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S U S P E N S A
P A I S A G E M
Fabiana Queirolo
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<<< porta, 2004
P A I S A G E M S U S P E N S A
Fabiana Queirolo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes, Área de Concentração Artes
Plásticas, Linha de Pesquisa Poéticas Visuais, da
Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, como exigência parcial para obtenção
do Título de Mestre em Artes, sob a orientação do
Prof. Dr. Marco Garaude Giannotti.
São Paulo, 2008
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
a b s t r a c t
This study presents my artistic production between the years of 2005
and 2007, as well as the poetical and theoretical questions involved
in this works: installed images in several places. The proximity with
the landscape is determined by the articulations of the work with the
place, instigating the reection about the spatial experience of the
observer. From the artist´s point of view, the text poitns to the
mediums and suports that are adopted, developing specic relations between
the work, phisical space and imagination.
image | space | photography | installation | landscape
r e s u m o
Este estudo apresenta a minha produção artística entre 2005 e 2007, bem
como as questões poéticas e teóricas envolvidas nas obras: imagens instaladas
em diversos ambientes. A aproximação com a paisagem é determinada pela
articulação dos trabalhos com o lugar, que instiga a reexão sobre a experiência
espacial do observador. Do ponto de vista da artista, o texto aponta para os
meios e suportes adotados e desenvolve relações especícas entre obra,
espaço físico e imaginação.
imagem | espaço | fotograa | instalação | paisagem
A Maria Clara e Nina,
Arthur e Maya.
s u m á r i o
introdução............................ 11
OLHAR DE FORA
IMAGEM E SUPERFÍCIE
(ENTRE) PINTURA E FOTOGRAFIA
sonho .................................. 21
CAMPO LUMINOSO
O LUGAR DA OBRA
DESVIO PARA A IMAGEM
tarde ................................... 33
A LUZ COMO OBJETO
SUPERFÍCIE FOTOGRÁFICA
DA IMAGEM À INSTALAÇÃO
DA IMAGEM AO OBJETO
latitude ............................... 53
ESPAÇOS MÍNIMOS
HORIZONTE IMAGINÁRIO
parede dupla.......................... 69
QUASE ESPELHO
FOTOGRAFIA COMO PROJETO
OBRA E CONTEXTO
recepção ............................. 83
VISTA ACIDENTAL
JANELA MÚLTIPLA
divisar ................................. 93
VER NAS ENTRELINHAS
OLHAR PASSAGEM
IMAGEM INSTÁVEL
PAISAGEM EDIFICADA
paisagem suspensa ............. 113
EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO
VISÃO E PAISAGEM
referências .......................... 118
agradecimentos .................. 121
tempos de caça
nesses dias de caça
uma tarefa constante, à espera,
à espreita.
estranhos dias de cidade
na cidade particular dos labirintos que entro,
invento, disparo entre
corridas, vistas, desejos e dejetos
- a semana me atravessa.
uma semana passou por cima de mim:
o fôlego, rarefeito, mas
a tarefa me atinge feito encarnação.
observo um leão se espreguiçar,
lento o tempo da percepção.
ao seu lado, um outro,
digo tempo.
algum líquido
invísivel transborda e confunde
aquilo de dentro, e o fora.
já não sei se vejo o leão além
ou se me vejo nele, torno a ser eu o alvo;
desde a captura
a imagem do leão ilustra outro dia.
Fabiana Queirolo
22.09.06
i n t r o d u ç ã o
... a forma, que corresponde já ao grau de elaboração
pretendido, é inadequada ao real, dizendo respeito mais à
organização material da obra do que às suas referências
signicativas. Estas estão no imaginário e a verdadeira
imagem artística não está na obra, mas na memória.
(FRANCASTEL, 1998, p.32).
OLHAR DE FORA
A prática artística demanda uma constante
reexão sobre o próprio trabalho e sua relação
com o contexto da arte. A necessidade de discutir,
elaborar e ampliar as questões provenientes
desse processo faz parte da experiência da arte
contemporânea; aprofundar e organizar essas
idéias numa dissertação, vem a ser a razão
originária deste mestrado.
Apresento aqui os trabalhos que realizei entre 2005
e 2007, seguindo a cronologia das experiências de
cada exposição ou montagem. Tal trajetória baseia-
se na realização de pinturas e fotograas digitais
instaladas no espaço arquitetônico de maneira a
provocar a percepção da obra em relação ao lugar.
O conteúdo das imagens refere-se a “recortes” de
ambientes edicados, familiares, reorganizados
em determinadas superfícies em que a escala
e a montagem ativam a experiência espacial do
observador. As operações adotadas na produção
das imagens e a articulação entre obra e espaço
expositivo são próprias de cada trabalho e serão
discutidas adiante.
Este estudo concentra-se na reexão sobre as
obras em relação ao espaço e ao contexto em
que vieram a se inserir. Com a intenção de me
afastar do processo criativo, ou seja, das dúvidas
e decisões tomadas durante a elaboração dos
trabalhos, optei por debruçar-me na experiência
da obra pronta. Focada em seu estado de exibição,
pude dar ouvidos ao seu silêncio à espera de
interpretações. Uma obra é um objeto cujos
sentidos se desdobram indenidamente à medida
que encontra novos interlocutores. Busquei o
lugar do observador, alheio à gênese do trabalho,
criador de signicados. Talvez seja notado o
esforço em colocar-me a certa distância, em
observar minha produção de um ponto de vista
externo à sua fatura. Explico apenas o que julgo
necessário ao entendimento efetivo dos trabalhos
e descrevo os caminhos tomados quando esses,
de algum modo, são visíveis e fazem parte da
fruição do sujeito. Meu objetivo é alçar um diálogo
a partir da experiência estética, elaborada tanto
pelo artista quanto pelo espectador.
A diculdade de uma pesquisa como esta surge
no ponto de partida: o objeto de estudo (a
obra em curso) está em contínuo movimento e
resignicação. De dentro do processo criativo, o
distanciamento necessário para uma visão objetiva
do resultado do próprio fazer exige métodos e
escolhas bem denidos. Assim, o foco de atenção
12
manteve-se restrito às experiências realizadas
durante o percurso do mestrado, deixando de
lado a produção anterior e os projetos futuros.
Ao observar esses trabalhos, algumas questões
destacaram-se: a intersecção de meios diversos
na construção de imagens, a relação dessas com
o espaço arquitetônico e a distinção entre obra e
mundo na percepção do sujeito.
IMAGEM E SUPERFÍCIE
Inicialmente, identiquei nas superfícies escolhidas
como suporte de meus objetos fotográcos uma
pergunta a ser explorada aqui como introdução
de minhas reexões: de que maneira o aspecto
material, incluindo sua aparência, dimensões
e demais características, interfere na imagem
apresentada como obra de arte?
Ao trabalhar com fotograa, a escolha do suporte
pode ser determinada a partir da imagem
concebida, o que abre um leque de possibilidades
para o objeto resultante. Na forma de um negativo
ou arquivo digital a imagem encontra-se em estado
de potência em relação à concepção da obra. A
superfície adotada pelo artista ampara a imagem,
determina uma escala e garante sua presença entre
as coisas do mundo. A materialidade do suporte
carrega suas particularidades, contextualizando
a imagem. Partindo do conceito de que “imagens
são superfícies” (FLUSSER, 2007, p. 152), passei
a considerar a importância do suporte material na
concepção e fruição da produção bidimensional de
vários artistas.
Desde que a operação da colagem foi inserida
no âmbito da arte pelos cubistas no início do
século XX, a superfície das imagens nunca mais
foi a mesma. Um elemento colado sobre um
plano torna-o visível como objeto bidimensional,
contrariando a ilusão de profundidade ligada à
tradição pictórica. A inserção de um novo material
sobre a imagem evidencia a manipulação do
artista diante do quadro. Assim, a utilização de
fragmentos provenientes do mundo em comum
(letras, jornais, papel estampado e embalagens,
entre outros) no espaço da pintura, articulada a
gestos e traços, inaugura uma nova proposição
para as imagens. Ao recusar a perspectiva clássica
e seus efeitos de profundidade, as vanguardas
modernas emancipam a pintura em relação a
modelos e sistemas previamente dados. A pintura
incorpora ações derivadas da colagem, como
recortar, cobrir, colar, justapôr, misturar, etc. A
tela passa a ser o suporte que recebe e torna
visível tais procedimentos. “Se a imagem de uma
pintura perspectiva é o vidro transparente de uma
janela, o de uma pintura moderna é um anteparo.
(TASSINARI, 2001, p. 29). Consequentemente, a
bidimensionalidade do quadro torna-se essencial.
A pintura é percebida como um objeto opaco, no
qual o suporte e a imagem revelam sua natureza
plana.
A lógica da colagem permite um espaço onde as
operações construtivas
1
são expostas e a imagem
13
1 Operações construtivas é
um termo que indica uma
série de procedimentos
pprios ao fazer da obra,
absorvidos pela arte a
partir do século XX, tais
como montar, juntar,
sobrepôr, recortar, colar,
pendurar, etc.
é fruto de uma combinação de procedimentos
diversos. Ao notar o arranjo de elementos díspares
conjugados na imagem, o observador percebe
o processo de sua constituição e identica os
materiais utilizados e os procedimentos adotados.
O plano do quadro deixa de ser “transparente”
como na pintura renascentista, em que a repre-
sentação do espaço tridimensional engana o olhar
e ofusca a condição planar do suporte. A partir
das conquistas modernas a superfície plana das
imagens mostra-se como um anteparo sujeito às
mais variadas manobras artísticas. Como observa
Tassinari (2001, pp. 48-50) “uma obra de arte
moderna, na grande maioria dos casos, não é
algo incompleto, inacabado, mas algo pronto que
pode ser visto como ainda se fazendo”. O espaço
fundado pela colagem é rapidamente ampliado por
inúmeros artistas, de modo a tornar-se o território
onde as operações artísticas se incorporam às
imagens de modo a interferir em seus possíveis
signicados. Ao desligar-se da tradição pictórica o
meio deixa de ser “transparente”.
As superfícies carregam sua própria materialidade.
Ao lidar com imagens, o artista acaba por adotar
ou interagir nas propriedades imanentes de cada
meio material. Em minha produção, em que
pintura e fotograa se alternam, as imagens
são impressas em uma única superfície por
meio de aparatos digitais. Antes de tornarem-se
objetos concretos, as fotograas são submetidas
a manipulações feitas por intermédio de
softwares especícos. Partes da imagem inicial
são preservadas entre elementos modicados,
deixando à vista de todos os caminhos do fazer
na obra nal. Diante da ampliação digital, a
materialidade do “objeto-foto” induz o observador
aos códigos da fotograa. Mas tal percepção é
tensionada pelas operações percebidas no interior
das imagens, procedimentos ligados ao conceito
de construção (recorte, colagem, montagem). A
técnica da colagem desdobra-se então em uma
fusão de meios distintos, impressos em uma única
superfície. O fazer da imagem, em estado digital,
revela-se sobre um “fundo” que é a fotograa. A
obra estabelece um jogo de superfícies ligadas aos
sinais da elaboração da imagem.
O questionamento sobre a imagem e as operações
aparentes de sua construção levam a pensar
a superfície como interface entre a obra e o
mundo ao redor. Na pintura renascentista a
bidimensionalidade do quadro é contrariada pelo
uso da perspectiva clássica, que propõe ao olhar
um espaço projetado, cuja ilusão estabelece um
interior (o que está dentro do quadro) apartado
do espaço do mundo. Tal concepção da pintura
como “janela” contrasta com a produção da arte
moderna e contemporânea, que constitui a obra
explicitando sua condição material, sua opacidade.
Consequentemente, a imagem deixa de oferecer
um interior ilusório e passa a ser percebida em
relação ao espaço físico, que é compartilhado com
o observador
2
. Sem os dispositivos tradicionais
de separação entre arte e mundo ao redor, como
molduras e pedestais, as obras são vistas em suas
2 Encontra-se um
aprofundamento das
relações entre arte e
espaço natural no artigo
de MAMMÌ (2004) e em
TASSINARI (2001).
14
articulações com o lugar no qual estão dispostas.
“Uma pintura inteiramente bidimensional é uma
impossibilidade para a percepção, pois ou a
prioridade é a do que se dá a ver além do quadro
ou o quadro aparece como gura sobre o fundo do
espaço do mundo em comum.(TASSINARI, 2001,
p. 31).
