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Universidade da Amazônia
Papéis Avulsos
de Machado de Assisde Machado de Assis
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
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Papéis Avulsos
de Machado de Assis
ADVERTÊNCIA
Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer
que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A
verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como
passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só
família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa.
Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas
mãos do leitor. Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos, e
outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras
podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com São João e
Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII,
9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria.” Menos a sabedoria, cubro-me com aquela
palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns
deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão
do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-
se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.
Deste modo, venha donde vier o reproche, espero que daí mesmo virá a
absolvição.
MACHADO DE ASSIS.
Outubro de 1882.
O ALIENISTA
CAPÍTULO I
De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates.
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo
médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do
Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro
anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra,
regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu
universo.
Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da
ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com
cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas,
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senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática.
Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se
de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista
reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade,
dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe
filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, — únicas dignas de
preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-
lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência
na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças de Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos
nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou
três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo
da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou
consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um
regime alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de
porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, —
explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico
mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos
recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, — o recanto psíquico, o exame
da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em
semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte
compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de
“louros imarcescíveis”, — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de
intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos
seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas,
tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado
em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o
vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão
Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à câmara
para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das
demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a câmara lhe daria quando a
família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a
vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos
absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa vivendo em
comum, pareceu em si mesma sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à
própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu
marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isto de estudar sempre, sempre, não é bom,
vira o juízo.
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D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe “que estava com
desejos”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe
parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade
que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não
tivesse medo. Dali foi à câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-
a com tanta eloqüência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao
mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento
dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em
Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos
cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário
pagaria dois tostões à câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem
as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O
escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um
dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o
escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja
nada. Quem é que viu agora meter os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado
da licença começou logo a construir a casa. Era na rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí
naquele tempo; tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos
cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé
declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que
não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da
casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a
Benedito VIII, merecendo com esta fraude, aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse,
ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela
primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas
as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro,
correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já
estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a
caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória
do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma
verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três
vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam
como a louvavam; porquanto, — e este fato é um documento altamente honroso para a
sociedade do tempo, — porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um
varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí tinha finalmente uma
casa de Orates.
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CAPÍTULO II
Torrente de loucos
Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares,
desvendou o alienista o mistério do seu coração.
— A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como
tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos
coríntios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada.”
O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os
seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o
remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom
serviço à humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém,
muito maior campo aos meus estudos.
Muito maior, acrescentou o outro.
E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde.
Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados
do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram
os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O padre
Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos
ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que
todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de
tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas
de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz
que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!
— Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que V. Rev.
ma
está vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas
na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas
antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o
alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma
razão humana, e puramente científica, e disso trato...
Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso
do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte cinco anos, supunha-se estrela-d’alva,
abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim
horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro
andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores
à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um
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peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço,
achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores
requintes de crueldade. O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então
começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-
diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para
nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou
Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o
marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes
seguidas:
— Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei;
outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava
trezentas cabeças a um, seiscentas a outros, mil e duzentos e outro, e não acabava
mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que,
chamando-se João de Deus, dizia ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem
o adorasse e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que
não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só
palavra, todas as estrelas se despregariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder
que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar,
menos por caridade do que por interesse científico.
Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que
todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão
Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando esta
idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu
da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela câmara, da distribuição da
comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para
somente cuidar do seu ofício. — A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma
espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual. E o padre
Lopes ria deste pio trocado, — e acrescentava, — com o único fim de dizer também
uma chalaça: — Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu uma vasta
classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais:
os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações
diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de
cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as
tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da
revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie,
antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado
corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um
fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regime, as substâncias
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medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos
seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força da sagacidade e
paciência. Ora, todo esse trabalho levara-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e
mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um
texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar
sem dizer uma só palavra a D. Evarista.
CAPÍTULO III
Deus sabe o que faz!
A ilustre dama, ao fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das
mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava
a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava
nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao
jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que
nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva
como dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...
Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto, — os olhos,
que eram a sua feição mais insinuante, — negros, grandes, lavados de uma luz úmida,
como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que
Simão Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu
aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos,
decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe
atribuiu outra intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado.
O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a
menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo.
Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia
como o óleo do Cântico:
— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio
de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era
alguma coisa mais do que Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do
hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação
interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa
boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de
menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta.
Simão Bacamarte pegou-lhe na mão e sorriu, — um sorriso tanto ou quanto filosófico,
além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento: — “Não há remédio
certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo;
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dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se.” E porque era homem estudioso tomou nota da
observação.
Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto;
limitou-se a dizer ao marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia
de meter-se sozinha pelas estradas.
— Irá com sua tia, redargüiu o alienista.
Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo
nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em
segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.
— Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem
convicção.
— Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário
prestou-me contas. Queres ver?
E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de
algarismos. E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de
ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência.
Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao
ouvido com a mais pérfida das alusões:
— Quem diria que meia dúzia de lunáticos...
D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:
— Deus sabe o que faz!
Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do
boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de
aventura achava-se em Itaguaí, cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva
que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram
tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem
abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência,
nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião,
se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais
do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de
juízo.
— Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.
E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as
duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os
seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso.
Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e
saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.
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CAPÍTULO IV
Uma teoria nova
Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão
Bacamarte estudava por todos os lados uma certa idéia arrojada e nova, própria a
alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa
Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes,
sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais
heróicos.
Um dia de manhã, — eram passadas três semanas, — estando Crispim Soares
ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava
chamar.
— Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o
portador.
Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma triste
notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar
claramente definido, visto insistirem nele os cronistas: Crispim amava a mulher, e,
desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicavam os
monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: “Anda, bem
feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só
para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora agüenta-te; anda, agüenta-te, alma de lacaio,
fracalhão, vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!” — E muitos
outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si
mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu
como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.
Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria
abotoada de circunspeção até o pescoço.
— Estou muito contente, disse ele.
— Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
— Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo
experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é
outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma
experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos
meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar
que é um continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou
compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície
de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de
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exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí; mas, como um raro espírito
que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí, e refugiou-se na
história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates,
que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à sua esquerda, Maomé,
Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de
mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se
admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa,
e até acrescentou sentenciosamente:
— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
— Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares, levantando as mãos ao
céu.
Quanto à idéia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário
extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu
confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e
acrescentou que era “caso de matraca”. Esta expressão não tem equivalente no estilo
moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais vilas, arraiais e povoações da
colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por
meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da câmara e da matriz; — ou por
meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem,
por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De
quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe
incumbiam, — um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo
eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha
inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de
divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, — aquele justamente que
mais se opusera à criação da Casa Verde, — desfrutava a reputação de perfeito
educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas,
tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que
algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando ao peito do vereador;
afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema.
Verdade, verdade; nem todas as instituições do antigo regime mereciam o desprezo do
nosso século.
— Há melhor do que anunciar a minha idéia, é praticá-la, respondeu o alienista à
insinuação do boticário.
E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver disse-lhe que
sim, que era melhor começar pela execução.
— Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.
Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
— Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver
se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos
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definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas
as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia.
O vigário Lopes, a quem se confiou a nova teoria, declarou lisamente que não
chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal
modo colossal que não merecia princípio de execução.
— Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a
razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra
começa. Para que transpor a cerca?
Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção
de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de
suas egrégias entranhas. A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com
tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e
o universo ficavam à beira de uma revolução.
CAPÍTULO V
O terror
Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que
um certo Costa fora recolhido à Casa Verde.
— Impossível!
— Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.
— Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele
fez...
Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos mil
cruzados em boa moeda de el-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo
lhe declarou o tio no testamento, para viver “até o fim do mundo”. Tão depressa
recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a
um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de
cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí seria
enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à
mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo
daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava
no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no
nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que
os menos corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao
contrário, parece que os agasalhava com maior prazer; e mais sublime resignação. Um
dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se
risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: — “Você suporta esse sujeito
para ver se ele lhe paga.” Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe
a dívida. — “Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está
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no céu.” Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato,
atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira. Era
também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe
não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao
devedor.
— Agora espero que... — pensou ele sem concluir a frase.
Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs
em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades
mais acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos,
com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, roía a alma do Costa: era o
conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe
uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo
da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro
logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois
era recolhido à Casa Verde.
Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em
outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e
contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis, — ou mansos, e até
engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre
Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por
que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte
aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência
era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que
intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a
procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe
confidencialmente que este digno homem não estava no perfeito equilíbrio das
faculdades mentais, à vista de modo como dissipara os cabedais que...
— Isso, não! Isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou
tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele.
— Não?
— Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não
era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao
Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe
roubara um boi; imagine como ficou. A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca
escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em
mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n’alma!)
respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a mão
em ar de ameaça, e rogou-lhe esta praga: — “Todo o seu dinheiro não há de durar mais
de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino salamão!” E mostrou o sino
salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.
Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais.
Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria
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esposa do vice-rei e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à
Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.
A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da
população. Ninguém queira acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista
trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro
crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos
barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora
dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a
vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava,
pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do
velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não
as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.
— Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que
motivo...
Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos
amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a
povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o
colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso
dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não
respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados
no fiel sorriso, constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem
desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.
— Há coisa, pensavam os mais desconfiados.
Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios
pessoais. Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter e
chamar toda gente; mas havia mais, — a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da
Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas
viviam abertas, — e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem,
que enriquecera do fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa
magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas
repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa
do que a Casa Verde, mais nobre do que a da câmara. Entre a gente ilustre da
povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava ou se falava ou se
louvava a casa do albardeiro, — um simples albardeiro, Deus do céu!
— Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.
De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim,
com os olhos na casa, namorado, durante um longa hora, até que vinham chamá-lo
para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por
trás dele, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais
econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama
ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas.
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— Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.
A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias saíam a passeio
(jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um
fundo escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até
que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e
invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem
ao padre Lopes, seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do
boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das
pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desse algum tempo. Aquilo de
contemplar a casa...
— Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.
— Não?
— Há de perdoar-me; mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra,
não a admira; de tarde, são os outros que admiram a ele e à obra. — E contou o uso do
albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair da noite.
Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não
conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim,
do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas
como tinha as alegrias próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que
fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-
lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava
ao seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que
estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as
mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer
que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que
impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do
albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando,
examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era
objeto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de Itaguaí, redobrou a expressão,
deu outro relevo às atitudes... Triste! triste, não fez mais do que condenar-se; no dia
seguinte, foi recolhido à Casa Verde.
— A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.,
Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que
se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, — a medo, é verdade, porque
durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, —
duas ou três de consideração, — foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que
só eram admitidos casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se
as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do
próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí
qualquer germe de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e
míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o
produto diário da imaginação pública.
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Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim
Soares, e toda a mais comitiva, — ou quase toda — que algumas semanas antes
partira de Itaguaí. O alienista foi recebê-la, com o boticário, o padre Lopes, os
vereadores, e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos
na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais
sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas,
ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra e
atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-
o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico,
sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona, que
caiu neles, e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos, D. Evarista recebia
os cumprimentos dos amigos, e o préstito punha-se em marcha.
D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o
flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as
ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do padre
Lopes — porque o eminente Bacamarte confiara a mulher ao vigário, e acompanhava-
os a passo meditativo, — D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa,
inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-
reinado anterior; e D. Evarista respondia, entusiasmada que era a coisa mais bela que
podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso, onde ela fora
muitas vezes, e a rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das
Marrecas! Eram mesmo marrecas, — feitas de metal e despejando água pela boca fora.
Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora
muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí e de
mais a mais sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha
belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde...
— A propósito de Casa Verde, disse o padre Lopes escorregando habilmente
para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.
— Sim?
— É verdade. Lá está o Mateus...
— O albardeiro?
— O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...
— Tudo isso doido?
— Ou quase doido, obtemperou o padre.
— Mas então?
O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe de nada, ou
não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa, por falta de
texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse;
um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio,
não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura.
— Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.
Três horas depois cerca de cinqüenta convivas sentavam-se em volta da mesa
de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado
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dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela
era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade,
vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas, segundo a versão modesta de Crispim
Soares, e dois sóis, no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um
tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido da
mulher, que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços
para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas partes das
louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo,
Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e
aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado
pelo mais singular dos reptos. “Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a
mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente
esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D.
Evarista.”
D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a
cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na
verdade, o gesto do alienista pareceu-lhe nublado de suspeitas, de ameaças, e,
provavelmente, de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma
e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico, — ou que o adiasse,
ao menos, para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou
a admitir, consigo mesma, que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão
longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se
todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? E esta idéia fê-la tremer outra
vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito, e,
levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um
improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a idéia relativa ao
nascimento de D. Evarista, ou tê-la-ia encontrado em algum autor que...? Não, senhor;
era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e parecera-lhe adequada a um arroubo
oratório. De resto, suas idéias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava
para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do marquês de Pombal,
em que dizia que esse ministro era o “dragão aspérrimo do Nada”, esmagado pelas
“garras vingadoras do Todo”; e assim outras, mais ou menos fora do comum; gostava
das idéias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...
— Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: — Trata-se de um caso
de lesão cerebral; fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...
D. Evarista ficou estupefada quando soube, três dias depois, que o Martim Brito
fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéias tão bonitas! As duas senhoras
atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente a
declaração do moço fora audaciosa demais.
Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José
Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das Cambraias, folgazão emérito, o
escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava
são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam
acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos,
alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem
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podia, emigrava. Um desses fugitivos, chegou a ser preso a duzentos passos da vila.
Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não
cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma
distância de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma
senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a
vocação das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos
dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava
diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que,
uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele,
tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado,
teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada
seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.
— Devemos acabar com isto!
— Não pode continuar!
— Abaixo a tirania!
— Déspota! violento! Golias!
Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos
gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A idéia de uma petição ao governo,
para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças,
antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação.
Note-se, — e essa é uma das laudas mais puras desta sombria história, — note-se que
o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu
crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam;
mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava:
— é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia
em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele
uma demanda, o Coelho.
— Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio.
E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente
ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da
vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente
caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que,
dizendo-se taciturnos, ou alegando andar com pressa, mal o viam de longe dobravam
as esquinas, entravam nas lojas etc. Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra
comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que
sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O padre Lopes, que
cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que
não declamasse e emendasse este trecho:
La bocca sollevò dal fiero pasto
Quel seccatore... mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto
era uma oração em latim.
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CAPÍTULO VI
A rebelião
Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma
representação à câmara. A câmara recusou-se a aceitá-la, declarando que a Casa
Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação
administrativa, menos ainda por movimentos de rua.
— Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.
A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a
bandeira da rebelião, e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir
de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis,
algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da
Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito da
ganância, visto que os loucos, ou supostos tais, não eram tratados de graça: as
famílias, e em falta delas a câmara, pagavam ao alienista...
— É falso, interrompeu o presidente.
— Falso?
— Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico, em que
nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do
estipêndio votado pela câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.
A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos
rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à
ciência o instigava; e para demonstrar o erro era preciso alguma coisa mais do que
arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a câmara. O
barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de
um mandato público, e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa
Verde, — “essa Bastilha da razão humana”, — expressão que ouvira a um poeta local,
e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e a um sinal, todos saíram com ele.
Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à
luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal, um dos vereadores que apoiara o presidente,
ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde, — “Bastilha da razão
humana”, — achou-a tão elegante, que mudou de parecer. Disse que entendia de bom
aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente,
indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta
reflexão:
— Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos
juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?
Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda
por algum tempo, com prudência, mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o
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presidente pediu-lhe que, ao mesmo, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei,
não aventasse as suas idéias na rua, para não dar corpo e alma à rebelião, que era por
ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra:
Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação, reservando-se ao direito de pedir
pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo, namorado: — Bastilha
da razão humana!
Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que
acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu
o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica, — e o movimento ficou célebre com o nome
de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita, — visto que muita gente, ou por
medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime,
ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde, — dada a
diferença de Paris a Itaguaí, — podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.
D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lhe uma de
suas crias. Ela provava nessa ocasião um vestido de seda, — um dos trinta e sete que
trouxera do Rio de Janeiro, — e não quis crer.
— Há de ser alguma patuscada, dizia ela mudando a posição de um alfinete.
Benedita, vê se a barra está boa.
— Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um
bocadinho. Assim. Está muito boa.
— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr.
Bacamarte! o tirano! dizia o moleque assustado.
— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a
costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio
assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e...
— Morra o Dr. Bacamarte! morra o tirano! uivavam fora trezentas vozes. Era a
rebelião que desembocava na rua Nova.
D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo,
não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do
fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de
triunfo, um certo movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao
ver que a realidade vinha jurar por ele.
— Morra o alienista! — bradavam as vozes mais perto.
D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar
com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido
estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de
Averróis; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam
do teto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos
mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à
terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.
— Você não ouve esses gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.
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O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele
compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou
o livro, e, a passo firme e tranqüilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do
volume desconcertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte
cuidou de corrigir este defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que
se recolhesse, que não fizesse nada.
— Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...
Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o
fosse, intimava-lhe em nome da vida que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça,
obediente e chorosa.
— Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.
O alienista caminhou para a varanda da frente, e chegou ali no momento em que
a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças
rutilantes de civismo e sombrias de desespero. — Morra! morra! bradaram de todos os
lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal
pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então,
o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os
amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da
paciência do povo como fizera até então.
— Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que
pedis.
— Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa
Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.
— Não entendo.
— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio,
capricho, ganância...
O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos
olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu
e respondeu:
— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade.
Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se
quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se
exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de
vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não faço,
porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos, nem a rebeldes.
Disse isto o alienista, e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta
energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando
o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se
lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapéu, convidou os
amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi
nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo;
pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde, e derrocando a influência do alienista,
chegaria a apoderar-se da câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se
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senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído
nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter nenhuma
posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais, fora
tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo.
Infelizmente, a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo
que o percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quis bradar-lhes: — Canalhas!
covardes! — mas conteve-se, e rompeu deste modo:
— Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos
dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e
irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água,
talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.
A multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em
derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope, e ameaçava
arrasar a Casa Verde.
— Vamos! bradou Porfírio agitando o chapéu.
— Vamos! repetiram todos.
Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche,
entrava na rua Nova.
CAPÍTULO VII
O inesperado
Chegados os dragões em frente aos Canjicas, houve um instante de
estupefação; os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra
eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão
intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse
inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu
nestes termos alevantados:
— Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los;
mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e
com eles a salvação de Itaguaí.
Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural.
Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na
abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo,
mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou
furiosa; alguns, trepando às janelas das casas, ou correndo pela rua fora, conseguiram
escapar; mas a maioria ficou, bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do
barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente, quando um terço dos dragões, —
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qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram, — passou subitamente para
o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo
que lançou desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem
de atacar os seus próprios camaradas, e, um a um, foram passando para eles, de modo
que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão
estava de um lado, com alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava
de morte. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.
A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas
próximas, e guiou para a câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao
vice-rei, a Itaguaí, ao “ilustre Porfírio”. Este ia na frente, empunhando tão destramente a
espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória
cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade do governo começava a enrijar-
lhe os quadris.
Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa
capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei
para que se mandasse dar um mês de soldo aos dragões, “cujo denodo salvou Itaguaí
do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes”. Esta frase foi proposta por
Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara
os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos
vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O presidente não
desanimou: — Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos
a serviço de Sua Majestade e do povo. — Sebastião Freitas insinuou que melhor se
poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de
fora, mas toda a câmara rejeitou esse alvitre.
Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na
sala da vereança e intimava à câmara a sua queda. A câmara não resistiu, entregou-se,
e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o
governo da vila, em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não
desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia
dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O
barbeiro veio à janela, e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou,
aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de — “Protetor da vila em nome de
Sua Majestade e do povo”. Expediram-se logo várias ordens importantes,
comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com
muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente, uma
proclamação ao povo, curta, mas enérgica:
“Itaguaienses!
“Uma câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua
Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos,
fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver
ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo,
até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço.
Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em
restaurar a paz e a fazenda pública, tão desbaratada pela câmara que ora findou às
vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.
O protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo
PORFÍRIO CAETANO DAS NEVES.”
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Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa
Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do
barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves
sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas
senhoras, sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato
intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a vila respirou com uma
esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros, e destruído
o terrível cárcere.
O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de
esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em
defesa do ilustre Porfírio. Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na
ação do governo. O barbeiro fez expedir um ato declarando feriado aquele dia, e
entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão
conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o
padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.
— Em todo o caso, V. Rev.
ma
não se alistará entre os inimigos do governo?
disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.
Ao que o padre Lopes respondeu, sem responder:
— Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?
