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tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha
solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol
abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a
século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior,
como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia
americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! —
For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias
medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: — Never, for
ever!— For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um
cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio
era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita,
ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no
terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?
— Sim, parece que tinha um pouco de medo.
— Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela
situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido.
Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um
boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão
comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse
fenômeno: — o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a
alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos
amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de
nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso
fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do
meu ser novo e único —porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava
dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um
lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne
vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais
do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso,
desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava,
tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de
escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada
definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para
intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne,
soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.
— Mas não comia?
— Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas
suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava.
Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões,
décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava
beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e
mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo
eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
— Na verdade, era de enlouquecer.
— Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara
uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um
impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela