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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ
PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
A SÚMULA VINCULANTE À LUZ DE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS
EZEQUIEL RODRIGO GARCIA
Itajaí, junho de 2007
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Livros Grátis
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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ
PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
A SÚMULA VINCULANTE À LUZ DE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS
EZEQUIEL RODRIGO GARCIA
Dissertação submetida ao Programa de
Mestrado em Ciência Jurídica da
Universidade do Vale do Itajaí –
UNIVALI, como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em
Ciência Jurídica.
Orientador: Professor Doutor Alexandre Morais da Rosa
Itajaí, junho de 2007
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Agradecimentos
Agradeço ao egrégio Tribunal de Justiça de Santa
Catarina, na pessoa de seu atual Presidente, o
Desembargador Pedro Manoel Abreu, pelo
incentivo e apoio, sem os quais esta pesquisa não
seria possível.
Agradeço ao Professor Orientador, Dr. Alexandre
Morais da Rosa, que soube compreender minhas
dificuldades e relevar meus equívocos, abrindo
caminhos para o meu progresso científico.
Agradeço aos professores, funcionários e alunos
desta Universidade pelas tantas lições aqui
aprendidas e pelo trato amistoso que sempre me
foi dedicado.
DEDICATÓRIA
A Clarice, minha amada esposa, compreensiva e
paciente, que comigo compartilhou os momentos
mais difíceis desta longa caminhada.
Ao Heitor, meu primogênito querido, nascido
durante este Mestrado, que teve de superar a
constante ausência que o estudo me impôs.
A Letícia, esperada com carinho para o início da
próxima primavera, que tenha um nascimento
tranqüilo e seja, como seu nome sugere, fonte de
inesgotável alegria.
Que o futuro reserve a todos eles, muita saúde e
paz.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, a
Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca
do mesmo.
Itajaí, junho de 2007
EZEQUIEL RODRIGO GARCIA
Mestrando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
SERÁ ENTREGUE PELA SECRETARIA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM
CIÊNCIA JURÍDICA DA UNIVALI APÓS A DEFESA EM BANCA.
ROL DE CATEGORIAS
Rol de categorias que o Autor considera estratégicas à
compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.
Estado Democrático de Direito:
“O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade,
não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada
das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto
material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir
simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático
qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus
elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a idéia de
democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do
problema das condições materiais de existência.”
1
Jurisprudência
Jurisprudência é “o conjunto uniforme e constante das decisões judiciais sobre
casos semelhantes.”
2
Súmula
Súmula é a síntese de um entendimento jurisprudencial extraído de
reiteradas decisões no mesmo sentido.”
3
Súmula Vinculante
1
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. 3.
Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 92.
2
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
83.
3
GOMES, Luiz Flávio. Eficácia e extensão das súmulas vinculantes. Juristas.com.br, João
Pessoa, a. 1, n. 33, 01/08/2005. Disponível em:
<http://www.juristas.com.br/colunas.jsp?idColuna=322>. Acesso em: 22/12/2005.
É a súmula que, aprovada por 2/3 dos Ministros do Supremo Tribunal Federal,
terá, a partir de sua publicação na imprensa oficial, efeito vinculante em relação
aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta,
cabendo reclamação diretamente ao Supremo Tribunal Federal em caso de não
observância de seus preceitos.
Princípio Constitucional
“Princípios Constitucionais são normas jurídicas caracterizadas por seu grau de
abstração e de generalidade, inscritas nos textos constitucionais formais, que
estabelecem os valores e indicam a ideologia fundamentais de determinada
Sociedade e de seu ordenamento jurídico. A partir deles todas as outras normas
devem ser criadas, interpretadas e aplicadas.”
4
4
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 106.
SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................... XI
INTRODUÇÃO ................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 ...................................................................................... 5
A DECISÃO JUDICIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 5
1.1 A importância da decisão judicial e a necessidade de sua fundamentação ..5
1.2 A criação de Direito nas decisões judiciais..................................................17
1.3 Diferenças entre o sistema romano-germânico (civil law) e o sistema anglo-
saxão (common law) .........................................................................................27
CAPÍTULO 2 .................................................................................... 39
SÚMULA VINCULANTE................................................................... 39
2.1 Tradição das Súmulas no Direito Brasileiro.................................................39
2.2 Aproximação com o sistema anglo-saxão (common law): a Súmula
Vinculante e o stare decisis ...............................................................................47
2.3 O artigo 103-A da Constituição da República Federativa do Brasil,
acrescentado pela Emenda Constitucional n.º 45, de 30-12-2004 ....................51
2.4 A Lei n.º 11.417, de 19-12-2006..................................................................65
2.5 Panorama atual ...........................................................................................70
CAPÍTULO 3 .................................................................................... 73
A SÚMULA VINCULANTE À LUZ DE ALGUNS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS......................................................................... 73
3.1 Uma noção dos princípios constitucionais...................................................73
3.2 Princípio da legalidade ................................................................................76
3.3 Princípio do devido processo legal ..............................................................85
3.4 Princípio da independência do juiz..............................................................92
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................ 102
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................ 106
ANEXO........................................................................................... 115
RESUMO
O estudo segue a linha de pesquisa de Hermenêutica Constitucional,
detendo-se especificamente no exame da decisão judicial perante os princípios
fundamentais do Estado Democrático de Direito. Tem por objeto central a Súmula
Vinculante, inserida no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda
Constitucional n.º 45, de 08-12-2004, que acrescentou o art. 103-A na
Constituição da República Federativa do Brasil. O dispositivo constitucional foi
regulamentado pela Lei n.º 11.417, de 19-12-2006. Neste trabalho, além de serem
examinadas questões dogmáticas referentes à Súmula Vinculante, se procurou
analisá-la perante três princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito,
que são o princípio da legalidade, o princípio do devido processo legal e o
princípio da independência do juiz. Em conjunto, exigem: a) que cada decisão
judicial seja racionalmente fundamentada, levando em consideração os valores
éticos predominantes no seio social, ainda que não previstos estritamente nos
textos legais, b) que as decisões sejam resultado de um procedimento dialético
(contraditório) de argumentação e contraposição de provas e c) que o magistrado
possa decidir conforme seu livre convencimento, embora fundamentadamente,
atento às peculiaridades do caso concreto. As decisões devem acompanhar a
dinâmica de evolução da atual sociedade, preenchendo em cada caso os campos
de textura aberta dos textos normativos. A Súmula Vinculante surge como
instituto de aproximação do modelo jurídico nacional com o anglo-saxão (common
law), embora sua formatação se distinga bastante de qualquer instituto daquele
modelo, inclusive do stare decisis norte-americano, que tem sido colocado como
inspiração para a Súmula Vinculante no Brasil. A inclusão do art. 103-A no texto
da Constituição representa um marco importantíssimo para o Direito brasileiro,
que abandona parte de sua tradição romano-germânica (de fonte
preponderantemente legal). Numa dimensão dogmática, caberá à Jurisprudência
do próprio Supremo Tribunal Federal definir concretamente as hipóteses de
admissão das Súmulas Vinculantes, porquanto, nesse aspecto, tanto o dispositivo
constitucional quanto a lei regulamentadora, deixaram vários pontos em aberto.
Há inúmeros aspectos nebulosos a serem esclarecidos acerca do tema. A Súmula
xii
Vinculante, ao tornar obrigatória a acolhida de determinados entendimentos
jurídicos e obrigar as instâncias inferiores à aplicação da interpretação nela
descrita, impede o processo plural e democrático de interpretação da lei e a ela
nega eficácia, na sua múltipla possibilidade hermenêutica. Sobrepõe-se aos
próprios ditames legais, pois a estes o sistema reserva a possibilidade de livre
interpretação. Além disso, ceifa a oportunidade das partes de discutirem em
contraditório os fundamentos jurídicos empregados nos julgamentos dos casos
concretos, pois a decisão judicial passa apenas a subsumir os fatos aos ditames
sumulares. O princípio do devido processo legal, e suas tantas decorrências, é
afetado em boa medida, assim como o é o princípio da independência do juiz, na
apreciação das questões submetidas a seu julgamento.
INTRODUÇÃO
A presente dissertação tem como objeto a Súmula
Vinculante e alguns princípios constitucionais a ela pertinentes, desenvolvendo-se
na linha de pesquisa da Hermenêutica Constitucional.
O seu objetivo é compreender esse novo instituto inserido
recentemente na Constituição da República Federativa do Brasil e confrontá-lo
com princípios nela insculpidos.
Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando-se da
importância das decisões judiciais no Estado Democrático de Direito (em seu
formato atual) e da necessidade de fundamentá-las racionalmente. Desde que o
juiz não está mais vinculado à letra fria da lei, tem comportamento discricionário
na interpretação do ordenamento jurídico, o qual, porém, de ser controlado por
meio de mecanismos de verificação da adequação da fundamentação utilizada
em cada julgamento. Ainda neste Capítulo inaugural o apresentadas as
principais distinções entre os sistemas jurídicos romano-germânico (civil law) e
anglo-saxão (common law), o primeiro fundado principalmente na lei e o segundo
na Jurisprudência, destacando-se a contínua aproximação que se tem verificado
entre eles.
No Capítulo 2, cuida-se da Súmula Vinculante propriamente
dita. Para se chegar até ela demonstra-se a evolução das Súmulas no direito
brasileiro, do seu caráter meramente persuasivo de antes a o vinculante de
agora, assinalando a aproximação do sistema jurídico pátrio com o anglo-saxão
(common law). Em seguida, examina-se o texto do art. 103-A da Constituição da
República Federativa do Brasil, inserido pela Emenda Constitucional n.º 45, de
08-12-2004, numa apreciação mais dogmática e voltada para aspectos práticos
da aplicação no novo instituto. Ainda nessa linha, são analisadas as principais
inovações trazidas pela lei que regulamentou o dispositivo constitucional (Lei n.º
de 19-12-2006). Ao final deste Capítulo, tem-se a exposição do panorama atual
2
das Súmulas Vinculantes, com a proposta de aprovação dos primeiros
enunciados vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.
No Capítulo 3, os princípios constitucionais que tem relação
com a Súmula Vinculante são analisados e algumas incoerências no sistema
acabam transparecendo. Depois de uma noção geral dos princípios
constitucionais, passa-se ao estudo do princípio da legalidade, do princípio do
devido processo legal e do princípio da independência dos juízes, apontando-se
os pontos de confronto com as Súmulas Vinculantes.
A presente Dissertação se encerra com as Considerações
Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da
estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre as Súmulas
Vinculantes, que têm gerado profundas discussões na comunidade jurídica.
Por fim, com o estudo realizado, será possível deduzir
algumas observações críticas, que se espera, possam contribuir para o
aprimoramento do debate em torno do assunto.
Para a presente Dissertação foram levantadas as seguintes
hipóteses:
a) a Súmula Vinculante representa a aproximação do
sistema jurídico brasileiro (de raiz romano-germânica) com o sistema anglo-
saxão.
b) a Súmula Vinculante não deixa espaço para a atividade
do intérprete, embora a própria lei o deixe.
c) a Súmula Vinculante inibe o debate contraditório que
de existir nos processos judiciais
d) a Súmula Vinculante impede o juiz de julgar as causas
conforme seu livre convencimento motivado.
3
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase
de Investigação
5
foi utilizado o Método Indutivo
6
, na Fase de Tratamento de
Dados o Método Cartesiano
7
, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente
Monografia é composto na base lógica Indutiva.
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as
Técnicas do Referente
8
, da Categoria
9
, do Conceito Operacional
10
e da Pesquisa
Bibliográfica
11
.
5
“[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente
estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luis. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da
pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101.
6
[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma
percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luis. Prática da Pesquisa jurídica e
Metodologia da pesquisa jurídica. p. 104.
7
Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE,
Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.
22-26.
8
“[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o
alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma
pesquisa.” PASOLD, Cesar Luis. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa
jurídica. p. 62.
9
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD,
Cesar Luis. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 31.
4
10
[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja
aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luis. Prática da Pesquisa
jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 45.
11
“Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD,
Cesar Luis. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 239.
CAPÍTULO 1
A DECISÃO JUDICIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1.1 A IMPORTÂNCIA DA DECISÃO JUDICIAL E A NECESSIDADE DE SUA
FUNDAMENTAÇÃO
No Estado Democrático de Direito as decisões judiciais têm
importância fundamental, pois trazem em si o potencial de garantir e realizar os
tantos direitos individuais e coletivos estabelecidos democraticamente no
ordenamento jurídico, em regras ou princípios
12
, sem o que não se justificaria a
existência do próprio Estado.
Ainda que breve e simplificada, o presente trabalho não
pode prescindir de uma noção do que seja o Estado Democrático de Direito, cujo
conceito, advirta-se, o deve ser concebido de maneira estática, pronta e
acabada. É algo que vem evoluindo ao longo dos anos, conforme a
especialização do pensamento político, o progresso econômico e as
transformações sociais e culturais.
Eros Roberto Grau, referindo-se ao Estado de Direito (que
para o autor só se justifica enquanto democrático), ensina:
12
“A base do argumento de princípio forma a distinção entre regras e princípios. Regras são
normas que ordenam, proíbem ou permitem algo definitivamente ou autorizam a algo
definitivamente. Elas contêm um dever definitivo. Quando os seus pressupostos estão
cumpridos, produz-se a conseqüência jurídica. Se não se quer aceitar esta, deve ou declarar-se
a regra com inválida e, com isso, despedi-la do ordenamento jurídico, ou, então, inserir-se uma
exceção na regra e, nesse sentido, criar uma nova regra. A forma de aplicação de regras é a
subsunção. Princípios contêm, pelo contrário, um dever ideal. Eles são mandamentos a serem
otimizados. Com tais, eles não contêm um dever definitivo, mas somente um dever-prima-facie.
Eles exigem que algo seja realizado em medida tão alta quanto possível relativamente às
possibilidades fáticas e jurídicas. Pode expressar-se isso abreviadamente, embora um pouco
inexatamente, pelo fato de se designar princípios como ‘mandamentos de otimização’. Como
mandamentos ideais, princípios exigem mais do que é possível realmente. Eles colidem com
outros princípios. A forma de aplicação para eles típica é, por isso, a ponderação. Somente a
ponderação leva do dever-prima-facie ideal ao dever real e definitivo.” (ALEXY, Robert.
Constitucionalismo discursivo
. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 37).
6
“Este não pode ser visto como um sistema fechado e fixo, com
valor em si próprio, mas como conceito temporalmente
condicionado (Canotilho 1981/14). que substituir a noção de
Estado de Direito formal pela de Estado de Direito material,
sustentada sobre a concreção do princípio democrático e de uma
ordem jurídica legítima. Por isso, a noção de Estado de Direito
não deve consubstanciar um fim em si mesmo, mas o meio virtual
para a realização da democracia e a construção de uma ordem
jurídica legítima.”
13
Desde sua concepção moderna (do final da Idade Média), é
possível observar notável evolução do Estado, até atingir a sua atual forma:
democrática de direito. Essa evolução foi acompanhada e determinada pela maior
participação do povo no governo e pela afirmação de certos valores fundamentais
da pessoa humana no sistema jurídico.
Com efeito,
“A necessidade de limitar os poderes do monarca absolutista fez
nascer a partir das revoluções burguesas o que se convencionou
chamar de constitucionalismo moderno. Alicerçado em valores
burgueses, o constitucionalismo moderno proclamou a defesa da
liberdade e fez a defesa do individualismo na construção do
Estado de Direito para, em seguida, firmada a dignidade da
pessoa humana como elemento fundante, contaminado por
algumas idéias socialistas, consagrar a ampliação da base
democrática e reconhecer a necessidade de regulação de direitos
econômicos, sociais e culturais.”
14
A exigência de se combater o arbítrio dos reis absolutistas e
de submetê-los a regras previamente estabelecidas para estruturação do Estado
e preservação dos direitos individuais fez nascer a idéia de Estado de Direito.
13
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed., São Paulo: Malheiros,
2005, p. 178-179.
14
DE OLIVEIRA, Daniel Natividade Rodrigues e FILETI, Narbal Antônio Mendonça. Estado
democrático de direito, efetivação dos direitos sociais relativos ao trabalho e princípios
constitucionais de direito do trabalho. In: Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos
.
Alexandre Morais da Rosa (organizador). Florianópolis: Conceito Editorial, 2006, p. 62-63.
7
Com o passar dos anos, especialmente com o advento da
burguesia, abriu-se ao povo a possibilidade de participação no governo (exercício
do poder político), definindo, ele próprio ou por seus representantes eleitos, os
rumos do Estado, inclusive quanto aos valores que haveriam de ser juridicamente
tutelados. Surgiu, então, a concepção de Estado Democrático.
Eis a lição de Paulo Márcio Cruz sobre o tema:
“Apesar dessas considerações, os termos Estado de Direito e
Estado Democrático de Direito não são exatamente permutáveis.
Durante muito tempo, os Estados de direito constitucionais não
foram Estados democráticos. Por outro lado, não é difícil imaginar
situações nas quais a vontade popular possa adotar decisões
contrárias aos direitos do homem. Por conta disto é que a
qualificação de Estado Democrático de Direito supõe um equilíbrio
entre os princípios em constante tensão, tendo, por um lado, o
caráter determinante da vontade popular e, por outro, a garantia
de direitos ou situações jurídicas fundamentais do indivíduo,
intocáveis, inclusive, por esta vontade.”
15
E prossegue o autor:
“O equilíbrio entre estes princípios coloca o Estado Democrático
de Direito diante da necessidade de evitar perigos contínuos de
desajustes entre ambos. A imposição de procedimentos muito
rígidos para a manifestação popular pode sufocar a vontade da
comunidade política. Por outro lado, a adoção de procedimentos
com excessiva deliberação popular, o que se convencionou
chamar de ‘democratismo’, pode implicar a eliminação dos
controles entre os poderes e a marginalização dos poderes
individuais.
“A Constituição Democrática aparece, então, como instrumento
para tornar compatível o império da vontade popular e as
garantias do Estado de Direito. A definição dos direitos
fundamentais e garantias constitucionais, a organização dos
15
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
214.
8
poderes e a previsão dos procedimentos que atuem legitimamente
estabelecem os parâmetros para a manifestação da vontade
popular.”
16
Além da submissão do governo ao ordenamento jurídico, da
afirmação de direitos fundamentais e da democratização do exercício do poder
político, o Estado Democrático de Direito tem de se voltar para as constantes
demandas sociais, porque nele “estão presentes as conquistas democráticas, as
garantias jurídico-legais e a preocupação social.”
17
Hoje se verifica a expansão incessante de direitos a serem
preservados e realizados. Já não basta que se imponham limites à atuação
estatal, a fim de preservar os direitos individuais (de liberdade), é preciso que se
realizem os direitos sociais proclamados democraticamente e inscritos na
Constituição; exige-se, com isso, ação positiva do ente público, tendente a
promover a transformação da realidade desigual e socialmente injusta.
É o que ensina Lenio Luiz Streck:
“O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador
da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito,
a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência.
Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de
concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir
simbolicamente como fomentador da participação pública quando
o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da
democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois,
também sobre a ordem jurídica. E mais, a idéia de democracia
contém e implica, necessariamente, a questão da solução do
problema das condições materiais de existência.”
18
16
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
215.
17
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. 3.
Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 92.
18
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. 3.
Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 92.
9
O Estado Democrático de Direito está comprometido com a
participação popular em todas as esferas de manifestação do poder estatal,
mediante procedimentos previamente disciplinados, e de se guiar pelos
princípios jurídicos consagrados na Constituição, esforçando-se para efetivar de
modo concreto os direitos individuais e coletivos nela estabelecidos, “para
potencializar as virtualidades inerentes aos princípios estruturantes da
Constituição.”
19
Fixados, assim, os traços característicos do Estado
Democrático de Direito, em sua feição jurídica atual, percebe-se que a função
judicial passou a exercer papel imprescindível no processo de efetivação dos
direitos fundamentais consagrados no texto constitucional norte elementar da
atuação estatal.
De fato, todos os atos do poder estatal somente têm
legitimidade se compatíveis com os aspectos formais e materiais da Constituição,
cuja guarda (e interpretação) cabe em última análise ao Poder Judiciário.
Os contornos do Estado Democrático de Direito estão
traçados na Constituição e a atribuição do Poder Judiciário é justamente velar
pela máxima eficácia do texto constitucional. Logo, como bem lembra Lenio Luiz
Streck, o Poder Judiciário ocupa agora a posição de destaque.
“[...] no Estado Liberal o centro de decisão apontava para o
Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos);
no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da
necessidade de realizar políticas públicas e sustentar a
intervenção do Estado na economia; no Estado Democrático de
Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário. Dito de outro
modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente
intervencionista do estado o foco de poder/tensão passou para o
Poder Executivo, no estado Democrático de Direito uma
modificação nesse perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação
do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário,
justamente mediante a utilização de mecanismos jurídicos
19
NOJIRI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais. 2. ed. São Paulo: revista dos
Tribunais, 2000, p. 58.
10
previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático
de Direito.”
20
Lúcia Valle Figueiredo segue a mesma linha:
“A jurisdição, portanto, é a pedra de toque do Estado Democrático
de Direito. [...]
“O acesso amplo à jurisdição é uma conditio sine qua non da
própria cidadania. É uma condição sem a qual não é possível a
existência do próprio Estado de Direito. Deve-se dar acesso à
jurisdição plena. Qualquer limitação aposta à possibilidade do
duplo grau de jurisdição, do acesso amplo à jurisdição, a nosso
ver, agride o devido processo legal, garantia constitucional
insculpida no inciso LV do artigo 5.º.”
21
Em resumo, no dizer de Paulo rcio Cruz, quando avalia a
evolução do Estado Democrático de Direito, “cada vez mais é fundamental a
atuação judiciária.”
22
Essa nova visão da decisão judicial se revela sob outro
prisma, que também merece realce e tem especial interesse no presente trabalho.
As promessas do Estado Democrático de Direito são muitas
e não conseguiram (e não conseguem) se concretizar apenas com a aplicação
fria e impassível da lei.
De muito está superada a concepção estritamente
positivista que tratava a lei como fonte única do Direito, de imperativa observância
pelos juízes.
20
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise - uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 2.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 44.
21
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O controle judicial dos atos administrativos e a súmula vinculante. In:
Revista Brasileira de Direito Público. Ano 1, v. 1, Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 46 e 55.
22
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
214.
11
Essa Doutrina representada originariamente pela Escola
Exegética
23
entendia dispensável (ou ao menos bastante diminuída) a atividade
interpretativa dos textos legais.
Era o tempo em que,
“a tarefa do intérprete estava reduzida a uma função mecânica de
lógica dedutiva: a lei, por sua completude, era considerada a única
fonte das decisões jurídicas, e estas constituíam meros
silogismos, cuja premissa maior era a lei; a premissa menor era o
enunciado de um caso concreto; a conclusão era a solução.
Assim, a função do aplicador era apenas subsumir os fatos
concretos à determinação abstrata da lei.
24
Tal concepção (retratada no pensamento positivista) tornava
o Poder Judiciário subordinado ao Poder Legislativo e impunha aos juízes a
resolução das controvérsias tão-somente segundo as regras emanadas pelo
Parlamento.
25
Os magistrados eram meros cnicos burocratas,
conhecedores e repetidores (fiéis e serviçais) das regras editadas pelo
Legislativo, sem acrescentar-lhes qualquer valor.
Referido modelo, do positivismo legalista, que tinha como
principal atrativo a segurança jurídica (pois as decisões judiciais haveriam de
retratar apenas aquilo que abstratamente estava previsto nas leis), não
vingou,
26
porquanto a norma (como qualquer texto; produto da linguagem que é)
necessita de interpretação, e não possibilidade de realizá-la de forma
23
“A escola da exegese deve seu nome à técnica adotada pelos seus primeiros expoentes no
estudo e exposição do digo de Napoleão, técnica que consiste em assumir pelo tratamento
científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em
reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio Código” (BOBBIO, Norberto.
O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 83).
24
FERREIRA, Nazaré do Socorro Conte. Da interpretação à hermenêutica jurídica: uma leitura de
Gadamer e Dworkin. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 47.
25
Cf. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone,
1995, p. 28 e 171.
26
Cf. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone,
1995, p. 222.
12
absolutamente objetiva, neutra, como se fosse um procedimento meramente
técnico
27
. “Esse foi o erro do positivismo, que procurou tratar assepticamente o
direito, de certo modo como os cientistas fazem ao dissecar em laboratório um
animal morto.”
