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A REVISTA DO BRASIL:
UM DIAGNÓSTICO
PARA A (N)AÇÃO
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador
Antonio Manoel dos Santos Silva
Diretor-Presidente
José Castilho Marques Neto
Assessor Editorial
Jézio Hernani Bomfim Gutierre
Conselho Editorial Acadêmico
Antonio Celso Wagner Zanin
Antonio de Pádua Pithon Cyrino
Benedito Antunes
Carlos Erivany Fantinati
Isabel Maria F. R. Loureiro
José Roberto Ferreira
Lígia M. Vettorato Trevisan
Maria Sueli Parreira de Arruda
Raul Borges Guimarães
Roberto Kraenkel
Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Editor Executivo
Tulio Y. Kawata
Editoras Assistentes
Maria Apparecida F. M. Bussolotti
Maria Dolores Prades
A REVISTA DO BRASIL:
UM DIAGNÓSTICO
PARA A (N)AÇÃO
TANIA REGINA DE LUCA
I
a
Reimpressão
Para Marcos e Mariana
O Brasil ainda é uma horta, Rangel, e em horta,
o que se quero cebolas e cebolorios, coentros
e couves tronchudas, tomates e nabo branco
chato francês.o somos ainda uma nação,
uma nacionalidade. As enciclopédias francesas
começam o artigo Brasil assim: "Une vaste con-
trée...".o somos país, somos região. O que
há a fazer aqui é ganhar dinheiro e cada um que
viva como lhe apraz aos instintos.
Monteiro Lobato
(1882-1948)
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi originalmente apresentado como tese de
doutoramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade deo Paulo. Gostaria de expressar
meus agradecimentos à banca examinadora, constituída pelas pro-
fessoras doutoras Anna Maria Martinez Corrêa, Annatereza
Fabris, Maria Helena Rolim Capelato e Maria Lígia Coelho
Prado, pela leitura rigorosa. A professora Maria de Lourdes
Monaco Janotti devo muito mais do que a orientação segura.
PREFACIO
O estudo de publicações periódicas tem atraído a atenção de
pesquisadores interessados no conhecimento e na avaliação da
produção intelectual de determinados períodos de nossa história.
Por suas características próprias, essas publicações seqüenciais
podem proporcionar ao estudioso as possibilidades de vislumbrar
quais seriam os temas de interesse na época, a maneira como foram
abordados, quem eram seus autores e quem eram seus leitores.
A escolha da Revista do Brasil, enquanto veículo condutor de
idéias de um grupo, como parâmetro para o conhecimento da rea-
lidade histórico-social do momento de sua produção, enquadra-se
nessa perspectiva representando um grande desafio ao pesquisa-
dor, desafio este que a autora enfrentou e superou, ao apresentar
um trabalho exemplar.
Conforme a autora relata, a revista teve um longo percurso,
do qual o livro trata da primeira fase, de 1916 a 1925, tendo sido
analisados 113 volumes. Em sua leitura, Tania dirige suas aten-
ções para a questão nacional, tema que tem um significado espe-
cial para esse momento histórico, no qual esteve presente a
celebração do centenário da Independência. A proximidade da
efeméride provocou a discussão da questão da nacionalidade. No
âmbito internacional, os acontecimentos que envolveram o
mundo numa guerra de grandes proporções incitaram igualmente
outros questionamentos. Foram projetados, então, alguns temas,
em torno dos quais aglutinaram-se autores dispostos a expor suas
idéias. Tais autores, reunidos na Revista do Brasil, estiveram iden-
tificados com a intelectualidade paulista liderada especialmente
Júlio de Mesquita e, posteriormente, Monteiro Lobato.
A considerar o tema, objeto das atenções dessa análise, a
nação, a autora situa as proposições em torno de quatro linhas
fundamentais - História e Geografia, Etnia, Ciência e Língua -
como elementos definidores daquele objeto. Tania procura iden-
tificar a autoria da revista, abrindo sua análise para uma percep-
ção de um projeto político-cultural. Além disso, faz um percurso
pela história editorial durante o qual sua narrativa informa ao lei-
tor as condições da produção, da atuação de seus editores e as rea-
ções dos leitores.
A partir da seleção desses temas inicia um trabalho de análise
dos artigos produzidos respaldando-se em rica bibliografia, com a
qual dialoga e complementa sua fala. Utiliza, dessa forma, uma
metodologia pela qual analisa os textos em questão, aponta para
uma série de outros temas sugestivos para novas investigações e
faz quase que um balanço do estado atual da produção científica
em cada caso, sem perder de vista, no entanto, o fio condutor.
Além da contribuição de sua análise, seus comentários de pé
de página e informações bibliográficas configuram a presença
simultânea de dois trabalhos - o primeiro, resultante da análise
dos textos selecionados e da ação editorial; e, o segundo, resul-
tado do diálogo com a bibliografia e as fontes de referência.
Assim, o leitor tem em mãos preciosas referências aos temas em
discussão. Uma outra perspectiva que o trabalho oferece ao leitor
é a da documentação gráfica, a apresentação de imagens, com
reproduções de capas da revista, da composição de seus sumários,
ilustrações etc. A bibliografia final descreve o percurso das edições
trabalhadas.
As linhas escolhidas, e queo o direcionamento da análise
da visão de nação, estão plenamente encaixadas no desenho de
um projeto político-cultural. Desde o nome da revista - Revista do
Brasil -, projeto de intelectuais paulistas, com o objetivo de tratar
de seu país, em sua totalidade voltado para a busca das origens,
ressaltando o alcance da ação deo Paulo, fundamentada na sua
história e na sua economia. Nesse sentido, essa visão se aproxima
muito do projeto dos republicanos paulistas, produto de políticos
propondo soluções nacionais.
A leitura da Revista do Brasil é reveladora de uma intelectua-
lidade cuja produção ocorre num período de crescente urbaniza-
ção e industrialização, com uma ação marcante de novos agentes
sociais, estando presente uma concepção de modernidade. O
livro, a par de nos proporcionar uma visão dessa intelectualidade
que viveu e registrou momentos do modernismo, contém infor-
mações importantes a respeito de nossa história editorial, além de
apresentar uma proposta de método de análise histórica de publi-
cações periódicas. Ao restringir a análise à fase inicial da revista,
Tania de Luca cria a expectativa de continuidade para A Revista
do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação.
Anna Maria Martinez Corrêa
o Paulo, janeiro de 1999.
SUMARIO
Introdução 17
1 Revista do Brasil: redespertar da consciência nacional 35
Concretização de um projeto 46
Monteiro Lobato: empresário da cultura 60
2 História e Geografia: revalorização da Nação 85
Juventude do Brasil 87
Bandeirantes do futuro 98
3 Etnia: um desafio para a construção da Nação 131
Arqueologia do preconceito I 33
Estigma da mestiçagem I 56
4 Ciência: solução do problema nacional? 185
Índole dos brasileiros I 8 7
Higiene e eugenia 202
5 Língua: edificação da cultura nacional 239
Rompendo os grilhões coloniais 242
O modelo nacional paulista 260
Considerações Finais 297
Referências Bibliográficas 309
INTRODUÇÃO
Quando da flor passarmos ao fruto, é que
se poderá estimar a missão histórica da geração
nascida na República ou pouco antes. É a gera-
ção da cultura geral e da especialidade, a que
ausculta o Brasil, a que lhe estuda a geografia
humana e a história social. Nas outras, as que
floriram do Primeiro Império até os últimos
anos de agora, há espécimes notáveis, persona-
lidades de relevo e de valor real, mas esparsas,
sem conjunção, desarticuladas. A nova é um
todo: ama-se e compreende-se; tem idéias e
quer lutar por elas ... quer lutar contra os males,
os maus hábitos, o mau ensino, ass organiza-
ções, o parasitismo, os vícios ... quer levar todo
o Brasil ao trabalho, à confiança em si mesmo,
ao balanço das suas virtudes e das suas misérias,
à lenta e enérgica terapêutica do seu organismo
gigante mas doente ... É a geração que nasceu
pobre, porque os paiso tiveram escravos e,
por isto mesmo queo contou com o trabalho
alheio, é a primeira que vive por si, a que veio
mostrar a assombrosa capacidade do brasileiro
para a vida. E a geração que ... cogita da volta
da alma brasileira aos seus hábitos tradicionais
de austeridade sadia e de rigidez de caráter ...
Outro traço que distingue a nova da velha men-
talidade é que os nascidos em 1860 queriam ser
tidos como notabilidades, como homens bem-
falantes, como gente de brilho e bom tom, e a
nova mais se esforça por saber realmente e por
valer por si, sem os enganos da opinião condes-
cendente e conquistável. Daí a conseqüência
prática: na velha geração houve e há capacida-
des, na jovem competências. (MIRANDA, P. de.
A nova geração. RBR, v.21, n.81, p.82-3, set.
1922, grifos no original).
A intelectualidade do início do século XX obstinadamente
refletiu sobre o Brasil, intentando abarcar sua especificidade.
Desse esforço resultou um amplo conjunto de representações que
instituíam problemas, imaginavam soluções e acalentavam dife-
rentes sonhos e projetos de futuro. A análise das várias interpre-
tações produzidas permite divisar os parâmetros a partir dos
quais essa intelectualidade elaborava sua visão de mundo, o arse-
nal analítico que manejava e a missão social e política que se auto-
atribuía.
Em determinados períodos, marcados por conjunturas de
crise, transformação ou ruptura, esse debruçar-se sobre o país
torna-se quase uma compulsão. A busca dos elementos fundantes
da nação, a construção de uma identidade capaz de particularizá-
la no confronto com o outro, o esforço para compreender a natu-
reza de sua inserção no contexto internacional e para perscrutar
potencialidades a serem concretizadas no futuro, parecem ganhar
um sentido novo.
Octávio Ianni (1992, p.8) privilegiou três momentos - Inde-
pendência, Abolição e República, Revolução de 1930 - a partir
dos quais "o Brasil foi pensado de modo particularmente abran-
gente". Ainda queo haja unanimidade quanto à escolha, seria
possível argumentar em favor da inclusão, por exemplo, dos anos
20 ou da década 1954-1964; poucos discordariam que em todos
esses momentos a intelectualidade outorgou-se a capacidade de
explicar a realidade nacional e de propor projetos que (re)coloca-
riam o Brasil nos trilhos.
Trem, velocidade, trilhos - potentes símbolos da modernidade,
do progresso e da racionalidade burguesa - foram mobilizados,
especialmente no início do século XX,o em sua positividade, mas
enquanto imagens síntese do que nos faltava. As metáforas do des-
carrilamento, deriva ou descaminho eram recorrentes nos ensaios
que procuravam dar conta da nossa situação. A idéia de que o país
perdeu-se em alguma parte do caminho - teria alguma vez pego a
estrada correta? - trazia subjacente a concepção de que ele carecia
de bons condutores, esclarecidos e informados quanto aos rumos
a seguir (Capelato, 1989, p.139-41), pré-requisitos dotados de
um caráter nitidamente desqualificador e excludente. Tais ima-
gens também foram utilizadas para reivindicar e ou justificar a
necessidade de um dirigente forte, apto a agir pronta e decisiva-
mente, o que de qualquer modoo dispensava a existência de
um programa.
Assim a elite intelectual apresentou-se, em diferentes momen-
tos, investida da missão de revelar a verdadeira face da nação e de
traçar as suas linhas de força para o futuro. O credenciamento
para a tarefa proviria de uma suposta qualificação para desvendar
as regras de funcionamento do social e desse modo formular, a
partir de dados e critérios objetivos, políticas de ação. Tal direito
sempre lhe pareceu algo evidente, que dispensava qualquer tenta-
tiva de justificação.
Na historiografia brasileira a geração de 1870, assim como os
integrantes de 1922, estão particularmente associados às idéias de
transformação, ruptura e modernidade: Abolição, República e
Escola do Recife de um lado; tenentismo, comunismo, revolução
estética de outro. Esses eventos emblemáticos, que condensam
múltiplos significados e sentidos, acabaram por se tornar marcos
periodizadores da nossa história.
A chamada geração de 1870 talvez tenha sido a que realizou de
maneira mais acabada os projetos de que se considerava imbuída. A
derrocada da ordem monárquico-escravista está intimamente asso-
ciada a nomes como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Alberto
Sales, Miguel Lemos, Silva Jardim, Clóvis Beviláqua, entre outros.
Se nem todos estiveram sempre do mesmo lado no campo de bata-
lha - basta lembrar as convicções monarquistas de Nabuco - eles
contribuíram, cada um à sua maneira, para o legado da geração.
Já os nomes de Tobias Barreto, Silvio Romero, Rui Barbosa,
José Veríssimo, Araripe Júnioro especialmente lembrados quando
se trata de dar conta das transformações culturais do período. Numa
passagem bastante citada, mas que nem por isso perdeu sua força,
Romero sintetizou, trinta anos depois, o significado do decênio
1868-1878:
Quemo viveu nesse tempoo conhece por ter sentido dire-
tamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868
o catolicismo reinanteo tinha sofrido nessas plagas o mais leve
abalo; a filosofia espiritualista católica e eclética, a mais insignifi-
cante oposição; a autoridade das instituições monárquicas, o menor
ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os
direitos tradicionais do feudalismo prático dos grandes proprietá-
rios, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à
sombra do manto do príncipe feliz... De repente, por um movi-
mento subterrâneo que vinha de longe, a instabilidade de todas as
coisas se mostrou e o sofisma do Império apareceu com toda sua
nudez... Um bando de idéias novas esvoaçou sobres de todos os
pontos do horizonte... Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crí-
tica religiosa, naturalismo, cientificismo na prosa e no romance, fol-
clore, novos processos de crítica e de história literária, transformação
da intuição do direito e da política, tudo se agitou e o brado de
alarma partiu da escola do Recife. (Romero, 1900, p.XXII-XXIV)
Apesar de colocar em questãoo apenas o pioneirismo mas
até mesmo a existência de uma escola de pensamento no Recife,
José Veríssimo traçou para o período um quadro muito seme-
lhante ao de Romero, tendo cunhado o termo modernismo para
caracterizar as idéias em voga (Veríssimo,1969). Outros contem-
porâneos também tomaram 1870 como um ponto de inflexão na
vida cultural brasileira. Clóvis Beviláqua referiu-se a "uma trans-
formação de nossa mentalidade" graças à qual "a grande ciência
européia começou a cair mais francamente sobre nós" (Bevilá-
qua, 1899, p.83) e Araripe Júnior afirmou ter sido numa confe-
rência de Tobias Barreto, datada do final dos anos 1860, que ele,
então aluno da Faculdade de Direito do Recife, soube "pela pri-
meira vez que havia um Darwin e um Haeckel" (Araripe Júnior,
1899, p.xlvi).
Comte, Darwin, Buckle, Haeckel, Littré, Noiré, Taine e
Renan tornaram-se referências obrigatórias e acabaram por subs-
tituir Cousin, Maine de Biran e Jouffroy. As novas doutrinas,
ancoradas numa cosmovisão laicizada, forneciam chaves para a
compreensão do mundo material e social. Munida desse instru-
mental, a elite pensante nacional releu o país segundo os novos
parâmetros e acabou tomada por um sentimento de urgência que
a compelia a engajar-se na ação. Sevcenko (1989, p.80) foi ao
cerne da questão ao afirmar que os intelectuais de 1870 "tendiam
a considerar-seo só como agente dessa corrente transforma-
dora, mas como a própria condição perspícua do seu desencadea-
mento e realização". Lançaram-se à luta denunciando o
imobilismo do Império, a ausência de democracia e de partidos, a
escravidão, o atraso econômico do país, o analfabetismo, enfim
como afirmou Barreto, já na nova terminologia, "os mil fenôme-
nos patológicos do organismo social brasileiro" (apud Lima,
1957, p.57).
No campo político-social, Abolição, República, Federalismo
e Democracia constituíam-se em palavras de ordem que conden-
savam programas, idéias, desafios e aspirações capazes de amalga-
mar os homens da época. A maioria bateu-se por essas reformas e
teve a grata satisfação de vê-las realizadas. É certo que o júbilo foi
logo interrompido pelo rumo dos acontecimentos. Alguns prota-
gonistas, consternados, deram-se conta de que aquelas transfor-
maçõeso implicavam necessariamente na redenção imaginada.
1
Proliferaram então lamentos do tipo essa não é a República dos
meus sonhos. A decepção, porém,o ofuscou o brilho dos feitos
1 Em 1892 FARIAS BRITO (1966, p.45) assim se referiu à queda da monar-
quia: "Quando em 1889 retirei-me do Ceará com destino ao Rio de Janeiro,
havia resolvido abandonar para sempre a política ... Estava no Rio, pensando
em matricular-me na Escola Politécnica, quando foi proclamada a República.
Esse fato produziu sobre meu espírito impressãoo profunda que cheguei a
desistir de uma resolução que supunha inabalável. Vi que ia entrar o país
numa era de grandes reformas e edificantes construções. Acreditei que iam
ser realizadas todas as promessas sonhadas pelos propagandistas da Repú-
blica. Considereio solene o momento que cheguei a apaixonar-me por ela,
pensando que nenhum cidadão deveria conservar-se estranho às agitações,
que deviam manifestar-se".
e os homens de 1870m sido devidamente festejados e agracia-
dos pela historiografia.
o sem motivos a mesma postura reverenciai foi adotada
em relação à 1922, data carregada de dramaticidade e peso sim-
bólico. Esse foi o ano do Centenário da Independência, da funda-
ção do Partido Comunista e do Centro Dom Vital, de orientação
católica, da Semana de Arte Moderna e do episódio do Forte de
Copacabana, marco inicial do tenentismo.
Estabeleceu-se uma associaçãoo poderosa entre 1922 e a
idéia de novo que qualquer afirmação em contrário parece des-
concertante. Exemplar, nesse sentido, é a perplexidade inicial de
Silviano Santiago ao ser convidado a abordar a tradição dentro do
discurso modernista:
esteo é um dos meus tópicos favoritos, comoo o é para a maioria
das pessoas que foram formadas pelo que é considerada - hoje - a
tradição modernista. A nossa formação esteve sempre configurada por
uma estética da ruptura, da quebra, por uma destruição consciente dos
valores do passado... Esse tipo de estética - da ruptura, do desvio,
da ironia e do sorriso, da transgressão dos valores do passado - é que
tem direito de cidadania, por assim dizer, na revalorização dadaísta
por que passou o modernismo desde 1972... Ora, de repente, sou
chamado para falar do discurso da tradição tout court dentro do
modernismo... Mas sempre me agrada pensar aquilo que até então
o tinha pensado. (1989, p.94-5)
Entretanto se, por um lado, a historiografia tem sido bene-
volente com os personagens da geração de 1870 e com os artífi-
ces de 1922, o mesmoo pode ser dito em relação aos
indivíduos que viveram comprimidos entre os feitos dos primei-
ros e o ímpeto renovador dos segundos. Talvez nada expresse
melhor esse desprezo do que o fato de lhes haver sido subtraído
até mesmo o direito a um nome próprio: foram rotulados, a pos-
teriori e a partir de uma perspectiva externa, de pré-modernos,
numa assunção explícita de incapacidade de atribuir essência
própria ao período.
Observe-se ainda que a expressão, cunhada por Alceu Amo-
roso Lima, comportao apenas a idéia de anterioridade espaço-
rada pelos novos detentores do poder no campo cultural foi aceita
de bom grado pela historiografia, que prestou importante colabo-
ração no sentido de consagrar a voz de um no lugar da fala de
muitos.
Contudo, a coerência e o equilíbrio desse quadro vem sendo
perturbados - já há algum tempo - em mais de um sentido. O tra-
balho de Flora Sussekind (1987) explorou, do ponto de vista esté-
tico, novas perspectivas para a análise das obras produzidas entre
o final de 1880 e a década de 1920. Abandonando o hábito de
retirar do anonimato este ou aquele autor, a ensaísta percorreu
crônicas, poesias e obras de ficção da época em busca de seus atri-
butos próprios. Pôde então destacar como marca distintiva as
diferentes modalidades de relacionamento dessa produção com a
paisagem técnico-industrial que então se delineava.
A partir das últimas décadas do século passado Rio de Janeiro
eo Paulo, pólos dinâmicos da economia nacional, conheceram
um intenso processo de urbanização que alterou profundamente
a fisionomia dessas cidades: crescimento populacional; surto
industrial; instalação de serviços de utilidade pública como ener-
gia elétrica, transportes, telégrafos, redes de água, esgotos e gaseo-
dutos; criação de uma infra-estrutura ferroviária e portuária;
bancos; casas de importação e exportação; companhias de nave-
gação; seguradoras. Pereira Passos e Antonio Prado, tal como
Haussaman, derrubaram, despejaram, higienizaram, construíram,
abriram avenidas e por fim dissiparam, pelo menos em parte, o ar
provinciano que caracterizava a atmosfera local. A trajetória pau-
listana foi particularmente marcante, pois em algumas décadas a
cidade abandonou o seu modesto décimo segundo lugar entre as
congêneres brasileiras para galgar à segunda posição.
Os emblemas da modernidadeo se expressavam apenas nas
grandes obras públicas, antes impregnavam o cotidiano povo-
ando-o com novos artefatos, maravilhas da ciência que de forma
sutil, porém definitiva, inauguravam uma outra sensibilidade,
alteravam valores, comportamentos, papéis e relações sociais.
Bondes, carros, trens, aviões, telefones, fonógrafos, gramofones,
cinematógrafos impunham outra dinâmica à vida, encurtavam
distâncias, transformavam os modos de percepção, esfumaçavam
as fronteiras entre o real e o fictício.
Tempo e espaço deixaram de ser percebidos como absolutos
o apenas pela física einsteniana - domínio insondável para os
o iniciados - mas na experiência diária, marcada pelo ritmo
apressado, impaciente e nervoso das metrópoles nascentes. O pas-
sar das horaso deveria ser contemplado, mas tornado útil, com-
primido e racionalizado, enquanto o espaço, distância a ser
vencida com a maior brevidade possível, fundia-se num embria-
gante contínuo de imagens que desfilavam sobrepostas graças aos
efeitos da modernidade.
O esforço de Sussekind caminhou para estabelecer de que
maneira os escritores brasileiros do período responderam, do
ponto de vista da técnica literária, a esses artefatos industriais e às
novas condições de produção e reprodução de bens culturais.
Dessa perspectiva foi possível reler autores e obras segundo as
diferentes respostas elaboradas no âmbito dos procedimentos lite-
rários, dotando-os de uma autonomia que prescinde do pré on pós
alguma coisa.
De outro modo, os estudos a respeito da condição social da
intelectualidade pré-modema, aspecto também enfocado - ainda
que secundariamente - pela autora, tem se constituído em outro
importante ponto de tensão para o discurso elaborado pelos inte-
grantes de 1922. Nesse âmbito a contribuição tem vindo menos
da história do que da sociologia.
Machado Neto em sua obra Estrutura social da República
das Letras (1973) selecionou sessenta intelectuais representativos
do período 1870-1930 e realizou uma análise comparativa de
seus dados biográficos, o que lhe permitiu agrupá-los segundo
diferentes critérios: o ecológico (escritores nacionais, da corte,
da província ou região e do município); o comportamento social
(boêmios, dândis); a capacidade de agregação (isolacionistas, grê-
mios); o êxito socioliterário (obscuros, estrelas); o grau de espe-
cialização (monógrafos, polígrafos), além de havê-los distribuído
em gerações.
sões sociais da Primeira República, Sevcenko também colaborou
no sentido de tornar menos espesso ou homogeneizador que
encobre o período.
Entretanto, um dos primeiros a insurgir-se, de maneira clara
e direta, contra as concepções dominantes a respeito do período
pré-1922 foi Sérgio Miceli (1977). Num ensaio instigante e pro-
vocador ele afirmou, em tom de denúncia, que foi nas décadas ini-
ciais desse século que:
se desenvolveram as condições favoráveis à profissionalização do
trabalho intelectual, especialmente em sua forma literária, e a cons-
tituição de um campo intelectual relativamente autônomo, em con-
seqüência das exigências postas pela diferenciação e sofisticação do
trabalho de dominação. Expurgar esse momento de expansão do
campo intelectual no Brasil, relegar os produtores da época
tachando-os de "subliteratos", tratar suas obras segundo critérios
elaborados em estados posteriores do campo, em suma transformá-
los numa espécie de lixo ideológico, como o fazem certas correntes
queo obstanteo tem mais quase nada em comum, é o mesmo
que desconhecer as condições sócio-históricas em meio das quais se
constitui o campo intelectual sob cuja vigência estamos vivendo.
(p.13-4)
Essa problemática, inspirada na teoria dos campos de Bour-
dieu, tem norteado a sua obra, que pode ser encarada como des-
dobramentos, cada vez mais refinados, do núcleo inicial.
No livro Intelectuais e classe dirigente (1979) Miceli procu-
rou esclarecer como se constituiu um campo intelectual no Brasil,
o que o levou a deter-se no período 1920-1945. A profissionali-
zação da atividade intelectual, em curso desde o final do século
XIX, já era um fato nos anos 20, momento em que se aprofunda-
ram as cissões nos quadros dirigentes. O autor tomou a crise oli-
gárquica enquanto fator de expansão do mercado de trabalho
intelectual, mostrando que até 1937 a proliferação de ligas, fac-
ções, partidos, entidades e centros de todas as colorações políticas
alargou a demanda por indivíduos aptos a contribuir no trabalho
de legitimação das pretensões hegemônicas acalentadas por dife-
rentes grupos.
Tornaram-se então evidentes os laços que atavam os vários
setores da elite pensante aos diferentes projetos em luta pelo con-
trole do cenário político. Ainda mais, a análise deu conta da his-
toricidade do processo à medida em que acompanhou o rumo dos
acontecimentos - por exemplo, a derrota amargada pelos liberais
paulistas em 1932 - esclarecendo os vários reordenamentos de
força, fato que para alguns implicou a necessidade de rever e ou
refazer antigas opções.
O crescimento do setor editorial, apesar de marcante ao
longo do período,o permitiu aos intelectuais, de acordo com
Miceli, dispensar o manto do Estado. A presença do poder
público nos mais variados setores, tendência que se acentuaria
poderosamente nos anos 30, foi acompanhada pelo surgimento
de uma elite burocrática recrutada, pelo menos em tese, segundo
critérios de competência atestados por diplomas universitários.
Assim se os anatolianos - designação dada pelo autor aos
intelectuais típicos da República Velha - eram "polígrafos que se
esforçavam por satisfazer a todo tipo de demandas que lhes
faziam a grande imprensa, as revistas mundanas, os dirigentes e
mandatários políticos da oligarquia, sob a forma de críticas, roda-
pés, crônicas, discursos, elogios, artigos de fundo, editoriais etc."
(p.131), respondendo a necessidades diversas impostas por um
campo relativamente indiferenciado, o mesmoo pode ser dito
em relação aos servidores da era Vargas, um conjunto de técnicos
e especialistas, que realizava tarefas concernentes à sua área de
formação, mas que nem por isso deixava de comportar uma escala
de dependência que atingia, em certos casos, a subserviência abso-
luta.
2
Micelio se preocupou apenas em discernir as diferentes
posições ocupadas pela intelectualidade no seu campo, questio-
nou também a origem social desses indivíduos, constatando a pre-
dominância dos filhos da oligarquia decadente. Inovou ao revelar
2 O relacionamento entre os intelectuais e o Estado, analisado por Miceli no
terceiro capítulo, constituiu-se num dos pontos mais polêmicos da obra,
como bem atesta o prefácio de Antonio Candido.
"a imbricação entre as determinações de classe que impelem à car-
reira intelectual e as demandas político-ideológicas que possibili-
tam a absorção dos efetivos ameaçados de serem despojados da
classe dirigente" (ibidem, p.194). Contudo também aqui as muta-
çõeso foram menos significativas, assinalando-se a mediação,
cada vez mais decisiva, dos trunfos escolares, mas que ainda assim
o dispensava totalmente a rede de influências e relações sociais
da família do postulante.
o é mais possível, portanto, encarar os intelectuais do
período enquanto grupo dotado de autonomia ou de uma lógica
imanente. O trabalho de Miceli desvendou uma complexa rede de
inter-relações entre poder político e elite pensante: pactos, inte-
resses e vínculos encarados de maneira dinâmica. Desta perspec-
tiva os tradicionais pontos de ruptura podem ser questionados ou
redimensionados, como ocorre com a oposição anatolianos -
modernistas, que perdeu tanto o seu caráter de irrupção, quanto
sua propalada irredutibilidade.
A vanguarda dos anos 20, por sua vez, foi enquadrada noutra
moldura, que evidencia seus grupos de sustentação, permitindo
reler as cisões em função de alinhamentos políticos. Ao expor,
sem cerimônias, as vinculações entre o trabalho intelectual e o
poder Miceli tocou em questões incômodas e quebrou o pacto de
silêncio que as cercava (Santiago, 1989, p.165-75). Forneceu uma
visão límpida - e talvez por isso, no dizer de Antonio Candido,
meio angustiada - da condição do intelectual no Brasil.
Do conjunto de obras emerge uma outra ordenação do
período, menos familiar, pontilhada de arestas e capaz de tornar
inverossímil uma lição que, até há pouco, se conhecia de cor. O
presente trabalho faz eco aos esforços de reavaliação da história
cultural das décadas iniciais do século XX.o privilegia, porém,
a questão estética, nemo pouco elege como temas as origens da
intelectualidade, seu grau de engajamento político ou suas liga-
ções com o poder. Tambémo se trata de um estudo de caso que
se atenha à trajetória e ao pensamento de um indivíduo, por mais
representativa que sua obra tivesse sido.
O que se pretende é analisar as leituras que parte significativa
da intelectualidade dita pré-moderna produziu a respeito do país,
identificando o que ela detectava como problema e quais as solu-
ções que propunha para os nossos males. Noutros termos, trata-
se de dar conta dos quadros de referência, dos modelos e catego-
rias que organizavam a sua percepção. Se os nossos intelectuais
sempre se consideram dotados de especial aptidão para dar conta
do real, importa esclarecero só os valores subjacentes às suas
apropriações simbólicas, mas também ressaltar os grupos e inte-
resses concretos aos quais elas se vincularam. Como assinalou
Chartier (1990, p.17), "as lutas de representaçãom tanta
importância como as lutas econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção de mundo social, os valores queo os seus e o seu
domínio", o que alerta para a necessidade de discernir sempre a
posição de quem fala.
A desqualificação estética imposta pelos modernistas aos seus
antecessores, resultado da posição hegemônica que passaram a
desfrutar, acabou por projetar sua sombra sobre toda e qualquer
produção dos derrotados, que por extensão passou a ser conside-
rada indigna de atenção.
3
Entretanto, um olhar menos armado
revela o enorme esforço despendido para tentar compreender o
país e apontar caminhos. Os resultados, apesar de carregarem as
marcas do seu tempo, fundaram explicações destinadas a longa
vigência e acalentaram mitos que ainda conservam parte do seu
fetiche.
Nessa tarefa a Revista do Brasil, mensário editado emo
Paulo que na sua primeira fase circulou ininterruptamente entre
3 Segundo BOURDIEU, P., 1990, p.172-3, "o campo literário é simultanea-
mente um campo de forças e um campo de lutas que visa transformar ou con-
servar a relação de forças estabelecida: cada um dos agentes investe a força (o
capital) que adquiriu pelas lutas anteriores em estratégias que dependem,
quanto à orientação, da posição desse agente nas relações de força, isto é, de
seu capital específico. Em termos concretos, trata-se, por exemplo, das lutas
permanentes que opõem as vanguardas sempre renascentes à vanguarda con-
sagrada... Assim na França, desde a metade do século XIX, a poesia é o lugar
de uma permanente revolução (os ciclos de renovação da escola dominante
o muito curtos): os novatos, queo também os mais jovens, questionam o
que foi contraposto pela revolução precedente à ortodoxia anterior (é o caso,
por exemplo, da revolta dos parnasianos contra o 'lirismo' romântico)."
janeiro de 1916 e março de 1925, revelou-se uma fonte privilegiada.
Principal publicação de caráter cultural da República Velha, a
revista acolheu em suas páginas os nomes mais representativos da
época, tendo desfrutado de enorme prestígio e ostentado uma
longevidade rara para os padrões então vigentes.
Convém esclarecer que a Revista do Brasil ressurgiu em várias
oportunidades. A falência de Monteiro Lobato em 1925 marcou
o encerramento de sua primeira etapa, composta por 113 núme-
ros. Assis Chateaubriand adquiriu a chancela da publicação e pas-
sou a editá-la no Rio de Janeiro. Durante a segunda fase, que
durou pouco mais de quatro meses compreendidos entre os anos
de 1926 e 1927, foram editados nove números. A publicação foi
oficialmente dirigida por Plínio Barreto, Afrânio Peixoto, Alfredo
Pujol e Pandiá Calógera. Porém o tom foi dado pelo redator-
chefe, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Prudente de Moraes,
neto, secretário ad hoc. A produção artística e a crítica açambar-
caram a maior parte do espaço e a revista alinhou-se entre os
periódicos modernistas da época, como Terra Roxa e A Revista,
caracterizando-se pela busca de um caminho para a nacionaliza-
ção da arte (Ikeda, 1975).
Em 1938 Chateaubriand relançou-a, entregando a direção ao
historiador Octávio Tarquínio de Souza. Nota-se um esforço para
resgatar algumas características da primeira fase. A capa voltou a
ser praticamente idêntica à dos primeiros anos, estampando a afir-
mação fundada em 1916. A diversidade de assuntos; a preocupação
com os problemas nacionais, encarados de uma perspectiva
ampla, voltaram a ser a tônica e até mesmo certas seções da pri-
meira fase ressurgiram. Ainda que o periódico estivesse inserido
num contexto histórico e num clima cultural bastante diverso do
período 1916-1925,o há como negar certos pontos de contato
com os anos iniciais. A publicação circulou até 1943, perfazendo
um total de 56 números.
Em 1944, com a direção de Frederico Chateaubriand e a pre-
sença de Millôr Fernandes na secretaria, a revista renasceu por um
curto período. Bastante modificada tanto no seu formato, agora
semelhante à americana Seleções; quanto no seu conteúdo, leve e
recheado de humor,o conseguiu agradar o público, tendo sido
editados apenas três números (Silva, 1985). Transcorridas quatro
décadas, a Revista do Brasil ressurgiu sob a responsabilidade da
Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e da RIOARTE.
Doze números foram publicados entre 1984 e 1990, alguns
monográficos, mas sem periodicidade regular.
Surpreendentemente, o periódicoo tem merecido atenção
dos historiadores, a despeito da imprensa ter se tornado uma das
fontes mais mobilizadas pelos especialistas do período. De fato,
nota-se uma tendência da historiografia para desprezar as revistas
literárias e de cultura que, até o presente, tem atraído quase que
exclusivamente os especialistas da área de Letras.
Assim, foi marco o projeto coordenado nos anos 60 pelo pro-
fessor José Aderaldo Castello que tinha por finalidade proceder a
um estudo sistemático dos periódicos representativos de grupos ou
movimentos literários que tivessem sido editados sobretudo a partir
do romantismo. A análise obedecia a um roteiro básico que con-
templava questionamentos próprios a esta área do saber (Castello,
1970, p.5-12).
A iniciativa evidenciou a riqueza da documentação. Vários
trabalhos concretizaram-se e, apesar de nem todos terem sido ori-
entados por Castello ou seguirem exatamente os passos recomen-
dados pelo seu roteiro, eles foram tributários, em graus diversos,
do projeto original (Napoli, 1970; Lara, 1971 e 1972; Caccese,
1971; Ikeda, 1975; Dimas, 1980 e 1983). Alguns de seus ex-alu-
nos seguiram na mesma trilha e outras dissertações surgiram
(Orlof, 1980). Passadas três décadas, o projeto continua a inspirar
os pesquisadores (Paiva, 1992).
Apesar dessa produção concentrar-se na análise da criação e
da crítica literária, um de seus princípios norteadores foi a elabo-
ração de índices temáticos e sumários dando conta de todo o
material publicado no periódico estudado. Basta consultá-los para
verificar que algumas das revistas, longe de se dedicarem exclusi-
vamente à literatura, publicavam ensaios a respeito dos mais varia-
dos assuntos, havendo mesmo aquelas em que a produção literária
ocupava, ante o conjunto, espaço minoritário. Era este o caso da
Revista do Brasil em sua primeira fase, como bem demonstraram
os índices elaborados por Paiva (1992) e Orlof (1980) - respecti-
vamente para os anos 1916-1919 e 1922-1925. Entretanto as pes-
quisadoras concentraram-se no mapeamento das várias correntes
estéticas presentes no periódico e na determinação do peso de
cada uma delas, sem explorar outras potencialidades da fonte.
Esses trabalhos tiveram o mérito de tornar visível a riqueza e
a diversidade dos temas presentes na Revista do Brasil.
A opção de estudar a primeira fase da Revista do Brasil (1916-
1925)o ocorreu em razão de um hábito da profissão, marcada
pelo fetiche das origens, mas porque ele recobre os anos decisivos
para os nossos objetivos. A natureza da publicação,o direta-
mente vinculada a partidos, instituições, movimentos ou religiões,
favorecia, pelo menos em princípio, a diversidade de opiniões.
Esquadrinhando os 113 exemplares publicados entre 1916 e
1925 evidencia-se a centralidade da questão nacional, que a todos
absorvia e apaixonava. É certo que no pensamento político brasi-
leiro tal problemática tem uma história que remonta pelo menos
ao final do século XVIII, quando se adensaram os movimentos pela
Independência. Entretanto, foi a partir da Abolição e da Proclama-
ção da República que a construção de laços de pertencimento, capa-
zes de difundir um sentimento de brasilidade, assumiu um caráter
de urgência. Tratava-se agora de agregar todos os cidadãos em
torno da nação.
A questão irrompeu com força no cenário brasileiro num
período em que as potências industriais ferozmente disputavam a
hegemonia econômica mundial. Em nome da unidade, soberania
e grandeza da nação, os Estados, autoproclamados guardiões dos
ideais nacionais, justificavam suas ações em prol da extensão das
fronteiras, do domínio e exploração de áreas coloniais, da obten-
ção de concessões, privilégios e monopólios em regiões periféri-
cas, da política armamentista, do incremento e da defesa da
produção nacional, além de exigirem, de todos os cidadãos, fide-
lidade e lealdade primeiro em relação à pátria.
Esse contexto atuava em prol das análises que apresentavam
a nação enquanto uma categoria naturalizada, dotada de concre-
tude, ainda que pouco permeável a definições objetivas. Acei-
tando sem maiores discussões o estatuto ontológico da nação, os
intelectuais brasileiros do início desse século partiram à procura
I REVISTA DO BRASIL: REDESPERTAR
DA CONSCIÊNCIA NACIONAL
Vivemos desde que existimos como nação,
quer no Império, quer na República, sob a tutela
direta ou indireta, senão política ao menos moral,
do estrangeiro. Pensamos pela cabeça do estran-
geiro, comemos pela cozinha estrangeira e, para
coroar essa obra de servilismo coletivo, calamos,
em nossa pátria, muitas vezes, dentro de nossos
lares, a língua materna para falar a língua do
estrangeiro! A nossa vida é, no seu aspecto geral, e
de um certo período para, a marcha incerta e
lenta, desgraciosa e constrangida, de um povo que
a cada passo que avança se volta, inquieto, para a
estrada de onde o estrangeiro o está contemplando
a procurar, da massa fria dos espectadores indife-
rentes, o sorriso de aprovação que lhe dê alento
para seguir. {RBR, v.l, n.l, p.2, jan. 1916)
A Revista do Brasil foi idealizada por Júlio de Mesquita que,
no início de 1915, designou dois auxiliares próximos, Plínio Bar-
reto e José Pinheiro Machado Júnior, para cuidar da fundação de
um periódico que deveria chamar-se Cultura. Nesse momento, a
imprensa conhecia um processo de transformações aceleradas,
iniciado ainda no final do século XIX.
Os jornais, que sempre haviam sido confeccionados artesa-
nalmente em tipografias de pequeno porte, passaram a demandar
equipamentos e métodos de produção específicos que permitiam
caracterizá-los como atividade industrial. Seus proprietários,
subordinados à lógica do capital, viram-se instados a assegurar a
saúde financeira do empreendimento, o que exigia uma adminis-
tração racional, capaz de otimizar lucros, aliada à atualização
constante da maquinaria e das técnicas. Tratava-se de atender os
imperativos da produtividade e de oferecer ao público uma mer-
cadoria visualmente aprimorada, que incorporasse os rápidos
avanços registrados nos processos de impressão.
As inovações, porém,o se limitaram à exterioridade. Já se
esboçava a tendência dos jornais priorizarem a informação, com-
ponente essencial para as sociedades urbanas. Essa maior agili-
dade só se tornou possível graças à expansão da rede telegráfica
mundial, do telefone, das ferrovias, enfim de meios que possibili-
tavam a rápida circulação das notícias e que descortinavam novas
possibilidades para a imprensa.
Sem perder o caráter opinativo, os jornais passaram a incor-
porar outros gêneros, como reportagens, entrevistas, crônicas e
inquéritos literários. Surgiram seções especializadas, dedicadas ao
público feminino, esportes, assuntos policiais, lazer, crítica literá-
ria. Ao lado das tradicionais caricatura, ilustrações e charge, gene-
ralizou-se a utilização da fotografia, que substituiu a lito e a
xilogravura.
A publicidade, principal fonte de renda dos periódicos, tam-
m modernizou-se. Data dos anos 10 o surgimento das primeiras
agências, queo só acabariam substituindo a figura do agencia-
dor individual como seriam responsáveis por alterações marcan-
tes, no que respeita aos recursos, estrutura e linguagem dos
anúncios.
O jornal, principal mercadoria da nascente indústria cultural,
ditava modas e estilos, impunha ao cotidiano seu ritmo nervoso,
apressado e superficial; consagrava certos autores e relegava
outros ao ostracismo. Nas primeiras décadas do século XX, parte
considerável da vida intelectual brasileira gravitou em torno da
imprensa, encarada como uma atraente oportunidade de trabalho
para os homens de letras. Ela era capaz de trazer fama, prestígio e
lucros para os que caíssem no gosto do público, um gosto volátil,
que deveria ser reconquistado a cada dia, a cada edição.
Emo Paulo, o crescimento do mercado potencial de leito-
res desafiava a imaginação dos empresários do setor. O Estado,
que conheceu uma revolução demográfica a partir de 1880, con-
tava com uma rede ferroviária ampla e eficiente, permitindo que
os matutinos chegassem, no mesmo dia de sua publicação, a todo
o território paulista e mesmo nas áreas circunvizinhas. Contudo,
materializar essa demanda potencial em leitores e assinantes a
ponto de transformar os periódicos em uma fonte de lucros e
prestígio, pressupunha subordinar os produtos culturais a uma
lógica de cunho empresarial.
Júlio de Mesquita, que iniciou sua carreira jornalística na
década de 1880, vivenciou as mudanças estruturais sofridas pela
imprensa. A forma como ele gerenciava O Estado de S. Paulo,
matutino que, ao longo da década de 1910, firmou-se como um
dos mais importantes do país, pode ser considerada paradigmá-
tica. Tido pelos contemporâneos como dinâmico, ágil e capaz de
inovar, Mesquita esteve sempre atento à atualização tecnológica.
Em meados de 1890, O Estado importou a sua primeira
impressora do tipo Marinori; seis anos depois o jornal anunciava a
compra de uma nova máquina, agora rotativa. Em 1908, foi refor-
mado todo o material tipográfico, passando a composição a ser exe-
cutada por meio de linotipos e adquirida outra máquina, uma
Albert de "altíssima velocidade, capaz de produzir vinte e três mil e
quatrocentos exemplares de dezesseis páginas dobradas por hora"
(apud Duarte, 1977, p.12). Nesse momento a tiragem do periódico
atingia a casa dos dezoito mil exemplares, o que significava que,
uma vez composto, a sua impressão consumia menos de uma hora.
Em 1912, o jornal lançouo de empréstimos por debêntu-
res visando a compra de imóveis para a construção de novas ins-
talações para as oficinas, redação e administração, além de haver
encomendado uma nova impressora e linotipos. No ano seguinte
foram inauguradas as oficinas, a redação e a sessão de obras, e no
final de 1916 a sede administrativa, que contava até com um
pequeno teatro, o Boa Vista. Por essa época O Estado possuía
sucursais e correspondentes próprios em Lisboa, Roma, Paris,
Londres, Washington e Buenos Aires, ostentando entre seus cola-
boradores destacadas figuras do mundo da cultura, tanto no
âmbito nacional quanto internacional.
O esforço modernizador, que obviamenteo era exclusivi-
dade da empresa de Júlio de Mesquita, trouxe consigo significa-
tiva queda no preço dos jornais, melhoria da qualidade gráfica,
dinamização da distribuição, aumento contínuo do número de
páginas e da tiragem. Quanto ao último aspecto, os resultados
obtidos pelo Estado foram bastante significativos: 3.500 exempla-
res em 1886, 10 mil em 1896, 18 mil em 1908, 35 mil em 1912,
45 mil em 1916 e 52 mil em 1917. Em 1915, Monteiro Lobato
bem resumiu o que significava publicar nesse periódico ao afirmar
a um amigo: "talvez tenha razão em criticar a ortodoxia d'0
Estado, mas cumpre ter em mente que possui tiragem - quarenta
mil exemplares com provavelmente cem mil leitores. É das nossas
escadas regionais a de mais degraus e mais sólida" (Lobato, 1959a,
v.2, p.3).
Júlio de Mesquita tornou-se figura de destaque no cenário
político nacional. Formado pela tradicional Faculdade de Direito
do Largoo Francisco, republicano desde a primeira hora, par-
ticipou ativamente da política paulista. Elegeu-se vereador em
Campinas (1887), cidade em que nasceu; deputado federal por
o Paulo (1892), deputado estadual (1891, 1894, 1898, 1907 e
1910) e senador estadual (1912). Foi líder na Câmara paulista
(1892 e 1907), tendo integrado a poderosa comissão executiva do
Partido Republicano Paulista (1892 a 1894 e em 1896). Figura de
destaque nas várias cissões partidárias, esteve entre os fundadores
do Partido Democrático. Ao prestígio que emanava da sua condi-
ção de homem público, deve-se acrescer o que provinha do seu
sucesso como jornalista e do controle de um dos órgãos mais
importantes da imprensa.
De acordo com a cartilha liberal, Mesquita imprimiu uma fei-
ção independente ao seu jornal, sem nunca ter admitido trans-
formá-lo em porta-voz oficial de partidos ou defensor inconteste
de governos. Ao vinculação d'0 Estado sempre foi considerada
pelos seus mentores condição essencial para que o matutino
pudesse exercer com liberdade a oposição aos poderes constituí-
dos, tarefa julgada fundamental para o pleno funcionamento do
jogo democrático. Análises a respeito da trajetória do jornalm
evidenciado os limites e as ambigüidades desse apregoado libera-
lismo, cuja fidelidade flutuava ao sabor das circunstâncias (Cape-
lato & Prado, 1980).
Contudo, oo alinhamento conferia à plêiade de políticos e
intelectuais aglutinados em torno do jornal características pró-
prias que transformavam o chamado grupo do jornal O Estado em
uma facção política independente (Miceli, 1979, p.8), unida pela
fidelidade a um conjunto de princípios. Pertencer ao corpo de
colaboradores assíduos ou de editores constituía-se excelente
porta de entrada para a vida pública.
A eclosão da Primeira Guerra marcou um ponto de inflexão
na prosperidade financeira do matutino. Os gastos com papel,
importado da Europa, cresceram drasticamente - o que afetou a
indústria gráfica como um todo. O inconteste apoio do periódico
à causa aliada indispôs o jornal com a colônia alemã. O Diário Ale-
mão, seu porta-voz, manteve acirrada polêmica com O Estado,
acusando o periódico de receber subvenção inglesa.
Júlio de Mesquita moveu um processo contra o Diário no
qual conseguiu provar que a maior parte da renda publicitária do
seu jornal provinha justamente das firmas alemãs que, ao deixa-
rem de anunciar no matutino, causaram ao Estado sérios prejuízos
financeiros. Apesar do desfecho do episódio ter sido moralmente
favorável à Mesquista - Plínio Barreto, advogado responsável pela
defesa do jornal, obteve em 1916 a condenação do diretor da
folha germânica a dois meses de prisão - o balanço estava longe
de atingir os níveis registrados em 1913.
Contrariamente ao que se poderia supor, a queda nos lucros
o implicou a retração das atividades empresariais da família Mes-
quita. Em maio de 1915, com a entrada da Itália na guerra, foi lan-
çada a edição noturna d'0 Estado, logo batizada de Estadinho, que
destinava-se, inicialmente a noticiar os acontecimentos do conflito,
dedicando, porém, especial atenção à participação italiana.
A ênfase na Itália estava longe de ser inocente; afinal porcen-
tagem significativa da população da capital era constituída de ita-
lianos e seus descendentes. O novo periódico deveria cumprir um
duplo papel: aumentar o número de leitores e anunciantes num
momento em que os lucros escasseavam, e angariar simpatizantes
para a causa do jornal, que então travava acirrada polêmica com
o Diário Alemão. Antes mesmo do lançamento da edição noturna
do jornal, Júlio de Mesquita iniciou a organização de uma nova
revista, que deveria chamar-se Cultura.
O momento era de grande efervescência. A Primeira Guerra
tornava patente a enorme distância que separava o Brasil dos paí-
ses industrializados. A condição de nação fraca potencializava o
temor, sempre latente, de que o paíso seria capaz de manter sua
independência e unidade diante da pressão das potências imperia-
listas. Apesar das incertezas quanto ao desfecho do conflito,o
restavam dúvidas de que uma nova ordem mundial estava sendo
forjada e nela o lugar que nos estava reservadoo parecia dos
mais promissores.
De uma exaltação contemplativa da beleza natural e das
potencialidades ilimitadas da terra, passou-se a advogar a necessi-
dade urgente de conhecer, explorar, administrar e defender o ter-
ritório. Contudo,o bastava arrolar medidas, era preciso passar
à ação, o que forçava as elites pensantes a defrontarem-se com a
realidade nacional, ensaiar diagnósticos e propor soluções para
aqueles que lhes pareciam ser os nossos males. Proliferaram então
discursos nos quais o Brasil interessavao pelo que era, mas pelo
que poderia vir a ser.
Para descrever esse país novo - em infância - segundo o lin-
guajar da época, e queo dispusera ainda de tempo suficiente
para se transformar em uma verdadeira nação, recorria-se à metá-
foras que insistiam na idéia de indefinição, desequilíbrio, agita-
ção, instabilidade, desordem, ebulição, tumulto, consideradas
típicas de um período de formação. Daí o sucesso crescente das
representações que tomavam o Brasil como um edifício em pro-
jeto, quando muito em construção, um imenso laboratório ou ofi-
cina na qual a nação estava sendo forjada.
A história, a geografia, a língua, a produção literária, o sis-
tema político, as características antropológicas da população pas-
saram a ser esmiuçadas num esforço que, segundo seus mentores,
permitiria aos brasileiros assenhorarem-se efetivamente do país.
Longe de se limitar a uma atitude contemplativa, os intelectuais
ansiavam por influir nos destinos do país, apontar caminhos, for-
jar políticas de ação. Por se considerarem os únicos capazes de
interpretar corretamente o mundo (Mannheim, 1974, p.78),
parecia-lhes evidente que apenas eles dispunham da competência
necessária para (re)colocar o país em sintonia com os seus verda-
deiros valores. Essa vocação para conduzir os negócios públicos, de
inspiração nitidamente iluminista, encontra-se manifesta nas expli-
cações, sínteses, balanços, propostas e projetos que arquitetaram.
O nacionalismo entrou na ordem do dia. O discurso profe-
rido em 1915 por Bilac nas arcadas do Largoo Francisco deu
início à campanha em prol do serviço militar obrigatório, enca-
radoo apenas sob o ângulo defensivo mas como escola de
civismo capaz de resolver os problemas nacionais. O movimento,
apoiado de imediato pelo grupo d'0 Estado, criou os voluntaria-
dos de manobra, grupos formados por estudantes das faculdades
paulistas que realizavam treinamentos militares
1
e desembocou na
fundação da Liga de Defesa Nacional no Rio de Janeiro em 1916.
2
Outras agremiações sugiram, como a Colméia, composta por
alunos de escolas superiores cariocas e que tinha por finalidade
promover conferências a respeito da situação do país. Na Facul-
1 Francisco e Júlio de Mesquita, filhos do proprietário d'0 Estado, cursavam a
Faculdade do Largoo Francisco e participavam ativamente da política estu-
dantil. Em 1915 Júlio era o chaveiro da escola e nessa condição foi procurado
por Bilac, que lhe apresentou suas idéias nacionalistas. (DULLES, J. W. F.,
1984, p.37). Em relação à importância da figura do chaveiro ver as
observações de NOGUEIRA FILHO, P., 1958, p.65-6.
2 A Liga foi organizada em 7.9.1916, tendo a frente Bilac, Miguel Calmon e
Pedro Lessa. Seu supremo mandatário era o presidente Wenceslau Brás. Em
março do ano seguinte foi organizada a Liga de Defesa do Estado deo
Paulo, sendo indicados para a direção dos trabalhos Antonio Prado, Carlos de
Campos e Júlio de Mesquita. A respeito das atividades das Ligas. Ver: CARONE,
E., 1969, p.230-6 e DULLES, J. W. F., 1984, p.38-9.
dade de Direito deo Paulo foi organizada em 1917 a Liga Nacio-
nalista, dotada de amplo programa que enfatizava a moralização
da política, a adoção do voto secreto e obrigatório, o combate ao
analfabetismo, a educação cívica e a melhoria das condições de
saúde da população.
O Partido Republicano Paulista atravessava então mais um
período marcado por desavenças. A indicação de Altino Arantes
para suceder a Rodrigues Alves na Presidencia do Estado gerou
uma forte dissidência, capitaneada por Júlio de Mesquita, cujo jor-
nal se empenhou em criticar o candidato escolhido. Os dissidentes,
derrotados na convenção, abandonaram seus postos no governo e
tentaram, sem êxito, organizar um partido de oposição.
A decisão de publicar uma revista dedicada à discutir as ques-
tões nacionaiso pode ser interpretada apenas como uma tenta-
tiva dos vencidos de encontrar novos espaços para amplificar seus
argumentos. O grupo d'0 Estado, coerente com os princípios
liberais, julgava que um governo efetivamente democrático
demandava, além do exercício soberano do voto, a existência de
uma opinião pública atuante, partidos de oposição, críticas, dis-
cussões e projetos alternativos. O domínio exclusivo de uma oli-
garquia que fraudava as eleições, usava da violência para impedir
a livre expressão da vontade popular e vedava o acesso de setores
oposicionistas ao poder, era apontado como responsável pelos vícios
e pela ineficiência do Estado, incapaz de assegurar o progresso
moral e material da nação. O lançamento de um periódico desti-
nado a provocar o debate adquiria um significado político dos
mais relevantes.
A partir de meados de 1915, Plínio Barreto, a quem coube
recrutar o corpo de colaboradores do novo periódico, estabeleceu
contato com figuras expressivas da intelectualidade, informando-
as a respeito da nova publicação. A seu pedido Nereu Rangel Pes-
tana, colega de redação que se encontrava no Rio de Janeiro, con-
versou a respeito do assunto com Olavo Bilac, Graça Aranha,
Alcides Maya, Alfredo Valadão, João Kopke, Félix Pacheco e José
Veríssimo, que manifestaram sua aprovação. Outros que respon-
deram favoravelmente à consulta foram: Nestor Victor, Roquette
Pinto, Oliveira Vianna, João Ribeiro, Assis Brasil, Oliveira Lima,
Sílvio de Almeida, Basílio de Magalhães, Valdomiro Silveira e
Medeiros e Albuquerque.
3
A correspondência de Plínio Barreto revelou-se uma fonte
significativa para avaliar a maneira como os homens de letras
encaravam o processo de profissionalização do seu ofício, que
tinha na imprensa uma das mais importantes vias de realização.
Contrariamente ao que ocorria com escritores de gerações anterio-
res, o jornalismo tendeu a se tornar atividade essencial no início
do século XX, constituindo-se importante fonte de rendas. É pre-
ciso ter em vista, porém, que a mercantilização da atividade inte-
lectual esteve longe de ser apreendida de maneira homogênea.
João Ribeiro, quando informado por Plínio sobre a remuneração
paga pela revista, afirmou: "Já disse queo faço questão de rece-
ber dinheiro, se a revista paga, aceitarei como um bom tônico,
maso é coisa indispensável e nem faço mesmo questão" (apud
Pinheiro, 1975), expressando, dessa forma, seu superior distancia-
mento das compensações materiais, como se elas pudessem cons-
purcar sua obra e reputação.
Concepção diametralmente oposta possuía o crítico José
Veríssimo, como transparece nas considerações que teceu ao ser
convidado para colaborar regularmente com o periódico: "se se
tratasse de uma empresa forte, com elementos seguros de renda ...
pediria duzentos mil réis por artigo mensal sobre o movimento
literário porque a leitura que esse trabalho obriga toma muito
tempo. Mas, sendo uma empresa que começa, aceito a incumbên-
cia e deixo a remuneração ao critério ou discrição da revista"
(apud Pinheiro, 1975).
Já a resposta que Medeiros e Albuquerque deu a Plínio Barreto
estava impregnada de ambigüidade O escritor começava afirmando
que: "quanto aos honorários, é o que tem de menos importância. E
3 Em carta proveniente do Rio de Janeiro, datada de 24.7.1915, Pestana infor-
mava que os intelectuais com quem falou "acham a idéia [de uma revista de
cultura] excelente e prometem todo o apoio" e que em breve deveria avistar-
se com Alberto Torres e Pedro Lessa. A correspondência de Plínio, com vistas à
organização da revista, foi analisada por Pinheiro, 1975.
mesmo o queo tem nenhuma" (apud Pinheiro, 1975), para logo
em seguida rematar: "dar-me-á o que dá a outros colaboradores",
afirmação que contrastava com a declaração inicial. Esses exemplos,
ainda que pouco numerosos,o significativos pois apontam para as
incertezas experimentadas pelos intelectuais diante dos novos
padrões que permeavam a produção cultural e que também implica-
vam novas formas de inserção social. Monteiro Lobato, um dos
mais assíduos colaboradores da Revista do Brasil, também oscilava
ora deslumbrado com os ganhos obtidos com a literatura - "já ence-
tei a série de artigos para a Tribuna e fiz jus a 40$000. Com isso
pago dois meses de aluguel da casa. Pagar a casa com artigos, que
maravilha hein?" -, ora constrangido diante deles - "acho estranho
isso de ganhar dinheiro com o que nos sai da cabeça. Vender os pen-
samentos próprios ou alheios" (Lobato, 1959a, v.l, p.250 e 273).
Em março de 1916, data da primeira assembléia geral dos acio-
nistas da Revista do Brasil, Plínio Barreto pôde apresentar um
balanço bastante otimista de suas atividades, declarando na opor-
tunidade que, a julgar pela simpatia com que o periódico foi rece-
bido pelos "melhores escritores do país" ele encarava "sem receios
o futuro da revista".
4
Contudo, do ponto de vista estritamente comercial, o lança-
mento de uma publicação de cultura em um país que possuía altos
índices de analfabetismo,o deveria ser o melhor investimento
para uma empresa como O Estado de S. Paulo, que enfrentava
problemas de caixa. Possivelmente por isso o novo periódico, ape-
sar de idealizado e gestado na redação do jornal, tenha sido criado
sob a forma de uma sociedade anônima, composta por 66 acionis-
tas, cada um detendo uma única cota. O controle da linha edito-
rial da publicação ficaria a cargo de Júlio de Mesquita, porém os
riscos financeiros que envolviam o empreendimento seriam divi-
didos entre todos investidores.
Coube a Pinheiro Júnior a tarefa de angariar os acionistas da
revista, que deveriam adquirir cotas no valor de 300$000, quantia
4 Assembléia geral dos acionistas realizada em 30.3.1916. RBR, v.l, n.4, p.462,
abr. 1916.
significativa para a época. Talvez por isso a buscao tenha sido
fácil, consumindo - de acordo com a correspondência de Mon-
teiro Lobato, amigo pessoal de Pinheiro e que acompanhou passo
a passo o trabalho de organização do novo periódico - quase todo
o ano de 1915. Em janeiro deste ano Lobato perguntava a Godo-
fredo Rangel: "manda-me dizer o que devo declarar ao Pinheiro.
Ele lá te ofende, supondo-te incapaz, financeiramente, de ficares
com uma quota da sociedade em organização para lançamento da
revista", e em 30 de setembro voltava ao assunto, informando ao
amigo que os organizadores "ainda procuram acionistas" (Lobato,
1959a, v.2, p.l2 e 99).
A relação completa dos que adquiriram cotas foi publicada
no primeiro número da Revista do Brasil. A maioria dos nomes
vinha precedida do título de doutor. Note-se, porém, que o título
o foi distribuído aleatoriamente pois Júlio de Mesquita Filho,
na época ainda estudante de Direito,o foi contemplado com a
distinção. Encontram-se aí vários médicos, engenheiros, professo-
res, advogados, políticos importantes e jornalistas pertencentes,
em sua maioria, à elite paulista, o que permite caracterizar o perió-
dico como um empreendimento desse segmento social. A coesão
do grupo formado em torno de Júlio de Mesquita pode ser avaliada
se atentarmos que parte considerável das cotas foi adquirida por
colaboradores do seu jornal, indivíduos que nele trabalhavam ou
já haviam trabalhado.
Finalmente, em 25 de janeiro de 1916, data do aniversário da
fundação da cidade deo Paulo, surgia o primeiro número da
revista, que já vinha sendo amplamente anunciado nas páginas
d'0 Estado de S. Paulo.
5
Os seus idealizadores, possivelmente
contagiados pela atmosfera nacionalista reinante, decidiram, à
última hora, abandonar o primitivo nome (Cultura) e denominá-
la Revista do Brasil (Silva, 1985, p.64).
5 Em 19.1.1916 O Estado de S. Paulo publicava, com destaque, o sumário do
primeiro número da revista, informando que no dia 25 de cadas a mesma
poderia ser encontrada "à venda na sua redação, no escritório desta folha e
principais livrarias". Anúncio idêntico apareceria nos dias 25 e 31 de janeiro.
CONCRETIZAÇÃO DE UM PROJETO
Quando do seu lançamento, a Revista do Brasil tinha como
diretores Júlio de Mesquita, Alfredo Pujol e Luís Pereira Barreto;
a chefia da redação estava a cargo de Plínio Barreto, enquanto
Pinheiro Júnior acumulou, a partir do quarto número, a secretaria
geral e a gerência. Já a diretoria da sociedade anônima compunha-
se de Ricardo Severo, presidente; Pinheiro Júnior, tesoureiro;
substituído por Luiz Wanderley em abril de 1916;
6
Mário Pinto
Serva, secretário; Oscar Thompson, Rui de Paula Souza e Armando
Prado no conselho fiscal. Até maio de 1918, quando a sociedade
foi desfeita e o periódico vendido para Monteiro Lobato,o
houve alteração significativa nos quadros dirigentes.
Os objetivos do novo periódico foram expostos nas páginas
que abriram o seu primeiro número, provavelmente redigidas por
Júlio de Mesquita.
7
Trata-se de um manifesto-programa que
ensaiava um diagnóstico a respeito dos problemas do país, pro-
pondo caminhos para solucioná-los.
O texto esclarecia que "o que há por traz do título desta
revista e dos nomes que a patrocinam é uma coisa simples e
imensa: o desejo, a deliberação, a vontade firme de construir um
núcleo de propaganda nacionalista". Esse projeto justificava-se no
interior de um discurso que erigia como problema primordial do
país a ausência de uma consciência nacional, capaz de transformá-
lo em um todo organicamente estruturado.
Expressões desta ausência seriam, de acordo com o mani-
festo-programa, o profundo desconhecimento das coisas nacio-
nais - "aindao somos uma nação que se conheça, que se estime,
que se baste, ou, com mais acerto, somos uma nação queo teve
6 Por ocasião da Assembléia Geral realizada em 30.3.1916, Pinheiro Júnior foi
indicado para o cargo de secretário-gerente da revista, motivo pelo qual
renunciou ao de tesoureiro da sociedade anônima. RBR, v.l, n.4, p.461, abr.
1916.
7 O textoo vem assinado, mas de acordo com MARTINS, 1978, p.38 é de
autoria de Júlio de Mesquita. RBR, v.l, n.l, p.1-5, jan. 1916. Todas as
citações no corpo do texto provêm do manifesto-programa.
ânimo de romper sozinha para a frente numa projeção vigorosa e
fulgurante da sua personalidade" -, o desapego às nossas tradições
e história, essa última caracterizada como "o romance incolor
monótono e fastidioso de uma nação obscura e canhestra que
parece implorar perdão às demais por ser grande e indepen-
dente", o "milagre" da persistência da integridade territorial,
enfim a nossa "modéstia" e o nosso "apagamento" como nação.
O alheamento de si mesmo acarretaria a aceitação e imitação sub-
serviente de tudo o que vinha de fora.
Dar um sentido de conjunto ao país, incutir no seu povo a
consciência do próprio valor, estabelecer uma "corrente de idéias
e pensamentos", tais os remédios que se pretendia ministrar ao
paciente a fim de combater o seu "estado mórbido" e equipará-lo
s raças adultas, emancipadas e sadias".
O manifesto-programa esclarecia ainda que a Revista do Bra-
sil fora idealizada com o patriótico intuito de contribuir na
empreitada, "provocando estudos do passado que nos desvenda-
rão, nas coisas e nos homens, uma larga fonte de inspiração, de
amor e de orgulho, e estimulando todas as energias atuais para um
trabalho de observação e criação científica e literária, que nos
patenteie a todos a profundez e a riqueza de nossos tesouros inte-
lectuais".
Em outros termos, a publicação fora concebida enquanto
meio de ação por um grupo que se considerava capaz de colocar
o país no rumo certo. Esclarecer, ensinar, arregimentar e ordenar
forças, formar opinião, tendo por arma a palavra escrita, eis o
projeto ilustrado dessa elite decidida a exercer aquela que acredi-
tava ser sua missão suprema: conduzir.
A Revista do Brasil apresentou-se, ao longo dos 113 núme-
ros de sua primeira fase, sempre com as mesmas dimensões (15
x 22 cm) e manteve uma média de 95 páginas por número. A
face externa da capa tambémo apresentou variações significa-
tivas ao longo do tempo. Na parte superior, em letras de tama-
nho grande, vinha impresso o título do periódico, seguindo-se o
sumário - que ocupava cerca de três quartos do espaço total da
capa - e informações a respeito do local de publicação, data,
número, volume e endereço da administração. Por vezes, essas
informações migraram, aparecendo ora antes, ora depois do
título. Algumas deixaram de figurar no frontispício, como, por
exemplo, a sede administrativa, enquanto outras foram incorpo-
radas, como o nome dos diretores.
Entretanto, a opção de reservar a maior parte do espaço da
capa para o sumário foi constante ao longo de todos os números.
Isso, provavelmente, porque nada poderia expressar melhor os
objetivos do periódico e revelar sua natureza do que o sumário,
que estampava as grandes questões nacionais, debatidas pelos
maiores expoentes da inteligência nacional. O tom sóbrio das
capaso se alterou nem mesmo durante o período em que o
cinza dos primeiros anos foi substituído por cores fortes, que varia-
vam a cada mês, e o título e o sumário ganharam traços ornamen-
tais (números 48 a 84).
A distribuição da matéria na Revista do Brasil seguiu, durante
toda a sua primeira fase, o mesmo padrão. Abria o fascículo um
conjunto de ensaios, em geral inéditos, que abordavam assuntos
os mais variados: direito, economia, história, geografia, filosofia,
literatura, artes, arquitetura, engenharia, política, administração,
sanitarismo, medicina, entre vários outros. Esse corpo incluía
ainda a criação literária, presente em todos os exemplares da
revista - contos, poesias, novelas, impressões de viagem e roman-
ces, publicados em capítulos.
8
Antecedendo o núcleo básico, havia os editoriais, publicados
em 41 dos 113 números da revista (36,3%). A maioria deles dis-
cutia questões relacionadas à situação sociopolítica do país - elei-
ções presidenciais, voto secreto, reforma constitucional, estado de
8 A Revista do Brasil publicou os romances Vida ociosa de Godofredo Rangel
(entre os números 17-25), País de ouro e esmeralda de J. A. Nogueira (entre
os números 36-57); e o Diário de viagens de Martim Francisco (entre os
números 32-42). Fora do âmbito literário foram publicados: Vocabulário
analógico de Costa Firmino (entre os números 12-40); O linguajar carioca de
Antenor Nascentes (entre os números 65-78), além de alguns capítulos de
Populações meridionais do Brasil de Oliveira Vianna (entre os números 18-
24), do Dialeto caipira de Amadeu Amaral (entre os números 9-10) e da
Viagem às províncias de São Paulo e Santa Catarina de Auguste de Saint
Hilaire (entre os números 73-75).
sítio, pobreza do Nordeste, problemas sanitários etc. - enquanto
outros comentavam o contexto internacional, a morte de perso-
nalidades, atualidades da vida artística e cultural ou ainda altera-
ções ocorridas na direção da revista. Dezessete editoriais (41,5%)
continham assinatura, sendo um de autoria de Alberto Rangel,
três de Monteiro Lobato, quatro de Brenno Ferraz e nove de
Paulo Prado.
Aos ensaios e criação literárias seguiam-se seções. A principal
delas era a Resenha do Mês, presente em todos os números, exce-
ção feita ao octogésimo quinto, e que era composta sobretudo de
ensaios, conferências, notícias e artigos transcritos de jornais e
revistas nacionais e internacionais, além de alguns textos da reda-
ção. Contrariamente ao que sugere a sua denominação, a seção
o apresentava um relato ordenado ou um sumário dos fatos
ocorridos ao longo do mês. Seu objetivo principalo era infor-
mar o leitor a respeito dos últimos acontecimentos, mas antes dis-
cutir questões da atualidade, sempre com preocupação analítica.
Ao compor um amplo quadro do período, a partir de uma seleção
feita nos mais diversos órgãos da imprensa, a Resenha do Mês tam-
m permite divisar a linha editorial adotada pelos dirigentes da
revista.
A variedade de temas abordados era enorme. A seção abria
amplos espaços para determinadas questões, sendo mesmo possí-
vel afirmar que nela foram encetadas verdadeiras campanhas.
Nesse âmbito mereceram especial destaque a Liga de Defesa Nacio-
nal, cujas atividades, atuação dos dirigentes - especialmente Bilac
- e objetivos sempre foram acolhidos nas suas páginas; a segunda
candidatura Rui Barbosa; a defesa do direito à uma língua pró-
pria; as discussões a respeito da qualidade étnica do povo brasi-
leiro; as propostas relacionadas aos problemas higiênicos e
eugênicos do país.
Outros assuntos abordados na Resenha do Mês em mais de
uma oportunidade e sob os ângulos diversos,o raro antagôni-
cos, foram: imigração; instituições políticas; relações do Brasil
com os países vizinhos; Revolução Russa; Primeira Guerra, desde
as superstições entre os soldados até as questões tecnológicas que
o conflito suscitava e as conseqüências geopolíticas e econômicas
dos acordos de paz.
Ao lado desse conteúdo denso, havia toda uma gama de curio-
sidades (por exemplo: fantasmas célebres, caligrafia dos escrito-
res, o jornal de amanhã, desaparições misteriosas, costumes na
câmara inglesa, Napoleão jornalista, superstições irlandesas);
temas leves ou humorísticos (os cavalos do diabo, a águia e o avia-
dor, jogo do bicho pelo telégrafo, a ilha de Robson Crusoé, as
gafes etc.) e notas sobre invenções, novidades, descobertas e avan-
ços no campo científico e tecnológico (telefone sem fio, automó-
vel anfíbio, imensidão do universo, idade da Terra, utilização
mecânica dos raios solares, mimetismo nos animais, forças físicas,
o cérebro, propriedades terapêuticas do sapo, a enguia e seus
hábitos, o sono, agricultura mecânica...).
A Resenha do Mês também fornecia um amplo panorama do
movimento cultural e artístico. Cursos e conferências, congressos,
salões de pintura, espetáculos teatrais, musicais e de danças, expo-
sições de artes plásticas, concursos artísticos, lançamentos editoriais,
eram noticiados e comentados nas suas páginas, o mesmo ocor-
rendo em relação à Academia Brasileira de Letras - abertura de
vagas, eleições, discursos, reuniões e relatórios. A natureza e a
qualidade da produção local, as condições em que elas se assenta-
vam o papel do intelectual e o ambiente no qual ele se inseria eram
questões tematizadas com freqüência na seção.
A apresentação do conteúdo da Resenha do Mêso seguiu
um padrão fixo. Durante certos períodos, o materialo continha
qualquer estruturação interna, enquanto em outros apresentava-
se dividido e agrupado por subtítulos, sendo os mais freqüentes:
movimento teatral, movimento artístico, artes e artistas, biblio-
grafia, mortos do mês, movimento editorial, revista das revistas,
curiosidades, variedades, homens e coisas nacionais, homens e
coisas estrangeiras, notas de ciência, vida nacional.
Algumas dessas subdivisões deixaram de figurar no interior
da Resenha do Mês para ganhar vida própria, transformando-se
em seções independentes, embora nem sempre por longo tempo.
Esse foi o caso de Variedades e Curiosidade; Notas de Ciência, que
durante certo período (n
os
28 a 33) ficaram a cargo de Roquette
Pinto e Artur Neiva; e Bibliografia, seção das mais importantes
que ganhou autonomia a partir do trigésimo número. Nela eram
resenhados praticamente todos os lançamentos editoriais do país
nas mais variadas áreas do saber.
Ainda cabe destacar as seções Debates e Pesquisas e Notas do
Exterior, presentes na maior parte dos números 61 a 113 da
revista. A criação destas deve ser encarada como um esforço para
melhor ordenar o amplo leque de assuntos tratados na Resenha do
Mês. Em Debates e Pesquisas predominavam os temas polêmicos,
informações a respeito de novos avanços nas mais diversas áreas e
curiosidades em geral. Notas do Exterior, como o nome bem
revela, centralizava notícias de outros países, fossem elas questões
políticas, do mundo das artes, costumes ou notas interessantes e
curiosas. Exceção feita à Bibliografia, que estava a cargo do corpo
de colaboradores da revista, quase todo o material que compunha
as demais seções citadas provinha de transcrições de outros órgãos
da imprensa nacional e internacional.
Outras seções constituíam-se de artigos especialmente produ-
zidos para a revista. Esse foi o caso de Fatos e Idéias (7 números),
sob a responsabilidade do engenheiro Victor da Silva Freire; Lín-
gua Vernácula (4 números), escrita por Antonio Marmo; Academia
Brasileira de Letras (26 números), na qual Arthur Motta discorria
sobre a vida e a obra dos acadêmicos; Crônica de Arte (6 números),
escritas por Mário de Andrade; Estudinhos de Português (6 núme-
ros), com José Patrício de Assis; Mealhas Etimológicas (3 núme-
ros), discutidas por Francisco Luiz Pereira e as Crônicas Parisienses
(3 números), a cargo de Sérgio Milliet. Observe-se que, entretanto,
os dirigentes da revista nunca revelaram a preocupação de entabu-
lar um diálogo permanente com os leitores do periódico por meio
de uma seção de cartas ou sugestões.
A revista publicou vasto material iconográfico. Parte dele
constituía-se de fotos, mapas, gráficos, esquemas ou desenhos que
ilustravam artigos e ensaios. Especial atenção foi dedicada às
exposições de artes plásticas em geral e aos salões anuais de pin-
tura, que chegaram a ter séries inteiras reproduzidas. Quando da
abertura de concursos - como os que escolheram o brasão da
cidade deo Paulo, o monumento da independência e aquele
dedicado aos Andradas - a revista costumava dar a público os
vários projetos rivais. Notas e artigos da Resenha do Mês, dedica-
dos a figuras ilustres do cenário nacional ou internacional, fre-
qüentemente vinham acompanhadas de bustos, grande parte dos
quais executados pela pena de José Wasth Rodrigues. Já a seção
Caricaturas do Mês, que reproduzia de quatro a seis trabalhos
selecionados dentre os publicados na imprensa carioca e paulista,
ocupou - com exceção dos números dez, quinze e 34 - as páginas
finais dos números da revista.
Além das ilustrações que integravam os textos, a Revista do
Brasil publicava séries como Gravuras Antigas, que contava com
reproduções de Debret, Rugendas, Koster, Fleury, Chovannes,
Langlois, entre outros; Galeria dos Editados, composta por foto-
grafias de autores que tiveram seus livros publicados pela Casa
Editora Revista do Brasil; trabalhos de artistas contemporâneos
como A. Zimmerman, Georgina e Lucilio de Albuquerque, Bene-
dito Calixto, Lopes Leão, Clodomiro Amazonas e que por vezes
vinham enfeixados sob a designação de arte nacional; fotos de
caboclos acompanhados da legenda "tipos da roça". Somente em
duas oportunidades a revista rendeu-se ao mundanismo: no
número 33, que estampou fotos da neve em Caxias de Sul, e no
42, que reproduziu imagens da cidade deo Paulo vista de um
aeroplano.
