentes à primeira oficina e também pelo temor de
“perder” uma oportunidade de direcionamento de ação para essa população, o grupo
optou por solicitar a realização da oficina no interior de uma instituição da rede, o
que foi acatado pela Secretaria de Cultura. Iniciou-se, alguns meses após a decisão,
uma oficina de circo no abrigo AFAGAI.
Contudo, esse debate estava presente no grupo, devido, primeiramente ao
questionamento sobre os motivos da não adesão às atividades ditas por eles mesmos
um objeto de interesse. Havia as constantes reflexões sobre os métodos necessários
para se ganhar a permanência em longo prazo, para “concorrer” com a rua e ser mais
“atraente” do que ela. Uma segunda reflexão debruçava-se sobre a dúvida entre a
oferta pública de uma oficina de música, em um equipamento público e aberto para
todos, como o Museu da Cidade, no qual o grupo de meninos de rua teria a
possibilidade de participar conjuntamente com outras pessoas, e, a partir disso, ter
um alargamento dos horizontes e transpor o círculo fechado entre eles mesmos; ou,
sob uma outra perspectiva, realizar a oficina no interior de uma instituição e
“garantir” a priorização e presença desse público. Esses temas se entrelaçavam e não
se chegava a um consenso.
No documento de avaliação do grupo Criando Rede de Esperança, relativo ao
período 2002-2004
17
, há, sobre esse ponto, a análise:
Várias discussões foram realizadas sobre o papel e a relevância das oficinas culturais
no desenvolvimento de atividades para a população-alvo do Criando Rede de
Esperança. Tópicos como o papel das ações focais, locais x ações globais foram
debatidos. A visão da oficina artística enquanto fim, objetivando a apresentação/
produto final e, num contra-ponto, sua utilização como meio terapêutico, para
constituição de vínculo, componente da produção do cotidiano foi outro ponto de
pauta. Apontada daí a necessária interação entre artista, que domina a técnica, e
educador, que possibilita a potencialização de sua função meio, com o intuito de
atuar de forma conjunta com estas duas vertentes presentes no desenvolvimento de
17
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Seminário de Avaliação e
Planejamento 2004/2005. Campinas, dez. 2004. 31p.
114
oficinas com esta população: seu fim e seu processo... Daí surge a questão do que
deve ser considerado enquanto resultado no desdobrar das atividades com esta
população. A relatividade de tais resultados entrelaça-se com sua dupla finalidade de
processo e fim, sendo que muitas vezes o processo por si só, quando atingido,
alcança o status de relevante resultado. (...) Destes anos de experiência e ação
conjunta permanece a discussão do modelo de ação cultural mais pertinente para esta
população: a constituição de um quintal da alegria no centro, para a qual
trabalhamos o conhecimento e adesão dos meninos e meninas em situação de rua ou
a oferta de oficinas artístico-culturais nos serviços destinados e já conhecidos e
consolidados pelos adolescentes em situação de rua? (CRIANDO REDE DE
ESPERANÇA, 2004).
Essa falta de consenso entre os técnicos dos serviços remete ao debate sobre a
realização de uma atenção focal, para essa população, ou a realização de atividades
para todos, sob uma perspectiva universal, na qual a participação dos meninos e
meninas em situação de rua possa ser facilitada pelos educadores. No campo social, a
valorização das atividades como elemento intermediário é reconhecido enquanto
instrumental para aproximação, convivência e criação de vínculos (LOPES e
MALFITANO, 2006) e também interpretada como um objetivo da ação social, na
medida em que não se visa à formação de artistas, embora essa seja uma
possibilidade.
O debate entre a focalização e a universalidade das ações faz-se presente para
além da relevante discussão da escassez de recursos e do modelo neoliberal de
execução de políticas sociais (MENDES, 1993; ANDERSON, 1998), pois é
apresentado para os profissionais o questionamento do como fazer, em um momento
específico de uma gestão no qual se tem a governabilidade para se escolher a forma
de implantação de ações. Dessa forma, os profissionais vêem-se interpelados, a partir
da resposta dos meninos, a questionar-se sobre a viabilidade de uma ação universal
ou sobre a melhor aplicação de uma ação focal, para “garantia” do trabalho com esse
público.
Por um lado, interpretam-se as ações direcionadas “apenas” para esse público
como uma dificuldade de diálogo entre áreas e equipamentos a fim de que se
comprometam com todos, entendendo-se todos realmente todos, incluindo a
juventude que se encontra em situação de rua.
115
Por outro lado, aborda-se a necessidade de ações que promovam a facilidade
de entrada dessa população, pois, há a necessidade de acesso, o que não é
previamente efetivado, na medida em que os estigmas e preconceitos estão sempre
presentes e podem se caracterizar como elementos que distanciam e até
impossibilitam a chegada desse grupo a determinado local, por exemplo, ao Museu
da Cidade.
Uma proposição cultural que se diferenciou pela participação dos meninos
aconteceu no carnaval de 2004, quando houve ensaios abertos de Maracatu
18
para
quem quisesse participar do desfile de rua. Os meninos dirigiam-se para o local do
ensaio e depois iam para a oficina de percussão, que iniciava suas atividades. O
ensaio para o carnaval ocorreu no período de três semanas, de forma aberta e sem o
impedimento de continuidade no caso de ausências em determinados ensaios. Era
esperado que as pessoas estivessem presentes em todos os dias pré-agendados, mas
não era uma obrigação. Na ocasião do desfile, no dia de carnaval, havia um grupo de
cerca de 15 adolescentes, que estavam abrigados na AFAGAI e alguns vivendo nas
ruas, que participaram da festa. Esse evento foi motivo de muitas conversas e
comentários posteriores, pois representou uma atividade não habitual, com um
produto final festivo e de reconhecimento público, sendo um tema recorrente na
conversa com os jovens.
João participou do carnaval, tendo sido acompanhado pelos demais jovens e
monitores da AFAGAI, e falava sempre sobre esse evento. Mostrava para os profissionais
que não estavam presentes no desfile, assim como aqueles de outras instituições, as fotos
daquela noite. Ele demonstrava interesse pela participação nas atividades artísticas com
música, o que o levou ao Maracatu, e, a partir de então, começou a participar do grupo
de percussão “Batuque Menino”. Inicialmente era assíduo, mas, com o decorrer do
tempo, foi desvinculando-se e saía do abrigo para ir à oficina e não chegava lá, dizia que
18
Dança de origem africana na qual as pessoas dançam fantasiadas ao som de tambores. Em
Campinas há um grupo tradicional de Maracatu que desenvolve atividades sociais e de cultura na
região noroeste de cidade e foi, em 2004, responsável pelo desfile de carnaval com Maracatu, trata-
se do grupo Nação Tainã.
116
acabava por ir às ruas “dar um rolê”
19
, voltando ao abrigo mais tarde ou no dia seguinte,
estando, na maioria das vezes, sob o efeito das drogas.
João desligava-se lentamente do abrigo e inseria-se na rua, realizando essa
passagem de transição entre os dois espaços. No abrigo estava posta a necessidade de
manejo das situações de sua saída para a realização de uma atividade planejada e
incentivada, a participação na oficina de música, e sua não concretização, e, também, a
condução do conseqüente retorno sob o efeito de drogas. Os demais adolescentes
questionavam os motivos pelos quais João tinha aquelas concessões e os demais não; do
lado do abrigo, havia a compreensão de que se estava “perdendo-o” para as ruas e eram
necessárias inúmeras tentativas de diálogo, aproximação e compreensão da situação para
contorná-la, mesmo que isso representasse a oferta de “concessões”. João dizia que estava
desmotivado, muito influenciado pelo uso de drogas, mas tinha interesse em continuar a
participar das atividades de música. A partir disso, os profissionais do abrigo fizeram
proposições para tentar fixá-lo no plano feito, que incluía a participação na oficina de
música, e algumas proposições foram realizadas. Apostou-se que as atividades de cultura,
que tinham um histórico de seu interesse e motivação, poderiam ser o fio de
enraizamento no abrigo e a possibilidade de manutenção na casa, para evitar a ida para a
rua.
João dizia aos profissionais do abrigo que a ida ao Museu da Cidade, sozinho, era
uma tarefa difícil, pois ele encontrava outros meninos no caminho e saía para um “rolê”,
que o levava para o uso de drogas. Por causa desse discurso, os profissionais locais
revezavam-se para acompanhá-lo individualmente para o grupo de batuque. Entretanto,
em poucas vezes essa proposta se concretizou, porque após a organização interna para o
acompanhamento de João, ele saía da casa sozinho algumas horas – às vezes minutos –
antes do combinado e ia para as ruas. Com o passar do tempo, João foi cada vez menos
seguindo as proposições do abrigo, afastando-se paulatinamente de todas as atividades
19
“Dar um rolê”é uma nomenclatura bastante utilizada entre os jovens para designar “dar uma
volta” e buscar algo por fazer, a partir do grupo encontrado e das situações propícias do momento.
Segundo HOUAISS e VILLAR (2001) a origem da palavra advém da capoeira e representa um
movimento executado pelo capoeirista para o deslocamento pelo chão, agachado, com o apoio de
mãos e pés e de costas para o adversário (p. 2.470).
117
que lhe eram propostas e compunham seu plano individual no abrigo e, com isso,
abandonou definitivamente a AFAGAI, permanecendo nas ruas.
O abrigo AFAGAI ficou caracterizado, informalmente entre as instituições da
rede, como um local de “permissividade” e “excessiva flexibilidade”, pelo fato de se
realizar uma abordagem individualizada para cada um dos jovens ali abrigados, em
contraposição à proposta de criação de regras padronizadas para todos os atendidos.
Por exemplo, como sucedeu com João, em algumas situações investiu-se em
diálogos, em tentativas pessoais e na abertura de concessões, como recebê-lo sob
efeito de drogas e não desligá-lo automaticamente da instituição por esse motivo.
Esses episódios eram questionados como metodologia institucional de intervenção e
fizeram com que o abrigo fosse interpelado pelo seu principal financiador, a
Secretaria Municipal de Assistência Social, sob sua metodologia de trabalho.
A alegação apresentada justificava-se em uma visão ampliada da metodologia
da Redução de Danos, trazendo para a rede a discussão sobre novas formas, até então
desconhecidas, de trabalho com adolescentes usuários de drogas. A Redução de
Danos objetiva minimizar os agravos em decorrência do uso abusivo de substâncias
psicoativas, a partir do uso de substâncias e/ou quantidades menos lesivas para a
saúde
20
.
Não obstante, ao se abordar tal temática e se fazer a discussão e o
reconhecimento de que alguns adolescentes faziam uso de drogas na condição de
abrigados, mesmo que de substâncias mais leves e com menor freqüência, causava
um estranhamento e constante questionamento pelas demais instituições da rede. O
20
Originou-se na Inglaterra, em 1926, por meio do Relatório Rolleston, que estabelecia que o médico
poderia prescrever legalmente opiáceos para os dependentes de drogas como forma de tratamento,
através do princípio da redução gradual do uso. Porém, só foi implementado como programa de
saúde na Holanda, na década de 1980, por iniciativa de uma associação de usuários de drogas. No
Brasil, o primeiro programa foi iniciado em Santos, em 1989, com base no princípio da oferta de
seringas para os usuários de drogas injetáveis, com o intuito de prevenir a transmissão do vírus HIV.
O programa foi interrompido, por decisão judicial, com a alegação de que promoveria o incentivo ao
uso de drogas. A proliferação da Aids no final da década de 1980 permitiu o desenvolvimento e a
aceitação de novas tecnologias de cuidado, as quais previam a autonomia e liberdade de escolha do
sujeito para seu tratamento. A Redução de Danos defende que se não é possível interromper o uso,
deve-se buscar o consumo de forma segura. Somente em 1995 surgiu oficialmente um novo programa
de Redução de Danos em Salvador, BA, e em 1998 foi sancionada em São Paulo uma lei estadual de
legalização da troca de seringas. Atualmente a Redução de Danos é um dos programas que compõem
as ações do Ministério da Saúde, como diretriz nacional do programa de HIV/Aids (BRASIL, 2001a).
118
serviço de saúde, CRAISA, dialogava sobre a proposição e oferecia subsídios para as
discussões, mas a situação culminou em um formal questionamento por parte da
Secretaria de Assistência Social, que levantou essa temática como quesito a ser
acompanhado enquanto critério de avaliação das ações realizadas pelo abrigo.
Nesse momento, a Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde
disponibilizou a contratação de uma profissional para realização de uma supervisão
institucional externa da equipe, como fruto da parceria de trabalho entre AFAGAI e
CRAISA. Esse era um dos pedidos formalmente apresentados pela equipe. O
objetivo da supervisão institucional era de fomentar a reflexão das ações ali
realizadas e capacitar teoricamente a equipe local. A supervisão ocorreu no período
de outubro de 2003 a abril de 2004.
A presença desse tipo de prática no campo social é pouco freqüente e de
pouca institucionalidade, seja pela carência de recursos financeiros desses serviços,
que não permitem gastos dessa natureza, seja pela raiz de benemerência a qual são
intrínsecas as ações sociais, que não vislumbram a profissionalização de seu trabalho,
nem a necessidade de instrumentos dessa natureza para aprimoramento de suas
ações. Na rede, essa prática verificava-se apenas no serviço de saúde, que contava
com uma supervisão institucional e uma supervisão clínica, decorrência das práticas
da Coordenadoria de Saúde Mental, a qual o CRAISA compunha por ser um CAPS.
Durante esse período, o abrigo sofreu algumas modificações de
funcionamento implementadas pela presidência da instituição, que avaliava que o
trabalho estava frágil e pouco efetivo. Optou-se pela condução direta da diretoria nas
ações técnicas do trabalho e começaram instaurar intervenções, como, por exemplo,
sessões de laborterapia, terapia baseada no trabalho, e novas formas de constituição
das regras da casa. Com esse novo perfil de direção da instituição, alguns
funcionários demitiram-se por discordarem tecnicamente das condutas e houve,
também, a saída da supervisora externa que constatou a presença de uma resistência
por parte da diretoria para realização do processo de supervisão institucional
21
.
21
Relatório de avaliação do trabalho de supervisão junto à Associação Fraterna de Apoio Global ao
Adolescente e a Infância – AFAGAI realizado pela supervisora externa para a Coordenadoria de
Saúde Mental da Secretaria de Saúde em abril 2004.
119
No final de 2004, a Secretaria de Assistência Social não efetivou a renovação
do convênio com o abrigo e, assim, foi perdido o principal financiador da instituição,
que passou a contar apenas com doações esporádicas e um financiamento pontual
empresarial. Começou, então, um declínio da instituição na rede e houve uma
diminuição de sua capacidade oficial de atendimento em 50% (oito vagas), passando,
posteriormente, ao atendimento de três meninos e com um quadro bastante enxuto de
profissionais.
O trabalho na modalidade de um abrigo para essa população, as
características necessárias para o estabelecimento de uma casa e da convivência nela
são um desafio constante como metodologias a serem estabelecidas nesse campo. A
proposição de um equipamento social com as características de um abrigo direciona-
se para uma camada específica da infância e da juventude reconhecida comumente
como “sem proteção”, “sem lugar”, a qual precisa de uma tutela. Porém, as formas
para avançar na direção de uma convivência saudável, comunitária e educativa, com
vistas de um projeto de autonomia dessa população, são resultados pouco alcançados.
Quando se trata especificamente da população em situação de rua permanece a
dúvida entre a moradia fixa, em uma casa, e a integração social pela margem. Parece
que o abrigo representa um momento da vida nas ruas, sem um caráter de mudança,
integrando (e, ainda, contribuindo) para a rede pessoal de permanência na rua.
Em torno dos meninos em situação de rua, a idéia de “abandono” esteve
bastante presente nas estatísticas e estudos sobre essa população, notadamente na
década de 1980, quando se iniciou um olhar mais direcionado para esse grupo,
pautado como temática por instituições internacionais (Unicef, OMS, Unesco, ONU).
COSGROVE (1991) e ROSEMBERG (1995) apontam, contudo, que essa forma de
circulação de jovens nas ruas não surgiu nessa época, há muitas referências na
história e na literatura de muitas culturas de grupos de jovens que poderiam ser
nomeados “de rua”. Segundo ROSEMBERG (1995), a presença dos jovens que se
apartam da hierarquia e controle e tutela dos adultos, e a ocupação de espaços
públicos, ou seja, as ruas, passaram a ser vistas como uma condição anormal para a
infância e juventude ocidental a partir do Antigo Regime. Define: “são crianças e
adolescentes que, aparentemente, romperam com os dois cenários considerados, na
120
modernidade, como naturais e adequados para desenvolvimento das crianças: a
família e a casa (ou os seus sucedâneos)” (ROSEMBERG, 1995, p. 231).
No entanto, a expressão propriamente dita “menino de rua” foi utilizada no
Brasil, pela primeira vez, em 1980, por Rosa Fisher FERREIRA. Esse grupo, com
essa nova nomenclatura, começou a ocupar um lugar central de preocupação e
investigação na América Latina (com destaque para México, Colômbia e Brasil) por
meio da utilização de financiamento internacional advindo como desdobramento das
discussões globais realizadas em 1979, considerado o Ano Internacional da
Criança
22
.
Iniciou-se, a partir de então, expedições internacionais, de consultores do
Unicef, jornalistas do New York Times, entre outros, com o intuito de contabilizar e
conhecer o “fenômeno” dos meninos de rua. “Fala-se em cem milhões de crianças de
rua no mundo, quarenta milhões na América Latina e vinte milhões no Brasil”
(ROSEMBERG, 1995, p.237). Surgiu, nesse momento, muitas instituições não-
governamentais voltadas para a atenção aos meninos de rua e o desenvolvimento e
financiamento de projetos pontuais destinados para essa população. Uma década
depois, novos estudos criticaram tais estatísticas e iniciaram uma melhor definição
sobre esses jovens que circulam pelas ruas, momento em que se começou a
diferenciar criança de rua e na rua, categorizando o primeiro grupo como aqueles
que circulam pelas ruas para atividades de trabalho, lazer e socialização, porém
retornam diariamente para suas casas; e o segundo grupo como aqueles que se fixam
na rua, fazem dela seu espaço de morada, os quais foram, posteriormente,
denominados de “estruturados” na rua, momento em que se complexificou o quadro
por meio da discussão sobre “situação de rua” (ROSEMBERG, 1994).
A partir da aproximação com esses jovens, observou-se a superestimativa
realizada e apontou-se que houve uma articulação e cristalização, pela comunidade
internacional, do “estigma sobre a pobreza do Terceiro Mundo” e a associação direta
de que “criança pobre é sinônimo de criança de rua” (ROSEMBERG, 1995, p.237).
22
Organizado pelo Bureau International Catholique pour l’Enfance (BICE) quando lançou o projeto
de realização de uma Convenção Internacional pela Infância, efetivada, somente, em 1989 pela ONU.
Disponível em: http://www.biceafrique.org
. Acesso em: 22 abr 2008.
121
Até recentemente, encontravam-se dados numéricos nessas proporções sobre essa
população; por exemplo, segundo o Unicef, em 1996 havia, ainda, 40 milhões de
crianças em situação de rua na América Latina (UNICEF, 1997).
Entretanto, permanecem as críticas a esses números e a análise de que a
situação de rua é decorrente de uma complexidade mais profunda do que a
reconhecida situação de desigualdade econômica e pobreza concreta vivenciadas. O
próprio Unicef fez menção, mais recentemente (2006), sobre a sedução da rua e a
possibilidade de aquisição de um dinheiro que “nunca conseguiriam em casa” (p.42).
A rua passa a ser compreendida também como circuitos que incluem prazeres e
sociabilidade (ADORNO, 1999), sonhos e alegrias (HECHT, 1998), como uma
forma de integração social (PÉREZ LOPÉZ, 2006), e os serviços para essa
população podem ser interpretados como parte desse universo (GREGORI, 2000)
que enlaça desigualdade social, pobreza, ausência de projetos e perspectivas, com
prazer, lazer, sociabilidade, contemporaneidade e integração.
Nesse contexto de melhor compreensão e real dimensionamento do
fenômeno, passou-se a criticar também o termo “abandonado” e sua utilização para
toda criança pobre que precise de alguma assistência social. A intensificação dos
trabalhos com os “abandonados” indica a existência das famílias e uma falta de
adequação da classificação dessa população na categoria de “abandono”.
Os “menores abandonados” não são realmente abandonados – eles têm famílias. Ao
contrário do que se pensava, eles se originam de famílias pobres, mas não
necessariamente desestruturadas. Os anos 80 vieram a comprovar que os menores
vivem em sua maioria em famílias nucleares, que para sobreviverem precisam de
recursos obtidos por todos os membros da família, inclusive as crianças. O que era
percebido como desagregação, em muitos casos poderia ser interpretado como
solidariedade (RIZZINI e RIZZINI, 1996, p.70).
Esse fato aparece mais forte quando se fala de meninos e meninas em
situação de rua para os quais havia, e em alguns momentos ainda há, um olhar que os
coloca na posição de “sem família”, em situação de “abandono”. Nossa experiência
prática apontava que grande parte deles tem família e mantém vínculos com ela,
mesmo quando estão nas ruas. O grau de contato com as famílias varia em função da
122
idade das crianças e do tempo que estão vivendo nas ruas (COSGROVE, 1990), no
entanto o contato existe e, algumas famílias têm condições de receber e permanecer
com seus filhos.
Essa característica predominante cria o questionamento sobre o papel dos
abrigos direcionados para essa população. Os abrigos, antigos orfanatos, foram
criados para atender às crianças “abandonadas” e/ou órfãs, mas, verifica-se hoje, que
grande parte das crianças que se encontra na instituição de abrigo tem família
(86,7%, segundo estudo de SILVA, 2004). Esses dados demonstram a necessidade de
rever a política e o financiamento para o abrigamento, bem como sua metodologia de
intervenção.
Em Campinas, para a continuidade de oferta de abrigamento para a população
infanto-juvenil em situação de rua, após a finalização do convênio municipal com a
AFAGAI, a Secretaria de Assistência Social propôs às comunidades terapêuticas,
direcionadas para o tratamento de drogas, incluindo adolescentes, que criassem o
serviço de abrigo para meninos e meninas em situação de rua, uma vez que já
apresentavam metodologias para lidar com a problemática do uso de drogas, sempre
alinhavada à situação de rua no discurso das instituições.
A comunidade terapêutica é um espaço de internação (a proposição das
comunidades de Campinas é, em geral, pelo período de nove meses) com base no
método Minessota, que consiste no tratamento do uso de drogas através da
implementação da abstinência total e da incorporação de valores espirituais e
disciplinares por meio do programa denominado “12 passos”, o qual aplica doze
preceitos a serem atingidos durante o período de tratamento
23
.
23
Os 12 passos, base utilizada pelos grupos de auto-ajuda dos Alcoólicos Anônimos e Narcóticos
Anônimos, segundo a Regional Brasileira de Narcóticos Anônimos são:
1.º Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que nossas vidas tinham se tornado
incontroláveis.
2.º Viemos a acreditar que um Poder maior do que nós poderia devolver-nos à sanidade.
3.º Decidimos entregar nossa vontade e nossas vidas aos cuidados de Deus, da maneira como nós o
compreendíamos.
4.º Fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos.
5.º Admitimos a Deus, a nós mesmos e a outro ser humano a natureza exata das nossas falhas.
6.º Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.
7.º Humildemente pedimos a Ele que removesse nossos defeitos.
123
Ambas as comunidades terapêuticas campineiras surgiram a partir da
iniciativa da Igreja Católica e são mais voltadas para o tratamento de adultos, porém
mantêm um centro de tratamento específico para adolescentes. Contam com
financiamento da Prefeitura e do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente (CMDCA), além de recursos próprios. Uma das comunidades
caracteriza-se como uma instituição tradicional no município, com funcionamento
desde 1978, sendo um dos primeiros locais a se dedicar à atenção aos meninos em
situação de rua, com uma abordagem mais voltada para o uso de drogas. A segunda
funciona desde 1991.
A assistente social, que coordena as ações com adolescentes em uma das
comunidades, apresenta o trabalho realizado:
A comunidade terapêutica aqui da instituição se baseia num tratamento terapêutico
abrangendo um tripé, que é a espiritualidade, quando nós temos o nosso Deus único
e supremo capaz de modificar toda essa perspectiva do adolescente em termos dele
fazer a parte dele e acreditar nesse Deus único e verdadeiro, sem abranger a religião
e sim a espiritualidade. Por isso eles têm atividade de espiritualidade no período da
manhã, logo depois que eles acordam, e às seis horas da tarde. O segundo elemento
do tripé são os grupos de conscientização, que é um cronograma que eles seguem
logo após a espiritualidade, às 7h15, até o horário de se recolher, às 10 horas da
noite. São grupos de reunião pré-matinal e matinal; metas de apadrinhamento; amor
exigente; temáticas interessantes de acordo com a idade, a expectativa e a
necessidade do adolescente; grupos de doze passos; grupos de sentimentos; grupos
lúdicos; grupos de terapia, os grupos terapêuticos; e grupos de conscientização, além
de alguns outros que estão no cronograma; juntamente com esses grupos os
adolescentes têm a escola, que é o projeto pedagógico, ministrado por uma
8.º Fizemos uma lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado, e dispusemo-nos a fazer
reparações a todas elas.
9.º Fizemos reparações diretas a tais pessoas, sempre que possível, exceto quando fazê-lo pudesse
prejudicá-las ou a outras.
10.º Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos
prontamente.
11.º Procuramos, através de prece e meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, da
maneira como nós O compreendíamos, rogando apenas o conhecimento da Sua vontade em relação a
nós, e o poder de realizar essa vontade.
12.º Tendo experimentado um despertar espiritual, como resultado destes passos, procuramos levar
esta mensagem a outros adictos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.
(Disponível em: http://www.na.org.br
. Acesso em 25 abr 2008).
Para profundidade da discussão, a partir de uma abordagem antropológica sobre grupos de auto-
ajuda, ver FAINZANG, 2007.
124
professora da Fumec
24
(...). O terceiro pilar é a laborterapia, focando o labor, é o
trabalho através da terapia, os adolescentes são conscientizados, e eles aprendem a
desenvolver um trabalho dentro da instituição, baseado no método de planejamento,
organização e limpeza, desde quando eles acordam, quando eles arrumam a cama, os
armários, as roupas deles, tudo é cuidado por eles. Também a parte de horta, que eles
auxiliam a cuidar, a parte de jardim e toda a limpeza da casa, incluindo os banheiros.
No sentido de que a gente tem que trabalhar com eles que o trabalho dignifica o ser
humano, enobrece a pessoa, qualquer trabalho é digno, seja na frente de um
computador, seja você desenvolvendo um trabalho de enxada, de cuidar de uma
planta, e tudo isso sem a produção do trabalho, mas levando eles a terem
conhecimento da necessidade, da importância deles estarem desenvolvendo um
trabalho, preparando eles já para a iniciação profissional e posteriormente para o
ingresso no mercado de trabalho (Assistente Social da Comunidade Terapêutica).
Podemos assinalar uma conotação extremamente religiosa nas palavras da
técnica da comunidade terapêutica, quando aponta os eixos centrais do tratamento
desenvolvido no âmbito institucional. Embora sinalize a questão do não
direcionamento da religião, ela sublinha o desenvolvimento da espiritualidade com
base cristã como um primeiro preceito a ser abordado no tratamento.
Apresenta-se, aqui, a forte marca do componente religioso, que se traduz
como uma característica bastante presente nas ONGs da rede de Campinas, as quais
também refletem o perfil dos serviços assistenciais no Brasil. Segundo MESTRINER
(2001):
Ao se analisar historicamente a formação do aparato de assistência social brasileiro,
percebe-se que ele se caracterizou e se manteve, até hoje, sob um sistema de
regulação que, embora único, porque exercido pelo Estado, foi pactuado com os
interesses da Igreja e das classes dominantes mantenedoras das organizações sociais
sem fins lucrativos (p. 286).
Na avaliação de um educador, de uma instituição de base católica, quando
indagado sobre suas críticas em relação à rede de serviços para essa população:
24
A Fumec (Fundação Municipal para Educação Comunitária) é uma instituição municipal
responsável pelo programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) para aqueles que se encontram
defasados do período de escolarização regular do Ensino Fundamental.
125
Eu acho que, no geral, a gente precisa de projetos laicos que são diferentes de
projetos ecumênicos (Educador de uma ONG da rede).
No campo da internação do adolescente usuário de drogas, a cidade contava
com duas comunidades terapêuticas, de natureza religiosa, sendo essa uma
característica predominante no cenário nacional na atenção ao usuário de substâncias
psicoativas. Segundo levantamento da Secretaria Nacional Anti-Drogas (SENAD,
2007), “a maioria das instituições de tratamento brasileiras é definida por seus
dirigentes como comunidades terapêuticas. Das 1.256 instituições de tratamento,
483, ou 38,5% da amostra, classificam-se nessa categoria” (p. 86), sendo a quase
totalidade delas de natureza privada, caracterizadas como ONGs: 469 instituições no
universo das 483 pesquisadas (SENAD, 2007).
Pela presença dessa particularidade, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) regulamentou, por meio da Resolução número 101 de 2001, as
comunidades terapêuticas e estabeleceu critérios mínimos para funcionamento. A
resolução define-as como:
Serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de
substâncias psicoativas (SPA), em regime de residência ou outros vínculos de um ou
dois turnos, segundo modelo psicossocial, são unidades que têm por função a oferta
de um ambiente protegido, técnica e eticamente orientados, que forneça suporte e
tratamento aos usuários abusivos e/ou dependentes de substâncias psicoativas,
durante período estabelecido de acordo com programa terapêutico adaptado às
necessidades de cada caso. É um lugar cujo principal instrumento terapêutico é a
convivência entre os pares. Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação
das pessoas, resgatando a cidadania, buscando encontrar novas possibilidades de
reabilitação física e psicológica, e de reinserção social.
Tais serviços, urbanos ou rurais, são também conhecidos como Comunidades
Terapêuticas (ANVISA, 2001).
Os profissionais da rede avaliavam que a metodologia aplicada pelas
comunidades terapêuticas trazia pouca adesão para os adolescentes com perfil de
vivência nas ruas, pela mobilidade constante e pela pouca disponibilidade para
cumprimento de regras rígidas intrínsecas a elas, o que acarretava na evasão
126
constante dos adolescentes quando internados nesses locais, mesmo quando
encaminhados com sua anuência ou, ainda, sob o seu pedido.
Tal fato foi observado com João, no período inicial de seu abrigamento, quando
fazia uso abusivo de inalantes. Após alguns episódios, como ter utilizado uma lata de
tinta para cheirar, buscando alteração de consciência, e ter furtado gasolina de um veículo
para o mesmo fim, a equipe do abrigo propôs sua internação em uma comunidade
terapêutica para tratamento daquilo que suspeitavam ser uma “fissura” em virtude de um
suposto vício. Apresentaram para João a proposição de sua volta para o abrigo, após a
conclusão do tratamento. Ele foi encaminhado à comunidade terapêutica, com sua
concordância verbal, e 15 dias depois de sua transferência foi reencaminhado ao abrigo
pelos técnicos da comunidade terapêutica, que alegavam que ele não estava apto para a
internação por não ter cumprido a proposição de abstinência total e ter se envolvido em
episódios de pequenos furtos de alimentos na casa. Assim, João retornou ao abrigo e
retomou o acompanhamento no serviço de saúde ambulatorial. Dizia não ter se
acostumado com a rotina e horários propostos pela instituição e que gostaria de tentar
por si mesmo “parar de usar drogas” (sic).
Seu discurso demonstra a incorporação para si da não adesão ao tratamento e
a instalação, via essa metodologia de abordagem, de uma personificação e
culpabilização do indivíduo quando o mesmo não se enquadra às regras propostas.
Trata-se de uma questão relevante uma vez que amplifica, principalmente com a
população em situação de rua, um sentimento de fracasso pessoal e impossibilidade
de continuidade em projetos individuais.
Com a dificuldade majoritária de não adesão, a Secretaria de Assistência
Social propôs às comunidades terapêuticas a criação de novos serviços para
efetivação do convênio relativo ao atendimento na modalidade de abrigo. Com esse
contexto, um dos locais criou um abrigo para meninos, e o outro, um abrigo para
meninas, como subprojetos da mesma instituição e, portanto, vinculados à
comunidade terapêutica já em funcionamento. Em um dos equipamentos foi utilizado
o mesmo espaço físico e, no outro, foi criado um novo local para receber esse novo
projeto. Ambos contaram com financiamento direto da Secretaria de Assistência
127
Social. Tal proposição buscava alternativas para essa importante demanda, entretanto
permanecia no mesmo círculo institucional e com as mesmas bases metodológicas
que se constatava a não adequação com essa população.
Modificou-se, assim, em 2005, a configuração da rede e a AFAGAI deixou
de ser o abrigo com financiamento público para o atendimento dessa população e,
apesar de manter suas atividades com vagas reduzidas, duas outras instituições
assumiram essa função, apesar de não terem um histórico de acolhimento dessa
população.
O diretor da AFAGAI aponta o fato:
(...) por resolução [referência a Resolução n. 40 do CMDCA] o abrigo tem que estar
aberto para acolher qualquer menino, em qualquer circunstância, então precisa da
adequação dos abrigos. A adequação dos abrigos, no momento, tem sido a partir de
verbas, isso é uma realidade. A APOT se adequa quando recebe o dinheiro, o Sousa
Novaes se adequa quando recebe uma verba, e a nossa adequação não depende do
recurso. Nossa adequação depende de uma opção feita como abrigo. Uma opção
inicial, mas uma resolução que precisa ser cumprida. Opção e resolução juntas.
Então, uma demanda é a adequação dos abrigos, que devem estar preparados para
receber o adolescente em situação de rua (Diretor da AFAGAI).
Alterou-se o fluxo de encaminhamento na rede e iniciou-se a experiência de
outras instituições na atenção a essa população, na modalidade de abrigamento. É
importante demarcar a proposição da Secretaria de Assistência Social na distinção
dos serviços de abrigo e da comunidade terapêutica, o que implicava na declaração
de que nem todo adolescente que vai para o abrigo tem a questão do uso de
substâncias psicoativas como elemento a ser “tratado”.
Após a entrada de outras instituições para o recebimento e efetivação desse
serviço na rede, pouca mudança foi averiguada na dinâmica geral, segundo avaliação
dos profissionais de diferentes equipamentos sociais, sendo constatado, mesmo
nessas outras instituições, um pequeno período de permanência dos adolescentes e
um grande índice de evasão.
128
A recorrência dessa situação fez alguns profissionais indicarem o abrigo
como um dos pontos frágeis entre os equipamentos sociais da rede, um dos serviços
que requer mais atenção e reelaboração. Segundo uma educadora:
Os meninos não ficam nos abrigos, até hoje eu não entendo muito bem, eles passam
pelos abrigos, pelas comunidades terapêuticas, e ficam dois ou três dias e acabam
fugindo, parece que escolhem e acham que é melhor ficar na rua do que em qualquer
abrigo. Outra coisa que eu também acho é a diferença de conhecimento sobre que
adolescente que a gente está cuidando (...). Cada serviço tem uma visão sobre o
adolescente, algumas são mais punitivas, querem fazer regras para todos; outras
exigem outras coisas do adolescente, sem entender a sua real necessidade, ou então
outras são permissivas demais e acabam achando que, porque o menino é de rua e
drogado, tudo pode. Eu acho que os abrigos têm que dar, realmente, um suporte para
esse adolescente poder ficar. Outra coisa que eu também acho muito importante e
não é dada atenção é a questão da família. Porque se esse adolescente está usando
droga, na rua, é porque alguma coisa já desestruturou na família que ele saiu, já não
é de hoje que isso está acontecendo e a família é simplesmente deixada de lado. Não
tem um programa de apoio às famílias, para que eles possam ser recebidos de volta,
eu tenho visto que, para o adolescente, não há abrigo suficiente, ele quer a família,
só que quando ele retorna a sua família continua a mesma, nada mudou, às vezes ele
fica na rua, se cansa, volta para a família, mas nada mudou naquela situação, então,
nesse aspecto, eu acho que não tem nada, principalmente nos abrigos (Educadora de
um serviço da rede).
Para outros profissionais, a junção da instituição comunidade terapêutica com
abrigo é um fator complicador no desenvolvimento do trabalho e um elemento que
atrapalha a intervenção dos educadores de rua, quando vão fazer a oferta de
abrigamento para o jovem que está na rua. Segundo um educador de rua:
Eu acho que a gente precisa de tratamento e abrigo, mas não os dois juntos, isso
seria, para mim, a primeira modificação, a mais importante, separar a idéia de abrigo
de adicto em recuperação, não sei qual o termo correto (...). Tem o tratamento, mas
não tem o abrigo. Tem o Pernoite, mas o Pernoite não é abrigo, é diferente. Antes a
gente falava muito do modelo de uma Casa Aberta e eles falavam que a gente não
conhece a realidade, porque a realidade é muito mais pesada e blá, blá, blá, que a
molecada não vai respeitar uma Casa Aberta. Tudo bem, a gente até engole, mas
porque a gente não pode ter um abrigo separado de tratamento? Porque as pessoas
que a gente manda para abrigo eles investigam? E todo mundo tem histórico de uso
de drogas na rua. E até fora da rua todo mundo tem um mínimo de histórico de uso
de drogas, qualquer adolescente pode ter, 90% dos adolescentes tem histórico de uso
de drogas. Inserir esse adolescente no tratamento, para mim, é estigmatizante
(Educador de uma ONG da rede).
129
Portanto, o abrigo, a residência, a morada, o local de estar, como alternativa à
rua, permanecem como um desafio para a rede de atendimento à população em
situação de rua e um questionamento para a política local sobre as possibilidades, as
metodologias e os investimentos necessários para que se criem ofertas de
acolhimento dessa população.
Para João, um local de moradia foi questão permanente em sua trajetória e, após
ter passado cinco meses abrigado, ficou quatro meses entre a rua e a casa de sua vizinha
no seu bairro e, posteriormente, foi abrigado por mais um longo período na mesma
instituição. Após essa fase, ficou em uma intermitência, entre a rua e o abrigo -
dormindo, algumas noites, no Pernoite Protegido –, até que se fixou na rua, não
buscando mais os serviços para a solicitação de um novo reabrigamento. Nesse
momento, segundo os profissionais que o acompanhavam, houve uma intensificação no
uso de substâncias psicoativas e uma preocupação dos serviços sobre um risco de morte a
que ele poderia estar exposto, em virtude desse uso abusivo. Técnicos de alguns
equipamentos sociais iam diretamente ao seu ponto de permanência nas ruas a fim de
convidá-lo a ir para instituição e faziam uma tentativa de convencimento de encaminhá-
lo para algum local, com a proposição de um abrigo ou uma comunidade terapêutica.
João, em algumas situações, ia até as instituições para um banho ou para se alimentar,
mas buscava retardar a sua resposta às constantes proposições de saída da rua. Nesse
intervalo, teve envolvimento com a polícia, sofreu agressões físicas e, em uma situação
limite, sofreu uma agressão com faca, quando foi encaminhado, por um dos
equipamentos, para o serviço médico de urgência. Ele conta:
- Se não tivesse esses serviços que você conhece, o que ia acontecer?
- Eu nem sei se eu tava vivo, pra falar a verdade. Nem sei mesmo se eu tava vivo, porque
tanta coisa aconteceu.
- O que aconteceu de mais difícil?
- Que puderam me ajudar? O dia que eu tomei uma facada e vim para cá. E eles me
levaram para o hospital. Ficou um tio comigo lá (...). Faz um tempão. Ficou uns tios lá
tomando conta de mim até me dar alta. Fiquei três dias lá e os tios se revezavam.
- E foi importante ter alguém lá com você?
130
- Foi. Que vai... Por que eu não sei, se não tivesse a Casa Verde [Pernoite Protegido] eu ia
tomar a facada, não ia ter para onde ir, ia ficar aí sangrando, sei lá, até morrer, né? Teve
um lugar que me ajudou, chamou a ambulância, fui lá pra fazer os exames também
depois.
João aborda, nesse ponto, o objetivo limite da funcionalidade da rede de
serviço para essa população: a manutenção da vida. Inseridos em uma sociedade
desigual, com notável desfavorecimento social, cultural e econômico, com um
imaginário e ações, sob o estigma da piedade e do medo, poucos, dentre esses
adolescentes, se aproximam dos serviços sociais destinados a todos os cidadãos. Com
esse quadro, a rede de equipamentos sociais e profissionais com atenção principal a
essa população assume uma funcionalidade passarela, ou seja, funciona como uma
passagem, um acesso aos serviços sociais. Essa passagem dá-se até a porta desses
equipamentos, assim como o acompanhamento deles nesses locais. Trata-se de um
objetivo não elencado pelas instituições, mas de extrema relevância e que ganha uma
visibilidade quando abordado em uma situação limite como a ocorrida com João: o
acesso ao serviço médico de urgência.
A partir da vivência desses episódios na rua, João solicitou para os educadores do
serviço de saúde, o CRAISA, seu encaminhamento para uma comunidade terapêutica e
disse que percebeu a necessidade de se tratar, por estar em um mal estado.
- E quando é que dá o estalo, ‘agora eu quero mudar’?
- Quando dá o estalo? Quando eu tava apanhando deu o estalo. Pára, vou ficar
apanhando? Não sou nenhum ladrão, não. Levei tanto bicudas dos caras [policiais], tia,
que eu falei: “nossa, tava quase morrendo!”. Soco na cara, onde cata. Bicuda, soco onde
cata.
- E foi aí que você achou que tinha que fazer alguma coisa?
- Foi. Ô loco, essa vida não é para mim não. Pára!
- E porque você escolheu ir tratar da droga?
- Porque era o melhor para mim. No momento era o melhor para mim. Tava muito
dependente. Não podia ficar um dia sem usar a droga, né, tia?
- E a polícia te pegou por quê?
- Eu tava roubando. Os caras socaram eu.
- Te levaram para a delegacia?
131
- Não me levou. Os caras não me levou porque eu não tava conseguindo nem andar,
também, tia. Os caras me puxou pelo braço, assim, e me soltou e eu caí igual boneca no
chão. Falei: “ô loco, meu, igual boneca assim?ra!” tava ficando mau, os caras xingou
eu e foram embora. Aí choveu, pra ajudar.
- E aí? Alguém te ajudou?
- Não, ninguém me ajudou não. Fiquei lá no chão estirado. Dormi, fui arrastando até um
baratinho [um mocó], fiquei lá, dormi, e no outro dia eu encontrei a tia do CRAISA.
Tava todo machucado, com a cara inchada... Os caras chutava e eu colocava o braço na
frente, sabe?
- Aí foi você quem decidiu ir lá para o Instituto [Comunidade Terapêutica]?
- O que eu decidi? Decidi! Fui embora, essa vida não é para mim não!
Com o encaminhamento para a comunidade terapêutica, João iniciou o
tratamento e ficou internado por seis meses, realizando toda a primeira etapa da
proposição institucional. Período raramente cumprido pelos meninos em situação de rua,
por todos argumentos já apresentados. No segundo momento do tratamento, chamado
de “reinserção social”, os técnicos da instituição buscaram contatar algum parente de sua
família para que pudessem intervir na perspectiva de seu retorno para algum lugar. A
partir de contatos em Minas Gerais, João foi enviado para a casa de uma tia, para a sua
permanência com sua família. Ele ficou alguns dias e, depois, retornou para Campinas.
Disse não ter se “adaptado” e, assim que chegou, foi reencaminhado para a comunidade
terapêutica. A instituição, de sua parte, dizia não ter mais espaço para ele lá, pois já tinha
cumprido as etapas propostas e evadiu-se da instituição, poucos dias sucedidos de seu
retorno. Procurou, espontaneamente, o Pernoite Protegido e ficou dormindo nesse local
por um período mais longo do que a proposição da instituição. Os técnicos abriram uma
exceção para estudar seu caso, na medida em que avaliaram que ele vinha de um processo
de saída da rua, e, portanto, precisariam de mais tempo para estudar um local para seu
encaminhamento em virtude de seu histórico.
João, nesse momento com 16 anos, criou uma nova rotina a partir de sua ida para
o Pernoite. Como esse serviço tem funcionamento apenas parcial, não sendo 24 horas, os
meninos saem, pela manhã, para outro local e são autorizados a retornar no início ou no
fim da tarde, uma vez que a instituição não se caracteriza como um abrigo, mas sim
132
como um local para promoção e permanência de uma noite em proteção, ou seja, de um
pernoite em condições protegidas.
No Pernoite, João aproximou-se de Pedro, um outro adolescente que estava
pernoitando na instituição para aguardar seu encaminhamento, e os dois agruparam-se
para realizar suas atividades durante o dia, fora de lá.
Pedro tinha 16 anos e um histórico de algumas passagens pela rua, porém em
poucos momentos fez dela seu espaço de permanência. Em todos as situações, procurava
as instituições para encontrar um abrigo e solicitava, constantemente, seu não retorno
para sua casa. Tem um irmão (Rafael, de quem falaremos a frente) e uma irmã que têm
circulação contínua nas ruas, com passagem por diversos serviços da rede de atendimento.
Sua irmã já foi considerada, segundo técnicos locais, como “caso emblemático do
município”, devido à entrada em muitos serviços e à recorrência neles. Por intermédio de
seus irmãos e dos equipamentos que adentraram sua casa, iniciou seu contato com o
mundo institucional e o acesso a eles também como usuário desses serviços. Pedro não
apresentava um “perfil de rua”, segundo os técnicos, com um pequeno enraizamento na
“cultura de rua” e pouco desenvolvimento dos “capitais sociais” necessários para vivência
nesse espaço.
João, por outro lado, desenvolveu essa cultura e os capitais para inserção nessa
margem. Todavia, encontrava-se em um momento em que estava mais afastado desse
universo. Com outras vestimentas, outros hábitos e outras circulações, ele estava mais
distanciado de seu processo de vivência e integração nas ruas, embora em contato com
elas, ruas essas que passaram a ser, também, a sua “casa”. Com esse encontro, Pedro e
João uniram-se em uma fase, na qual estavam vivenciando uma etapa parecida, porém
oriunda de trajetórias que divergiam em seus percursos. Mas, nesse encontro, criaram,
uma rotina de circulação institucional para o período em que aguardavam, os dois, um
encaminhamento para algum lugar.
133
Após a saída do Pernoite, no período da manhã, faziam alguma atividade na rua,
com os educadores
25
, ou, acompanhados por eles, iam para locais que acessassem outras
propostas que o interessavam.
No momento em que ele havia recém-chegado ao Pernoite Protegido e
estabelecido essa rotina, em julho de 2006, contatamos João e solicitamos a realização
de uma entrevista formal, a qual é citada, em algumas partes, neste trabalho. Durante a
nossa explicação sobre o estudo em desenvolvimento e o interesse no universo da rua e
as instituições que com eles trabalham, João nos sugeriu sairmos juntos, no dia seguinte,
para ver o que ele fazia durante o dia. Consultou Pedro sobre a possibilidade de serem
acompanhados e ele não fez nenhuma objeção. Pedro também já nos conhecia da rede de
serviços. Seguimos, então, para uma jornada juntos na cidade, passando por lugares por
eles escolhidos e por eles apresentados, sendo a nossa solicitação de saber mais sobre a
vida nas ruas e as instituições que com eles trabalhavam. Marcamos nosso encontro no
Pernoite Protegido, no horário de saída da manhã, e de lá seguimos para a caminhada:
João, Pedro e a pesquisadora deste trabalho. Portávamos uma câmera fotográfica para a
qual sugerimos que eles fotografassem cenas da vida nas ruas. Algumas das fotos
realizadas por eles e por nós estão apresentadas neste trabalho.
Na porta do Pernoite Protegido estavam educadores de rua iniciando algumas
atividades, para encaminhar os adolescentes que dali saíam para outro serviço. Com
uma bola de basquete e um pandeiro, os meninos brincavam, encontravam outras
pessoas que circulavam, seja aqueles que estavam em outras instituições, como
abrigos, seja outros que estavam dormindo nas ruas; e assim demonstravam sua
inserção e rede pessoal naquele universo.
25
Os educadores de rua estabeleceram um acordo com o Pernoite Protegido de acompanharem os
meninos e meninas no período da manhã, quando o Pernoite estava fechado, através da oferta de
atividades na rua ou a ida a outras instituições onde houvesse pré-agendamento ou ofertas de
espaços de convivência e/ou lazer. Tratava-se de uma tentativa articulada pelos profissionais da rede
para manter sob monitoramento os adolescentes que estavam em cuidado nos diferentes
equipamentos.
134
Figura 11 - Educadora e jovem jogando basquete em praça pública
As atividades ocupavam um lugar secundário naquele espaço. Em uma
pequena praça no centro da cidade, o encontro e o contato com os pares, promovidos
pelos profissionais que ali estavam, pareciam ser o elemento motivador e aglutinador
para alguns meninos. Com uma função secundária, porém auxiliadora, os
instrumentos de esporte e música criavam uma atmosfera descontraída e lúdica.
135
Figura 12 – Jovens tocando pandeiro
Figura 13 - João jogando capoeira
136
Seguimos, posteriormente, nossa caminhada pelas ruas. Eles apresentavam-
nos para muitas pessoas, demonstravam o que faziam, falavam de seus amigos, das
diferentes situações na rua, de seus caminhos, das formas de evitar a polícia, de seu
lazer, de suas atividades cotidianas.
Eles, certamente, escolheram as atividades que poderiam fazer conosco, o que
ficou claro, por exemplo, quando falaram da alimentação: mostravam os restaurantes
onde poderiam conseguir comida com mais facilidade, mas não fizeram isso na nossa
presença. Nessa atividade não nos era autorizada a participação, não era um código a
ser partilhado. Com essa situação, entendemos que a refeição, naquele dia, era nossa
responsabilidade e propusemos comer um cachorro-quente, o que eles aceitaram.
Ainda nessa temática, João viu um morador de rua almoçando e lhe pediu
para fazer uma foto, explicando que estavam nos “ajudando” para um trabalho, e
disse que aquele momento representava uma coisa comum para quem fica nas ruas.
Figura 14 – Morador de rua almoçando em uma praça (fotografia tirada por João)
137
Se, por um lado, havia uma parte desse universo da qual não nos era
permitida a aproximação, por outro lado, ocorreram momentos em que percebemos
uma negociação da parte deles para que nossa presença fosse possível em alguns
espaços, a partir do acordo prévio de outros jovens. Por exemplo, quando chegamos
junto a um grupo que estava na rua fazendo a limpeza de pára-brisas de carros no
semáforo, e pedindo dinheiro aos motoristas, João e Pedro anteciparam-se na nossa
frente e dirigiram-se aos jovens que lá estavam, dizendo: “ela está com a gente, ela
trabalha com a gente, está tudo bem!”, assim, estávamos autorizadas a nos
aproximarmos do grupo, conversar, estar...
No semáforo, o grupo nos mostrou pessoas que sempre passam por lá e dão
dinheiro cotidianamente, caracterizando-se como “clientes preferenciais”, com quem
têm uma relação cordial, de cumprimentos e breves diálogos; outros que também
passam diariamente, mas jamais autorizam a limpeza do vidro, nem mantêm
qualquer contato, mesmo que visual. E ainda a passagem da polícia e as estratégias
utilizadas por eles para não serem abordados. Nesse dia, a polícia passou por ali,
parou no semáforo, observou-nos, mas não os abordou, o que, na avaliação deles,
ocorreu porque a nossa presença representava uma figura institucional e, então,
naquela ocasião, um fator de proteção para eles.
138
Figura 15 - Jovem trabalhando nas ruas
Figura 16 – Trabalho nas ruas (fotografia tirada por João)
139
Três aspectos foram marcantes durante o dia. Primeiramente, estar na rua
permitiu-nos uma aproximação concreta a seu universo e a um pequeno
conhecimento de sua dinâmica. João e Pedro possibilitaram a nossa aproximação,
observação e interação com os jovens na rua. Em alguns momentos, esse contato foi
negado pelos demais jovens, como quando eles nos levaram a encontrar um jovem
que já conhecíamos previamente e, segundo João e Pedro, estava utilizando, nos
últimos tempos, uma quantidade grande de crack. Esse jovem completou 18 anos e
não estava mais sendo atendido pela rede de serviços. Quando nos aproximamos,
após a entrada inicial de nossos informantes, ele se distanciou, disse que não queria
nos encontrar, e seguiu pelas ruas sem estabelecer uma comunicação.
Prosseguindo na nossa caminhada, eles nos levaram para conhecer um
equipamento social na cidade cuja existência não tínhamos nenhuma informação,
enquanto profissional da rede, o qual se ocupa do acesso gratuito à Internet para
todos que se cadastram. Com orientação deles, fizemos nossa inscrição e utilizamos
um computador durante uma hora, como as outras pessoas que estavam no local, e os
meninos utilizaram as máquinas para jogos eletrônicos disponíveis. Pudemos
acompanhar parte de sua rede de suporte própria, organizada para a vida cotidiana,
que mantém características mais abrangentes do que as proposições dos serviços
específicos e inclui equipamentos sociais que não fazem parte da “rede de meninos
em situação de rua”, o qual nos era desconhecido na qualidade terapeuta ocupacional
do serviço de saúde.
Fomos por eles apresentadas ao local e auxiliadas para compreender e realizar
os procedimentos de inscrição e acesso, fato que se configurou exatamente como
oposição ao papel que desempenhamos, até então, como profissionais, quando nós os
conduzíamos para o acesso a serviços. Essa inversão de papéis, segundo aspecto a ser
sublinhado nessa experiência, ocorreu muitas vezes durante o dia com João e Pedro,
uma vez que, normalmente, ofertamos ajuda na função de profissionais em
intervenção com essa população, e não o inverso (GIRARD et al., 2006). Esse
aspecto, que pode ser considerado como uma negociação do encontro, foi
fundamental para aproximação com a rua.
140
Figura 17 – João no Projeto Ponto Jovem de acesso à Internet
Enfim, o terceiro aspecto levantado a partir dessa experiência foi a
observação de que há coisas que podem ser ditas enquanto caminhamos, outras que
não são permitidas e algumas que são mostradas, que fazem parte de uma dinâmica
para além do verbal, que surgem como elementos quando estamos no ambiente do
outro, como a rua
26
. Esse aspecto surgiu, entre outros momentos, quando
mencionaram as condições sobre dormir nas ruas e as diversidades que a
tangenciavam e João concluiu o tópico da conversa com a foto abaixo, dizendo: “é
bagunçado assim, você nunca sabe se vai acordar no mesmo lugar, do mesmo jeito e
com as mesmas coisas” (Notas de Caderno de Campo).
26
Tal fato é abordado com detalhes por GIROLA (1996) em seu trabalho etnográfico nas ruas de
Paris.
141
Figura 18 – Colchão na rua abandonado (Fotografia tirada por João)
Durante à tarde, eles tinham agendado a participação em uma oficina de hip-
hop em uma instituição de convivência e atividades de lazer da rede. Fomos juntos e
realizaram a oficina no local, um espaço onde havia outras crianças e outros
adolescentes, participando de algumas proposições que ocorriam simultaneamente.
Nesse local, munidos da câmera fotográfica, vinham de uma outra forma para a
relação com os colegas, portando um objeto de pouco contato para esse grupo, o que
atraía a atenção e curiosidade no local. Dessa forma, ocupavam outra posição perante
seus pares e fizeram fotos diversas e pediam fotos de si.
No fim do dia, um pouco antes da reabertura do Pernoite Protegido, foram a
um parque da cidade para a prática de ginástica: local público e de circulação de
pessoas de diferentes classes sociais. Eles utilizaram os equipamentos ali disponíveis
para se exercitar e disseram que faziam isso quase todos os dias, para “poder estar
em forma para jogar futebol” (Notas de Caderno de Campo). Estivemos em um
espaço familiar para nós, como moradoras da cidade, mas não imaginávamos que
142
ocorria a utilização por esses meninos. Agendamos algumas outras atividades com
eles nos dias seguintes
27
.
Nas muitas caminhadas, quando abordamos a questão da opinião deles sobre
os serviços que utilizavam, em geral falavam sobre as pessoas que neles trabalhavam
e sua vinculação, maior ou menor, com os técnicos locais. Nomeavam os
profissionais e faziam alusões a situações nas quais fizeram solicitações e foram
atendidos. Sobre as instituições, faziam algumas críticas específicas sobre a
dificuldade de acesso a alguns equipamentos, falavam da rigidez de normas de
outros, citavam elementos que interessavam em algumas estruturas, e assim as
informações apareciam de forma indireta. Eles nos explicaram que a ida aos serviços
ocorre de acordo com a necessidade do momento, de maneira aleatória, conforme as
demandas que aparecem no decorrer dos seus caminhos. Discurso que se aproxima
da interpretação de GREGORI (2000) sobre a utilização da rede de serviço por essa
população, em Viração, e ainda de LOVELL (1992), no uso dos equipamentos
sociais e a relativização da categoria tempo com a população em situação de rua.
Quando perguntamos sobre perspectivas de futuro, João falou:
Ah, eu penso em trabalhar de... Pra falar a verdade pra você, tia, meu sonho é servir
o exército. Tia, deixa eu perguntar uma coisa para você aqui. Pode parar um pouco?
(João em Entrevista Individual)
E solicita a interrupção da gravação para perguntar sobre o nível mínimo de
escolaridade exigido para servir o exército e as diferenças entre o exército, a
aeronáutica e a marinha. Quando terminou suas dúvidas, autorizou o reinício da
gravação. Assinala, assim, sonhos para o futuro, presentes no imaginário de meninos
sobre as possibilidades em torno das Forças Armadas. João continuou no Pernoite
mais algumas semanas, enquanto as técnicas viam a possibilidade de encaminhá-lo
para algum lugar e, posteriormente, evadiu-se novamente, retornando a sua
intermitência entre as instituições e a rua.
