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Célia Nonata da Silva
A teia da vida:
Violência Interpessoal nas Minas
Setecentistas.
Belo Horizonte, 1998.
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ii
Célia Nonata da Silva
A teia da vida:
Violência Interpessoal
nas Minas Setecentistas.
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em História.
Orientadora: Profª. Dr.ª Carla M. J.
Anastasia.
Universidade Federal de Minas Gerais.
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.
1998.
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iii
Dissertação defendida e aprovada, em 03 de abril de 1998, pela banca examinadora
constituída pelos professores:
_______________________________________________
Profª. Carla Maria Junho Anastasia.
________________________________________________
Prof. Ênio José da Costa Brito.
________________________________________________
Prof.ª Adriana Romeiro.
iv
Agradecimentos:
Durante a nossa vida acadêmica são muitos amigos que nos acompanham, alguns
permanecem, outros são como a brisa porém, nunca são esquecidos.
Gostaria de ressaltar minha especial admiração e carinho pela professora Carla Maria
Junho Anastasia - serei eternamente grata por ter acreditado no meu trabalho.
Com efeito, todos os demais professores do Departamento de História merecem
admiração. Mas de modo especial gostaria de agradecer ao Prof. Dabdab, pelos favores
prestados com eficiência na coordenação de Pós-Graduação foram tantos pedidos que nem
posso contar. Ao Prof. Daniel Vale Ribeiro pelo carinho, também à Prof.ª Maria Elisa Linhares
que deixou saudades na graduação; à Prof.ª Eliana de Freitas Dutra, que tanto me
incentivou na carreira - e me contagiou pela paixão com a história -, à Prof.ª Cristina
Campolina; ao Prof. Jarbas Medeiros pela atenção e sugestões; ao Prof. Cláudio Beato pela
paciência e ao Prof. Marco Antônio Silveira pelo estímulo. Também não poderia esquecer a
Prof.ª Adalgisa Arantes Campos pela atenção e sugestões, e à Prof.ª Regina Helena Alves da
Silva pelo carinho com que sempre me recebeu.
Meu especial agradecimento aos funcionários da biblioteca da FAFICH pela paciência
e zelo no servir principalmente quanto às minhas pesquisas no PROQUEST e a Ana Lúcia
Mercês Corsetti secretária da pós-graduação em História, cujos esforços, carinho e empenho
nunca serão esquecidos.
v
Ao Arquivo Público Mineiro pela atenção com que sempre me receberam.
Em especial gostaria de agradecer à CAPES e ao CNPq e à FAPEMIG que tornaram
minha pesquisa possível.
Aos meus amigos: Marcelo Cândido pela atenção com que sempre ouviu minhas
queixas, sem contar as longas conversas ao telefone; à doce Valentina, que sempre
preencheu nossas vidas de alegria e serenidade; à Marcélia e à Claudia Coimbra pelo
entusiasmo e coragem imbatíveis; ao Sérgio Henrique por tudo que tem me oferecido; ao
Rodrigo pelos conselhos; à Rosana, Isnara, Cida, Suzana, e demais colegas no curso de pós-
graduação pelo carinho; à Maria José pelos sonhos e esperanças compartilhados em
agradáveis conversas. Ao Érico e a todos aqueles que como ele ouviram com angústia a
célebre frase: “Agora não posso”. Enfim, à minha mãe que sempre tolerou meus desatinos e
aos meus irmãos verdadeiros titãs da paciência.
vi
Ao meu pai e
à Carlinda.
vii
“Os homens, com suas más e perversas
cobiças, vem a ser como os peixes que se
comem uns aos outros. Tão alheia cousa
é, não só da razão, mas da mesma
natureza, que, sendo todos criados no
mesmo elemento, todos cidadãos da
mesma pátria, e todos finalmente
irmãos, vivais de vos comer.(...).
Olhai, peixes, lá do mar para a
terra.(...) cuidais que só os Tapuias se
comem uns aos outros; muito maior
açougue é o de cá, muito mais se comem
os brancos. Vede vós todo aquele bulir,
vedes todo aquele andar, vedes aquele
concorrer às praças e cruzar as ruas.
Vedes aquele subir e descer as calçadas,
vedes aquele entrar e sair sem quietação
nem sossego. Pois tudo aquilo é
andarem buscando os homens como
hão-de comer, e como se hão-de comer.”
viii
Pe. Antônio Vieira. Sermão Sermão
de Santo Antônio aosde Santo Antônio aos
peixes.peixes.
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Apresentação:........................................................................................................................
............10
Introdução A história e a violência
1– O fato e o
problema.....................................................................................................................18
2– Uma perspectiva sobre a historiografia da violência nas
Minas...............................................30
3– Um olhar sobre a violência cotidiana nas Minas no século
XVIII...............................................37
Capítulo 01 A teia da
Vida.............................................................................................................41
1.1 O desejo de
domínio.................................................................................................................46
Capítulo 02 “Ora pro
nobis”............................................................................................................83
3.1 Essência e
aparência...............................................................................................................84
3.2 Igrejas e padres: espaços de aparências, recipientes de
essência......................................86
3.3 Eros e a moral do
ressentimento...........................................................................................103
ix
Capítulo 03 Nossos
inimigos.......................................................................................................111
3.1 O temor da
vida......................................................................................................................112
3.2 Negros
desafiadores..............................................................................................................124
Capítulo 04 - “Offices” de
Lúcifer....................................................................................................136
4.1 As vendas e
tabernas.............................................................................................................137
4.2 Na calada da
noite..................................................................................................................147
Considerações
finais:......................................................................................................................155
Bibliografia
1 Fontes
primárias.......................................................................................................................161
2 Artigos e capítulos de
livros.....................................................................................................177
3 Livros e
teses.............................................................................................................................183
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RAPM Revista do Arquivo Público Mineiro.
APM Arquivo Público Mineiro.
CMOP Câmara Municipal de Ouro Preto.
CMM Câmara Municipal de Mariana.
CMC Câmara Municipal de Caeté.
SG – Secretaria de Governo.
SC Seção colonial.
doc. documento
Fl - Folha.
xi
Introdução:
xii
O espírito humano vem se confrontando com problemas sociais
extraordinariamente perturbantes e pertinentes, dando-se por satisfeito apenas com a
resolução do problema como se de um calculo matemático se tratasse. No entanto,
existe no homem toda uma zona de sombra que estende o seu império noturno à maior
parte das reações da sua afetividade, como das diligências de sua imaginação, com a qual
o seu ser não pode parar de se debater.
A curiosidade atávica do ser humano dirige-se primeiramente a estes mistérios
limítrofes de sua natureza humana, e quando assistimos as várias análises sobre o
fenômeno da violência, ainda sob o efeito do espírito positivista - que mantém a
investigação metódica dos fenômenos sociais dentro de obstáculos quantificáveis,
percebemos que o princípio que poderia permitir a passagem do incompreendido ao
compreensível ainda está por fazer.
É impossível vislumbrar o passado sem constatar que o fenômeno da violência
sempre se manteve presente. Não obstante a existência da vida social pressupor regras de
comportamento social conflitantes com a natureza impulsiva dos seres humanos, a
permanência da violência interpessoal nas sociedades encontra sua legitimação na própria
estrutura de valores, que informam as diferentes culturas. Pois, toda sociedade, classe,
cultura e toda época constrói seus próprios álibis para viver e conviver com a natureza
agressiva e violenta do homem.
1
Sendo assim, a definição e os tipos de violência devem perpassar por uma análise
histórico-cultural do cotidiano dos grupos humanos envolvidos: a vivência familiar, as
várias facetas envolvidas nas manifestações dos impulsos sexuais e da agressividade, do
trato com o lícito e o ilícito, das regras da moral religiosa, conjuntamente com suas
1
- Cf.: GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. P.: 43.
xiii
formas identidade coletiva e dos rituais envolvidos. Ou seja, um estudo que leve em
consideração todas as formas de linguagem de que se servem os membros de uma dada
comunidade, respeitando o seu caráter idiossincrático.
2
Nas sociedades antigas, por exemplo, a própria ética normativa do grupo possuía
sua tessitura no próprio mito fundante. A trama cosmogônica, portanto, já contém, em
alguns casos, a urdidura através da qual as culturas vivem e se desenvolvem; ou seja, a
própria genealogia da moral.
Outro exemplo nos pode ser dado pela prática do duelo na sociedade medieval e
fins da moderna, que é explicitamente legitimada em defesa da honra. Com efeito, a
própria tradição religiosa da Idade Média era a base legitimadora por onde transcorriam as
inúmeras práticas de vingança, que lavavam a honra e a moral dos homens da época. Pois,
a imagem Veterotestamentária de Deus é fortemente marcada pela vingança e pela
punição:
“Iahweh, ó Deus das vinganças, aparece, ó Deus das vinganças! Levanta-te ó juiz da
terra, devolve o merecido aos soberbos!” (Salmo: 94 1,2);
“Eis que eu plantearei a tua causa e me encarregarei da tua vingança (...) oráculo de
Iahweh.” (Jr. 51-36)
A violência, portanto, é um fenômeno complexo em que não basta apenas dectar
sua existência coletiva. Ela envolve costumes, valores e padrões rituais presentes em sua
urdidura, que a definem em cada contexto histórico. Ademais, deve-se ressaltar o fato de
que a violência faz parte das pulsões dos indivíduos, formando e informando seu ser
existencial, consequentemente, plenamente integrado ao cotidiano da vida social. Pois, os
indivíduos manifestam seu ódio e sua paixão, enfim, seus mais profundos sentimentos e
emoções e sua auto-afirmação e desejo de realização pessoal, através das formas de que
dispõem no seu habitat cultural.
2
- Cf.: SILVEIRA, Marco Antônio. Op. Cit. P.: 05. O autor nos chama a atenção para o reconhecimento obrigatório da
xiv
Desejo e violência, homem e cultura todos se inter-relacionam nas análises de
violência interpessoal.
Há, pois, dois modelos interdependentes na historiografia da violência
interpessoal: a violência instrumental (racional) que traduz-se enquanto abordagem
quantitativa, considerando apenas os índices de homicídios como indicação do grau de
violência nas sociedades passadas (e presentes). Um aumento ou declínio da proporção de
homicídios nas dadas sociedades traz resultados no nível da violência atuante. De outro
lado situa-se a violência impulsiva, cuja abordagem é qualitativa.
Esta ênfase situa-se no conceito de honra, comportamento ritual dos indivíduos e
o sentido contemporâneo atribuído para os atos violentos. As linhas mestras dessa análise
se encontram em Norbert Elias, Natalie Davis, Robert Muchembled, Anton Block e
outros, onde defende-se que a personalidade dos indivíduos muda de acordo com as
mudanças nas sociedades mais complexas. Assim, os padrões culturais que definem a
natureza da violência de uma dada sociedade são estruturais.
Não obstante os dois modelos da violência tragam em si o germe da separação
devido aos seus fatores determinantes - a violência racional possui uma estratégia de meio
e fim, e a violência impulsiva ser guiada por um código ritual e simbólico da comunidade
- ambos podem ser utilizados numa análise dos incidentes violentos de uma determinada
sociedade, como defende Spierenburg. Para este autor a tendência atual é de uma
marginalização crescente dos aspectos rituais da violência e uma ênfase maior ao caráter
apenas instrumental a violência. O que certamente produz análises superficiais que não
respondem à complexidade de tal fenômeno.
idiossincrasia, assim como da visão de um processo histórico para um estudo de uma dada sociedade.
xv
Em se tratando de sociedades passadas o problema é mais complexo do que
parece. As análises da violência são basicamente abordadas em seu caráter quantitativo,
através de indícios documentais, cujos problemas são inúmeros: veracidade das fontes,
poucos indícios, mudanças nas atitudes públicas e nos padrões de crimes, aumento da
população, etc.
Tudo isto deve ser levado em conta ao se esboçar uma análise instrumental da
violência. Contudo, o maior problema centra-se nas análises qualitativas, onde o conceito
de violência interpessoal insere-se obrigatoriamente no cotidiano dessas sociedades, cujos
valores e costumes são tão diferenciados dos nossos, e por isso pouco estudados. A maior
constatação deste fato é a presença, dentro dos estudos atuais, como os de Laurence
Stone, M. F. Beattie, dentre outros, que melhor abordam a problemática da violência,
analisando o aumento da proporção de crimes nos séculos passados.
Ao analisarmos a violência das Minas no século XVIII estamos levando em conta
apenas seu caráter qualitativo, cujas raízes advém da terra-mãe: a Europa.
O século XVIII europeu transcorria em grandes transformações não apenas nas
esferas político-econômicas, mas também desenvolviam-se novas formas de civilidade, já
esboçadas no século XVI, e que culminará numa mudança estrutural presenciada na idade
moderna.
A diferenciação dos espaços público \ privado, que começava a se delinear no
século XVII, ainda no século XVIII contava com elementos culturais que transitavam em
comum por toda a sociedade. Dentre tais elementos a honra, que permeava famílias e
comunidades, tornava indistinto os espaços da vida pública e privada. Muitas eram as
queixas que chegavam aos juizes de calúnias, maledicências e difamações exigindo a
xvi
limpeza do nome exposto. Tal como acontece nas Minas Setecentistas. Inúmeros são os
processos crimes que relatam a necessidade da limpeza do nome exposto:
(documento) processos crimes
Em ambas as sociedades, onde se valorizava o homem pela sua palavra e as juras,
a dúvida existencial não era de cunho religiosa. Os homens poderiam conviver com os
dilemas da fé. Entretanto, a honra era um punhal que pairava sobre as cabeças dos
indivíduos, cujo fundamento assentava-se na virilidade da palavra. ‘Pode um homem
viver sem honra?’ Travestido da sagrada honra, os homens desde o mais comum até os
nobres e reis conseguiam acesso a felicidade terrena. Da vulnerabilidade ou estabilidade
social e econômica dependia a palavra e a honra. Ambas eram cultuadas no lar, como
outrora se cultuavam o fogo nos lares gregos.
Esta estrutura cultural de costumes e crenças tão diferenciada de nossa época,
formava a própria estrutura emocional do homem como um todo, moldando a
personalidade dos indivíduos. Impelidos pela necessidade de falar, de se alimentar e de
satisfazer os apetites sexuais, estes homens eram movidos, também, por um forte desejo -
permanente e escancarado - de instinto agressivo:
“(...) esses vários instintos não podem ser mais separados do que o coração do estômago,
ou o sangue no cérebro do sangue nos órgãos genitais. Eles se completam e em parte se
substituem, transformando-se dentro de certos limites e se compensam mutuamente.”
3
Como todos os demais instintos, a pulsão agressiva tem uma função particular
dentro da sociedade como um todo, sendo as possíveis mudanças nessa função indícios
de mudanças de ordem estrutural. Já que, a cada padrão de agressividade segue uma
identidade cultural que não está perdida, mas é identitária das normas de vida e de morte
de uma dada sociedade.
3
- ELIAS, Norbert. O processo Civilizador: Uma História dos costumes. V.: 01. P.: 189-190.
xvii
Em determinadas culturas o impulso de agressividade, assim como a libido são
condicionados, confinados e domados por inúmeras regras e proibições, que se
transformam em delimitações das regras de ‘bem viver’, gerando tabus permanentes que
regem os comportamentos sociais e as normas religiosas - a noção do sagrado e o profano.
Se nos tempos modernos a crueldade e o prazer são colocados, respectivamente,
sob rígido controle do Estado e da Educação, a vida na sociedade européia medieval
tinha seu cenário cruento sempre montado. Tanto o campo, quanto as cidades
comungavam de uma ânsia comum pelo prazer do espetáculo. As corriqueiras e eventuais
cenas do cotidiano poderiam transformar-se em panacéias e espetáculos burlescos a
qualquer momento, manifestando um descomprometimento das pessoas em resguardar
uma total intimidade.
Há nas cidades européias do século XVIII charivaris e charivaris. Todos com o
mesmo propósito e fim, mas realizados ao gosto do público que o assiste. O importante é
zelar para que os vizinhos - ou melhor, os ‘controladores’ da conduta pessoal e familiar -
não mergulhem os condenados na ‘boca do inferno’:
“ Em 1735, um grupo de umas quinze mulheres de Castelnaudary persegue a dama
Mélix, acusando-a de alcovitar a filha enquanto o genro serve nos hussardos: Elas
fizeram canções, que entoam pelas ruas, distribuindo cópias, nas quais tratam a
mencionada Mélix de puta, bêbada e incapaz de ressitir ao vinho (...). instigaram os
filhos de Bourrel, habitante local, para irem insultá-la.”