O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os
principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não
aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber
as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar
Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.
CAPÍTULO VIII
As angústias do boticário
Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o
barbeiro saiu do palácio do governo, — foi a denominação dada à casa da câmara, —
com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não
ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de
que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.
Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do
alienista. — Vai prendê-lo, pensou ele. E redobraram-se as angústias. Com efeito, a
tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição
possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: — a privança do
alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a
simples notícia de sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a
unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa,
senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de
Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do
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alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo
Catão, é verdade, sed victa Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras
habituais do padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a
própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um
miserável egoísta; minha situação é outra. Insistindo, porém, a mulher, não achou
Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se
na cama.
— Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte disse-lhe a mulher no dia seguinte à
cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.
— Vai prendê-lo, pensou o boticário.
Uma idéia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam
também buscá-lo a ele, na qualidade de cúmplice. Esta idéia foi o melhor dos
vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de
todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são
unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do
alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam, com muita perspicácia,
o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao
palácio do governo, não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não
ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito
desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe
ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista,
compreenderam toda a importância da adesão nova, e trataram a Crispim Soares com
apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à
Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos,
elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que
o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara noutra coisa, que isso mesmo
mandaria declarar a Sua Majestade.
CAPÍTULO IX
Dois lindos casos
Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha
meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o
não constrangesse a assistir pessoalmente a destruição da Casa Verde.
— Engana-se V. S.ª, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em
atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a
maior parte dos doidos ali metidos está em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece
que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as
questões científicas. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos
das mãos da câmara dissolvida. Há, entretanto, — por força que há de haver um alvitre
intermédio que restitua o sossego ao espírito público.
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O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra
coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...
— O pasmo de V. S.ª, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à
grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade, que lhe dá
em tal caso legítima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este,
com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos
integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma
câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde;
mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a
pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é
matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não deve,
não quer dispensar o concurso de V. S.ª. O que lhe pede é que de certa maneira demos
alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres
aceitáveis, se V. S.ª não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles
enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc.
Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.
— Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão
Bacamarte depois de uns três minutos.
O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e
cinco feridos.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.
E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom, mas que ele ia catar
algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas
acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da
câmara, etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo
principalmente no descrédito em que a câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo
governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia
fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não
já com a simpatia, senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí, e
seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele
grande homem, que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível
como um deus de pedra.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar
o barbeiro até à porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de
duplicidade e descaramento desse barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o
aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos. —
Dois lindos casos!
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o
barbeiro à porta.
O alienista espiou pela janela, e ainda ouviu este resto de pequena fala do barbeiro às
trinta pessoas que o aclamavam:
— ... porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das
vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos
recomendo ordem. A ordem, meus amigos, é a base do governo.
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram as trinta vozes, agitando seus chapéus.
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Dois lindos casos! murmurou o alienista.
CAPÍTULO X
A restauração
Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta
aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia
reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava
“vendido ao ouro de Simão Bacamarte”, frase que congregou em torno de João Pina a
gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival da navalha à testa da
insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande
golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista.
João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que o ato de Porfírio era um
simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía
Porfírio ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como
achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros
atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir;
acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e
onde outro barbeiro falara de uma câmara corrupta, falou este de “um intruso eivado
das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua
Majestade”, etc.
Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O
alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio, e bem assim a de uns
cinqüenta e tantos indivíduos, que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses,
como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam
das feridas apanhadas na primeira revolução.
Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de
Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder
do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus
lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O
alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador,
entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao
boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares
à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele, ainda na
véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o
dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a rebelião triunfante, e deu como
prova a ausência de nenhum outro ato seu, acrescentando que voltara logo à cama,
doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror
também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais
caracterizados.
Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade
com que a câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha
declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos
Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do
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alienista por boca do secretário da câmara, entusiasmado de tamanha energia. Simão
Bacamarte começou por meter o secretário na Casa Verde, e foi dali à câmara, à qual
declarou que o presidente estava padecendo da “demência dos touros”, um gênero que
ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A câmara a princípio
hesitou, mas acabou cedendo.
Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença
ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor
ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores
de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da
vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé
enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas
e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural
e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo
para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade
mental. Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura,
e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado
da câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão
esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse
ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim
secreto da insinuação à câmara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre dele;
mas, conquanto seja certo que o ouvires viu prosperar o negócio depois da nova
ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão
de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre
médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação da Casa Verde de
todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a
opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa,
nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo
caso, é uma simples conjetura; de positivo nada há.
— Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós
tivéssemos apoiado os Canjicas...
Um dia de manhã, — dia em que a câmara devia dar um grande baile, — a vila
inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na
Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era
verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O padre Lopes correu
ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.
— Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A
modéstia com que ela vivera em ambos matrimônios não podia conciliar-se com o furor
das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio
de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre
esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos
das damas; se uma senhora a visitava, na minha ausência, antes de me dizer o objeto
da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia,
creio que V. Rev.
ma
há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a
imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite,
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porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário
que levaria ao baile da câmara municipal; só hesitava entre um colar de granada e
outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou
outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta, ao almoço; pouco depois de jantar fui
achá-la calada e pensativa. — Que tem? perguntei-lhe. — Queria levar o colar de
granada, mas acho o de safira tão bonito! — Pois leve o de safira. — Ah! mas onde fica
o de granada? — Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta
noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-
a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era evidente a
demência: recolhi-a logo.
O padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O
alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de “mania
suntuária”, não incurável, e em todo caso digno de estudo.
— Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.
E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções,
desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a
própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o
direito de resistir-lhe, — menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.
CAPÍTULO XI
O assombro de Itaguaí
E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber
que um dia os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
— Todos?
— Todos.
— É impossível; alguns sim, mas todos...
— Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à câmara.
De fato o alienista oficiara à câmara expondo: — 1º, que verificara das
estatísticas da vila e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam
aposentados naquele estabelecimento; 2º, que esta deslocação da população levara-o
a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da
razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto;
3º, que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a
verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como
normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos
os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º, que, à vista disso, declarava à
câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas
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que se achassem nas condições agora expostas; 5º, que, tratando de descobrir a
verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da
câmara igual dedicação; 6º, que restituía à câmara e aos particulares a soma do
estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte
efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a câmara mandaria verificar
nos livros e arcas da Casa Verde.
O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos
dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão
fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso
propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.
E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de
Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de
experiências futuras.
CAPÍTULO XII
O final do § 4o.
Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto
nos antigos eixos. Reinava a ordem, a câmara exercia outra vez o governo, sem
nenhuma pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus
lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo “provado tudo”,
como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a
Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às
calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila
implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido,
atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é
que nasceu o nosso adágio: — ladrão que furta a ladrão, tem cem anos de perdão; —
adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.
Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento
ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que
ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo
reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma
especial manifestação e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e
jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera idéia de separar-se do
consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer
ressentimento de amor-próprio, e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.
Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do
ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de
revolução, e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade,
estendeu-lhe a mão de amigo velho.
— É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.
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Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros,
especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os
seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um dos seus discursos em
que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico —
“cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos
os demais espíritos da terra”.
— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda não me
arrependo de o haver restituído à liberdade.
Entretanto, a câmara, que respondera ao ofício de Simão Bacamarte, com a
ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4º, tratou enfim de
legislar sobre ele. Foi adotada, sem debate, uma postura, autorizando o alienista a
agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio
das faculdades mentais. E porque a experiência da câmara tivesse sido dolorosa,
estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para
o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a câmara, antes mesmo
daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos
de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum
caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita,
votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O
argumento principal deste magistrado é que a câmara, legislando sobre uma
experiência científica, não podia excluir as pessoas de seus membros das
conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira esta duas palavras,
romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega;
este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.
— A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina
do espírito humano.
Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão
dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-
los à Casa Verde; a cláusula porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do
perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão,
cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos
colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à
câmara que lho entregasse. A câmara, sentindo-se ainda agravada pelo proceder do
vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou unanimemente a entrega.
Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para
recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do
passado e do presente. O padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois
da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o
consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e
declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um
sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa notícia, esqueceu os motivos da
dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte e participar-lhe o perigo que corria.
Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos
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lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa fé, o respeito
humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.
— Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o
nosso Crispim.
Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as
orelhas do alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso
perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita
atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-
los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza
moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:
— O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua
mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.
A proposta colocou o pobre boticário na situação de asno de Buridan. Queria
viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo,
até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga
e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos
agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.
Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão
Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando,
interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo, levava-o com a mesma alegria
com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a
teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia, conseguiu meter
na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo, que o não fez senão
depois de estudar minuciosamente todos os seus atos, e interrogar os principais da vila.
Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi
o que se deu com um advogado, em que reconheceu um tal conjunto de qualidades
morais e mentais, que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente,
desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre,
demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado
o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.
— Então, parece-lhe...?
— Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a
causa.
O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e
acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os
papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que
verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz, e a herança
passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade. Mas
nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum
tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente,
reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão
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melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-
lhe, todavia, um dos melhores cubículos.
Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto
é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de
verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes,
outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam
contra a teoria; e alguns tentaram compelir a câmara a cassar a licença. A câmara,
porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e se cassasse a licença, vê-lo-
ia na rua, e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos
vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.
Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente
ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, dinheiro e influência na
Corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a câmara e o alienista. O
barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir
as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência
da opinião dos seus mesmos sequazes; que a câmara entendera autorizar a nova
experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer
ao vice-rei, caso a mesma câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego
de um recurso que ele viu falhar em suas mãos, e isso a troco de mortes e ferimentos
que seriam o seu eterno remorso.
— O que é que está me dizendo? perguntou o alienista quando um agente
secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila.
Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde. — Preso por ter cão,
preso por não ter cão! exclamou o infeliz.
Chegou o fim do prazo, a câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses
para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense
é de tal ordem, e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de
exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais
belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.
CAPÍTULO XIII
Plus ultra!
Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir
enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los.
Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas
pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.
Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os
loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia
às outras, Simão Bacamarte cuidou de atacar de frente a qualidade predominante.
Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o
sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas, — graduava-as, conforme o
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estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma
casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala para restituir a razão ao alienado; em
outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às
distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão
Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve de mandar correr matraca,
para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.
— Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo
remédio.
Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não
sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da
matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário na
Academia dos Encobertos estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e
secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado rei Dom João V, e
implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O
governo de Lisboa recusou o diploma; mas representando o alienista que o não pedia
como prêmio honorífico ou distinção legítima, e somente como um meio terapêutico
para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o
fez sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo
do alienado. Foi outro santo remédio.
— Realmente, é admirável! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e
enfunada dos dois ex-dementes.
Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada
no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era
certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então, o alienista
atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma
uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.
No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O
vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e eqüidade, teve a facilidade de
perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve
uma boa interpretação, corrompendo os juizes, e embaçando os outros herdeiros. A
sinceridade do alienista manifestou-se neste lance; confessou ingenuamente que não
teve parte na cura: foi simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com
o padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o
grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a
incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a
liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe
coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.
— Por que é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ela todos os dias.
Respondiam-lhe ora uma coisa, oura outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A
digna matrona não pode conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera
escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas:
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— Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de
ungüentos falsificados e podres... Ah! tratante!...
Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação
contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava
enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.
Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da
Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus Ultra!
era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o
contentava ter estabelecido em Itaguaí o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre,
ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si
mesma, outra e novíssima teoria.
— Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade.
Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica
biblioteca dos domínios ultramarino de Sua Majestade. Um amplo chambre de
damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma
Universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira
cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da ciência.
Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao
vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples
e modesto latão. Vede a diferença: — só se lhe notava luxo naquilo que era de origem
científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza,
virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.
Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca,
metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema
da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo
esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada,
perguntou ele a si:
— Mas deveras estariam ele doidos, e foram curados por mim, — ou o que
pareceu cura, não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem
organizados que ele acabara de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia
ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma
faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.
Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias,
uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e
pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar
esta verdade: — não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto.
Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o
primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro
concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não
vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?
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A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses
como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o
homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e
fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave
claridade.
— Sim, há de ser isso, pensou ele.
Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio
mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a
tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que
podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a
concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho
de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
— Nenhum defeito?
— Nenhum, disse em coro a assembléia.
— Nenhum vício?
— Nada.
— Tudo perfeito?
— Tudo.
— Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim esta
superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos
faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.
A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o padre Lopes explicou tudo
com este conceito digno de um observador:
— Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos
nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: — a
modéstia.
Era decisivo, Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e
ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a
mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e
equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
— A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro
exemplo sou eu. Reuno em mim mesmo a teoria e a prática.
— Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.
Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os
ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa
Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu
dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar
nada. Alguns chegaram ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além
dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o
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alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é
atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande
homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.
TEORIA DO MEDALHÃO.
Diálogo
— Estás com sono?
— Não, senhor.
— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
— Onze.
— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta,
chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854,
vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
— Papai...
— Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha
aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um
anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na
imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas
carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do
nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos
vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que
te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade
comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados
inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de
outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente,
com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
— Sim, senhor.
— Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice,
assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os
outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o
que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.
— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?
— Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o
sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como
vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti.
Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o
ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo
que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do
compasso. O sábio que disse: “a gravidade é um mistério do corpo”, definiu a
compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que,
embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo,
tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de
quarenta e cinco anos...
— É verdade, por que quarenta e cinco anos?
— Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data
normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se
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entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre
os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta
anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares.
Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
— Entendo.
— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o
cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não
as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator
defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o
defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com
as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa
habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
— Mas quem lhe diz que eu...
— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental,
conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes
numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto
indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da
memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender
francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das
dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma
eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade,
venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito.
As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas
irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente
delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.
— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.
— Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de
retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios
aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma
mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da
ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem
repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
— Como assim, se também é um exercício corporal?
— Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se
te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas
mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do
mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com
a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias, e o
espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou
qual atividade.
— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?
— Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que
toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou
por qualquer outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não
obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo
às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai
ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia,
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de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os
leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis
cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente
saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses — suponhamos dois
anos, — reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao
equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das
idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem
cores de clarim...
— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...
— Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna,
por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras,
que românticos, clássicos e realistas empregam sem dosar, quando precisam delas.
Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de
bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de
agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo
direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação
intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício:
seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não
passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas
consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas
têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora,
mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa
arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma
hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma
questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito
pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas
prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito
reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da
aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios.
Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente:
Antes das leis, reformemos os costumes! — E esta frase sintética, transparente,
límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos
espíritos como um jorro súbito de sol.
— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos
modernos.
— Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi
de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar
do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do
movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas
do teu tempo. E de duas uma: — ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta
anos, ou conservar-se-ão novas; no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no
segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De
outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa
terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência,
nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de
inocular idéias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a
assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a
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empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira esperta e
afreguesada, — que, segundo um poeta clássico,
Quanto mais pano tem, mais poupa o corte,
Menos monte alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é
que não seria científico.
— Upa! que a profissão é difícil!
— E ainda não chegamos ao cabo.
— Vamos a ele.
— Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona
loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos,
almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o
atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações
heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão
tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros,
compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode
ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes
põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um
agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as
irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas.
Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume,
contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem
outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si,
que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais.
Percebeste?
— Percebi.
— Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra.
Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a
amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem
amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção,
principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em
semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou
o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa
pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu
recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros,
reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca
do progresso” e o “suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes” da miséria. No caso de
que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um
discurso cheio de gratidão e um copo d’água: é uso antigo, razoável e honesto.
Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas
pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo
que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em todo
o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los
de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual
escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os
qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
— Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.
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— Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos,
paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não
penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás
cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que
estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura
obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões,
irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos
desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o
anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E
ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e
metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
— E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits
da vida?
— Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.
— Nem política?
— Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais.
Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou
ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses
vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico.
— Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?
— Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria
dos discursos, tens à escolha: — ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas
prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela
chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a
metafísica; — é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a
7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido
tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse
ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente
os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar
e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado,
rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não
transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
— Farei o que puder. Nenhuma imaginação?
— Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.
— Nenhuma filosofia?
— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Filosofia da
história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-
te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a
tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.
— Também ao riso?
— Como ao riso?
— Ficar sério, muito sério...
— Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem
eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um
grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, — e este ponto é
melindroso...
— Diga...
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— Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca,
cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano,
transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa
antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos,
nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o
sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
— Meia-noite.
— Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás
definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu
filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli.
Vamos dormir.
A CHINELA TURCA.
Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata
que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai
que é de noite, e passa de nove horas. Duarte estremeceu, e tinha duas razões para
isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos sujeitos
do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os
mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis que este nosso clima, tão
avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração deixando-
se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração
em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia,
recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a
caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as coisas não era de admirar que,
antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a
chegada de Lopo Alves era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da família,
companheiro de seu finado pai no exército, tinha jus o major a todos os respeitos.
Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância
atenuante; o major era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de
necessidade, era um voto seguro.
Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um
rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio à chegada do
bacharel.
— Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora? perguntou Duarte,
dando à voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelo interesse que pelo
bom-tom.
— Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo
por baixo do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sair?
— Vou ao Rio Comprido.
— Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha mulher e as pequenas já lá devem
estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não?
Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo
bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse:
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— Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz... fiz um
drama.
— Um drama! exclamou o bacharel.
— Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço militar
não foi remédio que me curasse, foi um paliativo. A doença regressou com a força dos
primeiros tempos. Já agora não há mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente
ajudando a natureza.
Duarte recordou-se de que efetivamente o major falava noutro tempo de alguns
discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa soma de artigos que escrevera acerca
das campanhas do Rio da Prata. Havia porém muitos anos que Lopo Alves deixara em
paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse,
sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se
soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira à representação de uma
peça do gênero ultra-romântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a idéia de
afrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nestas minuciosidades necessárias, e
o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão dramática do militar. Nem o soube,
nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou
calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estréia, prometeu
que o recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e
empalideceu quando viu o major, trêmulo de bem-aventurança, abrir o rolo que trazia
consigo.
— Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e aceito o obséquio
que me promete; antes dele, porém, desejo outro. Sei que é inteligente e lido; há de me
dizer francamente o que pensa deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e
franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.
Duarte procurou desviar aquele cálice de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível
alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinqüenta
e cinco minutos, enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do
manuscrito.
— Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são
bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou
com elas. Não acha melhor irmos para o seu gabinete?
Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do
hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não
deixasse entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-
se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou
o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra
para ir mais depressa ao termo.
O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no
ouvinte. Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor.
O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles, e até o estilo dos mais acabados
tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção,
quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra
seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma
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criança roubada à família, um envenenamento, dois embuçados, a ponta de um punhal
e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-
se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser
preso no quinto, e matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do embuçado,
havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete anos, um
monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento.
Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte
mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito
conjeturar que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como
um benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha
ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais
espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a
sua espessura a grenha de Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que
ornavam a formosa cabeça de Cecília; via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada,
o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no
salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar
dos passos, e o ruge-ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de
Lopo Alves ia desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma
grande convicção.
Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara
desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra
vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus,
e saía arrebatadamente do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a
voz e os movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico
do dramaturgo na pedra da calçada.
Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido.
— Por que não fêz ele isso a mais tempo? disse o rapaz suspirando.
O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e sair pela janela fora, em demanda
do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veio anunciar-lhe a visita de um
homem baixo e gordo.
— A esta hora? exclamou Duarte.
— A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta ou a
qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um
delito grave.
— Um delito!
— Creio que me conhece...
— Não tenho essa honra.
— Sou empregado na polícia.
— Mas que tenho eu com o senhor? de que delito se trata?
— Pouca coisa: um furto. O senhor é acusado de ter subtraído uma chinela
turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há chinela e
chinela. Tudo depende das circunstâncias.
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O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel uns olhos
de inquisidor. Duarte não sabia sequer da existência do objeto roubado. Concluiu que
havia equívoco de nome, e não se zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de
algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado
da polícia, acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a
semelhante hora.
— Há de perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela de que se
trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a
tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A
dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no
Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca
daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu
sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é
que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.
Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à janela; Duarte suspeitou que
fosse um doido ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro
de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que lhe lançaram as mãos e o
levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos
desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o meteram à força. Já lá estava o
homem baixo e gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram
sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à
desfilada.
— Ah! ah! disse o homem gordo. Com que então pensava que podia
impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com elas... e rir
ainda por cima do gênero humano.
Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio.
Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria
casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se num cipoal de conjeturas, enquanto o
carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma
observação.
— Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho que a polícia...