A superfície resultante dos procedimentos artísticos
e suas relações com o suporte material funda um
espaço especíco, próprio à arte. A articulação do
espaço da obra com o lugar no qual se insere varia
conforme as intenções do artista ao conceber e
expor seu trabalho. Em minha produção, a vontade
de criar imagens ambíguas em relação ao espaço
surgiu em experiências de recortar as fotograas
de modo a deixarem entrever o suporte, que
por sua vez vieram a fazer parte das imagens.
A tensão entre imagem e matéria estabeleceu
vínculos entre as obras e os espaços expositivos.
As imagens passaram a requisitar paredes e
cantos arquitetônicos como suporte e parte de sua
visualização, estabelecendo certa promiscuidade
entre obra e lugar. As imagens “transbordam” do
seu suporte especíco (fotográco) em direção à
superfície dos ambientes através de pinturas nas
paredes.
(ENTRE) PINTURA E FOTOGRAFIA
Fotografo por impulso, estimulada por algumas
particularidades visuais do mundo, que são o
ponto de partida do meu trabalho, cujo objetivo
é o exercício do ver como constante rever. O
domínio do aparelho e seus inúmeros acessórios,
o controle das condições externas, a execução
minuciosa da revelação e ampliação do lme
nunca me interessaram como artista.
A utilização de procedimentos ligados à colagem
em fotograas surge na elaboração das imagens
a partir de 2004 em meu trabalho. Por meio da
manipulação digital, operações como a alteração
do formato do quadro, o recorte de alguns
elementos e a cobertura de áreas com cores
uniformes são engendrados com o intuito de
problematizar o sistema originário e regulador da
imagem. Embora a atitude de realizar intervenções
por meio de softwares tenha sido tomada
inicialmente de maneira intuitiva e experimental,
levá-la a diante justica-se pela vontade de criar
uma “imagem-pintura” que se manifesta por meio
de uma “linguagem-fotograa”. Explorar esse
encontro de meios parece válido pois estabelece
uma categoria própria à obra. Isso importa mais
pelo diálogo que o trabalho passa a veicular entre
procedimentos de origens diversas e menos pela
necessidade de nomeá-la sob o parâmetro de uma
linguagem especíca.
Examinar as obras a partir de seus meios leva
a uma comparação. Enquanto a pintura surge,
em geral, a partir de um espaço previamente
estipulado (anteparo), a fotograa xa uma
imagem de um fragmento de um campo contínuo
(mundo). Dubois (2003) explica a diferença entre
15
os dois meios, ao armar que a fotograa é
realizada por um gesto de subtração e a pintura
é uma somatória de ações cujo suporte carrega
tal memória e experiência. O quadro, ou a tela, é
o suporte que retém a ação artística, o processo
de constituição da imagem no tempo próprio de
sua fatura. A câmera fotográca, por sua vez,
explora o espaço do mundo cujos limites chegaria
ao innito. Ela retira do ambiente um quadro, cuja
matriz - fílmica ou digital - é produto de um aparato
tecnológico automático. “O espaço fotográco não
é determinado, assim como não se constrói.
(DUBOIS, 2003, pp. 177-178) No recorte espaço-
temporal inerente ao ato fotográco, a imagem é
capturada de uma só vez pela câmera. Contudo, a
fotograa não depende apenas do instante em que
a foto foi gerada; ao contrário, esse momento é
o ápice de um processo instaurado anteriormente
pelo fotógrafo. Desde a escolha do aparelho, dos
objetos e a forma de captá-los, até as decisões
de formato, ampliação, dimensões e eventuais
manipulações da imagem. Então, se a fotograa
é uma imagem técnica, muitas vezes automática,
entre o ato fotográco e a superfície impressa
um fazer construído.
No entanto, a fotograa tradicional reproduz
tecnicamente o “modelo” de imagem sistematizado
pela pintura de origem renascentista. A câmera
fotográca deve sua invenção e funcionamento à
caixa preta, artifício utilizado pelos pintores para
a representação do espaço do mundo em uma
superfície plana. O uso da caixa preta vincula-se
tanto ao desenvolvimento da perspectiva clássica
na pintura quanto à invenção da câmera fotográca
alguns séculos depois. Não por acaso, a aparente
transparência do suporte na pintura renascentista
continua a ser exercida pela fotograa a partir
de seu surgimento no século XIX. O sistema
perspectivo está embutido no funcionamento
do aparelho. “O carácter aparentemente não-
simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com
que o seu observador as olhe como se fossem
janelas e não imagens. O observador cona
nas imagens técnicas tanto quanto cona nos
seus próprios olhos.” (FLUSSER, 1997, p. 33).
Tais códigos visuais, que descrevem o mundo
de um ponto de vista único, são historicamente
familiares. Tão conhecidos que acabam passando
despercebidos.
O mundo a ser representado reete raios que vão sendo
xados sobre superfícies sensíveis, graças a processos
ópticos, químicos e mecânicos, assim surgindo a imagem.
Aparentemente, pois, imagem e mundo encontram-se no
mesmo nível do real: são unidos por uma cadeia ininterrupta
de causa e efeito, de maneira que a imagem parece não
ser um símbolo e não precisar de deciframento. (FLUSSER,
1997, p. 33).
Assim, a fotograa exerce a função de representar
o mundo por meio de fórmulas visuais apreendidas
como se fossem a própria realidade.
Toda fotograa demanda um referente, algo
a ser fotografado. Esse referente é parte do
16
mundo contínuo, sem bordas, cuja totalidade
é inapreensível. O sistema fotográco devolve
ao mundo fragmentos visualmente organizados
dele mesmo. Enquanto mundo, a fotograa é
fragmento; quando nas mãos ou à altura dos
olhos, congura uma totalidade. Ela é um quadro
fechado, cujos elementos se articulam em relação
às suas bordas. Esse limite estruturante permite-
nos uma sensação de completude, entendimento,
conformidade. A fotograa apresenta o mundo
como linguagem, em que o real aparece traduzido
em código apreensível. Ou então ela nos engana.
Numa entrevista, Wim Wenders diz que o olho
um campo maior do que é possível à percepção
assimilar
3
. Justica, assim, seus óculos de bordas
bem demarcadas: constituem uma moldura a
contornar e organizar aquilo que é visto. Opta
por recursos para destacar uma parte, uma visão
possível da totalidade imediatamente inapreensível.
Olhos de cineasta a buscar quadros, frames,
recortes. Se o mundo não tem contornos denitivos,
a fotograa distingue-se dele, fundando um espaço
interior que é organizado pelas margens.
Além de separar e xar uma parte da continuidade
do mundo, o que garante uma organização própria
e autônoma, a fotograa reproduz um sistema
perspectivo decantado ao longo de séculos. A
câmera fotográca “imita” a visão de um ponto
de vista único, xo, o qual fomos preparados a
decodicar desde a Renascença. Isso somado ao
aspecto físico e químico envolvidos na origem do
aparelho fotográco propicia à imagem técnica
a identicação com um pedaço do mundo - a
fotograa carrega uma espécie de evidência da
realidade. Quando esse sistema de captura e
xação é aparentemente mantido na imagem, sua
hegemonia supera, em parte, as questões trazidas
pela câmera digital. Entre a imagem numérica e a
fotograa convencional há, pelo menos, um grau de
artifício a mais. Mas os códigos visuais continuam
a imitar, não a realidade, mas o funcionamento
da caixa preta através do qual entendemos ver o
mundo. Familiarizados com o sistema, usufruímos
dele como se fosse transparente. O sentido de
ver as coisas por meio da fotograa parece falar
mais alto que a percepção de seu funcionamento.
A não ser que a linguagem fotográca apresente
algum estranhamento capaz de transformá-la em
conteúdo visual trazido pela imagem.
Os registros dos trabalhos que apresento a
seguir consideram a tarefa de notar os códigos
embutidos nas imagens instaladas em diversos
lugares. A análise das imagens enquanto objetos
(sua materialidade, meio, montagem e conteúdo)
desdobra-se em relações especícas entre
obra e espaço expositivo. As reexões buscam
demonstrar a proposição das instalações para
desestabilizar a percepção ao criar ambigüidades
entre imagem e mundo.
17
3 Entrevista gravada no
filme Janela da Alma,
dirigido por João Jardim
e Walter Carvalho, Brasil,
2001.
Agora passaram uns instantes em que a
imaginação, como um inseto noturno, saiu da
sala para recordar os gostos do verão e voou
distâncias que nem a vertigem nem a noite
conhecem. Mas a imaginação tampouco sabe
quem é a noite, quem dentro dela escolhe
lugares da paisagem, onde um cavador revolve
a terra da memória e a semeia de novo. Ao
mesmo tempo alguém lança pedaços do passado
aos pés da imaginação; a imaginação escolhe,
pressurosa, com um pequeno lampião que move,
agita e mistura os pedaços e as sombras. De
repente deixa cair o pequeno lampião na terra da
memória e tudo se apaga. Então a imaginação
volta a ser o inseto que voa, esquecendo as
distâncias, e pousa na beira do presente.
Felisberto Hernández,
trecho do conto O Cavaleiro Perdido
(2006, p.45)
19
s o n h o
Gitta Seiler
22
sonho
2005
Ateliê 397, São Paulo
superfíce de alumínio sobre muro
8 x 10 m
23
CAMPO LUMINOSO
A instalação sonho, realizada no Ateliê 397, em
abril de 2005, é uma grande superfície reetora
formada por chapas nas de alumínio xadas no
alto do muro. Tomando a estrutura arquitetônica
do local como suporte, a obra altera-se constan-
temente, conforme a condição do espaço a céu
aberto. Não é senão um plano, porém atuante:
age ecoando a luminosidade proveniente do céu.
Constitui um campo que devolve as incidências
do tempo. Luz, calor, cor. A superfície de alumínio
é continuamente alterada em sua aparência,
sujeita às reexões da passagem do tempo e das
mudanças no espaço celeste.
Sonho funciona como um radar que capta ondas
luminosas, as variações do céu da cidade, os
acontecimentos do tempo. É uma superfície
sensível cuja aparência se modica aos olhos do
espectador. Penso na ação fotoquímica do papel
fotográco, mas sonho não xa uma imagem
e assim nunca termina seu trabalho. Seu agir
é inútil, não nalidade, apenas ecoa o uxo
de um espaço vazio: o céu. Em vez de um
mundo à parte, como uma imagem convencional
sustentaria, a superfície de alumínio ali instalada
mantém um diálogo constante com o tempo real,
o presente contínuo. Faz imaginar um aparelho
que transforma o tempo em visão especular.
Tal emanação atinge os sentidos do espectador;
conecta-o ao imenso vazio em constante
movimento que está além do alcance da vista.
No 397 a vista para o céu reduz-se a uma abertura
estreita: o comprido corredor é rodeado por
muros e paredes. Mas está a céu aberto. O espaço
contínuo, característico da atmosfera celeste,
aparece como recorte, como pedaço; uma visão
diversa da idéia de céu como algo espacialmente
ilimitado. A instalação da superfície reetora no
muro duplica, virtualmente, a entrada de luz dada
pela arquitetura. Ao reetir a luminosidade que
incide no muro, é como se houvesse ali uma nova
abertura. Um vão imaginário no muro. Imaginário
porque a superfície não ilude o olhar, apenas
sugere um buraco, uma estranha passagem de luz
entre blocos de concreto.
A superfície de aproximadamente 8 metros é
xada no muro de maneira a deixar aparentes as
emendas entre suas partes. O olhar percebe sua
instalação, o fazer da obra ca exposto. Tais sinais
indicam o processo de sua montagem. Sonho
traz, de forma evidente, sua materialidade. A
condição opaca dos tijolos de concreto cede lugar
a um plano brilhante. A textura e a concretude
do muro sofrem, à vista dos olhos, um corte. As
propriedades do alumínio captam luminosidades,
ou tonalidades, que não seriam visíveis sem a
instalação da superfície. O espelhamento parcial
da luz instiga a imaginação ao revidar sutilezas
cromáticas provenientes do céu, que variam no
tempo. A percepção do aspecto material das
coisas (o muro, o alumínio) contrasta com a visão
especular dos reexos na passagem contínua do
tempo.
24
Sonho é simultaneamente reexo e superfície,
sua materialidade torna visível o que escaparia
aos olhos. O alumínio utilizado é fosco, e sua
reação às condições do ambiente é parcial. Sua
superfície não se anula como num espelho. A
intensidade dos reexos é percebida conforme o
ponto de vista do observador, e depende da luz
externa, que varia a cada momento do dia. É
necessário que o visitante caminhe pelo corredor
do 397 e observe a instalação de diversos ângulos
para compreender os vários aspectos da obra. O
movimento do espectador pelo espaço acontece
na tentativa de abarcar sonho com a visão,
fazendo do olhar uma experiência do corpo todo.