28
Plauto Faraco Azevedo, citando Hermann Heller, sintetiza:
“‘... ninguém crê, hoje, que todas as disposições do legislativo popular, em virtude
de uma predestinação metafísica, sejam direito justo.”
29
Definitivamente, o juiz não é mais a “boca da lei”; tem
atuação inovadora, criativa; complementa os ditames da norma em cada caso
concreto, emitindo, de fato, juízos de valor.
30
Isso porque a norma, sendo expressão meramente
lingüística, “permeada de incertezas e obscuridades”,
31
necessariamente precisa
ser compreendida pelo sujeito que a lê. E essa compreensão passa pela vontade
do juiz, e por todos os aspectos sociológicos que o envolvem (sua pré-
compreensão e seus pré-conceitos).
Paulo Márcio Cruz explica:
“Em países como o Brasil a exemplo dos europeus continentais
–, no qual o Direito aparece integrado fundamentalmente por
códigos e normas legisladas ou regulamentares formais, também
é descabido afirmar que o juiz seja a mera ‘boca da lei’, pois a
norma jurídica escrita necessita de interpretação e ajustes a casos
distintos. Desde esta perspectiva, o Juiz, ao selecionar um dos
muitos sentidos possíveis da norma, seguindo algumas regras de
interpretação da mesma e levando em conta o princípio da
27
A esse respeito: WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito: Interpretação da lei: temas
para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1994.
28
NORONHA, Fernando. Direito e Sistemas Sociais – A Jurisprudência e a criação de direito para
além da lei. Florianópolis: UFSC, 1988, p. 180.
29
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça e neoliberalismo. o Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 73.
30
A esse respeito: CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris, 1993.
31
LLOYD, Dennis. A idéia de lei. 2. Ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 330.
13
eqüidade, atua na criação do Direito, mesmo considerando que
esta tarefa de criação tem um limite, que é a própria lei. O juiz
poderá interpretar a lei, mas não ignorá-la ou opor-se a ela.”
32
O apego despropositado à lei (como um fim em si mesma) já
não serve. O juiz tem de trabalhar com os aspectos exteriores da norma a fim de
dar-lhe justo sentido diante do caso concreto.
Como elucida Mauro Cappelletti,
“Nem poderia ser de outro modo, pois a interpretação sempre
implica um certo grau de discricionariedade e escolha e, portanto,
e criatividade, um grau que é particularmente elevado em alguns
domínios, como a justiça constitucional e a proteção judiciária de
direitos sociais e interesses difusos.”
33
Não se trata de abandonar o princípio da legalidade, porque
realmente é conquista histórica dos cidadãos e responsável por grande avanço da
Ciência Jurídica, mas de repensá-lo, em favor de uma cultura jurídica mais
criativa, voltada para a concretização dos direitos fundamentais e a efetividade do
modelo de Estado Democrático de Direito definido na Constituição.
Robert Alexy afirma a existência de um campo aberto do
direito além da lei, ao qual se dedica a argumentação jurídica.
“Nenhum dador de leis pode criar um sistema de normas que é
tão perfeito que cada caso somente em virtude de uma simples
subsunção da descrição do fato ao tipo de uma regra pode ser
solucionado. Para isso existem vários fundamentos. De
importância fundamental são a vagueza da linguagem do direito, a
possibilidade de contradições normativas, a falta de normas, sobre
as quais a decisão deixa de apoiar-se, e a possibilidade de, em
32
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
141.
33
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p.128-129.
14
casos especiais, também decidir contra o texto de uma norma.
Existe, sob esse aspecto, uma abertura necessária do direito.”
34
Essas assertivas acerca da relação do juiz com a lei (hoje
incontroversas na Doutrina) também servem para definir a relação do juiz com a
Jurisprudência. Afinal, se o juiz não é mais escravo da lei, também não pode ser
mero repetidor mecânico dos entendimentos jurisprudenciais.
35
Enfim, a prestação jurisdicional no Estado Democrático de
Direito tem de avaliar a situação concreta e os argumentos despendidos pelas
partes, apontando racionalmente os seus motivos determinantes, o que, aliás,
integra o princípio do devido processo legal.
Para tanto, imprescindível que cada magistrado tenha
independência na formação de sua convicção pessoal.
36
Tudo isso torna imprescindível (e valoriza sobremaneira) a
fundamentação da decisão judicial, a fim de reduzir o seu potencial de
arbitrariedade e possibilitar a sua avaliação frente aos critérios materiais e
procedimentais de validade e adequação.
Valendo-se da obra de Helmuth Coing, Plauto Faraco de
Azevedo sintetiza: “decidir ‘não significa subsumir pura e simplesmente nem
importa em decidir livremente, mas resolver segundo as idéias e objetivos morais
do direito.’”
37
Evidente que ao mesmo tempo em que se permite ao juiz
maior liberdade na construção das decisões judiciais, dele se exige maior solidez
na fundamentação.
34
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 37.
35
A esse respeito, ver item 3.4 deste trabalho.
36
A independência funcional do magistrado é uma exigência do Estado Democrático de Direito,
conforme se verá no item 3.4.
37
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça e neoliberalismo. o Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 70.
15
Não basta ao órgão julgador cumprir formalmente a
obrigação de declinar os motivos de fato e de direito que o levam a fornecer a
tutela jurisdicional em cada caso trazido a seu julgamento.
É preciso que os fundamentos jurídicos invocados pelo
julgador sejam aceitos pelos destinatários da tutela como racionalmente válidos,
pertinentes à situação concreta, conformes os princípios constitucionais e os
valores morais prevalecentes na sociedade (especialmente o sentimento comum
de justiça).
38
O Estado Democrático de Direito exige, sob pena de
nulidade, que as decisões judiciais sejam fundamentadas,
39
consoante a lição de
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira:
“Segundo Robert Alexy, essa exigência de fundamentação das
decisões judiciais, que deve dar-se através de uma argumentação
racional, pode estender-se a todos os casos em que os juristas
argumentam:
“‘A questão do que seja argumentação racional ou argumentação
jurídica racional não é por conseguinte um problema que haja de
interessar somente aos teóricos do Direito ou aos filósofos do
Direito. Se o coloca com a mesma urgência ao jurista prático, e
interessa ao cidadão que participa das coisas públicas. De que
seja possível uma argumentação jurídica racional depende não
o caráter científico da Jurisprudência, senão também a
legitimidade das decisões judiciais.’
“O Direito, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito,
não é indiferente às razões pelas quais ou ao modo através do
38
Sobre a possibilidade de extrair do meio social um sentimento comum de justiça, tem-se: MELO,
Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. Porto Alegre: Fabris Editora, 1994.
39
Constituição da República Federativa do Brasil determina que os julgamentos do Poder
Judiciário sejam públicos e fundamentadas todas as suas decisões, sob pena de nulidade (art.
93, IX).
16
qual um juiz ou tribunal toma suas decisões: ele cobra a reflexão
acerca dos paradigmas que informam a própria decisão judicial.”
40
A decisão judicial representa o exercício do poder estatal e,
por isso, ante o princípio democrático, deve apresentar as suas justificativas, de
modo racional, levando em consideração o que foi alegado pelas partes em
contraditório – decorrência do princípio do devido processo legal.
de apresentar uma argumentação “consistente e de
aceitabilidade racional”
41
que satisfaça as aspirações de justiça do caso concreto
e a pretensão de certeza (segurança) jurídica.
Em resumo,
“... por um lado, o princípio da certeza requer decisões que
podem ser consistentemente tomadas no quadro do Direito
vigente; por outro, a pretensão de legitimidade da ordem jurídico-
democrática requer decisões consistentes não apenas com o
tratamento anterior de casos análogos e com o sistema de normas
vigente, mas pressupõe igualmente que sejam racionalmente
fundadas nos fatos da questão, de tal modo que os cidadãos
possam aceitá-las como decisões racionais.
42
Essa tarefa, contudo, é bastante espinhosa, e tem
proporcionado sérios debates na comunidade jurídica, especialmente no campo
da Hermenêutica e da Argumentação.
As várias teses existentes a esse respeito não podem aqui
ser expostas, sequer em síntese, porque extrapolam os parcos limites deste
estudo e se afastam por demais de sua linha central de pesquisa. Ademais, em
seara de tantas variantes e complexidades, atenta contra a responsabilidade
científica pretender em poucas linhas apresentar um quadro seguro e confiável
40
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2001, p. 141-142.
41
HABERMAS, Between facts and norms, cap. 5, p. 198, apud CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo
Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 141-142.
42
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2001, p. 142.
17
das diversas linhas de pensamento sobre a fundamentação das decisões
judiciais.
A esse respeito, basta assinalar o ponto em que
concordância na Doutrina, conforme Luiz Werneck Vianna:
“... o reconhecimento do Poder Judiciário como instituição
estratégica nas democracias contemporâneas, não limitada às
funções meramente declarativas do direito, impondo-se, entre os
demais Poderes, como uma agência indutora de um efetivo
checks and balances e da garantia da autonomia individual e
cidadã.”
43
O que basta à continuidade lógica e racional do trabalho é
firmar a premissa de que as decisões judiciais (como emanação do poder estatal
constituído democraticamente) devem ser elaboradas conforme o Direito
(compreendido também além da lei) e fundamentadas racionalmente.
Como se verá no Capítulo 3, a aplicação de Súmula
Vinculante ao caso concreto, por mera subsunção formal, sem referência aos
argumentos expostos no processo, compromete essa necessidade de
fundamentação racional das decisões judiciais.
1.2 A CRIAÇÃO DE DIREITO NAS DECISÕES JUDICIAIS
Pelo que se viu, o magistrado dos tempos atuais não é servo
da lei (e tampouco da Jurisprudência); o seu compromisso é dar justa resposta
aos conflitos submetidos à sua apreciação, fundamentando racionalmente suas
decisões, mesmo que para isso lhe seja preciso afastar-se da previsão legal
abstrata.
Plauto Faraco de Azevedo expõe o pensamento que
predomina na Doutrina:
43
VIANNA, Luiz Werneck. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de
Janeiro: Revan, 1999, p. 24.
18
“Por isto, não se pode limitar o jurista ao conhecimento técnico-
jurídico dos diplomas legais, de seus conceitos e princípios. Este
saber, por certo indispensável, tem, no entanto, caráter
instrumental, isto é, constitui ferramenta hábil à procura de
soluções materialmente justas ao convívio inter-humano.”
44
A menor importância dada à dimensão axiológica do Direito
é responsável pela petrificação (engessamento) da ordem jurídica, pela abdicação
da responsabilidade do jurista, pelo fechamento do discurso jurídico sobre si
mesmo, pelo seu desacordo com a realidade social e pela mecanização da
aplicação (estéril) do Direito
45
.
Luigi Ferrajoli anota:
"... a sujeição do juiz à lei não é de fato, como no velho
paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja
o seu significado, mas sim sujeição à lei somente enquanto válida,
ou seja coerente com a Constituição. E a validade não é, no
modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à
existência formal da lei, mas uma sua qualidade contingente
ligada à coerência - mais ou menos opinável e sempre submetida
à valoração do juiz - dos seus significados com a Constituição. Daí
deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um
juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e
a responsabilidade de escolher somente os significados válidos,
ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais
e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos."
46
A vida do direito não se sem valorações, isto é,
contraposições de normas a fatos sociais, em busca da regulação mais
apropriada ao contexto histórico-social.
44
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça e neoliberalismo. o Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 24.
45
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça e neoliberalismo. o Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 22.
46
FERRAJOLI, Luigi. O Direito como sistema de garantias. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José
Alcebíades (org.). O novo em Direito e Política
. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 90-
91.
19
“O juiz está vinculado à lei, mas ele a manipula de forma
criativa.”
47
Deve promover “a criação inteligente, progressiva e corrente do
direito.”
48
Por isso, aceita-se hoje a idéia de que os juízes e tribunais
criam Direito a partir de suas decisões, com efeitos limitados à coisa julgada.
Essa visão está presente de forma muito clara na obra de
Mauro Cappelletti:
“Quando se diz como faz o ‘Chief Justice’ Barwick, para citar
apenas exemplo recente que a expressão do direito legislativo,
no estado moderno estendida a muitíssimos domínios antes
ignorados pela lei, acarretou e ainda está acarretando consigo a
paralela expansão do direito judiciário, subtende-se obviamente a
negação da clara antítese entre interpretação judiciária e
criatividade dos juízes. Encontra-se implícito, em outras palavras,
o reconhecimento de que na interpretação judiciária do direito
legislativo está ínsito certo grau de criatividade. O ponto, de resto,
tornou-se explícito pelo próprio Barwick quando escreve que ainda
‘a melhor arte de redação das leis’, e mesmo o uso da mais
simples e precisa linguagem legislativa, sempre deixam, de
qualquer modo, lacunas que devem ser preenchidas pelo juiz e
sempre permitem ambigüidades e incertezas que, em última
análise, devem ser resolvidas na ia judiciária.
“O verdadeiro problema, portanto, não é o da clara oposição, na
realidade inexistente, entre os conceitos de interpretação e
criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do
grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da
criação do direito por obra dos tribunais judiciários.”
49
47
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle de decisões judiciais por meio de recursos de estrito
direito e de ão rescisória: recurso especial, recurso extraordinário e ão rescisória: o que é
uma decisão contrária à lei? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 101.
48
CARLIN, Volnei Ivo. Deontologia Jurídica – Ética e justiça. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC Editora,
2005, p. 55.
49
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 20-21.
20
De fato, a atividade judicial, por si só, exige interpretação, e
esta, o como negar, permite ao julgador a inovação na ordem jurídica
criação do Direito além da lei.
Além dessa constatação decorrente da própria positivação
do direito para o processo de valorização e alargamento da possibilidade
interpretativa (e, por isso, construtiva) do Direito pelo Poder Judiciário
contribuíram: a) a exigência (e postulação) cada vez maior de efetivação dos
direitos fundamentais, de cunho individual e coletivo, consagrados no texto
constitucional; b) a deficiente atuação do Poder Legislativo; c) a edição de textos
normativos com expressa previsão de campos abertos para interpretação casual.
No Brasil, sobretudo após o advento da Constituição da
República Federativa de 1988, ampliou-se vultosamente a gama de direitos dos
cidadãos e, por conseguinte, a busca da respectiva tutela judicial.
Nesse contexto, ante a evolução do pensamento jurídico e a
inércia do Poder Legislativo, o Judiciário (ainda que a passos lentos
50
), compelido
por essa avalanche de novas demandas de caráter constitucional, passou a
outorgar direitos e a construir entendimentos próprios, independentes de previsão
legal.
Por outro lado, a dinamização e a complexidade cada vez
maior das relações sociais impede que o Parlamento consiga regulamentar as
tantas situações conflituosas que surgem cotidianamente. Os fatos se desenrolam
50
Exemplo pico de acomodação do Judiciário é a configuração dada pelo Supremo Tribunal
Federal ao Mandado de Injunção. A propósito: “EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO.
CONCESSÃO DE EFETIVIDADE À NORMA INSCRITA NO ARTIGO 37, INCISO VII, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL N. 7.783/89, QUE REGE O
DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA, ATÉ QUE SOBREVENHA LEI
REGULAMENTADORA. LEGITIMIDADE ATIVA DE ENTIDADE SINDICAL. MANDADO DE
INJUNÇÃO UTILIZADO COMO SUCEDÂNEO DO MANDADO DE SEGURANÇÃO. NÃO-
CONHECIMENTO. 1. O acesso de entidades de classe à via do mandado de injunção coletivo é
processualmente admissível, desde que legalmente constituídas e em funcionamento pelo
menos um ano. 2. Este Tribunal entende que a utilização do mandado de injunção como
sucedâneo do mandado de segurança é inviável. Precedentes. 3. O mandado de injunção é
ação constitutiva; não é ação condenatória, não se presta a condenar o Congresso ao
cumprimento de obrigação de fazer. Não cabe a cominação de pena pecuniária pela
continuidade da omissão legislativa 4. Mandado de injunção não conhecido.” (STF, MI 689/PB,
Relator Min. Eros Grau, em 07/06/2006).
21
em tempo infinitamente menor do que a capacidade de elaboração das normas, e
em grau cada vez mais específico e intricado. Não tempo nem conhecimento
que satisfaçam essa contínua demanda.
Muitas questões de difícil compreensão e resolução,
polêmicas e altamente controvertidas (que certamente exigiriam estudo
aprofundado) são constantemente levadas às casas legislativas e delas se exige
resposta por demais ágil, quase imediata.
em muitos casos forte pressão exercida pelo meio social
sobre os parlamentares, a prejudicar seriamente a edição das normas.
Ainda que o Poder Legislativo estivesse totalmente imbuído
do escopo de exercer a sua função em sua máxima completude, todo o seu
esforço não seria capaz de alcançar o invencível avanço da sociedade
contemporânea.
Enfim, a produção legislativa é reconhecidamente deficitária,
e não perspectiva de que o quadro seja revertido. Muito pelo contrário, a
tendência é que as crescentes postulações sociais façam agravar ainda mais
essa situação.
É o que escreve Sálvio de Figueiredo Teixeira:
“A complexidade da vida contemporânea implica prolífica edição
normativa e induz inusitados desdobramentos nos procedimentos
hermenêuticos. A lei moderna, fruto de compromissos e resultado
do acordo possível na heterogeneidade de um Parlamento, é não
raro vaga e ambígua. Nesse quadro, o juiz precisa ser provido
inclusive de suficiente argúcia para detectar o alcance da lei.
51
Por isso, a criação do próprio Direito tem sido transferida da
esfera legislativa para o processo judicial, em que as partes litigantes podem
deduzir seus argumentos e produzir suas provas, obtendo justificadamente uma
51
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A criação e realização do direito na decisão judicial. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, p. 9.
22
resposta do Estado para a situação concreta, às vezes sequer estabelecida
abstratamente no ordenamento jurídico.
Essa transferência, em algumas situações, pode ser vista na
própria legislação, mediante a inclusão de termos com textura aberta, em que
cabe ao magistrado definir o real alcance da norma.
O fenômeno não ocorre apenas no texto constitucional
(onde os princípios devem mesmo ter abrangência ampla), mas também na
legislação ordinária.
Na Lei n.º 8.078, de 11-09-1990 (Código de Defesa do
Consumidor), por exemplo, o art. 51, IV, prescreve que são nulas de pleno direito
as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
abusivas ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade. A lei não fornece o
conceito de obrigações contratuais dessa natureza; cabe ao juiz, diante das
peculiaridades do caso concreto e dos princípios que regem a proteção do
consumidor, definir o alcance da norma, valendo-se de critérios hermenêuticos.
O Código Civil de 2002 está repleto desses termos com
textura aberta. A título de ilustração, tem-se o art. 157, que considera anulável o
negócio jurídico em que uma pessoa, por inexperiência ou sob premente
necessidade, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da
prestação oposta (instituto da lesão). A inexperiência ou a necessidade do
contratante, bem como a desproporção entre as prestações ajustadas são
questões bastante subjetivas, que exigem do juiz avaliação das circunstâncias
exteriores à letra da lei.
Da mesma forma, o art. 422 do Código Civil determina que
as partes contratantes observem os princípios da probidade e boa-fé. O real
alcance dessa previsão pode ser delimitado com o exercício do processo
hermenêutico, nas decisões judiciais, até que se consolide, na Jurisprudência,
entendimentos a esse respeito.
23
“O novo Código Civil brasileiro, neste particular, pretende conciliar
o sistema oitocentista da codificação, com a chamada ‘estrutura
aberta’, outorgando ao juiz enorme campo de atuação,
especialmente na área de família. Conferiu-se, desse modo, maior
poder ao juiz para encontrar a solução mais justa, possibilitando
que ele recorra a critérios ético-jurídicos, que permitam chegar à
concretização da norma. O direito civil, em aparente paradoxo, a
partir do novo Código se apresenta como um ‘direito em
construção’. Para o juiz se transfere a missão de construtor em
uma estrutura quem longe de ser estática e rígida, é fluida,
fornecendo amplo espaço pata a criatividade judicial.”
52
Na esfera penal (cuja proteção ao cidadão sempre foi
essencial ao Estado de Direito), observa-se que a decretação de prisão cautelar
(temporária e preventiva), assim como a quebra do sigilo telefônico e bancário
medidas sabidamente drásticas e de cunho excepcional são condicionadas a
presença de requisitos bastante abertos, que permitem ao juiz, mediante
argumentação jurídica (às vezes, mera retórica), decidir como bem quiser e, ainda
assim, sob o amparo da lei.
Essa realidade é verificada em todos os ramos do Direito,
porque inegavelmente nos diplomas legais (em maior ou menor grau)
aberturas para a atuação hermenêutica (e criativa) do julgador. Aliás, desde o
advento do positivismo, a possibilidade de criação judicial do Direito (bem mais
restrita, é verdade) existia, a fim de preencher as lacunas e resolver as
antinomias do sistema, autorizando-se o magistrado a valer-se da analogia, dos
costumes e dos princípios gerais.
Fernando Noronha, com a profundidade que lhe é própria,
aduz que o sistema jurídico está em permanente interação com a sociedade e
que somente a atividade judicial pode absorver com a agilidade necessária essa
evolução dinâmica e complexa das relações sociais. A verificação e a
interpretação das transformações sociais (e suas orientações para o Direito) são
muito mais eficientes no campo judicial do que no legislativo.
52
SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 122.
24
“No que concerne especificamente ao papel da jurisprudência na
criação do Direito, uma visão sistêmica continua revelando-se
extremamente profícua. Hoje não se discute mais a afirmativa de
que não existe isso da simples subsunção do fato (premissa
menor) à norma (premissa maior), no ato de aplicação do Direito.
Toda aplicação da lei, demonstrou Esser, é já interpretação e
como toda interpretação, é realização de valores, é escolha entre
várias valorações possíveis. Assim, cada decisão judicial pode dar
uma contribuição, maior ou menor, conforme a posição do órgão
judicante na organização judiciária e conforme o peso das razões
invocadas, para a incessante adequação do Direito ao
circunstancialismo social, as decisões anteriores alimentam as
posteriores, os acórdãos dos tribunais superiores influenciam os
juízes inferiores, assim se criando uma cadeia sem fim, onde a
incessante busca pelas melhores soluções é sinônimo de
vitalidade. O Direito é law in action, não law in the books, como
dizia Pound. Nesta cadeia sem fim, desvanecem-se os limites
entre a atividade meramente interpretativa do direito existente e a
de criação judicial de novo Direito.”
53
Para Fernando Noronha, a Jurisprudência tem o condão de
garantir a força viva (criativa) do Direito, justamente porque não é estática – evolui
conforme os anseios sociais.
A contrario sensu, se a Jurisprudência se consolida em
enunciados estáticos (imutáveis), como as Súmulas Vinculantes, impede o
movimento dinâmico do Direito e acaba se traduzindo numa outra forma de
positivismo, que talvez se possa chamar aqui de “positivismo jurisprudencial”: o
juiz como a “boca dos enunciados jurisprudenciais”, como mero repetidor
mecânico e acrítico desses enunciados.
Destacando o elemento volitivo da decisão judicial, cujo
conteúdo discricionário deve ser minimizado em prol de uma fundamentação
racional e compartilhada com a comunidade, assevera Luís Roberto Barroso:
53
NORONHA, Fernando. Direito e Sistemas Sociais – A Jurisprudência e a criação de direito para
além da lei. Florianópolis: UFSC, 1988, p. 183.
25
“A moderna dogmática jurídica, de longa data não endossa a
crença de que as normas jurídicas tenham, invariavelmente,
sentido unívoco, oferecendo uma única solução possível para os
casos concretos aos quais se aplicam. Em muitas hipóteses, a
norma especialmente a norma constitucional, quando tem
conteúdo fluido e textura aberta oferece um conjunto de
possibilidades interpretativas, figurando como uma moldura dentro
da qual irá atuar a criatividade do intérprete. Como conseqüência,
a atividade de interpretação da norma consistirá também em um
ato de vontade (volitivo), uma escolha, envolvendo uma valoração
específica feita pelo intérprete. Tal escolha é vista por parte da
doutrina como o exercício de uma discrição judicial.”
54
ainda outro aspecto relevante dessa questão. A
aceleração da produção legislativa, sem o devido comprometimento social e
constitucional, faz com que o processo legislativo se desenvolva apenas em seus
parâmetros formais. Os filtros de constitucionalidade e pertinência social
estabelecidos no processo legislativo acabam não funcionando adequadamente,
razão pela qual o Poder Judiciário é freqüentemente provocado a se pronunciar
sobre a constitucionalidade e a validade das leis, e acaba, em última análise,
definindo a legislação vigente no país.
Isso o faz exercer atividade tipicamente política, conquanto o
faça mediante argumentação jurídica.