27
Dentre elas assistirmos juntos ao vídeo co-produzido por João e que ele ainda não conhecia
(“Entre a rua e o abrigo: tecendo cotidianos no fazer de uma casa”. Realização de Lopes et al.
Campinas: Outra via soluções, 2004. 12 min., color, CD).
143
Pedro foi encaminhado, mais uma vez, a um abrigo. Após fazer a foto abaixo,
ele retorna e diz: “Tia, o importante é que seja assim, sempre com uma luz no fim do
túnel” (Notas de Caderno de Campo).
Figura 19 - Túnel de pedestres no centro da cidade (Fotografia tirada por Pedro)
144
4.2 Cíntia
1
Conversamos com Cíntia em 2006, solicitando uma entrevista, quando ela estava
com 19 anos e já não era mais usuária da rede de serviços.
Segundo os registros de atendimento, Cíntia entrou na rede através de um
encaminhamento para o Conselho Tutelar (C.T.) do serviço de psiquiatria de um
ambulatório-escola, onde ela recebia acompanhamento em saúde mental. Os
profissionais locais fizeram o pedido de seu abrigamento porque ela estava sofrendo
ameaças de morte, feitas pelo seu padrasto. Pela gravidade da situação, o C.T. a
encaminhou, em 2002, quando tinha 16 anos, para um abrigo provisório. Esse
equipamento, posteriormente, encaminhou Cíntia para o abrigo AFAGAI, com anuência
do C.T., apesar de ela não estar em situação de rua, perfil prioritário daquela instituição.
Em seu histórico, tinha algumas passagens esporádicas pela rua. Esse conjunto de
características somou-se ao fato de que os demais abrigos não aceitavam adolescentes
com problemas psiquiátricos e/ou com administração de medicação controlada, como
era o caso de Cíntia naquela ocasião.
A história conhecida pelos serviços era formada por pequenos fragmentos, a partir
dos relatórios de cada profissional, da sua passagem pelas instituições e das falas de Cíntia.
Entretanto, havia, para os profissionais que a receberam, algumas lacunas para
constituição linear dos fatos e a incerteza referente às datas das ocorrências buscadas para
o tradicional registro de entrada, chamado, por alguns, de anamnese. Sabia-se que ela
morava na cidade de São Paulo, com os pais, e o pai era paraguaio. Era a caçula da família,
com mais duas irmãs. Quando criança, por volta dos oito anos, foi morar com a avó
paterna e o pai no Paraguai. Retornou para o Brasil, com 12 anos, por meio de um
encaminhamento da Justiça paraguaia para a mãe dela, que havia se mudado para
Campinas. A alegação era a de que ela havia sofrido abuso sexual por parte do pai, o qual
estava preso em razão do abuso cometido contra a filha, e sua avó não tinha condições de
criá-la. O registro desses fatos foi produzido pelos relatos de Cíntia e de sua mãe.
1
Nome fictício escolhido pela jovem para representação neste trabalho.
145
Posteriormente, o Conselho Tutelar de Campinas recebeu uma documentação da Justiça
paraguaia confirmando o motivo de encaminhamento de Cíntia para o Brasil, porém não
mencionavam a prisão do pai. Era Cíntia quem dizia que seu pai havia sido preso porque
ela “contou o que ele fazia” (sic), e demonstrava preocupação em torno desse fato.
Quando retornou para conviver com a mãe, esta havia se casado novamente e tido mais
um filho. Após a chegada de Cíntia, sua mãe teve outra filha. Quando Cíntia foi abrigada,
sua irmã estava com dois anos, e elas expressavam uma relação afetiva bastante intensa.
Com sua mãe, em Campinas, Cíntia tinha o hábito de sair de casa e ficar
caminhando pela vizinhança. Era bastante conhecida nos serviços sociais do bairro, como
no centro de saúde, tendo estabelecido uma ligação afetiva com os profissionais desses
espaços. Segundo a mãe, apresentava alguns episódios de agressividade, e dizia que ela era
“delinqüente”
2
, justificando seus momentos de saída de casa, sem anuência da mãe. Em
uma situação em que ficou “agressiva”, a mãe chamou o serviço de urgência médica, e
Cíntia foi levada para o setor psiquiátrico de um hospital da cidade, onde ficou internada.
Iniciou-se, assim, sua passagem pelos serviços de saúde mental e psiquiatria, bem como a
administração de medicamentos psicotrópicos em sua trajetória. Após sua alta,
continuou em acompanhamento ambulatorial no mesmo local.
Nesse período, saiu de casa, um dia, acompanhada de sua irmã de dois anos, sem
avisar a mãe, e não retornou para casa. No dia seguinte, procurou o serviço que
freqüentava e foi encaminhada de volta para casa. Ao chegar, sofreu ameaças de morte
por parte do padrasto, pai da irmã, que estava preocupado com a criança pequena.
Motivada por esse episódio, Cíntia retornou sozinha para a rua, dirigindo-se ao serviço de
saúde. Este encaminhou o caso para o C.T., enfatizando a ameaça de morte que Cíntia
alegava ter recebido de seu padrasto, e, por isso, ela foi abrigada na rede de serviços de
adolescentes em situação de rua.
O setor psiquiátrico onde recebia acompanhamento não havia fechado um
diagnóstico para ela, pois argumentavam que, primeiramente, ela era adolescente e estava
em formação, podendo modificar as características e evoluir, ou não, para um quadro
2
Segundo relatórios de profissionais dos equipamentos sociais da rede que faziam acompanhamento
familiar do caso.
146
psiquiátrico; posteriormente, com a característica de grandes carências afetiva, social e
cultural, vivenciadas pela menina, avaliavam que poderiam dar margem à confusão com
algum quadro sintomatológico e, na verdade, representariam uma outra natureza de
problema, e não uma doença mental. Ela já havia recebido o diagnóstico de deficiência
mental leve, em outros equipamentos por onde havia passado, porém tal hipótese não era
corroborada pelos demais serviços. Assim, a medicação administrada era direcionada aos
sintomas de agressividade e controle de ansiedade (anti-ansiolíticos).
Após o encaminhamento para o abrigo, o atendimento ambulatorial que recebia
no hospital que ficou internada foi encerrado e iniciou-se o acompanhamento no
CRAISA, serviço de referência no campo da saúde mental. Para seu caso, havia uma ênfase
na atenção com o médico psiquiatra para o acompanhamento no uso da medicação. O
abrigo articulou a retomada da participação em um projeto de educação não-formal,
próximo à casa dela, local onde recebia uma verba, no formato de bolsa para jovens, da
instituição. Foi inserida, também, na educação supletiva, via Fumec (Fundação Municipal
para Educação Comunitária), quando estava afastada dos estudos por dois anos.
Em sua chegada ao abrigo, Cíntia demonstrava uma diferenciação em relação ao
perfil dos demais adolescentes que lá estavam, exemplificado pelo envolvimento em
brigas constantes e precisando de uma contínua intervenção individualizada dos
profissionais. Pelas suas demandas específicas, já identificadas pelo uso de mediação
psiquiátrica, não realizava as tarefas propostas para todos na casa (como arrumar seu
quarto, cuidar de suas roupas, entre outras), exceto quando algum profissional a
acompanhava e ajudava individualmente para a efetivação dessas atividades. Tal fato
gerava um desconforto na dinâmica institucional com os demais adolescentes, que
questionavam os motivos da diferenciação com Cíntia e solicitavam algumas concessões
para eles também. Ela tinha dificuldade em realizar as práticas de higiene pessoal e eram
freqüentes os episódios de mau cheiro, resistência ao banho, contaminação por piolho e
outros. Assim, Cíntia não fazia amigos na instituição, pouco se relacionava com seus
pares e mantinha vínculosapenas com os técnicos do local. Fato que se repetia na sua
história, uma vez que demonstrava, sempre, grande afeto pelos profissionais, por onde
passava, esforçando-se para manter contato com eles, mesmo após a sua saída dos locais.
147
Comumente fazia visitas para “ver” os profissionais e “conversar”, pois tinha um histórico
de passagem por muitas instituições do município.
Cíntia demonstrava um interesse pela realização de atividades manuais de uma
forma geral, buscando sempre ficar em contato com os profissionais que a propunham.
Com habilidades próprias nesse campo, escolhia esse recurso como uma fonte de interesse
e fazia a sua inserção no contexto institucional por esse meio, participando das
proposições realizadas, que, geralmente, encontravam dificuldades de adesão por parte
dos demais adolescentes. Em troca de sua participação, de interesse dos profissionais,
barganhava concessões para outras tarefas de que não tinha interesse, condições e/ou
vontade de realizar.
Figura 20 – Cíntia realizando atividades artesanais
Ela representava o questionamento na rede sobre a necessidade específica de
serviços de saúde mental para adolescentes no município. A cidade dispunha, no
campo da saúde, de um CAPS para crianças, caracterizado como uma unidade
especializada em saúde mental, com a missão de tratar, de forma intensiva, os
portadores de transtorno mental grave na infância, como autismo e outras psicoses,
não incluindo casos como o de Cíntia; e o CRAISA, CAPS mais voltado para o
acompanhamento do uso abusivo de substâncias psicoativas, que assumiu o cuidado
148
da adolescente. As características e as necessidades de atenção que precisava se
afastavam das demais vivenciadas pelos meninos em situação de rua.
Um outro exemplo de demanda em atenção específica em saúde mental, além
do caso de Cíntia, ocorrido em um período concomitante, foi de uma adolescente
atendida pelo CRAISA e AFAGAI, encaminhada pela Febem, que havia assassinado
o pai, com uma facada no pescoço, em uma briga doméstica entre ela, a mãe e o
próprio pai. A adolescente cumpriu medida de internação, como penalidade pelo seu
ato, com duração de um ano, e, após esse período, a mãe não queria acolhê-la em
casa, por medo do estado mental da filha e dos riscos que poderia correr, culminando
na solicitação, pela Febem, do encaminhamento para um abrigo para realizar a
transição da adolescente para sua casa. Por não haver nenhum abrigo local que a
aceitasse, ela foi para a AFAGAI e iniciou um acompanhamento em saúde mental no
CRAISA. Foi feito um trabalho intenso pelas instituições – com acompanhamentos
psicológico, psiquiátrico, terapêutico ocupacional e familiar – e, após nove meses de
abrigamento, a adolescente retornou para casa, com apoio intensivo e domiciliar das
instituições envolvidas, por mais quatro meses. Permaneceu ainda em atendimento
no CRAISA por mais um ano, quando foi encaminhada para um CAPS (Centro de
Atendimento Psicossocial) por ter completado 18 anos. Essa adolescente não
apresentava nenhuma passagem pelas ruas nem se envolveu com a cultura de rua
nesse período. Permanece, atualmente, no CAPS e morando com a mãe. Ela
representava, assim como Cíntia e outros adolescentes que passaram pela rede de
atendimento, uma demanda específica de saúde mental.
A política de saúde mental para a infância e juventude, no Brasil, tem suas
discussões aliadas à política de saúde mental, em geral, e também às instituições de
atendimento às crianças e aos adolescentes carentes, com um histórico de
institucionalização, ações filantrópicas e uma visão de deficiência sobre essa
população, sendo considerados, no percurso de desenvolvimento de intervenções
com esse grupo: “deficiente social (pobre), deficiente mental e deficiente moral
(delinqüente)”, (BRASIL, 2005b, p. 8). Houve uma homogeneização construída
entre o quadro de uma doença e as questões sociais sob o rótulo de “deficiência”, o
149
que pouco contribuiu para o enfrentamento real da problemática, referendando
estigmas sociais.
Nesse percurso, com o desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica e as
discussões e intervenções em prol da desinstitucionalização da população que se
encontrava em manicômios, o grupo infanto-juvenil não ganhou muita visibilidade,
sendo, muitas vezes, citado pelo movimento “por uma sociedade sem manicômios”,
porém sem centralidade nas suas ações, na medida em que o maior contingente
populacional nos manicômios era de adultos. Esse movimento aliava-se ao debate
mundial sobre a experiência italiana de abertura das instituições (a partir do
fechamento do Manicômio de San Giovanni, em Trieste, na década de 1970),
impulsionada por BASAGLIA (1985) e a proposição da Psiquiatria Democrática,
ROTELLI (1994) e a discussão da desinstitucionalização, e outros pensadores e
interventores da época.
Esses fatos históricos desdobraram-se na discussão do modelo asilar
brasileiro de atenção psiquiátrica e, como conseqüência, ocorreu a implantação dos
CAPS, iniciada e consolidada com a população adulta. Já no início da década de
1990 são apontadas algumas experiências em torno da atenção especializada para a
população infanto-juvenil, por meio da criação de Hospitais-Dia Infantis, em alguns
municípios, e o desenvolvimento da intervenção ambulatorial e territorial, nos
princípios da Reforma Psiquiátrica. Tais equipamentos dedicavam-se,
prioritariamente, ao atendimento das psicoses. Em 2006 o país contava com uma
rede de 75 CAPS i, Centros de Atenção Psicossocial para a Infância, (BRASIL,
2007). A preocupação da área com esse grupo populacional é expressa em
documento oficial (BRASIL, 2005b):
A base normativa e política do atual campo da Saúde Mental vem, há muito,
apontando a necessidade de ser construído um novo patamar de ações para o cuidado
de crianças e adolescentes portadores de transtorno mental. A 2.ª Conferência
Nacional de Saúde Mental, realizada em 1992, apontou os efeitos perversos da
institucionalização de crianças e jovens e a 3.ª Conferência Nacional de Saúde
Mental (2001) foi contundente sobre o tema, determinando que não fossem
postergadas as ações político-assistenciais necessárias para que um novo tempo se
instaurasse no que diz respeito ao cuidado e tratamento da população infanto-juvenil.
(p.9)
150
Em 2004 foi constituído o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil
(BRASIL, 2004d) com o intuito de articular os atores e realizar proposições para a
política nacional de saúde mental para a população infanto-juvenil, demarcando,
como prioridade, a desinstitucionalização dessa clientela que, “em sua extensa
maioria, nos casos de maior comprometimento clínico e abandono social, [está]
submetida à institucionalização através de abrigos das mais diversas tipologias” e a
criação de equipamentos públicos para o atendimento a essa população (BRASIL,
2005b, p. 45).
O Fórum assinala a ampliação da gama de ações de cuidados, para além das
psicoses, sendo, em junho de 2006, sua pauta: “a exposição de crianças e
adolescentes a situações de risco, especificamente os meninos trabalhadores no
tráfico de drogas” (BRASIL, 2007, p. 46).
Em Campinas, a discussão nesse campo era feita pelos dois CAPS
direcionados para essa população, além dos serviços em saúde mental para adultos
que, ocasionalmente, por ordem judicial, acolhiam essa população.
As experiências implementadas na área de saúde mental para adultos no
município de Campinas são conhecidas e reconhecidas nacionalmente como
referência no modelo de desinstitucionalização e reforma psiquiátrica, impulsionadas
pela parceria entre a Prefeitura e o Serviço de Saúde Cândido Ferreira, organização
não-governamental co-gerenciada pela Secretaria de Saúde, que realiza grande parte
das ações na cidade (HARARI e VALENTINI, 2001). Conta, entre seus serviços,
com uma unidade de internação, denominada Núcleo de Atenção à Crise (NAC), que
se dedica à atenção de pacientes portadores de psicose, neurose grave e/ou co-
morbidades (entre o uso de substâncias psicoativas e quadros psicóticos) em crise. O
serviço defende sua proposição e a necessidade de manutenção da unidade de
internação
3
, mesmo no interior do debate da reforma psiquiátrica:
3
No interior do debate da reforma psiquiátrica, a permanência e necessidade de uma unidade
específica para internação, entre os serviços, é um debate contínuo que se opera em torno do papel
de cada serviço e a militância pelo fim das unidades manicomiais, como previsto pela lei
10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (Antigo Projeto de Lei Paulo Delgado).
151
Oportunizar e operar na crise é pensar a complexidade dos arranjos substitutivos ao
manicômio, que mostram que as multiplicidades de equipamentos assistenciais, com
suas distintas competências instaladas, tem sido mais efetivas do que contar apenas
com equipamentos substitutivos. Queremos nos colocar não como retaguarda dos
outros serviços e sim como parceiros, lembrando que, para nós, ser manicomial é
criar desassistência, por isso não acreditamos em serviços que se propõem a tratar
tudo e todos (SSCF, 2008a).
O NAC foi solicitado, algumas vezes diretamente pela rede, outras por
determinação judicial, para a recepção, internação e tratamento de adolescentes e
jovens em crise, para os quais os profissionais dos serviços da rede avaliaram a
necessidade de internação psiquiátrica. Esses casos foram admitidos em regime de
exceção, contudo, caracterizaram-se como uma demanda recorrente no cotidiano da
instituição. Devido a esse fato, a coordenadora do NAC foi convidada a integrar o
Grupo Criando Rede de Esperança, apesar de seu serviço não ser específico para essa
população, no intuito de contribuir com as discussões em torno dessa temática e
conhecer os demais atores da rede de atendimento. O convite foi aceito e o NAC
participou de algumas reuniões, com representação oficial no grupo, durante o ano de
2004. Interrompeu sua participação, em 2005, devido à incompatibilidade de agenda,
retomando sua participação somente nas discussões pontuais de casos, como quando
Cíntia ficou internada com essa equipe.
A coordenadora do NAC, em sua fala, destacava que as dificuldades para
tratamento desse público estavam na tarefa de efetivar o cuidado junto aos adultos
psicóticos graves e na falta de autonomia da equipe, pois a maioria desses
adolescentes era recebida por determinação judicial.
Vou dar um exemplo: teve uma garota internada, recentemente, que ficou com a
gente mais de 180 dias. Do ponto de vista da alta, para a gente ela estaria de alta em
15 dias. Não era paciente psicótica, não tinha uso de substâncias psicoativas, era
uma garota que estava na rua, mas que a gente percebia que tinha muito pouco
tempo e que tinha tido uma estrutura até os 15 anos, e essa menina veio para a gente.
Porque ela foi recolhida na rua, em Vinhedo [cidade da região de Campinas], e foi
para um abrigo. Lá começa a fazer episódios de muita atuação, de quebrar tudo, de
agredir, de abordar as profissionais, os psicólogos, as TOs [terapeutas ocupacionais]
que trabalhavam no abrigo, e acabaram determinando a internação dela para cá. Da
chegada dela até a saída foi uma super negociação, porque cobravam da gente uma
certeza: “se ela tiver alta ela não vai fazer nada mais? Ela não é louca?” “Não, ela
152
não é louca!” Então foi muito tempo para negociar. Em outros casos não, a gente diz
que está apto para alta, manda o relatório e eles mandam a autorização. No caso
dessa menina eles foram dificultando, pediram exame para ver a idade óssea, para
projetar mais ou menos a idade que ela tinha. E, na realidade, eles tentando ganhar
tempo, eles diziam que não era problema do município, que ela apareceu aqui, que
ela não é da cidade. Então, são muitas variáveis, depende do caso, da situação. E os
menores de idade, geralmente, vêm por determinação judicial (Coordenadora do
NAC).
Esse tipo de situação, avaliado pelos profissionais dos equipamentos sociais
como um momento limite, dificultava-se pela inexistência de serviços específicos
para o público infanto-juvenil. Na opinião da coordenadora dessa unidade:
Campinas avançou muito na questão do atendimento aos psicóticos adultos e a
questão da criança e do adolescente ficou muito parada. E tem, ainda, bastante
controvérsias. Tem gente que acha que tem que ter o CAPS 24 horas, outros acham
que não, me parece que poderia ter as duas opções. Acho que tem clientela que
poderia se beneficiar de um serviço que funcionasse 24 horas, como também outros
que poderiam ir diretamente para o hospital geral, que seria a retaguarda para
qualquer criança que adoecesse. Eu acho que faltam políticas nesse sentido, eu
esperava mais desse governo (...) eu esperava que tivesse mais investimento. No
governo passado a opção primeira foi por adultos, que tinha até uma lógica, mas
acho que ainda falta [as crianças e adolescentes].
A demanda por serviços de saúde mental, segundo os profissionais de
diferentes equipamentos sociais, vinha crescendo na rede de atendimento aos
meninos e às meninas em situação de rua. Resultando em uma reivindicação por
serviços específicos para essa problemática, por parte dos profissionais de serviços
para essa população, que consideravam que essas crianças e esses adolescentes
vinham adoecendo em proporções crescentes.
Passavam a dominar uma linguagem própria da saúde mental e a padronizar
as nomenclaturas, que apareciam nos discursos dos atores locais, como na fala do
coordenador do Grupo Criando Rede de Esperança e conselheiro do CMDCA (nesse
cargo durante o ano de 2006):
153
começa até pela própria concepção, porque não existe uma idéia clara do que seria
saúde mental para a rede, o que, aliás, é uma das reivindicações que a comissão
Criando Rede propõe para a saúde mental: que ela venha, em algum momento, trazer
para toda a rede quais são os tipos de transtornos. Porque falam transtorno, mas que
transtornos são esses? Transtorno familiar, transtorno de convivência, transtorno
mental, transtorno social? E dentro desses transtornos mentais, citado pela ciência, o
que são esses transtornos de comportamento? O que são os transtornos com nomes
que eu não domino, como esquizofrenia e outros? O que é cada um? Como
identificar cada um? Para onde encaminhar? Vai ter um lugar só para encaminhar?
Tem que ter um lugar específico e preparado para essas situações? Tudo isso precisa
de uma compreensão porque quando você fala em transtorno, dentro da rede, não
existe consenso. As pessoas não têm clareza sobre isso (Coordenador do Grupo
Criando Rede de Esperança em 2006).
A associação entre a vida nas ruas e a presença dos transtornos mentais era
apresentada nas retóricas e nos atos dos profissionais da rede. Pensando nas origens
causais de tal ligação, podemos ressaltar dois aspectos: primeiro, há uma articulação
entre a população em situação de rua e a loucura de base histórica, enraizada nas
ações higienistas que se dirigiam para os grupos improdutivos socialmente,
colocando tais grupos em um processo de institucionalização, geralmente em
manicômios distantes, para a “limpeza” da sociedade. Dava-se, dessa maneira, o
afastamento daqueles que perturbavam a ordem, como os pobres que habitavam as
ruas, criando um corte de classe social e marginalidade para a população presente nas
instituições de internação psiquiátrica (BASAGLIA, 1986). Posteriormente, é feita
uma crítica a essa ordem, fortemente expressa pelo movimento de reforma
psiquiátrica. Mas, mantém-se presente, até hoje, no imaginário social, uma idéia de
que aqueles que habitam as ruas são portadores de uma desordem mental, seja pela
incompreensão desse modo de vida pelo comportamento normativo dominante, seja
por atitudes “classificadas” como loucura.
Consonante com essa visão, em uma proposição de generalização e
classificação psíquica daqueles que estão nas ruas, DECLERCK (2001), em pesquisa
recente, debate a “síndrome de dessocialização” vivenciada pelos “sem-abrigo”,
caracterizando como uma especificidade médico-psiquiátrica, relatando as
“características patológicas” em torno dessa população.
Para além das homogeneizações, padronizações e estigmatizações de todos os
que habitam as ruas, existe a realidade da vivência do sofrimento psíquico por
154
alguns, uma minoria, que comumente não encontra acolhimento e atenção nos
equipamentos sociais.
Com esse complexo contexto e a vivência de experiências de alguns jovens
com essas demandas, houve uma incorporação de tal debate no discurso dos gestores
da política social da área da infância e juventude, o que pode ser interpretado como
um dos frutos das reivindicações dos técnicos em intervenção, tendo, como
conseqüência a problematização da necessidade da criação de serviços de saúde
mental que se dediquem ao acolhimento e tratamento específicos de crianças e
adolescentes.
Acho que hoje a gente tem tido casos bastante complexos com crianças e
adolescentes que têm um comprometimento na área da saúde. Isso a gente tem que
intensificar: fortalecer essa discussão com a Saúde Mental (Coordenadora Setorial
da Criança e do Adolescente da Secretaria Municipal de Cidadania, Trabalho,
Assistência e Inclusão Social, antiga Secretaria de Assistência Social).
Fato corroborado pela gestora da Saúde:
Essa população sempre precisa de um apoio da Saúde Mental, então eu acho que a
gente pode ter um aumento do número de crianças e adolescentes em situação de
rua, o que acaba gerando uma demanda maior, mas basicamente todos esses
adolescentes e crianças que estão em situação de rua, todos eles, precisam do apoio
da Saúde Mental (Coordenadora do Programa de Saúde da Criança e do Adolescente
da Secretaria Municipal de Saúde, e conselheira do CMDCA em 2005).
Um outro caso que tangenciou essa temática aconteceu com uma adolescente
– que tinha histórico de vida nas ruas e passagem pelas cidades de Jacareí, São Paulo
e Campinas – encaminhada para atendimento na rede após cumprir medida
socioeducativa, em São Paulo. A adolescente estava em acompanhamento em alguns
serviços desde seu retorno para Campinas, por um período superior a três meses,
quando o abrigo por ela responsável recebeu uma determinação judicial de
encaminhamento da adolescente para um abrigo especializado para portadores de
deficiência e transtornos mentais. Anexado ao seu processo, havia um diagnóstico
psiquiátrico de um profissional da Febem atestando deficiência mental moderada e
155
indicando abrigamento em serviço especializado, no momento da finalização do
cumprimento de sua medida (internação com privação de liberdade). Esse
procedimento, porém, não pôde ser efetivado por não terem encontrado vaga
disponível em abrigo com essa especificidade, no momento em que deixou a
unidade. Mais de três meses depois de sua saída da Febem tal vaga foi localizada na
cidade de São Paulo e a determinação foi expedida, no entanto os profissionais
responsáveis, naquele momento, por ela, em Campinas, não tinham conhecimento
dessas ações. Por discordarem do parecer médico, os técnicos solicitaram uma
audiência com o juiz e sugeriram sua intervenção, com o argumento de que não se
justificava a internação da adolescente em abrigo especializado, por ela não
apresentar o quadro descrito. O juiz solicitou outro parecer médico, que embasasse as
falas dos técnicos como requisito para a anulação da determinação expedida pela
Vara da Infância e Juventude paulistana. Encaminhou-se o caso e um novo laudo foi
feito, não tendo sido diagnosticada nenhuma deficiência, e a adolescente permaneceu
no município.
Esse caso, em contraposição ao movimento crescente de demandas por
serviços especializados em saúde, que descrevemos, representou uma ação na
direção contrária, a partir da intervenção de alguns profissionais, com o objetivo de
garantir a não institucionalização e a não padronização médica de problemas sociais
vivenciados por essa adolescente.
O processo de institucionalização, privação de liberdade e estigmatização de
um grupo, em função da sua doença, do local em que se encontra para tratá-la, ou de
outras circunstâncias que a levaram até o asilamento, são descritos em profundidade
por GOFFMAN (1974), que enfatiza os efeitos perversos e as dinâmicas de
construção de identidades nesse papel.
Deve-se, portanto, lançar um olhar crítico sobre as proposições de enlace
entre as questões sociais e de saúde, sem menosprezar o real sofrimento possível,
mas com o cuidado de não se “criar” predisposições, pré-requisitos e
predeterminações para o rótulo de “doente”, “louco” ou outro estigma. Quando se
trata da aproximação da temática da infância e juventude com a saúde mental, deve-
se atentar para não se produzir mais marcas, traços e olhares sociais estereotipados
156
que desvalorizem essa população, principalmente aqueles que já são embreados de
ações e abordagens de desrespeito e preconceitos. É necessário que se clarifique a
real demanda dos indivíduos para atenção e acolhimento do sofrimento psíquico.
Cíntia, por sua vez, encontrava-se também nesse preâmbulo, entre a
estigmatização e o real sofrimento psíquico, ocupando um lugar de diferença e
preconceito, explicitado na convivência com os meninos em situação de rua, seu grupo
de pares naquele momento, e também com alguns profissionais e serviços por onde
passou.
Em razão de ambos os fatores, a permanência de Cíntia nas instituições era
caracterizada por movimentos de idas e vindas, sem um enraizamento, acompanhada de
um trânsito pela rua, que ocorria com freqüência. Com saídas não autorizadas do abrigo,
ela ia para as ruas, quando visitava sua família, visitava profissionais de instituições por
onde tinha passado, e ainda permanecia, em alguns momentos, com outros grupos,
sendo mais freqüente junto aos moradores adultos em situação de rua do que com os
adolescentes, demonstrando sua frágil inserção com eles. Esse seu não pertencimento
ocasionava, ou era causado por, uma maior vulnerabilidade e alguns riscos que ela
submetia a si mesma. Eram comuns os episódios de brigas, seguidas de lesões físicas leves,
quando se envolvia com outros jovens, com adultos em situação de rua, ou com agentes
de intervenção na rua, como a polícia.
Uma das vulnerabilidades a que se submetia era em relação o sexo, elemento
sempre presente nos episódios de sua trajetória. Havia boatos de que tinha sofrido
agressão sexual, por parte de alguns adolescentes, no abrigo; tido relações sexuais
concedidas na casa; e utilizava o sexo nas ruas como elemento de troca, na busca de
comida, local para dormir e afeto. Cíntia não falava diretamente sobre esse tema, fazendo
referências vagas, em seu discurso sobre “um homem” que lhe concedia um local para
dormir; “um homem” que lhe dava regularmente comida quando nas ruas; “um homem”
que tinha um cachorro e deixava que ela brincasse com o animal; “um homem que era
bom” (sic). Apoiado nesses fatos, o serviço de saúde que fazia seu acompanhamento
administrava medicação anticoncepcional via venosa mensalmente na adolescente. Ela era
sempre informada sobre o procedimento e, em alguns momentos, impunha resistência,
157
dizendo “não gostar de injeção” (sic). A partir de um processo de convencimento feito
pelos profissionais, terminava aceitando a anticoncepção, com raras exceções, tendo sido
realizado esse procedimento até que ela completasse 18 anos.
Preocupados com esse movimento instável de permanência de Cíntia no abrigo e
os riscos que estava submetida quando permanecia na rua, o Conselho Tutelar interveio
com a proposição de realizar a transferência da adolescente para uma instituição mais
adequada para seu perfil. Ela permaneceu no abrigo AFAGAI durante 140 dias, com esses
eventos de entradas, saídas e retorno constante. Após a avaliação da inadequação da
situação, o C.T. a transferiu para uma casa provisória, a fim de aguardar um
encaminhamento para outro local.
Cíntia ficou nessa instituição, que se caracterizava como uma casa transitória
de passagem para a realização da abordagem e referenciamento de crianças e
adolescentes. Com a função primeira de retorno para a família, incluindo recâmbio
para o município de origem, quando proveniente de uma cidade outra que não
Campinas, buscava contatos da rede pessoal da criança ou do adolescente para sua
reacomodação. O tempo sugerido de permanência era de cinco dias, havendo uma
flexibilidade, a depender do caso. Não dispunham de uma gama diversificada de
atividades para sua população, na medida em que o tempo de permanência era curto.
Quando recebiam a população em situação de rua, realizavam, mais comumente, o
encaminhamento para abrigos, sendo mais freqüente a AFAGAI.
Havia um mês que Cíntia estava nessa casa provisória, quando teve uma crise, um
“surto”, segundo os técnicos locais, e foi encaminhada para o serviço de internação
psiquiátrica de um hospital geral. Submetida por mais uma vez a procedimentos de
contenção física e medicamentosa, ficou internada por uma semana, e o C.T. foi cobrado
sobre o encaminhamento da adolescente. O serviço de saúde solicitou uma reunião com
os profissionais envolvidos no caso, com o objetivo de debater o que fazer com Cíntia
após sua alta do hospital. Nessa ocasião, os conselheiros ventilaram a possibilidade de
pleitear uma vaga para a adolescente em outro município, local que dispunha de uma
instituição especializada para adolescentes com demanda psiquiátrica, mas ninguém
conhecia previamente. Alguns profissionais foram radicalmente contra a proposição,
158
problematizando a “carreira de doente mental” que se estava estabelecendo, ao longo da
história de Cíntia, e a institucionalização que poderia ser realizada com esse
encaminhamento. Por fim, após acordos com a mãe, decidiu-se pelo seu retorno para
casa, com acompanhamento domiciliar intensivo pelos profissionais de saúde. Ela
permaneceu algumas semanas em casa e, quando se recuperou fisicamente, retomou sua
circulação, naquela fase, entre a rua e a sua casa.
As fragilidades e sofrimentos de Cíntia, que encontravam efêmeras respostas
na rede de atendimento, levavam-na para a atenção em psiquiatria, nos momentos de
crise, quando conduzida para procedimentos extremos e marcantes, relacionados a
contenção, medicação e seus efeitos, os quais traziam, como conseqüência, o reforço
à sua identidade de diferença, doença e loucura. A interlocução entre a saúde mental
e a população infanto-juvenil apresenta uma demarcação, mesmo para aqueles com
algum grau de sofrimento psíquico, de grande e relevante volubilidade, demandando
ações e acompanhamento constantes para que a rede de serviço, criada para proteção
dos direitos dessa população e sua atenção, não se caracterize como uma passagem
para serviços de psiquiatria e dê “apenas” respostas medicamentosas.
Com sua trajetória, seus episódios e encaminhamentos recebidos pelos
diversos serviços, Cíntia questionava a equipe do equipamento de saúde, o CRAISA,
sobre o que fazer em seu caso, sobre qual o melhor modelo de atendimento, a
explicitação das limitações na atenção e também sobre qual seria a função daquele
local como estação de atendimento em saúde mental.
O CRAISA apresentava um histórico no município de Campinas de ser o
primeiro local, na rede de saúde, voltado para o atendimento de adolescentes.
Esse serviço começa com uma discussão entre pediatras, em 1986, para atender as
crianças a partir dos 12 anos de idade, porque não ficava para ninguém. Nesse
ambulatório que tinha no centro da cidade (...), chamava PAM e não tinha o SUS
ainda (...), era para crianças e funcionava das 7h às 19h. Tinham pediatras,
assistentes sociais, enfermeiros e um psicólogo. E aí um grupo de pediatras, junto
com o movimento na Sociedade Brasileira de Pediatria, que dizia que o pediatra
deveria continuar o atendimento e não deixar de atender a partir dos 12 anos; fez a
discussão e esses pediatras se capacitaram, foram para São Paulo e começaram a
abrir a agenda para atender alguns adolescentes, que já eram as crianças deles, mas
159
que, ao invés de dar alta, eles permaneciam com o atendimento. Até que a demanda
ficou grande demais e então se criou um serviço dentro do PAM, que se chamava
SAIDA: Serviço de Atenção Integral à Saúde do Adolescente, em 1988
(Coordenadora do CRAISA de 1994 a 2007).
Em 1995 o serviço desvinculou-se do Centro de Saúde (antigo Posto de
Assistência Médica – PAM) que o sediava e tornou-se um Centro de Referência,
categorizando-se como um serviço especializado na saúde de adolescentes. Passou,
desde então, a ser chamado de Centro de Referência de Atenção Integral à Saúde do
Adolescente – CRAISA.
Na sua primeira fase, o CRAISA fazia atendimento ambulatorial de
adolescentes vindos por demanda espontânea ou encaminhados pelas escolas, UBS e
ONGs. Realizava atendimentos individuais, relacionados à saúde clínica (incluindo
acompanhamento de adolescentes grávidas) e atendimentos em grupos, como grupo
de pais, adolescentes, discussão, prevenção, sexualidade, entre outros. Mantinha uma
parceria com o serviço Casa Amarela, da Secretaria Municipal de Assistência Social.
O Casa Amarela, como ficou conhecido no município:
foi um programa de apoio sócio-educativo em meio aberto, criado em 1993 e extinto
em 2001. Apresentava como objetivo atender crianças e adolescentes entre 07 e 17
anos e 11 meses, em situação de risco pessoal e social, na rua, na mendicância e/ou
no mercado informal, criando junto a essas crianças e adolescentes “alternativas de
vida, assegurando freqüência à escola e às atividades educativas que lhe permitam
orientação, proteção e apoio em seu próprio ambiente de vida” (VANGRELINO,
2004, p. 47).
O CRAISA, mediante essa parceria, atendia aos adolescentes que
freqüentavam esse equipamento, incluindo os meninos e as meninas em situação de
rua, como resposta às suas necessidades clínicas, mantendo o diálogo entre os
equipamentos.
O Casa Amarela, por sua vez, em 2000, passou por um período de
questionamento da metodologia e objetivos de seu trabalho, realizado pela sua
própria equipe e iniciou uma proposição de reformulação. Fez uma apresentação
160
oficial para a Secretaria de Assistência Social, em 2001. Segundo a psicóloga do
CRAISA, que havia composto essa equipe:
era um programa que assistia crianças no mercado informal, mas que tinha uma
assistência muito limitada, quase inexistente, na verdade, para as crianças e
adolescentes que já faziam da rua o seu espaço de sobrevivência, na verdade de
vivência mesmo, de morar na rua, de ficar na rua, de estar na rua, e não com essa
relação de trabalho, de exploração pelo trabalho. E o Casa Amarela tinha uma
atuação que era em vários pontos da comunidade, além dele ter um lugar central, ele
tinha outros braços também, que eram os trabalhos em comunidades. Em um
levantamento que a gente fez, uma das coisas que a gente percebeu foi que em
Campinas tem muitas ONG’s, um número considerável em algumas regiões (exceto
na sudoeste e na noroeste) e que tinham equipamentos da própria prefeitura, como os
núcleos e algumas entidades pontuais (...). E a gente tinha dificuldade de trabalhar
com os meninos que estavam no centro e com esses que estavam na comunidade. E
esses, que estavam na comunidade, a gente entendia, que poderiam, sim, ser crianças
e adolescentes assistidos pelas ONG’s. Nos bairros existiam ONG’s mais
estruturadas e que já tinham programas e projetos que já aconteciam há mais tempo,
então essa população poderia ser absorvida lá (...) E já eram meninos que não
freqüentavam mais o espaço da rua para subsistência, para vender balinha, que já
estavam na sua comunidade, mas não tinham acesso aos programas que eram da
própria comunidade. Então essa foi uma avaliação, na época, que a gente fez, e aí a
proposta dos educadores sociais, principalmente, era de atender a população dos
adolescentes e de crianças que estavam mesmo em situação de rua, morando na rua.
Diferente desses meninos que estavam na rua, mas estavam na comunidade, estavam
em um outro momento, e com isso podiam ser assistidos por outros equipamentos.
Essa história deu muita confusão, muita discussão com a equipe, com a coordenação,
com a Secretaria de Assistência Social e, a partir disso, surgiu a idéia de que a gente
pudesse compartilhar com outras secretarias essa atenção a essas crianças em
situação de rua (Psicóloga do CRAISA).
Com esse embate criado entre a Secretaria de Assistência Social, gestora do
projeto Casa Amarela e que defendia a manutenção da proposta original, e os
funcionários do equipamento, que diziam ser mais resolutivo trabalhar com um
grupo específico, sendo os escolhidos “meninos e meninas estruturados na rua”
(VANGRELINO, 2004, p. 50-1), ocorreram muitos movimentos que culminaram
com o fechamento do Projeto Casa Amarela. Nesse momento, a equipe local, com
exceção de três funcionárias (uma assistente social e duas educadoras), solicitou
formalmente uma transferência entre secretarias para o desenvolvimento da
proposição por eles apresentada. Essas discussões ganharam o noticiário da imprensa
local e criaram um desconforto interno na administração com um problema político
161
que precisava de encaminhamento rápido para que abalasse, o menos possível, a
imagem do governo recém-iniciado.
O fato ocorreu em 2001, início da nova gestão municipal na cidade. A
Secretaria de Saúde, na área de Saúde Mental, estava debatendo a implantação e o
aumento dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, inclusive o papel do
CRAISA e a proposição formal de que ele se estruturasse como um CAPS infantil
para adolescentes usuários de substâncias psicoativas (CAPS ad i)
4
. Nesse contexto,
a partir da solicitação de transferência da equipe do Projeto Casa Amarela, o então
secretário da Saúde propôs a assunção da equipe do Projeto Casa Amarela e sua
união com a equipe do CRAISA, para que se efetivasse assim o CAPS CRAISA
direcionado para o atendimento aos adolescentes usuários de substâncias psicoativas,
com especial atenção a meninos e meninas estruturados na rua. Dessa maneira, a
Secretaria de Saúde encaminhou a finalização do problema político instaurado e
assumiu a coordenação das ações no município dirigidas para esse grupo
populacional, que eram, até então, realizadas pela área de Assistência Social.
Teve uma conjunção política favorável e uma junção desses dois serviços. O
CRAISA, que já atendia adolescentes e que vinha, já há algum tempo, pelo que eu
ouvi e pelo que as pessoas me contaram, vivendo um questionamento sobre a
atenção que ofereciam aos adolescentes, querendo ampliar o seu atendimento, o
atendimento ambulatorial, para poder abrir mais para outros adolescentes que
também não tinham acesso ao serviço; e, então, acabou se criando essa idéia de
juntar o CRAISA e o Casa Amarela (Psicóloga do CRAISA e antiga psicóloga do
Projeto Casa Amarela).
Em 2002 a equipe do Projeto Casa Amarela foi transferida para a Secretaria
de Saúde e iniciou suas atividades no CRAISA. A nova equipe do CRAISA era
composta por quatro auxiliares de enfermagem, uma enfermeira, oito educadores
sociais (uma educadora exonerou-se do seu cargo ainda em 2002), quatro médicas
4
No bojo dessas discussões, a Secretaria de Saúde pensou na criação de um CAPS 24 horas para
essa população, que seria o CRAISA. Porém, foi avaliado que, devido à dificuldade do perfil dessa
população, seria melhor o não encaminhamento dessa proposição e a realização de uma parceria
com alguma instituição que já realizasse esse trabalho. Momento em que, a Secretaria de Saúde,
propôs, ao abrigo AFAGAI, a realização de um convênio direto com eles, para oferta de retaguarda
de leito para o CAPS-CRAISA, contudo tal convênio não se efetivou (conforme relatado na história de
João).
162
pediatras (sendo uma homeopata), uma médica pediatra coordenadora, uma médica
ginecologista, duas psicólogas, uma auxiliar administrativa e três auxiliares de
limpeza. Ainda em 2002 foram incorporadas à equipe uma assistente social, um
psiquiatra e uma terapeuta ocupacional. A caracterização do novo serviço foi
definida:
Somos um CAPS i AD II, o que significa estar inserido na rede de saúde mental do
SUS atuando em um modelo de Centro de Atenção Psico-Social (CAPS) para
crianças e adolescentes (i) em uso de substâncias psico-ativas (AD) com
funcionamento diurno nos dias úteis (II). É um serviço de saúde, aberto, de cuidados
diários. É a referência da Saúde no atendimento de crianças e adolescentes que
fazem da rua a sua moradia e utilizam substâncias psicoativas.
Norteados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, visamos promover:
resgate de auto-estima e o desenvolvimento de autonomia;
habilitação/reabilitação psicossocial;
construção da cidadania do adolescente, com estímulo ao protagonismo
juvenil.
Desenvolvemos atividades terapêuticas, de redução de danos, preventivas e de
educação social de forma individual e em grupo.
Em sua conformação atual, nosso CAPS atende a crianças e adolescentes
prioritariamente em uso nocivo de substâncias psico-ativas (SPAs), atendendo com
ênfase particular aos meninos e meninas estruturados nas ruas. Conceituamos
criança e adolescente estruturado na rua como aquele/a que faz das ruas seu espaço
de sobrevivência e existência, com laços familiares fragilizados ou inexistentes, e
que já possui uma rede de contatos que lhe permite manter-se, obtendo a retaguarda
necessária para satisfação de suas necessidades básicas na rua, independendo do
núcleo familiar de origem. (CRAISA, Serviço de atendimento a crianças e
adolescentes em uso de substâncias psico-ativas, 2004, Documento Interno, grifos no
original).
A Secretaria de Assistência Social, por sua vez, a partir do trabalho mantido
pelas três funcionárias que optaram permanecer, investiu no incentivo de novos
projetos dedicados ao público infanto-juvenil que se encontrava realizando atividades
de trabalho no mercado informal, para demarcar sua presença nesse setor. Nasceu,
assim, o projeto Convivência e Cidadania.
Na época, tinha duas oficinas que, segundo a avaliação da Secretaria, eram as
oficinas que davam certo, que era uma oficina no Parque Ecológico, de papel
163
reciclado e meio ambiente, com 30 adolescentes, e a outra no Bosque dos Jequitibás,
que o nome era “Guia júnior”, que fazia um trabalho de guiar as pessoas lá, também
ligada ao meio ambiente (...). Daí nós acabamos escrevendo, neste período, um
projeto para criar um serviço de atendimento aos meninos do trabalho infantil. E
essa discussão do trabalho infantil foi anterior ao PETI
5
, quando o PETI chegou em
Campinas a gente já fazia estas duas oficinas, eu e mais as duas educadoras que
ficamos neste trabalho. E nós ficamos atendendo no Parque Ecológico e no Bosque
dos Jequitibás, e a gente atendia ora lá, ora unia os dois, e, ao total, dava 60
adolescentes. Só que sem infra-estrutura nenhuma, porque os meninos não tinham
sala para fazer atividade, fazia atividade aberta no Bosque, não tinha banheiro para
usar, tinha que usar banheiro público do Bosque, e no Parque Ecológico era a mesma
coisa.
- E quem era o público?
- Eram os meninos que estavam mais ligados ao mercado informal (...). Isso foi em
meados de 2001 (...). Quando o pessoal passou para a Secretaria da Saúde, que não
quis mais ficar com a Secretaria da Assistência, foi que a Secretaria de Assistência
resolveu investir neste trabalho nosso, a gente já tinha escrito um projeto, feito por
mim e mais as duas educadoras. Nós escrevemos, foi para o Conselho, o Conselho
aprovou e aí que começou a se procurar um espaço para o atendimento, e, após
muita discussão a gente conseguiu que o serviço tivesse uma bolsa para a família, e
que nós iríamos atender, a partir de então, só o mercado informal e mendicância, só
o trabalho infantil. Adolescentes que não fossem do trabalho infantil poderiam ser
atendidos por outras OGs [Organizações Governamentais] e ONGs e a gente queria
um perfil de atendimento específico como o outro grupo tinha resolvido qual era o
perfil de atendimento deles [referência ao grupo de trabalhadores transferidos para a
Secretaria de Saúde que havia elegido o grupo de meninos estruturados/ moradores
das ruas, como grupo de trabalho]. Em 2003 inauguramos aqui [Convivência e
Cidadania] e consideram a inauguração do trabalho em 2003, mas, na verdade, foi
desde meados de 2001 que a gente já existia, precariamente naquelas condições, mas
já existia. E aqui a gente só ampliou, de 60 passamos a atender 90 adolescentes, nós
passamos a atender o PETI também. Então é essa a história do projeto (Antiga
assistente social do Projeto Casa Amarela e coordenadora do programa Convivência
e Cidadania).
Com essa situação específica, Campinas criou, dentre os serviços públicos
diretos, uma dicotomia no atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de
rua, na qual o público “estruturados” nas ruas era de “responsabilidade” da Secretaria
de Saúde e aqueles que se encontravam em situação de trabalho e com manutenção
5
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI): Programa Federal do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome que consiste na concessão de bolsa (apoio financeiro)
para famílias de crianças e adolescentes em situação de trabalho e o desenvolvimento de ações
socioeducativas e de convivência para crianças e adolescentes que estejam trabalhando, visando à
manutenção da criança/adolescente na escola e a articulação dos demais serviços da rede de
proteção básica e especial. Em Campinas o valor da bolsa era, em 2006, de R$ 180,00/família,
composto de recursos federais e municipais.
164
dos vínculos familiares, e às vezes escolar, era um grupo de intervenção da Secretaria
de Assistência Social.
Essa diferenciação entre os grupos juvenis, que circulam no espaço público,
foi objeto de estudos e publicações de trabalhos desenvolvidos na década de 1980.
RIZZINI e RIZZINI (1996) citam, como exemplo, quatro diferentes grupos: crianças
que trabalham nas ruas, mantendo os vínculos familiares, ou seja, moram com suas
famílias e vão às ruas pela necessidade de trabalhar; crianças que trabalham nas ruas
de forma independente e que iniciam uma incorporação da “cultura de rua”; crianças
de rua, que residem permanentemente nas ruas; e crianças com famílias nas ruas, as
quais passam o dia nas ruas acompanhadas de suas famílias (p. 84). O debate teórico
estabelecido nessa direção, na década de 1980, tinha o objetivo de distinguir os
diferentes grupos na rua e destacar sua não homogeneização e não padronização.
Do ponto de vista administrativo, todavia, não é comum a cisão das
intervenções no interior do serviço público, pois as ações se localizam comumente
sob a gerência da Assistência Social. Campinas construiu essa particularidade
decorrente de um problema político, onde a Saúde tensionou forças para ampliar seu
escopo de intervenção, partindo da área de saúde mental como proposição. Nesses
projetos em disputa, entre técnicos locais e gestores centrais, teve como
conseqüência o estabelecimento de uma situação implícita de embate entre as ações
realizadas pela Secretaria de Saúde e outras efetivadas pela Secretaria de Assistência
Social. Para alguns serviços governamentais e não-governamentais, tal embate se
refletia como um ponto de dificuldade para o estabelecimento e ações da rede.
Tem uma divergência, muito grande sobre o entendimento da saúde e o da
assistência [social], em algumas questões. E é onde a gente peca, não consegue ter...
As próprias Secretarias que fazem estes trabalhos não conseguem se entender
enquanto equipamentos públicos para atender as demandas existentes, dizem: “não é
responsabilidade minha, é do outro, não é responsabilidade minha, é daquele outro
ainda”. Então fica a coisa solta, vai se perdendo (Coordenadora técnica de uma ONG
da rede).
165
Nesse contexto de disputas, embates e mudanças, o CRAISA tinha o desafio
de integrar duas equipes, de equipamentos de natureza diferentes, e constituir um
novo serviço, desconhecido por todos e a ser elaborado.
Ai nós ficamos um ano discutindo a gestão de serviço, mudamos para um
outro espaço maior
6
que coubesse toda a equipe e as ações que a equipe iria
fazer. Bom, a gente teve esse tempo para se organizar enquanto equipe, uma equipe
única, e desconstruir ações de anos que eram feitas, desconstruir uma atenção
ambulatorial e desconstruir uma atenção assistencial (Coordenadora do CRAISA de
1994 a 2007).
Essa tarefa permaneceu por todo o percurso desse serviço e ocupou o lugar de
tema interno constante, passando por divergências de proposições, compreensões e
ações concretas no desenvolvimento do trabalho, permanecendo sem unidade até o
desmembramento da equipe, em 2006, e sua nova configuração como equipamento
de saúde para a população de adolescentes.
A gestão municipal seqüente da cidade, no período de 2005 a 2008, teve uma
diretriz de continuidade das ações realizadas. No final do ano de 2005, no entanto,
questionou formalmente o CRAISA sobre a estrutura utilizada para o trabalho, o
número de profissionais alocados e a produtividade realizada pelo serviço,
considerando um número reduzido de procedimentos e atendimentos quando
comparados ao número e qualificação dos profissionais. Nesse processo, a gestão
verificou que o equipamento não estava, ainda, registrado como CAPS no Ministério
da Saúde, embora recebesse verbas federais como um serviço dessa natureza, e havia
optado por não efetivar o registro até que se estabelecesse um consenso sobre sua
natureza e as metodologias a serem aplicadas. Desde esse momento, portanto, o
CRAISA deixou de responder no município como CAPS, mas permaneceu dentro da
área de saúde mental.
6
No final de 2003 o CRAISA, que até então estava funcionando em duas sedes: no próprio CRAISA
(CRAISA I) e no antigo prédio do Projeto Casa Amarela (CRAISA II), mudou-se para uma grande
casa, em uma região próxima ao centro da cidade, para garantir espaço físico para toda a equipe e
unificar, em um só local, as atividades realizadas. Foi feita, na ocasião, uma festa com os
adolescentes para sua inauguração.
166
No início de 2006, o protocolo de atendimento sofreu algumas mudanças, a
partir da proposição de ampliação do público-alvo, com o objetivo de abarcar um
grupo maior de adolescentes. Estabeleceu-se a discussão sobre os limites do trabalho
realizado advindos da restrição, até então, da atenção ao público usuário de
substâncias psicoativas e sua baixa adesão para acompanhamento nos serviços, fator
interpretado como o perfil desses “pacientes”; acrescido à característica de que a
população em situação de rua apresenta uma rotatividade grande em todos os
serviços.
Discutia-se a possibilidade de trabalhar com “vulnerabilidades” e, dessa
maneira, ampliar a atenção do CRAISA também para a população que não se
encontrava em situação de rua, mas estivesse em “risco” para os elementos
elencados, tais como o uso e abuso de substâncias psicoativas, o fracasso escolar, o
desenvolvimento de algum transtorno grave ou alguma patologia, a situação de rua, o
comportamento sexual de risco, a gravidez precoce, a violência doméstica e outros
(dados das entrevistas com técnicos locais).
Pretendia-se, ainda, que o serviço intensificasse e aprimorasse ações de apoio
matricial junto às Unidades Básicas de Saúde, para que elas realizassem o
atendimento desses adolescentes “vulneráveis” em seu território e apenas os casos
mais complexos fossem encaminhados para a unidade do CRAISA.
O apoio matricial foi uma metodologia de atenção na saúde básica
incentivada junto às ações do Programa de Saúde da Família, em Campinas, na
gestão de 2001-2004. Foi inspirada nas formulações de CAMPOS (1999) e visava à
oferta de um suporte especializado e técnico para as unidades com a finalidade de
contribuir para a instituição de novas formas de gestão nos serviços e a assunção da
sua população (ONOCKO CAMPOS, 2003).
O apoio matricial constitui um arranjo organizacional que visa outorgar suporte
técnico em áreas específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações
básicas de saúde para a população. Nesse arranjo, a equipe por ele responsável,
compartilha alguns casos com a equipe de saúde local (no caso, as equipes da
atenção básica responsáveis pelas famílias de um dado território). Esse
compartilhamento se produz em forma de co-responsabilização pelos casos, que
pode se efetivar através de discussões conjuntas de caso, intervenções conjuntas
167
junto às famílias e comunidades ou em atendimentos conjuntos. A responsabilização
compartilhada dos casos exclui a lógica do encaminhamento, pois visa aumentar a
capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe local. Assim, ao longo do
tempo e gradativamente, também estimula a interdisciplinaridade e a ampliação da
clínica na equipe. A ampliação da clínica significa o resgate e a valorização de
outras dimensões, que não somente a biológica e a dos sintomas, na análise singular
de cada caso. Assim, riscos
7
como os sociais e outros se incorporam à avaliação
clínica (BRASIL, 2003, p. 4).
O CRAISA foi incentivado a assumir as funções de apoio matricial, na área
da adolescência em “situação de vulnerabilidade”, com o intuito de passar seu
conhecimento e especialidade, adquirido por meio de muitas capacitações ofertadas
pela Secretaria de Saúde para sua equipe.
Esse caráter de “especialista”, adquirido pelo serviço, sucedeu-se pelo fato de
ter sido o primeiro local, no município, direcionado para a atenção aos adolescentes
usuários de substâncias psicoativas que não seguisse o modelo de internação, via
comunidade terapêutica, conforme se discutiu na história de João. O CRAISA
propunha, inicialmente no modelo de CAPS, posteriormente como centro de
especialidade, o trabalho ambulatorial, tendo como uma das diretrizes a proposição
da Redução de Danos como estratégia de abordagem a esse grupo.
A discussão do método de trabalho e a modalidade de atendimento, entre o
CAPS e o ambulatório, foram sempre dúvidas para a equipe, que contava com
poucas experiências no Brasil que pudessem ser interlocutoras de anseios surgidos
durante a prática de intervenção.
Era um serviço no modelo de Caps, dentro da saúde mental, o que implica em
participar, fazer grupos, grupos informativos, oficina terapêutica, o que já foi uma
7
Exemplos de situações de risco:
• Situações de exclusão social (pacientes egressos de hospital psiquiátrico, pessoas em prisão
domiciliar, população em situação de rua, idoso em situação de abandono, crianças e adolescentes
em situação de risco pessoal e social etc.);
• Transtornos mentais severos e persistentes (graves);
• Suicídios e tentativas de suicídio em adolescentes e adultos jovens;
• Violência intrafamiliar;
• Problemas clínicos relacionados ao uso e abuso de álcool e outras drogas;
• Abuso e dependência de benzodiazepínicos.
Fonte: Oficina de trabalho para discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental
na Atenção Básica. Brasília, março de 2001. (BRASIL, 2003, nota 2, p.4).
168
coisa mais ampliada, porque quando a gente começou não entendíamos direito o que
estava acontecendo e a gente veio para fazer atendimento clínico destes pacientes,
como atendimento clínico ou homeopático e fazer diagnóstico de patologias,
doenças sexualmente transmissíveis, uso [de substâncias psicoativas], dependências,
co-morbidades psiquiátricas, então este era o nosso trabalho. À medida que a gente
foi entendendo um pouquinho melhor esse trabalho [do Caps] foi sendo, um pouco,
ampliado e a gente passou a entender que a gente podia fazer grupos informativos
com os adolescentes, grupos de gestantes, o que a gente até já fazia no CRAISA
antigo, trazendo essa dinâmica para o usuário de substâncias psicoativas. Eu, como
médica, comecei inclusive a fazer as oficinas, uma oficina terapêutica de culinária, e
isso o médico não faz sozinho, mas eu fazia como uma técnica em culinária (...),
mas, além de mim, sempre teve outro profissional de saúde mental junto, ou TO
[terapeuta ocupacional] ou psicólogo, esta idéia que foi se fomentando (Médica do
CRAISA).