— Nós não somos da polícia, interrompeu friamente o homem magro.
— Ah!
— Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu fazemos um terno.
Ora, terno não é melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal.
Provavelmente não me entendeu?
— Não, senhor.
— Há de entender logo mais.
Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e deixou
correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavalos.
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— Chegamos, disse o homem gordo.
Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e ofereceu-o ao bacharel para que
tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais
prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu,
daí a pouco, ranger uma porta; duas pessoas, — provavelmente as mesmas que o
acompanharam no carro, — seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade
de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas,
palavras soltas, frases truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e
destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais.
Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência. Era
talvez sobreposse a variedade dos adornos; contudo, a pessoa que os escolhera devia
ter gosto apurado.
Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, — a cópia infinita de objetos que
enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de
ânimo ao bacharel; não era provável que ali morassem ladrões.
Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Esta
circunstância trouxe à memória do rapaz o principio da aventura e o roubo da chinela.
Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora mais que
problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjeturas, pareceu-lhe achar uma
explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração
de Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto
deviam ligar-se naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor
que o terno; um casal é o ideal.
— Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado?
Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um
padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre
atravessou lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra
porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a
porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição
baralhou totalmente as idéias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo,
entretanto, de cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo
aberta e entrou por ela outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o
convidou a segui-lo. Duarte não opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e,
atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que
só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam sobre uma
mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cinqüenta
e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e na cara.
— Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.
— Não, senhor.
— Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de
qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar que o roubo da chinela foi um
simples pretexto...
— Oh! decerto! interrompeu Duarte.
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— Um simples pretexto, continuou o velho, para trazê-lo a esta nossa casa. A
chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a
chinela.
O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não
tinha nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém,
turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e,
reunindo todas as forças, perguntou resolutamente:
— Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou
fazendo nesta casa?
— Vai sabê-lo, respondeu tranqüilamente o velho.
A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte,
convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era
realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé,
estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas letras bordadas a ouro.
— Chinela de criança, não lhe parece? disse o velho.
— Suponho que sim.
— Pois supõe mal; é chinela de moça.
— Será; nada tenho com isso.
— Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona.
— Casar! exclamou Duarte.
— Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.
Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o
reposteiro e deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era
mulher, era uma sílfide, uma visão de poeta, uma criatura divina.
Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que
buscavam o céu ou pareciam viver dele. Os cabelos, deleixadamente penteados,
faziam-lhe em volta da cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não
mártir, porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de bem-
aventurança, como raras vezes há de ter tido a terra.
Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo,
cujas formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação.
Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em
lances daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez
uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que
a aventura começou a parecer muito menos aterradora.
— Meu caro doutor, esta é a noiva.
A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.
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— Três coisas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o
velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir
droga do Levante...
— Veneno! interrompeu Duarte.
— Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.
Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe
saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou
cair.
— O senhor, continuou o velho, tem uma fortunazinha de cento e cinqüenta
contos. Esta pérola será a sua herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre.
O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes;
entrou e foi direto ao moço, engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou
qualquer outro profeta menor; travou-lhe da mão e disse:
— Levante-se!
— Não! Não quero! Não me casarei!
— E isto? disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola.
— Mas então é um assassinato?
— É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a
droga. Escolha!
Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um
contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:
— Quer fugir?
— Oh! Sim! exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os
olhos em que pôs toda a vida que lhe restava.
— Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem
medo.
— Oh! Padre! disse baixinho o bacharel.
— Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada.
A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio
claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e
atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a queda foi
pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim,
tomou-lhe o passo.
— Que é isso? perguntou ele rindo.
Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos
peitos do homem e deitou a correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas
um grande abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo.
Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando
canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-
lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco;
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tinha uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes
esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos.
Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa, que havia no
meio do último jardim que atravessara.
Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor não o acompanhara até ali.
Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe
faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.
Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Comércio, pareceu não o ter
visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo
Alves.
O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente
exíguas, exclamou repentinamente:
— Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro.
Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou
à larga.
— Então! Que tal lhe pareceu?
— Ah! excelente! Respondeu o bacharel, levantando-se.
— Paixões fortes, não?
— Fortíssimas. Que horas são?
— Deram duas agora mesmo.
Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi
até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um
quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e
fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio
por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me
ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.
NA ARCA.
Três capítulos inéditos do Genêsis
Capítulo A
1. — Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: — “Vamos sair da arca, segundo
a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animais. A arca tem de parai
no cabeço de uma montanha; desceremos a ela.
2. — “Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi dar cabo de
toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens. Faze uma arca de
madeira; entra nela tu, tua mulher e teus filhos.
3. — “E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animais.
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4. — “Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor. e todos os homens pereceram, e
fecharam-se as cataratas dó céu; tornaremos a descer à terra, e a viver no seio da paz
e da concórdia.”
5. — Isto disse Noé, e os filhos de Noé muito se alegraram de ouvir as palavras de seu
pai; e Noé os deixou sós, retirando-se a uma das câmaras da arca.
6. — Então Jafé levantou a voz e disse: — “Aprazível vida vai ser a nossa. A figueira
nos dará o fruto, a ovelha a lã, a vaca o leite, o sol a claridade e a noite a tenda.
7. — “Porquanto seremos únicos na terra, e toda a terra será nossa, e ninguém
perturbará a paz de uma família, poupada do castigo que feriu a todos os homens.
8. — “Para todo o sempre.” Então Sem, ouvindo falar o irmão, disse: — “Tenho uma
idéia”. Ao que Jafé e Cam responderam:— “Vejamos a tua idéia, Sem.”
9. — E Sem falou a voz de seu coração, dizendo: “Meu pai tem a sua família; cada um
de nós tem a sua família; a terra é de sobra; podíamos viver em tendas separadas.
Cada um de nós fará o que lhe parecer melhor: e plantará, caçará, ou lavrará a
madeira, ou fiará o linho.”
10. — E respondeu Jafé: — “Acho bem lembrada a idéia de Sem; podemos viver em
tendas separadas. A arca vai descer ao cabeço de uma montanha; meu pai e Cam
descerão para o lado do nascente; eu e Sem para o lado do poente,. Sem ocupará
duzentos côvados de terra, eu outros duzentos.”
11. — Mas dizendo Sem: — “Acho pouco duzentos côvados” —, retorquiu Jafé: “Pois
sejam quinhentos cada um. Entre a minha terra e a tua haverá um rio, que as divida no
meio, para se não confundir a propriedade. Eu fico na margem esquerda e tu na
margem direita;
12. — “E a minha terra se chamará a terra de Jafé, e a tua se chamará a terra de Sem;
e iremos às tendas um do outro, e partiremos o pão da alegria e da concórdia.”
13. — E tendo Sem aprovado a divisão, perguntou a Jafé: “Mas o rio? a quem
pertencerá a água do rio, a corrente?
14. — “Porque nós possuímos as margens, e não estatuímos nada a respeito da
corrente.” E respondeu Jafé, que podiam pescar de um e outro lado; mas, divergindo o
irmão, propôs dividir o rio em duas partes, fincando um pau no meio. Jafé, porém, disse
que a corrente levaria o pau.
15. — E tendo Jafé respondido assim, acudiu o irmão: “Pois que te não serve o pau,
fico eu com o rio, e as duas margens; e para que não haja conflito, podes levantar um
muro, dez ou doze côvados, para lá da tua margem antiga.
16. — “E se com isto perdes alguma coisa, nem é grande a diferença, nem deixa de ser
acertado, para que nunca jamais se turbe a concórdia entre nós, segundo é a vontade
do Senhor.”
17. — Jafé porém replicou: — “Vai bugiar! Com que direito me tiras a margem, que é
minha, e me roubas um pedaço de terra? Porventura és melhor do que eu,
18. — “Ou mais belo, ou mais querido de meu pai? Que direito tens de violar assim tão
escandalosamente a propriedade alheia?
19. — “Pois agora te digo que o rio ficará do meu lado, com ambas as margens, e que
se te atreveres a entrar na minha terra, matar-te-ei como Caim matou a seu irmão.”
20. — Ouvindo isto, Cam atemorizou-se muito e começou a aquietar os dois irmãos,
21. — Os quais tinham os olhos do tamanho de figos e cor de brasa, e olhavam-se
cheios de cólera e desprezo.
22. — A arca, porém, boiava sobre as águas do abismo.
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Capítulo B
1. — Ora, Jafé, tendo curtido a cólera, começou a espumar pela boca, e Cam falou-lhe
palavras de brandura,
2. — Dizendo: — “Vejamos um meio de conciliar tudo; vou chamar tua mulher e a
mulher de Sem.”
3. — Um e outro, porém, recusaram dizendo que o caso era de direito e não de
persuasão.
4. — E Sem propôs a Jafé que compensasse os dez côvados perdidos, medindo outros
tantos nos fundos da terra dele. Mas Jafé respondeu:
5. — “Por que não me mandas logo para os confins do mundo? Já te não contentas
com quinhentos côvados; queres quinhentos e dez, e eu que fique com quatrocentos e
noventa.
6. — “Tu não tens sentimentos morais? não sabes o que é justiça? não vês que me
esbulhas descaradamente? e não percebes que eu saberei defender o que é meu,
ainda com risco de vida?
7. — “E que, se é preciso correr sangue, o sangue há de correr já e já,
8. — “Para te castigar a soberba e lavar a tua iniqüidade?”
9. — Então Sem avançou para Jafé; mas Cam interpôs-se, pondo uma das mãos no
peito de cada um;
10. — Enquanto o lobo e o cordeiro, que durante os dias do dilúvio, tinham vivido na
mais doce concórdia, ouvindo o rumor das vozes, vieram espreitar a briga dos dois
irmãos, e começaram a vigiar-se um ao outro.
11. — E disse Cam: — “Ora, pois, tenho uma idéia maravilhosa, que há de acomodar
tudo;
12. — “A qual me é inspirada pelo amor, que tenho a meus irmãos. Sacrificarei pois a
terra que me couber ao lado de meu pai, e ficarei com o rio e as duas margens, dando-
me vós uns vinte côvados cada um.”
13. — E Sem e Jafé riram com desprezo e sarcasmo, dizendo: “Vai plantar tâmaras!
Guarda a tua idéia para os dias da velhice.” E puxaram as orelhas e o nariz de Cam; e
Jafé, metendo dois dedos na boca, imitou o silvo da serpente, em ar de surriada.
14. — Ora, Cam, envergonhado e irritado, espalmou a mão dizendo: — “Deixa estar!” e
foi dali ter com o pai e as mulheres dos dois irmãos.
15. — Jafé porém disse a Sem: — “Agora que estamos sós, vamos decidir este grave
caso, ou seja de língua ou de punho. Ou tu me cedes as duas margens, ou eu te
quebro uma costela.”
16. — Dizendo isto, Jafé ameaçou a Sem com os punhos fechados, enquanto Sem,
derreando o corpo, disse com voz irada: “Não te cedo nada, gatuno!”
17. — Ao que Jafé retorquiu irado: “Gatuno és tu!”
18. — Isto dito, avançaram um para o outro e atracaram-se. Jafé tinha o braço rijo e
adestrado; Sem era forte na resistência. Então Jafé, segurando o irmão pela cinta,
apertou-o fortemente, bradando: “De quem é o rio?”
19. — E respondendo Sem: — “É meu!” Jafé fez um gesto para derrubá-lo; mas Sem,
que era forte, sacudiu o corpo e atirou o irmão para longe; Jafé, porém, espumando de
cólera, tornou a apertar o irmão, e os dois lutaram braço a braço,
20. — Suando e bufando como touros.
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21. — Na luta, caíram e rolaram, esmurrando-se um ao outro; o sangue saía dos
narizes, dos beiços, das faces; ora vencia Jafé,
22. — Ora vencia Sem; porque a raiva animava-os igualmente, e eles lutavam com as
mãos, os pés, os dentes e as unhas; e a arca estremecia como se de novo se
houvessem aberto as cataratas do céu.
23. — Então as vozes e brados chegaram aos ouvidos de Noé, ao mesmo tempo que
seu filho Cam, que lhe apareceu clamando: “Meu pai, meu pai, se de Caim se tomará
vingança sete vezes, e de Lamech setenta vezes sete, o que será de Jafé e Sem?”
24. — E pedindo Noé que explicasse o dito, Cam referiu a discórdia dos dois irmãos, e
a ira que os animava, e disse: — “Correi a aquietá-los.” Noé disse: — “Vamos.”
25. — A arca, porém, boiava sobre as águas do abismo.
Capítulo C
1. — Eis aqui chegou Noé ao lugar onde lutavam os dois filhos,
2. — E achou-os ainda agarrados um ao outro, e Sem debaixo do joelho de Jafé, que
com o punho cerrado lhe batia na cara, a qual estava roxa e sangrenta.
3. — Entretanto, Sem, alçando as mãos, conseguiu apertar o pescoço do irmão, e este
começou a bradar: “Larga-me, larga-me!”
4. — Ouvindo os brados, às mulheres de Jafé e Sem acudiram também ao lugar da
luta, e, vendo-os assim, entraram a soluçar e a dizer: “O que será de nós? A maldição
caiu sobre nós e nossos maridos.”
5. — Noé, porém, lhes disse: “Calai-vos, mulheres de meus filhos, eu verei de que se
trata, e ordenarei o que for justo.” E caminhando para os dois combatentes,
6. — Bradou: “Cessai a briga. Eu, Noé, vosso pai, o ordeno e mando.” E ouvindo os
dois irmãos o pai, detiveram-se subitamente, e ficaram longo tempo atalhados e mudos,
não se levantando nenhum deles.
7. — Noé continuou: “Erguei-vos, homens indignos da salvação e merecedores do
castigo que feriu os outros homens.”
8. — Jafé e Sem ergueram-se. Ambos tinham feridos o rosto, o pescoço e as mãos, e
as roupas salpicadas de sangue, porque tinham lutado com unhas e dentes, instigados
de ódio mortal.
9. — O chão também estava alagado de sangue, e as sandálias de um e outro, e os
cabelos de um e outro,
10. — Como se o pecado os quisera marcar com o selo da iniqüidade.
11. — As duas mulheres, porém, chegaram-se a eles, chorando e acariciando-os, e via-
se-lhes a dor do coração. Jafé e Sem não atendiam a nada, e estavam com os olhos no
chão, medrosos de encarar seu pai.
12. — O qual disse: “Ora, pois, quero saber o motivo da briga.”
13. — Esta palavra acendeu o ódio no coração de ambos. Jafé, porém, foi o primeiro
que falou e disse:
14. — “Sem invadiu a minha terra, a terra que eu havia escolhido para levantar a minha
tenda, quando as águas houverem desaparecido e a arca descer, segundo a promessa
do Senhor;
15. — “E eu, que não tolero o esbulho, disse a meu irmão: “Não te contentas com
quinhentos côvados e queres mais dez?” E ele me respondeu: “Quero mais dez e as
duas margens do rio que há de dividir a minha terra da tua terra.”
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16. — Noé, ouvindo o filho, tinha os olhos em Sem; e acabando Jafé, perguntou ao
irmão: “Que respondes?”
17. — E Sem disse: — “Jafé mente, porque eu só lhe tomei os dez côvados de terra,
depois que ele recusou dividir o rio em duas partes; e propondo-lhe ficar com as duas
margens, ainda consenti que ele medisse outros dez côvados nos fundos das terras
dele.
18. — “Para compensar o que perdia; mas a iniqüidade de Caim falou nele, e ele me
feriu a cabeça, a cara e as mãos.”
19. — E Jafé interrompeu-o dizendo: “Porventura não me feriste também? Não estou
ensangüentado como tu? Olha a minha cara e o meu pescoço; olha as minhas faces,
que rasgaste com as tuas unhas de tigre.”
20. — Indo Noé falar, notou que os dois filhos de novo pareciam desafiar-se com os
olhos. Então disse: “Ouvi!” Mas os dois irmãos, cegos de raiva, outra vez se
engalfinharam, bradando: — “De quem é o rio?” — “O rio é meu.”
21. — E só a muito custo puderam Noé, Cam e as mulheres de Sem e Jafé, conter os
dois combatentes, cujo sangue entrou a jorrar em grande cópia.
22. — Noé, porém, alçando a voz, bradou: — “Maldito seja o que me não obedecer. Ele
será maldito, não sete vezes, não setenta vezes sete, mas setecentas vezes setenta.
23. — “Ora, pois, vos digo que, antes de descer a arca, não quero nenhum ajuste a
respeito do lugar em que levantareis as tendas.”
24. — Depois ficou meditabundo.
25. — E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do teto estava levantada, bradou
com tristeza:
26. — “Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites. O que
será quando vierem a Turquia e a Rússia?”
27. — E nenhum dos filhos de Noé pôde entender esta palavra de seu pai.
28. — A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo.
D. BENEDITA.
Um retrato
CAPÍTULO I
A coisa mais árdua do mundo, depois do ofício de governar, seria dizer a idade
exata de D. Benedita. Uns davam-lhe quarenta anos, outros quarenta e cinco, alguns
trinta e seis. Um corretor de fundos descia aos vinte e nove; mas esta opinião, eivada
de intenções ocultas, carecia daquele cunho de sinceridade que todos gostamos de
achar nos conceitos humanos. Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo, que D.
Benedita foi sempre um padrão de bons costumes. A astúcia do corretor não fez mais
do que indigná-la, embora momentaneamente; digo momentaneamente. Quanto às
outras conjeturas, oscilando entre os trinta e seis e os quarenta e cinco, não desdiziam
das feições de D. Benedita, que eram maduramente graves e juvenilmente graciosas.
Mas, se alguma coisa admira é que houvesse suposições neste negócio, quando
bastava interrogá-la para saber a verdade verdadeira.
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D. Benedita fez quarenta e dois anos no domingo, dezenove de setembro de
1869. São seis horas da tarde; a mesa da família está ladeada de parentes e amigos,
em número de vinte ou vinte e cinco pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de
1868, no de 1867 e no de 1866, e ouviram sempre aludir francamente à idade da dona
da casa. Além disso, vêem-se ali, à mesa, uma moça e um rapaz, seus filhos; este é,
decerto, no tamanho e nas maneiras, um tanto menino; mas a moça, Eulália, contando
dezoito anos, parece ter vinte e um, tal é a severidade dos modos e das feições.
A alegria dos convivas, a excelência do jantar, certas negociações matrimoniais
incumbidas ao cônego Roxo, aqui presente, e das quais se falará mais abaixo, as boas
qualidades da dona da casa, tudo isso dá à festa um caráter íntimo e feliz. O cônego
levanta-se para trinchar o peru. D. Benedita acatava esse uso nacional das casas
modestas de confiar o peru a um dos convivas, em vez de o fazer retalhar fora da mesa
por mãos servis, e o cônego era o pianista daquelas ocasiões solenes. Ninguém
conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia operar com mais presteza. Talvez,
— e este fenômeno fica para os entendidos, — talvez a circunstância do canonicato
aumentasse ao trinchante, no espírito dos convivas, uma certa soma de prestígio, que
ele não teria, por exemplo, se fosse um simples estudante de matemáticas, ou um
amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um estudante ou um amanuense, sem a
lição do longo uso, poderia dispor da arte consumada do cônego? É outra questão
importante.
Venhamos, porém, aos demais convivas, que estão parados, conversando; reina
o burburinho próprio dos estômagos meio regalados, o riso da natureza que caminha
para a repleção; é um instante de repouso.
D. Benedita fala, como as suas visitas, mas não fala para todas, senão para
uma, que está sentada ao pé dela. Essa é uma senhora gorda, simpática, muito
risonha, mãe de um bacharel de vinte e dois anos, o Leandrinho, que está sentado
defronte delas. D. Benedita não se contenta de falar à senhora gorda, tem uma das
mãos desta entre as suas; e não se contenta de lhe ter presa a mão, fita-lhe uns olhos
namorados, vivamente namorados. Não os fita, note-se bem, de um modo persistente e
longo, mas inquieto, miúdo, repetido, instantâneo. Em todo caso, há muita ternura
naquele gesto; e, dado que não a houvesse, não se perderia nada, porque D. Benedita
repete com a boca a D. Maria dos Anjos tudo o que com os olhos lhe tem dito: — que
está encantada, que considera uma fortuna conhecê-la, que é muito simpática, muito
digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc. Uma de suas amigas diz-lhe, rindo,
que está com ciúmes.
— Que arrebente! responde ela, rindo também.
E voltando-se para a outra:
— Não acha? ninguém deve meter-se com a nossa vida.
E aí tornavam as finezas, os encarecimentos, os risos, as ofertas, mais isto, mais
aquilo, — um projeto de passeio, outro de teatro, e promessas de muitas visitas, tudo
com tamanha expansão e calor, que a outra palpitava de alegria e reconhecimento.