As variações na aparência da instalação propiciam
um constante rever, pois aquilo que está para
ser visto não se mostra por inteiro de nenhum
ângulo possível.
O LUGAR DA OBRA
O Ateliê 397 é um local expositivo bastante
particular. Ao entrar, à esquerda, um muro de 10
metros de altura conduz quase automaticamente
a visão para o alto, e ela se depara com uma
faixa do céu. A condição de céu aberto, por
sua vez, inuencia qualquer ação ou objeto ali
colocado, submetido ao tempo e à luz natural. O
muro feito de blocos de cimento de um lado e as
janelas e portas de outro são também elementos
que inibem a suposta neutralidade comum aos
espaços amplos e brancos das galerias e dos
museus. Não adaptações de qualquer tipo
para que o ambiente expositivo venha a situar-se
como mais um cubo branco do circuito paulistano
de arte. Sem falar que a principal área disponível
para ocupação artística é um corredor - mede
aproximadamente 2 metros de largura por 11 de
extensão. Tudo isso transforma o Ateliê 397 em
um espaço de experimentações para o artista e
para o público.
algum tempo a arte ocorre em locais dotados
de características próprias: ambientes amplos
e fechados, sem interferências, com paredes
brancas e lisas. É certo que nos habituamos
a eles, aceitamos seus códigos legitimadores.
Dentro de um cubo branco a obra está protegida,
pois a especicidade do espaço físico assegura
seu estatuto de algo especial. Segundo O’Doherty
(2002, pp. 3-4), “a galeria ideal subtrai da obra
de arte todos os indícios que interram no fato de
que ela é “arte”. A obra é isolada de tudo o que
possa prejudicar sua apreciação de si mesma”; “o
mundo exterior não deve entrar, de modo que as
janelas geralmente são lacradas”. Contudo, por
razões que não vem ao caso explorar, a busca de
alternativas em relação ao cubo branco por parte
dos artistas já é bem situada na História, em
que não faltam exemplos de obras devidamente
reconhecidas. Land art e site specic, tão inova-
doras algumas décadas atrás, hoje são como
“modalidades” de arte, amplamente difundidas,
praticadas e institucionalizadas.
Ao notar a produção de arte contemporânea
em geral, sonho é mais um site specic entre
tantos outros. A instalação é fruto da observação
das particularidades do Ateliê 397, que não
deixa de ser um pedaço do mundo comum.
Sem adaptações para funcionar como anteparo
exemplar - uma parede branca, por exemplo - é
quase uma decorrência pensar a obra a partir da
especicidade do espaço dado. É parte do desao
proposto pela própria natureza do local expositivo
em sua arquitetura não especializada, pois o lugar
possui características notáveis a ponto de intervir
de forma contundente na experiência estética.
Assim, a superfície de alumínio mistura-se ao
espaço do Ateliê e dialoga com sua abertura para
o céu. Sonho toma o contexto físico do lugar como
conteúdo da obra. Surge então uma questão: se a
obra de arte insere-se na continuidade do espaço
da vida cotidiana, misturando-se ao mundo em
geral, o que garante a ela a distinção de obra de
arte? É possível fundar um “mundo próprio”, ao
compartilhar o mesmo lugar dos objetos comuns?
Como a arte mantém seu estatuto de coisa
especial nas práticas contemporâneas?
Esse problema coloca-se desde os primórdios do
século XX, quando a pintura recusa a condição
de “janela”, própria ao quadro renascentista cuja
estrutura estabelece a ilusão de uma realidade
paralela, fundando um espaço à parte dentro da
imagem. Ao assumir a condição bidimensional do
quadro, excluindo dele a profundidade projetada
por meio da perspectiva clássica, a obra torna-se
27
um objeto opaco e inaugura uma nova relação
com o espaço ao seu redor. Os dispositivos de
mediação entre a obra e o mundo, como as
molduras e os pedestais, caem em desuso, pois
o objeto de arte é visto em relação ao ambiente
e não mais como um “interior” independente do
espaço em comum. A idealização do cubo branco
foi essencial, pois o local expositivo passou a
funcionar como uma moldura para a arte. Em sua
especialização, a galeria distingue-se de um lugar
qualquer, o que garante à obra um espaço próprio
e legitimador.
Segundo Lorenzo Mammì (2004), no contexto
do modernismo haveria duas saídas possíveis
para manter a distinção entre um objeto de arte
e um objeto qualquer: “ou a estranheza da obra
em relação ao espaço comum deverá ser extraída
dela mesma, como uma consequência necessária
de sua conformação; ou as modalidades de
apresentação da obra (incluindo o espaço em que
será mostrada), serão elas mesmas especiais.
(MAMMÌ, 2004, p. 82)
Em relação à sonho tal distinção não é garantida
pelo espaço expositivo. Primeiramente porque
o 397 não possui as características de um local
previamente destinado a amparar um objeto
artístico. E, sobretudo, porque, nesse caso, a obra
e o espaço são indissociáveis. Ao requisitar o lugar
como conteúdo da obra, a instalação transforma
o próprio espaço do Ateliê 397 em objeto de
experiência estética, em um mundo à parte onde
a fruição da arte abarca o ambiente como um
todo. A superfície de alumínio ativa o vão aberto,
atrai o olhar para o alto, contrasta a materialidade
do muro em relação ao vazio do céu. Os reexos
anunciam eventos que não podem ser vistos por
completo, podem ser apenas imaginados. O lugar
da obra parece ser o próprio tempo.
DESVIO PARA A IMAGEM
A ambigüidade entre obra de arte e espaço comum
reete-se nos registros fotográcos da exposição.
Se esse relato instiga a imaginação de sonho,
muito devemos às suas fotograas. Entretanto,
tais imagens colocam a obra “entre parênteses”
separando-a do mundo em comum: ela passa a
ter bordas denidas e submete-se à conguração
de quadros fechados a serem contornados pelo
discurso. A instalação desdobra-se na memória
numa constante atualização da experiência da
obra.
As fotograas trazem uma inscrição decodicada.
A câmera captura um quadro do mundo e permite
apartá-lo de sua continuidade ou contexto. As
bordas da foto são limites claros, e dentro deles
a imagem organiza-se em um espaço familiar
aos olhos: o espaço da perspectiva clássica e
do ponto de vista único. A escala arquitetônica
do lugar, cuja percepção toma o corpo todo,
apresenta-se reduzida ao plano do olhar, das
mãos. A fotograa engana a percepção, colocando
a suposição - ou indício - no lugar da realidade.
28 29
Sendo assim, tomo as fotos de sonho como
artifícios que auxiliam visualizar a obra em um
espaço especial, um mundo à parte fundado
pela imagem. Na fotograa a diferenciação entre
arte e mundo em comum ca em segundo plano,
pois ela se distancia da experiência do corpo no
espaço, ao observar a obra se transformar com a
luz e o tempo. O registro fotográco não traduz
a sua complexidade: sonho altera-se conforme
as condições do lugar, modica-se aos olhos do
visitante como se a cor fosse paisagem. Diante da
superfície de alumínio, o olhar não mergulha em
suas relações internas, como numa imagem xa.
A qualidade reexiva do metal age conforme sua
exterioridade. A contemplação da obra perde-se
entre matéria e miragem. Tal experiência diverge
daquela que se encontra em uma fotograa.
Na superfície da instalação não imagem inscrita.
A percepção de sonho depende das reações das
propriedades materiais do alumínio em relação ao
seu entorno. O espectador avista sua emanação
sutil, impalpável. Os fenômenos ocasionados pela
obra não têm forma denida, não são guras
demarcadas. O olhar depara-se com um espectro
de luz, cuja aparência varia conforme o tempo e
o posicionamento, ou movimento, de quem olha.
O aspecto imaterial que a obra assume alterna
com a forte presença da superfície sobre o muro,
colada de maneira instável, deixando as emendas
aparentes. A visão busca a única gura possível:
o plano de alumínio sobre o muro. Nesse processo
dinâmico entre espectador, obra e espaço, o olhar
busca visualizar o todo, encontrar uma gura (o
contorno da superfície) sobre um fundo (o espaço
dado). Mas, por estar no alto, a superfície não
permite ser vista de frente. Ocupando toda a
extensão do muro, o espectador, sem recuo, não
pode apreendê-la de uma vez. É preciso reunir as
vistas parciais oferecidas pela obra na imaginação.
As fotos também registram vistas parciais da
situação. Assim como o espectador presente
na exposição, a câmera não pode alcançá-la
como um todo. O campo da obra é maior que
aquele possível à visão. A imagem está sempre
incompleta, estimulando o espectador - ou o leitor
- a preencher seus vazios.
“Eu mesmo, com meus olhos de agora, não a
recordo: recordo os olhos que naquele tempo a
olhavam; aqueles olhos transmitem a estes suas
imagens; e também transmitem o sentimento em
que as imagens se movem.” (HERNÁNDEZ, 2006,
p.44). Sonho é também lembrança, memória
plena de frestas, miragem luminosa cuja forma
indeterminada permite uma constante renovação.
É outra a cada piscar de olhos, reinventa-se à luz
de um mirante particular.
30
t a r d e
tarde (T04) tarde (T06)
tarde (T07) tarde (T10)
<<< tarde (T03), 2004
tarde (T09)
tarde (ST02) tarde (T08)
tarde (T05)
A LUZ COMO OBJETO
Essa série de fotograas retrata o desenho da
luz da tarde ao incidir em determinados lugares
construídos. As texturas e cores dos objetos
captados pela câmera revelam a luminosidade
reetida nas paredes, cantos, degraus e piso.
Nas imagens, áreas atingidas pela forte incidência
da luz foram subtraídas a partir da manipulação
digital, restando em seu lugar o branco do papel.
O enquadramento das fotos apresenta pedaços de
um determinado lugar em relação à luz da tarde. A
forte presença de linhas retas é determinada pelas
ortogonais, que caracterizam as edicações em
geral, onde a luminosidade - de natureza dispersa,
sem forma denida - se ancora. A luz toma a forma
das coisas e do ambiente. Em tarde, o espaço
fotografado é percebido como uma justaposição
de elementos geométricos. A intervenção digital
recobre a aparência de algumas das superfícies
retratadas, substituindo as texturas das coisas por
cores chapadas.
Esse processo sintetiza objetos fotografados
em formas planas: o triângulo ocupa o lugar da
parede, o quadrilátero é ora piso, ora muro, e
assim por diante. Por meio desses efeitos surge
um espaço ambíguo; uma tensão entre a ilusão
de profundidade espacial própria da fotograa e a
equivalência das formas sintetizadas no plano da
imagem. Se, por um lado, o olhar entrega-se à
sensação de profundidade do espaço fotografado,
por outro, percebe a imagem enquanto superfície
plana. Quando o muro se torna forma geométrica,
a profundidade dilui-se, mas não totalmente, pois
ele não deixa de ser muro. As imagens são feitas
de signos oscilantes, alternando entre representar
algo e incorporar a planaridade da forma.
A manipulação digital é engendrada com o objetivo
de manter a estrutura espacial da fotograa inicial,
em que a ilusão de profundidade se manifesta.
Mas as interferências trazem o que está no fundo
para frente, suspendendo alguns dos índices de
distanciamento entre as coisas. Envolvem partes
do espaço retratado com cor sem efeito de relevo.
Tudo parece beirar a superfície plana da imagem,
mas a ilusão de profundidade produzida pelo
aparelho fotográco resiste à planicação dos
objetos. A luz reetida, percebida pelas sombras
mantidas sem alteração, torna-se um objeto entre
outros.
36
>>>
tarde (T06)
(detalhe)
2005
impressão digital e acrílico
0,7 x 1,4 m
SUPERFÍCIE FOTOGRÁFICA
As imagens de tarde são originadas, manipuladas
e ampliadas por meio de aparatos técnicos digitais.
O fazer artístico é projetivo, baseado nos proce-
dimentos “imateriais” da computação. A feitura
dessa série é decorrente de uma mediação técnica
especíca: a ação de recortar, subtrair partes e
colar outras é realizada na imagem em estado
digital, disponível na tela do computador. Os
meios digitais permitem manipulações diversas de
forma a questionar o aspecto indicial
1
da imagem
fotográca. Enquanto é um arquivo digital, a
imagem está sujeita a novas congurações e,
quando adquire uma superfície material própria,
torna-se um objeto (concreto) de fato.