Do 18
0
número em diante, o artigo que abria a revista passou
a contar com uma vinheta, prática que foi estendida, a partir do
37° número, para todos os demais artigos e seções. Inicialmente
tratava-se de um conjunto de desenhos de Wasth Rodrigues que
se repetiam sistematicamente. Com o correr do tempo, novas ilus-
trações foram sendo incorporadas ao núcleo inicial. Em duas
oportunidades, a partir dos números 61 e 109, ocorreu completa
renovação temática, passando Juvenal Prado a assinar as ilustra-
ções. Entretanto, os motivos brasileiros sempre foram a fonte ins-
piradora: jangadas, quedas d'água, rios, palmeiras, papagaios e
outros espécimes da flora e fauna nacionais. Também era comum
a presença de pequenas ilustrações ao término de artigos e seções
Do ponto de vista estritamente quantitativo, os autores com
maior número de trabalhos publicados, excluindo-se as transcri-
ções, foram Monteiro Lobato (40), Arthur Motta (25), Amadeu
Amaral e Mário de Andrade (13), Júlio César da Silva e Medeiros
e Albuquerque (12), Roquette Pinto, Godofredo Rangel e Oli-
veira Vianna (10), Mário Sette e Carlos Magalhães Azevedo (9),
José Patrício de Assis, Victor Freire da Silva, Mário Pinto Serva,
Oliveira Lima e Sérgio Milliet (8), Mário de Alencar e Artur Neiva
(7), Eduardo Navarro de Andrade, F. Badaró, Armando Caiuby,
Hélio Lobo, Alberto de Oliveira, Alberto Rangel e Antonio Salles
(6), Rui Barbosa, Sérgio Espínola, Martim Francisco, Haddock
Lobo, Alceu Amoroso Lima, Argeu Guimarães e Alfredo d'E. Tau-
nay (5), Olavo Bilac, Sampaio Dória, Martins Fontes, Gilberto
Freyre, Paulo Setúbal, José Oiticica, Rodrigo Octávio Filho, Leo
Vaz, René Thiollier, A. Carneiro Leão e Júlio Scheibel (4).
Essa listagem, apesar de conter uma pequena fração do total
de autores que de alguma forma estiveram presentes na revista, é
suficiente para evidenciar a diversidade de correntes ideológicas e
de posturas estéticas nela representadas. O mensário reunia per-
sonalidades da geração de 1870 (Rui Barbosa), escritores perten-
centes ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Taunay,
Roquette Pinto, Hélio Lobo), nomes famosos do momento (Paulo
Setúbal, Amadeu Amaral, Medeiros e Albuquerque), pensadores
autoritários (Oliveira Vianna), defensores do liberalismo (Mário
Pinto Serva, Pedro Lessa), representantes do renascimento cató-
lico (Jackson de Figueiredo), os primeiros educadores profissio-
nais (Sampaio Dória, João Kopke), médicos envolvidos com os
problemas sanitários (Afrânio Peixoto, Belisário Penna, Arthur
Neiva) e eugênicos (Renato Kehl), representantes da tradicional
Academia Brasileira de Letras (Souza Bandeira, Oliveira Lima,
Mário de Alencar) e das novas correntes (Mário e Oswald de
Andrade, Guilherme de Almeida).
A análise sistemática da produção literária veiculada pela
Revista do Brasil transcende os nossos objetivos. Entretanto, para
a caracterização geral da publicação, é importante ressaltar que a
maior parte das contribuições em prosa provinham dos regiona-
listas (Afonso Arinos, Monteiro Lobato, Mário Sette, Leo Vaz,
Godofredo Rangel, Valdomiro Silveira), seguidos pelos naturalis-
tas-realistas (Júlio Scheibel, Horácio Quiroga, Luiz Gonzaga
Fleury, Albertino Moreira), comparecendo os parnasianos
(Alberto de Oliveira), simbolistas (Pompeu Pequeno, Jacomino
Define) e decadentistas (João Pinheiro, Tranquilino Leitão) em
menor proporção.
Na produção poética, por sua vez, predominavam os parna-
sianos (Bilac, Francisca Júlia, Alberto de Oliveira, Luís Murat) e
neoparnasianos (Amadeu Amaral, Olegário Mariano, Martins
Fontes, Mário de Alencar e Humberto de Campos), seguidos dos
simbolistas (Homero Prates, José Lanns, Medeiros e Albuquer-
que, Wanderley Villela) e dos penumbristas ou decadentistas
(Júlio César da Silva, Jaime d'Altavilla, Alcides Flávio, Carvalho
Aranha, Cleomenes Campos).
A partir de 1923, a revistao só passou a acolher, com
intensidade crescente, autores comprometidos com a renovação
estética (Luís Aranha, Corrêa Júnior, Sérgio Milliet, Tácito de
Almeida, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida), como tam-
m se converteu em um espaço no qual concepções tradicionais
e modernas passaram a medir forças. Pode-se encarar como uma
estratégia de luta o fato de o teórico por excelência do moder-
nismo, Mário de Andrade, ter preferido - quando teve oportuni-
dade de escrever para a principal publicação cultural do país e que
até então estivera totalmente identificada, pelo menos do ponto
de vista estético, ao chamado conservadorismo - utilizá-lao
para divulgar sua produção literária - em apenas uma oportuni-
dade ele publicou poesias - mas enquanto veículo para discutir
propostas, tarefa que concretizou por meio de ensaios e do exer-
cício da crítica.
Em pouco tempo a Revista do Brasil consagrou-se, sendo fes-
tejada e admirada pela intelectualidade. Pouco antes do seu lança-
mento, Lobato vaticinou: "A Revista do Brasil aparece em janeiro
e pelos modos vai ser coisa de pegar, como tudo o que brota do
Estado, empresa sólida e rizomática. Razão para aderirmos. Pro-
meti um estudo sobre o Almeida Júnior e você (Rangel) pode
entrar com um dos romances" (Lobato, 1959a, v.2, p.48-9). De
fato, como assinalou Cavalheiro, aparecer em suas páginas foi,
por muito tempo, o sonho de todo estreante, de todo "candidato
à glória no país das letras" (Cavalheiro, 1956, v.l, p.73):
Já viste a Revista do Brasil? É caso de tomares uma assinatura.
Nasceu de boa estirpe, está bem aleitada pelo Estado, é a única nesse
gênero em todo o país. (Lobato, 1959a, v.2, p.64)
A Revista do Brasil, deo Paulo, é hoje (1920), sem dúvida
nenhuma, publicação verdadeiramente revista que existe no Brasil.
(Barreto, 1956, v.l3, p.70)
A pronta acolhida dada à revista certamente deveu-se à escas-
sez de publicações essencialmente culturais. Nesse momento, os
magazines de variedade ou revistas ilustradas constituíam-se no
produto mais típico e refinado do mercado de bens culturais.
Esses periódicos, elaborados para agradar e divertir um público
heterogêneo, recorriam em larga escala à imagens, fotos e ilustra-
ções, e abordavam extensa gama de assuntos: crônica social e polí-
tica, humor, moda, crítica teatral e de arte, reportagens poesias,
contos, romances, charges, caricaturas, entrevistas, variedades.
Muitas reservavam considerável espaço para notas sobre casa-
mentos, aniversários, batizados, banquetes, retratos de homens
públicos, artistas e literatos famosos.
A Semana Ilustrada de Henrique Fleiuss (RJ, 1860-1876), a
Revista Ilustrada de Angelo Agostini (RJ, 1876-1898) e Ilustração
do Brasil de Carlos Vivaldi (RJ, 1876-1880) figuram entre as pre-
cursoras desse gênero de periodismo, que ganhou corpo no início
do século com o surgimento da Revista da Semana (RJ, 1901), A
Avenida (RJ, 1903), Kosmos (RJ, 1904), Renascença (RJ, 1904),
Fon-Fon (RJ, 1907), A Vida Moderna (SP, 1907), Careta (RJ,
1908), A Ilustração Brasileira (RJ, 1909), A Cigarra (SP, 1914),
entre outras.
O significado dessas revistas para a época pode ser melhor
avaliado se considerarmos que em 1901 a Ilustração Brasileira,
magazine na qual a fotografia predominava sobre o desenho, era
produzida em Paris poro existirem no país oficinas gráficas
capazes de imprimi-la. Nessa medida, justifica-se plenamente o
entusiasmo despertado pelo surgimento de Kosmos (1904), passí-
vel de ser comparada - por suas qualidades estéticas - às congêne-
res européias (Dimas, 1983, p.5). Em seu número de estréia a
direção do mensário referia-se às enormes dificuldades enfrenta-
das em um "meio como o nosso,o mal aparelhado para seme-
lhante empresa" (Broca, 1960, p.218).
Contudo, tais obstáculos devem ter sido rapidamente supera-
dos uma vez que a partir de então cresceu significativamente a
quantidade de revistas em moldes próximos ao de Kosmos, deno-
tando que as potencialidades desse segmento do mercado foram
desde logo percebidas e exploradas por aqueles que detinham
capital.
De outra parte, por meio dos objetivos expressos em suas
páginas e das propagandas veiculadas na grande imprensa, foi
possível apreender a imagem que esses periódicos pretendiam
refletir. Normalmente os anúncios apregoavam que a revista pos-
suía "a mais rápida e abundante reportagem fotográfica da
Europa, a mais vasta documentação da vida nacional pela fotogra-
fia, a mais luxuosa e artística das publicações ilustradas, artigos
assinados pelos mais ilustres escritores nacionais e estrangeiros"
(Revistada Semana, OESP, 12.2.1916); "lindos coloridos, charges
e caricaturas ... completa reportagem fotográfica em métodos e
incomparáveis clichês, magnífico texto em prosa e verso de alguns
de nossos melhores escritores" (A Cigarra, OESP, 16.1.1916);
"insuperável reportagem fotográfica ... lindas páginas coloridas,
excelente colaboração em prosa e verso, esporte, arte, munda-
nismo" (Vida Moderna, OESP, 29.5.1916); "belo e vistoso maga-
zine, o maior sucesso jornalístico da América do Sul e sem dúvida
o mais luxuoso do mundo" (Eu sei tudo, OESP, 27.5.1918).
Fica evidente que as revistas ilustradas esperavam conquistar
o leitor com dois argumentos básicos: a qualidade estética do pro-
duto e o alto nível de seus colaboradores. Porém, a presença da
fina flor da cultura nacional estava longe de implicar qualquer
compromisso com a realidade e os problemas do país. O ideal
dessa imprensa pode ser sintetizada na máxima com a qual A Vida
Moderna se apresentou ao público: "texto, como sempre, leve e
variado" (Vida Moderna, OESP, 27.1.1926).
Na mesma direção caminhava Bilac, que se recusou a
comentar em Kosmos o problema da varíola no Rio de Janeiro
por considerá-lo "impróprio e descabido nesta revista de arte e
elegância"; assim como o cronista de Renascença, que julgou a
questão fronteiriça entre o Brasil e o Peru incompatível com "as
páginas leves e desanuviadas" do periódico (Dimas, 1983, p.19).
O caso da revista A Vida Paulista (1903) é ainda mais paradigmá-
tico uma vez que no seu próprio programa lia-se: "não vamos pre-
gar nenhuma idéia,o vamos derrubar, a artigos, o governo,
nem levantar, a desenho, a lavoura, nem estimular, a prosa, a
indústria: nem com as mesmas armas desenvolver o comércio"
(Freitas, 1915, p.935).
Os magazines pretendiam revelar a moda do dia, as regras do
bom gosto e bem viver, numa palavra, todo o necessário para que
o seu leitor, em geral pertencente aos extratos médios da sociedade,
pudesse se familiarizar com os padrões de elegância das classes
abastadas, tal como ocorreu no romance de João do Rio, A profis-
são de Jacques Pedreira (1911), cuja personagem Alice dos Santos
"aprende os mínimos gestos e a tecnologia da alta roda folheando
magazines" (Sussekind, 1987, p.82).
Ao lado das revistas ilustradas havia toda uma plêiade de
publicações que tendiam à especialização. Assim, existiam as que
se dedicavam ao teatro, cinema, música, humor, esportes; outras
que visavam o público infantil, o feminino - com destaque para a
Revista Feminina (SP, 1914), primeira grande publicação nesse
gênero e que circulou por mais de vinte anos, constituindo-se num
exemplo lapidar da vinculação entre imprensa, publicidade e a
nascente indústria de cosméticos -; ou ainda aquelas que procura-
vam atender aos interesses de grupos profissionais, como médi-
cos, juristas, educadores, agricultores etc.
Embora vários periódicos de caráter literário ou cultural
tivessem sido lançados durante a Primeira República, a grande
maioria deles deixou de circular pouco depois do seu apareci-
mento. Foi esse o caso da Revista Contemporânea (RJ), publicada
entre 1899 e 1901, que reuniu os nomes mais representativos do
simbolismo; Anais (RJ), que circulou de 1904 a 1906 e tinha na
direção Domingos Olympio; Floreal (RJ), dirigida por Lima Bar-
reto e da qual saíram quatro números, sendo o primeiro em fins
de 1907; Rosa-Cruz (RJ), também de caráter simbolista, cuja pri-
meira fase em 1901 totalizou quatro números e a segunda, em
1904, três exemplares (Broca, 1960, p.216-26). Emo Paulo
a situaçãoo era diferente, como atestam os exemplos d'A
Gazeta Artística (1901), A Musa (1905), A imprensa Acadêmica
(1906) e A Arcádia Acadêmica (1906), todas de curta duração.
Diante das dificuldades enfrentadas, só restava a esse gênero
de revistas encerrar as atividades ou alterar a linha editorial. Tal
medida foi adotada por Panóplia (SP, 1912) que, ao fim do seu
segundo ano de existência, comunicou ao público que daquela
data em diante seria também "um magazine de variedades" (Ama-
ral, 1967, p.154).
Ainda que a presença de um mercado consumidor de bens
culturais fosse inconteste,o se deve superestimar suas dimen-
sões e potencialidades. É importante ressaltar que em 1890 ape-
nas 15% da população brasileira era alfabetizada, taxa que
atingiu, de acordo com o censo realizado em 1920, o patamar de
24%. Nesse mesmo período, o Estado deo Paulo passou do
décimo para o segundo lugar em termos de população alfabeti-
zada, resultado que, pelo menos em parte, pode ser creditado à
atenção que as autoridades locais dispensaram ao assunto.
Especialmente a partir da Primeira Guerra Mundial, foram
implantadas várias reformas no ensino elementar paulista, respon-
sáveis pela introdução de importantes inovações que acabariam
por erigir a escola primária do Estado em modelo para o resto do
país. Entretanto, ainda que entre 1890 e 1927 a quantidade de
alunos matriculados no curso primário tenha aumentado vinte
vezes, ante um crescimento populacional de 4,3 vezes,o Paulo
ainda ostentava em 1920 um índice global de analfabetismo de
70%, cifra que decrescia para 42% na capital (Infantosi, 1983,
p.74). Esse quadro nada promissor impunha limitações à
imprensa como um todo, mas certamente afetava mais profunda-
mente as revistas de caráter exclusivamente literário e cultural.
Os dados citados permitem melhor avaliar o lugar ocupado
pela Revista do Brasil na história da imprensa. O periódico foi, no
seu gênero, a publicação de maior longevidade da República
Velha, tendo se convertido em um fórum privilegiado no qual as
questões nacionais eram debatidas sob os mais variados pontos de
vista.
Note-se, porém, que a situação financeira da revista nunca
correspondeu ao renome adquirido. Pouco depois de completar
dois anos de existência, a publicação enfrentava sérios problemas
de caixa. Por ocasião da assembléia geral dos acionistas convocada
para deliberar sobre o futuro do periódico, Ricardo Severo fez um
diagnóstico preciso, ao afirmar que:
Houve um erro original na organização da empresa, erro ape-
nas sob o ponto de vista da textura financeira. Parece-me queo
deveríamos ter-nos congregado em coletividade anônima, de capital
parcelado em pequenas cotas de numerosos acionistas, e porque, das
dificuldades que sobrevieram para integralização do capital social
provieram as primeiras e contínuas dificuldades desta empresa de
literatos. Deveria, quando muito, ter-se constituído sob a forma de
parceria ou grupo mínimo de associados, que desde o começo reali-
zasse o capital base, necessário à edição dos primeiros tomos e
aguardasse, pacientemente, o equilíbrio comercial correspondente
ao brilhante sucesso literário da revista. Como, porém, assimo foi
desde o princípio, avolumou-se extraordinariamente o passivo, sem
que o capital social concorresse senão com uma reduzida porcenta-
gem e desta sorte estabeleceu-se o desequilíbrio.
9
Diante desse quadro, foi aceita por unanimidade a oferta de
compra apresentada por Monteiro Lobato, que a partir de maio
de 1918 tornou-se o único proprietário da Revista do Brasil.
MONTEIRO LOBATO: EMPRESÁRIO DA CULTURA
Desde o final de 1917 o nome de Monteiro Lobato era cogi-
tado para substituir Plínio Barreto na direção da revista. Entre-
tanto, eleo tencionava aceitar o convite e afirmava a Rangel
"ser um burrinho muito rebelde e chucro para ter patrão - e iria
9 SEVERO, R, Relato da situação financeira da sociedade anônima Revista do
Brasil. RBR, v.8, n.30, p.215-6, jun.1918.
ter dois Júlio de Mesquita e Alfredo Pujol". Mais do que dirigir o
periódico a pretensão de Lobato era "substituir-me à assembléia
comprando aquilo. Revista sem comando únicoo vai". Mas,
confidenciava ao amigo, "a coisa é segredo" (Lobato, 1959a, v.2,
p.l69 e p.60).
Em maio de 1918 a transação, que montou em mais de dez
contos de réis, foi concluída, materializando antigo sonho de
Lobato.
10
Durante o período em que a Revista do Brasil lhe perten-
ceu-maio de 1918 a maio de 1925-foram publicados 84 números
que, somados aos 29 anteriores, totalizam 113 exemplares.
Ao adquirir a revista Monteiro Lobato já despontava como
figura de destaque no cenário cultural do país. Nascido em 1882
em uma família de plantadores de café da cidade de Taubaté, aí
fez seus primeiros estudos. Em 1897, tornou-se interno do Insti-
tuto de Ciências e Letras, sediado emo Paulo, de onde saiu em
1900 para ingressar na Faculdade de Direito do Largoo Fran-
cisco. Enquanto acadêmico, fundou com os amigos Ricardo Gon-
çalves, José Antonio Nogueira, Raul de Freitas, Candido
Nogueira, Lino Moreira, Tito Lívio Brasil e Godofredo Rangel,
o grupo denominado Cenáculo, que se reunia para intermináveis
discussões literárias no Café Guarany e no Minarete, nome dado
à república - um chalé amarelo no Belenzinho - que Rangel,
Ricardo e Lobato dividiam.
Bacharel em 1904, regressou à Taubaté. Graças à influência
do avô paterno, o Visconde Tremembé, foi nomeado promotor
em Areias, cidade em que fixou residência a partir de 1907. Per-
maneceu no cargo até 1911 quando, com a morte do visconde,
herdou a fazenda Buquira, propriedade imensa, porém decadente,
que ele se esforçaria em soerguer.
10 Lobato referiu-se, em mais de uma oportunidade, à questão: "que belo jornal
ou revistao formaríamos nós, do nosso grupinho, acrescido do Plínio Bar-
reto, do Heitor de Morais, e mais uns tantos rebeldes sem medo de chegar
fogo aos estopins!", ou ainda "está me ganhando um azedume que só terá
esgotos em jornal próprio. Acabo montando um, ou uma revista, na qual só
eu mande e desmande" (LOBATO, J. B. M., 1959a, v.2, p.23 e 24, respecti-
vamente).
Ainda que escrevesse desde os tempos de estudante - todo um
volume de suas obras completas compõe-se de artigos que publi-
cou quando cursava a faculdade - foi apenas com Velha Praga,
carta dirigida à seção queixas e reclamações, impressa no jornal O
Estado de S. Paulo em 12 de novembro de 1914 e reproduzida por
periódicos dos mais variados cantos do país, que Lobato tornou-
se efetivamente conhecido. Desde então, sua colaboração neste
jornal, no qual fora introduzido por Pinheiro Júnior, assim como
em outros órgãos da imprensa, amiudou-se. Em 23 de dezembro
de 1914 publicou no referido matutino o conto Urupês e no início
do ano seguinte passou a integrar o corpo de colaboradores remu-
nerados d'0 Estado. O próprio Lobato relatou o fato ao amigo
Rangel:
Pinheiro é amigo ... e contou-me que na sala do Nestor, n'0
Estado, houve uma séria discussão sobre aquele artigo Urupês, na
qual poucos concordaram comigo totalmente, mas todos foram unâ-
nimes em que sou 'novo de forma' e uma 'revelação'... E, disse mais
o Pinheiro, que cada um me atribuía uma filiação. Um provou que
eu imitava o Eça. O Armando Prado que eu imitava o Fialho. A maio-
ria, porém, achou que eu me revelava pessoal e sem filiações aparen-
tes. E disso resultou que O Estado vai pagar-me os artigos a 25$000.
(Lobato, 1959a, v.2,p. 19)
Velha Praga, que denunciava a prática das queimadas, e Uru-
pês, no qual se consubstanciou o personagem Jeca Tatu, causaram
intensa polêmica. Nesses dois textos, com seu estilo direto e irô-
nico, Lobato traçou um perfil ácido do caboclo, que destoava da
tradição romântica, cultivada por parcela significativa da produ-
ção literária da época, queo raro idealizava o homem do
campo, atribuindo-lhe dimensões épicas.
Jeca Tatu extravasou os limites da ficção para encarnar o
anti-herói nacional, que incomodava na medida em que compro-
metia uma determinada concepção da vida cabocla, rompia com
o discurso ufanista a respeito do país e seus habitantes - como já
o fizera Lima Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma -, e
trazia à tona questões sobre a permeabilidade do Brasil à moder-
nização, os caminhos a serem trilhados para atingi-la, as causas e
os responsáveis pelo nosso descompasso; numa palavra, discuti-lo
implicava ter por objeto o próprio país (Campos, 1986, p.18).
Alguns, inconformados com as características imputadas ao
personagem e, por extensão, à imensa maioria dos brasileiros, cria-
ram tipos diametralmente opostos, como o Mané Chique-Chique
do deputado Ildefonso Albano, rocha viva da nacionalidade; ou o
Jeca Leão de Rocha Pombo, criatura dotada de inúmeras virtudes
e nenhum defeito.
Enquanto a celeuma em torno do Jeca crescia, Lobato acom-
panhava de perto a organização da Revista do Brasil, da qual se
tornaria um dos colaboradores mais assíduos - ele figurou em
quinze dos 29 volumes publicados antes dele adquiri-la. Em razão
dos laços de amizade que o ligavam a Pinheiro Júnior e Plínio Bar-
reto, dispunha de considerável grau de influência no periódico,
como atesta a publicação do romance de Godofredo Rangel, Vida
ociosa, que só ocorreu graças ao seu empenho.
Em agosto de 1916 Lobato contava ao amigo: "quando
esteve aqui [na fazenda] por várias vezes o Pinheiro voltou ao
assunto da Vida ociosa - se era boa 'mesmo', se era coisa de valor
etc. ... Respondi: 'não escrevo ao Rangel sugerindo que mande a
Vida... porqueo há na revista competência para julgá-lo. O que
o Rangel vai fazer é dar em livro a Vida ociosa, com um sucesso
tremendo e vocês terão que convencer-se queo passam duns
anos'. Isso calou no ânimo do Pinheiro e levou-o a escrever-te
pedindo a Vida". Em maio de 1917 Lobato voltava ao assunto:
"hoje escrevi à revista (como por ordem tua) que ou publicassem
a Vida ou devolvessem os originais... Tiro-a de lá e publico-a em
rodapé no Estadinho". Menos de ums depois anunciava a Ran-
gel: "a Vida ociosa vai afinal sair. Aquela intimação surtiu efeito.
respondeu o Plínio que ao devolvia porque ia publicá-la"
(Lobato, 1959a, v.2, p.101 e 138-9).
Entretanto, se o escritor desfrutava de um prestígio crescente
nos meios literários, a situação financeira do fazendeiro estava
longe de ser tranqüila. As terras da Buquira, cansadas de tantas
colheitas, exigiam, para voltarem a ser produtivas, grande inver-
o de capitais, exatamente o que Lobatoo possuía. Seus esfor-
ços em prol da modernização da fazenda - intentou novos
processos de criação de galinhas, cabras e outros animais, adqui-
rindo espécimes de raça, investiu em máquinas de beneficiamento
do café, abriu novas áreas de plantio -o trouxeram os resulta-
dos esperados.
A situação desfavorável da economia brasileira nos anos
1913-1914, a restrição dos créditos, as constantes flutuações nos
preços do café e o início da guerra na Europa, conjuntura que afe-
tava indistintamente os produtos agrícolas, tornava ainda mais
aflitiva a saúde financeira de Lobato. Em 1915, época em que já
se havia decidido pela venda da propriedade, seu passivo beirava
a casa dos vinte contos de réis. Tais dificuldades possivelmente
expliquem porque Lobatoo figurou entre os acionistas da Revista
do Brasil.
Quando finalmente conseguiu desfazer-se da fazenda, lá por
meados de 1917, Lobato fixou residência emo Paulo e passou
a dedicar-se em tempo integral à literatura. Nesse mesmo ano
organizou, com grande sucesso, um inquérito a respeito do Saci-
Pererê para o Estadinbo e em 1918 engajou-se na campanha em
prol do saneamento, propugnada por Miguel Pereira, Belisário
Penna, Afranio Peixoto e Artur Neiva, tendo publicado uma série
de artigos no jornal O Estado de S. Paulo a respeito da questão.
A luta em favor do saneamento e da higiene, além de contri-
buir para aumentar o renome do autor - "a mim, afirmava ao
amigo Rangel, favoreceu muito aquela campanha pró-saneamento
que fiz pelo Estado. Popularizou a marca Monteiro Lobato; o
público imagina-me um médico sabidíssimo, e a semana passada
tive um chamado telefônico altas horas da noite" (Lobato, 1959a,
v.2, p.173) - significou, conforme teremos oportunidade de res-
saltar, um ponto de inflexão no pensamento lobatiano, uma vez
que as causas da preguiça e indolência do Jeca deixaram de ser
encaradas como intrínsecas ao personagem, perdendo assim o seu
estatuto de imposição biológica peculiar às raças inferiores, para
transformar-se em produto da doença.
No plano pessoal 1918 também foi um ano marcante pois, no
seu transcorrer, Lobato realizou alguns projetos de há muito aca-
lentados, como o de tornar-se editor. Já em janeiro de 1915 decla-
rava a Rangel: "não há livros, afora os franceses.s precisamos
entupir este país com uma chuva de livros", o que de fato ele faria
algum tempo depois. Nesse mesmo ano recusou oferta de um
indivíduo que pretendia reunir em livro os seus artigos, alegando
tratar-se de "um cara",o um editor profissional. A conclusão
que tirou do episódio - "cara por cara, porqueo a minha?"
(Lobato, 1959a, v.2, p.7 e 21) - prenunciava as suas intenções.
Imediatamente depois de ter vendido a fazenda comunicava,
em carta ao cunhado Heitor, que estava "estudando o negócio
editorial", relatava conversa mantida com pessoas do ramo sobre
o pagamento de direitos autorais e pedia-lhe que manifestasse ao
escritor Valdomiro Silveira seu desejo de editá-lo (Lobato, 1959b,
p.68). O interesse de Lobato pelo assunto também foi registrado
por Guilherme de Almeida, que lhe relatou como, por conta pró-
pria, custeara a edição de sua obra Nós.
Editar os próprios livros era prática comum no final dos
anos 10. As poucas casas editoras então existentes só abriam suas
portas para figuras consagradas e mesmo assim em tiragens
pequenas. Nomes de peso como Machado de Assis, Coelho Neto,
Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Alberto Rangel, tiveram sua
obra impressa na França ou em Portugal, enquanto Lima Barreto
para ver publicado seu primeiro livro, Recordações do escrivão
Isaías Caminha, abriuo de receber qualquer direito autoral.
Para certificar-se das potencialidades desse ramo de ativi-
dade, Lobato imprimiu, às suas expensas, o inquérito sobre o Saci-
Pererê que organizara para o Estadinho. Ao amigo Rangel confi-
denciou: "Meu Saci está pronto, isto é, composto, falta só a
impressão. Se o negócio correr bem, editarei outros livros". O
volume, com quase trezentas páginas, veio à público no início de
1918, tendo a primeira edição esgotado em apenas dois meses. O
sucessoo deve tê-lo surpreendido pois antes mesmo de colocar
o livro no mercado prognosticava: "O Saci é um livro sui-generis:
para criança, para gente grande, para sábios folclóricos, ninguém
escapa. Dará dinheiro" (Lobato, 1959a, v.2, p.160 e 152). Ani-
mado com os resultados, Lobato decidiu lançar o seu próprio
livro de contos, reunindo o que de melhor publicara em revista e
jornais.
A aquisição da Revista do Brasil, periódico que desfrutava de
grande reputação nos meios intelectuais, coadunava-se perfeita-
mente com os projetos de Lobato, que poderia então fundar sua edi-
tora sob a prestigiosa chancela da revista. De fato, a idéia de lançar
as edições da Revista do Brasilo era nova; o próprio Lobato men-
cionou ao assunto em carta à Rangel datada de agosto de 1917. Em
dezembro deste ano, antes portanto da venda do periódico, a revista
publicava anúncio de um livro de contos de Monteiro Lobato inti-
tulado Dez mortes trágicas, a ser lançado em fevereiro ou março
vindouro. A obra, com o título alterado para Urupês, somente seria
lançada em julho de 1918. O enorme sucesso alcançado pelo livro
certamente contribuiu para demover qualquer dúvida sobre a
potencialidade da atividade editorial.
De posse da Revista do Brasil, a primeira preocupação de
Lobato foi torná-la rentável. Entretanto, a julgar pelos aspectos
formais - estruturação interna do conteúdo, sessões, dimensão,
capa, número de páginas, tipo de material iconográfico utilizado
- a presença de Lobatoo trouxe alterações significativas à
publicação. O cuidado em preservar a mesma aparência pode ser
encarado como uma tática para demonstrar que o periódico con-
tinuava fiel ao padrão de excelência que lhe havia garantido
renome nos círculos cultos.
Entretanto, o novo proprietário imprimiu reformulações nos
critérios de seleção do corpo de artigos, como indica o fato de
haver desaparecido da contracapa, a partir do número 34, a infor-
mação de que a revista só publicava trabalhos inéditos. Também
é notória a preocupação de tornar o mensário mais leve e atraente,
aumentando o espaço dedicado à criação literária. Em duas opor-
tunidades Lobato externou a sua opinião a respeito da publicação
que acabara de adquirir: em agosto de 1918 lembrava a Rangel
que "o fato do teu romance ter saído na Revista do Brasil corres-
ponde a quase ineditismo. Ninguém lê essa maçuda e irrespirável
revista cheia de cracas acadêmicas. Estás alio inédito como se te
publicasse O Correio Paulistano. É indispensável vires à público
em livro" (Lobato, 1959a, v.2, p.180). Na mesma época, em carta
a Lima Barreto, afirmava: "A Revista do Brasil deseja ardente-
mente vê-lo entre seus colaboradores. Ninho de medalhões e
pérolas, ela clama por gente interessante, que dê coisas que caiam
no gosto do público ... A confraria é pobre, mas paga, por issoo
há razão para Lima Barreto deixar de acudir o nosso pedido"
(apud Cavalheiro, 1956, v.l, p.13-4).
Numa atitude inédita até então, os leitores foram convidados,
por duas vezes, a enviar matérias para o mensário. A primeira
delas ocorreu em julho de 1919, quando a revista lançou um con-
curso-inquérito a respeito da Independência, oferecendo um prê-
mio de um conto de réis para o melhor trabalho, além de propor-
se a publicar os mais significativos; e a segunda, em novembro do
mesmo ano, ao veicular nota esclarecendo que o periódicoo
pretendia se fechar "ao principiante, ao obscuro, ao sem-nome",
antes acolheria tanto "as manifestações intelectuais do consagrado
pela imortalidade acadêmica, como as de um simples curioso", e
sugeria uma extensa lista de temas que gostaria de ver tratados em
suas páginas, todos eles coerentes com o seu programa de "ser um
reflexo da alma nacional, essa alma brasílica sufocada pelo estran-
geirismo invasor e pelo esnobismo infrene das grandes capitais".
11
Entretanto,o foi possível aquilatar a repercussão ou os resulta-
dos destas tentativas, uma vez que o periódicoo mais voltou a
mencionar o assunto.
Sem dúvida, Lobato pretendia adequar a publicação a um
público mais amplo, tendo em mira o crescimento do número de
leitores. Segundo suas próprias palavras, ele estava a desenvolver
furiosamente a propaganda. Os números da revista passaram a
estampar um cupom promocional que dava direito a uma assina-
tura grátis a todos aqueles que angariassem quatro novos assinan-
tes. Possivelmente para agilizar a divulgação da revista além das
fronteiras paulistas, Lobato criou o cargo de diretor estadual, con-
vidando para exercê-lo pessoas que então desfrutavam de renome
no mundo literário.
12
Três meses depois de haver comprado o
11 RBR, v.ll, n.42, p.190, jun. 1919 e v.13, n.49, p.194, nov. 1919.
12 Foram diretores estaduais: José Maria Bello (RJ), J. A. Nogueira (MG),
Mário Sette (PE), Antonio Salles (CE), João Pinto da Silva (RS), J. de Aguiar
Costa Pinto (BA), Seraphim França (PR), Alcides Bezerra (PB), Henrique Cas-
trieiano (RN), João Batista de Faria e Souza (AM). Os diretores estaduais
foram mencionados na revista entre os números 33 e 52.
mensário declarava a Rangel: "quando me fiquei com ela entra-
vam em média doze assinaturas por mês. Hoje entra isso por dia.
Nessa primeira quinzena de agosto registrei cento e cinqüenta
assinantes novos. Meu processo é obter em cada cidade o ende-
reço de pessoas que lêem e enviar a cada uma o prospecto da
revista, com uma carta direta e mais coisas - iscas. E atiço em cima
o agente local. Estou a operar sistematicamente pelo país inteiro.
Manda-me pois daí o nome das pessoas alfabetas menos cretinas
e merecedoras da honra de ter a nossa revista" (Lobato, 1959a,
v.2, p.179-80). Em 1919 anunciava ao amigo que a revista con-
tava com três mil assinantes.
Lobato estava promovendo uma verdadeira revolução no sis-
tema de distribuição, até então restrito a algumas dezenas de livra-
rias. O passo seguinte foi enviar uma circular a todos os agentes
dos correios solicitando endereço de papelarias, bazares, armari-
nhos, farmácias, lojas de ferragens e de fazendas, enfim qualquer
estabelecimento capaz de vender seus produtos, ou seja, a Revista
do Brasil, Urupês e o Saci-Pererê. Lobato enviava as obras em con-
signação, pagando 30% de comissão sobre o preço de cada exem-
plar vendido e aceitava-os de volta casoo tivessem saída
(Lobato, 1956a, p.158 e 189-190).
Em fevereiro de 1919, relatava entusiasmado ao amigo Ran-
gel: "a seção das edições toma corpo. Ontem saiu o romance de
Lima Barreto {Vida e morte de M. j. Gonzaga de Sá), sai hoje o pri-
meiro da série de Martim Francisco (Rindo) e quantos na bica! O
negócio vai crescendo na fatura de livros" (Lobato, 1959a, v.2,
p.189). Pouco depois de completar um ano à frente da revista,
Lobatoo só havia saldado todo o seu passivo, que montava em
dezesseis contos de réis, como dispunha de um ativo de setenta
contos, isso sem abalar o prestígio da publicação. Organizou
então, em meados desse mesmo ano, a sua própria editora com
um capital de cem contos.
Enquanto editor, Lobato empregou métodos que alteraram
os parâmetros até então vigentes no mercado de livros. Consci-
ente de que vendia uma mercadoria como qualquer outra - "faço
livros e vendo-os ... exatamente o negócio do que faz vassouras e
vende-as, do que faz chouriço e vende-os" (Lobato, 1959a, v.2,
p.211) - ele preocupou-se, contrariando a praxe da época, em
divulgar o seu produto e colocá-lo ao alcance do grande público.
Costumava afirmar que "livroo é gênero de primeira necessi-
dade, que o sujeito é obrigado a ir procurar aonde exista, parao
morrer de fome. Livro é sobremesa: tem que ser posto debaixo do
nariz do freguês, para provocar-lhe a gulodice" (Barros, 1957,
p.84). Em várias oportunidades Lobato insistiu na necessidade de
se adotar uma postura agressiva ante o leitor. Confidenciava à
Rangel: "A máquina está bem montada - a máquina de gravar
gansos ou de obrigar esse país ler a força. O nosso sistemao é
esperar que o leitor venha, vamos onde ele está, como o caçador.
Perseguimos a caça. Fazemos o livro cair no nariz de todos os pos-
síveis leitores dessa terra.o nos limitamos às capitais, como os
velhos editores. Afundamos em quanta biboca existe" (Lobato,
1959a, v.2, p.239). Seus esforçoso foram em vão. Koshiyama
(1985, p.76) assinala que entre os leitores da Revista do Brasil,
Urupês e Cidades Mortas estava o jovem Érico Veríssimo, que
então morava no interior do Rio Grande do Sul.
Lobato multiplicou os pontos de venda, anunciou os livros de
sua editora em jornais e revistas, fato até então pouco comum,
1
'
passou a dar atenção aos títulos,
14
à divisão do texto e ao nome
dos capítulos,
15
preocupou-se com a diagramação e a qualidade
da impressão, contratou ilustradores, colocou cor nas capas, aban-
donou o tradicional formato francês (12 x 19cm) em prol de um
13 "O meu Narizinho... tem que ser metido bucho a dentro do público, tal qual
fazem as mães com o óleo de rícino. Gastei quatro contos num anúncio de
página inteira num jornal. LOBATO, J. B. M., 1959a, v.2, p.230.
14 Em carta a Lima Barreto, Lobato assim explicava o fracasso do romance Vida
e morte de M. J. Gonzaga de Sá por ele editado: "O teu livro sai pouco, sabe
por que? O títuloo é psicologicamente comercial. Um bom título é metade
do negócio. Ao ler o título do teu romance toda gente supõe que é a biografia
de ... um ilustre desconhecido". CAVALHEIRO, E., 1956, v.l, p.42.
15 "Recebi Vida ociosa. Parece-me aconselhável trocar a simples enumeração dos
capítulos, coisa anti-comercial, pela denominação dos capítulos, coisa comer-
cialíssima. Acho horrivelmente árido um romance de capítulos numerados. E
é fértil o que em cada capítulo tem um titulozinho tentador ... Tudo que nos
livros dispões o bem do público ledor e comprador é agradável a Deus."
LOBATO, J. B. M., 1959a, v.2, p. 139.
padrão próprio (12 x 16,5cm) menor e que possibilitou o baratea-
mento das edições, deu oportunidade à jovens escritores.
No decorrer de 1919, sua editora lançou quinze obras, num
total de sessenta mil exemplares. Entusiasmado, relatava a Ran-
gel: "nossa casinha editora vai de vento em popa - mas que vento:
furacão!o há memória de triunfo igual". Contudo esses núme-
ros ainda eram modestos perto dos duzentos mil volumes produ-
zidos em 1921. Relatava ao amigo: "Temos editado brutalmente.
Já trinta edições este ano (1921) e mais quinze que estão para esse
s - de dois em dois dias uma. Isso me cheira a record..."
(Lobato, 1959a, v.2, p.170 e 235).
O seu sucesso como editor forçou-o a entrar no ramo gráfico,
uma vez que as seções de obras dos grandes jornais, que normal-
mente imprimiam os livros,o estavam aparelhados para produ-
zir a quantidade exigida pelo editor e nem tampouco a qualidade
estética desejada. Em maio de 1922, com sua empresa já organi-
zada sob a forma de sociedade anônima, Lobato anunciava à Ran-
gel a instalação daso sonhadas oficinas, que tomariam
proporções cada vez maior. No final desse mesmo ano, a socie-
dade registrava aumento de capital para mil contos e a entrada de
novos sócios, entre eles Paulo Prado, que integralizaram o capital
necessário para a montagem do parque gráfico. Como resultado,
a partir de janeiro de 1923 a Revista do Brasil passou a ser dirigida
por Prado, enquanto Lobato concentrava seus esforços na editora.
Em 1924, surgia a Companhia Gráfica Editora Monteiro Lobato,
cujas oficinas próprias estavam instaladas no Brás
num prédio de cinco mil metros quadrados de área coberta, todo
cheio de máquinas, entre elas novidades: os primeiros monotipos
entrados emo Paulo. O linotipo compõe linhas inteiras; o mono-
tipo funde tipo por tipo. Maravilha ... Há lá um mundo de linotipos
e prelos ... O prédio é uma beleza - é um monstro. (Lobato, 1959a,
v.2, p.264)
A edição de livros, que começou como uma atividade subsi-
diária da Revista do Brasil, logo se tornou o ramo principal dos
negócios de Lobato, obrigando-o a afastar-se cada vez mais da
literatura e da revista. Queixava-se ao amigo Rangel em tom de
lamento "Começo ao ler nada, estou a caminho da bestificação.
Três anos de vida como esta, e estou galego de balcão, com oss
virados para fora ... Meu nome, que aparecia no alto dos livros ou
embaixo de artigos, virou agora objeto de registro na Junta
Comercial" (Lobato, 1959a, v.2, p.1919).
Apesar do nome de Lobato ter quase sempre figurado entre
os diretores da Revista do Brasil,
16
a efetiva gerência do periódico
foi sendo progressivamente delegada a outros. Em abril de 1924
Lobato anunciava a Rangel: "entreguei a revista ao Paulo Prado e
Sérgio Milliet eo mexo mais naquilo. Eleso modernistas e
o ultramodernizá-la. Vejamos o que sai - e seo houver baixa
no câmbio das assinaturas, o modernismo está aprovado".o se
tratava de simples retórica. Ao receber uma contribuição de Rangel
para a revista escreveu-lhe que era preciso que "o diretor da revista
(eu sou honorário) aprove" (Lobato, 1959a ,v.2, p.264 e 270).
Na sua origem a Revista do Brasil foi concebida enquanto ins-
trumento de ação pelo grupo do jornal O Estado de S. Paulo, que
acreditava na capacidade transformadora e pedagógica da palavra
escrita. Lobato, integrante ilustre dessa plêiade, nunca deixou de
comungar dessa opinião. Porém, com sua aguda percepção
empresarial, ele também foi capaz de utilizar eficazmente o perió-
dico como meio para a realização de seus negócios. A preocupa-
ção de torná-lo rentável obrigaram-no a levar em conta o gosto do
público, enquanto as freqüentes alterações no quadro dirigente
16 O quadro dirigente da revista foi o seguinte: 1 ao 29 diretores: Júlio de
Mesquita, Alfredo Pujol, Luís Pereira Barreto, secretário Pinheiro Júnior; 30
ao 41 diretor: Monteiro Lobato, secretário Pinheiro Júnior, até o número
36 e depois Alarico F. Caiuby; 42 ao 48 diretores: Monteiro Lobato e
Lourenço Filho, secretário Caiuby; 49 ao 60 diretor: Monteiro Lobato,
secretário até o número 56 Caiuby, queo foi substituído; 61 ao 66 dire-
tores: Afrânio Peixoto e Amadeu Amaral, Lobato figurava como editor; 67 a
72 diretores: Monteiro Lobato e Afrânio Peixoto, secretário Moacyr Dea-
breu nos números 67 a 69 e Brenno Ferraz do 70 ao 72, ocupando o cargo de
redator; 73 a 75 diretores: Monteiro Lobato e Brenno Ferraz, sem indicação
de redator ou secretário; 76 a 84 diretores Monteiro Lobato, Brenno Ferraz
e Ronald de Carvalho; 85 a 113 diretores: Monteiro Lobato e Paulo Prado,
redator Júlio César da Silva até o número 97 e Sérgio Milliet do 98 ao 113.
trouxeram mudanças para a linha editorial e favoreceram a diver-
sidade de colaborações e colaboradores, permitindo à publicação
espelhar o pensamento de vários setores da intelectualidade. A
tensão entre os modernistas e os passadistas, que a partir de 1924
explodiu nas suas páginas, constitui um bom exemplo de como a
revista foi capaz de abrigar opiniões contrastantes, o que a torna
um manancial dos mais ricos para o historiador.
É certo que desde o início dos anos 20 o mensário vivia, do
ponto de vista financeiro, à sombra da editora. Entretanto,o
parece correto supor, como fez Barros (1957, p.76), que Lobato
tivesse insistido em mantê-la viva por mero sentimentalismo, à
exemplo do fazendeiro enriquecido que conserva no pasto a sua
bestinha baia de estimação. Com o seu particular senso comercial,
Lobato tinha clareza da importância da Revista do Brasil para a
editora e ele soube utilizá-la como uma grande vitrine para si e
seus produtos. A descrição fornecida pelo próprio Barros deixa
patente o enorme prestígio adquirido pelo periódico:
Seu renome e prestígio eram grandes tanto emo Paulo como
nos demais centros de atividade intelectual do país. E da cidade tudo
quanto era escritor, artista, jornalista, poeta, pensador ou mero "sapo"
em alguns desses setores, tinha ali naquelas duas saletas o seu habitual
ponto de encontro. Com o que o expediente da revista só vigorava
mesmo, e produzia o que era indispensável, no período da manhã, cm
que ali estávamos Lobato, Alarico (Silveira), (Armando) Caiuby e eu.
A tarde, a revista virava clube ou tertúlia, cavaqueavam, discutiam, ou
tiravam uma furtiva soneca, os mais variados, heterogêneos e desen-
contrados espécimes intelectuais... Eram obrigatórias ou esporádicas
as presenças de Artur Neiva, Manequinho Lopes, Plínio Barreto,
Felinto Lopes, Paulo Setúbal, Hilário Tácito, Raul de Freitas, Quinzi-
nho Correa, Indalécio Aguiar, Armando Rodrigues, Júlio César da
Silva, Wasth Rodrigues, Roberto Moreira, Ricardo Cipicchia, Volto-
lino, Cornélio Pires, Amadeu Amaral, Oswald de Andrade e ainda
muitos outros... Mas também do interior, do Rio, ou de outros Esta-
dos,o tinha por aquele tempo nenhum intelectual ou artista que
viesse ào Paulo e queo buscasse a redação da revista, (p.78-9)
A fim deo circunscrever as atividades de sua editora às
páginas destinadas à propaganda, criou seções como Notícias
Literárias, que anunciava os livros antes deles virem à público:
Teremos este ano vários livros que despertarão interesse. Já
surgiu, há poucos dias, Os Caboclos de Valdomiro Silveira, conta-
dor exímio... Martins Fontes trabalha ativamente, no seu retiro de
Santos, de ondeo demorará a surgir alguma bela surpresa. Emo
Paulo temos, em plena atividade, Monteiro Lobato, de quem sairá
muito breve, na série A Novela Nacional, um volumezinho intitu-
lado Os Negros. Também nos dará ele, sem tardança, uma edição
ampliada da Menina do Narizinho Arrebitado, queo grande êxito
alcançou a poucos dias. Do mesmo escritor está a sair em Buenos
Aires sua tradução de Urupês, pela editora Pátria... Na mesma série
acima citada, uma novela de Leo Vaz, e em seguida outra de Gustavo
Barroso. Depois virá de novo Amadeu Amaral, que abriu a série,
com uma nova história do nosso torrão. Antes disso, porém, apare-
cerá uma reedição d'A Pulseira de Ferro, cuja primeira tiragem, de
cinco mil exemplares, está a esgotar-se. Dentro de poucos dias
deverá seguir, editada pela empresa desta revista, uma reedição de
antigos e graciosos versos regionalistas de Cornélio Pires, este escri-
tor prepara, além disso, um novo volume de contos.
17
Outra seção que cumpria função semelhante intitulava-se
Movimento Editorial, na qual eram listadas as obras editadas, sua
tiragem e anunciados os próximos lançamentos, tanto da editora
de lobato quanto dos concorrentes,
18
o que acabava por conferir
ao conjunto um tom de imparcialidade capaz de tornar mais
verossímil os elogios tecidos à sua empresa. Assim, depois de apre-
sentar um balanço da produção editorial paulista ao longo dos
anos 1920, o articulista da revista concluía:
Como se vê desta resenha incompleta, o movimento livreiro
emo Paulo tem crescido admiravelmente, nos últimos tempos,
sendo de se notar que este Estado é ainda o melhor dos clientes as
livrarias do Rio. Este progresso um tanto repentino foi preparado,
principalmente, pelo grande encarecimento dos livros estrangeiros,
durante e depois da guerra. Várias causas concorreram em seguida:
17
Notícias Literárias. RBR, v.16, n.61, p.90, jan.1921.
18 A revista publicou, na referida seção, a seguinte nota: "Aceitamos com prazer
qualquer informação que os senhores editores de todo o Brasil nos queiram
enviar, no sentido de nos por ao corrente dos seus trabalhos realizados ou em
vistas de realização". Movimento Editorial. RBR, v.16, n.64, p.84-5, abr.
1921.
o aparecimento de editores ousados, inteligentes, conhecedores da
psicologia do nosso público, o auxílio esclarecido e simpático da
imprensa.
19
Em outra oportunidade, ao comentar os 45 lançamentos do
primeiro semestre de 1923, totalizando 208 mil livros, afirmava-
se: "Esse movimento muito lisonjeia os arrojados editores, que
apesar de terem sido dos últimos aparecidos, já pesam na balança
livresca, e cada vez mais, além de terem organizado uma coisa
nova no país: venda de livros em todas as localidades do país. As
novidades que a casa editao ficam nas capitais, como acontecia
antigamente, mas infiltram-se pelo país inteiro eo procurar os
leitores onde quer que eles se encontrem".
20
Uma vez publicada, a obra era apreciada na Bibliografia, mui-
tas vezes pelo próprio Lobato, que assim ungia o trabalho com o
seu prestígio. Qualquer comentário elogioso, procedente de
outros órgãos de imprensa, era transcrito na Resenha do Mês. A
revista chegou a possuir também uma seção intitulada A Litera-
tura Nacional no Estrangeiro, no qual eram compiladas as críticas
provenientes de jornais e revistas do exterior, com especial desta-
que para os livros editados por Lobato.
21
A Revista do Brasil cumpria ainda o importante papel de tirar
do anonimato os neófitos lançados pela editora. No mensário eles
publicavam contos, poesias, ensaios, artigos, de modo a familiarizar
o público com os nomes que, pouco depois, seriam encontrados nas
lombadas dos livros. Lobato idealizou também a série Galeria dos
19 Movimento Editorial. RBR, v.16, n.61, p.90, abr. 1921, grifo meu.
20 Movimento Editorial. RBR, v.23, n.91, p.230, jul. 1923.
2 1 A seção foi inaugurada na RBR, v.21, n.82, p.152, out. 1922. Outras vezes os
comentários eram enfeixados na rubrica Notas do Exterior. Ver, por exem-
plo, na RBR, v.21, n.81, p.84-92, set. 1922, os artigos, transcritos de jornais
estrangeiros, queo poupavam elogios a Monteiro Lobato, Hilário Tácito e
Leo Vaz. Noticiava-se ainda a homenagem prestada pela revista argentina
Nuestra Revista que, para marcar a passagem do Centenário da Independên-
cia, dedicou todo um número à literatura brasileira, tendo publicado trabalhos
de Lobato, Júlio César da Silva, Hugo Carvalho Ramos, Ribeiro Couto,
Mário Sette, Lima Barreto, Gabriel Marques e Faria Neves Sobrinho.
Editados, uma página inteira em papel couché com o retrato de
autores que tiveram seus livros publicados pela casa. A revista ali-
mentava um culto à figura de Lobato, que era enaltecida por meio
de notícias a respeito da tradução de seus escritos para outras lín-
guas, reprodução de resenhas e comentários elogiosos provenien-
tes de outros órgãos da imprensa nacional e estrangeira.
Suas realizações como editor e empresário arrojado foram
devidamente louvadas no periódico, como fica patente no
seguinte trecho:
Nesta capital do Brasil intelectual, a empresa de Monteiro
Lobato é o que há de mais importante. Um mundo de máquinas: pla-
nas, linotipos, monotipos; de policromias, de gravação, de tudo. Um
mundo. Contou-me ele um caso que demonstra a eficiência das ofi-
cinas da Empresa Gráfica Editora Monteiro Lobato. A primeira edi-
ção de Narrando A Verdade do General Abílio de Noronha, foi de
cinco mil exemplares e esgotou-se num dia. No outro choveram os
pedidos de tal modo que Monteiro Lobato resolveu tirar, imediata-
mente, nova edição. Deu início à tarefa às 7:30 do outro dia e, às
19:30, dez mil exemplares estavam prontos para a venda. Só Mon-
teiro Lobato vende mais livros do que todos os livreiros cariocas reu-
nidos! As oficinas estão lançando obras na proporção de uma por
dia e a menor seção que há no estabelecimento é a de estoque.
22
A Revista do Brasil propugnou com insistência a necessidade
de um maior intercâmbio cultural entre os países latinos, fato que
o pode ser dissociado das pretensões de Lobato de lançar seus pro-
dutos nos países de língua espanhola por intermédio da Argentina. A
partir de 1919, as referências à república vizinha tornaram-se
constantes na revista: livros, escritores, artigos da imprensa por-
tenha ganharam, desde então, espaço no periódico. A editora, por
sua vez, lançou uma coleção denominada Biblioteca Americana,
inaugurada com Facundo de Domingo Sarmiento. Os contatos de
Lobato com a intelectualidade argentina amiudaram-se e ele che-
gou mesmo a iniciar negociações, queo chegaram a bom termo,
com a Cooperativa Editorial Argentina. Vários contos seus, assim
22 L. (não identificado). Bagatelas. RBR, v.28, n.112, p.366, abr. 1925.
como de autores por ele editados, foram publicados em jornais e
revistas desse país.
23
Porém, o crescimento e a prosperidade de Lobatoo se
assentavam em bases sólidas. As imensas dívidas contraídas para a
instalação da nova oficina gráfica - de longe a maior, mais
moderna e bem equipada do Estado - deveriam ser pagas com o
faturamento dos meses subseqüentes. O próprio Lobato demons-
trava plena consciência de quão tênue era o seu equilíbrio finan-
ceiro ao afirmar:s vezes me dá medo. E se o arranha-céu
desaba? Nós, que lá na rua Boa Vistao devíamos um vintém,
agora devemos milhares de contos ... e a pagar-se em prestações
mensais" (Lobato, 1959a, v.2, p.270).
Seus piores temores realizaram-se. Uma conjuntura desfavo-
rável, marcada pela Revolução de 1924, que impôs três meses de
inatividade à empresa; pela política deflacionária de Bernardes,
com a retração do crédito bancário; pela seca prolongada do ano
seguinte, que cortou drasticamente o fornecimento de energia elé-
trica; acabou por arrastá-lo, em agosto de 1925, à falência. Sua
luta para tentar evitar a bancarrota pode ser acompanhada por
meio das missivas remetidas ao amigo Rangel. Em carta bastante
significativa relatava:
A situação piora. A Light que prometera restabelecer a força
este mês, avisa hoje que fará nova redução na energia fornecida. Só
podemos trabalhar agora dois dias por semana! E como a horrenda
seca que determinou esta calamidade continua, é voz geral que tere-
mos completa supressão de força em novembro. O desastre que isso
representa parao Paulo é imenso, e como se junta à crise de ener-
gia elétrica a crise de água da Cantareira e a crise bancária, o mal é
23 A respeito da importância de Monteiro Lobato na Argentina ver o texto
escrito em 1941 no jornal O Estado de S. Paulo por Braúlio Sanchez-Sáez
quando da morte de Valdomiro Silveira (apud DIAS, 1984, p.256-9). Braúlio
foi apresentado na RBR, v.21, n.83, p.247, nov. 1922 como o seu representante
da publicação em Buenos Aires. Foi o responsável pela organização do
Inquérito Literário Sul-Americano, que tinha por finalidade avaliar o grau de
conhecimento da produção intelectual brasileira entre os letrados do conti-
nente. Os resultados foram publicados na RBR, v.23, n.91, p.193-205, jul.
1923.
enorme. Até o recurso de montarmos um motor a Diesel falhou;
depois de assuntado, faltou-nos água para o resfriamento... verda-
deira calamidade... Eu podia prever tudo no meu negócio menos
isso: seca do Ceará emo Paulo. (Lobato, 1959a, v.2, p.277-8)
Terminava melancolicamente a aventura editorial de Lobato.
Alguns contemporâneos atribuíram-lhe um otimismo exagerado a
ponto de torná-lo imprudente; outros consideravam que suas
idéias econômicas e sociológicaso passavam de ingenuidades
literárias e houve até quem se confessasse intimamente rejubilado
sempre que o via colher decepções ao semear fora do campo lite-
rário (Barreto, 1958, p.227-8). Entretanto, parece suficiente assi-
nalar que as máquinas por ele importadas em 1924 ainda eram
consideradas "eficientes numa das maiores e mais modernas ofici-
nas gráficas do país quarenta anos depois" (Travassos, 1974,
p.248-9). O último número da primeira fase da Revista do Brasil
circulou em maio de 1925, totalizando mais de nove anos de exis-
tência. Na simbiose revista-editora residiu, em larga medida, o
segredo da longevidade do periódico.
Estabelecido o lugar da publicação na história da imprensa, é
possível adentrar com maior segurança na análise do seu con-
teúdo. Dos seus 113 exemplares sobressai o desejo persistente de
promover uma releitura do país. Os diagnósticos e projetos pro-
duzidos, que se pretendiam investidos de uma legitimidade então
conferida apenas pelo adjetivo científico, traziam, freqüente-
mente, a marca do desalento. Tendo tomado por guia paradigmas
que consagravam noções deterministas de raça e meio, vários pen-
sadores mostravam-se cépticos em relação ao grau de permeabili-
dade à civilização de uma região tropical, recém-saída da
escravidão.
O Brasil, que já embalara os sonhos de riqueza e abundância
dos europeus, adentrava o século XX citado como um contra-
exemplo. Desprovido de uma história gloriosa, com grandes
extensões de terras ainda intocadas, habitado por uma população
escassa e estigmatizada pela presença do sangue de índios e
negros, então considerados inferiores, ele parecia fadado a perma-
necer alijado do concerto das nações. Segundo a opinião corrente,
aindao éramos uma verdadeira nação, conclusão que imprimia
um sentido de urgência à tarefa de descobrir porque parecia falhar
a química capaz de garantir, sob ou dos trópicos, uma existên-
cia plena ao nacional.
A proposição do problema, a maneira de enfrentá-lo e as saí-
das sugeridas variaram consideravelmente nas páginas da Revista
do Brasil, o que atesta que a publicação foi capaz de expressar
diferentes setores da intelectualidade. Contudo, uma representa-
ção em particular transparece com força: a que atrelava as possi-
bilidades de futuro à condição de se impor o exemplo paulista ao
conjunto do país. Cada vez mais a nação foi sendo identificada ao
Estado deo Paulo que, com suas fazendas, indústrias, ferrovias
e grandes cidades, desfrutava de uma prosperidade econômica
sem similar no país.
Os atributos da nacionalidade - fronteiras definidas, con-
quista da soberania política, feitos históricos gloriosos, habitantes
dotados de traços étnicos específicos, posse de uma língua e de
uma cultura própria - acabaram sendo creditados exclusivamente
aos paulistas. Nas páginas da Revista do Brasil é possível acompa-
nhar os passos dessa construção mitológica que atribuía ao Estado
toda e qualquer positividade contida na idéia de Brasil.
GRUPO I: Figuras 1 a 5
Lobato soube utilizar a revista como veículo de difusão das publicações de sua
editora. (RBR, n.l, 30, 37, 83 e 90)
FIGURA 1-A
RESENHA DO MEZ O Codigo Civil Brasileiro, P. B Mo-
vimento literario: Lendas e tradições Machado de Assis
Bellas Artes: —Pintura e esculptura, P. Revistas e
Jornaes: As revistas no Brasil; a "Semana"; a nossa situa-
ção internacional. As revistas nos Estados Unidos. Soli-
dariedade Commercial e de instituições das republicas do hemis-
pherio occidental. A alimentação das crianças. Guerra ao
alcool Os literatos italianos e a Guerra O organisador da
"Triplice-entente" As mulheres japonezas e a politica
Aphorismos As mentiras da reclame Collaboradores da
"Revista do Brasil" Sclencias e Arte: O telephone
sem fios Automoveis amphibios = A acustica nas salas
As cidades-jardins, X. As caricaturas do mez.
A "REVISTA 00 BRASIL" só publica trabalhos ineditos
FIGURA 1-B
FIGURA 2
FIGURA 3
FIGURA 4
FIGURA 5
2 HISTORIA E GEOGRAFIA:
REVALORIZAÇÃO DA NAÇÃO
Desde a primeira expedição colonizadora,
parece que recebera aquele solo [deo Paulo]
com tanto carinho o espírito da raça que nunca
mais deixou de estar ali, palpitante e forte, o cora-
ção da nacionalidade. Essa impressão sente-se
muito viva, e em crescendo até nossos dias, ao
estudarem-se os anais que ali se escreveram e que
são, por assim dizer, o centro de toda a nossa his-
tória. POMBO, R. A terra paulista e suas grandes
legendas. {RBR, v.2, n.7, p.272, jul. 1916)
Abandonemos as fantasias que acalentamos
desde que Pero Vaz de Caminha, com a satisfação
dos queo boas notícias, dizia na sua primeira
crônica, louvando a nossa terra, que "em tal
maneira é graciosa que querendo aproveitar dar-
se-á nela tudo por bem das águas que tem"; preci-
samos estudar, analisando os fatos, as possibilida-
des de cada um dos tratos do nosso imenso
território ... Pelo estudo da história econômica uni-
versal, pelo estudo da geologia do Brasil, pelo
estudo da metalurgia, tudo com vistas na exploração
dos métodos universais de trabalho mecânico, che-
garíamos a nos libertar desse otimismo leviano ao
considerarmos o valor da nossa terra e desse pessi-
mismo injusto ao apreciarmos o valor do homem
brasileiro. (RIO, J. P. do. O combustível na econo-
mia universal. RBR, v.2, n.7, p.284, jul. 1916)
Por mais divergentes que fossem as análises a respeito da rea-
lidade nacional, pelo menos em um ponto todos pareciam concor-
dar: o Brasil, com suas fronteiras quase continentais, ostentava
um patrimônio geográfico invejável, que o distinguia dos demais
países.o é de surpreender que nos discursos sobre a nação bra-
sileira o espaço tenha ocupado posição destacada. A vastidão do
território, um épico sempre em cartaz, alicerçou o ufanismo em
seus diferentes matizes, num amplo espectro que vai da aparente
singeleza descompromissada de um Afonso Celso à doutrina de
segurança nacional da Escola Superior de Guerra. No início do
século XX, período em que a voracidade das potências imperialis-
tas pareciao ter limites, as dimensões do país insuflavam o
orgulho nacional.
A visão grandiosa fornecida pela geografia contrapunha-se
uma história sem cor ou brilho, circunstância que causava uma
sensação de profundo desconforto, tornada ainda mais incômoda
na medida em que a essas disciplinas atribuía-se a nobre função de
ensinar aos cidadãos a cartilha do patriotismo. Na Revista do Bra-
sil a temática foi discutida com freqüência tanto nos artigos
escritos especialmente para o periódico, quanto nas seções - nor-
malmente compostas pela redação com material proveniente de
outros órgãos da imprensa.
Analisando a documentação, percebe-se que o deslumbra-
mento ante as potencialidades da terra, apesar deo estar total-
mente ausente das páginas do periódico, foi cedendo lugar a
uma discussão a respeito da necessidade dos brasileiros apossa-
rem-se efetivamente desse bem. Especialmente a partir de 1914,
o contexto da guerra parecia demandar uma ação decidida para
concretizar as nossas sempre decantadas, porém nunca materia-
lizadas, riquezas. A geografia, que jáo aceitava mais ser redu-
zida à condição de simples nominata, ansiava por figurar ao lado
dos saberes positivos e ofertava à nação projetos para o presente
e o futuro.
Da história, por sua vez, esperava-se um conjunto coerente de
tradições a serem partilhadas por todos. Acreditando-se conduzi-
dos pelao firme da metodologia científica, os historiadores
debruçaram-se sobre o passado, privilegiando certos indivíduos e
episódios em um trabalho de consagração que respondia às neces-
sidades do momento. Emergiu então a figura do bandeirante, dila-
tador incansável das fronteiras. A narração da conquista e da
manutenção do território foi transformada na grande epopéia
nacional, redimindoo apenas o nosso passado mas também as
regiões tropicais que - afinal - davam sinais de poder conviver
com a civilização. Essa construção excludente, que transpunha a
recente supremacia desfrutada poro Paulo para o tempo mítico
das origens, mal conseguia disfarçar suas implicações políticas.
JUVENTUDE DO BRASIL
Para alguns dos intelectuais presentes nas páginas da Revista do
Brasilo parecia suficiente exaltar as dimensões do país, eles acha-
vam necessário torná-lo o maior do mundo. Na conferência Brasil,
Potência Mundial, proferida em abril de 1922 na Universidade de
Yale, o diplomata e escritor Hélio Lobo assim apresentou o país:
Primeiro o aspecto geográfico ... Ele mostra o Brasil como pos-
suindo aproximadamente a metade da área territorial da América do
Sul, de cuja população tem mais ou menos 50% ... Ele é igual em ter-
ritório aos vossos 46 Estados mais a Grã-Bretanha e Irlanda, a
Holanda, a Suíça, a Bélgica, o Portugal, a Dinamarca e a Grécia
antes do tratado de Sevres. Em área somos o quinto país do mundo,
sendo os quatro primeiros o Império Britânico, a Rússia, a China e
os Estados Unidos; mas se refletirdes que a China e a Rússia estão se
desmembrando, nosso lugar passa a ser o segundo, e, ainda mais, se
tomardes em linha de conta que o Império Britânico é disseminado
e que os Estados Unidos estão separados do Alasca e outras posses-
sões por muitas milhas marítimas, vereis que o Brasil constitui, de
fato, o primeiro país do mundo, com mais de três milhões de milhas
quadradas de superfície e uma costa banhada a leste e nordeste pelo
Oceano Atlântico numa extensão maior que a que separa Nova York
de Liverpool, estende-se dos 5,10 graus de latitude Norte aos 33,46
de latitude Sul, limitando-se ao Noroeste, Oeste, Sul e Sudoeste com
todas as repúblicas da América do Sul, exceto o Chile e o Equador.'
1 LOBO, H. Brasil, potência mundial. RBR, v.20, n.78, p.99-100, jun. 1922.
Estao era uma descrição para simples consumo externo,
ela estava estampada nos jornais e revistas, nos livros didáticos de
Moral, Civismo, História e Geografia, nos ensaios sobre o país e
era repetida por letrados e políticos. Com freqüência crescente
argumentava-se que "um país só pode ser considerado como tal
quando é constituído por uma só nação, por uma só nacionali-
dade, com as mesmas aspirações nacionais. Para esse efeito, povos
subjugados, vassalos ou tributários,o fazem parte do mesmo
país ... O maior país do mundo dentro dessa definição é o Brasil.
O segundo os Estados Unidos".
2
A posse de uma tal extensão de terras foi tomada por alguns
como uma dádiva dos céus,
3
um privilégio ainda mais honroso
quando se levava em contao apenas a quantidade mas, como
postulava Sampaio Dória no seu livro Educação Cívica:
a situação privilegiada em que esta imensidade territorial se acha no
planeta. O solo nacional vai desde as regiões equatoriais até as frias
campinas do Sul, admirávelo só na variedade, mas na amenidade
de seus climas. A natureza ostenta, aqui, as mais variadas fertilida-
des. Aí estão as nossas luxuriantes matas virgens, os campos de vas-
tidão oceânica, os mais caudalosos rios do mundo, as cachoeiras
mais portentosas, as regiões mais saudáveis, como os Campos de
Jordão e as praias mais veraneáveis, como a encantadora Praia
Grande emo Vicente. Nas suas imensas costas se encurvam nume-
rosos portos seguros para o comércio e a navegação, como o de San-
tos, e a incomparável Guanabara do Rio de Janeiro. Que outro país
há com tantas riquezas acumuladas, à espera do homem que as
explore? E tanta magnificência da natureza nou e na terra? A situa-
ção geográfica do Brasil é das melhores e das mais belas do mundo.
A natureza se esmerou em dotá-lo de todas as opulências e fascina-
ções dos seus inexauríveis tesouros.
4
2 VIANNA, V. Brasil, maior país da terra. RBR, v.19, n.76, p.358, abr. 1922.
3 "O nosso território, extensíssimo, de climas e aspectos variadíssimos hábitat
predestinado à humanidade vindoura, no dizer insuspeito de Réclus e Hum-
bold se de um ladoo nos estimula os sentimentos guerreiros de conquista,
de outroo restringe os nossos horizontes ao âmbito acanhado as pequeninas
pátrias. Deu-nos o destino esse presente do céu, rasgando à nossa perspectiva as
mais largas avenidas: todas as possibilidades de futuro! CAMARGO, A. A mis-
o da nacionalidade. RBR, v.4, n.13, p.99, jan. 1917, grifo meu.
4 DÓRIA, S. Pátria. RBR, v.7, n.27, p.237-8, mar. 1918. Note-se que, à
exceção da Guanabara, todos os exemplos citadoso deo Paulo.
Outros, sem dispensar completamente a graça divina, enfatiza-
vam a ação humana na conquista e manutenção do espaço nacional,
caracterizando-o como o nosso maior feito.
De fato, a integridade do território ensejava uma possibili-
dade de recuperação positiva do passado. Esse, afinal, estava
longe de fornecer uma visão reconfortante pois, além deo
poder evocar um tempo imemorial, povoado de heróis e glórias,
era responsabilizado pelas chagas do presente, tomadas como sua
ingrata herança. Mesmo os defensores da história nacional acaba-
vam por admitir suas limitações. Amoroso Lima afirmava em
1916 que "nada pode justificar o descaso pelo nosso passado. Se
não lhe pesam os anos, nem a excepcional magnificência do edifí-
cio, avulta o seu valor moral, a sua significância histórica",
enquanto João Ribeiro lamentava o fato deo sermos "um país
de saturação histórica, onde o torvelinho das paixões já desapare-
ceu por uma longa tradição da ordem".
5
Um profundo abismo separava a Geografia da História, sabe-
res considerados estratégicos para a formação de uma consciência
nacional e que deveriam ocupar papel central tanto nos cursos des-
tinados à formação de professores quanto no ensino primário:
6
Para amar a pátria é preciso, antes de tudo, que a conheçamos.
É pela sua Geografia e sua História, é pelo cultivo cuidadoso da lín-
gua que chegaremos a esse fim ... Sem a História que nos inculta a
magnificência do nosso passado e a Geografia que nos mostre os ful-
gores do nosso país, a grandeza do nosso território ... o nosso
civismo terá a consistência das declarações retumbantes e vazias.
7
5 LIMA, A. A. Pelo passado nacional. RBR, v.3, n.9, p.14, set. 1916, grifo meu;
e RIBEIRO, J. Afrânio Peixoto. RBR, v.3, n.16, p.56, set. 1916.
6 SILVEIRA, C. Pedagogia. RBR, v.4, n.15, p.323, mar. 1917 e Ensino e
nacionalismo. RBR, v.7, n.25, p.91, jan. 1918.
7 LEÃO, A. C. Educação cívica. RBR, v.3, n.16, p.2, set. 1916. E ainda: "Somos
um povo em infância, somoss os fazedores do nosso passado,o há dúvida,
maso poderemos levar adiante a nossa missão se desprezarmos o que nos
constitui o passado da pátria. A perspectiva das origens é um elemento pri-
mordial dos povos em formação, é pela memória que deve começar a obra de
construção nacional". LIMA, A. A. Pelo passado nacional. RBR, v.3, n.9,
p.14, set. 1916.
Se a linguagem da geografia era grandiosa e compatível com
o papel que se lhe atribuía, a da história era reticente e insistia nas
mazelas e desacertos, deixando poucas possibilidades para uma
celebração do passado capaz de despertar a comunhão imediata
com as nossas tradições. Abriu-se então um debate apaixonado,
cujos termos Alceu Amoroso Lima incorporou ao questionar:
"Deve um povo em plena mocidade prezar suas tradições? Ou,
pelo contrário, esquecer o passado para melhor encarar o
futuro?".
8
A idéia do Brasil como país novo, em construção, sempre foi
cara às nossas elites. Afinal, a juventude da nação indicava que
ainda havia um longo caminho a percorrer até que todas as nossas
potencialidades e possibilidades desabrochassem, revelando
enfim a real face do país. Especialmente no momento em que o
evolucionismo havia adquirido o status de verdade científica, era
tentador atribuir as dificuldades enfrentadas ao nosso estágio de
desenvolvimento na escala universal. A crença na imaturidade
dava margem a um julgamento condescendente do presente e pos-
tergava, com tranqüila confiança, a solução de todos os males
para um futuro, naturalmenteo datado. Discursando em 1916
para estudantes paranaenses Bilac, como um visionário, profeti-
zava:
Quando me vejo entre os moços de minha terra, sinto-me pre-
cipitado, como por milagre, fora de mim mesmo e do tempo em que
vivo, deslocado de minha idade, arrojado para uma época vindoura;
jáo me vejo no Brasil de hoje, ainda em formação confusa, mas
no futuro em que ele viverá completo e glorioso.
9
o era difícil, nesse contexto, postular o esquecimento do
passado em prol das tarefas impostas pelo futuro. Alguns sugeri-
ram que simplesmente se desconsiderasse o 1500 e se tomasse a
Independência como marco inaugural da nossa história, negando,
dessa forma, qualquer sentido ou pertinência ao período colonial:
8 LIMA, A. A. Os remédio inestéticos. RBR, v.14, n.56, p.360, ago. 1920.
9 BILAC, O. Discurso na Universidade de Curitiba. RBR, v.3, n.ll, p.304-5,
nov. 1916.
Para se compreender a nossa evolução há de atender-se às cir-
cunstâncias em derredor das quais ela produziu-se.o a remonte-
mos à colônia, ouo lhe deferiremos as origens a esse período,
onde as manifestações que por vezes lhe irromperam foram, no nas-
cedouro, sufocadas. Na colônia nossas passadas tinham a interrupção
de séculos. Faltava-lhes continuidade. Era uma marcha funambu-
lesca, imagem inambulatória de caranguejo e cágado que se tivessem
associado num só organismo para desfastio da humanidade. É da
independência que vem todo o nosso esforço, o nosso desenvolvi-
mento. Porque só então manifestamos no complexo das nossas ati-
vidade, coordenação e continuidade. Como resultado de trabalhos
realizados em menos de cem anos ... desperta uma exclamação como
de espanto.
10
O mesmo Amoroso Lima, que em 1916 pregava o culto à
tradição, alguns anos mais tarde passou para o campo oposto,
sentenciando que "temos muito que nos esquecer antes de come-
çarmos a lembrar".
11
Tal afirmação remete de imediato para Ber-
gson e, apesar de Alceuo o citar nesse texto, o seu raciocínio
ganha outra dimensão quando confrontado com o filósofo fran-
cês, cujos cursos Alceu seguiu em Paris entre 1913 e 1914 (Teles,
1980).
De acordo com Bergson, possuímos dois tipos de memória: a
memória-hábito, que nos instrumentaliza para as necessidades da
vida quotidiana e contém os esquemas e mecanismos motores que
mobilizamos a todo momento para a execução de tarefas rotinei-
ras; e a memória-lembrança, que conserva o passado tal como ele
ocorreu, em toda sua riqueza de detalhes.
A primeira teria uma finalidade utilitária e reinaria soberana
durante a vida ativa, período no qual todas as energias e atenções
estariam concentradas na satisfação das necessidades impostas
pelo presente. A imagem-lembrança, tida pelo filósofo como a
memória verdadeira, permaneceria submissa à ação, só aflorando
durante o sono, quando o cérebro - órgão responsável pelo esque-
cimento de tudo queo fosse essencial ao aqui e agora - relaxa-
ria sua vigilância; ou quando o indivíduo estivesse liberto da luta
10 LEMOS, C. de. A nossa evolução. RBR, v.16, n.64, p.38, abr. 1921
11 LIMA, A. A. Os remédios inestéticos. RBR, v.14, n.56, p.360-1, ago. 1920.
pela sobrevivência, o que normalmente ocorre na velhice. Os ido-
sos poderiam então entregar-se às lembranças, evocar e reviver, no
sentido pleno do termo, o tempo que passou e, a exemplo de
Proust, quando mergulhou madeleines no chá, sair em busca do
tempo perdido (Bergson, 1979; Bosi, 1979, p.5-15; Bradbury,
1989, p.119-37).