O peru está comido. D. Maria dos Anjos faz um sinal ao filho; este levanta-se e
pede que o acompanhem em um brinde:
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— Meus senhores, é preciso desmentir esta máxima dos franceses: — les
absents ont tort. Bebamos a alguém que está longe, muito longe, no espaço, mas perto,
muito perto, no coração de sua digna esposa: — bebamos ao ilustre desembargador
Proença.
A assembléia não correspondeu vivamente ao brinde; e para compreendê-lo
basta ver o rosto triste da dona da casa. Os parentes e os mais íntimos disseram
baixinho entre si que o Leandrinho fora estouvado; enfim, bebeu-se, mas sem estrépito;
ao que parece, para não avivar a dor de D. Benedita. Vã precaução! D. Benedita, não
podendo conter-se, deixou rebentarem-lhe as lágrimas, levantou-se da mesa, retirou-se
da sala. D. Maria dos Anjos acompanhou-a. Sucedeu um silêncio mortal entre os
convivas. Eulália pediu a todos que continuassem, que a mãe voltava já.
— Mamãe é muito sensível, disse ela, e a idéia de que papai está longe de nós...
O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a Eulália. Um sujeito, ao lado dele,
explicou-lhe que D. Benedita não podia ouvir falar do marido sem receber um golpe no
coração — e chorar logo; ao que o Leandrinho acudiu dizendo que sabia da tristeza
dela, mas estava longe de supor que o seu brinde tivesse tão mau efeito.
— Pois era a coisa mais natural, explicou o sujeito, porque ela morre pelo
marido.
— O cônego, acudiu Leandrinho, disse-me que ele foi para o Pará há uns dois
anos...
— Dois anos e meio; foi nomeado desembargador pelo ministério Zacarias. Ele
queria a relação de São Paulo, ou da Bahia; mas não pôde ser e aceitou a do Pará.
— Não voltou mais?
— Não voltou.
— D. Benedita naturalmente tem medo de embarcar...
— Creio que não. Já foi uma vez à Europa. Se bem me lembro, ela ficou para
arranjar alguns negócios de família; mas foi ficando, ficando, e agora...
— Mas era muito melhor ter ido em vez de padecer assim... Conhece o marido?
— Conheço; um homem muito distinto, e ainda moço, forte; não terá mais de
quarenta e cinco anos. Alto, barbado, bonito. Aqui há tempos disse-se que ele não
teimava com a mulher, porque estava lá de amores com uma viúva.
— Ah!
— E houve até quem viesse contá-lo a ela mesma. Imagine como a pobre
senhora ficou! Chorou uma noite inteira, no dia seguinte não quis almoçar, e deu todas
as ordens para seguir no primeiro vapor.
— Mas não foi?
— Não foi; desfez a viagem daí a três dias.
D. Benedita voltou nesse momento, pelo braço de D. Maria dos Anjos. Trazia um
sorriso envergonhado; pediu desculpa da interrupção, e sentou-se com a recente amiga
ao lado, agradecendo os cuidados que lhe deu, pegando-lhe outra vez na mão:
— Vejo que me quer bem, disse ela.
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A senhora merece, disse D. Maria dos Anjos.
— Mereço? inquiriu ela entre desvanecida e modesta.
E declarou que não, que a outra é que era boa, um anjo, um verdadeiro anjo;
palavra que ela sublinhou com o mesmo olhar namorado, não persistente e longo, mas
inquieto e repetido. O cônego, pela sua parte, com o fim de apagar a lembrança do
incidente, procurou generalizar a conversa, dando-lhe por assunto a eleição do melhor
doce. Os pareceres divergiram muito. Uns acharam que era o de coco, outros o de caju,
alguns o de laranja, etc. Um dos convivas, o Leandrinho, autor do brinde, dizia com os
olhos, — não com a boca, — e dizia-o de um modo astucioso, que o melhor doce eram
as faces de Eulália, um doce moreno, corado; dito que a mãe dele interiormente
aprovava, e que a mãe dela não podia ver, tão entregue estava à contemplação da
recente amiga. Um anjo, um verdadeiro anjo!
CAPÍTULO II
D. Benedita levantou-se, no dia seguinte, com a idéia de escrever uma carta ao
marido, uma longa carta em que lhe narrasse a festa da véspera, nomeasse os
convivas e os pratos, descrevesse a recepção noturna, e, principalmente, desse notícia
das novas relações com D. Maria dos Anjos. A mala fechava-se às duas horas da tarde,
D. Benedita acordara às nove, e, não morando longe (morava no Campo da
Aclamação), um escravo levaria a carta ao correio muito a tempo. Demais, chovia; D.
Benedita arredou a cortina da janela, deu com os vidros molhados; era uma chuvinha
teimosa, o céu estava todo brochado de uma cor pardo-escura, malhada de grossas
nuvens negras. Ao longe, viu flutuar e voar o pano que cobria o balaio que uma preta
levava à cabeça: concluiu que ventava. Magnífico dia para não sair, e, portanto,
escrever uma carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao marido ausente.
Ninguém viria tentá-la.
Enquanto ela compõe os babadinhos e rendas do roupão branco, um roupão de
cambraia que o desembargador lhe dera em 1862, no mesmo dia aniversário, 19 de
setembro, convido a leitora a observar-lhe as feições. Vê que não lhe dou Vênus;
também não lhe dou Medusa. Ao contrário de Medusa, nota-se-lhe o alisado simples do
cabelo, preso sobre a nuca. Os olhos são vulgares, mas têm uma expressão bonachã.
A boca é daquelas que, ainda não sorrindo, são risonhas, e tem esta outra
particularidade, que é uma boca sem remorsos nem saudades: podia dizer sem
desejos, mas eu só digo o que quero, e só quero falar das saudades e dos remorsos.
Toda essa cabeça, que não entusiasma, nem repele, assenta sobre um corpo antes
alto do que baixo, e não magro nem gordo, mas fornido na proporção da estatura. Para
que falar-lhe das mãos? Há de admirá-las logo, ao travar da pena e do papel, com os
dedos afilados e vadios, dois deles ornados de cinco ou seis anéis.
Creio que é bastante ver o modo por que ela compõe as rendas e os babadinhos
do roupão para compreender que é uma senhora pichosa, amiga do arranjo das coisas
e de si mesma. Noto que rasgou agora o babadinho do punho esquerdo, mas é porque,
sendo também impaciente, não podia mais “com a vida deste diabo”. Essa foi a sua
expressão, acompanhada logo de um “Deus me perdoe!” que inteiramente lhe extraiu o
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veneno. Não digo que ela bateu com o pé, mas adivinha-se, por ser um gesto natural
de algumas senhoras irritadas. Em todo caso, a cólera durou pouco mais de meio
minuto. D. Benedita foi à caixinha de costura para dar um ponto no rasgão, e contentou-
se com um alfinete. O alfinete caiu no chão, ela abaixou-se a apanhá-lo. Tinha outros, é
verdade, muitos outros, mas não achava prudente deixar alfinetes no chão. Abaixando-
se, aconteceu-lhe ver a ponta da chinela, na qual pareceu-lhe descobrir um sinal
branco; sentou-se na cadeira que tinha perto, tirou a chinela, e viu o que era: era um
roidinho de barata. Outra raiva de D. Benedita, porque a chinela era muito galante, e
fora-lhe dada por uma amiga do ano passado. Um anjo, um verdadeiro anjo! D.
Benedita fitou os olhos irritados no sinal branco; felizmente a expressão bonachã deles
não era tão bonachã que se deixasse eliminar de todo por outras expressões menos
passivas, e retomou o seu lugar. D. Benedita entrou a virar e revirar a chinela, e a
passá-la de uma para outra mão, a princípio com amor, logo depois maquinalmente, até
que as mãos pararam de todo, a chinela caiu no regaço, e D. Benedita ficou a olhar
para o ar, parada, fixa. Nisto o relógio da sala de jantar começou a bater horas. D.
Benedita, logo às primeiras duas, estremeceu:
— Jesus! Dez horas!
E, rápida, calçou a chinela, concertou depressa o punho do roupão, e dirigiu-se à
escrivaninha, para começar a carta. Escreveu, com efeito, a data, e um: — “Meu ingrato
marido”; enfim, mal traçara estas linhas: — “Você lembrou-se ontem de mim? Eu...”,
quando Eulália lhe bateu à porta, bradando:
— Mamãe, mamãe, são horas de almoçar.
D. Benedita abriu a porta, Eulália beijou-lhe a mão, depois levantou as suas ao
céu:
— Meu Deus! que dorminhoca!
— O almoço está pronto?
— Há que séculos!
— Mas eu tinha dito que hoje o almoço era mais tarde... Estava escrevendo a teu
pai.
Olhou alguns instantes para a filha, como desejosa de lhe dizer alguma coisa
grave, ao menos difícil, tal era a expressão indecisa e séria dos olhos. Mas não chegou
a dizer nada; a filha repetiu que o almoço estava na mesa, pegou-lhe do braço e levou-
a.
Deixemo-las almoçar à vontade; descansemos nessa outra sala, a de visitas,
sem aliás inventariar os móveis dela, como o não fizemos em nenhuma outra sala ou
quarto. Não é que eles não prestem, ou sejam de mau gosto; ao contrário, são bons.
Mas a impressão geral que se recebe é esquisita, como se ao trastejar daquela casa
houvesse presidido um plano truncado, ou uma sucessão de planos truncados. Mãe,
filha e filho almoçaram. Deixemos o filho, que nos não importa, um pirralho de doze
anos, que parece ter oito, tão mofino é ele. Eulália interessa-nos, não só pelo que vimos
de relance no capítulo passado, como porque, ouvindo a mãe falar em D. Maria dos
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Anjos e no Leandrinho, ficou muito séria e, talvez, um pouco amuada. D. Benedita
percebeu que o assunto não era aprazível à filha, e recuou da conversa, como alguém
que desanda uma rua para evitar um importuno; recuou e ergueu-se; a filha veio com
ela para a sala de visitas.
Eram onze horas menos um quarto. D. Benedita conversou com a filha até
depois do meio-dia, para ter tempo de descansar o almoço e escrever a carta. Sabem
que a mala fecha às duas horas. De fato, alguns minutos, poucos, depois do meio-dia,
D. Benedita disse à filha que fosse estudar piano, porque ela ia acabar a carta. Saiu da
sala; Eulália foi à janela, relanceou a vista pelo Campo, e, se lhes disser que com uma
pontazinha de tristeza nos olhos, podem crer que é a pura verdade. Não era, todavia, a
tristeza dos débeis ou dos indecisos; era a tristeza dos resolutos, a quem dói de
antemão um ato pela mortificação que há de trazer a outros, e que, não obstante, juram
a si mesmos praticá-lo, e praticam. Convenho que nem todas essas particularidades
podiam estar nos olhos de Eulália, mas por isso mesmo é que as histórias são contadas
por alguém, que se incumbe de preencher as lacunas e divulgar o escondido. Que era
uma tristeza máscula, era; — e que daí a pouco os olhos sorriam de um sinal de
esperança, também não é mentira.
— Isto acaba, murmurou ela, vindo para dentro.
Justamente nessa ocasião parava um carro à porta, apeava-se uma senhora,
ouvia-se a campainha da escada, descia um moleque a abrir a cancela, e subia as
escadas D. Maria dos Anjos. D. Benedita, quando lhe disseram quem era, largou a
pena, alvoroçada; vestiu-se à pressa, calçou-se, e foi à sala.
— Com este tempo! exclamou. Ah! isto é que é querer bem à gente!
— Vim sem esperar pela sua visita, só para mostrar que não gosto de
cerimônias, e que entre nós deve haver a maior liberdade.
Vieram os cumprimentos de estilo, as palavrinhas doces, os afagos da véspera.
D. Benedita não se fartava de dizer que a visita naquele dia era uma grande fineza,
uma prova de verdadeira amizade; mas queria outra, acrescentou daí a um instante,
que D. Maria dos Anjos ficasse para jantar. Esta desculpou-se alegando que tinha de ir
a outras partes; demais, essa era a prova que lhe pedia, — a de ir jantar à casa dela
primeiro. D. Benedita não hesitou, prometeu que sim, naquela mesma semana.
— Estava agora mesmo escrevendo o seu nome, continuou.
— Sim?
— Estou escrevendo a meu marido, e falo da senhora. Não lhe repito o que
escrevi, mas imagine que falei muito mal da senhora, que era antipática, insuportável,
maçante, aborrecida... Imagine!
— Imagino, imagino. Pode acrescentar que, apesar de ser tudo isso, e mais
alguma coisa, apresento-lhe os meus respeitos.
— Como ela tem graça para dizer as coisas! Comentou D. Benedita olhando
para a filha.
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Eulália sorriu sem convicção. Sentada na cadeira fronteira à mãe, ao pé da outra
ponta do sofá em que estava D. Maria dos Anjos, Eulália dava à conversação das duas
a soma de atenção que a cortesia lhe impunha, e nada mais. Chegava a parecer
aborrecida; cada sorriso que lhe abria a boca era de um amarelo pálido, um sorriso de
favor. Uma das tranças, — era de manhã, trazia o cabelo em duas tranças caídas pelas
costas abaixo, — uma delas servia-lhe de pretexto a alheiar-se de quando em quando,
porque puxava-a para a frente e contava-lhe os fios do cabelo, — ou parecia contá-los.
Assim o creu D. Maria dos Anjos, quando lhe lançou uma ou duas vezes os olhos,
curiosa, desconfiada. D. Benedita é que não via nada; via a amiga, a feiticeira, como lhe
chamou duas ou três vezes, — “feiticeira como ela só”.
— Já?
D. Maria dos Anjos explicou que tinha de ir a outras visitas; mas foi obrigada a
ficar ainda alguns minutos, a pedido da amiga. Como trouxesse um mantelete de renda
preta, muito elegante, D. Benedita disse que tinha um igual e mandou buscá-lo. Tudo
demoras. Mas a mãe do Leandrinho estava tão contente! D. Benedita enchia-lhe o
coração; achava nela todas as qualidades que melhor se ajustavam à sua alma e aos
seus costumes, ternura, confiança, entusiasmo, simplicidade, uma familiaridade cordial
e pronta. Veio o mantelete; vieram oferecimentos de alguma coisa, um doce, um licor,
um refresco; D. Maria dos Anjos não aceitou nada mais do que um beijo e a promessa
de que iriam jantar com ela naquela semana.
— Quinta-feira, disse D. Benedita.
— Palavra?
— Palavra.
— Que quer que lhe faça se não for? Há de ser um castigo bem forte.
— Bem forte? Não me fale mais.
D. Maria dos Anjos beijou com muita ternura a amiga; depois abraçou e beijou
também a Eulália, mas a efusão era muito menor de parte a parte. Uma e outra
mediam-se, estudavam-se, começavam a compreender-se. D. Benedita levou a amiga
até o patamar da escada, depois foi à janela para vê-la entrar no carro; a amiga, depois
de entrar no carro, pôs a cabeça de fora, olhou para cima, e disse-lhe adeus, com a
mão.
— Não falte, ouviu?
— Quinta-feira.
Eulália já não estava na sala; D. Benedita correu a acabar a carta. Era tarde: não
relatara o jantar da véspera, nem já agora podia fazê-lo. Resumiu tudo; encareceu
muito as novas relações; enfim, escreveu estas palavras:
“O cônego Roxo falou-me em casar Eulália com o filho de D. Maria dos Anjos; é
um moço formado em direito este ano; é conservador, e espera uma promotoria, agora,
se o Itaboraí não deixar o ministério. Eu acho que o casamento é o melhor possível. O
Dr. Leandrinho (é o nome dele) é muito bem educado; fez um brinde a você, cheio de
palavras tão bonitas, que eu chorei. Eu não sei se Eulália quererá ou não; desconfio de
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outro sujeito que outro dia esteve conosco nas Laranjeiras. Mas você que pensa? Devo
limitar-me a aconselhá-la, ou impor-lhe a nossa vontade? Eu acho que devo usar um
pouco da minha autoridade; mas não quero fazer nada sem que você me diga. O
melhor seria se você viesse cá.”
Acabou e fechou a carta; Eulália entrou nessa ocasião, ela deu-lha para mandar,
sem demora, ao correio; e a filha saiu com a carta sem saber que tratava dela e do seu
futuro. D. Benedita deixou-se cair no sofá, cansada, exausta. A carta era muito
comprida apesar de não dizer tudo; e era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas!
CAPÍTULO III
Era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas! Esta palavra, fecho do capítulo
passado, explica a longa prostração de D. Benedita. Meia hora depois de cair no sofá,
ergueu-se um pouco, e percorreu o gabinete com os olhos, como procurando alguma
coisa. Essa coisa era um livro. Achou o livro, e podia dizer achou os livros, pois nada
menos de três estavam ali, dois abertos, um marcado em certa página, todos em
cadeiras. Eram três romances que D. Benedita lia ao mesmo tempo. Um deles, note-se,
custou-lhe não pouco trabalho. Deram-lhe notícia na rua, perto de casa, com muitos
elogios; chegara da Europa na véspera. D. Benedita ficou tão entusiasmada, que,
apesar de ser longe e tarde, arrepiou caminho e foi ela mesmo comprá-lo, correndo
nada menos de três livrarias. Voltou ansiosa, namorada do livro, tão namorada que
abriu as folhas, jantando, e leu os cinco primeiros capítulos naquela mesma noite.
Sendo preciso dormir, dormiu; no dia seguinte não pôde continuar, depois esqueceu-o.
Agora, porém, passados oito dias, querendo ler alguma coisa, aconteceu-lhe
justamente achá-lo à mão.
— Ah!
E ei-la que torna ao sofá, que abre o livro com amor, que mergulha o espírito, os
olhos e o coração na leitura tão desastradamente interrompida. D. Benedita ama os
romances, é natural; e adora os romances bonitos, é naturalíssimo. Não admira que
esqueça tudo para ler este; tudo, até a lição de piano da filha, cujo professor chegou e
saiu, sem que ela fosse à sala. Eulália despediu-se do professor; depois foi ao
gabinete, abriu a porta, caminhou pé ante pé até o sofá, e acordou a mãe com um beijo.
— Dorminhoca!
— Ainda chove?
— Não, senhora; agora parou.
— A carta foi?
— Foi; mandei o José a toda a pressa. Aposto que mamãe esqueceu-se de dar
lembranças a papai? Pois olhe, eu não me esqueço nunca.
D. Benedita bocejou. Já não pensava na carta; pensava no colete que
encomendara à Charavel, um colete de barbatanas mais moles do que o último. Não
gostava de barbatanas duras; tinha o corpo mui sensível. Eulália falou ainda algum
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tempo do pai, mas calou-se logo, e vendo no chão o livro aberto, o famoso romance,
apanhou-o, fechou-o, pô-lo em cima da mesa. Nesse momento vieram trazer uma carta
a D. Benedita; era do cônego Roxo, que mandava perguntar se estavam em casa
naquele dia, porque iria ao enterro dos ossos.
— Pois não! bradou D. Benedita; estamos em casa, venha, pode vir.
Eulália escreveu o bilhetinho de resposta. Daí a três quartos de hora fazia o
cônego a sua entrada na sala de D. Benedita. Era um bom homem o cônego, velho
amigo daquela casa, na qual, além de trinchar o peru nos dias solenes, como vimos,
exercia o papel de conselheiro, e exercia-o com lealdade e amor. Eulália,
principalmente, merecia-lhe muito; vira-a pequena, galante, travessa, amiga dele, e
criou-lhe uma afeição paternal, tão paternal que tomara a peito casá-la bem, e nenhum
noivo melhor do que o Leandrinho, pensava o cônego. Naquele dia, a idéia de ir jantar
com elas era antes um pretexto; o cônego queria tratar o negócio diretamente com a
filha do desembargador. Eulália, ou porque adivinhasse isso mesmo, ou porque a
pessoa do cônego lhe lembrasse o Leandrinho, ficou logo preocupada, aborrecida.
Mas, preocupada ou aborrecida, não quer dizer triste ou desconsolada. Era
resoluta, tinha têmpera, podia resistir, e resistiu, declarando ao cônego, quando ele
naquela noite lhe falou do Leandrinho, que absolutamente não queria casar.
— Palavra de moça bonita?
— Palavra de moça feia.
— Mas, por quê?
— Porque não quero.
— E se mamãe quiser?
— Não quero eu.
— Mau! isso não é bonito, Eulália.
Eulália deixou-se estar. O cônego ainda tornou ao assunto, louvou as qualidades
do candidato, as esperanças da família, as vantagens do casamento; ela ouvia tudo,
sem contestar nada. Mas quando o cônego formulava de um modo direto a questão, a
resposta invariável era esta:
— Já disse tudo.
— Não quer?
— Não.