O recorte dado pelo enquadramento é o
momento decisivo para a realização de uma
foto. Em tarde os planos estruturam as imagens
e conformam seu caráter geométrico. Alguns
desses planos foram pintados digitalmente
com cores chapadas, derivadas da imagem
capturada pela câmera; cortes digitais destacam
certos elementos e apagam outros. Contudo, ao
observar tarde, é possível detectar diferenças
entre partes fotografadas e as outras, construídas
posteriormente. As interferências mostram-se
visíveis, pois a ação digital contrasta com as
partes preservadas da foto inicial - os campos de
cor chapada divergem das texturas das coisas. Sua
constituição não é imediata: a similaridade entre
as cores captadas pela câmera e as tonalidades
adotadas digitalmente quase esconde os sinais das
operações realizadas sobre a imagem original.
A intervenção feita nas imagens mantém a estru-
tura compositiva do recorte fotográco inicial. Em
vez de alterar sua organização espacial, acaba por
enfatizar a geometria trazida pelo enquadramento.
No entanto, as áreas de “cor digital” são lisas e
uniformes e indicam a alteração e a construção
da imagem. Ao ser manipulada, a realidade
atribuída à fotograa é questionada - a captura
da aparência do mundo é uma expectativa da
técnica fotográca convencional. Nesse sentido,
tarde distancia-se dos fundamentos da fotograa
baseada na xação automática de um instante no
tempo-espaço, denida por Dubois (1993) como
corte:
Como tal, indissociável do ato que a faz ser, a imagem
fotográca não é apenas uma impressão luminosa, é
igualmente uma impressão trabalhada por um gesto
radical que a faz por inteiro de uma vez, o gesto do
corte, do cut, que faz seus golpes recaírem ao mesmo
tempo sobre o o da duração e sobre o contínuo da
extensão. (DUBOIS, 1993, p. 161)
A partir das intervenções digitais então adotadas,
as fotograas abandonam a gênese automática
própria do aparelho fotográco e se aproximam
da concepção de imagem construída, manejada,
projetada e pintada.
O uso do aparato digital evidencia a complexidade
do meio técnico em relação à expectativa da
fotograa percebida como correlato do mundo.
Entretanto, as interferências sobre o processo
mecânico e químico sempre estiveram presentes
38
1 ... os índices são signos
que mantém ou mantiveram
num determinado momento
do tempo uma relação
de conexão real, de
con-tigüidade física, de
co-presença imediata com
seu referente (sua causa).
DUBOIS, 1993, p. 61. Para
um aprofundamento do
aspecto indicial da imagem
fotográca, ver pp. 45 - 53.
nas experimentações de fotógrafos e artistas;
o meio digital certamente amplia e facilita as
possibilidades de manipulação sobre as imagens,
mas também pode preservar a relação direta
entre a coisa fotografada e a imagem fotográca.
A simples captura de um fragmento espaço-
temporal realizada pela câmera no ato fotográco
resulta em uma imagem visualmente vinculada ao
seu referente (a não ser que o fotógrafo evite o
funcionamento inato do aparelho). A permanência
e a evidência do aspecto indicial na fotograa
dependem da natureza das intervenções e dos
procedimentos adotados em sua produção.
Tarde mantém, em partes intocadas das imagens,
o vínculo direto com o referente, próprio da
fotograa convencional. Tais pedaços guardam
a memória do ato fotográco, ao captar a
imagem daquelas paredes, frestas, cantos. Mas o
procedimento digital de recortar e colar, subtrair
ou cobrir, aplicado a algumas áreas da imagem,
expõe a sua natureza fotográca de maneira
duvidosa, dilacerada. Contudo, a intervenção na
aparência de alguns elementos fotografados não
altera a estrutura visual resultante da foto direta,
presente na matriz digital, ou seja, as imagens
não apresentam um espaço inverossímil, pois
mantêm a representação perspectiva do espaço
engendrado pela câmera. No entanto, parece que
um ruído na transparência do meio fotográco,
algo a ser decifrado pelo observador.
Em tarde a ilusão de profundidade não é negada
e sim problematizada. Os procedimentos digitais
não buscam apenas alterar a imagem inicial, mas
trazer à tona os códigos da projeção automática
que a fotograa opera ao xar um ponto de
vista isolado de um pedaço do mundo. A partir
da matriz digital, a composição é repensada e
reforçada em alguns aspectos. A manipulação
interfere na imagem a partir dela mesma: elege
algumas partes que se destacam em relação ao
todo. Essas assumem novas funções compositivas,
ainda que a estrutura inicial dada pelos elementos
fotografados permaneça. Por m, as partes
modicadas digitalmente enfatizam a estrutura
preexistente na fotograa, tornando-a explícita ao
espectador.
Os códigos visuais trazidos pela fotograa são
parcialmente desconstruídos. A imagem fotográca
é reprojetada. A perspectiva desenhada pelo
sistema embutido na câmera é tensionada por
elementos estranhos à fotograa convencional.
O que seria fragmento (o enquadramento da
foto, retirada de um todo maior) ganha ares de
totalidade. A presença latente do espaço contínuo
do momento e lugar em que a fotograa foi
subtraída - o fora-do-quadro
2
- se torna difusa,
quase ausente, diante dos sinais da manipulação
posterior. A imagem fotográca é então vista
como um quadro, uma unidade que se encerra no
limite de suas bordas.
A criação de novos desenhos na fotograa
estabelece ambigüidades entre o que continua
visível e o que ca encoberto. Tensionar o
espaço constituído automaticamente pela câmera
39
2 Fora-do-quadro ou
fora-de-campo designa
o contexto não visível no
enquadramento foto/cine-
matográco. A imagem,
captada pela câmera,
pode ou não oferecer
índices do espaço maior
do qual é separada. Para
uma abordagem mais
detalhada sobre o assunto
ver AUMONT, 2004, pp.
221-227.
é estabelecer estímulos para a percepção,
que evidenciam os mecanismos do meio em
que a imagem é originada. É também um
questionamento dos limites que denem uma
fotograa e a distinguem categoricamente de
outros processos de criação de imagens. um
embate entre os meios de naturezas diversas
(fotográcos e construtivos), travado na própria
concepção de tarde. Cada meio contradiz e
dissolve-se no outro.
O funcionamento do aparelho fotográco sugere
a vontade de reter, do mundo, sua aparência. Os
processos construtivos ligados à pintura, após
o advento da colagem, surgem do desinteresse
pela representação verossimilhante das coisas.
Entre a pintura e a fotograa, tarde contraria tais
funções e torna-se possível apenas num contexto
em que as prerrogativas convencionais de cada
modalidade se mostram desgastadas e em busca
de novas signicações.
tarde (T01)
2005
impressão digital e acrílico
0,7 x 1,4 m
41
DA IMAGEM À INSTALAÇÃO
A exposição enm, tarde reuniu algumas
imagens da série tarde. A partir das condições
especícas do local expositivo - uma das galerias
do Centro Britânico, em São Paulo -, os trabalhos
foram pensados com a intenção de propor uma
articulação entre obra, espaço físico e espectador.
As imagens expostas apresentam fragmentos
arquitetônicos: cantos, portas e corredores,
de certa forma, comuns a qualquer edicação.
Ao trazer para a galeria pontos de vista de tais
elementos, o espaço expositivo passa a ser notado
enquanto construção arquitetônica. As imagens
estabelecem, portanto, um diálogo com o lugar
e ativam o olhar para suas particularidades. Um
estímulo à percepção espacial, deagrado pelo
conteúdo das fotograas.
Nesse rebatimento entre imagem e espaço
algumas coisas acontecem. Por um lado, os limites
das imagens diluem-se, tanto pela escala de
alguns trabalhos quanto pela coincidência visual
entre representação e realidade: a parede do
lugar às vezes assume, na imagem, o papel de um
plano representado. Por outro lado, uma grande
diferença entre o espaço da obra e o da galeria.
Enquanto as fotograas retratam um lugar exposto
à luz do dia, aos desgastes do tempo e ao correr
da vida cotidiana, o espaço expositivo é reservado,
silencioso, protegido. Como um cubo branco: as
paredes são lisas e uniformes; a luminosidade
é dirigida; e o ambiente reduz as interferências
ao mínimo possível. A homogeneidade do local
expositivo contrasta com o espaço recortado, que
é trazido pela obra.
Nas instalações, as imagens são impressas em
grandes formatos e são adesivadas nas paredes, o
que resulta em situações arquitetônicas de “tama-
nho natural”. Parte dos quadros fotográcos é
subtraída (recortada), restando a própria parede
no lugar do vinil adesivo. Assim, a parede da
sala empresta sua imagem à obra e deixa de
ser apenas um anteparo para se tornar parte
da instalação. As bordas das imagens assumem
formatos “indecisos”, pois o espectador ora o
adesivo recortado destacado do espaço da sala,
ora vê a parede da galeria como parte da imagem.
A escala auxilia a imersão do observador no lugar
representado pela fotograa, mas o recorte da
superfície impressa inclui a realidade material da
parede - e da galeria - na percepção da imagem.
A estrutura arquitetônica torna-se imagem. Os
limites entre obra e local expositivo são alternados
na experiência visual do espectador.
As instalações de enm, tarde funcionam
como um jogo para a percepção. Às fotograas
digitais juntam-se áreas pintadas nas paredes.
São prolongamentos dos quadros fotográcos
ancorados na arquitetura da galeria. A obra
revela-se aos poucos, à medida que o olhar
percorre o espaço da instalação, que, ao mesmo
tempo, se mistura e se distingue do espaço da
sala. “Para dizer como Merleau-Ponty, a pintura
contemporânea “confunde nossas categorias”. O
42
detalhe da instalação porta
43
detalhe da instalação muro
que é obra de arte e o que é mundo numa obra
que alterna os dois aspectos?” (TASSINARI, 2004,
p. 161).
Em muro, o espaço aberto pelo recorte do adesivo
é justamente a área da composição que remete
ao piso do lugar fotografado. Isso gera um conito
na sensação espacial do observador, que vê a
parede vertical ocupar, no contexto da imagem,
um plano horizontal. Sem deixar de ser parte do
espaço arquitetônico efetivo, a parede assume o
papel de piso, pois é requisitada a participar da
imagem fotográca, cujo contorno é irregular de
um lado e encosta no canto da sala de outro.
Uma área pintada continua a imagem pelo outro
lado, incluindo uma segunda parede na visão da
obra. O canto é importante para esse trabalho,
pois ele neutraliza a fronteira que separa o lugar
representado (foto adesivada) e o lugar atual
(espaço da sala). A pintura que ocupa a outra
parede extrapola o limite da imagem, dado pelas
suas bordas, sugerindo sua continuidade. A área
pintada na parede estabelece conexões com as
partes cobertas por cores chapadas, presentes
na fotograa. Assim, muro acaba por gerar uma
situação em que espaço e obra estão duplamente
vinculados: o espaço efetivo “entra” na imagem,
pois se torna parte de sua superfície visível. No
entanto, a imagem gera um espaço ilusório a ser
percebido em uma síntese que invoca o ambiente
expositivo.
A outra instalação, intitulada porta, é também
realizada por intermédio de impressão digital
recortada e adesivada e pintura sobre parede.
Acaba por congurar relações espaciais entre obra
e espaço similares às descritas anteriormente.
Os limites laterais da imagem são recortados,
modulando a sua interação com o plano da parede
e se apropriando da estrutura arquitetônica que
congura o lugar da exposição. A pintura de uma
área geométrica que dobra o canto sugere algo
que estaria fora do quadro da imagem - uma
sombra ou cobertura - e, ao mesmo tempo, é uma
forma abstrata realizada na superfície da parede.
Em porta, a profundidade sugerida pela imagem
de um corredor é tensionada pelas áreas denidas
digitalmente dentro da fotograa e também pelas
relações advindas da instalação da imagem no
local expositivo. Ao percorrer, com os olhos,
o corredor proposto pela obra, o visitante não
isola o local em que efetivamente está, como se
a obra oferecesse uma vista ilusória fechada em
um quadro. Ao contrário, a simultaneidade da
percepção do espaço natural (efetivo) e ilusório
(da imagem), compartilhando um com o outro, é a
proposta de experiência instaurada pela instalação,
pois é justamente esse jogo de espaços - físico e
ctício - uma intervenção na percepção cotidiana
do observador. Por um lado, os códigos visuais
da imagem fotográca são tensionados pelo
procedimento digital, que é retomado na pintura
sobre a parede. Por outro, a adesão da imagem
no espaço da sala diculta a distinção entre obra
e mundo.