Para uma parte da equipe, a proposição do estabelecimento de espaços de
convivência, previstos na metodologia do CAPS, era um recurso interessante para o
trabalho com essa população, e assim criavam-se ofertas de atividades em grupo,
geralmente na modalidade de oficinas, com o intuito de realizar atividades de
convivência com finalidade terapêutica.
A convivência como instrumental de trabalho na saúde mental é
compreendida como um recurso para a aproximação, o vínculo e a realização de
processos terapêuticos, tendo sido uma estratégia de intervenção e criação de um
serviço para esse fim, na cidade de São Paulo, em 1990 (PMSP, 1992). Na
abordagem com crianças e adolescentes, a convivência é também compreendida
como possibilidade de intervenção que facilita o acesso ao universo infanto-juvenil e
a criação de locais de estar para esse público. Contudo, fazer do serviço um local de
convivência não é tarefa fácil e exige a criação de espaços com opções, a
disponibilidade de profissionais para a promoção desse ambiente, o convívio com o
barulho, com a agitação e, efetivamente, com os meninos e as meninas.
Por todos esses fatores, havia a resistência de uma parte da equipe, que
propunha a realização de uma agenda para os usuários, estabelecendo os momentos,
previamente marcados, que eles poderiam estar, trazendo a lógica ambulatorial
para a proposição do CAPS. Porém, o reconhecimento do tempo e a organização de
uma agenda preestabelecida sobre ele não são atividades freqüentes para quem está
169
na rua como espaço de vivência, local em que o improviso e o momento são aparatos
predominantes.
Assim, quando a Secretaria de Saúde interveio no CRAISA, propondo sua
modificação de caracterização, não encontrou resistência por parte da equipe, que era
desarticulada e tinha constantes embates internos.
No meu entendimento, o que eu entendo, é que não funciona Caps para adolescente,
a não ser que ele seja muito comprometido. Que ele seja efetivamente um paciente
psiquiátrico, com as suas dificuldades. Se não, não funciona, o adolescente não fica
num único espaço, é dele, do lado saudável dele não estar num espaço só, circular, e
ele merece estar numa escola, num espaço de lazer, na família, então a gente não
entende que para esses adolescentes que a gente vem atendendo precisamos
funcionar como um Caps. Por que o Caps? Porque o Caps demanda atendimento
intensivo, de passar o dia inteiro na unidade e esses meninos não precisam de tanta
tutela assim. Eles precisam de recursos para estar em outros lugares. Eles precisam
de cuidado da saúde, mas o grande cuidado que eles precisam não é da saúde, são
poucos que precisariam de uma atenção intensiva da saúde, são poucos, o resto não
precisa de um equipamento desse. Pode até ter, mas tem que ser um equipamento
muito menor, porque vai ter um número menor de adolescentes para fazer esse
atendimento. Hoje a gente está entendendo que precisa de um equipamento que
pense sobre o adolescente no município e que atenda esses adolescentes de mais
risco, mas que atenda em parcerias, que passe pelo olhar do CRAISA, que deve ser
uma ponte, onde ele fica por um período e ele volta para o espaço dele, para a
comunidade dele, num tempo possível. Ou ele vai ter um outro espaço, uma outra
comunidade, mas não que ele tenha que ficar até os 18 anos no CRAISA. A gente
não está vendo esse equipamento de saúde como um abrigo, como abrigar-se até 18
anos. Tem uma mistura de coisas, de leituras. Num primeiro momento parece que o
CRAISA virou um Abrigão diurno. Então a gente precisa entender isso, o que é
demanda de atendimento de saúde intensiva? Atendimento de Saúde Mental
Intensiva? Como é isso? Porque com grande parte deles você faz esse atendimento
porque não tem outro equipamento para ele estar, e isso não é correto, você
institucionaliza o adolescente, e isso é um absurdo (Coordenadora do CRAISA de
1994 a 2007).
A proposição de apropriação de um serviço como um espaço de convivência
não deve caracterizá-lo como único local de permanência para sua população, mas
sim como uma das funções que ele possa desempenhar e integrar à sua atividade de
núcleo, no âmbito da saúde, educação, cultura ou outra área.
Nessa discussão, em março de 2006, a Secretaria de Saúde, pela assessoria
em Saúde Mental, determinou a transferência dos educadores sociais para Centros de
170
Convivência e/ou Unidades Básicas de Saúde das diferentes regiões da cidade, com a
proposição de que eles realizassem atividades no território, de atenção à população
juvenil, e fizessem o trabalho de encaminhamento, quando necessário, de
adolescentes para o CRAISA. Desde então a equipe deixou de contar com os
educadores sociais e passou a repensar sua função.
Posteriormente, ainda naquele ano, a Secretaria decretou estado de
intervenção na unidade e, em 2007, a coordenadora foi afastada do cargo e
transferida para outro local, ficando o serviço sob gerência direta da Secretaria de
Saúde. Durante esse processo, outros profissionais saíram do equipamento,
notoriamente a equipe médica, que foi ocupar outros cargos vagos na atenção básica.
O projeto foi reelaborado e a diretriz central estava sobre a realização de atividades
de apoio matricial nas cinco regiões da cidade, com enfoque na saúde mental, e o
atendimento na unidade para adolescentes em situação de “vulnerabilidade social”,
incluindo meninos e meninas em situação de rua. Foram contratados psicólogos e
terapeutas ocupacionais para o novo trabalho e, em 2008, a nova equipe foi composta
pelas novas contratações e por alguns profissionais que permaneceram no serviço.
Todos os movimentos de idas e vindas desse equipamento social indicavam a
dúvida sobre a função de um serviço de saúde – que, com o tempo, caracterizou-se
como um serviço de saúde mental – para o atendimento de adolescentes e jovens,
entre eles meninos e meninas em situação de rua. Colocava-se a questão sobre que
natureza de ações realizar e se haveria um papel para a saúde mental com essa
população. Como acolher o sofrimento, sem estigmatizá-lo como doença mental?
O CRAISA assumia uma importante função de referência para a população
que atendia e, embora pequena numericamente e com uma adesão flutuante,
tangenciava seus percursos de vida, com momentos de mais e outros de menos
intensidade. A referência ao serviço era constante pelos meninos nas ruas, tendo sido
mais presente no início da sua atenção e menos freqüente no momento em que estava
em mudança. Nos grupos de atividades que realizamos, como parte do campo deste
trabalho, quando perguntamos sobre as demandas políticas e as proposições de
serviços necessários para o atendimento ao jovem em Campinas, tivemos como
resposta, em uma instituição diferente do CRAISA:
171
Figura 21 – Cartaz do grupo de atividades
Legenda:
5 Top para Melhoria de Campinas
1) Mais infra-estrutura na favela
Melhoria de luz e água para favelas, asfalto e esgoto.
2) Melhorar o ensino escolar e as escolas
Um ensino mais dinâmico.
3) Ter um Craisa em cada região de Campinas ou coisa similar.
Para melhor atender as pessoas que mais precisam.
4) Mais estrutura para qualquer tipo de esporte.
Com um grande investimento, com skate e patins.
5) Palestras com dinâmicas nos bairros
Grandes palestras e dinâmicas falando sobre drogas, DST e AIDS.
172
Mesmo com a necessária crítica e atividades de reestruturação e
aprimoramento do trabalho, realizado pela gestão central, o serviço ocupava ainda
um lugar de referência para a população usuária; sendo levantado por um adolescente
que esse modelo poderia ser implementado em outras regiões da cidade.
O CRAISA introduziu na rede da infância e da juventude a discussão sobre a
saúde mental e os métodos advindos dela como forma de acolhimento e “tratamento”
para essa população, que era recebida no serviço pelos seus sofrimentos e pelo uso e
abuso de substâncias psicoativas. Para tanto, foram traçadas suspeitas de
diagnósticos, sempre considerando a inadequação de fechamento de patologias para
essa população; iniciou-se um debate clínico sobre alguns casos; aprofundou-se o
atendimento psicoterápico individual para aqueles que aderiram à proposta; foi
introduzida a medicação psiquiátrica como elemento para contenção de fissuras e
sintomas variados, vivenciados a partir do uso de substâncias psicoativas; iniciou-se
o debate em torno das co-morbidades psiquiátricas; entre outros aspectos que não
estavam presentes, anteriormente ao trabalho desse serviço, nos equipamentos –
assistenciais, educacionais e culturais – que intervinham com essa população.
A palavra co-morbidade foi um termo incorporado ao vocabulário dos
profissionais da rede e passou a ser utilizado como agente explicativo de diferentes
situações. No campo da saúde, as co-morbidades são entendidas como a ação de duas
condições, ou o conjunto de duas (ou mais) situações, que se inter-relacionam e agem
conjuntamente, desenvolvendo duas patologias. A partir das intervenções e
discussões levantadas pelo CRAISA, introduziu-se a questão de alguns adolescentes
apresentarem sintomas de doenças psiquiátricas, ou efetivamente alguma doença,
advindas do uso abusivo de substâncias psicoativas.
O CRAISA, por essa vertente de trabalho, levantava a necessidade de instalar,
na rede de saúde, um local para internação provisória de adolescentes, que
apresentassem a demanda por serviços de desintoxicação, pelo uso de drogas, e/ou
crises que exigissem manejo psiquiátrico.
173
A rede não contava, e ainda não conta, com nenhum serviço específico para
esse fim, sendo o recurso mais próximo a emergência pediátrica do pronto-socorro
geral, porém esses equipamentos, disponíveis na cidade, afirmavam não ter estrutura
e alegavam não ser qualificados para o atendimento desse tipo de demanda.
Em alguns casos, foi feita a internação de adolescentes no NADeQ – Núcleo
de Atenção à Dependência Química, do Serviço de Saúde Cândido Ferreira,
equipamento, entre outros, da saúde mental do município, direcionado à atenção
intensiva para usuários de álcool e outras drogas.
É uma unidade do Cândido Ferreira que oferece atenção a pessoas que apresentam
transtornos relacionados ao consumo de álcool e/ou outros tipos de drogas, por
abuso e dependência. Dispõe de duas modalidades de tratamento: Atenção Integral
(Internação) e Ambulatório. Em relação ao processo de internação, a unidade opera
24 horas, oferecendo 25 vagas, com média de permanência em torno de 15 a 20 dias.
As internações somente acontecem por meio de encaminhamentos de pronto-
socorros, centros de saúde, CAPS, ambulatórios, do próprio Cândido Ferreira e do
CRIAD (Centro de Referência e Informação em Alcoolismo e Drogas). A regulação
das vagas é realizada pela Central Municipal de Vagas (UAC) (SSCF, 2008b).
Assim como o Núcleo de Atenção à Crise (NAC), o NADeQ internou alguns
adolescentes por determinação judicial, “o que torna a construção do vínculo sempre
difícil” (coordenadora do serviço), e fez o acompanhamento de outros jovens a partir
da negociação direta do CRAISA para obtenção da vaga.
O NADeQ presta assistência a pessoas com idade igual ou superior a 18 anos. No
entanto, como o município não apresenta uma Política de Atenção aos Adolescentes,
a faixa etária é flexibilizada para 15 anos em casos que determinam internação. A
clientela apresenta transtornos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas,
em caráter de abuso ou dependência (Coordenadora do NADeQ)
8
.
Os adolescentes permaneciam em contato direto com os adultos em estado
crônico, usuários de álcool e outras drogas, gerando o questionamento constante
8
Entrevista concedida por escrito, pela coordenadora do serviço, como resposta à solicitação formal
protocolada na instituição.
174
sobre a inadequação daquele serviço para esse atendimento. Um jovem, contando
sobre sua experiência, dizia:
Credo, eu fiquei me sentindo um louco naquele lugar. Tinha aqueles velhos que até
babavam, que fumam cigarro apagado. Eu não volto mais para lá de jeito nenhum,
nem se tiver muito ruim (Adolescente de 17 anos, Notas de Caderno de Campo).
O NADeQ justificava sua contribuição com essa população como:
O respaldo que o NADeQ pode oferecer a esta população é pequeno, uma vez que
atende, prioritariamente, adultos, e entendemos a necessidade de respeitar o que está
preconizado no ECA. Este espaço, por vezes, é disponibilizado dentro dos projetos
terapêuticos desta clientela como forma de preservação da integridade física e busca
estender, construir, ampliar ou co-responsabilizar a Rede de Atenção frente às
necessidades apresentadas (Coordenadora do NADeQ).
Pela demanda crescente de internação e pelas experiências no NADeQ, a
pauta “internação” integrou o Grupo Criando Rede de Esperança, momento em que
se convidaram representantes do NADeQ, assim como profissionais da pediatria do
hospital geral municipal, para contribuir com a discussão sobre o tema e sugerir
possíveis encaminhamentos a serem realizados pela Secretaria de Saúde. Os
encaminhamentos foram:
1) Proposto a criação de um protocolo, com definição de responsabilizações e locais
de atendimento, para os casos de internação voluntária e compulsória, para
adolescentes acometidos por uso abusivo de substâncias psicoativas e/ou sofrimento
mental.
2) Definições:
- Internação: risco eminente de vida para a própria pessoa ou para outros;
- Compulsório: independente da vontade da pessoa, por se avaliar o risco presente;
- Protocolo: seqüência de procedimentos com declaração de intenções e
responsabilização.
3) Discussão:
- Analisar a internação compulsória enquanto um recurso, e não como última
possibilidade de intervenção, assinalando a necessidade de avaliação cuidadosa para
tal procedimento, pois em alguns casos a internação é necessária enquanto um dos
primeiros recursos tendo em vista os riscos presentes.
175
- Família: necessário responsabilização da família, porém sem culpabilização da
mesma, necessário avaliar se há a demanda de intervenção também com o grupo
familiar.
- O poder das instituições em “escolher” quem atender, tem prejudicado os
adolescentes, principalmente referente as instituições abrigos que atuam, na sua
maioria, enquanto instituições totais.
- Local para encaminhamento: há a composição da rede para a saúde mental para o
atendimento de adultos (NAC, NADeQ), porém não há referência para adolescentes.
Encaminhamento: Criação de um subgrupo para a elaboração do protocolo de
internação voluntária e compulsória para adolescentes acometidos por uso abusivo
de substâncias psicoativas e/ou sofrimento mental, e apresentação futura para a
rede
9
.
Fomentou-se o tema em todas as instituições do Grupo e, como conseqüência,
a circulação de uma demanda e de um vocabulário. Como produto final, em setembro
de 2004, o grupo referendou um documento e o entregou para a Secretaria de Saúde,
solicitando providências. Em resumo, dizia:
Entendemos internação na concepção do tratamento por meio de uma intervenção
multidisciplinar, de controle da crise desencadeada por agravos de sua saúde, com
ações terapêuticas em regime hospitalar, que objetivam um entendimento da
problemática apresentada (diagnóstico da criança / adolescente e de suas famílias).
São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica, segundo a lei federal
n.º 10.216 (06/04/2001) que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de problemas mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental:
I – Internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II – Internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a
pedido de terceiro; e
III – Internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
As crianças e adolescentes em situação de rua podem necessitar de internação nas
seguintes situações: doenças orgânicas, intoxicações agudas e como dispositivo no
tratamento por uso abusivo de substâncias psicoativas, com grave prejuízo de sua
integridade bio-psico-social.
Entendemos como “dispositivos” de tratamento toda a ação terapêutica com a
intenção de propiciar condições a essa criança e adolescente de, num primeiro
9
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Ata da reunião realizada
em 08 jun 2004. 2004.
176
momento, protegê-lo de uma situação de alto risco e, num segundo momento, ajudá-
lo a reconhecer e utilizar seus próprios recursos para transformação dessa situação
de sofrimento.
O ECA estabelece que a internação deva ser cumprida em local exclusivo para
crianças e adolescentes, sem que haja violação de seus direitos.
(...)
Quando for um dispositivo do tratamento deverá ser encaminhada pela Unidade de
Saúde onde a criança ou adolescente está vinculada. Esta internação deve se
constituir num dos momentos do Projeto Terapêutico Singular, sendo que a unidade
de referência responsabilizar-se-á, juntamente com a Unidade de Internação, pelo
acompanhamento da criança/adolescente durante seu período de internação.
(...)
Concluindo, podemos dizer que a construção do PTS [Projeto Terapêutico Singular],
em conjunto com a criança e/ou adolescente, é o momento formal de uma relação
afetiva, momento de pacto, de compartilhar as certezas e angústias, de conhecer e se
deixar conhecer. Algumas condições são fundamentais para estabelecer esse
momento, sendo elas: diagnóstico, idade, agudeza ou cronicidade, história da vida,
histórico da enfermidade, dentre outros. Essas condições são consideradas variáveis
relevantes. Outras variáveis, também importantes, embora geralmente deixadas à
sombra: recursos individuais da criança e/ou adolescente (vulnerabilidade e
resiliência), recursos do contexto do paciente (macrossocial, microssocial e
familiar), recursos do serviço de atenção etc.
Apontamos aqui, na discussão específica da internação de crianças e adolescentes
em necessidades de saúde, uma outra possibilidade a ser construída: a criação de um
CAPS i III (Centro de Atenção Psicossocial Infantil), de acordo com o Modelo de
Saúde Mental do Município de Campinas. Este serviço contaria com atendimento
integral, durante 24h, e com leitos para internação. A implantação de tal ação
certamente irá qualificar a assistência prestada possibilitando que o usuário seja
atendido na integralidade que o seu caso requeira. Tendo atenção desde o momento
de crise, quando necessita de uma internação, até ao acompanhamento de seu
processo de reabilitação e reinserção social e, eventualmente, quando da necessidade
de abrigamento. Esta proposta, que será encaminhada pela SMS, está em
consonância com as diretrizes do Ministério da Saúde que prevê a substituição dos
leitos psiquiátricos pela assistência integral prestada nos Caps III, incluindo a
possibilidade de utilização de leitos. Essa proposta poderá se concretizar em médio
prazo
10
.
Não houve encaminhamentos concretos por parte da gestão municipal de
saúde para a efetivação de tais propostas, e esse tema tornou-se recorrente,
aparecendo como pauta das reuniões até 2006 (quando paramos de acompanhá-las
pessoalmente). Falava-se da reivindicação e cobrança à demanda de internação para
esse público. Para o coordenador do Grupo Criando Rede de Esperança, em 2006:
10
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Internação de crianças e
adolescentes em situação de rua em Serviços de Saúde. 2004. 5p. (grifos no orginal).
177
E tem a questão da problemática do local do atendimento para o adolescente com
problemas de saúde mental. Eu li em relatórios e atas dos arquivos do Criando Rede
de Esperança que é uma questão antiga essa discussão e nada foi resolvido e parece
que o governo não está muito preocupado com isso (Coordenador do Criando Rede
de Esperança em 2006).
Na avaliação da primeira coordenadora do Grupo, a questão da “internação”:
Este é um problema dentro da Secretaria de Saúde, que não é só da internação dos
meninos em situação de rua que fazem uso abusivo de droga, um problema da
Secretaria de Saúde que não tem esse espaço de internação para qualquer criança e
adolescente que faz esse uso abusivo. E que continua, ainda, sendo uma coisa não
resolvida. A gente fez seminário, discutiu, trazendo o Criando Rede. E é uma coisa
que é da Secretaria de Saúde, é isso que eu não me conformo, porque ela tinha
condição de criar uma alternativa. No meu olhar, eu acho que a gente tinha essa
condição enquanto estava lá, enquanto governo, mas foi incapaz. Uma saída, que a
gente falou, seria instrumentalizar o [Serviço de Saúde] Cândido [Ferreira], inclusive
em termo de repasse financeiro, para ele assumir isso; ou nos Hospitais Gerais, como
o Mário Gatti, que é um Hospital Municipal, assumir; mas é uma mudança muito
grande para a cultura instituída. Se você falar isso para dentro do Hospital Mário
Gatti dá um arrepio total. Falar “vamos criar, pelo menos dois leitos, para as crianças
e adolescentes que fazem uso abusivo de substâncias, que, em algum determinado
momento, precisem”. É uma mudança estrutural. (...) mas, com certeza, teria que ter,
e é da governabilidade da Secretaria de Saúde e da capacidade dela e ela tem um
acúmulo de conhecimento na área de saúde mental que tem condições, já, de
construir isso. Por isso que eu fiquei inconformada, chateada, de sair sem isso ter
sido efetivado. E a gente fez proposta, fez proposta junto com a Secretaria, junto
com os técnicos da saúde mental, mas não conseguiu efetivar, no final. A gente
poderia ter conseguido (Coordenadora do Criando Rede de Esperança e Assessora
do Programa de Saúde da Área da Criança e do Adolescente, de 2002 a 2005).
Todo esse debate fomentado, acrescido às reais condições dos adolescentes
que passavam pelos serviços da rede, os quais mostravam cada vez mais
complexidade nas suas situações vivenciadas; consolidou a associação entre uso de
drogas, saúde mental e co-morbidades psíquicas. A incorporação da internação como
método de tratamento e como contenção de comportamentos, interpretados como
sintomáticos de patologias psiquiátricas, estava fortemente presente nos discursos
dos técnicos da rede de atenção à infância e juventude nos diferentes níveis, dos
gestores aos interventores locais. O tema foi claramente mencionado quando
178
conversamos com os profissionais da rede de atendimento, na ocasião do trabalho de
campo. Perguntamos sobre as lacunas da rede e os serviços faltantes ou deficientes,
que se faziam necessários para atenção a essa população, e obtivemos, por 50% dos
entrevistados, a referência à necessidade de criação e implementação de uma unidade
de internação médico-psiquiátrica, para desintoxicação pelo uso de drogas,
acolhimento das sintomatologias psiquiátricas e atenção às co-morbidades. Chamou
a atenção esse tema ter sido levantado de forma espontânea:
a gente vê que é muito difícil, no nosso caso, se tiver um problema de internação
para adolescente, não existe [para onde encaminhar]! Você tem que bater em toda
porta, só tem um serviço que é de internação [NADeQ], e ele é para adultos, as
pessoas não querem receber adolescentes, principalmente porque muitos têm
transtorno de conduta, o que é difícil; então essa é uma dificuldade, a parte de
internação (Educadora de um serviço da rede).
Este é um dos problemas da rede: não tem estrutura, não tem um lugar psiquiátrico,
para você fazer uma internação psiquiátrica para um adolescente ou uma criança.
Digamos que não esteja em discussão a indicação, porque aqui há controvérsias em
relação às indicações de internação. E eu não estou falando que todos os casos sejam
de internação, mas digamos que haja um consenso para a internação, em um
determinado caso, ainda assim não tem onde internar, não tem abrigo onde você
consiga fazer um tratamento e que o menino não tenha a possibilidade de fugir. Não
tem um lugar, uma condição para esses meninos, depois, voltarem e terem a
continência da família (Médica do CRAISA).
A fala da médica do serviço de saúde aborda o questionamento sobre a
indicação da internação. Um jovem que faça uso de substâncias psicoativas precisa
de cuidados intensivos em um serviço de internação? Essa questão circundava a
discussão sobre a forma de intervenção, na rede, para essa população, nos momentos
em que os jovens solicitavam, diretamente, ajuda nesse ponto, ou, em outros
momentos, quando os profissionais avaliavam a necessidade de intervenção, mesmo
sem a demanda do sujeito, trazendo a possibilidade de contenção compulsória,
embasado no discurso em prol da vida, embora esse formato de intervenção
encontrasse, sempre, vozes contrárias, entre seus atores.
179
Uma coisa que a gente sente aqui, enquanto Conselho, é a questão de um tratamento
compulsório, porque a gente vê alguns adolescentes num nível de dependência tão
forte, que eles não querem se tratar, eles não querem nada, e eles estão morrendo,
morrendo, literalmente morrendo! Aqueles que não morrem, quando fazem 12 anos
estão em um nível de dependência tão grande, que eles começam a infracionar e o
juiz se depara com aquela criança, apesar da idade de um adolescente é praticamente
uma criança, porque a grande maioria nem se desenvolveu direito, e ele acaba
mandando para a internação [privação de liberdade, Febem] para salvar a vida do
menino. Nós temos vários casos que o juiz mandou para internação porque não tinha
onde colocar um menino de 12 anos totalmente dependente. Se você manda para o
que nós temos hoje ele não vai ficar e a gente vê que acabam indo para a Febem, vão
para lá, entre aspas, se tratar, porque lá não usa [droga]. Você chega lá ele está
gordo, está com outra aparência, está com outra fala, mas foi uma coisa desumana.
Mas a hora que ele sair de lá vai usar, porque é o que a gente tem visto. Os que
saem, quando saem, vão usar. Então a gente precisa desse tratamento compulsório,
eu tenho uma preocupação de como funcionaria isso, mas seria necessário, acho que
tem um momento que seria necessário, teria que ser uma coisa bem planejada, mas
faz falta hoje no município, porque a gente simplesmente vai atender esses meninos
quando eles saírem da Febem, para mim já passou da hora. Então o único
tratamento, de fato, que eles recebem é quando eles vão para a Febem (Conselheira
Tutelar).
O discurso da conselheira tutelar, que, pela sua função, realiza a defesa dos
direitos das crianças e dos adolescentes do município, é extremamente preocupante,
por indicar a privação de liberdade – medida prevista em lei como penalidade pela
realização de uma infração, com finalidade educativa –, como uma alternativa de
“tratamento” para o uso abusivo de substâncias psicoativas que, na avaliação dela, é
realizada por essa população em doses mortais. Reforça a postura de implementação
de ações compulsórias e de contenção, que encontra resistência de alguns
profissionais, mas também é consoante com outros.
[É necessária] Uma Psiquiatria Pediátrica para estes meninos que estão começando
na questão do uso de drogas, quando você se depara com uma necessidade dessa,
você interna os meninos na psiquiatria de hospitais para adultos, juntos. E aí eles
assumem toda a somatização, toda a patologia daqueles doentes mentais que estão lá
na psiquiatria, que é a única forma que tem para conter. Então falta isso, só que
quando você leva isso para uma discussão como política pública, a Saúde diz que
não é dela, a Assistência diz que não é dela, aí você pergunta: “e de quem é, então?
É da rede privada?” (Coordenadora técnica de uma ONG da rede).
180
A experiência local de internação dos adolescentes com a população adulta
mostrou aspectos negativos, entre eles, a apreensão por parte desse público de
características pertinentes aos pacientes psiquiátricos adultos, conforme destacou a
técnica. Esses fatores fortaleceram a argumentação da inexistência de um serviço de
referência para essa população que pudesse dar um acolhimento para as situações de
sofrimento vivenciadas pelos adolescentes e ofertar um apoio aos técnicos sociais
que os acompanhavam. Os episódios de vida que ocorreram e tangenciavam o
cotidiano de intervenção dos diferentes serviços fomentavam essa demanda.
[É necessário um] Ambulatório emergencial, pontual, a continuidade do
acompanhamento, do tratamento para o adolescente, porque para o adulto a gente
tem muita coisa, mas para o adolescente você não encontra. Ou você vai bater no
pronto-socorro da Unicamp, e fica horas com esse menino lá, ou você não vai
conseguir um encaminhamento, um atendimento, um exame médico que realmente
cuide. Ou você manda ele para a unidade de internação [Febem], como casos que eu
já atendi, só estando dentro da Febem para você conseguir alguma avaliação, porque
ninguém quer esse menino, e quando você chega na casa dele, na visita domiciliar,
ele está pendurado numa corda tentando se matar, e aí? Difícil! E as pessoas se
negam a atender, e não querem saber, e não é meu, é do outro, do outro, do outro, do
outro... Eu acho que a saúde é um dos aspectos que mais precisa ser melhorado, tem
sido bem difícil (Coordenadora do serviço de atendimento para adolescentes em
Medida de Liberdade Assistida).
Existe um quadro real de complexidade de situações que se concretizavam
como demandas para os serviços. São situações de sofrimentos que questionavam,
intensamente, os serviços e seus profissionais sobre respostas adequadas que
deveriam ser oferecidas. Como exemplos, a hipótese de suicídio, relatada na fala da
técnica; episódios de violência presenciados por profissionais, contra os próprios
adolescentes ou contra o espaço físico de algumas instituições; momentos
depressivos, vivenciadas por alguns meninos e, notoriamente, pelas meninas; sinais
de hiperatividade, apresentados, principalmente, por adolescentes mais jovens e
crianças; entre outras muitas circunstâncias concretas.
Esses episódios acometiam um pequeno grupo. Histórias como a de Cíntia,
que se interseccionava diretamente com a saúde mental, eram numericamente
inexpressivas, porém apresentavam sofrimentos reais e precisavam ser respondidos.
181
Alguns casos estavam no que se nomeou, a partir do vocabulário da área da saúde, de
co-morbidades e, por conseguinte, das características que eram conseqüência do uso
abusivo de substâncias psicoativas. Ainda assim, esse conjunto representava uma
minoria dos casos. Entretanto, a expressividade do sofrimento vivenciado, assim
como a precariedade das respostas encontradas, fazia com que os casos se tornassem
emblemáticos e alavancas para o discurso repetido e generalizado da necessidade de
atenção em saúde mental para a população infanto-juvenil.
Para os profissionais do serviço de saúde, tratava-se de uma população em
situação “grave”, advinda da falta de ações preventivas.
a gente ficou com paciente em caso “grave”, entre aspas, a gente acabou fechando de
tal jeito que a gente só ficou com aquele que, praticamente, como a gente chama na
medicina, o paciente terminal, aquele paciente que já não tem muito recurso; (...) a
gente deixou de atingir o paciente que talvez tivesse uma oportunidade terapêutica
maior, para ficar com estes pacientes que você conhece, que já estão na prostituição,
já estão na dependência, no ato infracional muito grave e que as possibilidades de
tratamento são muito restritas (Médica do CRAISA).
E a gente só chega no final e, às vezes, é muito tarde, é o fim da linha, tem que ter
ações preventivas, para não acontecer. Aqui nós estamos cuidando do paciente
quase, não vou falar isso, mas é o fim da linha que a gente está cuidando, teriam que
ser feitas ações antes e não foram feitas, muitos dos meninos que estão aqui, agora,
já passaram por diversas instituições e ninguém deu conta (Educadora de um serviço
da rede).
Outro caso emblemático – na conjunção entre cuidados em situação de crise,
saúde mental, abuso de substâncias psicoativas e intervenção compulsória – deu-se
quando uma ONG, de cunho social, solicitou formalmente à Vara da Infância e
Juventude do município, com respaldo do Conselho Tutelar, a internação de duas
crianças, uma com 10 e outra com 11 anos, para sua contenção, devido ao abuso de
substâncias psicoativas, situações de violência e risco de morte que corriam. As
crianças foram internadas na ala de psiquiatria de um hospital geral, por
determinação judicial, e foram acompanhadas pelos profissionais da instituição
requisitante. A profissional que acompanhou o caso relata:
182
Nós tivemos, há pouco tempo atrás, um quadro que foi muito importante, de duas
crianças, que não têm 11 anos ainda, de duas crianças que estavam praticamente
morrendo na rua devido ao constante uso de algum tipo de drogas, o que aparecia
eles usavam, e passaram a ficar muito agressivos. Aí entramos, através do Conselho,
com uma medida especial na Vara da Infância para a internação destes dois
adolescentes. Foram feitos vários levantamentos para conseguir um local para deixar
estes meninos, para acalmar eles, para depois encaminhar para um tratamento,
porque na condição que eles estavam não dava nem para ir para um tratamento
[referência à comunidade terapêutica]. Nós não conseguimos lugar nenhum, o único
lugar que se conseguiu um espaço, através da Vara da Infância, conseguiu duas
vagas na psiquiatria, na ala de adultos. (...) Quando eles saíram de lá, eles saíram
muito mais tranqüilos, eu não digo que foi o ideal que aconteceu, porque não foi! É
contra o Estatuto [ECA], criança não deveria estar ali, mas deu para perceber que a
parte da internação, da contenção é importante. Eram dois meninos e um foi depois
para a rua, ele foi encaminhado para um abrigo, mas não quis, fugiu no mesmo dia e
está na rua hoje; o outro, que parecia que era quem não ia conseguir, que assim que
saísse da psiquiatria ia direto para a rua, não, ele se sentiu melhor, ele falou: “tia,
ainda bem que vocês conseguiram me deixar lá, porque hoje eu estou mais firme”.
Então hoje ele está num abrigo, ele está bem mais tranqüilo, então dá para perceber
que quando a saúde caminha junto, isso faz a diferença. Então eu acho que a parte da
internação é fundamental, é o que falta mesmo, e não é só para a questão da droga, é
para a questão mesmo mental, porque nós temos muitos adolescentes com
comprometimentos mentais, muitos (Assistente social de um serviço da rede).
A incorporação da psiquiatria como recurso de atendimento passava pela
determinação judicial, mediante seu encaminhamento direto ou por solicitação, pelos
profissionais da rede. Mesmo com a demanda direta realizada, os profissionais
apontavam a inadequação da conduta e o sofrimento vivenciados pela população que
passava por essa experiência.
Foram dez dias de angústia para eles e para nós. (...) Não os deixamos um dia
sozinho. Era sábado, domingo, sempre com alguém. (...) Mas era uma coisa muito
triste de se ver o menino falando: “tia, eu não sou louco, porque eu tenho que ficar
com os loucos?” Aí coloca dois meninos num leito com três adultos, adultos com
crises constantes. E eles levantavam assustados e corriam para o colo da gente. (...)
Porque o rapaz que estava do lado deles tinha crise e levantava querendo enforcar
todo mundo. Aí a gente ia falar com os enfermeiros, então isso foi muito ruim. A
gente viu os meninos começarem a reproduzir o comportamento dos adultos que
estavam lá (Assistente social de um serviço da rede).
Campinas contava com dois modelos de atenção: a comunidade terapêutica,
através de internação e tratamento em longo prazo, com pouca adesão de
183
adolescentes em geral e, menos ainda, daqueles em situação de rua; e o
CAPS/ambulatório, com ensaios sobre a proposição de uma atenção baseada na
convivência e nos princípios da redução de danos que, por diversos fatores, também
acumulava uma baixa adesão e continuidade por parte dos usuários. As respostas
buscadas, a partir dos sofrimentos concretos, direcionavam-se cada vez mais para a
saúde, pela psiquiatria e pela internação, enlaçando uma perigosa culpabilidade e
individualização da situação.
SOUZA (2001), em um estudo sobre o uso de drogas pelos adolescentes em
situação de rua, conclui que os significados desse uso são divergentes da
interpretação por uma patologia e propõe:
A compreensão de suas demandas e do funcionamento desse circuito permite
concluir que o uso de drogas não está relacionado a uma patologia individual ou
familiar, encontra-se intimamente relacionado à necessidade de sobrevivência nas
ruas, como forma de diversão e defesa aos riscos que estão expostos. Por outro lado,
é uma forma de controle das dificuldades vividas, instaurando uma afetividade
alternativa e possibilitando mudanças que sem as drogas não lhe seriam possíveis
(SOUZA, 2001, p.275-6).
O não pertencimento social e pessoal e o não desenvolvimento da potência de
ação desses meninos e meninas são, para SOUZA (2001), os elementos relacionados
aos circuitos nas ruas e ao uso de drogas, o que incita fatores direcionados para a
discussão sobre a precariedade social e o sofrimento individual desses sujeitos. Essa
conjunção de complexidade no cenário contemporâneo, tendo como conseqüência a
associação entre prazeres e sofrimentos, tem confrontado os trabalhadores sociais
com problemáticas imbricadas por diversas ordens, que discernem as causas e
competências anteriormente compreendidas (JOUBERT, 2005). Dessa maneira, faz-
se necessária uma interpretação ampliada do processo, do contexto, das relações que
envolvem o uso de drogas e passam, necessariamente, pela discussão da não inserção
dessa população na sociedade, uma vez que se afastam, cada vez mais, da lógica
prevalecente e dominante, inclusive daquela representada pelas políticas para seu
acolhimento e atenção.
184
Eu preocupo-me com a tendência em psicologizar ou patologizar os problemas.
Entretanto é legítimo pensar e ter práticas que tentem corresponder aos efeitos dos
processos objetivos de precariedade sobre a condição geral psíquica dos sujeitos. E
percebe-se que pode haver uma certa racionalidade em pensar que, alguém que não
tenha as condições objetivas de sua independência social, tenha problemas de
sofrimento e, no limite, sem dúvida, de patologia pura e simples. Ir nessa direção me
parece, então, constituir uma necessária ampliação da problemática, o risco está em
reduzir à psicologização e procurar as fraquezas do indivíduo que causem ou sejam
os princípios da situação catastrófica na qual ele se encontra. Mas, que as condições
de não-independência social tenham repercussões psíquicas em termos de sofrimento
ou patologia, parece-me evidente. Se o indivíduo não dispõe de condições para sua
independência social, ele pode cair em um estado-limite (CASTEL, 2005, p. 157)
11
.
Um outro fator representativo desse debate sobre as ações médico-
psiquiátricas com esse público apresentava-se pelo número de adolescentes que
faziam o uso de medicação psicotrópica, quando em atenção na rede. Vale ressaltar
que o consumo dos remédios era realizado sempre de forma intermitente, pois era
comum o trânsito dos adolescentes entre as instituições e a rua, fazendo com que a
continuidade, requisito para esse tipo de terapêutica, fosse falha. Ainda assim, o
abrigo AFAGAI, por exemplo, registrava, no início de 2004, que 20% dos
adolescentes que haviam sido abrigados na sua instituição, até aquela data, faziam
uso desse tipo de medicação, o que pode ser considerada uma média alta, tendo em
vista que tal população não apresenta, a priori, a necessidade de tratamento dessa
natureza.
A discussão da administração contínua de medicamentos era um ponto
recorrente sobre Cíntia e seus percursos entre as instituições, os hospitais e sua casa.
Percebeu-se que, no ano de 2003, quando permaneceu quase todo o período sem
medicação contínua e, em outros momentos, com medicação intensiva – na situação de
11
Mais je me méfie de la tendance à psychologiser ou à pathologiser les problèmes. Cependant il est
légitime de penser et d’avoir des pratiques qui essaient de correspondre aux effets de ces processus
objectifs de précarisation sur l’economie psychique des sujets. Et on perçoit qu’il peut y avoir une
certaine rationalité à penser que quelqu’un qui n’a pas les conditions objectives de son indépendance
sociale tombe dans des problèmes de souffrance et à la limite sans doute de pathologie pure et simple.
Aller dans cette direction me semble donc constituer un nécessaire élargissement de la problématique,
le risque étant de réduire cela à la psychologisation et de chercher dans la faiblesse de l’individu la
cause ou la source principale de la situation catastrophique dans laquelle il se trouve. Mais que des
conditions de non-indépendance sociale aient des répercussions psychiques en termes de souffrance
ou de pathologie me semble évident. Si l’individu ne dispose pas des conditions de son indépendance
sociale, il peut basculer dans des états-limite.
185
sua internação –, as características de seus sintomas não cessaram, abrindo-se o
questionamento, entre técnicos e serviços, sobre a pertinência e eficiência dos
medicamentos aos quais era submetida. Quando Cíntia estava prestes a completar 18
anos, a equipe do CRAISA levantou duas hipóteses diagnósticas para ela. Indicaram a
possibilidade de apresentar uma personalidade histérica, ou sofrer da doença denominada
boderline
, apresentando características de ambos os quadros.
No início de 2004, a Vara da Infância e Juventude refez o encaminhamento de
Cíntia, com 17 anos, para a AFAGAI e notificou o CRAISA como responsável pelo seu
tratamento, o que já vinha sendo desenvolvido nos últimos dois anos. O juiz registrou
formalmente que, se a adolescente não aderisse ao abrigo e ao tratamento, seria
determinada sua internação em uma unidade de psiquiatria.
No ano de 2005, já com 18 anos, Cíntia voltou para as ruas e continuou, com
mais intensidade, sua inserção com um grupo de moradores adultos em situação de rua.
Os técnicos buscavam uma nova instituição onde Cíntia pudesse ser abrigada, mesmo
com os 18 anos completos. Ela continuou em atendimento na rede na condição de
exceção, pelo seu histórico de mais de quatro anos naqueles serviços.
Várias tentativas foram lançadas para a proposição de um local de moradia, entre
elas, uma residência para moradores de rua com sofrimento psíquico, projeto da
Secretaria de Assistência Social em parceria com a Secretaria de Saúde. Porém, as vagas
disponíveis eram restritas e, além disso, havia um questionamento constante sobre o
perfil de Cíntia e sua adequação, ou não, aos espaços destinados para o cuidado em saúde
mental, na medida em que ela não apresentava um quadro sintomatológico psicótico
“clássico”. Tal questionamento também estava presente para a equipe do Centro de
Atenção Psicossocial – CAPS do bairro onde Cíntia morava, equipamento para o qual os
profissionais do CRAISA discutiam o seu encaminhamento. Havia um consenso sobre o
não estabelecimento de um quadro de psicose para Cíntia, perfil majoritário do CAPS, no
entanto era clara a necessidade de cuidados constantes e intensivos e não havia opções de
locais que pudessem realizar essa atenção para a população adulta.
186
A discussão sobre o perfil de atendimento de Cíntia e sua inserção na rede de
atenção à saúde mental era uma constante, com opiniões divergentes entre os
técnicos. Cíntia apresentava um quadro claro de “sofrimento” que demandava
atenção, além de suas necessidades de acompanhamento para cuidados pessoais e
organização do cotidiano. Mas não se encontrava uma estação de cuidado nessa
direção que não fosse o CAPS.
Para a Coordenadora de um serviço, o caso de Cíntia deveria ser acolhido na
saúde mental, pois:
eu acho que se não cuidar vai ter [uma doença mental], não pode ser uma camisa de
força, se você trabalhar com território muito fechado, com diagnóstico muito
fechado, você vai fechar portas porque se não é, será, e se o território de veiculação é
aquele, não dá para você mudar bruscamente. Tudo bem, que mesmo a passagem
CRAISA/Caps acho que tem que ser mais cuidada. Se você não lidar com o
sofrimento, diagnóstico não diz muito, tem que pensar em quem está sofrendo, o
sofrimento mental é o maior diagnóstico. Se o CID é 20, 30, se é 60, isso foi alguém
que inventou o número e colocou. É muito fácil você falar que é transtorno de
personalidade, aí não trata e é assim mesmo. Então tem que tomar cuidado com isso,
senão todo mundo vira transtorno (Coordenadora do Núcleo de Atenção à Crise,
NAC/Cândido Ferreira).
Durante as negociações de seu encaminhamento para o CAPS, Cíntia ficou
sabendo que sua mãe havia se mudado definitivamente para São Paulo com sua irmã,
com quem tinha um grande vínculo, ficando na sua casa apenas seu padrasto e seu irmão.
Com essa situação, ela buscava ajuda nos diferentes serviços que freqüentava, contando os
últimos episódios ocorridos e aparentava um quadro situacional depressivo. Os
profissionais constatavam, ainda, sua aproximação com o uso abusivo de álcool, a partir
das ruas, o que não era presente até então em sua vivência.
Nas ruas, junto com outros adultos, foi acolhida por um albergue para essa
população, por já ter 18 anos completos. Esse serviço, da rede de atendimento aos
moradores de rua, pertencente à Secretaria Municipal de Assistência Social, fez contato
com os equipamentos que Cíntia freqüentava, por indicação dela, para buscar o seu
encaminhamento.
187
Como decorrência desses acontecimentos, foi iniciado o atendimento intensivo
no CAPS, na região onde morava, conforme os profissionais do CRAISA vinham
discutindo. Após alguns meses, segundo a equipe, ela entrou em uma crise aguda e teve
que ser submetida, para contenção, a uma alta dosagem de medicação psiquiátrica. Como
efeitos colaterais, ela teve um ganho substancial de massa corpórea, ficou com lentidão
para a realização de alguns movimentos e teve períodos de salivação intensa,
características comumente observadas em pacientes psiquiátricos. Nessa mesma fase, teve
seus cabelos cortados, usando um corte bem curto, característica comum entre os
pacientes psiquiátricos.
Com base nas análises de GOFFMAN (1974), podemos dizer que Cíntia
sofreu um processo de institucionalização, que veio se desenrolando em sua
adolescência e passagens pelos serviços, incluindo os psiquiátricos, e culminou na
aquisição de características corporais e de atitude do grupo no qual foi inserida e
onde iniciou seu pertencimento.
Assim, a transição para o serviço de adultos, exclusivamente de saúde mental, foi
bastante delicada e ocorrida em um momento de fragilidade na sua vida: quando estava
completamente sozinha, sem as referências que conhecia, nem familiares nem
profissionais, apesar da tentativa de acompanhamento das técnicas que com ela
trabalhavam anteriormente, mas que, naquela ocasião, tiveram pouco poder de influência
sobre seu processo.
Em meio a esses pontos, Cíntia teve uma crise no CAPS, agrediu usuários e
profissionais, causando danos materiais ao local. O serviço a enviou para o Pronto-
Socorro e de lá foi internada no Núcleo de Atenção à Crise - NAC, onde permaneceu
por cerca de quatro meses.
A internação no NAC representou sua volta ao contexto hospitalar e a
convivência intensificada com pessoas em crise psicótica. A equipe local não tinha como
contatar nenhuma referência familiar, nem profissional, nem um local para seu
encaminhamento após a sua alta. Assim, sua permanência na instituição redundou na
188
construção de um projeto de continuidade de sua atenção, objetivo além da contenção
da crise sofrida, para que pudessem encaminhar sua alta.
Os profissionais buscaram alternativas para sua inserção e manutenção financeira.
Pleitearam o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que se trata do pagamento de um
salário mínimo mensal à pessoas com 65 anos ou mais e às pessoas com deficiência
incapacitante para a vida independente e para o trabalho, gerido pelo Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome e pelo Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS); resultando na contemplação de Cíntia com o benefício. Com a possibilidade de
um recurso financeiro em mãos, a equipe procurou um local onde Cíntia pudesse viver.
Alugaram um quarto em uma pensão, no centro da cidade, e fizeram um acordo
informal com o proprietário, informando as particularidades da jovem, sobre a
necessidade de administração de medicamentos, que ela realizava de forma independente,
e solicitando a comunicação com a equipe, caso algo não corresse bem.
Apesar desse encaminhamento ter sido concluído, Cíntia dizia, todo o tempo,
que queria morar novamente no abrigo AFAGAI, pois já conhecia as pessoas, que
mantiveram contato com ela durante todo o período de sua internação, levando-a para
passeios, fins de semana no abrigo e para comemoração de festas, como o Natal. A
equipe do NAC considerava que ela tinha condições para uma vida autônoma e não se
justificava sua ida para o abrigo, uma vez que já tinha completado 18 anos.
Em paralelo, além de sua colocação em uma moradia e da aquisição de recursos
financeiros, ela foi inserida no acompanhamento psiquiátrico no Centro de Saúde da
região central, local de sua nova moradia, e um profissional do CAPS ficou responsável
pela realização de seu acompanhamento. O CAPS, porém, declarava o objetivo de fazer
seu desligamento do equipamento, uma vez que seu convívio com pacientes psicóticos
era por eles avaliado como um malefício para ela.
Para organização de seu cotidiano, ela foi reinserida na escola, na modalidade de
supletivo, sendo que ela teve diversas passagens, por vários equipamentos educativos,
durante sua permanência na rede; iniciou também um trabalho nas oficinas de produção
de artesanato e venda, realizadas pelo Serviço de Saúde Cândido Ferreira.
189
Cíntia permaneceu, no início de 2006, cerca de três meses nesse projeto (de
moradia, acompanhamento em saúde, educação e trabalho) para ela criado;
abandonando, posteriormente, o trabalho nas oficinas de artesanato e dirigindo-se para a
AFAGAI para moradia. Foi recebida, provisoriamente, pela diretoria local, que buscava
auxílio para o reencaminhamento de Cíntia. Para a AFAGAI, ela disse que havia sofrido
abuso sexual do proprietário da pensão onde morava e por isso precisou sair de lá com
urgência. Para a equipe do NAC, com quem mantinha contato por visitas que fazia de
tempos em tempos, e também para nós, nos encontros durante o trabalho de campo, ela
disse que o proprietário “controlava” sua vida e ela não queria permanecer no local. Dessa
maneira, ela refez as proposições para ela apresentadas, segundo seus interesses.
Em julho de 2006 Cíntia concluiu a 4ª. série do Ensino Fundamental, na
modalidade supletiva, e participou da festa de formatura organizada pela Secretaria de
Educação, para os formandos do período. Estava muito orgulhosa pela sua conquista e
convidou vários técnicos que conhecia, de diferentes equipamentos sociais, deixando
convites nominais, em cada serviço, e solicitando o repasse de recados, para aqueles que
não trabalhavam mais nos locais. Articulava sua rede pessoal, formada pelos técnicos dos
serviços de atendimento à infância e à juventude, colocando-os como seus convidados
para participação na sua festa. Posteriormente a essa etapa, continuou estudando.
Após alguns meses, a AFAGAI acordou sua moradia em uma outra pensão,
também no centro da cidade. Estivemos com Cíntia, nesse período, no dia de seu
aniversário, em outubro de 2006, para uma comemoração. Ela continuava seus estudos;
permanecia em acompanhamento psiquiátrico quinzenal no Centro de Saúde; mantinha
contatos com a diretoria da AFAGAI, que a auxiliava com as questões bancárias e
administração de seu benefício; não possuía mais a participação no CAPS, nem contava
com o acompanhamento de profissionais locais; demonstrava ainda necessidade de
acompanhamento intensivo para administrar a vida cotidiana, organizar seu espaço, para
os cuidados pessoais e outras atividades dessa natureza.
Permanecia na luta pela vida.
190
4.3 Lucas
A história de vida de Lucas era pouco conhecida, pelos técnicos da rede de
serviços, quanto à sua vinculação familiar e o momento e motivos para a sua saída
para as ruas. Ele não falava muito sobre esse tema, dizia: “O meu passado é uma
coisa que eu não gosto muito de mexer, porque é uma coisa que, pra mim, dói, por
tudo que eu passei” (Entrevista individual). Havia algumas informações em seus
prontuários, provenientes de serviços que tinha freqüentado em seu bairro.
Focalizamos essa narrativa no seu discurso.
Lucas iniciou na rede com quase 17 anos, por intermédio de uma comunidade
terapêutica, onde contatou o grupo ‘Narcóticos Anônimos’ (N.A.). Desde então, essa
experiência o acompanhou em sua trajetória institucional e também em seu discurso
verbal sobre a vida nas ruas e o uso de drogas, sempre enfatizando a opção consciente de
cada um para o uso e a necessidade de um desejo individual para a saída dele (sic),
conforme os preceitos ensinados pelo N.A. Após três meses na comunidade terapêutica,
foi encaminhado para um abrigo e transferido, posteriormente, para outras instituições.
Nessas passagens pelos serviços de moradia, foi levado à unidade de saúde para ser
inserido nas atividades locais, com uma queixa, por parte dos técnicos, de um perfil “de
crises de violência”, momentos nos quais diziam que ele não controlava seus atos e
colocava em risco a si mesmo e a outros, pela força física de que dispunha, oriunda de sua
estrutura corpórea. Por causa desses argumentos, o serviço de saúde administrou
medicação psiquiátrica, por um período de quatro meses, para o auxílio na contenção
desses “sintomas”. Episódios relacionados à violência, no ambiente das instituições, foram
os motivos que levaram à sua transferência entre abrigos ou para comunidades
terapêuticas.
A necessidade de um local para viver era fortemente personificada na história
de Lucas em todo o período de sua passagem pela rede de serviços. Entrou em
atendimento próximo aos 17 anos, em 2005, com a avaliação de profissionais,
somado à sua enfática argumentação, sobre a impossibilidade de retorno para a casa
191
da família. Esse fato, vinculado à sua idade, próxima aos 18 anos, acarretava o
questionamento sobre qual seria a possibilidade de sua inserção social, sua
manutenção financeira independente e o espaço físico concreto que ele poderia
ocupar para “morar”.
Os abrigos são opções provisórias de moradia, que não respondem à questão
sobre a continuidade de um local para viver, para aqueles que não têm a
possibilidade de retorno para as suas famílias. O tema levantado suscita, portanto, a
continuidade e o aprofundamento da questão do “morar”, para esse grupo juvenil.
Essa temática esteve pautada no plano de trabalho do Criando Rede de
Esperança desde a sua criação, constando como uma ação a ser implementada pelo
programa na ocasião da oficina de planejamento do Plano Municipal de Atenção a
Infância e Juventude, ocorrida em 2002. Preocupava-se com a presença de jovens,
com idade igual ou superior a 18 anos, sem uma opção de moradia – seja no modelo
de república, lar abrigado ou pensão – e a ausência de alternativa pública nessa
direção. Porém, apesar de ter sido apontada como uma ação necessária, anterior à
constituição do Criando Rede de Esperança como grupo intersetorial, e de aparecer
no planejamento das ações do grupo para os anos de 2003, 2004 e 2005, não entrou
como discussão específica em nenhuma reunião. Em 2005, houve um debate sobre
esse tema e, em 2006, foi pauta de duas reuniões, porém sem desdobramentos e
continuidades.
No final de 2004, uma comunidade terapêutica instalou uma casa, nos
modelos de uma república, para atender dez jovens, do sexo masculino, com idade
entre 16 e 24 anos, que concluíssem o tratamento e não pudessem retornar para suas
famílias, seja pela inexistência dela, que acometia uma pequena parte dos casos, seja
pelo risco de morte que correriam se retornassem para suas comunidades (episódio,
na maioria das vezes, ligado ao tráfico de drogas). As vagas, contudo, não eram
comumente preenchidas e a média de ocupação da casa ficava em torno de cinco
jovens. Funcionava com dois funcionários em tempo integral, denominados “pais
192
sociais”
1
, que se caracterizavam por um casal que morava na casa, dedicando tempo
integral de atenção aos jovens moradores. A casa contava ainda com o apoio técnico
de psicólogas e assistentes sociais da instituição gestora.
Todavia, essa iniciativa permanecia deslocada da rede de atendimento, uma
vez que não havia fluxo de encaminhamento para esse espaço, sendo de uso
exclusivo da comunidade terapêutica para oferta de moradia para alguns de seus ex-
internos do tratamento de uso de drogas. Na medida em que essa ONG aprofundou
sua institucionalização na rede de atendimento, por meio de parcerias com a
Secretaria de Assistência Social, a partir de 2005, começou a criar uma utilização
desse local, inclusive temporária, para além do caráter de república, segundo as
necessidades surgidas no cotidiano do trabalho.
É a partir desse contexto que Lucas vai para essa casa, tendo sido encaminhado
pelo abrigo provisório, onde permaneceu por algumas semanas. Embora já tivesse
participado, parcialmente, do programa de tratamento da comunidade terapêutica, no
momento de sua ida para a república não estava em tratamento sob essa modalidade, mas
ainda assim foi acolhido na casa.
A discussão sobre a moradia esteve também presente na Secretaria de Saúde,
através das proposições da área de saúde mental. Pela existência de um CAPS para
essa população, ventilou-se a possibilidade da criação de uma Residência
Terapêutica para o público atendido no serviço, meninos e meninas em situação de
rua e usuários de substâncias psicoativas, que estivessem por completar 18 anos, ou
com 18 anos recém-completos. A Residência Terapêutica é um projeto do governo
federal, que conta com recursos financeiros para sua implementação, integrada ao
Programa de Volta para Casa, do Ministério da Saúde, com o intuito de oferecer
alternativas ao hospital psiquiátrico. “O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) – ou
residência terapêutica ou simplesmente ‘moradia’ – são casas localizadas no espaço
urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas
portadoras de transtornos mentais graves, institucionalizadas ou não” (BRASIL,
1
O papel de “mãe social” é a designação da função de mulheres que trabalham em casas-lares para
“menores”, segundo a lei 7.644/87. Tramita, atualmente, o projeto de lei 2.971/04 que regulamenta
também a função de “pai social”.
193
2004b, p.7). Dentre os beneficiários, pode estar incluído os “moradores de rua com
transtornos mentais severos” e/ou “pessoas em acompanhamento nos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), para as quais o problema da moradia é identificado,
por sua equipe de referência” (p. 10).
Com esse último apontamento, os gestores da Secretaria de Saúde e
coordenação do serviço levantaram a possibilidade de criação de uma moradia, dado
que este era o ponto central para alguns jovens. Porém, havia o debate interno sobre a
pertinência da aplicação desse projeto com relação a seu objetivo primeiro, uma vez
que esse grupo populacional de jovens não tinha um “transtorno mental severo”,
conforme especificado no programa federal e, fazendo isso, poderia ser criada uma
estigmatização a partir de sua classificação em uma doença, como era requisito para
efetividade da proposta. Entretanto, com a residência terapêutica vislumbrava-se a
alternativa de aquisição de recursos financeiros para implementação de uma moradia
para esses jovens, problemática concreta para um grupo de pessoas que completavam
18 anos e eram desligados dos serviços da rede. É importante ressaltar, ainda, que
havia a preocupação sobre a metodologia de trabalho de uma casa com essa
população, a necessidade, ou não, de acompanhamento intensivo 24 horas por
profissionais, os riscos em se transformar em um ponto de drogas, entre outros temas
suscitados. Essa discussão foi tema de reuniões entre gestores e técnicos no serviço
de saúde, mas sem resultar em desdobramentos para sua efetivação.