4
A punição como espetáculo, a pilhagem e as manifestações coletivas eram parte
dos prazeres cotidianos, reveladas por meio de uma linguagem ritual e simbólica própria
daquela época. O charivari, a asouade, os rituais de bem morrer constituem esboços de
uma sociedade cavalheiresca acostumada ao prazer da matança e da tortura.
4
- ARIÈS, Philippe. (org.) Vida privada. Vol.: 03. P.: 556.
xviii
Esta estrutura social era condição ‘sine qua non’ para os indivíduos sobreviverem.
Os nobres possuíam seus bandos de capangas, as vinganças entre famílias grassava por
toda a parte, assim como as rixas privadas, as vendetas e os duelos, não obstante o
combate das autoridades urbanas fosse uma constante.
Era uma época em que os instintos, a impulsividade, as emoções fluíam mais
livres e abertos, caracterizando as relações sociais e humanas. Um mundo de contrastes,
de realidades vivas e paixões fortes:
“Quem quer que não amasse ou odiasse ao máximo nessa sociedade, quem quer que não
soubesse defender sua posição no jogo das paixões, podia entrar para um mosteiro, para
todos os efeitos”.
5
O controle e a transformação da agressão, cultivados em nossa atual sociedade,
assim como o prazer passivo e momentâneo condicionados às regras de civilidade tiveram
sua origem numa mudança estrutural a longo prazo que culminou no século XIX, onde
todas as regras de comportamento, pensamentos e emoções foram transformadas.
Os tratados de boas maneiras, que se iniciam no século XVI, são obra de uma
nova aristocracia de corte que está se formando aos poucos a partir de elementos
advindos da várias origens sociais, e como tal elabora um novo código de comportamento
que a distinguirá na sociedade. Já no século XVII tem-se notícia de uma hierarquia social
mais rígida, que se consolida cada vez mais, arrogando para si um destaque na sociedade
de corte, concomitante a busca de um maior controle político. “ Ao fim do século XVIII,
pouco antes da revolução, a classe alta francesa adotou mais ou menos o padrão à mesa, e certamente
não só este, que aos poucos seria considerado como natural por toda a sociedade civilizada.”
6
Norbert Elias irá enfatizar esse princípio moderador e repressor das pulsões
humanas, concomitante a emergência de uma nova classe no poder, a burguesia Com a
5
- ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História de Costumes. Vol. 01. P.: 198.
6
- ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História de Costumes. Vol. 01 p.: 113.
xix
lenta ascensão do Terceiro Estado, os roubos, as rixas, a pilhagem vão se tornando fatos
de menor importância frente a grande transformação dos novos hábitos de trabalho que se
processavam. Cabia ao Estado moderno manter, através da Lei e dos instrumentos de
coerção a justiça, dispensando os velhos costumes tradicionais que valorizavam a honra.
Com a Declaração dos Direitos do Homem estabelece-se a distinção entre os dois
universos: o público e o privado.
Ademais, essa mudança estrutural que se processou com alterações notórias no
Código Penal e criação de novas Leis, buscando demarcar ainda mais os atos criminais e
os criminosos, de maneira alguma conseguiu suplantar da ‘nova’ sociedade a violência, as
desordens e o mal social. Pois, como nos demonstrará Peter Gay, o duelo uma prática
condenada entre os homens da época moderna, por sua intensa crueldade e barbárie
persistiu clandestinamente nos meios acadêmicos e dentro da elites intelectuais da
sociedade moderna.
7
O conflito cotidiano, com a mudança nos padrões da agressividade, passa a ser
identificado pelo par vergonha e medo, cuja origem se processa com suas próprias
frustrações internas dos indivíduos:
“Ele mesmo se reconhece como inferior. Teme perder o amor e o respeito dos demais, a
quem atribui ou atribuiu valor. A atitude dessas pessoas precipitou nele uma atitude de
si que ele automaticamente adota em relação a si mesmo. E é isso o que torna tão
impotente diante de gestos de superioridade de outras pessoas que, de alguma maneira,
deflagram nele esse automatismo.”
8
Somando-se a tudo isto, nota-se um progressivo desenvolvimento da técnica de
esterilização médica que muito influenciará nos hábitos cotidianos, dentre eles uma
aversão ao contato físico causado pelo medo ao contágio das doenças. A ideologia
humanitária que se instala a partir de então exercerá uma forte tendência a crer na boa
7
- Cf.: GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. Pp.: 42-44.
8
- ELIAS, Norbert. Op. Cit. Vol. - 01 P.: 242.
xx
conduta humana. Daí a aversão que se segue aos atos violentos e possíveis arroubos
agressivos. Assim, a crença no progresso e numa nova civilização, premissas de um futuro
melhor, fará a divisão de águas entre o velho e o novo.
A era moderna foi mestra em propagar a busca da racionalidade, visando a
perfeição da Ciência. Porém, com o passar do tempo, até o que não pôde ser medido
como a afetividade e os sentimentos humanos se viu obrigado a passar pelo crivo da
lógica matemática e da estatística. Auguste Conte, nesta época, estava tão obcecado com
a idéia de determinar uma investigação teórica que fosse capaz de detectar o normal,
diferenciando-o do anormal que,
“ Um seu amigo positivista pensa recolher a urina de um urinol de uma estação por onde
transita gente de todos os países, afim de poder efectuar a análise da ‘urina média dos
europeus...’ Claude Bernard, pelo contrário, afirma a identidade do normal e do
patológico (...) Nesta perspectiva define o estado médio como o estado ideal.”
9
Com efeito, isto muito influenciou as investigações sobre o fenômeno da
violência, colocando-a, quando possível, próxima àqueles que, por meio da genética (ou
da natureza) eram seus merecedores: os alcoólatras, os mendigos, os pobres e, enfim,
àqueles homens que se enquadravam no perfil do ‘homem médio’ violento. Não é de se
espantar que grande parte da violência detectada via-se concentrada nos marginalizados
do sistema e naqueles que não conseguiam assimilar as maneiras civilizadas.
É no século XIX que as análises sobre as atividades criminais pesam
drasticamente sobre os bêbados, que devido ao balanço do mercado de trabalho, se
afogam na bebida como recurso e protesto.
10
A relação que se estabelece entre os hábitos
9
- Normal \ Anormal. Einaudi. P.: 385.
10
Sobre o tema ver as análises de Roger Lane, Yu Chin Yong, ....eles enfocam o alcoolismo como uma das
mais importantes causas para a incidência de homicídios e violência na sociedade ocidental. A
repercussão de tais análises influenciou bastante a historiografia brasileira, principalmente os
marginalizados e a atuação da classe operária.
xxi
da bebida, o aumento do crime e a oferta do mercado de trabalho favoreceu em muito as
análises e estatísticas de pensadores do século XIX como Morrison (1891), tornando
significativa a relação crime-prosperidade ‘versus’ economia de miséria. Em 1927 Tobias
reiterou a junção entre hábitos de bebedeira e incidências de crimes. Ainda em 1977-87 as
análises de Philips e Emsley demonstraram não haver muita diferença entre uma classe
criminal desonesta e um honesto operário.
O estudo sobre o caráter agressivo do ser humano, levado pela grande influência
dos discursos da neurologia, biologia e sociologia - cujos parâmetros lógico-instrumentais
tentava relacionar os processos do raciocínio humano para a ação violenta (e suas
escolhas individuais para o crime) ao conjunto de regiões cerebrais direcionava-se
apenas na busca de traços de uma fisiologia humana propensa ao crime (os anormais) e do
grau de incidência dessa violência na sociedade.
Ainda hoje a biologia e a medicina tentam definir o código genético do criminoso
e do homossexual. Pode-se pensar, sem dúvida, nesta hipótese. Contudo, que isto não se
transforme num paradigma capaz de descartar a capacidade de livre arbítrio dos
indivíduos e o contexto sócio-cultural de tais escolhas; nem tão pouco se limite apenas a
assegurar a existência de um poder dominante; pois,“(...) nenhuma sociedade funciona apenas à
força de regras policiais ou de sanções negativas. Cada sistema social gratifica sem cessar, formal ou
informalmente, quem obedece às suas normas.”
11
Pensar a história do cotidiano muitas vezes requer coragem para criticar valores
que ainda permanecem imutáveis no tempo, arriscando-se muitas das vezes a permanecer
numa prisão silenciosa. Contudo, temos notado que a maior contribuição que a disciplina
11
- ............Normal \ Anormal. Einaudi. P.: 380.
xxii
histórica pode oferecer ao conhecimento humano é a possibilidade de sempre vislumbrar
uma outra face encoberta e escondida, uma outra possibilidade além do que foi dito.
Não obstante o nosso estudo vislumbre a violência interpessoal intimamente
ligada à natureza humana, tomamos a precaução de demonstrar que ela é, antes de tudo,
um fenômeno social. Pois, tal como o amor, a agressividade sempre se manifesta onde
dois ou mais indivíduos se encontram, e é nesta coletividade que vamos encontrar as
manifestações encobertas ou não do impulso agressivo humano.
A divisão do trabalho concentra-se em duas partes: a primeira parte, cujo
objetivo busca enfocar as teorias em torno do tema proposto, consiste em analisar a
violência interpessoal como parte fundamental da busca existencial dos indivíduos, como
uma das características da formação do ser humano, enquanto sujeito do seu tempo.
Assim, o conceito de violência interpessoal está inserido na eterna busca de ‘ser’ e
‘pertencer’ dos seres humanos, cujo fundamento (ontológico) concentra-se na busca
material como suporte para adquirir a distinção e o poder pessoal.
Acreditando sempre que a união entre indivíduo (personalidade, emoção e pulsão)
e sociedade (economia e política) molda uma determinada cultura no seu espaço
temporal; a segunda parte consistirá em analisar a sociedade mineira, buscando em seus
aspectos cotidianos as variadas manifestações e formas de expressão da violência e a
agressividade humana. Ou seja, os jeitos, os lugares e os álibis para a violência
interpessoal mineira Setecentista tendo como referencia o acervo documental.
Pelas dificuldades apresentadas através da análise quantitativa esboçadas no
referido texto, a documentação investigada não será restrita aos processos crimes. Pois, o
que se pretende analisar é a natureza da violência interpessoal num contexto específico,
não seu grau de incidência na sociedade colonial mineira.
xxiii
Neste sentido, o primeiro capítulo terá como objetivo uma breve revisão da
historiografia colonial, enfocando as linhas mestras por onde caminha a história colonial
brasileira; ‘a posteriori’ virá o segundo capítulo com a crítica das fontes, buscando
demonstrar que a busca por poder pessoal e distinção dos homens que detinham uma
certa autonomia de mando tanto os servidores da administração de El Rei, quanto os
missionários da Igreja -, tendo em vista os lugares de maior atuação destes personagens
em público, contrastava-se com a em grande medida com a atuação eficaz da justiça
esperada por muitos historiadores.
O terceiro capítulo buscará enfocar a atuação dos padres, freis e demais membros
da Igreja na comunidade Setecentista mineira, e seus comportamentos cotidianos que
contrastava com as ordens do monarca e da própria Igreja, buscando através de
favoritismos e clientelismos manter um certo poder de mando, divergindo na maioria das
vezes com outros administradores de El Rei.
O quarto capítulo buscará enfocar os lugares de desordem, e por isso mesmo mais
vigiadas tanto pela Coroa, quanto pela administração local a rua e a taverna. Tais
lugares são possuidores de intrigantes mortes e violências, e por isso mesmo vigiados
constantemente pelos governantes; são lugares onde há uma maior probabilidade de haver
crimes, roubos e desordens. Dentro deste espaço colocamos as negras de tabuleiro,
vigiadas pelo fisco, e as constantes violências sofridas pelas diversas mulheres.
xxiv
xxv
Parte IParte I
Para uma teoria da violência Para uma teoria da violência
interpessoal.interpessoal.
Capítulo I
1. A condição humana.
“Le sentiment de la destruction est inné
dans l’homme: on dirait que c’est un animal
mal doué et homicide de nature.”
xxvi
Edmond et Jules de Goncourt,
Journal; mémorires de la vie littéraire, 16 de
novembro de 1859.
Desde os primórdios da humanidade, a violência tem se manifestado enquanto um
traço perseverante nas várias culturas. Os mitos gregos, judaicos e de quaisquer outras
sociedades antigas dão-nos mostras de como a agressividade, os conflitos e o ódio são
emoções comuns ao homem, tão velhas quanto a própria existência humana.
Todas as civilizações foram construídas sobre um traço de sangue proveniente do
incesto, do parricídio ou do homicídio. O ato fundador das culturas, de que nos são
referências os mitos de origem, repousa e se alicerça sobre a responsabilidade coletiva de
um crime original, sempre renovado simbolicamente pela obsessão da repetição mítica e
pelas tradições cultuadas. “Da divindade morta provêm não somente os ritos, mas (...) todas as
formas que conferem aos homens sua humanidade.”
12
A morte de Cristo nada mais representa senão o começo de uma nova sociedade
(cristã), uma nova ordem que se instaura sobre a antiga. Uma tragédia que, como todas as
outras, demonstra o poder renovador da violência - revelado nos mitos cosmogônicos -,
uma nova ordem e um novo começo para a humanidade. Incrivelmente, o crime original -
o sacrifício - traz essa possibilidade de solidariedade social pela culpa, expiação e
sobrevivência do grupo, manifestados através das festas, rituais e da mentalidade
coletiva. A identidade de uma dada cultura revela-se através do cotidiano social, onde
estão inseridos tais elementos.
A obra de Yves-Marie Bercè irá nos demonstrar, por exemplo, essa coesão social
através de manifestações rituais e festivas - cívicas, religiosas e mundanas - próprias de
xxvii
uma mentalidade cultural européia dos séculos XVI ao XIX. O autor aborda quatro
principais tipos de festas: as civis, as da multidão e as da juventude.
As festas religiosas seriam aquelas onde teria ocorrido o predomínio de procissões
e de peregrinações. Os desfiles de autoridades e de soldados caracterizariam as festas
cívicas. A celebração de colheitas, a presença de bebidas, o controle da intimidade alheia
e a inversão da hierarquia social forneceriam a tônica das festas da multidão. As festas da
juventude, por sua vez, baseavam-se no controle da moral da moral sexual, no caráter
legítimo das ações nela ocorridas e teriam, em comum com as festas da multidão, a
catarse temporária dos momentos de inversão da hierarquia social.
Bercè discute em seu livro a idéia de que as festas foram o prelúdio de revoltas
populares e manifestações de oposição à ordem vigente, típica, segundo ele, de uma visão
tradicional do comportamento popular no limiar da Idade Moderna. De acordo com o
autor, a inversão da hierarquia social presente nas festas da multidão e da juventude, não
significava a subversão da ordem vigente, mas apenas sua momentânea ‘carnavalização’ -
um componente básico presente na formação de identidade e solidariedade social das
culturas.
As constantes medidas de cerceamento das festas, encaradas pelos adeptos da
visão tradicional como prova inequívoca do caráter subversivo das festas, são para Bercè
apenas o indício do temor das autoridades de certos problemas que acompanhavam das
festas: disputas de vizinhos, abuso do álcool, etc. Ao invés de serem encarados como
potencialmente destruidores, prossegue Bercè, os ritos seriam considerados positivos pela
comunidade e teriam sua legitimidade fundada no costume da época.
12
- GIRARD, R. A violência e o Sagrado. P.: 120.
xxviii
A violência da festa seria apenas simbólica - já que não ameaçava a ordem
instaurada, nem a própria vida comunitária. Antes, esse tipo de violência, perpetuada
através dos ritos e costumes, mantém o próprio funcionamento do grupo, já que serve de
‘canal’ para a liberação dos impulsos violentos.
A interação de tais elementos - violência|ritos|festas|costumes - é fundamental
para a experiência humana: a própria junção entre Eros e agressão está presente enquanto
um fato real da vida cotidiana e social, podendo ser expressa desde os inocentes atos
individuais de deboches, cinismo e zombarias, até às turbas juvenis com suas
‘brincadeiras’ e jogos de virilidade - tão presentes na Idade Média -, assim como as festas
carnavalescas. O desejo de ferir os outros, o impulso para a agressão, quando
materializado coletivamente ou individualmente, está sempre disfarçado e distorcido;
contudo sua legitimação assenta-se na própria cultura.
Na visão Veterotestamentária, o despertar da violência e o surgimento da civitas
terrena são processos correlatos, cujos signos estão expressos por uma ‘rivalidade
mimética’, conflitos intermináveis de ‘irmão contra irmão’. Todo o ser humano é
naturalmente constituído por uma tendência a agir e a compreender.
Esse desejo de conhecer e de ‘fazer acontecer’ encontra na mímesis seu
instrumento de realização mediata no mundo e no próprio sujeito. Ser de desejo e de
mediações, o homem é, pois, um imitador nato. Porém, uma imitação que possui seu
referencial voltado à práxis, à ação: imita-se para poder atuar, para mobilizar-se.