O desconsolo do bom cônego era profundo e sincero. Queria casá-la bem, e não
achava melhor noivo. Chegou a interrogá-la discretamente, sobre se tinha alguma
preferência em outra parte. Mas Eulália, não menos discretamente, respondia que não,
que não tinha nada; não queria nada; não queria casar. Ele creu que era assim, mas
receou também que não fosse assim; faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler
através de uma negativa. Quando referiu tudo a D. Benedita, esta ficou assombrada
com os termos da recusa; mas tornou logo a si, e declarou ao padre que a filha não
tinha vontade, faria o que ela quisesse, e ela queria o casamento.
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— Já agora nem espero resposta do pai, concluiu; declaro-lhe que ela há de
casar. Quinta-feira vou jantar com D. Maria dos Anjos, e combinaremos as coisas.
— Devo dizer-lhe, ponderou o cônego, que D. Maria dos Anjos não deseja que
se faça nada à força.
— Qual força! Não é preciso força.
O cônego refletiu um instante:
— Em todo caso, não violentaremos qualquer outra afeição que ela possa ter,
disse ele.
D. Benedita não respondeu nada; mas consigo, no mais fundo de si mesma,
jurou que, houvesse o que houvesse, acontecesse o que acontecesse, a filha seria nora
de D. Maria dos Anjos. E ainda consigo, depois de sair o cônego: — Tinha que ver! um
tico de gente, com fumaças de governar a casa!
A quinta-feira raiou. Eulália, — o tico de gente, levantou-se fresca, lépida, loquaz,
com todas as janelas da alma abertas ao sopro azul da manhã. A mãe acordou ouvindo
um trecho italiano, cheio de melodia; era ela que cantava, alegre, sem afetação, com a
indiferença das aves que cantam para si ou para os seus, e não para o poeta, que as
ouve e traduz na língua imortal dos homens. D. Benedita afagara muito a idéia de a ver
abatida, carrancuda, e gastara uma certa soma de imaginação em compor os seus
modos, delinear os seus atos, ostentar energia e força. E nada! Em vez de uma filha
rebelde, uma criatura gárrula e submissa. Era começar mal o dia; era sair aparelhada
para destruir uma fortaleza, e dar com uma cidade aberta, pacífica, hospedeira, que lhe
pedia o favor de entrar e partir o pão da alegria e da concórdia. Era começar o dia muito
mal.
A segunda causa do tédio de D. Benedita foi um ameaço de enxaqueca, às três
horas da tarde; um ameaço, ou uma suspeita de possibilidade de ameaço. Chegou a
transferir a visita, mas a filha ponderou que talvez a visita lhe fizesse bem, e em todo
caso, era tarde para deixar de ir. D. Benedita não teve remédio, aceitou o reparo. Ao
espelho, penteando-se, esteve quase a dizer que definitivamente ficava; chegou a
insinuá-lo à filha.
— Mamãe veja que D. Maria dos Anjos conta com a senhora, disse-lhe Eulália.
— Pois sim, redargüiu a mãe, mas não prometi ir doente.
Enfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as últimas ordens; e devia doer-lhe muito a
cabeça, porque os modos eram arrebitados, uns modos de pessoa constrangida ao que
não quer. A filha animava-a muito, lembrava-lhe o vidrinho dos sais, instava que
saíssem, descrevia a ansiedade de D. Maria dos Anjos, consultava de dois em dois
minutos o pequenino relógio, que trazia na cintura, etc. Uma amofinação, realmente.
— O que tu estás é me amofinando, disse-lhe a mãe.
E saiu, saiu exasperada, com uma grande vontade de esganar a filha, dizendo
consigo que a pior coisa do mundo era ter filhas. Os filhos ainda vá: criam-se, fazem
carreira por si; mas as filhas!
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Felizmente, o jantar de D. Maria dos Anjos aquietou-a; e não digo que a
enchesse de grande satisfação, porque não foi assim. Os modos de D. Benedita não
eram os do costume; eram frios, secos, ou quase secos; ela, porém, explicou de si
mesma a diferença, noticiando o ameaço da enxaqueca, notícia mais triste do que
alegre, e que, aliás, alegrou a alma de D. Maria dos Anjos, por esta razão fina e
profunda: antes a frieza da amiga fosse originada na doença do que na quebra do
afeto. Demais, a doença não era grave. E que fosse grave! Não houve naquele dia
mãos presas, olhos nos olhos, manjares comidos entre carícias mútuas; não houve
nada do jantar de domingo. Um jantar apenas conversado; não alegre, conversado; foi
o mais que alcançou o cônego. Amável cônego! As disposições de Eulália, naquele dia,
cumularam-no de esperanças; o riso que brincava nela, a maneira expansiva da
conversa, a docilidade com que se prestava a tudo, a tocar, a cantar, e o rosto afável,
meigo, com que ouvia e falava ao Leandrinho, tudo isso foi para a alma do cônego uma
renovação de esperanças. Logo hoje é que D. Benedita estava doente! Realmente, era
caiporismo.
D. Benedita reanimou-se um pouco, à noite, depois do jantar. Conversou mais,
discutiu um projeto de passeio ao Jardim Botânico, chegou mesmo a propor que fosse
logo no dia seguinte; mas Eulália advertiu que era prudente esperar um ou dois dias até
que os efeitos da enxaqueca desaparecessem de todo; e o olhar que mereceu à mãe,
em troca do conselho, tinha a ponta aguda de um punhal. Mas a filha não tinha medo
dos olhos matemos. De noite, ao despentear-se, recapitulando o dia, Eulália repetiu
consigo a palavra que lhe ouvimos, dias antes, à janela:
— Isto acaba.
E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou uma certa gaveta, tirou uma caixinha,
abriu-a, aventou um cartão de alguns centímetros de altura, — um retrato. Não era
retrato de mulher, não só por ter bigodes, como por estar fardado; era, quando muito,
um oficial de marinha. Se bonito ou feio, é matéria de opinião. Eulália achava-o bonito;
a prova é que o beijou, não digo uma vez, mas três. Depois mirou-o, com saudade,
tornou a fechá-lo e guardá-lo.
Que fazias tu, mãe cautelosa e ríspida, que não vinhas arrancar às mãos e à
boca da filha um veneno tão sutil e mortal? D. Benedita, à janela, olhava a noite, entre
as estrelas e os lampiões de gás, com a imaginação vagabunda, inquieta, roída de
saudades e desejos. O dia tinha-lhe saído mal, desde manhã. D. Benedita confessava,
naquela doce intimidade da alma consigo mesma, que o jantar de D. Maria dos Anjos
não prestara para nada, e que a própria amiga não estava provavelmente nos seus dias
de costume. Tinha saudades, não sabia bem de quê, e desejos, que ignorava. De
quando em quando, bocejava ao modo preguiçoso e arrastado dos que caem de sono;
mas se alguma coisa tinha era fastio, — fastio, impaciência, curiosidade. D. Benedita
cogitou seriamente em ir ter com o marido; e tão depressa a idéia do mando lhe
penetrou no cérebro, como se lhe apertou o coração de saudades e remorsos, e o
sangue pulou-lhe num tal ímpeto de ir ver o desembargador que, se o paquete do Norte
estivesse na esquina da rua e as malas prontas, ela embarcaria logo e logo. Não
importa; o paquete devia estar prestes a sair, oito ou dez dias; era o tempo de arranjar
as malas. Iria por três meses somente, não era preciso levar muita coisa. Ei-la que se
consola da grande cidade fluminense, da similitude dos dias, da escassez das coisas,
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da persistência das caras, da mesma fixidez das modas, que era um dos seus árduos
problemas: — por que é que as modas hão de durar mais de quinze dias?
— Vou, não há que ver, vou ao Pará, disse ela a meia voz.
Com efeito, no dia seguinte, logo de manhã, comunicou a resolução à filha, que a
recebeu sem abalo. Mandou ver as malas que tinha, achou que era preciso mais uma,
calculou o tamanho, e determinou comprá-la. Eulália, por uma inspiração súbita:
— Mas, mamãe, nós não vamos por três meses?
— Três... ou dois.
— Pois, então, não vale a pena. As duas malas chegam.
— Não chegam.
— Bem; se não chegarem, pode-se comprar na véspera. E mamãe mesmo
escolhe; é melhor do que mandar esta gente que não sabe nada.
D. Benedita achou a reflexão judiciosa, e guardou o dinheiro. A filha sorriu para
dentro. Talvez repetisse consigo a famosa palavra da janela: — Isto acaba. A mãe foi
cuidar dos arranjos, escolha de roupas, lista das coisas que precisava comprar, um
presente para o marido, etc. Ah! que alegria que ele ia ter! Depois do meio-dia saíram
para fazer encomendas, visitas, comprar as passagens, quatro passagens; levavam
uma escrava consigo. Eulália ainda tentou arredá-la da idéia, propondo a transferência
da viagem; mas D. Benedita declarou peremptoriamente que não. No escritório da
Companhia de Paquetes disseram-lhe que o do Norte saía na sexta-feira da outra
semana. Ela pediu as quatro passagens; abriu a carteirinha, tirou uma nota, depois
duas, refletiu um instante.
— Basta vir na véspera, não?
— Basta, mas pode não achar mais.
— Bem; o senhor guarde os bilhetes: eu mando buscar.
— O seu nome?
— O nome? O melhor é não tomar o nome; nós viremos três dias antes de sair o
vapor. Naturalmente ainda haverá bilhetes.
— Pode ser.
— Há de haver.
Na rua, Eulália observou que era melhor ter comprado logo os bilhetes; e,
sabendo-se que ela não desejava ir para o Norte nem para o Sul, salvo na fragata em
que embarcasse o original do retrato da véspera, há de supor-se que a reflexão da
moça era profundamente maquiavélica. Não digo que não. D. Benedita, entretanto,
noticiou a viagem aos amigos e conhecidos, nenhum dos quais a ouviu espantado. Um
chegou a perguntar-lhe se, enfim, daquela vez era certo. D. Maria dos Anjos, que sabia
da viagem pelo cônego, se alguma coisa a assombrou, quando a amiga se despediu
dela, foram as atitudes geladas, o olhar fixo no chão, o silêncio, a indiferença. Uma
visita de dez minutos apenas, durante os quais D. Benedita disse quatro palavras no
princípio: — Vamos para o Norte. E duas no fim: — Passe bem. E os beijos? Dois
tristes beijos de pessoa morta.
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CAPÍTULO IV
A viagem não se fez por um motivo supersticioso. D. Benedita, no domingo à
noite, advertiu que o paquete seguia na sexta-feira, e achou que o dia era mau. Iriam no
outro paquete. Não foram no outro; mas desta vez os motivos escapam inteiramente ao
alcance do olhar humano, e o melhor alvitre em tais casos é não teimar com o
impenetrável. A verdade é que D. Benedita não foi, mas iria no terceiro paquete, a não
ser um incidente que lhe trocou os planos.
Tinha a filha inventado uma festa e uma amizade nova. A nova amizade era uma
família do Andaraí; a festa não se sabe a que propósito foi, mas deve ter sido
esplêndida, porque D. Benedita ainda falava dela três dias depois. Três dias!
Realmente, era demais. Quanto à família, era impossível ser mais amável; ao menos, a
impressão que deixou na alma de D. Benedita foi intensíssima. Uso este superlativo,
porque ela mesma o empregou: é um documento humano.
— Aquela gente? Oh! deixou-me uma impressão intensíssima.
E toca a andar para Andaraí, namorada de D. Petronilha, esposa do conselheiro
Beltrão, e de uma irmã dela, D. Maricota, que ia casar com um oficial de marinha, irmão
de outro oficial de marinha, cujos bigodes, olhos, cara, porte, cabelos, são os mesmos
do retrato que o leitor entreviu há tempos na gavetinha de Eulália. A irmã casada tinha
trinta e dois anos, e uma seriedade, umas maneiras tão bonitas, que deixaram
encantada a esposa do desembargador. Quanto à irmã solteira era uma flor, uma flor
de cera, outra expressão de D. Benedita, que não altero com receio de entibiar a
verdade.
Um dos pontos mais obscuros desta curiosa história é a pressa com que as
relações se travaram, e os acontecimentos se sucederam. Por exemplo, uma das
pessoas que estiveram em Andaraí, com D. Benedita, foi o oficial de marinha retratado
no cartão particular de Eulália, 1º tenente Mascarenhas, que o conselheiro Beltrão
proclamou futuro almirante. Vede, porém, a perfídia do oficial: vinha fardado; e D.
Benedita, que amava os espetáculos novos, achou-o tão distinto, tão bonito, entre os
outros moços à paisana, que o preferiu a todos, e lho disse. O oficial agradeceu
comovido. Ela ofereceu-lhe a casa; ele pediu-lhe licença para fazer uma visita.
— Uma visita? Vá jantar conosco.
Mascarenhas fez uma cortesia de aquiescência.
— Olhe, disse D. Benedita, vá amanhã.
Mascarenhas foi, e foi mais cedo. D. Benedita falou-lhe da vida do mar; ele
pediu-lhe a filha em casamento. D. Benedita ficou sem voz, pasmada. Lembrou-se, é
verdade, que desconfiara dele, um dia, nas Laranjeiras; mas a suspeita acabara. Agora
não os vira conversar nem olhar uma só vez. Em casamento! Mas seria mesmo em
casamento? Não podia ser outra coisa; a atitude séria, respeitosa, implorativa do rapaz
dizia bem que se tratava de um casamento. Que sonho! Convidar um amigo, e abrir a
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porta a um genro: era o cúmulo do inesperado. Mas o sonho era bonito; o oficial de
marinha era um galhardo rapaz, forte, elegante, simpático, metia toda a gente no
coração, e principalmente parecia adorá-la, a ela, D. Benedita. Que magnífico sonho! D.
Benedita voltou do pasmo, e respondeu que sim, que Eulália era sua. Mascarenhas
pegou-lhe na mão e beijou-a filialmente.
— Mas o desembargador? disse ele.
— O desembargador concordará comigo.
Tudo andou assim depressa. Certidões passadas, banhos corridos, marcou-se o
dia do casamento; seria vinte e quatro horas depois de recebida a resposta do
desembargador. Que alegria a da boa mãe! que atividade no preparo do enxoval, no
plano e nas encomendas da festa, na escolha dos convidados, etc.! Ela ia de um lado
para outro, ora a pé, ora de carro, fizesse chuva ou sol. Não se detinha no mesmo
objeto muito tempo; a semana do enxoval não era a do preparo da festa, nem a das
visitas; alternava as coisas, voltava atrás, com certa confusão, é verdade. Mas aí estava
a filha para suprir as faltas, corrigir os defeitos, cercear as demasias, tudo com a sua
habilidade natural. Ao contrário de todos os noivos, este não as importunava; não
jantava todos os dias com elas, segundo lhe pedia a dona da casa; jantava aos
domingos, e visitava-as uma vez por semana. Matava as saudades por meio de cartas,
que eram contínuas, longas e secretas, como no tempo do namoro. D. Benedita não
podia explicar uma tal esquivança, quando ela morria por ele; e então vingava-se da
esquisitice, morrendo ainda mais, e dizendo dele por toda a parte as mais belas coisas
do mundo.
— Uma pérola! uma pérola!
— E um bonito rapaz, acrescentavam.
— Não é? De truz.
A mesma coisa repetia ao marido nas cartas que lhe mandava, antes e depois de
receber a resposta da primeira. A resposta veio; o desembargador deu o seu
consentimento, acrescentando que lhe doía muito não poder vir assistir às bodas, por
achar-se um tanto adoentado; mas abençoava de longe os filhos, e pedia o retrato do
genro.
Cumpriu-se o acordo à risca. Vinte e quatro horas depois de recebida a resposta
do Pará efetuou-se o casamento, que foi uma festa admirável, esplêndida, no dizer de
D. Benedita, quando a contou a algumas amigas. Oficiou o cônego Roxo, e claro é que
D. Maria dos Anjos não esteve presente, e menos ainda o filho. Ela esperou, note-se,
até à última hora um bilhete de participação, um convite, uma visita, embora se
abstivesse de comparecer; mas não recebeu nada. Estava atônita, revolvia a memória a
ver se descobria alguma inadvertência sua que pudesse explicar a frieza das relações;
não achando nada, supôs alguma intriga. E supôs mal, pois foi um simples
esquecimento. D. Benedita, no dia do consórcio, de manhã, teve idéia de que D. Maria
dos Anjos não recebera participação.
— Eulália, parece que não mandamos participação a D Maria dos Anjos, disse
ela à filha, almoçando.
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— Não sei; mamãe é quem se incumbiu dos convites.
— Parece que não, confirmou D. Benedita. João, dá cá mais açúcar.
O copeiro deu-lhe o açúcar; ela, mexendo o chá, lembrou-se do carro que iria
buscar o cônego e reiterou uma ordem da véspera.
Mas a fortuna é caprichosa. Quinze dias depois do casamento, chegou a notícia
do óbito do desembargador. Não descrevo a dor de D. Benedita; foi dilacerante e
sincera. Os noivos, que devaneavam na Tijuca, vieram ter com ela; D. Benedita chorou
todas as lágrimas de uma esposa austera e fidelíssima. Depois da missa do sétimo dia,
consultou a filha e o genro acerca da idéia de ir ao Pará, erigir um túmulo ao marido, e
beijar a terra em que ele repousava. Mascarenhas trocou um olhar com a mulher;
depois disse à sogra que era melhor irem juntos, porque ele devia seguir para o Norte
daí a três meses em comissão do governo. D. Benedita recalcitrou um pouco, mas
aceitou o prazo, dando desde logo todas as ordens necessárias à construção do
túmulo. O túmulo fez-se; mas a comissão não veio, e D. Benedita não pôde ir.
Cinco meses depois, deu-se um pequeno incidente na família. D. Benedita
mandara construir uma casa no caminho da Tijuca, e o genro, com o pretexto de uma
interrupção na obra, propôs acabá-la. D. Benedita consentiu, e o ato era tanto mais
honroso para ela, quanto que o genro começava a parecer-lhe insuportável com a sua
excessiva disciplina, com as suas teimas, impertinências, etc. Verdadeiramente, não
havia teimas; nesse particular, o genro de D. Benedita contava tanto com a sinceridade
da sogra que nunca teimava; deixava que ela própria se desmentisse dias depois. Mas
pode ser que isto mesmo a mortificasse. Felizmente, o governo lembrou-se de o
mandar ao Sul; Eulália, grávida, ficou com a mãe.
Foi por esse tempo que um negociante, viúvo, teve idéia de cortejar D. Benedita.
O primeiro ano da viuvez estava passado. D. Benedita acolheu a idéia com muita
simpatia, embora sem alvoroço. Defendia-se consigo; alegava a idade e os estudos do
filho, que em breve estaria a caminho de São Paulo, deixando-a só, sozinha no mundo.
O casamento seria uma consolação, uma companhia. E consigo, na rua ou em casa,
nas horas disponíveis, aprimorava o plano com todos os floreios da imaginação vivaz e
súbita; era uma vida nova, pois desde muito, antes mesmo da morte do marido, pode-
se dizer que era viúva. O negociante gozava do melhor conceito: a escolha era
excelente.
Não casou. O genro tornou do Sul, a filha deu à luz um menino robusto e lindo,
que foi a paixão da avó durante os primeiros meses. Depois, o genro, a filha e o neto
foram para o Norte. D. Benedita achou-se só e triste; o filho não bastava aos seus
afetos. A idéia de viajar tornou a rutilar-lhe na mente, mas como um fósforo, que se
apaga logo. Viajar sozinha era cansar e aborrecer-se ao mesmo tempo; achou melhor
ficar. Uma companhia lírica, adventícia, sacudiu-lhe o torpor, e restituiu-a à sociedade.
A sociedade incutiu-lhe outra vez a idéia do casamento, e apontou-lhe logo um
pretendente, desta vez um advogado, também viúvo.
— Casarei? não casarei?
Uma noite, volvendo D. Benedita este problema, à janela da casa de Botafogo,
para onde se mudara desde alguns meses, viu um singular espetáculo. Primeiramente
uma claridade opaca, espécie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espaço da
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enseada, fronteira à janela. Nesse quadro apareceu-lhe uma figura vaga e
transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos, porque
morriam todos no ar. A figura veio até ao peitoril da janela de D. Benedita; e de um
gesto sonolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas palavras sem sentido:
— Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando.
D. Benedita ficou aterrada, sem poder, mexer-se; mas ainda teve a força de
perguntar à figura quem era. A figura achou um princípio de riso, mas perdeu-o logo;
depois respondeu que era a fada que presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu
nome é Veleidade, concluiu; e, como um suspiro, dispersou-se na noite e no silêncio.
O SEGREDO DO BONZO.
Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto
Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de
Bungo, com o padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e
outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa
religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e
digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade.
Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu,
naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de
uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de
gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas,
varões somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua
da terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora
ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que era
exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que, em resumo,
era o seguinte: — Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos
grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova;
que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e
filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até
perigos de vida; mas enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo,
e especialmente da cidade Fuchéu, cuja filho era; e, se por ter aventado tão sublime
verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a
ciência valia mais do que a vida e seus deleites.