Muro e porta são instalações de parede. Feitas de
45
muro
2005
Centro Britânico, São Paulo
impressão digital adesivada e pintura sobre parede
2,2 x 3,3 X 4,5 m
46
vista da exposição enm, tarde
<<<
porta
2005
Centro Britânico, São Paulo
impressão digital adesivada e pintura sobre parede
2,2 x 2,2 x 0,4m
49
50
tarde (T01)
e detalhes >>>
imagens fotográcas e pinturas, são superfícies
(impressão sobre vinil adesivo) sobre outras
superfícies (paredes). Nelas, a parede física ocupa
a virtualidade de um piso, ou de outra parede,
participando das obras. uma articulação entre
a superfície do espaço expositivo e a superfície
instalada. A materialidade da sala confere à visão
do espectador uma realidade tridimensional que
contrasta e é somada à própria representação. Se
a estrutura espacial da galeria se torna imagem,
a imagem por sua vez ganha a espessura do
ambiente.
DA IMAGEM AO OBJETO
Nos painéis expostos em enm, tarde, as
interferências operadas nas fotograas em estado
digital foram novamente articuladas no suporte
material, gerando uma sobreposição de planos da
imagem em superfícies distintas. As fotograas
digitais foram impressas e adesivadas sob chapas
de acrílico transparente, de maneira a serem vistas
através de sua superfície material. Por detrás
51
da transparência do suporte, a idéia de “janela
fotográca” é reforçada pelo modo de apresentação
das imagens, que produz um contexto para a
explicitação dos códigos fotográcos - assunto
desenvolvido anteriormente. No entanto, surge
um plano material a ser explorado: a superfície
do acrílico. Partes recortadas da mesma imagem,
impressas em adesivos foscos, são coladas
sobre a superfície. O brilho transparente do
acrílico contrasta com a opacidade dos adesivos
colocados na frente, criando uma situação repleta
de interferências para o plano do olhar. A imagem
é vista entre o acrílico transparente, uma parte na
frente outra atrás. A materialidade e a espessura
do suporte são indissociáveis da imagem, o que a
torna um objeto. Os procedimentos construtivos
realizados durante a manipulação digital são
retomados pelo fazer manual sobre a superfície
material do painel fotográco.
Nas instalações, os recortes nas bordas do vinil
adesivado e a pintura feita nas paredes são
também desdobramentos das operações técnicas
realizadas sobre as imagens digitais. Os mesmos
procedimentos - cortar, cobrir, pintar, sobrepor,
subtrair - são repetidos em instâncias e materiais
diversos. O processo é compartilhado com as
imagens expostas; contudo, cada obra estabelece
uma relação particular com o espaço e com o
observador.
exposição latitude
2006
Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza
l a t i t u d e
painel fotográco utilizado na instalação fresta
54
ESPAÇOS MÍNIMOS
O vazio entre os pés de um armário, as distâncias
de um canto, a fresta de uma porta, as relações
entre os planos da estrutura arquitetônica. As
tomadas fotográcas da série latitude elegem
sinais retirados da convivência entre coisas e
espaços sobre uma base: o piso. Ao incluir o chão
no enquadramento, as imagens apresentam uma
linha deitada disposta de forma a sinalizar um
horizonte. São vistas de paisagens escondidas
pelos cantos da casa.
Assim como na série tarde, as imagens dos painéis
são manipuladas digitalmente: áreas de cores
chapadas são justapostas àquelas originadas
no aparelho fotográco. O campo da imagem é
redimensionado, as bordas laterais são ampliadas
conforme a organização interna da foto. Ao inserir
e pintar partes novas, a horizontalidade sugerida
pelo piso fotografado é enfatizada. O formato
retangular das imagens é expressivo: apresentado
dessa forma, um ambiente interno e fechado pode
ser imaginado como paisagem, de acordo com
a organização de seus elementos no quadro. A
idéia de paisagem aparece nas entrelinhas da
organização compositiva; a imagem apropria-se
de códigos identicados com a representação
espacial de uma vista panorâmica. Entretanto,
ao estruturar espaços e objetos construídos
como numa paisagem, o vínculo imediato entre
paisagem e natureza é ameaçado. Os objetos, a
luz, as cores de latitude contradizem a imagem
do que é percebido como “natural”. Em vez de um
55
espaço exterior, uma porta, uma parede, um
limite edicado. Mas a parede é um campo tão
bidimensional quanto o céu localizado em uma
fotograa ou pintura.
O foco em determinado detalhe espacial elimina
a possibilidade da imagem fotográca informar
a respeito do lugar retratado, restando apenas
as relações de proximidade e distância, objetos
e espaços vazios. Dessa forma, um chão indica
um plano no espaço sem dimensões denidas. O
olhar não se prende apenas na identicação do
objeto em si e suas particularidades, mas também
no seu posicionamento em relação ao quadro.
A horizontalidade - congurada por meio da
perspectiva fotográca somada às interferências
digitais - atravessa o sentido vertical do suporte
da imagem. Assim, latitude apresenta espaços
mínimos captados no cenário cotidiano para
imaginar o encontro de coordenadas referentes
à horizontalidade e à verticalidade. Com o piso à
altura dos olhos do observador, a escala do homem
em relação à arquitetura ca suspensa, e o espaço
de um metro pode assumir, na representação,
outras proporções.
Ao inserir novas áreas pelas bordas laterais das
fotograas, o espaço produzido pela câmera
apresenta-se modicado. Prolongar as margens
laterais do quadro com cores similares àquelas
captadas dos objetos permite que o ponto de
vista da câmera seja alargado, como numa vista
panorâmica. Não se trata de negar a ilusão de
56
profundidade. O olhar é estimulado a um duplo
movimento: adentra a fotograa - na qual a
perspectiva é mantida - e escorre para os lados. A
tomada das imagens à altura do piso resulta em
outras escalas de distâncias entre os objetos, e um
pequeno espaço ganha em amplitude. Contudo, a
percepção da alteração digital, evidenciada nas
laterais, não permite que as fotograas funcionem
como “janelas” exemplares; as interferências
evidenciam a condição de código visual dos
elementos da imagem: linha, plano, cor. Ater-se
a esses elementos é vislumbrar o próprio sistema
de representação espacial no plano bidimensional.
Se por um lado a manipulação da imagem revela
o piso ou a parede como planos construídos, por
outro, deixa à vista do observador os códigos
da representação visual. A interferência digital
aponta para a planaridade da superfície, para a
arquitetura dos planos no espaço bidimensional,
para a linha horizontal contida numa paisagem.
painel fotográco utilizado na instalação armário
painel fotográco utilizado na instalação planos
57
HORIZONTE IMAGINÁRIO
Cada painel da série latitude congura um quadro
híbrido, feito de fotograa e pintura digital. A
imagem impressa em papel fotográco é adesivada
sobre uma chapa na de PVC, instaurando um
espaço fechado, em que o interior se revela
esteticamente organizado. O jogo de forças entre
a planaridade da imagem construída e o efeito de
profundidade fotográca age dentro dos limites
do quadro. A interferência digital tensiona a
profundidade fotográca e vice-versa. Entretanto,
as obras não se encerram no interior dos painéis,
que se articulam com as pinturas realizadas nas
paredes do local expositivo, tornando-se parte de
um outro conjunto.
Nas instalações realizadas no Centro Cultural
Banco do Nordeste, em Fortaleza, os painéis
são dispostos à altura dos olhos do observador.
As pinturas feitas nas paredes prolongam
novamente as imagens, reiterando a intervenção
digital realizada anteriormente. Elas conferem
aos painéis novos contornos, agora irregulares,
baseados em formas geométricas que amplicam
alguns elementos, liberando-os da estrutura
compositiva retangular do quadro. As pinturas nas
paredes dão outra forma ao contexto de onde as
fotograas foram tiradas. Apresentam-se como
uma possibilidade de entorno e continuidade
ao recorte fotográco. Envolvem a superfície
fotográca, que se torna um núcleo pulsante.
60
painel fotográco utilizado na instalação latitude
59
<<<
latitude
2006
painel fotográco e pintura sobre parede
1,7 x 2,2 x 0,5 m
61
parede da galeria. Suas dimensões permitem a
obra chegar ao teto, apoiar-se no piso, dobrar-
se nos cantos. Entretanto, vistas em conjunto,
parecem utuar. O branco das paredes entre cada
instalação congura espaços vazados que parecem
não existir. Ao se prender nas guras (as obras), o
olhar anula o fundo (o espaço arquitetônico). “Em
tudo que é visto, assim, o ver é possível porque
o visto emerge de um fundo que se ausenta. E
se o olhar muda de posição, o não visto surge
na medida em que o antes visto é que agora se
ausenta.” (TASSINARI, 2004, p. 153).
Ao se ancorar no espaço expositivo, latitude tende
a abstraí-lo da visão, pois a escala das instalações
age como guras no fundo da sala. Ao mesmo
tempo em que ativa o local expositivo como
parte da obra, a disposição das imagens gera
uma oscilação que o neutraliza. A percepção das
escalas, distâncias e ortogonais estruturantes do
espaço são constantemente atualizadas na visão
do observador. O jogo de ver, entre obra e espaço,
paisagens arquitetônicas, confere à dimensão
imaginária a vista de um outro lugar.
Diante do piso localizado no interior do painel, a
pintura, ao seu redor, ocupa o lugar do mundo, o
ambiente de onde a fotograa surge.
As pinturas nas paredes fazem notar o espaço
em que são apresentadas: o espaço da galeria
e do espectador. Elas contornam os painéis
fotográcos sem lhes servir de moldura, pois
são também imagens e se mostram tão opacas e
planas quanto as paredes tomadas como suporte.
Em vez de separar a obra do espaço em comum,
elas conectam a verticalidade arquitetônica à
profundidade horizontal dos painéis. Ao utilizar a
superfície do local expositivo, as pinturas modulam
a passagem entre o interior do quadro fotográco
e o seu exterior, o espaço da galeria. Estabelecem
vínculos visuais entre dentro e fora (da obra).
Ao percorrer o espaço expositivo, o espectador
é estimulado a correlacionar as escalas do lugar
e as representadas, buscando os limites da obra
entre as paredes, o teto e o chão.
As instalações não conformam quadros fechados.
Com cores chapadas e contornos irregulares, são
guras sobre um fundo comum, que é a própria
armário
2006
painel fotográco e pintura sobre parede
2,8 x 2 m
63
planos
2006
painel fotográco e pintura sobre parede
2,85 x 1,85 m
66
fresta
2006
painel fotográco e pintura sobre parede
1,6 x 2,3 x 1,2 m
p a r e d e d u p l a
parede dupla
2007
pintura sobre parede
2,7 x 15 m
70 71
QUASE ESPELHO
Parede dupla inaugura em minha prática artística
algumas questões: a elaboração de um trabalho
permanente em um espaço não-expositivo e o uso
da câmera fotográca como instrumento para a
concepção do projeto. Ocupando uma parede de
15 metros de extensão, a obra é inteiramente
feita de pintura, e reapresenta o próprio espaço
arquitetônico do qual participa.
A pintura realizada diretamente sobre a parede
do local é composta por formas fechadas e
pintadas de branco, vários tons de cinza e
marrom-escuro. As cores usadas reproduzem
tonalidades presentes no ambiente: o marrom do
piso de madeira, o cinza das paredes brancas que
escurecem mais, ou menos, conforme a incidência
de luz. A pintura também se articula com a
construção: são paredes representadas sobre o
plano da parede real. Imagens reelaboradas do
próprio lugar; vistas de diversos ângulos da casa
vazia. Fotograas da parede a ser pintada foram
combinadas e reduzidas a linhas retas e oito cores
chapadas. A instalação emprega outras funções
à parede branca, ao transformá-la em suporte e
referente da imagem. Lisa e opaca como era, ela
talvez passasse despercebida, como fundo neutro
para objetos nela colocados.
A arquitetura do lugar conforma visões possíveis
de determinado ângulo ou parede; congura o
espaço, ao estabelecer um campo previamente
demarcado à percepção. O desenho espacial dado
pela construção dene fronteiras e passagens
para o corpo, para a luz e para o olhar. Ao ser
fotografado, o espaço demarca limites para a ação
da câmera, colaborando em sua denição. Sendo
um interior, seus contornos interferem na distância
e no ponto de vista a ser xado pelo aparelho. A
imagem fotográca é então desenhada a partir
das possibilidades visuais dadas pela arquitetura,
que é tomada como referente.
A sistematização da perspectiva renascentista e
da arquitetura clássica amplamente adotada no
ocidente há alguns séculos estão intimamente
ligadas. Não por acaso, ao arquiteto italiano
Brunelleschi se deve, “ao que parece, uma ...
descoberta no campo da arte, a qual dominaria
também toda a arte de séculos subseqüentes:
a da perspectiva” (GOMBRICH, 1999, p. 226).