Imitamos um modelo, o outro, a natureza; enfim, tudo o que nos chama a atenção
e que nos provoca desejo. Desejo, verbo transitivo. O desejo requer sempre completude,
interação e perfeição. Desejar nada mais é senão a ânsia de ser; é almejar dizer Eu Sou. Eu
Sou era a identificação de Deus no Antigo Testamento.
xxix
Somos naturalmente desejo, seres desejantes e desejados, carentes de ser, existir e
pertencer. Desejo, porém, que não se caracteriza pela inércia, mas pelo movimento que se
origina em nós e parte de nós rumo aos outros e às coisas: é força, potência e poder. Poder
para existir e persistir na existência. “É a pulsação de nosso ser entre os seres que nos afetam e são
por nós afetados.”
13
Esse desejo de ser e pertencer, que processa-se por meio da imitação - seu veículo
de mediação no meio social -, encontra seu referencial no outro: desejamos o que os
outros desejam, e somente desejamos algo por que um outro ‘rival’ o deseja: “ O desejo de
um é o desejo do outro.”
14
O desejo é desejo do desejo do outro, e o desejável é o fim
imóvel, a perfeição, a identidade consigo mesmo.
Existe, então, um vínculo entre violência e desejo: ambas definem a condição
humana.
15
Isto nos permite identificar a natureza humana como informada por dois
pontos de força que não são antagônicos, mas se completam porque fazem parte de uma
mesma pulsão de vida (Eros):
“ A agressão é indispensável ao adequado funcionamento do ego e à capacidade de amar e
estabelecer relações. Áries, o deus da guerra e dos confrontos, e Eros, o deus do amor e do
desejo, são psicologicamente irmãos gêmeos.”
16
Não desejamos nem fazemos coisas porque as julgamos boas, belas, justas ou
verdadeiras, mas porque nosso ato de querer, de desejar, manifesta-se tão somente
quando em presença de um outro ser que nos cerca. Nosso ato de falar e agir se deve
unicamente ao fato de que desde os primórdios da humanidade o homem vive em grupos
humanos, cuja conservação refere-se ao desenvolvimento dessas mesmas potencialidades.
13
- CHAUI, M. O Desejo. p.: 46.
14
- GIRARD, R. Op. Cit. P.: 209.
15
- Cf. GIRARD, R. Op. Cit. P.:
16
- WHITMONT, E.C. Retorno da Deusa. P.: 35.
xxx
Nosso ato de desejar é exclusivamente social, pois sustenta-se numa dimensão de
existência interpessoal - assim como a violência.
Se nosso ato de querer já vem informado pela presença conflitante de um outro
ser, a solidão nada mais significa senão a morte do homem enquanto sujeito.
17
Na solidão
e
no isolamento tanto o perdão, como a agressividade são apenas encenações teatrais sem
efeito, pois caem no vazio do esquecimento. Sem o referencial do outro há morte e
loucura. Entretanto, a ação, que habita a pulsão do Eros, é a única faculdade que o
homem possui capaz de dar vida, de criar algo novo.
Esse desejo inquietante do homem de ‘fazer acontecer’ é que o torna um mutante
em busca do seu próprio eu. É um sujeito por vir, sempre em eterna construção, que tem
por princípio a existência de um modelo e de um ideal baseados numa perfeição divina
almejada tanto por ele mesmo (indivíduo), quanto pela coletividade.
Entretanto, esse desejo mimético, que se esforça para realizar a perfeição, a
individualidade e a identidade presente em cada um, busca a superação do próprio
objeto
(modelo, ideal) desejado. Não se imita o modelo e ou o desejo de alguém, senão com o
intuito de realização pessoal: uma construção identitária adquirida através da superação
do outro.
Sendo assim, se o desejo de ser, que informa a construção da identidade dos
homens, corresponde a uma realização pessoal, - cujas potencialidades sempre estão em
17
- Cf. ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. O conceito de solidão utilizado por nós inseri-se nas análises de
Hannah Arendt sobre ‘solidão’ e ‘estar só’, onde ela tipifica a solidão como a perda total da comunicação humana
com o próximo e consigo mesmo. A solidão diferencia-se, por sua vez, do conceito de ‘estar só’, que é um diálogo
expresso unicamente com nosso interior, uma comunicação íntima do nosso ser conosco mesmo - uma capacidade
de autoconhecimento necessário ao desenvolvimento espiritual de todo ser humano: “Solidão não é estar só. Quem
está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na companhia de outras pessoas.
xxxi
conflito com os outros -, o reconhecimento de nossa identidade social e humana nada
mais significa senão a afirmação de um poder pessoal, de um prestígio calcado sempre
numa adversidade narcísica. O que é absolutamente necessário ao ser humano:
“ A consolidação do ego e a noção de uma identidade pessoal baseiam-se na aceitação
individual e na capacidade de afetar os outros. A ausência de experiências de luta
favorece uma personalidade fraca, destituída de ímpeto, de motivação e autoconfiança. A
diferenciação, a autodefinição, portanto, acontece mediante confrontos. (...) De um modo
ou de outro, a agressão e a violência são essenciais ao desenvolvimento da auto-afirmação e
da sensação expansiva de estar vivo, assim como à transformação e ao crescimento
psicológicos.
18
(Grifo nosso).
Se a identidade do sujeito forma-se por meio do conflito e da diferença, surgidos a
partir do desejo, torna-se justo afirmar, então, que o desejo é o único feixe por onde se
processa as nossas relações sociais cotidianas, formando laços de amor e de ódio, que se
expressam de acordo com opiniões e costumes de uma época.
Hegel conceitua a violência interpessoal como um fenômeno que ocorre dentro de
um contexto em que haja indivíduos lutando para obter o reconhecimento pessoal e
domínio sobre os outros.
19
“Os indivíduos só sobem ao nível de ‘Vir a ser’ negando a natureza
comunal deles \ delas em um ato de violência contra outros seres humanos.”
20
Portanto, ele define
o desejo enquanto uma vontade, uma paixão do ser humano intimamente relacionado
com o conflito. Pois, a busca para o reconhecimento e poder pessoal pressupõe um
embate cotidiano entre os vários membros de um determinado grupo social, e “(...) ao
contrário do Eclesiastes, a corrida era para os mais rápidos e a batalha, para os mais fortes.”
21
(...) A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo (...) Viver a
sós pode levar á solidão; isso acontece quando, estando a sós, o meu próprio eu me abandona.” P.: 528 – 529.
18
- WHITMONT, E.C. Op. Cit. P.: 36.
19
- Cf. HEGEL, A dialética.
20
- SIEBERS, Tom. Op. Cit. P.: 05.
21
- GAY, Peter. O cultivo do ódio. P.: 47.
xxxii
Não obstante tais análises ter influenciado em grande medida os escritos de Girard
- ambos concebem os conflitos humanos fortemente sustentados pelo desejo; ou seja, a
competição por Ser - a reconciliação entre o desejo e o impulso violento para destruir
outras pessoas (o homicídio individual ou coletivo) só se vê concretizada na figura do
bode expiatório presente no pensamento de Girard.
Também Hobbes escrevera que a realização da identidade pessoal do sujeito,
portanto do desejo, processa-se por meio de um contexto onde existam conflitos, forças
antagônicas e desejos opostos, e que a tentativa de se restabelecer o equilíbrio abrem-se
novas oportunidades para o aparecimento de outros antagonismos. Pressupõe-se, então,
que o lugar comum no desejo não é a harmonia, mas o conflito:
“ Não existe fim último (finis ultmus) nem sumo bem (summum bonum) de que se fala
nos livros dos antigos filósofos morais. E ao homem é impossível viver quando seus
desejos chegam ao fim, tal quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A
felicidade é um contínuo processo do desejo, de um objeto para o outro, não sendo a
obtenção do primeiro senão o caminho para a obtenção do segundo. Sendo a causa disso
que o objeto do desejo humano não é apenas gozar uma só vez, mas garantir para sempre
os caminhos de seu desejo futuro (...) Assinalo, assim, em primeiro lugar, como tendência
geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa
apenas com a morte.”
22
Essa ultima passagem ‘o desejo como perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder’
define um movimento infinito do ser humano em busca de uma existência humana
baseada no reconhecimento social, no poder pessoal, no prestígio, na posse material;
todos derivados diretamente do desejo humano.
Espinosa demonstrará, por sua vez, que existe não um desejo apenas, mas
infinitos, à medida da insaciedade humana. Desses apetites, desejos, provém toda uma
construção singular da identidade humana. Pois, por meio do desejo o sujeito construirá
22
- CHAUI, M. O Desejo. p.: 53.
xxxiii
uma identidade cada vez mais aperfeiçoada e diferenciada, graças ao seu insaciável
desejo.
Todo o comportamento cultural, portanto, ao se configurar a partir de conflitos -
que são jogos de força, surgidos entre ‘duplos’ na dualidade Um \ Outro, Eu \ Tu; numa
dialética entre a imitação (semelhança) e perfeição (diferença) de um ‘modelo rival’ -
instaura um ambiente social propício à emergência de um poder vencedor: um líder, ou
um grupo que detém um poder pela força, pela violência, trazendo em si um signo
diferenciador.
Assim nos demonstra o drama do ciúme primordial entre os ‘irmãos inimigos’:
quando Caim, através do ato de homicídio perpetrado contra seu irmão, introduz um sinal
de diferenciação em sua própria identidade: “ O Senhor porém disse-lhe: Por tanto qualquer um
que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse
qualquer um que o achasse.” (Gn. 4,15).
O signo, enquanto precipitado pela diferença, remete-se sempre a uma relação de
forças, emanada de desejos conflitantes, capaz de conferir poder ao vencedor. Há
portanto, entre o poder pessoal, cuja origem advém de relações de forças conflitantes, e o
signo diferenciador, um vínculo estreito. Esse signo, precipitado pela diferença, possui em
si a faculdade de comunicar à comunidade o poder, o prestígio do vencedor, legitimando o
poder
O prestígio é, pois, dado aqueles que são competentes - entendendo como
competente a avaliação da diferença, da superação no final de uma luta. Ou seja, da
relação de forças conflitivas entre os homens resulta sempre uma diferença, que se traduz
em signo, tornando operacional e eficaz a capacidade do vencedor. É a própria
transformação do prestígio em poder.
xxxiv
Neste sentido, o homem de prestígio ao socializar sua força, através da circulação
do seu signo diferenciador como poder, introduz mecanismos de dominação, que são
acompanhados por crenças, ritos, símbolos, códigos diferenciadores, implicando a
submissão à força que se teme. O signo é que identifica sempre a atuação de um poder
com daquele indivíduo, ou daquele grupo que lhe são específicos. Então, todo o poder
social ou individual possui um signo que o acompanha e o identifica no grupo.
Em resumo, os humanos não anseiam apenas por alimento e bem estar material,
mas também por dignidade social, vínculos interpessoais e auto-identificação. A
superação da estagnação, da impotência, da ausência de valor pessoal e da insatisfação
torna a violência uma potência altamente mobilizadora no meio social. Nossa força
decorre de nosso embate com o outro, que cresce à medida que necessitamos manter
nossa posição de destaque no jogo social.
A luta implícita de Caim contra Abel, e a explícita entre Jacó e o anjo, como
vários outros pares bíblicos, são uma mistura de irmãos, amantes e competidores que
lutam por adquirir e ou manter cada qual a sua identidade (decorrendo ou não na
destruição e aniquilação do outro).
A construção da identidade de Caim, através da violência, revela essa busca pelo
prestígio e poder, e se pensarmos o porquê do homicídio descobriremos que o objeto de
inveja de Caim centrava-se na identidade singular do irmão, tido como referência
(modelo). Abel possuía um poder pessoal, que o diferenciava do irmão, proveniente de
uma preferência divina: as ofertas de Caim eram rejeitadas, as de Abel aceitas por Deus.
O desejo de Caim por se tornar igual ao irmão em prestígio(um preferido por
Deus), que culminou num ato violento - como um meio seguro para se conseguir uma
identidade - instaurou uma diferença em sua própria personalidade. Trata-se de uma
xxxv
forma de auto-afirmação e de autotranscendência que se alicerça na capacidade de uma
superação destruidora do outro.
Pode-se afirmar, portanto, que a produção e a afirmação da identidade individual
cuja referência centra-se na noção de diferença - alicerça-se na violência e na
agressividade humana. E é um grande desconforto descobrir que o campo por onde se
processam a diferença e a identidade nada tem haver com o diálogo, mas com rivalidades,
confrontos pessoais e intolerância.
O resultado dessa competição não foi apenas a marca de Caim, dada por Deus
como signo diferenciador entre os homens, mas também de que a morte contém o poder
mais poderoso, mais absoluto, aquele que não tem equivalente. Matar, produzir o nada, é
a medida, o limite de todo o poder. A destruição e a morte é o alicerce do poder; e aquele
que mata é tão poderoso quanto a morte. O segredo do princípio e do fim de um poder
reside na sua capacidade de gerar sentido tanto para a vida, quanto para a morte.
Pressupõe-se, então, que a alteridade advém sempre da superação de um rival
semelhante, um modelo anterior; e que a violência e o conflito, embora enraizados no
desejo da similaridade, proporcionam o surgimento da diferença enquanto pressuposto
de identidade pessoal. Assim, a situação cultural ‘original’ se configura como uma
competição por parte de Caim pela busca de identidade, sendo as diferenças acentuadas
pelas oposições dualistas, advindas da própria rivalidade entre irmãos.
Essa reciprocidade violenta de irmãos inimigos, que sempre foi uma marca
constante na cultura judaica, está perpetuada na história de Esaú e Jacó - este fundador
de todo o povo de Israel - e é transmitida de geração em geração, como nos conta o
profeta Jeremias, no Antigo Testamento: “ Desconfie de um irmão: pois todo irmão desempenha o
papel de Jacó, todo amigo espalha a calúnia. Um engana o outro ... Fraude sobre fraude! Mentira
xxxvi
sobre mentira !” (Jr: ) A civitas terrena funda-se, portanto, na memória de um irmão
assassino.
Esse tipo de rivalidade familiar, cujas raízes remontam a nossa tradição judaico-
cristã, revela-se num traço latente da nossa cultura ocidental, manifestada pela constante
violência interpessoal ora sutil, ora declarada.
Por certo, a identidade e a reciprocidade constituem as bases de um conflito
interpessoal permanente e inquietante, que caracteriza toda relação humana.
A inveja, este sentimento zangado, traz em si a busca de algo desejado, que se
expande num impulso de danificar ou tomar do outro algo que faz parte do nosso objeto
de desejo. Isto só é possível porque toda a imagem que temos do outro traz um reflexo de
nós mesmos. A partir daí o eu e o tu (nós) vivem num conflito constante, tentando
resgatar não apenas o que falta a cada um, mas um poder pessoal capaz de criar nossa
própria identidade (singular), perdida em ambas as partes.
A história bíblica de Adão e Eva, cuja primeira ação, nós lemos, foi a de comer do
fruto da árvore do Bem e do Mal, contém aspectos reveladores do comportamento
humano não apenas de caráter religioso; mas histórico, social e psicológico. E é por
abordar o desejo e as paixões humanas que o Gênesis possui sua referência principal no
mito.
A queda do Paraíso revela vontades antagônicas entre o Bem e Mal, entre o
humano e o divino, entre humanidade e desumanidade. O paradoxo que se estabelece não
é de ordem apenas humana, mas social. Se analisarmos profundamente os mitos da
Criação presente em todas as culturas, constataremos elementos que lhes são comuns: a
paixão pelo sagrado, revelada pela eterna busca das Origens; a presença do mal como um
ser exterior que ameaça a humanidade (a ordem); o saudosismo do Paraíso Terrestre, que
xxxvii
se configura sempre no empenho do ser humano em buscar a perfeição e a unidade - a
Jerusalém celeste; etc. Todos estes elementos míticos transcendem os tempos,
configurando ideologias e mentalidades, que caracterizam as culturas e as sociedades, até
hoje.
Dessas múltiplas possibilidades de variantes míticas, que permanecem
atemporalmente nas culturas pela ação da memória coletiva, ou inconsciente coletivo,
interessa-nos particularmente aquelas que dizem respeito a ação e natureza da violência.
As várias análises produzidas até hoje sobre a violência possuem duas variantes:
uma de ordem biológica, enquanto um distúrbio patológico, de que são portadores
aqueles indivíduos que trazem em si ‘genes’ de comportamentos desviantes do padrão
normal das sociedades; e a outra que diz respeito a uma ‘anomia social’. Ou seja,
comportamentos sociais divergentes, causadores de desordens e pânico, cujas múltiplas
causas “ se (fundem) e se (confundem) (...), com as forças externas que pesam realmente sobre o
homem: a morte, as doenças, os fenômenos naturais ....”