A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que
esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem, bradando: Patimau,
Patimau, viva Patimau que descobriu a origem dos grilos! E todos se foram com ele ao
alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e
reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão.
Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular
achado da origem dos grilos, quando, a pouca distância daquele alpendre, obra de seis
credos, não mais, achamos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a
outro homem. Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto
que também este falava apressado, repetiu-me na mesma maneira o teor da oração. E
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dizia este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim
descobrira o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente
destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a
excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto
animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele
podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda
cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar glória ao reino de
Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutara
esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem ao dito alpendre,
com a diferença que o trepou a uma charola; ali chegando, foi regalado com obséquios
iguais aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distinção entre eles, nem
outra competência nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os
banqueteados.
Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança
exata dos dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau,
ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o outro.
Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a
falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o
alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como — ouro da
verdade e sol do pensamento, — contou-lhe este o que víramos e ouvíramos pouco
antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: — Pode ser que eles andem
cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber,
morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de
ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no dia seguinte às casas
do bonzo, e acrescentou: — Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às
que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular que o
queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la à
nossa vontade.
No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome
Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e
humanas, e grandemente aceito a toda aquela gentilidade, e por isso mesmo malvisto
de outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané
quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e
bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para
confiá-la e explicá-la.
— Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas
existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem
ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos
conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contacto com outros homens, é
como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem
tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por
outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a
cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento,
tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência
de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo
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de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi
o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.
Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o
qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia
falando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo:
— Mal podeis adivinhar o que me deu idéia da nova doutrina; foi nada menos
que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma
montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais
dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a
viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprio
olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem
existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das
duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é
apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a
Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei,
em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a
eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das
folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida
futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões
astutos, com tal arte souberam meter estas duas idéias no ânimo da multidão, que hoje
desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas
capazes de dar a vida por eles.
Não sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo, as mostras do nosso vivo
contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente,
acerca da doutrina e dos fundamentos dela, e depois de reconhecer que a
entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque
houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão
dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim, despediu-se de nós
com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com a verdadeira alma de
pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome dele, lhe era em extremo
agradável.
Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três combinado em pôr por obra
uma idéia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em
moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie
de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro.
Combinamos, pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade
Fuchéu, uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios
que desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu
interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da
experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos
não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.
Consistiu a experiência de Titané em uma coisa que não sei como diga para que
a entendam. Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel
feito de casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois em
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pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com
vivas e variadas cores, e pela língua do país, as notícias da semana, políticas,
religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas,
balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há
freqüente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são
feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco de
uma espórtula, que cada um dá de bom grado para ter as notícias primeiro que os
demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este papel,
chamado pela nossa língua Vida e claridade das coisas mundanas e celestes, título
expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que
acabavam de chegar notícias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme
as quais não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que
estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e
graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer ao imperador para
que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo,
fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”, para recompensa dos que se
distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram grossíssimas as
encomendas feitas de todas as partes, às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao
lucro do que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito
em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cinqüenta corjas das
ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia agora; enfim, que apesar
da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, ele sabia os
deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo
da glória do reino de Bungo.
A leitura desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se
falando em outra coisa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas
estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais
nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo,
com muitas e extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com
muita graça:
— Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido
da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao
povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo.
— Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e
substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a
opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela.
Dito isto, assentaram os dois que era a minha vez de tentar a experiência, o que
imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a
narração da experiência de Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor
prova desta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que
tinha de música e charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os
principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram,
escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão
extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos
ademanes, da graça em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi trazida
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em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar,
e do desdém e ufania com que os baixei à mesma assembléia, a qual neste ponto
rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me
persuadiu do meu merecimento.
Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de
Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer
inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e
não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto
os físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos
enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à
lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele
órgão. Neste apertado lance, mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio,
e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que desde algum
tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu
que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o
mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum;
não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício. Então ocorreu-lhe uma
graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades
e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo
era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura
natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro
ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito
aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembléia foi imenso, e não menor a
incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que
acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das
palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o
seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do
saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons
fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do
que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com
toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o
mesmo.
A assembléia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo,
em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com
muitíssima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter
os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim
curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão
cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era
inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos
seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa
experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram
a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do
bonzo e benefício do mundo.
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O ANEL DE POLÍCRATES.
A— Lá vai o Xavier.
Z—Conhece o Xavier?
A–Há que anos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo...
Z—Que rico? que pródigo?
A—Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de
rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava
areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a
pompa de Salomão pode dar idéia do que era o Xavier nesse particular. Tinha um
serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma
raça, todas as prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia
enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo três
estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi aí
qualquer pé-rapado. Não, senhor. O portador foi um dos arcanjos de Milton, que o
Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a admiração dos
homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um
papel de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha de raios
do sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim também a esteira que
forrava o sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o
café, de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor-de-rosa, que Homero lhe
pôs. Pobre Xavier! Tudo o que o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o
maravilhoso, o indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um
galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as pérolas,
os diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por água
abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura da rua, não manda estrelas
às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens ...
ZVocê está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas
o Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil-réis mensais; é um homem
poupado, sóbrio, deita-se com as galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas
a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é
mendigo, nunca foi nababo.
A— Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de
Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier especulativo...
Z— Ah! — Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro,
que poema, que quadro...
A– Desde quando o conhece?
Z — Há uns quinze anos.
A– Upa! Conheço-o há muito mais tempo, desde que ele estreou na rua do Ouvidor, em
pleno marquês de Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as
coisas possíveis, e até contrárias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal,
um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra
ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política,
e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos. Quem
conversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de idéias e imagens, qual
mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime. Note que ele
tinha a convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por exemplo, acordou com o
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plano de arrasar o morro do Castelo, a troco das riquezas que os jesuítas ali deixaram,
segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil contos, inventariou-as com muito cuidado,
separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias;
descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
Z— Realmente...
AAh! impagável! Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do cônego Benigno, e
resolveu ir logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano,
descreveu-me a arquitetura provável da cidade, os templos, os palácios, gênero
etrusco, os ritos, os vasos, as roupas, os costumes...
Z— Era então doido?
A— Originarão apenas. Odeio os carneiros de Panúrgio, dizia ele, citando Rabelais:
Comme vous sçavez estre du mouton le naturel, tousjours suivre le premier, quelque
part qu’il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava
que antes comer um mau bife em mesa separada.
Z— Entretanto, gostava da sociedade.
AGostava da sociedade, mas não amava os sócios. Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe
um dia esse reparo; e sabe o que é que ele respondeu? Respondeu com um apólogo,
em que cada sócio figurava ser uma cuia d’água, e a sociedade uma banheira. — Ora,
eu não posso lavar-me em cuias d’água, foi a sua conclusão.
Z— Nada modesto. Que lhe disse o Pires?
AO Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, daí a tempos.
Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no teatro, e aplaudiu-o muito, com
entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me à
explicação da atual miséria do Xavier.
Z— É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo...
A— Explica-se facilmente. Ele espalhava idéias à direita e à esquerda, como o céu
chove, por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que era
impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria
com os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer
delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era um
derivativo. As páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só
precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem páginas e
capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a porção límpida
superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus cochilos. Espalhava
tudo, ao acaso, às mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cair; algumas pegavam
logo...
Z— Como a das cuias.
AComo a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das coisas belas, e, uma vez
que a árvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe.
Viveu assim longos anos, despendendo à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia,
na rua e em casa, um verdadeiro pródigo. Com tal regime, que era a ausência de
regime, não admira que ficasse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o
espírito têm limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos
homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol. O Xavier não só perdeu as idéias
que tinha, mas até exauriu a faculdade de as criar; ficou o que sabemos. Que moeda
rara se lhe vê hoje nas mãos? que sestércio de Horácio? que dracma de Péricles?
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Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda,
fez-se trivial, chocho...
Z— Cuia, enfim.
A— Justamente: cuia.
Z— Pois muito me conta. Não sabia nada disso. Fico inteirado; adeus.
A— Vai a negócio?
Z— Vou a um negócio.
A— Dá-me dez minutos?
Z— Dou-lhe quinze.
A—Quero referir-lhe a passagem mais interessante da vida do Xavier. Aceite o meu
braço, e vamos andando. Vai para a praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo.
Foi ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido
tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma
imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, — “uma bonita
rosa”; falava do luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos, sem
acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara
a ficar hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado das coisas,
vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o
cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se, e meteu as esporas
e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas
portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os
espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue-frio, a arte do
cavaleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo
nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E daí
veio uma idéia: comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou
sentenciosamente: Quem não for cavaleiro, que o pareça. Realmente, não era uma
idéia extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal
pareceu-lhe um diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários
modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora
dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão
alegre como casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente
montava um cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo.
Acordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu;
meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de Polícrates?
Z— Francamente, não.
A— Nem eu; mas aqui vai o que me disse o Xavier. Polícrates governava a ilha de
Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da
Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifício:
deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas
a Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engolido por
um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse
do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando
Plínio, citando...
Z— Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um
cavalo, mas...
A— Nada disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambótico do pobre-diabo.
Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia, lançada ao mar, pode
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tornar ao meu poder, como o anel de Polícrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu
caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão.
Z— Ora essa!
A— Não é estrambótico? Polícrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o
caiporismo; intenções diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo,
travou conversa, escolheu assunto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavalo
xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era
talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o
desconsolo dos anos, o malogro dos esforços, ou antes os efeitos da imprevidência, e
quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do amigo chegou ao
cume, foi que ele lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em casa. Isto que lhe conto é
natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa a juntar-se à realidade uma alta
dose de imaginação. Seja o que for, repito o que ele me disse. Cerca de três semanas
depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro
bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvez com a troca de um adjetivo.
“Meu pobre anel, disse ele, eis-te enfim no peixe de Polícrates.” Mas a idéia bateu as
asas e voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se. Dias depois, foi
convidado a um baile: era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava
a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem
que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu de um grupo de pessoas que louvavam a
carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu comparar o barão a um
cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavalo. Mas o
panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre
o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê-lo, e o barão era-o excelente. “— Entra, meu
querido anel, disse o Xavier, entra no dedo de Polícrates.” Mas de novo a idéia bateu as
asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois...
Z— Adivinho o resto: uma série de encontros e fugas do mesmo gênero.
A— Justo.
Z— Mas, enfim, apanhou-o um dia.
A— Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memória. Tão contente que
ele estava nesse dia! Jurou-me que ia escrever, a propósito disto, um conto fantástico,
à maneira de Edgard Poe, uma página fulgurante, pontuada de mistérios, — são as
suas próprias expressões; — e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel
fugira-lhe outra vez. “Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico; tens
em mim o Polícrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito.” Daí
em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia
ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho.
Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que ele
me contou naquele dia, quero dizer-lhe três...
Z— Não posso; lá se vão os quinze minutos.
A— Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia enfim agarrar a
fugitiva, e fincá-la perpetuamente no cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu
estupefato estas palavras: “O ministério parece ignorar que a política é, como a vida,
um cavalo xucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi,
devia ao menos parecer que o é.” — “Ah! enfim! exclamou o Xavier, cá estás engastado
no bucho do peixe; já me não podes fugir.” Mas, em vão! a idéia fugia-lhe, sem deixar
outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência. Sombrio, desesperado,
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começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um teatro, entrou; muita
gente, muitas luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cúmulo de benefícios;
era uma comédia do Pires, uma comédia nova. Sentou-se ao pé do autor, aplaudiu a
obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena
VIII, estremeceu. “D. Eugênia, diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado
à vida, que é também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve
cuidar de parecer que o é.” O autor, com o olhar tímido, espiava no rosto do Xavier o
efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras vezes:
— “Meu querido anel...”
Z— Et nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas.
AO último foi o primeiro. Já lhe disse que o Xavier transmitira a idéia a um amigo.
Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em quatro
dias estava à morte. O Xavier corre a vê-lo; e o infeliz ainda o pôde conhecer, estender-
lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz
sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: “Cá vou, meu caro Xavier, o cavalo xucro ou
manhoso da vida deitou-me ao chão: se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por
parecê-lo bom.” Não se ria; ele contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a
idéia ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de
cristal, que ele cria ser diamante; depois estalou um risinho de escárnio, ingrato e
parricida, e fugiu como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos,
amigos da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio
legado do defunto. Adeus.
O EMPRÉSTIMO.
Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo,
que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar
algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por
falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em
todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais
propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria
do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este
caso de empréstimo; ides ver se me engano.
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista,
é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não
digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a
representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande
ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo
pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou
sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo
em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo
em trinta ou sessenta minutos?
Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário.
Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso
na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas,
concertaram os papéis, arrumaram os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de
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paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes
ficou só.
Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está
morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele
adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e
resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento;
farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos
os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria
ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os
escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem filhos,
e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos
contos de réis.
— Quem é? perguntou ele de repente olhando para a porta da rua.
Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal
pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu,
cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não
trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para
dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes
estremeceu e esperou.
— Não se lembra de mim?
— Não me lembro...
— Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca... Não se lembra? Em
casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde... Veja
se lembra do Custódio.
— Ah!
Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem
de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas
longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário
da pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao
complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e
general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um exército.
A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a
alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do
trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas
damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto, um
artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem
dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut
bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n’en vois pas la
nécessité, redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio;
davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que
ele principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se
em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não
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prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava
logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia,
fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não
importa; aparelhava-se para outra.
Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco
contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis
meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma
grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os
desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as
respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um
longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que
ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas;
não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali,
cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de
saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-
réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de
medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem
dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as
esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o
nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do
tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o
salvador da situação.
— Venho pedir-lhe uma escritura...
Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou para cima dos
óculos e esperou.
— Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande
favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo...
— Se estiver nas minhas mãos...
— O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia
a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já
encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo
montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos.
Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, — ou a três, com juro módico...
— Cinco contos?
— Sim, senhor.
— Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam
mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode
esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?
— Ora, se o senhor quisesse...
— Quero, decerto; digo-lhe que se tratasse de uma quantia pequena,
acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia
que é impossível.
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A alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas
em vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a
última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse
certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regime do eventual, o do
Custódio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões
de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos
no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse
alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava
também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um
certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora
general. O tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.
— Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo.
— Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como
desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida; mas...
Estendeu a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no
chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas
convalescida da queda que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa,
nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio
tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao
adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos
à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando
para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado,
olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a
noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer;
por que não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia
fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma
razoável, quinhentos mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade
de emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do
presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos.
O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele ia ver surdir da
algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.
— Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos...
Quanto?
— Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito
modesta.
— Quinhentos mil-réis?
— Não; não posso.
— Nem quinhentos mil-réis?
— Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que
tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho
certas obrigações particulares... Diga-me, não está empregado?
— Não, senhor.
— Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da
justiça, tenho relações com ele, e...
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Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento
natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente
ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na
súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos,
não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos
mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade
urgente, — “tapar um buraco”. E então relatou tudo, respondeu à franqueza com
franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera
em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente
ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos
mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...
— Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos
mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas
forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...
— Não imagina os apuros em que estou!
— Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos.
Sociedades, subscrições, maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um
proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os
estragos, os consertos, as penas-d’água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os
buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...
— Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.
— Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter
cuidados, despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.
— Nem cem mil-réis!
— Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é verdade. Nem cem mil-réis. Que
horas são?
Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado,
desesperado. Não podia acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil-
réis. Quem é que não tem cem mil-réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o
cartório abria para a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito
apreçava uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era
escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e
com os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte
novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem
cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; — não de desdém, não de
raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinqüenta mil-réis.
Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.
Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço,
concertou a gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as
asas à ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia
umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da parede
com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por
todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco, enfim, e o tabelião, que
as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu
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o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o
lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o
com os olhos; invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a
matéria mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do
peito esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não
levasse ali vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem. .
.
— Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.
Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabelião, um convite ao menos, para
jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos supremos pedem energias supremas.
Custódio sentiu toda a força deste lugar-comum, e, súbito, como um tiro, perguntou ao
tabelião se não lhe podia dar ao menos dez mil-réis.
— Quer ver?
E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas
notas de cinco mil-réis.
— Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-
lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?
Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho,
palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a
mão ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, — um até breve cheio
de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o general
é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio
que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão
azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens traziam na retina a alma da
hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente
os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o
sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.
A SERENÍSSIMA REPÚBLICA.
(Conferência do cônego Vargas)
Meus senhores,
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o
nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão com que acudisses ao meu chamado.
Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, — e fora
ingratidão ignorá-lo, — que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa legítima
curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas.
Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876. Não a divulguei
então, — e, a não ser o Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda
agora, — por uma razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de que
venho falar-vos, carece de retoques últimos, de verificações e experiências
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complementares. Mas o Globo noticiou que um sábio inglês descobriu a linguagem
fônica dos insetos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e
aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea,
invento do padre Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso
patrício mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do
insigne Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que
muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto naturalista descobriu
coisa idêntica, e fez com ela obra superior.
Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe
perguntasse: Credes que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles
responderia negativamente, com vós todos, porque é impossível crer que jamais se
chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao
trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu.
Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os
preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais
o cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como
o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não zune nem morde como
o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o
modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por
certas qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua
propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores, não nos aflige nem defrauda;
apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo
de paciência, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto aos seus
talentos, não há duas opiniões. Desde Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo
inteiro formam um só coro de admiração em torno desse bichinho, cuja maravilhosa teia
a vassoura inconsciente do vosso criado destrói em menos de um minuto. Eu repetiria
agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém, excede o prazo, sou
constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos; tenho, entre
eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta subtileza estudou a vida
psíquica dos animais. Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à
homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e
as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo.
Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi
alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro
exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era
tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos
movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte
vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-
as longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que
me causou a descoberta do idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que
uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintáxica, os seus verbos, conjugações,
declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou
gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso.
E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma paciência extraordinária.
Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me forças para arremeter a um
trabalho que, hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo
homem.
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Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu arácnide, e a análise da
língua. O objeto desta conferência é, como disse, ressalvar os direitos da ciência
brasileira, por meio de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que
reputo a minha obra superior à do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este
ponto chamo a vossa atenção.
Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinqüenta e
cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram
principalmente à empresa de as congregar: — o emprego da língua delas, desde que
pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura,
as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das
aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as
acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações
que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-se
ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como
sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música.
Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na
escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham
contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a
comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova,
ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada
me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo
molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições
gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo
complicado, — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade.
Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais
da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço
do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se
anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras
públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os
desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça.
Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de
suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena.
A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico,
roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.
Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão
cedo. Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus;
formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações
seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e
melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso
afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de
algumas virtudes, que presumo essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como
já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-
vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da
vida pública, trataram de o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma
obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com
os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas
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principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e
foros. Uma obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem
os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial
público, denominado “das inscrições”. No dia da eleição, as bolas são metidas no saco
e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era
um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os
cargos.
A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos
legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o
nome do mesmo candidato. A assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou
que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a
capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la.
Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na
competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este
declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou
nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não
houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico
inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a
estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e
restaurou as três polegadas.
Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos
apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os
próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas
denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a geometria que os divide
em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido
retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios
curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este
postulado: — as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-
curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que
fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas
de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a
geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma
simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a
inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a
bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários
respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão
da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a
parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos
exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e
proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O
quarto limita-se a negar tudo.
Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é
verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do
segundo por lhe faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário
ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da
república. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor;
requereram uma devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições
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intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a
intenção; mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o
era, puramente literário. Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de
ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou
decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas
pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim
teriam tempo de corrigir as inscrições.
Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta
aberta à lealdade serviu à astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial
das extrações, para haver um lugar na assembléia. A vaga era uma, os candidatos três;
o oficial extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar
negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para
condenar a idéia das malhas. A assembléia, com exemplar paciência, restaurou o
tecido espesso do regime anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação
das bolas cuja inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o
nome inscrito o próprio nome do candidato.
Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver.
Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as
rendas públicas, sob a forma de espórtulas voluntárias. Eram candidatos, entre outros,
um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava
errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos
da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo,
quando o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de
Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande
filólogo, — talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e não vulgar
matemático, — o qual provou a coisa nestes termos:
— Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita a ausência da
última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito incompletamente? Não se
pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a última letra, um simples
a. Carência de espaço? Também não; vede: há ainda espaço para duas ou três sílabas.
Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra, senão chamar a atenção do
leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um
efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos,
a forma gráfica e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os
olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro, esta primeira sílaba: Ca. Isto
posto, o movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial
ne, do nome Nebrask. — Cané. — Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta
outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E,
todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da
significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases,
modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas e
outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da minha
afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome
Caneca.