Esse tema nasceu do momento vivenciado na rede, no início de 2005, quando
um grupo de cerca de dez jovens que se encontrava em torno dos 18 anos, entre eles
Lucas e Cíntia, não tinha a perspectiva de retorno para suas famílias nem uma
alternativa de espaço físico para viver. Apesar dos debates suscitados, da experiência
em andamento de um projeto de república por parte de uma comunidade terapêutica,
e da intenção presente pela situação desse grupo de jovens, não ocorreram
desdobramentos nem ações que caminhassem na concretização de moradias
alternativas para esse grupo populacional. As ações operacionalizadas permaneceram
em torno dos abrigos, permanentes e/ou provisórios, que contavam com alocação de
recursos financeiros municipais e parecerias com ONGs, sendo dirigidos ao publico
194
com até 18 anos incompletos. A maioria dos jovens do grupo citado continuou nas
ruas, utilizando-as como local de estada e vivência.
A temática da juventude – englobando uma fase para além dos 18 anos e,
portanto, posterior à adolescência – assumiu, naquele momento, uma situação de
centralidade, justificada pela realidade de uma parte dos usuários da rede de serviços.
Por esse motivo, realizaram-se reuniões, no interior do Criando Rede de Esperança,
em 2005, sobre a “Política para Juventude”. Os representantes das instituições que se
dedicavam ao público de crianças e adolescentes, cujas intervenções eram
interrompidas a partir dos 18 anos, constataram a inexistência de ações para a
população jovem e a necessidade de reunir atores para esse debate. Essa proposição
não foi encaminhada
2
.
Em 2004, a Coordenadoria Municipal da Juventude – ligada, naquela época,
ao gabinete da prefeita – fez um contato com o Criando Rede para divulgar o
programa “Primeiro Emprego”, o qual buscava a formação de jovens, sua
manutenção no sistema escolar e sua aproximação com o universo do trabalho,
oferecendo uma bolsa de R$ 120,00 (valor de 2004) para seus beneficiários. Não
houve, porém, nenhuma solicitação de vaga pelos serviços que atendiam aos meninos
de rua, pois alegavam que eles não apresentavam os quesitos exigidos para inserção
no programa.
O município tinha ações incipientes denominadas de “Política para
Juventude” que não iam ao encontro dos jovens aqui estudados, com vivência nas
ruas. Os serviços específicos para essa população não realizavam uma ampliação de
seu atendimento, justificada, principalmente, pela questão jurídica, que faz uso da
categoria “adolescência”, como elemento delimitador. A idade cronológica era o
critério de entrada, não entrada e saída nos serviços. As questões que emergiam para
aqueles que completavam 18 anos não eram contempladas. Assim, com base no
princípio jurídico, eram demarcadas a infância e a adolescência como população para
intervenção, por meio das ações realizadas pela rede, sendo a atenção à juventude
“apenas” uma discussão superficial.
2
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Ata da reunião realizada
em 12 abr 2005. 2005.
195
Essa polêmica perpassa a compreensão sobre quem deve estar em proteção,
sob tutela, e quem tem a liberdade e a autonomia de decisão sobre si mesmo. Os
serviços são direcionados para uma parte da população compreendida como em
situação especial de desenvolvimento, e a partir dos 18 anos haveria, supostamente,
outros recursos internos e externos para autonomia, para a vida.
Mas, afinal, a que se refere a minoridade? Na esfera pública brasileira essa
discussão assume, pelo impulso da mídia, o debate em torno da redução da
maioridade penal e o relevante posicionamento contrário a essa proposição,
ganhando destaque o que concerne à esfera da Justiça (BRASIL, 2001b). O ECA, por
sua vez, assim como a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas
(1989), declara que aqueles que têm menos de 18 anos estão em uma fase especial de
desenvolvimento e, portanto, precisam de proteção e condições especiais. O ECA faz
a distinção entre criança e adolescente, a partir da faixa etária, garantindo, inclusive,
direitos diferenciados na esfera da proteção. Diferenciação que precisa ser demarcada
e valorizada, pois a homogeneização de “crianças e adolescentes” retira a ênfase da
necessária proteção que precisa ser aplicada às condições infantis. Porém, quando se
trata de adolescentes, é preciso distinguir as características de um adolescente de 12 e
outro de 17 anos na prática de seus atos, na liberdade sobre si mesmo e na autonomia
e responsabilização pelas suas escolhas. Essas questões não têm um posicionamento
único, pela diversidade de vivências de infância, adolescência e juventude, que são
socialmente constituídas.
No interior do Criando Rede de Esperança, essa discussão aparecia sob
diferentes roupagens, não havendo uma concepção única compartilhada. A questão
vinha acompanhada dos conceitos de “compulsoriedade” e “autonomia”, na tentativa
de se desvendarem os limites da tutela, da necessidade da autoridade e da autonomia
para a construção de um projeto de vida compartilhado, com participação do usuário.
Historicamente viveu-se, primordialmente, o modelo compulsório nas ações
públicas voltadas para as crianças e adolescentes populares, nas quais essa população
era educada moralmente, de acordo com o projeto de nação da elite brasileira
(RIZZINI, 2008). Em contraponto, quando se criam intervenções pautadas na
desinstitucionalização, na autonomia e na liberdade de escolha, modifica-se um
196
legado instaurado e diversificam-se as possibilidades de intervenção com esse
público. No entanto, nenhuma das práticas estremadas, das mais conservadoras às
mais progressistas, enfrentou realmente a questão da autonomia e da proteção.
Permanece a difícil tarefa de mediação e debate em torno desse tema.
Quando discutidas as particularidades sobre estar na rua, essa dúvida aparecia
de forma mais explícita. É possível permitir que uma criança fique nas ruas?
eu acho que falta muita clareza, até em termos de liberdade, para entender que cada
um pode ser o que quiser, e que cada um pode até viver na rua, até curtir morar na
rua, principalmente em relação ao jovem adulto, porque as pessoas só pensam: “eles
têm que estar fora das ruas”. Mas quando se fala de criança, criança pequena, eu já
não sei, mas adulto, adulto jovem, é diferente. De qualquer forma, essa compreensão
falta para as pessoas (Assessora da área de criança e adolescente da Secretaria de
Assistência Social e Conselheira representante do âmbito público no CMDCA, em
ambas funções a partir de 2005).
No contexto da sociedade francesa, para citar um contra-exemplo, há um
consenso em torno da proteção e garantia de serviços para os menores, segundo a
nomenclatura da lei local, o qual não abre esses pontos para debate, garantindo um
nível de proteção que resulta, por exemplo, em poucos adolescentes que habitam as
ruas, uma vez que se faz um sistema de coibição e coerção de qualquer movimento
nessa direção. Estruturam-se, rapidamente, intervenções em torno dos adolescentes,
de maneira a repreender os “menores” e convencê-los a retornar para as suas casas.
Por um lado fica garantida a proteção; por outro lado, esse sistema enfrenta, uma
crítica sobre sua padronização e homogeneização de ações com as adolescências,
colocando a proteção acima das diferenças locais e culturais.
Para a sociedade brasileira, entretanto, a realidade suscita discussões em torno
da liberdade de uma criança ou de um adolescente em ocupar as ruas para a sua vida,
em sua autonomia para uma vida independente. O tema é ainda pouco explorado e
aprofundado, requerendo atenção e estudos mais amplos que se dediquem a essa
tensão entre a proteção e a liberdade, assim como a aplicação dessas categorias na
infância e na adolescência, sob perspectivas distintas.
197
Nessa discussão sobre a maioridade e as vivências sociais dos cursos da vida,
as categorias adolescência e juventude misturam-se e ora distinguem-se totalmente,
ora representam o mesmo grupo. ADORNO et al. (2005) defendem que a
adolescência foi concebida no universo médico como um período de transição,
“desprovido de identidade e de vida própria, mas considerado como fase de latência,
a exemplo dos processos biológicos de maturação” (p.17-8). Argumentam acerca da
crítica às ações normativas dirigidas a essa população e conceituam:
Oponde-se ao conceito de adolescência, a Sociologia trabalha com o conceito de
juventude como representativo do caráter que as novas gerações trazem à sociedade,
não a encarando, assim, como uma fase de transição para uma idade ou identidade
adulta, mas justamente como um campo de inovação, de geração de novas
identidades, de discussão de papéis e questionamento do caráter conservador das
instituições, dos valores e das normas sociais (ADORNO et al., 2005, p. 18).
No nosso campo de análise, a inexistência de ações com os meninos e
meninas após os 18 anos era notória, fazendo-se relevante a demarcação da
“adolescência”, como categoria sociológica, delimitadora das intervenções públicas.
Trata-se de aproximar-se da realidade ali vivenciada, que encerra suas ações aos 18
anos, e promover uma discussão sobre a lacuna que os jovens enfrentam, quando
precisam de políticas sociais de diferentes setores.
A não distinção entre adolescência e juventude, ou ainda a substituição do
termo “adolescente” por “jovem”, não contribui para o debate sobre as
diferenciações entre esses cursos e suas necessidades e características singulares que,
em alguns momentos, são congruentes; mas, de maneira geral, representam grupos
distintos com compreensões e definições diversas.
Para a Justiça, por exemplo, a categoria juventude é inexistente, constam
apenas as crianças, os adolescentes e os adultos. A idade de 18 anos demarca o
ingresso na vida adulta e a responsabilização completa individual, civil e penal, sob
pena da lei, sobre seus atos. Essa esfera propaga a inclusão da temática da
responsabilidade individual e autonomia na discussão da adolescência e passagem
para a vida adulta, ou jovem adulto.
198
Esse era um assunto comum entre os jovens de 18 anos. Eles afirmavam saber
que não podiam mais freqüentar os equipamentos sociais; não entravam nos serviços,
solicitando, a partir da porta, falar com algum funcionário que conheciam, mesmo
quando não havia restrição na entrada; mencionavam não poder mais contar com o
universo institucional; e citavam os presídios como um “novo” local, caso fossem
apreendidos pela prática de atos infracionais. Esse “temor” relacionado à prisão,
relatado pelos jovens, confirmava-se por algumas trajetórias que, com 18 anos
recém-completos, iam para presídios da região, quando apreendidos em flagrante, na
maioria dos casos, por furtos, uso ou tráfico de drogas. Alguns profissionais
mantinham contato, em raros casos, mesmo não tendo mais responsabilidade técnica
sobre eles. Essa ligação efetivava-se por visitas esporádicas ao presídio e sugestão de
algum encaminhamento, junto aos técnicos sociais locais, para o momento da
liberação daquele jovem.
Exemplo do quadro descrito ocorreu com uma jovem que, quando nas ruas,
levantava a suspeita de apresentar um rebaixamento intelectual, além de fazer uso
intensivo de substâncias psicoativas. Ela foi apreendida, com 18 anos, participando
de um furto e encaminhada para um presídio feminino na região de Campinas.
Quando as técnicas foram avisadas, por outros adolescentes, foram visitá-la e
encontraram-na extremamente medicada. Os técnicos do presídio informaram que ela
havia sofrido uma crise nervosa, com muita agitação, e encaminhada para o serviço
de psiquiatria que atende os internos, recebendo essa conduta médica. As técnicas
solicitaram serem contatadas quando ela fosse liberada, pois ela estaria em outro
município, sem dinheiro, e sob os efeitos colaterais da medicação a que estava
submetida. Os profissionais locais anotaram os telefones e comprometeram-se a fazer
contato. Em paralelo, procuraram a justiça e solicitaram, formalmente, a liberação da
jovem, que ainda não havia sido reclamada por ninguém de sua família. Quando
discutiram junto à promotoria a possibilidade de atestarem seu rebaixamento
intelectual e a inadequação da intervenção recebida no presídio, foram aconselhadas
a não tomarem essa conduta, que abriria a discussão do encaminhamento da jovem
para o serviço de saúde mental judiciário e, assim, a possibilidade de sua liberação
seria muito menor, uma vez que dependeria da avaliação médica e, nas condições em
199
que se encontrava, de réu primária e crime de baixa periculosidade, a liberação para
responder o processo em liberdade era quase certa. O aconselhamento formal
jurídico recebido demonstrava o lugar dessa população, também na condição de
adultos, e o uso da “loucura”, e as doenças que a tangenciam, como penalidade. A
jovem foi liberada em um fim de semana, e as profissionais receberam a informação,
no serviço, no dia útil seqüente. Não se soube para onde foi nem com que meios.
Outros adolescentes falaram, tempos depois, que haviam encontrado com ela
novamente nas ruas e sob o uso de drogas.
Nesse contexto, da proximidade dos 18 anos e as mudanças na passagem para
a maioridade, com um discurso predominante sobre o medo da prisão, é prevalente,
segundo os profissionais da rede, uma “maior adesão” às proposições realizadas nos
serviço pelos adolescentes, quando comparados com os demais, com idade entre 12 e
16 anos. No discurso dos profissionais, esse fato era também decorrente do receio
dos meninos em completar 18 anos e não poder mais se beneficiar das instituições e
seus serviços e, ainda, relacionado ao amadurecimento pertinente à idade e à
colocação de objetivos e metas para si próprios.
A adesão do grupo em situação de rua às instituições é um tema recorrente no
discurso dos atores institucionais, na busca de compreender os insucessos e a
possibilidade de modificação das intervenções. Acumulando uma maioria de não
adesão, aqueles que “aderem” às proposições e aos encaminhamentos, incorporando-
se aos códigos locais, acessam ganhos secundários (GOFFMAN, 1974) no universo
institucional, ou seja, para eles são ofertados alguns benefícios diferenciados, que
não chegam para “todos”, e, assim, podem desfrutar de circulação, acesso e
oportunidades distintos. Esse era o caso de Lucas que, desde sua entrada na rede de
serviços, foi progressivamente realizando as atividades e encaminhamentos,
conforme lhe eram propostos, e assim ia acessando outras atividades e outros
lugares sociais ofertados pelos profissionais de diferentes equipamentos que
freqüentava.
Lucas não realizava a circulação tradicional entre a rua e as instituições, como
ocorria com os demais adolescentes, permanecendo de forma contínua nos serviços e,
quando apresentava problemas em algum local, comumente brigas e agressões físicas, era
200
transferido de instituição. Aderiu, também, aos acompanhamentos médico-psiquiátrico e
psicológico propostos pelo serviço de saúde, tendo uma diminuição de suas “crises de
violência”, características de sua chegada à rede. Pôde, posteriormente, interromper o uso
da medicação. Ele demonstrava também interesse pela realização de cursos de informática
e, por isso, foi convidado a monitorar a sala de computadores de uma das instituições da
rede, ficando nas máquinas por um tempo superior aos demais usuários, que só poderiam
acessá-las acompanhados de funcionários e por um período limitado. Esses são, portanto,
exemplos de situações nas quais ele ocupava lugares diferenciados e ganhava a confiança
dos profissionais, o que ele percebia e claramente mencionava.
todo mundo me conhece, como eu era no começo, que eu não tava nem aí pra nada, não
queria saber de nada, e depois eu fui mudando de comportamento, fui evoluindo.
Comecei a fazer a oficina de informática aqui dentro e depois eu peguei uma confiança
que nem eu pensei que ia pegar, com o pessoal aqui, que é uma coisa que dura até hoje.
Me chamam para fazer as coisas, para ter participação nas coisas importantes e isso me
deixa muito feliz, porque essa confiança era uma coisa que há muito tempo eu não tinha.
As pessoas confiam de eu poder entrar numa sala sozinho sem ninguém estar vigiando, a
bolsa do pessoal poder ficar nos lugares, sem ninguém desconfiar que eu vou pegar. Então
é isso! (Lucas em entrevista individual).
Lucas enfatizou, em seu discurso, um elemento relevante e perceptível na
vivência desses meninos: a falta de confiança neles como sujeitos. Sua menção e
percepção sobre “entrar nos locais sem ser vigiado” e “as pessoas confiarem que não
corriam riscos, com a sua presença”, demonstra, claramente, o lugar social ocupado
pelos jovens de grupos populares. Essa juventude, no imaginário social, transita entre
uma invisibilidade e uma visibilidade pela periculosidade, sendo submetidos,
cotidianamente, a processos objetivos e subjetivos de humilhação social (SOARES,
2005).
Dentro do universo institucional dessa rede de serviços, Lucas superou essa
posição e passou a ser um ombro de apoio para o funcionamento local, uma via de
acesso ao mundo da rua, uma figura positiva para a apresentação do trabalho
desempenhado pelos equipamentos sociais. Estabeleceu-se, então, uma ‘troca’ na
qual foi ofertada uma posição diferenciada para Lucas, como usuário da rede de
201
serviços, com acessos e posicionamento especial, nos campos objetivos e subjetivos;
e foi solicitada sua representação e relato, para o contexto externo, do trabalho
desenvolvido pelos mesmos serviços. Lucas passou a ser convidado para participar
dos fóruns coletivos da cidade como representante dos usuários dos serviços para
meninos e meninas em situação de rua e, assim, foi inscrito e, efetivamente,
participou de conferências, seminários, debates e eventos sobre a infância e
juventude, naqueles em que estava previsto assento para os usuários. Com essa
prática, ganhou um linguajar próprio desse meio, apreendeu situações e processos de
decisão, e incluiu, na sua fala, a temática dos direitos e do protagonismo
3
.
É importante participar, porque um adolescente entrando numa palestra é protagonista,
montando o que ele tem para falar, ele acaba adquirindo mais responsabilidade, acaba
conhecendo coisas novas, pessoas, outros tipos de pessoas, aprende a conviver com a
sociedade. Porque um seminário é mais ou menos a sociedade, tem o prefeito, aparece o
prefeito, aparece assistente social, aparece pedagoga, enfim, aparece todo tipo de pessoa. E
eu acho, também, que o adolescente ser protagonista é uma coisa muito importante,
porque é difícil para o adolescente poder expor suas idéias. Isso é uma coisa que
antigamente não acontecia, de adolescente ir em seminários, fazer apresentação e
realmente falar o que ele pensa e as pessoas ouvindo, entrar para uma mesa de debate... Eu
acho que é, nossa, super interessante! Principalmente pra mim, pra mim é interessante
porque é uma coisa que eu gosto de fazer. Que é conhecer os direitos e estar cobrando
aquilo que por direito é meu. Eu, então, gosto muito de mexer com isso, de dar palestra,
de ouvir os caras falando, de poder discordar ou concordar (Lucas em entrevista
individual).
Por essa prática, ele foi indicado pela rede a fim de nos auxiliar na realização
dos grupos de atividades, utilizados como produto para o II Seminário em Defesa dos
Direitos das Crianças e dos Adolescentes em Situação de Rua, promovido pelo
CMDCA, e também como material de campo para esta pesquisa.
O CMDCA realizou, em 2003, o I Seminário em Defesa dos Direitos das
Crianças e dos Adolescentes em Situação de Rua, efetivado a partir do trabalho de
uma comissão, formada basicamente por representantes da rede de serviços que eram
3
O termo protagonista foi difundido e divulgado no final da década de 1990 relacionado à educação
não-formal e às ações realizadas por jovens, podendo ser, ou não, mediada por adultos. Refere-se à
horizontalidade das ações e a assunção pelos jovens de ações e projetos sociais no âmbito escolar
e/ou comunitário (BORBA, 2007). Acumula, também, muita crítica frente ao uso indistinto e de uma
perspectiva “salvacionista” das ações da juventude.
202
também integrantes do grupo Criando Rede de Esperança. Esse seminário culminou
na publicação de uma resolução do Conselho, com a finalidade de delimitar as
diretrizes da política municipal, governamental e não-governamental, para o
atendimento de meninos e meninas em situação de rua, com o objetivo de:
“disciplinar a política de atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de
rua no Município de Campinas, de forma a garantir a integralidade, a
intersetorialidade, a ação em rede e o trabalho com suas respectivas famílias”
(CMDCA, 2003b). No seu artigo 8.º a resolução indica a política e o atendimento
que devem ser implementados para essa população:
O Município deve dispor de uma política pública articulada através de uma rede
intersetorial de atendimento (OG’s e ONG’s), à criança e ao adolescente em situação
de rua, contemplando as seguintes ações:
I - abordagem e educação na rua;
II - defesa de direitos;
III - ações integradas de saúde e educação, em prevenção e promoção;
IV - pernoite protegido;
V - tratamento ao uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas;
VI - atividades culturais, lúdicas e esportivas;
VII - escolarização formal;
VIII - organização para o trabalho e geração de renda;
IX - moradias alternativas;
X - encaminhamento para cursos profissionalizantes;
XI - medida de proteção em abrigo.
Parágrafo Único: em todas as ações do atendimento à criança e ao adolescente em
situação de rua deve haver um trabalho concomitante com as famílias (CMDCA,
2003b).
No ano de 2005, quando o grupo Criando Redes de Esperança já se
caracterizava como uma comissão do CMDCA, houve a proposição, pelos
conselheiros, da realização de um segundo seminário, com o intuito de avaliar a
realidade encontrada frente às diretrizes propostas pela resolução. Foi realizado em
março de 2006.
203
Uma das preocupações apontadas foi a criação de fóruns de participação para
os adolescentes, usuários da rede de serviços. Muitas propostas circularam para a
efetividade dessa participação, havendo, entretanto, o discurso de cautela dos
profissionais para que não se realizasse algo “pró-forma”. Propuseram, então, a
realização de atividades preparatórias em todas as instituições da rede, para discutir
com os adolescentes, em cada local, a realização do seminário e a possibilidade de
sua participação.
Nesse momento, compúnhamos o Criando Rede de Esperança na condição de
pesquisadora. Em meio às discussões, sugerimos que conduzíssemos a realização de
grupos de atividades nas instituições, levantando proposições para o seminário,
centradas no tema da Política de Atendimento Municipal para a Infância e Juventude,
pedindo, como contra-partida, a utilização do material produzido para esta tese. A
proposta foi aceita e, a partir daí, elaboramos o roteiro de atividades a ser realizado e,
com as contribuições dos participantes da rede, o mesmo foi finalizado. Entre as
contribuições, sugeriu-se a participação de Lucas, de forma diferenciada, como um
auxiliar para a realização das atividades, visando aproximar a linguagem jovem e
trazer sua experiência de participação em eventos dessa natureza para os usuários das
demais instituições. Houve, ainda, a disponibilidade de duas profissionais, de dois
equipamentos da rede, para o auxílio na realização de alguns dos grupos
programados
4
. Para atender nossa finalidade, ampliamos o número de instituições
participantes, incluindo aquelas que não compunham o Criando Rede de Esperança,
mas tinham alguma interface de atendimento com essa população, como as unidades
de internação provisória e de cumprimento de medida socioeducativa (Antiga Febem,
atual Fundação Casa).
Vinculamos ainda a realização desses grupos ao projeto de extensão da
Universidade Federal de São Carlos: “Recriando caminhos e construindo
perspectivas: enfrentamento das violências urbanas entre adolescentes e jovens de
4
Agradecemos às terapeutas ocupacionais Luana Moraes Amâncio e Vanessa Madaschi e, na
ocasião, à aluna, Diana Rosa Cavaglieri, pela colaboração para programação, realização e relatoria
dos grupos nas instituições.
204
grupos populares”, coordenado pelo Programa de Extensão Metuia
5
– Terapia
Ocupacional no Campo Social, com financiamento do Programa de Apoio à
Extensão Universitária voltada às Políticas Públicas (Proext 2005), da Secretaria de
Ensino Superior (SESU) do Ministério da Educação (MEC)
6
.
Sugerimos temas transversais para o debate: direito, cidadania, política,
participação, serviços, proposição de atividades, de ações, de equipamentos;
enfocando os temas escolhidos pelos profissionais como eixos de discussão do
seminário, a saber: educação social de rua; escolarização; pernoite, moradias
alternativas e moradias de proteção (abrigo); tratamento ao uso abusivo e
dependência de substâncias psicotrópicas. Para efetivação das atividades utilizamos,
como estratégia, discussões em grupo, a partir de brincadeiras, como “jogo de
perguntas”, e a realização de atividades gráficas, especificamente confecção de
cartazes (roteiro de realização das atividades grupais em anexo).
Lucas participou do grupo na instituição em que estava morando e
acompanhou-nos em mais três instituições, fazendo nesses locais um relato sobre sua
participação e auxiliando nas discussões. Posteriormente, contribuiu na realização da
relatoria do trabalho, incluindo a confecção de uma apresentação, no programa
computacional Power Point. Foi ele também quem fez o relato para os participantes,
durante o seminário, do processo dos grupos e das sugestões levantadas.
Os assuntos levantados pelos adolescentes foram por nós agrupados nas
seguintes temáticas: desigualdades sociais, direitos e política; condições para a vida
nas cidades; educação e trabalho; esporte, lazer e cultura; segurança e serviços.
A primeira categoria – desigualdades sociais, direito e política – surgiu a
partir de nossa incitação para discussão do tema “política”, uma vez que era o eixo
norteador para se comentar sobre o seminário e as possibilidades e tentativas de
influência sobre a política para a população infanto-juvenil. Os adolescentes fizeram
5
Grupo interinstitucional de estudos, formação e ação pela cidadania de crianças, adolescentes e
adultos em processo de ruptura das redes sociais de suporte, formado por docentes, discentes e
profissionais vinculados à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e à Universidade de São
Paulo (USP).
6
Projeto coordenado pela Profa. Dra. Roseli Esquerdo Lopes - UFSCar. O projeto contava com dois
núcleos de ação, sendo um em Campinas, que relatamos aqui, e o outro no município de São Carlos,
com a participação de alunos de graduação e coordenação local de Carla Regina Silva.
205
uma discussão geral sobre a necessidade de melhores condições de vida para a
população e a diminuição da corrupção e injustiças, para se iniciar a fala sobre
direitos. Esse tema foi vinculado, por eles, à violência e à desigualdade social. Para
um participante:
A desigualdade gera violência. Tinha que ter mais respeito um com o outro.
Violência gera violência. Enquanto houver desigualdade vai haver violência. Tinha
que ter mais igualdade! (Adolescente de 17 anos no grupo de atividades).
Foi enfatizada fortemente a necessidade de bens sociais para a vida cotidiana,
que nomeamos de condições de vida na cidade. Remetiam-se à vida nas favelas e às
condições de inabitabilidade, levantadas pela proposta de transformação de casas de
madeira em construções mais seguras; ampliação da rede de água e esgoto;
construção de passarelas nas rodovias para acesso aos bairros
7
; ampliação do
transporte coletivo; entre outras sugestões. Os temas por eles levantados
demonstravam a associação direta ao seu local periférico de origem e ocupação no
espaço urbano.
Especificamente sobre os serviços freqüentados por eles, levantaram temas
setoriais, conforme pensado pelos técnicos para organização das diretrizes de debate
do seminário. Foram citados: a escola, a inserção no mercado de trabalho, as
praças, os parques, a relação com a polícia e outros serviços específicos. Se
comparados com os eixos escolhidos pelos técnicos, havia a educação de rua, a
escolarização, as moradias e as drogas como setores eleitos prioritários para o
debate. A educação era o único tema comum entre os grupos de adolescentes e dos
técnicos, uma vez que o trabalho, o lazer e a segurança não apareceram nos eixos do
seminário, escolhidos pelos técnicos; e, da mesma forma, a questão da educação nas
ruas, das moradias e do uso de drogas não foram lembrados pelos adolescentes.
Importante ressaltar que os participantes dos grupos eram usuários de 12 diferentes
instituições que não atendiam, exclusivamente, aqueles em situação de rua. Portanto,
trata-se da fala de um universo mais ampliado, no qual uma parte pode não conhecer
7
Campinas possui um grande número de favelas nas margens das rodovias que cortam a cidade,
fruto de ocupações e tentativas de ampliação dos espaços de moradia popular.
206
a rua como local de vivência. Já o Grupo Criando Rede de Esperança era composto,
prioritariamente, de representantes de instituições que trabalhavam exclusivamente
com a população de crianças e de adolescentes em situação de rua, ou aquelas com
uma interface relevante com esse grupo populacional. Isso posto, justifica-se,
parcialmente, a incongruência dos temas de educação de rua e moradias, uma vez
que se trata de áreas mais distantes daqueles que estão em suas casas. Não obstante,
as questões do lazer, do trabalho e do tratamento para o uso de drogas foram temas
que poderiam ter sido apontados, como prioridade, para ambos e mostraram-se
isoladas em cada segmento, na fala dos usuários e dos técnicos.
A escola foi um tema importante, enfocando a educação formal e a
capacitação para o trabalho. Tanto aqueles que se encontram no sistema formal de
ensino, como outros que não estavam nesses espaços, mas já passaram por ele,
faziam vários relatos de sugestão de modificação do ambiente escolar, sempre
apoiados no reconhecimento da importância ‘de estudar’. Primeiramente, falaram
sobre as proposições de melhorias das condições de estrutura física das escolas,
como disponibilidade de espaços de biblioteca, de material escolar, de filmes e
brinquedos; a qualidade da merenda; a presença de quadras para a prática de
esportes; o acesso a computadores conectados à internet; entre outros. Na seqüência,
criticaram as formas pedagógicas de trabalho com o conteúdo curricular, propondo a
inserção de aulas mais dinâmicas, de atividades que permitam o uso da escola pela
comunidade nos finais de semana e a introdução de gincanas e atividades de interesse
dos alunos. Por fim, ressaltavam a questão da educação para o trabalho e a
perspectiva de emprego como preocupação circunscrita à discussão da escola.
Sublinharam a necessidade de cursos profissionalizantes gratuitos e de interesse dos
jovens. Nessa direção, falaram sobre a inserção dos adolescentes em atividades
profissionais existentes na rotina da escola, como por exemplo o auxílio pelos alunos
nas atividades administrativas, citando o atendimento telefônico e ao público, a
elaboração de documentos no computador; além da criação de estratégias de
facilitação da inserção dos jovens no mercado de trabalho.
207
O que falta mesmo é uma sala de aula com mais dinâmica, pra prender a atenção do
aluno na aula, envolvendo o que os alunos gostam... Uma aula com som também
(Adolescente de 15 anos participante do grupo de atividades).
Eu acho que a escola deveria ter uma estrutura melhor, ter mais cursos. Eu acho que
deveria também ter mais atividades culturais na escola, que nem, hip-hop, aula de
violão, educação artística, futebol, capoeira (Adolescente de 16 anos participante do
grupo de atividades).
Mais oportunidades de trabalho! Cursos profissionalizantes e faculdade de graça!
(Jovem de 18 anos participante do grupo de atividades).
O grupo de técnicos, nessa temática, discutiu a necessidade de sensibilização
dos profissionais da rede de educação para diminuição da evasão escolar. Levantou
também a demanda de capacitação para o aprimoramento dos professores em
técnicas metodológicas diversificadas, que atraíssem a população juvenil, e
estivessem inseridas na sua realidade; além da importância da inclusão do
equipamento escola na rede de serviços locais, abrindo-se para o diálogo com a rede,
incluindo o trabalho nos territórios como metodologia de intervenção escolar.
A diferenciação de conteúdos abordados evidenciou-se pela questão da
inserção no mercado de trabalho e a educação para o trabalho, discutidos pelos
jovens e não veiculadas pelos profissionais. A temática sobre o trabalho é central, na
nossa opinião, para a discussão sobre a juventude de grupos populares. O trabalho, e
a crise da sociedade salarial, sinaliza os desafios de constituição social de um
contingente em que a maior parte dos cidadãos, em atividade de ocupação de
trabalho, não se encontra assalariada. Quando se aborda a juventude, esse assunto
ganha destaque, uma vez que o Brasil tem 46% da população de 15 a 29 anos
desempregada e um aumento de 3,5 vezes nos últimos anos, quando feito à
proporção de desemprego juvenil/adulto (CASTRO e AQUINO, 2008). A inserção
no mercado de trabalho caracteriza-se como a possibilidade de circulação no sistema
de trocas sociais de mercadorias e, com isso, representa a possibilidade de autonomia
financeira e ingresso na vida adulta. Os estudos nesse campo (POCHMANN, 2007)
indicam que se trata de um tema de ordem econômica e não somente concernente ao
208
universo individual do jovem, à sua capacitação educacional e às suas habilidades,
ou falta delas, como configurado no discurso predominante. Os jovens são os
primeiros atingidos na estrutura social do desemprego e para um real enfrentamento
desse problema, é preciso falar sobre o crescimento econômico do país
(POCHMANN, 2007). Não aprofundaremos essa discussão nesta tese, mas
entendemos ser de fundamental importância os estudos sobre a categoria trabalho e
suas transformações na sociedade contemporânea, para se discutir as políticas e as
ações públicas com a população juvenil.
Retornando ao relato dos grupos, a terceira categoria apontada pelos jovens
foi esportes, lazer e cultura, momento que discursaram sobre a dificuldade de acesso
a espaços para a prática de esportes e lazer. Especificamente, relatavam as piscinas e
as pistas de skate como, praticamente, inexistentes na cidade e de grande interesse
desse público. Em uma instituição foi sugerida a presença de profissionais nas praças
e locais de esporte, com referência a alguém que pudesse realizar uma “orientação”
aos adolescentes, ajudando em suas dificuldades, auxiliando a encontrar vagas na
escola, a receber atendimento em postos de saúde e, até mesmo, servirem como
intermediários na resolução de conflitos com as famílias.
Essa proposição direcionou-se ao encontro da discussão realizada pelo grupo
de profissionais do seminário que enfocava a relevância das ações territoriais e a
necessidade do fomento e estímulo para que os profissionais das Unidades Básicas
de Saúde dos Bairros, das escolas locais e de outros equipamentos do território
potencializassem locais que facilitassem a presença dos adolescentes e jovens na sua
comunidade. Na rotina dos equipamentos sociais raramente encontramos esse
público nas unidades de saúde, nos serviços de assistência social, nos espaços
ofertados para lazer, sendo uma população comumente excluída de grande parte dos
serviços sociais (ADORNO, 2001).
A segurança publica, e a relação com ela, foi objeto de discussão em grupos
realizados nas instituições que trabalhavam exclusivamente com a população em
situação de rua, enfatizando a violência sofrida nas ruas. Produziram o cartaz:
209
Figura 22 – Cartaz do grupo de atividades
As imagens da cena do grito de policiais com uma outra pessoa e, abaixo, da
reação de um grupo de jovens, somadas ao uso das palavras “violência”, “respeito”,
“chantagem” e “preconceito” expressam a temática por eles suscitada e as ações
vivenciadas em torno da violência. Nesse mesmo cartaz havia ainda a imagem
seguinte, que destacamos pela sua representatividade.
Figura 23 – Cartaz do grupo de atividades
210
A violência praticada pelos agentes institucionais de segurança com essa
população, nas ruas, era um tema recorrente na fala dos meninos e das meninas e, em
alguns momentos, refletiu-se no discurso dos gestores da Segurança Pública
Municipal, como na proposição de ofertar capacitação para os agentes públicos sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Na tentativa de aprofundar essa
vertente, o Criando Rede de Esperança encaminhou diversos convites à Guarda
Municipal para composição conjunta da rede, e obteve a participação de dois
guardas, atuantes na região central da cidade, por duas reuniões. Porém, não houve
continuidade e foi possível apenas manifestar a preocupação com a situação e o
desejo de encaminhamentos para essa direção, sem, contudo, ter efetividade para tal.
Como último tema, a discussão sobre os serviços direcionou-se para a rede já
freqüentada pela população, ficando o destaque para as falas que indicavam a
necessidade de realização de atividades setoriais nos bairros, no âmbito da prevenção
e do cuidado, de temas que tangenciem a infância, a adolescência e a juventude.
Os resultados obtidos nos grupos de atividades são condizentes com a
descrição de SPOSITO (2007):
Quando podem se manifestar e quando são ouvidos, os jovens demandam alterações
efetivas em mundos que dizem respeito às possibilidades de constituição de um
outro futuro sendo dimensões importantes desse projeto a escola e o trabalho. Ao
lado dessas preocupações, desejam experimentar intensamente os tempos presentes
na esfera do lazer, da fruição e do acesso aos bens culturais desde que condições
mínimas na vida urbana sejam asseguradas (p. 35).
O processo de realização dos grupos engendrou um outro tema conseqüente: a
participação. O debate conjunto nas instituições, mediado pelas atividades, propiciou
um espaço aberto de idéias que motivou o pensar sobre essa estratégia enquanto
metodologia de trabalho e possibilidade de inclusão na dinâmica institucional. Um
jovem representou a simplicidade da proposição dizendo que bastaria se colocar no
lugar deles para compreender o que queriam:
211
Figura 24 – Cartaz do grupo de atividades
Em algumas falas, isso pôde também ser representado:
Isso aqui que a gente teve [o grupo] serviu para a gente aprender a ter um diálogo
com a equipe. Porque temos que estar todos juntos, porque aqui a gente está tipo
numa rede, para discutir as opiniões (Lucas, no grupo em que estava como
participante).
Eu acho importante a gente se reunir aqui. É uma reunião que trouxe um crescimento
pra nós mesmos, porque a gente tem que aprender sobre nossos direitos, pra
aprender a falar, pra reivindicar. Eu não sabia que eu podia dar opinião (Adolescente
de 16 anos participante do grupo de atividades)
.
O seminário contou com a participação de três adolescentes, um deles Lucas,
que acompanhou todas as atividades e debates realizados. Durante a apresentação do
material produzido nos grupos, Lucas explanou sobre as categorias descritas e
comentou, após a conclusão, por sua iniciativa, sua opinião a respeito da modificação
da estrutura do CRAISA e da saída dos educadores sociais do equipamento,
lamentando o fato e dizendo estar preocupado sobre o futuro dos serviços para
atendimento aos adolescentes, em Campinas.
212
Após a realização do seminário, retornamos a seis instituições, das doze
inicialmente visitadas, fazendo a apresentação realizada no seminário para os
adolescentes locais, buscando sugestões para complementação, alteração ou
referendo do documento. O retorno ocorreu nesses locais pela compreensão de que
eram instituições com um grupo de usuários mais “fixo”, que havia participado das
atividades pré-seminário. Nas instituições de grande rotatividade e, portanto, com
pequena possibilidade de reencontro com os adolescentes participantes da primeira
etapa, descartou-se a realização desse segundo momento. Dois desses grupos de
retorno contaram com a participação de Lucas e, na maioria das instituições, os
adolescentes reconheciam seus cartazes e falas na apresentação. O documento final,
elaborado com o auxílio de alguns técnicos do Criando Rede de Esperança, foi
encaminhado, pelo CMDCA, para a gestão municipal central
8
.
O processo de realização dos grupos mostrou-se interessante na sua execução,
trazendo um produto para análise e caminhou na tentativa de criação de espaços de
escuta para os adolescentes. A participação efetiva no seminário, propriamente dita,
foi bem pequena, de três adolescentes, porém a realização dessas atividades
despertou a discussão interna, nas instituições, para usuários e técnicos, da
possibilidade e facilidade para a criação e fomento de espaços próprios de discussão,
participação e tomada de decisão conjunta. Parece-nos que o processo realizado
contribuiu para uma reflexão interna das instituições sobre esses aspectos, mas não
influenciou nas intervenções efetivas na dinâmica do seminário. Assim, formou um
material sobre o panorama geral da visão dos adolescentes sobre as suas condições
de vida e recursos acessíveis, dando pistas sobre o tempo presente, e pontos de apoio
no espaço de vida daqueles adolescentes e jovens.
8
CMDCA. Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente. II Seminário em defesa dos
direitos da criança e do adolescente em situação de rua, 2006. Relatório de atividades realizadas. 13 p.
2006.
213
4.3.1 Serviços em destaque: o Pernoite Protegido
O Pernoite Protegido e a Sala de Transição foram serviços derivados do
Criando Rede de Esperança, de sua ação política encaminhada a partir da avaliação
dos técnicos participantes do grupo sobre as demandas prioritárias no campo da
educação e da moradia. Os nomes dados para cada um desses locais expressavam os
projetos em discussão e suas proposições de realização.
O Pernoite Protegido baseava-se na idéia da oferta de uma possibilidade de
noite protegida para os meninos e as meninas que estivessem na rua e nela quisessem
permanecer. Diferentemente de um abrigo, não se tratava de uma moradia
permanente, mas sim da alternativa de um local para dormir, momento em que os
educadores do serviço buscariam fazer encaminhamentos, tendo como objetivo-fim a
saída da rua. Assemelhava-se aos projetos de albergues para moradores adultos em
situação de rua, tendo como finalidade o acolhimento daqueles que buscam algum
cuidado transitório. Justificava-se pela criação de um serviço de natureza transitória,
ofertando uma ação passarela, ou seja, caracterizada como uma passagem, entre o
dormir na rua e o ser abrigado. Defendia-se que havia um estágio intermediário no
qual seria relevante um espaço para proteção e, concomitantemente, para o
desenvolvimento de um trabalho educativo, de mediação, para encaminhar essa
população para a rede de serviços. Esse tema ganhou a pauta das reuniões do Criando
Rede de Esperança entre 2003 e 2004.
O objetivo era criar um:
Espaço de satisfação de necessidades básicas: sono, alimentação, proteção,
convivência, construção e orientação, revelação de desejos, cuidando das
vulnerabilidades. Construção e reconstrução do ECA vivo, respeitando a opção de
estar no espaço, realizando uma concorrência com a rua, espaço atrativo (lazer),
realizando acolhimento noturno, espaço para construção de regras e ritmos, espaço
de complementariedade da rede, espaço que compõe a rede (ONG e OG), espaço
transitório (...). Visa interromper o ciclo de grande vulnerabilidade (morrer
precocemente, tornar-se infrator, tornar-se dependente químico). Criar a vontade de
se cuidar. Promover o acesso à rede. Proteger contra a violência. Dormir protegido
do frio, do calor e sem fome. Oferecer a possibilidade de escolha do dormir
214
protegido. Tornar este serviço referência para os meninos e meninas em situação de
rua. Espaço de convivência. Espaço de lazer (oficinas de lazer, cultura e esporte)
9
.
A proposição do serviço foi levada à Secretaria de Assistência Social, por
intermédio de seus membros que estavam na rede. Os gestores reconheceram o
mérito do projeto, mas alegavam falta de recursos financeiros para sua viabilização.
Obteve-se, nesse tempo, a concessão de uso do espaço municipal do antigo
Projeto Casa Amarela, ocupado, posteriormente, pelo CRAISA, para abrigar
fisicamente o Pernoite Protegido. Entretanto, pela escassez de verbas, a Secretaria de
Assistência Social sugeriu a realização de uma parceria com uma ONG para
administração do projeto e contratação de recursos humanos. Esse encaminhamento
causou um desconforto no Grupo, que assinalava a vulnerabilidade de projetos
executados por ONGs e sua não assunção no âmbito público, destacando a mudança
de administração municipal como um risco para a não continuidade de convênios.
Ressaltava, ainda, que as “ideologias” das ONGs são próprias e poderiam ser
conflitantes com as concepções que se vinham construindo e qualificando no
trabalho coletivo para o projeto. Vale destacar que parte dos atores desse grupo, que
fomentaram esse debate, eram funcionários e executores de projetos em ONGs, com
recursos municipais.
Concluiu-se que essa decisão não era de governabilidade do Grupo, mas sim
da Secretaria de Assistência Social, responsável pela implementação do serviço. Foi
tomada a medida de encaminhar o descontentamento dessa resolução por meio do
relatório de avaliação realizado para o Colegiado Intersetorial da Infância e da
Juventude, da administração central do programa, que gerenciava todos os projetos
em andamento no município, incluindo o Criando Rede de Esperança.
Em 2004, teve início um novo projeto em Campinas para o enfrentamento à
exploração sexual infanto-juvenil, o Rotas Recriadas
10
. Ele foi implementado com
um financiamento que o município recebeu da Petrobras, fruto de isenções fiscais,
9
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Prefeitura Municipal de Campinas. Ata da reunião realizada
em 05 ago 2003. 2003, p.1-2.
10
Apresentaremos esse programa na história de Maria e Rafael.
215
para ações com esse fim. Com um montante significativo, R$ 1 milhão, possibilitou a
criação de equipamentos sociais e a contratação de profissionais para trabalhar nessa
temática. Foi planejada a criação de Centros de Convivência – através da Secretaria
de Cultura, Esportes e Turismo – entre os quais a população em situação de rua, e na
região central da cidade, era um dos grupos que seriam atendidos. Nesse momento,
representantes do Criando Rede de Esperança sugeriram a articulação desse projeto
junto à Secretaria de Assistência Social, para a criação de um serviço 24 horas, que
pudesse caracterizar-se, no período diurno, como um Centro de Convivência e, no
período noturno, como um pernoite protegido. Com essa verba, a Secretaria de
Assistência Social realizou a parceria com uma ONG e inaugurou o serviço, em
novembro de 2004, no penúltimo mês daquela gestão, que não teria continuidade na
cidade. O local, após uma pintura realizada, passou a ser identificado, pelos novos
funcionários e pelos adolescentes, de “Casa Verde”.
No início dos trabalhos, houve uma proposição de co-gestão entre a Prefeitura
e a ONG, como resposta parcial às insatisfações expressas pelo Grupo, por não se
tratar de um serviço público direto. Nesse acordo, a coordenação local era de
responsabilidade de uma funcionária de carreira da Prefeitura e os demais técnicos
eram contratados pela ONG. O serviço funcionou de novembro de 2004 a abril de
2005. No ano seguinte, as verbas vindas do financiador do Projeto Rotas Recriadas, a
Petrobras, foram consideravelmente reduzidas, além da mudança da gestão
municipal, que alterou o desenho do projeto como um todo, interrompendo as
atividades daquele serviço.
Os demais serviços da rede pressionaram a Secretaria de Assistência Social
para a viabilização financeira da reabertura do Pernoite, uma vez que, na gestão
iniciada em 2005, essa população não era mais o grupo-alvo de ações, sendo
necessárias ações técnicas internas e pressões externas para a manutenção ou
reentrada dessa população na agenda do governo.
eu tenho a impressão que há uma fala de “nós não vamos excluir ninguém”, mas, ao
mesmo tempo, não excluir não significa incluir, tem, ainda, um movimento, uma boa
vontade, de que nenhuma política que está sendo feita fará exclusão, mas quando se
pensa nas ações, não se pensa neles[meninos de rua]. Então eu sempre puxo: “gente,
216
mas têm esses também”, então tem um discurso de que é para todos, tal política para
jovens é para todos, mas dentro do “todos” não tem esta clareza de quem são,
realmente, todos (...). Tem que lembrar: “Olha, tem esse público também!
[referência a população em situação de rua]” (Assessora da área de criança e
adolescente da Secretaria de Assistência Social e Conselheira representante do
âmbito público no CMDCA, em ambas funções a partir de 2005).
Entre as pressões externas realizadas, os técnicos declaravam a relevância do
serviço e encaminhavam questionamentos formais para a Secretaria de Assistência
Social, solicitando esclarecimentos sobre o fechamento do Pernoite. A pressão mais
direta foi expressa pelos Conselhos Tutelares. Os conselhos haviam perdido um local
de referência dessa população, principalmente no período noturno, quando não havia
serviços em funcionamento, momento em que recebiam a guarda municipal e a
solicitação de um local para “entrega” dos adolescentes que não tinham, ou não
declaravam, família.
O Conselho Tutelar deixou a Secretaria quase maluca. Teve uma pressão muito
grande. Você tem um programa e este programa acaba, principalmente uma proposta
como o pernoite, então é difícil, pois você tinha um lugar para levar os meninos e, de
repente, você não tem mais. Um lugar central, um lugar que aceitava esta população
de uma forma mais irrestrita, então teve uma pressão grande, imensa, do Conselho
Tutelar (...). Tinha casos que eles ligavam de madrugada para a gente resolver. Tipo
assim: “E aí, não tem o pernoite então o que eu faço?”. Muita pressão. Mas havia a
necessidade mesmo, era preciso (Assessora da área de criança e adolescente da
Secretaria de Assistência Social e Conselheira representante do âmbito público no
CMDCA, em ambas funções a partir de 2005).
Fruto desse processo, o Pernoite Protegido reabriu, em julho de 2005, a partir
do estabelecimento de uma parceria com outra ONG do município, originalmente
uma comunidade terapêutica. A proposição foi assumida no orçamento da Secretaria
de Assistência Social, no bojo dos serviços realizados em parceria com instituições
sociais. A partir de sua reabertura, a administração e gestão ficaram, exclusivamente,
com a ONG, não contando mais com a proposição de co-gestão e medição de uma
funcionária municipal, experiência inicial do serviço.
O equipamento contava com uma freqüência de cerca de 15 adolescentes
diferentes/mês (segundo a Coordenadora Setorial da Criança e do Adolescente, da
217
Secretaria de Assistência Social em entrevista individual). Responsabilizava-se por
casos de diferentes naturezas, tendo sido passagem para João, quando retornou para
Campinas, e aguardava um “novo” local para morar; para Cíntia, em muitos de seus
movimentos de idas e vindas do abrigo; para Lucas, quando saiu de um abrigo e foi
acolhido em outro; para Maria, e sua vinculação com a rua e a exploração sexual;
para Amanda, irmã de Maria, quando sofreu uma violência física, praticada por um
suposto cliente para quem oferecia trabalho sexual, que tentou enforcá-la e deixou-a
no Pronto-Socorro; para os adolescentes que foram internados em uma unidade
psiquiátrica; e outros casos. Era presente, também, uma demanda secundária, porém
importante de se apontar, por retratar as condições de vida de parte da população
infanto-juvenil na cidade:
Eles falam: “tia, a minha mãe sabe que eu vim aqui, ela deixou, ela falou que eu
podia vim almoçar, tomar café da tarde e que depois voltasse pra casa”, isso é
negativo, porque você abre para um intuito, mas aí você vê que também é um
chamariz para outra coisa. O menino que está passando fome, lá no Parque Oziel
[favela caracterizada como maior ocupação da cidade], vai vir para cá em busca de
alimento, e aí ele termina fazendo o vínculo com o menino e a menina que estão na
rua. Aí fica difícil para trabalhar, a única coisa que a gente consegue fazer, de
imediato, é levar para o Conselho, avisar que tal adolescente está aqui e não tem o
perfil dos meninos de rua (Assistente Social do Pernoite Protegido).
A constituição e manutenção desse serviço ocorreram pela pressão do
coletivo de técnicos da rede para responder a uma demanda, naquela ocasião,
interpretada como prioritária para o atendimento a essa população. Efetivou-se com
modificações no seu percurso, dadas pelas questões econômicas e organizativas da
secretaria a que estava vinculado. Esse serviço assumiu o lugar de mais uma estação
de cuidado para os meninos e as meninas em situação de rua, como mais um ponto
de passagem e possibilidade de acolhimento.
218
4.3.2 Serviços em destaque: a Sala de Transição
A Sala de Transição representava um dos grandes ganhos do Grupo Criando
Rede de Esperança. Assim como o Pernoite Protegido, fincava sua origem nas
discussões locais e nos encaminhamentos e pressões políticas realizadas pelo Grupo.
Diferentemente do Pernoite que, para sua implementação teve encaminhamentos
divergentes por parte de sua secretaria, a Sala de Transição, por sua vez, foi o
primeiro serviço constituído a partir da rede e teve seu projeto, da concepção à
implementação, dado inteiramente pelas diretrizes debatidas e acordadas no Criando
Rede de Esperança.
Expressava a inserção política do Grupo, na gestão 2001-2004, que tinha
entrada na administração central para sugerir projetos para aquele público. A Sala de
Transição representava a institucionalidade do Grupo e o poder de algum
ordenamento interno nos serviços municipais para efetivação de suas demandas.
“Não são todas as instâncias da máquina estatal que têm autoridade para criar
programas; ao contrário, a possibilidade de formulá-los supõe uma dada inserção
institucional em cargos que confiram algum nível de centralização da autoridade”
(ARRETCHE, 2001, p. 46).
O projeto de criação de um espaço de educação direcionado especificamente
a meninos e a meninas em situação de rua era um tema antigo entre os diferentes
serviços da rede de atendimento em Campinas. A necessidade e relevância do
ambiente formal escolar eram pontos indiscutíveis, e, na mesma proporção, eram
recorrentes e conhecidas as histórias de exclusão e de abandono pela escola formal.
Propunha-se a constituição de um espaço com flexibilidade de regras para
aproximação com a população em situação de rua, mas que se dedicasse à realização
da escolarização formal para esse público.
Esse tema assumiu o lugar prioritário do Criando Rede de Esperanças,
traduzindo-se como uma de suas primeiras ações e concretização. Durante o ano de
2003, foram discutidas e consensuadas as bases para o funcionamento do novo local.
219
A “transição” caracterizou-se como objetivo final do trabalho, pois visava à
passagem dos jovens para a escola regular quando estivessem mais “adaptados” à
rotina escolar e com condições de se submeterem às suas normas. A prioridade da
escolarização formal, e do ensino de conteúdos inerentes ao currículo escolar, foi o
referencial adotado para a integração do projeto no âmbito da educação formal.
Debateu-se a pertinência da sua inserção na educação não-formal, pelas
peculiaridades do grupo a ser atendido. Contudo, reconheceu-se que essa área já
estava presente na vida daquela população, em razão do grande número de ONGs,
que executavam atividades com esse fim. Priorizou-se, então, a formação, a
oportunidade de aproximação, daqueles meninos e meninas, ao universo do
letramento, ou seja, o direito à educação formal, que não vinha sendo respeitado.
A Secretaria Municipal de Educação assumiu a gestão e o financiamento do
projeto, que ocorreu pela reordenação de recursos já existentes. Em julho de 2003,
foi feita uma seleção interna, na rede municipal de educação, para que professores se
candidatassem para quatro vagas, para a criação de duas salas. Para a realização
dessa seleção, foi criada uma comissão intersetorial, com representantes das
diferentes secretarias e de uma ONG. Essa equipe organizou uma capacitação, aberta
também para os demais funcionários da rede de educação, na qual os participantes do
Criando Rede de Esperança ministraram palestras. Acordou-se e negociou-se com a
secretaria de Educação a participação das professoras contratadas no Criando Rede
de Esperança, sendo horas contada como carga horária de trabalho. A proposição
final do projeto foi:
A “sala de transição” se constituirá como um espaço educacional acolhedor de
crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social que já perderam o vínculo
escolar ou nunca o tiveram. Visa fazer valer o direito à educação escolar que é
garantido não somente pela legislação, mas principalmente pela sua legitimidade
subjetiva. Portanto, objetiva a inclusão de crianças e jovens na escola formal, tendo
como finalidade desenvolver posturas e atitudes que satisfaçam as necessidades para
a participação em ambiente escolar”
11
.
11
CRIANDO REDE DE ESPERANÇA. Proposta Pedagógica e de Gestão da “Sala de Transição”.
2003, p. 1.
220
O projeto da Sala de Transição iniciou-se junto a uma escola direcionada para
a Educação de Jovens e Adultos, no programa da Fumec (Fundação Municipal para
Educação Comunitária). Essa escola ocupava o espaço físico de uma ONG católica,
através do estabelecimento de uma parceria, com repasse de verbas. A ONG era
responsável por um projeto de medida de proteção para crianças e adolescentes, no
período contrário ao escolar; pela aplicação de medida socioeducativa de Liberdade
Assistida; e por um Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).
Debatia-se a pertinência de esse projeto estar alocado no interior de uma
ONG. A justificativa da Secretaria de Educação apoiava-se nos argumentos da
localização central da instituição e por integrar o campo dos “projetos especiais”
desenvolvidos ali pela Fumec. Para as supervisoras educacionais, havia uma
limitação imposta por essa questão, salientada pelo fato de a ONG ter suas regras
próprias de funcionamento, que interferiam diretamente no cotidiano escolar, e por
aglutinar uma instituição laica, como a escola, com uma instituição católica,
princípio da ONG, disponibilizando menor autonomia de trabalho para a equipe e
limitação ao desenvolvimento da proposição pedagógica. Mas, esse posicionamento
não era consensual, para uma das professoras da sala, o projeto estava ali instalado:
Porque era um sonho, um objetivo, da obra social ter uma escola. Então a obra social
falou: “eu quero ter uma escola para atender nossos meninos que estão em situação
de alta vulnerabilidade”, e a prefeitura falou: “nós queremos uma parceria com a
obra social”, então era um sonho ter uma escola e a prefeitura falou “eu quero que
aconteça junto com a obra social” (Professora da Sala de Transição).
No Criando Rede de Esperança, a maioria dos participantes concordava com
os pontos negativos elencados pelas supervisoras. Por isso, incluiu-se na avaliação
final do grupo, em 2003, a indicação de mudança de local para a Sala de Transição.
Tal medida não foi acatada pela Secretaria de Educação, alegando não dispor de
condições financeiras e organizativas. A Sala de Transição permanece em
funcionamento junto à mesma ONG.
No início das atividades, no segundo semestre de 2003, foram criadas duas
salas para esse projeto. Todavia, não houve público suficiente para essa oferta.
221
Dispunha-se de quinze vagas/turno e ocorreu, em média, a freqüência de dez alunos
no total. Com essa situação, para o ano letivo de 2004, a Secretaria de Educação
reduziu o projeto para uma sala, retornando duas professoras para a rede de ensino.
Outro apontamento presente na elaboração do projeto, era sobre os riscos da
Sala de Transição transformar-se em um gueto, em uma sala especial, na qual haveria
profissionais especialmente qualificados para trabalhar com “alunos problemáticos”,
reforçando o estigma de que esses não deveriam estar na escola, mas sim em projetos
especiais. Por outro lado, era reconhecida a necessidade de instalação de medidas
que facilitassem o acesso à educação por essa população, uma vez que,
concretamente, ela estava fora do sistema formal de ensino.
Havia uma necessidade colocada pela realidade, não há dúvida, até porque se você
for pensar no cumprimento dos princípios constitucionais, da LDB [Lei de Diretrizes
e Base], dos planos decenais, da Lei Orgânica do Município, o atendimento deve ser
estendido a todos, não especificamente a uma classe social, a um perfil social. É um
direito subjetivo, então cabe ao Estado criar as condições, do ponto de vista legal e
formal. Do ponto de vista da Constituição, em si, eu ainda via no processo, e vejo
hoje, que há uma certa lacuna entre a organização formal da escola e a necessidade
que advém desta população que está na rua. O modelo da escola é, ainda, muito
fechado, tanto é que foi necessário a gente pensar numa escola inclusiva, começar a
divulgar esta concepção, começar a tornar isso lei, para que alguns segmentos que
não estavam sendo atendidos ingressassem na escola. Se fosse um processo
“natural”, entre aspas, não era nem necessária esta discussão (Supervisora
Educacional da Secretaria Municipal de Educação).