23
Se considerarmos apenas estas duas vertentes, em nada estaremos contribuindo
para uma análise diferenciada daquela produzida, por exemplo no Gênesis. Pois,
estaremos reproduzindo um mito sutilmente presente até hoje em nossa mentalidade
coletiva: o mito da serpente. É essa posição mítica que,
“ impulsiona os homens a colocar sua violência fora deles mesmos, transformando-a em
um deus, um destino, ou um ‘instinto’, pelo qual eles não são mais responsáveis e que os
governa de fora. Trata-se, mais uma vez, de não encarar a violência, de encontrar uma
nova escapatória, de arranjar, em circunstâncias cada vez mais aleatórias, uma solução
sacrificial alternativa.”
24
23
- GIRARD, R. A Violência e o Sagrado. P.: 107.
24
- Idem, Ibidem. P.: 179.
xxxviii
Se poucos cientistas sociais como Charles Tilly, vislumbraram a violência como
uma possibilidade de escolha racional do ser humano
25
, raros são os que entendem a
violência interpessoal como parte constitutiva da natureza humana, por que faz parte de
um desejo existencial, identitário.
Há uma tendência em se acreditar que as relações humanas e a sociedade possam
agir e se manifestarem separadamente uma da outra, impossibilitando a violência de ser
uma condição imanente do ser humano, e uma possibilidade de integração social.
Se acreditarmos que a violência possa derivar de uma ‘anomia’ social que ameaça
a humanidade periodicamente, ou um desvio de comportamento humano,
consequentemente existirão apenas duas possibilidades para o caráter do homem: aqueles
que são bons e justos, por natureza, e aqueles que são maus e injustos por fraqueza - pois
se contaminaram na doença social. Resultado disso seria uma tensão social constante
entre os “mocinhos” e os “bandidos”; entre os naturalmente livres e eternamente
escravos, entre deuses e homens.
Porém, grande é a ilusão em se acreditar que há uma luta eterna entre os homens
bons e os maus. Na verdade todos são ‘perversos’. Pois, “ o ser humano, em suas mais
elevadas e nobres capacidades, é totalmente natureza, carregando consigo, seu inquietante duplo
caráter.”
26
A violência fundadora é a primeira a realmente constatar e explicar esse duplo
25
- Cf. TILLY, C. The Changing place of Collective Violence. Pp.: Para o autor a violência coletiva, que pode ou
não fazer parte da ação coletiva, caracteriza-se por um elevado grau de evolução em suas formas de atuação na
história, assumindo três características básicas: as formas primitivas, as reativas e as proativas (modernas). A variação
evolutiva sofrida por estas formas de violência inseri-se nas próprias mudanças estruturais que alteraram as
sociedades ao longo dos tempos. Nesta alteração, os grupos políticos se movimentaram (e ainda se movimentam) na
busca por manter a identidade política adquirida: os velhos grupos de poder cederam lugar os novos grupos na órbita
pública. Esta entrada e saída, ou melhor, esta movimentação política é que dá origem a violência coletiva: as situações
de ganho de identidade política produzem rebeldes com frequencia, favorecendo a eclosão de motins, revoltas,
revoluções, greves, etc. As mudanças nas formas de atuação e ação detectadas em tais movimentos coletivos resumi-
se numa maior complexidade organizacional em suas manifestações, conjuntamente a um crescimento progressivo,
detectado por Tilly, de uma racionalidade atuante nestas formas de violência coletiva; além de um desenvolvimento
das associações formais e programas explícitos por parte de grupos que almejam atuarem no poder político.
26
- NIETSZCHE, F. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. P.: 73.
xxxix
caráter, presente em qualquer divindade primitiva: a união e completude do maléfico e do
benéfico, que caracteriza todas as entidades mitológicas nas diversas culturas. Dionisio é
ao mesmo tempo o mais ‘terrível’ e o mais ‘suave’ dos deuses. Todas as divindades
antigas tem essa dupla face, que é também humana.
Ao contrário, a tradição judaico-cristã que por ser monoteísta não vê essa
possibilidade de completude conciliatória entre o Bem e o Mal. A separação entre ambos
é radical e rígida. Assim lemos na Bíblia desde o Antigo Testamento ao Apocalipse: :
“ E vindo um dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio
também Satanás entre eles. Então disse o Senhor a Satanás: Donde vens. E Satanás
respondeu ao Senhor, e disse: De rodear a terra, e passear por ela.” (Jo-1: 6.7)
“ E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete
cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas. (...) E o dragão irou-se contra
a mulher, e foi fazer guerra ao resto da sua semente, os que guardam os mandamentos de
Deus, e têm o testemunho de Jesus Cristo.” (Ap-12:3;17)
Como podemos notar o Mal e o Bem vivem em eterna luta, sendo impossível
vislumbrar um contato entre ambos: o Mal - incorporado em uma personalidade revoltosa
e ambiciosa - não tem qualquer possibilidade de acesso ao bem; ele é o mal absoluto.
Assim também no Bem Absoluto não há mal algum. Este é o tempo dos judeus e cristãos,
o tempo da divisão entre Bem e Mal, e da esperança na vitória de uma das partes. Um
tempo linear, pois, a vitória do Bem já está prevista. “Entretanto, que esta cultura é
sacrificatória é a perspicácia fundamental de Girard, como também a fonte de nosso último
descontentamento. ”
27
De acordo com Girard a nossa formação cultural pressupõe uma ordem
sacrificatória, onde a violência se vê representada pela figura de um bode expiatório, que
é sempre designado como um inimigo - o outro à margem do sistema, o diferente, o
anormal. Este processo de substituição (representação) sustenta nossa própria violência
27
- SIEBERS, Tom. Op. Cit. P.: 02.
xl
que, por conseguinte, se vê sustentado por um cristianismo pervertido - um cristianismo
que necessita de sacrifícios, de bodes expiatórios (ao invés do perdão) para aplacar a
violência, tal como nas religiões pagãs.
Os gregos, considerados os homens mais humanos da antigüidade, possuíam
traços em si de intensa crueldade e de vontade destrutiva:
“ Quando Alexandre manda furar os pés de Batis, o corajoso defensor de Gaza, e
amarrar seu corpo ainda vivo na carruagem, afim de arrastá-lo de um lado para o outro,
sob a zombaria de seus soldados: trata-se de uma caricatura revoltantes de Aquiles, que
maltrata de maneira semelhante o corpo de Heitor durante a noite; mas mesmo este traço
tem, pra nós, algo de ofensivo que nos faz estremecer de terror. Vemos aqui o abismo do
ódio.”
28
Tal era a intimidade com o ódio e a inveja que os maiores feitos heróicos, nos
mitos e nas tragédias, tinham sua marca traçados pelo sangue e pela violência
interpessoal. Uma violência tão intensa, que se torna difícil estabelecer qualquer distinção
entre os homens bons e os maus.
Para os historiadores gregos, a cultura grega distingue-se por apresentar um gosto
pela guerra; e o homem grego foi mesmo belicoso. “Atenas clássica esteve em guerra durante
mais de dois anos em três, e nunca conheceu a paz durante dez anos seguidos; a isso acrescentar-se-á a
insegurança crônica provocada por diversas formas (...).”
29
O cotidiano do homem grego estava informado por uma preocupação constante
com a guerra, e participar dela era uma obrigação constante dos cidadãos, que desde os
dezenove anos já se viam educados para o combate. Os espartanos tinham por dever
ensinar às gerações futuras a arte de matar.
Os homens adultos eram introduzidos no mundo masculino do ascetismo e da
competição, e apesar de toda a disciplina, eram certamente mais sujeitos aos acessos de
28
- NIETSZCHE, F. Op. Cit. P.: 74.
29
- GARLAN, Y. O Homem Grego. P.: 49.
xli
fúria e violência do que as mulheres. Todavia, esse homem não pode ser caracterizado
como um homo militaris.
Mesmo que a violência pela violência fosse condenada, pois afetava as normas de
convivência internas da sociedade grega, a guerra entre comunidades rivais era valorizada
e até proclamada, trazendo em si todo um significado político e social para o grupo.
“Assim, embora funesta, a guerra socializada pode revestir-se positivamente de todos os valores de que
a elite cívica se reclama.”
30
A combatividade natural da espécie humana, imanente de uma pulsão profunda
por pura agressividade, na verdade, faz parte de um jogo complexo das sociedades.
Identificar esse jogo é atingir a estrutura de que são constituídos os seres míticos, que
compõe tais culturas, revelando, ao mesmo tempo, uma violência que é compartilhada
por todos, “é de todos e está em todos.”
31
È perceber, portanto, que atrás da encarnação da
violência nos deuses e heróis, existe uma dissimulação que sustenta a existência da
violência nas sociedades.
Isto significa, simplesmente, que a vida do homem em sociedade revela-se num o
jogo de lembranças e esquecimento da própria violência. Em suma, ao se colocar a
violência no exterior do homem como incompreensível divindade, devolve-se uma ordem
cultural, deprimida e cansada pela própria estupidez humana.
Essa identidade entre o divino e a violência é perfeitamente evidente quando
analisamos as figuras míticas. Para Aquíles, como lemos na Ilíada, ser um herói era saber
manejar com sabedoria, coragem e destreza tanto as palavras, quanto a espada. E por isso
se sentia encorajado a lutar sempre, na certeza da vitória e da imortalidade. O fervor das
30
- Idem, Ibidem. P.: 51.
31
GIRARD, Op. Cit. P.: 11
xlii
suas orações possuía a mesma essência que o impelia a lutar e morrer, não só pela glória
de Atenas, mas por sua própria honra, masculinidade, nobreza e vigor.
O poder significante da linguagem trágica define bem o poder da violência
familiar, as vinganças nunca saciadas, os homicídios rituais, o horror e o fascínio da
violência. Como também levanta a questão dos perigos inerentes ao exercício de poder
(Persas, Antígona) ou descobre a própria máscara que cobre a hipócrita moral humana, e
que está na base das ações humanas, tal qual vemos em Ésquilo.
Se no mundo antigo os mitos refletem culturas e mentalidades marcadas por um
intenso conflito pessoal, pela vingança, pela obsessão narcísica da honra, pela
crueldade
obscena e pela morte - comportamentos justificados pelos próprios mitos -,
invariavelmente, em nosso mundo moderno, a agressividade marca as relações
interpessoais e sociais: cultuamos a competitividade, a concorrência e a ambição como
“boas” virtudes do ser humano.
As rivalidades são cicatrizes eternas que o homem jamais curará. Ontem
formavam o pano de fundo para o duelo, cujo álibi fundamentava-se na honra; hoje,
praticamos a ‘boa’ competição como uma virtude vital e saudável. Em cada tempo, as
sociedades, as classes socais, os grupos humanos cultivam seus ódios, escondidos ou
declarados, mas sempre justificados: “The oppressed have struck in the name of justice, the
privileged in the name of order, those in between in the name of fear.”
32
Contudo, a violência não é boa nem má. Ela é, e está acima do Bem e do Mal que
as culturas estabelecem ao longo dos tempos. Não existe diferença em seu seio, apenas
mudanças de valores culturais e morais, concebidos de acordo com cada realidade
32
- TILLY, C. Violence in America: Historical and Comparative Perspectives. P.: 05.
xliii
histórica e social. Situada por detrás de todas as significações possíveis, a violência
permanecerá indecifrável sempre que estiver mascarada por uma significação ou
justificação qualquer.
Aristóteles pregava aos seus discípulos uma ‘violência educada’, que se
diferenciava de uma violência grosseira e rústica, cujo riso era estúpido. O riso, o bom
humor e a violência controlada pela justiça eram verdadeiros dons, concedidos pelos
deuses.
Nesta sociedade de confronto, onde para ser reconhecido, é preciso prevalecer
sobre os rivais numa incessante competição pela glória, os Jogos Olímpicos não eram
apenas evocações de beleza, mas de intensas rivalidades pessoais, cuja essência era a
disputa por um poder pessoal, fundamentado no prestígio divino. Por conseguinte, a
busca pelo
herói ideal estava presente também nas motivações patrióticas, que movimentavam as
guerras e na própria arte da retórica.
Ser o melhor significava transcender a natureza humana, permanecendo na
memória coletiva através de feitos heróicos. Estabelece-se uma relação entre a natureza
mortal do homem e a natureza imortal dos seus deuses, portanto. O divino e a violência
eram duas faces de uma mesma moeda; ambas formam e informam a cultura grega.
Há, pois, vínculos constantes entre os deuses e os homens, com quem eles
convivem assiduamente, ligados por laços de afeto, parentesco ou aversão, que se fazem
mais ajustados pela própria necessidade de exigir constantemente as honras que lhes são
devidas enquanto senhores de um poder desmedido.
“Daí derivam os cruzamentos e as sobreposições constantes entre o mundo dos deuses e o
mundo dos homens que são uma característica saliente da Ilíada e, depois dela, do
imaginário religioso dos Gregos. Daí deriva também o hábito do contato com os deuses,
uma familiaridade com a presença, atribuindo-lhes relações propriamente humanas: os
xliv
deuses sentem amor, ciúme, inveja e são dominados por qualquer outra paixão própria
dos homens.”
33
É compreensível, pois, que todas as atividades humanas estivessem relacionadas
ao sagrado tão amplamente presente no seio da comunidade grega; e que a busca de uma
‘justificação’ e explicação da natureza violenta do homem se sustentasse nos mitos. Já que
a função destes não se traduzia apenas em explicar uma realidade ou o homem; mas de
certa forma buscava pacificar os indivíduos em sua própria angústia existencial.
O mundo dos relatos míticos estava diretamente conectado a abstração e
sublimação dos valores e problemas dos homens gregos. Saber que a violência era algo
compartilhado pelos deuses, fazia com que sua permanência na sociedade grega se
tornasse legítima e até sustentável. Quem negará que os crimes e as perversões, de que os
mitos estão cheios, não constitui a essencialidade do desejo humano.(!) Um desejo que se
orienta pela violência - já que ela tem a capacidade de realizar com maior ‘segurança’ e
rapidez um significado que cada um traz em si de identidade e poder.
A Teogonia de Hesíodo conta detalhadamente como os dois maiores deuses,
Urano e Cronos, tentaram em vão, cada um por sua vez, competir na sucessão do poder:
Zeus, terceiro na linha descendente, repôs a ordem no cosmos, instaurando um novo
domínio. Claro está que ele devorou bem mais do que desposou, para assegurar seu trono.
Um poder sustentado por sua filha Atena que, gerada de sua cabeça, estava predestinada
a ser eternamente virgem; ou seja, sem descendentes masculinos diretos.
Assim, os mitos gregos nos trazem referências não apenas para o entendimento da
própria natureza humana, mas do uso (e desuso) da violência como possibilidade através
da qual o homem buscava escapar a sua insignificância, no breve instante da vida. Um
desejo de ser, que ligava-se a uma violência triunfante e divinizadora.
33
- VEGETTI, M. O homem Grego. P.: 238.
xlv
Os deuses, semi- deuses e o homem possuíam inúmeras qualidades que os
identificavam e distinguiam no caráter, mas a ira, a violência, era a única que
proporcionava identidade e poder ao indivíduo, por que estava associada ao divino. Pois,
“ser um deus é possuir ‘hydos’. (...) O ‘hydos’ é a fascinação exercida pela violência.
Onde quer que se mostre, ela seduz e atemoriza os homens.. ‘Hydos’ é aquilo que está
sendo disputado nas batalhas e especialmente nos combates individuais entre gregos e
troianos: um prestígio quase divino.”
34
Como podemos notar, as grandes qualidades humanas circulavam pela esfera do
ódio fidagal, da ambição apaixonada e da inveja narcísica, que causavam brilho, honra e
felicidade pessoal e coletiva, consideradas verdadeiras dádivas dos deuses. Mas, como
explicar (e justificar) o duplo caráter do homem: seu comportamento humano conflitante,
resultante de forças binárias tão opostas, convivendo numa só unidade. Afinal, o ser
humano não poderia ser de todo destrutivo, sabia amar e desejava a felicidade à sua
maneira.
Então, como não permitir que a tocha da disputa e da rivalidade - sempre acesas -
não devorassem a benevolência, a hombridade e a própria sociedade. Ou melhor, como
permitir a concretização de um desejo natural do ser humano, como a agressividade,
dentro de limites legais, inteligíveis e, de certa forma aceitáveis por todos. Certamente, a
explicação mítica (politeísta ) para tal fenômeno tentou conciliar dois opostos que fazem
a própria humanidade: coincidir num mesmo plano caos e ordem, destruição e vida.
