SUPERFÍCIE FOTOGRÁFICA
As imagens de tarde são originadas, manipuladas
e ampliadas por meio de aparatos técnicos digitais.
O fazer artístico é projetivo, baseado nos proce-
dimentos “imateriais” da computação. A feitura
dessa série é decorrente de uma mediação técnica
especíca: a ação de recortar, subtrair partes e
colar outras é realizada na imagem em estado
digital, disponível na tela do computador. Os
meios digitais permitem manipulações diversas de
forma a questionar o aspecto indicial
1
da imagem
fotográca. Enquanto é um arquivo digital, a
imagem está sujeita a novas congurações e,
quando adquire uma superfície material própria,
torna-se um objeto (concreto) de fato.
O recorte dado pelo enquadramento é o
momento decisivo para a realização de uma
foto. Em tarde os planos estruturam as imagens
e conformam seu caráter geométrico. Alguns
desses planos foram pintados digitalmente
com cores chapadas, derivadas da imagem
capturada pela câmera; cortes digitais destacam
certos elementos e apagam outros. Contudo, ao
observar tarde, é possível detectar diferenças
entre partes fotografadas e as outras, construídas
posteriormente. As interferências mostram-se
visíveis, pois a ação digital contrasta com as
partes preservadas da foto inicial - os campos de
cor chapada divergem das texturas das coisas. Sua
constituição não é imediata: a similaridade entre
as cores captadas pela câmera e as tonalidades
adotadas digitalmente quase esconde os sinais das
operações realizadas sobre a imagem original.
A intervenção feita nas imagens mantém a estru-
tura compositiva do recorte fotográco inicial. Em
vez de alterar sua organização espacial, acaba por
enfatizar a geometria trazida pelo enquadramento.
No entanto, as áreas de “cor digital” são lisas e
uniformes e indicam a alteração e a construção
da imagem. Ao ser manipulada, a realidade
atribuída à fotograa é questionada - a captura
da aparência do mundo é uma expectativa da
técnica fotográca convencional. Nesse sentido,
tarde distancia-se dos fundamentos da fotograa
baseada na xação automática de um instante no
tempo-espaço, denida por Dubois (1993) como
corte:
Como tal, indissociável do ato que a faz ser, a imagem
fotográca não é apenas uma impressão luminosa, é
igualmente uma impressão trabalhada por um gesto
radical que a faz por inteiro de uma só vez, o gesto do
corte, do cut, que faz seus golpes recaírem ao mesmo
tempo sobre o o da duração e sobre o contínuo da
extensão. (DUBOIS, 1993, p. 161)
A partir das intervenções digitais então adotadas,
as fotograas abandonam a gênese automática
própria do aparelho fotográco e se aproximam
da concepção de imagem construída, manejada,
projetada e pintada.
O uso do aparato digital evidencia a complexidade
do meio técnico em relação à expectativa da
fotograa percebida como correlato do mundo.
Entretanto, as interferências sobre o processo
mecânico e químico sempre estiveram presentes
38
1 “... os índices são signos
que mantém ou mantiveram
num determinado momento
do tempo uma relação
de conexão real, de
con-tigüidade física, de
co-presença imediata com
seu referente (sua causa)”.
DUBOIS, 1993, p. 61. Para
um aprofundamento do
aspecto indicial da imagem
fotográca, ver pp. 45 - 53.
nas experimentações de fotógrafos e artistas;
o meio digital certamente amplia e facilita as
possibilidades de manipulação sobre as imagens,
mas também pode preservar a relação direta
entre a coisa fotografada e a imagem fotográca.
A simples captura de um fragmento espaço-
temporal realizada pela câmera no ato fotográco
resulta em uma imagem visualmente vinculada ao
seu referente (a não ser que o fotógrafo evite o
funcionamento inato do aparelho). A permanência
e a evidência do aspecto indicial na fotograa
dependem da natureza das intervenções e dos
procedimentos adotados em sua produção.
Tarde mantém, em partes intocadas das imagens,
o vínculo direto com o referente, próprio da
fotograa convencional. Tais pedaços guardam
a memória do ato fotográco, ao captar a
imagem daquelas paredes, frestas, cantos. Mas o
procedimento digital de recortar e colar, subtrair
ou cobrir, aplicado a algumas áreas da imagem,
expõe a sua natureza fotográca de maneira
duvidosa, dilacerada. Contudo, a intervenção na
aparência de alguns elementos fotografados não
altera a estrutura visual resultante da foto direta,
presente na matriz digital, ou seja, as imagens
não apresentam um espaço inverossímil, pois
mantêm a representação perspectiva do espaço
engendrado pela câmera. No entanto, parece que
há um ruído na transparência do meio fotográco,
algo a ser decifrado pelo observador.
Em tarde a ilusão de profundidade não é negada
e sim problematizada. Os procedimentos digitais
não buscam apenas alterar a imagem inicial, mas
trazer à tona os códigos da projeção automática
que a fotograa opera ao xar um ponto de
vista isolado de um pedaço do mundo. A partir
da matriz digital, a composição é repensada e
reforçada em alguns aspectos. A manipulação
interfere na imagem a partir dela mesma: elege
algumas partes que se destacam em relação ao
todo. Essas assumem novas funções compositivas,
ainda que a estrutura inicial dada pelos elementos
fotografados permaneça. Por m, as partes
modicadas digitalmente enfatizam a estrutura
preexistente na fotograa, tornando-a explícita ao
espectador.
Os códigos visuais trazidos pela fotograa são
parcialmente desconstruídos. A imagem fotográca
é reprojetada. A perspectiva desenhada pelo
sistema embutido na câmera é tensionada por
elementos estranhos à fotograa convencional.
O que seria fragmento (o enquadramento da
foto, retirada de um todo maior) ganha ares de
totalidade. A presença latente do espaço contínuo
do momento e lugar em que a fotograa foi
subtraída - o fora-do-quadro
2
- se torna difusa,
quase ausente, diante dos sinais da manipulação
posterior. A imagem fotográca é então vista
como um quadro, uma unidade que se encerra no
limite de suas bordas.
A criação de novos desenhos na fotograa
estabelece ambigüidades entre o que continua
visível e o que ca encoberto. Tensionar o
espaço constituído automaticamente pela câmera
39
2 Fora-do-quadro ou
fora-de-campo designa
o contexto não visível no
enquadramento foto/cine-
matográco. A imagem,
captada pela câmera,
pode ou não oferecer
índices do espaço maior
do qual é separada. Para
uma abordagem mais
detalhada sobre o assunto
ver AUMONT, 2004, pp.
221-227.