“O próprio papel do Judiciário tem sido redimensionado. No Brasil
dos últimos anos, deixou de ser um departamento técnico
especializado e passo a desempenhar um papel político, dividindo
espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal circunstância
acarretou uma modificação substantiva na relação da sociedade
com as instituições judiciais. É certo que os métodos de atuação e
de argumentação empregados por juízes e tribunais são jurídicos,
mas a natureza de sua função é inegavelmente política. Embora
os órgãos judiciais não sejam integrados por agentes públicos
eleitos, o poder de que são titulares, como todo poder em um
Estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em
54
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição
sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p.
56.
26
nome do poder político e deve contas à sociedade. Essa
constatação ganha maior realce quando se trata do Tribunal
Constitucional ou do órgão que lhe faça as vezes, pela
repercussão e abrangência de suas decisões e pela peculiar
proximidade entre a Constituição e o fenômeno político.”
55
Assim, o Poder Judiciário ganha importante espaço na
criação do Direito, não só pelo natural alargamento de seu trabalho hermenêutico,
mas também pelo ingresso no ordenamento jurídico de diplomas legais cada vez
mais abertos e flexíveis.
A compreensão de que os ditames da Constituição devem
se sobrepor às demais regras do ordenamento, a deficiência da legislação infra
constitucional e a inexorável atividade interpretativa atinente à função jurisdicional
têm posto a decisão judicial na categoria de fonte de Direito, mesmo no Brasil,
cujo sistema jurídico segue a linha do civil law.
56
De fato, “a atividade dos juízes e,
por via de conseqüência, os precedentes judiciais constituem importante fonte de
direito, mesmo no âmbito dos sistema jurídicos de tradição romanística (civil law),
como incidência muito mais ampla do que normalmente se imagina.”
57
Mas à interpretação judicial devem se impor limites materiais
e procedimentais para que não haja arbitrariedades ou, como observa Lenio Luiz
Streck, a ampliação hermenêutica não pode significar que os juízes e tribunais
possam substituir-se ao legislador, a partir de decisionismos e voluntarismos,
numa espécie de retorno ao positivismo fático (realismo jurídico), afinal, “não se
pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.”
58
Na lição de Mauro Cappelletti:
55
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição
sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p.
60.
56
Cf. SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá,
2006, p. 49.
57
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p.18.
58
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção
do direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 167.
27
“Quando se afirma, como fizemos, que não existe clara oposição
entre interpretação e criação do direito, torna-se contudo
necessário fazer uma distinção, como dissemos acima, para evitar
sérios equívocos. De fato, o reconhecimento de que é intrínseco
em todo ato de interpretação certo grau de criatividade – ou, o que
vem a dar no mesmo, de um elemento de discricionariedade e
assim de escolha –, não deve ser confundido com a afirmação de
total liberdade do intérprete. Discricionariedade não quer dizer
necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente
criador do direito, não é necessariamente um criador
completamente livre de nculos. Na verdade, todo sistema
jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à
liberdade judicial , tanto processuais quanto substanciais.”
59
A fundamentação é essencial ao exame de pertinência,
legitimidade e validade da decisão judicial, pois “decidir sem possibilidade de
controle é decidir de forma incompatível com o sistema democrático,”
60
e esse
controle pode ser exercido se as partes tiverem acesso aos verdadeiros
motivos que formaram o convencimento do órgão julgador.
A definição desses vínculos de restrição ao poder criativo
dos juízes interessa à Argumentação e à Hermenêutica Jurídica e refoge dos
limites deste trabalho. O importante é saber que a decisão judicial não está presa
às amarras da lei (muito menos aos entendimentos jurisprudenciais
consolidados) e pode promover a criação concreta do Direito, para satisfazer o
sentimento de justiça e garantir a efetividade dinâmica que a sociedade dele
espera.
1.3 DIFERENÇAS ENTRE O SISTEMA ROMANO-GERMÂNICO (CIVIL LAW) E
O SISTEMA ANGLO-SAXÃO (COMMON LAW)
O precedente judicial é encarado de forma diversa nos
sistemas romano-germânico (civil law) e anglo-saxão (common law), embora em
59
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 24.
60
CALMON DE PASSOS, J. J. Súmula Vinculante. Genesis: Revista de Direito Processual Civil,
ano 1, n. 1. Curitiba: Genesis, 1996, p. 631.
28
ambos a decisão deva ser racionalmente fundamentada e promova, com as
respectivas peculiaridades, a criação de Direito.
Antes de evoluir no estudo das decisões judiciais,
necessário que se exponha uma noção, ainda que sucinta, dos contornos de cada
um desses dois sistemas jurídicos tradicionais do mundo ocidental.
Desde logo, contudo, ressalta-se (a fim de lastrear o
raciocínio subseqüente) a constante aproximação verificada nos últimos tempos
entre eles, a reduzir sensivelmente as suas diferenças originais. Parafraseando
Miguel Reale, Lenio Luiz Streck anota:
“Em virtude dessa crescente afirmação da jurisprudência, continua
o professor paulista, acentua-se, cada vez mais, no mundo
ocidental, significativa aproximação entre o sistema de Direito
continental-europeu e latino-americano (de origem romanística,
sob o primado da lei) e o sistema da common law, marcadamente
costumeiro e jurisprudencial. É que, enquanto em nosso sistema
aumenta, dia a dia, a força dos ‘precedentes judiciais’, o processo
legislativo cresce em importância nos Estados Unidos e até
mesmo na Inglaterra, conclui
61
.
No mesmo rumo, escreve Rodrigo Jansen:
“Tudo isso é reflexo da tendência universal de aproximação dos
sistemas common law e romano-germânico. Tanto de um lado se
tem a disseminação de leis (statutes) nos países da common law,
como a jurisprudência vem ganhando espaço nos países que
adotam o sistema romano-germânico.”
62
Não obstante essa aproximação (que no Brasil alcançou seu
ápice com o advento da Súmula Vinculante), convém indicar brevemente as
distinções clássicas havidas entre os dois sistemas.
61
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
85-86.
62
JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista dos Tribunais. Ano 94, v.
838, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 47.
29
Basicamente, pode-se afirmar que “no Civil Law a fonte
normativa é a lei escrita, no Common Law, a prática judicialmente reconhecida.”
63
Por outras palavras, neste “predomina o casuísmo, o precedente, o sistema
romano-germânico, fundamenta-se na legislação.”
64
Paulo Roberto Lyrio Pimenta fornece um pequeno esboço
histórico dos dois sistemas:
“No mundo ocidental basicamente dois grandes tipos de
sistemas jurídicos: o romano-germânico (continental europeu) e o
common law. O primeiro formou-se na Europa Continental a partir
do século XIII sobre a base do Direito romano. Foi graças aos
esforços das universidades européias que este sistema foi
elaborado e desenvolvido, com fundamento em compilações do
imperador Justiniano. Influenciado por cinco séculos pela doutrina,
passou, posteriormente, ao domínio da legislação. Este sistema
foi concebido para regular as relações entre os cidadãos, motivo
pelo qual predominava, inicialmente, os princípios do Direito Civil.
“O common law desenvolveu-se de maneira autônoma na
Inglaterra, a partir de 1066, com a conquista normanda, que
trouxe para este país um poder real forte e centralizado. Quando a
paz do reino estava ameaçada, ou quando algum acontecimento
importante justificava a intervenção real, os Tribunais Reais
atuavam, surgindo daí um direito nitidamente público.
“Ambos os sistemas expandiram-se por força da colonização e
recepção nos países dominados pelos europeus.”
65
André Ramos Tavares traça as principais características dos
dois modelos:
63
SLAIBI FILHO, Nagib. Notas sobre a súmula vinculante no direito brasileiro. Revista Forense,
ano 94, v. 342. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 559.
64
PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Súmula com efeito vinculante. Revista Dialética de Direito
Processual., v. 39, São Paulo: Oliveira Rocha – Comércio e Serviços Ltda., 2006, p. 113.
65
PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Súmula com efeito vinculante. Revista Dialética de Direito
Processual., v. 39, São Paulo: Oliveira Rocha – Comércio e Serviços Ltda., 2006, p. 113.
30
“Há uma radical oposição e (aparente) incompatibilidade entre os
modelos mencionados. Realmente, enquanto o modelo codificado
(caso brasileiro) atende ao pensamento abstrato e dedutivo, que
estabelece premissas (normativas) e obtém conclusões por
processos lógicos, tendendo a estabelecer normas gerais
organizadoras, o modelo jurisprudencial (caso norte-americano,
em parte utilizado como fonte de inspiração para a criação de
institutos no Direito brasileiro desde a I República) obedece, ao
contrário, a um raciocínio mais concreto preocupado apenas em
resolver o caso particular (pragmatismo exacerbado). Este modelo
do common law está formalmente centrado na primazia da
decisão judicial (judge made law). É, pois, um sistema nitidamente
judicialista. o Direito codificado, como se sabe, está baseado,
essencialmente, na lei.”
66
A intensidade da influência exercida pelo precedente judicial
na construção da decisão de um caso concreto é o traço distintivo dos dois
modelos, conforme alerta José Rogério Cruz e Tucci:
“O ponto de referência normativo no âmbito da common law é
exatamente o precedente judicial, enquanto, no tradicional sistema
das fontes do direito que vigora nos países regidos pela civil law, o
precedente, dotado de força persuasiva, é considerado fonte
secundária ou fonte de conhecimento do direito.”
67
Segundo o autor, o intérprete em ambos os sistemas
jurídicos desenvolve processo lógico-interpretativo no momento de aplicar a lei
(no civil law) e o precedente (no common law), mas anota que o juiz do common
law tem maior esfera de discricionariedade na construção de sua decisão.
“A peculiaridade da incidência do precedente em cotejo com a
aplicação da lei consiste sobretudo na amplitude da área de
discricionariedade que o juiz inglês possui. A individualização da
ratio decidendi é uma operação heurística de natureza casuístico-
indutiva, pela qual a regra jurídica é extraída do confronto entre a
66
TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417
de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007, p. 20.
67
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 185.
31
anterior decisão e o caso concreto submetido à apreciação
judicial.
“A sentença do juiz da civil law, a seu turno, também pressupõe
um labor intelectual, porém, de cunho normativo-dedutivo, no qual
deve ser apresentada uma justificação das circunstâncias fáticas e
jurídicas que determinaram a subsunção destes a determinado
texto de lei.”
68
No civil law (modelo continental europeu) a lei tem papel
fundamental, constituindo a fonte primaz do Direito. Todo o sistema jurídico se
organiza em torno da produção e da interpretação legislativa; os costumes, a
Jurisprudência, os princípios gerais possuem apenas caráter complementar.
As demandas e os valores sociais
69
são apreendidos pelo
processo legislativo e resultam na construção da norma. A partir dela, os juízes
julgam os litígios, por um processo interpretativo de fundamentação lógica.
O sentimento coletivo é levado até as casas legislativas,
onde se opera o processo de formação do ordenamento jurídico, “mas sempre
incompletamente”
70
. É permanente a tensão entre os clamores populares e a
atuação do Poder Legislativo, a quem compete, nesse modelo, traduzir em
normas jurídicas (de cunho geral, abstrato e obrigatório) os valores morais e
culturais prevalecentes na sociedade.
Evidente que o Poder Legislativo não consegue absorver por
completo a dinâmica das transformações sociais e, então, os juízes, mais
sensíveis a essas transformações, na tarefa de aplicar concretamente as leis,
acabam preenchendo os campos de textura aberta dos textos normativos.
68
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 186.
69
“Todas as normas jurídicas, sejam elas formuladas pela via legislativa, sejam-no pela via
conseutudinária ou pela jurisprudência, surgem em resposta a determinadas necessidades
sociais, cuja regulamentação se imponha, do ponto de vista da própria sociedade, ou se duas
forças dirigentes” (NORONHA, Fernando. Direito e Sistemas Sociais A Jurisprudência e a
criação de direito para além da lei. Florianópolis: UFSC, 1988, p. 68).
70
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 710.
32
A atuação da Jurisprudência não deixa de ser relevante no
civil law, contudo, sua feição é persuasiva e mais flexível
71
, ocupando grau
secundário, como ensina Lenio Luiz Streck:
“Como nos países filiados ao sistema romano-germânico vigora o
Direito escrito, a lei é considerada a fonte primordial, quase
exclusiva do Direito. A função dos juristas passa a ser a de, em
sua tarefa interpretativa, descobrir os significados da lei. O
costume, a jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais do
Direito faziam parte do que se chama modernamente de fontes do
Direito.
“O que deve ser dito é que a partir do século XIX, quando a
maioria dos países filiados ao sistema romano-germânico editou
seus códigos e promulgou suas constituições, os juristas
passaram a buscar na lei sua principal fonte de inspiração. As leis
escritas passam a ser tratadas, então, de forma hierárquica, tendo
no topo da pirâmide as Constituições dos países.”
72
Com efeito, no sistema romano-germânico (ou continental
europeu) ao juiz cabe decidir primeiro conforme a lei:
“Por outro lado, o nosso sistema, ao que parece, não admite que o
juiz decida senão com base, fundamentadamente, na lei. Orienta
a atividade decisória do juiz o princípio do livre convencimento
motivado: liberdade para analisar as provas, formar a
convicção e decidir, com base na interpretação da lei que se
entenda correta. O juiz tem, como regra, portanto, no sistema
brasileiro, segundo a opinião que predomina, a possibilidade de
optar pela interpretação da lei que se lhe apresenta mais
acertada.”
73
71
Cf. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 185-187 e 255-256.
72
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
67-68.
73
MEDINA, José Miguel Garcia. WAMBIER, Luiz Rodrigues. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.
Repercussão geral e súmula vinculante: relevantes novidades trazidas pela EC n. 45/2004. In:
Reforma do Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 5/2004. Teresa Arruda Alvim
33
Da mesma forma:
“A legislação, em países de Direito escrito e de Constituição
rígida, é a mais importante das fontes formais. É o caso do Brasil.
Há, no Estado moderno – como no Brasil – uma supremacia da lei
diante da crescente tendência de codificar o Direito para atender a
uma exigência de maior certeza e segurança para as relações
jurídicas, devido à possibilidade de maior rapidez na elaboração
em modificação do Direito legislado. Daí que o costume passa ser
fonte do Direito somente quando incorporado na lei escrita.”
74
O common law, por sua vez, não tem esse compromisso
com a lei, que nele ocupa papel secundário é invocada tão-somente em
situações excepcionais, ou para solucionar conflito insuperável entre direitos
jurisprudenciais, regionais ou estaduais.
Esse modelo é, de modo geral, mais aberto e permeável aos
elementos exteriores do sistema jurídico, cujas lacunas são preenchidas no
cotidiano da atividade jurisdicional, atenta aos novos costumes e aos
desdobramentos da dinâmica social.
Tal sistema jurídico
75
se baseia no precedente judicial (cujo
efeito vinculante advém da teoria do stare decisis), que pode ser definido como “a
decisão jurisdicional que veicula um princípio jurídico, com grau de abstração
suficiente para ser aplicado a casos futuros e análogos.”
76
“Nos países que adotam o sistema do common law, impera o
princípio da obrigatoriedade do precedente, segundo o qual todos
os Tribunais estão vinculados às decisões das Cortes Superiores
Wambier, Luiz Rodrigues Wambier, Luiz Manoel Gomes Júnior, Otávio Campos Fischer, William
Santos Ferreira, coordenadores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 389.
74
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
75.
75
Embora haja traços distintivos entre o common law adotado na Inglaterra e o adotado nos
Estados Unidos, tais distinções não afetam a essência do sistema, naquilo que interessa ao
presente estudo.
76
PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Súmula com efeito vinculante. Revista Dialética de Direito
Processual., v. 39, São Paulo: Oliveira Rocha – Comércio e Serviços Ltda., 2006, p. 113.
34
e estas também se vinculam às decisões da Corte Suprema, as
quais, por sua vez, o podem se divorciar dos seus próprios
precedentes.”
77
Mas o que vincula os juízes e tribunais é a ratio decidendi,
que geralmente se identifica com um princípio jurídico assentado na motivação do
precedente. Esse princípio deve ser necessariamente observado nos julgamentos
posteriores que tenham similar situação de fato em conflito.
De fato, o precedente, “para produzir eficácia vinculante,
deve guardar absoluta pertinência substancial com a ratio decidendi do caso
sucessivo, ou seja, deve ser considerado um precedent in point.”
78
Por ratio decidendi entende-se o princípio ou tese jurídica
suficiente para decidir o caso concreto (rule of law). “É essa regra de direito (e,
jamais, de fato) que vincula os julgamentos futuros inter alia.”
79
A indicação dos fatos relevantes, o raciocínio lógico-jurídico
e o juízo decisório compõem a ratio decidendi, que não vem especificamente
destacada do corpo da decisão; é extraída pelos juízes, abstraindo-a do caso
concreto, para aplicação a situações posteriores, de especial similitude fática.
80
Todavia, tanto na definição de que determinado precedente
se amolda ao caso concreto, quanto na extensão dos efeitos do princípio jurídico
contido na ratio decidendi, cabe ao juiz o exercício racional de sua
discricionariedade e motivação, como referido anteriormente e explicitado por
José Rogério Cruz e Tucci:
77
PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Súmula com efeito vinculante. Revista Dialética de Direito
Processual., v. 39, São Paulo: Oliveira Rocha – Comércio e Serviços Ltda., 2006, p. 113.
78
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 174.
79
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 175.
80
Cf. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 175.
35
“Infere-se daí a relevância que ostenta, no sistema do case law, a
interpretação do precedente judicial no cotejo com o caso
concreto. A lógica jurídica, nesse particular, tem como
pressuposto o método de ‘reasoning from case to case’.
“Em primeiro lugar, o juiz da common law deve aproximar os
elementos objetivos que possam identificar a demanda em
julgamento com eventual ou eventuais decisões anteriores,
proferidas em casos análogos. Procede-se, em seguida, ao
exame da ratio decidendi do precedente. Dependendo da postura
do juiz, pode este ser interpretado de modo restritivo (restrictive
distinguishing) ou ampliativo (ampliative distinguishing).
E continua:
“Isso significa que não se exige submissão ‘cega’ a anteriores
decisões. Permite-se à corte estender um princípio mais além dos
limites de um caso antecedente se entender que assim estará
promovendo justiça. Caso a aplicação do princípio, entretanto,
possa produzir resultado indesejável, o tribunal estreitará ou
restringirá ou princípio, ou ainda aplicará precedente diverso’. Por
essa razão, deve ser assinalado que o stare decisis não é apenas
uma teoria que historicamente resguardou a estabilidade e a
uniformidade, visto que suas restrições e ampliações inerentes,
bem como os fatores que determinaram a inaplicabilidade de
precedentes judiciais, permitem a inafastável flexibilidade do
ordenamento da common law, indispensável à evolução e ao
progresso do direito.”
81
A aplicação do Direito por parte do juiz do common law é
tarefa de profunda complexidade, que lhe exige apurado raciocínio jurídico. Isso
porque a “norma” (princípio, regra ou tese contida na ratio decidendi), que irá
lastrear seu julgamento, não lhe é dada pronta e acabada. Ele é que precisa
extraí-la do contexto da fundamentação jurídica utilizada no precedente, mediante
processo hermenêutico devidamente motivado. de encontrar o(s) motivo(s)
81
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 171-172.
36
determinante(s) do precedente, desprezando os argumentos marginais,
prescindíveis para o deslinde da contenda.
82
Marcelo Alves Dias de Souza chama atenção para a
controvérsia doutrinária que envolve esse assunto:
“Daí ser o conceito de ratio decidendi fundamental para o estudo
da teoria do precedente obrigatório; e a primeira coisa que o
operador do direito deve fazer, ao analisar um precedente judicial,
é tentar identificar, distinguindo do que é dictum, obter dictum ou é
mera questão de fato, qual proposição forma sua ratio decidendi.
“Trata-se de uma das questões mais controvertidas da doutrina do
stare decisis, pois, afora alguns pontos onde certa
concordância, a doutrina diverge e muito na definição do que
seja ratio decidendi e na escolha do método mais eficaz de
identificá-la no bojo de um precedente judicial.”
83
A complexidade desse todo deriva do fato de que o
precedente não tem preocupação primordial com os julgamentos subseqüentes.
Está voltado para a resolução do caso concreto. Por isso, toda a sua
fundamentação refere-se às circunstâncias da situação conflituosa
particularmente apreciada. A sua utilização em demandas posteriores é
conseqüência do sistema, mas não apontamento de argumentos genéricos e
abstratos com a finalidade de formar entendimentos sobre os assuntos
abordados.
Para complicar ainda mais, é comum haver precedentes
com mais de uma ratio decidendi e alguns em que é extremamente difícil
82
“Para a correta inferência da ratio decidendi, propõe-se uma operação mental, mediante a qual,
invertendo-se o teor do núcleo decisório, se indaga se a conclusão permaneceria a mesma, se o
juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão ficar mantida, então a tese originária não
pode ser considerada ratio decidendi; caso contrário, a resposta será positiva” (CRUZ E TUCCI,
José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004,
p. 177).
83
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá,
2006, p. 125.
37
encontrá-la, chegando-se ao ponto de se considerá-la insuficiente ou
inexistente.
84
Depois de encontrar a ratio decidendi, o juiz tem de
examinar se ela se aplica mesmo ao caso concreto (mediante a técnica
denominada distinguishing),
85
e em que grau (pode ampliar ou restringir os seus
efeitos diante das peculiaridades da situação fática apreciada), explicitando as
razões de sua decisão.
Ao final, julgará a causa, rejeitando ou acolhendo o pedido,
ainda que parcialmente, sem vinculação ao que fora decidido no precedente,
porquanto o que vincula não é a sua parte dispositiva, mas a sua fundamentação
– paradigma hermenêutico.
No que tange aos julgamentos dos tribunais que contenham
“pontos de vistas convergentes no dispositivo e discordantes na motivação,
quando compatíveis em relação ao tema debatido, proporcionam ao intérprete a
possibilidade de escolha por uma das duas posições.”
86
Por outro lado, se a fundamentação divergente revela-se
incompatível com a decisão tomada, não efeito vinculante e pode apresentar
meros argumentos persuasivos. Entretanto, em algumas situações, esses votos
divergentes “acabam destacando as fissuras da interpretação do paradigma
consolidado e, de certo modo, sinalizam possível mudança na apreciação
posterior de questão semelhante.”
87
Nos julgamentos por unanimidade, em que há coincidência
de votos, forma-se, por óbvio, uma única ratio decidendi.
84
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá,
2006, p. 137-139.
85
Considera aplicável o precedente em que coincidência entre os seus fatos fundamentais
(material facts) e os do caso concreto.
86
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 178.
87
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 178.
38
As cortes superiores podem revogar a ratio decidendi
firmada anteriormente, de forma explícita com efeitos ex tunc (retrospective
overrling) ou ex nunc (prospective overruling) ou implícita, atendendo à
dinâmica tensão entre Direito e sociedade.
Existe ainda a anticipatory overruling, que “consiste na
revogação preventiva do precedente, pelas cortes inferiores, ao fundamento de
que não constitui good law, como já teria sido reconhecido pelo próprio tribunal ad
quem,”
88
, mediante alteração de rumo da jurisprudência do tribunal superior,
mesmo que implícita.
88
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. o Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 180.
CAPÍTULO 2
SÚMULA VINCULANTE
2.1 TRADIÇÃO DAS SÚMULAS NO DIREITO BRASILEIRO
O Direito brasileiro tem suas bases assentadas no sistema
romano-germânico, em que a fonte primária é a lei. A jurisprudência desempenha
papel meramente acessório, cuja contribuição maior é justamente permitir a
adequada interpretação e compreensão da norma, mediante o emprego de
critérios hermenêuticos que lhe assegurem justa aplicação aos casos concretos.
A submissão de casos similares à apreciação judicial faz
com que os entendimentos se consolidem, amadureçam, formem, então,
jurisprudência. Quando um determinado tribunal passa a decidir questões
semelhantes num mesmo sentido, valendo-se da mesma fundamentação jurídica,
tem-se a consolidação, naquele tribunal, de certas posições: surge a
jurisprudência.
Portanto, aos limites deste estudo, considera-se
jurisprudência “o conjunto uniforme e constante das decisões judiciais sobre
casos semelhantes.”
89
Apenas uma ou algumas decisões similares não constituem
jurisprudência; trata-se de meros precedentes, sem a capacidade de influenciar
de maneira determinante os demais julgamentos. Somente a uniformização de
entendimentos, adquirida mediante a reiteração de julgamentos uniformes,
permite a afirmação de que há jurisprudência.