Assim, criou-se o mito de Eris:
“ Há sobre a terra duas deusas Eris. Uma deve ser tão louvada, quanto a outra deve ser
censurada, pois diferem totalmente no ânimo estas duas deusas. Pois uma delas conduz á
guerra má e ao combate, a cruel! Nenhum mortal preza sofrê-la, pelo contrário, sob o jugo
da necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado desta Eris, segundo os desígnios dos
mortais. Ela nasceu como mais velha, da noite negra; a outra, porém, foi posta por
Zeus nas raízes da terra e entre os homens, como bem melhor. Ela conduz até mesmo o
34
- GIRARD, R. A Violência e o Sagrado. P.: 186-187.
xlvi
homem sem capacidades para o trabalho; (...) o vizinho rivaliza com o vizinho que se
esforça para seu bem-estar. Boa é esta Eris para os homens.”
35
A vida social grega, portanto, está contaminada pela culpa de sangue, que se
prolonga, perpetuando um sentimento de culpa que marca a própria existência da vida em
comunidade por um lado, e de cada indivíduo, por outro. Há de fato um homicídio e uma
culpa que toda a cultura compartilha:
“segundo um mito órfico, os Titãs teriam atraído a uma cilada, assassinado, cozido e
devorado o deus-criança Dionisio. Das cinzas dos Titãs, atingidos pelo raio de Zeus como
castigo por essa teofagia primordial, teriam nascido os primeiros homens, manchados
portanto desde o início por essa atroz contaminação. Mas a culpa multiplica-se em cada
existência individual.”
36
A humanidade padece de uma terrível culpa, que caracteriza a existência humana
em seu viver em sociedade. O castigo já nos foi dado - pela própria incapacidade do
homem em lidar com a sua natureza fatídicamente violenta -, contaminando cada ato de
sua vida, gerando opressão e a angústia que o acompanham à espera funesta da morte.
Contudo, viver é experimentar um desejo mimético, existencial, “que precisa
experimentar a ameaça de um outro ser.”
37
E é desse conflito interpessoal que nascem as mais
variadas possibilidades de manifestação e interação dos seres humanos nas sociedades.
Pois, se as relações humanas são feitas de desejo e prazer, a violência constitui um meio
natural por onde esse tráfico normal de paixões e afetos, valores e realizações podem ser
concretizadas.
Conclui-se, portanto, que os conflitos fazem parte das relações humanas e sociais,
que informam uma determinada cultura. “ A violência não é apenas performance, mas uma
35
- NIEZTCHE. F. Op. Cit . P.: 77-78.
36
- VEGETTI, M. Op. Cit. P.: 246.
37
- Cf.: GIRARD, R. A violência e o Sagrado. P.: 10.
xlvii
interação”
38
que se processa entre a sociedade e as relações humanas, conformando uma
crença, a própria política, a moral, a ética, a existência humana e social, enfim.
Na realidade, a violência não nos serve apenas como referência para as greves,
guerras e revoluções que assolam nosso século. Sua exposição funciona como emoções
primitivas e irracionais; a princípio sentimentos freqüentemente enquadrado em
maníacos, fanáticos e crianças que não souberam introjetar dentro de si a ordem social.
Contudo, isto não justifica, a exemplo de Shakespeare, o que se passa na mente de Otelo
antes de extravasar o seu ciúme e a sua raiva, ou os motivos tortuosos que levaram lady
Macbeth ao êxtase quando arrasta o marido para uma violência assassina.
Se um espetáculo de crueldade sanguinária, como as lutas e as punições
medievais, nos proporcionam certos constrangimentos não sentimos nenhum remorso
quando extravasamos nossa raiva ora declarada por uma educação ríspida, ora disfarçada
por um chute no cachorro. E que isto não nos cause espanto, porque sempre reservamos
aquela hora ‘sagrada’ para uma fofoca alheia, ou para uma ironia sutil, na busca de
satisfazer nosso ego. Cada sociedade, cultura ou civilização possui seu modo particular de
produzir, manter e ‘conviver’ com a violência.
Os homens originários e antiquíssimos viram e entenderam a violência sob forma
de mito, e dessa forma transmitiram-na às gerações futuras, dizendo que os seres divinos
são semelhantes aos homens, acrescentando-lhes ou ocultando-lhes virtudes e defeitos,
semelhanças e diferenças ao seu modo.
No século XX também não é apenas uma época caraterizada pela guerras, mas
principalmente pela valorização da racionalidade. Com efeito, a agressividade e a
violência em todas as suas manifestações sociais devem ser entendidas não apenas por
38
- TILLY, C. Violence in America: Historical and comparative Perspectives. P.: 31.
xlviii
métodos quantitativos. É importante que se faça o cotejamento entre os dados
quantitativos e os qualitativos.
39
Pois, uma análise da violência deve-se reconhecer os valores, a fundamentação
religiosa e moral de uma dada sociedade, assim como seus sistemas de transmissão
cultural,
sua estrutura política e econômica e a manifestação do caráter humano dentro deste
contexto social. Senão o fenômeno da violência, que foi o principal enigma com que os
antigos se defrontaram, permanecerá ainda como um enigma, um ‘assobio’ da Esfinge; ou
o que nos parece mais sensato, com o dilema siberiano.
40
1.1 - Breve análise sobre mito:
Inicialmente gostaríamos de afirmar que o mito não é da ordem do delírio, e nem
pressupõe qualquer delírio declarado ou latente naqueles que o contam ou que o escutam.
Em grego, mythos designa uma palavra formulada, quer se trate de narrativa ou
diálogo incompleto, que não contrasta essencialmente com o logos. Há, porém, duas
concepções à cerca de um mesmo objeto: sendo incompleto por natureza, o mito tende a
permanecer atemporalmente na mentalidade coletiva, numa construção infinita, que
39
- Cf.: SPIERENBURG, Peter. Op. Cit. P.: 01-02.
40
- O dilema siberiano se resume na trágica situação do homem, ou morre afogado ou congelado.
xlix
informa o pensamento humano. Essa atemporalidade conforma as utopias passadas e
presentes.
“ O mito consiste no conjunto de suas versões (...) essa estrutura do mito, constituída por
camadas ‘ad infinitum’, reproduz-se no seio de cada versão, cujos episódios,
aparentemente sucessivos, não se alinham segundo uma ordem irreversível ao modo dos
eventos históricos: trata-se, antes, de reproduções de um modelo fundamental apresentado
sob um número de perspectivas diferentes igual ao das versões.”
41
A outra análise é histórica, tende a considerar o mito enquanto um dado histórico.
Na Antigüidade Clássica, os discursos que informavam os seres humanos em sua
trajetória existencial eram constituídos pelo mito e pela razão. Entretanto, enquanto o
logos se transformava em discurso público, ao ser levado à praça pública, o mito
permaneceu confinado apenas aos templos e as sacerdotisas, tendendo a permanecer, daí
em diante, na obscuridade.
A diferença não reside apenas nisso: enquanto o discurso da razão se esmerava
pela experiência e praticidade, buscando através da inteligência crítica estabelecer uma
investigação escrupulosa da natureza, como desejava Aristóteles; o mito pertencia à
ordem do maravilhoso e do dramático; era sua forma de compreender e transmitir o
mundo.
Assim, à medida que o discurso se transformava em palavra escrita e,
consequentemente, tornava-se acessível a todos, o mito - manipulado por aqueles que
detinham o dom de interpretar o divino - permanecia numa ordem inteligível diferenciada
do logos, como outra possibilidade de compreensão do mundo e da existência humana.
A preocupação com o verdadeiro, com a ordem dos fatos e com a clareza no
enunciado das mudanças fez com que a compreensão do homem e do seu mundo
perdesse o dramatismo, a emoção, tornando-se assunto apenas de um traço do
41
- LÉVI-STRAUSS, C. Minhas Palavras. P.: 243.
l
pensamento humano: a razão. Tucídides, foi um dos que mais se empenharam para que a
razão sobrepujasse os mitos:
“Pois, o objetivo da história não consiste em ‘emocionar’ e encantar por um momento os
ouvintes, mas ‘instruir’ e convencer por todo tempo as pessoas estudiosas com atos e
discursos verdadeiros.”
42
O discurso explicativo - domínio da inteligência - passou a sobressair-se sobre o
discurso metafísico. Entretanto, o discurso do mito constituiu, ele próprio, durante mais
de um milênio o fundo comum da cultura grega, um quadro de referência tanto para a
vida religiosa, como para as formas de convívio sociais e espirituais, “a tela na qual não
cessaram de bordar tanto a literatura escrita dos doutos quanto os relatos orais dos meios populares.”
43
Na tradição do pensamento, que informa nossa cultura ocidental, a referência nos
vem dos gregos. Não obstante a ciência moderna- enquanto fonte de conhecimento - seja
marcada pelo selo do racionalismo - conformada a uma negação da emoção -, suas raízes
advém de um passado antiquíssimo, cuja estrutura mental era formada conjuntamente
pelo mito e pela racionalidade. Entretanto, foi preciso uma nova redescoberta da cultura
grega, para que os mitos fossem vistos sob outra ótica, e com menos preconceito. Isto se
deu basicamente no intervalo das duas guerras mundiais.
Neste período, os estudos mitológicos se transformam, seguindo direções
múltiplas dentro da psicologia, filosofia, sociologia, lingüística, etnologia e história das
religiões. O mito, a partir daí, passa a ser visto enquanto uma das partes do pensamento,
que não poderia mais ficar ignorado ao silêncio. Rejeitado pelo positivismo, sua
reabilitação trás em si um desafio à inteligência científica do presente. Trata-se de
42
- VERNANT, J.P. Mito e realidade na Grécia Antiga. P.: 177.
43
- Idem, Ibidem. P.: 188
li
(re)descobrir o mito enquanto parte da compreensão do homem de si próprio e do meio
que o circunda.
Entendendo o pensamento mítico enquanto polissêmico e polivalente, ele tem a
capacidade de nos informar sobre os dados da geografia física e humana, ecologia,
relações institucionais, crenças, práticas religiosas e realidades econômicas das várias
culturas passadas. Contudo, sua análise obedece a dois parâmetros distintos: uma ao nível
de sua estrutura lingüística: sua forma narrativa e expressão lingüística; enquanto a outra
atem-se a própria estrutura mitológica dos fatos.
Interessa-nos, sobre o mito, apenas sua lógica do ambíguo, da polaridade e sua
capacidade em demonstrar e interpretar as paixões e emoções que informam a
natureza
humana, enquanto construtoras de uma realidade social e temporal. É um tecido épico,
onde se ordenam imagens e mensagens, cujo objetivo é tentar explicar a ‘insustentável
leveza do ser’
lii
Parte II
liii
“Uma terra de brava gente”“Uma terra de brava gente”
Capítulo I
1.1 Uma perspectiva sobre a historiografia colonial das
Minas.
“ Não basta, pois, admitir que a História é a
história de uma longa exploração do homem pelo
homem (...).”
Mary Del Priore.
O estudo sobre a violência na Capitania das Minas é relativamente recente na
historiografia brasileira. Não obstante muitos historiadores, ao analisarem o processo de
colonização, levem em consideração o sentido violento e dramático dos primeiros anos da
história colonial mineira, suas pesquisas enfatizam excessivamente a atuação do aparelho
burocrático metropolitano repressivo e poderoso eficaz em sua dupla função: tributar
e vigiar, na tentativa de obter o melhor funcionamento de uma política mercantilista no
pacto colonial. Raymundo Faoro é o expoente máximo esta posição:
“ Para este autor, o Estado penetrou em todas as atividades coloniais, que acabaram por
ficar á mercê dos interesses fiscais da Coroa. O sucesso dos desígnios metropolitanos
deveu-se ao cargo que domesticou as ‘turbulências dispersas’, levando à submissão ao
soberano. O Rei, por seus delegados e governadores, dominou tanto as vontades rebeldes
quanto as dissimuladas. (...) Enfim, para Faoro, a força integradora que neutralizou as
energias e rebeldias na colônia foi a camada dos fiéis agentes do Rei e dos seus
funcionários.”
44
Dentro desta dinâmica atribui-se um papel de destaque ao estamento burocrático
instrumento do Estado Patrimonialista português, cujos mecanismos de poder
alcançaram grande desempenho na colônia “valendo-se de caudilhos e bandeirantes, fazendo
deles seus prepostos e espichando, assim, os braços até o sertão longínquo”
45
-, valorizando de forma
extrema a racionalidade da ação estatal.
Fernando Novais, embora trate especificamente das relações mercantilistas entre
a periferia e o centro, isto é, entre colônia e metrópole, em “Portugal e Brasil na Crise do
44
- ANASTASIA, Carla Maria Junho. Minas Babélica. Texto complementar da defesa de tese apresentada em 1995.
P.: 05-06. (Mimeo).
45
- SOUZA, Laura de Melo e. Os Desclassificados do Ouro. P.: 93.
lv
Antigo Sistema Colonial (1777-1808)”, estabelece uma certa aproximação com as análises
de Faoro. Pois, a dinâmica do ‘viés circulacionista’ também é otimista quanto a manutenção
da ordem na colônia pela metrópole, já que a transferência do excedente colonial se deu
de forma efetiva. O sucesso das relações centro-periferia, mantidas através do pacto
colonial, foi capaz de superar os motins e rebeliões revolucionárias, além de outras
manifestações violentas que faziam resistência ao sistema colonial.
Valentim Alexandre, em sua obra - “Os Sentidos do Império”-, contesta veemente
a teoria de Novais. Segundo ele na lógica da tese,
“(...) não é, na verdade, necessária qualquer comprovação empírica d existência crise: ela é
deduzida em abstrato da incompatibilidade entre as estruturas do capitalismo industrial
e as do antigo regime colonial. (...) Neste sentido, é claro que não há crise do sistema
colonial português, a nível econômico, antes de 1808. A nível político, porém, a situação é
menos evidente.”
46
Se para Novais a situação de crise propicia a eclosão de movimentos rebeldes e
motins, como ruptura revolucionária do pacto colonial, para Alexandre, ao contrário, os
motins e revoltas não se enquadram numa perspectiva de projetos de mudança política,
muito menos como movimentos pré-nacionalistas. Pois, a razão que move esses
movimentos é muito mais uma questão de sobrevivência daqueles grupos e famílias que
dividiam o poder dentro da sociedade colonial, do que uma ação consciente, como quer
Novais:
“ O sistema como tal não estava em causa, visando-se apenas o retorno de uma ordem
tradicional corrigida de abusos, (mas) a partir do ultimo quartel do século XVIII era
possível pensar os conflitos em termos de ruptura, de mutação das estruturas coloniais
vigentes.”
47
46
- ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império. P.: 78.
47
- ALEXANDRE, Valentim. Op. Cit. P.: 79.
lvi
Uma ruptura sem caracteres nacionalistas, visto que na Inconfidência Mineira,
como na Baiana, o sentimento deixava de lado os marginalizados do sistema. Assim, o
pretenso
“(...) papel aglutinador da ideologia nacionalista e sua utilização como cimento de
estratos sociais diversos contra o inimigo externo ( o Estado colonizador), apagando as
contradições internas, como quer Maxwell, está de todo ausente.”
48
O autor enfatiza, ainda, uma administração portuguesa ineficaz para a colônia
brasileira, não só causada pela enorme extensão desta, mas principalmente pela própria
distancia entre as mesmas. Além disso, afirma que havia um sentimento de solidariedade
implícito da colônia para com a metrópole, já que na dinâmica dos motins e rebeliões
nunca existiu de fato nenhuma estratégia para se eliminar o domínio da Coroa e
estabelecer uma República.
Somando-se a isto, os regimes reformistas, implantados na Segunda metade dos
Setecentos na colônia, nada tinham de inovador, visando apenas a defesa do pacto
colonial frente a uma crise de ouro que se generalizava. Estava longe, pois, de ocorrer
uma crise política interna colonial e a metrópole, por sua vez, continuava a “confiar nas
formas tradicionais de defesa da sociedade colonial, entregues fundamentalmente às forças locais.”
49
Embora o autor trate das relações econômicas entre Portugal e Brasil num espaço
temporal que se estende do período colonial ao imperial (enfatizando basicamente a
atividade de Portugal), seu trabalho demonstra ter uma certa coerência eficaz,
proporcionada pelo confronto empírico, sem perder de vista os aspectos internos da
colônia e, tão pouco, sua inserção num mercado agro-exportador, dominando pela
metrópole.
48
- Idem, Ibidem. P.: 81.
