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ROBERTO DE ALMEIDA GALLEGO
O UNO E OS ÉONS: A SOTERIOLOGIA EM PLOTINO E EM
SUA POLÊMICA ANTIGNÓSTICA
Pontifícia Universidade Católica
São Paulo – 2006
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ROBERTO DE ALMEIDA GALLEGO
O UNO E OS ÉONS: A SOTERIOLOGIA EM PLOTINO E EM
SUA POLÊMICA ANTIGNÓSTICA
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Ciências da Religião à Comissão Julgadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo
Rodrigues da Cruz.
Pontifícia Universidade Católica
São Paulo – 2006
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COMISSÃO JULGADORA
Dedico este trabalho ao meu pai, presença eterna, in
memoriam. E também ao saudoso Fernando Rodrigues
Pappalardo: Por que tão precocemente, irmão, sem a
ninguém avisar, na traiçoeira madrugada? Com quem
conversarei, agora, sobre Deus?
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da Cruz, que, com generosidade e competência, orientou-me
na realização deste projeto;
Aos docentes e funcionários do Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, por me
permitirem compartilhar de seu conhecimento e usufruir seu convívio;
À CAPES, pela concessão da bolsa respectiva;
À minha família, fonte, abrigo e esteio, sem a qual nada teria sido possível;
À minha mãe, tenacidade e amor infinitos, farol na noite escura;
À Andréa, pela compreensão de um destino;
Aos estimados mestres da Associação Palas Athena, exemplos vivos da excelsa comunhão
entre o pensar e o agir modulados pelo Bom, o Belo e o Justo;
A todas as pessoas que, através de grandes ações ou pequenos gestos – igualmente
significativos - participaram, cada qual na medida de sua particular excelência, deste esforço.
Por trás de cada linha, como que a inspirá-la, um rosto inesquecível e uma lição inestimável.
“Restringe-te e examina-te. Tira o que é supérfluo [...] não cessa de esculpir
a tua própria estátua”.
Plotino, Enéada VI, 7, 10, 30 e I, 6, 9, 7.
“Esta é a vida dos deuses e daqueles abençoados dentre os homens,
libertação daquilo que nos aliena e nos oprime, um viver que não se
compraz no gozo das coisas do mundo, a passagem do solitário para o
solitário”.
Plotino, Enéada IV, 9, 47-50.
RESUMO
O presente trabalho tem, como objetivo, estudar a problemática da salvação em Plotino - a um
só tempo filósofo e místico, e o mais notável representante do último período da filosofia
grega - e a gnose, um importante movimento religioso que conheceu o seu ápice nos
primeiros séculos da era cristã. Inicialmente, buscou-se contextualizar tal temática no cenário
histórico em que se deu a denominada “polêmica antignóstica de Plotino”, isto é, a
Antiguidade Tardia, na qual prevaleceu a percepção de que a existência terrena, repleta de
sofrimentos e carências, haveria de ser transcendida. O ser humano, um estrangeiro no
mundo, deveria retornar à sua pátria espiritual, sua verdadeira origem. É, neste quadro
histórico, que tem lugar a proposta de Plotino, bem como a dos gnósticos, acerca da salvação,
que, embora se mostrem convergentes em alguns aspectos, divergem, profundamente, em
outros. Em seguida, tratou-se de alinhavar os traços fundamentais dos sistemas em confronto,
sendo que, com relação aos gnósticos, privilegiou-se a escola sethiana, autora de dois tratados,
constantes da chamada “Biblioteca de Nag Hammadi”, conhecidos e criticados por Plotino: o
Zostrianos e o Alógenes. Na seqüência, cuidou-se de examinar o tema da salvação à luz da
cosmogonia/cosmologia, antropogonia/antropologia e ética, dos sistemas plotiniano e
gnóstico, particularmente o gnóstico sethiano. Por último, enfocou-se o procedimento
salvífico das duas tradições cotejadas, assim como o papel reservado ao homem no processo
de redenção e, ainda, a abrangência da salvação. Recorreu-se, para a realização da pesquisa, a
comentaristas nacionais e estrangeiros, bem como, na medida do possível, às fontes primárias,
quais sejam, as Enéadas de Plotino e os tratados gnósticos, contidos na referida “Biblioteca de
Nag Hammadi”, em especial os já mencionados Zostrianos e Alógenes. A justificativa para
este trabalho reside no fato de que, no Brasil, não há muitos estudos acerca da relação entre
Plotino e os gnósticos, e menos ainda, no campo específico das soteriologias respectivas.