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A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e
interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma inovação, o corte simultâneo de meia
polegada na altura e outra meia na largura do saco. Esta emenda não evitou um
pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas,
dando-se-lhe, todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consigo,
uma conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma
cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se
reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou-se a forma de um crescente, etc.
Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual
destino, não inteiramente, decerto, pois a perfeição não é deste mundo, mas na medida
e nos termos do conselho de um dos mais circunspectos cidadãos da minha república,
Erasmus, cujo último discurso sinto não poder dar-vos integralmente. Encarregado de
notificar a última resolução legislativa às dez damas incumbidas de urdir o saco
eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa
teia, à espera do esposo Ulisses.
— Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a
mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco,
até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe.
Ulisses é a Sapiência.
O ESPELHO.
Esboço de uma nova teoria da alma humana
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta
transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos
espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a
velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade,
com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através
de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco
investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos
problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além
deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja
espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse
homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era
provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e
cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo
que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma
herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada,
e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta
naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia,
se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:
— Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
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Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da
palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus
meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro
amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão
tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram
do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos
argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, — uma conjetura, ao menos.
— Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a
dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados,
posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração
acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
— Duas?
— Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à
vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me
replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um
fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo,
em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; — e assim
também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina,
um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a
primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.
Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há,
não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por
exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los eqüivalia a
morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no
coração.” Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para
ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
— Não?
— Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas
absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi
a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há
outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja
alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais
tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma
senhora, — na verdade, gentilíssima, — que muda de alma exterior cinco, seis vezes
por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior
substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
— Perdão; essa senhora quem é?
— Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião...
E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as
relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos
meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a
controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo
da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até
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há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no
Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele
começou a narração:
— Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da
Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha
mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi
tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro
e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha
muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do
desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns
rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo.
Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a
prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas
tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num
sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda.
Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina,
apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de
um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me
um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja
da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia
outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para
lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela
abanava a cabeça, bradando que não, que era o “senhor alferes”. Um cunhado dela,
irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o
“senhor alferes”, não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente
foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido.
Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de
mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do
resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a
madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em
1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição.
O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em
parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns
enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...
— Espelho grande?
— Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na
sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do
propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente
que o “senhor alferes” merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos,
atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da
mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?
— Não.
— O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas
equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte
mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o
ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os
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rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A
única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da
patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?
— Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
— Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A
melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro,
um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver
como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se
viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham
de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era
outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina
uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco
léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa,
armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse
conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado
e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-
lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de
quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma
exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes
continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência
mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de
certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica
interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria,
de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes
há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um
concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu
suspeitar a intenção secreta dos malvados.
— Matá-lo?
— Antes assim fosse.
— Coisa pior?
— Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por
outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim
fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro
deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala,
tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de
mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães
foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor
do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um
pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste
por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não
sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da
casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha
prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio
nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no
outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem
vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse
perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do
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tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha
solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol
abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a
século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior,
como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia
americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! —
For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias
medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: — Never, for
ever!— For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um
cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio
era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita,
ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no
terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?
— Sim, parece que tinha um pouco de medo.
— Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela
situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido.
Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um
boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão
comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse
fenômeno: — o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a
alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos
amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de
nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso
fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do
meu ser novo e único —porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava
dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um
lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne
vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais
do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso,
desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava,
tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de
escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada
definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para
intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne,
soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.
— Mas não comia?
— Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas
suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava.
Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões,
décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava
beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e
mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo
eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
— Na verdade, era de enlouquecer.
— Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara
uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um
impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela
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casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição
humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o
fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com
o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada,
difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho
reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido.
Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação
nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. — Vou-me embora,
disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de
decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado...
Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com
estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em
quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas,
a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma
inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes
de adivinhar qual foi a minha idéia...
— Diga.
— Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado,
contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas
soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.
— Mas, diga, diga.
— Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como
estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro
reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso;
era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a
dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai
um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois
começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns
nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali
um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o
espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo.
Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a
uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando,
meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude
atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.
UMA VISITA DE ALCIBÍADES.
Carta do desembargador X... ao chefe de polícia da Corte
Corte, 20 de setembro de 1875.
Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á
daqui a pouco.
Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-
me no sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos,
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há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou
mania, que era o nome que V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar
em outras disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio
alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da ação ou da obra. Depois de
jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um
pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a
insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, o circo Chiarini.
Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária.
Foi o que se deu hoje. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades.
Deixei-me ir ao sabor da loqüela ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos,
admirava o mais guapo dos atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma
firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos.
Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais
para fazer voar toda a arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história,
enquanto os olhos me caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó
de alpaca e nos sapatos de cordovão. E então refleti comigo:
— Que impressão daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno?
Sou espiritista desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são
puras niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que este não
seja só recreativo, mas também útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário
evocar o espírito dos mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura
perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de
um ato do que o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual
fosse a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do
gosto de admirar a minha própria habilidade. Determinei, portanto, evocar o ateniense;
pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.
E aqui começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em
acudir ao chamado; dois minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede;
mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa
escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à
antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes
assembléias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus. V. Ex.ª, tão sabedor da
história, não ignora que também houve pataus em Atenas; sim, Atenas também os
possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais
fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em
minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo. Nutri ainda
a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal
rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei
os olhos, fitei-os, e...
— Que me queres? perguntou ele.
Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e falava grego, o mais
puro ático. Era ele, não havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos,
restituído à vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa
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cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na
carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar
assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona.
Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu, falou-me
com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a
confiança. Hábil como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No fim de poucos minutos
conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos
os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto
fosse necessário, — de um incêndio.
Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da idéia de o consultar acerca do
vestuário moderno; pedira um espectro, não um homem “de verdade”, como dizem as
crianças. Limitei-me a responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-
lhas; disse-lhe que ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação
muçulmana, a independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos
pendurados da minha boca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não
houvessem contado nada, explicou-me que à porta do outro mundo afrouxavam muito
os interesses deste. Não vira Botzaris nem lord Byron, — em primeiro lugar, porque é
tanta e tantíssima a multidão de espíritos, que estes se fazem naturalmente
desencontrados; em segundo lugar, porque eles lá congregam-se, não por
nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de índole, costume e profissão:
assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e namorados, com o
duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc. Em seguida pediu-me
notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe do parlamento helênico e
do método alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patrícios,
imitam Disraeli e Gladstone, revezando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de
discurso. Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me:
— Bravo, atenienses!
Se entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª
o conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que
Alcibíades escutava-me com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia
as coisas sem largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me
pareceu em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se
simples, atento, correto, sensível e digno. E gamenho, note V. Ex.ª, tão gamenho como
outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras damas deste
século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saía de certas atitudes
esculturais.
— Vá, continua, dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias.
Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo
possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não
iria eu ter com ele à eternidade. Esta idéia gelou-me. Para um homem que acabou de
digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos. Se
pudesse fugir... Animei-me: disse-lhe que ia a um baile.
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— Um baile? Que coisa é um baile?
Expliquei-lho.
— Ah! ver dançar a pírrica!
— Não, emendei eu, a pírrica já lá vai. Cada século, meu caro Alcibíades, muda
de danças como muda de idéias. Nós já não dançamos as mesmas coisas do século
passado; provavelmente o século XX não dançará as deste. A pírrica foi-se, com os
homens de Plutarco e os numes de Hesíodo.
— Com os numes?
Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara, que as academias do século
passado ainda lhe deram abrigo, mas sem convicção, nem alma, que as mesmas
bebedeiras arcádicas,
Evoé! padre Bassareu!
Evoé! etc.
Honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas
estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe, acrescentei, um ou outro
poeta, um ou outro prosador alude aos restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala
ou brinco, ao passo que a ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo
morto.
— Morto Zeus?
— Morto.
— Dionisos, Afrodita?...
— Tudo morto.
O homem de Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação,
como se dissesse consigo, imitando o outro: — Ah! se lá estou com os meus
atenienses! — Zeus, Dionisos, Afrodita... murmurava de quando em quando. Lembrou-
me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos deuses e perguntei a mim
mesmo donde vinha aquela indignação póstuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me,
— um devoto do grego! — esquecia-me que ele era também um refinado hipócrita, um
ilustre dissimulado. E quase não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades,
detendo-se repentinamente, declarou-me que iria ao baile comigo.
— Ao baile? repeti atônito.
— Ao baile, vamos ao baile.
Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não era possível, que não o admitiriam,
com aquele trajo; pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia
de Aristófanes, acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo,
entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o
diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo,
deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia
desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu
século.
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— Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora não vou sem comparar as danças.
— Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a
maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o
mais feiticeiro dos atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças,
os velhos... é impossível.
— Por quê?
— Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque essa
roupa...
— Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa
que me emprestes?
Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma
vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.
— Pois bem, tornou ele levantando-se, irei à maneira do século. Só peço que te
vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.
Levantei-me também, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo;
estava assombrado. Vi que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para
elas com os olhos arregalados, a boca aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia
aqueles canudos de pano. Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o
nosso século, mais recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo
compatível com o seu decoro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio
que o lisonjeei com isto; ele sorriu e deu de ombros.
— Enfim!
Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, às pressas.
Alcibíades sentou-se molemente num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o
espelho, a palhinha, os quadros. — Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por
sair à rua, por meter-me no primeiro tílburi que passasse...
— Canudos pretos! exclamou ele.
Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em
que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu
melindre de homem moderno. Porque, note V. Ex.ª ainda que o nosso tempo nos
pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha
mofar dele às nossas barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e
continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava
uma cor tão feia...
— Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do corte, vê como cai
sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição.
E vendo que ele abanava a cabeça:
— Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o
emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos
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tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra
coisa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, — belo
à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodos recitando os seus
versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu
mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...
— Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim.
Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa
era uma ilusão. Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o
laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade,
estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe
o uso da gravata e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas
pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a
enfim, depois vesti o colete.
— Por Afrodita! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na
morte. Estás todo cor da noite — uma noite com três estrelas apenas — continuou
apontando para os botões do peito. O mundo deve andar imensamente melancólico, se
escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...
Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do
ateniense foi indescritível. Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular
nada, tinha os olhos cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com
medo, e tratei de apressar ainda mais a saída.
— Estás completo? perguntou-me ele.
— Não: falta o chapéu.
— Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz
suplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida
a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto levantando-
me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo!
Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu?
— O chapéu.
— Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.
Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pulo na cabeça. Alcibíades
olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com
dor o digo) era tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de
expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e
se proceda ao corpo de delito, relevando-me de não ir pessoalmente à casa de V. Ex.ª
agora mesmo (dez da noite) em atenção ao profundo abalo por que acabo de passar, o
que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.
VERBA TESTAMENTÁRIA.
“...Item, é minha última vontade que o caixão em que o meu corpo houver de ser
enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, à rua da Alfândega. Desejo que
ele tenha conhecimento desta disposição, que também será pública. Joaquim Soares
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não me conhece; mas é digno da distinção, por ser dos nossos melhores artistas, e um
dos homens mais honrados da nossa terra...”
Cumpriu-se à risca esta verba testamentária. Joaquim Soares fez o caixão em
que foi metido o corpo do pobre Nicolau B. de C.; fabricou-o ele mesmo, con amore; e,
no fim, por um movimento cordial, pediu licença para não receber nenhuma
remuneração. Estava pago; o favor do defunto era em si mesmo um prêmio insigne. Só
desejava uma coisa: a cópia autêntica da verba. Deram-lha; ele mandou-a encaixilhar e
pendurar de um prego, na loja. Os outros fabricantes de caixões, passado o assombro,
clamaram que o testamento era um despropósito. Felizmente, — e esta é uma das
vantagens do estado social, — felizmente, todas as demais classes acharam que
aquela mão, saindo do abismo para abençoar a obra de um operário modesto, praticara
uma ação rara e magnânima. Era em 1855; a população estava mais conchegada; não
se falou de outra coisa. O nome do Nicolau reboou por muitos dias na imprensa da
Corte, donde passou à das províncias. Mas a vida universal é tão variada, os sucessos
acumulam-se em tanta multidão, e com tal presteza, e, finalmente, a memória dos
homens é tão frágil, que um dia chegou em que a ação de Nicolau mergulhou de todo
no olvido.
Não venho restaurá-la. Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em
que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito. Obra de
lápis e esponja. Não, não venho restaurá-la. Há milhares de ações tão bonitas, ou ainda
mais bonitas do que a do Nicolau, e comidas do esquecimento. Venho dizer que a
verba testamentária não é um efeito sem causa; venho mostrar uma das maiores
curiosidades mórbidas deste século.
Sim, leitor amado, vamos entrar em plena patologia. Esse menino que aí vês,
nos fins do século passado (em 1855, quando morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito
anos), esse menino não é um produto são, não é um organismo perfeito. Ao contrário,
desde os mais tenros anos, manifestou por atos reiterados que há nele algum vício
interior, alguma falha orgânica. Não se pode explicar de outro modo a obstinação com
que ele corre a destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são iguais
aos dele, ou ainda inferiores, mas os que são melhores ou mais ricos. Menos ainda se
compreende que, nos casos em que o brinquedo é único, ou somente raro, o jovem
Nicolau console a vítima com dois ou três pontapés; nunca menos de um. Tudo isso é
obscuro. Culpa do pai não pode ser. O pai era um honrado negociante ou comissário (a
maior parte das pessoas a que aqui se dá o nome de comerciantes, dizia o marquês de
Lavradio, nada mais são que uns simples comissários), que viveu com certo luzimento,
no último quartel do século, homem ríspido, austero, que admoestava o filho, e, sendo
necessário, castigava-o. Mas nem admoestações, nem castigos, valiam nada. O
impulso interior do Nicolau era mais eficaz do que todos os bastões paternos; e, uma ou
duas vezes por semana, o pequeno reincidia no mesmo delito. Os desgostos da família
eram profundos. Deu-se mesmo um caso, que, por suas gravíssimas conseqüências,
merece ser contado.
O vice-rei, que era então o conde de Resende, andava preocupado com a
necessidade de construir um cais na praia de D. Manuel. Isto, que seria hoje um
simples episódio municipal, era naquele tempo, atentas as proporções escassas da
cidade, uma empresa importante. Mas o vice-rei não tinha recursos; o cofre público mal
podia acudir às urgências ordinárias. Homem de estado, e provavelmente filósofo,
engendrou um expediente não menos suave que profícuo: distribuir, a troco de
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donativos pecuniários, postos de capitão, tenente e alferes. Divulgada a resolução,
entendeu o pai do Nicolau que era ocasião de figurar, sem perigo, na galeria militar do
século, ao mesmo tempo que desmentia uma doutrina bramânica. Com efeito, está nas
leis de Manu, que dos braços de Brama nasceram os guerreiros, e do ventre os
agricultores e comerciantes; o pai do Nicolau, adquirindo o despacho de capitão,
corrigia esse ponto da anatomia gentílica. O outro comerciante, que com ele competia
em tudo, embora familiares e amigos, apenas teve notícia do despacho, foi também
levar a sua pedra ao cais. Desgraçadamente, o despeito de ter ficado atrás alguns dias,
sugeriu-lhe um arbítrio de mau gosto e, no nosso caso, funesto; foi assim que ele pediu
ao vice-rei outro posto de oficial do cais (tal era o nome dado aos agraciados por aquele
motivo) para um filho de sete anos. O vice-rei hesitou; mas o pretendente, além de
duplicar o donativo, meteu grandes empenhos, e o menino saiu nomeado alferes. Tudo
correu em segredo; o pai de Nicolau só teve notícia do caso no domingo próximo, na
igreja do Carmo, ao ver os dois, pai e filho, vindo o menino com uma fardinha, que, por
galanteria, lhe meteram no corpo. Nicolau, que também ali estava, fez-se lívido; depois,
num ímpeto, atirou-se sobre o jovem alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os pais
pudessem acudir. Um escândalo. O rebuliço do povo, a indignação dos devotos, as
queixas do agredido, interromperam por alguns instantes as cerimônias eclesiásticas.
Os pais trocaram algumas palavras acerbas, fora, no adro, e ficaram brigados para todo
o sempre.
— Este rapaz há de ser a nossa desgraça! bradava o pai de Nicolau, em casa,
depois do episódio.
Nicolau apanhou então muita pancada, curtiu muita dor, chorou, soluçou; mas de
emenda coisa nenhuma. Os brinquedos dos outros meninos não ficaram menos
expostos. O mesmo passou a acontecer às roupas. Os meninos mais ricos do bairro
não saíam fora senão com as mais modestas vestimentas caseiras, único modo de
escapar às unhas de Nicolau. Com o andar do tempo, estendeu ele a aversão às
próprias caras, quando eram bonitas, ou tidas como tais. A rua em que ele residia,
contava um sem-número de caras quebradas, arranhadas, conspurcadas. As coisas
chegaram a tal ponto, que o pai resolveu trancá-lo em casa durante uns três ou quatro
meses. Foi um paliativo, e, como tal, excelente. Enquanto durou a reclusão, Nicolau
mostrou-se nada menos que angélico; fora daquele sestro mórbido, era meigo, dócil,
obediente, amigo da família, pontual nas rezas. No fim dos quatro meses, o pai soltou-
o; era tempo de o meter com um professor de leitura e gramática.
— Deixe-o comigo, disse o professor; deixe-o comigo, e com esta (apontava para
a palmatória)... Com esta, é duvidoso que ele tenha vontade de maltratar os
companheiros.
Frívolo! três vezes frívolo professor! Sim, não há dúvida, que ele conseguiu
poupar os meninos bonitos e as roupas vistosas, castigando as primeiras investidas do
pobre Nicolau; mas em que é que este sarou da moléstia? Ao contrário, obrigado a
conter-se, a engolir o impulso, padecia dobrado, fazia-se mais lívido, com reflexo de
verde bronze; em certos casos, era compelido a voltar os olhos ou fechá-los, para não
arrebentar, dizia ele. Por outro lado, se deixou de perseguir os mais graciosos ou
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melhor adornados, não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no estudo;
espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os fora, nas praias ou no mangue. Rixas,
sangue, ódios, tais eram os frutos da vida, para ele, além das dores cruéis que padecia,
e que a família teimava em não entender. Se acrescentarmos que ele não pôde estudar
nada seguidamente, mas a trancos, e mal, como os vagabundos comem, nada fixo,
nada metódico, teremos visto algumas das dolorosas conseqüências do fato mórbido,
oculto e desconhecido. O pai, que sonhava para o filho a Universidade, vendo-se
obrigado a estrangular mais essa ilusão, esteve prestes a amaldiçoá-lo; foi a mãe que o
salvou.
Saiu um século, entrou outro, sem desaparecer a lesão do Nicolau. Morreu-lhe o
pai em 1807 e a mãe em 1809; a irmã casou com um médico holandês, treze meses
depois. Nicolau passou a viver só. Tinha vinte e três anos; era um dos petimetres da
cidade, mas um singular petimetre, que não podia encarar nenhum outro, ou fosse mais
gentil de feições, ou portador de algum colete especial sem padecer uma dor violenta,
tão violenta, que o obrigava às vezes a trincar o beiço até deitar sangue. Tinha
ocasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase
imperceptível de espuma. E o resto não era menos cruel. Nicolau ficava então ríspido;
em casa achava tudo mau, tudo incômodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos
escravos com os pratos, que iam partir-se também, e perseguia os cães, a pontapés;
não sossegava dez minutos, não comia, ou comia mal. Enfim dormia; e ainda bem que
dormia. O sono reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarca, beijando os
cães entre as orelhas, deixando-se lamber por eles, dando-lhes do melhor que tinha,
chamando aos escravos as coisas mais familiares e ternas. E tudo, cães e escravos,
esqueciam as pancadas da véspera, e acudiam às vozes dele obedientes, namorados,
como se este fosse o verdadeiro senhor, e não o outro.
Um dia, estando ele em casa da irmã, perguntou-lhe esta por que motivo não
adotava uma carreira qualquer, alguma coisa em que se ocupasse, e...
— Tens razão, vou ver, disse ele.
Interveio o cunhado e opinou por um emprego na diplomacia. O cunhado
principiava a desconfiar de alguma doença e supunha que a mudança de clima bastava
a restabelecê-lo. Nicolau arranjou uma carta de apresentação, e foi ter com o ministro
de estrangeiros. Achou-o rodeado de alguns oficiais da secretaria, prestes a ir ao paço,
levar a notícia da segunda queda de Napoleão, notícia que chegara alguns minutos
antes. A figura do ministro, as circunstâncias do momento, as reverências dos oficiais,
tudo isso deu um tal rebate ao coração do Nicolau, que ele não pôde encarar o ministro.
