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consciência em Husserl remeta para uma interioridade; pelo contrário, a consciência é
um esvaziar-se, um movimento para fora, para o mundo, em direção ao mundo. Porém,
mesmo assim encontramos uma subjetividade, um eu transcendental sem o qual os atos
intencionais não teriam sentido. Deleuze deixa muito bem assinalado que não existe
uma faculdade que formula juízos acerca do mundo, nem muito menos uma consciência
intencional que lhe doa sentido. O que acontece no mundo torna-se sentido na
proposição, sem a intermediação de um sujeito ou consciência transcendental.
plena poeira, pois a consciência não tem “dentro” ; ela não é nada além do fora de si mesma e é esta fuga absoluta, esta
recusa de ser substância, que a constitue como uma consciência. Imaginem, agora, uma seqüência encadeada de
explosões que nos arrancam de nós mesmos, que não deixam a um “nós mesmos” sequer o tempo de formar-se atrás
delas, mas que, ao contrário, nos joga além delas, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas; imaginem
que somos repelidos, abandonados por nossa própria natureza num mundo indiferente, hostil e recalcitrante; terão captado
o sentido profundo da descoberta que Husserl exprime nesta famosa frase: “Toda consciência é consciência de alguma
coisa”. Não é necessário mais do que isso para pôr um fim na filosofia aconchegante da imanência, onde tudo se faz por
compromisso, por trocas protoplasmáticas, por uma morna química celular. A filosofia da transcendência nos joga na grande
estrada, no meio das ameaças, sob uma luz ofuscante. Ser, diz Heidegger, é estar-no-mundo. Entendam este “estar-no” no
sentido de movimento, Ser é explodir dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e de consciência para, subitamente,
explodir-se-consciência-no-mundo. Caso a consciência tente recuperar-se, coincidir finalmente consigo mesma, no
quentinho, a portas fechadas, ela se aniquila. Essa necessidade, para a consciência, de existir como consciência de outra
coisa que si mesma, Husserl chama de “intencionalidade”. Falei, de início, do conhecimento, para me fazer melhor
entender: a filosofia francesa que nos formou não conhece quase nada além da epistemologia. Mas, para Husserl e os
fenomenólogos, a consciência que tomamos das coisas não se limita a seu conhecimento. O conhecimento ou pura
“representação” é apenas uma das formas possíveis da minha consciência “de” tal árvore; posso também amá-la, temê-la,
destetá-la e essa superação da consciência por si mesma, que chamamos de “intencionalidade”, reaparece no temor, no
ódio e no amor. Detestar outrem é ainda uma maneira de explodir em direção a ele, é encontrar-se, de repente, diante de
um estranho cuja qualidade objetiva de “odiável” vivemos e sofremos antes de tudo. Eis, que de repente, essas famosas
reações “subjetivas”, ódio, amor, temor, simpatia, que flutuavam na salmoura malcheirosa do Espírito, dele se
desvencilham; são apenas maneiras de descobrir o mundo. São as coisas que se desvendam, subitamente, para nós, como
odiáveis, simpáticas, horríveis, amáveis. É uma propriedade dessa máscara japonesa, a de ser terrível; uma inesgotável,
irredutível propriedade que constitui sua própria natureza, - e não a soma de nossas reações subjetivas a um pedaço de
madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas:
assustador, hostil, perigoso, com portos seguros de graça e amor. Ele abriu espaço para um novo tratado das paixões que
se inspiraria dessa verdade tão simples e tão profundamente desconhecida por nossos refinados: se, amamos uma mulher,
é porque ela é amável. Eis-nos libertados de Proust. Libertados, ao mesmo tempo, da “vida interior”; em vão procuraríamos,
como Amiel, como uma criança que beija o próprio ombro, as carícias, os mimos de nossa intimidade, já que, finalmente,
tudo está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros. Não é em sabe-se lá que recolhimento que nos
descobriremos: é na estrada, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”.