O Brasil, país novo e em plena vida ativa,o poderia voltar-
se para traz e evocar lembranças, antes deveria assegurar sua
sobrevivência no concerto das nações. O apego ao passado, típico
dos povos arqueados pelos anos, seria, para nós, antinatural:
o espírito de tradição, entre nós, apenas pode existir por um esforço
de pensamento. As crianças quebram geralmente os brinquedos da
véspera ... É, portanto, perfeitamente inútil dizer que só a volta à tra-
dição nos poderia salvar, que os povos que desprezam o próprio pas-
sado estão naturalmente condenados à ruína ...o há pregação
possível contra a fatalidade de um estágio provisório de civilização ...
Um povo que cresce deve, maso pode, amar suas tradições. Longo
tempo haveremos de viver com os olhos pregados no amanhã.
12
Tal leitura, eivada de um evolucionismo estranho ao pensa-
mento de Bergson, realizava uma sutil apologia da juventude. Nas
entrelinhas continha a idéia de que somente os povos jovens esta-
riam aptos a inovar e transformar o mundo, restando aos velhos
apenas remoer suas antigas glórias. Observa-se, assim, uma tenta-
tiva de transpor a teoria bergsoniana da memória do seu âmbito
original - os indivíduos - para todo um povo. Essa utilização
absolutamente inovadora evidencia, mais uma vez, que nossos
intelectuais estavam longe de ser meros importadores das últimas
novidades estrangeiras. É inegável que se apoderavam de instru-
mentos analíticos alheios, porémo os tratavam como tesouros
intocáveis, antes chegavam a transfigurar por completo as premis-
sas iniciais, realizando um admirável trabalho criador.
No discurso da época a contraposição entre progresso e tra-
dição, ora revestida de argumentação filosófica, ora tomada como
12 Ibidem, p.361.
óbvia, tornou-se uma imagem freqüente, mobilizada com o
intuito de exaltar a agilidade do novo ante a lentidão do velho:
ingenuamente julgamos que é ... [na Europa] que sistematicamente
se aplicam, na prática, todas as teorias novas, que é aqui que todas
as descobertas se executam, que todos os princípios primeiros se
ensaiam. Ilusão! Para que tal sucedesse seria preciso que estas velhas
nações européias se libertassem repentina e milagrosamente da
influência extrema das tradições. Seria preciso que a névoa da poeira
do passado deixasse de obscurecer-lhes a visão exata do presente.
Ora, isto é impossível. A verdade é que foram essas nações européias
as que de fato criaram a nossa civilização moderna; criaram-na dolo-
rosamente através de mil sacrifícios e lutas mil... A nós, a civilização
pouco custou; nos limitamos a adotar obra alheia, já feita. Assim,
tudo o que é novo nos agrada e seduz. Às nações da Europa o que é
novo espanta, repele. Para adotar uma novidade elasm de aban-
donar uma velharia que entretanto lhes custou grande esforço, tra-
balho, sofrimento para criar, para produzir ... Daí a natural
resistência às novidades, daí a rotina, o conservadorismo.13
Entretanto, a questão formulada por Amoroso Lima também
foi respondida na direção oposta por aqueles que - possivelmente
espelhando-se em exemplos da Europa Ocidental, onde a História
adquiriu, em vários países, papel destacado como elemento de
coesão da nacionalidade -o se sentiam à vontade para descartar
o facilmente o passado. Estes denunciavam a "criminosa indife-
rença que mostramos pelas nossas tradições, pelo nosso passado,
pelas nossas glórias, trabalhos e misérias de outrora, em cuja con-
templação poderíamos achar o pensamento comum, a aspiração
coletiva, capaz de dar-nos a feição de um verdadeiro povo dentro
de uma verdadeira pátria".
14
Proclamações enfáticaso bastavam; era preciso apresentar
um conjunto coerente e verossímil de feitos históricos capaz de
levar o indivíduo comum a ufanar-se de ser seu herdeiro e guar-
dião; tínhamos que inventar - no sentido empregado por Hobs-
13 ALMEIDA, A. L. Impressões de Paris. RBR, v.12, n.45, p.88, set. 1919.
14 PRADO, A. Francisco Adolpho Varnhagen. RBR, v.l, n.2, p.150, fev. 1916.
Ver, no mesmo sentido: PINTO, A. A. O culto do passado e o Centenário da
Independência. RBR, v.6, n.23, p.432, nov. 1917.
bawm (1984) - as nossas tradições. Esse trabalho de criação se fez
acompanhar de um renovado interesse pela história, seus méto-
dos, o conteúdo e o modo de ensinar a disciplina. Comoo
era possível supor que a matéria-primao estivesse à altura da
obra, a falha só poderia residir na maneira como se reconstituía o
passado:
A História do Brasil foi sempre feita por método pouco patrió-
tico. É mais pessimista do que otimista. Conta os feitos da nossa
gente - portuguesa e brasileira - mais como atos feios do que como
lindos gestos. Isso é, naturalmente, um mal. A consciência dos povos
firma-se através do estudo da História. É pela ação da evolução inte-
gral de seu povo que se educam os verdadeiros patriotas. Com uma
História pessimista geram-se cépticos. É preciso que o estudo da His-
tória desperte o orgulho de ser brasileiro.
15
A publicação, em 1916, de Minha terra e minha gente de
Afrânio Peixoto, livro destinado ao ensino de Educação Moral e
Cívica nas escolas primárias, estendeu a polêmica até as salas de
aula. João Kopke, conceituado educador da época, criticou dura-
mente o trabalho de Peixoto - que então ocupava o cargo de Dire-
tor da Escola Normal do Rio de Janeiro, além de ser médico de
renome e escritor consagrado, membro da Academia Brasileira de
Letras -, taxando-o de complexo, recheado de um vocabulário
abstrato e de noções incompreensíveis para os destinatários. Além
dos reparos de caráter propriamente pedagógico, Kropke questio-
nava o estilo da obra, caracterizado como frio, seco, concentrado,
fleumático e despido "...do calor narrativo, capaz de emocionar,
e, através da emoção despertada, afetar o leitor juvenil, prodú-
zindo-lhe no coração e na mente impressões, que assegurassem o
êxito do fim proposto ao livro, isto é, inspirar o zelo pela pátria
como terra e nação".
16
Parecia-lhe especialmente condenável a
maneira pessimista, pouco patriótica e desentusiasmada de apre-
15 VIANNA, V. A lenda do "acaso" no descobrimento do Brasil. RBR, v.9, n.35,
p.372, nov. 1918.
16 KOPKE, J. Educação Moral e Cívica A propósito de um livro didático.
RBR, v.2, n.6, p.146-65, jun. 1916 e v.2, n.7, p.223-43, jul. 1916. A citação
do texto encontra-se na p.152.
sentar ao público infantil a história do país, o que em nada contribuía
para a formação do caráter cívico dos alunos. Kopke ponderava que
a descoberta, a campanha holandesa, o sacrifício de Tiradentes, a
Proclamação da Independência, o advento da República, os grandes
episódios da epopéia nacional, em vez de se aureolarem no fulgor da
narrativa, que os devia cantar ao ouvido, desenrolam-se insulsos em
rápida menção cronológica, como insulsos deslizam ante os olhos os
clichês, em que traço e cor enchem a página, maso descem a acor-
dar no coração o sentimento, que pretendem educar.
17
A reabilitação do passadoo se efetivou sem antes lançar os
historiadores, contemporâneos e antigos, no banco dos réus. A
análise dos procedimentos seguidos na construção do conheci-
mento histórico extrapolou o círculo restrito de especialistas e
educadores para adquirir o status de questão crucial para quem
quer que se importasse com os destinos da nação. Proliferaram
críticas às interpretações correntes e receitas para colocá-las na
direção correta. Ricardo Severo, por exemplo, na tentativa de res-
gatar das trevas o período colonial ponderava:
A crítica históricao deve considerar os fatos pelo que deve-
riam ser mas pelo que foram e são; o homem nunca foi o modelo
imaginado pela razão humanista, mas uma realidade no seu meio
físico e social de gestação e de vida ... O quadro do Brasil colônia
transforma-se, pois, sob este ponto de vista, e o antepassado colono,
injustamente caluniado in memoriam, é com plena justiça reinte-
grado no quadro verdadeiro do seu meio natural de existência, no
ciclo histórico e político do seu meio social; de tirano passa a vítima,
de mártir a herói nacional.
18
Ao discutir a produção historiográfica, esse tipo de crítica
mesclava dois parâmetros: a metodologia utilizada e o grau de
patriotismo dos resultados obtidos.o se detectava nenhuma
incongruência entre um método de trabalho escorado no empi-
17 Ibidem, p. 156.
18 SEVERO, R. A arte tradicional no Brasil RBR, v.4, n.16, p.397 e 399, abr.
1917.
rismo e uma posição ontológica, credora do evolucionismo natu-
ralista, que vasculhava o passado com um olhar teleológico,
encarando-o enquanto prenúncio necessário do presente. Pelo
contrário, reclamava-se a adoção de novas orientações nos estu-
dos históricos a fim de adequá-los aos seus elevados fins. Ao rese-
nhar, às vésperas do Centenário da Independência um livro de
Assis Cintra pouco simpático a Tiradentes, Brenno Ferraz afir-
mava:
O historiador deixou de historiar na certeza de que a História
está feita nos arquivos. Ora o testemunho dos arquivos para o histo-
riador vale tanto como o dos fenômenos astronômicos para o astrô-
nomo. A vida sideral está aí no espaço como a crônica dos povos está
nos cartórios. É preciso observá-la, descobri-la, estudá-la, deduzir-
lhe as linhas gerais e apurar-lhe a essência ... Ciência apenas conjec-
tural, a Históriao pode restringir-se ao documento frio, seco,
estéril ... E os nossos historiadores a afirmar, des juntos, com as
"provas" nao as mais destemperadas "verdades" como essa da
"covardia" de Tiradentes. Decididamente, o trabalho do historiador
o é o do escriba. É função do pensamento e do engenho. Supõe
assimilação e criação. É obra de arte e ciência.
19
Arte e Ciência que deveriam ser colocadas a serviço da nação.
Os conselhos de Von Martius - "uma obra histórica sobre o Brasil
deve ... ter igualmente a tendência de despertar e reanimar, em
seus leitores brasileiros, amor à pátria, coragem, constância,
indústria, fidelidade, prudência, em uma palavra, todas as virtu-
des cívicas ... Deverá satisfazero menos ao coração do que à
inteligência ... deve parecer-se com um Epos!" (1844, p.402-3) -
tornaram-se mais pertinentes do que nunca e acabaram por forne-
cer munição para os críticos de Varnhagen, que acusavam o então
considerado fundador da nossa historiografia, deo ter conse-
guido infundir um caráter heróico a sua História Geral do Brasil.
Até Pedro Lessa, um dos mais aguerridos defensores do Vis-
conde de Porto Seguro, apesar deo concordar com aqueles que
19 AMARAL, B. F. do. Resenha de Tiradentes perante a história de Assis Cintra.
RBR, v.20, n.78, p.160, jun. 1922.
afirmavam que "tivemos um historiador de maior envergadura e
que superior teria sido a História do Brasil se, em vez de Varnha-
gen, a tivesse escrito João Francisco Lisboa"; via-se na contingên-
cia de apontar o "desgosto que causa a leitura de tantos períodos
descurados, frouxos, pesados e monótonos, sem nervos e sem lus-
tre".
20
Sempre era possível tentar atenuar essa falta de estilo e
verve insistindo no pioneirismo e no gigantismo da obra:
Ao meter mãos à sua empresao tinha Varnhagen no Brasil
nenhum modelo, nenhum antecessor, nenhum guia. Nenhum brasi-
leiro ou português escrevera antes um só livro a que quadrasse o
título de História do Brasil. A única história do Brasil que havia,
antes de Varnhagen escrever a sua, fora composta por um estran-
geiro: era a História de Robert Southey.
21
Contudo, consternava a muitos que a história do país já se
tivesse iniciado pelo viés da negatividade.
Coube à geografia propiciar a reconciliação entre a nação e
sua história. O discurso sobre o território forneceu a moldura
capaz de reenquadrar o passado, extirpando-lhe tensões e ambi-
güidades que obstacularizavam a sua utilização na construção da
identidade. Num caminho até certo ponto peculiar, a produção
do espaço nacional ocupou o centro da cena, subordinando a his-
tória, que passou a ser encarada como narrativa dos grandes feitos
que asseguraram, apesar de todas as adversidades, a posse da
terra. Diante da crescente importância assumida pela configura-
ção do território,o surpreende que o trabalho mais festejado no
Primeiro Congresso de História Nacional realizado no Rio de
Janeiro em 1914, tenha sido a Expansão Geográfica do Brasil até
fins do século XVII, do historiador Basílio de Magalhães, obra lau-
reada em 1917 com a Medalha de Ouro Dom Pedro II do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
20 LESSA, P. Visconde de Porto Seguro. RBR, v.l, n.3, p.343, mar. 1916. Críti-
cas severas ao seu estilo também foram feitas por PRADO, A. Francisco Adol-
pho Varnhagen. RBR, v.l, n.2, p.150-1, fev.1916.
21 LESSA, P. Visconde de Porto Seguro. RBR, v.l, n.3, p.339, mar. 1916.
Certos episódios da história do país, assim como seus prota-
gonistas, ganharam especial relevo. Observa-se um esforço de
reordenação que visava propiciar uma leitura do passado que
infundisse confiança nos destinos da nação e colaborasse para
afirmar a excelência de um povo aguerrido que soube defender o
seu patrimônio natural. Nessa perspectiva merecia destaque a
expulsão holandesa, "epopéia pernambucana... aventura louca de
cinco lustros de combate ... heróica resistência que teria de firmar
a nossa integridade nacional";
22
a derrota de todos os movimen-
tos separatistas, "abafados pela indignação unânime do povo";
23
a Guerra do Paraguai, na qual "durante cinco anos, ininterrupta-
mente, se sucederam no Brasil o sacrifício de homens e de riquezas
sem um só instante de desfalecimento, falta de, de fraqueza
física ou moral, de solução de continuidade no poder do sofri-
mento e de sujeição a provações";
24
e, acima de tudo, as bandei-
ras, consideradas o maior feito do período colonial, cujo estudo
"é destes que nos fazem mais brasileiros, destes que ascendem na
alma culto mais vivo e mais acendrado apego ao torrão pátrio".
21
BANDEIRANTES DO FUTURO
A definição territorial do Brasil, que assegurou ao país dimen-
sões continentais, era apresentada como resultado da ação dos
bandeirantes:
Quem ignora que foram os bandeirantes que deslocaram o eixo
da primitiva população colonial até então adscritícia ao litoral,
determinando a sua expansão por todo o interior? Que a vida da
nossa nacionalidade se expandira por intermédio da Bahia e seu
recôncavo, através e pelo vale do Rioo Francisco, é coisa que se
deve ter em conta de novela mal contada ... As bandeiras quando
22 PIRES, Padre H. Dom Luís de Brito. RBR, v.4, n.15, p.297, mar. 1917.
23 VIANNA, V. A geografia no Brasil. RBR, v.8, n.29, p.87, maio 1918.
24 LESSA, P. Discurso proferido no Campo deo Cristóvão (RJ) por ocasião
da cerimônia do Voluntariado de Manobras. RBR, v.3, n.10, p.201, out.
1916.
25 PIRES, Padre H. Domingos Jorge Velho. RBR, v.ll, n.43, p.242, jul. 1919.
avançavam iam deixando atrás de si suas roças, suas plantações.o
tem outra origem as mais antigas e ainda hoje mais importantes
fazendas de criação e lavoura por todo esse interior do Brasil. Os
primeiros bovinos introduzidos em Goiás procediam deo Paulo;
tiveram a mesma procedência os que povoaram os campos de Mato
Grosso; os que primeiramente habitaram as campanhas sul-rio-gran-
denses até a Colônia do Sacramento foram também levados pelos
vicentinos ... Todos os Estados do Sul, assim como os do Norte nas
suas zonas superiores, chamadas do agreste, foram povoados de
rezes descendentes das que fizera passar de Portugal pela Capitania
de Martim Afonso, a sua consorte Anna Pimentel ... Foi ela quem,
ali bem perto do monumento do Ipiranga, comemorativo da nossa
independência política, abriu as portas do Brasil ao maior fator de
sua independência econômica. Historicamenteo Paulo foi o berço
e o primeiro pastor de rebanhos do Brasil.
26
Entretanto, o imenso serviço prestado à naçãoo se coadu-
nava com o sistemático ostracismo histórico a que teriam sido
relegados esses grandes vultos que
penetraram, picando, devastando, desbravando o coração do alto
Brasil... É preciso ... restaurar o culto a um gênero de heróis que flo-
resceu nos primeiros dias de expansão da nacionalidade brasileira,
dando-nos o espetáculo dessa epopéia que nos enche de assombro:
a descoberta dos sertões do interior - Goiás e Mato Grosso ... Estas
primeiras jornadas para o nosso far-west devemo-las, e a ninguém é
lícito ignorar, aos heróicos filhos dos Campos de Piratininga - os
pró-homens do sertão.
27
A queixa era, até certo ponto, procedente. Se o século XVIII
testemunhou a fundação, nas obras de Pedro Taques e de Frei
26 SILVA, H. O gado vacum no Brasil. RBR, v.2, n.8, p.393-4, ago. 1916. E, no
mesmo sentido: "Assim pois surgiuo Paulo, pelo século XVII a dentro,
murado de toscas e rudes taipas como se uma praça de guerra, medieval, fora.
É que realmente constituía um posto avançado da civilização e da conquista
do Brasil, primeiro marco fixo e inabalável da entrada para o oeste infindo
que à nossa pátria dilataria pelas terras imensas do continente, umas legitima-
mente lusas, outras não, à fé das bulas e tratados". TAUNAY, A d' E.o
Paulo no século XVI. RBR, v.6, n.21, p.118, set. 1917. Desse último autor
ver: O meridiano e os paulistas. RBR, v.19, n.73. p 87-9, jan. 1922, artigo no
qual credita ào Paulo a posse da região Sul do Brasil.
27 SILVA, H. A informação goiana. RBR, 5, v.20, p.529-30, ago. 1917
Gaspar Madre de Deus, de uma versão épica das bandeiras, cujos
feitos foram associados aos paulistas, no século seguinte a produ-
ção historiográfica perdeu-se no emaranhado dos itinerários, nos
detalhes dos nomes, na exploração de determinadas minas, ofus-
cando a figura do bandeirante, que só seria retomada como sím-
bolo a partir de 1890, época em queo Paulo afirmava-se como
Estado rico e aspirante à hegemonia política (Abud, 1985).
As páginas da Revista do Brasil atestam a existência de um
renovado interesse pelo bandeirismo, que antecedeu o início da
publicação das obras de Alfredo Ellis, Taunay e a de Alcântara
Machado, consideradas marco historiográfico sobre a questão.
28
A publicação de fontes primárias, encetadas por Washington
Luis,
29
e a multiplicação das pesquisas, dos estudos, sempre pau-
tadas pela busca da verdade histórica, ou seja, apresentar o pas-
sado como ele foi, caminhou pari passo com a difusão de uma
imagem mitificada dos bandeirantes. Os estudos históricos do
período norteavam-se pela busca de cientificidade, que se repu-
tava garantida pela documentação. Fontes fidedignas, cuidadosa-
mente reunidas e imparcialmente transcritas, naturalmente
possibilitariam o acesso à verdade. Nesse universo, carecia de sen-
tido inquirir sobre o relativismo dos testemunhos históricos ou a
respeito dos conceitos e modelos teóricos que guiavam o olhar do
pesquisador. Exemplo lapidar é o artigo no qual Basílio de Maga-
lhães transcreveu, "tal qual o colhera" o "valiosíssimo docu-
mento" que teve "a felicidade de encontrar" no Arquivo
Nacional, e que "convertiam em fatos indiscutíveis, em realidades
28 Os primeiros trabalhos de Ellis e Taunay datam de 1922, enquanto Vida e
Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado, é de 1929. Entretanto, já em
1923 Machado publicava na Revista do Brasil dois artigos a respeito do tema:
Testamento do bandeirante. RBR, v.22, n.87, p.217-29, mar. 1923 e As
devoções do bandeirante. RBR, v.25, n.95, p.207-19, nov. 1923.
29 Basílio de Magalhães foi contratado pelo governo deo Paulo para colher,
no Arquivo e na Biblioteca Nacionais, documentos referentes à história pau-
lista. Os oito volumes compreendidos entre os números 47 e 54 dos Docu-
mentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, enfeixam os
resultados do seu trabalho e foram denominados de Coleção Basílio de
Magalhães. A iniciativa de Washington Luís, que fez da capital paulista
"exemplo único no Brasil", foi elogiada por TAUNAY, A. d'E.o Paulo no
século XVI. RBR, v.6, n.21, p.116, set. 1917.
incontroversas" as suposições a respeito da presença paulista no
combate aos índios bravios dos sertões do Piauí; ou ainda aquele
em que Taunay apresenta os resultados de cuidadosa pesquisa que
objetivava salvar "à voragem do esquecimento" os nomes dos ban-
deirantes que lutaram para expulsar os castelhanos do Paraná.
30
Certamente tal atitude ante o passadoo se constituía um antí-
doto eficaz contra a subjetividade, mas contribuiu poderosamente
para tornar verossímil uma determinada imagem do bandeirismo.
Em 1919, o Padre Heliodoro Pires assim descreveu as
impressões que lhe causaram a visão de Domingos Jorge Velho,
quadro pintado por Benedito Calixto:
Há nessa figura algo de patriarca bíblico e de campeador medie-
val; aliaram-se naquela compleição de atleta a imponência domina-
tiva de Abraão e a bravura romanesca de um cavaleiro de Carlos
Magno ... Sente-se vivamente que a natureza forjou e temperou
aquelas fibras para o embate rude e as fadigas devorantes na con-
quista da terra virgem. A fisionomia é iluminada ... os olhoso
pequenos e penetrantes, denunciando a resistência indômita e o
peito em chamas daquele condottieri afeito ao comando ... Dão-lhe
aquelas barbas, aquelas sobrancelhas e aqueles traços do nariz uma
expressão de severidade rígida e autoridade soberana. Bastos bigo-
des negros cobrem-lhe a boca, mas advinha-se que, entre fuzilações
de relâmpago, aquela voz trovejou um dia, em sílabas ríspidas e gol-
peantes ... Devia sair possante, como a de uma garganta de bronze,
a voz de Domingos Jorge Velho ... Mil vezes, daqueles lábios, explo-
diu a cólera, tempestuosamente ... O peito vencedor de Palmares
parece dilatar-se num gesto desafiador ... Descansa ao esquerda
naquele trabuco que tantas vezes fez estremecer os sertões dalémo
Francisco; dir-se-ia que o bandeirante esboça involuntariamente
uma atitude imperativa de força orgulhosa e desdém dominador ...
Trai-se no conjunto daquelas linhas a energia formidável daquele
organismo em que se conjugam, de maneira insólita, as ambições de
um senhor feudal e as arrancadas de um beduíno ... Como é interes-
sante a figura deste legionário de Homero que veio surgir na história
brasileira sob o "travesti" do campeador colonial!
31
30 MAGALHÃES. B. de. Domingos Jorge Velho. RBR, v.4, n.15, p.260-4, mar.
1917 e TAUNAY, A. d'E. Rol de bandeirantes. RBR, v.16, n.23, p.267, mar.
1921.
31 PIRES, Padre H. Domingos Jorge Velho. RBR, v.ll, n.43, p.258-9, jul. 1919,
grifo no original.
O deslocamento em direção à mitificação fica patente no qua-
dro e na leitura que ele inspira: no bandeirante, modelo exemplar
que enfeixava as virtudes de diferentes heróis - bíblicos, homéri-
cos, medievais -, repousaria a origem da nação. Estamos, por-
tanto, diante de um acontecimento fundador a partir do qual se
inicia a narração de como a nação foi produzida e começou a exis-
tir. O discurso extravasava os limites da territorialidade para
fixar-se nos componentes espirituais da nação, patentes nas con-
siderações do historiador Rocha Pombo, que elegeuo Paulo
como o lugar em que foi "criada a nova alma da terra, consubs-
tanciando o vigor das duas raças aliadas, e fazendo-se assim capaz
de assumir a direção da corrente que se instalaria nesse lado do
Atlântico. Estúrdia e agitada, a nova alma toma decididamente o
seu papel, e escreve na história do Novo Mundo a página mais bri-
lhante, ampliando a conquista até os Andes".
32
Por essa via de abordagem, era possível restituir ao período
colonial uma positividade que muitos lhe vinham sistematica-
mente negando:
Os nossos bandeirantes, os nossos pioneiros,o trataram de
acampar, de tirar proveitos imediatos; eram, sem o saber, geógrafos,
geógrafos que punham a Geografia a serviço de um ideal nacional e
por isso caminhavam para a frente, deixaram desertos entre o litoral
e as fronteiras, mas avançaram pelos rios para aumentar o patrimô-
nio da raça. Que grande injustiça a frase histórica de que andávamos
pelas costas feito caranguejos! Em poucos séculos dominávamos a
maior região que uma raça jamais ocupou ... Enquanto outros colo-
nos se instalavam e se enriqueciam,s nos espalhávamos do litoral
do Atlântico aos confins de Minas Gerais e do Amazonas, do Amapá
ao Prata! ... Temos hoje o patrimônio incomparável que é o Brasil,
graças ao esforço heróico dos nossos maiores.
3
-
1
Note-se como bandeirante, ou seja, desbravador, destemido,
altivo, determinado, independente, leal, líder inato, vai se tor-
.32 POMBO, R. A terra paulista e suas grandes legendas. RBR, v.2, n.7, p.275,
jul. 1916.
33 VIANNA, V. A geografia no Brasil. RBR, v.8, n.29, p.87, maio 1918.
nando sinônimo de paulista: "foi pois, movidos por essas várias
razões de ordem topográfica, econômica e atávica, que os paulis-
tas se tornaram, quase unanimemente bandeirantes ... Essa pri-
meira fase, a da caça ao índio, é por certo a mais conhecida, e a
que toca mais aos corações dos que se ufanam, com razão, de ter
nascido na terra dos bandeirantes e muitos de lhes correrem nas
veias o mesmo sangue".
34
Esta identificação transferia toda a
carga simbólica do termo aos filhos deo Paulo, que nele se reco-
nheciam como herdeiros, guardiões e lídimos continuadores dos
feitos gloriosos de seus antepassados:
Da bandeira saiu o Brasil territorial de hoje ... As bandeiras aba-
lavam numa ânsia louca, durante meses e anos, caudal irresistível a
que nada se opunha, abrindo caminhos através da floresta, lutando,
depredando, violando a robustez da terra virgem ... Aleixo Garcia,
com um grupo intrépido, transpõe o Paraná e chega até as fronteiras
da Bolívia ... Alvaor Nunes Cabeça de Vaca desembarca em Santa
Catarina e vara pelo interior até Assunção. Antonio Raposo ... atra-
vessa o continente de flanco a flanco ... Ao sul, a oeste, os paulistas
expulsam os espanhóis, desalojam suas reduções no Alto Paraguai,
no Paraná, no Uruguai, enquanto missões jesuíticas, aterradas, des-
pacham emissários para Madri e Roma reclamando medidas urgen-
tes para contener los portugueses del rio San Pablo. Soa por toda a
parte o tropel das cavalhadas, dispersando da noite para o dia os
aldeamentos no grito tradicional e temido do Abi Vienen.Uma bula
papai ensaia proteger os índios,o Paulo responde expulsando os
padres. E o alarma vai ao Peru, cujo vice-rei, impotente para conter
os paulistas indomáveis, sacode o Conselho das índias com esta ameaça
apavorante: puede suceder que ellos se apoderen de las cordilleras del
Itatin y sean senores de todo el corazon del Peru!
, 35
O adjetivo tinha ainda a vantagem de ser maleável o suficiente
para permitir manipulações segundo os interesses do momento:
tanto poderia significar todos os nascidos emo Paulo, desempe-
34 LOBO FILHO. R. J. H. A conquista do sertão. RBR, v.25, n.100, p.297, abr.
1924. É preciso notar, porém, que o adjetivo bandeirante significando o natu-
ral deo Paulo, o paulista,o se difundiu antes do início do presente século.
A respeito ver, além do já citado trabalho de Abud, 1985, Queiroz, 1992.
35 LOBO, H. A defesa da nacionalidade na história colonial brasileira. RBR, v.7,
n.28, p.407-8, abr. 1918.
nhando assim uma função aglutinadora, quanto poderia combinar-
se com a exigência de uma descendência ilustre, uma genealogia
mitologizada de caráter restritivo e excludente.
O movimento que revalorizava o passado colonial também
assegurava parao Paulo um destaque histórico até então inusi-
tado. O Estado, berço dos bandeirantes, passou a ser considerado
"a terra onde se passaram os grandes sucessos mais característicos
da nossa vida de povo. Dir-se-ia que o destino teve com a terra
paulista o capricho de reservar-lhe essa fortuna de ser na América
portuguesa o teatro em que se haviam de representar as cenas
mais significativas do nosso drama nacional".
36
A construção da
nacionalidade é encarada, desde os seus primórdios, como obra
paulista. Num trecho longo, porém muito expressivo, Adolpho
Pinto, discursando por delegação da Liga Nacionalista, sintetizou
o papel preponderante deo Paulo nos destinos da nação:
o há contestar que possuímos uma história esmaltada de lan-
ces de Verdadeira grandeza épica, a começar pela sua primeira
página, a fundação deo Paulo, uma das mais fulgurantes do
poema missionário que o cristianismo vem escrevendo através dos
séculos ... Voltada a primeira página, a seguinteo é menos bri-
lhante. É que nos fastos do Brasil Colonial nenhum capítulo fulgura
mais interessante do que a epopéia das intrépidas bandeiras que
daqui partiram rumo ao mistério, ao intérmino sertão ignoto, a des-
cobrir, conquistar e colonizar a mais vasta e formosa gleba do con-
tinente ocidental... Depois, quando o povo brasileiro, sacudindo o
julgo da metrópole, conquistou o lugar que ocupa na comunidade
internacional, ainda foi à cidade deo Paulo que coube a excelsa
distinção de ser o cenário do acontecimento máximo de nossa histó-
ria - a proclamação da Independência - e paulista foi o seu grande
patriarca. Construída a pátria brasileira sabe-se que nenhum depar-
36 POMBO, R. A terra paulista e suas grandes legendas. RBR, v.2, n.7, p.272,
jul. 1916. O interesse crescente pela história deo Paulo fica patente nas
páginas da Revista do Brasil, periódico que abriu espaço tanto para numerosos
artigos de historiadores contemporâneos, quanto para trabalhos clássicos,
como a primeira tradução da parte histórica e descritiva da obra de Saint
Hilaire, Voyage dans les provinces de Saint Paul et Saint Catherine.
tamento do país tem tido a fortuna de contribuir para a grandeza do
Brasil como a abençoada terra deo Paulo.'
7
Estabelecia-se assim uma linha de continuidade que afirmava
a supremacia paulista desde os tempos coloniais até os anos 20. O
papel político e econômico secundário ocupado pela região em
séculos anteriores pode então ser apresentado como conseqüência
do espírito de sacrifício dos paulistas, que primeiro criaram a
nação, comprometendo nessa empreitada a sua própria existên-
cia, para depois se ocuparem de interesses próprios, em uma ati-
tude magnânima, digna dos verdadeiros heróis épicos:
Tal como a configuração geográfica hoje o determina, o Brasil
é a obra brasileira dos filhos deo Paulo ... Minas, Goiás, Mato
Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande aí estão para atestar
com a sua existência e a sua nacionalidade a grandeza de um sacrifí-
cio que, se chegou a extremos de despovoamento e miséria emo
Paulo, floresceu por toda parte em rebentos do generoso tronco
comum. A obra do bandeirante, que se estendeu do sertão central da
Bahia, Pernambuco, Paraíba e longínquo Piauí, custou à capitania
deo Vicente longos anos, um século mesmo, de arrostada penúria
de população c de meios. E o paulistao se queixou. Ele que nunca
viu diante de si fronteiras senão para afastá-las mais e mais, deu de
si o melhor com as suas mãos largas e pródigas de quem semeia e
caminha e se adianta à aventura ... Exauriu-se um dia. Desapareceu
quase da História. Ao seu torrão que se desdobrava na imensidão do
país, retraíram-se-lhes as raias. Piratininga, que fora quase uma
nação, se viu então pequena e pobre dentro da grande nação que criara.
Ela, que abrira um eldorado ao mundo, que criara uma Califórnia
ou um Potosi para o país, ela própria se viu depois, também, Potosi
e Califórnia, criados pela mesma iniciativa, tenacidade e tempera dos
seus, que hoje, como ontem, diante de sio vêem fronteiras senão
para afastá-las com a fecundação de um território que de outra forma
continuaria patrimônio das selvas e da barbárie ...o Paulo, sem
dúvida, faz o Brasil do futuro como já fez o Brasil histórico."
1
37 PINTO, A. A. O culto do passado e o Centenário da Independência. RBR,
v.6, n.23, p.431-2, nov. 1917.
38 FERRAZ, B.o Paulo e o despovoamento de Minas. RBR, v.26, n.107,
p.262-3, nov. 1924.
Estava finalmente legitimada a posse do território, que dei-
xava de ser encarada como dádiva para assumir o caráter de um
esforço conscientemente encetado pelos nossos antepassados. A
percepção positiva, antes exclusividade do futuro, foi estendida,
graças à via geográfica, ao passado, cristalizando uma tendência,
esboçada desde a Independência, de identificar espaço e nação.
Tal construção histórica, longe de ser neutra ou descompromis-
sada, contribuíao só para explicar e justificar a riqueza e a
supremacia econômica então desfrutada poro Paulo, como
também para legitimar as pretensões da elite local de conduzir
politicamente o país. Comentando a conquista territorial dos ban-
deirantes Júlio de Mesquita Filho afirmou:
A tenacidade e a persistência demonstradas nessa ação de posse
continuada levam-nos a admitir e a reconhecer, mesmo, um propó-
sito deliberado desses gigantes da história.o pretendemos que a
priori se tivessem eles proposto a realização de um vasto e pré-con-
cebido plano. Mas da mesma maneira que os anglo-saxãos, arrasta-
dos por seguro e singular instinto, chegaram a se apossar de tudo
quanto na superfície da terra há de melhor e mais aproveitável ... o
paulista assinalou, com a marca indelével de sua passagem, os con-
tornos, também definitivos, dentro dos quais a nacionalidade com-
pletaria a sua evolução. Esse instinto inteligente permanece ainda
hoje sob a forma dessa força propulsora, que já se vai tornando,
agora que vamos atingindo à maturidade, em diretiva disciplinada e
quase consciente. Os pródomos dessa gigantesca tentativa, que
poderíamos chamar de ratificação histórica da ação do bandeirante,
jáo perfeitamente discerníveis no conjunto de aspirações com que
se preocupa atualmenteo Paulo ... Somos fortes, somos ainda dig-
nos do passado das bandeiras, justamente porque às enganosas vitó-
rias da política militante, sabemos ainda preferir as rudes vitórias
que pontilham a história da nossa evolução. As sadias emoções da
vida livre da lavoura, das tentativas audaciosas de que todos os dias
temos notícias, empolgam a visão segura e afoita do paulista, des-
viando-o da estagnação acabrunhadoramente niveladora dos nossos
partidos políticos.'
9
39 MESQUITA FILHO, J. de. A comunhão paulista. RBR, v.21, n.84, p.375-6,
dez. 1922. O trabalho de Mesquita mereceu elogios de OLIVEIRA VIANNA,
F. J. A comunhão paulista. Resenha. RBR, v.24, n.92, p.326-8, ago. 1923.
Como proclamava retoricamente Corrêa Júnior em 1923,
"seria injustiça gritante, despeito inominável e evidentemente inú-
til a negação da primazia deo Paulo na construção da naciona-
lidade contemporânea".
40
Note-se que o referido orgulho foi
admiravelmente expresso na divisa NON DVCOR DVCO do brasão
de armas da cidade, escolhido durante a administração do prefeito
Washington Luís por meio de um concurso público.
Ao noticiar a contenda, o articulista da Revista do Brasil apro-
veitou para reafirmar a importância deo Paulo: "que cidade do
Brasil, entretanto, pode disputar ao Paulo mais honrosa histó-
ria e mais notável papel na formação da Pátria Brasileira?o é
preciso que repitamos, com o Visconde deo Leopoldo, que a
história deo Paulo é a história do Brasil".
41
Já a comissão julga-
dora, composta por Carlos de Campos, Benedito de Souza,
Eduardo de Aguiar de Andrada, Benedito Calixto e Nestor Rangel
Pestana, assim justificou sua decisão em favor do projeto de Gui-
lherme de Almeida e José Wasth Rodrigues:
Na impossibilidade material de representar dentro dos limites
restritos de um brasão toda a história da cidade, o autor teve a feliz
inspiração de adotar o único emblema capaz de resumir toda a his-
tória de seu povo - o símbolo do Bandeirante, título de glória dos
filhos desta terra! - De um jacto esse símboloo só evoca as pri-
meiras e árduas lutas dos tempos remotos das conquistas, quando
diante da bandeira intrépida e altiva se dilatavam os limites do Brasil
primitivo, como representa, ainda, com o seu braço armado e o seu
guante de aço, a ação sempre pujante do paulista em todas as fases
do Brasil histórico ... Quanto à alma da divisa ... [ela] completa o
escudo e traduz de maneira vibrante a índole do povo paulista.
42
A superioridade paulistao mais desembocava em propos-
tas separatistas, como as formuladas por Alberto Sales no final do
século XIX; agora o que se pretendia era elevar o Brasil à condição
deo Paulo, tarefa que os dirigentes paulistas consideravam exe-
qüível apenas por eles próprios:
40 CORRÊA JÚNIOR. A Colméia. RBR, v.24, n.96, p.373, dez. 1923.
41 J (não identificado). As Armas deo Paulo. RBR, v.2, n.8, p.386, ago. 1916.
Ver também PINTO, A. O centenário da independência. RBR, v.l, n.l, p.15,
jan.1916.
42 As Armas deo Paulo. RBR, v.4, n.16, p.506-7, abr. 1917.
Já Amadeu Amaral, no seu discurso de recepção na Academia
de Letras, falou no imperialismo benéfico deo Paulo. Estamos
com ele, imperialismo em contraposição à inércia. Ou caminhamos,
como até aqui vamos caminhando, por alargar cada vez mais o cír-
culo da nossa ação, arrastados pelo impulso inicial, ou paramos, e,
então, jáo seriamos aquele povo caracteristicamente "particula-
rista", a que o Brasil deve a sua grandeza. Nesse imperialismo de que
primeiro ousou falar Amadeu Amaral e que nos legaram nossos maio-
res, reside todo um ideal, que por muitas gerações ainda deverá ser
o único a manter o estímulo de uma comunhão a cujo destino está
entregue o destino do Brasil. Eis,, em esboço rápido e ligeiro, a
política de São Paulo. Diante dela e dos seus altos desígnios, como
querer que o paulista se interesse e se ocupe com a política militante
emo Paulo? Desviá-lo de suas esplêndidas realizações seria, além
de criminoso, um contra-senso, a que o seguro critério e a sua inte-
ligência (no que este termo tem de mais elevado) se oporiam irresis-
tivelmente. A realização desse legado do passado há de, por força,
mobilizar-lhe todas as energias.
43
Entretanto, se as fronteiras nacionais podiam ser apresenta-
das como obra deo Paulo, tanto graças à energia, coragem e
determinação dos bandeirantes, quanto à inteligência do paulista
Bartolomeu de Gusmão, "avô dos diplomatas brasileiros e cuja
obra, no Tratado de 1750, domina todo o desenvolvimento da
diplomacia americana",
44
essa trégua com o passadoo era sufi-
ciente para eliminar as inquietações do presente. De fato, se o
Estado deo Paulo podia ser apresentado como "uma das mais
eminentes civilizações da América, aproximada dos Estados Uni-
dos e equivalente à Argentina",
45
tal julgamentoo era extensivo
ao país como um todo. Pelo contrário, uma incômoda questão
insistia em rondar a façanha da expansão territorial: mereceriam
os brasileiros a terra que possuíam? A resposta pesava como uma
espada sobre as consciências da época:
43 MESQUITA FILHO, J. de. A comunhão paulista. RBR, v.21, n.84, p.375-6,
dez. 1922, grifo no original.
44 LOBO, H. A defesa da nacionalidade na história colonial brasileira. RBR, v.7,
n.28, p.408, abr. 1918.
45 TAVARES, R. Resenha da obra São Paulo na Federação de Souza Lobo. RBR,
v.25, n.102, p.167-9, jun. 1924.
La première pensée qui se présente à l'esprit de ceux qui sont,
comme nous le sommes tous aujourd'hui plus ou moins, possédés par
la passion d'exploiter les ressources de la nature, c'est en sentiment
de regrei; le regret qu'une race de l'Oest européen puissante par le
nombre et l'habileté, comme les Américains du Nord, les Allemands
ou les Anglais, n'ait pas, pour user d'une locution familière, "pris la
chose en mains". La population blanche du Brésil, car c'est la seule
qu'il y ait lieu de considérer semble être trop peu nombreuse pour
s'acquitter comme il conviendrait des multiples tâches qu'impose la
possession d'un tel pays. "Ah! de quel traina les hommes du Mississipi
feraient aller les choses le long de l'Amazone et du Paraná!", s'ecrie
le voyageur venu des Etats-Unis. (Bryce, 1917, v.2, p.l 19).
É certo que as opiniões de Bryceo tinham o sabor das novi-
dades, entretanto eram perturbadoras na medida em que enfei-
xavam em um todo coerente uma série de estereótipos sobre o
país; revelavam uma cobiça pouco dissimulada diante das poten-
cialidades da terra e; para completar, desfechavam um duro
golpe no orgulho nacional. Com o início da Primeira Guerra, os
lamentos do embaixador inglês passaram a soar como um alerta,
uma evidência dos perigos que nos espreitavam. Alastrou-se o
temor de que as potências imperialistas tomariam de assaltoo
apenas os nossos decantados recursos, mas também a nossa sobe-
rania:
O que está impulsionando o mundo é o amor de conquista de
terras e mares, o amor da expansão do comércio, o amor do inte-
resse utilitário. E podemos acreditar que o Brasil, este imenso país
de solo fértil e de ricas entranhas, fique para sempre, graças ao acaso
ou ao benefício da Providência Divina, imune de qualquer investida
da ambição ou de necessidade comercial? Tal é o perigo externo,
próximo ou remoto, mas sempre possível.
46
46 BILAC, O. Conferência sobre a Liga de Defesa Nacional. RBR, 5, v.15, p.328,
mar. 1917. Declarações nesse sentido tornaram-se comuns na revista. Ver os
artigos de: COUTO, M. Discurso proferido aos doutorandos de medicina
RJ. RBR, v.4, n.13, p.94, jan. 1917; AZEVEDO, C. M. de. A nossa situação
internacional. RBR, v.l, n.l, p.71, jan. 1916 e BITTENCOURT, R. A con-
federação luso-brasileira. RBR, v.5, n.20, p.538-40, ago. 1917, que defende a
necessidade de união dos países de fala portuguesa como remédio para
enfrentar o imperialismo colonial, geográfico e étnico praticado por grandes
agrupamentos de povos, unidos sob a mesma bandeira.
O contexto da guerra acabou atuando como catalisador de
um renovado nacionalismo, manifesto na disposição de encarar
decididamente os problemas do país e propor soluções compatí-
veis com as nossas especificidades. Ganhou força o coro dos que
propunham o abandono de ideais postiços, ou de empréstimo,
sem raízes na intimidade da nação, em prol de um trabalho de
auto-conhecimento, capaz de revelar o Brasil aos brasileiros.
Porém, esse desejo de deslindamento, que estava em sintonia com
a construção de uma determinada leitura do passado capaz de
torná-lo digno de ser lembrado, trazia no seu bojo a crítica ao ufa-
nismo, que se dava por satisfeito com a exaltação das qualidades
da terra e do povo:
De todos os tempos, e de todos os povos, é pois, um velho e
vulgar prejuízo; é um fenômeno de etnografia, que revela fraqueza
psicológica, a ausência de senso crítico ... Previnamo-nos, pois, con-
tra essas afirmações vaidosas do patriotismo insensato: o Brasil é o
paraíso terreal, o mais rico, o mais lindo, o mais próspero país do
mundo. O brasileiro é o mais forte, o mais inteligente, o mais inve-
jado povo do mundo.
47
Entraram na ordem do dia as denúncias a respeito da falta de
organização, disciplina e tenacidade de um país imenso, com
enormes áreas desertas, habitado por uma população escassa, na
sua esmagadora maioria analfabeta e desprovida de civismo:
A extensão do território, a pobreza das comunicações, o
acordo pouco definido de uma federação mal compreendida, a mín-
gua da ventura em muitos sertões desamparados, a inópia da instru-
ção popular sustentam e agravam esta desorganização. A descrença
e o desânimo prostram os fortes; o descontentamento e a indisci-
plina irritam os fracos; a comunhão enfraquece-se. É tempo de pro-
testar e de reagir contra esse fermento de anarquia e essa tendência
para o desmembramento.
48
47 PEIXOTO, A. A educação e a defesa nacional. RBR, v.7, n.26, p.184, fev.
1918.
48 B1LAC, O. Liga de Defesa Nacional. RBR, v.3, n.9, p.101, set. 1916.
Em uma época impregnada pelo espírito bélico, o serviço
militar obrigatório, defendido com ardor por Bilac, passou a ser
apontado como uma solução eficienteo apenas para afastar
qualquer ameaça à nossa soberania mas, sobretudo, como fator de
efetiva unificação nacional e fonte de regeneração física, moral e
cívica da população. Ao exército atribuía-se a capacidade de solu-
cionar todos os problemas da nação:
O serviço militar, pondo em contato uns com os outros, os
filhos das diferentes zonas do país, apressará a fusão definitiva da
raça, dissipando aos olhos de todos essa névoa de preconceitos e
desconfianças que afasta o nortista do sulista e que,o raro, se con-
densa num granizo de ciumezinhos irritantes e picuinhas atoleima-
das. O que a falta de meios de comunicação tem retardado, o serviço
militar vai realizar: a revelação do Brasil aos brasileiros e dos brasi-
leiros a seus próprios irmãos. Pela primeira vez, depois de tantos
anos de adoração beatífica ao estrangeiro, o brasileiro vai ser obri-
gado a olhar para si, para a sua terra e para os seus patrícios.
49
É certo que os discursos inflamados, que asseguravam a capa-
cidade miraculosa da caserna,o ultrapassavam as declarações
de efeitos, sempre se abstendo de cogitar a respeito de questões de
ordem prática.
50
A Revista do Brasil abriu amplo espaço para
Bilac, a Liga de Defesa Nacional e sua congênere paulista, a Liga
Nacionalista, noticiando as atividades desenvolvidas pelas entida-
des e publicando as conferências de seus delegados.
Mesmo os queo simpatizavam com o ardor marcial dos
membros das Ligas, ou duvidavam dos efeitos benéficos do ser-
viço militar,
51
concordavam que o país precisava, urgentemente,
49 Civismo e pessimismo. RBR, v.7, n.27, p.290, mar. 1918.
50 Ver as ponderações de CLEMENTINO, M. A instrução militar obrigatória.
RBR, v.2, n.8, p.391-3, ago. 1916.
51 A crítica mais contundente à Liga foi feita por ALENCAR, M. de. Carta
aberta ao Senhor Presidente da República. RBR, v.4, n.13, p.89-94, jan. 1917,
texto que mereceu resposta de LORENA, J. de. Defesa nacional. RBR, v.6,
n.21, p.3-23, set. 1917. Críticas à Liga também estão presentes em: M. P.
(não identificado) A preparação científica. RBR, v.5, n.20, p.525-27, ago.
1917; LOBATO, J. B. M. A nossa doença. RBR, v.7, n.25, p.6, jan. 1918,
entre outros.
assenhorar-se efetivamente do seu território e explorar as riquezas
que ele guardava. Assim, em 1922 estimava-se que da linha de
contorno do Brasil, cerca de 11.000 km, 45% estavam demarca-
das, 40% apenas fixadas e 15% ainda dependentes de determina-
ções, o que nos tornava um país de "confins mal conhecidos, com
as suas terras de fronteira longe dos centros de população, e, algu-
mas vezes, em regiões agrestes e inóspitas, de que temos notícia
por exploração de há séculos e mais".
52
Tal desconhecimento por
certo contribuía para tornar verossímil a possibilidade da perda de
um patrimônio cujo valor sequer sabíamos estimar.
A partir da independência, alguns esforços foram despendi-
dos com o intuito de configurar o espaço nacional: Conrado
Jacob Niemeyer produziu a Carta Corográfica do Império do Bra-
sil (1846), primeiro trabalho a ser distinguido com o prêmio geo-
gráfico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; a esta
seguiu-se a Carta do Império do Brasil, elaborada com o objetivo
de figurar na Exposição Universal de Viena (1873); em 1895 sur-
giu a Carta da República do Brasil e em 1922, para comemorar o
Centenário da Independência, o Clube de Engenharia preparou a
Carta Geral do Brasil, que por mais de uma década seria o único
documento oficial sobre o assunto.
Contudo, foi somente a partir da Revolução de 1930 que o
esforço para dotar o país de serviços geográficos, estatísticos e car-
tográficos adensaram-se. Os ideólogos do regime, preocupados
em estabelecer um sistema "racionalizado e sob perfeita sistemati-
zação ... [que pudesse] proporcionar ao governo elementos
imprescindíveis ao controle eficiente do seu plano de ação polí-
tico-administrativa", orgulhosamente contrastavam suas realiza-
ções com o período anterior no qual "a falta de coordenação dos
elementos de que dispúnhamos tornava-seo evidente que até
mesmo os documentos oficiais apresentavam, quando de procedên-
cias diversas, a mais clamorosa disparidade na simples enunciação
das cifras referentes à área territorial do país" (Schwartzman,
1983).
52 VASCONCELOS, M. de. O contorno terrestre do Brasil. RBR, v.20, n.79,
p.196, jul. 1922.
A inexistência de uma representação cartográfica, além de suas
óbvias implicações políticas e administrativas, tornava mais difícil a
tarefa, normalmente desempenhada pela geografia ministrada no
ensino básico, de difundir e consagrar as nossas fronteiras como
algo natural, dado, um dia descoberto e ocupado.o surpreende
que o orgulho nacional pela posse de um território continental,
assegurado por fatos históricos marcantes, fosse acompanhado,
sobretudo num contexto de guerra mundial, por cantilenas patrió-
ticas que glorificavam o exército e o saber geográfico.
Entretanto, é interessante assinalar a sobrevivência na Revista
do Brasil de uma geografia maravilhosa, embalada pela existência
de vastas áreas ainda intocadas pelo homem branco no Norte e no
Centro-Oeste do país, o que excitava a imaginação das elites, que
depositavam nelas seus sonhos de riqueza, abundância e exo-
tismo, como bem atesta o exemplo da Amazônia.
53
Desde o período colonial, esta região vinha sendo objeto de
inúmeras descrições. Para desespero dos estudiosos, ela continuava,
nas décadas iniciais do século XX, envolta por uma aura de misté-
rios imperscrutáveis:
Nenhuma região do planeta possui a literatura científica da
Amazônia, Eldorado dos aventureiros e foco de atração dos sábios.
O desavisado que mergulhar porém nessa literatura, farta e maravi-
lhosa, ao cabo de breve tempo fica estarrecido ante as contradições
que registra. Humbold afirma, Wallace nega. O Padre Fritz garante,
Condreau contesta. La Condamine assevera, Maury discute. É um
verdadeiro labirinto de opiniões, nas quais somente se penetra
seguro, guiado pelo fio de Ariadne do conhecimento direto, obser-
vado in loco, de forma a distinguir quando o geógrafo erra e o botâ-
nico acerta.
54
53 A respeito das riquezas incontáveis a serem descobertas nos confins do país
ver as avaliações de CAMPOS, H. de. O Rio Branco. RBR, v.10, n.39, p.368,
mar. 1919; E. S. [não identificado]. O eucalipto e as árvores florestais indíge-
nas. RBR, v.18, n.70, p.172, out. 1921; METELLO. A. O sul do Mato
Grosso. RBR, v.20, n.77, p.53, maio 1922; MIRANDEIRA, A. D. A Amazô-
nia. RBR, v.24, n.93, p.52 e 58, set. 1923 e a Resenha da obra Selva selvagem
de Pinto Pessoa. RBR, v.24, n.96, p.355, dez. 1923.
54 MORAES, R. Aspectos amazônicos. A incorporação da Ilha de Marajó ao
continente. RBR, v.17, n.67, p.341, jul. 1921.
Era como se a linguagem da ciência perdesse sua eficácia
diante de uma natureza grandiosa que teimava em permanecer
indômita e despojar o homem de sua dignidade. O exemplo do
famoso geólogo Frederico Hartt, relatado por Euclides da Cunha,
pode ser considerado paradigmático:
A literatura científica amazônica, amplíssima, reflete bem a fisio-
nomia amazônica: é surpreendente, preciosíssima, desconexa. Quem
quer que se abalance a deletreá-la, ficará, ao cabo desse esforço, bem
pouco além do limiar de um mundo maravilhoso. Há uma frase do
Professor Frederico Hartt que delata bem o delíquio dos mais robus-
tos espíritos diante daquela enormidade. Ele estudava a geologia do
Amazonas, quando em dado momento se encontrouo desespe-
rado das concisas fórmulas científicas eo alcandorado no sonho,
que teve de colher, de súbito, todas as velas à fantasia: "não sou
poeta. Falo a prosa da minha ciência. Revenons!" Escreveu; e escar-
rilhou-se nas deduções rigorosas. Mas decorridas duas páginas ...
reincidiu no enlevo. É que o grande rio, malgrado a sua monotonia
soberana, evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por
igual o cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio preca-
vido ... Há uma hipertrofiada imaginação no ajustar-se ao descon-
forme da terra, desequilibrando a mais sólida mentalidade. (Cunha,
1946, p.8-9)
55
o apenas a Geologia e o regime das águas desafiavam
explicações racionais, a flora e a fauna também davam margem à
especulações de toda ordem. Em 1921, a Revista do Brasil trans-
creveu artigo no qual um especialista da Universidade de Roma
relatava o seu encontro com um terrível monstro marinho nos
arredores de Belém.
56
Na mesma época, um professor da Escola
de Farmácia de Nova York, Dr. H. H. Rusby, estava organizando
uma expedição à Amazônia com o objetivo de encontrar exempla-
res de plantas raras; estudar os insetos transmissores de certas epi-
55 Na mesma direção caminha o artigo de MORAES, R. Aspectos amazônicos.
O nível da terra é o nível das águas. RBR, v.18, n.69, p.29-33, set. 1921 que
utiliza os termos anormal, anomalia, controvérsia, desconexo, falível, indefinido,
irregular, indeciso e obscuro ao referir-se aos fenômenos hidrográficos da
região.
56 DALGE. Um monstro marinho. RBR, v.17, n.67, p.375-6, jul. 1921.
demias, bem como soros para combater enfermidades; descobrir
sobreviventes pré-históricos,o só mamíferos, peixes, aves e
répteis, como ainda humanos. Dentre os seres com os quais a
expedição pretendia se defrontar figuravam o merosauro, réptil
gigantesco, com mais de sete metros de altura e cuja mordedura
seria venenosa; a rã gigante, que segregava através da pele um
veneno que mataria a quem a atacasse; uma tribo de índios anato-
micamente diferente dos mortais de agora e dos quais, desde a
descoberta da Américao se chegou a ver senão dois esqueletos;
a ave caçadora de serpentes que, como um cão, as pilha e traz ao
amo; a colossal ave denominada foncehare, com um volume supe-
rior ao de cinqüenta avestruzes reunidos; os sobreviventes das ser-
pentes de mais de vinte metros; grandes povos antropófagos; um
exemplar, vivo ou morto, dos homens daquela região dos Parin-
tintins, que se utilizam de arcos de três metros, com os quais des-
feririam flechas de 1,80 m.
57
Mesmo a era dos computadores e satéliteso extinguiu de
todo as esperanças de encontrar na Amazônia seres exóticos.
Outro americano, David Oren, doutor em Zoologia por Harvard,
embrenhou-se nas florestas do Acre em busca de um animal simi-
lar ao Abominável Homem das Neves. A partir de relatos dos
habitantes locais, Oren convenceu-se da existência do mapin-
guari, animal de 1,80 m de altura, 250 kg, criatura terrível e peri-
gosa, de aspecto semelhante ao do homem, porém com oss
voltados para trás, dotado de defesa química capaz de paralisar os
oponentes, de garras poderosas e de um urro vigoroso. O especia-
lista concluiu tratar-se de uma preguiça gigante, semelhante àque-
las que perambulavam pelo planeta a 8,5 mil anos. Apesar de
admitir que teve "muito trabalho para convencer outros cientistas
de que o animal podeo passar de um mito", obteve financia-
mento e partiu para a sua caçada em março de 1994 (OESP,
9.2.1994, p.A-13).
Se a busca de elos perdidos agitava o espírito de alguns aven-
tureiros,o era esse o tipo de conhecimento preconizado por
57 Uma curiosa expedição aos sertões do Brasil. RBR, v. 17, n.67, p.370-1, jul.
1921.
aqueles que se diziam preocupados com o futuro do país. Nesse sen-
tido, o que se apregoava era a necessidade de um saber apto a ins-
trumentalizar a ação, ou seja, conhecer o espaço nacional, mapear
suas riquezas, tendo em vista sua exploração e utilização de acordo
com os interesses da nação. Já em 1912, Roquette Pinto, alicerçado
nas formulações de Ratzel, condenava tantos os pessimistas incon-
dicionais quanto os otimistas ingênuos advertindo-os que
o Brasil é um assunto virgem. Para servi-lo, antes de mais nada, é
preciso conhecê-lo ... O que venho pregando é a individualização
das pesquisas, a objetivação brasileira das observações. É preciso
estudar o Brasil, com seus encantos e suas tristezas, para o amar
conscientemente: estudar a terra, as plantas, os animais, a gente do
Brasil. Terra de forte ascendente sobre os homens, deve ter influído
de um modo próprio sobre o povo que o habita: qual foi essa influên-
cia? Esse povo ... deve ter transformado esse torrão americano, qual
foi essa transformação? Eis o que a Antropogeografia, aplicada ao
Brasil, procura deslindar.
58
A crítica tinha endereço certo: denunciar a inocuidade da ati-
tude contemplativa que se comprazia diante das virtualidades da
terra descurando, porém, do essencial: encontrar meios eficientes
para concretizá-las. E aqui, ainda uma vez, o discurso geográfico
adquiria fôlego. Porém, geografia, nesse contexto, era mais do
que a simples enumeração e descrição da superfície terrestre e de
seus habitantes, ela era tomada na nova acepção que, no decorrer
do século XIX, Ritter, Humboldt e Ratzel lhe deram: um saber
unitário e sistematizado que problematizava a interação homem-
natureza (Prado Júnior, 1975, p.164-5; Costa, 1992; Moraes, 1989
e 1993). Tal saber sempre interessou particularmente ao Estado
pois, a um só tempo, ele oferece um guia eficiente e seguro para
nortear as políticas públicas e, graças à sua aura de cientificidade,
58 ROQUETTE PINTO, E. O Brasil e a Antropogeografia. RBR, v.4, n.12,
p.323, dez. 1916. As opiniões de Ratzel estavam bastante difundidas na
intelectualidade brasileira. Ver também: OLIVEIRA VIANNA, F. J. Oscilação
da taxa de fecundidade durante o ciclo bandeirante. RBR, v.28, n.ll1, p.198,
mar. 1925.
os argumentos necessários para a legitimação destas (Lacoste,
1988, p.23 e 51). Em sintonia com as novas concepções, Victor
Vianna alertava:
O brasileiro precisa saber Geografia para poder agir. Somos um
povo novo, com grandes zonas aindao povoadas, com imensas
regiões inaproveitadas ... [precisamos] desenvolver, completar,
criar, por assim dizer, a Geografia. Só os inquéritos diretos de diver-
sas regiões do país fornecerão os elementos para a coordenação
necessária: inquéritos sobre a parte física e sobre a parte dinâmica;
inquéritos com alto critério técnico e com preocupações sociológi-
cas ... [A Geografia] é, dessa forma, um instrumento de ação e de
riqueza,o é mera nominata.
59
Coerentemente, o autor também preconizava uma transfor-
mação no ensino da disciplina, a fim de que ela fosse tanto um ele-
mento de aproximação intelectual, quanto um veículo de
vocações, assinalando que "o rapaz que souber geografia, geogra-
fia à moderna eo nominata de rios e cidades, ficará aparelhado
para melhor escolher a atividade a desenvolver no campo agrícola
e industrial ... O ensino da geografia, desde a escola primária, é
hoje o preparo elementar para as altas posições do comércio, da
lavoura e da política". Viannao se constituía numa voz isolada.
Roquette Pinto, admirador de Ratzel, lamentava que seus ensina-
mentoso tivessem chegado aos professores que seguiam ensi-
nando Geografia como se "o fator humano fosse o menor dos
acidentes de uma região".
60
A geografia estava longe de se constituir em um caso isolado.
Nas páginas da Revista do Brasil figuraram críticas acerbas à edu-
cação humanista, tida como incapaz de desenvolver as aptidões
exigidas pelo mundo moderno. Cincinato Braga lamentava:
O Brasil está trabalhando às cegas. No mundo moderno, os
olhos de um povoo a Química e a Mecânica. No Brasil a maior
59 VIANNA, V. A geografia no Brasil. RBR, v.8, n.29, p.82, maio 1918.
60 ROQUETTE PINTO, E. O Brasil e a Antropogeografia. RBR, v.4, n. 12,
p.324,dez. 1916.
parte da elite da nossa população ainda pensa que faz a felicidade de
um filho dotando-o com uma carta de bacharel em Direito ... Que
engano! ... A época do bacharel em Direito já passou, como antes
dela já havia passado a do padre ... Hoje o progresso e a riqueza de
um povo ... exprimem-se antes pelo critério profundo das ciências
positivas, revelado no número dos seus cavalos a vapor em função
útil, de suas máquinas industriais ou agrícolas, de suas usinas, de
seus aparelhos de defesa da saúde pública e privada, de seus trans-
portes rápidos e confortáveis.
61
A frase atribuída à Darwin - "ninguém pode desprezar mais
sinceramente do que eu a velha educação clássica, estereotipada e
tola"
62
- expressava, sem rodeios, uma opinião cada vez mais
aceita.
Recorria-se ao exemplo da Alemanha para evidenciar quanto
uma instrução científica poderia fazer em prol da prosperidade
nacional:
A Alemanha c no mundo o país em que a cultura científica está
mais difundida e desenvolvida. O povo alemão tem preparo cientí-
fico superior a qualquer outro do mundo ... Graças ao seu preparo
científico venceu todos os povos na luta econômica eo venceu a
guerra européia porque contra ela se coligaram todas as grandes
potências do mundo ... Por que isto? Pela mais positivas das razões.
Durante um século inteiro um sistema completo, integral e perfeito
de educação, o mais admirável do mundo, superior ao de qualquer
outro país, aplicado à massa toda da população alemã, plasmou a
inteligência desse povo inigualável, tornando-a o mais perfeito ins-
trumento científico.
63
61 BRAGA, C. Pela produção nacional. RBR, v.7, n.25, p.64, jan. 1918, grifo no
original. Em relação ao atraso brasileiro no setor químico ver as ponderações
de: SOUSA, G. de P. O ensino da química. RBR, v.16, n.63, p.226-7, mar.
1921.
62 Apud: CALLAMAND, E. A questão do Latim. RBR, v.4, n.14, p.223, fev.
1917.
63 SERVA, M. P. A ciência alemã. RBR, v.14, n.55, p.267, jun. 1920. Ver tam-
m o artigo de M. P. (não identificado). A preparação científica. RBR, v.5,
n.29, p.525-7, ago. 1917, artigo que vinculava os sucessos militares e
econômicos da Alemanha à preparação científica.
A redação da Revista do Brasil demostrava sua simpatia aos
apelos por mudanças nos rumos da educação, reproduzindo arti-
gos, ensaios e notícias provenientes de países nos quais a questão
do ensino técnico estivesse sendo debatida.
64
Todas as promessas entrevistas adquiriram súbita materiali-
dade com Rondon - militar, bacharel em Ciências Físicas, Natu-
rais e Matemáticas, geógrafo, sertanista, explorador, descobridor,
conquistador, pacificador - um homem que congregava múltiplas
qualidades e cuja obra desde cedo ganhou fama excepcional,
como transparece no seu curriculum vitae, organizado por Darcy
Ribeiro, que listou todos os prêmios e homenagens recebidas pelo
Marechal. É impressionante a quantidade de distinções, títulos
honoríficos, medalhas com que ele foi agraciado por universida-
des, sociedades geográficas, antropológicas, etnológicas, indige-
nistas e governos das mais variadas partes do mundo (Ribeiro,
1958, p.52-65).
O projeto governamental de interligar ao Rio de Janeiro, via
telégrafo, Goiás, Mato Grosso e a região Amazônica, encontrou
nele um executor admirável que, entre 1890 e 1915, participou
ativamente da construção de linhas telegráficas, estações e estra-
das. Somente a Comissão Rondon, organizada em 1907 com o
objetivo de unir Cuiabá ao Acre, estendera, ao findar os seus tra-
balhos, 2.270 km de linhas telegráficas, a maioria delas cortando
regiões nunca antes palmilhadas por civilizados e através das quais
64 Para uma comparação entre a França e a Alemanha ver as ponderações do
senador ASTIER, P. O ensino técnico. RBR, v.2, n.8, p.396-7, ago. 1916.
Alguns meses antes a redação da revista informava que o mesmo político
havia apresentado um projeto de lei visando a organização sistemática do
ensino técnico e fornecia detalhes sobre ele. O ensino técnico em França.
RBR, v.2, n.5, p.88-9, maio 1916. Nesse mesmo número a questão era abor-
dada para Portugal no artigo de BENSAÚDE, A. A instrução técnica em Por-
tugal, p.540-1. Na Argentina o assunto era candente, como transparece nos
seguintes artigos: ALFARO, G. Orientação social dos estudos universitários, e
OLIVA, J. O Direito e a Psicologia. RBR, v.l, n.2, p.219-20 e 220-21, fev.
1916, respectivamente, ou ainda em V1LLARROEL, R. A educação moderna.
RBR, v.3, n.10, p.213, out. 1916 e, COLMO, A. Ensino universitário. RBR,
v.3, n.ll, p.306-7, nov. 1916.
instalara 28 estações que seriam, no futuro, outros tantos povoa-
dos. Procedera ao levantamento geográfico de 50.000 km lineares
de terras e águas; determinara mais de duzentas coordenadas geo-
gráficas; inscrevera no mapa do Brasil cerca de doze rios até então
desconhecidos e corrigira erros grosseiros sobre o curso de outros
tantos (Ribeiro, 1976, p.135-6), contribuindo decisivamente para
aperfeiçoar os conhecimentos cartográficos da região.
Cercando-se de especialistas das mais diversas áreas, Rondon
procurou impor um caráter científico às suas expedições, que tam-
m se ocupavam da flora, fauna, geologia, mineralogia, hidrologia
e dos aspectos etnográficos e antropológicos das regiões percorri-
das. Delas resultaram uma enorme quantidade de estudos e publi-
cações (Magalhães, 1942, p.366-426), filmes e valiosas coleções
de artefatos indígenas, plantas, animais, minerais, colocadas sob a
guarda do Museu Nacional do Rio de Janeiro, à época dirigido
por Roquette Pinto, um dos integrantes da Comissão Rondon.
Além de enfrentarem a floresta tropical, "poderosa e indo-
mada, com as cataratas de seus rios, o poder de sua vegetação
emaranhada, a profusão de animais nocivos (répteis e sobretudo
insetos)... as feras, sob esse clima quente e úmido nas vizinhanças
de intermináveis brejais de florestas que exalam penetrante cheiro
de mofo",
65
Rondon e seus homens tinham a lhes espreitar tribos
indígenas até então totalmente isoladas e queo se mostravam
indiferentes à invasão de seus territórios. A superação de toda
ordem de obstáculos naturais e o contato, seguido do estabeleci-
mento de relações amistosas com os índios, fizeram das expedi-
ções de Rondon um exemplo vivo do que homens práticos -
militares, técnicos, engenheiros, geógrafos, cientistas - poderiam
fazer pelo país. Nas palavras de Roquette Pinto, um dos que
acompanharam Rondon:
Há por toda essa fita de terra, hoje, postos telegráficos, inver-
nadas; mais além disso existem por ali afora numerosos núcleos de
65 GAMELIM, G. Um explorador brasileiro. RBR, v.17, n.66, p.270, jun. 1921.
Essa descrição bem sintetiza a maneira como as florestas tropicais eram vistas
pelo olhar estrangeiro.
população sertaneja, oriundos da Comissão Rondon, vivendo em
paz com os índios, trabalhando em calma ...o vilas e cidades em
processo de incubação. Todas à beira de magníficas estradas de
rodagem que acompanha a linha telegráfica, ao longo de milheiros
de quilômetros; por elaso de passar as boiadas que os campos de
Goiás e Minas Gerais mandarão aos seringais da Amazônia. Que
pouco vale a linha telegráfica perto dessa Estrada Rondon! E quanto
valerá o laço imenso que a tenacidade desse homem e seu patrio-
tismo, apoiados na coragem e no espírito de sacrifício dos sertanejos
resistentes, conseguiram estender sob o Cruzeiro, para revigorar o
Brasil.
66
O enviado do exército brasileiro, leia-se do Estado e da
Nação,o se embrenhou na mata em busca do maravilhoso ou
do exótico, mas portando o telégrafo, poderoso ícone da moder-
nidade, capaz de prolongar o braço do poder até o distante norte.
Apossava-se de terras longínquas, revelava seus segredos mais ínti-
mos, precisava o seu contorno, varria dos mapas o adjetivo desco-
nhecido, colocava-as em condições de "fácil valorização ... [e
abria] à indústria todas as riquezas de florestas seculares"
(Roquette Pinto, 1950, p.19). Por fim, maso menos importante,
incorporava pacificamente à população brasileira seus filhos arre-
dios: nambiquara, pareci, bororo..., revelando grande sensibili-
dade no trato da cultura indígena, como fica patente no artigo O
casamento entre os carajás, publicado na Revista do Brasil.
67
Ron-
don materializava os sonhos dos defensores da Liga de Defesa
Nacional, atestando com o seu exemplo os inestimáveis serviços
que o exército poderia prestar à nação.
Todos esses feitos valeram ao seu principal artífice a compa-
ração com os bandeirantes, o que equivale a dizer, com os paulis-
66 ROQUETTE PINTO, E. Rondônia. RBR, v.2, n.6, p.171-2, jun. 1916, grifo
no original.o confundir o presente artigo com o livro homônimo publi-
cado pelo autor no ano seguinte no qual apresenta um amplo estudo das popu-
lações Parecis e Nambiquaras, com que travou contato em 1912 enquanto
membro da Comissão Rondon. A obra mereceu resenha elogiosa na RBR, v.5,
n.19, p.383-4, jul. 1917. Em 1915, numa série de conferência proferidas no
Museu Nacional, Roquette Pinto sugeriu que se desse o nome de Rondônia à
região percorrida por Rondon, o que ocorreu em 1955.
67 RBR, v.14, n.54, p.185-6, jun. 1920.
tas, uma vez que aqui interessava tomar esses adjetivos como
sinônimos: "personalidade enérgica, fisionomia aberta e simpá-
tica, ele alia a uma inteligência sagaz, eo comum nos homens da
sua raça, uma vontade tenaz e rude. Nele se percebe a herança atá-
vica daqueles célebres bandeirantes do século XVIII que, partindo
deo Paulo e de Minas, em busca do ouro, foram os primeiros
conquistadores do hiterland brasileiro".
68
Esta outorga ocorria
apesar do fato de Rondono ser natural deo Paulo,o des-
cender de famílias tradicionais da terra e nem tampouco tê-la ado-
tado como lugar de moradia. Contudo, o Marechal fizera-se
merecedor da distinção na medida em que sua determinação,
coragem e arrojo permitiam equipará-lo aos rebentos mais nobres
de Piratininga. A apologia desse bandeirante do século XX, cujas
expedições eram consideradas o coroamento do ciclo de conquis-
tas aberto no período colonial, tornava-se mais um ingrediente da
delicada química da paulistaneidade:
De vez em quando, do fundo dos sertões brasileiroso miste-
riosos ainda, apesar da obra maravilhosa de audácia e tenacidade das
bandeiras antigas ... surge no litoral Candido Rondon. É sempre um
acontecimento. Desinteressadamente todos o festejam. Onde reside
o segredo do seu triunfo? Na sua força moral. Por instinto parece
que todos sentem a fórmula consciente e admirável de W. Gill:
"melhor, mais útil, mais difícil do que morrer pela Pátria é viver para
ela". E é pela sua grande pátria que o general Rondon tem sempre
vivido, a vida mais cheia, mais forte que nestes últimos vinte anos se
tem vivido debaixo do Cruzeiro do Sul. É o bandeira por excelência,
mas suavizado pelas idéias modernas, e por um grande espírito de
humanidade ... Esse bandeiranteo é impelido como os antigos
pela ânsia de riqueza, de conquista e domínio.o destrói, constrói;
o afugenta, atrai, é um imã moral.
69
Ao mesmo tempo, Rondon consubstanciava de maneira
exemplar o discurso que insistia em identificar espaço e nação,
isso no momento em que a posse do território tanto fornecia uma
possibilidade de apreensão positiva do passado, quanto atuava
como elemento legitimador da proeminência deo Paulo na
68 GAMELIM, G. Um explorador brasileiro. RBR, v.17, n.66, p.266, jun. 1921.
69 ALBUQUERQUE, A. de. Rondon. RBR, v.ll, n.44, p.368-9, ago. 1919.
configuração do país. Enquadrar Rondon no arquétipo do pau-
lista e fundir suas realizações com a dos bandeiranteso era uma
questão retórica. Paulo Duarte, insatisfeito com as aproximações
no campo simbólico, esforçou-se por estabelecer uma genealogia
capaz de transformar o descendente de índios terenos em um legí-
timo filho deo Paulo:
Já a ascendência de Rondon é uma predestinação. O seu bisavô
era português, a sua avó era filha de espanhol e guainá ... Essa genea-
logia começou em Cotia, ao lado deo Paulo de Piratininga, terra
paulista, de onde saíram os grandes dilatadores das fronteiras nacio-
nais. Durante o domínio espanhol já houve um general Rondon,
morto depois da Restauração, que se notabilizou pela sua amizade
aos índios. Era este paulista, pois os Rondon estavam já estabeleci-
dos emo Paulo. Um deles foi para Mato Grosso, dando origem
aos avitos diretos de Candido Mariano da Silva Rondon. A sua
ascendência materna era inteiramente indígena, índios terenos e
bororos. O seu avô, um bandeirante deo Paulo, chamava-se José
Lucas Evangelista.o podia haver mais legítima certidão brasiliense
do que a do grande pacificador. (Duarte, 1975, p.l).
O trabalho de Rondon acabou sendo engolfado pelo apetite
voraz deo Paulo, que o incorporou à extensa folha de serviços
que o Estado orgulhava-se de haver prestado à nação. A vocação
do paulista para guiar e conduzir, historicamente atestada, refor-
çava o ímpeto missionário da elite local, que narcisicamente pre-
tendia que o país tivesse sua própria imagem.
Parece claro que, no início do século XX, o discurso geográ-
fico, cuja matriz inicial assentou-se na extensão territorial, adqui-
riu densidade e importância. Se, por um lado, as dimensões
continentais de um país malconhecido, pouco explorado e que
guardava nas suas entranhas todas as riquezas que a imaginação
desejasse, forneciam elementos para uma descrição ufanista e
cheia de confiança no futuro; por outro, era preciso caracterizar
essa posse como fruto de um esforço coletivo eo simples acaso
ou fatalidade. A história foi então chamada a testemunhar a favor
da nação. Consagrou-se uma leitura do passado feita segundo as
coordenadas traçadas pela geografia que, assim, ultrapassava a
contemplação e impunha seu viés à memória. Mais ainda, graças
à nova roupagem que lhe deram Ritter, Humboldt e Ratzel, ela
também pôde apresentar um conjunto de princípios e propostas
para a ação; um instrumental aceito como eficaz para concretizar
as potencialidades da terra.
O papel desempenhado pelo fator espacial nas representa-
ções da nação sempre foi marcante. Ele deu origem a um senti-
mento de agregação e pertencimento, permeado por uma ponta
de orgulho, aos filhos de uma terra grandiosa e farta. Da identi-
dade via espaço pode-se extrair conseqüências políticas de longo
alcance e que certamente estão longe de ser inocentes. Como bem
frisou Moraes (1991, p.168), ela fornece, a um só tempo,
um projeto para as elites, um horizonte referencial de todo o povo e
também uma justificativa da unidade nacional (tornada projeto),
que em si mesma legitima o Estado. E, ainda, coloca o "povo" no
seu devido lugar, qual seja, de subalterno: tudo isso envolto numa
linguagem altamente cientificista, que apenas constata pela observa-
ção empírica os fatos presentes na superfície da terra.