89
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
83.
40
E uma vez formada a orientação jurisprudencial, é que
natural os tribunais e juízes a sigam, o que se justifica em razão dos princípios da
economia processual e da segurança jurídica, bem como pela razoável
probabilidade de que aquela seja mesmo a mais adequada.
Mas a adoção do posicionamento dominante não é
obrigatória. Cada juiz decide segundo seu livre convencimento (desde que
fundamentado).
Entretanto, em que pese essa prerrogativa concedida ao
magistrado, havendo jurisprudência firme sobre certo tema, a tendência é que
eventuais convicções pessoais em sentido contrário a ela se curvem. Os recursos
aos órgãos de instância superior se encarregarão de reformar as decisões
divergentes e de solidificar a orientação jurisprudencial prevalecente.
Com o intuito de agilizar os feitos, garantir segurança jurídica
e facilitar o acesso dos juízes e demais operadores jurídicos aos entendimentos
jurisprudenciais consolidados (uniformizados), expondo-os de maneira direta,
clara e objetiva, surgiu a súmula.
A súmula é, pois, a expressão resumida e precisa de
determinado entendimento jurisprudencial consolidado. “Súmula é a ntese de
um entendimento jurisprudencial extraído de reiteradas decisões no mesmo
sentido.”
90
Luiz Lenio Streckh explica:
“A palavra súmula vem do latim summula, significando sumário,
resumo. No âmbito jurídico, a súmula de jurisprudência se refere a
teses jurídicas solidamente assentes em decisões
jurisprudenciais, das quais se retira um enunciado, que é o
preceito doutrinário que extrapola os casos concretos que lhe
deram origem e pode ser utilizado para orientar o julgamento de
outros casos. As duas palavras súmula e enunciado –, embora
90
GOMES, Luiz Flávio. Eficácia e extensão das súmulas vinculantes. Juristas.com.br, João
Pessoa, a. 1, n. 33, 01/08/2005. Disponível em:
<http://www.juristas.com.br/colunas.jsp?idColuna=322>. Acesso em: 22/12/2005.
41
tenham significados diferentes, acabaram por ser usadas
indistintamente, de modo que por súmula, atualmente, entende-se
comumente o próprio enunciado, ou seja, o preceito genérico
tirado do resumo da questão de direito julgada.”
91
Está prevista no art. 479 do digo de Processo Civil, como
resultado último do incidente de uniformização de jurisprudência:
“Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos
membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e
constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.
“Parágrafo único. Os regimentos internos disporão sobre a
publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência
predominante.”
No Direito brasileiro a edição de súmulas se iniciou a partir
de 1963, quando houve expressa previsão para tanto no Regimento Interno do
Supremo Tribunal Federal, mediante proposta encaminhada pelo então Ministro
Victor Nunes Leal – considerado o grande idealizador das súmulas no Brasil.
Posteriormente, foi publicada a Lei n.º 5.010/66, que em seu
art. 63 criava para o extinto Tribunal Federal de Recursos a possibilidade de
organizar súmulas de sua jurisprudência.
Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de
1973, todos os demais tribunais do país passaram a editar suas próprias súmulas.
Tal como foram concebidas em 1963 e passaram a fazer
parte do sistema jurídico brasileiro ao menos até a Emenda Constitucional n.º
45 –, as súmulas sempre se revelaram importante base de consulta para todos os
operadores jurídicos, servindo muitas vezes de fundamento único para decisões
judiciais.
91
SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 238.
42
Constituem fórmulas concisas que expressam o pensamento
jurisprudencial dominante do respectivo tribunal acerca de determinado assunto, o
que muito contribui para a análise das mais variadas questões jurídicas.
Entretanto, jamais tiveram caráter vinculativo, obrigatório, impositivo, como bem
lembra Mônica Sifuentes:
“A súmula de jurisprudência, prevista no Código de Processo Civil
de 1973, tem, tal como foram concebidas as do Supremo Tribunal
Federal, caráter persuasivo. Não existe, portanto, obrigatoriedade
de sua adoção pelos juízes, nem mesmo em relação às súmulas
editadas pelos próprios tribunais a que estão vinculados.”
92
Evidente que no dia-a-dia da produção jurídica as súmulas
(ainda que sem efeitos vinculantes) são, na maior parte das vezes, aplicadas sem
enfrentamentos por parte dos juízes de primeiro grau. No entanto, ao magistrado
que encontre óbice à sua aplicação, é reservada a prerrogativa de contrariá-la,
discuti-la e afastá-la do caso concreto.
Da mesma forma, descreve Rodolfo de Camargo Mancuso:
“Mesmo sem a conotação de ser vinculativa, a jurisprudência
mormente em suas formas superlativas dominante ou sumulada
nunca deixou de exercer uma inegável força persuasiva dentre
nós, ora atuando como convincente reforço de argumento, assim
nas peças processuais oferecidas por advogados e Promotores de
Justiça, como também na fundamentação das sentenças e
acórdãos.”
93
De fato, sempre se reconheceu na jurisprudência importante
base de apoio para a construção do Direito, vinculada, contudo, aos ditames da
lei, e assegurada ao julgador a prerrogativa de dela dissentir. De se destacar,
portanto, seu caráter acessório, persuasivo e não vinculativo. Foi assim que as
92
SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 239.
93
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. mula vinculante e a EC n. 45/2004. Reforma do Judiciário:
Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 5/2004. Teresa Arruda Alvim Wambier, Luiz Rodrigues
Wambier, Luiz Manoel Gomes Júnior, Otávio Campos Fischer, William Santos Ferreira,
coordenadores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 688.
43
súmulas ingressaram no sistema jurídico nacional e atuaram até os últimos anos.
“Sua força, com as exceções especificadas, lozalizam-se muito mais no terreno
da persuasão do que no da vinculação.”
94
Todavia, por força da influência do Direito norte-americano,
que segue o sistema do common law, o Direito brasileiro passou a atribuir à
jurisprudência papel cada vez mais importante. “No ordenamento jurídico
brasileiro é possível perceber a crescente importância dos tribunais e dos próprios
órgãos administrativos superiores no desenvolvimento da vida jurídica.”
95
No Brasil, o efeito vinculante dos enunciados
jurisprudenciais foi pouco a pouco ganhando força na comunidade jurídica, e
havia sido previsto no ordenamento antes mesmo da Emenda Constitucional n.º
45.
96
Assim é que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal em ação declaratória de constitucionalidade tem efeito vinculatório (CF,
art. 102, § 2.º).
O art. 38 da Lei n.º 8.038/90, ao permitir que o Relator negue
seguimento aos recursos interpostos perante o Supremo Tribunal Federal e o
Superior Tribunal de Justiça que contrariem súmulas dos respectivos tribunais,
94
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
221.
95
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
86.
96
Com efeito, “não se pode perder de vista que a idéia-força da impositividade do direito sumular
estava presente, em maior ou menor intensidade, em vários textos, como os Regimentos
Internos do STF (art. 102 e parágrafos) e do STJ (arts. 122 a 127); a chamada Lei dos Recursos
(Lei 8.038/90, art. 38); o Código de Processo Civil vigente (art. 557 e 557-A); a Consolidação das
Leis do Trabalho (§§ 3.º a 5.º do art. 896), nestes dois últimos casos por força da Lei 9.756/1998.
outrossim, a própria EC n. 45/2004 veio a dar nova redação ao § 2.º do art. 102, de sorte que as
decisões definitivas de mérito, proferidas pelo STF nas ação direta de inconstitucionalidade e
ação direta de constitucionalidade (regulamentadas pela Lei 9.868/1999) ‘produzirão eficácia
contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal’” (MANCUSO,
Rodolfo de Camargo. Súmula vinculante e a EC n. 45/2004. In: Reforma do Judiciário: Primeiros
ensaios críticos sobre a EC n. 5/2004. Teresa Arruda Alvim Wambier, Luiz Rodrigues Wambier,
Luiz Manoel Gomes Júnior, Otávio Campos Fischer, William Santos Ferreira, coordenadores.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 704-705).
44
também impõe aceitação obrigatória dos entendimentos jurisprudenciais
consolidados em súmulas.
Da mesma forma, o art. 896 da Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT), ao tratar da interposição de Recurso de Revista ao Tribunal
Superior do Trabalho, caráter impositivo e obrigatório aos enunciados
sumulares deste tribunal, impedindo que as decisões neles assentadas sejam
objeto de apreciação pelo órgão julgador de instância superior.
O art. 557 do Código de Processo Civil, em sua redação
atual, autoriza o Relator a decidir liminarmente o recurso, por decisão
monocrática, quando o fizer com base em súmula do Supremo Tribunal Federal e
ou do Superior Tribunal de Justiça. ainda as previsões dos regimentos
internos dos tribunais, que muitas vezes dão às suas súmulas, embora por vias
transversas, força normativa autônoma.
A Lei n.º 11.232/2005, ao alterar a redação do art. 741 do
Código de Processo Civil e acrescentar-lhe o art. 475-L, flexibilizou a coisa
julgada, sempre que a sentença estiver em confronto com a interpretação
constitucional que o Supremo Tribunal Federal (STF) der a determinada matéria.
Tudo isso faz com que o Direito brasileiro se afaste de suas
raízes tradicionais e incorpore institutos de maior afinidade com o sistema da
common law.
Mas nenhuma dessas providências alcançou tamanho
impacto como a instituição da súmula vinculante. Nela, a força normativa da
jurisprudência (por ora apenas do STF) alcançou seu ápice. A partir da reiterada
uniformidade de julgamentos similares, o STF poderá editar proposição de cunho
genérico e abstrato que, na prática, conterá força superior à da própria lei, eis que
é vedada sua discussão mesmo nos órgãos julgadores de instância inferior.
Uma vez fixado determinado posicionamento em forma de
súmula vinculante, esta passa a ser uma regra (texto normativo) de aceitação
obrigatória, que somente ao próprio STF caberá rever.
45
Nas palavras de Eros Grau:
“Ao instituir uma súmula vinculante o Supremo exercerá parcela
de função normativa. Estabelecerá, mediante a edição de um
texto normativo, como deverá ser decidida determinada questão
pelos Tribunais infraconstitucionais. Não se trata de uma invenção
deste século. Discorrendo sobre os assentos do antigo direito
português, CASTANHEIRA NEVES observa que esse instituto [é]
original na possibilidade que confere 1) a um órgão judicial (a um
tribunal) de prescrever 2) critérios jurídicos universalmente
vinculantes, mediante o enunciado de 3) normas (no sentido
estrito de normas gerais, ou de ‘preceitos gerais e abstractos’),
que, como tais, 4) abstraem (na sua intenção) e se destacam (na
sua formulação) dos casos ou decisões jurisdicionais que tenham
estado na sua origem, com o propósito de 5) estatuírem para o
futuro, de se imporem em ordem a uma aplicação futura.
Originalidade que consiste, portanto, em serem chamados alguns
de nossos tribunais, mediante aquele instituto, à proclamação de
critérios jurídicos que tanto formalmente, como intencionalmente e
ainda temporalmente (ou na sua dimensão de tempo) se nos
oferecem com as características de prescrições legislativas’.
Insisto neste ponto: a súmula vinculante não é norma; é ainda
texto normativo.”
97
Para Eros Grau, a norma só será concebida na decisão
judicial, por meio da atividade do intérprete, no momento de sua aplicação
concreta. A Súmula Vinculante é um texto normativo que ainda está no campo
abstrato e carece de atividade interpretativa para se transformar em norma.
“A interpretação do direito opera a mediação entre o caráter geral
do texto normativo e sua aplicação particular: isto é, opera a sua
inserção na vida. A interpretação, pois, é um processo intelectivo
através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos
textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a
determinação de um conteúdo normativo. É atividade voltada ao
discernimento de enunciados semânticos veiculados por preceitos
(enunciados, disposições, textos): o intérprete desvencilha a
97
STF, Voto do Ministro Eros Grau, no julgamento da Questão de Ordem em Reclamação n.º
4.219-7, de São Paulo, ainda em tramitação.
46
norma de seu invólucro (o texto); neste sentido, o intérprete
‘produz a norma’.”
98
Dessa forma, figura o intérprete como verdadeiro produtor
da norma, aquele que a desvencilha do texto normativo que a contém. Para Eros
Grau, as normas decorrem da atividade hermenêutica, sendo o ordenamento, no
seu valor histórico-concreto, apenas um conjunto de interpretações, isto é,
conjunto de normas. Assim, os textos normativos constituem apenas
ordenamento em potência, uma série de possibilidades de interpretação, pois “o
significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa.”
99
Como lembra o próprio Eros Grau, o instituto da Súmula
Vinculante se assemelha bastante ao dos assentos, do Direito português.
O art. 2do Código Civil daquele país dispunha: “Nos casos
declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com
força obrigatória geral”. Todavia, em 1993, o Tribunal Constitucional de Portugal
considerou inconstitucionais os assentos, retirando-lhes completamente a
eficácia, justamente por ferir o princípio da legalidade.
100
No Brasil, os assentos estiveram presentes durante o
período em que aqui vigoraram as Ordenações Manuelinas e Filipinas.
101
A partir
do século XX, foram abolidos e todas as outras tentativas de reincorporá-los
fracassaram (o último destes fracassos ocorreu na Revisão Constitucional de
1993).
98
GRAU, Eros. A interpretação constitucional como processo. Revista Consulex, Brasília, ano I, n.
3, p. 41.
99
GRAU, Eros. A interpretação constitucional como processo. Revista Consulex, Brasília, ano I, n.
3, p. 41.
100
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
97; SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 199; DA CUNHA. Sérgio Sérvulo. A arcaica súmula vinculante. In:
Reforma do judiciário. Pierpaolo Bottini, Sérgio Rabello Tamm Renault, coordenadores. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 40.
101
DA CUNHA. Sérgio Sérvulo. A arcaica súmula vinculante. Reforma do judiciário. Pierpaolo
Bottini, Sérgio Rabello Tamm Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 40.
47
Logo, o Direito brasileiro moderno (todo o século XX e início
do XXI) se desenvolveu sob o primado da lei, consoante a tradição do sistema
romano-germânico. Agora os arcaicos assentos ressurgem sob nova formatação:
a de Súmulas Vinculantes, inspirada na doutrina norte-americana dos
precedentes obrigatórios, ou stare decisis, do sistema common law. E isso ocorre
justamente ao tempo em que os países vinculados a este sistema passam a dar
maior força à lei, em oposição à jurisprudência.
2.2 APROXIMAÇÃO COM O SISTEMA ANGLO-SAXÃO (COMMON LAW): A
SÚMULA VINCULANTE E O STARE DECISIS
No sistema common law norte-americano existe a figura do
stare decisis instituto que inspirou a inclusão da Súmula Vinculante no Direito
Brasileiro
102
–, que significa: ficar com o que foi decidido ou estar vinculado ao
que foi decidido; é, na verdade, um precedente judicial obrigatório, vinculante.
Para que um precedente tenha essa força vinculatória, como
visto, é preciso que a sua ratio decidendi se ajuste perfeitamente ao caso
submetido a julgamento. Nesse particular, convém esclarecer que “todo
precedente judicial é composto por duas partes distintas: a) as circunstâncias de
fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na
motivação (ratio decidendi) do provimento decisório.”
103
André Ramos Tavares elucida:
“O chamado precedente (stare decisis) utilizado no modelo
judicialista, é o caso decidido, cuja decisão primeira sobre o
102
“A inspiração da súmula vinculante no precedente do Direito norte-americano e na doutrina do
stare decisis não pode ser ignorada. Com efeito, sempre que se imagina conferir eficácia
vinculante a decisões de nossa Corte Constitucional, torna-se inescapável o paradigma dos
precedentes nos Estados Unidos e de como se processa a criação do Direito pelos seus juízes”
(JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. In: Revista dos Tribunais. Ano 94,
v. 838, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 47). No Supremo Tribunal Federal, o Ministro
Carlos Veloso defendeu a Súmula Vinculante comparando-a ao stare decisis norte americano
(Cf. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes e a reforma do Judiciário: o leito de procusto da
justiça brasileira. In: Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 35,
1995, p. 32).
103
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 12.
48
tema (leading case) atua como fonte para o estabelecimento
(indutivo) de diretrizes para os demais casos a serem julgados. A
norma e o princípio jurídico são induzidos a partir da decisão
judicial, porque esta não se ocupa senão da solução do caso
concreto apresentado. Esse precedente, com o princípio jurídico
que lhe servia de pano de fundo, haverá de ser seguido nas
posteriores decisões como paradigma (ocorrendo, aqui, portanto,
uma aproximação com a idéia de súmula vinculante brasileira).”
104
se viu no item 1.3 deste trabalho que a extração da ratio
decidendi de um precedente não é tarefa tão simples. A “regra” a ser seguida nos
julgamentos posteriores o fica exposta de forma clara. É da leitura e
interpretação de todo o corpo da decisão, sobretudo de seus fundamentos
determinantes, que se colhe (se induz) o princípio, a tese ou a regra vinculatória.
Não há a formação de um enunciado resumido (de cunho genérico e abstrato) do
entendimento prevalecente, como são as súmulas no Brasil.
Isso configura séria distinção entre os modos de
compreensão dos entendimentos jurisprudenciais nos dois sistemas, e na forma
de aplicá-los concretamente.
Como o campo de análise do intérprete do common law é
bem maior (“o precedente deve ser analisado amiúde”
105
), valoriza-se a sua
atuação discricionária e criativa (mas sempre fundamentada), assim como se
alcança razoável segurança e uniformidade, pois há, na maioria dos precedentes,
explicação completa dos seus motivos, a impedir distorcidas compreensões.
No Brasil a Súmula Vinculante é uma síntese do
entendimento jurisprudencial pacificado, escrita em formato de um texto normativo
(geral, abstrato e obrigatório), tal como a lei, sem referência aos fundamentos de
fato e de direito que a justificaram. Não pode ser confundida com um precedente,
104
TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417
de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007, p. 21.
105
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes e a reforma do Judiciário: o leito de procusto da
justiça brasileira. In: Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul
, Porto Alegre, v. 35,
1995, p. 33
49
que expressa as razões que levaram o órgão julgador, naquele caso concreto, a
empregar a ratio decidendi vinculante.
A Súmula Vinculante aparece como um texto normativo (ou
norma de interpretação), cuja força está desprendida dos casos concretos que lhe
deram origem.
Assim, conquanto a Súmula Vinculante seja um instituto de
natureza jurisprudencial, aplica-se (paradoxalmente) pelo critério de subsunção:
premissa menor (fato) em confronto com a premissa maior (súmula) leva a uma
conclusão lógica, que é a decisão.
Daí a crítica atenta de Lenio Luiz Streck:
“Saliente-se, também, que, no Direito norte-americano, as
decisões não são proferidas para que possam servir de
precedentes no futuro, mas, antes, para solver as disputas entre
os litigantes. A utilização do precedent em casos posteriores é
uma decorrência incidental. Daí que – e isso é extremamente
relevante para a discussão da problemática brasileira a
autoridade do precedent vai depender e será limitada aos fatos e
condições particulares do caso que o processo anterior pretendeu
adjudicar. Essa circunstância é importante para uma comparação
como que ocorre no Direito brasileiro, em que as decisões
judiciais se baseiam em ‘precedentes sumulares’ e verbetes
jurisprudenciais utilizados, via de regra, de forma
descontextualizada. No Direito norte-americano tal não ocorre,
mormente pelo fato de que lá, o juiz necessita fundamentar e
justificar detalhadamente a sua decisão. no Direito brasileiro,
de origem continental, basta que a decisão esteja de acordo com
a lei (ou com uma Súmula ou com uma ‘ementa jurisprudencial’
...).”
106
106
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes e a reforma do Judiciário: o leito de procusto da
justiça brasileira. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul
, Porto Alegre, v. 35, 1995,
p. 33
50
André Ramos Tavares segue a mesma linha:
“... a súmula não incorpora os casos concretos que formaram a
‘base’ para sua edição. E, sendo a vinculação apenas ao
enunciado desta, os magistrados terão de proceder a uma
operação mental de verificação do cabimento da súmula ao caso
concreto que tenham perante si, bem como das normas aplicáveis
a ele.”
107
Examinando o texto da Emenda Constitucional n 45,
adverte Lenio Luiz Streck que “a institucionalização das súmulas vinculantes não
encontra precedente em outro sistema jurídico de cariz romano-germânico.”
108
O Prof. Keith S. Rosenn, da Faculdade de Direito de Miami,
explica a diferença entre a Súmula Vinculante brasileira e o stare decisis norte-
americano, de forma simples:
“... Mas isso é diferente das súmulas vinculantes em dois aspectos
importantes: primeiro a súmula aqui, no Brasil, não é gerada por
uma decisão única, uma norma abstrata apoiada nos fatos.
Normalmente as súmulas do STF se baseiam em quatro ou cinco
acórdãos onde foram estabelecidos um mesmo procedimento que
se transforma em súmula. Nós não temos a Súmula, nós temos
somente a jurisprudência, e tem que se ver o caso inteiro e
entender a norma jurídica como um resultado dos fatos
específicos. E se houve um fato diferente que seja relevante, você
pode, sem desobedecer essa força vinculatória, distinguir do
precedente dizendo que os fatos de um determinado caso são
diferentes. E essa é a maneira de argüir, em nosso sistema.
Estamos sempre discutindo se os fatos são parecidos ou não. E,
muitas vezes, o Supremo muda uma linha de jurisprudência
dizendo que os fatos são um pouco diferentes e essas diferenças
são significativas para os motivos jurídicos, que alteram uma
decisão de maneira importante. Temos que comparar uma
107
TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417
de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007, p. 108.
108
STRECK, Lenio Luiz. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-
graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Orgs. Leonel Severo Rocha, Lenio
Luis Streck, José Luis Bolzan de Morais ... [et. Al.]. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005,
p.174.
51
decisão com outra e ler os acórdãos inteiros para entender qual é
o feito. Aqui todo mundo a Súmula e o acórdão permanece
desconhecido. Essas são as diferenças importantes entre a
súmula vinculante e o nosso sistema de stare decisis.”
109
As ponderação do Prof. Keith S. Rosenn ratificam a
conclusão de que a Súmula Vinculante no Brasil funcionará como mero texto
normativo, a ser aplicado aos casos concretos mediante processo lógico dedutivo
de subsunção, sem compromisso com os fundamentos de fato e de direito
presentes nos Acórdãos que lhe deram origem.
2.3 O ARTIGO 103-A DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL, ACRESCENTADO PELA EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 45, DE 30-
12-2004
O ingresso da Súmula Vinculante no sistema jurídico
brasileiro se deu com a inserção do art. 103-A no texto da Constituição da
República Federativa do Brasil, redigido nos seguintes termos:
"Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por
provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros,
após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar
súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá
efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão
ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
“§ 1.º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a
eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja
controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a
administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e
relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
109
ROSENN, Keith S. Direito Comparado: Brasil X Eua. Revista Consulex, Brasília, ano I, n. 10,
1997, p. 8.
52
“§ 2.º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a
aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser
provocada por aqueles que podem propor a ação direta de
inconstitucionalidade.
“§ 3.º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a
súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá
reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a
procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão
judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou
sem a aplicação da súmula, conforme o caso."
Da leitura do mencionado dispositivo, percebe-se de início
que a implementação efetiva da Súmula vinculante carecia de regulamentação
por lei ordinária, não obstante algumas controvérsias que surgiram a esse
respeito. Com a edição da Lei n.º 11.417, de 19-12-2006, que tratou de
regulamentar o art. 103-A da Constituição, a questão perdeu importância. É
pertinente agora apenas discutir se todos os aspectos controvertidos do texto
constitucional restaram esclarecidos na lei regulamentadora que será tratada
especificamente no item seguinte (2.4).
No modelo instituído pela Emenda Constitucional n.º 45, a
aprovação, a revisão e o cancelamento de súmulas vinculantes podem ser feitos
de ofício ou por provocação. No primeiro caso, os próprios ministros do STF
propõem a criação da mula, bem como sua revisão ou extinção; no segundo,
um rol predeterminado de pessoas (legitimadas) tem a faculdade de tomar essas
iniciativas.
Somente o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá, de
ofício ou mediante provocação, editar súmulas com efeito vinculante, o qual se
estenderá a todos os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração
Pública direta e indireta, nas três esferas da federação (federal, estadual e
municipal).
Os outros Tribunais continuam autorizados a emitir súmulas,
mas apenas as do STF poderão ter efeito vinculante.
53
Por efeito vinculante deve-se entender a impossibilidade
desses órgãos (do Poder Judiciário e da Administração Pública), no exercício de
suas competências, contestarem ou deixarem de acatar o conteúdo das súmulas.