Artifício que busca imitar a visão do homem a
experimentar a profundidade espacial do mundo,
tal método de representação serve-se de cálculos
matemáticos aplicados às formas projetadas
num plano. A arquitetura é um espaço racional,
com limites bem-denidos, um modelo ideal
para a aplicação da perspectiva clássica em sua
guração. Em parede dupla, a imagem pintada
é concebida com o auxílio de fotograas, mas
as partes captadas pela câmera são justapostas
como numa colagem ao longo dos 15 metros
ocupados pela obra. As linhas tendem a iludir que
haja um espaço duplicado na parede, mas as cores
chapadas negam a aparência de profundidade,
pois subvertem os efeitos das imagens que
sugerem determinadas distâncias. Contudo, sua
mágica funciona mesmo deixando o truque à
vista do observador. O efeito de ilusão espacial é
simultâneo à revelação de seus artifícios.
Nas fotograas que registram o suporte do
trabalho - uma parede contínua que se estende
por toda a lateral da construção - surge a imagem
do espaço contíguo ao plano vertical branco,
opaco. A idéia de que a foto da parede carrega
com ela aspectos espaciais da construção da qual
faz parte, torna-se visível, quase palpável. Tal
imagem traz consigo a distância entre o olho e
o plano. Com a pintura, tal distância é ampliada
virtualmente, como se a parede se desdobrasse
em duas: a concreta - suporte da imagem e parte
da arquitetura - e outra, pintada, que parece
estar mais atrás, ou vista pela diagonal. Assim,
o tempo também parece duplicar-se. A pintura
apresenta imagens do lugar captadas em diversos
momentos, anteriores àquele em que a parede
concreta é percebida. No mesmo plano misturam-
se a parede e suas vistas imaginárias, o passado
e o presente.
73
FOTOGRAFIA COMO PROJETO
Em parede dupla a fotograa foi utilizada como
instrumento de desenho: a pintura foi elaborada
a partir de registros fotográcos da casa vazia
durante a reforma. O projeto foi denido ao
selecionar, recortar e justapor as imagens do
plano arquitetônico a ser pintado, dando origem às
linhas, formas e cores estruturantes do trabalho. A
fotograa é empregada como elemento ordenador
da visão natural, a qual tende a esmaecer na
memória. A captura da imagem transforma em
signos permanentes as impressões efêmeras do
lugar, captadas em fragmentos, xando sensações
em quadros organizados. Imagens criadas pela
máquina e sujeitas ao seu programa: ao me
distanciar da casa fotografada, passo a ver o
seu espaço por meio dos recortes fotográcos.
Mas também imagino - as imagens captadas
misturam-se às impressões e intenções ocultas no
ato de fotografar.
Nos trabalhos anteriores, fotograa e pintura
sempre estiveram juntas, atuando como meios
complementares ou antagônicos entre si. Ao
eliminar a fotograa como objeto resultante
na obra, a pintura dialoga diretamente com o
contexto das fotograas usadas como base para
a composição. Imagem e superfície concreta
se fundem: a parede é o suporte de uma outra
parede, representada “dentro” dela. A pintura
desestabiliza a visão do espaço contínuo no qual é
pintada, desdobrando-o em outros planos.
A experiência visual depara-se com tempos
distintos decorrentes do instante fotográco,
colocados lado a lado, numa lógica seqüencial
ctícia em relação à estrutura arquitetônica. Mas
a percepção espacial do lugar não é xa, atualiza-
se continuamente nas correspondências que en-
contra entre imagem e lugar.
OBRA E CONTEXTO
O local da obra é uma residência, especicamente
o piso térreo de uma edicação de três andares.
Encomendada pelo arquiteto
1
encarregado pelo
projeto de reforma da casa, a parede pintada
percorre toda a área interna do térreo. As
interferências estruturais que haviam nela
foram retiradas para a execução da instalação,
tornando-se assim um plano contínuo de uma
ponta a outra da casa. Parede dupla faz parte de
vários ambientes e funções domésticas: desde a
entrada principal, onde estão cozinha e sala de
jantar, depois o hall com escadas internas e por
m o cômodo maior, uma sala ocupada por sofás,
estantes, lareira, televisão, som, entre outros
objetos. É uma casa geminada, e a parede lateral
estende-se da frente até o fundo da casa, sem
janelas, vigas ou frestas. Uma parede neutra,
“exemplar” como suporte para obras de arte.
A residência que acolhe parede dupla parece
uma pequena galeria, se consideradas as suas
75
1 Jorge Pessoa de
Carvalho, arquiteto e
urbanista formado em
1992 pela Universidade
Mackenzie.
características arquitetônicas (em parte, visíveis
nos registros fotográcos aqui presentes). O
espaço é circundado por paredes brancas e lisas,
que oferecem um ambiente propício para proteger
o objeto artístico do mundo afora. Porém, dotados
de funções domésticas claramente sinalizadas, os
espaços da casa diferem em muito de um lugar
especialmente destinado a exposições de arte. Tal
diferença não é dada pela aparência da construção,
como no caso do Ateliê 397, onde realizei a insta-
lação sonho. A estrutura arquitetônica do 397 é
avessa ao acolhimento de um objeto fechado em
si mesmo, congurado como um mundo à parte;
a singularidade do lugar incide sobre qualquer
coisa ali deixada, seja pela variação da luz e do
tempo, seja pela forte materialidade do muro tão
alto e tão próximo ao observador. Contudo, as
exposições do 397 guram em publicações que
divulgam o circuito artístico paulistano, inserindo-
se nele como um espaço expositivo atuante; tal
função torna-se legitimada pela presença da
obra, do artista, do público e da circulação das
exposições na mídia especializada. Trata-se de
um espaço físico não especializado, que funciona
como local expositivo devidamente inserido no
circuito de arte e se oferece como alternativa às
instituições já conhecidas ou tradicionais.
O espaço doméstico onde parede dupla se insere
reete nos objetos com os quais ela convive: a
geladeira, o sofá, o armário, a prateleira, a vista
da janela. Numa galeria ou instituição, essas
coisas estariam deslocadas do uso cotidiano e
tal operação seria a própria ação do artista. No
contexto de um domicílio, elas possuem certa
neutralidade em relação à pintura na parede,
pois são absorvidas pelo uso. A obra localiza-
se no âmbito do convívio diário, sem ressalvas.
Não moldura ou proteção; os espaços da obra
e do ambiente são indistintos. O diálogo entre
a pintura na parede e a arquitetura do lugar
acontece em meio à rotina da casa, eliminando
o público dos espaços expositivos. No entanto, a
pintura não pode ser reduzida a uma mercadoria
sujeita à circulação de bens privados, como
se transformaram tantas peças de museus e
coleções de arte. Pois ela requisita a participação
do lugar de tal forma que a obra perderia o sentido
originário se transposta para outro espaço.
Parede dupla encontra-se entre a arte e a
decoração de interiores. O contexto doméstico
é propício para confundir - em alguns casos,
aliar - tais categorias. De fato, a pintura feita na
parede ocupa o lugar de um trompe l’oeil (técnica
tradicional de pintura sobre parede utilizada para
enganar o olhar diante dos limites da arquitetura);
entretanto a obra em questão não pode ser
considerada como tal porque a imagem pintada
não ilude o olhar. Feita de cores chapadas, ela
sugere vistas a serem imaginadas ou encontradas
no passeio do olho pelo ambiente da casa, sem
negar a superfície plana e concreta da parede.
A pintura atua no sentido de desdobrar o plano
arquitetônico em visões ctícias, simultâneas
à sua própria opacidade. Assim, não oferece à
76
78 79
visão uma continuidade ilusória do espaço, mas
o espelhamento de vistas em tempos distintos de
apreensão do lugar.
Em vez de representar um espaço inexistente, a
pintura refere-se a uma percepção múltipla do
espaço e busca retratar relações visuais entre
o movimento apreensivo do corpo/olhar e as
variações de luz, distâncias e ângulos do espaço
construído. Se por um lado a obra se confunde
com a arquitetura e se mistura aos objetos
cotidianos e à rotina da casa, sem a “moldura”
protetora de uma instituição de arte, por outro,
cabe ao espectador eleger - ou experienciar - os
seus limites.
80
r e c e p ç ã o
o local, antes de recepção (acima), e durante a montagem >>>
84
VISTA ACIDENTAL
Assim como em parede dupla, recepção encontra,
no lugar em que é instalada, o tema e as imagens.
Agora o suporte da composição é uma parede de
3,5 metros de extensão e pode ser apreendida de
uma vez, com sua totalidade ao alcance do olhar.
Entretanto, o espaço ao redor do trabalho tem
função indenida entre passagem e espera; é a
sala de entrada de uma agência de publicidade
cuja edicação possui três andares. Localizada no
térreo, ca em um piso intermediário. Em frente
à parede-suporte da instalação, estão as escadas
que levam ao andar superior e ao subsolo. Cada
piso concentra uma função especíca (comercial,
mídia e criação) ao funcionamento da agência, e
eles são interdependentes. O pequeno cômodo
é instigante, pois é o centro do movimento e da
comunicação entre funciorios, visitantes, clientes,
vendedores, diretores, etc. Disposta ao lado da porta
principal, receão acena ao observador ocasional
ao menos duas vezes: ao entrar e ao sair da
agência. Dado o contexto genérico do lugar, a obra
coloca-se como acidente ao interceptar o sujeito
em sua rotina de trabalho.
Feita de pintura sobre parede e uma fotograa,
a composição é baseada em imagens tomadas
do percurso entre as escadas localizadas em
frente à parede pintada. Como em parede dupla,
novamente, a fotograa entra na concepção do
projeto, funcionando como instrumento de captura
e xação de fragmentos do lugar. Tais vistas
86
>>>
recepção
2007
pintura sobre parede e fotograa
2,8 x 3,5 m
maquete digital de recepção
9
parciais são recombinadas em um único plano.
Por m, recepção retrata o espaço arquitetônico
em novo arranjo visual, onde “pedaços” da escada
tornam-se imagens sintetizadas em um acordo
espacialmente impossível. A ordenação dos
degraus e a funcionalidade da arquitetura local
mostram-se desconstruídas na pintura instalada
na parede. Passagens retiradas do movimento pelo
prédio são vistas em imagens dispostas segundo
uma lógica visual própria da obra. Partes do
espaço efetivo são reconhecidas, mas encontram-
se submetidas a uma nova organização.
Ao reetir vistas do lugar, captadas no
deslocamento entre os andares, a experiência
visual prolonga-se da obra em direção ao reco-
nhecimento de determinados ângulos do percurso.
A conexão visual entre o espaço edicado e a
imagem instalada na parede do térreo estimula
a imaginação e a memória e ativa o olhar. O
espaço arquitetônico é representado na instalação
em uma combinação de fragmentos familiares
entre si, porém descontínuos; a cor, uniforme
em diversas áreas da pintura, liga desenhos que
reetem diferentes pontos de vista das escadas. A
pintura apresenta um espaço inviável em relação
ao espaço real; no entanto, ao ver isoladamente
certos elementos da composição, observa-se a
articulação entre a obra e a arquitetura local.
Recepção interrompe o aspecto funcional do
espaço e promove uma descontinuidade no uxo
64
89
incessante de imagens absorvidas através das
coisas. As relações entre obra e lugar traçam um
paralelo entre imagem e coisa, descolando-as e
interrogando a apreensão espacial.
JANELA MÚLTIPLA
As fotograas, de maneira geral, são quadros
fechados que aludem a uma profundidade inexis-
tente, dado que o suporte da imagem é plano.
Elas causam a impressão de uma superfície neutra
cuja “transparência” permite entrever o lado de lá,
um espaço projetado, ainda que ilusório.
A fotograa instalada dentro da pintura feita
na parede carrega funções e sentidos diversos.
Inicialmente, a metáfora da pintura naturalista
conrma-se na imagem da vista de uma janela.
Vislumbra-se um espaço externo, localizado do
lado de lá de uma construção; um vidro pelo qual
o olhar atravessa segundo sua transparência. Da
pintura emerge um quadro fechado cuja imagem
verossímil ilude o olhar diante do conjunto da
obra. A sensação de profundidade trazida pela
fotograa tensiona a planaridade das formas
pintadas em cores chapadas ao seu redor. Vista
separadamente, a pintura é feita de modo a
armar sua condição bidimensional, sendo os
tons claros e escuros dispostos sem efeitos de
volumetria ou profundidade. Se provocarem a
sensação de proximidade e distância, tal sentido
é reduzido diante da materialidade da parede,
evidenciada pelo método escolhido no fazer
pictórico. A ilusão de profundidade da janela
fotografada desestabiliza a evidência do suporte
concreto, instaurando-se no conjunto da imagem
pintada.
Se estivesse sozinha em uma parede branca,
talvez a janela fotografada iludisse menos o olhar
em relação à sua condição de objeto fotográco.