No debate sobre as possibilidades de atendimento da sala, juntamente com a
realidade de pouca freqüência dos meninos em situação de rua, optou-se por ampliar
o público-alvo, direcionando-se para aqueles em situação de vulnerabilidade social e
que estivessem muito tempo fora da escola ou nunca a tivessem freqüentado. Seria
mantido para todos seu objetivo de transição, encaminhando-os, o mais rápido
possível, para uma escola mais perto de sua casa, ou de seu território de circulação.
Como uma estratégia para se pensar a escola, a Secretaria Municipal de
Cultura e Esportes fez uma parceria, oferecendo o desenvolvimento de duas oficinas
de atividades, de dança de rua e de capoeira, direcionadas a todos os alunos da
escola. A medida foi acordada, tendo em vista a dificuldade de permanência do
222
público em defasagem escolar. Os profissionais locais avaliavam como positiva essa
inserção, pontuando a criação de mecanismos de facilitação para o trabalho a partir
das oficinas de atividades. Elas mantiveram-se no período de 2003 a 2005, não se
renovando para 2006, quando, na nova gestão municipal, a Secretaria de Cultura e
Esportes redimensionou suas atividades e suprimiu-as.
A Sala de Transição configurou-se como um equipamento social da rede que
possibilitava a aproximação do universo do letramento para adolescentes em situação
de rua que, em muitos casos, mantinham um imaginário mágico sobre as letras e sua
decifração, dado que, em grande percentual, eram analfabetos ou analfabetos
funcionais. Não obstante, o objetivo da escola, de efetivar a transição, foi pouco
atingido entre a população em situação de rua, pois poucos foram encaminhados para
o sistema formal de ensino. Na maioria dos casos, os meninos e as meninas
abandonavam a sala antes dessa fase, em um trânsito entre a rede de serviços,
incluindo a Sala, e a rua. Todavia, entre os resultados presentes no cotidiano, vale
destacar a aproximação dos meninos ao mundo das palavras e a transição
efetivamente constituída para alguns.
Para a supervisora educacional, a avaliação desse equipamento e a produção
de indicadores sobre ele, até então inexistentes, deveriam ser desenvolvidos.
Eu acho que este é um projeto que a gente precisava ir mais fundo na questão da
avaliação, eu acho que não houve, ainda, uma avaliação mais sistemática da Sala de
Transição. Eu acho que as avaliações estão muito no nível pessoal, no nível das
relações, a gente precisaria ver o que está acontecendo ali, com olhar de pesquisador,
até para apontar as vulnerabilidades e apontar o que há de positivo, para a gente ver
se é este caminho ou se existem outros, ou se é este combinado com outros (...) a
gente ainda não fez esta avaliação sistemática, eu acho que as avaliações ainda estão
nos discursos: “está valendo a pena”, “é importante manter”, “devemos”, “é um
retrocesso não manter”, mas em que, efetivamente, esta Sala de Transição colabora
com a trajetória de vida destas crianças e destes jovens, destes adolescentes? Ela é
eficiente, mesmo? Ela é eficaz? Ela é efetiva? Ela é relevante? Para quem? Tentar
fazer uma avaliação mais profissional, e, muitas vezes, está no nível de defesa
militante “eu defendo porque esta população deve ter acesso!”. Ok, mas ela deve ter
acesso também a um serviço de qualidade, ela é merecedora de qualidade tanto
quanto os outros, então para mim ainda está faltando focar nesta questão de uma
avaliação mais séria, mais sistemática e mais pró-ativa (Supervisora Educacional da
Secretaria Municipal de Educação).
223
Entre os adolescentes com passagens pela rua e alunos da escola que
efetivaram a transição para o ensino formal, destacamos Cíntia e Lucas. Cíntia
freqüentou a Sala pelo período de, aproximadamente, um ano e depois concluiu o
Ensino Fundamental na modalidade supletiva, comemorado na sua formatura, que
contou com a presença de uma das professoras da Sala de Transição.
Para Lucas, a Sala foi também local de passagem para a rede formal de ensino.
Freqüentou-a pelo período de um ano. Dispunha de um histórico mais longo no
ambiente escolar e, embora tivesse sido expulso da escola de seu bairro, ao contrário da
realidade presente do universo que estava inserido, tinha um grau de conhecimento
escolar diferenciado. Com essa avaliação, foi matriculado diretamente no Ensino Médio.
Teve problemas “de comportamento” na escola em que estava, o qual, segundo seu
relato, era resultado de suas atitudes críticas e contestadoras à metodologia pedagógica
empregada pela professora local. Foi, então, transferido para outra escola a fim de dar
continuidade aos estudos.
Lucas vislumbrava a escolarização como possibilidade de mudança de seu lugar
social e abertura de horizontes para alcançar outro patamar, que poderia ser acessível a
partir de uma formação universitária. Por essa trajetória, via a possibilidade de tecer
sonhos e outros trajetos.
Minha vida daqui pra a frente é continuar, eu já tô quase para completar 18 anos, né? Eu
acho que é pegar firme nos estudos, fazer os cursos profissionalizantes na área de
informática, que é o que eu gosto, e
se pá
, fazer assistência social que é uma coisa que eu
curto bastante também. Fazer uma faculdade de direito, não sei, porque eu tenho várias
coisas em mente, de faculdade para eu fazer, e eu acho que, daqui para frente, também,
continuar os projetos que eu tô começando agora, por exemplo, dar aula de informática
no CRAISA, que é uma coisa nova, nunca pensei que eu ia dar aula. E acho que é isso. E
continuar correndo atrás do que eu quero, atrás dos meus sonhos (Lucas em entrevista
individual).
Para Lucas, a entrada na rede de serviços, e sua adesão a ela, foi a
possibilidade de trilhar seu percurso, aproveitar benefícios que passou a acessar e
criar novos posicionamentos e funções sociais advindos desse processo. Com isso, o
futuro, e sua visualização, alcançou o discurso, os planos, os sonhos.
224
4.4 Maria e Rafael
1
Maria ganhou visibilidade, no interior da rede de serviços, em razão de sua
passagem por diversos equipamentos, de sua personalidade marcante, dos constantes
eventos de conflitos com os demais jovens – e, em alguns momentos, com os
profissionais – e de sua trajetória e de sua família, marcada pelas intervenções
institucionais, da assistência social à Justiça. Quando realizamos a entrevista para
este trabalho, em 2006, ela estava com 18 anos.
Sua freqüência na rede de serviços iniciou-se em 2002, quando contava 14 anos,
ocasião em que sua família sofreu uma intervenção do Conselho Tutelar. A família era
composta pela mãe, que estava grávida, uma irmã de 12 anos, dois irmãos, de 7 e 5 anos, e
o companheiro de sua mãe. Vinham de uma história de migração, do Nordeste do país e
habitando, por curtos períodos de tempo, diversas cidades. A última viagem que a mãe
com todos os seus filhos fizeram, para Campinas, ocorreu para “fugir” do pai biológico de
Maria, que os submetia, constantemente, à violência física. Segundo a irmã de Maria:
“ele
acordava todo mundo no meio da noite pra apanhar”
(sic)
.
Em Campinas a mãe de Maria aproximou-se de um outro homem, com quem
passou a morar, e engravidou. Estavam instalados em uma região de ocupação, com uma
habitação de dois cômodos de madeira, sob condições de extrema pobreza. Para a
sobrevivência, a mãe de Maria mendigava em alguns pontos da cidade, acompanhada de
seus dois filhos menores. Maria e Amanda, sua irmã, transitavam pelas ruas e não
retornavam para casa todos os dias. Também eram responsáveis por levar algum dinheiro
para o sustento da família.
A situação dessa família representa um quadro de precariedade
socioeconômica recorrente entre a população moradora de Campinas, dos grupos
populares.
1
Apresenta-se o relato de passagens da história de Maria. Ela, juntamente com Rafael, constituiu
uma relação amorosa longa e eram reconhecidos nesse lugar, por eles mesmos, pelas instituições e
pelos demais adolescentes nas ruas. Por essa vinculação afetiva entre eles, mantivemos entrelaçados
os relatos. Pelo nosso contato mais aprofundado com ela, enfocamos a descrição, os serviços e os
momentos significativos nas passagens de Maria.
225
A questão da pobreza é explicitada pelos índices de desigualdade e de relação
riqueza/pobreza no país que demonstram a complexidade das estruturas capitalistas
periféricas, como o caso brasileiro. A “pobreza é uma palavra de significado
aparentemente simples, porque, em oposição à riqueza, diz respeito a uma situação
na qual uma pessoa (ou uma família) não tem condições de viver dentro dos padrões
socialmente estabelecidos em um certo momento histórico” (STOTZ, 2005, p. 53) e
representa um grupo de pessoas que se encontra “fora do contrato social”, pois não
acessa os “imperativos da sobrevivência”, em um estágio anterior à “noção de
igualdade” (TELLES, 2001, p. 57).
Invocar a pobreza implica relacioná-la com a dimensão do trabalho, no
interior da sociedade capitalista, e a crise da sociedade salarial (CASTEL, 1998),
configurada pela transformação do lugar e dos tipos de trabalho, bem como pela
diminuição (e, em algumas situações, inexistência) da assistência e seguridade da
classe trabalhadora (CASTEL, 2003). Como conseqüência desses processos, houve a
inserção de novas formas, alternativas e marginais, no mercado de trabalho, as quais
passam pela discutida terceirização das atividades de serviços; pela criação de
alternativas de trabalho, como as cooperativas; pelo mercado informal e paralelo;
além do crime organizado, no qual, por exemplo, “o comércio das drogas ilícitas
como a maconha, a cocaína, o crack e o ecstasy abriu as portas para centenas de
jovens miseráveis nas favelas e bairros populares, ao mesmo tempo em que tornou
sua existência mais curta, na medida em que se trata de um mercado disputado de
armas na mão” (STOTZ, 2005, p.67).
Nessa direção, muitos estudos são produzidos para a mensuração do
problema, com o intuito de auxiliar na formulação de políticas públicas. Os índices
demonstrativos dos níveis de pobreza na sociedade brasileira, com base na vertente
econômica, apontam um grande percentual de cidadãos fora do contrato social de
venda da sua força de trabalho ou ainda sobre condições chamadas precárias e/ou
marginalizadas de atividades remuneradas. Segundo o IBGE (2007b), existe um alto
índice de desigualdade de renda no país, que pode ser observado, por exemplo, pela
comparação dos rendimentos mensais familiares dos 40% mais pobres com os
226
valores recebidos pelos 10% mais ricos, detectando-se, entre os mais ricos, uma
diferença de rendimentos 18 vezes maior que os vencimentos dos 10% mais pobres
2
.
Em Campinas, esses dados reproduzem-se, evidentemente, como um exemplo
de uma cidade metropolitana com altos índices de precariedade econômica, realidade
vivenciada nos grandes centros urbanos. Segundo o Índice Paulista de
Responsabilidade Social (SÃO PAULO, 2006), o município de Campinas é
classificado como um local com bom nível de riqueza; porém, a mesma não se reflete
sobre os índices sociais, uma vez que nesse estudo são analisados os níveis de
escolaridade e longevidade da população. Para a realização de uma análise interna
das diferenças sociais, a Secretaria Municipal de Saúde produziu, em 2001, o Índice
de Condições de Vida, que buscou criar um instrumento de avaliação de indicadores
sociais para se analisar os níveis de qualidade de vida e saúde na área de abrangência
dos Centros de Saúde do Município (PMC, 2001)
3
. Esse instrumental criou uma
classificação entre os bairros da cidade, demonstrando que o bairro onde a família de
Maria morava encontrava-se entre os piores índices da cidade.
As dimensões da pobreza alargam-se para além da vertente econômica, que
reflete os padrões mínimos de sobrevivência, e engloba outras privações, o
imaginário e a ação político-social e cultural, desencadeando efeitos na esfera dos
direitos e da cidadania. A situação de pobreza explicita a privação de direitos e se
define como uma antinomia da cidadania, agravada pela cultura brasileira que cria
padrões de subcidadãos subalternos. Visão justificada pela noção de pobreza “como
foco de uma incivilidade que descredencia o ‘pobre’ como sujeito de direitos e o
coloca aquém das prerrogativas que supostamente a lei deveria lhes garantir”
(TELLES, 2001, p. 59).
2
Segundo o mesmo estudo (IBGE, 2007b), as famílias correspondentes aos 40% mais pobres tinham
uma renda per capita de, em média, R$ 147,00/mês, ou seja, menos de ½ salário mínimo, e os 10%
mais ricos eram portadores de uma renda per capita de, em média, R$ 2.678,00, expressando um
aumento de mais de 18 vezes. Tal discrepância é ainda mais elevada quando comparada com o 1% de
famílias mais ricas do país que recebem, em média, per capita, R$ 7.688,00. O estudo aponta, ainda,
que houve uma diminuição desse índice, se comparado com os dados de 1996, quando a diferença de
rendimentos entre os 40% mais pobres e os 10% mais ricos era de mais de 23 vezes (p. 87-88).
Apesar da diminuição da relação riqueza/pobreza nos últimos dez anos, esse dado expressa, ainda,
uma desigualdade extremamente grande e alarmante.
3
Ver figura 3.
227
Esse padrão político-cultural, que não parte dos princípios de igualdade e
direitos, mas sim das subcategorias da cidadania, cria níveis hierárquicos no interior
da pobreza, sendo o último patamar ocupado pelos “pobres-de-tudo”, definidos por
TELLES (2001) como os “favelados e os que não têm um lugar fixo onde ancorar
suas vidas, os que não conseguem emprego regular e vivem à deriva das
circunstâncias e acasos da vida” (p. 83).
Sob essa ótica, a família de Maria era compreendida como os “pobres-de-tudo”,
que não contavam com nenhum recurso estável, entre aqueles socialmente estabelecidos.
Por essa situação, com a interpretação de negligência e risco vivenciados pelas crianças e
adolescentes dessa família, o Conselho Tutelar interveio, com sua missão de garantia de
defesa dos direitos da população infanto-juvenil. Alegou situações de trabalho infantil
dos meninos, vulnerabilidade nas ruas vivida pelas meninas e risco para o bebê que viria a
nascer.
Com relação ao bebê, o serviço de saúde para a população em situação de rua, por
meio do acompanhamento familiar, propôs para a mãe de Maria a realização do parto
seguida de uma laqueadura, para impedir futuras gestações. Fizeram a intermediação com
a maternidade onde seria realizado o parto e agendaram a realização do procedimento. A
mãe de Maria dizia estar de acordo. Entretanto, no dia do nascimento da criança, ela não
se dirigiu para a maternidade que estava pré-agendada e fez o parto da filha em um
município vizinho a Campinas. Alegou que estava nessa cidade quando iniciou o trabalho
de parto e, por esse motivo, não foi para a maternidade combinada, resultando na não
realização da laqueadura.
Na intervenção do Conselho Tutelar na família, em resposta a uma denúncia
sobre a situação das crianças, a mãe foi advertida formalmente e o C.T. tomou algumas
medidas, tais como: a ameaça à retirada da guarda dos filhos menores, através de
abrigamento; determinação de matrícula deles na escola e de acompanhamento pré-natal
no serviço de saúde; a inserção de Amanda no Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (PETI), com a finalidade de acesso à bolsa mensal para a família e a freqüência
dela em um equipamento social de proteção; e o abrigamento de Maria, pela sua
vinculação mais enraizada com as ruas. A matrícula dos meninos em equipamentos da
228
educação efetivou-se na pré-escola e essa representava a primeira vivência deles no
ambiente escolar, pois, para todos eles, a escola não era um local familiar, já que haviam
tido curtas passagens nesse espaço, por causa das constantes mudanças de cidades,
acompanhando sua mãe. Maria e Amanda eram analfabetas.
Amanda começou a freqüentar o Programa Convivência e Cidadania, da
Secretaria de Assistência Social – que atuava com meninos e meninas do mercado
informal de trabalho e mendicância – com a proposição de permanecer, diariamente,
no período da tarde na instituição. A família passou a receber R$ 180,00/mês (valor
do ano base de 2006). Interrompeu a sua integração no serviço pelo processo de
estruturação progressiva nas ruas, que vinha constituindo.
Ela representava uma inserção nas duas categorias criadas na cidade para
abordagem com a população adolescente em situação de rua. Por uma vertente,
enquadrava-se no mercado informal, pela necessidade concreta de conseguir recursos
financeiros para a família; por outra, inseria-se na rua, de forma mais “estruturada”,
fazendo dela seu espaço de vida. Seu encaminhamento para um serviço relacionado
ao trabalho infantil ocorreu para atribuir a bolsa para sua família, reconhecida como
carente de recursos financeiros, e também pela aposta no seu retorno para casa, o que
não se concretizou.
Para a coordenadora do Programa Convivência e Cidadania, a diferenciação
entre os públicos é considerada uma estratégia importante de trabalho com a
população em situação de rua, pois demandam metodologias diferentes de
intervenção. Utiliza o exemplo de Amanda como argumento:
Nós tivemos uma experiência com uma adolescente, depois que tinha montado o
programa aqui, que a família dela é toda do trabalho infantil, mas ela e a irmã são
moradoras de rua e ela veio freqüentar, e foi difícil para ela. Ela mesma se sentia
muito diferente dos meninos daqui. A vivência, a experiência dela da rua eram muito
diferenciadas de quem vai só para o trabalho infantil e retorna para a casa. Então, ela
mesma não conseguiu se adaptar. Os meninos que vão para o trabalho infantil, mas
retornam para casa, ainda têm uma questão do limite, das regras, pode, também, ser
que tenham alguns com muito baixa tolerância, mas alguma coisa eles ainda têm.
Agora quem está vivendo na rua, tem a rua como um espaço de muito mais
liberdade, e o espaço daqui, por ser um espaço fechado, com salas, onde, às vezes, o
adolescente se concentra na atividade, não é um espaço adequado para esse grupo. É
229
um espaço diferenciado, um espaço fechado, com tudo divididinho, tudo certinho,
não dá para misturar os perfis. (...) a educação social de rua é diferente neste tipo de
trabalho, a pedagogia é diferente (Coordenadora do Programa Convivência e
Cidadania).
Após dois anos de freqüência intermitente no Programa, Amanda foi
desligada e foi feita a inserção de seu irmão, na ocasião com nove anos, que, embora
ainda não tivesse a idade mínima para esse serviço, foi aceito, como exceção, para
que a família não perdesse a bolsa, a qual se transformou em uma das fontes de
sustento mensal.
Maria, por sua vez, era vista na família como aquela mais enraizada na dinâmica
das ruas e, por isso, foi diretamente encaminhada para os serviços dessa natureza. Com
personalidade marcante, sempre falando alto e dizendo não temer a nada nem a
ninguém, era conhecida pela sua pouca paciência e envolvimento freqüente em brigas
com outros adolescentes. Em algumas ocasiões, ameaçava funcionários dos serviços,
quando lhe negavam seus pedidos. Pela sua postura associada à violência, era vista como
portadora de sintomas patológicos de ordem psíquica, com alteração de comportamento,
e que passava por algumas situações de crise. No serviço de saúde, onde realizava
acompanhamento, recebeu como conduta a administração de medicação psicotrópica
para controle de crises de violência.
Além da característica de seu envolvimento constante em brigas e episódios de
violência, chamava atenção pela sua vaidade e, constantemente, portava e utilizava roupas
novas, maquiagem, cremes cosméticos e utensílios de beleza, conseguidos, segunda ela,
de furtos nas lojas do centro comercial da cidade, ou da compra direta, com dinheiro
ganho por atividades envolvendo drogas ou programas sexuais. Os programas
configuravam-se como mais uma forma de acesso a um dinheiro para satisfazer seus
desejos de consumo, além de serem utilizados para o auxílio financeiro de sua família. Era
conhecida, entre os meninos em situação de rua, como alguém envolvida na
“prostituição”.
O termo “prostituição” é reconhecido como pertencente ao universo adulto.
Na área infanto-juvenil é utilizado o conceito de crianças e adolescentes prostituídos
230
ou em situação de exploração sexual. Trata-se de um posicionamento consensual
entre os técnicos desse campo, com a alegação de que a criança e o adolescente estão
em situação peculiar de desenvolvimento, e, portanto, submetidos a relações de
poder quando envolvidos em trocas sexuais com adultos (FALEIROS, 2000).
Maria permaneceu abrigada, segundo informações da instituição, por um período
de 342 dias, mantendo um trânsito constante entre a rua e a instituição, sem abandonar
algumas atividades das ruas, mas inserida na dinâmica dos serviços e nas atividades que lhe
eram propostas.
Nesse intervalo de tempo, entre as intervenções lançadas pelos profissionais,
houve o acesso à segunda via de sua certidão de nascimento, que a mãe não possuía, para
se efetivar o encaminhamento de sua documentação, procedimento padrão entre os
educadores sociais, quando acompanhavam um adolescente. Com a certidão em mãos,
Maria descobriu a data de seu nascimento e, a partir dela, fez sua primeira festa de
aniversário, no abrigo que estava. Acompanhada de outra adolescente e de uma
funcionária, também aniversariantes, receberam outros meninos e meninas, moradores
ou não do abrigo, funcionários de outros equipamentos, como os profissionais de
referência de Maria no serviço de saúde, e alguns familiares para, pela primeira vez, receber
os parabéns no seu aniversário. A festa de aniversário ganhou uma visibilidade para Maria
e mobilizou a participação de seus companheiros e profissionais que a conheciam, a partir
da informação de ser a primeira vez que cortaria um bolo. Ela se arrumou, para esse dia, e,
posteriormente, quando havia alguma conversa com o tema “aniversário”, ela relatava a
sua data, que guardava na memória, e a sua primeira festa, simbologia de existência,
reconhecimento, valorização e felicitação.
Esse tipo de “resultado”, produzido pelo trabalho das instituições sociais,
embora pouco influente na macro-análise dos programas e de suas ações produzidas,
dificilmente é considerado como critério de avaliação institucional, entretanto,
representa a produção de ações subjetivas e de valorização de uma população que,
comumente, não encontra reconhecimento social. As avaliações de políticas e
programas sociais são realizadas por diferentes metodologias, mas prevêem, na
maior parte das vezes, dados mensuráveis, mesmo que de ordem qualitativa. É
231
preciso lembrar, como aponta DRAIBE (2001), que “as políticas e programas
também têm, em contrapartida, carne e osso, melhor, têm corpo e alma” (p.26), ou
seja, produzem resultados humanos diversos. Nessa direção, vale destacar a
importância das intervenções realizadas, por organizações governamentais e não-
governamentais, na produção de “outros resultados”, como esse citado. Embora de
pequeno alcance, de pouca mudança no real lugar social dessa população, e distante
das “missões” preconizadas pelos diferentes serviços, trata-se de um tipo de
“resultado” que, visivelmente, produzia marcas nas trajetórias daqueles meninos e
meninas.
Maria vivenciou também, uma situação mais explícita de não reconhecimento
social e intervenção das instituições em que estava inserida, dessa vez no campo
jurídico.
Após, aproximadamente, oito meses no abrigo realizando acompanhamento
intensivo no serviço de saúde e tendo iniciado os estudos na modalidade supletiva, ela foi
presa por policiais, com outra adolescente, em um flagrante de tráfico de
crack
, conforme
os termos de seu processo. Maria estava retornando sozinha ao abrigo, depois de ter
passado pelo serviço de saúde, quando encontrou alguns amigos na rua e lá permaneceu.
Segundo ela, foi convidada para fumar
crack
com o grupo e aceitou, quando foram
surpreendidos pela polícia, mas ela e a outra menina não conseguiram fugir. Relata que
nesse momento os policiais colocaram outras pedras de
crack
nos bolsos delas e
declararam a apreensão por uso e tráfico de
crack
. Na versão dos policiais, eles receberam
uma denúncia de uso de adolescentes para o transporte de drogas no centro da cidade
(denominada, no linguajar das ruas e do tráfico de drogas, de “aviãozinho”), e
constataram o flagrante.
As meninas foram levadas para a Unidade de Internação Provisória. Como
Campinas não contava com nenhuma unidade feminina, nem de internação provisória,
nem para o cumprimento da medida, foram transferidas para a cidade de São Paulo para
aguardar a sentença. Assim que os técnicos foram informados, solicitaram uma audiência
com o juiz para se apresentarem como responsáveis pelos cuidados dela. Não se tratava de
conflitar o discurso do ocorrido, entre a versão de Maria e a do policial, pois não se
232
entrou no mérito da defesa e de seu julgamento, mas somente posicionar a Justiça sobre
o lugar social dessa menina e seu processo realizado pelos serviços nos últimos meses que,
segundo as profissionais, apresentava evolução positiva. A partir dessa intervenção, o juiz
determinou a liberação da adolescente para aguardar em liberdade o julgamento de seu
processo. A outra jovem, presa com Maria, era também conhecida dos serviços. O
mesmo procedimento foi adotado, mas pela garota já ter sido internada em medida
socioeducativa e ter descumprido a medida de Liberdade Assistida (L.A.)
4
aplicada após
sua internação, não lhe foi autorizada a saída da Unidade Provisória.
Representantes do abrigo fizeram a viagem até São Paulo para buscar Maria e
trazê-la de volta para Campinas. Ela estava muito assustada, falando ininterruptamente
sobre a experiência daqueles dias e dizendo que iria se converter para uma religião, “para
tomar jeito na vida” (anotações de campo). Mantinha sua versão dos fatos e dizia que
não deveria ter parado para conversar com seus amigos, “porque quem tá na rua, usando
[droga], é culpado de qualquer coisa, de qualquer encrenca, mesmo que esteja sossegado”
(sic). Relatava também outros processos de violência que havia sofrido naqueles dias de
internação.
Todo adolescente preso em flagrante pela prática de um ato infracional tem o
direito de avisar algum responsável e ter um acompanhamento jurídico para sua
defesa, conforme estabelecido no ECA. Entretanto, essa prática não é sempre
respeitada, notadamente quando se trata de adolescentes em situação de rua, uma vez
que é preconcebida a idéia de que eles não têm família, ou que há uma grande
dificuldade para contatá-las, além de um desinteresse por parte delas.
Os meninos em situação de rua são considerados como propícios à prática de
atos infracionais, na medida em que a rua é interpretada como locus de
promiscuidade, de desordem moral, da não-família, ou seja, o lugar onde estão “ ‘os
mais pobres de tudo’. E serão essas mesmas características e esses mesmos
4
A Liberdade Assistida é uma medida socioeducativa prevista no ECA, segundo o artigo 112 e
definida no artigo 118, na qual o adolescente será acompanhado por um profissional de uma
entidade ou programa de atendimento específico, o qual o auxiliará na sua inserção social e projeto
de vida.
233
personagens que estarão invariavelmente associados à violência e ao crime”
(CALDEIRA, 1984, p. 166).
Porque o que acontece é que o menino na rua fica vulnerável à prática de atos
infracionais, é claro que para o adolescente ser privado de liberdade não é
simplesmente porque ele não aderiu ao abrigo e está na rua, ele teria que ter
praticado algum ato infracional. Mas a gente percebe que com o tempo o próprio
menino evolui, porque a rua oferece isso para ele, até para sobreviver, para manter o
vício [de drogas] (...). E eles acabam se agrupando, é um perfil diferente do menino
que rouba residência, por exemplo, ou veículo, eles geralmente não vêm sozinhos,
vêm em grupinhos, eles têm uma certa afinidade nesse grupo lá na rua que eles
freqüentam, eles já estão convivendo há um bom tempo lá fora, são conhecidos entre
si, ao contrário do outro adolescente, do outro perfil de menino (Coordenadora da
Unidade de Internação Provisória, Febem, de Campinas).
Quando se analisam as contravenções praticadas pelos adolescentes em
situação de rua e os motivos que os levaram à medida de privação de liberdade,
depara-se com infrações consideradas “leves” pelos profissionais do âmbito jurídico
e mais relacionadas à prática de furtos e às atividades relacionadas ao uso e ao
comércio de drogas, como no caso de Maria.
Esses adolescentes com vivência de rua, infelizmente, nós percebemos que a maioria
deles está envolvida com drogas, está consumindo drogas no dia-a-dia, então fazem
estes pequenos furtos para o consumo, não podemos falar que cometem roubos,
seqüestros, mas são pequenos furtos para o consumo de drogas. É este o apanhado
que nós fazemos aqui desses adolescentes, então a maioria dos adolescentes de rua
vive com aquele propósito de fazer um pequeno furto e depois deste pequeno furto o
obtido é revertido em drogas, para o consumo, infelizmente. E eu acredito que não
seja só em Campinas, mas em todo o Brasil, a maioria dos adolescentes de vivência
de rua consome drogas, todos os tipos de drogas, então é da maconha à cocaína, e
mais forte, pelo que eu converso com eles, é o crack (Coordenador do Internato,
Febem, de Campinas).
O episódio vivenciado por Maria enquadrava-se nas estatísticas das
apreensões dos adolescentes em situação de rua e sua relação com o mundo das
drogas, passando por um constante e tenso conflito entre as ações policiais e essa
população, conforme apontado pelos adolescentes nos grupos de discussão
(apresentados na história de Lucas).
234
Sem entrar na discussão sobre o processo verdadeiramente ocorrido com
Maria, é notório, nesse caso, a forma como os adolescentes populares são tratados
pela Justiça e a diferenciação de medidas aplicadas, dependendo da classe social da
qual se é originário. “O adolescente infrator é ainda aquele pertencente a um grupo
social específico, originário das favelas, ao passo que adolescente da classe
média/alta, quando comete delitos, tem destino singular, tanto no que se refere à
cobertura da mídia sobre o assunto, quanto à aplicação das penas” (CRUZ et al.
2005, p. 47).
Entre a reconhecida discriminação dos adolescentes populares, destaca-se o
não lugar social dessa população e o seu não reconhecimento como sujeitos – e de
direitos, segundo a lei – fato exemplificado pela intervenção institucional ocorrida
com Maria e a mudança da conduta jurídica em seu processo. As profissionais dos
equipamentos que Maria freqüentava apenas se pronunciaram como elementos
presentes no acompanhamento da menina, confirmando que havia serviços que por
ela olhavam, incluindo a observação sobre sua medida de internação, e isso bastou
para que sua permanência, com privação de liberdade, fosse revogada. Essa situação
dirige à discussão sobre quantos adolescentes populares são encaminhados para a
Febem e têm a possibilidade de uma intervenção técnica a seu favor, assinalando a
dúvida sobre os critérios utilizados para a aplicação da medida de privação de
liberdade.
Maria e sua amiga foram julgadas culpadas, a outra garota permaneceu em medida
de internação, por já estar em quebra de Liberdade Assistida. Para Maria foi expedido o
cumprimento de seis meses de Liberdade Assistida em uma instituição campineira.
É comum os meninos em situação de rua, quando julgados, receberem a
medida de Liberdade Assistida diretamente ou após o cumprimento de um período de
internação. Campinas conta também com a aplicação da medida de prestação de
serviço à comunidade, segundo o artigo 117 do ECA, realizado por um serviço direto
da Secretaria de Assistência Social. Porém, essa medida raramente era aplicada à
população em situação de rua. Informalmente, esse procedimento era justificado pela
compreensão de que a Liberdade Assistida propiciava um encaminhamento
individual maior, mais adequado aos adolescentes em situação de rua, uma vez que
235
na prestação de serviço à comunidade as ações estavam mais voltadas para o trabalho
em grupo e as intervenções fora da instituição, necessitando de maior assiduidade e
independência para o seu cumprimento. Infere-se que há um posicionamento
dominante e reproduzido que o grupo de rua precisa de um acompanhamento mais
direcionado e próximo pelas suas características.
O cumprimento da medida de L.A. é de pouca adesão por parte dessa
população, principalmente quando estão em trânsito na rua, pois requer uma
freqüência semanal no serviço, a partir de uma agenda nem sempre reconhecida, na
sua dimensão temporal, por aqueles que estão na rua.
A gente tem vários casos. Eles chegam? Chegam. Aderem? Alguns! Não são todos,
eu acho que 30% consegue aderir. (...) tem aumentado muito esse número e não está
sendo fácil acompanhar, fazer com que esse adolescente [em situação de rua]
cumpra todo o tempo determinado pelo juiz. Que, às vezes, ele vem com um mínimo
de seis meses, mas você avalia que em seis meses não dá para fazer esse
desligamento, porque ele ainda precisa de um monte de coisas: precisa conseguir se
estruturar, se organizar, ver documentação, ter algumas aquisições pessoais para a
vida dele, e o que você faz em seis meses? Com uma pessoa com todo esse histórico
de rua, de droga? Você não consegue muita coisa, você acaba perdendo esse menino,
porque é difícil ele fazer um vínculo, é difícil ele conseguir ter um lugar como
referência, onde ele se sinta acolhido, onde ele se sinta seguro, que é isso que esse
adolescente precisa (...). O menino de rua, na maioria das vezes, ele não vem
acompanhado de um responsável, ele chega sozinho, no dia que ele quer: “oi, vim
cumprir minha L.A.”, diferente dos outros que você tem um telefone, liga na casa
dele para marcar um atendimento, tem menino que você não consegue, você não
sabe nem onde achar (...). Você acaba encontrando [na rua]: “oi, você tem L.A.,
precisa cumprir”, você passa embaixo das pontes, vê nas ruas, encontra e fala: “vai
lá no Comec”, quantas vezes a gente já não fez isso! Várias vezes! E tem menino
que a gente atendeu na rua, estava no semáforo e: “oi, tudo bem, como você está?” e
aquilo ali a gente contava como um atendimento, porque a gente não conseguia fazer
com que ele chegasse aqui (...). É bichinho mesmo que você tem que tentar pegar em
algum lugar para conseguir começar a fazer um trabalho. Mas tem casos que,
infelizmente, acabam indo pra um presídio e você vai encontrar ele sabe lá onde.
Nas páginas de jornais (Coordenadora de uma instituição responsável pelo
cumprimento de Liberdade Assistida).
Os adolescentes nas ruas têm, na maior parte dos casos, alguma passagem
pelo sistema judiciário. De advertências à internação para privação de liberdade, a
Vara da Infância e Juventude é um equipamento de passagem nas suas vidas. Fato
ligado ao imaginário presente sobre a relação da rua e a criminalidade, ao universo
236
das drogas e aos delitos concretos. Esses episódios acontecem da adolescência à vida
adulta, iniciando-se com as medidas socioeducativas, entre elas a de internação, para
adolescentes, ao sistema carcerário, para aqueles com mais de 18 anos.
Pela predominância de tal evento, Rafael destacava-se por ter completado 18 anos
e não ter nenhum registro de delitos. Logo após completar a maioridade, entretanto, foi
preso por porte e tráfico de drogas.
Rafael era um jovem oriundo também de um bairro popular. Como na casa de
Maria, sua família era conhecida pelas muitas abordagens realizadas por diferentes
instituições da rede. As intervenções eram dirigidas para diversos membros. Ora com sua
mãe, que fazia uso abusivo de álcool; ora com sua irmã, que se transformou em caso
emblemático na cidade, quando, com 15 anos, perdeu a guarda da filha, que fora
encaminhada para adoção, na ocasião em que foi internada na Febem; ora com seu
irmão, Pedro (amigo de João), que circulava pelos diferentes serviços da rede; ora com o
próprio Rafael.
Saiu de casa com cerca de 14 anos, sendo rapidamente abrigado e ficando, até
próximo dos 18 anos, a maior parte do tempo nesse tipo de instituição. Realizava um
trânsito eventual entre o abrigo, a rua e a casa de sua família, momentos em que, na
maior parte das vezes, perdia sua vaga no abrigo e era transferido para outro local. Fazia
uso de drogas, intensificando-o a partir dos 17 anos. Completou 18 anos morando nas
ruas, instalando-se em um cruzamento, na região central da cidade, e realizando a
limpeza de pára-brisas de carros, em um semáforo. Foi nesse local que ocorreu sua prisão,
já maior de idade.
Rafael: - Eu acordo, lavo o rosto e venho aqui para o farol trampar já.
Amigo de Rafael: - Ele faz um dinheiro, aí ele vai e toma um café ou se não ele fuma uma
bolinha.
(Risos)
Amigo de Rafael: - Aqui a vida é desse tipo, amigo, não tem o que esconder, é a verdade
falada. Nós ganha 30, 40 paus por dia, mas nós fuma tudo em droga. Não adianta você
falar: “mas pera ái, você ganha 30, 40 paus por dia e você não fica rico?” É que gasta
237
todo o dinheiro com o traficante, o traficante tá ficando rico, nós tá ficando cada vez
mais pobre
5
.
Rafael e Maria começaram a namorar em um abrigo, onde ambos moravam, e
foram fortemente marcados por essa relação. Tanto nas ruas como nos serviços que
freqüentavam não eram mais reconhecidos individualmente, mas sim como casal. Eram
igualmente marcantes e comentados os episódios de violência física entre eles.
Nos discursos dos meninos na rua, a referência ao casal passava por uma figuração
de gênero e pela idéia de uma prevalência da relação pautada pela figura masculina
6
. Maria
questionava essa lógica, a partir de sua personalidade forte e marcante, dos seus atos de
saída e trânsito nas ruas, do uso de drogas, do seu envolvimento com programas sexuais,
bem como da violência física que sofria e também praticava em Rafael.
Há, no senso comum, uma vivência cotidiana e reprodução da violência de
gênero na sociedade brasileira, do homem contra a mulher, a qual prevê uma
naturalização da desigualdade dos sexos, evidenciada, entre outros fatores, pela
violência doméstica (PITANGUY, 2003). Esse fato era incorporado na relação de
Maria e Rafael, em que as brigas eram recorrentes, com muita violência física, porém
praticada pelos dois, demonstrando mais uma contestação de Maria com relação ao
lugar do feminino, da menina, e sua presença ativa na relação também como agente
da violência. Para o serviço de saúde, a violência praticada por Maria era interpretada
como parte de sua sintomatologia e necessidade de controle, realizada pela
medicação psicotrópica, enquanto que em Rafael os mesmos episódios de violência
eram interpretados como resposta às brigas constantes e reação ocasional,
demonstrando, novamente, a discussão de gênero e a resposta (ou “contenção”) pela
medicação.
5
Transcrição de uma cena apresentada no vídeo: Rotas Recriadas. Petrobras, Prefeitura Municipal
de Campinas, Laboratório Cisco. Direção de Júlio Matos e Coraci Ruiz. 18 min., color, DVD, 2004.
6
Fato consoante à construção sócio-histórica do imaginário popular, advinda dos processos de
reconhecimento e “naturalização” das características e lugares considerados femininos, sendo um
elemento bastante presente, ainda hoje, na sociedade. As reflexões acerca da construção social do
papel das mulheres têm como marco o trabalho de BEAUVOIR (1949).
238
Como decorrência das brigas apareciam, por diversas vezes, machucados e, em
muitas ocasiões, discutiram no interior dos serviços – seja do abrigo, da escola ou do
serviço de saúde – agredindo-se nesses locais e necessitando da intervenção dos
profissionais para a contenção física de ambos. Alegavam que as brigas eram decorrentes
de ciúmes que sentiam um pelo outro.
Mesmo com todos esses eventos, permaneciam juntos com o passar do tempo,
assumindo, sempre publicamente, sua união. Essa característica não é muito comum
entre os casais de adolescentes e jovens, uma vez que os relacionamentos tendem a ser
mais experimentais e passageiros, pelo processo de aproximação, conhecimento e vivência
da sexualidade. Para Maria e Rafael, era partilhado um apoio mútuo e uma continuidade
prolongada da relação.
Um ponto de conflito para o casal era o envolvimento de Maria com o mercado
sexual e o uso dessa atividade como fonte de dinheiro, drogas e produtos para cuidado e
vestimenta pessoal. Segundo ela, essa estratégia era utilizada para alimentar sua vaidade e
para satisfazer o desejo de “estar bonita” (sic).
A discussão sobre o mercado sexual e sua interface com crianças e
adolescentes vêm ganhando visibilidade na sociedade brasileira, a partir das
intervenções realizadas por parte de organizações governamentais e não-
governamentais, que têm tornado pública a questão e criado um debate sobre o
assunto. Trata-se de uma temática que agrupa diferentes categorias e possibilidades
de análise sob a mesma nomenclatura, aglutinando fenômenos diferentes, de
complexidades variadas e que requerem ações múltiplas.
Nomeada de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, as
atividades relacionadas ao comércio do sexo, com essa população, são, do ponto de
vista jurídico, ilegais e desdobram-se nas modalidades: prostituição, turismo sexual,
pornografia e tráfico para fins sexuais (LEAL, 2003). A partir dessas formas, a
exploração sexual pode ser definida como:
uma relação de mercantilização (exploração/dominação) e abuso (poder) do corpo de
crianças e adolescentes (oferta) por exploradores sexuais (mercadores), organizados
239
em redes de comercialização local e global (mercado), ou por pais, ou responsáveis,
e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda) (LEAL, 2003, p.8).
No âmbito das atividades ilícitas relacionadas ao mercado sexual infanto-
juvenil, estão incluídas práticas variadas, desde a prostituição nas ruas, de jovens
como Maria, que a utilizam como estratégia de trocas comerciais; até o tráfico de
pessoas e a submissão a serviços escravos, envolvendo atividades sexuais. Engloba-
se uma gama extremamente variada de processos que clamam ações, legislações e
penalidades diferenciadas, dada as múltiplas naturezas do problema.
É relevante demarcar a gravidade dos crimes cometidos nesse campo, como o
exemplo do tráfico de pessoas e a submissão à escravidão sexual, e a urgência de se
criarem medidas controladoras e impeditivas, além de penalidades compatíveis, que
sejam aplicadas para o cumprimento da lei, na sua esfera criminal. Ao se agrupar sob
o mesmo título de “exploração sexual infanto-juvenil” ocorrências tão diversas,
diminuem-se o olhar sobre a gravidade, a necessidade de penalidades e de ações
policiais para contenção dos crimes contra a pessoa, decorrentes desses atos.
Neste trabalho, a discussão que se tangencia no campo da exploração sexual
relaciona-se com a prostituição praticada por jovens nas ruas. Assim, por partirmos
de um momento diferenciado nessa escala de ilegalidade, segundo nossa avaliação,
questionamos um importante tema, imerso nesse complexo fenômeno, que se afasta
do âmbito criminal e aproxima-se da esfera individual: a aquisição da liberdade e da
autonomia pelos jovens e os tempos necessários de proteção e tutela.
Partindo-se do princípio de que a infância, a adolescência e a juventude são
categorias socialmente construídas e que se remetem a um lugar social ocupado por
esses sujeitos, observa-se, na sociedade brasileira, atualmente, a definição de criança
e adolescente pelos pressupostos jurídicos do ECA. Os limites entre a adolescência, a
juventude e a vida adulta não são claramente estabelecidos, “diferentemente das
sociedades que instituem ritos de passagem, a adolescência, na sociedade ocidental
moderna, é considerada um período de duração variável em que o indivíduo se
prepara para assumir as responsabilidades da vida adulta e buscar sua autonomia”
(PIROTTA e PIROTTA, 2005, p. 78).
240
A dificuldade na discussão sobre a autonomia do jovem agrava-se quando
relacionada ao plano da sexualidade e ao silêncio social criado em torno de tal
temática. A possibilidade de discussão coletiva insere-se apenas na atividade sexual
com o fim de reprodução, no interior da família monogâmica, ficando os demais
pontos velados e praticados (FOUCAULT, 1997). Dessa forma, a construção social
da sexualidade é constituída sob esse prisma e não encontra, no embasamento
jurídico do ECA, um apoio para a implantação da visão do direito do exercício de
uma sexualidade saudável, pois, para PIROTTA e PIROTTA (2005), o marco legal
traz uma vertente “moralista” que “adota, nessa área, uma postura próxima ao senso
comum, que entende correto reprimir a sexualidade adolescente sob a égide da moral
sexual” (p. 88).
Essa questão é envolta de valores morais, quando entrelaçada ao tema da
prostituição infanto-juvenil e as relações de poder e abuso do adulto para com esse
público, levando alguns autores a definir esse processo como de crianças e
adolescentes “prostituídos” (FALEIROS, 2000). Parece clara a diferenciação entre a
prostituição infantil e a prostituição de adolescentes, que se encontra entre a
problemática infantil e o universo adulto da prostituição. Essa liminaridade entre as
fases mantém o questionamento sobre a passagem para a autonomia e a compreensão
dos fatos em torno de si mesmo, para as possibilidades de avaliação da situação e
para a realização de escolhas. Com Maria, por exemplo, que transitava pelo mercado
sexual desde os 15 anos, era notório que havia um processo de “escolha” de situações
momentâneas que a conduziam para essa prática. Ela não se enraizou, contudo, de
forma fixa, por essa via, utilizando-a em ocasiões que avaliava como uma
possibilidade de aquisição de recursos financeiros. É preciso colocar a palavra
“escolha” entre aspas, na medida em que seu escopo de alternativas circunscrevia-se
na miserabilidade de suas condições socioeconômicas e, portanto, influente na sua
“escolha”. O que intencionamos ressaltar é a possibilidade de trânsito, também nessa
esfera, e a utilização dos programas sexuais como um dos elementos, entre outros, da
vida nas ruas, para alguns meninos e meninas.
241
Uma parcela da população que estava naquele momento em situação de rua
encontrava-se em vulnerabilidade para a situação de exploração sexual, parecendo
ser este mais um fator que acometia suas vidas, dentro de um quadro mais amplo de
vulnerabilidades sociais (...). Observou-se um progressivo processo de exclusão e
ausência dos direitos básicos, de modo que se envolver com a prática da prostituição
nas ruas centrais parecia ser um meio de aquisição de recursos financeiros, ou outros
bens, como: droga, um espaço para pernoite, alimentação; pode caracterizar também
uma forma de atuação como sujeito social, ocupando o cenário disponível
(BELLENZANI e MALFITANO, 2006, p.119, grifo nosso).
Maria apresentava claramente a utilização do fator da prostituição, entre tantos
outros, em seu trânsito com a rua. Por isso, era reconhecida nesse meio como quem
“realizava programas”, o que reverberava em conflitos na sua relação com Rafael. Ele sabia
dessa atividade, mas as brigas causadas por esse motivo surgiam quando havia o relato e
comentários sobre Maria pelos demais meninos e meninas.
Para os serviços da rede, a prostituição era também um dos fatores que
acometia um grupo de adolescentes que estava nas ruas, visualizada, de forma mais
explícita, entre as meninas. Tangenciava os serviços, pelas histórias de vida de
algumas meninas que lá passavam, demandando intervenções pontuais que não se
inclinavam para a especificidade dessa temática, mas sim para a focalização sobre a
situação de rua e, a partir daí, suas interfaces.
Em Campinas, o debate em torno da exploração sexual, de forma específica,
ganhou fórum público em 2003, na Câmara Municipal, quando foi elaborado e
aprovado um plano de metas e ações para o enfrentamento da exploração sexual
infanto-juvenil
7
. O processo contou com a participação esporádica e eventual de
alguns atores da rede de serviços para a população em situação de rua, não se
desencadeando em desdobramentos nesses locais.
Em 2004, esse tema ganhou destaque no município em virtude de uma verba
ofertada à Prefeitura, para implementação de diagnóstico, ações e intervenções no
combate à exploração sexual de crianças e de adolescentes. Naquele ano, a equipe da
empresa Petrobras elegeu a temática de combate à exploração sexual infanto-juvenil
7
CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Plano municipal de enfrentamento da violência sexual
infanto-juvenil. Campinas: Câmara Municipal de Campinas, Comissão permanente de defesa dos
direitos da criança e do adolescente, 2003.
242
como área de investimento e convidou sete parceiros técnicos para o
desenvolvimento de projetos de intervenção e elaboração de metodologias sociais
(pesquisa-ação) de enfrentamento ao referido fenômeno. Foram eles: Manaus e
Belém: Centros de Defesa; Piauí: Universidade Federal do Piauí (intervenção em
quatro municípios); Aracajú: Prefeitura Municipal de Aracajú; Goiânia:
Universidade Católica de Goiânia (intervenção em quatro cidades); Foz do Iguaçu:
ONGs; Campinas: Prefeitura Municipal de Campinas e Conselho Municipal de
Direitos da Criança e do Adolescente
8
.
A Prefeitura elaborou um projeto, denominado Projeto Rotas Recriadas:
crianças e adolescentes livres da exploração sexual em Campinas-SP
9
, tendo como
proposição a implementação de intervenções intersetoriais, envolvendo as secretarias
de Saúde, Assistência Social, Cultura e Educação, também, em uma amplitude
menor, ações em algumas ONGs locais
10
. O projeto foi concebido em eixos de
intervenção (ver nota 10), no intuito de constituir uma proposta intersetorial e
8
PROJETO ROTAS RECRIADAS: crianças e adolescentes livres da exploração sexual. Cartilha de
divulgação. Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente. Prefeitura Municipal de
Campinas. Laboratório Cisco, 2004.
9
Projeto premiado no 4.º Marketing Best de Responsabilidade Social, em 2005, tendo sido
apresentado pela empresa Petrobras, devido a seu financiamento para implementação das ações.
10
O Projeto foi concebido em uma proposta intersetorial e interdisciplinar, desenhado em eixos de
intervenção, a saber:
- Prevenir – ofertava atividades culturais e esportivas para os adolescentes, constituindo espaços de
convivência nos bairros e fomentando grupos associativos e ou cooperativas.
- Buscar e Diagnosticar – implementou um Sistema de Informação Unificado; realizou busca ativa das
crianças e adolescentes em pontos conhecidos, através de educadores sociais.
- Cuidar e Proteger – ofertava tratamento médico, psicológico, terapêutico-ocupacional, trabalho
corporal, terapias complementares, prevenção DST/AIDS, redução de danos etc. Apoio jurídico, Casa
de Acolhimento provisório, retorno familiar, auxílio financeiro para proteção (bolsa-auxílio).
- Capacitar – capacitou profissionais participantes do projeto e da rede local de equipamentos sociais
(servidores públicos e de ONGs, lideranças do bairro – adultos e adolescentes).
- Comunicar – produziu material informativo e educativo, divulgação nos meios de comunicação
oficial e na mídia.
Dentre as produções, destaca-se o vídeo: Rotas Recriadas. Petrobras, Prefeitura Municipal de
Campinas, Laboratório Cisco. Direção de Júlio Matos e Coraci Ruiz. 18 min., color, DVD, 2004.
Premiado no 33.º Festival de Cinema de Gramado, em 2005, nas categorias Melhor vídeo
social/resgate da cidadania e melhor vídeo independente.
- Fiscalizar – buscou criar uma rede de ajuda entre as instituições públicas que têm entre suas
missões a fiscalização, como o Conselho Tutelar, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Vara
da Infância e Juventude, Delegacia da Mulher, entre outras.
- Gestar – acompanhou as ações realizadas, através de uma coordenação para cada eixo e de um
Colegiado (Referência, ver nota 8).
243
interdisciplinar, pensada em ações que abrangessem da prevenção ao enfrentamento
do fenômeno. Foram contratados 53 profissionais, por diferentes ONGs, para atuação
no sistema público e/ou nas próprias ONGs. Objetivava-se a realização de
intervenções em todo o município, segundo as rotas de exploração identificadas, que
tinham como ponto de partida as rodovias que cortam a cidade. A região central foi
incluída como uma das rotas de intervenção e nela a interface com os adolescentes
em situação de rua, devido à presença da prostituição de rua, praticada por mulheres,
homens, travestis e adolescentes (RIMOLI, 2005).
Adolescente do sexo feminino: - É só você chegar, você já fica ali, os carro já pára,
aí negocia e vai. Alguns perguntavam se eu era menor ou não.
Entrevistador: - E o que você falava?
Adolescente: - Eu falava que não. Eu falava que eu não era menor. E aí ia, normal
11
.
A cidade de Campinas foi o projeto que recebeu maior quantia de recursos
financeiros, com um repasse de R$ 1 milhão, feito pelo Fundo da Criança e do
Adolescente, administrado pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente (CMDCA). Esses recursos eram oriundos da aplicação de verbas por
isenção fiscal advindos da Petrobras. O montante de recursos era representativo
quantitativamente, tanto para aplicação em um projeto único, por parte do poder
público, como para o Fundo da Criança e do Adolescente, quando comparado com os
valores anualmente arrecadados pelo CMDCA
12
. Devido a esse fator, houve disputa
por verbas entre as secretarias e entre as ONGs, que compunham o programa. Todo
esse processo ocasionou muitos conflitos, disputas e negociações internas no governo
e no CMDCA.
Na gestão municipal, a verba representava uma possibilidade de viabilização
de projetos antigos da Prefeitura, da área da infância e da juventude, que não haviam,
11
Transcrição de uma cena apresentada no vídeo: Rotas Recriadas. Petrobras, Prefeitura Municipal
de Campinas, Laboratório Cisco. Direção de Júlio Matos e Coraci Ruiz. 18 min., color, DVD, 2004.
12
Em 2004, ano de destinação de R$ 1 milhão da Petrobras, o Fundo arrecadou R$ 3.959.121,04. A
destinação da Petrobras representou, naquele ano, cerca de 25% do total alcançado. Disponível em:
http://www.campinas.sp.gov.br/chamadas/assistencia_social/prestacao_contas.htm
. Acesso em 10
nov 08.
244
até então, tido a possibilidade de serem concretizados. O ano de 2004 era o último
ano da gestão e, portanto, ano eleitoral. Do lado das ONGs, por sua vez, a
necessidade de captação de recursos é uma constante, já que essa verba representava
a possibilidade de auto-sustentação e ampliação dos projetos desenvolvidos.
A temática da exploração sexual infanto-juvenil não era pauta das ações nem
da gestão municipal, nem das ONGs, com exceção de uma instituição que atuava
com mulheres marginalizadas ligadas à prostituição e seus filhos. Para adequar-se ao
financiamento, houve um reordenamento dos discursos e a incorporação da
problemática nas populações-alvo dos projetos em andamento. O governo municipal,
por exemplo, incluiu o Projeto Rotas Recriadas como o décimo programa do Plano
Municipal da Infância e Juventude, anexando formalmente o projeto em seu plano de
ações. O objetivo da Petrobras era, justamente, de fomentar o debate e incitar
intervenções a partir de problemáticas, consideradas prioritárias, apostando que o
processo resultaria na incorporação local da temática, com financiamento futuro
próprio.
No campo de ações com as crianças e adolescentes em situação de rua,
representados na rota da região central da cidade, a Secretaria de Saúde ampliou o
quadro de profissionais do CRAISA, criando uma subequipe interna para trabalho
conjunto com a população de rua com interface com a exploração sexual. A
Secretaria de Assistência Social utilizou a verba para a instalação de dois outros
projetos já elaborados e até então não efetivados devido à falta de recursos: o
Pernoite Protegido, associado à proposição de Centro de Convivência, que
apresentamos com a história de Lucas, e o programa de Educação Social de Rua.
Os programas destinados para a atenção à população em situação de rua
prevêem, normalmente, o início do trabalho por meio da intervenção do educador na
rua, que busca fazer o vínculo na própria rua, em uma abordagem direta com essa
população e, a partir daí, trazer a criança e o adolescente para os serviços. Segundo
um educador da rede, a educação social de rua pode ser definida:
Basicamente a educação social de rua é dada através de uma metodologia, uma
pedagogia adotada pelo educador, que vai fazer, ao longo do tempo, a ponte entre a
245
rua e a rede constituída. Os educadores sociais são, de certa forma, anfitriões de
determinados serviços que entendem que a rua não é lugar para esses meninos
ficarem, a não ser para brincar, mas não é para morar, e eles são a ponte entre o
serviço e esse menino. E é feita através de aproximação, de construção de laços de
confiança, de conversas cotidianas, de um envolvimento mais íntimo, ao longo do
tempo. (...) A sua meta é que ele saia da rua, com formação formal, de escola, com
encaminhamento, não instituição total, mas um encaminhado através do seu projeto,
para uma nova concepção de vida (Educador social de uma ONG da rede).
Em Campinas, a presença da figura desse profissional estava inserida no
Projeto Casa Amarela. Com seu fechamento, as ações de educação de rua ficaram
sem preenchimento, como um “furo” da rede. Com a implementação do novo serviço
de combate ao trabalho infantil – o Projeto Convivência e Cidadania –, foram
contratados “monitores” para abordagem e referenciamento dessa população, focados
naqueles que estivessem realizando atividades de trabalho, sem aproximação com as
demais crianças e adolescentes nas ruas.
Já os educadores transferidos do antigo Projeto Casa Amarela para o
CRAISA, realizaram, inicialmente, atividades na rua, mas gradualmente
suspenderam-nas alegando que não se enquadravam à dinâmica do equipamento da
saúde que passaram a compor. Nomeavam-nas de “busca ativa”, termo técnico
utilizado nos serviços de saúde para definir ações que se direcionem à busca de
pacientes do serviço que, por razão desconhecida, não estejam mais comparecendo
aos atendimentos. Assim, saíam em busca das crianças e dos adolescentes já
inseridos na dinâmica local que não estivessem comparecendo às atividades
agendadas nos últimos tempos. Com o desenrolar do serviço, e suas mudanças de
caracterização, essa atividade foi tornando-se mais escassa até sair da escala semanal
de atividades dos educadores, que conduziram seu trabalho somente para a esfera
interna. A partir do final de 2004, a figura do educador social de rua deixou de
compor a rede de atendimento, de maneira formal.