49
- Idem, Ibidem. P.: 89.
lvii
Caio Prado Júnior, na década de 40, elabora uma análise do período colonial
tentando relativizar a atuação da metrópole na colônia, contratando com as análises de
Faoro. Em “Formação do Brasil Contemporâneo”, ele faz uma discussão a respeito da
desordem presente na colônia. Contudo, a questão da violência se apresentava presa a
massa ignara, às rebeliões dos facinorosos, aos motins e ações de indisciplina que
percorrem as veias dos negros, escravos e vadios. Não está presente, nesta análise, as
ações de indisciplina e desobediência dos altos funcionários da Coroa, muito menos dos
padres.
Laura de Melo e Souza, usufruindo das análises de Caio Prado e embasada pela
visão da História Social, realiza um estudo em que visualiza os ‘desclassificados’ termo
empregado para designar pobres livres, negros forros, mulatos, vadios, índios e todos
aqueles à margem do sistema -, cuja característica principal é a violência como forma de
sobrevivência na empobrecida Capitania das Minas, durante a segunda metade do século
XVIII.
Ela destaca veementemente a presença a e atuação do Estado português na
sociedade mineira Setecentista, relativizando o poder e ação dos potentados e oligarcas:
“A
presença marcante do Estado, os olhos vigilantes do fisco, a violência da justiça colocaram, de certa
forma, os poderosos num respeitoso segundo plano.”
50
Ou seja, os ‘poderosos’ da terra,
inseridos na
estrutura de poder e contribuindo para o processo de consolidação do domínio da
metrópole, através da boa administração, eram impedidos de atuarem por conta própria,
correndo o risco de serem julgados pela justiça eficaz de El Rei. Neste sentido, cumpria
50
- SOUZA, Laura de Melo e. Os Desclassificados do Ouro. P.: 137.
lviii
aos potentados e oficiais de mando a normalização e estabelecimento da ordem na
colônia, como bons oficiais, enquadrando os ‘desclassificados’ violentamente nesta
dinâmica.
Não obstante a realidade colonial seja dada, ela se vê submetida às instâncias do
Estado Português, que faz valer seus interesses e, consequentemente, a ordem pela
atuação de uma justiça incorrupta e exemplar.
Dentro desta visão da história social, que enfatiza a ação opressora dos
potentados coligados aos interesses da metrópole, a análise da violência nas Minas
Setecentistas assume, automaticamente, duas posturas: uma de resistência escrava onde
o homicídio adquire uma identidade de ação política frente à classe dominante,
ameaçando a ordem e, consequentemente o pacto colonial.
É o que podemos notar na obra de Maria Helena Machado, onde o conceito de
crime social se vê expresso “como ato de consciente resistência ao sistema de dominação material e
ideológico, expressando as concepções das camadas dominadas a respeito do justo e do injusto (...)”
51
;
e a outra postura diz respeito a questão de sobrevivência, decorrente da associação crime-
pobreza, como quer Laura de Melo e Souza e outros.
Entretanto, o conflito não permanece apenas inserido na dialética de resistência
política ou necessidades econômicas. Deve-se levar em conta, principalmente, as
necessidades humanas imanentes nesta comunidade que se forma. Afinal, quem são
aqueles homens e mulheres que se movimentam e movimentam as montanhas das Gerais!
Donde vem, e para onde vai! Quais seus desejos e como sobrevivem!
A manifestação da violência cotidiana é apenas a ponta do iceberg nos
intermináveis conflitos sociais, envolvendo interesses familiares e individuais. A sua
51
- MACHADO, Maria Helena. Crime e Escravidão. P.:25.
lix
existência liga-se intimamente a busca inquietante dos seres humanos por identidade
e
auto-afirmação, e ou pelo por prazer da confrontação com o outro, cuja manifestação, no
cotidiano das Minas Setecentistas, apresenta-se-nos sob formas valorativas, costumes e
rituais caracteristicos desta sociedade.
A exteriorização dos valores, como a honra e a piedade, são inseparáveis de uma
moral sustentada na reciprocidade e no confronto com o outro: a preocupação com a
reputação diante dos membros da comunidade e o temor são uma constante. Estes dois
elementos, por sua vez, estão inseridos dentro de uma dinâmica social, intimamente
relacionados aos uso da violência e da crueldade.
No limite, exige-se dos homens sobretudo se é da elite homem de patente que
seja não apenas bom vizinho, mas que saiba distinguir os limites da atuação da população,
e manter longe os possíveis contratempos que possam derrubá-lo do poder. É evidente
que o estereótipo de tais indivíduos não se manifesta apenas pela educação e cortesia,
mas pelo rigor das ações, agressividade de caráter e constantes demonstrações de brio em
público.
A exibição da virilidade e da agressividade masculina, assim como as demais
formas de exercer a crueldade faziam parte do convívio dos homens do século XVIII
europeu, assim também parte de um contexto específico das Minas, sustentadas ora pela
busca constante da distinção e da honra, ou pela manutenção do poder adquirido -
enquanto afirmação de poder pessoal entre os homens de mando da época; ora de forma
indefinida, sem motivo aparente, como era notório nas tabernas e nas ruas das sociedades
Setecentistas.
lx
Neste convívio violento em que a honra é a medida de status social e a regra de
conduta que diferenciam os homens, o caráter agressivo do homem e o ódio tornam-se
agentes ativos sociais, através dos quais se constróem a sociedade mineira: uma teia de
intriga tecida por conflitos sociais, por fortes embates cotidianos, por uma busca feroz de
auto-afirmação e manutenção da integridade pessoal, cujas regras do jogo baseavam-se,
no seu limite, na velha e reconhecida Lei do Talião.
Reconhece-se, pois, que a violência é uma das formas que as pessoas tinham de
organizar o seu mundo, na falta de um poder real (de fato), de uma justiça eficaz e de uma
sociedade estruturada. Ainda assim, era a própria manifestação agressiva dos homens que
delineava os possíveis limites do mundo público e privado tão incertos para a maioria
dos homens de poder e para os demais membros da comunidade.
Cada grupo detinha em seu discurso a explícita busca por ‘ser’ e se fazer
‘pertencer’ nas Minas. A aquisição e ou manutenção de identidade política, social e
humana era mais que um simples valor a ser alcançado, envolvia a própria sobrevivência
dos homens e dos grupos humanos. Contudo, os diferentes discursos não possuíam uma
força política capaz de transformá-los em uma ação efetiva no campo do poder público.
Existia apenas o uso indiscriminado de ações violentas rituais individuais ou
coletivas dos diferentes grupos tanto por parte de brancos, quanto de negros -, na
tentativa de se delimitar o ‘território’ de domínio de cada um, o domus particular, e com
isto garantir o prestígio, o poder local e a posse do ‘mando’. Não é preciso dizer que a
medida que a honra se cria, a violência se desenvolve. A partir do momento que se
infringe ou se falseia o outro publicamente, a ruína vem certamente a galope, juntamente
com a vergonha.
lxi
Capítulo II.
2.1- O senso, a palavra e o ponto.
“ A guerra é pai e senhor de todas as
coisas... Devemos entender que a guerra é a
condição normal, que o antagonismo é
justiça e que todas as coisas acontecem
através da discórdia.”
Heráclito.
O cruel retrato feito por Thomas Hobbes sobre a vida em estado de natureza
como sendo solitária, pobre, cruel, embrutecida e curta era extremamente duro, mas, por
mais subversivo que fosse o pensamento de Hobbes, poucas pessoas no século XVII
ficaram ofendidas com sua afirmação de que os humanos eram os inimigos naturais de
outros seres humanos.
Da mesma forma D. Bráz Balthazar manifestou ao Rei não um sentimento de
ofensa, mas de repulsa, por presenciar o limite da perversidade humana: a vida nas Minas
Setecentistas possuía um traço acentuado e específico de crueldade e violência, capaz de
embrulhar o estômago dos mais embrutecido dos homens:
Documento
Esse traçado característico de crueldade e violência nas Minas é próprio de um
contexto social, cuja tessitura é marcada por tensões e conflitos constantes, advindos da
própria situação em que se encontravam os diferentes grupos de pessoas e seus
antagônicos desejos.
lxii
Um amontoado de homens e mulheres sem rosto, perdidos num imenso vazio e na
solidão o preço da vida de garimpo -, que possuíam nos próprios pensamentos e desejos,
nos jeitos e trejeito, valores, costumes e rituais capaz de identificar uma época. O único
ponto em comum desses transeuntes era a noção de uma existência de risco. Essa
consciência do imprevisto e do insustentável tornavam os laços familiares inconstantes e
os sentimentos afetivos efêmeros; além de caracterizar um comportamento humano
altamente sujeito aos desconfortos da insegurança e da violência, que grassava por todas
as partes.
É característico de cada grupo ou de indivíduos que constituíam os arraiais e vilas
das Minas - tanto brancos, mulatos, negros, homens e mulheres desejarem, além do
ouro, o reconhecimento e a distinção. Esse desejo por auto-afirmação e apreciação,
manifestado através da violência, da inveja e da cobiça, travestia-se do valor da honra e
da pomposidade ritualística próprios daquela época.
A constituição da identidade pessoal ou grupal, portanto, pressupunha o exercício
efetivo da violência e do medo - meios pouco legítimos - para Ser e Ter. E era apenas por
meio dessa busca de distinção e poder pessoal que os sujeitos emergiam, construindo do
nada e da falta uma cultura peculiar nas Minas. Não obstante, essa falta e carência
generalizada que identificava o cotidiano das Minas, o eixo central que dominava o desejo
dos indivíduos se alicerçava no prazer da realização e consumação por se adquirir uma
notória distinção.
Explica-se, assim, porque a justiça nas Minas tinha suas mais regaladas desordens.
Constantemente ultrajada e vilipendiada, as normas da justiça não davam conta de conter
‘a ferro e fogo’ a violência e a agressividade humana numa incipiente sociedade que
fervilhava. Cada qual queria ser reconhecido e ouvido, seja pelas boas ou más ações. Isto
lxiii
realmente não importava muito, o que valia era se mostrar publicamente como o mais
viril dos homens, aquele que mandava e não pedia, o que se fazia como o ‘melhor’ dos
homens, ultrapassando os limites da moral e das normas.
Numa sociedade, marcada profundamente por comportamentos sociais
fundamentados na violência, na expansão da pulsão agressiva dos indivíduos e na
crueldade notória de suas ações, a justiça quando não está ausente, muito raramente pode
manifestar sua atuação influente na comunidade, pois ela pertence a esfera de um poder
público governado por princípios normativos e, não da natureza humana. O que se espera
é a desordem generalizada e incontrolável.
Assim, quando a justiça não faz alcançar sua atuação, o que se percebe é a atuação
da violência como uma ação necessária na preservação de interesses pessoais adquiridos.
Este nível de consciência humana é concebido por muitos estudiosos como um estágio
pré-político ou pré-social de existência social, característico das sociedades Setecentistas
.
52
(O código do Sertão)
‘O senso de honra’, ‘a palavra de honra’ e ‘o ponto de honra’ são essas as ‘balizas’
através das quais o cotidiano das Minas Setecentistas se equilibrava e se movimentava.
Privilégio de poucos e tão reluzente quanto o ouro, a honra era um grande bem a ser
conquistado e preservado, seja através da persuasão simbólica (desfiles públicos dos
homens de farda), seja por meio da coerção física de que se serviam muitos potentados e
administradores da Coroa conta-se a isto os inúmeros homicídios, estupros, roubos e
corrupções perpetrados por esses homens á população e, principalmente, aos seus
‘inimigos de farda’ ou ‘homens de patente’.
52
- Cf.: Tilly, Charles. Op. Cit. Pp.:
lxiv
Todos os cargos e encargos teriam que ser delegados a pessoas de honra. Estes
privilégios só eram outorgados aos seus donos, quando da averiguação do comportamento
dos mesmos. Na medida do possível, a averiguação desses comportamentos desejáveis
para a administração do poder das Minas, era feita por terceiros amigos
influentes,
comparsas e aliados. O que não contribuía necessariamente para um exercício eficaz por
parte da administração burocrática da Coroa; mas concorria para a formação e
manutenção de um poder local e residual, que sutilmente competia em espaço e nas
ordens do próprio monarca, nas Minas:
“ Dom Lourenço de Almeida, Governador e Capitão General das Minas gerais Amigo.
Eu El Rei vos envio muito saudar. Foi-me presente que nas alterações que sucederam o
ano passado nas Minas gerais se houveram com fidelidade e zelo os oficiais da Câmara
(...) e que a esse respeito lhes concedesse alguns privilégios e para que me conste com
certeza do referido, me informeis do procedimento dos ditos oficiais e moradores (...)”
53
Nota-se, pois, que as relações humanas dentro do domínio público são
extremamente tensas, não apenas devido ao alto contingente de tarefas a que são
obrigados a prestar à comunidade, mas pela própria convivência dos homens de ‘mando’
entre si. Derrubar alguém, um dos ‘iguais’ em farda e patente, era um modo de reerguer-se
em meio a precariedade geral, assegurando-se o direito e o poder da autoridade.
A susceptibilidade, a insegurança e a falta de um poder de fato resguardavam ás
ações dos indivíduos as formas embrionárias de um autoritarismo peculiar e coerção
social, característico de nosso país. Pois, desde o princípio o uso da violência se mostra
indispensável na manutenção de um poder adquirido.
Essa eliminação do outro do jogo de poder, que produzia consequentemente a
auto-afirmação e a distinção de quem a exercia, tinha em sua tessitura todo um arcabouço
53
- Carta do Rei ao governador Dom Lourenço de Almeida em 1721.
lxv
de puro desejo e insaciedade humana por identidade. Essa busca pela diferenciação que
pertence à natureza dos homens dinamiza o seu próprio convívio com os seus
semelhantes, construindo um contexto social que lhe seja próprio.
O próprio uso e emprego da palavra ‘mando’ como nos testificam as fontes -
constituía por si só um signo diferenciador de quem a possuía. A palavra era uma
violência, podendo até matar, mesmo se apenas simbolicamente àqueles que não a detém.
O peso de ser proferida era extremamente incômodo aos ouvidos alheios, como dos diz
(......nome.....) em carta a D. Rodrigues de Menezes:
“Queixasse o supplicante de que eu mandava passar, mandados uzando nelles da
palavra Mando para q os officiaes da ordenança dessem ajuda aos da justissa,
quando da melhor execução della, era necessário, ao q respondi q aquelle foi sempre o
estillo com q os Ministros q tem jurisdição ordinaria passarão semelhantes mandados
(...)”
54
(Grifo nosso)
Desta relação conflitante no palco da administração pública, percebe-se uma
dicotomia evidente entre aqueles grupos majoritários e os grupos minoritários, que lutam
para alcançar os mesmos benefícios e prerrogativas - sempre calcados na violência e na
agressividade. Porém, basta lembrar que o meio freqüentemente usado para se manter no
poder ou conquistá-lo vale-se de artifícios ilegítimos e ilegais.
O ‘locus’ de poder o próprio aparato burocrático constituía-se em uma das
formas de segurança encontradas para se manter o poder pessoal conquistado. Valendo-se
dessa prerrogativa e costume vários ‘homens de patente’ destinam-se a manter no poder a
qualquer custo - e de preferência até a velhice. O tempo no poder e a segurança era
elementos em si diretamente proporcionais: um dependia inteiramente do outro. Isto é,
quanto mais tempo no poder, maior a seguridade e eficácia em suas ordens e autoridade,
como é o caso de Manoel Teixeira Coelho “que se achava impossibilitado de continuar o serviço
54
- Códice: SC n.º 35, folha: 240-241, 1735.
lxvi
por estar criminoso, e com idade maior de setenta annos (...)”
55
(.............mais......) e ainda Manuel
Abranches que permaneceu 60 anos no poder, desafiando os demais com um longo
histórico de crimes e abusos de poder.
O perigo estava justamente quando se ausentava por qualquer motivo da
comunidade: perdia-se o poder de mando, cuja manutenção requeria sempre a figura da
pessoa presente, senão os abutres sem demora se lançavam à caça:
“Senhor vindo eu de jornada, para minha caza cheguei a esta villa de Sam Joam de El
Rey em sete deste mês onde achey carta domece Alferes que me dá parte, que o Cappitam
Jozé Pinto de Miranda, e Vicente Marques Ferreira, meus inimigos em nome do povo
fizeram hum grande asignado contra mim em que para fazer numero de povo asignarão, e
mandaram asignar até os meninos da Escolla, e outros de mayores, para engano, dizendo
q hera para bem commum do povo p.ª com o asignado requererem abrimento do caminho
da Paraiba nova, q elles dezejam, e outros por sua vontade asignarão contra por serem
meus inimigos (...)”