A súmula vinculante passa a ter autonomia, eficácia plena e aceitação obrigatória.
Passa a ser verdadeira fonte de Direito (enquanto texto normativo), que se
justifica por si só, e cuja aplicação, salvo quanto ao exame de sua pertinência
(enquadramento) aos fatos do caso concreto, não deixa qualquer margem de
discricionariedade.
A Súmula Vinculante, conquanto expresse um entendimento
jurisprudencial consolidado a partir do exame de casos específicos, tem caráter
normativo geral e abstrato. “Ninguém pode questionar (em casos concretos) nem
o sentido interpretativo e imperativo da súmula nem os fundamentos invocados
para se chegar a ela.
110
Para preservar o caráter vinculante, o § 3.º estabelece que
em caso de ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula
aplicável à situação concreta, caberá reclamação perante o STF, que, julgando-a
procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial, e
determinará a imperiosa aplicação da súmula.
O mesmo § 3.º dispõe que igual providência caberá quando
a súmula for aplicada indevidamente. Se o juiz ou o administrador público
entender equivocadamente que o caso concreto se enquadra no espectro de
abrangência da súmula, o STF, mediante reclamação do interessado, poderá
diretamente corrigir o equívoco e impedir a aplicação do mandamento sumular,
independente de qualquer outro recurso.
A despeito de alguma celeuma e da perfunctória análise que
aqui se faz, pode-se afirmar que a reclamação é uma ação de conhecimento com
a finalidade de assegurar a eficácia da Súmula Vinculante.
110
GOMES, Luiz Flávio. Eficácia e extensão das mulas vinculantes. Juristas.com.br, João
Pessoa, a. 1, n. 33, 01/08/2005. Disponível em:
<http://www.juristas.com.br/colunas.jsp?idColuna=322>. Acesso em: 22/12/2005.
54
Leonardo Lins Morato elucida:
“A reclamação provoca o exercício da atividade jurisdicional,
porque a Corte competente para apreciá-la decide a lide que lhe
foi submetida, para pôr fim à controvérsia existente entre as
partes, mediante uma decisão que substitui a vontade destas (as
partes). E a reclamação possibilita a resolução da situação ilegal
do desacato (a uma decisão ou a uma súmula vinculante) ou da
usurpação (de uma norma de competência), sendo certo que a
Corte competente para apreciar a reclamação pode valer-se de
qualquer medida que repute adequada e que venha a ser
necessária para esse fim.”
111
E mais adiante define:
“É a reclamação uma ação de conhecimento, com o escopo de
alcançar uma decisão de mérito, que julgue a lide existente entre
o reclamante, o qual alega ter sofrido uma lesão a direito seu, e a
autoridade reclamada, à qual se imputa a prática de desacato ou
de usurpação. E essa decisão de mérito que vier a ser alcançada
revertir-se-á da autoridade da coisa julgada, sendo rescindível,
apenas, por ação rescisória.”
112
A parte que se sentir lesada em seu direito pela não
aplicação de Súmula Vinculante, ou pela sua aplicação indevida, pode valer-se da
reclamação. Se o ato de desacato
113
for judicial, a providência independe da
interposição dos recursos previstos na legislação processual
114
. Mas se o ato de
desacato for administrativo, a Lei n 11.417/06 exigiu, como condição de
111
MORATO, Leonardo L. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 111.
112
MORATO, Leonardo L. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. o
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 111-112.
113
A expressão é utilizada por Leonardo Lins Morato, no seguinte sentido: “Desacatar um julgado
é o mesmo que descumprir, que o contrariar, ou que lhe negar vigência, em seu todo ou em
parte. Trata-se de uma afronta, de uma transgressão da autoridade da Corte, após ter esta
externado a sua decisão.” (MORATO, Leonardo L. Reclamação e sua aplicação para o respeito
da súmula vinculante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 137).
114
O art. 9.º, caput, da Lei n.º 11.417/06 é expresso a esse respeito: “Da decisão judicial ou do ato
administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo
indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou
outros meios admissíveis de impugnação.”
55
procedibilidade da reclamação, o prévio esgotamento da instância administrativa
(art. 9.º § 2.º) e, neste caso, acolhida a reclamação, a autoridade ou órgão
administrativo deverá adequar as decisões futuras aos ditames da súmula, sob
pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal (art.
64-B da Lei n.º 9.784/99, acrescentado pela Lei n.º 11.417/06).
Quer dizer, o STF tanto reprime a o aplicação de Súmula
Vinculante (quando considerada por si devida), como também a sua aplicação
equivocada.
Parece claro, pois, que o STF se tornará não o guardião
da Constituição, como também o guardião das Súmulas Vinculantes. Sempre que
houver “problemas” na aplicação dessas súmulas em casos concretos, bastará
reclamar ao STF e requerer sua intervenção. “Com isto, o citado dispositivo
constitucional atribuiu ao Supremo a autoridade de verdadeiro ‘comandante’ da
súmula. Quer dizer que conferiu ao STF a competência para decidir, quando
apreciar uma reclamação, se uma determinada súmula tem ou não aplicação num
dado caso concreto.”
115
Embora várias fossem as propostas neste sentido, não
qualquer previsão de especial sanção (penal, civil ou administrativa) ao juiz que
decidir de forma contrária a entendimento preconizado em Súmula Vinculante,
salvo a previsão existente na legislação processual de responsabilidade civil
inerente à função e aplicável às demais situações
116
.
O remédio aplicável a essa ousadia é a reclamação ao STF,
a quem caberá fazer valer os mandamentos da ordem sumular.
115
MORATO, Leonardo Lins. A reclamação e a sua finalidade para impor o respeito à súmula
vinculante. In: Reforma do Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 5/2004. Teresa
Arruda Alvim Wambier, Luiz Rodrigues Wambier, Luiz Manoel Gomes Júnior, Otávio Campos
Fischer, William Santos Ferreira, coordenadores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.
272.
116
Dispõe o Código de Processo Civil: “Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando: I
- no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II - recusar, omitir ou retardar, sem
justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte. Parágrafo
único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no n. II depois que a parte, por
intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender o
pedido dentro de 10 (dez) dias.”
56
Por conta disso, é possível (e isso vai depender do grau de
aceitação do conteúdo das Súmulas Vinculantes nos órgãos judiciais e na
Administração Pública) que haja um número bastante elevado de reclamações
contra decisões e atos que lhes sejam contrários, o que acabaria tornando inócua
a tentativa de agilização dos feitos.
É por essa razão que André Ramos Tavares considera a
Súmula Vinculante um instituto de inegável fraqueza:
“Contudo, o maior problema da súmula vinculante parece ser o
que chamo de ‘mecanismo de auto-imposição dependente’, que é
também sua maior fraqueza. Sim, porque o descumprimento da
súmula vinculante impõe uma atuação sucessiva e desgastante
ao STF (...), transformando-o em uma espécie de ‘oficial de
execução de suas sentenças’ (S
TRECK
, 2005: 160) de suas
próprias decisões, situação não apenas altamente constrangedora
para um Tribunal dessa envergadura, mas também inviabilizadora
do exercício de suas funções fundamentais. A fraqueza do
instituto, portanto, acaba prevalecendo sobre o receio de que
pudesse vir a inviabilizar a existência de um Judiciário livre.”
117
A aprovação, a revisão ou o cancelamento de Súmula
Vinculante poderão se realizar de ofício, ou mediante provocação das pessoas
legitimadas a proporem ação direta de inconstitucionalidade, vale dizer, o
Presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos
Deputados; a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do
Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal; o Procurador-
Geral da República; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
partido político com representação no Congresso Nacional; e confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
A Lei n.º 11.417 aumentou o rol de legitimados, como lhe
possibilitava o preceito constitucional, incluindo o Defensor Público-Geral da
União, os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito
117 TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417
de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007, p. 109.
57
Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do
Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais, os Tribunais Militares e os Municípios,
estes apenas de forma incidental, no curso de processos em que sejam partes
(art. 3.º, VI, XI, e seu § 1.º).
Isso restringe em muito a possibilidade de discussão das
Súmulas Vinculantes. Uma vez aprovadas, somente determinadas pessoas (ou
órgãos) poderão se insurgir contra seu conteúdo e postular seu cancelamento ou
revisão. É uma forma de evitar que os cidadãos, por seus advogados, as
questionem a todo tempo. Aliás, no modelo instituído no Brasil, somente perante o
STF se poderá discuti-las, em processo objetivo.
118
Não possibilidade de
discutir a matéria em outro órgão de jurisdição. As pessoas particularmente
afetadas pelos efeitos das Súmulas Vinculantes, nada poderão fazer em nome
próprio.
Qualquer tentativa de desacatar as Súmulas Vinculantes por
parte dos juízes ou tribunais pode ser revertida com o manejo de reclamação ao
STF. O máximo que os juízes ou tribunais podem fazer, se verificarem que o caso
concreto está subsumido ao enunciado vinculante, mas não aponta para a mais
adequada resolução do conflito, é, como adverte Rodolfo de Camargo
Mancuso,
119
averbarem no corpo de suas decisões a reserva interpretativa do
órgão julgador, sem que isso produza qualquer efeito jurídico prático.
À Jurisprudência do próprio STF cabedefinir como ele irá
enfrentar essas demandas (de revisão e cancelamento de Súmulas Vinculantes) e
quais os critérios serão utilizados no seu julgamento. Obviamente que as
respectivas decisões não poderão fazer coisa julgada, ou seja, não se poderá
vedar a repetição do debate, mas dependendo do número de súmulas aprovadas
e de propostas de sua revisão ou cancelamento, pode ser que o STF (tamanha a
118
Em oposição ao processo subjetivo. No processo objetivo, o objeto da demanda é tão-somente
o ato normativo (no caso, a súmula vinculante); no subjetivo, as partes litigam acerca do seu
conflito particular, e a análise do ato normativo é apenas tangencial, voltada para a decisão do
caso concreto.
119
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Súmula vinculante e a EC n. 45/2004. In: Reforma do
Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 5/2004. Teresa Arruda Alvim Wambier, Luiz
Rodrigues Wambier, Luiz Manoel Gomes Júnior, Octavio Campos Fischer, William Santos
Ferreira, coordenadores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 718.
58
quantidade de serviço que lhe caberá) acabe se dedicando apenas ao
enfrentamento dessas questões e, então, a promessa de agilização dos
processos não se concretizará.
120
Por um lado, o STF não pode ficar eternamente obrigado a
justificar a validade de cada uma de suas mulas Vinculantes (de tempo em
tempo seria convocado a confirmar a pertinência e adequação do enunciado), o
que na prática poderia demonstrar a ineficácia do modelo do ponto de vista da
celeridade processual e até mesmo da segurança jurídica; por outro lado, não se
pode impedir que ao menos aquelas pessoas legitimadas pelo texto constitucional
e pela lei regulamentadora suscitem questionamentos a respeito das Súmulas
Vinculantes (sob pena de se vedar o único meio de oxigenação e revitalização
dos entendimentos nelas consagrados e, dessa forma, ceifar de vez qualquer
tentativa de se dar ao instituto uma conotação mais ou menos democrática). Eis o
dilema: permitir o debate, ainda que restrito a determinado grupo, e, assim,
potencializar o comprometimento da promessa de agilização das demandas, ou
vedá-lo por completo e, então, confirmar a ditadura das súmulas.
A Jurisprudência do STF (incumbida desse novo desafio)
haverá de buscar um meio-termo entre esses dois extremos. Mesmo que a
discussão em torno da validade das súmulas possa ser realizada por iniciativa
de certas pessoas, dever-se-á adotar algum outro mecanismo que restrinja o
modo e o tema dessa discussão.
No que tange ao conteúdo, o art. 103-A estabelece logo no
caput que as Súmulas Vinculantes deverão cuidar de matéria constitucional (note-
se que não qualquer outra especificação). O § 1.º, porém, preceitua que o
objetivo das mulas é a validade, a interpretação e a eficácia de normas
determinadas, sem, por sua vez, fazer menção à necessidade de vínculo com
matéria constitucional.
Surge, então, o problema em saber se apenas as questões
de validade, interpretação e eficácia de normas perante a Constituição poderão
120
A advertência é feita por José Carlos Barbosa Moreira, In: “Súmula Vinculante” e duração dos
processos. Informativo INCIJUR, Ano VI, n. 62 – Setembro de 2004.
59
ser abordadas pelas Súmulas Vinculantes (interpretação que integra a regra do
caput com a do § 1.º), ou se qualquer matéria de ordem constitucional, e mais as
questões de validade, interpretação e eficácia de normas (independente do
caráter constitucional) poderão ser objeto de súmula (interpretação que dissocia a
regra do caput daquela exposta no § 1.º).
Sem dúvida, a primeira das opções é a mais acertada, e é a
que vem sendo sustentada pela Doutrina.
121
Restringe a possibilidade de edição
de Súmulas Vinculantes apenas às discussões sobre validade, interpretação e
eficácia de determinadas normas, sob o enfoque constitucional, tão-somente.
O STF é o órgão do Poder Judiciário encarregado de velar
pela Constituição e não teria o menor sentido atribuir-lhe competência para fixar
orientações definitivas sobre questões não afetas à seara constitucional.
Por outro lado, acaso ao STF se pretendesse conceder a
prerrogativa de sumular questões concernentes a toda e qualquer hipótese de
abordagem constitucional (como a leitura isolada do caput poderia induzir), não
teria razão de ser a especificação do § 1.º.
Por normas determinadas, entende-se a especificação
disposta no art. 59 da Constituição, consideradas nas três esferas da Federação:
emendas à Constituição; leis complementares; leis ordinárias; leis delegadas;
medidas provisórias; decretos legislativos; e resoluções. Acrescente-se a esta
listagem, os artigos da própria Constituição da República Federativa do Brasil, as
Constituições Estaduais, as Leis Orgânicas Municipais e os demais atos
normativos exarados por autoridades públicas de qualquer dos poderes da
Federação. Para que possam ser objeto de Súmula Vinculante, lembrando a regra
do caput, é preciso que tenham pertinência constitucional, ou seja, que de algum
modo demonstrem relação com as matérias tratadas na Constituição da
121
Nesse sentido: SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo
dos tribunais. São Paulo: Saraiva, 2005; MENDES, Gilmar. PFLUG. Samantha Meyer. Passado
e futuro da súmula vinculante: considerações à luz da Emenda Constitucional n. 45/2004. In:
Reforma do judiciário. Pierpaolo Bottini, Sérgio Rabello Tamm Renault, coordenadores. São
Paulo: Saraiva, 2005; GOMES, Luiz Flávio. Eficácia e extensão das súmulas vinculantes.
Juristas.com.br, João Pessoa, a. 1, n. 33, 01/08/2005. Disponível em:
<http://www.juristas.com.br/colunas.jsp?idColuna=322>. Acesso em: 22/12/2005.
60
República Federativa do Brasil, o que, certamente, não é tarefa difícil as bases
de todo o ordenamento jurídico pátrio estão nela presentes.
Portanto, a validade, a interpretação e a eficácia de certas
normas perante a Constituição da República Federativa do Brasil constituem a
matéria que poderá ser objeto de súmula vinculante.
Isso na prática autoriza o STF a editar Súmula Vinculante
sobre quase tudo (ou tudo mesmo). Determinada questão de direito penal, civil,
comercial, processual, administrativo, trabalhista, tributário, previdenciário,
ambiental, sempre terá um fundo constitucional e guardará consonância com
algum princípio ou preceito (explícito ou implícito) da Constituição da República
Federativa do Brasil.
122
Mas mesmo respeitado o conteúdo especificado no caput e
no § 1.º, não será sempre autorizada a edição de Súmulas Vinculantes, pois o §
1.º exige que sobre a validade, a interpretação e a eficácia de determinadas
normas (perante a Constituição) haja controvérsia atual entre órgãos judiciários
ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica
e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Trata-se de
requisito adicional, que de revelar, no caso concreto, a necessidade da edição
de Súmula Vinculante.
Na prática não se mostra fácil definir o que seja essa
modalidade específica de controvérsia. Note-se que é preciso que a controvérsia:
a) seja atual; b) se estabeleça entre órgãos judiciários ou entre estes e a
administração pública; c) acarrete grave insegurança jurídica e relevante
multiplicação de processos sobre questão idêntica. Aqui o legislador constituinte
deixou claro que a Súmula Vinculante tem caráter excepcional e que sua
aprovação exige muito mais do que mera pacificação de determinado
122
[...] sobre matéria constitucional (isto é, sobre norma constitucional): mas cada norma
constitucional afeta uma área do conhecimento jurídico. Logo, teremos súmulas vinculantes
constitucionais penais, processuais, trabalhistas, tributárias, comerciais etc.;” (GOMES, Luiz
Flávio. Eficácia e extensão das súmulas vinculantes. Juristas.com.br, João Pessoa, a. 1, n. 33,
01/08/2005. Disponível em: <http://www.juristas.com.br/colunas.jsp?idColuna=322>. Acesso em:
22/12/2005).
61
entendimento jurisprudencial. Importa que se mostre necessária à prevenção de
repetitivos conflitos sobre questões sérias e de grave repercussão.
Entretanto, o legislador constituinte poderia ter sido mais
preciso na indicação dos requisitos atinentes à verificação da necessidade da
edição de súmula vinculante. Como observar claramente uma grave insegurança
jurídica? O que é relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica?
Como o legislador ordinário também não definiu essas
questões (vide item seguinte), caberá à Jurisprudência do STF estabelecer os
conceitos necessários à exata compreensão do alcance das Súmulas
Vinculantes. Ante o silêncio normativo, o STF tede determinar, ele mesmo, as
balizas de sua atuação.
Mas suponha-se que uma vez estabelecidos com precisão
os requisitos de sua edição (o que é bastante dubitável), o STF ultrapasse os
limites que lhe foram concedidos. Se o STF editar uma súmula cujo conteúdo não
poderia ser sumulado, ou cujos requisitos de necessidade não estariam
presentes, o que fazer? Resta apenas às pessoas legitimadas a tanto requererem
ao próprio STF o cancelamento da súmula. E se a decisão for denegatória? Bem,
nesse caso, nada de ser feito. E pior, aos cidadãos comuns, nessa hipótese
gravemente prejudicados pela aplicação do mandamento sumular, nenhuma
esperança subsiste.
Poder-se-ia pensar no controle difuso de constitucionalidade
da própria Súmula Vinculante.
A questão é bastante controversa. O STF nunca admitiu o
controle de constitucionalidade das súmulas,
123
mas é que elas nunca tiveram
efeito vinculante. A partir de agora, terão “força de lei”
124
(que pode se traduzir em
123
COSTA, Silvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense,
2002, p. 248.
124
A expressão é utilizada por Gilmar Mendes e Samantha Meyer Pflug in: Passado e futuro da
súmula vinculante: considerações à luz da Emenda Constitucional n. 45/2004. In: Reforma do
judiciário. Pierpaolo Bottini, Sérgio Rabello Tamm Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva,
2005.
62
força superior à da própria lei
125
). Como possuem caráter geral, abstrato e
obrigatório, são consideradas textos normativos, razão pela qual se justifica,
numa primeira análise, submetê-las ao controle incidental de constitucionalidade.
Como lembra Sílvio Nazareno Costa:
“Tratando-se, contudo, de súmula vinculante, a
inconstitucionalidade terá seus efeitos grandemente ampliados,
como se lei fosse. Proteger-se esse ato da fiscalização
constitucional seria conferir-lhe hierarquia (ou privilégio) superior
ao gozado até mesmo pelo ato legislativo próprio.”
126
Mas a admissão do controle difuso de constitucionalidade,
abriria uma grande possibilidade de que a eficácia das Súmulas Vinculantes se
perdesse, contrariando a proposta de agilização e uniformização que as justifica.
Ademais, bastante provável que houvesse a cassação da
decisão judicial que declarasse a inconstitucionalidade da Súmula Vinculante,
pela via da reclamação.
Com efeito, é de extrema força o poder concedido ao STF.
Desconsiderando a possibilidade de revisão ou cancelamento por parte do próprio
STF, somente uma lei, devidamente aprovada segundo a disciplina do processo
legislativo, poderá tornar sem efeito uma mula Vinculante, ao normatizar de
forma diversa a matéria objeto do enunciado sumular.
127
Até que a lei seja
aprovada (se for), a comunidade jurídica fica de mãos atadas frente aos
comandos normativos advindos do STF. De todo modo, mesmo depois de a lei
125
Vide item 3.2.
126
COSTA, Silvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense,
2002, p. 249-250.
127
“Vê-se claramente, que o legislador constituinte excluiu do âmbito normativo do efeito
vinculante o Poder Legislativo enquanto exercente de atividade legislativa” (MENDES, Gilmar.
PFLUG. Samantha Meyer. Passado e futuro da mula vinculante: considerações à luz da
Emenda Constitucional n. 45/2004. In: Reforma do judiciário. Pierpaolo Bottini, Sérgio Rabello
Tamm Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 371). ”As súmulas obrigam,
naturalmente, ao próprio Supremo, nas decisões eu proferir nas turmas ou no Pleno. Não
vinculam, por outro lado, ao Poder Legislativo, que pode legislar contrariamente à disposição da
súmula, ficando a nova lei sujeita, entretanto, ao controle jurisdicional de constitucionalidade”
(SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais
. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 262).
63
ingressar no ordenamento jurídico, estará sujeita ao controle de
constitucionalidade exercido pelo STF o que acaba permitindo a retomada do
entendimento consagrado na súmula.
A aprovação da Súmula Vinculante exige voto favorável de
no mínimo dois terços dos ministros integrantes do STF. Como são onze os
ministros, o número de votos necessários à aprovação é oito (arredondamento
para mais do número fracionário exato: 7,3333...).
É necessário ainda que antes da aprovação tenham sido
proferidas reiteradas decisões sobre o tema. Quantas decisões seriam
suficientes? Bastariam duas? E por quanto tempo? Às vezes num curto espaço
de tempo a produção judicial é numericamente bastante elevada, mas logo se
percebe que as decisões poderiam ser aprimoradas, uma vez que não se permitiu
o suficiente amadurecimento das convicções.
Ademais, a edição de súmula significa (ou pelo menos
deveria significar) que existe uma orientação jurisprudencial firmada, resultado
de um número razoável de decisões uniformes acerca de determinado tema. No
entanto, as pesquisas feitas pelos que se dedicam ao estudo das súmulas
demonstram que das 621 súmulas aprovadas pelo STF entre os anos de 1963 e
1984, “79 foram editadas com base em apenas um único precedente e 74 com
base em apenas dois precedentes.”
128
Por óbvio, as decisões o de ser no mesmo rumo, pois se
podem ter consecutivas decisões contraditórias e, nesse caso, não
fundamento para se consolidar a Jurisprudência num ou noutro sentido. Ainda
que dois terços dos ministros acolhessem determinado entendimento, o simples
fato de haver decisões pretéritas recentes em sentido contrário viciaria a
aprovação da súmula.
A declarada e preocupante pressa do STF em definir logo
um entendimento sobre determinadas matérias, a fim de evitar enxurradas de
128
DA CUNHA. Sérgio Sérvulo. A arcaica súmula vinculante. In: Reforma do judiciário. Pierpaolo
Bottini, Sérgio Rabello Tamm Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 38.
64
ações similares
129
, pode prejudicar o necessário amadurecimento do processo de
consolidação da orientação jurisprudencial.
Cumpre ressaltar que continuarão a existir, mesmo no STF,
súmulas com efeitos não-vinculantes. Aquelas editadas anteriormente à Emenda
Constitucional n.º 45/04, que não forem confirmadas como vinculantes, e as que a
partir de então forem aprovadas na ausência dos requisitos específicos das
vinculantes não terão esse caráter, isto é, as que não respeitem o quorum
especial de dois terços,
130
as que não cuidem da validade, interpretação e eficácia
de normas perante a Constituição, as que não se fizerem necessárias (presença
de controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração
pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de
processos sobre questão idêntica), serão aprovadas como súmulas comuns e,
portanto, não terão efeito vinculante.
131
Atente-se, por fim, que o controle de constitucionalidade
concreto ou difuso sofrerá na prática drástica modificação, pois as declarações de
inconstitucionalidade do STF, ainda que em controle difuso, se objeto de Súmula
Vinculante (texto normativo), impedirão decisões contrárias dos demais tribunais e
juízes do país, independente de Resolução do Senado Federal suspendendo os
efeitos da norma declarada inconstitucional.
