reino, trair seu sexo, sua classe, sua maioria – qual outra razão de escrever? E
trair a escrita.” (Deleuze, 1998, p. 56).
A traição literária, nós a encontramos na artimanha de Penélope, em seu
jogo de fiar e desfiar a espera, de bordar o esquecimento na trama da
memória; no gesto precavido de Ulisses, na traição que esse gesto comporta,
não às sereias, mas ao próprio Ulisses; finalmente, no olhar de Orfeu, em seu
ponto de fuga:
[...] é para Eurídice que Orfeu desce: Eurídice é, para ele, o extremo que a
arte pode atingir, ela é, sob um nome que a dissimula e sob um véu que a
cobre, o ponto profundamente obscuro para o qual parecem tender a arte,
o desejo, a morte, a noite. Ela é o instante em que a essência da noite se
aproxima com a outra noite.
Esse “ponto”, a obra de Orfeu, não consiste, porém, em assegurar a
aproximação, descendo para a profundidade. Sua obra consiste em trazê-lo
de volta para o dia e dar-lhe, no dia, forma, rosto e realidade. Orfeu pode
tudo, exceto olhar esse “ponto” de frente, salvo olhar o centro da noite na
noite. Pode descer para ele, pode, poder ainda mais forte, atraí-lo a si e,
consigo, atraí-lo para o alto, mas desviando-se dele. Esse desvio é o único
meio de se acercar dele: tal é o sentido da dissimulação que se revela na
noite. Mas Orfeu, no movimento da sua migração, esquece a obra que deve
cumprir, e esquece-a necessariamente, porque a exigência última do seu
movimento não é que haja obra mas que alguém se coloque em face desse
“ponto”, lhe capte a essência, onde essa essência aparece, onde é essencial e
essencialmente aparência: no coração da noite. (Blanchot, 1987, p. 172).
No escuro, Paulo Honório procura Madalena; “linhas invisíveis num
papel apenas visível”, é só o que ele encontra. Os sinais no corpo, que
completam o ciúme, estão ligados, mais uma vez, a distúrbios na audição e na
visão: “[...] zumbiam-me os ouvidos, dançavam-me listras vermelhas diante dos
olhos. Ia tão cego que bati com as ventas em Madalena, que saía da igreja.” (SB,
p. 186). Afinal encontram-se. À luz de vela, na sacristia da igreja, Madalena se