56
A idade para se começar na carreira do crime e das transgressões não se tinha, mas
poder-se-ia imaginar que começava-se jovem, como nos conta o Alferes Jozeph de Souza
Correia Landim, morador em Paracatu, que doente de cama, viu sua casa ser invadida
pelos filhos de Joaquim de Souza.
57
São muitas as reclamações do próprio Rei de devassas não averiguadas,
corrupções e assassinatos encobertos. Vários são os documentos testificando que valia
mais a busca em se fazer prevalecer os interesses pessoais e a honra que obedecer a Lei.
Na impossibilidade de contar com um poder e com a atuação da justiça, os
‘homens de patente’ lançavam-se sobre formas várias de agressividade, violência, valentia
e brutalidade sobre a população na tentativa de alcançar uma destacada posição social.
Neste jogo, o desafio, lançado sempre, contava com o risco da própria vida e dos demais,
55
- Códice: SG caixa n.º 36. Doc.: 15, data 1798.
56
- Códice: SG - caixa n.º 11. Doc.: 35, data 1781.
57
- Códice: SG Caixa n.º 11. Doc.: 32, data, 1781.
lxvii
como nos diz “ Joaquim da Costa de Oliveira, q fazendo constar a vm o fallescimento de seu irmãos
Joze da Costa de Oliveira ter acontecido não por acazo, mas por ser feito por pessoas suas inimigas
(...)”.
58
De um lado tem-se indivíduos que se veêm soberanos: para eles o bem e a
bondade assim como a Lei e a moral se definem a partir do ‘Pathos’ da distancia
59
,
pelo sentimento que lhes dá o direito de criar valores novos e dominar as coisas ao seu
redor. O que é criado, então, não leva em conta os medos e a dimensão do uso da
violência indiscriminada, pois, estes criadores são sujeitos autônomos, plenos de vigor e
vontades, que se exprimem na virilidade da palavra e das ações mais ocultas.
Ao redor desses homens valentes era comum que a maior parte do contingente da
população masculina vadia, composta por negros e mulatos, se agrupassem em torno dos
potentados poderosos, formando os grupos de capangas coligados em rixas entre famílias
rivais. Também a sonegação de impostos e taxas e outros motivos para não pagarem o
fisco são uma característica dos muitos potentados, rebeldes aos mandos da Coroa.
60
(CMM- documentos)
Entre os poderosos da terra e os administradores de El Rei havia mais que pura
amizade: muitas vezes se viam unidos em fraudes e subornos, tapeações e falcatruas que
contavam ao redor de si várias mortes, violências sem conta e rebeliões várias que às
58
- Auto de Devassa n.º 9363, códice: 446. Ano 1796, em Catas altas. “ (...) acontecendo achar-se morto seu irmão
Joze da Costa de Oliveira na parage, ou pastos do Reverendo Vigario Joze de Lana correo voz de o ter sido acazo
por hum raio, vendo esta a razão porque se não requereu nem tirou devassa; mas como se prezente se diz que foi
morto a tiros, tanto assim que a sella, em que na ocazião do insulto hia montado, e os calçoens q tinha vestidos se
achão cumbados, por isso se queria o cazo para se proceder a Devessa na forma da lei, feito auto de exame na dita
sella, e calçoens, e perguntados por testemunhas (...).”
59
- Vale lembrar que o ‘Pathos’ da distância presente nas Minas é um sentimento ambíguo pois ela insere-se sempre
num contexto de desafios e contradesafios constantes.
60
- São inúmeras as cartas que dizem respeito á sonegação de impostos por parte dos potentados, assim temos alguns
exemplos que podem nos valer:
lxviii
vezes não passava despercebido pelo monarca, como se atesta nas cartas Régias.
61
Formavam um grupo forte, se sabiam lutar juntos. Além disso, alguns possuíam o status
de contar para si o merecimento de terem por membros padres envolvidos grandes
comparsas em crimes e subornos.
Documento).
É, pois, em tais homens tidos como leais servidores de El Rei - que iremos
constatar uma busca constante pela ostentação de poder e empáfia, devidamente
demonstrada nos lugares públicos ruas, praças, Igrejas e Câmaras -, valendo-se da
crueldade e do sangue, para afirmar uma honrada posição social.
Os administradores da Coroa nunca deixavam de desfilar pelas ruas os seus trajes
reluzentes, causando temor e inveja à população que olhava. Muitas vezes, contudo, o
limite entre a demonstração destes atos públicos de arrogância e orgulho, e o abuso de
poder - tão freqüente era desprezado. Pois, “(era) preciso controlar a qualquer preço o fluxo do
que se diz e se vê para não se tornar vítima.”
62
(Documento do capitão que raptou a mulher que olhava pela janela. )
A conduta destes homens públicos testifica-nos que a divisão entre a noção do
público e do privado ainda estava por fazer na mentalidade dos indivíduos. É justamente
essa indistinção, essa interpenetração de interesses privados e comunitários que
fundamenta a atuação da honra. Pois, o conhecimento do outro necessariamente
expressa-se através de sua vida íntima (familiar e amorosa) e do direito que os demais tem
de julgá-la.
61
- Algumas cartas iremos citar como exemplo da consternação do Rei:
62
- ARIÈS, Philippe. Op. Cit. P.: 591.
lxix
É característico da vida moderna (séculos XVII-XVIII) uma interpenetração
constante entre a esfera de vida privada e a esfera de vida pública.
63
Nas Minas esta
indistinção é denunciada pela própria documentação, ao revelar a conduta dos próprios
‘homens de patente’, que administravam o poder. Não apenas um, mas vários são os casos
que nos atestam a documentação de abuso do espaço familiar e recintos fechados, por
parte das atitudes autoritárias e desmedidas de tais homens.
A conduta dos ‘homens de patente’ demonstra um passado, cuja existência
administrativa se encontrava, senão totalmente, quase sempre dominada pelo abuso do
poder - um comportamento que não era proveniente de poucos fanáticos, mas por muitos
que, na disputa pelo poder pessoal e pela distinção, ficavam desprovidos de limites e da
própria autoridade da Coroa, concorrendo na lista dos crimes de Lesa-Magestade.
(documento).
A regra de conduta calcava-se na honra - um guia das consciências humanas que
legitimava as ações mais cruéis e os crimes mais vis a palavra injuriosa e a calúnia
poderiam levar à ruína. Visível e notório eram as disputas dos homens, que embatiam
entre si pela busca da melhor maneira para se fazerem ouvidos e servidos. As contendas
não tinham fim, e eram várias as maneiras de punição para o mais fraco:
“ Nos abaixo assignados attestamos, e o juraremos em Juizo sendo necessario em como no
dia vinte, e sete do corrente do prezente anno pelas quatro para as sinco horas da tarde
estando Leonardo da Silva, Sargento da Freguesia de Congonhas do Sabara no Adro da
Capela de N. S. do Rosário nam somente para evadir como Sargento qualquer dysturbio
no ajuntamento dos negros Ângolas, que se axavam na frª do costume, como também
para receber a esmola, que se tirasse por estar de thezoureiro dos mesmos negros, por
63
- Para nos auxiliar quanto a explicação da indistinção das esferas pública e privada recorremos ao pensamento de
Hannah Arendt. Segundo ela, “A distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública
corresponde `a existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos
desde o surgimento da antiga cidade-estado; (...); e esta divisão entre as esferas pública e privada, “entre as
atividades pertinentes a um mundo comum e aqueles pertinentes à manutenção da vida (...) é evidente por si mesma
(...).” (ARENDT, P.: 37).
lxx
eleissam delles, e aprovassam do R. Párocho. Neste mesmo tempo, e hora declarada
xegou a S. Mor de Auxiliares Anastacio das Neves Ribeiro, capital inimigo do dº
Leonardo da Silva e a este entrou a tratar de ladram e mais nomes injuriozos
descarregando lhe hua fermoza bofetada no rosto, prendendo o juntamente a ordem de V.
Ex.ª, imputando lhe para colorar a sua paixam (...).”
64
Anastacio das Neves Ribeiro fazia parte da lista desses homens destemidos, que
desejava conquistar o prestígio pessoal e o poder, através do medo e da violência,
humilhando sem piedade seus ‘inimigos de farda’. Sua iniciativa partia sempre em direção
àqueles que poderiam competir no campo do poder local, ou seja, outros que como ele
usam da prerrogativa de homens honrados para o exercício do mando:
“Diz Manoel Machado de Barros morador no Arrayal de Congonhas do Sabará, que
vivendo o suplicante com sua molher, e filhos pascificamente se vê inquieto e precipitado
pello Mayor de Auxiliares Anastacio das Neves Ribeiro, o qual sendo morador em
Rapozos, quazi sempre rezide na Freguezia de Congonhas, sem outro exercício mais do
que insultar ao suplicante e a outros offendendo os em honra, e credito; e porq o
suplicante alem de ser costumado, não sô a infamar Famílias onestas, mas também a
espancar homens serios, como o fes com o Ldo Francisco Frzº em qual, por hum seu
escravo, fes muitas xicotadas dentro da caza do mesmo Frzº, prezente elle Anastacio, ao
meyo dia sem que o dito Ldo o tivesse ofendido; e dis fazer timbre de destruir por todos os
modos aos que fazião boa convivência com o Capitam Joze Lopes da Silva e Azevedo, de
quem o dito Mayor foi sempre inimigo, em rezão do dito Capitam pella sua obrigação de
comandante daquelle Arrayal, por moderar as desordens do dito Mayor, as dar a saber
ao Ilmº Snr Coronel do Regimento, q o não ocupasse no Real servisso; e dis mais Ter jâ
dado principio pª a vingança, com o insulto que fea a Leonardo da Silva Sargento da
Ordenança do mesmo Arrayal, emq deu muitas bofetadas dentro do Adro da Capella de
N. S. do Rosário, e pª ofuscar a sua temeridade, o prendeo no mesmo logar a hordem de
Vª Exca arguindo-lhe depois falçamente crimes capitaes, pª a q tem subornado
testemunhas afim de o criminar em Juizo, (...) e por este modo se faz temido daquelles
(...).”
65
(Grifo nosso)
Também nos diz Bernardo Jozê de Almeida da Vila do Príncipe que,
“ (...) pessoas interessadas nos incomedos do supplicante com documentos de pernicioza
idéia, falçamente justificarão na prezença de V. Ex.ª ser o supe o horror da atrocidade
com espirito de urgulho e ambição, foi da justiça de V. Ex.ª mandar prender o supe,
emquanto o prezumio desasucego dos povos.
A maior aflição do supplicante não tem sido o incomodo da prizão, nem os prejuizos déla;
hé sim conciderar-se com macula da honra, mál conceituado na presença de V. Ex.ª
64
- Códice: SG caixa n.º 10 doc. 05 – 1780.
65
- Códice SG caixa n.º 10, doc. 05, 1780.
lxxi
se remir deste vexame fes aprezentar attestaçoens do seu procedimento, acreditado por
perto de quatrocentas testemunhas das mais distintas de ambos estádos daquela comarca
(...).”
66
(Grifo Nosso)
Como podemos averiguar, a honra era a prerrogativa máxima para obtenção de um
certo respeito, como também para manter a riqueza dos envolvidos. Encontra-se aí a
própria justificação para o uso apaixonado da violência por parte dos envolvidos: era uma
questão de sobrevivência manter a honra sempre ‘reluzente’. Poder e riqueza figuram,
então, na primeira linha entre as boas razões para se deflagrar a violência e a agressividade
humana.
A honra fazia todos os homens vulneráveis, e somente a ela prestavam culto.
Portanto, não é pela cortesia e boas maneiras que se conseguia a honra e o respeito dos
demais; na falta de meios sociais disponíveis e de uma justiça atuante, usava-se da
violência.
A realidade social das Minas se originava, pois, de ações humanas significativas,
que urgiam na formação e fixação de identidades, de delimitações sociais e individuais.
Saber quem era o outro, ter conhecimento dos demais, implicava na manifestação e noção
de uma complexa trama de valores e rituais, submergidos necessariamente no uso
instrumental ou impulsivo da violência.
Esse mundo pré-social emergia de manifestações constituídas tanto a partir de
escolhas intencionais, como também por atitudes impulsivas dos atores envolvidos.
Porém, a pulsão agressiva era o embrião, o fio e a trama, abrangendo todas as formas e
possibilidades das relações humanas, sem constrangimentos.
Em outras palavras, noções como ‘famílias ultrajadas’, ‘más companhias’,
‘violações’, ‘roubos’, ‘corrupções’, ‘homicídios’ e demais uso da violência são
66
- Códice SG caixa n.º 11, doc. 22, 1781
lxxii
procedimentos rotineiros que identificam uma determinada cultura ou comunidade, e por
isso devem ser levados em conta dentro do próprio cotidiano que lhe é peculiar,
informando-nos dos interesses e valores envolvidos.
A noção do uso indiscriminado da violência, pelos diferentes atores nas Minas,
não se traduz apenas na constatação do caracter notoriamente agressivo e violento dos
seus habitantes. Com efeito, também nos informa sobre o ritmo do cotidiano dos atores
envolvidos, da mentalidade cultural, da condução da justiça e da própria conjuntura
econômica da comunidade, como revela a própria condição por meio do qual se dá a
manifestação do desejo dos indivíduos.
Portanto, a violência não é um fenômeno esporádico, nem tão pouco um fato
epidérmico, mas que se fundamenta nos valores sociais. Ela está consubstanciada nas
relações humanas e sociais, que formava a tessitura do cotidiano, evidenciada nos fatos
mais corriqueiros e na ocorrência dos vários homicídios, agressões, rebeliões, fugas,
roubos, e demais infrações.
O que era singular nos ‘homens de patente’ não se resume apenas numa
demonstração de honra viril e violência gratuita. A manifestação da agressividade faz
parte do desejo desses indivíduos por reconhecimento pessoal e status, vinculado
necessariamente a aquisição de um equilíbrio econômico e social dos envolvidos. Havia,
pois, uma solidariedade que marcava esse grupo, oriunda do próprio desejo de distinção e
reconhecimento, que se fazia senão pelo confronto direto, pelo desafio constante -
obrigatoriamente controlados pelo próprio grupo.
Formava-se, assim, um universo de trocas de valores, onde as regras estavam
implícitas, mas a palavra e a violência eram formas ritualizadas de ações ordinárias, que
comportavam sempre o risco. Nesse jogo de forças e vontades conflitantes, feitas pelo
lxxiii
confronto repetitivo e constante, encontra-se a própria essência do desejo mimético, a
pulsão agressiva do homem mineiro Setecentista.
E muitos somam-se na lista destes homens, como é o caso do Ouvidor do
Ribeirão do Carmo Sebastião de Souza Machado
67
e do Juiz dos Órfãos Raphael da Silva e
Souza que abusou da jurisdição, com corrupções e violências perpetrados aos pobres de
quem retirava o devido dinheiro -, além de prender quem lhe aprouvesse, sem dar maiores
explicações. Durante os seus onze anos de governo na vila do Carmo foram estas as suas
ações administrativas, como acima estão descritas.
68
O cotidiano mineiro estava calcado sob o signo da representação, formando ao
redor da virilidade masculina todo um ritual de prepotência e desejo de poder, que valia-
se do uso da violência, perpetrado diretamente sobre o próximo, como meio eficaz para
assegurar a honra enquanto símbolo valorativo de respeito e poder pessoal. A
exteriorização dos valores não se separa de uma moral que se baseia na reciprocidade e
distância, ao mesmo tempo. Portanto, o conceito de violência liga-se a todo um sistema
de valores, prevalecentes no século XVIII e que tem no homem seu receptor e
transmissor direto.
Era exatamente do confronto com o outro, dos rituais notórios de crueldade e
pânico, que se assegurava aos seus praticantes uma momentânea situação de destaque,
sempre vilipendiada pelas condições adversas ao seu futuro. Essa honra viril era a própria
raiz das manifestações da violência gratuita, que a justiça não dava conta de controlar.
Portanto, a honra se manifesta na relação de violência. “ De fato, um homem de honra
não pode se contentar em exercer sua autoridade sobre a casa, a mulher, as terras, ele deve ir diante dos
outros, desafiá-los e aceitar os contratempos em suma, enfrentar seus ‘irmãos de honra nas trocas de
67
- Códice: SC n.º 35, folha: 35, 1733.
68
- Códice; SC n.º 35, folhas: 240-241, 1735.
lxxiv
violência.”
69
A violência é, então, recurso e solicitação; o feixe por onde se processam
as relações sociais e os desejos humanos: “(...) dá-se para convidar o outro a dar, e desafia-se
para levar o outro ao desafio.”
70
Uma vida cotidiana informada pelo desafio constante, que se traduzia pela
transgressão da autoridade ou pelo simples fato de denegrir a imagem de alguém.