A concepção restrita do nacional, entendido como posse de
terras, sempre justificou a repressão a qualquer ação que pudesse
colocar em risco a unidade do país, além de ter mantido conveni-
entemente afastada da questão nacional a problemática da obten-
ção dos direitos de cidadania.
Mas se, por um lado, a Geografia tentava fornecer uma visão
unitária e homogênea do nacional, colaborando poderosamente
para precisar o nosso e o deles; por outro, ela também poderia
ensejar uma apreensão do espaço como diferença, contradição, isso
quando o ângulo de visada passava a ser a região. Surgiam então
vários brasis: o do norte e o do sul, o do litoral e o do sertão, que
traziam à tona ambigüidades subestimadas ou ignoradas no âmbito
do projeto unificador. Esse viés, ainda queo de todo ausente das
páginas da Revista do Brasil
70
o encontrou aí ambiente dos
70 A respeito ver: SERVA, M. P. Um fator de desintegração nacional. RBR, v.3,
n.10, p.115-8, out. 1916, ALENCAR, M. de. Carta aberta ao Senhor Presi-
dente da República. RBR, v.4, n.13, p.90-1, fev. 1917; IGLESIAS, F. Cinco
anos no norte do Brasil. RBR, v.ll, n.42, p.169-76, jun. 1919, e COARACY,
V. Os dois Brasis. RBR, v.19, n.76, p.307-13, abr. 1922, sendo esse o artigo
mais interessante denso e rico.
mais acolhedores, fato compreensível em um periódico que atuava
como caixa de ressonância dos interesses paulistas. Naturalmente,
pretende-seo negar a existência de outras identidades articula-
das a partir da região, mas simplesmente atestar a dominância de
uma trilha analítica pouco permeável à noção de fragmentação.
Deve-se ter presente que no período abarcado pela publica-
ção o grupo do nordeste, que se aglutinaria em torno de Gilberto
Freyre e elaboraria um modelo de brasilidade centrado nos valo-
res daquela região, aindao havia adquirido consistência. As
contribuições para a revista do Gilberto estudante, descoberto por
Lobato,
71
eram indícios, ainda tênues, de preocupações que
ganhariam corpo com o Manifesto Regionalista de 1926, texto
somente publicado em 1952 e que sintetizou as propostas do seu
regionalismo tradicionalista e modernista (D'Andréa, 1992, parte 3).
Quanto à Alceu Amoroso Lima, autor bastante presente na Revista
do Brasil, merece nota o fato de nenhum dos artigos que publicou
nesse periódico ter se pautado pela defesa de uma proposta para
o país centrada nos valores da mineiridade, aspecto dominante na
obra A voz de Minas, datava de 1945. O modelo bandeirante,o
presente na Revista do Brasil, continuou à disposição, tendo sido
retomado com ardor nos anos 30 por Cassiano Ricardo (Oliveira,
1990, p.195-7).
71 FREYRE, G. 1981, p.159 relata como se tornou colaborador da revista: "Na
Universidade de Columbia, onde seguiria cursos de pós-graduação ... Oliveira
Lima informou-me que a Revista do Brasil, dirigida emo Paulo pelo autor
de Urupês, estava transcrevendo artigos meus, dos da minha colaboração de
ainda estudante para o Diário de Pernambuco ... Monteiro Lobato me desco-
brira no provinciano Diário de Pernambuco e me considerava merecedor de
ser irradiado pela então triunfal Revista do Brasil". O seu primeiro arrigo
escrito especialmente para a revista foi uma resenha da obra de Oliveira Lima,
História da Civilização, publicada na RBR, v.20, n.80, p.363-71, ago. 1922.
Freyre afirma que a remessa do seu texto foi feita por intermédio do próprio
Oliveira Lima. Ao receber o texto Monteiro Lobato teria escrito à Oliveira
Lima "carta entusiástica sobre o autor [Freyre], perguntando-lhe quem era,
afinal, esse desconhecido cujos artigos no Diário de Pernambuco ele vinha
seguindo e fazendo transcrever na revista que dirigia. E de quem Oliveira
Lima conseguira que se tornasse colaborador da Revista do Brasil".
Das páginas da Revista do Brasil sobressai um discurso, alicer-
çado na história e na geografia, que atribuía ao Paulo o mérito
da conquista e manutenção do território. As explicações e justifi-
cativas então produzidas constituíam-se em ingredientes privilegia-
dos para a análise das estratégias de dominação e consagração
arquitetadas pelas camadas dominantes locais, que terminaram
por ofuscar os demais componentes da federação. Essa postura,
chave explanatória do período, instaurou uma forte identificação
entre a história deo Paulo e a história nacional, sobreposição
que continua vigente na prática historiográfica hodierna (Janotti,
1990, p.95). Porta-voz da paulistanidade, a Revista do Brasil cons-
titui-se fonte privilegiada para acompanhar os passos dessa cons-
trução, que também permeava as discussões a respeito da
qualidade étnica dos habitantes.
GRUPO II: Figuras 6 a 9
Com a Primeira Guerra Mundial, o temor em relação à política imperialista
ganhou novos contornos, enquanto o descaso pela realidade nacional passou
a ser duramente criticado. (RBR, n.18, 24 19)
CHRISTO TIO SAM
Venham a mim as creancinhas!
(D. Quixote Rio de Janeiro)
FIGURA 6
FIGURA 7
HORAS DE ARREPENDIMENTO
O sonho doirado do Kaiser: uma
casinha á beira de um lago em--.
Santa Catharina.
Voltolino "Cigarra", S. Paulo)
A minha missão é pedir a Deus que o Brasil seja, um
dia, a Terra de Santa Cruz... de Ferro !
(Julião Machado - "D. Quixote", Rio
FIGURA 8
CARIDADE PARA USO EXTERNO
ELLA Já sei que vai acceitar uma flôr em beneficio das crianças
belgas...
(Calíxto '"D. Quixote" Rio de Janeiro)
FIGURA 9
3 ETNIA: UM DESAFIO PARA A
CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO
Essas variações regionais da nossa mentali-
dade coletivao resultantes das diversidades
mezológicas, dentro das quais se opera o trabalho
rural em nosso povo. No Centro-Sul e na faixa
costeira, onde domina a lavoura dos canaviais, o
trabalho agrícola sempre se revestiu de um caráter
servil: sobre o índio primeiro e depois sobre o
negros recaíram, desde os primeiros dias da colo-
nização as durezas do labor agrícola. Este sempre
foi incumbência das raças inferiores e servis, por-
que, pela sua rusticidade, é incompatível com o
relativamente pequeno vigor físico das classes
superiores, mais delicadas, mais finas, mais cere-
brais, mais intelectualizadas, cuja energia biológica
se despende principalmente nas atividades superio-
res da vida afetiva e individual. (OLIVEIRA VIANNA,
J. F. Origens pastoris da democracia riograndense.
RBR, v.19, n.75, p.259, mar. 1922)
De légua em légua, uma pequena choupana,
de sapé ou de palha de coqueiro no Norte, de
pinho no extremo Sul, a abrigar, numa confusão
animal, numerosa família de negros boçais ou de
mulatos e caboclos indolentes, que vivem do que a
natureza oferece sem esforço, do peixe e do caran-
guejo nas praias, da carnaúba e do pinheiro nos
sertões. (BELLO, J. M. O sertão. RBR, v.9, n.33,
p.125, set. 1918)
Durante a primeira fase da Revista do Brasil (1916-1925),
pensar a nação ainda significava, antes de tudo, enfrentar a tortuosa
questão do estatuto étnico dos habitantes, assunto que figurava na
agenda da nossa intelectualidade pelo menos desde a Independência
(Guimarães, 1988). Entretanto, foi justamente a partir de meados
dos anos 10 que o paradigma racial começou a sofrer, no que res-
peita à apreensão e ao conteúdo, deslocamentos importantes que
podem ser analisados pelas páginas da revista.
Nas décadas iniciais do século XX,o eram poucos os que
continuavam a encarar a composição étnica da população como
fator decisivo, que subordinava todos os demais aspectos da vida
nacional e do qual dependia, inclusive, as chances futuras de qual-
quer país vir a integrar o concerto das nações:
O problema antropológico abrange quase todos os problemas
coletivos.o se pode conciliar e consolidar a capacidade econô-
mica, moral, política e social sem transformar profundamente a base
que sustenta aquelas condições, que é o homem. Nas Nações da
América, sobretudo, o progresso e a estabilidade políticaoo em
definitivo senão uma questão étnica.
1
Abordagens dessa natureza, que circulavam com desenvol-
tura entre pensadores e especialistas dos mais variados ramos do
saber, arrastavam consigo os fios de uma densa e heterogênea tra-
dição a respeito da diversidade humana.
A intelectualidade presente na Revista do Brasil movimentou-
se no interior dessa tradição, tendo estabelecido, conforme tere-
mos oportunidade de constatar, um complexo relacionamento
com as máximas racistas. O esforço que empreenderam a fim de
encontrar saídas positivas para o país muitas vezes aparece, ao
observador contemporâneo, como uma luta destituída de sentido
(Ortiz, 1986, p.13). Perdemos de vista o quanto a atmosfera da
1 AYARRAGARAY, L. A mestiçagem das raças na América. RBR, v. 1, n.3,
p.349, mar. 1916. A respeito de suas propostas de europeização da Argentina
como forma de assegurar ao país um lugar de destaque entre as nações do
futuro ver: HELG, A. 1994, p.39 e 62.
época estava impregnada pelas noções de superioridade e inferio-
ridade biológica, secularmente reafirmadas por filósofos, cientis-
tas e políticos.
Nesse sentido, é fundamental recolocar os termos em que o
debate era então travado. Antes de proceder à análise do material
presente na revista, apresenta-se, sem qualquer pretensão de ori-
ginalidade, um quadro histórico a respeito de como foi sendo
construída, desde o início dos tempos modernos, uma apreensão
do gênero humano que encarava a diversidade em termos hierár-
quicos.
O extenso preâmbuloo deve ser encarado como uma digres-
o dispensável. No período estudado, as doutrinas raciais ainda
eram um ponto de partida válida para a descrição e a compreensão
das sociedades. Acompanhar sua trajetória justifica-se na medida em
que ela fornece elementos para aquilatar o peso da ingrata herança
que envolvia a questão étnica, com a qual os homens do tempo
tinham, de algum modo, de ajustar contas. A raça, mais do que pano
de fundo, era parte integrante do imaginário.
ARQUEOLOGIA DO PRECONCEITO
Na Europa dos tempos modernos, o debate sobre a diversi-
dade humana pode ser remontado aos 44 volumes da Histoire
Naturelle de Buffon, obra queo só sistematizou os conhecimen-
tos até então acumulados a respeito do assunto, como também
contribuiu para configurar um novo campo de visibilidade para a
natureza, apegado à nomeação do observável (Foucault, 1981,
p.139-78).
Nas muitas considerações que teceu a respeito do homem, o
autor, sem abriro do postulado monogenista, empenhou-se
em explicar, a partir do clima, da alimentação e dos hábitos ou
maneiras de viver, as variedades discerníveis na espécie. Do ponto
de vista físico tal diversidade foi relacionada à cor da pele, à forma
dos olhos, à textura do cabelo, às dimensões e à proporcionali-
dade do corpo. Especialmente no volume De l'Homme Buffon,
valendo-se de uma enorme variedade de relatos de expedições e
viagens, ordenou, com base nos parâmetros citados, a massa de
informações disponíveis em um todo estruturado e coerente, o
que lhe valeu posição de destaque na constituição da disciplina
que viria a ser chamada de antropologia (Gusdorf, 1972). Nessa
empreitada, a defesa de uma humanidade una, por ele abraçada
de saída, acabou sendo tensionada pela introdução de uma pro-
funda hierarquia que associava, de maneira determinista, aspec-
tos fenotípicos com comportamentos culturais e morais
(Todorov, 1993, v.l, p.l12-21).
Na escala do naturalista, cujas idéias gozaram durante longo
tempo de grande reputação junto ao público culto, o ápice ficava
reservado para os brancos, mais especificamente para os europeus
setentrionais uma vez que "pour peu qu'on descende au-dessous du
cercle polaire en Europe, on trouve la plus belle race de 1'humanité.
Les Danois, les Norwégiens, les Suédois, les Finlandois, les Russes,
quoiqu'un peu différents entre eux, se ressemblent assez pour ne
pas faire avec les Polonois, les Allemands, et même tous les autres
peuples de 1'Europe, qu'une seule et même espèce d'hommes,
diversifiée à 1'infini par le mélange des différentes nations"
(Buffon, 1971, p.340).
As considerações de Buffon sobre os habitantes das áreas situa-
das além dessa faixa de latitude norte, estabelecida por ele como
reduto dos povos dotados de perfeição, beleza e civilização, esti-
veram longe de ser amáveis. Assim os lapões, "ces bommes qui
paroissent avoir dégénéré de 1'espèce humaine" foram descritos
como "une race d'hommes de petite stature, d'une figure bizarre;
dont la physionomie est aussi sauvage que les moeurs" (p.223); os
chineses, com seus "nez écaché et ces petits yeux de cochon",
seriam "peuples mous, pacifiques, indolents, supertitieux, soumis,
dépendants jusqu'à 1'esclavage, cérémonieux, complimenteurs
jusqu'à la fadeur et à l'excès" (p.232 e 262). Já os negros, possuindo
"les cheveux crépes, le visage maigre et fort désagréable",o pas-
sariam de povos "sauvages et brutaux" (p.246), enquanto os
índios da Austrália foram tomados como "les gens du monde les
plus misérables, et ceux de tous les humains qui approchent le plus
des brutes" (p.247).
Aos habitantes da Américao foi reservada melhor sorte. De
fato, todo o continente parecia exibir formas de vida pouco
desenvolvidas. Assim, ao comparar a fauna européia com a ame-
ricana Buffono titubeou em concluir pela inferioridade da
última, que considerava desprovida de grandes animais. Quanto
às espécimes domésticas que para cá foram transplantadas, o sábio
francês acreditava que, sob a influência nefasta da umidade ame-
ricana, elas teriam se distanciado dos seus protótipos ideais, tor-
nando-se menores e mais fracas do que as congêneres européias.
Esse julgamento negativo a respeito da América, considerada pelo
autor um continente imaturo e, portanto, incapaz de gestar seres
de porte avantajado, zoologicamente superiores aos répteis e inse-
tos que pululavam por aqui, também foi estendida para os habi-
tantes (Gerbi, 1960, p.3-31).
O dogma católico que postulava a unidade da espécie, e que
impediu Buffon de levar suas idéias às últimas conseqüências,
começou a ser contestado já no século XV1I1 por aqueles que,o
acreditando ser possível explicar as diferenças entre os homens
como resultado de processos históricos e ou condições ambien-
tais, defendiam o poligenismo, ou seja, a existência de múltiplos
centros de criação. Tal doutrina, que pode ser referida à Hipócra-
tes (Schwarcz, 1993, p.49), desfrutou no século seguinte de
grande prestígio, tendo sido retomada num clima de contestação
às verdades sustentadas pela igreja. De acordo com Arendt (1976,
v.l, p.84), as novas concepções significaram a "destruição da idéia
de lei natural como elo de ligação entre todos os homens e todos
os povos", agora separados por "um profundo abismo gerado pela
impossibilidade física da compreensão e comunicação humanas".
Assim,o era apenas a noção de uma origem comum a partir
de Adão que estava sendo demolida, mas também um certo ideal
de universalidade que entrelaçava todos os homens. Porém, gra-
ças sobretudo a Rousseau, o século XVIIIo pode ser lembrado
unicamente como aquele em que se caminhou firmemente para
subordinar a nossa espécie aos desígnios da natureza. Sua defesa
intransigente da liberdade, considerada um bem inalienável, e da
perfectibilidade, entendida como capacidade inerente a todos os
seres humanos de superar obstáculos, levaram-no a fundamentar
a desigualdade no desenvolvimento das faculdades humanas, a
partir de um olhar que privilegiava a História. Noutras palavras,
a possibilidade deo se sujeitar aos ditames naturais, atributo
exclusivo do homem, permitiu aos seres humanos estabelecer, por
meio de um ato de vontade, um contrato que assinalou a passagem
do estado de natureza, no qual os indivíduos viviam isolados e
tinham que subsistir com suas próprias forças, para a vida coletiva.
Na medida em que tal instauraçãoo derivou de diferenças inatas,
do direito do mais forte, da autoridade paterna ou da guerra, o filó-
sofo podia postular a conservação integral no novo status da liber-
dade desfrutada anteriormente (Rousseau, 1978, p.32).
Nas suas análises a respeito do caminho percorrido entre o
estado de natureza e a civilização, Rousseau criticava duramente o
rumo tomado pela vida coletiva, identificando no direito à proprie-
dade o primeiro grande progresso da desigualdade, a partir do qual
se instituíram outros. A civilização teria acabado por afastar o
homem das suas necessidades e deveres inatos, que foram conspur-
cados por paixões, desejos e regras antinaturais, responsáveis pelo
seu estado atual de decadência e corrupção. Ao comparar o selva-
gem e o civilizado, Rousseau exalta o primeiro, atitude desafiadora
para uma Europa às portas da Revolução Industrial e acostumada a
conceber-se como o epicentro da civilização.
Porém, vale assinalar que sua defesa do selvagem deve ser
inserida num rol de argumentos que, a partir de uma visão da
natureza como obra queo comportava movimento, porque
pronta e acabada, concebia o distanciamento do padrão originário
enquanto degeneração. As considerações pessimistas de Buffon a
respeito dos animais domésticos trazidos para a América - assim
como a defesa que Montaigne (1980, p.101-2) esboçou dos cani-
bais e dos frutos selvagens - serviram de caução para Rousseau,
que tirou conclusões originais a partir de concepções cristãs for-
temente enraizadas na idéia de uma Idade de Ouro perdida.
Contudo, é importante ter presente que as discussões travadas
durante o século XVIII a respeito da diversidade humana apoiavam-
se em opiniões e hipóteses de segundao - Buffon, por exem-
plo, jamais viu um chinês e no seu tempo ninguém ainda havia
empreendido uma comparação detalhada entre os esqueletos de
brancos e negros -, situação que se alteraria rápida e radicalmente
na passagem para o século XIX. (Stocking Júnior, 1982, p.29).
Do ponto de vista epistemológico, essa transformação foi tri-
butária, em larga medida, dos trabalhos de Cuvier, que com seus
estudos de anatomia comparada lançou as bases de um novo sis-
tema de classificação dos animais, encarados como um todo estrutu-
rado, no qual as partes possuíam atribuições específicas intimamente
relacionadas. Esse procedimento, chamado de princípio de corre-
lação das partes, revelou-se particularmente eficiente no campo
da Paleontologia, tendo sido assim descrito por Cuvier:
hoje, qualquer um que vê apenas a pista de um caso bifurcado pode
daí concluir que o animal que deixou essa marca ruminava, e tal
conclusão éo correta quanto qualquer outra em física e moral.
Esta única pista dá pois a quem a observa a forma dos dentes, a
forma dos maxilares, a forma das vértebras, a forma de todos os
ossos das pernas, das coxas, dos ombros e da bacia do animal que
acaba de passar, (apud Ginzburg, 1989, p.271)
Dessa forma, o naturalista francês pôde estabelecer uma
outra ordem de identidades e semelhanças, que se apoiava na vin-
culação imperceptível entre diferentes órgãos e sua função básica
- pulmão e bronquios, por exemplo, apesar de guadarem diferen-
ças aparentes e significativas, cumprem função semelhante. A
nova postura foi caracterizada por Foucault (1981, p.280) como
ruptura com o pensamento clássico, no interior do qual a lingua-
gem e o olhar bastavam para dar conta da natureza, encarada
como um contínuo. Em relação ao gênero humano, tais conside-
rações terminaram por fundamentar em bases científicas a noção
de raça, entendida como um conjunto de diferenças hereditárias,
o que equivale dizer permanentes, que separariam as várias espé-
cies de homens. Apesar de Cuvier ter se mantido fiel ao monoge-
nismo, seus trabalhos forneceram o arsenal analítico que seria
manejado pelos poligenistas.
Assim em sua Nota instrutiva sobre as pesquisas a serem
desenvolvidas a respeito das diferenças anatômicas entre diversas
raças de homens, redigida em 1800 para orientar os membros de
uma expedição à Austrália, patrocinada pela primeira entidade
francesa dedicada aos estudos antropológicos, a Sociedade dos
Observadores do Homem (1799-1805), Cuvier sugeria uma série
de procedimentos e técnicas para a coleta sistemática de crânios e
esqueletos completos de povos selvagens, material ainda raro na
Europa e então considerado essencial para que a antropologia,
tomada na acepção unidimensional de estudo do homem sob o
ponto de vista zoológico, pudesse avançar.
2
Dois outros médicos, contemporâneos de Cuvier, contribuí-
ram decisivamente para fundamentar, sob novas bases metodoló-
gicas, a história natural do homem: Blumenbach e Camper. O
primeiro, considerado patrono da moderna antropologia, desen-
volveu múltiplos trabalhos em anatomia e fisiologia, tendo lan-
çado as bases da craniologia. A ele deve-se a famosa divisão da
humanidade em cinco raças: mongol, etíope, americana, maláia e
caucasiana, esta última assim denominada pelo fato de habitar a
região próxima ao Monte Cáucaso, considerado por Blumenbach
o berço da humanidade e o hábitat da raça dotada da mais bela
conformação de faces e crânios. Já Camper, que dissecou vários
orangotangos a fim de estabelecer suas diferenças com a nossa
espécie, foi um dos primeiros a introduzir na anatomia compa-
rada classificações baseadas em medidas. Esse médico holandês
observou que o valor do ângulo facial variava numa escala que ia
de um mínimo nos símios, passando por negros e chineses até
atingir um máximo nos brancos.
3
Nascia, já marcada por juízos e
inferências de valor, a antropometria, que se afirmaria no decor-
rer do século XIX como uma importante especialidade do saber
médico.
2 Outro membro dessa Sociedade, Marie-Joseph Degérando escreveu, também
para orientar a citada expedição à Austrália, as suas Considerações sobre o
método a seguir na observação dos povos selvagens. A análise comparativa das
Notas e das Considerações dá bem a dimensão de quanto as propostas de
Cuvier contribuíram para reorientar os estudos antropológicos. Ver: STOCK-
ING JUNIOR, G. W. 1982, p. 15-41.
3 A respeito dos trabalhos do alemão Johann-Friedrich Blumenbach e do
holandês Petrus Camper, ver: TOPINARD, P., 1885, p.57-74, que analisa,
com riqueza de detalhes, a produção desses dois médicos. O texto contém
ilustrações que elucidam a respeito dos procedimentos utilizados por Camper
para medir o ângulo facial.
De fato, esse século assistiu à rápida multiplicação dos esfor-
ços para avaliar as diferenças entre os seres humanos a partir
de uma perspectiva biológica. Nos Estados Unidos, Josiah C.
Nott, George R. Gliddon e Samuel Morton, nomes ilustres da
antropologia americana e cujos trabalhos acabaram por fornecer
argumentos para justificar racionalmente a escravidão negra, cole-
taram séries de crânios humanos, contemporâneos e antigos, com
intuito de estudá-los comparativamente. O conjunto reunido por
Norton, um dos mais importantes do mundo, permitiu-lhe publi-
car Cranea Americana (1839) e Cranea Aegyptiaca (1844), obras
queo só apresentavam evidências à favor da origem múltipla da
humanidade, e que muito influenciaram o naturalista Louis Agas-
siz, como também afirmavam a íntima solidariedade entre estru-
tura física e capacidade intelectual, caráter, valores e formas de
comportamento. De acordo com esse especialista, que trabalhava
a partir da divisão da humanidade proposta por Blumenbach
[La raza caucasiana] se distingue por la facilidad con que logra
el más alto desarrollo intelectual... En sus características intelectua-
les, los mongoles son ingeniosos, imitativos y altamente susceptibles
de cultura ... El malayo es activa e ingenioso y posee todos los hábi-
tos de un pueblo migratorio, rapaz y marítimo ... Mentalmente los
americanos se caracterizan por ser contrarios a la cultura, lentos, crue-
les, turbulentos, vengativos y afectos a la guerra y enteramente des-
provistos de gusto por las aventuras marítimas ... El negro es de
natural alegre, flexible e indolente y los numerosos grupos que cons-
tituyen esta raza poseen una singular diversidad de caráter del que su
último extremo es el eslabón más bajo del linaje humano, (apud
Boas, 1964, p.37).
o tardou para que as técnicas de mensuração ganhassem em
sofisticação e precisão. O famoso antropólogo francês Pierre-Paul
Broca, cujos métodos de pesquisa foram imitados em todo o
mundo, criou um conjunto de instrumentos - craniográfo, cranio-
metro, estereógrafo, cefalógrafo - que compunham o arsenal dos
gabinetes antropométricos, manejados por especialistas devida-
mente treinados (Topinard, 1879). Esse suporte laboratorial cola-
borava poderosamente para dotar os resultados obtidos de uma
reconfortante aura de objetividade. Medidas precisas, tomadas por
indivíduos comprometidos apenas com o avanço do conhecimento,
confirmavam amplamente a fisiologia superior do europeu.
A diversidade, que na perspectiva humanista de um Rousseau
o se constituía num impedimento para transpor distâncias, pas-
sou a ser cada vez mais concebida em termos estritamente raciais.
Nesse sentido é interessante acompanhar a argumentação de
Louis Agassiz, suíço radicado nos Estados Unidos, professor de
Zoologia em Harvard, que dirigiu várias missões científicas, uma
delas ao Brasil (1865-1866). Antidarwinista, postulava a fixidez
das espécies, e poligenista, acreditava que as raças humanas
haviam surgido de maneira independente em oito pontos do
globo, suas observações da população brasileira permitiram-lhe
afirmar categoricamente que:
Para o fim que tenho em vista, é indiferente que haja três, qua-
tro, cinco ou vinte delas [raças humanas] e que derivem ouo uma
das outras. O fato de diferirem por traços constantes e permanentes
já basta, por si, para justificar uma comparação entre as raças
humanas e as espécies animais. Sabemos que, entre os animais,
quando dois indivíduos de sexo diferente e de espécie distinta con-
correm na produção de um novo ente, esse híbridoo apresenta
uma semelhança exclusiva nem com o pai nem com ae e participa
do caráter geral de ambos.o me parece menos significativo que
tal seja igualmente verdadeiro para com o produto de dois indiví-
duos de sexo diferente, pertencendo a raças humanas distintas. O
filho nascido de uma preta e um brancoo é nem preto nem
branco, é um mulato; o filho de uma índia e de um brancoo é nem
um índio nem um branco, é um mameluco; o filho de uma negra e
de um índioo é nem um negro nem um índio, é um cafuzo.
Cafuzo, mameluco e mulato participam dos caracteres de seus auto-
res tanto quanto a mula participa dos do cavalo e da jumenta. Logo,
no que respeita ao produto, as raças humanas se acham, umas em
relação às outras, na mesma relação que as espécies animais entre
si ... Por mim julgo demonstrado que, ao ser que se prove que as
diferenças existentes entre as raças índia, negra e brancao instá-
veis e passageiras,o se pode, sem se estar em desacordo com os
fatos, afirmar a comunidade de origem para todas as variedades da
família humana. (Agassiz, 1938, p.370-1)
Valores e comportamentos foram associados a oscilações no
índice cefálico, forma da cabeça, peso da matéria cinzenta, tama-
nho e contorno do crânio, dados técnicos que apontavam para
diferenças anatômicas inatas e invalidadoras da idéia de uma natu-
reza humana única.
Tradicionalmente, as características raciais eram determina-
das a partir da cor da pele e dos olhos, do aspecto do cabelo, da
forma do nariz, dos lábios e da cabeça, critérios que permitiam
obter de três a mais de trinta raças. Em meados do século XX, gra-
ças aos trabalhos do suíço Andrés Ratzius, as descrições baseadas
em aspectos aparentes foram substituídas por um valor numérico,
conhecido como índice cefálico, e que expressava a relação exis-
tente entre a largura e o comprimento de um crânio. Tal índice,
que podia ser calculado com grande precisão tanto em indivíduos
vivos quanto em material ósseo, permitiu que se dividisse os seres
humanos em dolicocéfalos, que apresentavam os menores índi-
ces; mesatocéfalos, com valores médios e braquicéfalos, possui-
dores das taxas mais altas. Ganhava força a tendência, já expressa
nos trabalhos de Camper, de substituir as classificações que flu-
tuavam ao sabor do observador por outras consideradas mais
rigorosas, porque elaboradas a partir de refinadas análises fisioló-
gicas. Ao longo do século XIX, período áureo da antropologia
física, assistiu-se à multiplicação de aparelhos, métodos de medi-
ção e índices, muitos deles incompatíveis entre si. Daí a tentativa,
levada a efeito em 1906 no XIII Congresso Internacional de
Antropologia e Arqueologia, de padronizar os pontos de referên-
cia para a tomada das medidas antropométricas e osteométricas.
Entretanto,o se pode negligenciar o fato de que foi justa-
mente no século XIX, sob o influxo das necessidades e possibili-
dades abertas pela Revolução Industrial, que o contato dos
europeus com habitantes de áreas geograficamente remotas amiu-
dou-se, possibilitando à faculdades, museus e sociedades científi-
cas abastecerem-se de farto material fóssil e antropológico. O
interior da África, praticamente desconhecido, foi rasgado por
viajantes-exploradores: Livingston, Speke, Burton, Brazza, Stan-
ley, para ficar apenas nos mais famosos. Essa experiência direta do
outro, tornada cotidiana em uma economia atravessada por "uma
rede cada vez mais densa de transações econômicas, comunicações
e movimentos de bens, dinheiro e pessoas" (Hobsbawm, 1988,
p.85), só parecia confirmar a auto-imagem que o Ocidente de há
muito vinha pacientemente elaborando.
Num contexto em que a civilização deixava de ser encarada
como atributo de todo e qualquer homem para se transformar em
apanágio exclusivo de uma pequena parte da humanidade,o
surpreende que o poligenismo encontrasse um número crescente
de adeptos, organizados em sociedades científicas. Paul Broca
fundou a Sociedade de Antropologia, símbolo da nova orientação
que, ao privilegiar os caracteres físicos, tendia a adotar procedi-
mentos zoológicos e anatômicos, postura que denunciava a
enorme restrição de sentido a que fora submetida a recém-criada
disciplina. Institucionalizava-se, dessa maneira, a ruptura, já exis-
tente no nível teórico, com a Sociedade de Etnografia (1839)
cujos membros, mais preocupados com o estudo da língua, usos e
costumes dos vários grupos humanos do que com aspectos fisio-
lógicos, permaneciam atados à uma herança monogenista e fiéis à
noção de perfectibilidade.
Ao postular que desde o seu surgimento no planeta os seres
humanos jamais formaram um único grupo, mas sim várias espé-
cies cada uma com características próprias, os poligenistas viram-
se obrigados a lidar com a incômoda questão da hibridação, o que
deu ensejo ao desenvolvimento de uma variada gama de teorias a
respeito dos efeitos dos cruzamentos inter-raciais. Vários polige-
nistas, entre eles Broca, advogavam a esterilidade, em algum grau,
dos mestiços, bem como sua fraqueza moral, física e mental (Topi-
nard, 1885, p.92-7), enquanto outros, apoiados na idéia de que as
espécies inferiores produzem um maior número de descendentes
do que as superiores - Buffon contrapunha a extrema fertilidade
dos insetos da América ao escasso número de descendentes dos
animais superiores -, caminhavam na direção oposta e alertavam
para a extrema fertilidade desses seres inferiores. Porém, poucos
discordovam quando se tratava de assinalar o caráter ameaçador
da miscigenação, capaz de colocar em risco o futuro da humani-
dade. Nas palavras de Nott e Gliddon: "it is evident...that the
superior races ought to be kept free from all adulterations,
otherwise the world will retrograde, instead of advancing, in civi-
lization" (apud Stocking Junior, p.48). Aversão semelhante pelos
cruzamentos foi expressa pelo casal Agassiz (1938, p.366):
Aqueles que põem em dúvida os efeitos perniciosos da mistura
de raças eo levados por uma falsa filantropia a romper todas as
barreiras colocadas entre elas, deveriam vir ao Brasil.o lhes seria
possível negar a decadência resultante dos cruzamentos que, neste
país, seo mais largamente do que em qualquer outro. Veriam que
essa mistura apaga as melhores qualidades, quer do branco, quer do
negro, quer do índio, e produz um tipo mestiço indescritível cuja
energia física e mental se enfraqueceu. Numa época em que o novo
estatuto social do negro é, para os nossos homens de Estado, uma
questão vital, seria bom aproveitar a experiência de um país onde a
escravidão existe, é verdade, mas onde há mais liberalismo para com
o negro do que nunca houve nos Estados Unidos. Que essa dupla
liçãoo fique perdida! Concedamos ao negro todas as vantagens
da educação; demos-lhe todas as possibilidades de sucesso que a cul-
tuta intelectual e moral dá ao homem que dela sabe aproveitar; mas
respeitemos as leis da natureza e, em nossas relações com os negros,
mantenhamos, no seu máximo rigor, a integridade do tipo original
e a pureza do nosso. (Agassiz, 1938, p.366)
Na mesma época em que os antropólogos americanos faziam
essa advertência, o Conde de Gobineau publicava o seu Essai sur
1'inégalité des races humaines, no qual proclamava a inconteste
superioridade dos arianos, a quem ele tributava praticamente
todos os avanços materiais e morais da civilização. Retomando a
argumentação em prol da aristocracia francesa, desenvolvida por
Boulainviliers como arma contra o poder crescente da realeza, o
diplomata sublinhava a origem galo-romana do povo comum em
oposição à descendência franca - e, portanto, intelectualmente
superior - da nobreza. Assim, da pena de escritores franceses nas-
cia, como estratégia para a defesa de privilégios nobiliárquicos, o
postulado da excelência étnica dos vizinhos germânicos.
4
4 Na correspondência com D. Pedro II, o escritor francês assim relatou seus
planos: "Estou trabalhando nas minhas Nouvelles Feódales e creio que
começarei aqui [Castelo de Chanéade] uma história completa dos merovín-
gios na qual mostrarei no meio de que gente eles tiveram a infelicidade de
viver, isto é, os galo-romanos". Carta datada de 10.7.1882. In: RAEDERS, G.
1938, p.364, grifo meu.
O conde, que orgulhosamente se autodefinia como um
homem da Idade Média, elaborou uma genealogia familiar na
qual enfatizava o seu parentesco com o deus Odin.o é de sur-
preender que ele identificasse a perda dos privilégios e do con-
trole político, por parte da classe a que pertencia, com o período
final da decadência da humanidade. Os vários volumes do Essai
podem ser considerados um longo e doloroso réquiem para um
inundo que se esvaía. Na sua tentativa de fazer a história entrar na
família das ciências naturais, esse inimigo ferrenho da igualdade
política saiu à procura de uma lei capaz de explicar logicamente
os acontecimentos históricos e julgou tê-la encontrado na vincu-
lação determinista entre indivíduo e raça. Comportamentos, valo-
res, hábitos, qualidades e defeitoso seriam mais do que
manifestações de traços inatos,o suscetíveis de alteração por
nenhum processo de educação ou esforço governamental e que
inexoravelmente acabavam por se manifestar.
Numa época marcada pelo otimismo e pelo ideal de progresso,
o esquema fatalista de Gobineauo vislumbrava qualquer futuro
para a espécie humana. Paradoxalmente, a decadência dos arianos
aí figurava como conseqüência ingrata de sua superioridade: à
medida que a única raça criadora expandiu-se, portando consigo
a tocha da civilização, travou contato, por meio de sucessivos cru-
zamentos, com elementos impuros e inferiores que lhe conspurca-
ram o sangue de forma lenta, porém continuada. Na perspectiva
apocalíptica do conde, a hibridação estaria exaurindo a vitalidade
da herança germânica num processo que, segundo seus cálculos,
chegaria a termo dentro de três ou quatro milênios, quando se efe-
tivaria o desaparecimento final do homem. O avanço do regime
democrático, que usurpou direitos antes legitimamente exercidos
apenas pelos elementos etnicamente superiores, já seria uma
manifestação do amanhã sombrio que nos espreitava.
Para alguém que se imaginava membro da diminuta elite de
seres superiores, a missão de representar o governo francês no
Brasil afigurava-se como particularmente degradante e eleo
deixou de sublinhar, em várias oportunidades, quanto o desgos-
tava esse exílio nos trópicos. A sua estadia nessa porção da Amé-
rica entre abril de 1869 e maio de 1870 pelo menos parece ter lhe
fornecido a chance de confirmar in loco suas teses a respeito dos
efeitos deletérios da mestiçagem. As apreciações do diplomata a
respeito do país e de seus habitantes sempre foram extremamente
rudes, revelando uma indisfarçável má vontade. Nesse sentido,
deve-se assinalar o tom absolutamente distinto do trabalho de
Agassiz que, apesar deo ser menos crítico, vem acompanhado
de um esforço de compreensão.
Em sua correspondência particular Gobineau afirmava:
"Belo e singular este país; mas que fala somente aos olhos, e muito
pouco ao coração. Uma natureza imensamente imbecil". Somente
o soberano parecia digno de sua admiração: "salvo o Imperador
o há ninguém neste deserto povoado de malandros", e com
"uma população toda de mulatos, viciada no sangue, viciada no
espírito e feia de meter medo" (Raeders, 1976, p.49 e 79). Nos
documentos de natureza oficial o tomo era diferente, como se
observa no seguinte trecho do seu Comunicado n° 5, datado de
setembro de 1869:
É necessário confessar que a maior parte do que se costuma
chamar de brasileiros compõe-se de mestiços, mulatos, quartões de
caboclos de diferentes graus. Encontra-se disso em todas as situações
sociais ... em suma, quem diz brasileiro, diz, com raras exceções,
homens de cor. Sem entrar na apreciação das qualidades físicas ou
morais destas variedades, é impossível deixar de constatar queo
o nem laboriosas, nem ativas, nem fecundas. As famílias mestiças
destroem-seo rapidamente que certas categorias de misturas exis-
tentes háo mais de vinte anoso se encontram mais, como se,
por exemplo, com os mamelucos e, por outro lado, a grande maioria
dos fazendeiros ... vive num estado muito próximo da barbárie, no
meio de seus escravos, eo se distinguem deles, nem por gostos
mais apurados, nem por tendências morais mais elevadas. (Ibidem,
p.113)
Durante sua estada na Suécia, o Conde fez, em carta datada
de 13 de fevereiro de 1874, a seguinte oferta para D. Pedro II: "se
V. M. deseja ter operários ou emigrantes suecos e noruegueses de
diferentes categorias, é possível arranjar-se ... Parece-me que seria
interessante procurar atrair para o Brasil uma emigração que se
compõe, em geral, de gente forte, laboriosa e que em absolutoo
tem idéias revolucionárias" (Raeders, 1938, p.157). Analoga-
mente, a derrota da França para a Prússia ajustava-se perfeita-
mente à sua proposição de que as nações latinaso nações mais
ou menos gastas, porém eleo ousou publicar o artigo que escre-
veu a respeito do lógico desfecho do conflito.
Diante do pequeno apreço devotado à França,o admira
que seus compatriotas emitissem opiniões pouco entusiásticas a
respeito da obra e de seu autor. Para desgosto de Gobineau, após
vários anos de estudos a fim de por o trabalho ao corrente de tudo
o que se soube ou se propôs desde sua primeira publicação,
nenhum editor se dispôs a bancar a segunda edição do Essai, que
só viria à público após a sua morte. As críticas mais lúcidas lhe
foram dirigidas por Tocqueville (1959), a quem ele devia o
emprego no Ministério das Relações Exteriores. Todavia, nada
disso nos autoriza a minimizar a grande influência exercida pelas
opiniões de Gobineau,
5
que encontraram terreno especialmente
fértil do outro lado do Reno.
Porém se o seu germanismo prestava-se,o sem importantes
adaptações, para embalar certos sonhos de superioridade, outros
aspectos de sua doutrina, como a defesa intransigente dos valores
aristocráticos e o seu extremo pessimismo, estavam em evidente
descompasso com o perfil de uma era liberal, marcada por reali-
zações técnicas.
Na época em que Gobineau escreveu seu Essai, as questões
cruciais da Antropologia - origem una ou múltipla da humani-
5 Na avaliação de BOAS, F., 1964, p.35, "sobre la base de la identificación de
los datos históricos y raciales, Gobineau desarolla su idea de la excelencia
superior del europeu noroccidental. Su obra puede ser considerada como el
primer desarrollo sistemático de este pensamiento. Ha ejercido una influencia
extraordinariamente poderosa". Entre a intelectualidade francesa, deixaram-
se seduzir pelo gobinismo nomes como Lapouge, Le Bon e Taine.
dade; determinação do grau e da natureza do que então se quali-
ficava como diferenças físicas, mentais e morais entre os seres
humanos; identificação e ordernação hierárquica das várias socie-
dades que compartilhavam o planeta - eram debatidas no interior
de um paradigma que aceitava como pressuposto as concepções
fixistas a respeito das espécies e que tinha na anatomia comparada
seu método por excelência.
A publicação da obra de Charles Darwin, Sobre a origem das
espécies graças à seleção natural, ou a preservação de raças favore-
cidas na luta pela vida (1859), ao apresentar uma lei natural que
cartesianamente governava todos os seres, exigiu um reordena-
mento profundo da história natural e dos seus domínios conexos.
A força da nova síntese derivava tanto da sua capacidade de estru-
turar grande quantidade de fenômenos aparentemente sem rela-
ção, quanto das inúmeras evidências que oferecia como caução e
que contribuíam para ancorá-la em bases sólidas. Poucoso
foram seduzidos por Darwin, que passou a ser festejado como
aquele que realizou pela Biologia o mesmo que Newton fizera
pela Física.
Nitidamente influenciado pelas idéias de Malthus a respeito
do crescimento populacional, Darwin divisava a existência de
uma incessante luta pela vida, que recompensaria apenas os mais
aptos. A imagem de uma natureza estática, o naturalista britânico
contrapunha a seleção natural, princípio segundo o qual apenas
sobreviveriam os indivíduos mais fortes ou que contassem com
alguma vantagem, por menor que fosse, em relação aos seus con-
correntes. Ao longo do tempo, o acúmulo de variações favorá-
veis terminaria por dar ensejo a novas espécies, num movimento
contínuo que ele denominou evolução. Esta, longe de ser conce-
bida como uma estrada de sentido único, era comparada aos
ramos de uma árvore que majestosamente se espraiava em todas
as direções.
O trabalho de Darwin era perfeitamente compreensível para
o público culto, queo ficou alheio ao vigoroso debate que se
travou em torno de proposições que desafiavam abertamente o
establishment científico e os dogmas religiosos. Sem dúvida, para
isso muito contribuiu a notável semelhança entre o mundo natu-
ral, tal como Darwin o concebia, e a sociedade européia do século
XIX: seleção dos mais fortes, luta pela vida, sobrevivência dos
mais aptos parecia equivaler a livre concorrência, premiação dos
mais competentes, eliminação dos fracos e incapazes.
O conteúdo moral e político dessa representação foi imedia-
tamente apropriado para legitimar tanto uma política externa que
se distinguia pela atroz dominação exercida sobre africanos e asiáti-
cos, quanto para, no âmbito doméstico, condenar a filantropia e
ou a adoção de medidas previdenciárias, sob pretexto de que estas
apenas retardariam os efeitos de forças naturais, e para defender,
num momento em que as reivindicações em prol da extensão dos
direitos de cidadania ganhavam virulência, a manutenção de prin-
cípios excludentes que se pretendia legitimar a partir de uma pers-
pectiva biológica.
O darwinismo social, elaborado por Spencer, Haeckel, Gum-
plowicz, Lapouge, entre outros, foi capaz de, na feliz expressão de
Hobsbawn (1977, p.278) "mobilizar o universo para confirmar
seus próprios preconceitos". Seo se pode atribuir a Darwin tal
transposição, parece correto supor que ele provavelmente teria
concordado com o estabelecimento de uma hierarquia entre as
raças, tendo por base a seleção natural. Seu amigo Alfred Russel
Wallace relatou que, em conversa ocorrida pouco antes de sua
morte, Darwin teria expresso sua pequena confiança no futuro da
humanidade nos seguintes termos:
na civilização moderna, a seleção naturalo tem nenhum papel e
oo os mais aptos que deixam mais descendentes. Os que ven-
cem a corrida pela riquezaoo de modo algum os melhores ou
mais inteligentes e é evidente que nossa população se renova a cada
geração, muito mais efetivamente nas classes inferiores que nas
superiores. (apud Blanc, 1994, p. 185-6)
Seria de esperar que a vitória da idéia de evolução pusesse um
ponto final na discussão entre mono e poligenistas. Entretanto,
issoo ocorreu na medida em que os últimos, apesar de terem
que admitir a existência de um ancestral comum, reestruturaram
seus argumentos no interior do novo paradigma e, ancorados no
princípio da seleção natural, divisaram a possibilidade de diferen-
ciações profundas a ponto de originar várias espécies de homens.
Especialmente na Europa, os gabinetes antropométricos continua-
ram a recolher dados sistemáticos com o objetivo de determinar
tipos raciais e de tentar reconstruir, para além da heterogeneidade
resultante de séculos de cruzamentos, espécimes representativos
das raças originais puras. Já a suposição de que haveria uma rígida
hierarquia entre os diversos grupos humanos foi reforçada, ainda
que com novos sentidos, pelo evolucionismo de matriz spenceriana,
que pretendia aplicar à recém-criada sociologia preceitos e méto-
dos similares aos da biologia a fim de desvendar as leis universais
subjacentes ao progresso humano.
Em síntese, o novo quadro referencial estabelecido a partir de
Darwin contribuiu para fortalecer a vinculação entre dados ana-
tômicos e comportamentos morais e culturais. O seguinte trecho
de Topinard, um dos nomes mais importantes da antropologia
física da segunda metade do século XIX, elucida a respeito do tipo
de uso a que se prestava a teoria da evolução:
Le moment est facile à prévoir où les races qui aujourd'hui dimi-
nuent l'intervalle entre l'homme blanc et 1'anthropoide auront entiè-
rement disparu. Il n'y a rien de mystérieux dans cette extinction, le
mècanisme en est tout naturel. Le résultat, en somme, c'est la survi-
vance des plus aptes au profit des races supérieures. Mais jadis, en
Australie, en Malaisie, en Amérique, en Europe, les termes n'étaient
plus les mêmes. Ces mêmes races qui aujourd'hui succombent, étaint
supérieures relativement à d'autres, qui ne sont plus. Les Australiens
d'à présent, que nous regardons avec nous yeux comme si sauvages,
ont une civilization appropriée à leur milieu, une certaine organisa-
tion sociale par rapport aux restes des Négritos de l'intérieur des Phi-
lippines, par exemple. Nous croyons avoir prouvé que jadis ils ont
exproprié une race nègre inférieure à eux, comme aujourd'hui nous
les exproprions... (Topinard, 1879, p.542-3)
A tendência de tratar de forma análoga fenômenos naturais e
sociais acabou por consagrar concepções que, ao atar as socieda-
des humanas a leis ou princípios supostamente capazes de operar
com absoluta independência em relação à vontade individual ou
coletiva, opunham-se às noções de iguladade e liberdadeo caras
aos humanistas. Nenhum campo do saber permaneceu imune a
esse determinismo que adquiriu, à medida que se caminha pelo
século XIX, colorações cada vez mais variadas e complexas.
Nas mãos do médico e antropólogo Cesare Lombroso, o
Direito Penal foi abalado pelo estabelecimento de vinculações
entre comportamento criminoso e herança biológica. Lombroso,
que durante anos empreendeu cuidadosas pesquisas antropomé-
tricas, anatômicas e psicológicas na população carcerária italiana,
defendia a existência do que denominou de criminoso nato, pas-
sível de ser reconhecido por suas peculiaridades físicas - pequena
capacidade craniana, desenvolvimento acentuado da mandíbula,
presença de órbitas de grandes dimensões, sobrecílios salientes,
inserção das orelhas em forma de asa, ausência de barba, resistên-
cia à dor - e mentais - gosto pelo jogo, bebida e por tatuagens;
ausência de remorso; excessiva vaidade, astúcia, impulsividade e
crueldade; aversão à educação e aos hábitos familiares -, perfil
este revelado desde a mais tenra idade.
A razão última da deliqüência residiria em anomalias bem
conhecidas, de caráter anatômico e ou psíquico, suscetíveis de
correção e que se manifestariam por força do atavismo. Noutros
termos, a criminalidade deveria ser encarada como uma reversão
a estágios primitivos do ser humano, o que levou Lombroso a afir-
mar em L'homme criminei (1887, p.651 e 666) que "dans le cri-
minei 1'homme sauvage et en même temps l'homme malade ...
Quiconque que a parcouru ce livre aura pu se convaincre que le
plus grand nombre des caracteres de l'homme sauvage se retrou-
vent chez le malfeiteur".
A idéia de que crime e a insanidade eram frutos indesejáveis
que provinham da mescla de um conjunto de estigmas transmiti-
dos de pais para filhos, podia ser apresentada como verossímel
numa época em que os mecanismos da hereditariedade permane-
ciam desconhecidos. Supunha-se, então, que o cruzamento de
seres dotados de características diferentes originava descendentes
intermediários, portadores de um amálgama das contribuições
dos genitores. Freqüentemente, evocava-se a imagem da mistura
de substâncias líquidas para exemplificar o processo. De outra
parte, continuavam firmemente estabelecidas tanto as noções que
postulavam a influência do uso e desuso no desenvolvimento dos
orgãos, quanto aquelas que afirmavam a transmissibilidade à
prole dos caracteres adquiridos.
Entretanto, se a herança biológica processava-se por meio de
sucessivas misturas, gerando sempre um resultado médio, como
explicar a persistência da variabilidade, condição primeira da sele-
ção natural? Para tentar responder a essa séria objeção Darwin
desenvolveu na obra The Variation of Animais and Plants under
Domestication (1868) sua hipótese provisória da pangênese,
segundo a qual cada tipo de célula do corpo produziria partículas,
que ele denominou gêmulas, passíveis de serem transformadas a
partir de influências ambientais. Na época da reprodução elas
migrariam para as células reprodutoras assegurando, desse modo,
às gerações subseqüentes a transmissãoo só de toda a herança
ancestral, o que incluía características que poderiamo ter se
manifestado no indivíduo, mas também das transformações que
ele foi acumulando ao longo de sua existência. Durante anos
Darwin tentou comprovar experimentalmente sua hipótese pan-
genética, tendo contado, nessa empreitada fadada ao fracasso,
com a ajuda de seu primo Francis Galton, que também vinha se
dedicando à análise da hereditariedade.
Os estudos de Galton conduziram-no, porém, a outras dire-
ções. Ele estava particularmente interessado em estabelecer de
que forma hereditariedade e ambiente influíam na determinação
de nossas aptidões. Para isso recorreu a métodos variados, sempre
com o intuito de mensurar as características humanas. Estudou a
genealogia de centenas de famílias aristocráticas, sublinhando a
recorrência de membros dotados de particular inteligência e, por
meio da sobreposição de retratos de descendentes da mesma
linhagem, procurou obter a fisionomia que representasse o para-
digma familiar. Foi pioneiro na avaliação comparativa de gêmeos
univitelinos e dirigiu em South Kensington um laboratório antro-
pométrico que diariamente coletava medidas e aplicava testes de
discriminação sensorial e motora em cerca de noventa londrinos.
Submeteu seus dados a refinadas análises estatísticas e desen-
volveu os conceitos de regressão e correlação, que lhe permitiram
distribuir a população segundo determinados atributos e estabele-
cer diferenças entre indivíduos e grupos, inaugurando a biome-
tria. Galton, contrariamente a Darwin, acabou por subestimar o
papel dos fatores ambientais na produção de alterações no patri-
mônio transmitido aos descendentes, postura que deu origem à
polêmica conhecida como nature-nurture (natureza-criação).
Com base em suas conclusões, propôs um programa de melhora-
mento da espécie humana, que denominou de eugenia (Galton,
1988).
Diferentemente da higiene, cujos esforços se concentravam
na melhoria das condições de vida e trabalho dos indivíduos, a
eugenia tinha como meta organizar, facilitar e acelerar os efeitos
da seleção natural no âmbito da espécie humana. Assim como os
criadores obtinham resultados altamente positivos a partir do cru-
zamento de exemplares particularmente dotados, Galton espe-
rava, por processo análogo, aperfeiçoar física e moralmente o
homem por meio da formação de uma aristocracia de eugênicos.
A chave do progresso humano residiria na paternidade selecio-
nada, ou seja, no incentivo à reprodução dos melhores dotados e
na proibição, seja por confinamento, esterilização compulsória ou
eutanásia, dos portadores de doenças venéreas, mentais ou de
deficiências físicas; dos criminosos, alcoólatras, prostitutas, vaga-
bundos, enfim de qualquer um que fosse considerado socialmente
inadaptado.
Esperava-se, assim, libertar as gerações vindouras dos vários
níveis de retardamentos, das taras, da fraqueza física e moral, dos
comportamentos anti-sociais, assegurando à humanidade, por
meio desse processo regenerativo, um futuro resplandecente.
Nesse contexto, ganhava força uma interpretação da hereditarie-
dade queo deixava espaço nem para ponderações a respeito de
condicionamentos de caráter sociocultural, nem para um projeto
educacional, uma vez que tinha-se como certo que a bagagem
degenerada, tanto quanto a inteligência, o talento e a vocação,
passavam, por meios estritamente biológicos, de pais para filhos.
Lapouge, um admirador de Gobineau, foi mais longe e propôs em
sua obra Sélections Sociales (1888), que se selecionasse um
pequeno número de reprodutores arianos que doariam seu
esperma a fim de ser implantado artificialmente em fêmeas supe-
riores dignas de tal honra. Segundo os cálculos do professor de
Montpellier, cada doador poderia dar origem a 200 mil descen-
dentes, o que permitiria a um país reformar toda sua população
ao cabo de algumas décadas (apud Finot, 1905, p.39-40).
6
Já Galton e seus seguidores exortavam o Estado a assumir,
por meio de políticas públicas e de uma legislação que regulasse o
assunto, a responsabilidade pelo controle da reprodução humana.
É curioso observar que o ideal eugênico ganhou força no início do
século XX, com a fundação de sociedades - Alemanha (1905),
Inglaterra (1907), Estados Unidos (1910), França (1912) - que
tinham em vista o desenvolvimento de pesquisas nesse campo e ou
a discussão e a implementação de práticas eugênicas. De fato, a
esterilização compulsória vigorou, por décadas a fio, em mais de
um país. Na Europa, as primeiras leis nesse sentido surgiram na
Suíça (1928) e na Dinamarca (1929), países nos quais foram este-
rilizadas cerca de 8.500 pessoas entre 1930 e 1939. Nos EUA,
nação que esteve na vanguarda eugênica até os anos 30, o mon-
tante chegou à casa dos 70 mil entre 1907, ano da adoção da pri-
meira lei de caráter eugênico, e o final da Segunda Guerra
Mundial. Certamente nenhum Estado foio longe quanto o
nazista, cujo tribunal especial de saúde genética supervisionou a
esterilização compulsória de cerca de 1% de toda a população do
país (Stepan, 1991, p.30-2).
O fortalecimento do movimento eugênico coincidiu com os
trabalhos de Weismann a respeito da independência das células
germinativas e com a redescoberta das Leis de Mendel, marcos
fundadores da genética moderna que, ao negarem a possibilidade
de transmissão dos caracteres adquiridos, inviabilizavam definiti-
6 A proposta de Lapougeo caiu no esquecimento. Graças sobretudo aos
esforços de Henry J. Muller, autor do famoso Manifesto dos geneticistas
(1939), que defendia propostas de caráter eugênico, foi fundado em 1971 o
banco de espermas que leva o seu nome. É interessante assinalar que Muller era
um cientista de esquerda, que entre 1933 e 1936 mudou-se para a URSS com o
intuito de ajudar na edificação do socialismo. Em 1946, ele foi laureado com o
Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. A respeito do enorme potencial dis-
criminador da genética hodierna, ver: BEIGUELMAN, B., 1990, p.61-9;
BLANC, M., 1994, especialmente capítulos VI e IX; BIZZO, N. M. V., 1994-
1995, p.28-37.
vamente a pangênese de Darwin.
7
Essas novas concepções, pelo
menos potencialmente, também solapavam as bases da eugenia tal
como ela vinha sendo formulada pelo método estritamente mate-
mático dos biometristas. Porém, o que predominou durante os
anos 20 e mesmo nos 30 foi uma leitura que tendia a encarar as
novidades no campo experimental e teórico como confirmação da
teoria galtoniana a respeito da inoperância do ambiente, fato que
alerta para as múltiplas possibilidades de apreensão social das
construções científicas.
Ainda que o conteúdo biológico tenha desempenhado papel
primordial na construção do determinismo,o se pode subesti-
mar suas outras vertentes. Para o escritor inglês Buckle o rumo
seguido pelas sociedades humanas deveria ser compreendido a
partir da análise de fatores naturais, especialmente o clima, alça-
dos à condição de chaves explicativas da história. Ele elaborou
uma teoria climática segundo a qual a civilização seria apanágio
das áreas frias. Dedicou algumas páginas ao Brasil, país queo
conhecia, nas quaiso poupou adjetivos à natureza brasileira,
cujo esplendor considerava fruto da combinação de calor e umi-
dade propiciada pelos ventos alísios. Contudo, a contrapartida de
tal exuberância seria a pequenez do homem (Buckle,1865, t.1,
p.123).
Na produção de pensadores como Renan, Taine e Le Bon,
que no Brasil foram lidos com avidez por várias gerações de inte-
lectuais (Costa, 1956, p.352-4; Skidmore, 1976, p.65-70), o con-
teúdo semântico do termo raça, até então muito preso à idéia de
herança sanguínea, passou a comportar um significado cultural. A
questão antropológica, que no século de Buffon tinha como hori-
zonte o gênero humano, foi sendo redefinida a ponto de tornar-
se, no final do século XIX, algo cada vez mais circunscrito às fron-
teiras nacionais. Assim, Renan, ao substituir a fisiologia pela filo-
logia comparada, detectou a existência de raças lingüísticas, como
a semita e a indo-européia, queo encontravam correspondên-
7 As relações entre darwinismo e mendelismo estiveram longe de ser pacíficas.
Somente em 1935 Dobzhansky realizou a síntese dessas teorias. Para uma
abordagem histórica dessas questões ver: FREIRE-MAIA, N., 1986, p. l108-19.
8 É preciso ter presente que esses autores guardavam entre si distâncias con-
sideráveis, queo cabe aqui analisar. A respeito ver: TODOROV, T., 1993,
p.153-81.
cia nas classificações elaboradas pela antropologia física; enquanto
Taine e Le Bon, escorados na história e na psicologia, referiam-se à
alma ou ao espírito comum, forjados ao longo de séculos de convi-
vência mútua e compartilhados pelos habitantes de uma mesma
região.
8
Tal deslocamento em direção às tradições herdadas, que
supostamente deitariam raízes no solo do passado imemorial que
testemunhara o nascimento da nação, continuou se fazendo
acompanhar por uma inflexível cadeia de causas e conseqüências
necessárias. Le Bon, cujas obras alcançaram voga surpreendente,
o poderia ser mais explícito:
les peuples sont surtout guidés par les caractères de leur race, c'est-à-
dire par l'agrégat héréditaire de sentiments, besoins, costumes, tradi-
tions, aspirations que représentent les fondements essentiels de l'âme
des nations. Cette âme nationale donne aux peuples une stabilité
durable à travers les perpétuelles fluctuations des contingences. Et ici
nous touchons au substratum invisible de l'histoire, aux forces
secrètes orientant son cours. C'est la race en effet qui détermine la
façon dont les peuples réagissent sous l'influence des événements et
des changements de milieu. Dominant les institutions et les codes
aussi bien que les volontés des despotes, 1'âme des races régit leurs
destinées. Sa connaissance permet de déchiffrer les hiéroglyphes de
l'histoire ... La race est la pierre angulaire sur laquelle repose l'équi-
libre des nations. (Le Bon, 1919, p.2-3)
A semelhança de Gobineau, Le Bon combatia a igualdade, tida
como uma noção quimérica que subverteu o mundo. Argumentava
que "une science plus avancée a prouvé la vanité des théories égali-
taires" e classificava como "une des plus funestes illusions enfatées
par les théoriciens de la raison pure" a suposição de que a educação
pudesse vencer o abismo mental que separava os povos inferiores
dos superiores. Em postura oposta à de Toqueville, defendia que
"les institutions ont sur l'évolution des civilisations une importance
três faible", constituindo-se "plus souvent des effets et bien rarement
des causes" (ibidem, p.16, 46, 19 e 8).
A condenação da mestiçagem, por sua vez, foi repostulada a
partir de um novo rol de argumentos, segundo os quais a mistura de
povos portadores de heranças culturais distintas colocava em risco
o caráter nacional, tornado estável graças à ação depuradora do
tempo. Dessa hibridação, que desrespeitava a afinidade étnica pecu-
liar a cada agrupamento humano, resultaria a anarquia política:
Les peuples de métis, tel que ceux du Mexique et des républiques
espagnoles de l'Amérique, restent ingouvernables par cette seule raison
qu'ils sont des métis. L'experiénce a prouvé qu'aucune institution,
aucune éducation ne pouvait les sortir de l'anarchie. (ibidem, p.8)
As opiniões de Le Bon, epígono menor hoje quase esquecido,
podem ser encaradas como o canto de cisne de uma tradição
antropológica que começava a ser posta em dúvida tanto pela
genética mendeliana, quanto pela afirmação da abordagem cultu-
ralista.
Os anos abarcados pela Revista do Brasil foram, no contexto
brasileiro, de importância estratégica. A intelectualidade presente
no periódico foi gerada e nutrida em teorias deterministas, fossem
elas de cunho racial, climático ou cultural, que invariavelmente
terminavam por reafirmar a impermeabilidade de uma nação tro-
pical e mestiça à civilização. Os nossos intelectuais do início do
século XX estavam envoltos numa densa e complexa atmosfera de
negatividade e foi a partir desse universo, cujas linhas mestras pro-
curamos indicar, que eles pensaram e agiram.
A Revista do Brasil permiteo só avaliar o tipo de relaciona-
mento que a intelectualidade local manteve com o background
determinista, ainda dominante na época, e a maneira como foram
enfrentados os dilemas que ele lhe impunha, como também vis-
lumbrar as trilhas que seriam percorridas na luta em prol de sua
relativização.
ESTIGMA DA MESTIÇAGEM
No início do século XX a prática de cindir a humanidade em
grupos, aos quais eram atribuídos valores biológicos, psicológicos,
morais e/ou culturais intrinsecamente diferentes continuava desfru-
tando do status de verdade científica que poucos ousavam contes-
tar. A questão da mestiçagem, corolário dessa premissa, também
permanecia submersa em um clima de ceticismo. No Brasil, país de
população multicolorida, fruto das mesclas mais variadas, a pro-
blemática da hibridaçãoo era simples especulação teórica, mas
experiência vivida quotidianamente.
Basta folhear a produção do período para perceber que auto-
res como Gobineau, Renan, Taine, Lapouge, Le Bon eram fontes
de referência e inspiração, merecendo, freqüentemente, qualifica-
tivos muito elogiosos. Le Bon foi um autor particularmente sau-
dado pela Revista do Brasil. A seção Bibliografia sempre resenhou
de maneira elogiosa e respeitosa as suas obras e na Resenha do Mês
foram transcritos artigos publicados em periódicos franceses.
9
Este tipo de constatação está longe, porém, de encerrar a ques-
tão. Pelo contrário, a forte presença de expoentes do pensamento
racista traz à tona a problemática do tipo de relacionamento que se
estabeleceu entre a intelectualidade local e as teorias cunhadas na
Europa.
Em vez de absorção passiva ou mera repetição, o que impli-
caria negar ao Brasil chances de futuro, ocorreu um esforço de
apropriação, um trabalho de interpretação, reelaboração e mesmo
luta com princípios que nos eram francamente desfavoráveis. Esse
embate, cujo início antecedeu em muito o período abarcado pela
primeira fase da Revista do Brasil (1916-1925) - basta lembrar
nomes como Nabuco, Romero, Nina Rodrigues, Araripe Júnior,
José Veríssimo, Euclides da Cunha ou Manoel Bonfim - nele
sofreu alterações importantes que abriram caminho para uma
abordagem que, ao privilegiar o aspecto sanitário, contribuiu para
atenuar a força do paradigma racial.
9 Foram resenhadas: Filosofia Política. RBR, v. 19, n.78, p.164, jun. 1922; A
Revolução Francesa e a psicologia das revoluções. RBR, v.21, n.84, p.366-7,
dez. 1922 e As opiniões e as crianças. RBR, v.22, n.88, p.337, abr. 1923.
Foram transcritos os seguintes artigos: LE BON, G. As novas diretrizes dos
povos e seus conflitos. RBR, v.18, n.74, p.185-7, fev. 1922; Fragmentos de
Filosofia Política. RBR, v.18, n.76, p.368, abr. 1922 e RBR, v.18, n.77, p.87,
maio 1922; Psicologia e fiscalização. RBR, v.22, n.86, p. 157-9, fev. 1923 e As
ilusões democráticas. RBR, v.22, n.88, p.370-1, abr. 1923.
A tarefa de ocupar e explorar um território imenso, ainda mal
conhecido e que deveria abrigar riquezas de toda ordem, parecia
demandar um contingente populacional muito maior do que
aquele que possuíamos. Se do ponto de vista da quantidade o qua-
dro jáo era favorável, ele tornava-se ainda mais sombrio
quando entrava em cena a qualidade.
De saída estabelecia-se uma diferenciação básica entre a
Europa e a América: enquanto este último continente só fora ocu-
pado recentemente por meio da imigração de elementos das mais
variadas procedências, o primeiro teria passado por um longo
processo de seleção, possibilitando o surgimento de um contin-
gente populacional dotado de características físicas e culturais
estáveis. De acordo com o modelo, que se valia da linguagem geo-
lógica, na Europa os povos teriam se formado por sedimentação
vagarosa enquanto na América teria prevalecido a fusão violenta
de diferentes materiais étnicos:
Os povos do velho mundo se formaram por uma longa evolu-
ção secular, verdadeiro processo de sedimentação em que camadas
sobre outras sobrepostas foram assentando, precipitando-se ao
fundo da água-mãe, constituída pelas condições mesológicas do
hábitat, cementando-se às inferiores e destas aspirando, por uma
espécie de capilaridade social, os elementos menos densos que pelos
interstícios e porosidade da nova massa se infiltraram, persuadindo-a.
Assim se formaram esses aglomerados de aparência homogênea que
constituem as nacionalidades européias.o do tipo concreto hidráu-
lico, ou, para usar um símile geológico,m os característicos das
formações netunicas. Com os povos americanos já o mesmoo
sucedeu ... Cada um dos povos americanos é, no momento atual, um
legítimo cadinho de fusão em que se estão caldeando os mais hete-
rogêneos materiais étnicos para a formação de uma raça. Da diver-
sidade dos elementos resultam naturalmente os riscos próprios a
rodas as fusões desta espécie: a assimilação incompleta, os enquista-
mentos, as estratificações, falhas e bolsas, trazendo como conseqüên-
cia final a imperfeita homogeneidade da liga resultante e as suas
deficiências quanto à uniformidade e generalização das qualidades.
Si se quiser prosseguir com o símile geológico de ainda há pouco,
dir-se-à que se trata aqui duma formação plutônica, com a sua vio-
lência característica e as originalidades imprevistas das suas erosões
dendrimórficas ... [Enquanto os Estados Unidos] já estão constituí-
dos com características próprias, formando nacionalidades defini-
das, outros [países] estão em verdadeiro período de elaboração,o
substância social em ebulição, ainda sem ter assentado o tipo étnico
final, a última expressão da raça.
10
Nessa comparação a nossa especificidade residia, mais uma vez,
na juventude. Afinal, ainda estávamos em formação, amargando
suas conseqüências nefastas mas também desfrutando da possibili-
dade de intervir no processo, moldando-o. As esperanças tinham
que ser depositadas no futuro, entendido aqui como o momento em
que o país finalmente ultrapassaria o tempo da incompletude. O
presente, por sua vez, era encarado como uma fase transitória na
qual os componentes da nacionalidade aindao haviam atingido
sua forma definitiva. Para dar conta do processo Carlos de Lemos
evocava, numa curiosa mistura, Mendel e Spencer:
Quer física, quer social ou politicamente, somos um imenso
laboratório antropológico, uma imensa retorta onde ultimamos a
nossa formação brasileira, adquirindo, pela via mendeliana, os atri-
butos de uma estabilidade que agora ainda nos falta. Estamos a sair
da homogeneidade confusa para a heterogeneidade coordenada.
Estamos a entrar pelo terreno da organização, deixando o individua-
lismo."
Esse tipo de abordagem, então moeda corrente, privilegiava
uma descrição lacunar do país, o que de saída pressupunha a ado-
ção de um padrão ideal a respeito do que deveria ser uma verda-
deira nação. Em 1916, Amaral assim caracterizou o Brasil: "[país]
onde 80% da populaçãoo sabe ler, ondeo há senão uma lite-
ratura incipiente e uma arte andrajosa, onde a caça ao dinheiro
predomina desenfreadamente a todas as outras manifestações da
vida moral, ondeo há opinião,o há tradições,o há cultura,
o há ideais nacionais,o há correntes nem embates fundamen-
tais de crenças e de ilusões coletivas".
12
Num período em que as
realizações econômicas, políticas e culturais de um país eram con-
sideradas proporcionais ao estágio de civilização dos seus habitan-
tes, parecia óbvio vincular a pequena representatividade do Brasil
10 COARACY, V. Os dois Brasis. RBR, v.19, n.76, p.307-9, abr. 1922.
1 1 LEMOS, C. de. A nossa evolução. RBR, v.16, n.64, p.39, abr. 192J.
12 AMARAL, A. Brasil, terra de poetas. RBR, v.l, n.2, p.117, fev. 1916.
em termos mundiais à ausência de uma base étnica estável, condi-
ção primeira para o progresso e a modernização.
A grande maioria da nossa intelectualidadeo apenas acre-
ditou, durante longo tempo, na pertinência dessa falta, como tam-
m transformou-a no nosso maior problema, perseguindo seus
efeitos em todos os aspectos da vida nacional. Manifestou, desta
forma, sua fé nas teorias que postulavam a divisão hierárquica do
gênero humano e que nos reservavam os primeiros degraus de
uma longa escala. Condição juvenil - no discurso da época sinô-
nimo de imaturidade, despreparo, incapacidade e, por vezes,
impermeabilidade à evolução - tornou-se uma categoria explana-
tória, que significava muito mais do que um passado que contava
apenas quatro séculos.
Se, por um lado, o caráter inconcluso da nacionalidade dava
margem a uma atitude complacente, que desculpava e perdoava
desacertos considerados típicos de um certo estágio de desenvolvi-
mento, por outro, trazia à tona questões perturbadoras. Assim, a
idéia da formação invariavelmente vinha acompanhada dos termos
caldeamento e fusão, sugerindo um processo violento no qual as
altas temperaturas deveriam atuar como forças disciplinadoras,
capazes de amalgamar elementos distintos e nem sempre compatí-
veis.
Esperava-se obter como resultado uma liga homogênea que
deveria dar origem a um tipo nacional característico, dotado de
perfil moral, psicológico e cultural próprio, expressão da alma
nacional:
E a terra que vai nos fornecer o elemento físico da raça futura,
a refluir poderosamente sobre o elemento moral. Só a vida rude do
escampado permitiu as virtudes dos nossos vários tipos nacionais; a
cidade apura a inteligência mas o campo enrija o corpo. E só uma
raça sadia pode ser uma raça superior. Formando, portanto, com
elementos brasis a base física da liga, fazendo da sensibilidade luso-
africana o seu perfume moral, e caldeando o todo com a inteligência
e a tenacidade arianas, teremos forjado o nosso sinete nacional. Só
então nos será dado começar a contar na história.
13
13 LIMA, A. A. O êxodo. RBR, v.6, n.21, p.38, set. 1917.
As dificuldades, assim como as divergências, afloravam no
momento em que se tentava explicitar de que maneira essa solu-
ção, considerada atípica em relação ao padrão europeu, se efeti-
varia na prática.
No entanto, a noção de que existiam fatores maiores e ante-
riores ao indivíduo, cuja vontade nada ou muito pouco poderia
fazer ante forças de ordem física e ou psicológica, era apresentada
como resultado de avanços científicos incontestes. Hábitos, gostos
e comportamentos migravam do âmbito privado para o coletivo,
sendo apreendidos como manifestação de impulsos que permi-
tiam um grau de mobilidade muito estreita para a ação individual:
ao lado da psicologia individual, de si mesmao obscura e difícil,
nasceu e formou-se a psicologia étnica, que estuda resíduos comuns
do pensamento em qualquer raça. Essa mais vasta concepção da psi-
cologia explica muitos fenômenos individuais queo passam dos
impulsos da espécie, da alma do povo, anteriores e sobranceiros às
idéias de qualquer indivíduo. A raçao possui apenas formas e
tipos exteriores, possui igualmente uma alma comum formada de
lentas aquisições, alma da espécie e da família que antecede todos os
momentos da personalidade. É essa alma antiga a responsável pelos
mitos, pela religião, pela linguagem, pelo direito e enfim por todas
as criações primitivas e elementares.
14
14 RIBEIRO, J. A primeira religião dos Brasis. RBR, v.22, n.86, p.180, fev.
1923. Ver também o artigo no qual se tenta explicar as diferenças entre ale-
mães e ingleses por meio do currículo escolar de cada um dos países. De
acordo com o autor, "a educação alemã é científica, filosófica e coletivista, ao
passo que a inglesa é humanista, religiosa e individualista. O inglês passa a
infância a aprender latim e a mocidade a aprender grego. Os estudos religio-
sos fazem parte integrante da educação... [e] os jogos...o ao inglês, a par do
espírito de corpo, a iniciativa individual. Na Alemanha os jogoso substimí-
dos pela ginástica científica, que se desenvolve igualmente os músculos,o
desenvolve igualmente a moral. De tudo isso resulta que a Alemanha produz
sábios, engenheiros, químicos industriais e vigorosos trabalhadores, enquanto
a Inglaterra produz homens. O melhor tipo alemão, sadio e forte, tem a rigi-
dez dos autômatos, e falta-lhe a graça que tem o inglês nos seus movimentos
livres". SANTO TIRSO, V. de. Educação alemã e educação inglesa. RBR, v.6,
n.22, p.261, out. 1917.
Nesse sentido vale assinalar que em 1924 Gilberto Amado,
seduzido pela leitura de Dickens, de cujos livros ele se aproximou
timidamente por supor que fossem por demais ingleses para a sua
curiosidade e sensibilidade tropicais, achou necessário afirmar
que "nada influi menos na seleção das nossas leituras e nas incli-
nações do nosso coração e do nosso espírito do que essa questão
de origem e raça. É sempre um preconceito sem base nenhuma na
realidade pensar que haveremos sempre de apreciar mais um
escritor porque escreve em língua parecida com a nossa e é de raça
semelhante à nossa".
15
O tom de denúncia indica que esse tipo de
avaliação deveria ser bastante freqüente.
De fato, na mesma época Oliveira Vianna incorporava, sem
respeitar qualquer relação com o seu âmbito e sentidos originais,
terminologia e conceitos provenientes da recém-fundada genética
com o intuito de dotar de renovado frescor as máximas determi-
nistas:
os grupos sociaiso como os indivíduos,o porque sejam unida-
des superorgânicas, à maneira da velha concepção spenceriana; mas,
porque, como os indivíduos, eles se desenvolvem segundo certas
linhas invariáveis, que constituem o que poderíamos chamar -
pedindo à tecnologia weismanniana uma expressão - os "determi-
nantes" da sua personalidade coletiva. Como as formas, que consti-
tuem o tipo de uma árvore estão contidas na virtualidade do seu
gérmen, os elementos estruturais de um povo, as condições íntimas
do seu viver, as particularidades fundamentais da sua mentalidade,
da sua sensibilidade, da sua reatividade específica ao meio ambiente
mostra um quid immutabile, qualquer coisa de estável e perma-
nente, em todas as fases da sua evolução - desde o obscuro momento
das atividades do seu plasma germinativo até o grande momento do
seu clímax da maturidade e expansão. Estes "determinantes" de
cada povoo invioláveis e irredutíveis ... Entre os fatores que deter-
minam a marcha das sociedades, o papel reservado à ação da von-
tade consciente é modestíssimo, é insignificante mesmo. Para além
desse raio limitadíssimo dos nossos esforços, subsiste e palpita todo
15 AMADO, G. História das minhas leituras. RBR, v.26, n.107, p.193 e 195,
nov. 1924.
um vasto mundo de formas organizadas, de tendências, de instintos,
de impulsões misteriosas que formam o sistema de correntes subter-
râneas que circulam no subconsciente das nacionalidades.