Teimou, seis ou oito vezes, em levantar os olhos, e da única em que o conseguiu
fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguém, ou só uma sombra, um vulto, que lhe
doía nas pupilas ao mesmo tempo que a face ia ficando verde. Nicolau recuou,
estendeu a mão trêmula ao reposteiro, e fugiu.
— Não quero ser nada! disse ele à irmã, chegando a casa; fico com vocês e os
meus amigos.
Os amigos eram os rapazes mais antipáticos da cidade, vulgares e ínfimos.
Nicolau escolhera-os de propósito. Viver segregado dos principais era para ele um
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grande sacrifício; mas, como teria de padecer muito mais vivendo com eles, tragava a
situação. Isto prova que ele tinha um certo conhecimento empírico do mal e do
paliativo. A verdade é que, com esses companheiros, desapareciam todas as
perturbações fisiológicas do Nicolau. Ele fitava-os sem lividez, sem olhos vesgos, sem
cambalear, sem nada. Além disso, não só eles lhe poupavam a natural irritabilidade,
como porfiavam em tornar-lhe a vida, senão deliciosa, tranqüila; e para isso, diziam-he
as maiores finezas do mundo, em atitudes cativas, ou com uma certa familiaridade
inferior. Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a
droga que lhes restitui a saúde; acariciava-as paternalmente, dava-lhes o louvor
abundante e cordial, emprestava-lhes dinheiro, distribuía-lhes mimos, abria-lhes a
alma...
Veio o grito do Ipiranga; Nicolau meteu-se na política. Em 1823 vamos achá-lo
na Constituinte. Não há que dizer ao modo por que ele cumpriu os deveres do cargo.
Integro, desinteressado, patriota, não exercia de graça essas virtudes públicas, mas à
custa de muita tempestade moral. Pode-se dizer, metaforicamente, que a freqüência da
câmara custava-lhe sangue precioso. Não era só porque os debates lhe pareciam
insuportáveis, mas também porque lhe era difícil encarar certos homens, especialmente
em certos dias. Montezuma, por exemplo, parecia-lhe balofo, Vergueiro, maçudo, os
Andradas, execráveis. Cada discurso, não só dos principais oradores, mas dos
secundários, era para o Nicolau verdadeiro suplício. E, não obstante, firme, pontual.
Nunca a votação o achou ausente; nunca o nome dele soou sem eco pela augusta sala.
Qualquer que fosse o seu desespero, sabia conter-se e pôr a idéia da pátria acima do
alívio próprio. Talvez aplaudisse in petto o decreto da dissolução. Não afirmo; mas há
bons fundamentos para crer que o Nicolau, apesar das mostras exteriores, gostou de
ver dissolvida a assembléia. E se essa conjetura é verdadeira, não menos o será esta
outra: — que a deportação de alguns dos chefes constituintes, declarados inimigos
públicos, veio aguar-lhe aquele prazer. Nicolau, que padecera com os discursos deles,
não menos padeceu com o exílio, posto lhes desse um certo relevo. Se ele também
fosse exilado!
— Você podia casar, mano, disse-lhe a irmã.
— Não tenho noiva.
— Arranjo-lhe uma. Valeu?
Era um plano do marido. Na opinião deste, a moléstia do Nicolau estava
descoberta; era um verme do baço, que se nutria da dor do paciente, isto é, de uma
secreção especial, produzida pela vista de alguns fatos, situações ou pessoas. A
questão era matar o verme; mas, não conhecendo nenhuma substância química própria
a destruí-lo, restava o recurso de obstar à secreção, cuja ausência daria igual resultado.
Portanto, urgia casar o Nicolau, com alguma moça bonita e prendada, separá-lo do
povoado, metê-lo em alguma fazenda, para onde levaria a melhor baixela, os melhores
trastes, os mais reles amigos, etc.
— Todas as manhãs, continuou ele, receberá o Nicolau um jornal que vou
mandar imprimir com o único fim de lhe dizer as coisas mais agradáveis do mundo, e
dizê-las nominalmente, recordando os seus modestos, mas profícuos trabalhos da
Constituinte, e atribuindo-lhe muitas aventuras namoradas, agudezas de espírito,
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rasgos de coragem. Já falei ao almirante holandês para consentir que, de quando em
quando, vá ter com Nicolau algum dos nossos oficiais dizer-lhe que não podia voltar
para a Haia sem a honra de contemplar um cidadão tão eminente e simpático, em
quem se reúnem qualidades raras, e, de ordinário, dispersas. Você, se puder alcançar
de alguma modista, a Gudin, por exemplo, que ponha o nome de Nicolau em um
chapéu ou mantelete, ajudará muito a cura de seu mano. Cartas amorosas anônimas,
enviadas pelo correio, são um recurso eficaz... Mas comecemos pelo princípio, que é
casá-lo.
Nunca um plano foi mais conscienciosamente executado. A noiva escolhida era a
mais esbelta, ou uma das mais esbeltas da capital. Casou-os o próprio bispo. Recolhido
à fazenda, foram com ele somente alguns de seus mais triviais amigos; fez-se o jornal,
mandaram-se as cartas, peitaram-se as visitas. Durante três meses tudo caminhou às
mil maravilhas. Mas a natureza, apostada em lograr o homem, mostrou ainda desta vez
que ela possui segredos inopináveis. Um dos meios de agradar ao Nicolau era elogiar a
beleza, a elegância e as virtudes da mulher; mas a moléstia caminhara, e o que parecia
remédio excelente foi simples agravação do mal. Nicolau, ao fim de certo tempo,
achava ociosos e excessivos tantos elogios à mulher, e bastava isto a impacientá-lo, e
a impaciência a produzir-lhe a fatal secreção. Parece mesmo que chegou ao ponto de
não poder encará-la muito tempo, e a encará-la mal; vieram algumas rixas, que seriam
o princípio de uma; separação, se ela não morresse daí a pouco. A dor do Nicolau foi
profunda e verdadeira; mas a cura interrompeu-se logo, porque ele desceu ao Rio de
Janeiro, onde o vamos achar, tempos depois, entre os revolucionários de 1831.
Conquanto pareça temerário dizer as causas que levaram o Nicolau para o
Campo da Aclamação, na noite de 6 para 7 de abril, penso que não estará longe da
verdade quem supuser que — foi o raciocínio de um ateniense célebre e anônimo.
Tanto os que diziam bem, como os que diziam mal do imperador, tinham enchido as
medidas ao Nicolau. Esse homem, que inspirava entusiasmos e ódios, cujo nome era
repetido onde quer que o Nicolau estivesse, na rua, no teatro, nas casas alheias,
tornou-se uma verdadeira perseguição mórbida, daí o fervor com que ele meteu a mão
no movimento de 1831. A abdicação foi um alívio. Verdade é que a Regência o achou
dentro de pouco tempo entre os seus adversários; e há quem afirme que ele se filiou ao
partido caramuru ou restaurador, posto não ficasse prova do ato. O que é certo é que a
vida pública do Nicolau cessou com a Maioridade.
A doença apoderara-se definitivamente do organismo. Nicolau ia, a pouco e
pouco, recuando na solidão. Não podia fazer certas visitas, freqüentar certas casas. O
teatro mal chegava a distraí-lo. Era tão melindroso o estado dos seus órgãos auditivos,
que o ruído dos aplausos causava-lhe dores atrozes. O entusiasmo da população
fluminense para com a famosa Candiani e a Meréia, mas a Candiani principalmente,
cujo carro puxaram alguns braços humanos, obséquio tanto mais insigne quanto que o
não fariam ao próprio Platão, esse entusiasmo foi uma das maiores mortificações do
Nicolau. Ele chegou ao ponto de não ir mais ao teatro, de achar a Candiani
insuportável, e preferir a Norma dos realejos à da prima-dona. Não era por exageração
de patriota que ele gostava de ouvir o João Caetano, nos primeiros tempos; mas afinal
deixou-o também, e quase que inteiramente os teatros.
— Está perdido! pensou o cunhado. Se pudéssemos dar-lhe um baço novo...
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Como pensar em semelhante absurdo? Estava naturalmente perdido. Já não
bastavam os recreios domésticos. As tarefas literárias a que se deu, versos de família,
glosas a prêmio e odes políticas, não duraram muito tempo, e pode ser até que lhe
dobrassem o mal. De fato, um dia, pareceu-lhe que essa ocupação era a coisa mais
ridícula do mundo, e os aplausos ao Gonçalves Dias, por exemplo, deram-lhe idéia de
um povo trivial e de mau gosto. Esse sentimento literário, fruto de uma lesão orgânica,
reagiu sobre a mesma lesão, ao ponto de produzir graves crises, que o tiveram algum
tempo na cama. O cunhado aproveitou o momento para desterrar-lhe da casa todos os
livros de certo porte.
Explica-se menos o desalinho com que daí a meses começou a vestir-se.
Educado com hábitos de elegância, era antigo freguês de um dos principais alfaiates da
Corte, o Plum, não passando um só dia em que não fosse pentear-se ao Desmarais e
Gérard, coiffeurs de la cour, à rua do Ouvidor. Parece que achou enfatuada esta
denominação de cabeleireiros do paço, e castigou-os indo pentear-se a um barbeiro
ínfimo. Quanto ao motivo que o levou a trocar de traje, repito que é inteiramente
obscuro, e a não haver sugestão da idade é inexplicável. A despedida do cozinheiro é
outro enigma. Nicolau, por insinuação do cunhado, que o queria distrair, dava dois
jantares por semana; e os convivas eram unânimes em achar que o cozinheiro dele
primava sobre todos os da capital. Realmente os pratos eram bons, alguns ótimos, mas
o elogio era um tanto enfático, excessivo, para o fim justamente de ser agradável ao
Nicolau, e assim aconteceu algum tempo. Como entender, porém, que um domingo,
acabado o jantar, que fora magnífico, despedisse ele um varão tão insigne, causa
indireta de alguns dos seus mais deleitosos momentos na terra? Mistério impenetrável.
— Era um ladrão! foi a resposta que ele deu ao cunhado.
Nem os esforços deste nem os da irmã e dos amigos, nem os bens, nada
melhorou o nosso triste Nicolau. A secreção do baço tornou-se perene, e o verme
reproduziu-se aos milhões, teoria que não sei se é verdadeira, mas enfim era a do
cunhado. Os últimos anos foram crudelíssimos. Quase se pode jurar que ele viveu
então continuamente verde, irritado, olhos vesgos, padecendo consigo ainda muito
mais do que fazia padecer aos outros. A menor ou maior coisa triturava-lhe os nervos:
um bom discurso, um artista hábil, uma sege, uma gravata, um soneto, um dito, um
sonho interessante, tudo dava de si uma crise.
Quis ele deixar-se morrer? Assim se poderia supor, ao ver a impassibilidade com
que rejeitou os remédios dos principais médicos da Corte; foi necessário recorrer à
simulação, e dá-los, enfim, como receitados por um ignorantão do tempo. Mas era
tarde. A morte levou-o ao cabo de duas semanas.
— Joaquim Soares? bradou atônito o cunhado, ao saber da verba testamentária
do defunto, ordenando que o caixão fosse fabricado por aquele industrial. Mas os
caixões desse sujeito não prestam para nada, e...
— Paciência! interrompeu a mulher; a vontade do mano há de cumprir-se.
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NOTAS.
Nota A
“Deste modo, venha donde vier o reproche” .................................
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Papéis Avulsos
de Machado de Assis
ADVERTÊNCIA
“Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche”
Cerca de dois anos para cá, recebi duas cartas anônimas, escritas por pessoa
inteligente e simpática, em que me foi notado o uso do vocábulo reproche. Não
sabendo como responda ao meu estimável correspondente, aproveito esta ocasião.
Reproche não é galicismo. Nem reproche nem reprochar. Morais cita, para o
verbo, este trecho dos Inéd., II, fl. 259: “hum non tinha que reprochar ao outro”; e
aponta os lugares de Fernando de Lucena, Nunes de Leão e D. Francisco Manuel de
Melo, em que se, encontra o substantivo reproche. Os espanhóis também os possuem.
Resta a questão de eufonia. Reproche não parece malsoante. Tem contra si o
desuso. Em todo caso, o vocábulo que lhe está mais próximo no sentido, exprobração,
acho que é insuportável. Daí a minha insistência em preferir o outro, devendo notar-se
que não o vou buscar para dar ao estilo um verniz de estranheza, mas quando a idéia o
traz consigo.
Nota B
A CHINELA TURCA
Este conto foi publicado, pela primeira vez, na Época, nº 1, de 14 de novembro
de 1875. Trazia o pseudônimo de Manassés, com que assinei outros artigos daquela
folha efêmera. O redator principal era um espírito eminente, que a política veio tomar às
letras: Joaquim Nabuco. Posso dizê-lo sem indiscrição. Éramos poucos e amigos. O
programa era não ter programa, como declarou o artigo inicial, ficando a cada redator
plena liberdade de opinião, pela qual respondia exclusivamente. O tom (feita a natural
reserva da parte de um colaborador) era elegante, literário, ático. A folha durou quatro
números.
Nota C
O SEGREDO DO BONZO
Como se terá visto, não há aqui um simples pastiche, nem esta imitação foi feita
com o fim de provar forças, trabalho que, se fosse só isso, teria bem pouco valor. Era-
me preciso, para dar a possível realidade à invenção, colocá-la a distância grande, no
espaço e no tempo; e para tornar a narração sincera, nada me pareceu melhor do que
atribuí-la ao viajante escritor que tantas maravilhas disse. Para os curiosos
acrescentarei que as palavras: Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade
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Fuchéu, — foram escritas com o fim de supor o capítulo intercalado nas Peregrinações,
entre os caps. CCXIII e CCIV.
O bonzo do meu escrito chama-se Pomada, e pomadistas os seus sectários.
Pomada e pomadista são locuções familiares da nossa terra: é o nome local do
charlatão e do charlatanismo.
Nota D
“Era um saco de espantos”
Em algumas linhas escritas para dar o último adeus a Artur de Oliveira, meu
triste amigo, disse que era ele o original deste personagem. Menos a vaidade, que não
tinha, e salvo alguns rasgos mais acentuados, este Xavier era o Artur. Para completá-lo
darei aqui mesmo aquelas linhas impressas na Estação de 31 de agosto último:
“Quem não tratou de perto este rapaz, morto a 21 do mês corrente, mal poderá
entender a admiração e saudade que ele deixou.
“Conheci-o desde que chegou do Rio Grande do Sul, com dezessete ou dezoito
anos de idade; e podem crer que era então o que foi aos trinta. Aos trinta lera muito,
vivera muito; mas toda aquela pujança de espírito, todo esse raro temperamento
literário que lhe admirávamos, veio com a flor da adolescência; desabrochara com os
primeiros dias. Era a mesma torrente de idéias, a mesma fulguração de imagens. Há
algumas semanas, em escrito que viu a luz na Gazeta de Notícias, defini a alma de um
personagem com esta espécie de hebraísmo: — chamei-lhe um saco de espantos.
Esse personagem (posso agora dizê-lo) era, em algumas partes, o nosso mesmo Artur,
com a sua poderosa loqüela e extraordinária fantasia. Um saco de espantos. Mas, se o
da minha invenção morreu exausto de espírito, não aconteceu o mesmo a Artur de
Oliveira, que pôde alguma vez ficar prostrado, mas não exauriu nunca a força genial
que possuía.
“Um organismo daqueles era naturalmente irrequieto. Minas o viu, pouco depois,
no colégio dos padres do Caraça, começando os estudos, que interrompeu logo, para
continuá-los na Europa. Na Europa travou relações literárias de muito peso; Teófilo
Gauthier, entre outros, queria-lhe muito, apreciava-lhe a alta compreensão artística, a
natureza impetuosa e luminosa, os deslumbramentos súbitos de raio. Venez, père de la
foudre! dizia-lhe ele, mal o Artur assomava à porta. E o Artur, assim definido
familiarmente pelo grande artista, entrava no templo, palpitante da divindade, admirativo
como tinha de ser até à morte. Sim, até à morte. Gauthier foi uma das religiões que o
consolaram. Sete dias antes de o perdermos, isto é, a 14 deste mês, prostrado na
cama, roído pelo dente cruel da tísica, escrevia-me ele a propósito de um prato do
jantar. ‘O verde das couves espanejava-se em uma onda de pirão, cor de ouro. A
palheta de Ruysdael, pelo incendido do ouro, não hesitaria um só instante, em assinar
esse pirão mirabolante, como diria o grande, e divino Teo...’ Grande e divino! Vede bem
que esta admiração é de um moribundo, refere-se a um morto, e fala na intimidade da
correspondência particular. Onde outra mais sincera?
“Não escrevo uma biografia. A vida dele não é das que se escrevem; é das que
são vividas, sentidas, amadas, sem jamais poderem converter-se à narração; tal qual os
romances psicológicos, em que a urdidura dos fatos é breve ou nenhuma. Ultimamente,
exercia o professorado no Colégio de Pedro II; mas a doença tomou-o entre as suas
tenazes, para não o deixar mais.
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“Não o deixou mais: comeu-lhe a seiva toda; desfibrou-o com a paciência dos
grandes operários. Ele como vimos, prestes a tropeçar na cova, regalava-se, ainda das
reminiscências literárias, evocava a palheta de Ruysdael, olhando para a vida que lhe ia
sobreviver, a vida da arte que ele amou com fé religiosa. sem proveito para si, sem
cálculo, sem ódios, sem invejas, sem desfalecimento. A doença fê-lo padecer muito;
teve instantes de dor cruel, não raro de desespero e de lágrimas; mas, em podendo,
reagia. Encararia alguma vez o enigma da morte? Poucas horas antes de morrer
(perdoem-me esta recordação pessoal; é necessária), poucas horas antes de morrer, lia
um livro meu, o das Memórias Póstumas de Brás Cubas, e dizia-me que interpretava
agora melhor algumas de suas passagens, Talvez as que entendiam com a ocasião... E
dizia-me aquilo serenamente, com uma força de ânimo rara, uma resignação de granito.
Foi ao sair de, uma dessas visitas, que escrevi estes versos, recordando os arrojos dele
comparados com o atual estado. Não lhos mostrei; e dou-os aqui para os seus amigos:
“Sabes tu de um poeta enorme,
Que andar não usa
No chão, e cuja estranha musa,
Que nunca dorme,
Calça o pé melindroso e leve,
Como uma pluma,
De folha e flor, de sol e neve,
Cristal e espuma;
E mergulha, como Leandro,
A forma rara
No Pó, no Sena, em Guanabara,
E no ‘Scamandro;
Ouve a Tupã e escuta a Momo,
Sem controvérsia,
E tanto adora o estudo, como
Adora a inércia;
Ora do fuste, ora da ogiva
Sair parece;
Ora o Deus do ocidente esquece
Pelo deus Siva;
Gosta do estrépito infinito,
Gosta das longas
Solidões em que se ouve o grito
Das arapongas;
E se ama o rápido besouro,
Que zumbe, zumbe,
E a mariposa que sucumbe
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Na flama de ouro,
Vaga-lumes e borboletas
Da cor da chama,
Roxas, brancas, rajadas, pretas,
Não menos ama
Os hipopótamos tranqüilos,
E os elefantes,
E mais os búfalos nadantes,
E os crocodilos,
Como as girafas e as panteras,
Onças, condores,
Toda a casta de bestas-feras
E voadores.
Se não sabes quem ele seja,
Trepa de um salto,
Azul acima, onde mais alto
A águia negreja;
Onde morre o clamor iníquo
Dos violentos;
Onde não chega o riso oblíquo
Dos fraudulentos.
Então olha, de cima posto,
Para o oceano;
Verás num longo rosto humano
Teu mesmo rosto;
E hás de rir, não do riso antigo,
Potente e largo,
Riso de eterno moço amigo;
Mas de outro amargo,
Como o riso de um deus enfermo,
Que se aborrece
Da divindade, e que apetece
Também um termo...”
“Os amigos dele apreciarão o sentido desses versos. O público, em geral, nada
tem com um homem que passou pela terra sem o convidar para coisa nenhuma, um
forte engenho que apenas soube amar a arte, como tantos cristãos obscuros amaram a
Igreja, e amar também aos seus amigos, porque era meigo, generoso e bom.”
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Nota E
A SERENÍSSIMA REPÚBLICA
Este escrito, publicado primeiro na Gazeta de Notícias, como outros do livro, é o
único em que há um sentido restrito: — as nossas alternativas eleitorais. Creio que
terão entendido isso mesmo, através da forma alegórica.
Nota F
UMA VISITA DE ALCIBÍADES
Este escrito teve um primeiro texto, que reformei totalmente mais tarde, não
aproveitando mais do que a idéia. O primeiro foi dado com um pseudônimo e passou
despercebido.
FIM
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