132
129
“[...] não pode haver um espaço muito largo entre o surgimento da controvérsia com ampla
repercussão e a tomada de decisão com efeito vinculante. Do contrário, a súmula vinculante
perderá o seu conteúdo pedagógico-institucional, não cumprindo a função de orientação das
instâncias ordinárias e da Administração Pública em geral.” (MENDES, Gilmar. PFLUG.
Samantha Meyer. Passado e futuro da súmula vinculante: considerações à luz da Emenda
Constitucional n. 45/2004. In: Reforma do judiciário. Pierpaolo Bottini, Sérgio Rabello Tamm
Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 373).
130
Para a edição de súmulas comuns, basta a aprovação da maioria absoluta dos Ministros do
STF, conforme estabelece o art. 102, § 1.º, do Regimento Interno do STF.
131
Embora talvez não tenha mais relevância prática, a possibilidade de edição de súmula
vinculante não afasta a admissibilidade das súmulas comuns, disciplinadas no regimento interno
do Tribunal (art. 103 do RISTF)” (MENDES, Gilmar. PFLUG. Samantha Meyer. Passado e futuro
da súmula vinculante: considerações à luz da Emenda Constitucional n. 45/2004. In: Reforma do
judiciário. Pierpaolo Bottini, Sérgio Rabello Tamm Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 38.
132
“É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em
razão da completa reformulação dos sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão
que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da
doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma
65
2.4 A LEI N.º 11.417, DE 19-12-2006
Não apenas na seara político-jurídica o advento da Súmula
Vinculante trouxe perplexidades. No campo dogmático também surgiram sérias
dúvidas e controvérsias quanto à sua aplicação prática, porquanto o preceito
constitucional que a consagrou não foi suficientemente claro e preciso em vários
aspectos pragmáticos desse novo instituto.
A edição de uma lei regulamentadora era, portanto,
imprescindível.
No entanto, a Lei n.º 11.417, de 19-12-2006,
133
(que
regulamentou o art. 103-A da Constituição) não disciplinou particularmente os
tantos campos de textura aberta revelados no dispositivo constitucional. Na
verdade, a lei repetiu em sua maioria (sem acréscimos ou esclarecimentos
significativos) os termos do art. 103-A da Constituição da República Federativa do
Brasil.
Diante desse quadro, tratar-se-á aqui brevemente das
poucas inovações promovidas pela lei.
Uma delas, referida no item anterior, diz respeito ao rol de
legitimados para propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de
Súmula Vinculante. O art. 3 incluiu o Defensor Público-Geral da União (inciso
VI), os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito
Federal e Território, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do
Trabalho, os Tribunais Eleitorais e os Tribunais Militares (inciso XI), bem como o
Município 1.º), que poderá propor a edição, a revisão ou o cancelamento do
enunciado de forma incidental, em processo em que seja parte.
autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto (MENDES, Gilmar.
PFLUG. Samantha Meyer. Passado e futuro da mula vinculante: considerações à luz da
Emenda Constitucional n. 45/2004. In: Reforma do judiciário. Pierpaolo Bottini, Sérgio Rabello
Tamm Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 368).
133
Íntegra da lei em anexo.
66
Com isso, houve maior democratização no processo de
formação, alteração e extinção das Súmulas Vinculantes.
É possível, contudo, que o STF imponha a certos
legitimados a restrição, acolhida pela sua Jurisprudência no controle
concentrado de constitucionalidade, da pertinência temática quando
houvesse relação entre o tema debatido e as funções (competências) exercidas
pelo órgão legitimado se admitiria a sua iniciativa para o processo em que se
discute a Súmula Vinculante. Nesse particular, a lei é omissa.
134
Outrossim, ficou claramente estabelecido na lei que a
edição, a revisão ou o cancelamento de Súmulas Vinculantes se fará por meio de
um processo específico com essa finalidade, ao qual a lei se refere como
procedimento, que obedecerá, subsidiariamente, ao disposto no Regimento
Interno do STF (art. 10).
Ao contrário do que ocorre com o stare decisis (do common
law norte-americano),
135
haverá um procedimento objetivo, para a formação, a
alteração ou a extinção das Súmulas Vinculantes o que corrobora o
entendimento de que se trata de verdadeiro texto normativo, de cunho abstrato,
geral e obrigatório, desapegado formalmente dos casos concretos que lhe
serviram de fundamento.
Nesse procedimento o Procurador-Geral da República,
quando não tiver formulado o pedido, deverá se manifestar antes da decisão do
STF (art. 2.º, § 2.º), que deverá ser tomada por 2/3 de seus Ministros, em sessão
plenária (art. 2.º, § 3.º). No prazo de dez dias após a sessão, o enunciado será
publicado em sessão especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União
(art. 2.º, § 4.º), a partir de quando terá efeito vinculante (art. 2.º, caput).
134
Cf. TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei
11.417 de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007, p. 55.
135
Vide item 2.2.
67
A necessidade de publicação na imprensa oficial atesta o
caráter normativo da Súmula Vinculante, conforme observação de Gilmar Mendes
e Samantha Meyer Pflug:
“Como consectário de seu caráter vinculante e de sua ‘força de lei’
para o Poder Judiciário e para a Administração, requer-se que as
súmulas vinculantes sejam publicadas no Diário Oficial da União.
Procura-se assegurar, assim, a sua adequada cognoscibilidade
por parte de todos aqueles que lhe devem obediência.”
136
O STF poderá admitir a intervenção de terceiros, por decisão
irrecorrível, nos termos do seu Regimento Interno (art. 3.º, § 2.º). aqui alguma
possibilidade de abertura do debate acerca dos enunciados vinculantes, mas
como a lei não estabeleceu os pressupostos desta intervenção, somente a prática
poderá revelar se o STF permitirá essa abertura ou não, e em que grau.
Em regra, a Súmula Vinculante aprovada por 2/3 dos
Ministros do STF terá efeito imediato, mas os Ministros (por esse mesmo quorum)
poderão restringir os efeitos vinculantes ou postergá-los, tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse público (art. 4.º).
Contra a decisão judicial que contrariar Súmula Vinculante,
negar-lhe vigência ou aplicá-la indevidamente caberá reclamação ao STF, sem
prejuízos dos outros recursos ou meios admissíveis de impugnação (art. 7.º).
Acolhendo a reclamação, o STF determinará que outra decisão seja proferida, em
obediência ao enunciado sumular.
O próprio STF não pode decidir a lide com base na Súmula
desacatada, mas tão-somente determinar que outra decisão judicial seja proferida
ou outro ato administrativo seja praticado, em conformidade com o enunciado
vinculante violado.
136
MENDES, Gilmar. PFLUG. Samantha Meyer. Passado e futuro da súmula vinculante:
considerações à luz da Emenda Constitucional n. 45/2004. In: Reforma do judiciário. Pierpaolo
Bottini, Sérgio Rabello Tamm Renault, coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 346.
68
Em rápidas palavras, o procedimento da reclamação
(disciplinada nos artigos 13 a 18 da Lei n.º 8.038/90 e no Regimento Interno do
STF) é bastante similar ao do Mandado de Segurança. Ao despachar a
reclamação, o relator requisitará informações da autoridade a quem for imputada
a prática do ato impugnado, no prazo de dez dias, podendo ordenar liminarmente,
se necessário, para evitar dano irreparável, a suspensão do processo ou do ato
impugnado. O Ministério blico (se não tiver formulado a reclamação) se
manifestará em cinco dias. Em seguida, a reclamação será julgada. Qualquer
interessado poderá impugnar o pedido do reclamante. Não fase instrutória; a
prova é documental e pré-constituída.
Importante observar que a despeito de sérias divergências
doutrinárias,
137
o STF tem entendido que não cabe reclamação quando a decisão
impugnada estiver coberta pelo manto da coisa julgada.
138
Outrossim, pela melhor técnica, não cabe ação rescisória
para desconstituir sentença que violar Súmula Vinculante, porque esta não é lei e,
portanto, a hipótese não está abrangida pelo art. 485, V, do CPC.
139
Todavia,
como a Súmula Vinculante terá referência, ainda que cita ou indireta, a um
preceito legal específico, poderá o autor da rescisória demonstrar a ocorrência de
violação de lei, segundo a interpretação sumulada.
140
Os atos ou omissões administrativas que contrariarem as
Súmulas Vinculantes também se sujeitam à reclamação perante o STF, mas
137
Cf. MORATO, Leonardo Lins. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula
vinculante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 137-151.
138
“[...] A EXISTÊNCIA DE COISA JULGADA IMPEDE A UTILIZAÇÃO DA VIA RECLAMATÓRIA.
- Não cabe reclamação, quando a decisão por ela impugnada transitou em julgado, eis que
esse meio de preservação da competência do Supremo Tribunal Federal e de reafirmação da
autoridade decisória de seus pronunciamentos - embora revestido de natureza constitucional
(CF, art. 102, I, "e") - não se qualifica como sucedâneo processual da ão rescisória.
Precedentes” (STF, Rcl-AgR 1901/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, em 03-10-
2001).
139
“Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: [...] V -
violar literal disposição de lei.”
140
Cf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Súmula vinculante e a EC n. 45/2004. In: Reforma do
Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 5/2004. Teresa Arruda Alvim Wambier, Luiz
Rodrigues Wambier, Luiz Manoel Gomes Júnior, Otávio Campos Fischer, William Santos Ferreira,
coordenadores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 717.
69
apenas depois do esgotamento das vias administrativas (art. 7.º, § 1.º). O preceito
legal colide com o art. 5.º, XXXV, da Constituição da República Federativa do
Brasil, que estabelece: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça de direito.”
Cuida-se do princípio do livre acesso ao Poder Judiciário,
consagrado no texto constitucional como direito fundamental e cláusula pétrea,
que, por isso, não pode ser afetado de forma alguma pelo poder constituinte
derivado e, menos ainda, por norma infraconstitucional.
O dispositivo legal mencionado tem o escopo de evitar a
multiplicação de reclamações contra a não-observância de Súmula Vinculante por
parte de entes da Administração Pública, mas impõe ao cidadão um obstáculo à
obtenção da tutela judicial que a Constituição não admite.
Neste rumo, cita-se Alexandre de Moraes:
“Inexiste a obrigatoriedade de esgotamento da instância
administrativa para que a parte possa acessar o Judiciário. A
Constituição Federal de 1988, diferentemente da anterior, afastou
a necessidade da chamada jurisdição condicionada ou instância
administrativa para obter-se o provimento judicial, uma vez que
excluiu a permissão, que a Emenda Constitucional n.º 7 à
Constituição anterior estabelecera, de que a lei condicionasse o
ingresso em juízo à exaustão das vias administrativas, verdadeiro
obstáculo ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário.”
141
A Lei n.º 11.417 promoveu alterações na Lei n.º 9.784, de
29-01-1999, passando a exigir que na seara administrativa a autoridade prolatora
de decisão, sempre que o interessado suscitar Súmula Vinculante, explicitar as
razões de aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula.
Estabeleceu ainda a responsabilização pessoal da
autoridade nas esferas cível, administrativa e penal, sem, contudo, defini-las
precisamente.
141
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 105.
70
Por fim, naquilo que o art. 103-A da Constituição tinha de
mais problemático, que o os requisitos para a edição de Súmula Vinculante, a
lei permaneceu com os termos vagos e imprecisos do texto constitucional. Exige-
se controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante
multiplicação de processos sobre idêntica questão (art. 2.º, § 1.º).
2.5 PANORAMA ATUAL
A Lei n.º 11.417 entrou em vigor, pois estabeleceu uma
vacatio legis de três meses (art. 11) e foi publicada no Diário Oficial da União em
20-12-2006. Por isso, o STF está autorizado legalmente a editar as primeiras
Súmulas Vinculantes.
Aliás, em 23-04-2007, os Ministros do STF, em sessão
administrativa aprovaram os seis primeiros temas de Súmulas Vinculantes
levados para aprovação do Plenário da Corte.
142
Os temas são os seguintes:
1) COFINS - base de cálculo. Conceito de receita bruta;
2) COFINS - majoração da alíquota;
3) FGTS - Correção das contas vinculadas.
Desconsideração do acordo firmado pelo trabalhador;
4) Loterias e bingos - regras de exploração. Sistemas de
consórcios e sorteios. Matérias de competência legislativa exclusiva da união;
5) Competência da Justiça do Trabalho - ação de
indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho;
6) Processo administrativo no âmbito do TCU - observância
do devido processo legal, contraditório e ampla defesa do interessado.
142
Informação disponível no sítio do STF: <www.stf.gov.br>. Acesso em 04-05-2007.
71
Posteriormente, na sessão administrativa de 14 de maio de
2007, foram aprovadas por unanimidade os três primeiros enunciados que serão
submetidos, oportunamente, à aprovação do Plenário do Supremo Tribunal
Federal (STF) e, se aprovados por no mínimo oito ministros, se tornarão as
primeiras Súmulas Vinculantes vigentes no país.
143
Eis os enunciados:
Enunciado 1: “Ofende a garantia constitucional do ato
jurídico perfeito a decisão que, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto,
desconsidera a validez e a eficácia de acordo constante do termo de adesão
instituído pela Lei Complementar n.º 110/2001.”
Precedentes: RE 418.918, rel. Min. Ellen Gracie, DJ
1º.07.2005; RE 427.801-AgR-ED, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 02.12.2005;
RE 431.363-AgR, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 16.12.2005.
Legislação: CF, art. 5º, XXXVI. LC n.º 110/2001
Enunciado 2: “É inconstitucional a lei ou ato normativo
estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios,
inclusive bingos e loterias.”
Precedentes: ADI 2.847/DF, rel. Min. Carlos Velloso, DJ
26.11.2004; DJ 24.02.2006; ADI 3.147/PI, rel. Min. Carlos Britto, DJ 22.09.2006;
ADI 2.996/SC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 29.09.2006; ADI 2.690/RN, rel.
Min. Gilmar Mendes, DJ 20.10.2006; ADI 3.183/MS, rel. Min. Joaquim Barbosa,
DJ 20.10.2006.
Legislação: CF, art. 22, XX.
Enunciado 3: “Nos processos perante o Tribunal de Contas
da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão
puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o
143
Informação disponível no sítio do STF: <www.stf.gov.br>. Acesso em 20-05-2007.
72
interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de
aposentadoria, reforma e pensão.
Precedentes: MS 24.268, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o
acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ 17.09.2004; MS 24.728, rel. Min. Gilmar
Mendes, DJ 09.09.2005; MS 24.754, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 18.02.2005; MS
24.742, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 11.03.2005.
Legislação: CF, art. 5º, LIV e LV; 71, III. Lei n.º 9.784/99, art.
2.º.
Para se tornarem Súmulas Vinculantes, os enunciados têm
que ser aprovados por oito Ministros do STF em sessão plenária e publicados na
imprensa oficial.
Da leitura dos três enunciados transcritos, percebe-se
(especialmente do 1 e 3) que a pretensão de dispensar a atividade hermenêutica
do aplicador da Súmula Vinculante é descabida, pois nos respectivos textos
normativos questões abertas que deverão ser sopesadas diante das
peculiaridades do caso concreto.
Isso denuncia a possibilidade de haver divergências sérias
quanto à aplicação do próprio enunciado sumular, a inviabilizar a proposta de
economia e segurança que justificou o advento da Súmula Vinculante, sobretudo
pela potencial avalanche de reclamações ao STF com o objetivo de combater
possíveis atos ou decisões contrárias às súmulas.
CAPÍTULO 3
A SÚMULA VINCULANTE À LUZ DE ALGUNS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS
3.1 UMA NOÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
O Estado Democrático de Direito se estrutura e se organiza
com base em determinados princípios jurídicos, que norteiam a produção, a
interpretação e a aplicação de todas as demais normas que compõem o
ordenamento jurídico. Consubstanciam os valores essenciais do sistema, que lhe
garantem coerência e harmonia.
Sobre o tema, leciona Paulo Márcio Cruz:
“Mesmo para o positivista mais arraigado aos dogmas do Estado
de Direito, é impossível não concordar com a existência, assim
como nos Direitos Fundamentais que serão estudados mais
adiante, de um núcleo essencial permanente no ordenamento
jurídico, que possibilita a fundamentação da validade e da
efetividade do conjunto de normas que o compõem.
“Um ordenamento jurídico, mesmo nos moldes mais herméticos,
não é um simples amontoado de regras esparsas, produto da
vontade de quem está no poder naquele determinado momento.
Quando é assim, o Estado Democrático de Direito não está
presente e não se pode dizer que um pressuposto de
civilização contemporânea a orientar a produção das normas
jurídicas.
“O Direito, para ter reconhecido seu significado como
ordenamento baseado em garantias e previsibilidade, necessita
74
de elementos de coerência e consistência; é sistêmico, é a
possibilidade de se incorporar valor à regra.”
144
Os princípios constitucionais apresentam forte carga
axiológica e alto grau de abstração.
Em razão de sua vagueza, generalidade e indeterminação,
não se aplicam diretamente aos casos concretos pelo método simples da
subsunção, ao contrário do que ocorre com as regras. Não se destinam a regular
rigidamente situações específicas.
São núcleos de valores que podem ser invocados nas mais
diversas situações, mas sua aplicação exige atividade hermenêutica mais
elaborada.
Como normas sicas do sistema, definem o alcance dos
demais preceitos normativos e estabelecem os pilares de todo o ordenamento
jurídico.
Respeitados os limites deste estudo, conquanto se
reconheça a controvérsia que circunscreve o assunto, o conceito formulado por
Paulo Márcio Cruz revela-se aqui plenamente adequado.
“Princípios Constitucionais são normas jurídicas caracterizadas
por seu grau de abstração e de generalidade, inscritas nos textos
constitucionais formais, que estabelecem os valores e indicam a
ideologia fundamentais de determinada Sociedade e de seu
ordenamento jurídico. A partir deles todas as outras normas
devem ser criadas, interpretadas e aplicadas.”
145
Luís Roberto Barroso não destoa dessa conceituação, e
considera a existência de princípios implícitos:
144
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
99.
145
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
106.
75
“Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam
a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico.
Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos,
seus finas. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema,
integrando suas diferentes partes e atenuando tensões
normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja
atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que
rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais
específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai
reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos
princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c)
condicionar a atividade do intérprete.”
146
Aceita-se hoje na Doutrina a idéia de que existem princípios
constitucionais implícitos, ou seja, que não estão inscritos expressamente no texto
constitucional.
“Os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente
enunciados em algum texto de direito positivo. Não obstante, (...)
tem-se, aqui, fora de dúvida que esses bens sociais supremos
existem fora e acima da letra expressa das normas legais, e nelas
não esgotam, até porque não têm caráter absoluto e estão em
permanente mutação.
147
Luiz Henrique Cadermatori, citado por Paulo Márcio Cruz,
afirma:
“Nessa perspectiva, os princípios constitucionais, explícitos e
implícitos, desempenham um papel fundamental como reflexos
normativos dos valores constitucionais conforme se observou.
Em outros termos, pode-se dizer que estes se traduzem
juridicamente, desde a base do ordenamento jurídico, em
princípios, nele explicitados ou não, tidos como verdadeiros
instrumentos de implementação e proteção de tais valores
146
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: A nova interpretação
constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Ana Paulo Barcellos... [et.
At.]; org. Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: renovar, 2003, p. 29-30.
147
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 1999,
p. 149.
76
historicamente consagrados na maioria dos sistema normativos
ocidentais.”
148
3.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
No decorrer deste trabalho se expôs a importância da lei
no Estado Democrático de Direito, especialmente no sistema jurídico continental
europeu (civil law).
O respeito à lei é garantia fundamental do cidadão; é o
instrumento que viabiliza o exercício do poder estatal e, dessa forma, protege o
particular contra eventuais abusos.
Na Constituição da República Federativa do Brasil, o
princípio da legalidade está explicitamente previsto no art. 5.º, inciso II, nos
seguintes termos: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei.”
Como ensina Alexandre Moraes,
“Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. por
meio de espécies normativas devidamente elaboradas conforme
as regras do processo legislativo constitucional, podem-se criar
obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral.
Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade
caprichosa do detentor do poder em benefício da lei.”
149
Referindo-se expressamente ao modelo instituído pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, assinala Miguel Reale:
“A obediência à lei é o supedâneo primordial da democracia, a
qual repousa sobre dois pilares expressamente proclamados pelo
nunca assaz louvado Art. 5.° da Constituição de 1988: o de que
‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
148
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
103.
149
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 71.
77
senão em virtude de lei’, e o de que ‘ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’.
“Isto quer dizer que, no regime democrático, obriga um fim
consagrado por lei, desde que o meio empregado para
estabelecê-lo corresponda a processo também previsto em lei. É à
luz desses dois princípios conjugados que podemos compreender
o que seja Estado Democrático de Direito, cuja legitimidade se
confunde com a das normas legais instituídas objetivamente em
função dos valores éticos fundamentais, sem os quais a
democracia não subsiste.”
150
Com efeito, desde que se pense em Estado Democrático de
Direito, é imperioso trazer a lume o princípio da legalidade, com toda a sua força e
vitalidade, sem o qual esse modelo de Estado não subsiste.
Além de disciplinar as relações intersubjetivas e de proteger
o cidadão contra as arbitrariedades cometidas pelo poder público, a lei atua como
instrumento de realização dos princípios (e objetivos) traçados na Constituição.
Nesse contexto, esclarece José Afonso da Silva:
“É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta
a importância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito
de lei, como o que imperou no Estado de Direito clássico. Pois ele
tem que estar em condições de realizar, mediante lei,
intervenções que impliquem diretamente uma alteração na
situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa
esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de
arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a
Constituição se abre para as transformações políticas,
econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se
elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental
expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento
necessário do conteúdo da Constituição e exerce função
transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais
democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar uma
150
REALE, Miguel. Filosofia e Teoria Política [Ensaios]. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 67.
78
função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores
socialmente aceitos.”
151
No modelo jurídico brasileiro a lei sempre figurou como fonte
primária de Direito, complementada e recriada pela interpretação dos juízes e
tribunais. “A norma legal se realiza na aplicação que se lhe dá, e o entendimento
jurisprudencial é a aplicação sistêmica mais relevante. Antes de ser aplicada, a
norma é apenas texto. Aplicada, transfigura-se em Direito (norma), como libélula
que se livra de seu casulo, na magia da metamorfose.”
152
se asseverou anteriormente que a lei tem campos de
textura aberta a serem preenchidos pelo julgador diante das peculiaridades do
caso concreto e que, sem dúvida, ela permite ao intérprete o exercício de sua
discricionariedade, considerando os aspectos histórico, cultural, econômico e
social da norma.
A lei tem caráter abstrato, genérico e, por isso, deve ser lida
caso a caso, a fim de que adquira sentido justo diante da situação concreta sob
exame. Eis o papel importantíssimo do intérprete, a quem compete dar-lhe
vida; trazer a linguagem fria e distante do legislador para a realidade pulsante do
mundo real, encontrando nela, por meio de uma leitura renovada, a solução mais
justa para o conflito levado a seu julgamento.
No processo de revelação de seu significado, os juristas se
valem das lições doutrinárias, dos precedentes judiciais, dos costumes, das tantas
técnicas interpretativas postas à sua disposição, sempre no intuito de dar à lei o
sentido mais justo e coerente com todo o sistema, sobretudo com os preceitos
constitucionais.
Essa tarefa de trazer a lei do plano abstrato para o plano
concreto nem sempre é fácil. A complexidade das demandas e a rapidez com que
se multiplicam, aliadas à deficiência do processo legislativo, exige do intérprete
151
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed., São Paulo:
Malheiros, p. 125-126.
152
COSTA, Silvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense,
2002, p. 159-160.
79
múltiplos conhecimentos jurídicos e sociológicos, a fim de que a leitura de cada
dispositivo legal se faça em harmonia com o modelo de Estado Democrático de
Direito delineado na Constituição.
Segundo Lenio Luiz Streck,
“Interpretar a lei implica atribuir/adjudicar um sentido/significado a
um norma. Interpretar a lei implica, pois, necessariamente, a
tomada de posição política em face do fato a ser enquadrado na
norma. Como muito bem diz Warat (1979, p. 93), interpretar a lei
passa, sempre, pelo processo de produção de definições
eticamente comprometidas e, por isso, persuasivas, estando, em
tais definições, estabelecidos critérios de relevância visando a
convencer o receptor a compartilhar o juízo valorativo postulado
pelo emissor para o caso. Definições, ainda, assinala, em que não
se busca produzir um critério de uso para a expressão definida,
mas antes um acordo ético sobre o conteúdo da definição
emitida.”