Dentro de um contexto engendrado pela pintura,
o artifício mimético da fotograa surpreende. O
fato de ser justamente uma janela duplica sua
capacidade de enganar o observador. Somado a
isso, a imagem é adesivada sob uma chapa de
acrílico transparente e possui dimensões próximas
às da janela que se encontra no caminho para o
andar inferior. O enquadramento da fotograa é
correlato à vista da janela ao descer as escadas, e
o acrílico que serve de suporte da imagem imita o
vidro. A representação confunde-se com a noção
de realidade, pois o objeto fotográco age como
um espelho da janela verdadeira. Mesmo não
estando uma em frente à outra, a identicação
de sua duplicidade acontece na imaginação do
sujeito ao se deslocar entre os pisos do prédio.
Assim, o espaço arquitetônico e o observador
são envolvidos na dinâmica da obra, em que a
fotograa simultaneamente aplica e revela seu
truque. Desvendar o jogo entre a natureza e o
artifício proposto por recepção é também deixar-
se enganar pela imagem e explorar os mecanismos
da percepção.
registro
da janela da agência
(acima)
detalhe da instalação
(ao lado)
90
9
91
A fotograa da janela é um forte indício da
concepção da obra em diálogo com o lugar. A
identicação das duas janelas similares leva
ao reconhecimento de outros elementos da
instalação em referência ao espaço físico. A
apreensão do lugar é confrontada pela imagem
de uma arquitetura desdobrada em outra. A obra
intercepta o sujeito, ao suprimir o estado palpável
e objetivo das coisas, para indiciar algumas frestas
possíveis no percurso.
d i v i s a r
registros da exposição divisar
95
implica, portanto, na relação entre os seres e os
objetos no espaço e no tempo.
A exposição divisar ocupa uma sala de aproxi-
madamente 48 m
2
e é formada pelo conjunto de
três trabalhos: uma pintura, uma instalação e
um objeto. Cada obra estabelece uma relação
especíca com o lugar, de maneira diferente
e complementar, o que gera certa cumpli-
cidade entre os trabalhos e o espaço em que se
encontram. A sala é incorporada como suporte e
superfície de imagens de outros lugares, tornando-
se parte da visualização das obras. A percepção do
espaço da sala e dos trabalhos expostos acontece
ao mesmo tempo e no mesmo plano. Ou seja, o
lugar não funciona como um fundo neutro para as
obras, pois elas dependem do espaço dado para se
congurarem na percepção do visitante. As obras
alteram a sensação espacial do ambiente sem
modicar sua estrutura física e imprimem ao lugar
uma virtualidade a ser atualizada pelo sujeito. A
divisa entre arte e mundo ca resguardada às
“entrelinhas” da experiência visual do espectador.
1 Trecho transcrito a
partir de entrevista de
Oliver Sacks disponí-
vel no lme Janela
da Alma, dirigido por
João Jardim e Walter
Carvalho, Brasil, 2001.
VER NAS ENTRELINHAS
“Eu teria muita diculdade de dizer onde está o
quadro que olho.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.18).
A questão de Merleau-Ponty encontra ressonância
nos estudos de Oliver Sacks. Segundo ele, “o ato
de ver e de olhar não se limita a olhar para fora, a
olhar o visível, mas também o invisível. De certa
forma, é o que chamamos de imaginação”
1
. Tais
armações implicam na idéia de duração inerente
à atividade do olhar. Não é possível ver tudo em
um golpe. A visão percorre a superfície das
coisas no tempo, uma parte de cada vez. Diante
de algo a ser visto, os caminhos tomados pela
percepção visual no ato de deciframento do mundo
compreendem ainda um instigante mistério.
Divisar, distinguir, notar. O nome da exposição
realizada no Centro Universitário Maria Antônia,
em São Paulo, refere-se à experiência do olhar
enquanto divisa entre o que se e o que é
visto. Uma vez que a percepção é um encontro
particular entre o sujeito e o mundo exterior, a
aparência é uma das chaves fundamentais para a
decodicação das coisas. Entretanto, a visão possui
limites, pois acontece no espaço e através dele. O
espaço, assim como o tempo, é uma estrutura que
permeia a relação entre o observador e os objetos;
a visão sujeita-se a distância, ao ângulo, à luz,
a altura. A imagem do que é visto é formulada
(produzida) a partir de tais condições e segundo
o repertório individual de cada um. A percepção
100
OLHAR PASSAGEM
Saída é o título dado à pintura feita sobre uma das
paredes da sala. Ao seu lado existe um elevador
em pleno funcionamento, o que congura certo
trânsito de pessoas pelo prédio: para utilizar o
elevador do 1o. andar é necessário atravessar
o espaço expositivo. O elevador é um elemento
ativo e funcional e contrasta com o isolamento e
o silêncio da sala, transformando-a em saguão
de espera e lugar de passagem. O ambiente
expositivo é percorrido no deslocamento entre
os andares do prédio, exercendo, portanto,
uma função estranha àquela de servir como
lugar neutro para exibição de trabalhos de arte.
Localizado dentro da exposição, o elevador
propicia a reexão sobre o emprego original da
sala, ao indicar as adaptações sofridas pelo prédio
- tombado pela sua importância histórica - para se
tornar um centro cultural.
A sala expositiva possui duas passagens: uma
porta e um elevador. A pintura feita na parede,
ao lado do elevador, ilude o olhar em relação a
outras passagens. São saídas impossíveis: uma
segunda porta, pintada com esmalte alumínio
brilhante, e um hipotético corredor que estaria
atrás da caixa do elevador. O batente da porta
pintado parece verossímil em suas proporções e
tonalidades, pois imita a passagem que de fato
existe na sala. No entanto, saída retrata algo
possível apenas no imediatismo da primeira visão,
no olhar despercebido, pois o brilho do esmalte
e suas pinceladas aparentes armam a condição
97
saída
2007
Centro Universitário Maria Antônia
pintura sobre parede
aprox. 4 x 4 m
99
plana da pintura feita na parede. A simulação
provocada pelo desenho (traço) da porta é um
artifício logo negado pelos sinais do fazer deixados
pela pintura, que estabelecem uma tensão entre
planaridade e profundidade na mesma escala do
espaço físico da sala.
Saída sugere uma imagem que interage com a
captura visual da sala em si mesma. O espaço de
passagem representado na pintura convive com
a percepção do lugar real sem a intermediação
de uma outra superfície a tornar a imagem um
objeto separado da parede, dos cantos da sala
e do elevador. Não “janela” porque não
quadro: as bordas da pintura coincidem com os
cantos arquitetônicos da parede. Nesse sentido,
a obra poderia ser vista como um trompe l’oeil.
Entretanto, a porta pintada incorpora a imagem
do elevador, real, em sua composição ctícia, e,
ao mesmo tempo, nega a ilusão de profundidade
sugerida pela pintura. O brilho do esmalte e as
marcas do pincel frustram a ilusão de passagem
pela porta representada. A experiência visual
alterna-se entre o espaço real e o representado,
atualizando-se continuamente. Basta alguém abrir
a porta do elevador.
Sem uma distinção visual entre obra e espaço, ou
seja, sem um limite que demarque e separe a arte
do ambiente ao redor, a observação da pintura na
parede incita a projeção imaginária da sala sem a
imagem ctícia da obra. (“Onde está a parede que
olho?”) A porta representada toma de empréstimo
a parede da sala e sua escala, a lógica espacial
do canto e do elevador, levando o observador a
imaginar o espaço tal como é, ou melhor, como
se apresentaria sem a passagem ilusória da porta
e do corredor ctícios. E, também, como seria
tal lugar, se a porta e o recuo da parede fossem
reais.
A pintura na parede propõe uma experiência
ambígua, pois o brilho da tinta utilizada e os
sinais aparentes do fazer da obra tensionam a
eciência do ponto de fuga e do claro-escuro
empregados na pintura do batente. O conteúdo
da imagem - parede, cantos, porta e corredor - é
compatível com a visão da sala e do elevador. Isso
permite que as duas instâncias se confundam e
se recongurem. A separação entre a realidade (o
ambiente expositivo) e a representação (a pintura
na parede) depende da experiência do visitante.
Como distinguir, na imaginação, a imagem
retirada do mundo e o mundo apresentado como
imagem?
101
o suporte em que se encontram. Localizadas em
uma chapa de acrílico na frente da caixa, o plano
das imagens ca 10 centímetros distante do plano
do fundo, onde estão áreas retangulares pintadas
com cores distintas. Cada retângulo é preenchido
no fundo da caixa com uma cor uniforme em
dimensões que coincidem com as das fotos na
frente da caixa. Assim, os planos da frente e do
fundo fundem-se na visão do objeto.
A apreensão visual de ruído acontece por meio
de suas camadas. Impressa em vinil transparente
adesivado sob o acrílico, a superfície fotográca
possui áreas translúcidas, que deixam o fundo
da caixa aparente. Às cores pintadas na parede
somam-se as sombras projetadas pela luz do
ambiente, que incide nas fotograas do plano da
frente. Assim, as fotograas inicialmente parecem
estar fora de foco, mas o movimento do corpo a
olhar o objeto descobre a interação entre plano da
frente e o de trás. As variações, segundo o ângulo
de visão, instigam o deslocamento do espectador,
que passa a rondar o objeto, e a distinção entre
os campos da imagem fotográca e suas sombras
revela-se aos poucos. A imagem estática da
fotograa se vê submetida ao intenso diálogo
entre o objeto do qual faz parte e as condições
do espaço ao seu redor. Sua quietude mostra-se
tremida; sua denição parece embaralhada. Não
se diferencia ao certo em qual plano se encontra
cada parte, o que impossibilita a decodicação
plena do objeto por meio da visão.
IMAGEM INSTÁVEL
A relação entre obra e espaço expositivo pro-
vocada pelo objeto fotográco ruído também
implica em um diálogo constante entre imagem
e ambiente, estabelecendo uma outra dinâmica.
duas imagens justapostas na mesma superfície
translúcida, que estão montadas na frente de uma
caixa pendurada na parede. Suas laterais, opacas,
são de madeira laqueada. O limite da obra é
sicamente demarcado pelo contorno retangular
do objeto: a caixa funciona como um quadro.
As imagens apresentadas são fotograas que
capturam a horizontalidade de um piso. Tal
profundidade (fotográca) logo encontra o plano
vertical de uma parede e um batente de porta.
Quase idênticas na forma, a diferença evidente
entre as duas tomadas é a luminosidade. Uma
clara, e, em seguida, a mais escura. A julgar pelas
linhas do piso, uma foto deveria ser a continuação
da outra, mas o fragmento do batente de porta
aparece duas vezes, sinalizando a dupla captura do
referente em condições adversas. Dispostas como
uma seqüência e impressas na mesma superfície,
as duas imagens justapostas ocupam um plano
único. Nota-se uma outra diferença entre as duas:
em cada fotograa um pedaço da composição foi
subtraído da imagem inicial, deixando formas
distintas se tornarem tão transparentes quanto
102
ruído
2007
Centro Universitário Maria Antônia
fotograa, aclico, madeira
e pintura sobre parede
0,7 x 1,8 x 0,10 m
Em ruído, nota-se a pequena distância entre
a imagem fotográca do plano da frente e a
parede pintada atrás da caixa, visível graças à
transparência do acrílico. A imagem resultante
da somatória de tais planos paralelos confunde
a profundidade efetiva (do objeto-caixa) e a
representada (na fotograa). O olhar detém-se
na primeira superfície que encontra, e mira um
espaço projetado e ilusório, mas a translucidez
de seu suporte permite atravessá-lo e alcançar a
parede. Assim, as duas instâncias da profundidade
relacionam-se na visão da obra: a gurada e a
literal. Tanto os planos quanto a distância entre
eles compõem a imagem vista pelo espectador:
as sombras das fotograas incidem nas cores do
fundo, estabelecendo um novo desenho que se
soma à pintura e às fotos. Se, por um lado, as
laterais de madeira da caixa atuam como moldura
que reforça o enquadramento da fotograa (e sua
separação em relação ao espaço ao redor), por
outro, a qualidade transparente do suporte da
imagem propicia uma interferência das condições
externas que incidem dentro da obra. Ao quadro
fechado da fotograa, supostamente autônoma
em relação ao local expositivo, contrapõe-se o
ruído causado pelo pequeno espaço físico contido
na caixa - nesses 10 centímentros de ar ecoam as
condições de seu exterior, o ambiente da sala.
