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pela comunidade, ter-se transformado em mulher, em seu modo de se vestir, de
andar, de falar, de cantar, de trabalhar e, também com freqüência, mas não
necessariamente, de amar.[...] Um dos motivos por que, apesar das proibições das
igrejas, o mahu sobreviveu durante o século XIX, foi a cumplicidade dissimulada
dos colonos europeus. Estes procuravam os mahus para contratá-los como
cozinheiras, pajens, lavadeiras, etc., pois nessas tarefas “femininas" o mahu era
tradicionalmente competente e, segundo as opiniões gerais, insubstituíveis. Mas
também, em determinados bailes, cantos e espetáculos públicos, o mahu é
imprescindível, pois certas canções, danças e representações lhe são congênitas,
expressões tradicionais desse ”terceiro sexo“, por assim dizer, diferenciada das
expressões da fêmea e do macho.[...] Ao contrário do que ocorria na tradicional
sociedade polinésia, o mahu é, na maioria, de origem humilde, e existe algo como
uma relação de causa e efeito entre o mahu e os segmentos mais pobres e
marginalizados da sociedade indígena. Se no passado era costume freqüente nas
famílias onde havia vários meninos, os próprios pais decidirem educar um dos filhos
como menina, hoje ninguém é mahu por imposição paterna. Mas, também os produz
a burguesia nativa das ilhas. Eu os vi nas aulas universitárias, misturados com os
demais estudantes, como clientes ou funcionários nos restaurantes, e nas cerimônias
protestantes e católicas aos domingos, engalanados com belos enfeites e penteados,
cantando ou rezando entre os demais paroquianos de classe social alta e média, e
sem atrair olhares mais impertinentes que os meus. [...] Confesso minha admiração
pela absoluta normalidade com que vi circular os mahus nas ruas da moderna
Papeete, ou da remota localidade rural de Atuona, nas Marquesas. O cozinheiro da
estalagem onde estive alojado em Atuona era um mahu. Chama-se Teriki e me
contou que entre os 11 ou 12 anos percebeu que queria ser mulher. Não teve o
menor obstáculo para que seus pais o aceitassem; muito ao contrário, desde o
primeiro momento o ajudaram, vestindo-o e enfeitando-o como mulher. Assegura-
me que nunca foi maltratada ou ridicularizada em Atuona, onde ela e os outros
mahus - 10% dos homens da cidade - levam vida normal. É verdade que, a princípio,
tiveram algumas dificuldades com o simpático padre Labró, da missão católica, mas
Teriki, com outros mahus da ilha, explicou-lhe longamente seu caso e, desde então,
"o pároco os aceitou".[...] Um escritor chamado Cerdan Claude, me garante que, ao
contrário das aparências, já não é tão generalizada a aceitação do mahu na sociedade
polinésia como meus olhos me dizem. Segundo ele, com a modernidade também
chegaram à Polinésia o machismo e a homofobia, principalmente à noite, em que
não é raro ver irromper nas zonas de prostíbulos próximas do porto de Papeete
grupos de valentões à caça dos mahus para hostilizá-los e espancá-los. Cerdan vive
há mais de 30 anos no Taiti e agora escreveu um documentário romanceado sobre o
mundo dos rae rae, palavra que eu acreditava ser sinônimo de mahu, mas ele me
garante que há entre ambos uma "distância metafísica". Sua longa explicação sobre
o que os diferencia me deixa numa confusa treva. [...] Por fim deduzo que, se o
mahu é o homem-mulher de raízes tradicionais da sociedade polinésia, o rae rae
taitiano é, antes, sua expressão urbana e moderna, mais em sintonia com as drag
qüeens feitas sob medida e injetadas de hormônios e de silicones do Ocidente do que
com essa delicada recreação cultural, psicológica e social que é o mahu da tradição
maori. O mahu faz parte integral da sociedade e o rae rae vive em suas margens.
Cerdan Claude parece conhecer muito bem o mundo prostituto e notívago dos rae ,
para quem eles contam seus sofrimentos e anseios e recebem conselhos para
"atravessar os escolhos
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da vida".. [...] Não é nada fácil encontrar os limites que
separam os sexos - minha impressão é que, o que os separa é bem pouca coisa ou
nada - para um leigo como eu. Anne, filho de neozelandês e taitiano, é uma moça
belíssima, de silhueta delgada, que, conta, teve dificuldade com seus pais quando
menino, ocasião em que começou a vestir-se como mulher. Mas agora se dá muito
bem com eles, que não se opõem à sua vida sexual. É difícil imaginar que essa
mocinha risonha foi em certo momento um cavalheiro. Mas foi, e ainda o é em
parte, segundo me conta, com muita graça e sem um mínimo de vulgaridade. Passou
pelos bisturis de um cirurgião que lhe arrebitou o nariz e lhe implantaram os seios
eretos que exibe, mas ainda não mandou trocar o falo e os testículos por uma vagina
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Refere-se aos rochedos que ficam na beira das águas, podendo significar, também, obstáculos.