No âmbito informal e voluntário, havia uma associação de pessoas – que
posteriormente registraram-se como ONG –, originada de um grupo inicial de
estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas,
que realizavam atividades de arte-educação nas ruas, em pontos por eles escolhidos,
considerados de circulação dos jovens em situação de rua. Organizavam-se de acordo
246
com as disponibilidades de seus membros, com atividades nas ruas desde 1997, e
tinham como missão:
O Mano a Mano [nome do grupo] trabalha com a idéia de arte educação na rua. Sem
dúvida ele está pensando na idéia de superação da situação de rua, da molecada estar
podendo sair, mas sair a partir do próprio desejo, desejar sair da rua, do próprio
desejo do moleque. Então a gente busca provocar questionamento, provocar esse
desejo de sair da rua (Membro do grupo e educador de uma ONG).
Pelas suas atividades com esse público, o Mano a Mano foi convidado, em
2003, para integrar o Criando Rede de Esperança. Nesse momento, cogitou-se a
possibilidade de parceria formal entre a Prefeitura e o grupo para a realização de
atividades de educação de rua. Por questões de documentação, não puderam ser
contratados como ONG.
Para alguns profissionais e gestores, a ausência de atividades técnicas
diretamente nas ruas era um dos principais elementos ausentes na rede de
atendimento para essa população, tendo sido o tema levantado espontaneamente por
15% dos nossos entrevistados.
Eu acho que o que falta são educadores de rua, com certeza é o maior “furo” [da
rede], porque são muito poucos, no final a gente prioriza algumas regiões, mas está
faltando, (...) mas o maior “furo”, sem dúvida nenhuma é a falta de educador de rua
(Assessora da área de criança e adolescente da Secretaria de Assistência Social e
Conselheira representante do âmbito público no CMDCA, em ambas funções a partir
de 2005).
Mas a gente sente falta daquele trabalho de estar na rua de fato, ir atrás deles, porque
quando eles estão vinculados na droga eles só vão procurar um serviço numa
situação de necessidade extrema, fora isso ele vai estar se estruturando na rua,
formando novos vínculos e cada vez ficando mais lá. Então faltam educadores na rua
(Conselheira tutelar).
A Secretaria de Assistência Social propôs a uma ONG local, uma
comunidade terapêutica, o estabelecimento de uma parceria para prestação de serviço
nessa área. Foi proposta a contratação de dois educadores e uma técnica social
247
(psicóloga ou assistente social) e os educadores seriam indicados pelo Mano a Mano,
uma vez que a contratação direta deles não foi possível. Assim, na figura de dois
profissionais, de forma incipiente, institucionalizaram-se as atividades de educação
na rua. Os educadores contratados passaram a compor o quadro da ONG e a seguir
seus preceitos para execução do trabalho. Esse ponto era problemático para alguns
membros do Mano a Mano, não para todos, pois era uma discussão não consensual.
Nas palavras de um educador da ONG:
A parceria, para mim, no meu ponto de vista, não foi estratégica, porque não foi de
fato uma parceria. A gente vira funcionário daqui, a gente responde pela instituição,
inclusive em horário de trabalho a gente nem pode responder pelo grupo, a gente
está proibido de falar em nome do Mano a Mano. Mas foi isso porque, na época, a
gente queria muito efetivar a parceria, entrar no trampo, e meio que a gente foi
jogado, a gente era muito novo também, e a gente foi usado pelas instituições, nos
acordos entre elas, e a gente ficou no meio (Membro voluntário do Mano a Mano e
Educador de Rua de uma ONG da rede).
Apesar do trabalho reiniciado nessa área, permanecia o discurso sobre a
necessidade de sua ampliação. Com isso, a Secretaria de Assistência Social propôs a
realização de atividades de rua no interior do Projeto Rotas Recriadas, ampliando o
público-alvo para contemplar a questão da exploração sexual infanto-juvenil, com a
finalidade de abordar a população nas ruas e levá-la aos serviços. A partir do Projeto
Rotas Recriadas, o município passou a contar com mais oito educadores sociais.
O Projeto Rotas Recriadas, portanto, mobilizou a rede de atendimento à
infância e juventude na cidade por meio de duas vertentes. Primeiramente, ele inseriu
uma nova temática até então ausente na dinâmica com essa população. Em segundo
lugar, viabilizou financeiramente a implementação de serviços pré-formulados,
principalmente no nível governamental, ainda não implantados. Todavia, o projeto
teve um tempo de vida extremamente curto, pois suas atividades foram efetivamente
iniciadas em agosto de 2004 e interrompidas entre os meses de março e abril de
2005. Isso ocorreu pela conjuntura política local e pela diminuição significativa do
financiamento externo.
248
Na esfera municipal, o partido da gestão em curso não foi reeleito, havendo
dúvidas sobre a continuidade de algumas pessoas, em cargos de confiança, que
estavam envolvidas diretamente com o projeto. No que diz respeito ao orçamento, o
financiador do projeto aprovou tecnicamente os relatórios apresentados; mas, para o
ano de 2005, fez um depósito para o Fundo da Criança e do Adolescente, do
CMDCA, no valor de R$ 350.000,00, 35% do valor aplicado no ano de 2004.
No início de 2005, não houve mudanças imediatas com a assunção da nova
administração municipal. Iniciou-se um processo interno, na gestão do projeto, de
redesenho e redefinição das intervenções, a partir do orçamento disponível. Travou-
se uma disputa acirrada para se decidir as áreas prioritárias e a escolha daquelas que
seriam retiradas. Vários embates foram estabelecidos: discutiu-se a diferenciação no
pagamento de salários para profissionais com a mesma qualificação, ligados às
secretarias diferentes; as sugestões de ampliação de alguns serviços; a tensão das
ONGs pelo repasse maior de verbas para elas; a proposta, feita por uma ONG
específica, de realização de uma proporcionalidade de recursos para aplicação em
serviços ligados diretamente ao governo e aqueles executados de forma independente
pelas ONGs; entre outros temas polêmicos.
A situação avolumou-se em contradições não resolvidas, culminando na
interrupção de todas as atividades realizadas a fim de se aguardar as decisões para a
nova formatação do projeto. O fórum escolhido para esse debate foi o CMDCA, local
onde, efetivamente, estava depositado o dinheiro, tendo a responsabilidade sobre sua
destinação, além de ser o órgão coletivo designado pela lei para formulação das
políticas de atendimento à população infanto-juvenil. Não obstante, o cenário não
sofreu modificações no CMDCA, mantendo-se a disputa por recursos entre a
organização governamental e as não-governamentais, além das divergências dos
próprios representantes governamentais sobre os rumos da intervenção. Essa
polêmica resultou em cerca de cinco meses de atraso para a reinstalação do projeto,
ficando o CMDCA aquém do cumprimento de suas funções constitutivas, no
encaminhamento do processo.
Os conselhos de participação popular, de diversas áreas e previstos pela
Constituição Brasileira, são órgãos representativos da sociedade civil, com a
249
finalidade de instituírem-se como espaços públicos que, segundo DAGNINO (2002),
devem caracterizar-se como uma arena de atuação composta de diferentes atores,
para o debate, a tomada de decisões, as deliberações e a partilha de poder. Trata-se
de espaços que, para o modelo republicano, têm a política como elemento
compositor, prevendo a penetração da sociedade no Estado, possibilitando seu
controle, participação e transparência, por meio da visibilidade pública de suas
intervenções (COSTA, 1999).
Os conselhos caracterizam-se como um grande avanço na ordem democrática.
Representam, entretanto, interesses em disputa que suplantam, em alguns momentos,
os objetivos constitutivos do próprio órgão e os benefícios do público ao qual ele se
dedica.
Os espaços públicos estão inseridos em contextos marcados por tendências e
influências diversas, e podem ao mesmo tempo servir como fonte de reorientações e
deslocamentos importantes, marcando cenários inovadores e mais democráticos,
como também podem agir na manutenção das características mais tradicionais e
autoritárias presentes no entorno” (TATAGIBA, 2003, p. 40).
Nesse processo dúbio de ação do CMDCA, com a nítida dificuldade de
diálogo estabelecida, a gestão municipal, por meio de seus novos representantes e
nova postura adotada como governo, na qual o investimento em um “Plano
Municipal para a Infância e Juventude” não era mais prioritário, optou por não
centralizar as atividades do projeto e retirou-se como proponente das ações. Destituiu
a representatividade oficial dos membros do governo, e sugeriu que o projeto fosse
encaminhado para administração e execução direta por ONGs da cidade. Dessa
maneira, foram escolhidas três ONGs para a execução do programa, ficando uma
delas responsável pela maior parte das ações.
Esse encaminhamento, após longo período de interrupção, provocou uma
troca de grande parte dos funcionários do projeto, um recomeço da intervenção, que
não partiu das estratégias anteriormente trabalhadas, e um esvaziamento e a
finalização das atividades desenvolvidas nos equipamentos sociais públicos até então
utilizados pelo projeto. Também como conseqüência desse reordenamento, destaca-
250
se a retirada da busca concreta da ação intersetorial do cotidiano de intervenção, uma
vez que foram suprimidos os diálogos e a conjunção entre a saúde, a educação e a
cultura, em prol do desenvolvimento de intervenções privadas, locais e
individualizadas. Por outro lado, os novos gestores argumentavam o ganho de
autonomia, na medida em que tinham mais liberdade para a tomada de decisão,
possibilitada pelo menor número de atores envolvidos no processo decisório, bem
como um ganho de resultados, pelo desenvolvimento mais focal das intervenções.
O novo formato foi renomeado para “Programa de Enfrentamento ao Abuso e
à Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes”, não assumindo mais o
título de “Rotas Recriadas”, e permaneceu em funcionamento até o início do ano
seguinte, 2006, quando viveu o mesmo processo: as práticas foram interrompidas
para serem redefinidas com base na partilha de recursos que, mais uma vez, foi
diminuída no seu montante total repassado pelo financiador. Após alguns meses,
outras ONGs assumiram partes do projeto e uma terceira fase foi iniciada, para o
período de um ano, entre 2006 e 2007.
Durante esse processo – de inconstâncias, interrupções e diminuição
gradativa da verba disponível –, alguns atores pressionaram o poder público para a
oferta de continuidade de serviços específicos considerados essenciais na rede de
atendimento. Fato ocorrido, por exemplo, com relação ao Pernoite Protegido, como
relatamos na história de Lucas, que ganhou um financiamento próprio no interior da
Secretaria para funcionamento contínuo através de parcerias com ONGs.
Posteriormente, em 2007, o mesmo fenômeno ocorreu com o programa de educação
de rua que, no mesmo processo, ganhou uma alínea no interior do orçamento da
Secretaria de Assistência Social e permaneceu financiado continuamente e executado
por uma ONG parceira da Prefeitura.
O CMDCA, por sua vez, criou uma comissão de estudos e proposições sobre
a temática da exploração sexual infanto-juvenil, incorporando a problemática no
interior do escopo de discussões e, conseqüentemente, como área de destinação de
recursos financeiros anuais, para além dos financiamentos próprios para esse fim,
recebidos de um financiador específico: a Petrobras, desde 2004.
251
Para além da criação de serviços, da institucionalização de uma temática e da
entrada de novos atores para composição da rede, houve também a instalação de
alguns trabalhos e intervenções interrompidos antes de sua efetivação, a
descontinuidade do cuidado, o investimento em um processo de trabalho sem
desdobramentos, dado pela sua curta duração.
A gente acha que o projeto foi paralisado no auge, quer dizer, quando tinha que dar
continuidade, no momento que estava mais tranqüilo, que as pessoas sabiam qual era
nosso papel (...). Quando a gente conseguiu, realmente no auge, foi quando truncou,
pela primeira vez, e o projeto e ficou de três a quatro meses sem atividade. Tivemos
que reiniciar, muitos casos se perderam (Profissional do Projeto Rotas Recriadas e
do Programa de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual Comercial de
Crianças e Adolescentes).
Todo esse processo instiga a discussão sobre o financiamento dos programas
socais. Quando se analisam as intervenções com essa população, verifica-se que a
sua maior parte é efetivada por ONGs em parceria com o Estado, ou seja, trata-se de
atividades sociais realizadas por organizações privadas sem fins lucrativos com
financiamento estatal quase exclusivo.
O universo das ONGs representa um campo heterogêneo, com multiplicidade
de exercícios de papéis e diferentes relações com o Estado (TEIXEIRA, 2003),
conceituando-se como um espaço “privado, porém público”, parafraseando o título
da obra de FERNANDES (2002). Esta arena híbrida integra a discussão do chamado
“terceiro setor”, passando pela organização da sociedade civil, pelos movimentos
sociais, entidades caritativas, entidades religiosas, filantropia empresarial, militantes
técnicos entre outros. Esta multiplicidade de atores sociais agrupa diferenças
significativas em um mesmo conjunto, fazendo com que o espaço de ação de projetos
sociais financiados parcialmente, e em muitos casos principalmente, pelo Estado, e
executados pelas ONGs, seja uma diversidade de ações que acabam sendo analisadas
em suas particularidades, quase que uma a uma, embora reflitam uma representação
social coletiva no bojo de intervenções de ONGs junto à infância e à juventude em
situação de vulnerabilidade social.
252
Tais instituições, assumem a função de “execução de políticas”, segundo
TEIXEIRA (2003), em um encontro com o Estado para “prestação de serviços”.
Questionamos a nomenclatura “execução de políticas”, utilizada pela autora, e
propomos o termo “execução de projetos”, uma vez que as ações sociais voltadas a
essa população caracterizam-se, na maior parte das vezes, por projetos pontuais,
transitórios e fragmentados que não têm garantia de continuidade, principalmente
pela incerteza de manutenção dos financiamentos, como verificado no caso do
Projeto Rotas Recriadas.
Dessa maneira, a lógica da benemerência é mantida acessando, no imaginário
social, um código diferente daquele proposto pela dimensão dos direitos, mediado
por uma relação entre cidadãos e Estado, cristalizando uma cultura que se afasta,
concreta e simbolicamente, da discussão prática e subjetiva dos direitos. Não se
encontra presente um caldo de cultura social no qual a criança, o adolescente e o
jovem sejam vistos como sujeitos de direitos; prevalece, majoritariamente, apenas a
simbologia do “menor” merecedor de doações, benemerências, piedade ou, por outro
lado, aquele ameaçador, causador de violências e que deve ser controlado (LOPES et
al., 2006).
É relevante sublinhar que há resultados subjetivos efetivamente produzidos,
mesmo que considerados na sua pequena influência na conjuntura do problema e nas
complexidades na vivência da infância e da adolescência na contemporaneidade.
Quando analisamos as histórias individuais e suas tangências nos projetos sociais,
percebemos “resultados” que por vezes se direcionam para a produção de
subjetividades mais fortalecidas em contextos de vulnerabilidade e para a produção
de respeito e reconhecimento dessa população, o que denominamos de “resultados
pontuais”, bastante distantes das audaciosas missões formalmente declaradas na
elaboração e divulgação de tais projetos, mas que têm sua relevância e ocupam um
lugar de destaque, principalmente se analisados no contexto microssocial da vida.
SENNETT (2004) debruça-se na categoria “respeito” e os processos
reflexivos envolvidos no respeito próprio e no respeito mútuo, citando tais elementos
como indícios para a construção de uma sociedade mais humanitária, embora
reconhecidamente marcada pela desigualdade social. Para esse autor as categorias
253
“respeito”, “necessidades” e “solidariedade” articulam-se e devem prever uma
negociação do reconhecimento mútuo, que tem complexidades tanto de caráter
pessoal quanto da estrutura social. Assim, define os três códigos modernos de
conduta quanto ao respeito: “fazer alguma coisa da própria vida (desenvolvimento de
suas próprias capacidades e habilidades), cuidar de si mesmo (ser auto-suficiente) e
ajudar os outros (retribuir aos outros)” (p. 295).
Com esse referencial, circunscreve-se parte das ações realizadas no campo
social, mesmo que desenvolvidas por meio de projetos pontuais e transitórios, como
promotoras de “respeito”.
Esse componente é exemplificado em alguns episódios da vida de Maria,
quando os serviços atuaram para o seu reconhecimento como sujeito e sua
representação para a garantia de alguns de seus direitos básicos, trazendo-na para o
lugar de visibilidade, de atuação sobre a sua vida e de “respeito”.
Em 2005, quando Rafael havia completado 18 anos e estava instalado em um
ponto fixo nas ruas, trabalhando no semáforo e Maria estava em uma intermitência entre
a permanências nas ruas e na sua casa, ela engravidou. Afirmava, com veemência, que o
filho era de Rafael e ele, por sua vez, confirmava e assumiu o bebê.
A gravidez de Maria suscitou muitos comentários entre os jovens na rua, pois
diziam que ela estava grávida de um possível cliente, mediante o reconhecimento que
tinha, entre seus pares, de alguém que “fazia programas”, por isso os meninos não
compreendiam a atitude de Rafael em declarar-se pai da criança.
Maria saiu das ruas e ficou na casa de sua mãe em virtude da gravidez, mantendo
contato com Rafael. Ela dizia que havia chegado “a hora de se cuidar” e não permitiria
que seu filho fosse para as ruas, como ela tinha ido (sic). Foi nesse período que Rafael foi
preso. Maria permaneceu cuidando de sua gravidez e dizia esperar Rafael para criarem,
juntos, a criança.
Ainda nesse mesmo período, o Conselho Tutelar fez mais uma intervenção com a
família de Maria, e sua mãe perdeu, temporariamente, a guarda de suas três crianças
pequenas: os dois meninos e sua filha caçula, nessa ocasião, com dois anos. As crianças
254
foram transferidas para abrigos do município, sob a acusação de que permaneciam desde a
primeira intervenção do C.T, sob condições de negligência e de trabalho infantil. Maria
ficou muito assustada com o fato, temendo que o mesmo pudesse acontecer com ela,
quando seu filho nascesse. Maria havia ainda acompanhado a situação de algumas amigas
na rua, como a irmã de Rafael, que haviam perdido a guarda de seus bebês no momento
posterior ao nascimento deles. Dizia, de forma repetida, que considerava que tal fato iria
se repetir com ela, pelo seu histórico da rua, fazendo uma associação quase inerente entre
ter vivido nas ruas e não poder, do ponto de vista jurídico, responsabilizar-se por uma
criança.
Por isso, quando seu filho nasceu, não queria sair de casa e dizia que não iria
registrar a criança, pois afirmava que, se concretizasse a certidão de nascimento, o juiz
retiraria a guarda. Houve um acompanhamento domiciliar de profissionais de serviços
que Maria freqüentava, buscando ofertar auxílios financeiros concretos, como cestas
básicas e enxoval para o bebê, assim como convencê-la a realizar o registro e,
posteriormente, dar encaminhamentos aos cuidados em saúde do primeiro ano de vida.
Solicitaram também acompanhamento dos profissionais de saúde local, do bairro que
morava, para efetivar uma ação mais próxima e constante com Maria e sua criança.
Maria criou estratégias de permanência na casa de sua mãe. Permanecia, na
maior parte do tempo, sozinha com ela, pois seus irmãos estavam abrigados, sua irmã
estava nas ruas e o companheiro de sua mãe havia se mudado, aparecendo,
esporadicamente, na sua casa. Quando havia problemas, brigas e outras questões,
Maria dirigia-se, com seu filho, para a casa da mãe de Rafael, aguardando a situação
“acalmar-se” na sua casa, como costumava dizer, buscando abrigo para ela e a
criança.
Seu novo papel de mãe e de mulher, aguardando a liberação de seu
companheiro, colocava-a em um lugar social bastante distinto daquele que até então
havia ocupado e representava a esperança de mudança de vida e aquisição de um
novo status social para ela.
255
5. TEMAS EMERGENTES DA VIDA DOS JOVENS E SUAS TENSÕES
COM A DINÂMICA INSTITUCIONAL
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade (...)
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
O material de campo que apresentamos, intercalado aos trechos das trajetórias
de vida de meninos e de meninas, usuários da rede de serviços, possibilitou o
levantamento de algumas categorias empíricas que emergiram, seja diretamente das
falas dos atores sociais, seja pelas observações e análises realizadas.
As questões que se sobressaíram relacionam-se às ações públicas, às
demandas realizadas pela política municipal de atendimento a essa população.
Assim, a partir do discurso e observação de gestores, trabalhadores e adolescentes,
foram traduzidas nas seguintes categorias: moradia (pensada na oferta de diferentes
equipamentos: o abrigo, o pernoite protegido e a república), uso de substâncias
psicoativas (drogas) e o tratamento para interromper o uso, saúde mental e a resposta
associada ao uso de drogas, o papel das atividades culturais com essa população, da
educação e da escolarização formal. Emergiram também as temáticas que não estão
relacionadas diretamente com as ações públicas por setores, são elas: a adaptação e
não adaptação das crianças e dos adolescentes aos serviços, a maioridade e o debate
sobre a juventude e, por fim, a execução da política de atendimento à infância e à
juventude via projetos sociais.
Apresentam-se abaixo algumas reflexões relacionadas a essas categorias
buscando as aproximações, os distanciamentos e as tensões entre os diferentes atores.
256
5.1 Moradia
O local para morar é um tema sempre presente em torno da população em
situação de rua. Essa constatação já reflete a preocupação com a “retirada” da rua
daqueles que nela estabeleceram o seu local de permanência, vivência e exercício da
sociabilidade privada, comumente designada a ser fixada no espaço doméstico, ou
seja, em casa. Falar sobre a necessidade de criação de serviços de moradia para
crianças e adolescentes em situação de rua acarreta a discussão sobre uma
intervenção concreta, que pode assumir o lugar de reificação dessa população,
segundo os preceitos de uma suposta inorganicidade e dependência inerentes. Isso se
manifesta como conseqüência de uma visão em torno dessa população que contrapõe
a rua e a casa, demarcando a saída das ruas como finalidade da intervenção. Por uma
outra vertente, com que compartilhamos, é possível compreender a vida nas ruas
como espaço de vida, demarcação de um lugar social na cidade, de vivência de
brincadeiras e de lazer, além de uma integração pela margem dada pela desigual
estrutura econômica (PÉREZ LÓPEZ, 2006 e HECHT, 1998).
A dicotomia entre a casa e a rua é descrita por diferentes autores com
enfoques diversos. Por um lado, pode ser discutida sob o viés da cisão entre a rua,
como locus público de impessoalidade e imoralidade, e a casa, como espaço da
moralidade e status social (DAMATTA, 1985). Em outra perspectiva, a rua pode ser
compreendida como espaço de todos, local de lazer, tráfego, manifestações, debates,
informações, decisões, ou seja, parte relevante da vida. Na cultura dos brasileiros,
segundo RIO (1999), essa é uma das características marcantes.
Essa hibridez relacionada à rua, em seu âmbito público e privado, têm-na
transformado, no imaginário daqueles que por ela circulam e não a habitam, em um
local de periculosidade, de medo, de passagem rápida e afastamento. Dessa maneira,
a rua, a praça, as calçadas têm perdido, na contemporaneidade, sua possibilidade de
configuração como espaço público, na dimensão poética de RIO, assim como na
esfera política de ARENDT (1995), como espaço do reconhecimento do direito, do
bem público, propagando conflitos, criando arenas para seu encaminhamento.
257
Nesse contexto, há pouco espaço imaginário e real para compreensão da rua
como possibilidade de sociabilidade, uma vez que há a aplicação de princípios da
“retirada”
1
daqueles que a estão utilizando para as vivências padronizadas como
“privadas”. Isto pode ser denotado como um dos fatores da tradicionalidade dos
antigos orfanatos e atuais abrigos como equipamentos de assistência social, assim
como um dos elementos empíricos presentes no nosso campo.
Em todas as histórias aqui apresentadas, há passagens dos adolescentes em
locais destinados à moradia. João, Cíntia e Lucas permaneceram longos tempos em
abrigos; Maria e Rafael transitaram por vários anos entre a casa (de sua família ou o
abrigo) e a rua.
Podemos levantar, com base nas histórias apresentadas, os fatos concretos
que dificultam o retorno para as famílias. João estava órfão sem referências
vinculares em sua família, não dispondo de um lugar para o “retorno”. Cíntia não
possuía uma inserção familiar em todo seu histórico de vida, maximizado na
representação de vivência em dois países. Lucas recusava-se a falar sobre esse ponto,
mantendo um discurso da impossibilidade do assunto. Maria permanecia em trânsito
e, quando teve seu filho, tentava a fixação onde lhe foi aconselhado como espaço
adequado: a família. Rafael apresentava um desenraizamento e outros caminhos que
o afastavam cada vez mais desse lugar.
Essa dinâmica, exemplificada por muitas histórias de vida, colocam em
questionamento o princípio fundador de grande parte dos serviços que trabalham
com meninos e meninas em situação de rua. Evidentemente que toda criança e todo
adolescente brasileiros têm o direito de ter uma casa para morar e à convivência
familiar e comunitária, como preconizado pelo ECA (BRASIL, 1990, cap. III).
Sendo assim, as políticas sociais têm o dever de garantir o acesso a esse direito.
Entretanto, a complexidade da modernidade tem ampliado esse debate e suscitado a
necessidade de novas abordagens sobre tal discussão.
1
Uma estratégia utilizada para a “retirada” das populações das ruas, que merece destaque, são as
“limpezas” policiais realizadas e os escândalos acumulados e noticiados no Brasil, como a chacina
da Candelária, em 1993 no Rio de Janeiro, e outros que refletem o desejo constante pela “retirada”
dos meninos das ruas (ALVIM, 2001), que “contestam a ordem citadina” (MAGNI, 2006).
258
O padrão de desigualdade social da sociedade brasileira apresenta como
perspectiva, para meninos e meninas que permanecem em suas famílias, em seus
bairros, um projeto de vida que afasta, para grande parte deles, a possibilidade de
inclusão na dinâmica de troca social capitalista estabelecida. Por um lado, a
possibilidade de inclusão pelo trabalho encontra-se fortemente diminuída, devido à
crise da sociedade salarial (CASTEL, 1998); por outro lado, há a busca de inclusões
alternativas, seja pelo mercado informal, seja pelo tráfico de drogas, ou ainda, para
uma minoria, pela rua, na busca de outras possibilidades de sociabilidade e acessos.
PÉREZ-LÓPEZ (2006) debate a vivência na rua como meio de vida “permanente”,
para alguns jovens de grupos populares, defendendo uma “inserção pela margem” e
que precisa ser pensada, inclusive, em sua dimensão de cidadania.
A hipótese das ruas como integração social demonstra um distanciamento
entre o discurso institucional e dos adolescentes, indicando uma incongruência
relevante que culmina na não assunção por parte dos desígnios propostos pelos
equipamentos sociais. O objetivo do exercício ao direito à convivência familiar, ao
morar, deve ser buscado pelos serviços sociais, na nossa opinião, na medida em que
se trata de um princípio legislativo e de extrema importância. É imprescindível e
necessário que haja a oferta de espaços de moradia, transitórios ou permanentes, para
essa população. Todavia, é preciso que seja feita uma abordagem diferenciada para
que se singularizem os procedimentos, as compreensões e os encaminhamentos,
necessários e efetivos, e não se criem ideais inatingíveis em uma realidade complexa.
Pode-se dizer que os adolescentes e os jovens pobres apresentam um “não-
lugar” social, e aqueles em situação de rua expressam essa posição pela explicitação
de sua vivência no espaço público e pela sua visibilidade.
Marc AUGÉ (1994) interpela as mudanças contemporâneas em uma época
que nomeia de “supermodernidade”, a qual define como portadora de excessos e
mudanças nas esferas de tempo (agilidade, em várias dimensões), espaço (quebra de
fronteiras e a migração) e ego (solidão e isolamento). Nessa supermodernidade
criada constata o “não-lugar” formado pela concretude de espaços despersonalizados,
bem como pela relação que os indivíduos mantêm nesses locais. Define: “os não-
lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens
259
(vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de
transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito
prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta” (p. 36-37).
Assim, afirma-se que os adolescentes e os jovens buscam sua inserção
também nesse “não-lugar” contemporâneo, na medida em que tentam participar da
sociedade de consumo e de trocas, estabelecida por novos valores. Buscam a
inclusão na supermodernidade e passam a ser mais um elemento dos “não-lugares”,
compondo-os e explicitando a sua não inserção, ou sua inserção pela margem, para
composição da vida social; e com isso criam novas sociabilidades e padrão de trocas
dados pelo seu novo papel, onde outros capitais sociais são requeridos, apresentando-
se como sujeitos nessa ordem em desenvolvimento.
Torna-se importante o questionamento sobre quais direitos são produzidos
nessa lógica e quais são as possibilidades de intervenção das políticas sociais sobre
ela. AUGÉ assevera o esvaziamento político fomentado pelo “não-lugar” e a
impossibilidade de estabelecimento de uma sociedade orgânica, nessa conceituação.
Dessa maneira, a compreensão da contemporaneidade e da supermodernidade
precisam ser alcançadas para que se visualize a complexidade de sua dinâmica.
Esses elementos ampliam o desafio das políticas sociais, na medida em que
alteram os fatores socioculturais e sua lógica de interpretação e funcionamento.
Quando os diferentes atores desse processo – gestores, técnicos e usuários –
remetiam-se à questão da moradia, ficava explícita a necessidade de sua inovação e
oferta de espaços protegidos não “apenas” fixados no intuito de “retirada” das ruas,
mas que ousassem avançar para a proteção e direitos, efetivando uma inovação
sociopolítica e uma incorporação da real demanda da moradia para essa população.
O Grupo Criando Rede de Esperança caminhava nessa discussão, uma vez
que criou um equipamento transitório onde essa população poderia dormir: o
“Pernoite Protegido”. No entanto, apresentava a finalidade de reencaminhamento das
crianças e dos adolescentes para suas casas ou para abrigos, afastando-se, em seus
objetivos, da possibilidade de se constituir como local efetivamente transitório para
aqueles que estavam nas ruas. O Grupo propunha o debate sobre o estabelecimento
260
de “repúblicas” e “moradias alternativas” e manifestava o interesse pela discussão de
outras possibilidades de espaços de morada, o que não se efetivou. Trata-se de uma
possibilidade que pode se constituir, quando viabilizada como equipamento
autônomo de gestão e condução pelos seus moradores, como alternativa de criação
de “lugares” para essa população.
O tema da moradia distancia-se no discurso entre os diferentes agentes,
criando uma tensão em sua dinâmica, distanciando-se, tamm, dos princípios
jurídicos, assim como dos objetivos levantados pelos equipamentos sociais. A rede
de serviços produzia poucas alternativas no campo da moradia para essa população,
mantendo uma lacuna de atenção, expressa nos discursos dos diferentes atores. É
importante, também, assinalar que para alguns adolescentes o abrigo se constituía
como uma alternativa de lugar para estar e, efetivamente, realizava sua proteção
temporária. Mas, essa constatação aplicava-se a uma pequena parcela dos abrigados e
por períodos restritos, demonstrando a necessidade de revisão e de construção de
novas metodologias de atenção e implementação de inovação nesse campo.
Ficou evidente que os projetos destinados à difícil tarefa de se constituírem
como casa deveriam buscar seu enraizamento na tessitura de “lugares” para meninos
e meninas – na perspectiva de consolidação de um espaço “identitário, relacional e
histórico” (AUGÉ, 1994, p. 73) – para poder caminhar na direção do acesso aos seus
direitos.
5.2 Uso de substâncias psicoativas
O uso de substâncias psicoativas por adolescentes e jovens tem sido temática
de constantes inter-relações, principalmente na associação entre pobreza e tráfico de
drogas, pertencente à “integração perversa” entre esses dois pontos, o que tem
trazido fortes ameaças à democracia (ZALUAR, 2004).
261
O debate em torno do comércio das drogas e a sua proibição têm raízes nas
táticas de controle social e “gestão dos corpos”, em uma perspectiva de guerra
instaurada (RODRIGUES, 2004). Assim, os desafios existentes entre a integração
marginal e paralela, a ilegalidade, a criminalidade e a juventude explicitam a situação
social urgente em que essas questões se encontram. Temas como a segurança
pública, a guerra policial estabelecida nas periferias e o tráfico de drogas, com seus
bárbaros crimes cometidos, urgem ser discutidos e incorporados nas ações sociais
realizadas pelo Estado e seu padrão de intervenção, proteção e garantia de direitos
para a sociedade (ZALUAR, 2004).
Com relação especificamente a meninos e meninas em situação de rua,
observou-se um uso constante de drogas, porém uma pequena participação no tráfico
na condição de “trabalhadores”. Realizavam, como função esporádica, o transporte
de drogas para vendedores, na função, denominado por eles, de aviãozinho, na busca
de troca por mercadoria para consumo próprio. Entretanto, eram vistos como
inapropriados para a tarefa, descartáveis para esse comércio, na medida em que,
freqüentemente, não cumpriam acordos, por causa do seu uso intenso de drogas ou
mesmo do desenraizamento de um lugar físico para serem “cobrados” de eventuais
dívidas. Dessa forma, seu trânsito livre criava um certo afastamento da inserção
aprofundada nesse comércio e mantinha-os com uma relativa “independência” em
relação ao tráfico de drogas, embora classificados como usuários freqüentes.
A questão do uso abusivo de substâncias psicoativas pelas crianças e pelos
adolescentes em situação de rua parece ser bastante contextualizada em seu meio
como componente de integração, adrenalina e busca de sobrevivência nas ruas
(SOUZA, 2001). Já para os serviços da rede, o uso abusivo era interpretado como um
componente patológico. Constituía-se, assim, um distanciamento concreto entre a
interpretação e, conseqüentemente, proposição dos equipamentos e o contexto das
drogas para os meninos na rua.
É importante destacar que alguns adolescentes, e mesmo crianças, têm,
efetivamente, sintomas que se assemelham a quadros de dependência química e
requerem intervenções e cuidados para esse nível de gravidade, cabendo o
questionamento sobre o risco de morte a que se submetem. Porém, para grande parte
262
de meninos e meninas, o uso caracterizava-se em outra dimensão, contextualizado à
rua, sendo difícil a distinção, para os técnicos em intervenção, entre momentos
limites e usos abusivos.
As alternativas em vigor na rede de serviços estudada apresentava dois
modelos: as comunidades terapêuticas, de cunho religioso, e o serviço público de
saúde CAPS/ambulatório de saúde mental, que sofreu modificações na sua
constituição nos últimos anos.
As comunidades terapêuticas de cunho religioso na cidade, embora estejam
passando por modificações e adaptações às recentes normas jurídicas para seu
funcionamento (ANVISA, 2001), são fortemente calcadas na doutrinação religiosa e
comportamental para a interrupção do uso de drogas, conforme demonstrado na
história de João. Utilizam uma abordagem personalista para justificativa do sucesso
ou do fracasso do tratamento. Mesmo havendo alguns jovens que se beneficiaram
dessa metodologia de tratamento, com relatos nessa direção, grande parte dos
meninos de rua não aderiu à proposição e manteve, em seu discurso, a apropriação de
um fracasso pessoal na sua continuidade do uso das drogas.
As estatísticas entre os que aderiram ou não aderiram às comunidades
terapêuticas não mobilizaram, até então, uma discussão sobre a adequação ou a
inadequação metodológica do trabalho desempenhado. Trata-se de uma indicação
importante na medida em que são locais que também recebem verba pública para
funcionamento e operam poucos resultados com a população em situação de rua,
mantendo-se como serviços privilegiados de encaminhamento dessa população para
o tratamento de drogas.
Um dirigente de uma ONG da rede aborda essa temática:
Ainda não se encontrou uma alternativa, além dos dozes passos [metodologia das
comunidades terapêuticas], para se cuidar do uso de drogas. Você tem a redução de
danos, você tem a saída da indução, (...) a indução como forma terapêutica em outras
alternativas saudáveis da vida, no positivo, mas ainda não se tem uma coisa escrita,
clara, não se tem uma programação, como tem o N.A.[Narcóticos Anônimos], para,
pelo menos, ter o mínimo: “é por aqui, isso, aquilo”. Isso ainda não se tem. Eu
acredito que os poucos meninos que conseguiram, a partir dos doze passos, é por um
263
grande esforço deles e eu não sei até que ponto isso é permanente quando se chega à
juventude (Diretor de um abrigo da rede).
Na outra vertente, o serviço público de saúde destinado a essa população – o
antigo ambulatório, posterior CAPS, e, novamente, ambulatório – buscava a
discussão de uma outra abordagem no tratamento do uso de substâncias psicoativas,
transitando em modelos de atendimento em saúde mental. Quando destinado
claramente para a função de tratamento de drogas entre adolescentes, caracterizou-se
nos princípios da saúde mental, pelo modelo de um CAPS, e acumulou resultados
que refletiam, também, uma pequena adesão dessa população ao modelo de
tratamento.
Tangenciava o difícil debate sobre a metodologia da “Redução de Danos” e o
uso de substâncias psicoativas, sem parceiros na rede de serviços para constituição
desse modelo, nem com outras experiências fora do município que pudessem seguir
como parâmetro. Os CAPS no país direcionam-se, majoritariamente, no modelo
álcool e outras drogas, para o trabalho com adultos; e, na vertente infantil, para
atenção às psicoses. A relevante metodologia da Redução de Danos para o uso de
drogas, diretriz do Ministério da Saúde, precisa avançar para o público de
adolescentes e de jovens a fim de que se possa fomentar experiências nesse
reconhecido campo necessário para intervenção.
Isolado, o serviço direcionou-se por firmar seu trabalho baseado em um
modelo mais calcado na clínica, por meio do fortalecimento de espaços institucionais
de atendimento individual, como: intervenção medicamentosa (em pediatria e
psiquiatria), psicoterápica (em psicologia) e atividades individuais (em terapia
ocupacional).
A proposição de atenção em saúde mental aos adolescentes usuários de
substâncias psicoativas partia da aposta de uma determinada gestão, que colocou a
infância e a juventude como prioridades de intervenção e bandeira política, o que na
Saúde se traduzia pelo investimento de recursos em um equipamento social. A partir
da conjunção de duas equipes distintas, de históricos e filiações diferentes,
visualizavam o estabelecimento de uma inovação no atendimento a essa população.
264
Pode-se dizer que houve, minimamente, a inclusão do tema e seu reconhecimento
como pauta de necessidade de intervenção pública, uma vez que se manteve na
agenda, na gestão sucessiva, como local de continuidade (e ampliação) da
proposição. Entretanto, as avaliações dos resultados (realizadas a partir de índices de
atendimento e adesão dos adolescentes aos tratamentos), assim como a observação
do cotidiano institucional, demonstraram um serviço majoritariamente esvaziado,
mas com o atendimento de casos graves e a condução de situações complexas,
marcadas, principalmente, pela descontinuidade e interrupção na atenção,
ocasionadas, na maior parte das vezes, pelo não retorno dos adolescentes ao
equipamento.
O serviço permanece funcionando na rede de saúde pública do município e
mantém a discussão, com sua nova equipe e atuais gestores, sobre as modalidades de
intervenção e ampliação de sua população-alvo e abrangência. Persiste na tarefa de
inserção, na agenda dos equipamentos sociais, do tema das políticas de saúde para a
adolescência e para a juventude de grupos populares, como área a ser incorporada no
escopo das políticas sociais. Reforça o reconhecimento do tema como uma
“necessidade pública” e dirige-se para a ampliação de atores a serem
responsabilizados, na medida em que, atualmente, avança seu espaço de ação para as
Unidades Básicas de Saúde e o atendimento aos adolescentes e aos jovens residentes
nos bairros periféricos.
No que concerne à implementação de uma metodologia alternativa de
trabalho na área da adolescência e o uso abusivo de substâncias psicoativas, afastou-
se de sua efetivação e os profissionais direcionaram-se para a adesão a um modelo já
estabelecido e predominante: o clínico. Essa tentativa é claramente percebida pelas
informações que foram apresentadas nas trajetórias de vida, como: o alto índice de
uso de medicação psicotrópica (ocorrida com todos os adolescentes em que neste
trabalho foram contadas parte de suas trajetórias), a discussão sobre a implementação
de serviços de internação, a utilização da terminologia “paciente terminal” por alguns
profissionais e outros fatores já tratados.
Para um representante de uma ONG, ao ser indagado sobre sua avaliação com
relação ao equipamento da saúde, na parceria de trabalho na rede, ele respondeu:
265
É que ficou muito ligado também com a parte, como se chama? Dos psicotrópicos.
Você tinha a medicina, você tinha o atendimento individual, as oficinas, tudo isso,
mas os resultados não são assim tão, digamos, numéricos, por exemplo
(Coordenador de uma ONG da rede).
Essa fala demonstra também uma outra conseqüência do modelo de
intervenção realizada: a apropriação da linguagem médica nos serviços sociais. O
equipamento trouxe para a rede de atendimento à infância e à juventude,
majoritariamente constituída por ONGs enraizadas na assistência social, a
socialização de termos do campo da psiquiatria, como: medicação psicotrópica,
atendimento psicoterápico, internação para contenção, internação compulsória,
desintoxicação, co-morbidade psíquica. O universo médico foi, de alguma maneira,
incorporado aos serviços jurídicos e assistenciais, culminando na nossa próxima
categoria empírica: a iatrogenia da população de rua via saúde mental.
5.3 Saúde Mental e população em situação de rua: iatrogenia?
O sentido da palavra iatrogenia, conhecido no campo da saúde, propõe uma
interrogação sobre o poder médico e a “produção” de sintomas, características, erros
e doenças, ou seja, trata-se da “geração de atos ou pensamentos a partir da prática
médica” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 1559).
Essa discussão já foi, há anos, realizada sobre a saúde, por meio dos
relevantes trabalhos de Ivan Illich. A história da intervenção na esfera social pelo
campo da saúde acumula estudos e discussões, com importantes contribuições das
análises de FOUCAULT (1979, 1997), na explicação sobre o “nascimento de uma
medicina social”. Pela psiquiatria, e sua institucionalização dos portadores de
transtorno mental: “os loucos”, há um grande acúmulo de iatrogenias, em diversos
dispositivos institucionais, para a manutenção da loucura e das pessoas em
instituições totais: os hospícios (VECHI, 2004). Esse marco representou o controle
dos sujeitos, dos corpos e, no limite, da própria vida, quando demarcou a
266
institucionalização daqueles oriundos de grupos populares e a função de limpeza
urbana realizada por meio da retirada dos “desviantes” dos espaços públicos
(BASAGLIA, 1986).
FASSIN (1998) aborda o encontro entre a saúde pública e o espaço social,
atualmente, através das intervenções realizadas com as “figuras urbanas da saúde
pública”, ou seja, as situações sociais que ganham lugar de intervenção na saúde.
Exemplifica com os moradores de rua (sem domicílio fixo, como são chamados pelos
franceses), usuários de drogas (abordados pelos programas de redução de danos),
jovens de periferia, entre outros, os quais são tratados como “figuras” e não como
sujeitos. “A figura é, de fato, de um lado, a forma exterior de um corpo, feito uma
aparência, visto como uma resignação mais precisa, o aspecto da pessoa, que é
expresso nas suas características; de outro lado, é a representação visual da coisa que
se situa no mundo da arte ou no domínio da retórica” (p. 10)
2
.
Para esse autor, as ações de saúde pública com tais figuras serão constituídas
através da rede de agentes, seus registros de práticas e a gestão das problemáticas.
A rede de agentes, ou técnicos locais em intervenção, identifica um problema de
saúde e delega ações para determinadas populações, por exemplo, as pessoas em
situação de precariedade socioeconômica, e traduzem algumas de suas necessidades
e demandas de serviços de saúde. Nessa rede, há a realização de um acordo entre os
agentes, os técnicos e as instituições locais, em um reconhecimento coletivo e
compartilhado dessas demandas. Em seguida, os registros das práticas buscam a
legitimação das ações, com base, principalmente, no “poder de polícia” da saúde,
defendida em nome da coletividade, e em suas conseqüentes medidas de
“prevenção”, que se traduzem na “ação sociossanitária”, campo nebuloso e de
fronteiras de operações. E, por fim, a gestão das problemáticas, que passa por
elementos de tratamento e julgamento moral para a resolução e encaminhamento dos
problemas concretos e cotidianos, observados na qualificação dos públicos-alvos e
nas especificações de intervenções.
2
La figure, c’est em effet, d’une part, la forme extérieure d’un corps, ce qui en fait l’apparence, voire
dans une acceptation plus précise, le visage de la personne, ce qui en exprime les traits et, d’autre
part, la répresentation visuelle de la chose, que l’on se situe dans le mond de l’art ou dans le domaine
de la rhétorique.
267
Trazendo tais elementos explicativos para o nosso campo de análise, pôde-se
compreender que os agentes da rede de atendimento a meninos e meninas em
situação de rua de Campinas articularam-se pela incorporação de intervenções
psiquiátricas com essa população, calcando suas práticas em valores e julgamentos
do modelo clínico individual, gerindo as complexas problemáticas vivenciadas,
apresentadas no cotidiano por essa população, por meio dessa conduta. Dessa forma,
encontra-se um discurso predominante entre os técnicos entrevistados sobre a
necessidade da criação de serviços que pudessem lidar com as co-morbidades
psiquiátricas, palavra aprendida e incorporada por diversos profissionais, inclusive
aqueles de outros campos que não o da saúde. A essa complexa situação nomeamos
“iatrogenia”, ou seja, a criação de demanda de saúde em um contexto específico:
crianças e adolescentes em situação de rua.
Exemplifica-se essa situação, pelos encaminhamentos judiciários realizados
nos últimos anos. Foi crescente o número de pedidos de internação de adolescentes
em serviços de psiquiatria, conforme alguns exemplos relatados. Esses
encaminhamentos foram originados ora pelo pedido dos profissionais da rede
diretamente ao juiz da Vara da Infância e Juventude do município, ora
espontaneamente pelo próprio Judiciário, a partir de situações atendidas diretamente.
Esses fatos culminaram na criação e na institucionalização da resposta de internação
psiquiátrica como elemento protetor e de cuidados para essa população.
Contudo, os acúmulos do campo da saúde mental representados pela Reforma
Psiquiátrica e pelo processo de desinstitucionalização não alcançaram os atores do
campo social e do Judiciário. Esse quadro foi agravado por trazer a iatrogenia a partir
de referenciais passados da psiquiatria, ou seja, trata-se da aplicação de pressupostos
antigos, ainda hoje presentes, quanto à atenção ao portador de transtorno mental:
basicamente a institucionalização.
Há o risco de se repetir o modelo desconstruído por BASAGLIA, e outros
pensadores e militantes da Reforma Psiquiátrica, uma vez que se aplica uma medida
legitimada pelo setor saúde para aqueles reconhecidos como causadores da desordem
do espaço urbano: meninos e meninas em situação de rua. Novamente, o componente
de classe social da qual são originários representa o elemento de “exclusão” de sua
268
intervenção social, isto é, a providência que é aplicada a esse grupo de “desviantes
sociais”.
Não obstante, essa discussão imbrica-se em um campo de difícil e tênue
distinção, por representar, concretamente, um risco de iatrogenia diante dos
adolescentes de grupos populares que moram nas ruas, por outro lado, apresentar,
também de maneira concreta, situações de sofrimento psíquico de alguns.
Assinalamos dois fatores. Primeiramente que havia casos reais e com
complexas questões que interpelavam os serviços por respostas também na saúde
mental. O caso de Cíntia, por exemplo, possuía essa forte interface e, embora
houvesse a constante discussão de não se tratar de um quadro psicótico, havia,
claramente, tangências com a saúde mental que explicitavam as poucas alternativas
restantes para o seu cuidado. Isto levou à opção, por parte dos técnicos, pelo seu
encaminhamento nesse campo, após os 18 anos, e a trajetória de incorporação
psiquiátrica que ocorreu em seu percurso pessoal. Além de Cíntia, outros casos
poderiam ser arrolados como exemplo, evidenciando a necessidade de se pensar em
alternativas em saúde mental que acolham situações de sofrimento, mas não se
traduzam na homogeneização do quadro daqueles que vivem nas ruas, bem como não
se fixe na produção de uma doença mental, na iatrogenia da população em situação
de rua.
Um segundo fator demonstra que a associação entre saúde mental e
população em situação de rua não é um evento isolado do nosso campo de estudo e
análise, uma vez que tal discussão tem ganhado espaço nas intervenções com
adolescentes e jovens, como aqueles em conflito com a lei, e na política nacional de
saúde mental, por meio da colocação da necessidade de se avançar nessa área
3
.
3
Em evento da área realizado pelo Ministério da Saúde foram destacados como atuais desafios para
a política de saúde mental: a) a ampliação da implementação de Centros de Atenção Psicossocial que
oferecem atendimento na modalidade 24 horas (CAPS III); o atendimento: b) às situações de
urgência e emergência, c) aos usuários de álcool e outras drogas e d) à população em situação de
rua com transtorno mental. Nesse momento, foi feito, com destaque, a ressalva a necessidade de
cuidado para não se criar uma “patologia” e “medicalização” da população em situação de rua
(SEMINÁRIO NACIONAL DE SAÚDE MENTAL NAS GRANDES CIDADES, 1, 2008. Campinas, SP.
Carta de Campinas).
269
Existe, portanto, o desafio de que as discussões da saúde mental sobre a
esfera social, especialmente relacionadas a infância, adolescência e juventude em
situação de rua, não se traduzam numa iatrogenia e “medicalização” do social, mas
sim no atendimento efetivo daqueles que dessa atenção precisam, assim como no
desenvolvimento de outras formas de acolhimento ao sofrimento, que não se
revertam em explicações e culpabilidades individualizantes.
Na França, a temática do “sofrimento social” tem ganhado destaque nas
produções teóricas de interface entre a saúde pública, a sociologia e a antropologia
desde que a questão da “fratura social” foi levantada como bandeira de campanha de
governantes, em 1995, resultando no planejamento e implementação de projetos para
lidar com o sofrimento decorrente da injustiça social (FASSIN, 2004). A urgência do
tema, amplificada pelos conflitos populares ocorridos em periferias urbanas, resultou
na entrada da temática na agenda pública, sendo incorporada às políticas sociais,
culminando no seu reconhecimento como “necessidade” de intervenção pelo Estado.
Para LOUZOUN (2005) “o sofrimento social em seu estado atual é sintoma
de uma sociedade do lucro que não sabe dividir, de uma sociedade doente na qual a
luta entre o neoliberalismo e solidariedades é princípio” (p. 7)
4
.
Mesmo que o princípio esteja fundamentado na injustiça social, que o
nomeado “sofrimento social” seja fruto da conjuntura socioeconômica, uma das
respostas políticas geradas transformaram o lugar de vítima do sistema político e
econômico em “sofredor” e, para tanto, criou-se uma política de “escuta” como
alternativa de encaminhamento e solução da problemática. Ou seja, por meio de
liminares ministeriais francesas, foram criados os “lugares de escuta” em periferias,
locais de exclusão social, como “modo de intervenção nas desordens cotidianas
causadas pela precariedade” (FASSIN, 2004, p. 12)
5
.
Esses espaços são destinados prioritariamente aos jovens das periferias (dos
bairros sensíveis, na terminologia francesa), nomeados de “Ponto Jovem, ofertando
atividades de lazer e profissionais “psi” para promoverem um espaço de escuta do
4
La souffrance sociale dans sa massivité actuelle est symptôme d’une société du profit qui ne sait
partager, d’une société malade dans laquelle la lutte entre néolibéralisme et solidarités est princeps.
5
Mode d’intervention sur les désordres quotidiens causés par la précarité.
270
sofrimento psíquico decorrente da posição social ocupada, da experiência de
desigualdade social vivenciada.
Para essa identificação e explicação do problema social como demanda de
saúde, os agentes institucionais (técnicos e gestores) estabeleceram um acordo e
reconhecimento institucional para a apropriação da temática do comportamento de
jovens de periferia, registrando tal demanda no escopo da psiquiatria e fazendo a
gestão da problemática por meio de uma abordagem individual e com fins de
psicologizar a questão (FASSIN, 2004). Trata-se, portanto, de um exemplo
internacional de um mesmo movimento na direção de consolidação de uma
iatrogenia da população juvenil de grupos populares.
Dessa maneira, o exemplo da política francesa, tanto quanto a questão
emergente do nosso campo de estudo, demonstra que a incorporação de uma
necessidade pelas políticas sociais pode assumir uma função apaziguadora de
eventos sociais de alteração da ordem, em vez de um encaminhamento para a
promoção de direitos para um dado grupo social.
Na rede de serviços de Campinas, constatou-se que o desafio de
implementação de metodologias alternativas de cuidado com relação ao uso abusivo
de substâncias psicoativas pouco avançou. Isto contribuiu, involuntariamente, para
uma iatrogenia que fomentou a criação de um imaginário, entre os trabalhadores da
rede, incluindo a esfera judiciária, de articulação das situações de estar na rua, usar
drogas e a presença de um distúrbio psíquico. Essa postura pouco colabora para o
acesso a direitos por essa população e amplia a tensão na dinâmica de funcionamento
dos equipamentos sociais.
Na busca da oferta do acesso ao direito à saúde, o equipamento público
contribuiu para problematizar o tema e atuar para seu alargamento, via atendimento e
atenção em outros níveis de cuidado. Porém, também atuou para uma nova
interpretação do lugar social dessa população na esfera do uso de substâncias
psicoativas, que culminou na visão clínica individualizante e na “medicalização” de
uma temática social.
271
5.4 Cultura e Educação
O capítulo IV do ECA (BRASIL, 1990) assevera o “direito à educação, à
cultura, ao esporte e ao lazer” para toda criança e adolescentes brasileiros “visando
ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho” (artigo 53).
O reconhecimento jurídico desses direitos, e o contexto presente na rede de
serviço, deflagrava uma incongruência, pois, a realidade demonstrava que essas
crianças e esses adolescentes, na sua maioria, haviam deixado o sistema formal de
ensino, tendo, grande parte, escassos conhecimentos do universo letrado e, quanto à
cultura, apresentavam pouco ou nenhum acesso.
Dessa maneira, essas duas temáticas entraram de modo bastante contundente
na agenda de trabalho do Grupo Criando Rede de Esperança, a partir da compreensão
da urgência, que se traduziu em esforços, para a criação de novos serviços que
facilitassem o acesso a esses direitos por parte de sua população específica.
A escolarização formal, pelo fomento de um espaço alternativo para sua
promoção, foi um dos grandes investimentos do grupo, que assumiu, posteriormente,
essa conquista como um dos seus elementos de apresentação em outros coletivos.
Para a Supervisora Educacional da Secretaria Municipal de Educação, a efetividade
do projeto ocorreu por uma conjunção de fatores:
Acredito que havia a vontade de alguns dos governantes, casada com o histórico do
partido, que ajudou e alicerçou, mas penso que o papel da saúde, o papel da
assistência social, e de algumas organizações não-governamentais foi fundamental,
até para criar uma correlação de forças mais favorável a isso. E a gente tinha em
postos-chave do governo anterior algumas pessoas com experiência de trabalho com
estas populações, inclusive a própria prefeita, então imagino que isto também não é
criado do nada, é um casamento das vontades individuais a partir de trajetórias
políticas, econômicas, acadêmicas, de formação. Também essa pressão do Criando
Rede, que também tinha esta característica, de pessoas que tinham uma militância,
uma vivência, uma história nesta área, e que ajudaram a criar essa correlação de
forças mais favorável para a criação do serviço. O papel do Criando Rede foi, e
ainda é, fundamental, com suas viabilidades e limitações, para a sustentação da Sala
[de Transição] (Supervisora Educacional da Secretaria Municipal de Educação).
272
Esse conjunto de forças provocou um debate conhecido no campo
educacional: a inserção na escolarização para aqueles que apresentam uma “situação
especial”. A Educação lida com a demanda dos portadores de necessidades especiais,
daqueles que não falam português como língua materna (como os indígenas), do alto
índice de evasão escolar de adolescentes e jovens de grupos populares e, nessa
experiência, destacavam-se aqueles que se encontram em situação de rua. Traziam
para a cena a necessidade de inclusão de um grupo específico no sistema público de
ensino.
O encaminhamento efetivado foi a criação de um equipamento transitório
para essa população, a “Sala de Transição”, visando à utilização de metodologias
diversificadas para sua aproximação com o letramento. A partir de então, buscavam-
se a “adaptação” e a correspondência com o sistema formal escolar.
Esse processo demonstrou a incorporação sociopolítica da demanda
educacional para a população de crianças e de adolescentes em situação de rua,
percurso escolhido para o acesso desse grupo ao direito à educação. A Sala de
Transição permanece como equipamento da rede de atendimento, tem vivido
modificações e adaptações ao novo contexto político, porém com continuidade de
trabalho.
Junto aos adolescentes, verificamos que havia um reconhecimento da
importância da escolarização e da apresentação desse local como um espaço de
conquista, quando estavam nele. Contudo, a escola configurava-se como mais um
ponto de sua rede pessoal de suporte nas ruas, no qual transitavam, com pequena
constância e continuidade. Os cincos jovens, dos quais relatamos parte de suas
trajetórias, freqüentaram, em momentos diferentes, esse equipamento. Deles, Cíntia e
Lucas passaram para o sistema formal de ensino e continuaram seus processos de
escolarização.
Isso demonstra que, além da oferta do serviço, conquista reconhecida e
necessária para o acesso aos direitos, as metodologias aplicadas, bem como o
entendimento, por parte dos professores e gestores, do complexo contexto a quem se
273
direciona: o mundo da rua, precisam ser aprofundadas para que, efetivamente, haja
adesão à escola e a possibilidade de alcance de outros mundos, por meio dela.
No campo da cultura, a presença de uma funcionária local para compor a
discussão intersetorial da rede de intervenção foi uma inovação, o que não se
sustentou na alternância de governo. No período de sua participação, foram
instaladas duas naturezas de ações. Uma direta: atividades específicas para esse
grupo, desenvolvidas através das oficinas da Secretaria de Cultura em ONGs, e outra
indireta: quando houve a preocupação, por parte dos gestores, de criar mecanismos
de facilitação da participação desse grupo nas ofertas culturais da cidade, para todos
os interessados. Fatos motivados, a partir da sensibilização para o tema, evocado pela
participante da área da cultura no interior da sua Secretaria.