Contudo, a transgressão era o ato mais perigoso, que não pode ser compreendida apenas
como uma contravenção dos trâmites judiciários. Era também um assunto social.
A violação da justiça era uma das maneiras disponíveis aos homens da época para
dividir os valores morais e sociais e, ao mesmo tempo, se auto-identificarem: um
potentado nunca poderia entrar na casa do outro sem ser convidado, seria considerado
uma afronta, como acontecia sempre:
Documento do velho
A dissimetria entre a justiça (autoridade real) e os ‘homens de patente’
característico das Minas justifica-se pela própria condição patrimonial imposta: o prestígio
derivava sempre de duas possibilidades: da propriedade da terra e manutenção desta, ou
da posse de cargos públicos e uso deste. A cada geração que passava recompunha-se
essa rede de conflitos, vingança e sede insaciável de poder. Herdava-se toda uma relação
de hostilidade e ódio.
Não se reconhece reciprocidade fraterna entre os pares envolvidos. Ao contrário, é
clara a urgência em se definir as regras e o território a que cada qual deverá pertencer. O
que se coloca é a noção de desigualdade entre os grupos de habitantes nas Minas. A
preocupação em se definir os territórios e os respectivos locais de mando com seus
69
- JAMOUS, Raymond. CZECHOWSKY, Nicole. (Org). A Honra. p.: 139.
70
- Idem, Ibidem, P.: 139.
lxxv
membros é o motivo das tensões constantes, por onde escoa toda a violência e
agressividade.
Não há exemplos documentais de conversações pacíficas entre os diversos
homens que formavam as comunidades nas Minas Setecentistas, resultando, de fato, em
bandos armados a se engalfinharem reciprocamente. Ao contrário, o que existe é uma
noção precisa sobre as diferenças do outro, que se revela num jogo social de
clientelismos, favores e autoritarismos. Um sistema de obrigações recíprocas, que não
tendo o caráter de igualdade, define ainda mais as desigualdades e as diferenças dos
homens envolvidos, revelando a verdadeira face de um mundo fechado, indefinido e
bastante desestruturado.
O jogo da transgressão da Lei era, então, uma condição e uma modalidade da
troca da violência na comunidade Setecentista, expressado em atos rituais vários.
Contudo, a incerteza da vitória, já vale o próprio risco contido: a repetição desse
movimento infinito do desafio e contradesafio a própria manifestação do desejo
mimético era a concretização do verdadeiro desejo dos homens, pela insaciável sede de
violência.
Esse sistema de troca social nas Minas Setecentistas e sua necessária repetição
sutilmente reduzia a honra a uma mera justificativa para as suas ações violentas e da
necessidade de expandir o impulso de agressividade humano.
As atitudes inflamadas pelo ódio, cuja manifestação social esmerava-se em
encenações rituais e públicas, buscando enfatizar a própria valentia e a crueldade
empregados, supondo com isto adquirir o respeito e a veneração do público, através do
medo.
lxxvi
O medo e o horror eram as armas tidas como as mais eficazes na manutenção da
ordem e da justiça, para os administradores do monarca: “ Eu temo senão ouver castigo, ou
ordem de V. Ex.ª q horrorize estes Povos, os considero em huma guerra sivil, como aqueles de
diferentes naçõens (...)”
71
Contudo, o que está em jogo são interesses pessoais conflitantes,
que não se resolveria com a pesada mão da justiça. Homens que, administrando o pais
para o Rei, possuíam aos olhos dos invejosos mais que um posto, mas uma identidade
com a qual poderia ser reconhecido, temido e amado.
Aquele que estivesse na administração do serviço real devia agir com dureza e,
sendo representante de El Rei, teria que agir com estilo próprio. Sua função não bastava
apenas à administração, mas sobretudo sobreviver no meio de lobos vorazes, que
ameaçavam sempre a honra e o poder dos indivíduos de mando, assim como suas vidas,
como nos conta ..........:
(...) vindo eu de jornada para minha caza cheguei a esta villa de Sam Joam de el Rei
em sete deste mês onde achei carta domece Alferes que me dá parte, que o Capm Jozê
Pinto de Miranda, e Vicente Marques Ferreira, meus inimigos em nome do povo fizeram
hum grande asignado contra mim em que pª fazer numero de povo asignarão, e
mandaram asignar até os meninos da Escolla e outros maiores, pe. emgano, dizendo q
hera para bem commum do povo pª com o asignado requererem abrimento do caminho da
Paraiba nova, q elles dezejam, e outros pr. sua vontade asignarão contra pr. serem meus
inimigos pr. muitas vezes quando carecia os occupre. no que pertence do Real Serviso de
outros nas expediçoens do Sul os fazer marchar finalmente Senhor o que eu tenho
ganhado em ser leal vaçallo, e fiel aos Snres. Generaes, sam inimigos, q me tomaram
comerem vivo, (...).
72
Para ‘manter-se no poder’ reconhecia-se não apenas a prerrogativa de ser como
um leal vassalo de El Rei, mas também, pela acumulação de bens materiais e maneiras
aviltantes no trato do semelhante (autoritarismos ‘necessários’): agressões de todo tipo,
injúrias, calúnias, corrupções administrativas, homicídios, roubos, etc. Um verdadeiro
71
- Códice: SG Caixa n.º 11 doc.: 34, 1781.
72
- Códice: SG Caixa n.º 11 doc.: 35, 1781.
lxxvii
consumo de hábitos violentos era compartilhado pelos mais caros representantes da
administração do monarca, assim como de outras camadas da população:
Assim, também havia o Ignácio Roiz, mulato, malfeitor da região de Tamanduá, na
terra de Goiás, que não sabia se era branco ou preto, matava aqueles que o importunava,
brigava por mulheres, desrespeitava os Igrejas e amedrontava a população. E Manoel de
Souza Machado fazendeiro, homem branco e casado, “ que despois (que) deva ser comde.
deste destrito se pos emopoziçam de não obedecer as ordez q por mim lhe çam
detreminadas e vendo eu a desatençao comq metrata e as Justiças de sua Magestade q Ds
gde. e varios emculsos que tem feito e faz compreijuizo os povos deste destrito e fora dele
dei conta de algos o meu capm. Mor Pedro Teixeira de Carvalho donde me ordena o faça
a vossa ex.ª e na verdade me embarganho q no meu destrº aja omem q não tema as
justiças divinas nem omanaz q viva solto sem temor de Dz (...).
73
Também como o Doutor Lima (Francisco Jozeph de Carvº Lima) que juntamente
com Manoel Gonçalvez de Mattos (seu companheiro no extermínio) foi preso e corria
perigo de morte pelos outros companheiros.
74
No fundo, em toda a parte e sempre, o desejo dos homens nas Minas batia-se de
frente com os limites da justiça impostos pelo soberano português. Pois, nem todos
estavam preocupados apenas com o que de comer e de se manter. Haviam aqueles que se
preocupavam com o futuro e o dia de amanhã dos bens conquistados, das heranças, da
imagem pública a zelar, dos casamentos e uniões feitas, dos amigos e inimigos, enfim.
Pela falta de recursos econômicos e sociais, os interesses pessoais dos diversos grupos
que formavam as Minas, debatiam-se com o exercício da justiça imposto pelo monarca.
Não temos apenas o exemplo dos potentados e administradores da Coroa, mas de
mulheres que - como as negras de tabuleiro - burlavam as leis para se manter nas Minas.
Porém, era uma preocupação que não se revestia em discurso político, por que
todos pensavam e desejavam individualmente (isoladamente), preocupados com a própria
casa e farinha. A ação política pressupõe uma noção maior das diferentes identidades,
73
- Códice: SG Caixa n.º : 11 - doc.: 08, 1781.
74
- Códi e: SG Caixa n.º: 11 doc.: 42, 1781.
lxxviii
cuja convivialidade seja capaz de unir as vontades em uma solidariedade comunitária, que
ultrapasse os desejos egoístas.
Infelizmente, a começar pelos homens de mando, as pessoas estavam preocupadas
o bastante com a farinha e o tabuleiro para pensar além das próprias necessidades. A
preocupação do dia-a-dia bastava à casa de cada um. Era uma vida dupla: uma de ritual
notório e obrigatório, conferindo segurança aos intrépidos administradores da Coroa, e a
outra de circulação subterrânea, conferindo sobrevivência àqueles que viviam á margem
do sistema.
As pessoas sobreviviam e convivam dentro de um sistema de solidariedade
assídua,
onde espreitar o outro, ouvir rumores, mostrar-se e matar faziam parte dos
relacionamentos humanos, da crença de cada um. Dentro deste sistema, a honra adquiria
um valor inestimável, distinguindo os ‘bons’ homens e as ‘boas’ mulheres daquela massa
fervilhante de indivíduos sem destino e de rosto único. A honra definia os espaços sociais
a serem ocupados, assim como seus possuidores.
Era condição humana, dentro das comunidades das Minas Setecentistas, nutrir-se
de rituais de violência, para notoriamente diferenciarem-se os pares. Isto era
perfeitamente concebido nas relações de reciprocidade entre duas ou mais pessoas. Os
grupos de interesses específicos detinham, a seu termo, um poder pessoal e um prestígio
calcado sob o signo diferenciador da violência:
(documento das mulheres ritualmente mortas)
A chave do sucesso, contudo, permanecia ligado ao soberano. Quem detinha
maior poder era o governador, e era com este que os demais grupos se confrontava. Mas o
lxxix
problema não está apenas centrado no governador, e sim na lógica de um controle do
espaço social ao ser conquistado e mais plenamente possível. E é sob o nome e a égide da
violência que muitas vezes os administradores conquistam o seu ‘território’ e a sua fama,
sem muita importância darem ao fato de um dia haver ou não o Juízo final.
O conflito que se estabelece, então, tem sua origem nos pontos principais de
sociabilidade dos diferentes grupos. Na busca de uma maior definição dos mesmos,
dentro das Minas, motivos para exibir a força não faltava, cada qual entreolhando-se e
vigiando os demais. A violência é, pois, condição sine Qua non para afirmação e defesa da
identidade pessoal e social. Já que ela mesma é o instrumento e o veículo, por onde
transitam os diferentes desejos de poder e intolerância, de solidariedade e convivência
dentro das Minas.
Contudo, a tensão se desloca de modo particular aos administradores da Coroa, os
que detém o poder de mando e uma maior respeitabilidade na comunidade das Minas.
Não porque as atitudes destes honrados homens de bem são justas, mas por que talvez
eles detém o poder de vida e morte da população a que pertencem.
Naturalmente, agindo com essa convicção contra as práticas levadas a julgamento
pela justiça da Coroa, eles escapam muitas vezes de serem seus próprios algozes,
consumindo anos de governo na manutenção de um poder que se presta a estar acima dos
demais, acima da própria Coroa.
Assim, as tensões nas Minas existentes no âmbito do poder confirmam e
esclarecem que a presença notável das pessoas do ‘controle’ e das ‘ordens’ são cada vez
mais visadas pelos seus postos e sua conduta, pelos seus modos quase sempre
encarniçados de afrontar seus adversários e seus trejeitos rituais de boas colocações
sociais.
lxxx
É porém, através deste apego à ordem pública, aos postos burocráticos que os
administradores da Coroa, os homens de poder, irão exercer seu controle direto, usando
tanto a dominação administrativa em proveito próprio ( e em defesa de seus bens
materiais e interesses pessoais), como da violência e agressividade como persuasão,
delimitando quais os espaços ‘sagrados’ do poder: as repartições públicas, as Igrejas e a
própria casa.
Claro que esta evolução não se consegue sem resistências. Primeiro dos próprios
grupos de controle no poder, depois por outros que se acham no direito de conseguir a
própria delimitação do território de mando como é o caso dos quilombolas, e mulatos
que se fazem temerários nas vilas e arraiais. De fato, os meios utilizados, variam de
grupos e pessoas, dependendo dos espaços sociais que ocupam.
Porem, esse desejo de autonomia dos diferentes grupos e pessoas sempre irá
coexistir com uma direção autocrática por parte dos administradores do poder, que não
está comprometida necessariamente com as ordens da Coroa, mas em proveito daquele
que está no ‘controle’ administrativo. Um direito de ‘controle’ ironicamente sedido pelo
próprio monarca, e que estritamente limitado aos ‘confiáveis e honrados’, não deixava
margem aos demais membros da comunidade.
(capítulo 2)
Entre a rua e a taverna:
lxxxi
Numa sociedade precária, como as Minas, a fonte de economia muitas vezes
indireta, era necessário adquirir dinheiro de vários modos: impostos pesados e
contribuições variadas, corrupções, prostituição, contrabandos, assassinatos e injúrias. Os
vizinhos normalmente eram os piores inimigos, e quem não tivesse seus aliados,
comparsas estava literalmente em desvantagem.
A concorrência para se manter na esfera do poder público pode estar explicada
pela falta de uma maior dinamização da economia, pois não havia grande fortuna, senão
pública. O serviço na administração de El Rei, concorrida e altamente competitiva,
absorvia todas as outras possibilidades de desenvolvimento da economia, como de uma
melhor estruturação da vida familiar.
Quem escapava deste mundo eram os próprios marginalizados, que a muito custo
tentavam sobreviver numa economia de subsistência, as negras de tabuleiro, os donos de
tavernas e casas de pensão. Para estes a vida era duplamente difícil: falta de dinheiro e
falta de uma política administrativa que os ajudasse a manter num comércio precário.
Aliás, viviam comprometidos com a administração pública, como possíveis causadores de
desordens:
(documentos negras de tabuleiro, tavernas, etc.)
Fontes primárias:
1 - ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO:
1 Listagem da documentação não-encadernada da Capitania de Minas Gerais. Fundo:
Secretaria de Governo.
FUNDO N.º - CAIXA DATA
lxxxii
SG
01 1709-1727
SG 02 1728-1736
SG 03 1737-1744
SG 04 1745-1752
SG 05 1753-1763
SG 06 1764-1769
SG 07 1770-1775
SG 08 1775-1776
SG 09 1777-1779
SG 10 1780-1780
SG 11 1781-1781
SG 12 1782-1782
SG 13 1783-1783
SG 14 1784-1784
SG 15 1785-1785
SG 16 1786-1786
SG 17 1787-1787
SG 18 1788-1788
SG 19 1789-1789
2 Listagem da documentação não-encadernada da Capitania de Minas Gerais. Fundo:
Câmara Municipal de Ouro Preto.
FUNDO N.º CAIXA DATA
CMOP 01 1711-1729
CMOP 02 1730-1730
CMOP 03 1731-1732
CMOP 04 1733-1733
CMOP 05 1733-1733
CMOP 06 1734-1734
CMOP 07 1734-1735
CMOP 08 1736-1736
CMOP 09 1736-1736
CMOP 10 1737-1738
CMOP 11 1738-1740
CMOP 12 1741-1741
CMOP 13 1741-1741
CMOP 14 1742-1743
CMOP 15 1744-1744
CMOP 16 1745-1745
CMOP 17 1745-1745
CMOP 18 1746-1746
CMOP 19 1746-1746
lxxxiii
CMOP 20 1747-1748
CMOP 21 1748-1748
CMOP 22 1749-1749
CMOP 23 1750-1750
Listagem da documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais.
Fundo: Avulsos da Capitania.
FUNDO N.º DATA
AV. C. 01 1711-1739
AV. C. 02 1740-1745
AV. C. 03 1746-1746
AV. C. 04 1747-1750
AV. C. 05 1751-1760
3 - Documentação encadernada da Capitania de Minas Gerias. Fundo: Seção Colonial -
Secretaria de Governo:
FUNDO DATA DESCRIÇÃO
SC 04 1699-17 Cartas do governador ao Rei.
lxxxiv
4 - Revistas do Arquivo Público Mineiro:
- Revista APM. Ano:1899 - IV - Pp.: 0-214.
- Revista APM. Ano:1898 - III. Pp.: 01- 168.
- Revista APM. Ano: 1903 - VIII - Jan | Jun. pp.: 01-98.
- Revista APM. Ano: 1933 - XXIV. Vol.: 01. Pp.: 01-180.
- Revista APM. Ano:1980 - XXXI. Pp.: 01-120.
2 - CASA DO PILAR DE OURO PRETO:
1 - Processos Crimes:
Códice: 445 - Auto de Devassa, n.º
Códice: 446 Auto de Devassa, n.º
Códice: 447 Auto de Devassa, n.º
Códice: 449 Auto de Devassa, n.º
lxxxv
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Império: Questão Nacional e Questão Colonial do Antigo Regime Português. Porto:
Afrontamento, 1993.
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Século das Luzes. V.: 03. São Paulo: Cia, das Letras, 1991.
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