16
Na resenha, extremamente elogiosa, de Populações Meridio-
nais do Brasil, obra de Oliveira Vianna publicada em 1920 pela
Editora da Revista do Brasil, Brenno Ferraz, então o responsável
pela seção Bibliografia, demonstrava estar afinado com as opiniões
de Vianna ao afirmar:
as verdadeiras alterações históricasoo as que nos enchem de
espanto pela grandeza e violência; as únicas mudanças importantes,
das quais provém o renovamento das civilizações, operam-se nas
idéias, concepções e crenças. É a lição de Le Bon, apreendida do
renovamento da ciência sob o critério naturalista. Assim como a his-
tória das espécies,o a explicam os cataclismos de Cuvier, também
a história dos homenso se aclara nas revoluções e nos heróis,
expoentes apenas de forças mais complexas ... O indivíduo é contin-
gente. A verificação das possibilidades psicológicas - clara durante
as convulsões sociais - decreta-lhes a falência. Que resta então?
Resta a raça, restam os antepassados que em número e força ascen-
dem em proporção geométrica, a idéia e o subconsciente, o meio e
as circunstâncias, para que a História se construa.
17
Nada poderia ser mais pertinente do que tentar discernir
quais as contribuições, assim como as perturbações, específicas
aportadas pelos elementos primordiais que participavam do pro-
cesso de delineamento do caráter nacional. Medeiros e Albuquer-
que, tentando retraçar as linhas básicas da nossa psicologia
coletiva, ressaltava o peso da influência lusitana. Afinal, para a
colônia dirigiram-se "os mais audazes, os mais aventureiros, os
mais imprevidentes e fantasistas", dispostos a tudo para rapida-
mente amealhar fortuna na nova terra. Enquanto, segundo sua
16 OLIVEIRA VIANNA, F. J. O valor pragmático do estudo do passado. RBR,
v.27, n.108, p.302-3, dez. 1924, grifo no original.
17 FERRAZ, B. Resenha de Populações meridionais do Brasil. RBR, v.16, n.61,
p.68-9, jan. 1921.
avaliação, na Europa triunfavam os tímidos, econômicos e previ-
dentes, aqui arriscavam-se os "farejadores de aventuras". Esse
impulso continuaria presente no "corpo, sangue e alma do bom
brasileiro, que por um palpite arrisca tudo o que tem no jogo sob
suas variadas formas".
18
Outros creditavam à herança portuguesa a necessidade atá-
vica de movimento, manifesta pelos brasileiros, especialmente os
interioranos:
Há tipos no sertão que passam a maior parte da vida a cavalo,
palmilhando as estradas poeirentas e tortuosas, sem outro fito senão
o de devassar horizontes novos para, depois de velhos, nas serenas
noites de luar, a beira do fogo, nos ranchos do caminho, contar aos
parceiros mais novos e menos experimentados, histórias de viagens,
encontros imprevistos com o Saci-Pererê ou com a Iara.
19
Graça Aranha, por sua vez, louvava o idealismo, caracterís-
tica que considerava dominante na nacionalidade e que teria se
espraiado sob a forma de energia criadora por todos os recantos
de uma terra surgida "do inconsciente imemorial, revelada por
homens possessos da loucura dos descobrimentos. Nascido de um
sonho de navegantes, o Brasil ficou para sempre enfeitiçado pela
miragem".
20
Havia também os que lamentavam a nossa tendência de "só
herdar os vícios e defeitos dos nossos ancestrais", manifesta no
fato de termos retido dos ibéricos "não o amor às tradições, mas
... o conservantismo ferrenho, o chamado 'pé-de-boi', que nos
tem entorpecido, e o sentimentalismo mórbido".
21
Ainda mais
incômoda era a questão dos efeitos da presença de índios e negros
18 MEDEIROS E ALBUQUERQUE, J. J. da C. Terra de Santa Cruz. RBR, v.8,
n.30, p.129, jun. 1918.
19 MELLO FRANCO, V. de. Almas itinerantes. RBR, v.8, n.31, p.302., jul.
1918.
20 ARANHA, Graça. Raízes do idealismo. RBR, v.22, n.85, p.83, jan. 1923.
21 BRITO, L. A. C. de. Tradição e progresso. RBR, v.14, n.54, p.142-3, jun.
1920.
no cadinho em que a nação estava sendo forjada. Que a população
brasileira carregava consigo marcas ancestrais, vestígios da pre-
sença de elementos espúrios, era uma máxima repetida de múlti-
plas formas:
nunca olvidemos que nós, brasileiros, somos fracos, afeados, doen-
tios e tristonhos e que as gerações futurasm de herdar as taras dos
antepassados quase sempre as agravando. Lembrem-se todos de que
a robustez física é condição indispensável para a excelência das fun-
ções mentais, e delas, por sua vez, depende a fortaleza do caráter.
22
Na década de 1920, o pessimismo de Agassiz, Gobineau ou
Couty - que considerava o Brasil "um paíso povoado" pelo
fato deo possuir "colonos livres da Europa, os únicos que
seriam capazes de formar um povo e, como povo, uma riqueza
duradoura e produtiva" (Couty, 1988, p.102 e 60) - encontrava
subscritores que insistiam em vincular o avanço do país ao bran-
queamento de sua população, maneira eufemísticao apenas de
reafirmar a inferioridade de índios e africanos, mas também de
expressar dúvidas quanto às chances efetivas dessas etnias aban-
donarem um estágio mental inferior e assim participar do esforço
de construção nacional. A viabilidade da nação parecia depender
da natureza da interpretação dada ao secular problema da mesti-
çagem.
Para assinalar o seu caráter pernicioso sempre era possível
invocar, entre vários outros, o testemunho de Buffon, Broca,
Gobineau, Morton, Agassiz. Por sua vez, os avanços no campo da
psicologia comparada, da medicina legal e do direito alertavam
para a força do atavismo, capaz de trazer à tona estágios anterio-
res que se imaginava superados pela purificadora mistura com
raças cultas.
A aplicação desse tipo de análise estava longe de se limitar à
questão da miscigenação. Em 1921, a Revista do Brasil publicava
22 SILVEIRA, C. da. Questões de ensino público. RBR, v.5, n.20, p.522-3, ago.
1917.
artigo no qual se discutia cientificamente que tipo de mulher -
morena ou loira - convinha mais ao homem. A primeira era des-
crita como alguém que "ama com mais sentimento que a loira, é
ainda muito mais fiel no amor", enquanto a segunda "mais prá-
tica, sabe ajudar melhor o marido na luta pela vida, em que há
completa falta de sentimentalismo". Esse comportamento era jus-
tificado, do ponto de vista fisiológico, pela variação no tamanho
das glândulas pineais, fato descoberto por médicos franceses.
Assim "nas mulheres loiras a glândula pineal é menor, a sua secre-
ção paupérrima e a sua estrutura mais compacta", o que explicaria
a "diferença sentimental entre a mulher loira e a morena". Razões
de ordem psicológica foram apontadas por um especialista ameri-
cano segundo o qual a loira "descende de antepassados que luta-
ram muito pela sobrevivência, viveram em climas frígidos cuja
alimentação era escassa", derivando daí sua necessidade de serem
agressivos, lutadores, diligentes e astutos a fim de obterem a caça,
circunstâncias que teria levado ao "aperfeiçoamento natural" do
seu espírito prático. Já as morenas procederiam "de raças que
viveram em climas temperados, em que a vida era fácil. Acercadas
de abundância,o era preciso lutar com denodo para viver, o
temperamento da mulher morena, que hoje encarna aquele tipo
originário, se desenvolveu em consecutivas indolências ... A
morena ao coberto da preocupação do alimento e do abrigo,
decerto teve longas contemplações da natureza rude e selvagem,
durante as quais brotaram as suas emoções". O comportamento
atual nada mais seria do que manifestação de heranças que remon-
tariam aos albores da humanidade: "a mulher loira procura domi-
nar o coração e a vontade do homem que ama, com a mesma
astúcia, diligência e espírito agressivo do caçador que persegue a
caça para abatê-la. A mulher morena só tem um desejo, como
reminiscência do tipo anterior de que deriva, amar o homem que
a escolheu entre outros homens".
23
23 Qual a mulher que sabe amar mais o homem? RBR, v.17, n.68, p.461-2, ago.
1921.
À eficácia de uma alquimia redentora contrapunham-se
tanto motivos fisiológicos, quanto estruturas psíquicas e compor-
tamentais, o que lançava densas sombras sobre aqueles que enca-
ravam a miscigenação como remédio rápido, porque capaz de
queimar etapas evolutivas, para a inferioridade de negros e
índios. De acordo com essa interpretação negativa, a população
brasileira, irremediavelmente condenada, figurava como aberra-
ção. De um lado o branco, dilapidado por seguidos cruzamentos,
privado do melhor de suas energias, definhava; e de outro, o
mestiço, tipo dominante, incivilizável e degenerado, exibia seus
múltiplos estigmas.
Essa leitura mais ortodoxa, presente em diferentes graus num
Silvio Romero,
24
Euclides da Cunha
25
ou Nina Rodrigues, prati-
camenteo figurou nas páginas da Revista do Brasil. A exclusão,
longe de ser fruto da ação deliberada dos responsáveis pelo perió-
dico, aponta para deslocamentos importantes sofridos pelo para-
digma racial nas décadas de 1910 e 1920. Esses anos assistiram
tanto a difusão e consagração de uma leitura positiva da mestiça-
gem, quanto a emergência de uma interpretação apoiada em prin-
cípios higiênicos e eugênicos. Se é certo que nem sempre tais
mudanças implicaram o rompimento das fronteiras ou a negação
24 Romero que até 1900 declarou-se favorável ao cruzamento de negros e índios
com brancos, por considerá-lo a maneira mais eficaz de extinguir esses gru-
pos, a partir daquela data mostrou-se cético quantos aos efeitos de tal mis-
tura. Para uma análise das oscilações de Romero em relação ao tema ver:
VENTURA, R., 1991, p.62-4.
25 "A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as
conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de
uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem
extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o
tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre
obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à
revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço
traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem
esforços seculares é, quase sempre, um desequilibrado." CUNHA, E. da,
1982, p.89. Apesar dessa condenação, as suas análises a respeito do sertanejo
abriam caminho para uma apreensão positiva do processo de mestiçagem em
curso no interior do país, como teremos oportunidade de sublinhar.
completa das teorias raciais, pelo menos acabaram por relativizar
o seu significado.
26
Na revista, a interpretação mais restritiva se fez representar
por trechos da obra inacabada de Nina, A raça negra na América
portuguesa (1906),
27
na qual o médico maranhense estuda costu-
mes, cantos, danças e contos populares com o objetivo de esclare-
cer sob que formas as crenças totêmicas dos índios e sobretudo
dos negros manifestavam-se no presente. Uma vez que "os negros
importados para o Brasil pertenciam todos a povos totêmicos", o
autoro considerava "crível que a simples introdução neste país,
que lheso modificou essencialmente a crença, deixando-lhes
intactas todas as suas tendências sociais, houvesse suprimido neles
a disposição mental ao totemismo".
28
Noutros termos, essa persistência apontaria para tendências
instintivas e inatas da raça que se conservariam apesar dos cruza-
mentos e de uma aparente adesão a outros costumes ou religiões:
É verdade biológica bem conhecida que nos cruzamentos de
espécies diferentes o êxito é tanto menos favorável quanto mais afas-
tadas na hierarquia zoológica estão entre si as espécies que se cru-
zam. Nestes casos o cruzamento acaba sempre por dar nascimento a
produtos evidentemente anormais, impróprios para a reprodução e
representando na esterilidade de queo feridos, estreitas analogias
com a esterilidade terminal da degeneração física. Tem se afirmado,
é exato, que o cruzamento das raças ou espécies humanaso dá
26 Caberia perguntar se as transformações, detectadas exclusivamente a partir
do material publicado na Revista do Brasil, poderiam ser generalizadas ou se
refletiriam apenas o pensamento de setores ligados ao periódico. Nesse sen-
tido é interessante assinalar que, valendo-se de outras fontes, SKIDMORE,
T., (1976) também elegeu a segunda metade da década de 1910 como um
marco no processo de contestação ao paradigma racial.
27 Nina Rodrigues faleceu antes de concluir o trabalho. Coube a Oscar Freire,
seu sucessor na Faculdade de Medicina da Bahia, organizar os originais,
tarefa queo terminou em razão de morte prematura. Somente em 1933,
graças aos esforços de Homero Pires, o livro veio finalmente a público com o
título Os africanos no Brasil. Em nota que precedia o material publicado, a
direção da Revista do Brasil agradecia a Oscar Freire o enviado dos inéditos
de Nina. Ver: RODRIGUES, R. N. A raça negra na América Portuguesa. RBR,
v.20, n.79, p.201-20, jul. 1922 e v.20, n.80, p.344-58, ago. 1922.
28 Ibidem, RBR, v.20, n.79, p.203, jul. 1922.
híbridos. Mas os fatos demonstram que se aindao está provada a
hibridez física, certos cruzamentoso origem em todo caso a pro-
dutos morais e sociais evidentemente inviáveis e certamente híbridos
... Discutamos como a incapacidade das raças inferiores influi no
caráter da população mestiça, transformando ou combinando em
sínteses variáveis os predicados transmitidos pela herança. A escala
aqui vai do produto inaproveitável e degenerado ao produto válido
e capaz de superior manifestação de atividade mental. (Rodrigues,
1938, p.l71-2 e 182)
o se tratava apenas de um irresistível chamado ancestral,
mas de uma dada conformação mental, adequada ao estágio evo-
lutivo dos seus portadores. Em 1894, Nina anunciava a viabili-
dade de uma pesquisa que confirmasse na prática esses princípios
teóricos, declarando que na ação de negros e índios "hão de
influir poderosamente as reminiscências, conscientes ou inconsci-
entes, da vida selvagem de ontem, muito mal contrabalançadas
ainda pelas novas aquisições emocionais da civilização que lhes foi
imposta. A demonstração, melhor a exemplificação,o seria
tarefa árdua e muito menos impossível". (Ibidem, p.168)
Seus últimos escritos, dos quais foi retirado o material pre-
sente na Revista do Brasil, indicam o quanto ele enveredara por
esse atalho, estrategicamente eficaz, com o intuito de atestar a
infantilidade dos povos inferiores. Estabelecer, para além de qual-
quer dúvida, tal condição constituía-se para Nina num pré-requi-
sito essencial, capaz de justificar sua proposta de adoção de uma
legislação penal que, levando em conta o limitado discernimento
doso brancos, lhes impusesse uma responsabilidade atenuada:
Entendo que se podem distribuir os mestiços por três grupos
distintos. Primeiro, o dos mestiços superiores, que pela dominância
da raça civilizada na sua organização hereditária, ou por uma com-
binação mental feliz, de acordo com a escola clássica, devem ser jul-
gados perfeitamente equilibrados e plenamente responsáveis.
Segundo, os mestiços evidentemente degenerados ... tristes repre-
sentantes de variedades doentias da espécie ... Dentre eles, uns
devem ser total, outros parcialmente irresponsáveis. Terceiro, final-
mente os mestiços comuns, produtos socialmente aproveitáveis,
superiores às raças selvagens de que provieram, mas que, já pelas
qualidades herdadas dessas raças, já pelo desequilíbrio mental que
neles operou o cruzamento,oo equiparáveis à raças superiores
e acham-se em iminência constante de cometer ações anti-sociais de
queo podem ser plenamente responsáveis.o todos casos de res-
ponsabilidade atenuada. (Ibidem, p.216-7).
Na revista, essa visão negativa, queo se cansava de alardear
os efeitos deletérios dos cruzamentos, foi cedendo lugar a uma
interpretação que elegia a mistura como via privilegiada em dire-
ção ao progresso. A mesma lógica de inspiração darwinista, que
lançava anátemas sobre a mestiçagem, poderia ser mobilizada na
direção oposta para afirmar a predominância dos caracteres
oriundos de tipos superiores. Se, inicialmente, o cruzamento entre
brancos e índios ou brancos e negros gerava uma prole queo
atingia o nível do progenitor mais evoluído, bastariam mais alguns
acasalamentos na direção correta para que se chegasse ao grau de
excelência desejado: "o mestiço que resulta do cruzamento do
branco com o negro tem tendência a afastar-se do tipo africano.
É neste cruzamento que se revelam os tipos de maior beleza, com
formas graciosas e bem proporcionadas".
29
O Brasil despontava
como testemunha candente do potencial de aperfeiçoamento do
mulato, como fez questão de frisar o nosso representante no Pri-
meiro Congresso Internacional das Raças, realizados em Londres
em 1911:
Ao Brasil os mestiços forneceram, até hoje, poetas de grandes
inspiração, pintores, escultores, músicos distintos, magistrados,
jurisconsultos, oradores eloqüentes, notáveis literatos, médicos e
engenheiros que se destacaram graças às suas aptidões técnicas e à
sua capacidade profissional ... A colaboração dos mestiços no pro-
gresso e no desenvolvimento do Brasil é notória, e de grande valor.
30
Mesmo admitindo a compatibilidade entre o híbrido e a civi-
lização, os analistas compraziam-se em assinalar que, graças à pre-
29 CARVALHO, D. de. Geografia do Brasil, 1913, p.217. Apud: MORAES, E.
de. A ascensão dos mulatos. RBR, v.25, n.94, p.197, out. 1923.
30 LACERDA, J. B. de. Sur les Métis au Brésil, 1911, p.13 e 17. Apud:
MORAES, E. de. A ascensão dos mulatos. RBR, v.25, n.94, p.197, out. 1923.
Ver também BILAC, O. A defesa nacional. RBR, v.4, n.15, p.328, mar. 1917.
dominância natural do branco, os brasileiros tendiam a se tornar
cada vez mais alvos. De forma muito otimista previa-se que em
apenas cinqüenta anos, "à parte uma pequena fração retroatávica
de tipos negróides", a nossa população seria "mais branca que a
da Península Ibérica". O norte do país precisaria de mais algum
tempo para livrar-se da "coloração indecisa dos mestiços de hoje"
e caminhar em direção a uma "coloração progressiva de ariano de
boas origens".
31
O branqueamento surgia como uma espécie de
solução mágica para as contradições de uma sociedade multirra-
cial, heterogênea e atravessada por uma rígida hierarquia.
É certo que observadores exigentes introduziam distinções
sofisticadas, mas nem por isso desprovidas de positividade. Nesse
sentido, vale a pena acompanhar a argumentação de Oliveira
Vianna:
Na formação do mulato há um denominador comum - o
branco; mas o outro fator é muito variável, quer no ponto de vista
somático, quer no ponto de vista psíquico. Entre as tribos negras, que
aqui se localizaram, havia diversidade de tipos e de mentalidades ...
Negros havia absolutamente indomesticáveis e incivilizáveis, de men-
talidade rudimentar, instintos selvagens e inferiores, incapazes de
qualquer melhoria ou ascensão; outros, porém, revelavam inteligên-
cia superior, capacidades progressivas, talentos artísticos e tempera-
mento generoso, dócil, obediente e delicado ... Esta diversidade ...
deveria produzir necessariamente uma variedade correspondente no
seu cruzamento com o luso. De maneira que éo absurdo procurar-
se a unidade psicológica do mulato, como é absurdo pretender fixar a
sua unidade antropológica ... Em regra, o que chamamos mulato é o
mulato inferior, incapaz de ascensão, degradado nas camadas mais
baixas da nossa sociedade ... Há porém mulatos superiores, arianos
pelo caráter e pela inteligência, ou pelo menos capazes de arianização,
ascendendo às altas camadas da nacionalidade e colaborando com os
brancos na obra de organização e civilização do país.
32
31 RIBEIRO, J. Brancos de toda cor. RBR, v.24, n.96, p.378, dez. 1923. Nor-
malmente admitia-se um tempo muito maior para o desaparecimento final do
negro. Romero acreditava que o processo somente se completaria dentro de
três ou quatro séculos, Afrânio Peixoto em dois ou três enquanto Lacerda
pedia pelo menos cem anos. Ver: SKIDMORE, T., 1976 p.81-94.
32 OLIVEIRA VIANNA, F. J. As pequenas comunidades mineiras. RBR, v.8,
n.31, p.224-5, jul. 1918, grifos no original.
Desnecessário dizer que o autor se auto-incluía nesse último
grupo...
Apesar de trabalhar com uma classificação praticamente
idêntica a de Nina Rodrigues, Vianna enfatiza, em outra passagem
desse mesmo texto, a possibilidade de arianização, ausente no
Professor da Faculdade de Medicina da Bahia:
"noto que entre os cabras, os fulos, os pardos, os mulatos típicoso
pouco numerosos. Domina a cor morena.oo raros, porém, os
tipos loiros. Cabelos, em geral, lisos. Inegavelmente, sente-se aqui a
ação possante das seleções étnicas, em trabalho de purificação da
raça, tendendo para a eliminação progressiva dos sangues inferiores.
Em Barbacena, na cidade, entre as mulheres das classes média e alta,
predomina na coloração da pele matizes claros; os morenos concen-
trados e a coloração trigueira, denunciando que fortes dosagens de
sangues serviso pouco abundantes; apesar da preponderância de
cabelos castanhos e negros, é considerável o número de cabeleiras
loiras. Tudo, enfim, revela que, no seio da massa mestiça, as seleções
étnicas seguem, aqui em Minas, uma tendência arianizante.
33
O afã de banir o negro do cenário nacional era por demais
evidente. Esperava-seo só que ele desaparecesse do palco, a
exemplo de um ator que finda o seu papel, como também queo
deixasse qualquer rastro de sua passagem. Esse desejo de invisibi-
lidadeo era apenas físico, mas também psicológico. Assim
Medeiros e Albuquerque, ao referir-se à sensualidade do brasi-
leiro, afirmou:
Há a este respeito uma afirmação muito corrente: é a de que a
preocupação amorosa de nosso povo vem do sangue preto que nele
foi infundido. Nada menos exato. Entre o português, o índio e o
negro, o negro é o mais casto ... Os nossos selvagens sempre foram
infinitamente mais sensuais que os negros. Se, portanto, o nosso
povo ficou sendo o que ele é,o o deve ao sangue preto; deve-o ao
índio e ao português.
34
33 Ibidem, p.222.
34 MEDEIROS E ALBUQUERQUE, J. J. da C. Terra de Santa Cruz. RBR, v.8,
n.30, p.128, jun. 1918.
Pode-se avaliar o quanto essa postura estava arraigada no
ambiente intelectual da época lembrando que Roquette Pinto,
para quem a verdadeira questão nacionalo era transformar os
mestiços do Brasil em gente branca mas a educação dos que aí se
acham, assegurava, a partir de suas observações em famílias popu-
lares, que mesmo sem intervenção de outro elemento branco, o
cruzamento de mestiços fornece prole branca, que a antropologia
é incapaz de separar de tipos europeus. Esse fato era por ele con-
siderado resultado da herança mendeliana, o que evidencia, mais
uma vez, a prática de se acomodar as novas teorias,o raro
incompatíveis com os velhos pressupostos, a esquemas interpreta-
tivos consagrados. O autor, ainda que reconhecendo a impossibi-
lidade de verificar na espécie humana as previsões de Mendel,
uma vez que "a prole é muito reduzida, há muitos caracteres indi-
viduais que mascaram os específicos, a gestação é muito longa e a
moral, em tais assuntos,o permite experiências", julgava poder
afirmar o caráter mendeliano de suas conclusões pelo fato de
espontaneamente o Brasil revelar-se "um imenso laboratório de
antropologia".
35
Já o índio, terceiro componente da infusão nacional, absor-
veu muito menos a atenção dos articulistas da Revista do Brasil,
possivelmente pelo fatoo só dele representar uma porcentagem
relativamente pouco significativa da população, como também de
estar confinado ao interior longínquo e de difícil acesso. Por vezes,
elogiava-se sua adaptabilidade ao meio, manifesta na permanên-
cia, mesmo nos cruzamentos com brancos, de seus caracteres.
Entretanto, pelo menos em uma oportunidade, os nativos
americanos chegaram a desempenhar o papel de destaque na ges-
tação da raça perfeita. Em texto datado de 1924, Villar Belmonte
recorria à embriogenia, à ortogênese e à craniologia para demons-
trar a existência de dois tipos humanos fundamentais: o amarelo-
negro e o alvi-vermelho. Belmonte insistia no caráter superior dos
cruzamentos realizados no interior de cada um dos grupos, cujo
35 ROQUETTE PINTO, E. O Brasil e a Antropogeografia. RBR, v.4, n.12,
p.328, dez. 1916.
produto reputava de integralmente evoluído porque belo, forte e
talentoso, alertando porém para os perigos de qualquer mistura
que desrespeitasse esse limite:
Os indivíduos do primeiro tipo humano quando acasalados aos
do segundo e vice-versam filhos menos prolíficos, menos longe-
vos, e de mentalidade menos equilibrada: - ou demasiada força em
detrimento da beleza e do talento, ou predomínio de uma dessas
qualidades orgânicas, com ausência de uma ou das duas restantes.
Cada tipo representa um acervo secular de assimilações e afinidades;
e quando se baralha com outro tipo as características variam, mal se
fixam as qualidades hereditárias ou influências ancestrais e muito
dificilmente o casal conseguirá reunir em sua prole as virtudes do
ripo ascendente, que lhe seja imediatamente superior. Só muito rara
e excepcionalmente poderá reunir no cérebro nascente, em propor-
ções equivalentes, o caráter, a inteligência e a beleza - formando a
linha geral do critério humano. Ao contrário, quando as uniões se
o entre amarelos-negros ou entre alvi-vermelhos, selecionam-se e
elevam-se os produtos, sob qualquer ponto de vista, tornando-se,
por isto, mais assimilativos aos progressos da civilização. E notável
a improdutividade dos mestiços, tanto no gênero humano, nas espé-
cies vegetais, como no mundo zoológico.
36
Entretanto, circunstâncias variadas acabaram por distanciar
africanos e asiáticos, fato que estaria na raiz do atrofiamento evo-
lutivo dessas raças. A América e à Europa, em estreito contato
desde os descobrimentos, caberia fornecer os componentes da
"raça síntese", que se caracterizaria por tipos "altos como o norte-
americano, alvos como o argentino e de cabelos fartos e negros
como o do brasileiro". Esse povo vencedor resultaria da mescla,
no solo fértil do novo mundo, entre o habitante nativo "vigoroso
e insubmisso ... com sangue rubro e nervos de aço" e os espécimes
europeus de melhor qualidade que, em grandes levas, abandona-
vam um continente cansado e decadente, obedecendo assim a
marcha da civilização, que "ruma do Oriente para o Ocidente".
37
36 BELMONTE, V. O futuro dos povos. RBR, v.25, n.98, p.155-6, fev. 1924. A
conclusão do artigo foi publicada no número seguinte da revista, p.227-34.
37 Ibidem, p.233, 154 e 232, respectivamente.
Por mais originais que fossem suas conclusões, Belmonte che-
gou à elas movimentando-se no interior do paradigma racial e sem
jamais colocar em questão seus pressupostos. A partir de um hábil
trabalho de reordenamento, ele conseguiu imprimir ao conjunto
uma outra orientação, de maneira a inverter a visão que insistia
em tornar a América como um continente imaturo e seus habitan-
tes como seres inferiores. A sua solução, muito distante de uma
simples importação, também evidencia até que ponto as teorias
que aqui aportavam eram manipuladas e aclimatadas às necessida-
des locais.
Em síntese, pode-se afirmar que na Revista do Brasil as análi-
ses que tentavam avaliar os componentes que integravam o esto-
que étnico da nação normalmente continham uma boa dose de
confiança, caucionada menos nos méritos ou atributos individuais
de cada um dos elementos do que na certeza de que a superiori-
dade inata do branco acabaria, mais cedo ou mais tarde, por tam-
m triunfar nos trópicos. Essa leitura bastante particular do
paradigma racial deixa patente o trabalho criador que os pensa-
dores brasileiros realizaram.
Ainda que essa intelectualidade fosse, em maior ou menor
grau, tributária de teorias construídas a partir das categorias de
raça e meio, tal filiação esteve longe de resultar em uma represen-
tação única a respeito das formas de superar ou enfrentar os entra-
ves que impediam a afirmação definitiva da nação. O material
presente na Revista do Brasil adverte contra as tentativas simplifi-
cadoras que insistem ora num pessimismo absoluto, ora numa
confiança exagerada quanto ao futuro. De fato a elite intelectual
oscilava entre esses dois pólos, como bem atesta as opiniões con-
trastantes expressas por João Ribeiro.
Na mesma época em que postulava o branqueamento emi-
nente do país esse autor, ao ensaiar uma interpretação dos movi-
mentos sociais do seu tempo, recorria a parâmetros ortodoxos,
sugerindo que o processo de modernização, desafio maior da
nação, teria que avançar de forma muito lenta e conflituosa,
enfrentando violentos choques ao longo do seu percurso:
Sob ou do novo mundo, com a diferença das raças e o anta-
gonismo dos colonizadores vindos de todos os pontos cardeais, sur-
giram novas seitas, crenças extravagantes e singulares, como bem
pode avaliar quem examina essa babel confusa e instável das civiliza-
ções americanas ... Dessas explosões místicas, eivadas de idéias polí-
ticas em diabólico consórcio, temos o exemplo recente e a dolorosa
memória da matança de Canudos, do José Maria do Contestado,
com o sacrifício de vidas preciosas. Se cursarmos a pospelo a nossa
história, encontraremos a mesma cegueira dos quebra-quilos infen-
sos ao sistema métrico, às mortandades do falso sebastianismo da
Pedra Bonita ... Toda vez que a vaga civilizadora se desdobra sobre
o sertão inculto lá encontra o paredão selvagem que resiste e provoca
a espumarada ...o é menos certo que se trava uma luta entre as
idéias do sertanejo, cuja psicologia étnica representa uma fase dife-
rente, retrógrada e às vezes incompatível com a dos conquistadores
... Em regra geral, nessas formações de seitas místicas há o que se
chama um sincretismo religioso, amálgama de princípios raciais dife-
rentes e contraditórios ... É uma congérie de superstições que reagem
entre si e acaba achando qualquer equilíbrio ... Todas as sociedades
em formação, enquantoo alcançarem equilíbrio e homogenei-
dade, contêm em si perigos explosivos. O grande cuidado, o máximo
cuidado dos civilizadores deve ser o de apagar essas diferenciações
mortais entre homens que respiram sob o mesmo céu.
38
João Ribeiroo era uma exceção. O otimismo tendia a
ceder lugar a um quadro de tonalidades sombrias toda vez que o
âmbito genérico era abandonado em prol da contabilidade rigo-
rosa, capaz de precisar o quanto já havíamos caminhado em dire-
ção à consolidação de um tipo antropológico próprio.
A observação cuidadosa dos atributos coletivos que se iam
revelando peculiares ao povo brasileiro, era considerada um guia
seguro para antever os traços que, uma vez completada a transmu-
tação de etnias distintas em um conjunto coeso e homogêneo,
finalmente nos individualizariam física e psiquicamente. Nesta
tarefa, escola era apontada como importante aliado:
Para a determinação das características físicas do tipo brasileiro
normal, para se organizarem quadros pelos quais seja possível
3S RIBEIRO, J. A primeira religião dos Brasis. RBR, v.22, n.86, p.181-2, fev.
1923.
A comemoração do primeiro Centenário da Independência,
acontecimento carregado de simbolismo, estimulava reflexões e
balanços dessa natureza, que ocuparam espaço considerável nas
páginas da Revista do Brasil.
39 SILVEIRA, C. da. Questões de ensino público. RBR, v.5, n.20, p.523, ago.
1917.
conhecer claramente a evolução somática do nacional, desde as mais
tenras idades, a fim de se tornarem conhecidas e vulgarizadas as mais
freqüentes anomalias na primeira e na segunda, nas três fases da ado-
lescência e na juventude, bem como, se possível for, as causas eficien-
tes de tais anomalias, um auxiliar magnífico da escola e da medicina
pedagógica poder ser encontrado nos gabinetes de antropometria
escolar. Entendo por gabinetes as repartições anexas às escolas e
encarregadas de uma investigação minuciosa e profunda da parte física
da nossa gente, para fins que a ciência tem em vista: fins antropológi-
cos, psicológicos, pedagógicos, sociais e político administrativos.
19
GRUPO III: Figuras 10 a 15
País de índios, negros e jecas, o Brasil era freqüentemente considerado pouco
permeável ao progresso e à civilização. (RBR, n.82, 57, 41, 51, 57 e 106)
OS DONOS DA TERRA
Então, como é isto, seu Protocollo, nós, os verdadeiros filhos da terra,o
entramos na festa? De accordo com a d. Pragmatica, vocês serio
expostos como typos . . . exoticos. RAUL (D. Quixote)
FIGURA 10
O telephone tocou na minha ausencia?
Tocou, sim, sinhô.
E tú attendeste?
Não, sinhô!
Porque, seu idiota?
! Eu lá sabia se era p'ra mim?
PERDIGÃO (D. Quixote
Rio).
FIGURA 11
O homem do momento
Então, Jéca Tatú, já sei que me déste o teu votosinho
hein?
Quá,o sinhô. Tive maginando queo valia a pena
votá em vossa senhoria. O governo é que ganha semore, conce-
ièro... - {Seth D. Quixote - Rio).
FIGURA 12
GENTE FELIZ
Então? Que ha de novo lá por baixo?
Tudo velho e sem importancia; só se fala na crise de casas e no
augmento dos alugueis...
Raul (O Jornal Rio)
FIGURA 13
NO PHOTOGRAPHO
O photographo: Eu estou vendo os senhores de cabeça por baixo.
Jeca :!o tira o retrato, não, Mariquinhas!
FIGURA 14
POLYGLOTISMO
O' moço, no preço caro dos bilheteso estão
incluídos os diccionarios ?
("Jornal do Brasil". Rio)
FIGURA 15
4 CIÊNCIA: SOLUÇÃO DO
PROBLEMA NACIONAL?
Se quiserdes ver a imagem do que somos,
considere um tocador de violão. Toma o instru-
mento com volúpia, achega-o ao peito numa carí-
cia, afina-o com presteza admirável e começa a
correr as cordas em ponteados sem fim.o acor-
des queo se realizam, escalas que se evolam
incompletas, sons que se sucedem numa doçura
sem nexo. Apenas, de vez em quando, lhe escapa
uma pequena composição, um samba ou uma can-
ção, toda repenicada de floreios, como que apres-
sada em permitir a volta à volúpia do ponteado.
Eis a imagem do nosso caráter: amamos de longe a
ação, pensamo-la como fantasia radiante, queremos
tudo, mas tudo se perde em minúcias extasiamo-
nos ante os nossos próprios atos e a energia se nos
escoa em ponteados de imaginação. No Brasil,
somos todos um pouco Ricardo Coração dos
Outros!... (LIMA, A. A. O êxodo. RBR, v.6, n.21,
p.37-8, set. 1917)
Os caracteres mentais dos campônios europeus
o essencialmente semelhante aos dos povos primi-
tivos do mundo inteiro. Desde que se modifiquem as
condições do meio em que vivem tais primitivos,
nada impedirá seu aperfeiçoamento progressivo.
(ROQUETTE PINTO, E. A questão das raças em
Versalhes. RBR, v.10, n.39, p.375, mar. 1919)
No período abarcado pela Revista do Brasil ainda fazia parte
da agenda da intelectualidade a definição dos predicados que
singularizariam o tipo antropológico nacional, etapa reputada essen-
cial para a superação definitiva dos embaraços que acompanha-
vam a mestiçagem. Os mesmos pensadores que produziam saídas
teóricas honrosas para um país etnicamente mestiço, revelavam
um desalento profundo quando se tratava de discernir as linhas
mestras do caráter nacional.
A entrada no país de imigrantes europeus brancos, se por um
lado era encarada como uma necessidade para a purificação racial,
por outroo deixava de encerrar seus perigos. O enquistamento
de grupos em áreas desertas figurava no rol das ameaças à soberania
nacional. Mais alarmante era a possibilidade, eminente a partir do
final da Primeira Guerra, do país receber levas crescentes de asiáti-
cos, o que dava margem a prognósticos lúgubres sobre os efeitos da
presença de raças inassimiláveis no processo de caldeamento.
Na luta por imprimir um viés positivo à questão étnica, os
paulistas novamente seriam chamados a ocupar lugar de destaque.
Os bandeirantes e seus herdeiros, a quem o Brasil já devia o terri-
tório, os feitos gloriosos de sua história e o vigor econômico pre-
sente, eram alçados à condição de grupo étnico particular,
formado por elementos dotados de qualidades superiores.
Porém, ao lado das contínuas reelaborações do paradigma
racial clássico, a Revista do Brasil também permite divisar o surgi-
mento de uma outra maneira de conceber os problemas étnicos,
ancorada nas recentes descobertas provenientes da bacteriologia.
Tornava-se possível relativizar, e às vezes até contestar frontal-
mente, as proposições que insistiam na força atávica da herança
sanguínea.
Refletindo essa complexidade, a revista acolheu em suas pági-
nas lamentos a respeito de uma inferioridade inerente; discursos
esperançosos quanto às possibilidades de um breve branquea-
mento; sonhos embalados pelo ideal de revalorização higiênico-
sanitário do homem brasileiro e sombrias propostas eugênicas. A
enumeração sugere uma distinção que de fatoo existia; essas
apreensões mesclavam-se ao sabor de circunstâncias,o raro no
mesmo autor, gerando um entrelaçamento nem sempre fácil de
ser aprendido.
ÍNDOLE DOS BRASILEIROS
Os articulistas da Revista do Brasil freqüentemente descre-
viam o brasileiro como um indivíduo desprovido de orientação,
firmeza, continuidade e perseverança, que se satisfazia em tomar
nobres resoluções e arquitetar belos planoso cuidando, porém,
de tirá-los do papel.
1
A incapacidade de realizar algo de prático
encontrava razão de ser no espírito contemplativo da raça, no seu
ceticismo sonhador, na sua indolência, defeitos singulares que
eram associados a uma peculiar sensibilidade: "à pecha de exces-
sivos, há tanto associada aos brasileiros, tenho que antes nos cabe
o labéu de hesitantes. A massa de nossa gente é tímida, e como tal,
incapaz de insurgir-se ou gabar-se.s somos, na acepção comum
da palavra, um povo de românticos, prontos a sacrificar a ação à
contemplação. Somos fatalistas. Estamos sempre perante a adver-
sidade em posição defensiva".
2
Tais características nos predispo-
riam a concluir com segurança de premissas erradas, vício que
"vindo no sangue que nos legou o Mediterrâneo, agravou-se pelas
mesclas sucessivas de raças imaginosas e sentimentais".
3
A tendência dispersiva da índole nacional impediria o brasi-
leiro de encetar os esforços requeridos pela observação detida ou
pelo uso prolongado do raciocínio, o que por natureza nos indis-
poria com a Filosofia:
Povo imaginativo, impressionista e vibrátil, falta-nos as apti-
dões naturais para a especulação filosófica. Nem sequer gostamos de
pensar. As reflexões longas apavoram-nos. Somos um povo de
impulsivos. A nossa cultura, mais extensa do que intensa, mais variada
1 As Revistas no Brasil. RBR, v.l, n.l, p.70, jan. 1916 e os dois artigos de
SCHIMIDT, F. G. Nossos defeitos. RBR, v.5, n.17, p.108, maio. 1917 e
Nacionalismo. RBR, v.4, n.13, p.65-9, jan. 1917.
2 LIMA, A. A. À margem de um livro. RBR, v.10, n.37, p.83, jan. 1919. Ver
também SERVA, M. P. Um fator de desintegração nacional. RBR, v.3, n.10,
p.l18, out. 1916 e BELLO, J. M. A missão das nossas elites. RBR, v.10, n.37,
p. l12-3, jan. 1919.
3 LIMA, A. A. A questão social. RBR, v.13, n.50, p.177-8, fev. 1920.
que profunda, retrata bem essa incapacidade nativa para as cogita-
ções demoradas.
4
Já a complacência, atribuída à bondade de alma que tudo per-
doa e desculpa, de fatoo passaria de "relaxamento, insensibili-
dade moral, inércia e comodismo"
5
de um povo desprovido de
estabilidade de sentimentos e opiniões, sem tenacidade, que fugia
às lutas longas e incertas, incapaz de esforços solidários e no qual
sobravam afetividade, sentimento e brandura:
O que convencionamos chamar de "bom caráter" no Brasil é o
homem anódino, quase sempre sem gosto literário ou artístico, que
o briga,o tem opiniões próprias,o toma responsabilidades,
sorri gravemente, cumprimenta com austeridade, procura ganhar a
vida sem aborrecer os outros, logrando na sombra de uma aparente
doçura irritar o menos possível,o suscitar reação, seguindo cami-
nho aberto pelos outros, ou ficando no seu canto, com boa cara e
postura sossegada. Lutou, perdeu o caráter. Sujeito que fale, discuta,
arremeta contra a injustiça e o que lhe pareça errado, seja humano,
capaz de paixões humanas, esse, já se sabe,o será nunca, salvo
exceções que circunstâncias especiais explicam, catalogado entre os
homens verdadeiramente sérios que a nossa gente sinceramente
acata e respeita. Enfim, o homem de caráter, segundo o conceito
popular no Brasil, é de uma maneira geral o homem meio termo, da
medida curta, da proporção razoável, do equilíbrio perfeito, homem
com que Molière convive e Ibsen pintou na figura daquele bailio que
fez opção a Brand.
6
Ou ainda, na bela formulação dos editores da revista, "somos
uma nação posta em música por um Debussy neurastênico:
sobressaltos melódicos inconseqüentes sobre uma floresta soturna
4 Resenha de Farias Brito, de Nestor Vítor. RBR, v.6, n.24, p.539, dez. 1917.
João Ribeiro considerava que "não está no temperamento nem nas virtudes
da nossa raça o culto da filosofia. Entres o filósofo seria coisa anômala,
sem antecedências normais, a classificar entre os produtos teratológicos da
espécie ...o há raça mais refratária à metafísica que a nossa". RIBEIRO, J.
A filosofia no Brasil. RBR, v.6, n.22, p.255, out. 1917.
5 CAMARGO, A. A missão da mocidade. RBR, v.4, n.13, p.100, jan. 1917.
6 AMADO, G. Psicologia brasileira do caráter. RBR, v.ll, n.42, p.182-3, jun.
1919. Para uma caracterização bastante semelhante ver: AMARAL, A. As
promessas do escotismo. RBR, v.l, n.4, p.445, abr. 1916.
de sons agitados. De nossa psicologia só nos é dado conhecer as
paixões, as tendências ficam cada vez mais ocultas".
7
O contraste entre americanos e brasileiros parecia suficiente
para explicar as razões do sucesso dos primeiros. De acordo com
o nosso embaixador nos Estados Unidos, "temos em excesso de
timidez e pessimismo o que a esta gente sobra e sobrou sempre em
ousadia e otimismo. Isso faz com que se nos julgue ainda muito
abaixo do que realmente somos e valemos".
8
o raro o esforço
de caracterização desembocava em visões caricaturais, como a de
Renato de Almeida:
s brasileiros somos um povo triste; rimos pouco, evitamos a
expansão e, por desconfiança ou timidez,o comentamos a vida
com a gargalhada franca e jovial, mas com um sorriso escondido e
ligeiro, que tanto se resolve na alegria como na tristeza. Quando nos
divertimos é sempre com seriedade ... Jám os psicólogos procu-
rado, eo sem razão, explicar o fenômeno pelo sangue das três
raças que corre em nossas veias: o português, o índio e o negro,
gente pouco alegre e muito melancólica. Vivemos, assim tarados,
sem o riso franco do saxônico, nem o espírito ligeiro do francês, mas
como que amuados, curtindo tristezas ancestrais, de uma saudade,
de uma perseguição, de uma tortura.o rimos quase, ensinamos a
o rir ... Povo moço, preferimos ter nos lábios a amargura que a
existência deixa nos velhos e experientes ... Dir-se-ia que cantamos
pouco e pensamos muito, o que é a mais pura verdade, se atentamos
que os nossos artistas procuram mais o desencanto do que o esplen-
dor ... Por isso, somos tímidos, preferimos imaginar a agir, sonhar a
realizar.
9
De súbito os poderes do escudo da juvenilidade esvaiam-se,
transformando o tempo, antigo companheiro cuja falta era invo-
cada para confortar e infundir confiança no amanhã, em mais um
inimigo. A consolidação de uma raça brasileira, ponto final da
transição étnica e condição primeira para uma existência plena,
7 Monólogos. RBR, v.l, n.4, p.442-3, abr. 1916.
8 BRASIL, A. A nossa política internacional. RBR, v.6, n.22, p.237, out. 1917.
Trata-se de uma nota diplomática enviada ao governo brasileiro em 1900
pelo autor, embaixador em Washington.
9 ALMEIDA, R. Afrânio Peixoto Romancista. RBR, v.l6, n.62, p.108-9, fev.
1921.
o sóo dava qualquer sinal de estar próxima, como também
parecia distanciar-se cada vez mais de um desfecho satisfatório. A
nação descobria-se velha em plena mocidade, situação que, para
alguns, beirava o irremediável:
Dá o Brasil, por vezes, a impressão de uma dessas obras feita às
pressas, errada desde os alicerces até a última descrição interna; em
corrigindo aqui, em retocando além, terminamos por nos convencer
de que o remédio decisivo estaria na sua destruição total, para a
recomeçar, cuidadosa e pacientemente, sob outras bases. E como
o é possível destruir uma nação, como se destrói uma casa, temos
que limitar a nossa atividade a esta obra de reformas e de retoques
diários, a esta espécie de equilíbrio instável, queo bem caracteriza
a nossa vida pública ... Realizamos o estranho paradoxo dum país
novo e semideserto eivado de taras especiais das civilizações esgota-
das, uma Grécia ou Espanha em decadência e em ruína.
10
Perpassando todas essas avaliações, havia uma profunda sen-
sação de desperdício, de falta de continuidade, de potencialidades
irrealizadas, de esforços mal empregados, enfim de uma prostra-
ção generalizada, pouco receptiva à marcha do progresso:
Dir-se-ia que a lei da inércia domina a coletividade brasileira.
Um enorme torpor nos pesa nas pálpebras, nos paralisa o cérebro,
nos imobiliza os membros, nos detém todos os passos. E por isso o Bra-
sil está condenado a andar na rabeira dos outros povos. Fomos o
último país ocidental a abrir os portos ao comércio estrangeiro. Fomos
o último povo da América a declarar a sua independência. Fomos o
último a abolir o tráfico dos escravos, coagidos pela Inglaterra.
Fomos o último também a decretar a abolição da escravidão. Fomos
o último a proclamar a República,o o fazendo, aliás, senão no
papel... A grande lei da inércia domina o organismo nacional, boça-
lisa a nossa mente, degrada o nosso caráter. Deixamos sempre para
amanhã a realização de todos os atos de que depende o nosso pro-
gresso ou o nosso aperfeiçoamento.
11
10 BELLO, J. M. O sertão. RBR, v.9, n.33, p.124-5, set. 1918.
11 SERVA, M. P. Na retaguarda da civilização. RBR, v.14, n.55, p.208, jul.
1920. Ou ainda: "o Brasil oferece ao mundo o aspecto impressionante de um
país que se move eo sai do lugar, e por via dessa tabes locomotora na fieira
das nações modernas ocupa o lugar menos honroso", LOBATO, J. B. M. A
nossa doença. RBR, v.7, n.25, p.6, jan. 1918.
Para provar a correção da análise bastava lembrar a ausência
de contribuições significativas do país à história da civilização:
Onde, de fato, entra o nosso grande nome para o patrimônio
das ciências? Onde o nosso pintor, o nosso escultor, o nosso arqui-
teto, o nosso músico que tenham deixado de si traços definitivos de
personalidades superiores, capazes de resistir à corrosão do tempo,
o pouco "galante uomo" no julgamento destes trabalhos da inteli-
gência e da imaginação?...o nos iludamos, pois, adormecendo os
nossos cuidados na fé da nossa inteligência. Esta se supre pelo traba-
lho, pela cultura, pela auto-educação. Vindos de cruzamentos de
raças e povos intelectualmente inferiores, nada nos prepara para a
alta vida do espírito. Sem tradições, sem ambiente, sem estímulos
exteriores, os nossos esforços terão que ser realmente heróicos para
integrar-nos no movimento de idéias e elevar assim o nosso conti-
nente para a grande obra da civilização.
12
Submersos na agitação e desequilíbrio da formação, destituí-
dos de um gosto próprio - "o que é o gosto senão o sentimento
estético do equilíbrio, o senso das proporções, o instinto do
ritmo? E como poderemos realizar a enritmia das nossas sensações
de beleza se vivemos em desequilíbrio congênito? O gosto, sendo
a mais sutil, é a mais perfeita manifestação do sentimento artís-
tico. E, assim sendo, pode considerar-se o apanágio dos povos em
fastígio, estranho portanto às nacionalidades incipientes" -,
13
parecíamos fadados ao produzir nada de duradouro e estável a
menos que de imediato fosse empreendido um esforço sério com
intuito de imprimir novos rumos ao país. Essa tarefa esbarrava,
porém, em outro dos nossos decantados defeitos: o hábito de
valorizar e imitar cegamente tudo o que fosse estrangeiro.
A admiração ingênua pelas realizações alheias era apontada
como responsável pela adoção de leis, costumes, idéias e hábitos
de outros povos na confiança de que tal medida, por si, seria
suficiente para nos colocar no mesmo patamar de sociedades tidas
como mais adiantadas:
12 BELLO, J. M. Inteligência e cultura. RBR, v.19, n.74, p.180-1, fev. 1922,
grifo meu.
13 LIMA, A. A. Os remédios inestéticos. RBR, v.14, n.56, p.362, ago. 1920.
Esta tendência para querer começar por onde acabam sempre
as nações velhas, cansadas e gastas é que nos fez merecer de um
escritor pátrio a observação de que o Brasil se assemelha a um indi-
víduo que começa a envelhecer sem nunca ter sido moço. Se a ten-
dência para imitar o que é mal é sinal de decadência, a febre de
imitar, mesmo o que é bom, é sintoma de fraqueza e incapacidade
criadora.'
4
Esse tipo de procedimento, que de acordo com a abalizada
opinião de Le Bon era peculiar aos latinos,
15
estaria na raiz da
absoluta inadequação entre o arcabouço institucional do país e a
índole dos seus habitantes.
O mesmo rol de argumentos mobilizados para condenar a
mestiçagem era transferido para a esfera da cultura. Sérgio Buar-
que lamentava a atração exercida pelos Estados Unidos sobre os
brasileiros, assinalando o quanto o utilitarismo do norte era
impróprio ao "nosso temperamento":
Do conúbio entre indivíduos pertencentes a raças opostas, sai,
na melhor das hipóteses, o albino. Imagine-se o pandemônio que
nasceria do entrelaçamento de duas civilizações completamente
diferentes. Tanto a reunião entre indivíduos de raças diversas como
entre civilizações opostas é sempre monstruosa, os seus produtos
o o podem ser menos. Só o desenvolvimento das qualidades natu-
rais de um povo pode torná-lo próspero e feliz ... Caso a civilização
yankee fosse aplicável a nosso país, o seu substractum, o que a torna
grandiosa em sua terra nunca aportaria nas plagas brasileiras, por-
quanto a índole de um povoo se modificao facilmente à simples
ação de agentes externos.
16
Entre os males causados pela imitação dos vizinhos do norte
o autor arrolava a importação da República.
Se as caracterizações que tentavam abarcar o país como um
todo eram eivadas de negatividade, o mesmoo ocorria quando
o foco era dirigido parao Paulo. Os paulistas, a quem a nação
14 BRITO, L. A. C. de. Tradição e progresso. RBR, v.14, n.54, p.142 e 144, jun.
1920.
15 SILVEIRA, C. da. Ensino e nacionalismo. RBR, v.7, n.25, p.90, jan. 1918.
16 HOLANDA, S. B. de. Ariel. RBR, v.14, n.53, p.86, maio 1920.
já tanto devia, estavam agora, graças à introdução de grandes
levas de imigrantes, acelerando a ação silenciosa da natureza,
cujas leis supostamente trabalhavam em favor do nosso engrande-
cimento étnico. A engenhosa solução arquitetada poro Paulo,
que mais uma vez tomava a dianteira no enfrentamento das gran-
des questões nacionais, maravilhou Nina Rodrigues que, ao visitar
o Estado em 1903, teria concluído residir o futuro da civilização
brasileira nessa região (Corrêa, 1983, p.44).
A presença de correntes européias redentoras do sangue cor-
rompido, segundo as palavras de Carlos Lemos,
17
era saudada
como poderoso fator de progresso. Acreditava-se que deveríamos
"abraçar francamente o programa de Alberdi, programa transfigu-
rador que em breve espaço de tempo levou a Argentina da barbárie
ao imperialismo: - governar é povoar. Nessas palavras está sem
dúvida alguma a redenção econômica e mesmo étnica do nosso
país. Porque ... só teríamos a ganhar com uma larga transfusão de
sangue rico e puro".
18
Quando Antonio Prado subordinou o desen-
volvimento da lavoura cafeeira e a riqueza pública e privadas do
Estado ao braço estrangeiro, estava repisando uma verdade que a
todos parecia evidente.
19
De fato, era difícilo estabelecer uma
relação de causa e efeito entre presença de população branca e
desenvolvimento econômico: "o Brasil precisa ser purificado, e a
razão do progresso vir do sul para o norte é que, naquela parte do
país, o sangue negro vai desaparecendo das veias brasileiras e uma
raça, queo guarda reminiscência da escravidão e de suas torturas,
desponta cheia de fé e ingenuidade, para a vida que adora".
20
17 LEMOS, C. A nossa evolução. RBR, v.16, n.64, p.34, abr. 1921.
18 NOGUEIRA, J. A. Nota política. RBR, v.13, n.52, p.364, abr. 1920, grifo
meu.
19 PRADO, A. Notas sobre a colonização emo Paulo. RBR, v.25, n.99, p. 195-9,
mar. 1924.
20 ALMEIDA, R. de. Afrânio Peixoto romancista. RBR, v.16, n.62, p.119, fev.
1921. Dois anos antes o editorialista da Revista, ao analisar as diferenças
entre as várias regiões do país, lamentava "a nossa fraqueza como país, país
imenso queo produz eo enriquece. Descontadas as áreas felizes do sul,
onde um conjunto de circunstâncias favoráveis atraiu a imigração estrangeira
e criou um relativo progresso, o resto do Brasil é uma pura calamidade". O
momento. RBR, v.12, n.45, p.l, set. 1919.
Se o Estado deo Paulo, com sua capital freqüentemente
equiparada às metrópoles americanas,
21
parecia tomado por uma
febre de crescimento - "braços, capitais, iniciativas, tudoo
Paulo absorve e devora, nada o sacia"
22
- o nordeste despontava
como o seu antípoda, estagnado "na fatalidade climatérica, na
indolência primitiva".
23
Os termos em que a questão era colocada
o deixava margem à dúvidas:
confrontando-se o Sul e o Norte do país,o se pode deixar de che-
gar à conclusão de que do Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro,
está o Brasil do progresso e daí para diante o Brasil histórico ... A
zona meridional do Brasil foi muito favorecida pelo trabalho inteli-
gente de uma imigração mais ou menos adiantada, que para ali se
encaminhou sequiosa de fortuna ... No Norte uma atmosfera
pesada, de estacionamento e dureza, envolve e entenebrece as suas
capitais.
24
Tais contrastes eram apreendidos em termos étnicos, o que
estimulava a elaboração de mapas a respeito da distribuição dos
vários blocos de população, assim como esforços com o intuito de
precisar suas características somáticas, psíquicas e culturais.
Em seu instigante artigo, Vivaldo Coaracy divisava a existên-
cia de dois Brasis: o do sul, área receptora de europeus e no qual
se processavam intensos cruzamentos; e o do norte, isolado, em
eterna luta contra uma natureza ingrata, dispondo apenas de seus
próprios recursos. Esses processos etnogênicos divergentes - lenta
sedimentação no norte e rápida europeização no sul - desembo-
cariam em tipos raciais diversoso só do ponto de vista físico,
mas também em suas tendências mentais e espirituais.o tarda-
ria o país para se defrontar com "duas caracterizações diferentes
21 O momento. RBR, v.19, n.73, p.3, jan. 1922; As construções emo Paulo.
RBR, v.25, n.99, p.277, mar. 1924 e SOARES, J. C. de M. Atividade paulista.
RBR, v.27, n.100, p.80-1, jan. 1925.
22 FREIRE, H. A formação das cidades. RBR, v.25, n.95, p.224, nov. 1923.
23 TAVARES, R. Resenha da obra São Paulo na Federação de Souza Lobo. RBR,
v.25, n.102, p. 168, jun. 1924.
24 MIRA, C. Aspectos do norte. RBR, v.l, n.3, p.347, mar. 1916.
de nacionalidade sob a unidade politica",
25
correndo assim o risco
de se dilacerar em partes completamente estranhas entre si.
Coaracy limitava-se a constatar que íamos a caminho da desin-
tegração, sem emitir juízos de valor a respeito do processo em
curso. Entretanto, esse distanciamento apolíneoo era a regra. No
seio da intelectualidade circulavam diferentes versões acerca do
receptáculo em que repousava a verdadeira alma brasileira. Analiti-
camente é possível distinguir, por um lado, aqueles queo escon-
diam sua admiração pelas áreas fortemente credoras da civilização
européia e, por outro, os que estavam absorvidos pela perspectiva
da criação de uma identidade e de uma etnicidade originais, que
distinguisse o país do restante da humanidade. Os primeiroso
hesitavam em descrever o sertanejo como um ser que possuiria
todos os vícios; quase um degenerado: embriaga-se nas feiras, joga
as cartas, cultiva como uma flor preciosa a velhacaria dos intrujões
na berganha dos animais. É mau, violento, pérfido, fácil de levar-se
até a desonestidade e o crime; os seus instintos sexuais, apurados na
indolência e na promiscuidade doméstica,o respeitam, muitas
vezes, os próprios laços de sangue e de filiação.
26
No pólo oposto, estavam os que buscavam inspiração em Eucli-
des da Cunha, que diferenciava o mestiço do litoral, definido
como degenerado; daquele do sertão, considerado retrógrado.
Tal separação favorecia o habitante do interior, permitindo tomá-
lo com ponto de partida para ao esperada raça brasileira. A ten-
dência aqui era valorizar o sertanejo, sua adaptação ao meio e cria-
tividade no aproveitamento dos recursos naturais.
27
Porém, tais
fronteiras estavam longe de ser rígidas uma vez que os espaços de
interseção variavam com as circunstâncias, sendo mais apropriado
recorrer à imagem do movimento pendular, com as suas infindá-
veis oscilações.
25 COARACY, V. Os dois Brasis RBR, v.19, n.76, p.310, abr. 1922.
26 BELLO, J. M. O sertão. RBR, v.9, n.33, p.125, set. 1918.
27 Para uma descrição das soluções originais forjadas pelo caboclo ver:
ROQUETTE PINTO, E. O Brasil e a Antropogeografia. RBR, v.4, n.12,
p.330-1, dez. 1916.
Ainda queo houvesse unanimidade quando se tratava de
estabelecer quantos eram os tipos nacionais,
28
parecia claro, pelo
menos para alguns, que as nossas possibilidades étnicas mais for-
temente se afirmariam nos rincões distantes, nos quais pulsava o
Brasil real, indiferente ao frenesi das cidades. A raça que aí habi-
tava, rebento ainda frágil, mal-saído do processo de decantação,
deveria ser protegida para ter chances de sobrevivência.
Nessa perspectiva, a imigraçãoo se constituía em um pro-
cesso isento de riscos. Se, de um lado, a presença no cadinho nacio-
nal "do nobre sangue europeu" era valorizada na medida em que
"agia sobre a nossa evolução quer como elemento de recomposi-
ção étnica, quer como fator econômico de prosperidade do
país",
29
de outro, parecia urgente evitar a completa submissão do
brasileiro a "povos mais fortes, mais enérgicos, mais afiados para
a luta, cheios de justas ambições de bem-estar e de justificáveis
idéias que lheso próprias".
30
Assim, esperava-se que as contribuições provenientes das
civilizações superiores se fundissem à brasilidade, num delicado
processo de incorporação que deveria nobilitar a identidade local
sem extirpar-lhe as idiossincrasias. Esse equilíbrio, por si sóo
28 Ibidem, p.325 e 330, defende a idéia de que o Brasil possuía três zonas popu-
lacionais: a de influência européia, a de influência africana e a zona do cabo-
clo, "onde se gerou o tipo étnico mais representativo do Brasil, onde se
esboçou uma raça". Já SERVA, M. P. A política e o sentimento da humani-
dade. RBR, v.4, n.13, p.9-10, jan. 1917 afirmava: "O seringueiro do extremo
Norte, o sertanejo do hinterland central, o caboclo do sul:o esses três tipos,
frutos de caldeamentos multisseculares, amálgamas confusos de brancos, pre-
tos e amarelos,o eles porventura a grande massa da população brasileira,
constituem o fundo da estrutura nacional, os três expoentes máximos da raça
brasileira". Enquanto GONZAGA, J. Estilo de arquitetura nacional. RBR,
v.18, n.69, p.95, set. 1921 lembrava que "Minas é ... um dos maiores blocos
de população consangüínea do mundo, e é sabido que esse tipo de mineiro se
tem alastrado para o Rio de Janeiro, Capital Federal, Espírito Santo, Sudeste
da Bahia, Goiás, Mato Grosso e Norte deo Paulo. Diferenciados desse tipo
predominante, só há o nortista, que campeia da Bahia ao Acre, o gaúcho
fronteiriço e quiçá o tipo do canoeiro dos grandes rios, por força da
adaptação ao meio. Temos, pois, quatro tipos, predominando o mineiro; é
este o nosso tipo de raça".
29 SOUZA, B. M. de. Imigração e indesejáveis. RBR, v.9, n.34, p.134, out. 1918.
30 AMARAL, A. Cuidar da infância. RBR, v.16, n.62, p.144, fev. 1921.
frágil, parecia ainda mais ameaçado em razão da política imigran-
tista que, ao concentrar grandes levas de população estrangeira em
áreas isoladas, acabava por favorecer os enquistamentos:
É desnecessário demonstrar a imprevidência notória da nossa
ação administrativa no que se refere à conservação do caráter nacional
e a defesa do nosso meio ambiente contra todos os processos lavra-
dos de desnaturalização que, aos poucos, seo infiltrando no orga-
nismo social brasileiro. Entre tantos documentos do nosso descaso
pelo fortalecimento do nacionalismo, basta recordar o que nos for-
nece a história da imigração no Brasil, com o encaminhamento de
grandes correntes de uma só nacionalidade para zonas relativamente
despovoadas do elemento nacional.
31
Noutras palavras, oo desejado desenvolvimento, indissolu-
velmente associado à figura do imigrante, de pouco valeria se a
contrapartida exigida fosse a própria nacionalidade. Daí a insis-
tência na difusão da escola elementar pública, considerada um ins-
trumento eficaz na propagação da língua, da cultura e das
tradições nacionais.
32
Apesar deo Paulo ter recebido os maiores contingentes de
estrangeiros, os prognósticos alarmistas concentravam-se na
região sul do país, uma vez que o modelo paulista, ao aliar a dis-
persão dos trabalhadores pelas fazendas a uma política educacio-
nal tida como exemplar, aparentemente tornava o Estado imune
aos enquistamentos. Tanto é que, quando Santa Catarina - região
tida como o "baluarte do germanismo ... onde a preponderância
do elemento estrangeiro é tanta que ali, mais do que em nenhuma
outra circunscrição do território pátrio, torna-se difícil resolver o
árduo problema da assimilação do elemento imigratório" - resol-
veu empreender uma ofensiva na área educacional, socorreu-se de
uma equipe paulista chefiada por Orestes Guimarães, nomeado
pelo governo catarinense Inspetor Geral de Ensino, e que deveria
31 FRANCO, A. de M. Pelo nacionalismo. RBR, v.7, n.27, p.305, mar. 1918.
Para uma crítica da livre atuação no país de profissionais liberais e padres
estrangeiros ver: MONTEIRO, T. Vigários estrangeiros RBR, v.5, n.17,
p.114, maio 1917.
32 Ver SCHMIDT, F. A. Nacionalismo. RBR, v.4, n.13, p.65-9, jan. 1917.
"aplicar a sua inteligência e longa prática no desenvolver as esco-
las primárias brasileira e, o que é melhor, em criar o sentimento
nacional".
33
A maneira comoo Paulo ia conciliando a presença do ele-
mento estrangeiro, o progresso econômico, o branqueamento e a
brasilidade era apresentada como mais uma manifestação do cará-
ter peculiar da elite paulista, que desde os seus primórdios teria
sido composta por um extrato étnico diferenciado do resto do
país: "desde os tempos coloniais somos raça, sub-raça, família ou
o quer que seja, positivamente definida entre as gentes brasilei-
ras... Em nós, de feito, predomina esse gênio da ação que ora se
apregoa como novo".
34
Desse modo, os seus feitos históricos e
hodiernos encontravam razão de ser na qualidade dos ancestrais,
fator que estaria na raiz do sempre destacado papel da região nos
destinos da nação: "São Paulo ... sempre foi na história do Brasil,
e tomara Deus jamais o deixe de ser, o índice fiel, honesto e hon-
roso da capacidade realizadora da nossa raça".
35
Pouco antes de publicar seu texto a respeito da excelência da
raça americana, Villar Belmonte exaltava o cruzamento ocorrido
no planalto de Piratininga entre tupis e colonizadores, do qual
teria se originado "o tipo selecionado do autóctone brasileiro".
Graças a esse encontro feliz "as energias da raça, em torrentes
civilizadoras, se concentraram nesta parte do Brasil". Em pouco
mais de meia página, o autor recorria a uma série impressionante
de imagens e metáforas com o objetivo de saudar a grandeza pau-
lista:o Paulo era chamado de Estado modelo, tórax do Brasil,
pulmões deo da indústria brasileira, coração do comércio nacio-
nal, ponto culminante da nossa civilização, célula da raça e do
progresso, órgão vivo das aspirações liberais e humanas, Estado-
33 SILVEIRA, C. da. Missões de professores paulistas. RBR, v.5, n.18, p.240,
jun. 1917. Também receberam missões paulistas os seguintes Estados: AL, ES,
MG, RJ e SE.
34 AMARAL, B. F. A reação da cultura. RBR, v.9, n.36, p.492, dez. 1918. Ver
do mesmo autor Paulistas e saxônios. RBR, v.21, n.84, p.378, dez. 1922,
artigo no qual compara esses dois tipos sociais.
35 Discurso de Godofredo Maciel na Câmara Federal. Apud FREIRE, H. A for-
mação das cidades. RBR, v.25, n.95, p.221, nov. 1923.
Escola da República, a parte viva do Brasil, os dois terços da pro-
dução nacional, força completa das unidades federativas, fiel vivo
do nosso crédito no exterior, gesto de comando para todo o resto
do Brasil.
36
Os malabarismos antropológicos de Belmonte desti-
navam-se a nobilitar os paulistas, exemplares da raça destinada a
dominar o planeta.
Oliveira Vianna, que tambémo disfarçava sua simpatia
pelos filhos de Piratininga, viu na publicação da Coleção de Inven-
tários e Testamentos uma boa oportunidade para buscar evidên-
cias que atestassem objetivamente a superioridade étnica que ele
vinha atribuindo à aristocracia e às classes abastadas deo Paulo.
No discurso que proferiu quando de sua admissão no Instituto
Histórico e Geográfico Vianna afirmou:
Certo, a hereditariedade étnicao basta, por si, como pen-
sam Lapouche e os da sua escola, para explicar esse fenômeno alta-
mente complexo que é a evolução de uma sociedade, mas, é também
fora de dúvida que é impossível compreender e explicar cientifica-
mente a história de qualquer povo sem levar em conta essa poderosa
determinante da conduta humana. Pelo menos,o sei como será
possível explicar certas particularidades da nossa histórica colonial,
especialmente o movimento bandeirante e o seu alto idealismo sem
fazer intervir o fator etnológico, sem recorrer aos subsídios da aná-
lise étnica.
37
Ele tentou determinar a fecundidade dessas camadas no período
compreendido entre 1578 e 1738, deparando-se com uma taxa
média de 4,2%, valor que considerou surpreendentemente
modesto, especialmente porque a pesquisa abrangia os séculos em
que "podemos surpreender a capacidade guerreira e colonizadora
dos paulistas no máximo de sua força e esplendor. Durante esse
largo período, os principais focos demogênicos deo Paulo lan-
çam por todos os quadrantes do país os seus enxames fecundos -
enxames de guerreiros; enxames de preadores, enxames de rastrea-
36 BELMONTE, V. O direito de voto. RBR, v.25, n.93, p.42-3, set. 1923.
37 OLIVEIRA VIANNA, F. J. O valor pragmático do estudo do passado. RBR,
v.27, n.108, p.295, dez. 1924.
dores de ouro, enxames de colonos, de rustícolas, de latifundiá-
rios".
38
Entretanto, Viannao se deu por vencido e contrapôs a
baixa fecundidade encontrada à excelência eugenística dessa aris-
tocracia, que ele julgava composta por "um tipo robustamente
providoo só de intrepidez e atividade, como de poderosa ambi-
ção", tomado por um "incoercível desejo de enriquecer-se, de
classificar-se, de dominar". Nesse meio habitado por fortes, "os
tímidos, os pusilânimes, os inertes, os indolentes como queo
tipos ausentes no seio daquela raça de preadores infatigáveis, de
alma adunca e avidez insaciável".
39
Sua admiração poro Pauloo se restringia ao passado.
Comentando a situação do Estado nos anos 20, referia-se ao
"grande milagre paulista dos nossos dias: a conquista do sertão, a
fundação da riqueza agrícola sobre bases modernas, a germinação
e a consolidação dos núcleos urbanos no interior, a repetição,
enfim, em escala mais limitada, mas muito mais sugestiva, das
façanhas do grande ciclo do ouro".
40
Contudo, era necessário
conciliar esse novo surto de atividade com as características do
nosso temperamento, que ele reputava fundamentalmente rural.
41
Vianna identificava emo Paulo um esforço deliberado para
multiplicar os centros urbanos pelo interior do Estado, o que esta-
ria gerando um regime de pequeno urbanismo que miraculosa-
mente ia conseguindo libertar os paulistas dos males da grande
urbanização, da cidade tentacular, que ele julgava pouco indicada
para povos como o nosso. Esse processo apresentava ainda a van-
tagem de fixar os elementos aristocráticos e eugênicos no campo.
Em contraposição, seu Estado, o Rio de Janeiro, estaria sucum-
38 OLIVEIRA VIANNA, F. J. Oscilação da taxa de fecundidade durante o ciclo
bandeirante. RBR, v.28, n.lll, p.194, mar. 1925.
39 Ibidem, p.200-1,
40 OLIVEIRA VIANNA, F. J. Carta a Hilário Freire. RBR, v.25, n.95, p.226,
nov. 1923.
41 OLIVEIRA VIANNA, F. J. Populações Meridionais do Brasil. RBR, 5, n.18,
p. 145, jun. 1917.
bindo ao grande urbanismo, apontado como a principal causa da
sua decadência.
42
o era possível apreender o progresso paulista como uma
criação postiça, sem raízes na terra, arremedo servil de outras civi-
lizações, argumentos normalmente arrolados pelos que criticavam
a admiração basbaque a tudo o que fosse estrangeiro. Ao contrá-
rio, justamente por resultar do desdobramento natural das poten-
cialidades étnicas dos habitantes, atestadas desde o tempo mítico
das origens, ele possuía autenticidade e feições próprias, o que ini-
bia qualquer referência à imitação ou cópia do estrangeiro.
Noutros termos, jáo se tratava mais de opor o Norte ao
Sul, o Litoral ao Sertão para, de forma maniqueísta, tentar distin-
guir o genuinamente nacional e a mera importação. O alentador
exemplo deo Paulo apontava para a possibilidade de síntese, ou
seja, tornar-se moderno, incorporando realizações e populações
provenientes de áreas "mais evoluídas", sem ter necessariamente
que abdicar de um projeto de brasilidade. Todo o modelo, de
caráter obviamente excludente, partia de um suposto núcleo
étnico paulista, dotado de qualidades primordiais. Nessa perspec-
tiva, o progresso do país como um todo dependia deo Paulo,
do seu benéfico imperialismo.
O repertório de análises que vinculava os destinos da nação
ao estatuto étnico dos seus habitantes já tinha, no período aqui
analisado, uma longa tradição. O material presente na Revista do
Brasil permite discernir deslocamentos e rearranjos que este tipo
de abordagem foi sofrendo com o correr do tempo, assim como
as tentativas, levadas a cabo pelos intelectuais que circulavam no
interior do paradigma racial, de encontrar uma saída honrosa
para um país multirracial, sem contudo abalar os alicerces das teo-
rias que professavam.
Sobressai aqui a figura de Oliveira Vianna, autor que ocupou
espaço considerável na revista, antes mesmo de adquirir visibili-
42 OLIVEIRA VIANNA, F. J. Carta a Hilário Freire. RBR, v.25, n.95, p.225-6,
nov. 1923.
dade no meio intelectual - basta lembrar que boa parte de Popu-
lações Meridionais foi publicada em primeirao nas páginas do
periódico. Lobato editou várias obras de Vianna, além de anunciá-
las com destaque nas propagandas da editora, resenhá-las na seção
Bibliografia e transcrever os comentários que elas suscitavam na
imprensa brasileira.
Note-se, porém, que a revista também abrigou um outro dis-
curso, articulado a partir de meados dos anos 10, e que teve em
Lobato e na revista um lugar privilegiado de construção e difusão:
a abordagem sanitária, que trouxe abalos significativos para a
apreensão da questão étnica. A análise da relação entre Monteiro
Lobato e o Jeca Tatu, uma das suas criações mais significativas,
constitui-se em rica oportunidade para percorrer as novas trilhas
mentais.
HIGIENE E EUGENIA
O Jeca do conto Urupês, publicado pela primeira vez no jor-
nal O Estado de S. Paulo em 23.12.1914, incapaz de evolução e
impenetrável ao progresso, arredio à civilização, vegetando no
seu isolamento e ignorância, indisciplinado e refratário ao traba-
lho árduo e contínuo de que tanto necessitava o país, reafirmava,
agora pela via literária, o rol de estigmas que pesava sobre a maioria
da população brasileira, corroída por uma inferioridade primor-
dial. Na figura caricata do caboclo de cócoras, Lobato enfeixou de
forma altamente expressiva as avaliações pouco lisonjeiras que ele
vinha tecendo sobre o Brasil e os brasileiros desde os tempos da
Faculdade de Direito.
43
Nessas assertivas pode-se rastear a influên-
cia de Le Bon, autor que ele próprio identificou como central na
sua formação intelectual.
44
43 Na produção lobatiana encontram-se referências pouco elogiosas ao caboclo
muito antes da publicação de Urupês. Ver: LOBATO, J. B. M., 1959a, v.I,
p.326-7 e 1959d, p.110.
44 Sobre a influência de Le Bom, ver: LOBATO, J. B. M., 1959a, v.1, p.59 e 185
e 1959c, p.221-5.
A rudeza com que Lobato descreveu seu personagem, se, por
um lado, parecia confirmar as avaliações feitas pelos que procla-
mavam a inferioridade racial da grande maioria do povo brasi-
leiro, por outro, abalou uma determinada visão idílica do campo,
cultivada por certos setores da literatura, assim como incomodou
os que tinham o sertão como berço da raça brasileira em elabora-
ção. Esse contexto certamente colaborou para criar uma polêmica
em relação ao grau de verossimilhança entre ficção e realidade,
que se tornou ainda mais acesa quando, em 1919, Rui Barbosa
citou o personagem no seu famoso discurso sobre a questão social.
O enorme poder evocativo do Jeca permitiu que ele fosse
mobilizado com propósitos muitas vezes contrastantes. Assim,
para alguns ele era o retrato fiel do homem sertanejo do norte e
do sul do país, estagnado na escala evolutiva, uma quantidade
negativa, nas palavras do seu criador, inapto para enfrentar os
desafios da modernização. Vozes possantes, como a de Câmara
Cascudo, saíram em defesa do escritor:
Jeca na porta do casebre, sentado no calcanhar, sugando a
terra, ociosa e triste, é peculiar a todo o norte do Brasil...o quer
dizer que o sertanejo ... seja literalmente um Jeca Tatu. Porém, quem
viaja e quem vê pelo sertão o fatalismo sertanejo, a limitação da sua
agricultura, a instintiva desconfiança pela civilização, a sua habitual
indolência que o faz esquecer a rude lição das secas e nada encelerar
nos anos de inverno, a sua palestra, a sua ignorância política, enfim,
os remédios populares, a ingênua crendice dos curandeiros e das
meizinhas verá a imensa verdade das páginas vivas do Urupês.