Esse conjunto de experiências teve como um dos resultados a
institucionalização de algumas práticas culturais na cidade com princípios de
inclusão e ampliação de sua clientela.
O debate majoritário circundou a questão da oferta de proposições culturais
específicas para o público infanto-juvenil em situação de rua ou a colocação de
esforços para sua integração nas atividades já realizadas, que devem ser múltiplas e
para todos. Não se produziu um consenso sobre essa questão, no coletivo do Criando
Rede de Esperança, assinalamos, porém, a relevância dos investimentos em
disponibilizar o acesso à cultura de maneira inclusiva e plural.
O campo cultural oferece linguagens de diálogo que possibilitam a
aproximação com o universo juvenil e que devem ser disponibilizadas para todos e
exploradas como recurso de intervenção em aproximação com o campo social. O
estabelecimento de pontes de entrada e ligações com serviços sociais via cultura era
uma aposta da rede que não culminou em resultados efetivos.
Assim, a Cultura não institucionalizou uma inovação no contexto de vida
daqueles meninos e meninas, mas levou para seu âmbito interno o debate sobre
possibilidades de ampliação do público-alvo e da compreensão das atividades, para
além de sua finalidade específica.
274
As áreas da educação e da cultura, personificados no interior do Grupo
Criando Rede de Esperança pela Sala de Transição e pelas oficinas culturais,
juntamente com outras áreas para as quais se buscou a implementação de novos
serviços, com destaque para o Pernoite Protegido; demonstravam o percurso desse
grupo de trabalho para a constituição de inovações sociopolíticas e o reconhecimento
delas como necessidades a serem viabilizadas pelas políticas sociais.
Para a primeira coordenadora do Grupo:
é assim mesmo, então é um vai e volta, melhora, piora, a gente avança, volta... (...)
tudo isso é a construção cotidiana e quem faz somo nós: os trabalhadores. Porque a
construção de uma política pública é assim. Não tem como você construir uma coisa
e transformar rapidamente (...). E o que a gente tem que fazer, estando na vida, no
trabalho, é tentar influenciar o tempo inteiro na direção de uma política pública em
que se acredite, que seja realmente para a construção de um bem-estar, de uma vida
melhor, e que ela prevaleça, e se não prevalecer na macropolítica, que prevaleça na
micropolítica, que é onde você pode exercer o seu trabalho, que você pode
influenciar e conseguir. (Coordenadora do Criando Rede de Esperança no período de
2002 a 2005).
Essas experiências mostraram que, para além da entrada da temática na
agenda política, os processos de avanço e retrocesso são presentes, como destaca o
depoimento acima, ressaltando a necessidade de constantes avaliações e
tensionamentos para que a população continue sendo alvo de políticas sociais de
diversos formatos. Após o início da intervenção no processo de implementação, os
métodos para executá-la são de fundamental importância e difundem os valores e
contradições inerentes à abordagem de questões complexas.
As experiências no campo da educação e da cultura explicitavam essas
questões. Demonstravam avanços, na medida em que ganharam a agenda política e a
preocupação de inclusão desse público como alvo de suas ofertas, porém
personificavam limites no embate para a manutenção e ampliação da incorporação de
um determinado grupo como destinatário de seu trabalho. O que se constatou de
maneira mais contundente na Cultura, mas também expresso na Educação pelos
constantes debates sobre a continuidade do projeto em curso.
275
Trata-se, por fim, de áreas centrais para garantia dos direitos e que
permanecem em disputa para alargamento ou retrocesso na disponibilidade de ações
com o público infanto-juvenil.
5.5 Adaptação à rede de serviços: há lugar para todos?
Após as categorias relacionadas diretamente com os setores de serviços,
emergidas do campo, relacionamos um outro conjunto de temáticas, que traduzimos
nos itens seguintes. A discussão sobre a “adaptação” ou “não adaptação” à rede de
serviços foi elemento enfatizado por diversos técnicos em intervenção nos diferentes
equipamentos.
Na perspectiva dos adolescentes, notou-se que eles trazem para si a
responsabilização individual pela sua adesão ou não às proposições realizadas pelos
diferentes locais que freqüentavam. Esse fato é averiguado em algumas falas de João,
nas quais ele expressava sua responsabilidade por suas escolhas e não assunção das
ofertas recebidas, seja pelos educadores nas ruas, seja diretamente nos equipamentos
sociais quando buscava algo, espontaneamente ou encaminhado por algum outro
serviço.
É notório como assumem uma perspectiva de individualização e de nenhum
questionamento sobre os métodos empregados nas proposições que não aderiram. A
discussão sobre as possibilidades, a qualidade e os limites dos serviços ofertados não
é comum entre os usuários de serviços sociais, fato amplificado nessa população, que
não tem uma cultura e, muitas vezes, não tem um repertório, para a efetivação desse
tipo de cogitação. Assim, a evasão da escola do bairro, da comunidade terapêutica
para o tratamento de drogas, do abrigo para onde foi encaminhado, a falta no
atendimento agendado pelo serviço de saúde, entre outros tantos lugares, são por eles
analisados como decisões exclusivamente pessoais na “opção” de permanência nas
ruas.
276
Sem desconsiderar os elementos individuais de atuação, tampouco a
integração pelas margens, há, também, a interferência de elementos organizativos e
metodológicos dos processos de trabalho e intervenção que são, em alguns casos,
pouco eficientes para o público e objetivos a que se destinam. O pequeno poder de
barganha que esses sujeitos acumulam fazem com que essa dimensão seja raramente
suscitada, mesmo nos espaços institucionais, reforçando uma individualização e uma
culpabilização das escolhas e reprodução do paradigma de personificação dos
insucessos.
Entre os técnicos é nítida a manutenção da visão e de atos que reforçam, junto
aos meninos e às meninas, a dimensão individual para a adesão às proposições dos
serviços ou a culpabilização pelo seu abandono.
Nas equipes, discute-se a criação de métodos alternativos que “concorram
com a rua”, expressão bastante utilizada nesse meio, como tentativa de abarcar um
maior número de adeptos às proposições institucionais. É comum a procura por uma
diversidade de atividades, geralmente enraizadas no campo das artes e da cultura,
com funções atrativas para que possam ser envolventes e resultem na manutenção
dos adolescentes no serviço e, posteriormente, sua adesão mais plena ao local e seus
objetivos.
Essas preocupações perpassam as análises e avaliações dos serviços e as
discussões sobre o funcionamento de futuros projetos, demonstrando que há uma
necessidade legítima de debate sobre o “como fazer”, na direção da constituição de
modos de operacionalização do trabalho com essa população.
No cotidiano, são predominantes as adesões temporárias dos adolescentes e
seu fluxo contínuo de trânsito de idas e vindas, entre o ambiente institucional e a rua.
São raros os casos que incorporam uma adesão permanente e contínua, como a
efetivada por Lucas.
Lucas seguiu as proposições a ele sugeridas, tendo deflagrado poucos
momentos de tensão e contestação, ocasião em que fez saídas não negociadas de
abrigos, derivadas de brigas e episódios de violência. Porém, o espaço que havia
conquistado entre os técnicos possibilitou uma permissividade e momentos de “não
277
adesões”, pelo seu histórico, desde sua entrada na rede, de cooperação e
enquadramento aos diversos encaminhamentos dos serviços. Com isso, seguiu para
um lugar diferenciado nesse contexto e verbalizava seus ganhos diretos e secundários
conquistados, a partir de sua adaptação à rede, às instituições e aos trabalhadores.
Os ganhos obtidos por ele são nítidos e exemplificam uma mudança de lugar
social ocupado, como usuário da rede de serviços, expresso diretamente pela oferta
da participação e representação em seminários, conferências e outros coletivos, para
os quais os usuários dos serviços normalmente não são convidados; assim como pela
possibilidade de utilização de recursos locais, de difícil acesso e interesse dos
meninos. Obteve também ganhos indiretos, exemplificados quando relatou a
autorização recebida para circulação por “espaços exclusivos dos funcionários” no
ambiente institucional e a não mudança de comportamento por parte dos técnicos
locais com a sua presença.
Esses benefícios possibilitaram sonhos de futuro para Lucas e a mobilização
dos agentes institucionais para viabilizá-los. Fato de extrema relevância e
importância para o processo de trabalho de todos os serviços da rede. Não obstante,
consideramos que não haveria espaço para todos, nesse mesmo grau de atenção e
proteção, caso houvesse disponibilidade para essa “adesão”. O trabalho
desempenhado representa mais uma personificação e a possibilidade efetiva de
ganhos diretos e secundários, justamente conquistados pela lacuna existente dos
poucos que aderem aos serviços, do que uma oferta universal para o seu público-
alvo. Os fatores que levaram Lucas a ocupar esse lugar, diferenciando-o no aceite às
proposições realizadas, podem ser de diversas naturezas, pessoal e institucional;
contudo, sua situação e trajetória, influenciadas pelos serviços e profissionais que
com ele trabalharam, parece ser possível apenas na atual estrutura de escassas
adesões contínuas por parte dos usuários.
Permanece, então, o desafio da constituição de metodologias que se
aproximem do universo da situação de rua, propiciando maior consonância entre os
objetivos requeridos e os alcançados, partindo, inicialmente, a nosso ver, da
discussão sobre a contradição entre a “retirada da rua” e sua incongruência com a
população que nela está, integrada pelas margens e por meio da própria rua. Uma
278
revisão de princípios dos equipamentos, assim como um aprofundamento sobre as
metodologias utilizadas para o trabalho, faz-se necessária para uma maior efetividade
dos serviços sociais e, conseqüentemente, para uma maior adesão e a para ampliação
do acesso aos direitos.
5.6 Maioridade e juventude
A realidade provinda do cotidiano institucional da rede de serviços, com a
entrada de alguns jovens na maioridade, trazia um debate sobre o modus operandi
no recorte com a adolescência e a impossibilidade de continuação do
acompanhamento daqueles que freqüentavam as instituições. Embora esse fato
assumisse um ponto de inquietação entre os profissionais, motivando a pauta de
algumas reuniões coletivas, como no Grupo Criando Rede de Esperança, não houve
nenhum encaminhamento para uma efetivação de um projeto de atenção à juventude,
permanecendo o recorte de atendimento até a adolescência, ou seja, finalizado aos 17
anos e 11 meses.
A passagem para a vida adulta representava a finalização da assistência, no
contexto das políticas sociais campineiras, com uma ausência de intervenções para a
juventude. Os sujeitos desta pesquisa, todos com mais de 18 anos atualmente,
personificavam essa situação. A maioridade, apoiada na visualização da juventude,
foi uma categoria emergente do campo, mas não se revelou como elemento de
incorporação de inovações sociopolíticas no âmbito das ações públicas, uma vez que
não se efetivou como fator fomentador de implementação de novas abordagens e
novas compreensões em torno dessa fase da vida, nem alteração de configurações de
faixa etária de atendimento nos serviços da rede.
Para os jovens, era nítida a preocupação com a maioridade e com a perda de
acesso aos locais de atendimento, bem como a mudança da situação jurídica, de
279
acordo com as leis. Dessa forma, os 18 anos apresentavam-se com certo temor com
relação à efetiva perda de espaços de auxílios e de suportes para suas vidas.
O debate em torno da juventude como categoria sociológica, grupo especial
de atenção das políticas sociais e especificidade legislativa, tem ganhado a cena no
Brasil nesta década, motivado, segundo alguns autores, por fatores que elencamos na
seqüência.
Primeiramente, pela representação numérica desse segmento na sociedade
brasileira, conforme alguns dados estatísticos citados no Capítulo 3, que configuram
o país como predominantemente jovem.
O segundo fator está relacionado às análises interpretativas em torno da
juventude. Esta apresenta-se como um devir que, no imaginário social, permanece
numa ambigüidade: as representações ora exaltam o jovem, por meio das
possibilidades da geração, projetadas para um futuro de transformação social,
personificadas em uma fase “interessante” e “vibrante”; ora acentuam a dimensão
negativa dos “problemas sociais” e do “desvio”, associando-o à rebeldia, imaturidade
e periculosidade que podem causar na ordem social (BOURDIEU, 1986b). Essa
segunda interpretação tem ascendência no enlace criado, e influenciado pela mídia
brasileira, entre violência, pobreza e juventude, estigmatizando, prioritariamente,
jovens negros e moradores de periferias de grandes centros urbanos.
Para ABRAMO e LEÓN (2005, p.15-18) as perspectivas analíticas em torno
da adolescência e da juventude são direcionadas por uma compreensão de: a)
gerações e classe de idade (relacionado à faixa etária e às características similares
partilhadas entre os pertencentes de uma mesma geração); b) estilos de vida juvenil
(assinala-se a importante demarcação da diversidade de culturas e estilos de vida dos
jovens); c) ritos de passagem infanto/adolescente/juvenil (relacionados às mudanças
fisiológicas e sociais); por fim d) trajetórias de vida e novas condições juvenis (com
influência direta do contexto socioeconômico na trajetória de vida dos jovens,
trazendo, contemporaneamente, trajetórias constituídas de forma não lineares,
abaladas pelas fortes desigualdades sociais, e criando percursos diversos que podem
ser nomeados, segundo PAIS [2005a], de trajetórias “ioiô”).
280
Circunscrevemos nossa vertente de análise nas trajetórias de vida e novas
condições juvenis, por destacar a classe social e o enraizamento socioeconômico
como informações relevantes, influentes e, por vezes, direcionadoras para as políticas
sociais.
Outro marco dominante na discussão sobre a juventude na sociedade
contemporânea trata-se da crise da sociedade salarial no atual momento do
capitalismo, descrita por CASTEL (1998). Há uma diminuição gradativa de postos
de trabalho assalariados levando a dificuldades, que perpassam as classes sociais,
para entrada e manutenção na esfera do trabalho por todos, mas, em especial, pelos
jovens. Com isso, há uma tendência transversal de prolongamento da juventude para
que esses indivíduos tendam a retardar sua entrada no mercado. Esse processo é
percebido, de maneira mais evidente, nas classes média e alta, nas quais os jovens
têm passado por um processo de escolarização formal aumentado, ampliando,
também, o tempo de dependência econômica de seus pais (IARD, 2001). Nos
segmentos populares, a necessidade e o imaginário em torno do trabalho
permanecem e fortalecem-se apesar desses elementos, culminando em uma maior
contradição para os jovens na dificuldade de acesso ao trabalho.
Por um lado, muitos jovens de classes populares gozam de abundante tempo livre,
embora se trate de um tempo de espera, vazio, em virtude da falta de trabalho, de
estudo e de alternativas de um ócio criativo e vitalmente enriquecedor. (...) o tempo
da angústia e da impotência, o tempo da estigmatização social, um tempo que
empurra na direção da marginalidade e da exclusão, o tempo do ficar “marcando
bobeira” numa esquina, exposto aos agentes de limpeza social. (...) Por outro lado,
nos jovens de classes sociais com possibilidade de uma postergação legitimada das
responsabilidades adultas, o período de formação tende cada vez mais a alongar-se,
seja pela complexidade dos conhecimentos exigidos para uma inserção profissional
de acordo com as expectativas da classe, seja pela falta de um destino econômico
assegurado pela educação (ABAD, 2003, p. 26).
Do ponto de vista cultural, FEATHERSTONE (1994) aborda as “invenções”
de fases e delimitações nos cursos da vida, destacando que nas sociedades modernas
– “com base nos processos de industrialização, urbanização e administração pública
das populações (...) – uma série de idades compulsórias foram instituídas para
281
começar a deixar a escola, assim como para ingressar no trabalho, casar, votar, se
aposentar, etc.”, resultando em “uma maior padronização e ordenação do curso da
vida” (p. 62). Acrescentam-se aos aspectos econômicos as mudanças culturais e sua
retroalimentação, trazendo, atualmente, o debate sobre as modificações,
diferenciações, prolongamentos e novas demandas em torno da juventude.
Por fim, destacam-se as ações de movimentos da sociedade civil organizada
que ganharam visibilidade por intermédio da realização de debates públicos,
pesquisas e intervenções com jovens, que contribuíram para o recente lugar ocupado
pela temática junto ao governo federal. Em 2004, foi criada uma comissão
interministerial, no Poder Executivo, que apresentou à Câmara dos Deputados: o
Projeto de Lei n. 4530/2004 que cria o Plano Nacional de Juventude, aguardando
aprovação; o Estatuto dos Direitos da Juventude; e a Proposta de Emenda
Constitucional, que propõe a inclusão do termo “juventude” no artigo 227 da
Constituição
6
; além da criação, em 2005, da Secretaria Nacional da Juventude e do
Conselho Nacional da Juventude (NOVAES et al., 2006).
Os movimentos sociais tiveram grande importância para o reconhecimento
dos direitos de crianças e de adolescentes brasileiros constituindo-se como agentes de
tensionamento na disputa por inovações sociopolíticas para essa população.
Contemporaneamente, em todo o cenário político, observa-se uma reconfiguração
das modalidades de participação, impulsionada pelo novo estatuto político dos
movimentos sociais, pela sua cooptação pelo Estado, pela sua participação como
governo em administrações públicas, pelas parcerias com financiamento público
realizados, por exemplo, via ONGs, assim como pela estrutura econômica neoliberal,
pela predominância do individualismo e pelas características de uma sociedade
baseada na violência, o que pode ser interpretado como outras formas de tentativa de
reconhecimento e influência sociopolítica (PAOLI, 1995).
6
“É dever da Família, da Sociedade e do Estado assegurar a crianças e adolescentes [proposta de
inclusão: e jovens
], com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão” (Artigo 227, BRASIL, 1988).
282
Observa-se, hoje, uma diminuição das ações da sociedade civil organizada
que se reflete no desenvolvimento e na disputa de interesses nas políticas sociais para
o público infantil, adolescente e juvenil. O contexto atual, que impulsiona a
discussão sobre a juventude, ocorre, de maneira majoritária, a partir de militantes que
compõem o quadro administrativo do governo federal e impulsionam ações por
dentro da esfera pública administrativa.
Oriundo dessa estrutura, o atual projeto sobre uma Política Nacional de
Juventude tem difundido o princípio do jovem como “sujeito de direitos” e definido a
juventude na faixa etária dos 15 aos 29 anos, com três subcategorias: “adolescentes-
jovens”, entre 15 e 17 anos, “jovens-jovens, entre 18 e 24 anos e “jovens adultos”,
entre 25 e 29 anos (NOVAES et al., 2006). Para essa população é entendida a
relevância da promoção de políticas sociais, uma vez que “entender as singularidades
e as peculiaridades das juventudes e garantir direitos a esta geração são fatores
fundamentais para consolidar a democracia no Brasil, com inclusão social”
(BRASIL, 2006, p. 5).
A referência para constituição dessa política levantou amplos desafios
iniciais, norteadores das ações públicas em curso e outras a serem implementadas,
buscando a abrangência de áreas-chave para o desenvolvimento juvenil, segundo
carências identificadas e priorizadas. São eles:
- ampliar o acesso ao ensino e à permanência em escolas de qualidade;
- erradicar o analfabetismo;
- preparar para o mundo do trabalho;
- gerar trabalho e renda;
- promover vida saudável;
- democratizar o acesso ao esporte, ao lazer, à cultura e à tecnologia da informação;
- promover os direitos humanos e as políticas afirmativas;
- estimular a cidadania e a participação social;
- melhorar a qualidade de vida no meio rural e nas comunidades tradicionais.
(BRASIL, 2006, p.8).
283
Para enfrentar esses desafios listados, uma das primeiras ações da Secretaria
Nacional da Juventude consistiu no agrupamento e remodelamento de algumas
práticas já desenvolvidas pelo governo federal, cujo público-alvo são os jovens,
almejando criar incentivos para que os municípios implantem tais projetos, na linha
de ampliação de ações para essa população
7
.
7
Os programas, em 2006, eram (BRASIL, 2006):
Projeto Agente Jovem: visa ofertar aos jovens de 15 a 17 anos, no horário contrário ao turno
escolar, capacitação teórico-prática para a permanência do jovem no ensino e futura inserção no
mercado de trabalho. Ligado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).
Programa Bolsa-Atleta: objetiva garantir apoio financeiro aos atletas com mais de 12 anos que não
contem com patrocínio da iniciativa privada. Ligado ao Ministério do Esporte.
Programa Brasil Alfabetizado: dirige-se aos jovens com mais de 15 anos que não tiveram a
oportunidade de estudar. Ligado ao Ministério da Educação (MEC).
Programa Escola Aberta: propõe a abertura das escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio
nos finais de semana para acesso a atividades educativas, culturais, de lazer e de geração de
renda. Ligado ao MEC.
Programa Escola de Fábrica: tem por finalidade a inclusão de jovens de 16 a 24 anos no mercado
de trabalho por meio de cursos de iniciação profissional oferecidos nas empresas. Ligado ao MEC.
Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio. Ligado ao MEC.
Programa Juventude e Meio Ambiente: busca incentivar o debate sobre o tema entre os jovens de
15 a 29 anos para a formação de lideranças ambientalistas. Ligado aos Ministérios da Educação e
do Meio Ambiente.
Programa Nossa Primeira Terra: linha de financiamento voltada a jovens rurais para aquisição de
imóveis e investimento em infra-estrutura. Ligado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Programa Cultura Viva: tem por propósito potencializar iniciativas culturais já existentes como
meio de acesso para todos os cidadãos. Ligado ao Ministério da Cultura.
Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de
Jovens e Adultos: visa à oferta de vagas para jovens a partir de 21 anos, em cursos
profissionalizantes, que não tiveram acesso ao Ensino Médio na idade regular. Ligado ao MEC.
Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego: atende jovens desempregados de 16 a 24
anos com a oferta de qualificação socioprofissional. Ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego.
Programa Nacional de Inclusão de Jovens: destinado aos jovens de 18 a 24 anos que não têm
trabalho formal registrado e não concluíram o Ensino Fundamental. Oferta cursos para o
aprendizado de uma profissão e desenvolvimento de ações comunitárias. Ligado à Secretaria Geral
da Presidência da República, MEC, MDS e Ministério do Trabalho e Emprego.
Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio. Ligado ao MEC.
Projeto Rondon: leva estudantes universitários para estágios em regiões menos favorecidas do país.
Ligado ao Ministério da Defesa.
Pronaf Jovem: Programa Nacional de Agricultura Familiar voltado para filhos de agricultores,
com idade entre 16 e 25 anos. Ligado ao Ministério do Desenvolvimento da Agricultura.
Programa Universidade para Todos (ProUni): concede bolsas de estudo em instituições de ensino
superior privadas. Ligada ao MEC.
Programa Saberes da Terra: visa ao acesso e à permanência dos agricultores familiares no sistema
formal de ensino. Ligado ao MEC.
Programa Segundo Tempo: oferece acesso à prática esportiva em período contrário ao turno
escolar. Ligado ao Ministério do Esporte.
Programa Soldado Cidadão: objetiva preparar o jovem egresso do serviço militar para o mercado
de trabalho. Ligado ao Ministério da Defesa.
Em 2007, foi instituído o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - Pronasci, pela lei
n. 11530/2007, ligado ao Ministério da Justiça. “O projeto articula políticas de segurança com ações
sociais, prioriza a prevenção e busca atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das
284
Juntamente com o incentivo para a implementação de programas em curso,
foram constituídas Câmaras Temáticas que originaram, a partir de suas diretrizes, as
bases do projeto de Política Nacional para a Juventude, formadas em três eixos, a
saber: desenvolvimento integral (educação, trabalho, cultura e tecnologias da
informação), qualidade de vida (meio ambiente, saúde, esporte e lazer) e vida segura
(valorização da diversidade e respeito aos Direitos Humanos) (NOVAES et al.,
2006). Cada área apresentou eixos diretivos com perspectivas, propostas e
recomendações para fazer uma futura e efetiva Política Nacional para a Juventude.
Esse quadro apresentado demonstra um movimento de forças que pressionam
o âmbito público na direção do reconhecimento do jovem como sujeito de direitos e
denota a lacuna de ações e serviços para a intervenção com essa população, em
diversas áreas, estabelecendo diretrizes que possam reconhecer sua cidadania social.
Parte-se da incorporação desse campo como locus de intervenção pública e de
demanda de inovações sociopolíticas que atendam às necessidades reconhecidas para
a promoção dos direitos estabelecidos.
Entretanto, trata-se, ainda, de proposições que requerem efetivas intervenções
para que possam alcançar as trajetórias de vida de muitos jovens do país. Para que
uma Política Nacional de Juventude efetue-se, ela precisará contar com um conjunto
de forças favoráveis que sejam propulsoras da real incorporação dessa população
como portadora de “necessidades humanas” a serem satisfeitas.
Para isso, é forçosa a destinação de recursos financeiros, obtidos com a
entrada da pauta na agenda do orçamento público, para que esse horizonte possa
vislumbrar a sua concreta integração nas políticas sociais.
Até então, foram estabelecidos: a discussão sobre a temática da juventude; o
agrupamento dos programas que já eram desempenhados pelo governo federal, por
meio da Secretaria Nacional de Juventude; investimentos incipientes em algumas
estratégias de ordenamento social e segurança pública. (...) Além dos profissionais de segurança
pública, o Pronasci tem também como público-alvo jovens de 15 a 24 anos à beira da criminalidade,
que se encontram ou já estiveram em conflito com a lei, presos ou egressos do sistema prisional, e
ainda os reservistas, passíveis de serem atraídos pelo crime organizado em função do aprendizado
em manejo de armas adquirido durante o serviço militar”. Disponível em:
http://www.mj.gov.br/pronasci
. Acesso em 10 nov 08.
285
áreas que estão sendo traduzidos em novos programas e em alguns incentivos para o
desenvolvimento de experiências municipais. No entanto, esse corpo de ações não
sustenta ainda uma política enraizada, propriamente dita, caracterizada mais na
vertente discursiva do que na intervenção concreta.
Fato observável na quantidade de eventos realizados e apoiados pelo governo
federal que provêem a discussão e a circulação de idéias sobre a necessidade de
incorporação e materialização de uma política, mas que ainda não se traduzem na sua
implementação. Esses fóruns aproximam-se de pautas que ora repetem aquelas
tratadas pelas políticas para crianças e adolescentes, ora avançam em novas temáticas
concernentes à juventude e suas necessidades.
Isto se exemplifica com a generalização de desafios que a Política Nacional
de Juventude enumera, da erradicação do analfabetismo à promoção dos direitos
humanos (BRASIL, 2006), assim como pelos resultados da “Primeira Conferência
Nacional de Juventude”, realizada em 2008, que relatou como prioridade, entre
outros temas, desde o aumento de verbas para a educação básica, juntamente com
merenda e transporte escolar, à ampliação da oferta e acesso ao ensino superior.
Levantou a necessidade de espaços de esporte e lazer para utilização no tempo livre
e, em outro quesito, a discussão sobre o trabalho e inserções formais e alternativas
dos jovens
8
.
Esse quadro demonstra a contradição social brasileira na qual há a
convivência de dois modelos simultâneos. Por um lado, não ocorreu a efetivação dos
direitos universais para as crianças e os adolescentes, previstos no ECA, fazendo
com que as demandas da juventude repitam os objetivos dos programas direcionados
a esse público, deflagrando questões sociais conhecidas, como a baixa taxa de
escolaridade, os níveis de desemprego, o não acesso aos serviços de saúde, entre
outros exemplos. Por outro lado, a modernidade e a contemporaneidade trazem novas
formas de sociabilidade e de constituição dos sujeitos que criam iniciativas e debates
em torno da especificidade da juventude e os desafios de promoção de integração
social e autonomia para essa geração.
8
Informações disponíveis em: http://www.juventude.gov.br/conferencia. Acesso em 10 nov 2008.
286
A coexistência de tempos sociais divergentes caracteriza e torna complexo o
cenário nacional fazendo com que, para se avançar no reconhecimento do jovem
como sujeito de direitos, tenha que se enfrentar essa constituição e realidade.
A construção de uma política para a juventude tem o desígnio da:
construção de um modo diverso de compreensão dos jovens na sociedade brasileira,
a ser expresso tanto sob a forma de políticas públicas democráticas que reconheçam
o não-cumprimento de direitos historicamente negados – educação, saúde e trabalho
–, como capaz de se abrir para outras modalidades de ação que contemplem novos
direitos da juventude (...) inscrever as políticas de juventude em uma pauta ampliada
de direitos públicos de caráter universalista. Essas orientações devem pressupor os
jovens como sujeitos dotados de autonomia e como interlocutores ativos na
formulação, execução e avaliação das políticas a eles destinadas (SPOSITO e
CARRANO, 2003, p. 37).
Porém, grande parte dos programas em desenvolvimento (ver nota 7), assim
como a tradição de ações sociais brasileiras para a população infanto-juvenil, é
desenvolvida por parcerias com ONGs que se responsabilizam, parcial ou
exclusivamente, pela execução de projetos sociais para essa população. Trata-se de
um fator complicador para efetivar o princípio anunciado da promoção do “sujeito de
direitos”, pela não institucionalização das práticas e de intervenções no bojo das
políticas sociais e sua conseqüente efemeridade de intervenções.
5.7 Execução da política para a infância e juventude via projetos sociais
A execução de parte das atividades para a infância e juventude brasileiras foi,
e ainda é, desenvolvida via ações sociais privadas, conforme destacamos no Capítulo
1. Se visualizarmos uma linha histórica de ações e intervenções sociais com as
crianças de grupos populares, constata-se que, inicialmente, essa população era vista
como receptora de missões sociais filantrópicas e, mediante esse princípio, foi
287
utilizada como acesso às casas e privacidades das famílias trabalhadoras para seu
controle e moralização (DONZELOT, 1977 e BATTAGLIOLA, 2000).
Contemporaneamente, a forma de intervenção com essa população mantém-
se desenvolvida, de forma prevalente, por instituições não-governamentais (muitas
religiosas e as mesmas que iniciaram os trabalhos nesse campo), consoante com o
pressuposto neoliberal de terceirização dos serviços sociais, ou, em outras palavras,
executadas pelas parcerias do setor público com organizações sociais por meio da
“publicização”, segundo PEREIRA (1992, 1997).
Dessa maneira, mesmo com a relevante mudança legislativa sobre o lugar
social da criança e do adolescente pobres na sociedade brasileira – saindo da
categoria de “menor” e ascendo ao lugar de “sujeito de direitos” –, a natureza
institucional para intervenção com essa população pouco mudou, transfigurando-se
as explicações e os discursos em torno das entidades – da caridade à parceria com o
Estado –, porém mantidas no mesmo locus social.
Não houve rupturas que pudessem fazer fluir um novo modelo de assistência social
como padrão de política pública. As mudanças que se operaram foram sempre sobre
os expressivos elementos do passado que, assimilados e tornados funcionais,
alcançaram grande força de reprodução, conseguindo impregnar a qualidade da
mudança de caráter recessivo (MESTRINER, 2001, p. 290).
Embora seja preciso assinalar a presença de novas ONGs, procedentes de
movimentos sociais da sociedade civil e que encabeçam a discussão sobre direitos, a
predominante permanência construída demonstra uma das fragilidades para a real
implementação de ações para promover o acesso aos direitos dessa população e para
uma concreta mudança de ocupação de seu lugar social na sociedade brasileira. Isto
contribui para a inalterabilidade do imaginário sobre o “menor”, inexistente no plano
jurídico, porém presente nas ações públicas (inclusive jurídicas) e sociais, bem como
auxilia na permanência de uma visão em torno da caridade e do medo, frente à
criança e ao adolescente de grupos populares.
Há a geração de imagens sobre as categorias sociais em torno da população
infanto-juvenil que:
288
expressam duas grandes orientações: uma primeira estigmatizada em torno da
noção adolescente pobre, e outra em torno do jovem. Se antes da promulgação do
ECA a clivagem existente se dava entre as crianças e os menores, após 15 anos de
organização da sociedade civil é evidente o avanço nas concepções em torno dos
direitos da infância. De certo modo, há forte reconhecimento social do direito de
qualquer criança, independentemente de sua condição social, a ter uma família,
escola, condições de saúde, enfim, direito à proteção e ao cuidado por parte do
Estado. O mesmo não ocorre com a figura do adolescente pobre, sobretudo o
homem negro e morador das periferias urbanas de grandes metrópoles brasileiras.
Desloca-se para esse sujeito a constituição de uma imagem que impede o
reconhecimento social de seus direitos decorrentes de seu momento no ciclo de
vida. O modo como são considerados pela opinião pública os adolescentes em
conflito com a lei, recolhidos nos sistemas de internação, espraia-se para todos
aqueles que estão submersos nos bairros pobres e nas favelas. Nega-se a sua
condição de indivíduos em formação e desenvolvimento, com múltiplas
possibilidades abertas ao crescimento pessoal ao lado de necessidades amplas no
domínio do lazer, da cultura, do esporte, da participação, entre outros” (SPOSITO
et al., 2007, p. 248).
A realização de projetos sociais via ONGs esteve presente no nosso campo. A
articulação da rede, a partir da constituição do Grupo Criando Rede de Esperança,
trouxe maior sustentabilidade para as entidades que o compunham, na medida em
que passavam a aglutinar um coletivo para além da sua representação individual. A
força de pressão política – evidentemente mais contundente na gestão 2001-2004
quando possuía interlocução direta com os gestores públicos – garantia a manutenção
e a liberação de recursos financeiros – e, em alguns momentos, da ampliação – para
os membros da rede. Tal fato só não se observou com a ONG AFAGAI, que ofertava
o serviço de abrigo, mas teve a descontinuidade da parceria com o serviço público,
motivada pela sua configuração interna, avaliações externas e opção dos gestores
para repasse das verbas, em valores maiores, para outras instituições.
Com a alternância do governo municipal, em 2005 houve uma proposição de
continuidade das ações em curso e a maioria das ONGs manteve seus orçamentos
públicos, com pequenas modificações. O continuísmo ocorreu por dois fatores.
Primeiramente, pelo tempo que o trabalho vinha sendo desenvolvido e o grau de
permanência que foi instituído, a partir da incorporação daquelas ações como
necessárias. Mesmo com a composição de projetos via ONGs, houve um grau de
incorporação sociopolítica dado pelo histórico de intervenção criado, amplificado no
período de ação do Criando Rede de Esperança. O segundo fator foi a proposição de
289
manutenção de diretrizes da gestão sucessiva, o que facilitou a permanência dos
serviços em funcionamento.
Para aqueles que tinham menor tempo de funcionamento e, com isso, menor
grau de incorporação entre os atores, técnicos e usuários, demonstraram um histórico
diferente. Destacamos duas situações de campo: o equipamento Pernoite Protegido e
o Projeto Rotas Recriadas.
O Pernoite Protegido foi fruto da demanda da discussão coletiva dos técnicos
do Criando Rede de Esperança e foi viabilizado, com críticas de alguns membros do
grupo, pela parceria com uma ONG e recursos financeiros externos da Petrobras (do
montante do Projeto Rotas Recriadas). Embora tenha funcionado apenas oito meses
e, em seguida, como todo o Projeto Rotas Recriadas, tenha sido desarticulado, ele
criou uma necessidade entre os atores locais que resultou em uma pressão de alguns
para sua reabertura. Essa articulação pôde fomentar a incorporação de mais um
equipamento para a rede de serviços, com alínea específica no orçamento da
Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência, Trabalho e Inclusão Social (antiga
Secretaria de Assistência Social), na modalidade de parceria com uma ONG.
O mesmo processo não aconteceu com o Projeto Rotas Recriadas. O Projeto,
nascido de uma demanda externa, do agente financiador, foi paralisado e não
assumido pela gestão pública, até então coordenadora do programa. Assim, acrescido
à disputa de recursos no fórum do Conselho de Direitos (CMDCA), o Projeto
permaneceu quatro meses interrompido até sua retomada sob a coordenação de
outras instituições, que implementaram novas ações, a partir de outros pressupostos e
metodologias. Fato repetido por mais duas vezes, quando houve novas negociações
de verbas para a redefinição das ações. Essas descontinuidades reforçam o
questionamento sobre onde e como ficam aqueles que estavam sendo atendidos pelo
projeto. A desassistência produzida é grave, na medida em que são levantadas
expectativas que, até então, não estavam sendo direcionadas para a intervenção e,
quando são acessadas e iniciados os processos de cuidado, estes são interrompidos
em função da estrutura de filiação efêmera de projetos.
290
Esse elemento expressa que a iniciação de projetos que não têm um tempo
concreto para absorção e incorporação na cultura de serviços onde está sendo
implementado é de grande risco, pois pode resultar em pequenos ganhos, em pouca
ou nenhuma incorporação e grande número de pessoas desassistidas que não
demandavam, até aquele momento, esses serviços.
Com seus processos de idas e vindas, o Projeto Rotas Recriadas resultou na
incorporação no CMDCA da discussão contínua sobre a exploração sexual infanto-
juvenil, por meio de uma comissão temática, e as ações públicas para seu combate.
Essa incorporação pode ser interpretada como um ponto positivo que foi alcançado a
partir da articulação dos técnicos participantes das várias versões do projeto. Isto nos
embasa para reafirmar que a implementação de novos projetos sociais,
principalmente aqueles com temáticas novas e de alto grau de complexidade, deve
pressupor um tempo concreto para que possam ter a possibilidade de serem
incorporados como necessidade social passível de intervenção pelas políticas (ou
projetos) sociais. Caso contrário, os danos são absolutamente arriscados e as vidas
envolvidas submetidas a um “ziguezague” político.
Nessa dinâmica de execução de ações públicas via projetos social, questiona-
se a dimensão de direitos alcançados com essas práticas. Como destacamos na
história de Maria, os resultados bem-sucedidos encontrados apresentam-se muito
mais como produção de subjetividades, “auto-estimas” e “respeito” (SENNETT,
2004) do que com a promoção e acesso aos direitos. O que pode não ser pouco, em
uma sociedade desigual e com alto grau de preconceito e invisibilidade para com
seus jovens de grupos populares, mas não se traduz nos preceitos garantidos pela lei.
É importante considerar que parcelas dos que empreendem programas para
adolescentes lutam por imprimir uma imagem mais positiva, calcada na idéia de
direitos. Mas os atores responsáveis pelas ações, além do tipo de inscrição que
recebem na esfera governamental – em geral na área da assistência ou da inclusão
social – não conseguem, apesar dos esforços, romper com um perverso consenso.
Desse modo os adolescentes pobres ainda continuam a ocupar um não-lugar social
que só se torna visível pela “ameaça” ou pelo “risco” provocados na sociedade
(SPOSITO et al., 2007, p. 249).
291
6. POSSIBILIDADES E LIMITES DO CIRCUITO DE ATENÇÃO À
ADOLESCÊNCIA E À JUVENTUDE DE GRUPOS POPULARES
Que a ação política seja a arte
de fazer possível o desejável.
Lúcio Kowarick
A assunção da juventude como “necessidade” reconhecida na esfera pública
para a qual o Estado deve desenvolver ações, no bojo das políticas sociais, é ainda
um desafio, na medida em que a categoria juventude, em seu sentido sociológico, é
fruto de recentes transformações socioeconômicas e culturais nos processos de vida,
no interior da sociedade contemporânea. As tensões que compõem as provocações
para o debate sobre a entrada na agenda política da demanda de ações e intervenções
para essa população, na direção de promoção de acesso a seus direitos, são atuais.
O legado jurídico brasileiro incorporou e reconheceu, há 18 anos, a criança e
o adolescente como sujeitos de direitos e para isso estipulou as ações necessárias a
serem desenvolvidas por parte do Estado e da sociedade civil. Pode-se dizer que a
infância foi inserida no imaginário e nas ações sociais de proteção e direcionamento
de intervenções e priorização, demonstrando a incorporação de uma inovação
sociopolítica na estrutura das políticas sociais. Embora seja necessária a discussão
sobre as lacunas existentes na atenção à infância, bem como as formas aplicadas para
efetivá-la, é relevante reconhecer sua incorporação como necessidade social de
proteção e os desdobramentos desse processo.
O mesmo não é observado junto aos adolescentes, notadamente aqueles de
grupos populares, sobre os quais ainda há um grande preconceito social e um embate
entre a visão predominante desse grupo populacional, que perpassa os conflitos,
medos e seu lugar social na esfera dos direitos (SPOSITO et al., 2007). Os avanços
em torno dos direitos da população adolescente permanecem como tensão na
dinâmica de forças em curso, ocorrendo movimentos em prol e contra a sua
incorporação na esfera pública.
292
Quando se trata da ampliação dessa categoria e da passagem da discussão
para a juventude, a este tema é adicionada complexidade, pois os jovens após os 18
anos não contam com o aparato legislativo, atualmente em debate para ampliação, e
são considerados, juridicamente, adultos com responsabilidades sobre si. Porém, os
cursos de vida da geração jovem atual, incorporados na dinâmica contemporânea,
têm demonstrado uma tensão no escopo de ação das políticas para abarcar essa
população, que compõe uma faixa numérica representativa de brasileiros e
brasileiras. Considerados, há uma década, segundo RUA (1998), como um “estado
de coisas”, invisíveis enquanto um “problema político”, essa população vem, nos
últimos anos e lentamente no âmbito público, ascendendo à arena política e
tornando-se uma categoria social específica de ação do Estado (SPOSITO, 2007).
Desde então, algumas experiências são desenvolvidas, imbricadas com a
adolescência e a juventude, criando fóruns de discussão e tensão para a incorporação
dessa população na esfera das necessidades sociais, com o objetivo de promover seus
direitos ou de implementar formas para seu controle e normatização. Para a
conjectura desses objetivos, algumas categorias teóricas de análise são levantadas
para embasar as reflexões. Apresentamos algumas vertentes a seguir.
6.1 Chaves de leitura sobre as políticas para a juventude
Uma proposição de interpretação das políticas para a juventude é feita por
ABRAMO e LEÓN (2005), baseados em Krauskopf, com o pressuposto de que as
políticas sociais surgem de diferentes concepções sobre o jovem e, a partir dessa
visão, classificam-nas em quatro categorias.
Na primeira, a juventude é interpretada como “período preparatório”, ou
seja, como fase de transição entre a infância e a vida adulta, para a qual as políticas
devem ofertar ações de preparação para o mundo adulto. A educação assume papel
central para o desempenho da formação. As ações desenvolvidas sob essa
293
perspectiva aproximam-se do conceito biológico de ciclo de vida e têm papel
moralizante para a condução da fase de liminaridade e trânsito cíclico compreendido.
No segundo ponto, o enfoque é em uma “juventude como etapa
problemática”, na qual são trabalhados os riscos de desordem social e transgressão
por essa camada da população, demonstrando um aprofundamento nos aspectos
negativos em torno do imaginário social sobre o jovem e acentuando a concepção de
desvio e problemas públicos sociais acarretados por esse grupo (BOURDIEU,
1986b).
Tal abordagem gera políticas de caráter compensatório, e com foco naqueles setores
que apresentam as características de vulnerabilidade, risco ou transgressão
(normalmente os grupos visados se encontram na juventude urbana popular). Os
setores que mais desenvolveram ações sob tal paradigma são os da saúde e justiça –
ou segurança social – (a partir de questões tais como gravidez precoce, drogadição,
dst e AIDS, envolvimento com violência, criminalidade e narcotráfico). Uma
questão desta abordagem é que a partir destes problemas se constrói uma percepção
generalizadora da juventude que a estigmatiza (ABRAMO E LEÓN, 2005, p. 21).
Grande parte das intervenções realizadas com a juventude populares
enquadra-se, atualmente, nessa classificação, reduzindo-se à focalização das
intervenções com o objetivo de remediar os riscos reconhecidos, em vez de promover
os direitos desse grupo. Destaca-se o papel da saúde pública e sua intervenção focal
com o grupo juvenil, entre outros grupos populacionais chamados de vulneráveis
(ADORNO et al., 2008), agindo com base na contenção de riscos às doenças, às
avessas da promoção de condições e de expressão de cursos múltiplos de vida.
A crítica ao signo de identificação da juventude como problema resultou na
terceira classificação das ações, que vêem a juventude como “solução”, em uma
perspectiva do “jovem como ator estratégico para o desenvolvimento”. Esta posição
culminou na discussão sobre o protagonismo juvenil e na aposta da mobilização dos
jovens populares em prol do desenvolvimento local de suas comunidades. Essa
vertente tem recebido apoio e financiamento de agências internacionais para o
desenvolvimento de experiências, principalmente ligadas ao terceiro setor. Uma nova
crítica ocorre na direção da sobrecarga que tais projetos colocam ao jovem, uma vez
294
que são vistos como a “solução” de questões comunitárias locais, quando estas estão
imersas em uma dinâmica complexa de desigualdades socioeconômicas e culturais,
com raízes estruturais na sociedade, para as quais ações de natureza protagonista não
serão a “solução”.
Por fim, as políticas sob a ótica da “juventude cidadã como sujeito de
direitos”, as quais se baseiam no princípio dos direitos e da promoção da cidadania.
O ECA, bem como as atuais discussões sobre a Política para a Juventude (NOVAES
et al., 2006), centram-se nesse fundamento. Para ABRAMO e LEÓN, trata-se da
perspectiva mais “profícua para avançar no estabelecimento de políticas universais
que atendam, da forma mais integral e ao mesmo tempo diversificada, às
necessidades dos jovens, assim como às suas capacidades de contribuição e
participação” (p. 22). Concordamos com este viés de análise e estabelecemos o
percurso desta tese a partir da interrogação das possibilidades de promoção de
direitos das políticas sociais para aquele público a que se destinava.
Se aplicarmos essas categorias ao nosso campo investigatório, inferimos que
os serviços para a população de crianças e de adolescentes em situação de rua
partiam, na sua maioria, do pressuposto da “juventude como fase problemática”, em
uma compreensão da vivência nas ruas como desvio à norma social estabelecida,
resultando na necessidade de “retirada” dessa população dos locais públicos.
Indicamos que havia, também, uma certa interpretação de uma “fase preparatória”
para a vida adulta, verificada na preocupação com um futuro próximo, resultando em
reflexões e intervenções que se faziam necessárias para tal.
Já o paradigma do “jovem como ator estratégico” não ganhava cena, uma vez
que essa população, pela sua dificuldade de adesão aos serviços, assim como pelo
seu trânsito constante, não era pensada como ator de ações sociais, não havendo
muito espaço para essa discussão. Lucas assumiu, excepcionalmente, esse lugar, a
partir de sua adesão aos serviços e da representatividade dos mesmos em alguns
coletivos. Todavia, essa situação configurava-se como exceção e as ações
desempenhadas estavam mais relacionadas à representação do que ao protagonismo.
295
Por último, a vertente do “jovem como sujeito de direitos” pouco aparecia no
discurso e na execução dos projetos, aparentando estar distante do referencial
daqueles atores.
Com indagações específicas sobre os tipos de respostas produzidas a partir
das intervenções públicas com jovens em situação de rua, encontramos o trabalho de
PARAZELLI (2002). Ele parte do questionamento da natureza dos objetivos
institucionais com a execução de seus programas e projetos. Classifica as ações
desenvolvidas nesse campo em: familiares, terapêuticas, religiosas, comerciais,
repressivas ou emancipatórias. Destaca essa tipificação investigando quais podem
ser os princípios norteadores para o desenvolvimento do trabalho e suas diferentes
metodologias e resultados decorrentes.
Colocando a lente mais uma vez no nosso campo, predominava um
enraizamento das práticas com objetivos religiosos e terapêuticos, segundo a
caracterização dos serviços da rede de atendimento. A filiação religiosa católica
estava presente em 50% dos projetos desenvolvidos, reafirmando o percurso
histórico de atenção à população infanto-juvenil de grupos populares e a sua
manutenção até os dias atuais. Na abordagem terapêutica, havia a prevalência da
atenção para o uso de drogas, associado à saúde mental, representado por 25% dos
programas em exercício.
As missões dos projetos em execução pela rede demonstravam a presença
preponderante da visão da juventude em situação de rua como “problemática” e as
ações calcadas na religião e nos objetivos terapêuticos, como respostas únicas à
complexa problemática da vivência nas ruas. Assim, há uma união de princípios que
pouco se apóiam na promoção de direitos e emancipação desse grupo populacional,
lançando intervenções sobre outras bases que trazem benefícios e cuidados para a
população em situação de rua, mas que pouco agem para seu acesso aos direitos,
incorporação de suas demandas como necessidades sociais e promoção de inovações
sociopolíticas na esfera pública.
Os serviços anunciavam missões audaciosas e distantes, direcionadas à idéia
de “retirada” das ruas, reintegração social e reinserção familiar dos meninos e das
296
meninas, que se caracterizavam como objetivos longínquos da concretude possível
no cotidiano. Porém, na mesma medida em que deflagramos os princípios
norteadores da visão de “problema” e da conduta religiosa e terapêutica, é importante
reconhecer a realização de produção de suportes pessoais e sociais para essa
população, agindo em situações extremas, nas quais havia raros recursos acessíveis
para eles.
Verificamos, na contraditória pulsão e roda-viva da dinâmica do trabalho,
possibilidades e limites das ações, que desenvolvemos na seqüência. Iniciamos pela
particularidade da experiência de nosso campo: a composição e interligação de
serviços por meio do princípio do trabalho em rede, buscando a ligação de diferentes
pontos que se encontravam espaçados no seu tecido social.
6.2 Ações em Rede: entrelaces e desenlaces
Uma particularidade do campo que apresentamos ocorreu pela constituição de
uma experiência, impulsionada pela gestão pública municipal, de fomento da
articulação entre os serviços de intervenção no município para a população em
situação de rua, ou em interface no atendimento a ela. Essa característica criou uma
dinâmica local que colocou os diversos técnicos em comunicação, a fim de se obter
uma maior efetividade dos trabalhos propostos e uma real produção coletiva entre os
diferentes atores em intervenção.
Traçamos um paralelo da visualização de rede com a descrição de pirâmide
burocrática do Estado de Bem-Estar Social (welfare state), explanada por
SENNETT (2004). Segundo ele, no cotidiano das políticas é traçada uma definição
específica de relações sociais, que revelam, além da estrutura burocrática, seu lado
humano e democrático e a possibilidade de tessitura de ações de autonomia e de
dependência. Nessa organização, o tempo é uma força pujante pela união social.
297
Interpretamos os serviços componentes da rede em análise como pontos espalhados
que ora se encontravam nos mesmos espaços, enlaçando-se, ora afastavam-se.
Destacamos três elementos marcantes da constituição da rede: a representação
da entrada da temática na agenda política, seu grau de permanência e inovações
sociopolíticas incorporadas e a prática coletiva entre atores interinstitucionais com o
mesmo grupo populacional.
Para a assunção pública de uma demanda, seu reconhecimento como
necessidade social e responsabilidade estatal para intervenção sobre ela, incluindo
destinação orçamentária, o primeiro processo ocorre na entrada da temática na
agenda política, em face de tantos temas sociais que requerem enfrentamento e
intervenção. A entrada na agenda pode ser considerada pela ação do conjunto de
forças e interesses dos atores sociais em prol de um determinado tema. No campo em
estudo, havia um conjunto de atores militantes da área da infância e da juventude que
foram compor o governo municipal, na gestão 2001-2004, impulsionando a escolha
política daquela população como “bandeira de governo”, refletindo as articulações
das ações em torno da população infanto-juvenil.
No Plano Municipal para a Infância e Juventude, optou-se pela priorização da
população em situação de rua, declarada como a mais vulnerável entre as crianças e
os adolescentes, estimulando a intervenção nesse campo. Esse trabalho foi executado
por meio de investimentos no fomento da rede de organizações governamentais e
não-governamentais, na sua penetração no governo e na efetivação pela gestão das
propostas de novos equipamentos sociais.
Problematiza-se a assunção na agenda política, uma vez que não se converteu,
efetivamente, numa alteração de recursos orçamentários para esse campo. A
priorização governamental em torno do público em situação de rua representava uma
focalização das ações e a intervenção com uma quantidade muito pequena das
crianças e dos adolescentes de grupos populares, não enfrentando objeções explícitas
para a sua execução. Não havia resistência de movimentos organizados, que, de
forma legítima, defendiam a oferta de serviços para essa população; nem de grupos
da sociedade, que, comumente, desejam a retirada dessa população das ruas;
298
tampouco uma disputa de recursos interna, uma vez que pouco alterava a
configuração do orçamento público municipal.
Se houvesse a priorização da totalidade das camadas populares infanto-
juvenis, na direção de promoção de seus direitos, ela seria alvo de ações que
visassem ao acesso de bens sociais dos quais são sistematicamente excluídos, ou
seja, haveria um conjunto de intervenções, com destinações orçamentárias que
alterassem o quadro em vigor, para a inclusão e manutenção dessa população nos
serviços de educação, saúde, cultura, lazer, trabalho e outros. O Plano Municipal
direcionava-se, na sua justificativa oficial, para uma ampliação de acessos para as
crianças e os adolescentes dos segmentos populares. Entretanto, com poucas
exceções, seus programas caracterizaram-se em ações focais, a um público
específico, que se efetivaram mais por meio de uma reorganização administrativa das
ações já executadas do que pela criação de novos equipamentos e inovação do
atendimento. Fato constatado no desenvolvimento do Criando Rede de Esperança.
A constituição de redes é considerada uma forma reorganizadora e
potencializadora do trabalho e é bastante discutida e associada à intersetorialidade e à
ação compartilhada entre diferentes áreas para a efetividade da proposta com a
população à qual se dedica uma intervenção. Nas políticas para a infância e
juventude são recorrentes os debates sobre a relevância de constituição de espaços
coletivos de discussão e encaminhamentos de temáticas comuns que perpassam
diferentes serviços, criando-se até uma certa mitificação das potencialidades das
ações em redes.
No Criando Rede de Esperança constataram-se avanços produzidos a partir da
formação do grupo, da tentativa de construção de objetivos comuns e da criação de
equipamentos sociais para essa população, escolhidos como prioritários por aquele
coletivo. Mesmo com seu desempenho focal, dado pelo contexto local, demarca-se o
fortalecimento da temática das necessidades de crianças e de adolescentes em
situação de rua na agenda política, como resultado da prática da rede, que fomentou e
manteve ativo esse processo.
299
Na perspectiva organizativa, enfatizam-se pontos em encontros e em
desencontros. Por um lado, produziram-se discussões coletivas entre os diferentes
atores institucionais, que partiam de lugares sociais, filiações, missões, objetivos e
compreensões divergentes. Essa multiplicidade de discursos, métodos e práticas
assemelhava-se às pluralidades de vivências nas ruas e poderia ser interpretada como
“vantajosa”, por personificar possibilidades de escolhas e construções variadas entre
os serviços. Representava a tentativa de valorização do lado humano das políticas,
com a vertente do respeito mútuo, interinstitucional, como objetivo norteador
(SENNETT, 2004). A ação em rede possibilitou a escuta entre esses atores e a
aproximação nessa diferente composição. Por outro lado, essa mesma multiplicidade
criava um afastamento entre os sujeitos, redundando em ações, que podemos nomear
de pontos, em espaços na rede, diversos e sem encontro, com o conseqüente declínio
de suas potencialidades de intervenção, explicitando a rigidez das relações
constitutivas e a disputa consolidada por projetos em circulação. Essa lacuna era
sentida pelos adolescentes, que ora estavam em um equipamento ora em outro, nessa
constituição multiforme.
No cotidiano de aproximações e distanciamentos, o desenvolvimento da
experiência em rede teve o importante papel de assunção da inovação sociopolítica
em curso, a partir da efetividade da ação com a população infanto-juvenil. No
entanto, deflagrou também que, para além da entrada na fase de formulação das
políticas, o caminho de estabelecimento de práticas que se direcionem para a
promoção dos direitos de um grupo populacional é mais longínquo, na medida em
que a forma de implementação das ações, a filosofia institucional e o papel dos
técnicos em intervenção são fundamentais para a concretização desse processo.
Os serviços, as intervenções e as práticas aplicados efetivaram um grau de
incorporação da atenção, na rede de assistência para a população infanto-juvenil em
situação de rua, que ganharam, até o momento atual, uma permanência entre os
equipamentos sociais em funcionamento. Mesmo com a alternância de gestão e a não
priorização pública do grupo infanto-juvenil pelo atual governo, os serviços foram
incorporados ao poder público e contemplados com alíneas específicas do orçamento
com permanência nas diferentes secretarias. Conforme apresentamos, grande parte
300
das ações lança mão da estrutura de parcerias e execução de projetos via ONGs, com
filiação histórica na atenção a essa população, característica que expressa limitações
nos objetivos da ação das políticas sociais; porém, mesmo com essa característica
dominante, trata-se de um avanço na direção de ampliação do escopo de atenção e
possibilidades de acesso às ofertas para essa população.
Esse grau de incorporação sociopolítica pôde ser notado também na
continuidade das discussões coletivas do grupo em rede, mesmo após o fim da gestão
que o criou, a partir de sua alocação como comissão do Conselho Municipal de
Direitos, CMDCA. Suas funções e execuções coletivas modificaram-se
consideravelmente em sua natureza, pois o grupo não apresentava mais a penetração
na gestão municipal e, com isso, tinha seu poder de pressão diminuído para
encaminhamentos, serviços e ações. Nesse quadro, o Grupo mudou de característica
e optou por assumir a função predominante de discussão coletiva de casos,
impulsionando o compartilhar e a tensão de processos, visões e métodos diversos que
estavam em curso. Alguns técnicos entrevistados referiram-se a um franco declínio
das suas potencialidades após a mudança de sua coordenação, que coincidiu com a
alternância de governo. Para 20% dos profissionais entrevistados, havia problemas
graves na constituição da rede, desde a ausência de ações necessárias até a
incompatibilidade de objetivos entre as instituições, ambos citados como “furos” da
rede de serviços. Interpretamos esses fatos como a tessitura de pontos desenlaçados,
em diferentes espaços.