105
imagem fotográca utilizada em ruído
entre pés
2007
Centro Universitário Maria Antônia
fotograa e pintura sobre parede
aprox. 2 x 8 m
PAISAGEM EDIFICADA
De costas para ruído, o visitante depara-se com
uma instalação de fotograa e pintura sobre
parede. Entre pés ocupa o plano mais extenso
da sala (8 metros) e é composta de três imagens
fotográcas e uma grande área pintada de uma
única cor, chapada. As imagens são apresentadas
em placas de acrílico transparente, mas, graças
ao branco da parede em que estão penduradas,
parecem superfícies opacas. Elas retratam
fragmentos de um lugar em que a captura foi
realizada com a câmera fotográca na altura do
chão - um assunto recorrente em alguns dos
trabalhos discutidos anteriormente. Sobre o piso
fotografado encontram-se pés de objetos móveis:
mesas, cadeiras, bancos, estantes.
As imagens fotográcas não estão ali para mostrar
o lugar de onde foram retiradas. Elas apontam
enfaticamente para um ponto de vista em relação
ao espaço, um lugar de onde se vê. Posicionar-se
no mundo de forma a estar com os olhos na altura
do chão não é comum, corriqueiro; no entanto, tal
visão é familiar ou reconhecível para a maioria das
pessoas. Trata-se de uma imagem potencialmente
construída, talvez guardada pela memória das
brincadeiras infantis. A surpresa - a experiência
provocada pela obra - não está xada nas
imagens, mas no conjunto de sua instalação:
o seu posicionamento no espaço da sala, suas
dimensões e altura, a transparência do suporte,
a pintura que conecta os pisos das imagens e o
piso da sala, a potência da cor. A verticalidade
ortogonal da parede é contaminada pela sensação
de horizontalidade gerada pela obra.
À altura dos olhos do visitante, uma linha horizontal
divide o plano da parede de um canto ao outro.
Ela coincide com o desenho do piso presente
nas fotograas, ligando as imagens entre si. O
alinhamento dos quadros fotográcos no espaço
é concebido a partir de seu conteúdo visual;
suas bordas são atenuadas pela transparência do
acrílico usado como suporte. Partes das fotograas
são subtraídas, por onde se vê o branco da parede
em que estão penduradas. Pequenas rachaduras
localizadas fora do quadro fotográco fazem
parte das imagens, e tornam evidente a sua
transparência. O plano que estrutura o espaço
expositivo passa a ser visto através dos quadros:
as partes subtraídas das fotos são paredes do
lugar fotografado; em seu lugar surge, como que
de dentro da imagem, a parede da sala. A imagem
funde-se na visão do espaço expositivo.
A cor ocre-alaranjada é usada para preencher a
área entre os pisos fotografados e o chão do local,
e mantém certa ambigüidade na distinção entre
pintura, fotograa e mundo. A função da cor é
conectar partes da obra ao espaço; ela refere-se
tanto ao piso representado nas fotograas quanto
ao piso real da sala. A grande área pintada na
parede enfatiza (e prolonga) a horizontalidade
advinda das fotograas e sugere a presença de
um elemento fundamental da paisagem - um
horizonte, um longe - na escala do ambiente.
108
Assim, a instalação parece criar uma ssura no
plano concreto da sala, que oferece uma sensação
oscilante entre interior e exterior. Diante de entre
pés, o espectador não sabe se se depara com um
fora ou um dentro, pois, ao contemplar a obra,
participa de um estado de suspensão do espaço
físico.
A instalação atualiza constantemente as pro-
porções do espaço da sala na percepção. O
espectador um piso na altura dos olhos e sente-
se como se o olhar estivesse no plano do chão; as
dimensões do espaço ao redor parecem alterar-se
conforme o seu ponto de vista. Ao se movimentar
pela exposição, aproxima-se e toma distância da
parede, busca um ângulo confortável e a xidez da
imagem, uma gura sobre um fundo. O horizonte
ora está perto, ali mesmo, pintado na parede, ora
está longe, na imaginação da memória de uma
outra edicação. A obra joga com a sensação
espacial do sujeito, ao desestabilizar a imagem
do espaço em que ele se encontra. A visão da
realidade da sala vai sendo recongurada, uma
vez que o visitante busca por alguma clareza,
estabilidade ou equilíbrio, ativando as “divisas”
do olhar.
110 111
p a i s a g e m s u s p e n s a
114
série lago
2003
impressão digital
9 fotos de 20 x 30 cm
EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO
À primeira vista, a associação entre paisagem e os
meus trabalhos pode parecer descabida. A forte
presença de linhas retas, formas geométricas,
racionalizadas e projetadas - que caracterizam
as obras em questão - em nada remetem aos
elementos orgânicos e arbitrários genericamente
associados à natureza
1
, e, conseqüentemente,
ao termo paisagem. Assim, nessas linhas nais,
pretendo apontar as relações signicativas entre o
título desta dissertação e os conteúdos levantados
no transcorrer do texto. Dado que tais argumentos
desdobraram-se a partir de experiências plás-
ticas recentes, parece pertinente esclarecer o
desenvolvimento do interesse pela paisagem em
minha trajetória.
Considero a série lago, de 2003, minha primeira
experiência signicativa com a fotograa.
Realizada no Parque do Ibirapuera, em São Paulo,
a sessão de fotos visava o registro imagético do
lugar para servir como suporte de um projeto de
intervenção no local. Ali, no parque, o imediato
desejo de xar a “miragem” instaurada na
superfície do lago foi frustrada: a câmera não
pôde traduzir o movimento e o tempo implicados
na percepção do (des)aparecimento dos reexos
na água. Tais sensações visuais dependem de uma
presença, uma duração, e vão além dos limites de
um quadro ou “recorte” do lugar. A superfície da
água reete as condições do ambiente do qual o
lago faz parte, traduzindo qualidades do espaço ao
redor - a vegetação na outra margem e a luz do
céu - numa base líquida. A vontade de levar para
o âmbito da arte tal “imagem-acontecimento” não
se deu por meio das imagens fotográcas, mas
acabou por inspirar a realização da instalação
sonho.
Nas fotograas do lago do Ibirapuera, o vazio
na imagem captada pela câmera, em relação à
experiência visual no parque, traduz-se por áreas
brancas inseridas (ou subtraídas) dentro do quadro
fotográco. Tais planos esvaziados dialogam com
as bordas das imagens, rearmando seus limites
e também direcionando o olhar do observador. As
partes brancas impõem um novo enquadramento,
onde buracos ortogonais ressaltam a qualidade
luminosa da água, e reorganizam a paisagem
fotografada. Como molduras dentro da imagem,
tais interferências digitais discutem o olhar e o
corte fotográco e contrastam a objetividade
da ação humana com a visão subjetiva de certa
natureza.
O meio fotográco abriu novos caminhos para
a minha prática artística, ao incluir imagens
retiradas do mundo nas operações plásticas que
vinham sendo realizadas por meio da pintura.
Os recursos digitais da fotograa foram mantidos
no desenvolvimento de trabalhos posteriores,
de forma a realizar os procedimentos pictóricos
115
1 Rero-me à natureza
em seu sentido cotidiano,
como sendo um conjunto
de elementos não cons-
truídos pelo homem.
Um aprofundamento do
conceito de natureza o
caberia nesse estudo.
no computador, que resultaram na construção
de imagens híbridas. Mas a produção não se
restringiu às imagens enquanto quadros fechados
cujo interior se coloca de maneira autônoma em
relação ao seu exterior. A poética do trabalho,
ainda que composta de objetos essencialmente
bidimensionais, foi sendo realizada como uma
busca em direção a outro espaço.
Desde a experiência de fotografar, a relação
ambígua entre imagem construída (obra) e
imagem natural (mundo) estabeleceu-se, em
minha produção, como um problema inquietante.
Em contraste com a percepção espacial do
mundo, os limites da imagem xa tornaram-se
claros. Assim, passei a trabalhar de acordo com
tal consciência e a jogar com a materialidade
da imagem; no entanto, as obras puderam
ser pensadas articuladas com a natureza que
as rodeia, ou seja, o espaço do lugar no qual se
inserem.
O suporte é a primeira instância de um espaço
para a imagem construída. Ele determina as
dimensões do quadro e é um meio no qual (ou
para o qual) a imagem é elaborada. As primeiras
pesquisas ligadas à superfície, em meu trabalho,
tratavam de propor uma interferência na imagem,
ao realizar cortes (manual e digitalmente) nos
quadros fotográcos, que deixava aparecer o
suporte material como parte da obra. Ao requisitar
o espaço expositivo como suporte das imagens,
o jogo de superfícies antes restrito ao objeto
estendeu-se para fora do quadro, alcançando um
diálogo efetivo entre obra e lugar por meio da
experiência espacial do espectador.
VISÃO E PAISAGEM
“... não se pode falar em paisagem a não ser
a partir de sua percepção. Diferente de outras
entidades espaciais construídas por meio de um
sistema cientíco e simbólico como o mapa, ou
sócio-cultural como o território, a paisagem se
dene como espaço percebido. (BLEY, 2006, p.
105). Assim, a paisagem distancia-se da imagem
da natureza na medida em que sua denição
desloca-se do objeto em si: “a visão, tão essencial
à percepção da paisagem, não se limita a receber
passivamente os estímulos externos, mas os
organiza para lhes atribuir sentido (interpretação).
Daí o reconhecimento de que a paisagem é
também culturalmente construída. (CABRAL,
2006, p. 136-137).
De uma forma geral, nos trabalhos aqui tratados,
as imagens ancoradas na arquitetura tomam
de empréstimo sua materialidade, sua escala,
seu contorno. Ao assumirem as características
espaciais do local como parte da obra, ativando
a percepção, as instalações misturam-se à apa-
rência do lugar e aproximam-se do conceito de
116
paisagem. O observador ocupa o mesmo espaço
da obra, e, ao mesmo tempo, não deixa de ser
um elemento externo a ela. “Na experiência do
lugar existe a sensação comum de familiaridade,
enquanto que na experiência da paisagem somos
pessoas que estão fora da cena.” (HOLZER, 2006,
p. 119). Considerando que as obras apresentadas
operam na lógica da colagem de espaços distintos
(arquitetônico, representado, imaginário, ilusório,
físico, simbólico, etc.), elas articulam o conceito
de paisagem como “uma porção do espaço
apreendida com o olhar” (CABRAL, 2006, p. 136).
O espectador, imprescindível nessa relação entre a
obra e a idéia de paisagem, alterna os diferentes
espaços ao perceber e (re)construir a visão de tal
“paisagem suspensa”.
Pelos sentidos, inventamos um mundo particular.
Ao reetir e relatar a experiência de minha
própria produção, imagino um observador ideal.
A percepção, subjetiva, surge no texto de forma
organizada e sistematizada. Ao que parece, o
meu olhar passa a funcionar como uma lente, um
constructo especíco para uma abordagem possí-
vel da poética visual em pleno desenvolvimento.
O presente estudo, por m, surpreende-me ao se
revelar um tiro no escuro.
117
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119
120
a g r a d e c i m e n t o s
Ao estímulo de Marco Giannotti, que me mostrou o lugar de onde pude imaginar um horizonte.
À generosidade de Ana Maria Tavares, cujas contribuições foram imprescindíveis.
Às colocações precisas de Alberto Tassinari sobre este projeto.
Aos que gentilmente cederam entrevistas úteis à pesquisa: Sônia Salzstein, Lorenzo Mammì,
Albano Afonso e em especial Carlos Fajardo e Gilberto Mariotti, cujas colaborações foram além das
entrevistas.
À presença e cooperação dos amigos: Alexandre Marsiglia, Alice Hosoi, Ana Karina Moreno, Ana
Paula Carvalho, Antônio Goper, Bruna Costa, Carolina Soares, Clarisse Alvarenga, Clarissa Metzger,
Fernanda Barcelos, Fernando Barba, Gitta Seiler, Heloísa Espada, Henrique Parra, Inaê Coutinho,
Ionit Zilberman, Jorge Pessoa de Carvalho, José Bernnô, Juliana Miranda, Juliana Yue, Lúcia
Machado, Marina Guzzo, Nilton Knabben, Otávio Kovacs, Rafael Oliva, Renata Guarido, Rosilene
Fontes, Saletti Barreto, Sandra Pereira e Valentina del Rio.
Ao apoio de Norma, Eduardo, Sabrina e Pedro, e por serem quem são.
Ao carinho de André Hosoi, com todo meu amor.
cantos, 2007 >>>
PROJETO GRÁFICO
Fabiana Queirolo
REVISÃO DO TEXTO
Sandra Pereira
CRÉDITOS DAS IMAGENS
Fabiana Queirolo
Gitta Seiler (p. 22)
André Hosoi (capa)
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2008
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