45
A sua decantada incapacidade de compreender as noções ele-
mentares da política, era invariavelmente citada pelos críticos do
projeto liberal, que colocavam em dúvida a viabilidade do jogo
democrático em um país habitado por Jecas.
De outra parte, o abandono em que vegetava a população do
interior também permitia apresentar o personagem como uma
45 CÂMARA CASCUDO, L. da. A humanidade de Jeca Tatu. RBR, v.15, n.57,
p.84, set. 1920. Ver, também, BELLO, J. M. O sertão. RBR, v.9, n.33, p.12-
5, set. 1918 e VIANNA, U. Zepha. RBR, v.53, n.88, maio 1920.
pobre vítima da irresponsabilidade social de governos que só se
preocupavam em cobrar impostos.
46
Tambémo faltaram inter-
pretações que apresentavam o Jeca como produto do meio. Assim,
sob a influência benéfica das terras férteis do oeste paulista: "o Jeca,
até agora miserável no paupérrimo e ainda atrasado Norte pau-
lista, se transfigurou com a terra do Oeste e, com ele, sua prole ...
Os filhos do sertão fizeram-se homens nessa escola de trabalho
remunerador e organizado, ganharam ambições, demonstraram
iniciativas, conquistaram posição de alto prestígio".
47
Entretanto,
ninguém mais do que o próprio Lobato contribuiu para dar ao
Jeca outras dimensões.
A eclosão da Primeira Guerra Mundial subverteu o mercado
de trabalho internacional, privando o Brasil da mão-de-obra farta
e barata até então fornecida pela Europa. Essa nova conjuntura
coincidiu com o predomínio, nessa altura inconteste, do para-
digma microbiano e bacteriológico que, graças aos trabalhos de
Pasteur e Koch, propiciaram uma outra compreensão da causa das
doenças, suas formas de transmissão e cura. A identificação dos
agentes etiológicos das doenças infecciosas propiciou o desenvol-
vimento de vários métodos de imunização e combate aos vetores
e seus reservatórios naturais. Surgiram métodos específicos de
profilaxia, normalmente bastante eficazes, que levaram alguns a
acalentar o sonho de que todo e qualquer mal poderia ser reme-
diado pelo novo saber:
A velha medicina - ainda aí presente, recalcitrante, impenitente
e por força de rotina sobrevivente durante muitas décadas ainda - é
a medicina curativa, remedieira, terapêutica. A nova medicina - já
instalada e propagada, de mais em mais, embora a crendice, a igno-
rância, o misoneismo -, é a medicina preventiva, a higiene, a profi-
laxia ... A nova medicina funda-se, pois, no conhecimento da causa
ou etiologia das doenças, de onde a oposição que a corrige ou
suprime, a prevenção que a evita e faz desaparecer. É a ela que per-
46 Ver: Resenha de Poemas Bravios, Camilo da Paixão Cearense. RBR, v.19,
n.75, p.255, mar. 1922 e Resenha de Brutos e Titãs de Altamirando Requião.
RBR, v.25, n.95, p.277-8, nov. 1923.
47 STEVENSON, C. Na terra roxa. RBR, v.15, n.59, p.226, nov. 1920.
tence toda essa maravilhosa eclosão de ciências da família da Higiene
- a Microbiologia, a Parasitologia, a Imunoquímica, a Quimiotera-
pia, a Dietética, a Fisioterapia, a Eugênica que representam as forças
novas de ação contra a doença, inventadas pelo gênio humano ... Se
eliminarmos as doenças parasitárias, infectuosas e tóxicas, teremos
eliminado logo imediatamente quota imensa daquelas que lheo
consectárias. Parao perder tempo no debate basta indagar: quan-
tas doenças orgânicas, constitucionais, hereditárias, cardiopatias,
cirroses, nefrites, epilepsias, degeneraçõeso se suprimirão, aca-
bando com o alcoolismo? Só a sífilis é metade da patologia: noventa
e cinco por cento dos aneurismas dos grandes vasoso dessa causa
específica ... A Higiene é uma nova medicina, de menos de um
século ... Mas a Higiene apareceu, tornou-se moda, impôs-se como
hábito e se vai impondo como necessidade. A vacina salva milhões
de vidas ... O advento da Microbiologia, procurando o conheci-
mento da causa das doenças, altera a face do mundo, dando a espe-
rança e já a certeza da vitória sobre a doença. A difteria, a raiva, a
peste, a febre tífica, o tétano, o carbúnculoo prevenidos; elas
mesmas e outras tantaso curadas; todaso agredidas pela noti-
ficação compulsória, o isolamento, a desinfeção ... Como da Astro-
logia saiu a Astronomia, da Alquimia saiu a Química, sai da
Medicina a Higiene.o é má sorte das larvas produzirem borbo-
letas.
48
O combate às epidemias que assolavamo Paulo e o Rio de
Janeiro, dificultando o pleno funcionamento da economia agro-
exportadora e afastando de seus portos os trabalhadores estran-
geiros, levou os poderes constituídos a criarem, na virada do
século XIX, um aparato legal para regular os serviços sanitários,
assim como um conjunto de instituições - os Institutos Mangui-
nhos (RJ), Butantã, Vacinogênico e Bacteriológico (SP). Esses cen-
tros passaram a ditar os rumos da saúde pública e seus mais
ilustres membros, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Emílio Ribas, Car-
los Chagas, Belisário Penna, Artur Neiva, entre outros, exerceram
posições de comando na área (Mascarenhas, 1949 e 1973; Merly,
1987; Costa, 1985).
48 PEIXOTO, A. A antiga e a nova medicina: a higiene. RBR, v.8, n.32, p.354-61,
ago. 1918.
As vitórias de Oswaldo Cruz sobre a malária, a febre amarela,
a varíola e a peste bubônica acabaram por dobrar as resistências
impostas pelos detratores das novas práticas. (Carvalho, 1987,
Stepan, 1976; Brito, 1995). A Higiene, ungida pelo prestígio que
somente a ciência era capaz de conferir, adentrava o cotidiano dos
indivíduos, inspecionando, vigiando e controlando por meio de
um conjunto de normas, cuidados, prescrições e recomendações.
As péssimas condições sanitárias da população rural brasi-
leira, que motivaram a famosa máxima de Miguel Pereira profe-
rida em 1916 - o Brasil é um vasto hospital -o se constituía
propriamente em uma novidade. Entretanto, sua afirmação
encontrou terreno extremamente propício para frutificar. Na
mesma época, outros higienistas como Belisário Penna, Artur
Neiva e Afrânio Peixoto também começaram a denunciar sistema-
ticamente o quadro desolador do interior do país. Penna, com a
autoridade de quem, juntamente com Neiva, percorreu durante
vários meses sertões distantes,
49
avaliava que mais de dois terços
dos habitantes
se definham, se abatem, se degradam e se arruinam, chupados e
empreguiçados pelos vermes intestinais; picados, sugados e intoxi-
cados por mosquitos, percevejos e barbeiros; a bater queixos, a car-
regar baços colossais; ou aleijados, paralíticos, cretinos, papudos e
cardíacos, com o sangue e tecidos repletos de protozoários patogê-
nicos; roídos e apodrecidos em vida pela lepra e pelas úlceras; cegos
pelo tracoma, pela varíola, pela sífilis e pelas gonococcias; aviltados
pela cachaça; entocados em pocilgas de taipa e palha; e atolados na
mais espessa ignorância de rudimentares preceitos de higiene, sufi-
cientes para livrar a coletividade de doenças transmissíveis, para
apurar e melhorar a raça, e arrancar-lhe o infamante labéu, infeliz-
mente até certo ponto verdadeiro, de preguiçosa e incapaz, devido
às doenças, cujos focos se multiplicam incalculavelmente em
milhões de indivíduos incurados, abandonados, portadores de ver-
49 Penna e Neiva, vinculados ao Instituto Oswaldo Cruz, realizaram em 1912
uma expedição médico-científica ao interior. O relatório, no qual apresenta-
vam um diagnóstico do estado de saúde da população sertaneja, foi original-
mente publicado na série Memórias do Instituto Oswaldo Cruz em 1916 e
pode ser considerado, pela enorme repercussão que alcançou, o texto funda-
dor do sanitarismo.
mes e de germens, para serem inoculados nos incautos, pela terra,
pela água, pelos alimentos, pelas moscas e pelos mosquitos barbei-
ros; foi preciso que a tremenda conflagração européia nos impossi-
bilitasse a importação de mais lenha humana de boa qualidade para
queimar criminosamente nessa fogueira de endemias evitáveis, ou
deixar até esfarelar-se; foi preciso que a nação fosse arrastada até o
descrédito, e levada às portas da falência moral e material, por uma
série de aventuras, de erros e de crimes, praticados à luz do dia; foi
preciso tudo isso, para começarmos a enxergar as misérias da nossa
gente, e o criminoso abandono em que a havíamos deixado, taxada
de incapaz, e marcada inconscientemente com o ignominioso ferrete
de raça vil e desprezível, indigna de ocupar um lugar na face da
terra.
50
Descrições do gênero, eivadas de dramaticidade, tornaram-se
lugar comum. Recorria-se a cifras e porcentagens, inventariavam-
se doenças, como que para dar um sentido literal à frase de Miguel
Pereira. Exemplar, nesse sentido, era o relatório de Oswaldo Cruz
a respeito das condições sanitárias da área em que estava sendo
construída a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Afirmava o sani-
tarista que "a região está de tal modo infectada que a sua popula-
ção não tem noção do que seja o estado hígido e para ela a
condição de ser enfermo constitui a normalidade".
51
Também os artigos publicados no Estado no decorrer de
1918 por Monteiro Lobato, que se engajou apaixonadamente na
campanha em prol do saneamento, ilustram a mesma tendência,
bem expressa nos títulos: Dezessete milhões de opilados; Três
milhões de idiotas; Dez milhões de impaludados. Este material foi
posteriormente enfeixado no livro Problema Vital, editado pela
Revista do Brasil sob o patrocínio da Liga Pró-Saneamento e da
Sociedade Paulista de Eugenia, com prefácio de Renato Kehl.
O surgimento no horizonte do concebível da possibilidade de
apreender a questão étnica a partir de uma lógica higienista apre-
50 PENNA, B. Pequenos cuidados higiênicos. RBR, v.9, n.33, p.4, set. 1918.
51 Apud PEIXOTO, A. O problema sanitário da Amazônia. RBR, v.7, n.28,
p.411, abr. 1918, grifo no original. O problema atingia também as popu-
lações urbanas, como ressaltou AMARAL, A. O saneamento do interior do
país. RBR, v.6, n.22, p.251, out. 1917.
sentou-se para os homens da época como uma verdadeira revela-
ção. Para expressar sua surpresa diante de uma verdade agora
tornada óbvia, mas antes jamais suspeitada, eles recorriam à metá-
fora da cortina que se abre, rompendo ou de naturalidade e for-
çando a ver o que antes estava oculto:
Depois dos estudos de Carlos Chagas, de Artur Neiva, e mais
intemeratos discípulos de Oswaldo Cruz, e depois das veementíssi-
mas palavras de Belisário Penna, governo nenhum, nenhuma associa-
ção, nenhuma liga pode alegar ignorância. O véu foi arrancado. O
microscópio falou. A fauna mentirosa dos apologistas que vêem
ouro no que é amarelo e luz na simples fosforescência pútrida, reco-
lhe os safados adjetivões que vendaram durante tanto tempo os
olhos da nação.
52
De fato, tratava-se de uma outra ordem de argumentos que
convidava a relativizar o determinismo estrito então dominante.
Ainda que grande parte da intelectualidade se mostrasse
seduzida pelo discurso higienizador, é preciso assinalar que nem
todos estavam afinados no mesmo tom. Comentando o famoso
relatório Penna-Neiva, João Ribeiro qualificava de exagerada a
opinião dos autores, que atribuíam a falta de esforço dos sertane-
jos à ação deprimente das doenças. Depois de ressaltar quão
recentes eram as vitórias da medicina contra a malária, a anquilos-
tomíase, a doença de Chagas etc, afirmava que a população era
inutilizada e destruídao por infecções mas pelo "visco da baba
política. É ela quem estorva, despovoa, depaupera, empobrece,
escraviza e confisca". Exemplificando com uma pequena cidade
do Piauí, cuja população era apontada como irremediavelmente
doente, Ribeiro lembrava que o governo "a troco de um juiz de
direito e quatro soldados de polícia, lhes arrecada para mais de
cem contos de réis anuais ... Bem se vê que o hospital dá alguma
52 LOBATO, J. B. M. O saneamento do Brasil. RBR, v.7, n.28, p.305, mar.
1918, grifo meu. Ver, também, PENNA, B. Pequenos cuidados higiênicos.
RBR, v.9, n.33, p.4-5, set. 1918; SOUZA, B. M. de. Imigração e indesejáveis.
RBR, v.9, n.34, p.134, out. 1918 e a Resenha da segunda edição de Sanea-
mento do Brasil, de Belisário Penna. RBR, v.25, n.93, p.75, set. 1923.
coisa". Atenuava a força da explicação sanitária contrapondo os
sertões às cidades:
Os sertões do Norte, como os do centro do Brasil,o salubér-
rimos; a temperatura é, ali, agradável e amena; há grandes zonas de
verdura e de águas perenes; as doenças características da região nada
oferecem de gravidade e o tratamento ou a profilaxiao coisas
positivas, fáceis. Muito maior é nas cidades o perigo de outras epi-
demias, da sífilis, da varíola, da tuberculose, até hoje, invencíveis. As
próprias nevroses do sertão como o chamado vexame e outras que
taiso quase toleimas e cismas sem vulto.
53
Sem dúvida, no interior do novo saber o clima beneficiou-se
na medida em que as regiões tropicais deixaram de ser condena-
das enquanto hábitat pouco propício aos seres humanos. A idéia
de que as zonas quentes possuíam seus próprios males, ou seja,
uma patologia peculiar, exótica em relação à européia, passou a
ser duramente contestada:
A nossa nosologia se compunha, assim, de doenças que eram
próprias ao nosso clima, denominadas tropicais, e de outras que,
sobre serem comuns a ambos os continentes (Europa e América), se
revestiam, aqui, mercê de fatores mesológicos, de fisionomia dife-
rente, que as tornavam, por vezes, irreconhecíveis ao estalão clás-
sico.s tínhamos desse modo a nossa patologia própria, especial
... Ora, em tudo isso que aí está há um grande erro de observação, a
par do esquecimento de que as doenças, quaisquer que elas sejam, e
onde quer que apareçam, apresentam certas tonalidades ou matizes,
acentuações ou esmaecimentos das suas cores sintomáticas ... Em
qualquer clima ou latitude, uma determinada doença está sujeita às
mesmas contingências queo há de fugir.
54
Foi introduzida uma distinção essencial entre situação climá-
tica, encarada como um dado natural, e o grau de salubridade,
esse último passível de ser manipulado pela ação humana: "não é
o clima a maldição irremovível que pesa sobre aquelas regiões
[amazônica]: é a insalubridade, essa removível, saneável, que se
53 RIBEIRO, J. O Brasil esquecido. RBR, v.6, n.24, p.557-9, dez. 1917.
54 CAMPOS, O. P. de. Verdades clínicas. RBR, v.26, n.105; p.67-8, set. 1924.
deve tentar e realizar sistematicamente,o num trecho, mas em
todo o território, e por todos os meios idôneos em higiene para
lhe conseguir com o saneamento a redenção".
55
Está patente aqui
a confiança no saber técnico, que graças ao seu poder de interven-
ção, submete, transforma e molda o ambiente, numa atitude que
guarda similaridade com o trabalho das divindades.
Monteiro Lobato chegou mesmo a desenvolver uma curiosa
teoria para explicar a aparente incongruência entre o esplendor
da flora e da fauna nas regiões quentes e o "tremendo parênteses
de exceção aberto pelo homem. Onde tudo alcança o apogeu, só
ele o rei, decai".
56
Apoiando-se na relação de causa e efeito entre
calor e vida, Lobato postulava a exuberância biológica das áreas
quentes, a qual era estendida ao mundo microbiológico, infestado
com uma eclosão sem similar de organismos nocivos.
A vida civilizada teria minado as resistências naturais do
homem, tornando-o capaz de viver com relativa saúde apenas nos
climas temperados ou gélidos, nos quais a vida tinha seu esplen-
dor refreado pelo frio. Organicamente despreparado para enfren-
tar as agressões provenientes da abundante vida tropical, nessas
plagas os seres humanos pareciam fadados a degenerar. Porém,
graças aos avanços da higiene, o mal poderia agora ser remediado,
permitindo
erguerem-se grandes empórios nas zonas até aqui condenadas. Ela,
só ela, permitirá criar na terra brasileira uma civilização digna desse
nome. O nosso estado profundo de degenerescência física e deca-
dência moral, provém, exclusivamente disso: desaparelhamento da
defesa higiênica. O nosso povo, transplante europeu feito em época
de magros conhecimentos científicos, foi invadido pela microvida
tropical, e verminado intensamente, sem que nunca percebesse a
extensão da mazela. Só agora se faz o diagnóstico seguro da doença,
e surge uma orientação científica para a solução do problema da
nossa nacionalidade, ameaçada de desbarato pelo acumulo exces-
sivo de males curáveis, evitáveis e jamais curados ou evitados - por-
que sempre ignorados, quandoo criminosamente negados.
55 PEIXOTO, A. O problema sanitário da Amazônia. RBR, v.7, n.28, p.411, abr.
1918.
56 LOBATO, J. B. M. As novas possibilidades das zonas cálidas. RBR, v.8, n.29,
p.3, maio 1918.
Desfeitos todos os véus de ufania ... o caminho está desempeçado
para a cruzada salvadora.
57
Um aspecto importante e que merece ser destacado é a con-
fiança,o bem expressa por Lobato, nas possibilidades abertas
pelo controle das endemias e doenças infecto-contagiosas, como
se a eficiência da higiene independesse do lugar, condições ou cir-
cunstâncias. Se o diagnóstico dos males que afligiam a população
era carregado com cores fortes, a solução parecia depender ape-
nas da boa vontade das autoridades constituídas, que precisavam
tomar consciência da gravidade do problema. Aliás, com esse
objetivo, em 1918, foi criada por Penna, Carlos Chagas, Neiva,
Miguel Pereira, Vital Brasil, Monteiro Lobato, Renato Kehl, Afrâ-
nio Peixoto, entre vários outros, a Liga Pró-Saneamento do Brasil.
As propostas da Liga em favor da centralização administrativa dos
serviços de saúde, expansão de suas áreas de atuação, remodela-
ção das instituições existentes, implementação de projetos, nem
sempre pautados pelos mesmos ideais, estão expressos na revista
Saúde, por ela editada (Hochman, 1993).
A Revista do Brasil publicou abundante material sobre a ques-
o sanitária. Ela passou às mãos de Lobato em meados de 1918,
exatamente no momento em que os debates em torno do tema
atingiam seu ponto de maior efervescência. Uma de suas primeiras
atitudes à frente do periódico foi providenciar a organização de
uma edição especial dedicada ao problema, que acabouo se
concretizando pelo fato de os artigoso terem chegado em
tempo hábil. A revista acabou por publicá-los separadamente ao
longo de vários números.
Porém, mesmo antes de Lobato assumir a direção, o mensário
já abria espaço significativo para esse tipo de discussão, publi-
cando ensaios inéditos ou transcrevendo grande quantidade de
artigos de médicos, higienistas e intelectuais; noticiando desco-
bertas e avanços na área; abrigando polêmicas quanto aos proces-
57 Ibidem, p.7-8. Essao era a primeira vez que Lobato ensaiava largas inter-
pretações. No início de 1918, pouco antes de se engajar na campanha em prol
do saneamento, publicou artigo subordinando todos os nossos males à falta
de azoto, tese defendida por J. Teixeira de Freitas e que Lobato logo encam-
pou. LOBATO, J. B. M. A nossa doença. RBR, v.7, n.25, p.3-12, jan. 1918.
sos de transmissão e cura das doenças; práticas que se intensifica-
ram ainda mais com o novo proprietário. Desse amplo material,
sobressai uma intenção didática: informar o leitor a respeito de
cada uma das principais doenças, seu histórico, formas de contá-
gio, estratégias de combate e prevenção.
58
Esse saber acumulado pela ciência, disponível para ser utili-
zado, era considerado de fácil aplicação. É sintomático que Belisá-
rio Penna intitulasse "Pequenos cuidados higiênicos" o artigo que
escreveu especialmente para a Revista do Brasil. O sanitarista acre-
ditava que os males que afligiam os brasileiros poderiam ser supri-
midos com pouco esforço. É interessante observar a persistência
com que se pretendia subordinar as dificuldades do país a um único
fator, passível de ser contornado ou resolvido com medidas relati-
vamente simples. Para Bilac e a Liga Nacionalista tratava-se de
implantar o serviço militar obrigatório; Lobato apontava a falta de
azoto como raiz de todos os nossos males; os higienistas pediam a
erradicação das pestilências; os liberais clamavam por reformas
constitucionais, enfim as soluções pareciam depender apenas de
alguma dose de boa vontade. Amadeu Amaral afirmava que:
O problema brasileiro, que apresenta tantos aspectos, é pri-
mordialmente uma questão que incide na esfera do médico ... Todas
as moléstias que assolam o interior do Brasil, desde o impaludismo
até a terrível tripanosomíase brasileira, constituem espécies mórbi-
das rigorosamente estudadas, cuja etiologia e profilaxia além de
conhecidaso de fácil execução.
59
o se conclua que esta era a opinião de um leigo. Penna
lembrava que o impaludismo poderia ser resolvido com a quinina,
58 Ver: FERRAZ, J. As estiagens e a febre tifóide emo Paulo. RBR, v.2, n.5,
p.72-6, maio 1916; ROQUETTE PINTO, E. Beribéri. RBR, v.7, n.28, p.381-2,
abr. 1918; BARBOSA, P. País leproso. RBR, v.7, n.29, p.98-9, maio 1918;
CHAGAS, C. Trypanosomiase Americana. RBR, v.8, n.32, p.362-8, ago.
1918; PEIXOTO, A. Outros males. RBR, v.9, n.35, p.249-71, nov. 1918;
SARDINHA, J. J. da S. As epidemias de cólera morbos no Brasil. RBR, v.10,
n.37, p. 114-6, jan. 1916; THEOPHILO, R. O contágio da varíola. RBR, v.28,
n.71,p.230-6, nov. 1921.
59 AMARAL, A. O saneamento do interior do país. RBR, v.6, n.22, p.252, out.
1917.
que o Estado deveria fazer chegar a todos os recantos do país por
preço simbólico; a anquilostomíase, que ele julgava contaminar
70% da população, seria erradicada por meio da obrigatoriedade
de se construírem fossas e instalações sanitárias "simples, rudi-
mentares que fossem", do uso do calçado e da distribuição, gratuita
ou por valor ínfimo, de medicamentos curativos da doença;
enquanto para eliminar a varíola bastaria decretar a vacinação obri-
gatória, "embaraçada até agora pelo receio da turba ignorante, e da
propaganda insensata de meia dúzia de sectários ortodoxos".
60
Propostas semelhantes foram feitas para o tracoma, a lepra, a
ferida brava, o ofidismo... A aparente simplicidade com que se
poderia resolver todos os problemas tornava ainda mais acerbas as
críticas ao governo que, por ignorância, insensibilidade e interesses
políticos menores, parecia pouco seduzido pelas conclusões lógicas
e naturais da ciência. Penna lamentava o descaso com que as auto-
ridades encaravam as questões de saúde pública e a "fobia que sem-
pre revelaram pela higiene e pelos higienistas, desprezando os seus
conselhos, negando-lhes recursos para cabal desempenho dos seus
encargos, criando-lhes toda sorte de embaraços, e considerando de
nenhuma importância as suas funções".
61
Esse tratamentoo
pouco respeitoso parecia ainda mais absurdo na medida em que os
trabalhos dos sanitaristas brasileiros vinham obtendo reconheci-
mento e respeito no cenário científico internacional.
62
Se até há pouco a inexpressividade desse país imenso era
encarada como atestado da incapacidade de um povo mestiço,
que portava nas veias um sangue corrompido, agora, graças às
perspectivas abertas pela higiene, tornava-se possível introduzir
uma revigorada sensação de confiança no futuro. Os propugnado-
60 PENNA, B. Alcoolismo, opilação e impaludismo. RBR, v.6, n.23, p.443-4,
nov. 1917. Opinião idêntica foi expressa por BRANT, M. A valorização do
brasileiro. RBR, v.7, n.28, p.302, abr. 1918. Os efeitos terapêuticos da quina
e a necessidade do governo assumir a responsabilidade pela aquisição e dis-
tribuição do produto, cujo preço havia aumentado muito em virtude da
guerra européia foram discutidos por: O. F. (não identificado) A quina. RBR,
v.13, n.49, p.85-91, jan. 1920 e PEIXOTO, A. O problema sanitário da
Amazônia. RBR, v.7, n.28, p.412 e 415, abr. 1918. Quantos aos sectários e
ortodoxos referidos na citação de Penna, ver: SODRÉ, A. A higiene no Rio
Grande do Sul. RBR, v.14, n.54, p.152-6, jun. 1920.
61 PENNA, B. Pequenos cuidados higiênicos. RBR, v.9, n.33, p.3, set. 1918.
62 NEIVA, A. Oswaldo Cruz. RBR, v.4 , n.15, p.335, mar. 1917.
res da campanha em prol do saneamento desde logo estabelece-
ram conexões entre o estado mórbido dos habitantes e os
interesses econômicos e sociais da nação. Comentando o exemplo
de monges franceses que fundaram a Trapa Maristela à beira do
Paraíba, no Tremembé, Lobato louvava a preocupação revelada
pelos religiosos de primeiro alimentar os habitantes do lugar, curar
suas doenças, instalá-los em casas higiênicas, donde resultou:
uma produção de 15 a 20 mil sacas de arroz, extraídas de uma terra
que vivia a monte, por meio de músculos definitivamente classificados
pela opinião geral como equivalentes a zero. O exemplo é frisante.
Mostra o caminho a seguir, e mostra o erro dos nossos governos em
nunca levarem em conta, para solucionar o problema do trabalho
agrícola, a parte da higiene ... E mister, curando-o, valorizar o homem
da terra, largado até aqui no mais criminoso abandono. Curá-lo é
criar riqueza. É estabelecer os verdadeiros alicerces da nossa restaura-
ção econômica e financeira. (Lobato, 1956b, p.284)
Nada mais urgente, portanto, do que redimir a massa de
impaludados e opilados, salvá-los das garras da fauna microbiana
que lhes debilitava o vigor e o viço. A imigração, antes defendida
como solução econômica e etnicamente desejável, começava a ser
questionada:
O dinheiro gasto nessas liberalidades [importar, hospedar, ins-
talar imigrantes, dar-lhes lotes de terra e casas, instrumentos agríco-
las, sementes, assistência médica...] seria, dos pontos de vista moral,
político e econômico, muito mais bem aplicado em socorrer, curar,
reerguer da invalidez e da inutilidade um número muitas vezes
maior de brasileiros ... Desde que se restaure a saúde do sertanejo, e
que se torne cada adulto nacional capaz de produzir a mesma quan-
tidade de trabalho que o imigrante, o problema do braço para a
lavoura está resolvido.
63
De uma interpretação racial dos problemas sociais migrava-
se para uma interpretação sanitária. O habitante do sertão, antes
tido como espécime inferior e inapta para a civilização, passava
agora à condição de vítima, injustamente caluniado e criminosa-
mente abandonado à própria sorte, sem saúde, justiça ou educa-
ção. Em texto de 1923 Oswald de Andrade referia-se à vingança
63 BRANT, M. A valorização do brasileiro. RBR, v.7, n.28, p.302, abr. 1918.
do Jeca que, se originalmente vinha marcado pela negatividade,
acabou revertendo a situação em seu favor:
A obra de ficção desejada por Machado de Assis, realizou-se com
a criação do tipo de Jeca Tatu. Era o inseto inútil da terra magnífica
que, para gozar um espetáculo e ter uma ocupação, queimava as
matas ... O símbolo vingou-se. A imaginação popular viu nele o Brasil
tenaz, cheio de resistências físicas e morais, fatalizado maso fatalista,
tendo adotado, pelas circunstâncias das suas origens e do seu exílio,
esta espécie de vocação para a infelicidade, observada inconsciente-
mente pelos etnólogos e romancistas. Lobato conveio que Jeca Tatu
queimava as matas para deixar ao imigrante novo a possibilidade de
estender a "onda verde" dos cafezais. Ele era o precursor da riqueza
americana, aberta a todas as tentativas das raças viris.
64
Nos artigos que publicou na imprensa ao longo de 1918,
Lobato engrossou o coro dos higienistas que inocentavam o nosso
clima e a nossa raça, numa autocrítica que redimia o Jeca:
A nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e
adaptação. É boa por índole, meiga e dócil. O pobre caipira é positi-
vamente um homem como o italiano, o português, o espanhol. Mas é
um homem em estado latente. Possui dentro de si grande riqueza em
forças. Mas força em estado de possibilidade. E é assim porque está
amarrado pela ignorância c falta de assistência às terríveis endemias
que lhe depauperam o sangue, caquetizam o corpo c atrofiam o espí-
rito. O caipirao é assim. Está assim. Curado, recuperará o lugar a
que faz jus no concerto etnológico. (Lobato, 1956b, p.285)
Ele reconhecia que a raça do Jeca era a mesma dos bandeiran-
tes, apenas enfraquecida por um rol de pestilência que se vinham
perpetuando de pai para filho. Essa fé pueril, que o escritor com-
partilhava com boa parte dos sanitaristas, levou-o a confessar que
"respiramos hoje com mais desafogo. O laboratório dá-nos o
argumento por que ansiávamos. Firmados nele contraporemos à
condenação sociológica de Le Bon a voz mais alta da biologia"
(Lobato, 1956b, p.298).
64 ANDRADE, O. O esforço intelectual do Brasil contemporâneo. RBR, v.24,
n.96, p.386-7, dez. 1923.
A erradicação das doenças infecto-contagiosas e das endemias
assumia feições de uma cruzada, que tinha por meta possibilitar a
implantação de um sistema de trabalho eficiente, produtivo, dentro
dos parâmetros exigidos pela economia de mercado. Reabilitar e
valorizar o brasileiro, ou melhor, discipliná-lo, adestrá-lo, mora-
lizá-lo para transformá-lo em um agente capaz de concretizar as
inumeráveis potencialidades da terra, esse o ideal apregoado pelos
apóstolos do discurso higienizador.
Para atingi-lo, preconizava-se a imediata adoção de um
amplo conjunto de medidas, planejadas, controladas e executadas
pelos homens de ciência, detentores de um saber técnico e espe-
cializado, e que deveriam ser investidos pelos poderes públicos de
uma ampla autonomia. Esses cruzados modernos, manipuladores
competentes das verdades científicas, propunham-se a atuar como
um exército, hierárquica e racionalmente organizado, no qual
cada um tinha atribuições precisas, para livrar a nação dos males
que a corroíam.
Evocava-se o exemplo da guerra européia com o intuito de
demonstrar a imensa capacidade de mobilização do Estado, que
dispunha de instrumentos aptos a fazer cada um dos habitantes
sentir o peso de sua ação. Tal poder deveria selar aliança com
Uma organização como a de que Oswaldo Cruz tinha o dom ...
baseada nas regras deduzidas do sistema de Taylor, e associada a
métodos de propaganda simplíssimos e eficacíssimos ... poderia
levar dentro de pouco tempo assistência médica a todas as choças de
uma vasta região flagelada e a todos os seus habitantes, um por um.
Dentro do mesmo curto prazo todos eles, das crianças aos velhos,
poderiam estar dotados das seguintes noções: a) a causa das malei-
tas, da opilação, do bócio; b) o meio de evitar essas três doenças; c)
como se curam as duas primeiras.
65
Concomitantemente às medias de cunho coercitivo - vacina-
ção obrigatória, combate aos vetores, desinfecção das habitações,
notificação compulsória das doenças contagiosas, isolamento dos
65 BRANT, M. A valorização do brasileiro. RBR, v.7, n.28, p.302, abr. 1918. O
caráter militar que permeava as propostas higienizadoras foi colocado em evi-
dência por HARDMAN, F. F., 1988, p.150-2.
doentes -, Belisário Penna advogava a realização de intensa cam-
panha de esclarecimento que deveria penetrar nos lares, fábricas,
escolas e fazendas por meio de propaganda vasta, tenaz, insis-
tente, pela palavra, pelo folheto, pelo cinema, pelo gramofone,
pelo cartaz a fim de que "esses ensinamentos higiênicos se infiltrem
no cérebro do nosso povo". O autor insistia ainda que a linguagem
deveria ser simples e valer-se das expressões empregadas pelo
povo, de comparações, imagens, gravuras e fotografias impressio-
nantes, "sem fugir à realidade dos fatos, que ele conhece, maso
sabe observar; as ligações entre o seu modo de vida, o sistema de
alimentação, os defeitos da habitação, e as doenças, que o atacam,
acarretando-lhe sérias perturbações, e a miséria, afinal, devem ser
descritas com simplicidade, clareza e verdade".
66
Penna tentou
colocar suas idéias em prática, tendo feito inúmeras conferências e
publicados vários folhetos explicativos, entre os quais Opilação ou
Amarelão.
67
Consoante com essa postura, avolumaram-se as publicações a
respeito da questão sanitária. A Revista do Brasil, sempre preocu-
pada em destacar a atuação deo Paulo, reservou amplo espaço
para as medidas tomadas por Artur Neiva, que em fins de 1916
assumiu a direção do Serviço Sanitário paulista. Lobato, amigo
pessoal de Neiva, chegou a acompanhá-lo em algumas de suas via-
gens de inspeção pelo interior (Nunes, 1981).
As monografias que, "sob a sábia orientação do seu espírito
rigorosamente científico", a repartição passou a produzir, foram
noticiadas com destaque,
68
o mesmo acontecendo com o Código
66 PENNA, B. Pequenos cuidados higiênicos. RBR, v.9, n.33, p.13, set. 1918.
67 Os folhetos foram resenhados na RBR, v.10, n.38, p.245-6, fev. 1919. A utili-
zação de fotos da forma sugerida por Penna pode ser encontrada nos artigos
de CHAGAS, C. Trypanosomiase Americana. RBR, v.8, n.32, p.362-86, ago.
1918 e PEIXOTO, A. O problema sanitário da Amazônia. RBR, v.7, n.28,
p.411-5, abr. 1918.
68 Resenha de Contribuição ao estudo do mal de engasgo, de Enjolras Vampré.
RBR, v.ll, n.44, p.358-9, ago. 1919, que dava conta das várias monografias
produzidas. Quando Neiva foi ao Japão, comissionado pelo governo paulista
para estudar a organização sanitária daquele país, a revista publicou suas
impressões de viagem. O Japão visto pelo Dr. Artur Neiva. RBR, v.16, n.62,
p. 174-5, fev. 1921.
Sanitário de 1917, o programa contra o tracoma, a erradicação do
impaludismo em Cosmópolis
69
e a campanha contra a praga que
ameaçava os cafezais paulistas em meados dos anos 20, na qual o
sanitarista mobilizou, como sugerira seu colega Belisário Penna,
todos os meios de comunicação disponíveis para tentar conter o mal:
A propaganda que o Serviço de Defesa do Café vem empreen-
dendo é o que há de mais bem feito. Pode rivalizar com o trabalho
yankee ... A ilustre comissão, a que pertencem, ao lado de Artur
Neiva, cientistas de valor como Navarro de Andrade e Queiroz
Teles,o esconde a gravidade do problema, o que aberra dos mol-
des por que se tem pautado a luta molenga contra outros flagelos do
país ... Esmerou-se a ilustre comissão no apresentar ao interessado a
informação exata do mal. E para issoo olhou despesas. Fez impri-
mir belíssimo cartaz a cores, em que, mesmo os ignaros dos segredos
do alfabeto, podem ler toda a extensão do mal. Mostram nitida-
mente a evolução do caruncho em todas as suas fases, o estado las-
timável a que reduzem as bagas de café que afuroou. Impressiona.
o há quem, vendo-o,o se deixe tomar de verdadeiro pavor pela
sorte da lavoura cafeeira ... Acompanham ao cartaz dois folhetos,
admiráveis de clareza, nos quais os ilustres técnicos se empenham
em por ao alcance de todos os estudos empreendidos sobre o terrível
inseto e as instruções para o seu combate.
No mesmo artigo, a revista reproduzia a entrevista concedida
por Neiva a um jornal, na qual este afirmava temer a invasão do
inseto em outros Estados cafeeiros nos quais
o espírito de realização e de determinaçãoo bem diferentes
daquele do povo paulista ... Tenho esperança de que emo Paulo
a praga seja contida, emborao erradicada, e se isto acontecer,
como é minha convicção, será este mais um atestado da capacidade
paulista para dominar o inimigo, que até hoje aindao foi abatido
onde quer que se tenha tentado.
70
69 Elogios ao Código de 1917, que substituiu o de 1894, podem ser encontrados
em SOUZA, B. M. de. Imigração e indesejáveis. RBR, v.9, n.34, p. 147-8, out.
1918. A atuação de Neiva foi exaltada em Resenha de Epidemia de impaludismo
na Usina Ester e Cosmópolis, de Octávio M. Machado. RBR, v. 12, n.47,
p.274, nov. 1919.
70 Resenha de Serviço de defesa do café de Artur Neiva, Costa Lima, Navarro de
Andrade e Queiroz Teles. RBR, v.26, n.106, p.159-60, out. 1924. Segundo
NUNES, C, 1981, Neiva valeu-se também do cinema para combater a praga.
Porém, o texto que alcançou maior notoriedade e difusão
o foi produzido por nenhum médico higienista, mas sim por
Monteiro Lobato. O seu Jeca-Tatuzinho, estória destinada ao
público infantil, foi saudada pela Revista do Brasil como um
poderoso fator no combate à ancilostomíase ...o é a lição enco-
mendada, que caceteia. É uma história de trama simples e que, con-
tada por quem tem o dom da narrativa fluente e pitoresca, assume
inusitado interesse ... Criança que o leia, ri e aprende uma série de
noções úteis, queo de servir muito para sua defesa individual con-
tra as lavras que infestam o solo. Lido e relido por todas as crianças
do país e aprendendo cada qual evitar o terrível flagelo, que bela res-
surreição se operaria em nosso país! Quanto ao trabalho gráfico,
nada se pode argüir. Há a acrescentar, porém, que a história é ilus-
trada por uma série de quadros muito expressivos, nas quais se exce-
leu a arte de Kurt Wiese, perito em bonecos para crianças.
71
Graças à associação entre Lobato e Fontoura, este um pio-
neiro da indústria farmacêutica nacional, o Jeca-Tatuzinho adqui-
riu características de ícone publicitário e atingiu os recantos mais
distantes do país nas páginas do Almanaque Fontoura, que divul-
gava o Biotônico e demais produtos do laboratório contra vermi-
noses.
72
Empunhando a bandeira da defesa de uma vida, produtiva
e útil à nação, as prescrições higiênico-sanitárias iam se infiltrando
no cotidiano, normatizando-o sob a batuta da ciência. Seus pro-
71 Resenha de Jeca-Tatuzinho de Monteiro Lobato. RBR, v.27, n.109, p.68-9,
jan. 1925.
72 A versão difundida por Lobato a respeito de sua união com Fontoura é a
seguinte: ambos colaboravam no jornal O Estado de S. Paulo. Sentindo-se
mal, o escritor experimentou o Biotônico, deu-se bem e, como forma de
retribuição, escreveu e ofertou à Fontoura, abrindoo de qualquer direito
autoral, a estória do Jeca-Tatuzinho que, na década de 1950, já atingira a casa
dos 22 milhões de exemplares (CAVALHEIRO, E., 1956, v.I, p.303). Con-
tudo, Lobato colaborou regularmente com Fontoura durante anos a fio,
desenhando rótulos para os seus produtos, anúncios, e produzindo textos e
capas para seus almanaques. O Conto Industrial de Lobato narra a saga de
Fontoura, farmacêutico interiorano que venceu na capital graças à descoberta
de um novo produto — o Biotônico. Quando ocupou o cargo de adido comer-
cial nos Estados Unidos, Fontoura convidou para assessorá-lo Monteiro
Lobato, que na época encontrava-se em sério apuro financeiro.
motores, numa postura tipicamente iluminista, declaravam-se em
luta contra a ignorância, os preconceitos, a incompreensão. Para
concretizar seus nobres fins a higiene expandia-se, penetrando em
áreas antes intocadas:
A Higiene tinha até há pouco tempo se colocado numa posição
quase que só defensiva: ela tratava sobretudo de acautelar o indiví-
duo contra os agentes nocivos, vivos ou não. As suas aspirações
agorao mais altas. Ela considera que o vigor físico dito normal
pode ser estimulado a um grau mais elevado.
71
O conceito de saúde estava sendo ampliado para muito além
da desinfeção, como bem expressa o código de 22 itens elaborado
pelo cirurgião Chapot-Prévost, que alcançou celebridade mundial
por ter realizado com sucesso em 1907 a separação de duas irmãs
siamesas.
74
A escola era, sem dúvida, um espaço privilegiado para
difundir o novo credo e o governo do Estado, mostrandoo ser
insensível à questão, distribuiu gratuitamente para alunos das ins-
tituições públicas a Cartilha de Higiene, obra editada por Mon-
teiro Lobato.
75
Em sintonia com esse alargamento do campo de ação do sani-
tarismo, a seção Bibliografia da Revista do Brasil registrava a
publicação de vários manuais de puericultura. Ainda que se lou-
vasse a "abnegação ... e o admirável instinto de queo dotadas as
mães brasileiras", tais qualidadeso pareciam suficientes para
evitar as altas taxas de mortalidade infantil que, de acordo com os
especialistas, só poderiam ser explicadas pela "falta de cuidados
médicos higiênicos por parte das mães de família". Era mister ins-
truí-las, revelar-lhes os segredos da alimentação sadia, dos sinto-
mas das doenças e de sua terapêutica, tarefa que cabia ao
73 LESSA, G. Aspectos modernos da alimentação. RBR, v.24, n.92, p.345, ago.
1923.
74 Os preceitos estão em Resenha de Código da saúde, de Chapot-Prévost. RBR,
v.26, n.106, p.166, out. 1924.
75 Resenha de Cartilha de higiene de A. Almeida Júnior. RBR, v.25, n.102,
p.155, jun. 1924. Em mais de uma oportunidade Washington Luís, ao ocupar
o cargo de Presidente do Estado, adquiriu grande volume de livros editados
por Lobato para serem distribuídos gratuitamente nas escolas públicas.
pediatra.
76
Mesmo que os conselhos higiênicos fossem seguidos
"com o meio descaso inerente ao nosso povo", acreditava-se que
o decréscimo na mortalidade "seria incalculável".
77
Sob a influência dos avanços da bioquímica, que propiciaram
uma melhor compreensão do funcionamento do organismo e a
identificação de novas substâncias, como as vitaminas, a preocu-
pação com a alimentação ganhou grande impulso.
78
A culinária
estava deixando de ser um assunto próprio à esfera feminina para
transformar-se na ciência da digestão e da nutrição, "um dos
ramos mais cultivados da fisiologia. Estudam-se em laboratórios
todas as questões suscitadas por esse problema".
79
O que comer,
quanto comer, quando comer se tornou objeto de investigação.
De repente, descobria-se a inadequação da alimentação nacional,
pobre em leite, laticínios, ovos, verduras e frutas.
O modo de preparar e apresentar um prato corretamente
demandaria adiantados conhecimentos de físico-química e quí-
mica biológica, sendo o insucesso de certas receitas resultado da
incompreensão dos fenômenos que ocorrem nas operações funda-
mentais da cozinha, tais como "os mecanismos da formação e
estabilização das emulsões, o ponto de fusão das gorduras, as tro-
cas osmóticas" subjacentes ao "modo de preparar um molho, de
se frigir um alimento ou de fazer um caldo". Daí a crítica às femi-
nistas que aspiravam se afastar dos fogões sem suspeitar que "a
arte culinária se torna cada vez mais complicada e mais interes-
sante (e que) em futuro próximo, essa arte talvez venha a se colo-
car ao lado da arte do médico". Ancorado em obra de um
76 Resenha de Moléstias dos lactentes e seu tratamento do Dr. Leoncio de
Queiroz. RBR, v.25, n.104, p.339, ago. 1924. Ver também: Resenha de
Considerações sobre perturbações mórbidas do lactente, do mesmo autor.
RBR, v.21, n.83, p.260, nov. 1922.
77 Resenha de Higiene para Todos de Barbosa Vianna. RBR, v.17, n.67, p.352-3,
jul. 1921.
78 O impacto da descoberta das vitaminas foi analisado por CIÂNICO, N. O
beribéri. RBR, v.26, n.107, p.278-80, nov. 1914 e nos dois artigos de LESSA,
G. Aspectos modernos da alimentação. RBR, v.24, n.92, p.340-6, ago. 1923 e
As vitaminas e o cálcio. RBR, v.25, n.97, p.86-7, jan. 1924.
79 ALMEIDA, M. O. de. A ciência e a arte culinária. RBR, v.23, n.90, p.183,
jun. 1923.
especialista francês, esse articulista fornecia uma explicação com-
pleta do mecanismo científico de preparação das batatas sou-
flées.
80
Na mesma linha argumentava Luís Pereira Barreto. Depois de
discorrer longamente sobre as virtudes do arsênico, seu papel
essencial para o bom desempenho do organismo, sua capacidade
de retardar a velhice; alertava para os perigos do uso exclusivo do
sal refinado que, contrariamente ao grosso,o conteria esse ele-
mento. Estaria pois "nas mãos das nossas cozinheiras, que podem
a capricho dar-nos vida longa ou curta, conforme lhes aprouver
empregar em seus temperos o sal refinado ou o sal grosso".
81
Em nome dos preceitos higienistas, tarefas tradicionalmente
femininas estavam sendo apropriadas por um discurso que, se,
por um lado, reconhecia a importância e o significado do cuidado
com os filhos e do trabalho nas cozinhas, por outro, desqualifi-
cava suas executoras, tomadas como inconscientes e desprepara-
das, porque guiadas apenas pelo instinto e tradição.o se
tratava de questionar nem o papel e as necessidades naturais das
mulheres, nem o espaço que tradicionalmente lhes coube ocupar,
mas de lhes impor novas recomendações, calcadas na racionali-
dade cientificista. Várias outras áreas foram afetadas pela higiene.
A título de exemplo, pode-se citar a qualidade da impressão dos
livros escolares, que começou a ser questionada na medida em que
se descobriu que estao obedecia às regras ditadas pela higiene
a fim de "torná-los inofensivos à visão dos alunos". Acreditava-se
que tal situação seria a responsável "pela miopia que é uma afeção
que pode dar início a graves perturbações oculares, podendo ir até
a cegueira".
82
Às recomendações higiênico-sanitárias, que sob pretexto de
livrar o indivíduo e o ambiente de qualquer elemento capaz de
perturbar o estado hígido revelavam uma voracidade crescente
80 Ibidem, p.184-5.
8 1 BARRETO, L. P. O arsênico e a higiene da mesa. RBR, v.9, n.36, p.496, dez.
1918.
82 VIANNA, B. O livro. RBR, v.13, n.49, p.91-2, jan. 1920.
de normatização, mesclavam-se propostas,o menos intervencio-
nistas, provenientes da eugenia.
No período abarcado pela Revista do Brasil higiene e eugenia
freqüentemente eram encaradas senão como sinônimos, pelo
menos enquanto ciências que compartilhavam objetivos muito
próximos. A primeira insistia na erradicação das pestilências, das
doenças infecto-contagiosas e nos benefícios da boa alimentação,
da abstinência de toxinas, da vida ao ar livre, da adoção de hábitos
higiênicos; já a segunda pretendia, com base nos conhecimentos
acumulados a respeito da reprodução humana, aperfeiçoar física
e moralmente a espécie.
Os simpatizantes da eugeniao se cansavam de exaltar os
excelentes resultados dos cruzamentos selecionados de plantas e
animais, lamentando que até agora nada tivesse sido feito em rela-
ção aos homens:
Eugenia é a ciência recentíssima, de origem inglesa, que tem
por objetivo o aperfeiçoamento físico e moral da espécie humana.
Foi Galton o seu fundador em 1865. Herbert Spencer, comentando
e apoiando essa fundação, assinala o estranho fato do pouco caso
que se liga a esse aperfeiçoamento mesmo nos países mais civiliza-
dos, quando por toda a parte a mais entusiástica importância é dada
à seleção para o melhoramento das raças animais. Parece estranho,
diz ele, que enquanto a criação de novilhos puros é uma ocupação
em que homens ilustres facilmente empregam muito tempo e muitas
idéias, a criação de belos seres humanos seja uma ocupação que taci-
tamente se considera indigna de sua atenção ... Muito temos feito
emo Paulo no sentido da criação de belas galinhas, de homéricos
porcos, de arqui-rápidos cavalos de corrida; estamos de posse de
uma arte primorosa na obtenção de novilhos de uma suprema
beleza; já é uma plena realidade a existência ativa da sociedade
Herd-book Caracu; está feita a nossa eugenia bovina ... É mais que
tempo de cogitarmos do embelezamento da parte que nos toca da
raça latina.
83
83 BARRETO, L. P. Eugenia. RBR, v.7, n.28, p.415, abr. 1918. Note-se que para
esse autor a eugenia está fortemente associada à idéia de um projeto estético.
Opinião semelhante expressou COELHO NETO, H. M. Aviso. RBR, v.12,
n.48, p.375, dez. 1919.
De acordo com o médico paulista Renato Kehl, considerado o
introdutor da ciência de Galton no Brasil e que dedicou toda a sua
vida à difundi-la, a posse da baqueta mágica da seleção permitiria à
humanidade "expurgar os doentes, incapazes, criminosos e amo-
rais" e substituí-los por indivíduos eugenizados, bem gerados,
segundo um "padrão com índice ótimo de robustez". Adotando,
nesse momento, uma concepção bastante ampla de eugenia, Kehl
declarava que "instruir é eugenizar, sanear é eugenizar", estabele-
cendo uma linha de continuidade entre as medidas que visavam
melhorar a saúde pública e seus efeitos no nível da hereditarie-
dade.
84
No controle rigoroso dos progenitores residiria o segredo
da moral, da beleza, da saúde, do vigor e - como rapidamente cos-
tumavam concluir os eugenistas - da felicidade do gênero humano.
Em nota escrita para a Revista do Brasil, Kehl resumia o con-
teúdo do seu novo livro, A cura da fealdade, que seria em breve
publicado pela editora de Monteiro Lobato. Nele o autor esclare-
cia ser seu objetivo encarar a fealdade "sob o ponto de vista gal-
toniano e, como tal, emprestei-lhe o sentido claro de disgenesia
ou se quiserem, de cacogenia. Em outros termos, ela equivale à
anormalidade, à morbidez, assim como a beleza equivale à norma-
lidade, à saúde integral. Procurarei demonstrar que a fealdade é
um mal muito generalizado; que ela tanto pode ser física, moral,
como psíquica ou intelectual; finalmente, que a fealdadeo é um
fruto espontâneo da natureza e, nestas condições, apresenta cau-
sas determinantes que são,o só combatíveis, como evitáveis". A
certeza dessa evitabilidade residia na convicção de que os fatores
degenerativos poderiam ser eliminados por meio de medidas pro-
84 KEHL, R. F. O que é eugenia. RBR, v.9, n.35, p.300-1 e 304, nov. 1918.
Nesse mesmo artigo Kehl, contrariamente a Pereira Barreto, assinalava que
"eugenia é a ciência da boa geração. Elao visa, como parecerá a muitos,
unicamente proteger a humanidade do cogumelar de gentes feias. Seus obje-
tivoso se restringem à calipedia, isto é, ter filhos bonitos. A beleza é um
ideal eugênico. Mas a ciência de Galtono tem horizontes limitados; ao
contrário, seus intuitos além de complexoso de uma maior elevação ... Ela
tem a visão do exterior, porém a sua mira de atilada agudeza deseja a repre-
sentação completa da perfeição estereotipada na beleza moral e somática",
p.301-2, grifo no original.
filáticas, indicadas pelo autor. Kehl dedicou quinze capítulos do
livro para descrever o que seria o homem normal.
85
Essa proximidade, uma característica do final dos anos 10,
pode ser atestada pelo fato de que muitos daqueles que aderiram à
Sociedade Eugênica deo Paulo, que chegou a contar com 140
sócios, também eram membros da Liga Pró-Saneamento (Marques,
1994). Belisário Penna, um dos mais ativos sanitaristas, foi convi-
dado para ser um dos vice-presidentes honorários da Sociedade de
Eugenia e o próprio Kehl exerceu, Concomitantemente, as funções
de secretário da Delegação Paulista da Liga e da Sociedade. Nesta
condição, coube-lhe prefaciar Problema vital de Lobato, editado
por iniciativas de ambas entidades.
86
Eugenistas e higienistas uniam-se quando se tratava de alertar
para os efeitos maléficos dos chamados venenos raciais e sociais:
nicotina, morfina, cocaína, bebidas alcoólicas, doenças venéreas e
infecciosas, que estariam estiolando a população brasileira:
É do conhecimento de todos que a nossa mocidade de hoje, cin-
qüenta por cento, no mínimo, está em franca decadência física e
moral, em conseqüência das moléstias sexuais adquiridas no decurso
da vida. Todo ano, o veneno venéreo dá um contingente, cada vez
mais assustador, de doentes na flor da idade, aos hospitais e manicô-
mios. Esses, porém,o os mais inofensivos à coletividade, porquanto
se uns, os deficientes metais, ficam afastados do convívio social, os
outros, quandoo falecem, procuram, pelo tratamento, ocasionar-
lhe o menor dano possível. Piores, muito pioreso os que, indiferentes
ao mal, desprezando em absoluto a sua cura, andam por aí a dissemi-
nar suas infeções na embriaguez da sua corrida para o prazer, contri-
buindo com os alcoólatras a aumentar as fileiras daquelas falanges de
degenerados, maníacos, deficientes, nevropatas, epilépticos e delin-
qüentes, de que está infestada a sociedade atual.
87
85 KEHL, R. F. A cura da fealdade. RBR, v.20, n.78, p.179, jun. 1922. A revista
publicou resenha elogiosa da obra, na qual foram reproduzidas opiniões de
Belisário Penna favoráveis à ela: Resenha de A cura da fealdade de R. F. Kehl.
RBR, v.24, n.96, p.356, dez. 1923.
86 Muitos anos mais tarde LOBATO, J. B. M., 1956a, p.75-82, retribuiria a gen-
tileza prefaciando a obra Bio-Perspectivas de Renato Kehl.
87 MAURANO, H. Consentimento ao matrimônio. RBR. v.23, n.89, p.15, maio
1923. Para uma descrição semelhante ver: COELHO NETO, H. M. Aviso.
RBR, v.12, n.48, p.376, dez. 1919.
Eles insistiam nos graves danos sociais acarretados por hábi-
tos e doenças que comprometiamo apenas a existência dos
indivíduos, tornando-os muitas vezes inaptos para o trabalho e
um perigo para a coletividade, mas também sua descendência. O
futuro da nação novamente parecia ameaçado na medida em que
parcela significativa de seus habitantes, em vez de se tornarem
cidadãos produtivos, acabariam seus dias, por força de taras her-
dadas, em hospícios, prisões ou hospitais.
Criminalidade, delinqüência, prostituição, doenças mentais,
vícios, pobreza iam sendo associados ao patrimônio genético,
numa identificação que mal disfarçava a visão extremamente pre-
conceituosa desta intelectualidade. Amadeu Amaral, ao chamar
atenção para a necessidade de cuidar da infância, afirmava:
Vem uma dessas criaturinhas ao mundo já com todo um
inferno potencializado dentro do seu corpinho minúsculo e tenro.
Bole ali dentro, ansiando por brotar, toda uma sementeira de atro-
cidade: cegueira, surdez, chagas, ataques, paralisia, alucinações,
angustias, vícios, maldades, todos os legados orgânicos do pai ava-
riado ou alcoólatra, dae nevropata ou tuberculosa. E o desgraça-
dinho vive, muitas vezes, como se fosse perfeito: nenhuma
prevenção, nenhum cuidado, nenhum zelo especial, nenhum corre-
tivo oportuno. E cresce, e arrasta a sua tragédia lancinante, e deixa
descendentes que continuem a desenrolar a cadeia infindável dos
condenados sem culpa! E continuam a altear-se de mais a mais os
muros das prisões, assumem vulto de cidades os manicômios, mais
se reproduzem as enfermarias, mais longas e barulhentas se tornam
as alfurjas do vício em pleno coração das cidades, e essas geenas
refervem de angústias, de desesperos, de lentas agonias.
88
O autor distinguia as crianças que já nasciam taradas e imper-
feitas daquelas que, apesar de sadias, acabavam comprometidas
pela falta de alimentação e ou cuidados higiênicos adequados, dei-
xando entrevar qual dessas criaturas deveria receber maior aten-
ção da sociedade:
88 AMARAL, A. Cuidar da infância! RBR, v.16, n.62, p.140-1, fev. 1921.
O caso das crianças taradaso se pode, ou, melhor,o se
"deve" considerar insolúvel, mas é de uma complexidade temerosa:
depende tanto dos esforços conjugados do biologista, do higienista
e do clínico, quanto dos do legislador, do governante e dos condu-
tores espirituais da massa, e quer para uns, que para os outros, se
apresenta inçado de dificuldades teóricas, sitiado de dificuldades
práticas. O caso das criaturas sadias é muito outro. A perda desses
elementos inapreciáveis de ordem, de produção, de bem-estar e de
adiantamento social só pode ser levada à conta de criminosa indife-
rença, de indesculpável, de selvagem, de indigno relaxamento.
89
A vinculação entre degenerescência da prole e os hábitos
adquiridos pelos progenitores figurava no rol das verdades ele-
mentares, comprovadas pela experiência diária dos médicos nos
seus consultórios. Referindo-se ao álcool, um dos venenos conde-
nados pela higiene e pela eugenia, Afrânio Peixoto alertava para
seus efeitos nocivos sobre o feto e o embrião lembrando que "os
filhos que vingam aos bêbadoso sujeitos à convulsões, menin-
gite, epilepsia e, como idiotas, imbecis, epilépticos vão, inevitavel-
mente, para o hospital ou para o hospício,o raro pelo caminho
da prisão".
90
Seu colega Franco da Rocha, solidamente embasado
em estatísticas, chegava às mesmas conclusões:
De 7.500 indivíduos presos no Rio de Janeiro por delitos diver-
sos e infrações policiais, 6.000o alcoolistas; de 4.500 tuberculo-
sos, 2.500 entregavam-se ao vício da bebedice; de 2.000 suicidas,
1.000 eram bebedores de álcool. Uma lei que decretasse dois anos
de isolamento no hospital para o alcoolista que lá fosse recolhido
pela segunda vez em conseqüência de excessos alcoólicos, daria
seguramente algum resultado. Os reincidentes, depois da segunda
entrada, teriamo dois, mas sim três anos de isolamento ... A ação
indireta do álcool é muito mais vasta do que a ação direta. A prova
é simples: um alcoolista pode produzir dois, quatro ou mais loucos.
A embriaguez é uma das fontes de degeneração hereditária. Poucos
médicos haverá queo tenham visto epilépticos nascidos de pais
alcoolistas. O fato éo comum que nos dispensa de trazer provas.
91
89
Ibidem, p. 142.
90 PEIXOTO, A. Outros males. RBR, v.9, n.35, p.267, nov. 1918, grifo meu.
91 ROCHA, F. da. Alcoolismo e loucura. RBR, v.8, n.32, p.494-5, ago. 1918.
Também a sífilis era apresentada como causa da ruína física e
moral das famílias por comprometer, em graus diversos, toda a
descendência. Os filhos de sifilíticos que conseguissem ultrapassar
a barreira dos dois anos de vida apresentariam, mais cedo ou mais
tarde, variadas manifestações tais como "cegueira, surdez, acessos
epilépticos, tabes juvenis, alterações cérebro-espinhais, idiotia,
infantilismo, nanismo, crânio natiforme e raquitismo". Se muitos
teriam que sobreviver à custa da família e ou das instituições de
saúde, os "menos tarados" acabariam dando origem a outros por-
tadores de disfunções genéticas permanentes.
92
Apesar de reconhecerem que "a raça humanao pode ser
dirigida com o mesmo critério com que se governa um haras", os
especialistas preconizavam a aplicação de alguns princípios práti-
cos à reprodução humana, com vistas a obter seres que "corres-
pondessem às desejadas condições de excelência". Nesse sentido,
caberia ao Estado, devidamente orientado pelos detentores desse
saber, impor uma legislação tendente a proteger "a nossa raça
contra a degenerescência física e mental", o que por certoo
excluía uma ampla campanha de difusão da eugenia que chamasse
"a atenção do público para a influência do estado físico dos pais
no momento da concepção",
93
trabalho a que a Sociedade Eugê-
nica também vinha se dedicando:
Felizmente emo Paulo, graças à propaganda de um esteta,
o Dr. Renato Kehl, fundou-se uma sociedade eugênica, da qual
fazem parte as maiores sumidades médicas paulistas. Preconizando
a ciência de Galton, que trata do aperfeiçoamento físico e moral
do homem, a Sociedade Eugênica deo Paulo, realizando confe-
rências, espalhando boletins, pregando, demonstrando vai conse-
guindo realizar, ainda que lentamente, a obra filantrópica da
regeneração do homem, para cuidar, em seguida, do aperfeiçoa-
mento da espécie.
94
92 MAURANO, H. Consentimento ao matrimônio. RBR, v.23, n.89, p.16, maio
1923.
93 LUIZI, P. A raça humana. RBR, v.3, n.ll, p.307-8, nov. 1916.
94 COELHO NETO, H. M. Aviso. RBR, v.12, n.48, p.376, dez. 1919.
Entretanto, a sua açãoo se circunscrevia à educação. Em
1919, a entidade aprovou moção, que deveria ser enviada ao Con-
gresso Federal, condenando a reforma do Artigo 183-IV do
Código Civil que pretendia eliminar a proibição, então vigente,
do casamento entre tios e sobrinhos. Renato Kehl publicou artigo
na Revista do Brasil no qual apresentava razões de ordem cientí-
fica contra a supressão do veto. Sua argumentação elucidava de
que maneira era encarada a transmissão do patrimônio genético.
95
Ao lado da repressão aos venenos raciais e sociais, os eugenis-
tas pretendiam introduzir no Código Civil um dispositivo que
obrigasse os nubentes a apresentarem atestado de capacidade
física e mental, expedido por médicos, comprovando que estavam
em condições de contrair matrimônio. Tal medida, considerada
de caráter preventivo, objetivava impedir que indivíduos biologi-
camente imperfeitos procriassem. Dentre os motivos impeditivos
figuravam: tuberculose, doenças venéreas, taras, vícios, deficiên-
cias físicas e mentais e demais males hereditários, ou seja, um con-
junto por demais genérico e abrangente de situações, cabendo ao
médico, alçado à posição de árbitro superior inapelável, decidir
sobre a conveniência ouo da união. Um podero discricioná-
rio justificava-se na medida em que a cruzada eugenizadora exigia
que o mal fosse eliminado pela raiz. Como declarava enfatica-
mente Kehl, a eugenia "proíbe o casamento a todo indivíduo ata-
cado de mal hereditário. Quemo aplaude esta disposição
proibitiva em defesa das nossas futuras proles?".
96
A mudança da letra da lei forneceria aos profissionais da área
médica os instrumentos indispensáveis para o início de um processo,
qualificado de cívico e patriótico, de revigoramento da população
brasileira. Enquanto as autoridadeso tornassem indispensável o
exame pré-nupcial, caberia às moças impor a medida
por si próprias, para salvaguarda de sua saúde, para satisfação de um
dever de consciência perante os filhos, os netos e toda a geração ...
95 KEHL, R. F. O casamento consangüíneo em face da Eugenia. RBR, v.ll,
n.42, p.l89-90,jun. 1919.
96 KEHL, R. F. O que é a Eugenia? RBR, v.9, n.35, p.304, nov. 1918.
Assim procedendo prestareis inestimável serviço à família brasileira
e cumprireis o vosso dever de mulher perante a humanidade.
97
Estranhamente os eugenistas silenciavam a respeito das uniões
informais,o comuns no país, que certamente continuariam a
ocorrer, indiferentes aos artigos do Código Civil, que durante
décadas a fio eles lutaram para alterar (Vilhena, 1993).
As propostas eugênicas, tal como figuraram na Revista do
Brasil, já deixavam antever o seu enorme potencial discriminador
e excludente. Apesar de aparentemente estar afinada no mesmo
diapasão do sanitarismo e da higiene, de fato a eugenia reintroduzia
a noção de raça e de seres biologicamente superiores e inferiores.
Essas concepções facilmente poderiam migrar do âmbito indivi-
dual para o coletivo, como atestam os argumentos eugênicos apre-
sentados a favor da imposição de barreiras à entrada de imigrantes
asiáticos. Alguns insistiam na inoportunidade de trazer ao país,
"privado do laborioso concurso das raças arianas", trabalhadores
pertencentes a "raças inassimiláveis, inferiores" e capazes de com-
prometer "valor somático, moral ou econômico da nossa
gente".
98
Entretanto, até meados dos anos 20, o que sobressaía era a
proximidade, quandoo coincidência, entre as proposições deri-
vadas de Galton e a higiene, saberes que ainda caminhavam muito
próximos e que, até certo ponto, apareciam confundidos no dis-
curso da época. A uni-los estava a crença, de fundo neolamar-
quista, na transmissão dos caracteres adquiridos, que permitia
encarar qualquer melhoria nas condições higiênico-sanitárias da
população, nos hábitos alimentares, na prática de esportes, como
um avanço em termos de aperfeiçoamento genético.
97 KEHL, R. F. Como escolher um bom marido? RBR, v.24, n.92, p.383, ago.
1923.
98 SOUZA, B. M. de. Imigração e indesejáveis. RBR, v.9, n.34, p. 133-48, out.
1918, no qual a introdução de imigrantes asiáticos foi alvo de uma crítica
bastante preconceituosa, ancorada em preceitos eugênicos. Ver, no mesmo
sentido, Separatismo real e imaginário. RBR, v.12, n.48, p.368-9, dez. 1919.
Postura diametralmente oposta pode ser encontrada em CHATEAUBRIANT,
A. A colonização japonesa. RBR, v.28, n.112, p.379-80, abr. 1925.
O esporte foi abordado em várias oportunidades na revista.
Os artigos insistiam nos benefícios trazidos pela sua prática, que
exigia espírito de disciplina, articulação de esforços, subordinação
a uma causa geral, cooperação e coordenação, presença de espí-
rito, longa e paciente preparação, além de desenvolverem a força,
a virilidade e o sangue frio. A Educação Física era apresentadao
mais como uma arte de preceitos incertos, mas como uma ciência
diretamente filiada à biologia e de suma importância para a cons-
tituição de um povo forte, resistente, trabalhador e produtivo."
Os comentários a respeito da prática esportiva revelavam a pro-
fissão de fé lamarquista, como transparece nas seguintes ponderações
de Artur Neiva ao referir-se aos ingleses: "Sabem onde reside grande
parte do segredo britânico? No uso do esporte. Cada geração que
nasce é em todos os sentidos melhor que a precedente. Homens e
mulhereso mais robustos e a prole condensa os valores somáticos
dos genitores. Em tais condições o aperfeiçoamento é fatal".
100
Essa
mesma linha de raciocínio levava os que se preocupavam com o for-
talecimento da raça a argumentar a favor de uma legislação que asse-
gurasse ao operariado um salário mínimo, a diminuição das jornadas,
a regulamentação do trabalho de menores e de mulheres.
101
O predomínio de um mendelismo atenuado, tornado compa-
tível com a influência ambiental, foi a marca do pensamento bio-
99 Ver: NEIVA, A. Curiosidades. A cultura física dos povos. RBR, v.22, n.88,
p.268-70, abr. 1923; COELHO NETO, H. M. O esporte e a beleza. RBR,
v.23, n.89, p.69-71, maio 1923; ARIEL, Um simples problema. RBR, v.12,
n.48, p.374-5, dez. 1919.
100 NEIVA, A. Do esporte. RBR, v.21, n.82, p.156, out. 1922. Os efeitos
eugênicos do esporte e o papel de relevo desempenhado poro Paulo no
progresso da educação física nacional podem ser encontrados em: Resenha
de O segredo de maratona de Fernando de Azevedo. RBR, v.l 1, n.44, p.357,
ago. 1919; Resenha de da educação física e antinüos de Fernando de
Azevedo. RBR, v.14, n.55, p.265-6, jul. 1920 e AZEVEDO, F. de. Evolução
esportiva. RBR, v.21, n.84, p.355-60, dez. 1922. Houve até quem defendesse
a capoeira como esporte legitimamente nacional, que deveria ser ensinado
obrigatoriamente em todas as escolas oficiais e quartéis: COELHO NETO,
H. M. O nosso jogo. RBR, v.24, n.96, p.390-2, dez. 1923.
101 Ver: LUIZI, P. A raça humana. RBR, v.3, n.ll, p.307-8, nov. 1916;
VIANNA, B. O sono. RBR, v.ll, n.43, p.283-4, jul. 1919 e DÓRIA, S. O dia
de trabalho e o salário. RBR, v.24, n.92, p.370-2, ago. 1923.
lógico latino-americano nas décadas iniciais desse século. Como
argutamente assinalou Nancy Stepan,o se tratava de desinfor-
mação, nem de má compreensão, mas de um esforço, com nítida
matriz política, de adequação. O estreito determinismo de Men-
del tornava praticamente sem sentido as reformas do meio social,
o entusiasticamente propugnadas pela intelectualidade do con-
tinente (1991,p.63-101).
No Brasil, as fronteiras entre higiene e eugenia só se tornaram
mais nítidas no final dos anos 20. Nesse processo a Liga de Higiene
Mental, fundada no Rio de Janeiro em 1922 por Gustavo Riedel,
desempenhou papel de relevo. A partir de 1926, portanto, já fora
do período abarcado pela Revista do Brasil, a entidade reformou
seus estatutos e abandonou sua postura inicial, de cunho curativo,
para eleger a prevenção como principal meta, tornando-se um
importante reduto dos defensores de uma eugenia negativa e de
cunho racial (Costa, 1989, Cunha, 1986).
Formalmente, a divisão no seio da intelectualidade aflorou
com toda força no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, rea-
lizado em 1929. Enquanto o grupo liderado por Roquette Pinto,
influenciado pelas novas abordagens antropológicas e pelo men-
delismo, opunha-se à influência do ambiente sobre o patrimônio
hereditário, negava procedência às teorias sobre os malefícios da
mestiçagem e defendia a entrada de imigrantes asiáticos; Miguel
Couto e Kehl reafirmavam essas antigas verdades, que levantavam
agora um coro de vozes discordantes. A distribuição entre os par-
ticipantes do trabalho de Kehl, Lições de eugenia, fez que vários
deles tomassem a palavra para expressar opiniões opostas às do
autor (Stepan, 1991, p.153-62, Marques, 1994, p.60-73).
A polêmica adentrou os anos 30, num contexto marcado pela
presença de um Estado forte queo foi insensível aos eugenistas
e seus sonhos regeneradores. Entretanto, sem menosprezar o papel
da eugenia na definição de políticas públicas durante o período
Vargas, é importante assinalar a força crescente de uma interpre-
tação que tendia a colocar de lado os preceitos raciais em prol de
uma abordagem cultural, no estilo preconizado por Franz Boas.
Os sinais desse outro paradigma aindao estavam enunciados de
maneira clara na Revista do Brasil, contudo já se pode vislumbrar
alguns de seus indícios em certos textos de Roquette Pinto, ou nas
pequenas contribuições, transcritas do Diário de Pernambuco, do
jovem Gilberto Freyre.
102
A análise do extenso material publicado na Revista do Brasil
a respeito da questão étnica deixa patente, por um lado, a centra-
lidade do tema para o período e, por outro, alerta para a comple-
xidade de que ele estava revestido. No periódico circulavam
diferentes abordagens que se sobrepunham em camadas densas
formando um emaranhando que só se apreenderia depois de um
lento trabalho de desconstrução.
Entretanto, é possível identificar um viés de forte ascendência
racista, que admite a desigualdade e a hierarquia entre os seres
humanos mas que, confiante numa determinada leitura do darwi-
nismo, previa um amanhã branco para o país. Nesse sentido, com-
preende-se a insistência com que se procurava auscultar o quanto
já tínhamos caminhado na tarefa de fixar em definitivo o tipo bra-
sileiro, resultado de uma fusão que nos deveria assegurar feições
próprias no concerto antropológico universal.
Essa interpretação positiva, que elegia a hibridação como
fonte de regeneração,o deixava de se movimentar no interior
do universo criado por Gobineau, Lapouge e Le Bon, porém com
a diferença fundamental de que as previsões alarmistas desses
autores, que condenavam uma sociedade mestiça como a brasi-
leira à eterna barbárie, eram substituídas pela certeza do nosso
próximo branqueamento. O compromisso agendado com doutri-
nas que professavam uma inferioridade inerente teria, necessaria-
mente, que ser frágil. Assim, entende-se as oscilações de otimismo
e pessimismo de uma intelectualidade que precisava acreditar no
futuro, maso tinha plena certeza de que ganharia a aposta.
Nessa perspectiva, o exemplo deo Paulo era de vital
importância estratégica. Afinal, pelo menos uma parte do país,
demonstrava vocação para o progresso, para a civilização, para os
esforços coordenados. Os feitos paulistas eram naturalmente vin-
102 A abordagem de temas distantes das preocupações antropológicas clássicas
desponta nos artigos de Freyre. Ver especialmente os relativos à importância
dos brinquedos na formação das crianças, RBR, v.23, n.91, p.263-5, jul.
1923 e v.28, n.lll, p.274-5, mar. 1925 e aquele em que o autor ensaia uma
teoria a respeito da importância dos hábitos alimentares na constituição da
identidade nacional. RBR, v.26, n.106, p.178-9, out. 1924.
culados à excelência racial, manifesta pelos seus habitantes desde
os mais remotos tempos. A entrada, via imigração, de sangue ariano
só vinha contribuir para apurar uma supremacia que deitava raízes
no início da colonização. Tratava-se, então, de expandir a influên-
cia benéfica dos bandeirantes ao resto do país. Sem dúvida, o
autor mais significativo aqui era Oliveira Vianna.
O surgimento da possibilidade de tomar a populaçãoo
como racialmente inferior, fruto maldito de elementos heterogê-
neos e incompatíveis, mas como doente, abria perspectivas bastante
sedutoras. Afinal a morbidez, como ensinava a microbiologia,
poderia ser extirpada, transformando o homem indolente, pregui-
çoso e refratário ao progresso em um ser completo, útil à nação.
Coube a Monteiro Lobato, que a essa altura, com a publicação
de Urupês, despontava como escritor de projeção nacional, um
papel de proa na difusão da explicação higiênica e sanitária dos nos-
sos problemas. O engajamento na campanha coincidiu com dois
outros acontecimentos marcantes de sua carreira: a aquisição da
Revista do Brasil, que desde logo franqueou suas páginas aos sanita-
ristas, e o início de suas atividades no campo editorial. A mudança
de rumo que Lobato impôs ao seu Jeca Tatu foi emblemática na
medida em que espelhava, para além de qualquer mudança de opi-
nião circunscrita ao âmbito pessoal, uma nova maneira de enfocar
os problemas nacionais. Ao redimir o seu personagem, apresen-
tando-o como vítima da incúria, do desleixo, do descaso de gover-
nos insensíveis, Lobato também libertava todos os brasileiros. Com
imenso prazer ele pôde contrapor o microscópio a Le Bon. A sua
associação com Fontoura tornou o Jeca uma figura extremamente
popular, conhecida nos recantos mais distantes do país.
É certo que dentro desse novo universo os paulistas perdiam
sua superioridade racial inerente. Entretanto,o Paulo continuava
a desfrutar uma posição de vanguarda, sendo apresentado como
o propugnador de uma solução capaz de salvar o homem brasi-
leiro, torná-lo produtivo e, por essa via, colocar o país em sintonia
com o progresso e a modernidade. A atuação de Lobato colabo-
rava para que a campanha sanitária fosse apreendida como mais
um dos feitos paulistas. O destaque dado pela revista a Artur
Neiva insere-se nesse trabalho de glorificação, que difundia uma
imagem positiva do Estado, o único decididamente empenhado
na implantação de um serviço competente de saúde pública.
Compartilhando com a higiene o ideal de valorização da
força de trabalho, estava a eugenia. Nesse momento tais saberes
ainda dividiam um espaço significativo, o que por certo pouco
contribuía para facilitar a compreensão da questão étnica. No dis-
curso da época mesclavam-se propostas relativas à saúde pública,
que pretendiam promover as condições gerais do meio ambiente;
à educação; à difusão de hábitos higiênicos e à prática esportiva
com a defesa da reprodução selecionada da espécie. Em nome da
ciência e das suas verdades clamava-se por uma intromissão, que
pareciao ter limites, na vida privada dos indivíduos. Nessa
medida, higienistas e eugenistas reclamavam uma ação decidida
do Estado, condenando a inoperância de um poder que se lhes afi-
gurava incapaz de tomar as medidas necessárias para retirar a
nação de seu estado mórbido.o admira que montante signifi-
cativo desses profissionais fossem simpáticos às propostas autori-
tárias então em gestação e que muitos tenham sido incorporados
à estrutura técnica e burocrática montada no pós-30.