153
Por isso, o princípio da legalidade, exposto sinteticamente
no art. 5.º, II, da Constituição, há de ser lido e entendido conforme os múltiplos
critérios hermenêuticos que o integram, partindo-se da premissa de que a lei tem
sua eficácia e força garantidas (afirmadas) a partir do momento em que se lhe
reconhece a possibilidade da mais complexa, democrática, fértil e plural
interpretação possível, condizente com o Estado Democrático de Direito.
A interpretação é, nesse contexto, parte integrante e
indissociável da própria lei, que o diz nada por si mesma. Quem a interpreta é
que lhe dá vida; promove sua efetividade, dá-lhe verdadeiro significado. Afinal, a
norma “é construída pelo intérprete no decorrer no processo de concretização do
direito,”
154
antes disso, como lembra Eros Grau, há mero texto normativo.
155
153
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 218.
154
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 243.
155
GRAU, Eros. A interpretação constitucional como processo. Revista Consulex, Brasília, ano I,
n. 3, p. 41.
80
A Súmula Vinculante, por sua vez, não ao intérprete essa
possibilidade. Se a situação concreta se enquadra na previsão normativa disposta
no enunciado sumular, cabe ao julgador tão-somente fazê-la subsumir ao caso
concreto, em procedimento meramente técnico (mecânico).
Eis porque na prática a Súmula Vinculante tem mais força do
que a própria lei.
156
No regime democrático, a tarefa de interpretação (e, por
isso, construção) do Direito tem que ser aberta e crítica. Dessa forma, atribuir a
um único órgão o poder de estabelecer a interpretação “correta”, “adequada” da
lei perante a Constituição, é uma afronta ao regime democrático de direito.
Lenio Luiz Streck, depois de lembrar que a lei, por estar
descrita em linguagem natural, apresenta problemas de vagueza e polissemia,
que permitem ao intérprete uma definição explicativa de caráter ideológico do seu
conteúdo, expõe sobre o problema da Súmula Vinculante:
“Nesse universo de possibilidades interpretativas (re)definitórias
dos termos da lei, a Súmula é uma espécie de resultado final de
uma definição explicativa, que passa a ter força prescritiva no
âmbito do sistema jurídico. Desse modo, quando o Supremo
Tribunal Federal edita uma Súmula, pode-se dizer que será norma
constitucional aquilo que a Súmula determinar que seja, isto
porque a Súmula é condição de validade das normas
constitucionais às quais a Súmula se refere. Mutatis mutandis, não
é temerário dizer, assim, que, em última ratio, a Súmula que versa
sobre matéria constitucional é condição de sentido das normas
constitucionais.
157
E mais à frente arremata:
156
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 264.
157
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 229.
81
Os juízes podem contrariar leis; se o fizerem, caberá recurso. O
que os juízes não podem fazer é contrariar mulas! Nesse caso,
[...], não caberá recurso e sim, reclamação [...]. Ou seja, embora
nosso ordenamento faça parte do sistema jurídico romano-
germânico, onde o corolário é a lei, esta a lei não vincula; a
Súmula, sim!
158
Assim, o jurista (que deveria interpretar (e criar) o conteúdo
da norma em cada caso concreto) acaba apenas reproduzindo um sentido
compreendido, negando vigência às suas demais variantes interpretativas, que,
eventualmente, poderiam resultar numa decisão mais justa.
Nessa linha de raciocínio, o princípio da legalidade é violado
pela Súmula Vinculante, que aborta a possibilidade de múltipla interpretação da
lei, dando-lhe sentido único e obrigatório.
E se hoje a idéia de um juiz vinculado rigorosamente aos
frios dizeres da lei é abominável, o mesmo vale para os enunciados sumulares.
Como aduzido anteriormente, isso põe a Súmula Vinculante em patamar
superior ao da própria lei.
Por outro lado, parte da comunidade jurídica tem entendido
que a Súmula Vinculante afronta os princípios da legalidade e da separação de
poderes porque o Judiciário não poderia criar textos normativos de cunho
abstrato, geral e obrigatório.
“Como poder constitucional de vincular o efeito das
Súmulas, o Poder Judiciário, por suas cúpulas, passará a legislar, o que, à
evidência, quebrará a harmonia e a independência que deve haver entre os
Poderes da República.”
159
se viu no item 1.3 que a atividade judicial é na prática
fonte criadora do Direito, pelo fato de ser legitimamente encarregada de
158
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 268.
159
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas vinculantes e a reforma do Judiciário: o leito de procusto da
justiça brasileira. In: Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 35,
1995, p. 36.
82
interpretar o Direito Positivo (repleto de campos de textura aberta) e de aplicá-lo
concretamente.
Com efeito, na aplicação do Direito “o juiz sempre deixará as
suas marcas, as suas convicções pessoais e ideológicas, o seu senso próprio de
justiça. Isto porque toda interpretação, que é condição sine qua non para que seja
proferida uma decisão, inevitavelmente, traz consigo uma carga de criatividade,
por vezes maior, por outras menor.”
160
Nesse sentido específico, a atividade judicial evidentemente
não afronta o princípio da legalidade, embora crie normas jurídicas para o caso
concreto e muitas vezes se afaste dos ditames legais.
Isso porque, como visto, o próprio ordenamento legal
exige essa postura do juiz, voltada tão-somente para a resolução do caso
específico submetido a seu julgamento, sem preocupação com a regulação de
situações similares futuras.
Com a Súmula Vinculante isso não ocorre, pois os Ministros
do STF, em procedimento próprio (e objetivo), discutem o tema controvertido com
o escopo de regulamentá-lo de forma genérica, abstrata e obrigatória, redigindo
um enunciado normativo capaz de lhe dar adequada aplicação em todos os casos
similares que forem submetidos à apreciação do Poder Judiciário.
Não há compromisso com os casos concretos que foram
apreciados e formaram o entendimento a ser sumulado. A atividade é
essencialmente normativa e, por isso, afeta ao Poder Legislativo, não por ser
criadora de Direito, mas por ter esse caráter geral e abstrato.
Válida a esse respeito a observação de Sílvio Nazareno
Costa, que bem resume a idéia esboçada neste item do presente trabalho:
“O poder normativo do Judiciário é incontestavelmente admitido,
quando se trata de integração das lacunas do Direito positivo e da
160
JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista dos Tribunais. Ano 94, v.
838, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 56.
83
edição de norma concreta (=sentença), elaborada pelo Juiz para a
solução da lide que lhe é submetida. Trata-se de norma derivada,
resultante do exercício de uma ‘discrição vinculada’. Conquanto a
concretização do direito abstratamente previsto na norma geral
implique inegáveis aspectos de criação de direito novo e de
recriação, pela interpretação da norma legislada, nem por isso a
normatização judiciária com efeitos gerais deixa de encontrar
oposição. Significativa parcela da doutrina resiste a essa
possibilidade, entendendo que, nos sistemas ligados à Família
Romano-Germânica, tal atividade é própria do Legislativo e, por
isso, constitui um núcleo, em princípio, incompartilhável pelos
órgãos dos outros Poderes.”
161
Afora a problemática da legitimação democrática do
Judiciário para produzir textos normativos, que aqui não será tratada em respeito
aos limites fixados para a presente pesquisa, frisa-se que embora a Súmula
Vinculante seja, tal qual a lei, um texto normativo, a sua edição, ao contrário do
que ocorre no processo legislativo, parte do exame de situações fáticas
específicas, em que os fatos relevantes, as provas produzidas, os argumentos
jurídicos suscitados e tudo mais que interessa ao deslinde de cada uma das
contendas são reduzidos a um mero enunciado sumular, em cujas palavras está
contida a pretensão de regular todos os casos análogos levados a julgamento
posterior.
As súmulas representam (deveriam representar) a essência
de um pensamento jurisprudencial que se foi uniformizando e consolidando ao
longo do tempo.
A jurisprudência se forma a partir de julgamentos de casos
específicos, restritos às partes litigantes. Para o seu amadurecimento
(uniformização e consolidação) é imprescindível o debate, com a máxima
possibilidade de contraposição de idéias e argumentos. Isso leva tempo, exige
estudo acurado e compreende variados graus de consentimento. Em
determinadas situações, é possível que jamais ocorra.
161
COSTA, Silvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense,
2002, p. 249.
84
Circunstâncias políticas, econômicas, sociais e culturais,
dentre outras, influenciam seriamente a formação do convencimento do órgão
julgador, seja ele monocrático ou colegiado. Todos esses aspectos extralegais
são refletidos nos precedentes que promovem o estabelecimento dos
entendimentos jurisprudenciais. E é assim que tem de ser, pois esse esforço para
contemporizar (contextualizar) o direito posto é o que torna eficaz a atividade
jurisdicional, no que tange ao seu escopo de proferir decisões adequadas (justas)
ao litígio, tanto quanto coerentes com os preceitos normativos vigentes.
Mas essas circunstâncias são variáveis, e sua análise parte
sempre do caso concreto. É com base no campo de causas e efeitos restrito
àquela específica relação jurídica que o órgão julgador irá aplicar o Direito e
realizar seu raciocínio de fundamentação jurídica.
A partir do exame de situações fáticas similares, cujos
campos de causas e efeitos se repetem, e nos quais são invocados os mesmos
fundamentos jurídicos, com a prolação de reiteradas decisões em único sentido,
forma-se a jurisprudência. As súmulas a representam, porém, com caráter
abstrato e genérico, tal qual a lei, com a pretensão de regular situações futuras.
Por outras palavras, se desvinculam na sua formação do caso jurídico que as
engendrou.”
162
Observe-se que são de situações específicas que se
constituem os entendimentos jurisprudenciais, atrelados a fatores particulares e
variáveis, razão pela qual se mostra temerável dar-lhes caráter genérico e
obrigatório, sobretudo porque é sabidamente impossível condensar a essência
das normas em proposições simples,”
163
sem referência aos elementos da
realidade temporal e circunstancial que são imanentes a todas as decisões
judiciais.
162
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 279.
163
TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417
de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007, p. 224-225.
85
Ora, nem o Poder Legislativo, nem o Poder Judiciário têm a
possibilidade de criar textos normativos tão completos, precisos e claros que
dispensem a atividade do intérprete.
Se ao menos fosse permitida a atividade interpretativa da
súmula (como ocorre com as persuasivas) os efeitos dessa normatização
poderiam ser amenizados no dia-a-dia forense.
A Súmula Vinculante, nesse contexto, parece retomar os
ideais positivistas do final do culo XVIII e início do século XIX, com a pretensão
de restabelecer os caracteres de segurança e certeza da decisão judicial, por um
lado, e de neutralidade e objetividade do julgador, por outro.
3.3 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
O princípio do devido processo legal
164
pode ser entendido
sob diversos ângulos, mas aqui interessa principalmente o resguardo da garantia
de contraposição de provas e argumentos nos processos judiciais, a fim de que
se tenha uma decisão judicial racionalmente fundamentada e conforme o debate
(contraditório) havido no desenrolar da demanda.
Assim, elemento indispensável do processo judicial,
constitucionalmente legítimo, é a possibilidade de plena participação das partes
na construção da decisão que lhes afetará.
Nessa esteira, Elio Fazzalari considera o processo como
procedimento realizado em contraditório:
“Como repetido, o ‘processo’ é um procedimento do qual
participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera
jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em
164
Consagrado explicitamente na Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5.º, LV, in
verbis: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”
86
contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as
suas atividades.”
165
O autor caracteriza o contraditório da seguinte forma:
“Tal estrutura consiste na participação dos destinatários dos
efeitos do ato final em sua fase preparatória; na simétrica paridade
das suas posições; na mútua implicação das suas atividades
(destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação
do provimento); na relevância das mesmas para o autor do
provimento; de modo que cada contraditor possa exercitar um
conjunto conspícuo ou modesto, não importa de escolhas, de
reações, de controles, e deva sofrer os controles e as reações dos
outros, e que o autor do to deva prestar contas dos resultados.”
166
E sintetiza:
“Existe, em resumo, o ‘processo’, quando em uma ou mais fases
do iter de formação de um ato é contemplada a participação não
e obviamente do seu autor, mas também dos destinatários
dos seus efeitos, em contraditório, de modo que eles possam
desenvolver atividades que o autor deve determinar, e cujos
resultados ele pode desatender, mas não ignorar.”
167
Sobre o assunto, comentando a posição de Elio Fazzalari,
ensinam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido
Rangel Dinamarco:
“Na realidade, a presença da relação jurídico-processual no
processo é a projeção jurídica e instrumentação técnica da
exigência político-constitucional do contraditório. Terem as partes
poderes e faculdades no processo, ao lado de deveres, ônus e
sujeição, significa que o processo é realizado em contraditório.”
168
165
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 118.
166
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 119-120.
167
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 120.
168
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria geral do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 283.
87
Seguindo essa linha, infere-se que é fundamental ao devido
processo legal que se permita aos destinatários dos efeitos do provimento judicial
efetiva participação na sua formação, mediante um “contraditório paritário”.
169
E
mais, como adverte Elio Fazzalari, é preciso que o órgão julgador (autor do
provimento judicial) leve em consideração os argumentos despendidos pelos
contraditores, o que, aliás, integra o princípio da fundamentação racional da
decisão judicial.
Além de se oportunizar a participação dos destinatários da
tutela judicial no processo que lhe é prévio, imprescindível que os atos por eles
praticados sejam efetivamente levados em consideração no julgamento. Se seus
argumentos não têm poder de convencimento ou são irrelevantes para o deslinde
da causa, imperioso que haja explicitação dos motivos que justificam essa
conclusão.
Vê-se, pois, que o contraditório (exigência inarredável do
devido processo legal) traz como uma de suas conseqüências a necessidade de
que as decisões judiciais sejam racionalmente fundamentadas e façam referência
às alegações apresentadas pelos litigantes durante o curso do processo
(construído dialeticamente). “É ínsito ao contraditório a dialeticidade, a
participação das partes no impulsionamento do processo e na decisão justa.”
170
Mais do que uma forma de controle do raciocínio utilizado
pelo julgador, a fundamentação das decisões judiciais permite saber se as
circunstâncias do caso concreto foram devidamente ponderadas e se a atividade
argumentativa dos contraditores foi sopesada.
Relevantes são a esse respeito as considerações de
Marcelo Cattoni:
169
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 121.
170
MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. Fundamentos constitucionais do processo (sob a
perspectiva de eficácia dos direitos e garantias fundamentais). São Paulo: Malheiros, 2002, p.
187.
88
“No quadro do exercício do Poder Jurisdicional, o Direito realiza
sua pretensão de legitimidade e de certeza da decisão através, de
um lado, da reconstrução argumentativa no processo da situação
de aplicação, e, por outro, de determinação argumentativa de
qual, dentre as normas jurídicas válidas, é a que deve ser
aplicada, em razão de sua adequação, ao caso concreto. Mas não
por isso. A argumentação jurídica através da qual se dá a
reconstrução do caso concreto e a determinação da norma
jurídica adequada está submetida à garantia processual de
participação em contraditório dos destinatários do provimento
jurisdicional. O contraditório é uma das garantias centrais dos
discursos de aplicação jurídica institucional e é condição de
aceitabilidade racional do processo jurisdicional.”
171
O exercício legítimo da jurisdição no modelo definido no
Estado Democrático de Direito está, assim, condicionado à garantia de
participação dos envolvidos no processo de construção discursiva da decisão que
lhes afeta, cuja fundamentação de considerar o exercício argumentativo
dialético das partes.
Na verdade, no Estado Democrático de Direito nenhuma
manifestação do poder estatal que interfira na esfera jurídica individual do cidadão
pode ser concebida sem a sua participação, ainda que indireta.
É assim que se justifica a atividade legislativa. Por meio dela
são criadas as normas que regulamentam a vida em sociedade, mediante
participação popular (direta ou por representação parlamentar).
O processo legislativo, mesmo que apenas formalmente,
atende o primado democrático, porque a produção das normas é antecedida de
amplo debate em torno do “discurso de justificação jurídico-normativa,”
172
em que
o povo está representado pelos deputados e senadores. Além disso, abre-se
espaço cada vez maior para atuação das entidades que representam os diversos
171
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2001, p. 198.
172
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2001, p. 196.
89
setores da sociedade civil. As audiências públicas que antecedem a edição de
algumas leis dão prova dessa abertura.
A Súmula Vinculante, por sua vez, não tem essa conotação
democrática, porque as pessoas afetadas pelos seus efeitos não participam do
seu processo de edição, sequer por representação, e ficam impedidas de discuti-
la perante os juízes de direito.
A Súmula Vinculante, como visto, é editada em um
procedimento objetivo, cuja participação é restrita a determinados órgãos e
pessoas, ligadas, na sua maioria, ao próprio Estado. A maior parte dos cidadãos
não têm oportunidade de deduzir seus argumentos acerca do tema sumulado,
conquanto possam ser prejudicados individualmente pelos consectários do
enunciado jurisprudencial vinculante.
A partir de processos individuais, em que apenas as partes
envolvidas se manifestam, formam-se os entendimentos jurisprudenciais sobre os
assuntos controvertidos. Esses entendimentos são levados à aprovação dos
Ministros do STF em procedimento objetivo e restrito, para então se tornarem
obrigatórios a todos os juízes e administradores públicos do país.
Com isso, inviabiliza-se ao cidadão porque o juiz estará
vinculado ao que foi sumulado a discussão dos fundamentos empregados
para justificar a edição da súmula.
A Súmula Vinculante constitui, portanto, um texto normativo
(porque geral, abstrato e genérico) editado em procedimento não democrático.
Não se está aqui adentrando na discussão acerca da
legitimidade dos juízes e tribunais para criarem direito além da lei. Essa
discussão, geralmente suscitada sob o argumento de que são agentes políticos
não eleitos pelo povo e, portanto, sem legitimidade democrática, extrapola os
limites deste estudo.
Aqui, pelo que foi demonstrado inclusive no Capítulo 1, a
análise é feita sob outro prisma: o Poder Judiciário pode decidir além da lei,
90
interpretando-a (até mesmo com certo grau de criatividade, se necessário for),
mas desde que o faça em procedimento contraditório, levando em consideração
as circunstâncias específicas do caso concreto e os argumentos despendidos
pelas partes envolvidas, que necessariamente devem ter assegurada a
oportunidade de participação na construção racional (e fundamentada) da decisão
que lhes afeta, com efeitos inter partes, nos limites da coisa julgada.
É pelo fato de que a Súmula Vinculante não permite a
participação dos cidadãos submetidos aos seus ditames nem no procedimento
de sua edição, nem posteriormente que se afirma que ela não tem caráter
democrático e afronta o devido processo legal.
E atinge o princípio do devido processo legal em vários
aspectos.
Quando a situação fática submetida a julgamento perante o
juiz de direito enquadrar-se (por subsunção lógica) ao preceito sumular, a decisão
do caso concreto será conhecida previamente, não podendo afastar-se do que
foi assentado pelo STF com caráter vinculante. Ainda que o juiz ouse discordar e
tenha coragem de decidir contra a orientação da súmula, a interposição de
reclamação perante o STF tratará de restabelecer a orientação sumulada.
Enquanto ela não for cancelada, imperará absoluta.
Isso, em certa dose, fere o princípio do livre acesso à
jurisdição, pois se os argumentos argüidos pelas partes não terão qualquer efeito
sobre o órgão julgador, de nada adianta socorrer-se ao Poder Judiciário.
Com efeito, Ada Pelegrini Grinover, citada por Francisco
Gérson Marques de Lima, lembra que o acesso à Justiça pressupõe a
possibilidade de produzir provas e sustentar razões que possam influir na
convicção do julgar:
“O acesso à Justiça quer dizer acesso a um processo justo, ao
devido processo legal; ou, na feliz, observação de Ada Pelegrini
Grinover, ‘a uma Justiça imparcial; a uma Justiça igual,
contraditória, dialética, cooperativa, que ponha à disposição das
91
partes todos os instrumentos e os meios necessários que lhes
possibilitem, concretamente, sustentarem suas razões,
produzirem suas provas, incluírem sobre a formação do
convencimento do juiz’.”
173
também ofensa ao princípio da necessidade de
fundamentação das decisões judiciais decorrente do devido processo legal.
174
Bastará ao juiz examinar se os fatos se inserem na previsão normativa da Súmula
Vinculante e, em caso positivo, reproduzir mecanicamente os seus dizeres como
razões de decidir. Esse raciocínio lógico-formal exclui por óbvio a consideração
de outros fundamentos eventualmente trazidos pelos litigantes.
Convém destacar que no julgamento de uma ação coletiva,
em que muitas pessoas são afetadas pelo provimento jurisdicional, embora não
tenham integrado a relação processual, a lei brasileira apresenta solução que
bem se coaduna com os anseios democráticos traçados na Constituição.
A Lei n.º 8.078, de 11-09-1990 (Código de Defesa do
Consumidor), que regulamenta as ações coletivas, estabelece no seu art. 94 a
necessidade, após a propositura da ação, de que seja publicado edital em órgão
oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como
litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação
social. Essa previsão legal atende, ainda que formalmente, a exigência
constitucional-democrática de participação dos cidadãos nos atos estatais
decisórios capazes de afetar suas esferas jurídicas individuais.
Não obstante isso, o art. 103 da mesma lei, toma o cuidado
de ressalvar os interesses individuais eventualmente prejudicados com o
julgamento da ação coletiva. É assim que impõe limites à coisa julgada quanto
aos interessados que não tiverem participado no processo como litisconsortes.
173
MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. Fundamentos constitucionais do processo (sob a
perspectiva de eficácia dos direitos e garantias fundamentais). São Paulo: Malheiros, 2002, p.
96.
174
Para Gilson Bonato, “A motivação das decisões é uma imposição do princípio do devido
processo legal, onde se busca que o julgador exteriorize as razões de sua decisão, qual a
interpretação que foi dada ao direito e aos fatos do caso em julgamento” (In: Devido processo
legal e garantias processuais penais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 179).
92
Essa legislação dá clara noção de que não se pode impor os
efeitos de uma decisão judicial a quem não tenha tido a oportunidade de se
manifestar no processo que lhe antecedeu ou seja, sem obediência ao devido
processo legal.
Argumenta-se, por fim, ofensa ao duplo grau de jurisdição,
pois os juízes e tribunais ficam impedidos de realizarem os seus próprios
julgamentos acerca da questão controvertida.
3.4 PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA DO JUIZ
O princípio da independência do juiz, que também pode ser
chamado de princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional,
é o que mais visivelmente se vê lesado pelo advento da Súmula Vinculante.
De início, conveniente ressaltar que o princípio da
independência do juiz difere do princípio da independência do Poder Judiciário,
embora haja entre eles fortes pontos de aproximação. O primeiro diz respeito à
formação do convencimento do magistrado (individualmente); o segundo trata da
autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário (composto por diversos
órgãos julgadores).
175
Nesse sentido:
“Alguma confusão podem causar as noções de independência do
juiz e de independência do Poder Judiciário. A independência
entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário decorre da
divisão funcional do poder estatal, de modo que um Poder não
possa, salvo nas hipóteses previstas na Constituição, imiscuir-se
nos assuntos dos demais Poderes. A independência do juiz
significa a previsão de que este não tenha que submeter a sua
decisão a nenhum crivo, não se submetendo a nenhuma outra
175
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece em seu art. 99, caput: “Ao Poder
Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.”
93
vontade, senão o interesse da sociedade encerrado no ideal de
justiça.”
176
Importa a esta pesquisa acadêmica apenas a análise do
princípio da independência do juiz no cumprimento de sua função jurisdicional.
Cuida-se de princípio constitucional implícito, decorrente do
exercício democrático da jurisdição.
Teresa Arruda Alvim Wambier bem o explica:
“Orienta a atividade decisória do juiz o princípio do livre
convencimento motivado: liberdade para analisar as provas,
formar a convicção e decidir, com base na interpretação da lei que
se entenda correta. O juiz tem, portanto, no sistema brasileiro,
segundo opinião que predomina, a possibilidade de optar pela
interpretação da lei que lhe pareça mais acertada.”
177
Lenio Luiz Streck, escrevendo antes do avento da Emenda
Constitucional n. º 45, registrou o sistema então havido no Brasil:
“No Direito brasileiro, o princípio dominante é o da decisão
segundo o livre convencimento do juiz, atendendo aos ditames da
lei e, na omissão, aos preceitos oriundos das outras formas de
expressão do Direito, previstas, expressa ou implicitamente, na
Lei de Introdução ao Código Civil. Não dúvida, entretanto, de
que a força persuasiva dos casos julgados pelos tribunais
superiores em relação aos inferiores é decorrência lógica do
sistema de diversidade de instâncias, [...]. Porém, não há qualquer
forma de obrigatoriedade e nem, tampouco, vincularidade das
decisões de cortes superiores sobre os juízes os tribunais
inferiores.”