Essa experiência da rede temática leva também à demarcação da função do
articulador, que faz a coordenação e manutenção do espaço, a quem nomeamos de
“animador”. O animador, inicialmente do poder público, mais especificamente da
Secretaria de Saúde, e posteriormente conselheiro do CMDCA, representante da
sociedade civil, encarregou-se da função de “animar” o grupo, o que se traduziu na
viabilidade para o seu acontecimento. Agendar a reunião, chamar os diversos atores,
moderar a discussão, auxiliar na síntese de consensos e encaminhamentos coletivos,
registrar os encontros, entre outras tarefas, são atividades de extrema relevância que
criam o ambiente propício para efetividade da rede. Essa função não acumula uma
cultura de valorização, pelo contrário, há o predomínio de uma aposta em uma “auto-
301
organização” que culmina, em grande parte das situações, no esvaziamento do grupo.
O Criando Rede de Esperança apoiou-se fortemente na figura do animador para sua
constituição e continuidade.
Enfim, destacamos que a ação em rede, com enlaces e desenlaces, contribuiu,
principalmente, para a entrada da temática da população infanto-juvenil na agenda
política, reconhecendo-a como focal e pouco conflitante na dinâmica social, mas que
resultou no fortalecimento de espaços de atenção, no desenvolvimento de
possibilidades de novas elaborações e ações na diversidade e, outrossim, na vivência
efetiva dos limites da dinâmica cotidiana dos serviços em intervenção.
6.3 Limites das ações
Versar sobre os limites das ações públicas com a população de crianças e de
adolescentes de segmentos populares, em especial aqueles em situação de rua, clama
pela discussão sobre a estrutura socioeconômica e os fenômenos contemporâneos
que se direcionam para enraizar um modelo de Estado neoliberal, alavancado pela
globalização ou mundialização econômica, e seus impactos nas políticas sociais,
realizadas a partir de um Estado mínimo em intervenção social.
Essa complexa estrutura econômica, coloca a economia monetária como
signo de excelência da modernidade (FRÚGOLI Jr., 2007) e fator sociocultural
influente no contemporâneo. Essa configuração perpassa, entre outras características,
pela utilização da violência como linguagem predominante que transpassa as
relações e as interações sociais. Essa conjunção atua sobre o modo de vida da
população infanto-juvenil e reflete nas interpretações e respostas sociais para eles.
Do ponto de vista legislativo, há uma incongruência de partida na sociedade
brasileira entre os princípios outorgados pela lei – através da política de atenção à
criança e ao adolescente, legislados pelo ECA, pelos Sistemas Únicos de Assistência
Social e Saúde (SUAS e SUS) e por outros referenciais jurídicos – e o modelo de
302
Estado Mínimo em curso, que possibilita restritos avanços na esfera do acesso aos
direitos reconhecidos e garantidos para todos.
Assim, o padrão de intervenção das políticas sociais restringe-se às ações de
natureza focal para os grupos que alcançam a agenda política, considerados como
“vulneráveis válidos”, ou seja, aqueles para os quais se decide que haverá
investimento por meio de intervenções sociais.
CASTEL (1998) recapitula a história das intervenções sociais na sociedade
européia e faz uma diferenciação entre o imaginário constituído de conceituação dos
“bons pobres” e dos “maus pobres”, os últimos denominados de “vagabundos”
durante o século XVII. Caracteriza o primeiro grupo como aqueles identificados
socialmente como “bons”, porém pobres devido à falta de oportunidade e acesso aos
padrões estabelecidos para a vida, como ao trabalho, exemplificando com as pessoas
portadoras de deficiência. Já os “vagabundos” ocupariam o lugar da pobreza por
opção, na medida em que não exercem atividades de trabalho, por exemplo, em
função de sua displicência perante a vida, porque não querem se enquadrar às normas
estabelecidas. Essa antiga idéia influenciou, segundo o autor, a constituição, no
século XIX, das ações caritativas e estatais sociais, pelo princípio de “auxílio” aos
“bons pobres” e pela “punição e repressão” aos vagabundos.
As intervenções sociais a esses grupos nascem como “especialidade”,
profissionalização do setor social e sua tecnificação, com as rupturas das
sociabilidades primárias vivenciadas pelos “bons e maus pobres”, juntamente com o
desenvolvimento complexo da estrutura social. A sociabilidade primária, para
CASTEL, é entendida como o pertencimento e proteção derivados das redes
familiares, de vizinhança e comunitárias. Com sua ruptura, passa-se a precisar de
uma sociabilidade secundária, encontrada nos auxílios profissionais no campo
social, que se direcionarão para os mesmos temas: família, vizinhança e trabalho. “A
partir desse desatrelamento, vão se desenvolver montagens cada vez mais complexas
que dão origem a estruturas de atendimento assistencial cada vez mais sofisticadas”
(p. 57). O autor sugere ainda que o ideário do “bom e mau pobres” permanece
influente na execução das ações sociais contemporâneas.
303
Se nos aproximarmos da estrutura e do imaginário sociais atuais com relação
à adolescência e à juventude, pode-se dizer que há uma predominância da visão que
se aproxima à imagem da “vagabundagem para essa população, utilizando os
conceitos históricos apresentados, pois ela é identificada como apta para o trabalho,
porém transgressora e sem iniciativa para o desenvolvimento do mesmo, merecendo,
dessa maneira, ações de “punição e repressão”. Diminui-se a discussão sobre a
transformação e crise do lugar do trabalho para todas as classes sociais, alimentada
pela culpabilização dos sujeitos. Com isso, o ideário de constituição, reconhecimento
e promulgação do princípio do jovem como sujeito de direitos encontra resistência
como projeto político em disputa e desliza na incongruência desses princípios.
Quando essa população entra na agenda política, parte-se do histórico das
ações sociais benemerentes e punitivas, dificultando o embate em torno dos
princípios dos direitos e de uma dimensão universal da atenção. Esses fatos,
acrescidos à atual configuração do capitalismo e ao modelo de Estado neoliberal em
curso, oferecem respostas sociais focais para as chamadas populações vulneráveis.
Atualmente com o aumento incontrolável de indivíduos e grupos marginais aos
processos produtivos, com dependência cada vez maior da assistência social estatal,
observa-se que a resposta dada pelo Estado, através de suas políticas públicas, é de
intervenção focal. Reforça-se, assim, a segmentação de grupos e classes sociais mais
vulneráveis diferenciados, justificando discriminação e exclusão sociais de cidadania
(ADORNO et al., 2008, p. 299).
Criam-se, então, segmentos populacionais de assistidos que convivem, apenas
entre si, em uma dimensão específica que objetiva a atenção ao controle de riscos
e/ou promoção de subsídios mínimos estabelecidos, contribuindo pouco para sua
mudança de lugar social e ascensão à esfera dos direitos, bem como para a influência
no imaginário social sobre a identidade dos jovens de grupos populares.
Esse limite fica claramente estabelecido na rede de serviços em análise, uma
vez que quinze dos vinte programas da rede eram dedicados exclusivamente ao
público em situação de rua, explicitando a focalização das ações e os objetivos
remediadores da intervenção. Cria-se o que CASTEL (2007) denominou, na análise
304
sobre os recentes conflitos com os jovens da periferia de Paris (França), de
“discriminação negativa”, na qual se buscam modos diferenciados de “gestão das
minorias” que podem contribuir mais para a categorização de “indigentes” do que
para a promoção de “cidadãos”. Ou seja, afasta-se dos pressupostos do direito e ainda
se pode estigmatizar o grupo populacional para o qual se ofertam as intervenções.
Em uma postura de crítica radical, MESTRINER (2001) assevera:
O Estado brasileiro favorece de forma mais intensa a reprodução do capital, e não as
condições sociais de sobrevivência e qualidade de vida das classes trabalhadoras.
Essa regulação trunca a consagração de direitos sociais e faz das reformas adotadas
processos predominantemente regressivos para a universalização da cidadania.
Transmuta em proteção das organizações sem fins lucrativos o que deveria ser a
proteção social às vulnerabilidades do cidadão (MESTRINER, 2001, p. 308).
Dentro do limite da focalização da intervenção, no interior de sua tentativa de
“discriminação positiva”, tem-se o desenvolvimento de ações que estigmatizam e
produzem respostas para a população atendida que se afastam dos princípios de sua
proteção. Assinala-se, então, outro elemento específico emergente da dura e concreta
realidade vivenciada na dinâmica da rede de serviços que aqui destacamos, centrado
na resposta institucional criada de articulação entre uso de substâncias psicoativas e
distúrbios psíquicos, como elementos inerentes à situação de rua. Esse perigoso
enlace enraizou um discurso reivindicatório por parte dos profissionais da rede pela
necessidade de implementação de ações específicas de natureza psiquiátrica para
contenção daquela população. Como já afirmamos, são reais as demandas por
serviços que acolham ao sofrimento de alguns adolescentes e jovens nessa situação e
é preciso ofertar respostas para eles; todavia, casos pontuais não podem se
caracterizar como generalizações e padronizações das situações vivenciadas na rua,
criando uma relação causal entre estar na rua, fazer o uso de substâncias psicoativas e
ser portador de um distúrbio psíquico.
Por fim, inferimos que a mudança na realidade de vida daqueles meninos e
meninas em situação de rua foi pontual, avançando pouco para a promoção de seus
direitos. As ações foram preponderantes para o auxílio em situações de extrema
305
urgência, bem como para a configuração, como um apoio, para a permanência nas
ruas, tecido pela utilização e articulação deles na interface com os serviços da rede,
segundo suas necessidades.
Essa constatação não assinala um movimento estático social, pelo contrário,
reforça sua pulsão que é vivenciada em uma dinâmica tensa, na qual projetos em
disputa com diferentes interesses são defendidos por diversos atores. Nesse contexto,
as políticas e os projetos sociais estabelecidos contribuíram para a tessitura de
possibilidades em torno do grupo de meninos e de meninas em situação de rua, bem
como armazenavam potencialidades para se direcionarem mais aprofundadamente
para este fim.
O reconhecimento da multiplicidade de visões e de percepções em disputa
estão “ocupando a esfera pública e potencializando o encontro de múltiplas visões de
mundo”, nas quais há “diferentes percepções em torno da juventude e dos jovens
brasileiros” que “disputam lugares de visibilidade e tentam, ainda que com pesos
desiguais, construir uma arena de disputa capaz de imprimir suas marcas nas
iniciativas públicas governamentais” (SPOSITO, 2007, p. 15).
Esse processo contribui para a efetivação de políticas públicas democráticas,
sendo que a esfera pública deve ser constituída pela reorganização dos papéis do
Estado e da sociedade, para que nem o Estado assuma uma vertente excludente, nem
a sociedade cumpra meramente sua função de votante, contribuinte e usuária de
serviços, mas sim aja pela sua representação política e pela sua participação concreta,
para que a agenda pública incorpore as demandas do conjunto social (OSZLAK,
1997).
Faz-se necessária a presença de atores sociais que tensionem forças para o
alargamento de direitos de crianças, adolescentes e jovens, e que não estejam
somente em cargos administrativos, em gestões, nem tampouco na função de
executores de projetos com financiamentos governamentais, mas que demarquem o
caráter público da sociedade civil e disputem projetos de interesses em prol dessa
população.
306
Nessa perspectiva, favorecer o acesso aos bens públicos, apoiar organizações
e movimentos de jovens e induzir uma mudança cultural que iniba a discriminação
frente a essa população são elementos facilitadores para “sua transição à vida adulta
como a sua legitimação enquanto atores sociais com interesses, necessidades e
propostas próprias” (ABAD, 2003, p. 30).
No conjunto de disputas pergunta-se: “ até onde pode a política ser alargada –
não apenas para além dos aparatos institucionais mas também para além do estilo
tradicional de seu exercício – e tornar-se campo de práticas legítimas de invenção,
conflito e negociação?” (PAOLI, 1995, p. 32).
No momento em que as teorias libertárias perderam, temporariamente, suas
capacidades de dinamização social e política, resta o enfrentamento com o
capitalismo realmente existente, agora em sua ofuscante fase neoliberal. Resta
ainda o ideário de uma concepção que se constrói a partir da luta da sociedade civil
e que passa necessariamente, e cada vez mais, pela questão da democracia
(KOWARICK, 2000, p. 134).
6.4 Possibilidades das ações
Para que as ações públicas ajam na sua potencialidade é preciso que
abandonem o paradigma do adolescente de segmentos populares, em situação de rua,
como “problema” e instituam esforços para a ressignificação dos objetivos
institucionais em uma perspectiva direcional à vertente emancipatória.
Criar tensões na dinâmica social para esses fundamentos prevê uma reflexão
sobre a categoria “juventude” na contemporaneidade e sobre suas modificações e
indagações sociais atuais. Esses movimentos podem ser circunscritos à geração atual
por meio de sua multiplicidade de inovações ou repetições de cursos de vida,
traduzidos em processos, inseridos e desenvolvidos socialmente. Isso significa que se
trata de uma discussão que atravessa as classes sociais, não se restringindo apenas
àqueles de camadas populares, pois abrange a juventude contemporânea como
geração.
307
Nossa demarcação, por todo esse trabalho, dos grupos populares visa ao
aprofundamento e à compreensão dos tipos de respostas que vêm sendo produzidas
no cotidiano das políticas sociais, que são de natureza focal. Voltar-se a esse recorte
da população tem o intuito de dar visibilidade àqueles que menos ocupam o lugar de
protagonistas e de debater processos e ações que realizem, ou possam vir a realizar, a
promoção de direitos e de condições menos injustas e mais solidárias de vida. Assim,
trabalhamos pela circulação de projetos e idéias que assumam o desafio da tentativa
de promover a igualdade de oportunidades, em uma estrutura previamente desigual e
de precariedades. Essa delimitação intenciona a sua não estigmatização e o avanço
das políticas sociais para uma perspectiva de universalização de práticas.
É na constituição da universalidade que as políticas sociais têm suas
potencialidades armazenadas para promover a convivência entre diferentes grupos,
de diferentes filiações culturais e demarcações diversas de cursos de vida,
patrocinando encontros em oposição ao preconceito e, como conseqüência,
estendendo os direitos dos jovens a “todos” os jovens.
Tal premissa prevê a desmistificação das problemáticas previamente
demarcadas como sendo de determinados grupos populacionais, como “daqueles
empobrecidos” e o real enfrentamento de questões contemporâneas que desafiam as
políticas sociais para inovações e cuidados na sua atenção.
No campo da saúde pública, essa discussão pode ser exemplificada pelas
“novas” demandas que ganham a arena política e aparecem, inicialmente, travestidas
como problemáticas de grupos empobrecidos, mas que estão circunscritas
transversalmente às classes sociais. Por exemplo, o uso abusivo de substâncias
psicoativas, a violência física, psicológica e sexual, as questões de gênero e outros
temas que se aplicam aos jovens na sua totalidade. Está posto o desafio para que o
campo das políticas sociais – e aqui destacamos, nos exemplos, a saúde pública –,
com suas diferentes interfaces e intersetorialidade inerentes, iniciem modificações de
paradigmas sobre essa população para que, concretamente, permita-se a manifestação
e a expressão de diferentes cursos de vida e ofertem suportes para a vivência desses
processos.
308
Dessa maneira, interpretamos as políticas sociais como potenciais de
intervenção para o fortalecimento da sociabilidade primária de jovens que se
encontrem em vulnerabilidade, fortalecendo redes sociais de suporte e visando ao
acesso a seus direitos. Evidentemente que para isso há limites importantes
constituídos na estrutura socioeconômica, reivindicando intervenções que incluam a
esfera do trabalho e da sobrevivência econômica na lógica em vigor. Não obstante, é
ainda pelas políticas sociais que existe a possibilidade do estabelecimento de
inovações sociopolíticas e o avanço, no interior do atual sistema, para a aproximação
com os direitos reconhecidos e estabelecidos.
Reduzindo a uma só frase, o problema consiste em que, nesse nosso mundo
moderno, tudo é político, o Estado está em toda a parte e a responsabilidade política
acha-se entrelaçada em toda a estrutura da sociedade. A liberdade consiste não em
negar essa interpretação, mas em definir seus usos legítimos em todas as esferas,
demarcando limites e decidindo qual deve ser o caminho da penetração, e, em última
análise, em salvaguardar a responsabilidade pública e a participação de todos no
controle das decisões (MANNHEIM apud NOGUEIRA, 1998, p. 213).
Voltando às análises especificamente sobre as políticas sociais para crianças e
adolescentes em situação de rua, sublinhamos a necessidade da consolidação de
inovações sociopolíticas implementadas via Estado, sob uma perspectiva de
universalização da atenção, para que essa população encontre, efetivamente, espaços
alternativos à cultura de rua e possa vislumbrar novas condições de sociabilidade e
vida para além do grupo a que já pertence e nele permanece.
Urge que se faça a adoção de objetivos claros para as ações sociais com essa
população, para que não se repitam propósitos distantes, impalpáveis e com pouca
possibilidade de alcance, como aqueles encontrados atual e majoritariamente, nos
serviços dessa natureza. É necessário que seja assumida uma vertente clara,
planejada, atingível e avaliada para que as ações públicas com essa população
direcionem-se, verdadeiramente, para o acesso a seus direitos.
A questão posta é se a sociedade fará a opção exigindo o investimento em um
sistema de ação central e orientador que, por algumas vezes, precise adotar
intervenções coercitivas, impedindo radicalmente a presença de crianças nas ruas, na
309
defesa extrema do direito superior à proteção em sua fase peculiar de
desenvolvimento. Para tanto, é necessária uma estrutura institucional e política, com
dotação orçamentária, que se ocupe do cumprimento desse princípio, afastando
qualquer criança da possibilidade de inserção na situação de rua pela premissa de sua
proteção. Esse posicionamento, polêmico e com posições contrárias, demarca a
opção pelo princípio do direito superior à proteção sobre a liberdade de ir e vir, para
a qual a criança precisa de orientação, limites e educação.
Não se trata de estabelecer julgamentos sobre a vida nas ruas, pelo contrário,
pois argumentamos sobre a necessidade do reconhecimento dessa modalidade de
vida como forma integrativa marginal; entretanto, é importante a diferenciação entre
criança, adolescente e jovem, como categorias distintas e com possibilidades e graus
de proteção também distintos. Priorizar a proteção da criança é uma interpretação
que parte do pressuposto de que deve ser garantido para toda e qualquer criança um
desenvolvimento mínimo para que, a partir de então, ela possa exercer uma escolha
autônoma.
No interior dessa proposta, levanta-se o debate sobre até quando caberia tal
proposição, sobre o marco do fim da infância e a passagem para a adolescência e a
juventude, definidas pelo limiar de autonomia, condizente com a mudança do curso
da vida. O princípio jurídico brasileiro estabelecido pelo ECA prevê a infância até os
12 anos incompletos. Contudo, debatemos a insuficiência dos marcos biológicos de
ciclos de vida, influenciado pelas mudanças contemporâneas e a ação cultural.
Se a proposição acima fosse uma vertente concreta a ser colocada em
funcionamento, ela requisitaria um franco debate sobre os limites da infância e a
necessidade de sua proteção integral juntamente sobre os marcos de passagem para
condições autônomas e decisórias sobre o próprio curso de vida, como adolescente
e/ou jovem, e, a partir de então, a possibilidade de ida para as ruas e vivência de
sociabilidades e formas de sobrevivência.
Advogamos a proposição acima, embora visualizemos poucas possibilidades
para sua implementação, na medida em que incitariam largos investimentos e
310
pautariam uma alteração importante, porém, distante, sobre os preceitos nas políticas
sociais com relação às crianças de grupos populares.
Em uma outra linha de caracterização, poder-se-ia contar com serviços que
reconhecessem a vida nas ruas como uma modalidade integrativa marginal em um
sistema de desigualdade socioeconômica estabelecido, como possibilidade em
relação à vida empobrecida nos bairros periféricos. Trata-se de assumir que a vida
nas ruas pode ser interpretada, entre outros fatores, como uma integração marginal e,
portanto, como local potencial de vivência de algum nível de acesso à cidadania
(PÉREZ-LÓPEZ, 2006).
Partindo desse fundamento e reconhecimento, os serviços para a população
em situação de rua abandonariam as missões atuais e assumiriam os objetivos de
ofertar ações de promoção de condições dignas de vida, possibilitando o acesso a
elementos básicos para a sobrevida, assim como disponibilizando estratégias de
redução de danos às doenças e às precariedades suscetíveis nas ruas, além de destinar
elementos concretos para a viabilidade desse curso de vida, promovendo o acesso a
direitos básicos e mínimos. Trata-se de assumir a vivência na rua nas grandes cidades
e buscar as possibilidades da rede de serviços sob a perspectiva de redução de danos
e de riscos.
Por fim, reforçamos as potencialidades das políticas sociais, sua possibilidade
de avanço na promoção dos direitos, a partir de sua ressignificação interpretativa e
conjuntural sobre a juventude contemporânea, para a viabilização de ações
universais, proteção, redução de danos, sobrevida e acesso à esfera dos direitos e da
cidadania. Fatores que passam pela discussão do Estado contemporâneo e do
estabelecimento de espaços públicos para projetos em disputa, sob a perspectiva de
participação efetiva da sociedade civil, para a criação de espaços que culminem em
intervenções que venham a colaborar com o acesso aos direitos e com a construção
da democracia.
311
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos,
mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar
novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.
(...) É ao nível de cada tentativa que se avalia a capacidade
de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle.
Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.
Gilles Delleuze
As inquietações profissionais sobre a execução de uma política, seus limites e
possibilidades, quando declarada oficialmente como ação prioritária para uma
população alijada do acesso aos seus direitos, como meninos e meninas em situação
de rua, foram as motivações iniciais que nos conduziram para a realização desta
pesquisa.
A cidade de Campinas elegeu, pela sua gestão municipal, a priorização e o
investimento na infância e na juventude populares, para a criação de programas
concretos de intervenção em temáticas escolhidas como mais urgentes. Dados o
reconhecimento público e o direcionamento de ações com essa finalidade,
procuramos investigar o desenvolvimento da política, especificamente de um
programa do plano executado, e a interferência produzida na vida de seus usuários.
Questionamo-nos sobre as ações produzidas, os tipos de temáticas que perpassavam
e tangenciavam a dinâmica dos serviços, as aproximações e os distanciamentos nos
discursos e práticas de gestores, técnicos e usuários, e, por fim, a efetiva inovação
sociopolítica que havia sido implementada.
Tendo como guia essas questões, acompanhamos as tentativas de tessitura da
rede, sua dispersão entre muitos e diferentes pontos e espaços, bem como alguns
enlaces produzidos na construção de uma discussão pública sobre o lugar social de
crianças, de adolescentes e de jovens no interior das políticas sociais.
No cenário contemporâneo, inserida na complexa dinâmica social, econômica
e cultural em voga, a categoria juventude vem ganhando destaque e visibilidade,
sendo abordada por diferentes interfaces, modos interpretativos, compreensões e
imaginários em torno dela. Criam-se, com base nesses valores, os fundamentos para
312
a discussão em torno do papel das políticas sociais, quando em intervenção com essa
população.
Constatamos que a possibilidade da assunção de um determinado grupo como
“necessidade humana” e, conseqüentemente, sua incorporação no bojo de demandas
estatais, depende, primeiramente, de sua entrada na agenda política. Para tanto, há
um jogo de interesses e de forças que caracterizam essa dinâmica, a qual deve ser
compreendida para que novos espaços sejam abertos favorecendo que outras tensões
e disputas se coloquem. Contudo, a entrada da temática na agenda não se completa
nela mesma, na medida em que as análises e avaliações aqui realizadas
demonstraram um hiato entre os objetivos planejados e a sua execução, resultando
em mudanças pontuais, concisas e circunscritas aos espaços em que atuavam.
Nosso campo evidenciou restrições e possibilidades na atenção à infância e à
adolescência em situação de rua, deflagrando o desafio e a complexidade da
intervenção política com essa população, na contemporaneidade, e as necessidades
de novos serviços, novas ações, novas metodologias e inovações para o trabalho.
Inovações que partam da perspectiva de compreensão das categorias da infância, da
adolescência e da juventude como cursos de vida, que são dinâmicas, múltiplas e
socialmente compostas; ressaltando aspectos para sua proteção, autonomia e acesso
aos direitos que precisam ser garantidos e ofertados.
Por fim, é fundamental ressaltar dois aspectos que são intrínsecos a essa
discussão. Primeiramente, a inserção atual na estrutura capitalista, com predomínio
do modelo de um Estado neoliberal, com oferta de trabalhos frágeis e precários,
articulada com uma estrutura sociocultural fundada na violência, no individualismo e
na fragilização dos suportes e das solidariedades sociais. O que influencia no padrão
cultural e no imaginário em torno dos jovens populares enquanto “vulneráveis não
válidos”, como “vagabundos”, remetendo-nos às origens dos termos. Tal visão
ilumina as ações públicas, restringe as possibilidades de mudança no lugar social
dessa população e limita o acesso aos seus direitos. Dessa maneira, dilatam-se as
lacunas para o desenvolvimento de respostas sociais que podem se direcionar na
contramão dos princípios por lei estabelecidos, revertendo-se em práticas que
culpabilizam sujeitos e personificam questões coletivas.
313
Um segundo aspecto dá-se pela averiguação que, no interior dessa estrutura
socioeconômica, é via políticas sociais, articuladas com as pressões e participações
da sociedade civil, que existe a possibilidade de incorporação de inovações
sociopolíticas. Estas requerem a assunção do princípio e do reconhecimento do
direito, com metas claras, bem definidas e atingíveis para que se avance na direção
da construção de uma sociedade inserida em seu tempo social com base na
democracia, pluralidade, igualdade de acesso aos direitos e no respeito às diferenças.
7.1 Trajetórias de vida: dinâmica viva
As trajetórias de vida foram os fios condutores escolhidos à guisa de
apresentação da rede de serviços. Essa opção visou aproximar as diferentes temáticas
que transitavam no cotidiano de trabalho, por meio das demandas individuais e
coletivas de seu público, ao discurso oficialmente declarado, priorizando os usuários
como interlocutores centrais para se pensar o funcionamento dos equipamentos
sociais e sua articulação.
Os episódios, trajetórias, traços e momentos caracterizam-se de maneira
pulsante, dinâmica e viva, alterando-se com rapidez e configurando novos pontos em
diferentes espaços, nem sempre enlaçados. Destacamos alterações em momentos da
vida daqueles meninos e meninas que fizeram uso dos serviços da rede, com maior
ou menor grau de influência, representando algum nível de encontro, proveniente da
ação daqueles pontos.
É nesse palco de contradições e sobre esse fio chamado ‘vida’ que os nossos
personagens-tipo vão equilibrando, passo a passo, suas trajetórias, fonte de
alimentação para fazer frente aos inúmeros desafios de um mundo ainda pouco
protagonizado por eles. É nessa ‘corda-bamba’, nesse desassossego, por vezes tão
doloroso, que eles mostram o encanto pela vida e pela liberdade, e também nos
fazem vislumbrar a ‘esperança equilibrista’ de encontrarmos outros lugares cada vez
mais dignos e condizentes com a complexa trama da vida (DALMOLIN, 2006, p.
203).
314
Nessa dinâmica, optamos por finalizar esse texto com alguns elementos sobre
a vida dos jovens aqui apresentados. Buscamos hoje, final de 2008, após dois anos de
nossa saída de campo, saber onde estão e que novos trajetos eles têm traçado.
João apresentou uma trajetória, desde os 13 anos, pelo interior dos serviços,
sendo influenciado por suas dinâmicas e pelos diversos espaços que ocupou até os 18
anos. Manteve sua liberdade e resistência a alguns encaminhamentos a que era
submetido, realizadas de maneira implícita e não diretamente declaradas. Demonstrava o
interesse do encontro de um lugar para si, buscando um elo de pertencimento. Esse fato
foi ao encontro da busca de alguns serviços, realizada de forma insistente e sem sucesso,
do resgate de alguma referência familiar, mesmo que estivesse física e emocionalmente
distantes. Personificava o “não-lugar” de pertencimento e a inserção, gradual e contínua,
na rua e no seu modo de vida como uma possibilidade de efetivação de lugar social, de
estada, de sobrevida e de real inserção. Os profissionais que estão atualmente na rede não
sabem sobre o paradeiro de João e desconfiam que ele não esteja mais vivendo na região.
Desassociou-se, também, dos serviços que freqüentou nos últimos cinco anos. João
completou 18 anos em janeiro de 2008 e sabe que, pela sua idade, não pode mais contar
com esses locais. Não se têm notícias sobre seus atuais percursos e trajetos traçados.
Acompanhar a trajetória dos jovens pelas ruas não é sempre possível, uma
vez que uma das características desse espaço é o trânsito constante e a mobilidade
contínua, inclusive entre os serviços. João, embora com predominância de contato
nos diferentes equipamentos, apresentava alguns episódios de “ausências”, nos quais
não se sabia sobre seu paradeiro, como atualmente. Cíntia, por outro lado, estava
sempre presente nos serviços e em circulação entre eles, fazendo desses espaços sua
inserção possível e de forma contínua.
Cíntia encontra-se em atendimento na rede de atenção à saúde mental do
município e permanece no trânsito entre os muitos serviços que escolhe como sua
referência temporária. Atualmente com 22 anos, traz a bagagem dos últimos quatro
anos, desde sua inserção formal no CAPS, de episódios de crises e sofrimentos psíquicos,
que foram constituindo seu enraizamento na área de saúde mental e, como
conseqüência, sua personificação do padrão comumente encontrado entre os usuários
315
dessa outra rede de serviços. Obesa, com cabelos curtos, residente de uma moradia
assistida, acumula novas internações no atendimento à crise e passou por diferentes
projetos, desde tentativas de sua inserção em espaços fora da saúde mental até a
intensificação de sua atenção nela. Entre os profissionais, permanece o debate da
dificuldade de manejo de seu caso e a dúvida sobre o atendimento na área. De sua parte,
permanece negociando possibilidades, freqüentando alguns serviços que escolhe, fora e
dentro da saúde mental, resgatando e tecendo redes de afeto e pertencimento, sempre
ligados a serviços e a profissionais, recursos que acessa desde seu retorno ao Brasil. Sua
história explicita a contradição da necessidade de atenção, da presença de um sofrimento
psíquico, de um abandono familiar e a resposta institucional pela valorização de um
suposto distúrbio, culminando na necessidade de que ela esteja nele para que possa
permanecer sob cuidados.
As diversas formas de inserção na rede de serviços demonstram o
espaçamento entre seus pontos, resultando nas contradições na sua tessitura e na
dificuldade de, efetivamente, tecer e ofertar uma rede de suporte, exemplificados
pela história de Cíntia, profundamente marcada pelos encaminhamentos recebidos
nos espaços de acolhimento que encontrou em sua trajetória. Por outro lado, há a
produção de enlaces e costuras com fios e pontos mais firmes, conforme observado
nos desdobramentos vividos por Lucas.
Lucas está com 20 anos e atualmente trabalha em dois projetos sociais. Está
diretamente ligado a um projeto de democratização do acesso à informática, com
financiamento público, no qual ministra aulas de computação, e também se mantém em
atividades junto aos educadores de rua, filiados a uma ONG, que compõe a rede de
serviços para meninos e meninas em situação de rua. Mora com um outro colega, com
quem divide uma casa, e permanece nos estudos para a conclusão do Ensino Médio.
Persiste desenvolvendo o papel de representação política, por meio da participação ativa
nos eventos na área da infância e da juventude. Segue com uma vida autônoma,
viabilizada pela sua inserção no trabalho, por meio dos serviços de que participou na
condição de usuário, onde recebeu importantes pontos de suporte pessoal e social,
316
traduzindo-se em um amplo fortalecimento de sua sociabilidade primária e
potencialidades perante a vida.
É notório o significado do trabalho remunerado na vida de Lucas e, a partir
dele, a possibilidade de ascender a um novo papel social, com sua maioridade e
inserção do outro lado da rede, na condição de trabalhador. Juntamente com isso,
continua a contar com seu lugar “diferenciado”, entre muitos técnicos, e apoios
contínuos que certamente embasam e favorecem seu percurso.
No entanto, essa realidade não é oferecida para a maioria dos jovens ex-
usuários dos serviços para crianças e adolescentes; para alguns, como para Maria, a
“corda bamba” da sobrevivência e das condições de pobreza permaneceram como
elementos centrais de sua trajetória e são “passadas” de geração para geração,
impressos nas histórias da mãe de Maria, de Maria, de seus irmãos e, talvez, de seu
filho.
Maria está com 20 anos e continua morando com sua mãe e é responsável pela
criação de seu filho, atualmente com dois anos. Fixou-se em sua casa com a criança e
ambos sobrevivem de recursos provenientes de benefícios sociais e outras formas menos
explícitas de aquisição de dinheiro. Segue com trânsitos pela vida, na busca de
sociabilidade e prazeres. Não está com nenhuma filiação formal em equipamentos sociais,
como educação, saúde ou outros, continua com os serviços do bairro, como o Programa
de Saúde da Família, para acompanhamento prioritário da saúde de seu filho. Rafael, com
22 anos, permanece no sistema carcerário, completando dois anos de pena, com
perspectiva de liberação e retorno para sua família. Maria iniciou outros relacionamentos
amorosos nesse período, havendo uma certa tensão sobre a possibilidade da chegada de
Rafael e a retomada da relação entre eles.
É em uma dinâmica pulsante e tensa que esses meninos e meninas, entre
muitos outros, persistem na roda-viva da vida, buscando novos traços, outras
trajetórias, criação de momentos e vivências que os coloquem, de alguma maneira,
em um lugar social.
317
7.2 Entre outros pontos e espaços
Por fim, indicamos algumas possibilidades de continuidades e
desdobramentos futuros, levantados como frutos desta tese.
Numa perspectiva microssocial, são igualmente interessantes as abordagens
sobre a sociabilidade juvenil e as questões culturais concernentes à juventude
contemporânea. Assinalamos, como exemplos, as presentes temáticas em torno dos
modos de vida, dos interesses suscitados e procurados pelos jovens, das formas
alternativas e informais de inserção na sociedade de trocas comerciais, das questões
de gênero, entre outras muitas possibilidades.
Em uma continuidade de abordagem das políticas sociais, compreendemos
que as ações públicas direcionadas para a juventude demandam investigações,
análises e avaliações, de processos e de resultados, referentes aos projetos
desenvolvidos para todos os grupos, notadamente para os jovens populares. É
relevante que se coloque a lente sobre as intervenções que vêm sendo executadas
com esse público para que se conheçam os reais avanços que têm sido produzidos,
bem como se questione a aplicação do marco jurídico brasileiro para essa população.
Na mesma direção que seguimos neste trabalho, consideramos pertinentes as análises
sobre jovens de bairros periféricos e usuários de serviços locais, com o intuito de
abranger um contingente maior de expressividade estatística, e, a partir de então,
pontuar os diferentes campos de intervenções realizadas, como educação, saúde,
cultura, trabalho e outros. Destacamos a metodologia e análises da pesquisa realizada
sob a coordenação de SPOSITO (2007), a respeito dos programas para jovens em
cidades de regiões metropolitanas, como possibilidades nesse campo.
Como uma complementação do nosso estudo, valeria o aprofundamento sobre
os resultados produzidos nos demais programas do Plano Municipal de Atenção a
Infância e Juventude de Campinas, com o intuito de traçar um panorama sobre todas
as ações realizadas, iniciadas na ocasião daquela gestão, os resultados produzidos e o
grau de permanência para esse grupo populacional local.
318
Faz-se necessário tensionar as políticas sociais para que se direcionem para
esse público e acompanhar as ações desenvolvidas, na perspectiva de se debater a
ampliação de acesso aos bens sociais. Trata-se de pesquisar, discutir e implementar
contribuições de cada núcleo setorial, juntamente com suas funções partilhadas,
intersetoriais e interdisciplinares, constituintes do campo social. Nesse ponto,
especificam-se as políticas de saúde e a necessidade de avanço para o atendimento à
população juvenil, na contemporaneidade, em uma perspectiva de intervenção mais
abrangente das questões que abatem os sujeitos individuais e coletivos. A saúde
arrola o desafio de não fomentar intervenções no campo social que promovam
explicações sob uma perspectiva unicamente clínica e de iatrogenias perigosas, mas
que respondam com alternativas inovadoras e pautadas na autonomia e nos direitos
dos sujeitos.
Conhecer experiências de outras localidades na mesma área, na atenção aos
jovens populares e, especificamente, àqueles em situação de rua, poderia ofertar
dados comparativos que pudessem questionar o padrão de inovação sociopolítico
estabelecido e os diferentes métodos em aplicação nesse campo.
Nessa mesma linha, uma das possibilidades suscitadas pelo nosso estágio de
doutoramento, na França, foi a proposição de mapeamento das ações realizadas com
a juventude de outros países, em um contexto diferente de uma economia periférica,
como a brasileira, no que se refere à realização de um estudo comparativo sobre os
termos legislativos, proteções reconhecidas e ofertadas, práticas em curso e padrão
de intervenções e políticas sociais. Com essa prática, busca-se apreender o
imaginário em torno do jovem popular em outras realidades, distinguindo-se quais
ações concernem a um contexto periférico, como o nosso, e quais são gerais e
inerentes ao Estado capitalista, com pautas definidas internacionalmente para essa
população.
No contexto das políticas brasileiras, acompanhar, longitudinalmente, o
desenrolar das discussões sobre a juventude no bojo das ações efetivadas, bem como
dos processos judiciais lançados e em andamento, parece-nos fundamental como
elemento para conhecer o processo histórico de produção de inovações
sociopolíticas, desde o plano jurídico até a intervenção prática e cotidiana das
319
políticas locais. Tem-se um campo em desenvolvimento, que demanda ações,
intervenções, militância, avaliações e acompanhamento para o avanço na perspectiva
dos direitos para a juventude brasileira.
Portanto, as possibilidades de continuidade de estudos no campo das políticas
sociais e juventude são múltiplas, motivadas pelo desejo de compreensão de ações
concretas e implementações efetivas de inovações que se dediquem ao avanço para o
acesso aos direitos de todas as crianças, todos os adolescentes e todos os jovens
brasileiros.
320
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337
9. ANEXOS
9.1 Roteiros de entrevistas
Entrevistas com gestores
1. Qual o histórico de atenção à infância e juventude realizado por essa
Secretaria?
2. Que propostas foram planejadas para a atenção a essa população na gestão
2001-2004?
3. O que mudou na atual gestão (2005-2008)?
4. Como foi a implementação?
5. Como foi a entrada da temática de ações direcionadas para crianças e
adolescentes em situação de rua?
6. Por que foi priorizado esse grupo?
7. Qual a importância e participação dessa Secretaria no Grupo de Trabalho
“Criando Rede de Esperança”?
8. Como você avalia as possibilidades e limites da rede de serviços em
funcionamento na atenção à população em situação de rua?
9. O que você apontaria como elemento atual de “bom” funcionamento na rede?
10. O que você apontaria como maior fragilidade da rede?
11. Quais contribuições das políticas sociais para com esta população?
12. Como você compreende, pessoalmente, a temática dos meninos e meninas em
situação de rua?
13. Há algo que eu não perguntei e você queira acrescentar?
Entrevistas com coordenadores e/ou técnicos dos equipamentos da rede
1. Qual o histórico deste serviço?
2. Qual sua missão/objetivo de trabalho?
3. Qual sua população-alvo?
338
4. Como foi a entrada na rede de atendimento para crianças e adolescentes em
situação de rua?
5. Qual a participação no Grupo de Trabalho “Criando Rede de Esperança”?
6. Como você avalia as possibilidades e limites da rede de serviços em
funcionamento com a população em situação de rua?
7. O que você apontaria como elemento atual de “bom” funcionamento na rede?
8. O que você apontaria como maior fragilidade da rede?
9. Quais contribuições deste serviço para esta população?
10. Quais contribuições deste serviço para a política de atendimento em rede a
esta população?
11. Como você compreende, pessoalmente, a temática dos meninos e meninas em
situação de rua?
12. Há algo que eu não perguntei e você queira acrescentar?
Entrevistas com adolescentes usuários da rede de serviços
1. Quais instituições para crianças e adolescentes você conhece em Campinas?
2. Como você conheceu estas instituições?
3. Qual a diferença entre elas?
4. Você acha que alguma contribuiu na sua vida? Por quê?
5. O que elas têm de “legal”?
6. O que elas têm de “ruim”?
7. Se você pudesse criar um local para atender criança e adolescente o que
seria? Como seria? O que teria?
8. Quais instituições você freqüenta hoje? Por quê?
9. Você quer me contar mais alguma coisa? Com relação a você, aos serviços, à
rua?
339
9.2 Roteiro para os Grupos de Atividades
1º. Encontro
¾ Apresentação da proposta da realização do grupo e sua inserção no II Seminário
em Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua –
CMDCA
¾ Pedir consentimento para uso do gravador
¾ Apresentação dos adolescentes e locais que conhecem da rede (dinâmica de
interação)
¾ Dividir em dois grupos (a depender do número de participantes) e fazer o “jogo
de perguntas”. Cada grupo sorteia aleatoriamente uma pergunta e a dirige ao
outro grupo, em um debate coletivo.
Perguntas:
Eixo Serviços
Qual local que você freqüentou e mais gostou? Por quê?
O que você faria se começasse a sentir vontade de namorar em uma
instituição em que isso não é permitido?
O que você faria se encontrasse um amigo seu usando drogas em um
abrigo?
Aponte um ponto ruim de uma instituição que você freqüenta.
Você gostaria que tivesse um serviço para você freqüentar que hoje não
tem?
O que você pensa sobre a escola? O que ela deveria ter?
Onde você gostaria de morar? Como seria este lugar?
O que você gosta de fazer? Que lugar você gosta de ir para curtir?
Que esportes você curte? Onde você acha que seria possível praticá-los?
O que você mudaria aqui, nesta instituição?
Como são decididas as regras de funcionamento de uma casa? O que fazer
quando duas pessoas querem assistir programas diferentes e só tem uma
TV?
340
Eixo Direitos e Política
Você sabe o que é o Estatuto da Criança e do Adolescente?
Quais são os direitos e deveres do adolescente?
O que você sugeriria para o prefeito criar para os adolescentes de
Campinas?
O que é política?
O que é participação? Onde podemos participar?
Eixo Violência
O que é violência?
Você conhece alguém que já sofreu uma violência em uma instituição?
Quando vamos acertar umas contas com alguém, como isso é feito? O que
isto significa?
Eixo Livre
O que você faria se...
Você ouviu que... para quem você vai contar?
Como você ajuda um amigo que está numa enrascada?
¾ Fechamento: síntese das respostas das questões, pontos levantados, temas
abordados, contrato para o segundo encontro.
2º encontro
Com materiais plásticos e figuras diversas (disponíveis em revistas, livros e jornais)
criar cartazes sobre proposições de criação de serviços, espaços e sugestões para a
infância e juventude de Campinas.
¾ Fechamento: sugestões para o seminário, possibilidade de participação dos
adolescentes.
341
9.3 Termos de Consentimento
Solicitação de Acesso à Documentação
Ao Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente de Campinas/SP
Att. Coordenadora da Comissão em Defesa dos Direitos das Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua – Criando Rede de Esperança
Vimos através desta solicitar o acesso aos documentos, em especial as atas de
memória, projetos e avaliações da Comissão em Defesa dos Direitos das Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua – Criando Rede de Esperança, com o intuito de
realizarmos parte de nossa pesquisa de campo componente de projeto de doutorado
em desenvolvimento.
Atuamos como terapeuta ocupacional em equipamentos da cidade e
participamos desta rede desde sua constituição, momento em que pudemos conhecer
com maior proximidade o trabalho em questão.
Atualmente desenvolvemos um projeto de doutorado na Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo - USP, sob orientação do Prof. Dr. Rubens
Adorno, que se dedica a trabalhar as políticas públicas destinadas à infância e
juventude.
Sendo este um relevante espaço que se dedica à discussão das políticas de
atenção para esta população, solicitamos o acesso à consulta da documentação em
questão para análise em nosso estudo.
Comprometemo-nos, futuramente, em disponibilizar a pesquisa a ser
apresentada. Colocamos-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se
façam necessários.
Certos de podermos contar com esta parceria, subscrevemo-nos,
Ana Paula Serrata Malfitano
Doutoranda em Saúde Pública da Universidade de São Paulo
Terapeuta Ocupacional CREFITTO 3/6630-TO
Faculdade de Saúde Pública/USP: (11) 3066-7703 - E-mail: anamalfitano@usp.br
342
Solicitação de Participação em Reuniões
Ao Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente de Campinas
Vimos através desta solicitar a continuidade de nossa participação, na
categoria de pesquisadora, na Comissão em Defesa dos Direitos das Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua – Criando Rede de Esperança, com o intuito de
realizarmos parte de nossa pesquisa de campo componente de projeto de doutorado
em desenvolvimento.
Atuamos como terapeuta ocupacional em equipamentos da cidade e
participamos desta rede desde sua constituição, sendo que, no presente momento,
solicitamos a autorização para permanência nesse coletivo, desvinculadas de
qualquer serviço de atendimento.
Atualmente desenvolvemos um projeto de doutorado na Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo - USP, sob orientação do Prof. Dr. Rubens
Adorno, projeto este que se dedica a trabalhar as políticas públicas destinadas à
infância e juventude.
Por essa razão, consideramos relevante a continuidade da participação nas
reuniões da comissão para acompanhamento dos seus trabalhos.
Aproveitamos a oportunidade para solicitar a entrevista com um conselheiro
de direitos indicado por este órgão, que possa nos passar a visão deste conselho a
respeito dos programas municipais destinados às crianças e adolescentes em situação
de rua.
Comprometemo-nos, futuramente, em disponibilizar a pesquisa a ser
apresentada. Colocamos-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se
façam necessários.
Certos de podermos contar com esta parceria, subscrevemo-nos,
Ana Paula Serrata Malfitano
Doutoranda em Saúde Pública da Universidade de São Paulo
Terapeuta Ocupacional CREFITTO 3/6630-TO – E-mail: [email protected]
343
Solicitação de Realização de Observação Participante
À Prefeitura Municipal de Campinas
Secretaria Municipal de Saúde
Ao Centro de Referência e Atenção Integral à Saúde do Adolescente - CRAISA
Att. Coordenadora Sônia Ferrari
Vimos através desta solicitar uma parceria com este órgão com o intuito de
realizarmos parte de nossa pesquisa de campo componente de projeto de doutorado
em desenvolvimento.
Atuamos como terapeuta ocupacional neste equipamento, na ocasião do
desenvolvimento do Projeto Rotas Recriadas, momento em que pudemos conhecer
com maior proximidade o trabalho em questão.
Atualmente desenvolvemos um projeto de doutorado na Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo - USP, sob orientação do Prof. Dr. Rubens
Adorno, projeto este que se dedica a trabalhar as políticas públicas destinadas à
infância e juventude.
Sendo este equipamento um relevante espaço da saúde que se dedica à
atenção desta população, solicitamos a abertura deste espaço para nossa pesquisa.
Pretendemos realizar uma observação participante, em um período
aproximado de seis meses, no qual intencionamos duas atividades. A primeira
diretamente com os usuários através de um contato com os adolescentes que
freqüentam o local e por meio da realização de um grupo de atividades. O grupo,
com duração de dois encontros, abordará questões sobre a rede de atendimento para
essa população, sua análise a respeito dos serviços que a compõem e a visão sobre a
política de atendimento. Salientamos que os grupos estão ligados à realização do II
Seminário em Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes em Situação de
Rua, organizado pela Comissão Criando Rede de Esperança, do CMDCA.
A segunda atividade dedicar-se-á a conhecer a visão dos trabalhadores sobre a
rede de atendimento e a política para a população infanto-juvenil. Solicitamos uma
344
entrevista com a coordenadora e com três técnicos inseridos em diferentes núcleos,
segundo a nomeação local: um educador social, um pediatra e um técnico da saúde
mental (psicólogo ou terapeuta ocupacional).
Em contra-partida, segundo demanda da própria instituição, ofertamos a
disponibilidade de realização de encontros temáticos com os profissionais locais,
com o apoio em material bibliográfico, para abordagem do tema de políticas sociais
para a infância e juventude.
Colocamos-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam
necessários.
Certos de podermos contar com esta parceria, subscrevemo-nos,
Ana Paula Serrata Malfitano
Doutoranda em Saúde Pública da Universidade de São Paulo
Terapeuta Ocupacional CREFITTO 3/6630-TO
Faculdade de Saúde Pública/USP: (11) 3066-7703 - E-mail: anamalfitano@usp.br
345
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Termo solicitado para a realização das entrevistas com gestores e técnicos
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
1- Dados de Identificação do Entrevistado
Nome:_______________________________________________________________
Documento de Identidade:________________________________________
Sexo:______________
Data de nascimento:___/____/____
Endereço:____________________________________________________________
Cidade:_____________ Fone: ( ) ________________
2 - Dados sobre a Pesquisa
a) Título da Pesquisa: A TESSITURA DA REDE: POLÍTICAS E PROGRAMAS
SOCIAIS DE ATENÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE EM SITUAÇÃO DE
RUA.
b) Pesquisador: Ana Paula Serrata Malfitano
c) Inscrição no Conselho Regional: CREFITO 3/6630 – TO
d) Instituição onde se realiza a pesquisa: ________________________________
e) Avaliação de risco da pesquisa: não se aplica por não comportar procedimentos
invasivos.
f) Duração da pesquisa: 4 anos.
3 – Registro das explicações do pesquisador ao entrevistado sobre a pesquisa
Consignando as seguintes informações:
1. Justificativa e os objetivos da pesquisa; 2. Procedimentos que serão utilizados e
propósitos, incluindo a identificação dos procedimentos que são experimentais; 3.
Desconfortos e riscos esperados; 4. Benefícios que poderão ser obtidos; 5.
Procedimentos alternativos que possam ser vantajosos para o indivíduo.
Explicação ao sujeito da pesquisa:
Você está sendo convidada a participar de uma pesquisa que tem como título "A
Tessitura da rede: políticas e programas sociais de atenção à infância e juventude em
situação de rua”. Esta pesquisa busca investigar como as políticas destinadas para
crianças e adolescentes em situação de rua modificam as redes sociais de suporte
desta população. Convidamos-lhe a conceder-nos uma entrevista com perguntas
abertas sobre a rede atendimento a esta população e o serviço em que você atua.
346
Estimamos que a entrevista seja de aproximadamente 45 minutos e se necessário
poderemos agendar um outro encontro. A entrevista será gravada e concedida a você,
posteriormente, a transcrição para futuras correções, se necessário. Não haverá
identificação de seu nome na transcrição da fita, apenas o serviço que integra. O uso
desta fita ficará restrito aos propósitos desta pesquisa. As informações que você
fornecer não serão associadas ao seu nome, portanto não haverá possibilidade de que
você venha a ser identificado. Seu tratamento nesta instituição prosseguirá
independentemente dessa pesquisa e não existe nenhum risco para você neste estudo
e caso você decida não participar do mesmo, ficará a seu critério interromper o
processo assim que achar necessário, sem qualquer prejuízo para você. Se você
desejar, poderá ter acesso às informações desse estudo. Suas respostas, junto com a
dos outros participantes, poderão ajudar profissionais a desempenhar melhor sua
função. Se você concordar com essas condições, por favor assine este termo de
consentimento e receberá uma cópia do mesmo.
4 - Esclarecimentos dados pelo pesquisador sobre garantias do sujeito da pesquisa
a) Acesso, a qualquer tempo, às demais informações que julgar necessárias.
b) Liberdade de retirar seu consentimento a qualquer momento e deixar de participar
do estudo, sem que isto traga prejuízo à continuidade da assistência
c) Salvaguarda da confidencialidade, sigilo e privacidade.
5 – Informações de Nomes, endereços e telefones dos responsáveis pelo
acompanhamento da pesquisa, para contato em caso de quaisquer esclarecimentos.
Pesquisadora Ana Paula Serrata Malfitano
Orientador: Prof. Dr. Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Faculdade de Saúde Pública USP: (11) 3066-7703
6 – Consentimento Livre e Esclarecido:
Declaro que, após convenientemente esclarecido pelo pesquisador e ter entendido o
que me foi explicado, consinto em participar desta Pesquisa.
Campinas, de de
_____________________________________________
Assinatura do entrevistado
_________________________________________________
Assinatura do Pesquisador
Ana Paula Serrata Malfitano
CREFITO 3/6630 - TO
347
Termo de Responsabilidade do Pesquisador
Termo entregue aos adolescentes que aceitaram nos conceder uma entrevista
Termo de Responsabilidade
Estou realizando uma pesquisa chamada: A TESSITURA DA REDE:
POLÍTICAS E PROGRAMAS SOCIAIS DE ATENÇÃO À INFÂNCIA E
JUVENTUDE EM SITUAÇÃO DE RUA. O objetivo é conhecer os meninos de rua
e os serviços que os atendem.
Pedimos que você nos dê uma entrevista contando um pouco sobre sua
história, quais serviços conhece e freqüenta e o que pensa sobre eles. Sua
participação é de sua livre escolha e você não será identificado em nenhum momento
do trabalho.
Peço para gravar a entrevista para que possa depois saber tudo que
conversamos.
Qualquer dúvida me procure nos serviços que você freqüenta, pedindo para
alguém de lá me telefonar.
Pesquisadora: Ana Paula Serrata Malfitano
Orientador: Prof. Dr. Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Faculdade de Saúde Pública USP: (11) 3066-7703
Obrigada,
_________________________________________________
Assinatura do Pesquisador
Ana Paula Serrata Malfitano
CREFITO 3/6630 - TO
348
Termo de Autorização para Realização do Grupo de Atividades
Termo assinado pelo responsável da instituição onde foram realizados os grupos
Termo de autorização para realização de Grupo de Atividades
1 - Dados de Identificação da Instituição
Nome da Instituição: __________________________________________________
Responsável técnico: _______________________________________________
2 - Dados sobre a Pesquisa
a) Título da Pesquisa: A TESSITURA DA REDE: POLÍTICAS E PROGRAMAS
SOCIAIS DE ATENÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE EM SITUAÇÃO DE
RUA.
b) Pesquisador: Ana Paula Serrata Malfitano
c) Inscrição no Conselho Regional: CREFITO 3/6630 – TO
d) Avaliação de risco da pesquisa: não se aplica por não comportar procedimentos
invasivos.
e) Duração da pesquisa: 4 anos.
3 – Registro das explicações do pesquisador à instituição sobre a solicitação para
realização dos grupos.
Vimos através desta solicitar a realização de um grupo de atividades nesta
instituição, com o intuito de realizarmos parte de nossa pesquisa de campo
componente de projeto de doutorado em desenvolvimento.
Realizamos nosso projeto de doutoramento na Faculdade de Saúde Pública da
USP, o qual se dedica a pesquisar as políticas públicas destinadas à infância e
juventude.
Para tanto, objetivamos conhecer a visão do usuário deste serviço – as
crianças e os adolescentes – a respeito dos equipamentos que compõem a rede de
atendimento para esta população.
Propomos realizar um grupo de dois encontros, para fazer uma dinâmica que
aborde a visão dos jovens sobre os equipamentos que freqüentam, usando atividades
plásticas e de discussão.
349
4 - Esclarecimentos dados pelo pesquisador sobre garantias do sujeito da pesquisa
a) Acesso, a qualquer tempo, às demais informações que julgar necessárias.
b) Liberdade de retirar seu consentimento a qualquer momento e deixar de participar
do estudo, sem que isto traga prejuízo à continuidade da assistência
c) Salvaguarda da confidencialidade, sigilo e privacidade.
5 – Informações de Nomes, endereços e telefones dos responsáveis pelo
acompanhamento da pesquisa, para contato em caso de quaisquer esclarecimentos.
Pesquisadora Ana Paula Serrata Malfitano
Orientador: Prof. Dr. Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Faculdade de Saúde Pública USP: (11) 3066-7703
6 – Consentimento Livre e Esclarecido:
Declaro que, após convenientemente esclarecido pelo pesquisador e ter entendido o
que me foi explicado, consinto na realização de um grupo focal nesta instituição para
esta pesquisa.
Campinas, de de
_______________________________________________
Assinatura do responsável técnico
_________________________________________________
Assinatura do Pesquisador
Ana Paula Serrata Malfitano
CREFITO 3/6630 - TO
350
9.4 Apresentação Resumida da Autora e do Orientador da Tese
De acordo com a Portaria 03/08 da Comissão de Pós-Graduação (CPG) da Faculdade
de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, indicamos a apresentação resumida
da autora e do orientador da tese.
Ana Paula Serrata Malfitano
Possui graduação em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos
(2001), Especialização em Gestão Estratégica Pública pela Universidade Estadual de
Campinas (2006), Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas
(2004) e é Doutoranda em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Cumpriu
estágio doutoral no Centre de Recherche Médecine, Science, Santé et Société da
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, França. Tem experiência na
área de Terapia Ocupacional, com ênfase em Terapia Ocupacional Social e Saúde
Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: infância e juventude, política
pública, saúde pública, cidadania e grupos populacionais excluídos.
Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
(1977), Mestrado (1989) e Doutorado (1992) em Saúde Pública pela Universidade de
São Paulo. Atualmente é Professor Associado da Universidade de São Paulo atuando
principalmente nos seguintes temas: exclusão social, saúde pública, uso de álcool e
outras drogas, gênero e juventudes. Em termos metodológicos vem trabalhando com
a contribuição teórica das ciências sociais e humanas no campo da saúde pública e
nas chamadas abordagens qualitativas na pesquisa.
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