A passagem da abordagem racial para a microbiológica esteve
longe de implicar no fim das ambigüidades. Os ganhos trazidos
pela profissão de fé no brasileiro, que de inferior passou a paci-
ente, foram desde logo relativizados pelo discurso eugênico, que
novamente tendia a subordinar os problemas sociais a uma solu-
ção estritamente biológica. As demarcações só se tornaram mais
claras anos depois, já fora do nosso período, com a eugenia repre-
sentando a sobrevivência do viés racista, agora estribado em uma
interpretação bastante particular da genética. O seu canto de
sereia só perdeu o poder encantatório, pelo menos da forma como
vinha enunciado, após a Segunda Guerra.
É patente que o conteúdo mítico que envolviao Paulo foi
tomando dimensões e sentidos cada vez mais densos e complexos.
Todos os atributos contidos na idéia de nação lheo sendo cre-
ditados: feitos históricos gloriosos, conquista e manutenção do
território, população dotada de excelência étnica, prosperidade
econômica... Resta perguntar: tinhao Paulo um projeto cultu-
ral para a nação? O começo da resposta está na análise da proble-
mática que envolvia a língua nacional.
GRUPO IV: Figuras 16 a 18
A política sanitária, que no início deste século gerava protestos e sublevações
populares, nos anos 20 torna-se uma unanimidade, provocando terror apenas
no mundo microbiano (RBR, n.39, 51, 81).
O micróbio da «hespanhola» vendo-se descoberto pelo microscopio
dá o alarme. (YANTOK D, Quixote Bio).
FIGURA 16
A NOVA OFFENSIVA HESPANHOLA E A
HEROICA RESISTENCIA DO SERVIÇO
SANITARIO
Vae embora! Aquio entra!
Voltolino (Posquino)
FIGURA 17
CASAMENTO DE MICROBIOS
O Barão Treponema casa-se com a senhorita
Flebotoma Papatasi, hespanhola.
(YANTOK D. Quixote).
FIGURA 18
5 LÍNGUA: EDIFICAÇÃO
DA CULTURA NACIONAL
Quatro séculos depois da conquista, ouvimos
na selva brasílica a voz dos missionários que hoje ao
invés de dilatar a fé e o império, nos edificam os
pronomes e nos salvam a alma, sob as duas espécies
de partículas santas. (RIBEIRO, J. Humor versos
vernaculismo. RBR, v.24, n.93, p.91, set. 1923)
A língua brasileira positivamente está a sair
das faixas, e coexiste no Brasil ao lado da língua
portuguesa - como filha que cresce ao lado dae
que envelhece. Tempo virá em que veremos publi-
car-se a Gramática Brasileira. (LOBATO, J. B. M.
Resenha de Gramática Portuguesa de Firmino
Costa. RBR, v.27, n.64, p.63, abr. 1921)
Brasil, corpo espandongado, mal costurado
queo tem o direito de se apresentar como pátria
porqueo representando nenhuma entidade real
de qualquer caráter que seja nem racial, nem nacio-
nal, nem sequer sociológica, é um aborto desu-
mano e anti-humano. Nesse monstrengo político
existe uma língua oficial emprestada e queo
representa nem a psicologia, nem as tendências,
nem a índole, nem as necessidades, nem os ideais
do simulacro de povo que se chama o povo brasi-
leiro. Essa língua oficial se chama língua portu-
guesa e vem feitinha de cinco em cinco anos dos
legisladores lusitanos. (ANDRADE, M. de. Gra-
matiquinha, p.321, in: PINTO, E. P., 1976)
Ao lado da história, da geografia e da questão étnica, a língua
também figurou na Revista do Brasil como um tópico essencial no
processo de constituição da nacionalidade brasileira. Contudo, é
preciso assinalar que o idioma desempenhou aqui tarefa bastante
diferente daquela cumprida na Europa no decorrer do século XIX,
quando este se tornou um dos critérios cruciais da nacionalidade,
em nome do qual se justificava, inclusive, reivindicações de cará-
ter territorial (Gellner, 1993).
Toda dificuldade residia no fato de vários Estados abrigarem
mais de uma língua, o que de imediato criava um ou mais grupos
dispostos a reclamar, caso o idioma proclamado oficialo fosse
o seu. Em países como a França e a Inglaterra, nos quais o pro-
cesso de sistematização das respectivas línguas nacionais teve iní-
cio ainda no século XVII, a questão certamente era muito menos
explosiva do que, por exemplo, no Império dos Habsburgos
(Anderson, 1989), mas nem por isso esteve de todo ausente, como
atesta a sobrevivência do Bretão e do Gaélico.
A imposição a todos os habitantes de uma língua oficial, arte-
fato recentemente padronizado que se tentava envolver em um
manto de ancestralidade imemorial a fim de legitimar opções que
eram políticas, marcou um passo decisivo na afirmação dos Esta-
dos-Nação. O triunfo do idioma administrativo - ensinado nas
escolas, utilizado nos assuntos de Estado, exigido dos funcioná-
rios do poder, grafado nos logradouros públicos, estampado nos
jornais - finalmente tendia a fazer coincidir os limites políticos
com os lingüísticos, o que condenava certas línguas ao âmbito
meramente familiar e afetivo.
Junto com o idioma oficial difundiam-se valores, tradições,
aspirações e ideais nacionais, que deveriam ser compartilhados
por todos os habitantes dessa comunidade imaginária. A nova
forma de lealdade pôde, graças ao crescimento da máquina esta-
tal, atingir populações cujo horizonte, até então, nunca ultrapas-
sara o estritamente local. O alerta de uma camponesa italiana ao
filho - "Scappa che arriva la patria" (Hobsbawm, 1988, p.203) -
dá bem a dimensão da novidade.
Enquanto na Europa a filologia e a lexicografia adquiriam
status de assunto de Estado, na Américao se questionou seria-
1 GÓES, C. de. Suavidade da língua portuguesa. RBR, v.25, n.98, p. 178-9, fev.
1924.
mente, durante o processo de independência, o patrimônio lin-
güístico recebido das ex-metrópoles; como atesta o fato do
idiomao haver sido arrolado entre os temas que compunham a
agenda das lutas pela libertação nacional (Anderson, 1989, p.57).
Graças à esta herança, o Brasil ostentava uma unidade invejável e
o maculada, segundo a opinião de muitos, pelas especificidades
regionais:
É admirável que talado o nosso solo, na época colonial, por
espanhóis, francês e holandeses ... que fomentada a imigração, após
o advento da Lei Áurea ... a língua tenha resistido a todas as tentati-
vas de absorção no ambiente vastíssimo do nosso imenso território,
mantendo inalterada a sua fisionomia no Acre, no Amazonas, no Rio
Grande do Sul, no Mato Grosso, salvo diferenciações decorrentes
do clima e do hábitat. Ao passo que países de território pequeno ...
tiveram quebrada a integridade do idioma ... o Brasil, muito mais
exposto (dada a pouca ou quase nula densidade de sua população)
às tentativas de infiltração e absorção exótica, oferece o espetáculo
quase virgem da integridade do idioma sobrepairando soberano e
inatingível acima da babel das correntes avassaladoras alienígenas.
É interessante notar que o autor subordinava a "resistência" do
português à posição superior que esse idioma desfrutava em relação
à demais línguas românicas, manifesta na "pronúncia mais eustô-
nica, na fala mais branda e suave, nas vozes mais tênues e líquidas,
[sendo] aquela em que a palavra ou dicção se enuncia mais leve,
mais sutil e mais alada", isso sem contar o seu admirável "sistema
de conjugação verbal e a basta cópia de sufixação", atestando que
nenhum aspecto da vida nacional permaneceu imune ao ufanismo.
1
Se, por um lado, Benedict Anderson corretamente apontou a
ausência da questão lingüística no momento do rompimento da
dominação colonial na América, por outro, essa constatação está
longe de colocar - eo apenas para o caso brasileiro - um ponto
final na discussão. Em um ensaio instigante Morse analisa, a partir
de uma perspectiva comparada, o significado político das trans-
formações observadas nos idiomas transplantados para o conti-
nente americano. Detectou, contrariamente a Anderson que se
limitou a um momento determinado, o mal-estar presente nesse
campo:
No Novo Mundo, a identificação entre idioma e gênio nacional
tornou-se problemática. Afinal, era incômodo para uma nação ame-
ricana do século passado procurar sua alma numa língua herdada de
uma potência colonial. Este problema era particularmente acentuado
na América espanhola, onde quase vinte países compartilhavam o
mesmo idioma. E o caso do Canadá, país bilingüe, era igualmente
problemático. (1980, p.29-30)
É preciso estender o olhar para além da conquista da soberania
política uma vez que a problemática da construção da nacionalidade
esteve longe de se encerrar com a conquista da independência. A
busca da identidade coletivao pode ser encarada como mero
episódio com um princípio e um fim, trata-se antes de um pro-
cesso sempre em curso que, em determinados períodos, se adensa
e adquire novos significados.
ROMPENDO OS GRILHÕES COLONIAIS
Na Revista do Brasil a língua foi constantemente apontada
como importante fator de coesão nacional, tendo figurado como
elemento significativo nas várias tentativas de caracterizar a nação
brasileira. Em 1921, Amadeu Amaral, então ocupando o cargo de
diretor da revista, expressava idéias de há muito correntes sobre
o assunto:
A Língua é a manifestação mais extensa e mais profunda da
alma multiforme da nacionalidade, porque obra anônima, coletiva e
inconsciente de inumeráveis gerações ... Esse caráter de formação
coletiva, obra de todos para uso de todos, na qual todos colaboram
e da qual ninguém é autor, implica necessariamente um liame em
que se entrelaçam todos os indivíduos de uma nação, desde os mais
altos até os mais humildes. O linguajar do analfabeto mais bronco,
o distanciado da prosa repolida e rebrilhante de um Rui Barbosa,
é, essencialmente, a mesma coisa que ela. Com esse mesmo instru-
mento, o homem douto e o ignorante podem entender-se um com o
outro à vontade ... Essa constante troca é possível porque há um
fundo psicológico nacional; mas essa própria psicologia nacional,
em grande parte, é ainda um produto da língua.
2
A partir desse horizonte, que estabelecia uma relação biuní-
voca entre nação o idioma,o surpreende que os debates gravi-
tassem em torno das diferenciações entre o português do Brasil e
o de Portugal.
A questão em sio era nova. Pouco depois da independência
José Bonifácio, discorrendo sobre os problemas colocados pela
tradução de poetas gregos e latinos, manifestava a esperança de
que "no vasto e nascente Império do Brasil", o português pudesse
ser enriquecido "com muitos vocábulos novos, principalmente
compostos ... apesar de franzirem o beiço puristas acanhados"
(apud Pinto, 1978b, v.l, p.10). Porém, foi durante o Romantismo
que o problema adquiriu contornos mais definidos. Gonçalves
Dias, José de Alencar, Montalverne, Junqueira Freire e historia-
dores do porte de Varnhagen e João Francisco Lisboa alinhavam-
se entre aqueles que defendiam, com maior ou menor ênfase, a
diversificação do português do Brasil. Alencar sustentou polêmi-
cas acirradas em prol dos seus neologismos estilísticos - então
tidos como incorreções - e da utilização da linguagem coloquial
na obra literária. Nos debates, que envolveram Franklin Távora,
Antônio Henriques Leal, Joaquim Nabuco, também estava em
pauta o rompimento com o passado português, a fidelidade ao
quinhentismo, o valor dos clássicos, o distanciamento entre a lín-
gua falada e a escrita, a aceitação de estrangeirismos.
Na segunda metade do século XIX já eram discerníveis as
duas grandes vias de abordagem fadadas a se enfrentarem durante
décadas: de um lado, os puristas ou legitimistas, defensores da
aplicação estrita dos canônes gramaticais e avessos a tudo que se
afastasse da linguagem culta; e de outro, aqueles que, enfatizando
o distanciamento - em termos dialetais ou separatistas - do por-
2 AMARAL, A. A língua nacional. RBR, v.46, n.6l, p.26-7, jan. 1921, grifo no
original.
tuguês da América, combatiam o apego ao formalismo e academi-
cismo, advogando a legitimidade dos brasileirismos e das
construções populares.
Note-se que esse tipo de discussãoo era exclusividade
nossa. Como assinalou Morse (1990, p.30), "o conflito entre
puristas e nativistas, uma velha briga em todos os países america-
nos, reduz-se a esta questão: se os idiomas transplantados perde-
ram sua força e precisão para exprimir mensagens novas, ou seo
justamente estas mensagens queo de revigorar a língua". O
caráter bizantino da questão é apenas aparente, estava em jogo o
direito à existênciao só de uma prosódia brasileira mas também
de um sentir próprio, em conformidade com a nossa raça e con-
substanciado em uma produção cultural autóctone. Essa proble-
mática encontrou em Alencar a seguinte formulação: "o povo que
chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma
língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve
o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?" (apud Preti, 1976).
Enquanto os escritores se digladiavam, os especialistas come-
çavam a registrar variações no léxico, datando desse período o
aparecimento dos primeiros dicionários que incorporavam a con-
tribuição brasileira ao português. Em 1853, Brás da Costa Rubim
publicou o Vocabulário Brasileiro para servir de complemento do
Dicionário da Língua Portuguesa; em 1888 surgiu o Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa, de Antonio Joaquim de Macedo
e no ano seguinte o Dicionário de Vocábulos Brasileiros, de Hen-
rique Pedro de Beaurepaire-Rohan. No campo filológico merece
destaque o Esquisse d'une Dialectologie Portugaise (1901), de José
Leite de Vasconcelos, que se constituiu, por muitos anos, em obra
obrigatória para os estudiosos do assunto.
Entretanto, é fundamental frisar que a disputa entre puristas
e inovadores esteve longe de ter um desenvolvimento linear. A
vaga romântica, seguiu-se um período marcado pelo signo da ver-
naculidade, associada às figuras de grande prestígio no tempo: Rui
Barbosa, que sustentou acalorada polêmica em torno da redação do
projeto do Código Civil, Bilac, Euclides da Cunha e Coelho Neto.
Alguns, como Candido de Figueiredo, Osório Duque-Estrada e
Carlos de Góes eram considerados verdadeiros inquisidores, sem-
pre prontos a denunciar o mínimo desvio nos padrões normativos
da língua. Góes, num esforço para banir definitivamente os gali-
cismos da língua pátria, publicou o seu Dicionário de Galicismos,
obra que mereceu o seguinte comentário na Revista do Brasil:
Todas essas palavras [tidas por Góes como galicismos]o de
uso constante e geral, algumaso profundamente infiltradas na lín-
gua queo há reação química, dosada sabiamente por gramáticos,
capaz de eliminá-las. Para comentar somente algumas: pode-se ima-
ginar força humana bastante para nos obrigar a dizer hostaus em vez
de hotel; gonilha (!) em vez de gravata; pez negro em vez de breu;
extrato em vez de geléia; impermeáveis em vez de galochas; advinha
em vez de charada; fecho em vez de colchete; mistovéla - criada por
Carlos Góes - em vez de omelete?
3
A preocupação com a correção gramatical, admiravelmente
satirizada por Monteiro Lobato em 1920 na figura de Aldrovando
Cantagalo (Lobato, 1940), invadiu jornais e revistas, que passaram
a manter seções especializadas na discussão de pontos controver-
sos com o intuito de estabelecer como se deveria falar ou escrever.
A Revista do Brasilo esteve totalmente imune à gramati-
quice, tendo possuído seções como Estudinhos de Português (6
números), Mealhas Etimológicas (5 números), Língua Vernácula
(4 números) e Enfermidades da Língua (4 números). Suas páginas
também acolheram réplicas destemperadas como a que foi diri-
gida à Osório Duque-Estrada por Agenor Silveira. Este valeu-se
das páginas da revista para responder às observações críticas que
Osório teceu a respeito do seu livro Colocação dos pronomes em
resenha publicada na Revista da Academia Brasileira de Letras.
Merece destaqueo apenas os termos da discussão - acusações
recíprocas de galicismos, defesa do uso de verbos em seus sentidos
arcaicos, guerra de anacolutos, caça a sujeitos reais e aparentes,
tudo convenientemente estribado nos clássicos e gramáticos - mas
também a rispidez e a virulência com que o contendor era
(des)tratado: "apoucado é o discernimento do balofo julgador ...
3 SALLES, A. A classicomania. RBR, v.18, n.70, p. 102-3, out. 1921.
apoucada é a competência gramatical do crítico ... apoucada, ver-
dadeiramente mesquinha, é a justiça do Sr. Osório Duque-Estrada
... E a um lobisomem destes, com fumos de super-homem, se con-
ferem as gloriosas preeminências da imortalidade".
4
Contudo, seria errôneo supor que o mensário tivesse se ren-
dido às questiúnculas. Pelo contrário, o aparecimento da publica-
ção ocorreu justamente no momento em que, sob o influxo da
atmosfera nacionalista, a tendência de considerar as transforma-
ções lingüísticas produzidas no Brasil como corrupção - ou no
mínimo transgressão - da norma culta tornavam-se, mais uma vez,
alvo de críticas. Os apóstolos da nova cruzada emancipadora dis-
puseram de amplo espaço na revista que, dessa maneira, refletia
opiniões dissonantes.
Os atritoso se circunscreviam ao universo sintático, antes
extravasavam o círculo restrito dos gramáticos para atingir a pro-
sódia, aspecto da língua que diz respeito a todos os seus utentes.
Também nesse âmbito o distanciamento em relação ao padrão
lusitano era condenado, o que levava algumas senhoras educadas
a dizerem quére, pregunta e a declamarem versos no melhor estilo
lisboeta: "Man'él, tains razão. Vanho tarde. Mêx nã-fui eu quain
teve culpa...".
5
Porém é aconselhável queo se classifique esse
esforço de rejeição da ortoépia brasileira, pejorativamente deno-
minada português com açúcar, como mera excentricidade. No tea-
tro, até o final dos anos 20, ainda era regra comum a adoção da
pronúncia portuguesa por parte dos atores brasileiros, prática que
começava a merecer contestações cada vez mais acerbas:
É lastimável que nós, que representamos superioridade formi-
dável no quadro da geografia lingüística do português; nós, que
somos hoje os mais numerosos depositários das tradições da língua,
os seus perpetuadores, os artífices de muitas de suas belezas; nós,
que tanto a enriquecemos, que a cobrimos de novas galas, que a reju-
venescemos e lhe demos frescura e suavidade, descobrindo efeitos
imprevistos na sua harmonia e ritmo; é lastimável ... que estejamos
4 SILVEIRA, A. O Sr. Osório Duque-Estrada e o meu livro Colocação de pro-
nomes. RBR, v.20, n.80, p.372-8, ago. 1922.
5 RIBEIRO, J. Sobre a nossa literatura. RBR, v.S, n.19, p.403, jul. 1917.
condenados a essa submissão incompreensível, sem uma prosódia
nacional no nosso teatro, que, convencionalmente, c a reprodução
do meio social nos seus vários e variados aspectos ... Que falem à
moda lusitana personagens em cenas portuguesas, está muito bem ...
exigir, porém, que interpretes nacionais estropiem a prosódia por-
tuguesa ... é ter em muita pouca estima a língua que aqui se fala e
procurar submeter uma sociedade inteira a uma vassalagem que já
desapareceu, para todos os efeitos, desde 1822 ... É preciso implan-
tar de vez nos nossos palcos a nossa prosódia, banindo para sempre
o arremedo simiesco do acento lusitano, que torna ridículo os nos-
sos artistas.
6
Esta problemática ressoava com força na escrita, área na qual
a situação beirava o caos. A inexistência de normas ortográficas,
fosse aqui ou em Portugal, gerava uma multiplicidade de grafias
para o mesmo vocábulo, sem que se pudesse encontrar alento em
um padrão seguro. Em 1907 surgiu o primeiro projeto brasileiro
de simplificação ortográfica, apresentado à Academia Brasileira
de Letras por Medeiros e Albuquerque. A sua discussão arrastou-
se por cinco anos, marcados por emendas, pareceres e substituti-
vos propostos por nomes ilustres: José Veríssimo, Rui Barbosa,
Sílvio Romero, João Ribeiro, Salvador de Mendonça. Finalmente,
em 1912, o relator João Ribeiro conseguiu apresentar a versão
definitiva, porém ela jamais foi formalmente sancionada.
Enquanto isso Portugal adotava, no ano de 1911, uma reforma
que acabaria sendo encampada pela Academia Brasileira de Letras
em 1915,o sem gerar infindáveis polêmicas.
A atitude da Academia, abdicando das suas próprias propos-
tas em prol daquelas firmadas pelos portugueses - consideradas,
do ponto de vista lingüístico, superiores - enfureceu boa parte da
nossa intelectualidade. Entrelaçavam-se aqui questões teóricas e
políticas. No tocante à primeira, alguns defendiam a ortografia
etimológica, discordando portanto de qualquer alteração, inde-
pendentemente de quem a propusesse. Dentre os que reconhe-
ciam a necessidade de simplificar o sistema vigente, alguns
6 NOGUEIRA, J. A prosódia brasileira no teatro. RBR, v.10, n.38, p.238, fev.
1919.
recusavam a proposta portuguesa,o muito diferente da brasi-
leira, pelo fato dos especialistas deste lado do Atlânticoo terem
sido consultados; enquanto outros defendiam uma ortografia
fônica que fosse fiel unicamente à prosódia brasileira. Havia ainda
aqueles que, preocupados com a afirmação da nossa autonomia,
interpretavam a adoção do modelo português como verdadeira
capitulação diante da antiga metrópole, amplamente inferiorizada
no tocante ao número de usuários do idioma.
Tal foi a celeuma que passados apenas quatro anos a Acade-
mia, sob influência dos etmologistas, capitaneados por Osório
Duque-Estrada, voltou atrás e revogou todas as reformas, o que
nos colocava de novo na situação anterior, ou seja, de ausência
total de normatização. Somente em 1929 a Academia decidiu
retomar, com ligeiras modificações, o projeto de 1912, posição
que novamente esbarraria em protestos. Em 1931, foi firmado um
acordo entre a Academia Brasileira e a Academia de Ciências de
Lisboa com o intuito de se estabelecer uma grafia unificada para
os dois países. Essa data também inaugurou o início da ingerência
do Estado Brasileiro na questão ortográfica, tendo sido expedidos
pelo Governo Provisório de Getúlio Vargas decretos ratificando
e, posteriormente, colocando em vigor o referido acordo. Cons-
ternados, gramáticos e filólogos viram o assunto migrar do gabi-
nete do especialista para as repartições públicas. Entretanto,o
houve força de lei capaz de colocar um ponto final na questão.
Desde então, Portugal e Brasil firmaram mais de um acordo, todos
inoperantes.
7
O mais recente, que também incluiu as ex-colônias
africanas, tem provocado debates apaixonados de todos os lados.
O projeto foi aprovado pela Assembléia Portuguesa em 1991 e
pelo Congresso Nacional Brasileiro em abril de 1995.
Todas essas marchas e contramarchas tornaram a ortografia,
durante a maior parte do presente século, uma questão movediça.
Comentando a desordem reinante Amadeu Amaral afirmava:
7 Para um histórico da questão ortográfica até a década de 1970 ver: PINTO,
E. P., 1976 e 1978b, v.II, p.XV-XVIII; RAMOS, D. S., 1991, autor da última
reforma ortográfica, datada de 1971. Para o período iniciai do presente século é
particularmente útil o trabalho de FIGUEIREDO, C, 1921.
"continuamos a ser o único país do mundo civilizado onde cada
um escreve como lhe parece, onde nem sequer nas escolas oficiais
se observa um sistema ortográfico único".
8
De fato, em 1921, a
Revista do Brasil considerou necessário adotar medidas a respeito
da questão, tendo publicado o seguinte comunicado aos seus cola-
boradores:
A questão ortográfica, sempre e cada vez mais embrulhada,e
a todo o mundo em dificuldades. A Academia Brasileira que deveria
assumir no meio desta confusão uma atitude de autoridade, em bem
da ordem, teve a lamentável fraqueza de abrir a questão, ou - o que
é pior - abandoná-la. Com isso a desordemo podia seo aumen-
tar, e é o que vem sucedendo. Na redação desta revista jáo sabe-
mos para onde nos voltar. Cada autor escreve segundo um sistema,
- este escreve segundo o sistema português, aquele segundo o sis-
tema português modificado, aquele outro segundo o sistema misto,
ou usual, simplificado em certos pontos, ou mais complicado ainda
que o vulgarmente. Acresce que o sistema misto jáo é propria-
mente um sistema, mas uma transação variável segundo os autores
que se possam tomar por guias ... Entretanto urge tomar uma deci-
são.o podemos fazer respeitar na revista todos os modos de gra-
far ... Portanto, fique entendido: a Revista do Brasil só tem uma
ortografia, essa baseada no Aulete. Os originais que nos forem reme-
tidos serão postos de acordo com ela. Só abrimos exceção em favor
dos que observarem rigorosamente a ortografia portuguesa, por se
tratar de um sistema perfeitamente definido, codificado e oficial-
mente adotado num país inteiro.
9
As disputas no campo da prosódia e da ortografia invariavel-
mente terminavam por conduzir à tormentosa questão do estatuto
da língua falada no Brasil. Afinal, tratava-se de um novo idioma,
já emancipado ou em vias de obter sua alforria; de línguas idênti-
cas no que respeita à estrutura fundamental; ou ainda de um por-
tuguês modificado, com todas as gradações e os matizes que se
queira atribuir ao termo?
As respostas a essas questões divergiam bastante. Para os
defensores da unidade do idioma, segundo os quais as diferenças
8 AMARAL, A. A comédia ortográfica. RBR, v.3, n.9, p.103, set. 1916.
9 Ortografia. RBR, v.16, n.64, p.84, abr. 1921.
entre o português do Brasil e o de Portugal resumiam-se ao léxico,
bastaria para acomodar a situação que
O trabalho lexicográfico das duas academias fosse simultanea-
mente empreendido, estando ambas em acordo para que seja comum
o dicionário da língua ... Em qualquer dicionário que se venha a ela-
borar é justo e é necessário que figurem os chamados brasileirismos ...
O acervo comum cresce com tais contribuições, queo bastam,
entretanto, para justificar a formação de novos idiomas.
10
Na mesma linha encontrava-se Bilac. Em discurso proferido na
cidade de Lisboa em 1916, por ocasião de um banquete que lhe foi
oferecido pela revista Atlântida, o escritor autodefiniu-se comoo
sendo "um purista extremado, de um purismo que se abeire da
caturrice", posição que lhe permitia aceitar que variasse e se aper-
feiçoasse "o tesouro dos vocabulários, o movimento das locuções,
o ritmo das frases", mas que o tornava intransigente quando se tra-
tava de "alterações na sintaxe, estrutura essencial do idioma ... per-
pétua e imutável" (apud Pinto, 1978b, v.I, p.369-70). A primeira
vista suas opiniões parecem coerentes com o poeta parnasiano, des-
toando porém do Bilac ardente pregador do civismo, do naciona-
lismo e da Liga de Defesa Nacional. Entretanto, é preciso notar que
sua argumentação em prol da unidade da línguao se fundamen-
tava em arrazoados de natureza gramatical ou filológica, mas na
necessidade política de levar adiante uma cruzada patriótica com o
intuito de preservar e proteger o português, ameaçado - segundo
acreditava - pelas várias levas de imigrantes que afluíam ao país:
Abrimos o Brasil a todo mundo: mas queremos que o Brasil seja
Brasil! Queremos conservar a nossa raça, a nossa história e, princi-
palmente, a nossa língua, que é toda a nossa vida, o nosso sangue, a
nossa alma, a nossa religião! Em parte o vocabulário nacional é filho
o do homem, mas da terra ... Se queremos defender a nacionali-
dade, defendamos também e antes de tudo a língua, que já se inte-
grou no solo, e já é base da nacionalidade. (apud Pinto, 1978b,
p.3790-1)
10 LIMA, O. Língua e ortografia. RBR, v.25, n.93, p.82, set. 1923. Na mesma
direção argumentava DA1SON, A. Brasileirismos. RBR, v.25, n.103, p.274,
jul. 1914.
Essa perspectiva abria caminho para a construção de uma
noção de estrangeiro marcada pela simbologia da falta e da nega-
tividade - "estrangeiro é aquele queo fala a nossa língua, é
aquele que nos procura só para tirar algum partido; é estrangeiro
o imigrado ou filho de imigrado enquantoo pensa eo sente
um pouco como brasileiro".
11
Cerrar fileiras em torno do portu-
guês significava combater os efeitos deletérios provocados pela
presença, no corpo da nação, de elementos estranhos que pertur-
bavam sua integridade e coesão. A existência de jornais e revistas
em língua estrangeira - "lidos por pouquíssimos brasileiros, nem
na repartição de políciao lidos!"
12
-, era condenada sob alega-
ção de que num país novo, receptor de estrangeiros, tal presença
constituía-se num empecilho à assimilação.o por acaso, o pro-
grama das Ligas Nacionalista e de Defesa Nacional insistiam na
criação de escolas primárias, especialmente nos núcleos coloniais,
na obrigatoriedade do ensino do português nos estabelecimentos
educacionais estrangeiros e na atuação decidida do poder público
a fim de evitar a formação de quistos étnicos no território nacio-
nal.
13
Em contrapartida, havia todo um grupo que se declarava
insatisfeito com o compromisso lexical - taxado de inócuo - e
identificava como a verdadeira tarefa política o fim do estigma
colonial que ainda pesava sobre a produção da intelectualidade
brasileira. Nessa medida, a auto-afirmação da nação passava pela
contestação tanto da herança recebida de Portugal, quanto de sua
suposta prerrogativa de continuar a ditar regras no campo cultu-
ral. Alinhavam-se nesta trincheira os que defendiam a existência
de uma língua brasileira e aqueles que, apesar de admitirem a uni-
dade,o abriamo do direito à diversidade:
11 A definição foi dada por O. F. Imigração alemã. RBR, v.13, ri.48, p.377-8,
dez. 1919.
12 Ibidem.
13 Para as propostas das ligas em relação à educação ver: Liga de Defesa
Nacional. RBR, v.3, n.9, p. 100-1, set. 1916 e Liga Nacionalista. RBR, v.6,
n.21, p.83, set. 1921. O perigo do isolamento do imigrante também foi abor-
dado por ROQUETE PINTO, E. O Brasil e a Antropogeografia. RBR, v.3,
n.l2,p.333,dez. 1916.
Para Portugal ... o Brasil, pelo menos nos domínios da intelec-
tualidade, continuava a ser a colônia submissa, para onde, quando
muito, se mandavam idéias estranhas, traduzidas, às pressas, em ver-
náculo de fancaria ... Conquistamos a independência política, o que,
como se sabe,o foi difícil; mas permanecíamos colonos intelectuais,
o que, com deprimente, era ridículo. Éramos ainda, aos olhos sonha-
dores dos nossos irmãos de além-mar, uma simples, se bem que
vasta, expressão geográfica ... Para exprimir todas as inferioridades
da nossa vida incipiente inventara-se um termo extremamente pito-
resco e impressivo: macaqueação. O que, porventura, daqui partisse
com veleidades de esforço próprio, de expressão nacional,o
lograria transpor as águas atlânticas sem receber, fulminantemente,
o remoque indefectível. Teríamos que nos resignar à condição de
admiradores passivos: recebêssemos a luz da metrópole eo ten-
tássemos com ela ofuscar o sol generoso que nos prodigalizava ... De
súbito, porém, o Brasil rompe com o seu passado, abandona a forma
política e a cultura clássica transplantadas da metrópole ... [e]
começa a afirmar-se com uma ânsia e um vigor tremendos.
14
O epicentro da questão residia na análise das transformações
lingüísticas aqui operadas, suas origens e conseqüências práticas.
Obviamente, essa buscao estava isenta de conotações políticas.
No final dos anos 10 ganhou fôlego um discurso, destinado a
longa vigência, que se esmerava em atribuir ao Brasil dimensões
gigantescas - a extensão do território, a população que ele pode-
ria abrigar, as potencialidades econômicas, o peso estratégico do
país na geopolítica do pós-guerra - prenunciadoras de um futuro
muito mais promissor para a ex-colônia do que o reservado para
a antiga metrópole.
A posse de uma língua própria, capaz de dar vazão à expres-
sividade nativa, desempenhava aqui papel estratégico, sendo
encarada como sinal de afirmação racial. Além de defender a
necessidade de termos a nossa língua, Rubem do Amaral preten-
dia protegê-la da penetração de estrangeirismo, argumentando
nos seguintes termos:
14 ALBUQUERQUE, M. A embaixada brasileira em Portugal. RBR, v.l, n.2,
p.213-4, fev. 1916, grifos no original.
Se a língua é o reflexo da alma de uma nacionalidade, essa falta
de resistência (a termos estrangeiros) deve ser considerada como um
sintoma de anemia racial. Os povos fortes, sabe-o toda a gente,
impõem o seu falar aos mais fracos com que convivem, notando-se
desde logo que força aquio exprime somente poder militar, mas
também as qualidades queo o predomínio nas ciências, nas letras,
nas artes, na vida social e no mundo econômico.
15
Contudo, o que se presenciava era uma sistemática negação
de foro de linguagem culta aos fenômenos observados no portu-
guês da América. As reivindicações de vernaculidade para o uso
brasileiro da língua portuguesa eram muito mais do que caturrice
de sisudos gramáticos, apegados à alfarrábios empoeirados.
Tais demandas apoiavam-se em argumentos que, apesar de
contrastantes, muitas vezes apareciam mesclados nos discursos da
época. Recorria-se com freqüência a princípios inspirados na bio-
logia evolucionista, com o intuito ora de justificar o processo de
diferenciação em curso, ora a inevitabilidade da separação com-
pleta, como no trecho abaixo:
Assim como o português saiu do latim, pela corrupção popular
dessa Língua, o brasileiro está saindo do português. O processo for-
mador é o mesmo: corrupção da língua mãe. A cândida ingenuidade
dos gramáticos chama corromper o que os biologistas chamam evo-
luir ... É risível o esforço do carranca, curto de idéias e incompreen-
sivo, que deblatera contra esse fenômeno natural, e tenta paralisar a
nossa evolução lingüística em nome dum respeito supersticioso aos
velhos tabus portugueses ... que corromperam o latim.
16
15 AMARAL, R. do. Manifestações do nacionalismo. RBR, v.12, n.47, p.218,
nov. 1919.
16 LOBATO, J. B. M. Dicionário brasileiro. RBR, v.14, n.56, p.378, ago. 1920.
Ao resenhar o livro de Firmino Costa voltou ao assunto, ver: Gramática Por-
tuguesa de Firmino Costa. RBR, v.16, n.64, p.63, abr. 1921. Entretanto, c
preciso assinalar que as posturas de Lobato diante dos problemas lingüísticos
variaram bastante ao longo do tempo, como bem evidenciou PINTO, E. P.,
1978a, p.6-7. Para a crítica das tentativas de aplicar às línguas princípios deri-
vados da biologia ver: ELIA, S., 1940, p.98-103 e MELO, G. C. de, 1975,
p.19. Os parâmetros atuais da questão podem ser rasteados em ROBERTS, I.
&KATO, M.A., 1993.
Outros postulavam que boa parte dos chamados brasileiris-
mos nada mais era do que formas arcaicas conservadas na Amé-
rica, porém já desaparecidas na Europa. Aquilo que, quando
confrontado com as normas então vigentes em Lisboa se afigurava
como erro ou transgressão, encontrava abono nos escritores de
séculos anteriores. O dialeto caipira, obra de Amadeu Amaral
publicada em 1920 da qual a revista já estampara alguns capítulos
quatro anos antes, comprovou de forma cabal essa sobrevivência
e inaugurou uma nova etapa nos estudos lingüísticos nacionais:
Em verdade, estes [elementos do português do século XVI]
o se limitam ao léxico. Todo o dialeto está impregnado deles,
desde a fonética até a sintaxe ...o em grande número, relativa-
mente à extensão do vocábulo dialetal, as formas esquecidas ou
desusadas da língua. Lendo-se certos documentos vernáculos dos
fins do século XV e de princípios e meados do século XVI, fica-se
impressionado pelo ar de semelhança da respectiva linguagem com
a dos nossos roceiros e com a linguagem tradicional dos paulistas
de "boa família", queo é senão o mesmo dialeto um pouco mais
polido.
17
Nessa perspectiva, também a ortoépia adquiria direito à sobe-
rania.
Essas posturas, ainda que estribadas em hipóteses de natureza
diferente,o eram irredutíveis. Ao arguto Lobato, propugnador
da separação completa entre D. Manuela e Brasilina, denomina-
ções por ele criadas para o português falado na Europa e na Amé-
rica,o passou desapercebido o caráter fundador do estudo de
Amaral, a quem cognominou de Fernão Lopes da gramaticologia
brasileira:
E Brasilina, tomada a sério pela primeira vez, escolhida de
improviso por um artista de renome que a quer retratar com fideli-
17 AMARAL, A. O dialeto caipira. RBR, v.3, n.10, p. l19-20, out. 1916. Sobre o
significado dessa obra pioneira ver: PINTO, E. P., 1976 e DUARTE, P.,
1976. O trabalho de Amaral inspirou vários outros, como o de Antenor Nas-
centes, O linguajar carioca publicado, em primeira mão, na Revista do Brasil,
entre maio de 1921 e junho de 1922, com o título Variante carioca de um
subdialeto brasileiro.
dade, entrepara, acanhadinha, de pé atrás e dedo na boca. E Amadeu
assim a esboça doss à cabeça, em traços firmes, num carvão claro-
escuro que marcará entre nós o início de uma nova fase de estudos
lingüísticos - e esta fecundíssima como verão. Até aqui a nossa filo-
logia se limitava a bizantinar sobre as verrugas da língua mãe, mexe-
ricando com clássicos, fossando, como bácora, pulverulentos
alfarrábios reinóis ... O estudo único em matéria filológica que nos
cumpria fazer,o o fazíamos. Era esse da língua nova, a língua que
ao país inteiro interessa: o estudo, o retrato fiel da Brasilina arisca
que atende às necessidades de 25 milhões de Jecas que somos. Por-
que, estranha contradição!, falamos à moda de Brasilina, mas escre-
vemos à moda de Dona Manuela, por falta de coragem ou medo ao
bolo da férula portuguesa. (Lobato, 1922, p.149)
Também se apropriaram do Dialeto aqueles que, como
Brenno Ferraz, advogavam em prol da unidade:
Estudo experimental da linguagem paulista, é pura constatação
de fatos.o o anima aquele estranho espírito nacionalista. Ao con-
trário, a melhor, a mais bela, a mais valiosa observação do livro é
exatamente aquela que, longe de insinuar a solução de continuidade
histórica da língua, proclama com a maior eloqüência o fenômeno
de apego atávico ao velho falar dos navegantes portugueses, que
deram nascimento à nação. A linguagem caipira está cheia,o só
de termos e expressões vernáculas como - o que é de extraordinária
beleza - de reminiscências da epopéia descobridora. Para opor aos
sonhadores do idioma nacional que mais convincente argumento?
18
Utilizaçõeso discrepantes indicam que novos dados ten-
diam a ser acomodados à verdades anteriormente assumidas, o
que de saída esterilizava qualquer discussão.
Se, por um lado, a obra de Amadeu Amaral suscitava conclu-
sõeso díspares em relação ao futuro da língua, a constatação do
caráter arcaico da fala do caipira contribuía com elementos novos
para a construção do sentimento de paulistanidade. Afinal, à ima-
gem de umo Paulo rico e próspero, berço do café, palco da
independência, responsável pela expansão do território, habitado
18 FERRAZ, B. O dialeto caipira. RBR, v.16, n.62, p.165, fev. 1921, grifos no
original.
por uma raça superior, somava-se agora a de guardião da língua
dos descobridores, mantida intacta graças à
uma peculiaridade paulista. A formação deo Paulo diverge, pro-
fundamente, da do resto do país ..., pois, a linguagem paulistana
pode ter guardadoo pronunciados traços da língua dos cronistas
da India ... Pretendemos, os paulistas, que somoss os filhos mais
velhos do Brasil, e para a pretensão, que tem fundamentos na His-
tória, o Dialeto Caipira traz preciosa contribuição glotológica.
19
Aos habitantes planaltinos dever-se-ia, mais uma vez, creditar
a redenção do Brasil. Desta feita era oo desprezado português
com açúcar que encontrava a sua nobilitação. Por vias transversas,
0 trabalho de Amaral vinha engrossar a vertente comprometida
com a construção de um passado paulista povoado de heróis e gló-
rias, único a harmonizar-se com as fulgurantes realizações do pre-
sente. É importante lembrar que datam desta época a publicação
de trabalhos de Alfredo Ellis Júnior, Afonso de Taunay, Paulo
Prado e, pouco depois, de Antonio Alcântara Machado, a respeito
do bandeirante, caracterizado como "mameluco audaz, que
expandiu as fronteiras do Brasil, descobriu o ouro, dono de uma
cultura própria", imagem que atuou poderosamente na constru-
ção do "patriotismo paulista, associado a um orgulho de linha-
gem" (Abud, 1985, p.138).
Por outro lado, o estabelecimento de um caminho peculiar
para o português do Brasil, dotado de ritmo, cadência, pronúncia
e regras de sintaxe próprias, contribuiu para afirmar o direito à
alteridade, inaugurando novas fronteiras lingüísticas que permi-
tiam delimitar o território do nosso idioma em oposição ao por-
tuguês falado na Europa.o surpreende que a discussão do
estatuto da produção literária nacional tivesse entrado na ordem
do dia. João Ribeiro, filólogo dos mais aclamados que transitou
do purismo para a vanguarda das novas propostas sobre a língua,
foi ao cerne da questão ao afirmar:
19 Ibidem.
Livros como Iracema e o Guarani parecem frívolos e ridículos,
além mar. Na generalidade as obras de ficção, verso ou prosa,
quando passam o Atlântico, lá chegam como certos gêneros avaria-
dos, moles, úmidos e deliqüescentes; buscam-lhes forma, linha e
correções e nada encontram senão uma volúpia líquida e informe.
Nada de terso, rude ou forte; ao contrário, a molice selvagem de
lambões lúbricos, melosos e ridículos. Há uma incompreensão
lamentável entre os dois mundos. A distância esmorece, esfuma,
apaga todas as arestas e projetam num caos de neblina todas as
linhas ... Os nossos versos chegam aos ouvidos de lá como clamores
mortos da inúbia selvagem, perdem nas ondas da travessia o ritmo
próprio.o podem ser lidos. A prosa dá idéia de uma tradução.
Faltam-lhe todas as elipses mentais queo podem arrastar consigo.
Chega sem alma.
20
Incompreensão lamentável, idéia de tradução: esses os ter-
mos utilizados para afirmar a intransponibilidade entre dois mun-
dos que alguns ainda queriam uno. Em jogo o direito a um sentir
próprio, autóctone, que fosse expressão de brasilidade. A litera-
tura, força criadora capaz de instituir mitos de origem, determinar
relações com o passado e apresentar-se como guardiã da memória
nacional, foi tomada como padrão adequado para indicar o
quanto já nos havíamos distanciado de Portugal e para justificar
as aspirações a uma língua nossa, entendendo-se por isso quer a
separação absoluta, quer o direito a uma utilização livre de tute-
las, comprometida apenas com os ditames locais.
20 RIBEIRO, J. Sobre a nossa literatura. RBR, v.5, n.19, p.402-3, jul. 1917. Para
uma análise das posições de João Ribeiro ver: ELIA, S. 1940, p.120-30. Tex-
tos do autor espelhando a posição legitimista e, posteriormente, a reformista
podem ser encontrados em: PINTO, E. P., 1978b, v.I, p.335-55 e v.2, p.33-43.
Considera-se a publicação da sua obra A Língua nacional (1921), como o
ponto de inflexão de seu pensamento. Entretanto, como se verá adiante, arti-
gos seus na Revista do Brasil, datados de 1917, já expressavam idéias que
seriam sistematizadas em 1921. Sua defesa do direito à diferença foi tomada
por muitos como sinônimo da existência de uma língua nacional autônoma
da portuguesa. Monteiro Lobato, seu editor, ao anunciar a obra, afirmou:
"caminhamos para ter a nossa língua, a língua nacional, como ele (João
Ribeiro) a denominou, e esse livro (A Língua Nacional), com O dialeto caipira
de Amadeu Amaral, correspondem às primeiras pedras de alicerce no edifício
em construção". Notícias Editoriais. RBR, v.17, n.68, p.455, ago. 1921.
A língua portuguesa ainda é mais dos portugueses do que dos
brasileiros.o reflete bem os nossos sentimentos. Quando quere-
mos ser expressivos e fiéis, ao dizer des mesmos e das nossas coi-
sas, temos que romper ou amolgar os moldes tradicionais dos nossos
avós, criando um idioma novo, queo seja discorde do novo
mundo em que vivemos. Nem é possível que sigamos a mesma trilha
se olhamos para o Futuro e eles olham para o passado. Falta-nos o
verbo individual. Havemos de possuí-lo, porém, num lento trabalho
coletivo queo será a morte do português, mas a sua carta de natu-
ralização, de corpo e alma, afeiçoando-o ao hábitat do Brasil.
21
Numa palavra, em vez de falar como os portugueses preten-
dia-se entabular um diálogo com eles. Aqui tambémo estiveram
ausentes vozes intolerantes que, seguindo o exemplo dos caçado-
res de galicismos, pretendiam extirpar dos dicionários tudo aquilo
queo fosse exclusivamente brasileiro. Ao comentar o projeto
de Assis Cintra de organizar um dicionário brasileiro, projeto esse
amplamente apoiado por Monteiro Lobato, um articulista da
Revista do Brasil alertava para o perigo de se incorporarem à obra
palavras e expressões queo fossem genuinamente locais, tais
como canja de galinha, com o sentido de facilmente realizável;
arame, significando dinheiro; encrenca, na acepção de problema.
Alertava-se para a necessidade desses falsos brasileirismos serem
excluídos da obra.
22
Distante das questões menores, João Ribeiro, sem negar a
subalternidade da literatura brasileira em escala mundial - pecha
que também considerava aplicável à congênere portuguesa -,
esforçava-se em delimitar para a nossa produção veredas que lhe
fossem próprias, com o intuito de atestar uma individualidade
crescente em relação à Portugal:
Com a independência do Brasil, as predileções, em regra sem-
pre as mesmas, começaram a tomar um rumo novo e de longo curso
... Podemos imitar as literaturas estrangeiras sem o intermédio por-
21 AMARAL, R. do. Manifestações do nacionalismo. RBR, v.12, n.47, p.219,
nov. 1919.
22 DOM XIQUOTE (não identificado). Dicionário brasileiro. RBR, v.17, n.67,
p.372-4, jul. 1921.
tuguês. De fato, no século que acabou, antes de Portugal tivemos em
primeirao o romantismo. Magalhães precede Garrett. É já muito
a precedência na imitação ou na renovação das fontes, embora essa
prioridadeo nos liberte do assíduo influxo dos românticos da
antiga metrópole. Emancipação política e literária. Outra ascendên-
cia ainda mais característica depois do romantismo. Portugalo
teve nunca parnasianos de vulto, de inspiração e de técnica, e tive-
mos, então os nomes consagrados de Raymundo Correia, Alberto de
Oliveira e Olavo Bilac ... Os portugueses desconhecem inteiramente
a nossa literatura ... É impossível, pois, que reconheçam as prece-
dências apontadas.
23
O caminho que levava das declarações de precedência ao
rompimento absolutoo era muito longo. Nesse sentido, a ques-
o do estatuto do falar e escrever brasílicos adquire novos signi-
ficados quando se toma em consideração o fortalecimento, a
partir de meados da década de 1910, da corrente regionalista.
Constituída por escritores que elegiam como tema principal o ser-
o e seus habitantes, essa vertente propugnava a incorporação de
cenários, linguagem, tipos, situações e costumes locais como antí-
doto para o que qualificavam de tom artificial e postiço da nossa
literatura:
Quando se esgotar, esfalfada, essa literatura do urbanismo, que
canta os sortilégios da civilização, literatura de jazz-bands e de cine-
mas, de alma cosmopolita e pouco brasileira, então é que, no casto
esplendor da sua beleza virginal, pura como a Yara dos nossos rios,
triunfará a literatura sertaneja, nacional nos costumes, nas descri-
ções, no fraseado, espelhando as belezas da nossa vida rústica, da
província e do sertão, onde, no dizer expressivo de Afonso Arinos,
se vai tecendo a rede de solidariedade da população brasileira.
24
A opção por rincões distantes,o conspurcados por influên-
cias externas e nos quais repousavam incólumes os valores semi-
nais da terra, representava um brado contra o cosmopolitismo,
cujo símbolo mais acabado era o Rio de Janeiro:
23 RIBEIRO, J. A nossa poesia. RBR, v 5, n.17, p.115-6, maio 1917.
24 MESQUITA, J. de. Mato Grosso através de sua literatura. RBR, v.25, n.104,
p.357, ago. 1924.
Recorrendo ao próprio país para a composição das suas obras,
eles (os regionalistas) evitam a imitação perniciosa dos modelos
estrangeiros. E já alguma das obras, principalmente Urupês, de
Monteiro Lobato, alcançaram uma rápida vulgarização, para a qual
em nada contribuiu a consagração "de Paris". É um bom caminho
que os levará, sem dúvida, a realizar alguns bons livros profunda-
mente brasileiros.
25
A saída ao encalço de si mesmo, que deitava raízes no roman-
tismo, apresentava-se como via capaz de habilitar a nação a asse-
nhorar-se do seu futuro e apagar, definitivamente, as marcas de
séculos de dominação colonial.
O MODELO NACIONAL PAULISTA
O desejo de afirmação e auto-suficiência extravasava os limi-
tes da literatura, manifestando-se também no teatro e no cinema.
No que se refere à dramaturgia, a crítica registrava um interesse
crescente do público pelas peças que abordassem temas nacionais,
ainda que nem sempre elas ostentassem a perfeição técnica e a
qualidade dramática das congêneres estrangeiras. Comentando o
encerramento da temporada da Companhia Dramática deo
Paulo, que tinha por objetivo levar a público peças nacionais, a
redação da Revista do Brasil lembrava que o maior sucesso ficara
por conta da peça A caipirinha de Cesário Mota, considerada
um dramazinho ingênuo ... Mas é tanta a sede de nacionalismo em
nosso público, éo grande o cansaço em que o teatro estrangeiro o
prostrou que essa peça com todas as suas máculas ... lhe deu uma
satisfação imensa ... Os nossos empresários precisam convencer-se
de que a mais singela comediazinha nacional, isto é, que desenhar os
nossos costumes, a nossa gente e a nossa terra, vale mais paras
que todo o teatro francês.
26
25 GAHISTO, M. A vida literária. As letras brasileiras. RBR, v.22, n.86, p.156,
fev. 1923.
26 Movimento teatral. RBR, v.5, n.17, p.110, maio 1917.
Marco simbólico nesse processo de valorização do nacional
foi a montagem em 1919 d'0 contratador de diamantes, de
Afonso Arinos. Patrocinada e encenada pela fina flor da elite pau-
lista, a peça causou sensaçãoo só pela suntuosidade dos figuri-
nos; riqueza do mobiliário, das louças e pratarias; como também
pela presença no Teatro Municipal "de pretos de verdade" dan-
çando a congada, isso sem falar no elenco - capitaneado por Ele-
gantina Penteado da Silva Prado - que se esmerava na pronúncia
genuinamente paulista, num momento em que ainda imperava a
prosódia lusitana (Magaldi & Vargas, 1976). Com propriedade,
Sevcenko (1992, p.247) considerou O contratador "como crista-
lização e como catalisador de uma fermentação nativista que
adquiria densidade crescente em direção aos anos 20".
De fato, as elites econômica e cultural revelavam uma atitude
ante o país bastante diferente do afetado distanciamento até há
pouco manifesto e que foi admiravelmente expresso por Eduardo
Prado, em carta enviada dos Estados Unidos a uma amiga e publicada
na Revista do Brasil: "Não imagina como estou aborrecido nos EUA.
Decididamente do mundo a Europa, da Europa a França, da França
Paris, de Paris todo o perímetro do pavé du bois! Isto pensava eu
ontem quando era horrivelmente sacudido num péssimo carro sobre
a detestável calçada deo Francisco".
27
O teatro conheceu então uma vaga de brasilidade: Flor do
sertão, de Arlindo Leal; Alma caipira e Nossa terra, Nossa gente,
de João Felizardo; Cenas da roça, de Euclides de Andrade e Avelar
Pereira; Nhazinha, de Lidio de Souza; Nhá moça, de Abreu Dan-
tas; a já citada A caipirinha, estavam entre as peças encenadas. No
final de 1922 a estréia emo Paulo da Companhia Nacional de
Comédia, com a peça Manhãs de sol, da autoria de Oduvaldo
Vianna, foi precedida de um discurso de Amadeu Amaral que
enfaticamente afirmava:
Temos enfim algumas companhias nossas, como esta que hoje
ides aplaudir; temos artistas nossos, como essa admirável Abigail
Maia e seus dignos companheiros; temos uma dúzia de autores nos-
sos, como Oduvaldo Vianna ... autores que tratam por uma maneira
27 BARRETO, P. Eduardo Prado e seus amigos. Cartas Inéditas. RBR, v.l, n.2,
p.189, fev. 1916.
nossa os temas universais do teatro colhidos em nosso meio ... A
companhia que hoje se vos apresenta, guiada por uma energia indô-
mita, só deseja realizar em terra brasileira, um teatro brasileiro.
28
Lobato, por sua vez,o perdeu a oportunidade de atribuir o
sucesso do espetáculo à introdução na cena da prosódia brasileira,
assinalando que "havia a crença ridícula de que a nossa prosódia
o prestava para o teatro. Prestava para entenderem-se 30
milhões de criaturas; para o teatro, não! ... Mas assim como na
literatura a língua nacional, a língua geral deste país, a brasileira,
filha da portuguesa, está batendo a progenitora, assim também no
teatro o nosso linguajar, com os seus modismos, a sua prosódia,
as suas inflexões próprias, baterá a língua lusa. O público já
encontra dificuldade em compreender o que dizem os atores por-
tugueses, queo transigem com a prosódia nossa", e arrematava,
o sem uma dose de exagero, "vai cessar, finalmente, esse horrí-
vel estado de coisas que durou até há bem pouco tempo: um país
que ia ao teatro maso entendia patavina das peças ... ao ser
que levasse consigo intérpretes juramentados.
29
Também o cinema foi contagiado. Sobretudo a partir de
1915, amiudaram-se os filmes que buscavam na literatura e na his-
tória da terra os seus temas. Inocência, O caçador de esmeraldas,
A moreninha, O garimpeiro, Lucíola, O mulato, Escrava Isaura,
Ubirajara, Iracema, A viuvinha, O Guarani, que mereceu várias
versões; Tiradentes, O Grito do Ipiranga, Heróis brasileiros na
Guerra do Paraguai, figuravam ao lado do repertório regional -
constituído por A caipirinha, sucesso teatral que foi vertido para
a tela, Quem conta um conto, Alma sertaneja, O curandeiro, Os
faroleiros, baseado em texto de Monteiro Lobato.
30
A guerra, por
sua vez, estimulou um surto de fitas patrióticas -Pátria e bandeira,
28 AMARAL, A. Teatro national. RBR, v.21, n.83, p.269, nov. 1922, grifos no
original.
29 LOBATO, J. B. M. Teatro nacional. RBR, v.21, n.83, p.271, nov. 1922.
30 A adaptação contou com a assessoria de Lobato. Em 1951 outro dos seus con-
tos, O comprador de fazendas, ganhou versão cinematográfica. Entretanto, a
ligação da obra lobateana com o cinema seria definitivamente selada em 1959,
quando Milton Amaral, inspirado na figura do Jeca, transpôs para a tela a figura
do caipira, que encontrou em Mazzaroppi seu intérprete máximo.
Pátria brasileira, na qual Bilac dirigiu algumas cenas, Le film du
diable, entre outros. Essa produção, particularmente significativa
no decênio 1915-1925, conseguiu rivalizar com os filmes policiais,
até então o gênero preferido do público (Salles Gomes & Gon-
zaga, 1966; Galvão 1975).
A preocupação com o local certamenteo foi exclusividade,
nem tampouco invenção, dos anos 10: nessa época era já possível
falar de uma tradição ficcional brasileira apegada à região (Lima,
1966, v.l, p.532-621) e que encontraria, sobretudo no romance
social das décadas de 1930 e 1940, continuadores ilustres. É caracte-
rístico dessa ficção estar sempre às voltas com tensões do tipo univer-
sal-particular, nacional-regional, realidade-objetividade, podendo
ainda revelar-se, em países egressos do colonialismo, especial-
mente alienante, no dizer de Antonio Candido (1987).
De maneira geral, o surto regionalista do início deste século
tem recebido, por parte da crítica especializada, uma apreciação
pouco lisonjeira. Nesse sentido, destacam-se as considerações de
Lúcia Miguel Pereira (1973, p.180) e Antonio Candido (1965,
p.136; 1973, p.22). Alfredo Bosi (1975, p.231-4), apesar de com-
partilhar de grande parte das restrições apresentadas, consegue por
vezes vislumbrar motivos para colocar os regionalistas entre os pré-
modernistas, no sentido forte do termo, ou seja, enquanto anuncia-
dores da vanguarda. As diferenças entre Candido e Bosi ficam evi-
dentes no caso de Valdomiro Silveira, como bem demonstrou
Carmen Souza Dias (1984, p.5-26).
Apesar do destaque dado a um ou outro nome, predomina um
anátema sobre esses autores e sua produção, do qual poucosm
conseguido escapar. Nesse sentido, o exemplo de Lígia Chiappini
Leite (1978), que dedicou uma tese de doutoramento ao conto
gauchesco, é sintomático. A autora conclui sua obra afirmando
que trabalhou maciçamente com "o ruim e o medíocre" e apesar
de reconhecer que "a Literatura é também um fato social e nem só
de grandes nomes ela vive", admite ter tratado os contos regionais
gaúchos com
uma espécie de azedume ... deixando de perceber ou de enfatizar
aquilo que a má literatura é potencialmente capaz de transmitir.
Digamos que localizei e ridicularizei os temperos em que os escrito-
res cultos afogaram a carne viva da cultura popular por eles enfo-
cada, nos seus contos. Maso soube reencontrar com entusiasmo
equivalente o alimento genuíno de que eles se nutriam ... [Assim] me
vejo obrigada a confessar que, se pudesse reescrever tudo, adotaria
outro tom, substituindo o pretensioso azedume por um enquadra-
mento mais compreensivo dos problemas estudados, (p.251-2)
As ponderações precedenteso objetivam polemizar ou colo-
car sob judicie avaliações de cunho estético, trata-se antes de ana-
lisar os sentidos, implicações, projetos e vinculações de escritores e
de suas obras, independentemente do valor literário que se lhes
atribua hodiernamente.o é aceitável que a desqualificação for-
mal obscureça ou, pior ainda, impeça que eles possam tornar-se
objetos da história. Tal obscurecimento pode ser lido como cons-
trução estratégica, levada a cabo pelos novos detentores da hege-
monia no campo intelectual, com o intuito de subtrair a
individualidade dos antecessores, transmutados todos - parnasia-
nos, decadentistas, simbolistas, regionalistas - naquilo que nunca
foram: um conjunto amorfo. Sem qualquer intenção de reabilitar
ou reavaliar, por meio da atribuição de méritos até então insuspei-
tos, a vertente regionalista, o que pretendemos é mapear a sua
posição e o seu significado no campo cultural do final dos anos 10.
Essa corrente era integrada por nomes que, apesar de terem
desfrutado de considerável prestígio no seu tempo, caíram, quase
todos, num relativo esquecimento: Afonso Arinos, Godofredo
Rangel (MG); Alcides Maia, Simões Lopes Neto, Roque Callage
(RS); Hugo de Carvalho Ramos (GO); Alberto Rangel (AM); Leo
Vaz, Paulo Setúbal, Armando Caiubi, Leôncio de Oliveira, Oto-
niel Mota, Cornélio Pires, Amadeu Amaral, Valdomiro Silveira,
Monteiro Lobato (SP), esse último lembrado muito mais pela sua
produção para crianças, pelo artigo contra Anita Malfatti, pelas
polêmicas com o Estado Novo ou pelas suas atividades editoriais
do que como o autor de Urupês.
O desejo de retratar com verossimilhança a vida nas áreas
interioranas levou esses escritores a incorporar o léxico e as cons-
truções peculiares ao falar caboclo, rompendo, dessa maneira,
com o preciosismo verbal então imperante no texto literário. Para
garantir a inteligibilidade, várias obras traziam glossários, que
atestam o cuidadoso trabalho de observação e pesquisa realizado
pelos autores. A existência de uma produção comprometida com
o local acirrava as discussões a respeito da vernaculidade, como
bem frisou um artigo da Revue de l'Amerique Latine, consagrado
à literatura brasileira e que foi transcrito nas páginas da Revista do
Brasil:
Será que o cuidado de formar um filmeo exato quanto pos-
sível das coisas de sua terra natal, levaria os escritores brasileiros ao
emprego de ... meios literários, libertos das tradições e das lições da
sua formosa língua ancestral? ... Um fato evidencia-se agora: a ban-
deira da emancipação desfraldou-se, a rebelião tem os seus partidá-
rios, seus chefes, seu programa.
31
Nesse patamar, jáo bastava postular a existência de dife-
renças entre o português daqui e o de além-mar, era necessário
enfrentar a diversidade presente no interior das próprias frontei-
ras nacionais. Abria-se mais uma fissura na busca dos caracteres
definidores da nação: qual o veículo adequado para expressar a
brasilidade - a linguagem castiça, o linguajar do norte, o dos pam-
pas, a gíria dos morros cariocas, a fala do caipira paulista? As pro-
postas poderiam multiplicar-se até abranger cada recanto do país
que possuísse um letrado disposto a tematizar as idiossincrasias
locais. O português do Brasil, concebido nos discursos que lhe
outorgavam o direito de trilhar caminhos próprios como um todo
coeso e homogêneo, revelava-se um mosaico complexo que reco-
locava em pauta, sob nova perspectiva, o velho tema das frontei-
ras entre a linguagem oral e a escrita. Afinal, até que ponto, em
nome da fundação de um estilo próprio, seria lícito redefinir tais
limites?
A produção regionalista impôs deslocamentos importantes
no debate em torno do idioma. A resenha de Meu sertão (1918),
conjunto de poesias de Catulo da Paixão Cearense, publicada na
Revista do Brasil iniciava-se com a seguinte questão - "é possível
aceitar como língua, na qual se vazem versos, o modo de falar
caboclo?" - A resposta, francamente negativa, considerava esse
linguajar, a exemplo daquele utilizado por negros ou grupos imi-
31 GAHISTO, M. A vida literária. As letras brasileiras. RBR, v.22, n.86, p.154,
fev. 1923.
grantes, como corrupção do dialeto brasileiro, único com direito
à cidadania literária. Daí soar como um lamento o fato do
maior poeta deste país, o poeta-poeta, o poeta cujas composições,
feitas em música, vivem de norte a sul cantadas por todas as bocas,
despertando em todos os peitos as mais suaves emoções,o tenha
escrito o seu livro em nossa língua, a língua brasileira, filha da por-
tuguesa. Escolheu para isso em vez do nosso dialeto a corruptela
cabocla ... Fez assim um livro queo se dirige as brasileiros que
lemos e sentimos, mas apenas ao resíduo racial que vegeta nos ser-
tões e queo o lerá nunca porque é analfabeto. Se Catulo traduzir
seus versos em nossa língua ... fará uma obra que marcará época, criará
escola determinará correntes. Está nas suas mãos ser apenas um
poeta caipira ou ser o maior poeta popular do Brasil.
32
Os leitores eram brindados com a tradução para a língua
geral de uma estrofe da corruptela cabocla - denominada por
alguns de patuá bárbaro.
33
A idéia de que os versos de Catuloo teriam nada a dizer
aos brasileiros cultos foi de imediato combatida por Alceu Amo-
roso Lima. Em artigo sobre Meu sertão esse autor criticou a estrei-
teza daqueles que consideravam o livro compreensível apenas por
sertanejos, assim como a intransigência ante a corruptela cabocla
que, apesar de ser uma sublíngua, segundo sua avaliação, nem por
isso deixava de ter direito à existência:
Da mesma forma que o sertanejoo é senão uma sub-raça, seu
falaro passa de uma sublíngua. Nem por isso, porém, deixa de
existir incorporada essa massa de homens de caráter semelhante, em
cujo sangue o caldeamento é quase idêntico e cuja língua, portanto,
tem o direito de persistir, corruptela ou não, como expressão dessa
onda de gente, o grande peso da nacionalidade. Que importa que
essa línguao seja senão o português errado, sem verbos regulares,
32 Resenha de Meu sertão. Bibliografia. RBR, v.9, n.35, p.369, nov. 1918, grifos
no original.
33 O termo foi utilizado por PEREGRINO JÚNIOR, J. da R. F. A língua
nacional. RBR, v.18, n.70, p.171, out. 1921. Esse autor inclui-se entre os
regionalistas que se dedicaram a retratar a Amazônia. Seu livro de contos
Pujança (1929) foi premiado pela Academia Brasileira de Letras.
sem gramática, sem concordâncias, se ela tem a beleza da forma ade-
quada, se ela é bem a expressão sonora da grande alma sertaneja?'
4
Alceu considerava inoportuno atribuir a quem quer que fosse
o título de poeta nacional, na medida em que o Brasil ainda care-
cia de um sentido de unidade. O autor recorria aqui à famosa ima-
gem do país em infância, imaturo e incapaz de produzir o seu
auto-retrato. Nessa abordagem, Catulo seria mais do que um
poeta regional e menos que um poeta nacional, estatuto que nin-
guém poderia aspirar: "éo falso julgar o Brasil poro Paulo ou
Rio de Janeiro como pelo Tocantins ou oo Francisco. O serta-
nejo dos Campos Gerais éo nacional como o marítimo da Bahia
ou o operário dos grandes centros".
35
Se Catulo gerava polêmicas, Monteiro Lobato era, nesse
momento, uma unanimidade, o queo deixa de soar estranho
para nós, acostumados que fomos à visão de um Lobato conserva-
dor e intransigente, incapaz de apreciar a pintura moderna. A par-
tir de Urupês, o escritor paulista tornou-se um fenômeno de
vendas. Ele esteve entre os primeiros a explorar o campo, então
praticamente virgem, da literatura infantil. Do seu livro de estréia,
A menina do narizinho arrebitado, o governo do Estado deo
Paulo adquiriu, de uma só vez, 30 mil exemplares, que foram
remetidos para todas as escolas públicas.
36
Lobato tornava-se
assim figura duplamente popular entre as crianças, que em casa
34 LIMA, A. A. À margem de um livro. RBR, v.10, n.37, p.87, jan. 1919.
35 Ibidem, p.85.
36 Numa entrevista concedida muitos anos mais tarde, LOBATO, J. B. M.
(1956a, p.191-3) explicou a referida compra, efetuada por Alarico Silveira,
secretário de Washington Luís, então Presidente do Estado. Vale assinalar que
Alarico Silveira, irmão de Valdomiro Silveira, autor editado por Lobato, era
seu amigo pessoal, quanto à Washington Luís o autor de Urupês devia a sua
nomeação para a promotoria de Areias (1907) e sua futura indicação para a
assessoria na embaixada americana (1927). A Revista do Brasil publicou
artigo elogiando a decisão da Diretoria Geral de Instrução Pública de
introduzir nas escolas a obra de Lobato. BRUSCHINI, A. Literatura escolar.
RBR, v.22, n.85, p.64-7, jan. 1923. Entretanto, estao foi a única vez que
Lobato encetou negócios com o governo. Sua empresa obteve bons lucros ao
imprimir, para a Câmara Municipal deo Paulo, o álbum histórico Brasil de
outrora. A respeito ver: LOBATO, J. B. M., 1959a, v.2, p.258-9.
seguiam o exemplo do Jeca tomando Biotônico e na escola com-
partilhavam as aventuras dos habitantes do Sítio do Pica-Pau
Amarelo. Em 1924 a sua editora lançou, além do Jeca Tatuzinho,
livro que narrava as proezas do Jeca depois de curado, uma versão
escolar de seus contos, destinada a estudantes secundaristas e que
logo foi adotada por vários estabelecimentos de ensino.
37
Os seus feitos no mundo das letras eram constantemente
noticiados na revista que, conforme tivemos oportunidade de dis-
cutir, funcionava como uma importante vitrine tanto para os
livros que editava quanto para os que ele próprio escrevia. O apa-
recimento de mais uma edição ou de uma nova obra, as traduções
para outras línguas, as referências favoráveis que lhe eram feitas,
as entrevistas que concedia, tudo era noticiado na Revista do Bra-
sil.
38
A título de exemplo, seguem-se os comentários publicados
quando do lançamento de Urupês na Argentina:
Os autores brasileiros estão em voga na República Argentina ...
Ainda agora chega-nos às mãos um exemplar de Urupês, o notável
livro de contos do Sr. Monteiro Lobato, traduzido para o espanhol
pelo ilustre poeta argentino Benjamin Garay ... Parecia-nos dificí-
lima, senão impossível, uma tradução fiel do belo livro do consa-
grado escritor paulista, todo ele repleto de brasileirismos e
expressões que, por serem absolutamente nossas, sós as compre-
endemos e sabemos apreciar a sua acre e estonteante beleza. Pois o
Sr. Benjamin Garay praticou essa proeza, conseguindo traduzir Uru-
pês com absoluta fidelidade, sem lhe alterar o seu belo aspecto regio-
nal. Lançado assim no mundo buenairense, o livro do Sr. Monteiro
37 Notícia sobre a versão escolar dos contos de Lobato, adotada, entre outros,
pelo Colégio Mackenzie, está em Resenha de Contos escolhidos de Monteiro
Lobato. RBR, v.25, n.104, p.338, ago. 1924.
38 Comentários favoráveis ao escritor, publicados na revista argentina Atlântida,
foram reproduzidos na RBR, v.18, n.71, p.271-2, nov. 1921; enquanto um
longo artigo de Isaac Goldberg, estampado no Evening Boston, pode ser
encontrado na RBR, v.18, n.72, p.377-80, dez. 1921. A versão de contos de
Lobato para o italiano foi anunciada na RBR, v.23, n.91, p.229, jul. 1923; e o
lançamento de Urupês na Espanha foi noticiado duas vezes: uma na RBR,
v.23, n.90, p.160, jun. 1923, e a outra, juntamente com transcrição de carta
elogiosa do editor responsável à Lobato, na RBR, v.24, n.92, p.363, ago.
1921. As entrevistas concedidas a órgãos da imprensa eram reproduzidas na
revista. Ver: LOBATO, J. B. M. O romance brasileiro. RBR, v.28, n.109,
p.75-7, jan. 1925.
Lobato alcançou logo imenso sucesso, tendo o nome do brilhante
escritor patrício conquistado uma grande popularidade na capital
portenha. Tanto assim que La Nación lhe dedicou uma página
inteira e outras publicações como Plus Ultra, Caras y Caretas, Nues-
tra Era e outras estampam, acompanhado de grandes elogios, o
retrato do escritor paulista.
Seguia-se a transcrição de uma carta enviada à Lobato por
Horário Quiroga e um artigo de Martin Saavedra, publicado no
jornal El Telégrafo de Montevidéu, ambos altamente elogiosos.
Anunciava-se, ainda, a tradução - a cargo de Isaac Goldberg - do
livro de Lobato para o inglês.
39
Seus feitoso se circunscreviam, porém, à literatura. Inte-
lectual partícipe das questões do seu tempo, ele engajou-se de
forma apaixonada na campanha sanitária ao lado de Belisário
Penna, Artur Neiva, Afrânio Peixoto, Renato Kehl e outros médi-
cos de renome. Os artigos que publicou a respeito do assunto
foram enfeixados no livro Problema vital, editado sob o patrocí-
nio das prestigiosas Liga Pró-Saneamento e da Sociedade de Euge-
nia. A ciência pagava seu tributo ao criador do Jeca Tatu,
personagem que passou a simbolizar o descaso do governo para
com a população rural.
Mas Lobato também era um bem-sucedido empresário da cul-
tura. Ele detinha em seu poder a prestigiada Revista do Brasil,
principal periódico de cultura da época; uma florescente editora,
responsável por transformações importantes no que respeita à con-
cepção do livro, seu formato, método de divulgação, comercializa-
ção e distribuição.o satisfeito, aliou às atividades editoriais um
parque gráfico dos mais bem equipados do país. Noutras palavras,
ele conseguiu reunir em suas mãos várias instâncias de consagra-
ção, o que sem dúvida fazia dele figura das mais influentes.
Do ponto de vista estritamente literário, a crítica do período
aplaudia o estilo de Lobato, considerado único; seu compromisso
com a realidade nacional; sua capacidade de forjar, sem afrontar
abertamente a gramática, ao sonhada língua brasileira:
39 A literatura brasileira na Argentina. RBR, v.17, n.67, p.364-5, jul. 1921. A
literatura brasileira na Argentina. RBR, v.17, n.67, p.364-5, jul. 1921.
o autor de Urupês, evidentemente, retrata a alma brasileira, com o
que ela possui de mais belo mais puro, na irregularidade bravia de
sua prosa ... O Sr. Monteiro Lobato é o escritor brasileiro que
melhor reflete o momento nacional. É o escritor mais brasileiro do
Brasil ... Pregando e realizando, com uma coragem resoluta, o nacio-
nalismo literário da forma, da imagem, da idéia, do estilo e do
assunto, o contista de Faroleiros está criando também o naciona-
lismo da linguagem. Da linguagem principalmente. Porque - é bom
notar - o Sr. Monteiro Lobato é quem está adotando, nas nossas
letras, a verdadeira língua nacional, sem travos rançosos do classi-
cismo lusitano, mas também sem claudicâncias esdrúxulas da sintaxe
sertaneja. Apanhando na enxurrada das ruas os brasileirismos, as
expressões mais características e pitorescas do falar do nosso povo,
o autor de Urupês está construindo o monumento admirável de uma
nova língua literária original, formosa, pitoresca, que melhor tra-
duz, e mais diretamente, a alma brasileira, nas suas tradições, nos
seus hábitos, nas suas emoções, nas suas vibrantes alegrias e íntimas
tristezas, no contraste eterno da sua vida.
40
Aos méritos literários, associavam-se predicados de liderança
que o tornavam um "condutor de inteligências ... talhado para ir
na frente. E vai. Segue-o, lembrando certos rabbis nas estradas da
Judéia de outrora, a turba dos que ele galvaniza como seu prestí-
gio, ouvido alerta parao perder a direção do canto da sereia
fascinante ... Seu nativismo influiu em muitos espíritos que se
debatiam na maré literária, estonteados pelo entrechocar das
ondas das escolas, sem saber que rumo seguir".
41
O seu nome estava diretamente associado ao regionalismo:
40 PEREGRINO JÚNIOR, J. da R. F. A língua nacional. RBR, v.18, n.70, p.171,
out. 1921. E no mesmo sentido: "Vejamos o caso de Monteiro Lobato, que é
escritor tipicamente brasileiro e personalíssimo em seu estilo. O que faz todo
o encanto de sua prosa é que ela fala de nossas coisas e de nossa gente numa
linguagem sua, colorida, pitoresca, cheia de tics e peculiaridades, que nos faz
sentir ao mesmo tempo o meio e o escritor que o pinta. Adotasse o autor de
Urupês o frio, o seco e mecânico estilo dos nossos classicisantes e o brilhante e
festejado autor paulistao teria outros leitores seo os pobres escolares a
quem se inflige a tortura dos trechos de seletas". SALLES, A. A língua
nacional. RBR, v.20, n.77, p.42-3, maio 1922.
41 OLIVEIRA E SOUSA, A. de. Uma década fecunda. RBR, v.28, n.112, p.299,
abr. 1925.
Monteiro Lobato, o grande escritor crioulo, antes de tudo é o
caricaturista poderoso dos nossos hábitos. Vem daí a distinção do
seu regionalismo, singular, inconfundível ... Monteiro Lobato é um
representativo, na acepção conveniente da palavra. Nos seus contos
o é apenas o colorido, é a própria essência deles que denuncia o
ambiente onde se tramam. Cenário e personagem, o artista sabe
casá-los de tal jeito, que fora impossível separar um do outro ...
Monteiro Lobatoo faz conto só para gáudio das gentes. Os seus
contos cumprem destino mais elevado, qual seja o de registrar, em
todos os seus aspectos, determinado momento da vida social do
interior ... Por tais motivos, é que lhe apetece a gramática viva, essa
que se sujeita, bem como os organismos, a leis vitais, essa que, em
suma, é a gramática legítima.