178
176
CASTRO, Carlos Alberto de. A proposta de adoção de súmulas vinculantes em face do
princípio da independência do órgão julgador. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da
12.ª Região, v 1, n. 1. Florianópolis, 1993, p. 47.
177
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle de decisões judiciais por meio de recursos de estrito
direito e de ão rescisória: recurso especial, recurso extraordinário e ão rescisória: o que é
uma decisão contrária à lei? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 311.
178
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.
88.
94
Para Fábio Konder Comparato, a independência funcional
da magistratura é uma garantia institucional do regime democrático, destinada a
assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais declarados na
Constituição.
179
Gilson Bonato entende a independência dos juízes como
uma garantia de isenção estabelecida em favor dos cidadãos:
“Em verdade, a independência dos juízes não é uma prerrogativa
profissional. Os cidadãos, sujeitos passivos da administração da
justiça, devem ter a garantia de que a pessoa que vai administrar
função de tão graves conseqüências, tal como o poder penal do
Estado, vai atuar com total liberdade e não submetido a pressões.
É uma garantia em favor dos cidadãos e não dos juízes. Em
última análise, todos os mecanismos que existem para preservar a
independência nada são frente à própria decisão do juiz. Esse,
consciente de sua missão, deve ser o principal guarda e defensor
de sua independência.
180
Dada a alta responsabilidade da função que exercem,
precisam ser imparciais e independentes, em “um caráter externo, relativo aos
órgãos ou entidades estranhas ao Poder Judiciário, e um caráter interno, ou seja,
independência dos membros perante os órgãos ou entidades pertencentes à
própria organização judiciária.”
181
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece
em favor dos magistrados as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de subsídio
182
, justamente para preservar-lhes a autonomia
decisória.
179
COMPARATO, Fábio Konder. O poder judiciário no regime democrático. In: Revista da AMB
Associação dos Magistrados Brasileiros. Ano 7, n. 13, Brasília: José Torres Pereira Júnior ed.,
2004, p. 8.
180
BONATO, Gilson. Devido processo legal e garantias processuais penais. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. 158-159.
181
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 470.
182
“Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
95
Daí que se fala em um princípio constitucional implícito de
independência do magistrado, que facilmente se deduz da previsão expressa
dessas garantias funcionais específicas, consoante a lição de José Afonso da
Silva:
“Aos órgãos jurisdicionais (...) incumbe a solução dos conflitos de
interesses, aplicando a lei aos casos concretos, inclusive contra o
governo e a administração. Essa elevada missão, que interfere
com a liberdade humana e se destina a tutelar os direitos
subjetivos, poderia ser confiada a um poder do Estado, distinto
do Legislativo e do Executivo, que fosse cercado de garantias
constitucionais de independência.”
183
E no mesmo rumo, Francisco Gérson Marques de Lima:
“Para que a tutela jurisdicional possa ser prestada com seriedade
e imparcialidade é indispensável cercar o julgador de garantias e
prerrogativas, a fim de não ser importunado na liberdade de
condução do processo e na formação de seu convencimento. O
juiz precisa estar imune às pressões políticas (internas e externas
do Judiciário), às intempéries resultantes de histerias e ao
sensacionalismo da imprensa.”
184
Para chegar à solução da causa submetida a seu
julgamento, o juiz opera um raciocínio lógico, que compreende juízos de fato e de
direito, a serem fundamentados e revelados às partes. Na operação desse
raciocínio tem liberdade para formar seu convencimento, motivadamente; não
está subordinado a nenhuma ordem superior de como deva proceder, embora sua
I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo
a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos
demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III,
e 153, § 2º, I.”
183
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed., São Paulo:
Malheiros, p. 573.
184
MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. Fundamentos constitucionais do processo (sob a
perspectiva de eficácia dos direitos e garantias fundamentais). São Paulo: Malheiros, 2002, p.
213.
96
decisão seja passível de reforma em grau de recurso. Em suma, o juiz é livre em
sua decisão, tanto ao valorar as provas como ao aplicar e interpretar as normas
jurídicas.”
185
Dessa forma, cada juiz é um centro autônomo de poder, que
procede com relativa carga de discricionariedade.
Por conseguinte, existe a possibilidade de serem proferidas
as mais variadas decisões sobre situações fáticas bastante similares. Por um
lado, há, em certa medida, prejuízos à segurança jurídica; por outro, permite-se a
democratização da interpretação e da criação do Direito, tornando-o muito mais
permeável aos valores advindos do meio social.
Essa múltipla possibilidade de decisões é reduzida em boa
dose com o manejo dos tantos recursos previstos na legislação processual.
Aos tribunais compete examinar a adequação jurídica dos
julgamentos realizados pelos juízes singulares, reformando as decisões
consideradas inadequadas e garantindo certa estabilidade ao sistema jurídico, ao
mesmo tempo em que podem rever eventual posição jurisprudencial
ultrapassada e apontar novos caminhos.
Como “o magistrado não é um soberano, nem um Deus, e
sim um servidor,”
186
e a jurisdição representa parcela do poder do Estado (que é
democrático de direito), as decisões judiciais estão submetidas a revisão, por
intermédio dos recursos (forma razoável de controle das interpretações
equivocadas dos juízes).
Esse processo de reexame dos fundamentos jurídicos
empregados em cada julgamento é extremamente salutar para manter a
185
MEDEIROS, Luiz Cézar. O formalismo processual e a instrumentalidade: um estudo à luz dos
princípios constitucionais do processo e dos poderes jurisdicionais. Florianópolis: OAB/SC
Editora, 2005, p. 116.
186
CALMON DE PASSOS, J. J. Súmula Vinculante. In: Genesis: Revista de Direito Processual
Civil, ano 1, n. 1. Curitiba: Genesis, 1996, p. 631.
97
vivacidade do sistema, reafirmar os seus princípios prevalecentes e enriquecer o
debate jurídico, plural e democrático.
É o que basta para manter a autoridade da jurisprudência
consolidada. Como afirma Lúcia Valle Figueiredo, “o próprio ordenamento jurídico
dá remédios de correção”
187
, que são os recursos.
A partir daí é que se forma (legitimamente) a jurisprudência,
de baixo para cima, e não (autoritariamente) de cima para baixo.
188
Luiz Felipe Silveira Defini traz alguns exemplos, dos tantos
que existem, de inovações jurisprudenciais impulsionadas pelas decisões dos
juízes de primeiro grau:
“Foi no primeiro grau e não das cúpulas que se desenvolveu,
para citar três exemplos, a possibilidade de indenização por dano
moral, do manejo de embargos de terceiro por titular de promessa
de compra e venda o registrada e da extensão da correção
monetária, antes da lei geral, a todas as dívidas.”
189
se escreveu nesse trabalho que a decisão judicial não
retrata mais claramente e sem vacilação a norma codificada, e que o juiz muitas
vezes atua como criador do Direito,
190
o que é decorrência natural do exercício da
jurisdição no Estado Democrático de Direito, mesmo no sistema civil law.
Também ficou assentado que o livre convencimento do
magistrado tem de ser motivado, com exposição racional dos fundamentos
187
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O controle judicial dos atos administrativos e a súmula vinculante.
In: Revista Brasileira de Direito Público. Ano 1, v. 1, Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 50.
188
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O controle judicial dos atos administrativos e a súmula vinculante.
In: Revista Brasileira de Direito Público. Ano 1, v. 1, Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 48.
189
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Discurso de posse da presidência da AJURIS, na gestão
2000/2001. In: CASTRO, Carlos Alberto de. A proposta de adoção de súmulas vinculantes em
face do princípio da independência do órgão julgador. In: Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 12.ª Região, v 1, n. 1. Florianópolis, 1993, p. 47.
190
Cf. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle de decisões judiciais por meio de recursos de
estrito direito e de ação rescisória: recurso especial, recurso extraordinário e ão rescisória: o
que é uma decisão contrária à lei? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 99.
98
utilizados na formação de sua decisão. Isso permite a discussão e a revisão da
decisão perante as instâncias superiores.
191
Mas agora, com a Súmula Vinculante, o juiz perde a
possibilidade de exercer a sua independência; fica tolhido da função interpretativa
e criativa do ordenamento legal.
A fundamentação da decisão que aplica a Súmula
Vinculante se resume à indicação lógica de subsunção do fato ao entendimento
sumulado. Pouco importa as conclusões a que chegou o magistrado depois de
sopesar os argumentos suscitados pelas partes e de examinar a quaestio em toda
a sua extensão.
A rigor, nas situações tratadas em Súmulas Vinculantes, não
mais como sustentar a existência de julgamentos pelo juiz monocrático. O juiz
torna-se mero técnico subalterno, encarregado de reproduzir mecanicamente em
cada caso o entendimento sumulado.
Por isso, tem-se sustentado que a Súmula Vinculante “é
uma camisa-de-força que atingirá, inexorável e impiedosamente, as instâncias
inferiores do Judiciário brasileiro.”
192
Usando expressão de Rui Barbosa, citada por Evandro Lins
e Silva, o juiz se converte “em espelho inerte dos tribunais superiores.”
193
Para Luiz Flávio Borges D’Urso,
“A Súmula retira do juiz a sua capacidade de entendimento e a
sua livre convicção, ou seja, a sua independência para julgar.
Torna-se o juiz um mero cumpridor de normas baixadas pelo grau
superior, comprometendo-se, dessa forma, ao inibir a livre
191
Cf. CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p.
139-142.
192
STRECK, Lenio. Súmulas no Direito brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade
constitucional do efeito vinculante. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 264.
193
LINS E SILVA, Evandro. Crime de hermenêutica e súmula vinculante. In: Revista Consulex.
Brasília, ano I, n. 05, 1997, p. 43-45.
99
apreciação dos fatos e do direito, a criação e o desenvolvimento
da jurisprudência.”
194
Há, portanto, evidente prejuízo à independência jurídica dos
juízes, a qual retira o magistrado de qualquer subordinação hierárquica no
desempenho de suas atividades funcionais; o juiz subordina-se somente à lei,
sendo inteiramente livre na sua formação de seu convencimento e na observância
dos ditames de sua consciência.”
195
Com a Súmula Vinculante essa independência do
magistrado se perde, devendo se curvar ao entendimento sumulado, mesmo que
não esteja convencido de que resultará na melhor solução para o conflito.
Dessa forma, a Súmula Vinculante tem nítidos contornos
autoritários, desconsiderando a pluralidade de pensamento dentro do sistema e a
busca da justiça no caso concreto. Toma o Direito como algo pronto e acabado,
como um sistema jurídico coeso, compacto e seguro,
196
com estreitos campos de
atualização.
Segundo Luiz Flávio Gomes,
“Retirada esta autonomia do juiz (que decide em nome do Estado
e é expressão de uma parcela desse poder), subordinando-se ao
mesmo tempo a um entendimento pré-configurado, único, já não é
preciso um juiz para julgar a causa; um funcionário qualquer é o
quantum satis para ‘carimbá-la’, dando-lhe a solução estampada
na súmula. Melhor, talvez: basta o computador.”
197
194
D’URSO, Luiz Flávio Borges. A súmula vinculante é um retrocesso. In: Revista Bonijuris. Ano
XVI, n. 491, p. 21.
195
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria geral do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 161.
196
GOMES, Luiz Flávio apud CASTRO, Carlos Alberto de. A proposta de adoção de súmulas
vinculantes em face do princípio da independência do órgão julgador. In: Revista do Tribunal
Regional do Trabalho da 12.ª Região, v 1, n. 1. Florianópolis, 1993, p. 49.
197
GOMES, Luiz Flávio. Súmulas vinculantes e independência judicial. In: Revista Justitia. v. 59, n.
177, São Paulo: Associação Paulista do Ministério Público, 1997, p. 126.
100
Ao tempo em que se vinculam os juízes de primeiro grau aos
entendimentos jurisprudenciais, Volnei Ivo Carlin denuncia o declínio do prestígio
da jurisprudência atual e critica o apego acrítico aos entendimentos sumulados:
“A jurisprudência supõe durabilidade. Hoje, porém, o princípio vem
diluído, pois o direito muda e muda rápido. Entretanto, alheios a
estas transformações certos magistrados apegam-se aos slogan e
à estratificação das súmulas, que substituem as convicções e
impedem a evolução. O direito parece ir rápido demais para
permitir a criação jurisprudencial, que deveria ser mais sutil,
inteligente e legítima, deixando, agora, contudo, transparecer os
elementos de uma crise.
198
Anotando o aspecto persuasivo da jurisprudência, que,
segundo ele deve ser fonte de princípios convincentes, o autor valoriza o juízo
ponderado e refletido do julgamento:
“Ademais, no estudo de um conflito, há, metodicamente,
numerosos elementos a considerar, envoltos em sutilezas e
escrúpulos, deixando a mente do julgador impregnada pelo
conjunto de dados pressentidos para a percepção da verdade. E a
demonstração lógica deve se ordenar com clareza e numa escrita
elegante para, então, o trabalho jurídico (sentença e/ou
acórdão) ser publicado e discutido.”
199
Também assim Lúcia Valle Figueiredo: “A jurisprudência, e
todos estão cientes disso, também, é fonte de Direito na dialogicidade necessária
entre a norma como posta, a Constituição, os princípios da Constituição e o caso
concreto.”
200
Não pode, por isso, ficar engessada (estagnada) em
determinado enunciado sumular vinculante, cuja iniciativa de revisão é bastante
198
CARLIN, Volnei Ivo. Deontologia Jurídica – Ética e justiça. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC
Editora, 2005, p. 56.
199
CARLIN, Volnei Ivo. Deontologia Jurídica – Ética e justiça. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC
Editora, 2005, p. 56.
200
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O controle judicial dos atos administrativos e a súmula vinculante.
In: Revista Brasileira de Direito Público. Ano 1, v. 1, Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 46.
101
restrita e, portanto, anti-democrática, sobretudo porque impede o juiz de primeiro
grau de participar do debate. Via de conseqüência, também as partes, que
primeiro têm de levar seus conflitos à apreciação do juiz natural, estão excluídas
de levar seus argumentos ao conhecimento do STF.
Essa nova configuração do juiz que a Súmula Vinculante
exige destoa por completo das movimentos contemporâneos de fortalecimento do
juízo crítico e construtivo das decisões judiciais, bem como afeta seriamente o
movimento dinâmico e aberto que sempre acompanhou a Jurisprudência pátria.
Para encerrar este Capítulo cita-se a lição de Miguel Reale,
que bem resume a idéia aqui desenvolvida:
“A contrário do que pode parecer à primeira vista, as divergências
que surgem entre sentenças relativas às mesmas questões de
fato e de direito, longe de revelarem a fragilidade da
jurisprudência, demonstram que o ato de julgar não se reduz a
uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável
margem de poder criador. Como veremos, as divergências mais
graves, que ocorrem no exercício da jurisdição, encontram nela
mesma processos capazes de atenuá-las, quando não de eliminá-
las, sem ficar comprometida a força criadora que se deve
reconhecer aos magistrados na tarefa de interpretar as normas,
coordená-las, ou preencher-lhes as lacunas. Se é um mal o juiz
que anda à cata de inovações, seduzido pelas ‘últimas verdades’,
não é mal menor o julgador que se converte em autômato a
serviço de um fichário de arestos de tribunais superiores.”
201
201
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 168.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Súmula Vinculante é instituto novo do Direito Brasileiro,
que vem suscitando grande polêmica na comunidade jurídica.
Já se tentou outras vezes, sem sucesso, fazê-la ingressar no
ordenamento jurídico nacional, mas somente com a Emenda Constitucional n.º 45
e a Lei n.º 11.417 estabeleceu-se a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal
editar súmulas com efeitos vinculantes.
O movimento em favor da Súmula Vinculante aproveitou-se
da dita reforma do Poder Judiciário para defendê-la, como uma das medidas de
combate à morosidade da Justiça.
Ela surgiu com a promessa de reduzir o número de recursos
e, com isso, o tempo de duração das demandas e o volume de trabalho dos
órgãos judicias, proporcionando, além disso, maior previsibilidade das decisões
de primeira e segunda instância, em favor da segurança jurídica.
A Súmula Vinculante representa o ápice da tendência
verificada nos últimos anos no Brasil de conferir aos entendimentos
jurisprudenciais força normativa autônoma.
Como se observou, um movimento de aproximação do
sistema jurídico brasileiro (de raiz romano-germânica civil law) com o sistema
anglo-saxão (common law), no qual os precedentes têm primazia na construção
do Direito.
Mas se percebeu neste estudo que a Súmula Vinculante não
se identifica perfeitamente com o stare decisis norte-americano, porque a ratio
decidendi dos precedentes vinculatórios tem de ser deles extraída pelo intérprete,
enquanto que aqui o princípio ou regra jurídica vinculatória é fornecido pelo
próprio tribunal, em uma fórmula lingüística concisa e genérica – texto normativo.
103
A Súmula Vinculante será a síntese de um entendimento
jurisprudencial, expresso em um enunciado abstrato, editado e aprovado em
procedimento objetivo e de iniciativa restrita a determinado rol de legitimados.
Funcionará como texto normativo autônomo, de cunho
abstrato, geral e obrigatório.
Ficou claro no decorrer da pesquisa que o dispositivo
constitucional que instituiu a Súmula Vinculante, bem como a lei que o
regulamentou deixaram vários aspectos controvertidos da aplicação deste novo
instituto em aberto, a serem esclarecidos pela própria Jurisprudência do STF.
No campo material, o STF poderá editar Súmulas
Vinculantes sobre os mais variados temas jurídicos, porque a pertinência
constitucional (direta ou indiretamente) sempre poderá ser argumentada a partir
da leitura de qualquer texto normativo do sistema jurídico.
Quanto aos pressupostos atinentes à necessidade de edição
das Súmulas Vinculantes, tanto o preceito constitucional quanto a lei utilizaram
termos lingüísticos vagos e imprecisos, que permitem ao STF a utilização desse
poderosíssimo instrumento de poder como melhor lhe aprouver em cada situação.
Uma das possibilidades de controle da nova função
normativa atribuída ao STF seria o manejo do controle incidental de
constitucionalidade, mas a decisão singular contrária à Súmula Vinculante teria
enormes chances de ser cassada em sede de reclamação.
Viu-se que o STF está preparando a edição das suas
primeiras Súmulas Vinculantes e que possivelmente elas o dispensarão a
atividade do intérprete para compreendê-las e aplicá-las aos casos concretos, eis
que nelas há também expressões textuais abertas.
Mas, a rigor, pelo que se observa dos ditames
constitucionais e legais que tratam da Súmula Vinculante, o seu objetivo é
restringir ao máximo a possibilidade de divergência do seu conteúdo, fixando
104
rigidamente um comando normativo a ser aplicado em uma série de situações
futuras e similares.
Diante disso, permitem-se as seguintes conclusões
(principais):
a) a Súmula Vinculante representa a aproximação do
sistema jurídico brasileiro (de raiz romano-germânica) com o sistema anglo-
saxão, diminuindo o apego à lei e atribuindo maior força aos entendimentos
juridprudenciais.
b) ao fixar uma das possíveis interpretações da lei como a
única correta, a Súmula Vinculante inibe a eficácia plural, fértil e aberta da lei, cujo
conteúdo de ser definido pelo intérprete no momento de aplicá-la ao caso
concreto. Dessa forma, o princípio da legalidade se mostra violado.
c) a Súmula Vinculante atinge em parte o princípio do devido
processo legal, porque impede o debate contraditório que de existir nos
processos judiciais, com a finalidade de construir o provimento final, causando
prejuízos ao acesso à Justiça, ao dever de fundamentar as decisões judiciais e ao
duplo grau de jurisdição.
d) a Súmula Vinculante impede o juiz de julgar as causas
conforme seu livre convencimento motivado e nisso atenta contra o princípio da
independência judicial. Por conseqüência, representa verdadeiro “engessamento”
do conhecimento jurídico, empobrecendo-o sobremaneira e restringindo em muito
seu processo de dinamização.
O estudo levou em consideração o modelo instituído
formalmente na Constituição da República Federativa do Brasil e na Lei n.º
11.417, mas em verdade caberá à Jurisprudência do STF definir os seus reais
contornos. Por isso, resta saber como será na prática a reação da comunidade
jurídica se os juízes e tribunais se conformarão em aplicar mecanicamente as
Súmulas Vinculantes, se haverá um número muito elevado de reclamações ao
STF, qual os critérios de admissibilidade para os pedidos de revisão e de
cancelamento das Súmulas Vinculantes, como se dará a motivação das
105
sentenças e acórdão que as utilizarem como fundamento único para a resolução
dos conflitos, enfim, muito ainda se discutirá acerca desse tormentoso assunto,
que sequer entre os Ministros do STF encontra entendimento pacífico.
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recursos de estrito direito e de ação rescisória: recurso especial, recurso
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115
ANEXO
Lei n.º 11.417, de 19-12-2006
Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a
Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a
edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula
vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá outras
providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o
Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1.º Esta Lei disciplina a edição, a revisão e o
cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal
e dá outras providências.
Art. 2.º O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por
provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar
enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá
efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal,
bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei.
§ 1.º O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a
interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre
órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual
que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos
sobre idêntica questão.
§ 2.º O Procurador-Geral da República, nas propostas que
não houver formulado, manifestar-se-á previamente à edição, revisão ou
cancelamento de enunciado de súmula vinculante.
116
§ 3.º A edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de
súmula com efeito vinculante dependerão de decisão tomada por 2/3 (dois terços)
dos membros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária.
§ 4.º No prazo de 10 (dez) dias após a sessão em que
editar, rever ou cancelar enunciado de súmula com efeito vinculante, o Supremo
Tribunal Federal fará publicar, em seção especial do Diário da Justiça e do Diário
Oficial da União, o enunciado respectivo.
Art. 3 São legitimados a propor a edição, a revisão ou o
cancelamento de enunciado de súmula vinculante:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – o Procurador-Geral da República;
V – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI – o Defensor Público-Geral da União;
VII partido político com representação no Congresso
Nacional;
VIII confederação sindical ou entidade de classe de âmbito
nacional;
IX a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara
Legislativa do Distrito Federal;
X – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
XI – os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de
Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os
117
Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais
Militares.
§ 1.º O Município poderá propor, incidentalmente ao curso
de processo em que seja parte, a edição, a revisão ou o cancelamento de
enunciado de súmula vinculante, o que não autoriza a suspensão do processo.
§ 2.º No procedimento de edição, revisão ou cancelamento
de enunciado da súmula vinculante, o relator poderá admitir, por decisão
irrecorrível, a manifestação de terceiros na questão, nos termos do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal.
Art. 4.º A súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata,
mas o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus
membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que tenha eficácia
a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de
excepcional interesse público.
Art. 5.º Revogada ou modificada a lei em que se fundou a
edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício
ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso.
Art. 6.º A proposta de edição, revisão ou cancelamento de
enunciado de súmula vinculante não autoriza a suspensão dos processos em que
se discuta a mesma questão.
Art. 7.º Da decisão judicial ou do ato administrativo que
contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo
indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo
dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.
§ 1.º Contra omissão ou ato da administração pública, o uso
da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas.
§ 2.º Ao julgar procedente a reclamação, o Supremo Tribunal
Federal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada,
118
determinando que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula,
conforme o caso.
Art. 8.º O art. 56 da Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999,
passa a vigorar acrescido do seguinte § 3.º:
“Art. 56. ............................
........................................
§ 3.º Se o recorrente alegar que a decisão administrativa
contraria enunciado da súmula vinculante, caberá à autoridade prolatora da
decisão impugnada, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o
recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da
súmula, conforme o caso.” (NR)
Art. 9.º A Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, passa a
vigorar acrescida dos seguintes arts. 64-A e 64-B:
“Art. 64-A. Se o recorrente alegar violação de enunciado da
súmula vinculante, o órgão competente para decidir o recurso explicitará as
razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme o caso.”
“Art. 64-B. Acolhida pelo Supremo Tribunal Federal a
reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, dar-se-á
ciência à autoridade prolatora e ao órgão competente para o julgamento do
recurso, que deverão adequar as futuras decisões administrativas em casos
semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível,
administrativa e penal.”
Art. 10. O procedimento de edição, revisão ou cancelamento
de enunciado de súmula com efeito vinculante obedecerá, subsidiariamente, ao
disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Art. 11. Esta Lei entra em vigor 3 (três) meses após a sua
publicação.
119
Brasília, 19 de dezembro de 2006; 185.º da Independência e
118.º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Márcio Thomaz Bastos
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