42
o sem uma dose de exagero, chegou a ser considerado o
criador do regionalismo.
43
Esta associação devia-se,o apenas à produção ficcional
lobatiana, como também ao fato da sua editora e da Revista do
Brasil abrirem amplo espaço para os escritores comprometidos
com a corrente regionalista. Os nomes que se seguem estavam
ligados a Lobato, ora na condição de colaboradores da sua revista,
ora como autores por ele editados ou, em alguns casos, por ambos
os motivos: Valdomiro Silveira, Paulo Setúbal, Cornélio Pires,
Amadeu Amaral, Leo Vaz, Hilário Tácito, Menotti del Picchia,
Afonso de Freitas, Ricardo Gonçalves, Veiga Miranda, Albertino
Moreira, Othoniel Mota, Alberto Rangel, José Antonio Nogueira,
João do Norte, Hugo de Carvalho Ramos, Roque Calage, Mário
Sette, - os dois últimos representantes da Revista do Brasil, respec-
tivamente, no Rio Grande do Sul em Pernambuco. Fica evidente
que, no discurso da época figuravam entre os regionalistas uma
vasta gama de autores aos quais, rigorosamente falando,o cabe-
42 ARINOS, P. O macaco que se fez homem. RBR, v.25, n.98, p.171-2, fev.
1924. Ver também OLIVEIRA E SOUSA, A. de. Uma década fecunda. RBR,
v.28, n.112, p.297, abr. 1925.
43 "Não sei se ainda haverá burgo provinciano, rincão habitado, confins do
Brasil, aonde num rumor de entusiasmos,o hajam chegado as últimas
vibrações da aura popular que agitou e impeliu vitoriosamente o nome do
pioneiro ilustre do regionalismo naturalista. É que o evangelizador supremo
da nossa mentalidade já o apontara à nação." VASCONCELLOS, J. O Sr.
Monteiro Lobato. RBR, v.29, n.113, p.26, maio 1925.
ria o epíteto. Este fato atesta que o critério de atribuição derivava
da vinculação ou comunhão de idéias com Lobato.
No início dos anos 20, o autor de Urupês podia ser apresen-
tado, a um só tempo, como escritor prestigiado - "o mais repre-
sentativo homem de letras da nossa pátria", segundo a opinião de
muitos -, renovador da literatura e da língua, para a qual traçara
um modelo evolutivo;
44
militante ativo da campanha em prol do
saneamento do país e da melhoria das condições de vida da popu-
lação rural; crítico de arte dos mais respeitados, que colocava a
sua pena a serviço de uma peculiar apreensão da brasilidade, que
lhe permitia louvar Brecheret e condenar Anita (Fabris, 1995;
Chiarelli 1995); isso tudo sem contar sua performance como
homem de ação, empresário arrojado e bem-sucedido, um típico
self made man;
45
exemplo síntese do caráter empreendedor
legado aos paulistas pelos bandeirantes.
46
É interessante notar que
à sua atuação nos campos literário e editorial foram creditadas
transformações de vulto nas letras paulistas:
o há emo Pauloo real progresso como o das letras ...
o Pauloo lia. Prosperava, progredia, truculentamente e só
espantava pela truculência dos progressos. Ora, hoje,o Paulo.
Tem uma literatura, com os seus editores, com o seu público ... Em
nenhuma das manifestações da nossa vida foio rápido esse pro-
44 VASCONCELLOS, J. O Sr. Monteiro Lobato. RBR, v.29, n.113, p.35, maio
1925, e GAHISTO, M. A vida literária. As letras brasileiras. RBR, v.22, n.86,
p.l56, fev. 1923.
45 Já deve estar patente que vários episódios da vida de Lobato estão envoltos
numa aura lendária, em grande parte difundida por colaboradores, admira-
dores e pelo próprio autor, nas numerosas entrevistas que concedeu ao longo
da vida e na Barca de Gleyre. Assim, parece que ele se tornou escritor por acaso,
ao remeter Velha praga para o jornal. Editou, por conta própria, Urupês e o
sucesso do livro levou-o a interessar-se pelo negócio editorial. Apesar dos erros,
como tirar 50 mil exemplares de um único livro, sua ingenuidade foi milagrosa-
mente premiada com uma compra providencial do governo. Cansado, seguiu o
conselho de um colega e experimentou o Biotônico, que o inspirou a escrever
Jeca Tatuzinho, graciosamente ofertado ao fabricante, e que acabou tornando-o
conhecido em todos os vilarejos do país. Apesar do trabalho de Edgard
Cavalheiro, que procurou relativizar essa construção, ela ainda é dominante, o
que certamenteo está entre os menores feitos de Lobato.
46 Para tal associação ver: CÉSAR, G., 1983, p.40 e TRAVASSOS, N. P., 1974,
p.87.
gresso. Neste pedaço do Brasil, mais do que em qualquer parte,
afirma-se, pois, a nacionalidade, pelo livro e pelas letras, pelas afir-
mações mais cabais ... A Revista do Brasil e a sua casa editora ... nas-
ceram de um livro Urupês e de nossos livrosm vivido.o
procuraram consagrações: consagram elas próprias. A série das suas
edições corresponde à galeria dos novos ... Qual é, entretanto, a lite-
ratura paulista, quais os seus caracteres, as suas idéias, o seu pro-
grama? Programas, idéias, caracteres estão nas suas obras, cujas
edições foram consultas ao público eo hoje outros tantos triunfos.
O nacionalismo entra nelas o bastante para torná-las brasileira, sem
que degenere em preconceito. A casa editora Revista do Brasil repre-
senta o progresso do livro paulista, com os seus 150.000 exemplares
editados em 1921, sobre 50.000 no ano anterior.
47
Nas linhas deste editorial redigido por um dos diretores da
Revista do Brasil, está claramente expresso o desejo de exaltaro
Pauloo apenas como pólo dinâmico da economia nacional, mas
também como um centro de irradiação intelectual, o que sem
dúvida implicava uma tentativa de ofuscar o brilho do Rio de
Janeiro, sede da prestigiosa Academia, do famoso círculo de boê-
mios da Rua do Ouvidor, de numerosos jornais e revistas, dos
salões, cafés, confeitarias, teatros, cinemas, livrarias e editoras;
enfim a nossa Paris Atlântica, com sua elegante Avenida Central,
a capital cultural do país, para onde se dirigiam os aspirantes à
glória no mundo das letras (Needell, 1993). Alguns anos antes
Alceu Amoroso Lima, partindo da constatação de que "a grandeza
militar e econômica dos povos precede a sua grandeza moral e
artística", vaticinava:
47 FERRAZ, B. O momento. RBR, v.22, n.73, p.3-4, jan. 1922. Compare-se o
texto transcrito com as seguintes considerações do mesmo autor, tecidas
alguns anos antes: "Res, non verba foi a divisa do bandeirante, que tanto
fez e nada escreveu nem cantou ... E a verdade é que, se nossa cultura é real,
poucas provas tem dado de si fora da esfera material. Nossos poetaso
raros, raríssimos os escritores ... Em nós, de feito, predomina esse gênio da
ação ora apregoado como novo. Se ao Brasil ele se recomenda, ao Paulo
impõe-se a reação culta. Havemos de estudar, pensar e falar se quisermos
valer-nos". FERRAZ, B. A reação da cultura. RBR, v.9, n.36, p.492, dez.
1918.
Até os nossos dias continuou a capital do Império, e depois da
República, a ser o centro econômico e literário do Brasil ... Hoje, a
mesma lei histórica ... nos autoriza a prever que o futuro movimento
intelectual no Brasil vai irradiar deo Paulo. Vivendo em pleno
germinar da idéia regionalista, desfrutando metade da fortuna nacio-
nal, possuindo uma aristocracia da terra, tendo herdado os seus
filhos a altivez e o bom senso dos "paulistas" de Piratininga, pre-
para-seo Paulo para a realeza na República.o é caso de invejas
pequeninas, esforcemo-nos, somente, porque o regionalismo, em
vez de abafar o nacionalismo, lhe insufle novo vigor. O século XVI
pertenceu a Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII à Minas Gerais,
o XIX ao Rio de Janeiro, o século XX é o século deo Paulo.
48
Nesse esforço de imporo Paulo como centro pensante, a
revista, que se intitulava do Brasil mas sempre foi um empreendi-
mento paulista, desempenhou importante papel. Sua existência já
se constituía uma demonstração de força: integrava o diminuto
rol das revistas de cultura, ostentava uma longevidade incomum
para os padrões da época, passara da redação do poderoso jornal
O Estado de S. Paulo para as mãos de um dos mais ilustres repre-
sentantes das nossas letras, que fez dela o ponto de partida para o
maior empreendimento editorial da República Velha. Essa ambi-
ção paulista de igualar os feitos econômicos aos intelectuaiso
escapou a um observador estrangeiro:
O Estado deo Paulo é hoje um dos elementos mais ativos do
progresso econômico e social do Brasil ...o Pauloo é somente
a Manchester sul-americana, que a Argentina e os demais países
deste continente admiram. É, ademais, um centro de irradiação inte-
lectual de grande prestígio no Brasil. A literatura brasileira tem,
neste momento, nesse próspero Estado, uma de suas faces mais
características. Rompendo com os preconceitos da geração de escri-
tores que, no início deste século,s em moda o horror das coisas
nacionais ... contemplaram face a face o homem e a terra ... fixaram
seus costumes, salientaram as qualidades e os defeitos da raça ...
Congregados em torno de Monteiro Lobato, foram aparecendo
novelistas e poetas de valor como Leo Vaz, Hilário Tácito, Godo-
fredo Rangel, Menotti del Picchia, Paulo Setúbal, Veiga Miranda,
Valdomiro Silveira, Ribeiro Couto, parao citar senão aqueles que
oferecem uma modalidade que é filha da terra ... O idioma em que
48 LIMA, A. A. Êxodo. RBR, v.6, n.21, p.33 e 35, set. 1917.
escrevem, principalmente Monteiro Lobato, é rico em plasticidade,
opulento de vocábulos indígenas, já perfeitamente diferenciado do
português ... O nacionalismo dos escritores paulistas é filho da opu-
lência da terra. A riqueza crescente da fortuna pública e privada
determinou esse orgulho nativista, peculiar ao caráter dos paulista-
nos. Sentindo-se fortes e exuberantes em meio a outros Estados,
mais ou menos prósperos, da federação brasileira, os homens deo
Paulo mostram como é natural a justificada vaidade de suas conquis-
tas materiais e intelectuais.
49
A reaçãoo tardou. José Maria Bello criticou duramente o
editorial de Brenno, colocando em dúvida a existência de um
movimento literário paulista, uma vez que esse foi incapaz de pro-
duzir um Machado, um Euclides ou um Bilac. Confessava desco-
nhecer autores e livros deo Paulo, à exceção de "três ou quatro
poetas e escritores" - Monteiro Lobato, Amadeu Amaral, Leo Vaz
e Menotti del Picchia. Ponderava que "para caracterizar-se o
movimento literário deo Paulo,o basta citar cifras a que atin-
giram as últimas edições de algumas livrarias ou casas editoras ou
recordar quatro ou cinco nomes de brilhante relevo", chamando
a atenção para a necessidade de determinar "os motivos dessa
rápida evolução mental e o espírito que, porventura, a anima".
Sublinhava ainda a acentuada tendência da produção paulista
para o "regionalismo à moda antiga", incapaz de traduzir "as aspi-
rações, os desejos, as ânsias da sub-raça futura".
50
O artigo, que
o foi transcrito na revista, suscitou três outros de Brenno Fer-
raz, além de uma carta aberta de Sud Mennucci, manifestando seu
apoio ao diretor da Revista do Brasil.
51
49 GARAY, B. O movimento paulista na literatura brasileira. RBR, v.22, n.73,
p.70-1, jan. 1922. Nas avaliações da literatura paulista era comum tanto a
inclusão de autores de outros Estado, como acontece aqui com o mineiro
Godofredo Rangel; quanto a classificação de novos para autores que de fato
precederam cronologicamente à Lobato, caso de Valdomiro Silveira.
50 BELLO, J. M. Vida literária — O movimento literário emo Paulo e a literatura
nacional. Apud: FERRAZ, B. A literatura emo Paulo. RBR, v.19, n.74,
p.lOO e 103, fev. 1922.
51 MENNUCCI, S. Carta aberta a Brenno Ferraz. RBR, v.20, n.79, p.256-8, jul.
1922. O autor era colaborador da Revista do Brasil. Seu livro Alma contem-
porânea mereceu resenha das mais elogiosas no periódico. RBR, v.8, n.l8,
p.324-5, jul. 1918.
Em seu primeiro artigo Brenno tentou mostrar, contraria-
mente ao que afirmava Bello, que a fermentação literária paulista
era resultado de um progresso mental gradual e contínuo, que
remontava à paz com o Paraguai. O nosso autor referia-se então à
Convenção de Itu, à propaganda republicana, ao fomento da imi-
gração, à construção das estradas de ferro, à industrialização, à
imprensa e às escolas deo Paulo para concluir:
se houve evolução mental fizemo-las e só nós, neste país. A Aboli-
ção encontrou a nação desaparelhada de braços.o Paulo já recebia
levas imigratórias ... A República encontrou um país profundamente
monárquico, o Norte à frente.o Paulo concentrava o grande núcleo
republicano de escol... Evolução mental longa eo rápida, portanto.
Seu fator mais remoto e sólido - a estrada de ferro. Seu fator decisivo
e último, as milhares de escolas paulistas. A atividade literária é sim-
ples corolário. Procede de circunstâncias especiais que determinaram
a fundação da Revista do Brasil... [e] da Liga Nacionalista.
52
Reivindicava parao Paulo o mérito da solução de todos os
problemas nacionais, reafirmando sua vocação para a liderança e
sua importância econômica e histórica.
Nos outros dois artigos ele tentou responder à mais séria
objeção de Bello, que pretendia desqualificar a produção paulista
por meio do adjetivo regional, impregnado de conotações negati-
vas. Sua argumentação caminhou então a fim de invalidar a opo-
sição universal-local, assumida como característica inerente desta
literatura. Apoiado em exemplos egressos da biologia darwiniana,
Brenno argumentava que no mundo natural, assim como na arte,
só a exceção era criadora, uma vez que o mediano e o comum,
segundo sua concepção,o sensibilizariam. Processo análogo
ocorreria na literatura: Jeca Tatu, nessa perspectiva,o seria o
caboclo médio, com o qual se topa a todo instante, mas um sím-
bolo que fixa "tudo o que na coletividade mais ou menos escapa,
52 FERRAZ, B. A literatura emo Paulo. RBR, v.19, n.74, p.101-2, fev. 1922.
Note-se que a polêmica em torno da existência ouo de uma literatura pau-
lista ocorre Concomitantemente à realização da Semana de Arte Moderna,
evento nem sequer mencionado na Revista do Brasil.
liqüefeito e dissolvido na massa e que só ele cristaliza". O articu-
lista desenvolve raciocínio semelhante para o personagem de Cer-
vantes, concluindo que o "Jeca significa o brasileiro como
Quixote, todos os idealistas, confirmando, ambos, no entanto o
princípio da exceção criadora ... Jeca é o pecado nacional.o o
neguem. Absolvam-no, si o quiserem, com penitência ou sem ela.
É o nome de um apático, mas nome-potência, que vai criando,
pela só força da exceção".
53
As suas tentativas de extirpar as conotações restritivas e
depreciativas que envolviam o regionalismo ou caboclismo leva-
ram-no a ensaiar uma conceituação do gênero. Propôs que se dife-
renciasse a literatura puramente anedótica, presa exclusivamente
ao local e escrita em linguagem dialetal - na qual por certo eleo
titubearia em incluir Catulo da Paixão Cearense - e a verdadeira
literatura, aquela na qual o regional deixa de ser mera expressão
de particularidades para sintetizar emoções humanas veiculadas
com cuidados de estilo e forma. Tal regionalismo, integrado ao
universal, seria o melhor passaporte da produção paulista, capita-
neada por Lobato:
Que é regionalismo? Uma palavra vazia de sentido,o vazia
que comporta nos limites de sua acepção toda a literatura universal
... Em que prejudica o conceito filosófico do D. Quixote o "regiona-
lismo" de suas páginas? Em que deperecem Braz Cubas, D. Cas-
murro e Quincas Borba, com respirarem história, costumes,
sentimentos e idéias brasileiras? Donde o sentido filosófico d'0 Pro-
fessor Jeremias, seo do seu profundo regionalismo? E a admirável
visão céptica de Hilário Tácito em Madamme Pommery, livro que
o é de uma "região", mas de uma cidade. E a filosófica renúncia
de Godofredo Rangel, nesse livro de sertão que é Vida ociosa?o
é impossível que, pelo critério pejorativo de "regionalismo", veja-
mos amanhã no índex literário aquela provinciana de Flaubert, a
Bovary do comício agrícola e das desabaladas fugas a cavalo ... E o
"regionaleiro" Anatole? ... A obra de Monteiro Lobato, vem vincada
de legítimo realismo, deve a literatura deo Paulo o epíteto de
"regionalista", com que falsamente pretendem qualificá-la. Urupês,
53 FERRAZ, B. Jeca Tatu e o princípio da exceção criadora. RBR, v.19, n.74,
p. 198-9, fev. 1922.
porém, com o seu Jeca e a dramaticidade dos seus tipos, só é "regio-
nal", à moda antiga ou moderna, como "regionais"o as obras mes-
tras da literatura universal.
54
É preciso notar que essa postura diferia sensivelmente de
outra em voga no período, que encarava o regionalismo como um
estágio obrigatório ao qual a literatura estaria presa por razões
atávicas. Assim, de nada adiantaria exigir o abandono do feitio
localista da produção brasileira, uma vez que:
Nossa civilização de enxerto é ainda muito tenra e muito jovem
para dar frutos de que somenteo capazes as velhas civilizações de
velhas raças, nutridas de longa cultura e firmadas em sólidas raízes
de tradições étnicas ... Quanto ao mais pode-se dizer que o regiona-
lismo literário é uma necessidade, no sentido filosófico do termo, é
quase uma fatalidade orgânica, a queo pode fugir um povo em
fase de crescimento.
55
Ironicamente, foi em 1922 que a Revista do Brasil - porta-voz
dos regionalistas - passou a reivindicar parao Paulo a hegemo-
nia no mundo das letras, desafiando abertamente o establisbtnent
representado pelo Rio de Janeiro (Carvalho, 1988, p.13-21;
Gomes, 1993, p.62-77). Nesse mesmo ano Lobato, então no auge
do seu prestígio, amargaria um duro revés ao candidatar-se, sem
sucesso, a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.
56
Sua der-
rota pode ser interpretada como uma represália às aspirações pau-
listas no campo cultural, nele personificadas.
Entretanto, de onde os postulantes à supremacia literária jul-
gavam provir a legitimidade de suas reivindicações? Sem dúvida,
do fato deles acreditarem possuir respostas para a maior e mais
séria crítica que pesava sobre a produção brasileira: o seu caráter
reflexo e imitativo, que permitia a um indivíduo culto, mesmo
sendo brasileiro, ignorá-la sem grandes prejuízos:
54 FERRAZ, B. A literatura emo Paulo. A sub-raça o regionalismo. RBR,
v.19, n.75, p.199-200, mar. 1922.
55 SALLES, A. Regionalismo. RBR, v.21, n.82, p.101-2, out. 1922. Idêntica pos-
tura foi defendida por LIMA, H. O conto. RBR, v.21, n.83, p.204, nov. 1922.
56 Sua versão para o episódio está em LOBATO, J. B. M., 1959a, v.II, p.244.
A literatura brasileira existe maso vive. A literatura brasileira
sempre acompanhou os movimentos europeus, nunca suscitou uma
idealidade própria além de suas fronteiras ... E possível, é perfeita-
mente possível ser um brasileiro inteligente, cultivado, cheio de pen-
samento e rico de seiva criadora eo ler habitualmente os livros
brasileiros, ignorar o passado literário brasileiro.
57
A idéia de que o Brasil aindao produzira, no domínio artís-
tico e cultural, algo de próprio, forte e original era corrente, atri-
buindo-se esse estado de coisas à imitação e subserviência
deslumbrada a tudo o que fosse estrangeiro: "No Brasil o hábito
de macaquear tudo quanto é estrangeiro é, pode-se dizer, o único
queo tomamos de nenhuma outra nação. É, pois, o único traço
característico que já se pode perceber nessa sociedade em forma-
ção que se chama: o povo brasileiro".
58
Traçar caminhos pró-
prios, sem o referendum do exterior, afigurava-se como o
verdadeiro índice de maturidade de uma nação:
o façamos do Brasil um grande cais para onde a Europa ou
a América do Norte nos mandem, empacotado no fundo de seus
navios, o pior das suas civilizações. Volvamo-nos sobretudo para as
nossas regiões nortistas e centrais - as mais brasileiras do Brasil - que
estão sendo esquecidas, com prejuízo das nossas culturas e o aban-
dono das nossas riquezas, para congestionarmos a orla do litoral,
onde mais intensa palpita uma civilização fictícia, postiça, artificial,
de ademanes e arremedos, com seu cosmopolitismo aventureiro e
dissolvente da nossa nacionalidade.
59
Os regionalistas orgulhavam-se em proclamar sua indepen-
dência em relação à escolas e modismos europeus. A incorporação
de temas e linguagem da terra parecia-lhes suficiente para realizar
oo desejado programa de nacionalização da literatura brasi-
leira, missão que naturalmente deveria assegurar-lhes papel pre-
57 LIMA, A. A. A literatura brasileira e acrítica. RBR, v.28, n.lll, p.262-3, mar.
1925.
58 HOLANDA, S. B. de. Ariel. RBR, v.14, n.53, p.85, maio 1920. A respeito do
maxixe, consagrado primeiro na Europa para depois ser aceito no Brasil, ver:
RIBEIRO, F. A estética do maxixe. RBR, v.l6, n.61, p.86, jan. 1921.
59 BRITO, L. A. C. de. Tradição e progresso. RBR, v.14, n.54, p.145, jun. 1920.
ponderante no mundo da cultura. O grupo que sustentou
oposição ao cosmopolitismo, simbolicamente identificado com o
Rio de Janeiro,o era exclusivamente composto nem de escritores
regionalistas, nem de paulistas. Contudo, o que importa destacar é
que a luta assumiu um caráter de afirmação da paulistaneidade:o
Paulo, que já fornecera à Nação o café, as indústrias, um passado
glorioso, uma raça de bravos, um território de dimensões conti-
nentais, desejava agora brindá-la com uma língua e uma arte pró-
prias, coroando assim os esforços de enfim dotar o Brasil de
sentido e continuidade histórica, graças ao trabalho de construção
de mitos, símbolos e heróis capazes de serem compartilhados por
todos os seus filhos. Desde logo, percebe-se a dimensão política
da questão, uma vez que nessa busca dos caracteres particulariza-
dores da Nação fundiam-se o anseio de autonomia e afirmação
ante o estrangeiro, manifesto no desejo de possuir uma língua
própria, capaz de dar conta da sensibilidade local; a dificuldade -
seo impossibilidade - de encontrar critérios objetivos para defi-
nir o nacional; e a tentativa paulista, aberta pela referida dificul-
dade, de apresentar-se como padrão ou modelo válido para todo
o país.
No entanto, o esforço dos escritores regionalistas forçou uma
outra apreensão do idioma nacional, queo mais poderia conti-
nuar sendo concebido a partir de premissas abstratas e genéricas,
que supunham a existência de uma língua brasileira homogênea.
Abriram caminho para a dialetologia, evidenciando a pluralidade
no que se queria uno; romperam com o purismo, o perfeccio-
nismo e o refinamento na escolha dos vocábulos; incorporaram,
em razão do compromisso de autenticidade, a linguagem colo-
quial ao antes imaculado texto literário, desbastando a trilha que
seria percorrida pelos sucessores. Esse distanciamento em relação
à gramática tornava-os, segundo acreditavam, os pioneiros da
nova língua.
Se durante um bom tempo a argumentação em prol da verna-
culidade do nosso português caminhou a fim de convencer os
especialistas de além-mar da validade do falar da América, numa
postura até certo ponto servil de quem espera por parte dos supe-
riores o devido reconhecimento; a produção regionalista, com sua
sintaxe e seu léxico peculiar, marcados pela oralidade, estava a
meio caminho das formulações modernistas, claramente expres-
sas por Mário de Andrade:
so temos que nos importar com Portugal. Basta a gente se amo-
lar com o Brasil, o que é uma serviceira tamanha! ... Coincidir ou
o com a língua portuguesa e o termo vindo dela:o nos importa
socialmente nada. O Brasil hoje é outra coisa que Portugal. E essa
outra coisa possui necessariamente uma fala que exprime as outras
coisas de que ele é feito. É a fala brasileira. (Lopez, 1976, p. l13)
Obviamente,o se trata de encurtar a considerável distância
que separa modernistas e regionalistas. Esta foi expressa, de modo
patente na própria Revista do Brasil quando, a partir de 1923,
Paulo Prado, sócio de Lobato na editora, passou a dirigi-la. Nos
dois últimos anos de sua primeira fase, a publicação tornou-se um
campo minado no qual as facções em luta mediam, a cada página,
suas forças. A título de exemplo, pode-se citar o número 88, publi-
cado em abril de 1923, que tinha Paulo Prado e Monteiro Lobato
na direção e Júlio César da Silva como redator-secretário. Defen-
dendo os ideais modernistas havia o editorial de Paulo Prado; um
artigo de Mário de Andrade, rebatendo objeções ao movimento
estampadas em jornais paulistas, e texto de Renato de Almeida,
saudando a liberdade de criação moderna por meio da análise de
Paulicéia Desvairada. No entanto, os dois contos publicados na
revista eram da autoria de Monteiro Lobato e Júlio César da Silva;
na seção Bibliografia, queo vinha assinada, o articulista, em
mais de uma oportunidade, referiu-se de modo crítico às novas
formas de expressão; enquanto artigos de Aristeo Seixas e Ângelo
Guido atacavam, de forma violenta e com adjetivos pouco elegan-
tes, o futurismo e seus seguidores. As opiniões discordanteso
desapareceram nem mesmo quando o cargo de secretário passou
a ser ocupado por Sérgio Milliet, em fevereiro de 1924.
Enquanto na avaliação feita pelos regionalistas o moder-
nismo apresentava-se como mais uma importação européia, mere-
cendo, portanto, ser combatido,
60
os adeptos da nova corrente
contra-atacavam alegando serem os verdadeiros intérpretes da
alma nacional.
61
A ampla contextualização ensejada pela revista deve ter alertado
para o caráter simplificador e empobrecedor do discurso que, ao
arredondar arestas e encobrir diferenças, acabou por pasteurizar a
produção do início do século, reduzindo-a, a partir de um critério
exclusivamente cronológico, à condição de pré-moderna. O traba-
lho, no dizer de Bosi, "paciente e amoroso" de certos autores no trato
da realidade local, a atenção aos costumes, hábitos, cenas, linguagem
e folclore, fazem-nos companheiros dos modernos na preocupação
com a temática nacional. É certo que sempre se poderá argumentar
que apenas os últimos foram capazes de superar de vez o tom exó-
tico, artificial e pitoresco comum a certos regionalistas, mas issoo
garante à vanguarda exclusividade absoluta no trato da questão. De
fato, as propostas modernistas foram nutridas em um ambiente
dominado pela urgência de pensar o Brasil-Nação.
60 "Antes de tudo, devemos observar que o futurismo, ou que melhor nome
tenha,o é um movimento otiginado pela expansão natural do espírito
nacional: trata-se de uma escola importada que se quer adaptar ao nosso meio
por processos artificiais, sem se verificar se realmente esse meio está em con-
dições de receber e fazer medrar as idéias que vieram de fora em livros, como
m as sementes de hortaliças em envelopes com letreiros." SALLES, A.
Abaixo as escolas! RBR, v.28, n.110, p.141, fev. 1925. Ver também: CAR-
DOSO, V. L. A lição de Euclides. RBR, v.25, n.104, p.349, ago. 1924.
61 Comentando o Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade, Prado afirmou:
"Ignoramos e desprezamos o espetáculo vivo da nossa terra e da nossa raça;
pouquíssimoso procurar fatos, temas, inspirações nos aspectos do Brasil de
hoje, adolescente e inquieto. E onde encontrar, para uma realização criadora,
disciplinada por um ideal preconcebido de beleza segundo a fórmula conhe-
cida maior e melhor soma de realidade? Brasil, brasileiros, brancos, verme-
lhos e pretos, paisagens do mais revoltante mau gosto, céus de um azul de
capela com estrelinhas de ouro, de terra de vermelhão e roxo, caras sarapinta-
das de mestres-de-obras portugueses, postes elétricos em esqueletos de
árvores, telefones na mata virgem, discos vermelhos de estradas de ferro
surgindo como luas entre coqueiros, aeroplanos pousando em praias desertas,
botes automóveis fonfonando nos rios do sertão, bandeirantes italianos, con-
quistadores sírios toda a vida desordenada da terra nova e rica, em plena
puberdade ardente, oferecendo-se à fecundação do primeiro desejo ... E
sem dúvida nesse saboroso cocktail que se inspirou um dos azes do ultra-
modernismo nacional, quando imaginou a poesia 'pau-brasil', nova e feliz
transformação do nosso indestrutível mal literário". PRADO, P. O momento.
RBR, v.25, n.100, p.289, abr. 1924.
Romper completamente as vinculações,o admitir a exis-
tência de prenúncios ou antecessores em nome da instauração de
um moderno absoluto, surgido do nada,o implicaria para o his-
toriador cair num engodo e endossar, tranqüilamente, sem qual-
quer desconfiança, um discurso de guerra, empunhado por um
grupo que lutava para afirmar sua hegemonia no campo intelec-
tual? Nessa perspectiva, a questão da linguagem é esclarecedora.
Das reivindicações de vernaculidade até a revolução levada a
efeito por alguns dos participantes de 1922 foi um longo cami-
nho. Apresentar os modernos como concludentes de uma tarefa
iniciada por outroso diminui em nada o mérito do trabalho que
realizaram, antes restitui-lhes uma historicidade que de fato nunca
passou desapercebida a Mário de Andrade, o escritor que mais se
empenhou em levar a cabo a sistematização da norma brasileira a
fim de dotá-la de cidadania literária (Schelling, 1990).
Data de 1922 a sua intenção de elaborar uma gramática da
nossa fala, projeto que somente abandonaria em 1929.
62
Nas ano-
tações destinadas ao livro, nas referências feitas a ele, assim como
inúmeras vezes ao longo de sua obra, Mário de Andrade explici-
tou limpidamente seu distanciamento em relação ao regionalismo,
esclarecendo que visava "a estilização culta eo a fotografia do
popular" com o intuito de escrever "brasileiro, sem por isso ser
caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, idiotis-
mos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira" (Andrade, 1958,
p.87),
63
numa postura dinâmica que, invertendo a prática então
62 Os originais de Mário de Andrade destinados à Gramatiquinha foram organi-
zados e comentados por: PINTO, E. P., 1990. Os textos de Mário vêem pre-
cedidos de um estudo a respeito dos motivos que o teriam levado a idealizar e
anunciar a obra; das concepções lingüísticas que a orientavam e das pesquisas
que ele empreendeu visando a sua elaboração. Segue-se um ensaio interpreta-
tivo de cada uma das partes fonologia, lexiologia, sintaxe e estilística que
deveria compor a obra.
63 A Drumond afirmava: "Não estou fazendo regionalismo. Trata-se de uma
estilização culta da linguagem popular da roça, como da cidade, do passado e
do presente. É uma trabalheira danada que tenho diante de mim ...o estou
pitorescando o meu estilo nem muito menos colecionando exemplos de estu-
pidez". ANDRADE, M. de, s.d., p.72, grifo no original.
corrente entre os especialistas brasileiros,o encarava a língua
como algo determinado pela gramática.
Mário condenava o dualismo praticado pelos escritores de
contos e romances sertanejos que "botavam uma escrita na boca
dos caboclos e outra limpinha e endomingada nos períodos que
propriamente lhes pertenciam". Argumentava queo o movia
"...a mínima intenção de procurar o curioso", antes tratava-se de
"acabar o mais cedo possível com o ineditismo desses processos e
de outros do mesmo gênero pra que todas essas expressões brasi-
leiras, quer vocabulares, quer gramaticais passem a ser de uso
comum, passem a ser despercebidos [sic] na escritura literária pra
que passem a ser estudados, catalogados, escolhidos pra formação
duma futura gramática e língua brasileiras", numa busca de usos
gerais brasileiros que o conduzia em direção oposta à seguida
pelos localistas: "fugi cuidadosamente de escrever paulista empre-
gando termos usados em diferentes regiões do Brasil e modismos
de síntese ou de expressão mais ou menos gerais dentro do país"
(Pinto, 1990, p.328, 422, 421, respectivamente).
Em artigo na Revista do Brasil a respeito da obra Memórias
sentimentais de João Miramar, Mário explicitou o seu conceito de
regionalismo:
Mas por ser o registro do ambiente paulista na época atual seria
injusto acoimar o livro de regional. Expressão brasileira, de interesse
brasileiro. O ser regional é antes de mais nada restringir-se a dados
particulares e peculiares a determinada região, servindo-se de prefe-
rência, quase que unicamente do que a torna exótica. E a individua-
liza. A vida deo Paulo, na maneira com que Osvaldo de Andrade
[sic] a sintetizou é a mesma das grandes partes progressistas e por-
tanto atuais do Brasil e mesmo da América.
64
Fica evidente que para Mário de Andrade a brasilidade resul-
taria de um processo de síntese (Andrade, 1968, p.164), no qual
as diferenças regionais deixariam de ter sentido em favor da cons-
64 ANDRADE, M. Osvaldo de Andrade. RBR, v.26, n.105, p.31, set. 1924.
Ainda sobre a fala paulista ver: ANDRADE, M. de, 1958, p.86.
trução de uma identidade nacional unitária eo apartada do
contexto internacional:
Veja bem: abrasileiramento do brasileiroo quer dizer regio-
nalismo nem mesmo nacionalismo - o Brasil pros brasileiros.o é
isso. Significa só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar
no concerto das nações que hoje em dia dirigem a civilização da
Terra, tem que concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal,
com o que o singulariza e individualiza, parte essa única que poderá
enriquecer e alargar a civilização. (Inojosa, 1968, v.2, p.340-1)
O esforço de pensar o Brasil como um todo desqualificava
o só os discursos que, calcados no geográfico, insistiam em opor
litoral e sertão, norte e sul; como também aqueles que pretendiam
fazer deo Paulo o baluarte da nacionalidade.
Nesse sentido, é interessante acompanhar a polêmica travada
por Mário e Sérgio Milliet nas páginas da revista Terra Roxa, susci-
tada pela afirmação de Sérgio, feita na sua resenha do livro Raça de
Guilherme de Almeida, de que "só se é brasileiro sendo paulista". A
resposta de Mário veio sob a forma de uma "Carta Protesto" que
condenava o "sentido simbólico heróico grandiloqüente e errado"
em que estava sendo aplicada a palavra paulista (Moraes, 1978,
p. 104-9). Longe de se esgotar no período em questão, a problemá-
tica da mediação regional-nacional continuaria a dominar as discus-
sões a respeito da cultura brasileira durante as décadas seguintes
(Pimenta, 1988, 1993; Oliveira, 1990).
Se é certo que as concepções de Mário de Andrade a respeito
da língua brasileira implicavam uma ruptura tanto com a produção
ficcional regionalista quanto em relação aos trabalhos de João
Ribeiro, Amadeu Amaral e Antenor Nascente, ele pôde, no
momento em que encetou o balanço de um modernismo consa-
grado, tomar os antecessores, até há pouco considerados inimigos,
como fonte legitimadora, dotada de competência, significado e
importância, sem negar, porém, o caráter renovador dos modernos:
O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono
de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o
que era a inteligência nacional. É muito mais exato imaginar que o
estado de guerra da Europa tivesse preparado ems um espírito de
guerra, eminentemente destruidor. E as modas que revestiram este
espírito foram, de início, diretamente importadas da Europa.
Quanto a dizer que éramos, os deo Paulo, uns antinacionalistas,
uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de sutileza crí-
tica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente
emo Paulo e imediatamente antes, pela Revista do Brasil; é esque-
cer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato; é esquecer a
arquitetura e até o urbanismo (Dubrugas) neocolonial, nascidos em
o Paulo. (Andrade, 1972, p.235)
O cerne de sua crítica referia-se à incapacidade de teóricos e
escritores levarem até as últimas conseqüências o projeto de nacio-
nalização do idioma, o que pressupunha compatibilizar a lingua-
gem oral e a literária. Seus reparos estendiam-se à literatura como
um todo, sem excluir os modernos, como bem demonstram as
observações feitas na Gramatiquinha a respeito de Ribeiro Couto,
Ronald de Carvalho e Couto de Barros (Pinto, 1990, p.327 e 407).
Quanto a Oswald, Mário explicitou, em mais de uma oportuni-
dade, a diferença do efeito cômico do erro oswaldiano em relação
às suas intenções sistematizadoras.
65
Várias vezes ao longo de sua vida, Mário sentiu necessidade de
explicar queo pretendia, a exemplo de Camões ou Dante, criar
uma língua nova, veleidade de que o acusavam (Pinto, 1990,
p.316). Insistia no sacrifício pessoal que seu projeto implicava, con-
clamando os colegas escritores a participarem da empreitada, sem-
pre por ele concebida como obra coletiva (Andrade, 1958, p.58).
Ele provavelmente concordaria com a essência do pensamento de
Lobato que, bem ao seu modo, curvava-se ao futurismo:
Essa brincadeira de crianças inteligentes, que outra coisao é
tal movimento, vai desempenhar uma função séria em nossas letras.
Vai forçar-nos a uma atenta revisão de valores e apressar o aban-
dono de duas coisas a que andamos aferrados: o espírito da litera-
tura francesa e a língua portuguesa de Portugal. Valerá por um
duplo 89 - ou por um novo 7 de setembro ... A língua de Cornélio
e Catulo só merece sorrisos - e é no entanto a que vai vencer! Já a
65 ANDRADE, M. Osvaldo de Andrade, RBR, v.26, n.105, p.31, set. 1924;
PINTO, E. P., 1990, p.385 e ANDRADE, M. de, 1968, p.21-2.
falamos; e acabaremos, cansados de resistir, por escrever como fala-
mos. Só então a literatura será entres uma coisa séria, voz da terra
articulada e grafada na língua das gentes que a povoam. A resultante
da campanha futurista vai tender para apressar este processo de uni-
ficação. Maso o realizará.o é isso obra de um homem, nem de
um grupo. É obra do tempo e do povo. (Lobato, 1948, p.lll)
Em conclusão, podemos afirmar que no início do presente
século a questão da língua nacional ganhou força, importância e
densidade. Sua emergência deu-se em um contexto marcado pelo
afã de apartar culturalmente o país da ex-metrópole, rompendo,
desse modo, os incômodos laços que, segundo a avaliação da época,
ainda nos atavam ao passado colonial. O direito a uma língua pró-
pria emaranhava-se então com a problemática do estatuto das mani-
festações aqui produzidas: seu valor, autenticidade e ineditismo.
Na busca de um conjunto de representações capazes de dar
conta da especificidade cultural do país,o Paulo, mais uma vez,
despontava como o modelo, o caminho a ser seguido. Graças ao
trabalho de Amadeu Amaral, o português falado na América
adquiriu nobilitação, podendo ser apresentado como remanescên-
cia quinhentista, tesouro carinhosamente guardado pela gente
simples das terras paulistas.
No âmbito da produção literária, o regionalismo adquiriu
novo fôlego nos anos 20. E preciso, porém, uma observação mais
atenta para perceber as utilizações e os sentidos atribuídos a um
termo que evocava a idéia de separação e autonomia, mas que
estava longe de ser empregado unicamente com tal conteúdo
semântico. Quando se tratava do idioma, era possível associá-lo a
uma postura antiunitarista, que advogava com galhardia o direito
à diferença e rebelava-se contra as normas lisboetas; passando,
porém, para a questão do alcance e sentido das obras produzidas,
os regionalistas de São Paulo - grupo que adquiriu maior visibili-
dade, ainda queo fosse o único existente - acreditavam-se
capazes de indicar estratégias eficientes para promover o reencon-
tro do país consigo mesmo, numa apreensão da regionalidade
que, em vez de se esgotar nas circunvizinhanças, ansiava por exer-
citar-se no país como um todo. A definição de um tipo antropo-
lógico brasileiro deveria naturalmente se fazer acompanhar de
uma língua e uma literatura próprias. Torná-las reconhecidas e
respeitadas internacionalmente equivalia a obter nossa certidão
de nascimento como nação civilizada.
O exemplo paulista, cujos homens de letras, em atitude patrió-
tica, demonstravam-se sensíveis à realidade circundante, tinha a
pretensão de atuar como um modelo alternativo ao padrão vigente,
que se reputava mera cópia de outros climas. A então já banalizada
imagem de umo Paulo carro-chefe da nação, habitado por uma
raça distinta do restante do país, locomotiva que consentia em
arrastar os demais Estados tanto política quanto economicamente,
procurava-se incorporar um novo adereço, capaz de dotá-la de
completude:o Paulo tornado pólo cultural do país, centro de
onde deveria irradiar um projeto nacionalizador.
Nesse contexto, deve-se inserir Monteiro Lobato, nome que
evocava a idéia de renovação e que era tomado como lídimo
representante do caráter audaz e impetuoso dos bandeirantes. Ele
agregou em torno de si o grupo dos regionalistas, ao qual se atri-
buía os louros pela utilização da nova língua e pela renovação do
cenário literário brasileiro:
O Sr. Monteiro Lobato reclama um estilo eo a cópia cm
todas as artes, e agrupando os moços de mérito, rodeando-se do
seu precioso concurso, leva ele por diante, e com êxito, a Revista do
Brasil, cuja roupagem cuidadosa e original conquistou simpatias sin-
ceras além das fronteiras da sua terra ... Observador sagacíssimo,
novelista delicioso e verídico, escritor de mérito, ele parece, além
disso, que é o animador de um movimento, queo seria coroado
de sucesso se visasse somente varrer a gramática, mas que se torna
sério concentrando indagações dos exploradores, os dados geográ-
ficos, a palavra dos pedagogos, ameaçando com o desmentido dos
estudiosos a ficção dos literatos, recolhendo enfim conhecimentos e
impressões próximas da realidade brasileira para os fazer escrever
numa linguagem brasileira.
66
Pouco importa que dos escritores que gravitaram em torno de
Lobato poucos fossem paulistas ou se enquadrassem plenamente
66 GAHISTO, M. A vida literária. As letras brasileiras. RBR, v.22, n.86, p.155,
fev. 1923.
no rótulo que se lhes colocava, na prática o viés da regionalidade
literária foi difundido como mais um ícone da paulistaneidade e
nessa condição foi manipulado como arma de guerra contra o Rio
de Janeiro. Honrando a tradição bandeirante,o Paulo desbra-
vava os caminhos de uma expressividade tipicamente brasílica,
que deveria desaguar na formação de uma identidade cultural
autóctone e, segundo a lógica em voga, genuína.
Tais balizas permitem deslindar um determinado projeto cul-
tural paulista que perdeu ressonância, nos termos em que estava
enunciado, a partir do surgimento do modernismo, queo só
equacionou a questão em outros parâmetros como também foi
responsável por uma mudança brusca na correlação de forças no
campo intelectual. Quanto ao primeiro aspecto, os modernistas
estavam fascinados com o espetáculo proporcionado pela grande
metrópole: fábricas e chaminés, prédios, carros, bondes, o burbu-
rinho das multidões apressadas em contínuo movimento. Num
Brasil esmagadoramente rural,o Paulo destacava-se como expe-
riência urbana única, digna de ser erigida à condição de musa ins-
piradora. Observe-se como Lobato adota posição oposta:
Em todos os países do mundo as populações rurais constituem o
cerne das nacionalidades. Taurinos, torrados de Sol, enrijados pela
vida sadia ao ar livre, os camponeses, pela sua robustez e saúde, cons-
tituem a melhor riqueza das nações.o a força,o o futuro,o a
garantia biológica dos grupos étnicos. Pela capacidade de trabalho
mantêm eles sempre elevado o nível da produção econômica; pela
saúde física, mantêm em alta o índice biológico da raça, pois é com o
sangue e o músculo forte do camponês que os centros urbanos tempe-
ram a sua vitalidade. O urbanismo é um mal nocivo à espécie humana.
Os vícios, o artificialismo, o afastamento da vida natural, o ar impuro,
a moradia anti-higiênica, se conjugam para romper o equilíbrio orgâ-
nico do homem citadino, rebaixando-lhe o tônus vital. Mas o campo
intervém e restaura-se o equilíbrio. A infiltração permanente de san-
gue e carne de boa têmpera, vinda dos campos, contrabalança o des-
medramento das cidades. (Lobato, 1956b, p.2.55)
Em trabalho dos mais instigantes, Annateresa Fabris descons-
trói a visão urdida pelos modernos de uma paulicéia miticamente
tecnizada, ressaltando o seu caráter muito mais "projetivo do que
efetivo" (Fabris, 1994, p.31). Nesse horizonteo havia espaço para
o país tradicional e arcaico representado pelo sertão, com seus cabo-
clos acocorados junto ao fogo, fumando cigarros de palha e con-
tando casos para empatar um tempo alongado e que corria devagar.
De outra parte, afirmando-se contra parnasianos, simbolistas,
decadentistas e regionalistas, os integrantes de 1922 classificaram,
especialmente no primeiro tempo modernista, todos os seus ante-
cessores como passadistas. Esse discurso genérico, que trabalhava
a favor da imposição de um encadeamento linear e dotado de apa-
rente coerência, foi o que acabou por se difundir, soterrando na
poeira do tempo a multiplicidade de abordagens.
o parece demais sugerir que a aversão dos modernos à
Lobato se prendia menos à sua decantada incapacidade de aceitar
uma pintura deslocada da representação realista do que à necessi-
dade de neutralizar um poderoso inimigo. Afinal, Lobato - maior
fenômeno de vendas do período, defensor intransigente da língua
brasileira, crítico da cultura de importação, pioneiro da literatura
infantil, identificado como o líder de uma corrente literária feste-
jada pela crítica e pelo público, propugnador da campanha sani-
tária, criador do personagem símbolo do país, proprietário da
prestigiosa Revista do Brasil, empresário que revolucionou a pro-
dução e a comercialização do livro e que controlava uma das prin-
cipais editoras do país - acumulou sucessos que acabaram por
torná-lo um patrimônio nacional e elevá-lo à condição de verda-
deiro bandeirante, um dilatador das fronteiras da cultura, da
indústria e da ciência. Combatê-lo era, para aspirantes à hegemo-
nia no campo das letras, tarefa essencial.
É interessante notar como alguns modernistas acabavam por
engrossar o coro que consagrava Lobato. A Revista do Brasil
publicou elogios de Sérgio Milliet e Oswald de Andrade ao cria-
dor do Jeca,
67
que também franquiou as portas de sua editora a
alguns dos modernos. Já entre Mário de Andrade e Monteiro
Lobato as relações nunca foram amistosas. A colaboração de
Mário na Revista do Brasil só se amiudou no período em que ela
67 MILLIET, S. As Moreninhas de Cesidio Ambrogi. RBR, v.25, n.100, p.358,
abr. 1924. Ver também a conferência proferida na Sorbonne por ANDRADE,
O. de. O esforço intelectual do Brasil contemporâneo. RBR, v.24, n.96,
p.388-9, dez. 1923.
foi dirigida por Paulo Prado. Em todo o período anterior, o escri-
tor publicou um único artigo Debussy e o impressionismo,
68
ainda
assim graças à intervenção de Amadeu Amaral. No entanto, Pau-
licéia desvairada foi submetida à apreciação do editor Monteiro
Lobato, queo publicou a obra.o é de admirar que o livro de
Mário tivesse sido alvo de uma resenha muito pouco elogiosa na
revista.
69
Mesmo durante o período em que Paulo Prado dirigiu o
periódico, Mário continuou recebendo críticas. Suas Crônicas de
Arte mereceram o seguinte comentário: "é método futurista, a
maneira de Mário de Andrade. Anuncia-se uma crônica de arte e
fala-se em tudo, menos de arte".
70
A fonte utilizada permite rastear os diferentes pressupostos
que, ao longo do tempo, estruturaram o debate em torno da lín-
gua, o qual estava profundamente associado a um anseio de auto-
nomia e reconhecimento de maturidade literária. Ao mesmo
tempo, deixa antever a gestação, efetivada no bojo do referido
debate, de um projeto cultural paulista personificado em Mon-
teiro Lobato. Essa problemática ganha relevo na medida em que
recoloca em discussão o clima intelectual de um período que se
insiste em abarcar a partir da polarização modernos e pré-modernos,
oposição que está muito longe de dar conta da sua complexidade. De
fato, entre integrantes de 1922 e "regionalistas paulistas" observam-
se confluências e oposições, patentes na abordagem do idioma, aqui
exemplificada com Mário de Andrade. É preciso ter presente tam-
m que a tensão regionalismo-modernismo esteve longe de se
esgotar nos anos 20, tal polêmica continuou na ordem do dia por
várias décadas, ainda que com outros interlocutores queo
Lobato e seu grupo.
71
A Revista do Brasil permite navegar em sentido contrário à
corrente dominante, a travessia pode trazer rentabilidade analítica
na medida em que sugere outras rotas, ainda que vicinais.
68 RBR, v.17, n.66, p.193-211, jun. 1921
69 RBR, v.21, n.82, p.147, out. 1922.
70 GUIDO, A. Cinematografia futurista. RBR, v.23, n.89, p.69, maio 1923.
71 A defesa do regional coube a Freyre e o seu regionalismo tradicionalista e
modernista. A respeito ver: D'ANDREA, M. S., 1992, p.107-92.
GRUPO V: Figuras 19 a 22
A presença dos modernistaso impediu que a revista se mostrasse crítica em
relação às novas idéias. (RBR, n.55, 78, 90 e 105)
FIGURA 19
O NOSSO FUTURO ATRAVEZ DO CUBISMO
FIGURA 20
FUTURISMO ETC, E TAL
(D. Quixote em 8. Paulo)
A historia é velha: a extrangeira passa na aldeia com a sua
belleza postiça e seu luxo de contrabando e logo a rapaziada se lhe
atira no encalço sem saber para onde levará essa visão enganadora!
E' preciso deter os moços e enxotar a cortezã!
(D. Quixote Rio)
FIGURA 2 1
NA "EXPOSIÇÃO DA E. N. BELLAS ARTES"
Maso ha nada pintado aqui, neste quadro.
E' assim mesmo... Talvez seja a "Immaculada Concepção".
(D. Quixote Rio).
FIGURA 22
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reconstruir mundos é uma das tarefas essen-
ciais do historiador, e eleo a empreende pelo
estranho impulso de escarafunchar arquivos e fare-
jar papel embolorado - mas para conversar com os
mortos. Fazendo perguntas aos documentos e pres-
tando atenção às respostas, pode-se ter o privilégio
de auscultar almas mortas e avaliar as sociedades por
elas habitadas. Se rompermos todo contato com
mundos perdidos, estaremos condenados a um pre-
sente bidimensional e limitado pelo tempo; achatare-
mos nosso próprio mundo. (Darnton, R., 1987, p.7)
Das páginas da Revista do Brasil emerge um conjunto de diag-
nósticos que pretendia refletir sobre a especificidade do Brasil e
propor saídas para os nossos desacertos. O esforço de inventariar
as razões que estariam impedindo a nação de se afirmar como uma
identidade coletiva, capaz de ocupar papel de destaque no cenário
internacional, ensejava múltiplas respostas, nem sempre compatí-
veis entre si. O esmiuçar cuidadoso dos diferentes aspectos da rea-
lidade nacional nunca esteve dissociado da ânsia de propor
caminhos para a ação. A construção de modelos explicativos,
longe de ter sido efetivada com augusto distanciamento, imbri-
cava-se a projetos de gestão que se esperava tornar efetivos.
A intelectualidade do período, que se auto-atribuía a capa-
cidade de traçar caminhos para o país, direcionar produtiva-
mente os seus esforços e orientar a condução dos negócios
públicos,o hesitou em proclamar a sua qualificação - supos-
tamente legitimada pela posse de um saber específico que lhe
permitia ver para além das aparências - e em colocá-la a serviço
dos interesses nacionais.
Nessa produção, perpassada por um tom de desalento,o
Paulo destacava-se como positividade. Graças aos paulistas, era
possível propor uma leitura redentora do passado, transformado
no momento privilegiado de alargamento das fronteiras; do pre-
sente, pois a região constituía-se encorajador exemplo de prospe-
ridade econômica; e do futuro, que passava a ser encarado com
confiança. O Estado e sua dinâmica capital tornavam-se então o
modelo, o grande farol que derramava sua possante luz sobre todo
o país.
Por certo, tratava-se de uma estrela solitária, mas seu brilho
atestava a compatibilidade entre sucesso econômico, progresso,
modernidade e os trópicos, que finalmente davam mostras de
poder abrigar a civilização. As dúvidas e incertezas quanto à via-
bilidade do Brasil, lançadas de agora em diante para além das
fronteiras paulistas, podiam ser equacionadas na seguinte fór-
mula: elevar o restante do país à condição deo Paulo, dora-
vante cada vez mais identificado à nação.o é preciso insistir no
caráter excludente de uma proposta que redimia uma pequena
fração e ameaçava o restante com o espectro da barbárie. Na sua
versão mais restritiva, essa representação conferia dignidade ape-
nas aos bandeirantes e seus descendentes, exaltados como uma
raça natural e estruturalmente superior.
Enquantoo Paulo oferecia uma visão reconfortante, que
infundia confiança, os demais Estados permaneciam mergulhados
em letargia profunda, enredados em crises de formação, respon-
sáveis por desequilíbrios que, por sua vez, ajudavam a compreen-
der porque a nação aindao fora capaz de ultrapassar o estágio
de um agregado informe.
Sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, quando a
luta encaniçada entre as grandes potências deixava patente que
nenhuma parte do planeta estaria imune aos apetites imperialistas,
entrou na ordem do dia a tarefa de dar ao Brasil um sentido de
conjunto, transformando-o em um todo coeso. Era urgente que
esse país enorme e semideserto, se mostrasse capaz de povoar, uti-
lizar e defender os recursos naturais a fim de assegurar efetiva-
mente a sua posse.
Os balanços obstinadamente insistiam nos nossos males de
natureza biológica, patentes no estado doentio dos habitantes e ou
na sua duvidosa qualidade étnica; econômica, expresso nos índi-
ces de miséria; moral, que assumia a forma de um pessimismo
generalizado; ou intelectual, evidente no alarmante número de
analfabetos e na inexpressividade da nossa produção nos campos
artístico, cultural e científico. Porém, eleso se compraziam na
simples constatação, antes clamavam por atitudes, em uma ânsia
indisfarçada de desdobrar-se em práticas.
Para alguns, as soluções circunscreviam-se à esfera política pro-
priamente dita. A fonte das nossas desventuras residiria no funcio-
namento imperfeito das proposições liberais e democráticas, aqui
obstadas pela ausência do voto secreto, de lisura nos procedimentos
eleitorais, de partidos políticos estruturados, de uma opinião
pública ativa e de uma elite política realmente comprometida com
o país. Em editorial datado de 1924, Paulo Prado chamava a aten-
ção para a prioridade absoluta da problemática política:
Todos esquecem que nesta terra só existe realmente, empol-
gante e irreduzível, uma única questão - a questão política. Dela
decorrem todas as outras, como as que criaram o romantismo da
monarquia e o arrivismo da república. Ou e o solo benignos livra-
ram-nos da grande questão por que hoje se bate o mundo inteiro -
a questão social. Desconhecemos, por completo, as dissenções de
raça e religião que tanto perturbam os outros países, e os problemas
econômicos e financeiros surgem somente em acessos intermitentes,
ao acaso das crises, e deles pouco cuidam, ao ser nas aperturas do
momento. A questão política é a questão dos homens que governam
... E, segundo a férrea organização das oligarquias,o levados ao
poder pelo sistema das nomeações eleitorais ... Só a restauração
estrepitosa da verdade do voto poderá restituir à imensa maioria dos
que pagam e sofrem os direitos perdidos pela indiferença e pelo
absenteísmo ... Unicamente a solução do problema político poderá
nos safar da chafurda em que nos atolamos, e dissolver a camarilha
que se julga dona e senhora dos destinos do Brasil. É pela política -
desde que afastemos as soluções violentas - que conseguiremos abo-
lir na república da Camaradagem, em que a irresponsabilidade é um
dogma, o culto molocheano da Incompetência.
1
O enfrentamento da questão nacional exigia, nessa perspec-
tiva, uma reforma do aparelho estatal, que deveria ser transfor-
mado em terreno propício para o pleno desabrochar de um
projeto político queo conseguia vingar. Tratava-se de reformu-
lar a prática quotidiana, eivada de vícios, substituindo-a por outra
que assegurasse ao povo o efetivo exercício de sua soberania. O
voto secreto surgia como solução poderosa, capaz de despertar a
nação para a vida cívica:
Afinal, uma idéia na política da República: o voto secreto ... É
essa coisa espantosa, nunca dantes vista em trinta e três anos de
"democracia": uma idéia nacional, ponto de convergência e centro
de irradiação de forças sociais. É a emancipação, é a discussão, é a
luta, é a responsabilidade de cada um e de todos. É mais um pouco:
é a primeira brecha nesse muro de taipa, a fingir de muralha chinesa
- a autocracia ... O voto secreto vencerá e com ele a nação.
2
Nas páginas da Revista do Brasil, Mário Pinto Serva defendeu
com ardor a necessidade da revisão constitucional, prescrita como
remédio eficiente para contornar as dificuldades. Ele argumen-
tava que:
a verdade republicana reside nas eleições e as nossas eleiçõeso
mentiras cínicas e repulsivas. Sob o nome de comícios eleitorais
temos artefatos de tirania e corrupção, orgias de fraudes, bacanais
donde fogem os homens de bem e que os cidadãos pacíficos e decen-
tes evitam, da mesma forma que evitam as tabernas e lupanares ... A
consciência nacional no Brasil está adormecida: dê-nos a lei do voto
secreto e obrigatório, ela começará a despertar e em breve se levan-
1 PRADO, P. O momento. RBR, v.25, n.99, p.193-4, mar. 1924.
2 O momento. RBR, v.20, n.78, p.97, jun. 1922.
tará na plenitude de sua energia ... O voto é para o patriotismo o que
a hóstia é para a religião. Assim precisamos preservar o voto num
sacrário guardando-o de todas as profanações, porque ele é a exte-
riorização da consciência íntima da Nação.
1
A educação assumia, aos olhos dos homens comprometidos
com essas propostas, lugar preponderante. Esperava-se que ela
aliasse o ensino do alfabeto à difusão do sentimento patriótico e
das noções de cidadania. O conteúdo programático deveria reser-
var espaço privilegiado para a língua, a literatura, o folclore, a his-
tória e a geografia nacional, além de infundir o culto e o respeito
pela bandeira, pelo hino, pelas festas cívicas e pelos nossos heróis:
A base sobre a qual há de alicerçar-se uma sociedade presumi-
damente adiantada, é sem conteste a instrução; é preciso convir de
antemão que a instruçãoo se obtém com uma bagagem escolar em
que à cartilha ABC juntou-se a ciência confusa das quatro operações
elementares. Dizendo instrução, digo, implicitamente, instrução
cívica, instrução social nítidas, completas, sem deslizes da preocupa-
ção máxima que deve ser a orientação futura de cada um: a compre-
ensão de queo, ou por outra,o deve haver, na coletividade,
quantidades desprezíveis, que cada um tem um papel a representar,
e que no grande drama da vida humanao há comparsa, por mais
humilde, cujo desempenhoo possa influir no êxito geral ... Ins-
truir as massas, dar a cada um a dose suficiente de instrução e cultura
que nos permita um discernimento apurado, é a incumbência
máxima da elite social; assim, e só assim, terá o homem a liberdade
moral precisa para que a responsabilidade se institua e a organização
social se aperfeiçoe.
4
Contudo,o se pode subestimar o fato de os anos 10 e 20
terem sido marcados por insurreições militares e agitações operá-
rias, testemunhos eloqüentes da presença de outras forças sociais
na arena política. A capacidade mobilizadora dos anarquistas, a
3 SERVA, M. P. Na retaguarda da civilização. RBR, v.14, n.55, p.209-10, jul.
1920.
4 ALMEIDA, G. de. A noção de responsabilidade. RBR, v.3, n.10, p. 148-9, ont.
1916. Especialmente para a questão do conteúdo a ser ministrado ver SIL-
VEIRA, C. da. Fins da educação sob o ponto de vista brasileiro. RBR, v.4,
n.14, p.202-5, fev. 1917.
fundação do Partido Comunista, a rebeldia crescente de alguns
setores das forças armadas indicavam que o tempo da tutela oli-
gárquica esvaia-se. O alarido das vagas contestatóriaso podia
ser ignorado; ainda mais porque ele apontava para soluções repu-
tadas de radicais pelos seguidores do ideário liberal. Tais proposi-
ções estiveram longe de seduzir a intelectualidade da Revista do
Brasil, como atesta o fato das suas páginas nunca lhes ter dado
acolhida.
No próprio interior das camadas dominantes as fraturas tor-
navam-se evidentes. A cada sucessão estadual ou federal os atritos
multiplicavam-se, expondo discórdias que acabaram por propi-
ciar a fundação do Partido Democrático em 1926. A decisão de
Júlio de Mesquita de criar a Revista do Brasil, tomada no transcor-
rer da crise aberta pela cisão de 1915, pode ser interpretada como
um passo na tentativa de arregimentar os descontentes. Afinal, o
grupo do jornal O Estado de S. Paulo sempre considerou tarefa
das oposições enfrentar um poder discricionário que, por se dis-
tanciar do salutar caminho da democracia, via-se agora confron-
tado com agitações que colocavam em risco todo o aparato
político.
As proposições a favor da moralização das eleições, do voto
secreto, da reforma constitucional, do fim do clientelismo,o
presentes na revista, inseriam-se na tentativa de fornecer alterna-
tivas para enfrentar as ameaças revolucionárias, sem cruzar as
fronteiras definidas pelos princípios liberais.
Entretanto,o eram poucos os que se declaravam cépticos
quanto à possibilidade de circunscrever as dificuldades do país à
realização incompleta de um modelo político. A salvação da nação
exigia que se colocasse sob-judicie as próprias instituições. Denun-
ciava-se o caráter imitativo do aparelho estatal, transplantado sem
qualquer consideração às nossas especificidades, necessidades e
aspirações. Discernia-se nessa imitação cega mais um sinal de
infantilidade, bem sintetizada no termo macaquear, com o qual se
queria expressar a atitude inconsciente, caricata e ridícula, de
copiar pelo simples prazer de fazer igual, sem a menor idéia do
significado dos próprios gestos:
Mas, quem, para legislar, procurou investigar as nossas neces-
sidades, o nosso ambiente, as exigências sociais, políticas e econômi-
cas da pátria? Houve, em todos os tempos, a preocupação de
transplantar para o Brasil as melhores instituições. Agia-se como
para a elaboração de um povo artificial, capaz de ser regido por leis
criadas e reunidas teoricamente, pela beleza de sua liberalidade ...
Com uma das mais liberais constituições que existem sobre a terra,
temos sido um povo razoavelmente desorganizado e imprevidente.
Ainda hoje, trinta anos da República e noventa e sete da Indepen-
dência, os apóstolos da revisão [constitucional]o pensam diferen-
temente, ao que parece. Faça-se a revisão e o país estará a salvo.
Instrução pública, vitalidade da raça,o coisas acessórias. O que
conta é uma carta constitucional modelar.
5
A insistência em desrespeitar a alma brasileira, impingindo-
lhe códigos alheios, identificava-se a causa última das nossas vaci-
lações e vicissitudes,o passíveis de solução por retoques de
cunho legislativo. Questionava-se a tentativa de ostentar fórmulas
políticas lapidares, porém impenetráveis para a maioria dos habi-
tantes. Insistia-se, mais uma vez, no estágio intelectual da popula-
ção, tida como indigna de ser chamada de povo:
na feitura de nossas formas de governo, o povo nunca participou
realmente, mesmo porque no Brasil nunca houve, aindao,
povo na acepção política dessa palavra ... Por isso, no Brasil, os
governosm sido como que dádivas, feitas a princípio pela metró-
pole e, posteriormente, por minorias mais ou menos eivadas de
lirismo político.
6
Enfatizava-se a completa inversão operada no Brasil, país no
qual o Estado teria pretendido criar a sociedade em vez de ser o
resultado dela. Essa relação eivada de antagonismo evocava um
esforço de sujeição do país às máximas queo se inspiravam nas
5 LEÃO, C. História constitucional do Brasil. RBR, v.17, n.68, p.405 e 408,
ago. 1921. Ver também BRITO, L. A. C. de. Tradição e progresso. RBR, v. 14,
n.54, p.142, jun. 1920.
6 PRADO, A. A independência do Brasil, op. cit., p. 151. E ainda "... no Brasil
o existe povo no sentido anglo-saxão da expressão, isto é, massas populares
esclarecidas e independentes, e sim uma vasta congérie humana, acumulada
nas cidades ou dispersa pelos campos e sertões". OLIVEIRA VIANNA, F. J. O
idealismo na evolução política do Império e República. RBR, v.21, n.81, p.46,
set. 1922.
fontes da nacionalidade. Daí ser taxada de idealista, termo utili-
zado para caracterizar a falta de ligação orgânica entre a nação e
as suas instituições, e responsabilizada pela artificialidade do
regime republicano:
Entre nós, com efeito,o é no "povo", na sua estrutura, na sua
psicologia, na sua economia íntima e nas condições particulares da
sua psique, que os organizadores brasileiros, e os elaboradores dos
nossos códigos políticoso buscar os materiais para as suas formo-
sas e soberbas construções: é fora de nós, é nos modelos estranhos,
é nos exemplos estranhos, é nas jurisprudências estranhas, em estra-
nhos princípios, em estranhos sistemas que eles se abeberam e inspi-
ram - e parece que é somente sobre estes paradigmas que a sua
inteligência sabe trabalhar com perfeição.
7
Diante desse quadro,o eram poucos os que, nostalgica-
mente, suspiravam pela monarquia.
8
Os críticos da imitação, que compartilhavam com os refor-
madores liberais as páginas da Revista do Brasil, produziram
7 OLIVEIRA VIANNA, F. J. Idealismo na evolução política do Império e da
República. RBR, v.21, v.81, p.23, set. 1922.
8 "Arraigou-se de tal forma esse hábito (da imitação) em nossos patrícios que já
antes de expirar entres o regime ao qual devemos setenta anos de pros-
peridade, os propagandistas davam como principal razão a favor do novo
regime, a da exceção na América! ... A Strausso passou desapercebida a
superioridade da monarquia sobre a república na formação e no desenvolvi-
mento intelectual de unia nacionalidade." HOLLANDA, S. B. de. Ariel. RBR,
v.14, n.53, p.85, maio, 1920. Ao lado das críticas ao regime republicano, pode-
se detectar nas páginas da Revista do Brasil um culto à figura de D. Pedro II
patente em LESSA, P. O preceito das reformas constitucionais. RBR, v.l, n.l,
p.6-11, jan. 1916; NORTE, J. do. A mensagem e o Imperador. RBR, v.15,
n.57, p.85-7, set. 1920; Resenha do Mês. Os restos do Imperador. RBR, v.16,
n.61, p.88, jan. 1921, cuja edição foi aberta com um busto de D. Pedro II,
desenhado por José Wasth Rodrigues; LAET, C. de. Em torno de D. Pedro II e
MORAES, H. As três sombras. RBR, v.16, n.62, p.167-70 e 170-2, fev. 1921,
respectivamente; D. Pedro II. RBR, v.16, n.63, p.268-96, mar. 1921, entre
outros. A Princesa Isabel também foi alvo de artigos elogiosos: CHATEAU-
BRIAND, A. Isabel, a Redentora. RBR, v.19, n.73, p.78-80, jan.1922; RBR,
v.19, n.76, p.348, abr. 1922; Resenha de Saudades de Manfredo Leite. RBR,
v.l7, n.77, p.73-4, maio 1922; o mesmo acontecendo com o seu filho, D.
Luiz de Bragança e Orleans. RBR, v.14, n.56, p.352-4, ago. 1920.
reflexões multiformes que guardavam entre si consideráveis seme-
lhanças. Entretanto, convém distinguir nesses registros as saídas
sugeridas, que tanto poderiam continuar desembocando em um
projeto de feição iluminista, no qual o fator étnico adquiria um
peso modesto, ou pelo menos encarado sob o ângulo da perfecti-
bilidade;
9
quanto caminhar em direção a uma proposta que, acei-
tando a inferioridade e a indolência natural da grande maioria dos
governados, postulava a necessidade de se investir na construção
de uma nova ordem política. As noções de democracia, represen-
tatividade, cidadania, foram duramente questionadas por setores
significativos da intelectualidade, postura que, seo era inédita,
adquiria nesse momento traços peculiares. Comentando a res-
peito de um grupo de quinhentos eleitores mineiros da cidade de
Palmira, Vianna afirmava:
Todos esses homens iriam, dentro em pouco, votar nas eleições
para presidente da República, do Estado e deputados federais. Con-
versei com um grande número deles, e sondei a sua cultura política.
Muitoso sabiam quem era o candidato à presidência de Minas (o
Sr. Arthur Bernardes), cuja eleição se faria dentro de alguns dias.
Outroso sabiam se quer quem era o presidente atual do Estado.
De algunso pude saber mesmo quem era o chefe político a que
obedeciam. Só conheciam o coronel que os guiava. Quase todoso
sabiam bem o que iam fazer a Barbacena. O coronel é que devia
saber; que "eu perguntasse ao coronel" - diziam com simplicidade e
brandura, como se fosse a coisa mais notável do mundo. O sufrágio
universal nos nossos campos! Que belíssimo assunto para o humo-
rismo de Mark Twain!
10
A conjuntura aberta com o final da Primeira Guerra colabo-
rava para generalizar a convicção de que era urgente atualizar os
antigos modelos políticos, agora tidos como incapazes de forne-
cer, com prontidão, respostas para o curso dos acontecimentos.
9 Nesse rol deve-se incluir o texto de Armando Prado (nota 6) e também o de
AZEVEDO, N. de. Educação republicana. RBR, v.13, n.51, p.191-5, mar.
1920.
10 OLIVEIRA VIANNA, F. J. As pequenas comunidades mineiras. RBR, v.8,
n.31,p.223, jul. 1918.
Significativamente, os regimes de cunho autoritário ganharam, no
decorrer dos anos 20, espaço cada vez mais amplo, subtraindo
sentido às noções de voto, opinião pública e participação. O con-
texto internacional reforçava o arsenal dos críticos brasileiros,
convenientemente atualizados com as últimas tendências.
11
O discurso científico, por sua vez, também acabava por for-
necer um importante rol de argumentos. Na sua versão mais
ortodoxa, a inferioridade étnica condenava a maioria dos habi-
tantes ao status de subcidadão, deixando pouco espaço para o
exercício dos direitos políticos. Postulava-se a necessidade de
elevar o seu patrimônio étnico, o que deveria ser feito aliando a
imigração selecionada a uma severa legislação eugênica encarre-
gada de coibir os cruzamentos de portadores de deficiências físi-
cas, psicológicas e ou morais e de incentivar a reprodução dos
bem-dotados.
No interior do discurso higiênico, a população era encarada
como um aglomerado de doentes que precisava ser curado, ampa-
rado, tratado para depois adquirir cidadania plena. A elevação das
condições sanitárias, a cura das endemias, a adoção de medidas
profiláticas tinham que ser impostas a seres desprotegidos e impo-
tentes, que só seriam arrancados de seu estado mórbido por meio
dos benefícios da ciência. Desnecessário lembrar que a discussão
de métodos e procedimentos científicos estava fora da alçada de
indivíduoso iniciados. Note-se que a educação perdia aqui o
seu contorno de prioridade: seo chegou a ser julgada total-
mente inútil, seu alcance certamente foi tido como limitado tanto
para os eugenistas, que chegavam mesmo a negar-lhe sentido,
quanto para os higienistas, que também estavam dispostos a pos-
tergá-la diante da tarefa maior de curar febres e expulsar vetores.
11 Na Revista do Brasil o ensaísta que melhor ilustrou a postura autoritária foi
Oliveira Vianna. Entretanto eleo foi o único a defender um regime elitista,
conservador e contrário ao sufrágio universal. Nesse sentido, ver: BAN-
DEIRA, S. Ruínas da Aristocracia. RBR, v.2, n.7, p.213-20, jul. 1916;
BOUVIER, P. A ilusão da democracia. RBR, v.25, n.101, p.68-70, maio
1924 e COLLOR, L. Constituições artificiais. RBR, v.26, n.106, p.172-4,
out. 1924, os dois últimos francamente favoráveis ao fascismo italiano.
O modelo liberal clássico passou a ser alvo de críticas severas.
Para realizar com presteza e agilidade as tarefas que obstavam a
marcha do país, clamava-se por um poder centralizado e forte,
dotado de um projeto nacional calcado em metas claras e objeti-
vamente traçadas, rodeado por corpo de agentes competentes e
familiarizados com técnicas derivadas de um saber positivo.
Enraizava-se uma concepção da população enquanto massa
informe e dócil sobre a qual se deveria exercitar a ação. Ao rese-
nhar um conjunto de ensaios de Oliveira Vianna reunidos em
livros, o articulista da Revista do Brasil afirmou:
Os trezentos anos da colôniao educaram para a democracia.
O império estabeleceu-a de chofre. Mas "a vivacidade do nosso espí-
rito eleitoral" residia no instinto partidário dos grandes proprietá-
rios do interior. Arruinados com a abolição e as crises subseqüentes,
extintos os partidos tradicionais, cessou o entusiasmo eleitoral dos
caudilhos locais e, com ele, o das massas, que só os acompanhavam,
sem nunca agir por si, democraticamente. Está, pois, compreendida
a índole nacional e explicado o funcionamento político do regime.
Como funcionaria ele melhor? Com um governo forte. E Oliveira
Vianna nos dá a verdadeira concepção de governo forte: a do magis-
trado superior a partidos, juiz de si mesmo e dos amigos, capaz
de resistir-lhes, mais que aos adversários ... O papel dos governos
fortes no regime presidencial é o corpo de delito mais perfeito,
mais profundo e sutil destes trinta anos de República. Lê-lo é com-
preender tudo, absolutamente tudo o que há de humilhante, vergo-
nhoso e indigno nesta máquina complicada e misteriosa de nossa
História...
12
Tensões no interior da oligarquia; propostas de reformas
políticas dentro das fronteiras liberais; críticas contundentes às
instituições, que desaguaram em um autoritarismo pretensamente
estribado em verdades científicas provenientes da antropologia, da
higiene e ou da eugenia; projetos alternativos à ordem estabelecida,
sustentados por anarquistas e comunistas; contestações militares: a
fermentação ideológica do período é patente. Por décadas a fio
12 Resenha de Pequenos estudos de Psicologia Social de Oliveira Vianna. RBR,
v.20, n.78, p.157-8, jun. 1922.
essas matrizes, em grande parte gestadas nesse período, continua-
riam a se enfrentar e dar o tom à cena política nacional.
Ainda que a Revista do Brasilo tenha agasalhado todas
essas proposições, ela foi capaz de abarcar um quadro diversifi-
cado a ponto de permitir questionar as imagens que insistem em
tomar os anos 10 e 20 como um período relativamente indiferen-
ciado. Politicamente, a chamada República Velha, com toda a
carga de negatividade que o adjetivo encerra,o passaria de um
longo preâmbulo para a Revolução de 1930, acontecimento trans-
formador por excelência, que sacudiu o país da modorra em que
se encontrava. Culturalmente, a grande ruptura teria ocorrido
pouco antes com o modernismo, responsável tanto por novas for-
mulações estéticas, quanto por alterações profundas na compre-
ensão da identidade nacional brasileira. Essa é a visão consagrada
pela historiografia, que tem sido pouco generosa para com aque-
les queo estiveram engajados diretamente nos acontecimentos
erigidos em marcos periodizadores. A Revista do Brasil constitui-
se um testemunho pungente e encorajador contra as simplifica-
ções impostas por um determinado discurso histórico.
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SOBRE O LIVRO
Coleção: Prismas
Formato: 14 x 21 cm
Mancha: 23 x 43 paicas
Tipologia: Classical Garamond 10/13
Papel: Offset 75g/m
2
(miolo)
Cartão Supremo 250 g/m
2
(capa)
1
a
edição: 1999
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Produção Gráfica
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Edição de Texto
Fábio Gonçalves (Assistente Editorial)
Fábio Gonçalves (Preparação de Original)
Luicy Caetano de Oliveira (Revisão)
Editoração Eletrônica
Lourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão)
José Vicente Pimenta (Edição de Imagens)
Duclera Gerola Pires de Almeida (Diagramação)
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