Desta forma, a pesquisa espera estimular, em nosso país, o interesse pelo estudo das
construções filosófico-religiosas apontadas, que lidam com problemas fundamentais da alma
humana.
Palavras-chave: Plotino, gnose, salvação.
ABSTRACT
The aim of the present study is to explore the issue of salvation as proposed by
Plotinus – who was both a philosopher and a mystic, and the most noteworthy representative
of the last period of Greek philosophy – and also the experience of gnosis, an important
religious movement that reached its climax in the first centuries of the Christian Era. Initially,
the study sought to contextualize this theme within the historical framework in which the so-
called “Plotinus’s antignostic polemic” occurred, namely, during the Late Antiquity, when the
notion prevailed that the earthly existence replete with suffering and privation would have to
be transcended. The human being was but a stranger in the world that surrounded them and,
therefore, should return to their spiritual homeland, their true ancestry. It was within this
historical context that Plotinus’s and the Gnostics’ doctrine on salvation took place. Although
they converged on some of its aspects, there existed a profound divergence of views between
them. This study also sought to outline the fundamental concepts behind confront systems.
With regard to the Gnostics, the Sethian school was analyzed since it formulated two Gnostic
treatises contained in the so-called “Nag Hammadi Library”, which were acknowledged and
criticized by Plotinus: the Zostrianus and Allogenes. In addition, the study went on to
examine the theme of salvation vis a vis the theories of cosmogony/cosmology,
anthropogony/anthropology, and ethics of the Plotinian and Gnostic systems, especially the
Sethian Gnostic texts. Lastly, the study focused on the salvationary aspects of both traditions,
the role ascribed to man in the redemption process, and also the scope of salvation. As the
basis for research, works by Brazilian and foreign commentators were resorted to, as well as
primary sources such as Plotinus’s Enneads and the Gnostic treatises held in the “Nag
Hammadi Library”, mainly the aforementioned Zostrianus and Allogenes. The reason for
undertaking this research lies in the fact that in Brazil there are few studies about the
relationship between Plotinus and the Gnostics, and there are even fewer studies conducted in
the spectrum of their soteriology. Therefore, the present research hopes to arouse the interest
of Brazilians for the study of philosophical and religious construction addressing the
fundamental issues of the human soul.
Key words: Plotinus, gnosis, salvation.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO...............................................................................................................001
2. A ATMOSFERA ESPIRITUAL DA ANTIGUIDADE TARDIA ..............................007
2.1 Do Homo Civicus ao Homo Interior: as transformações religiosas, no mundo antigo, a
partir do período helenístico...........................................................................................007
2.2 As Relações entre o Ocidente e o Oriente, e o Sincretismo Religioso...........................016
2.3 As Inquietações de uma Época: não basta explicar o mundo, é preciso transcendê-lo..023
2.3.1 A percepção do homem comum...................................................................................023
2.3.2 O incorpóreo e a transcendência, segundo as escolas de pensamento do período,
influenciadores do porvir .............................................................................................024
2.3.2.1 Filo de Alexandria ....................................................................................................027
2.3.2.2 O médio-platonismo .................................................................................................031
2.3.2.3 O neo-aristotelismo...................................................................................................037
2.3.2.4 O neopitagorismo...................................................................................................... 039
2.3.2.5 O hermetismo............................................................................................................044
2.3.2.6 Os oráculos caldaicos................................................................................................047
2.4 Síntese Conclusiva do Capítulo......................................................................................050
3. PLOTINO E OS GNÓSTICOS, DAS AFINIDADES AO CONFLITO, À LUZ DE
SUAS IDÉIAS FUNDAMENTAIS................................................................................053
3.1 Plotino e o Neoplatonismo ............................................................................................. 054
3.1.1 Amônio Saccas, precursor do Neoplatonismo .............................................................063
3.1.2 Plotino, filósofo e místico ............................................................................................ 067
3.1.3 As Enéadas................................................................................................................... 069
3.2 A Gnose e o Gnosticismo............................................................................................... 073
3.2.1 A questão terminológica ..............................................................................................073
3.2.2 O surgimento da Gnose, enquanto proposta de salvação............................................. 078
3.2.3 As idéias fundamentais da Gnose ................................................................................084
3.2.4 Os sethianos, contemporâneos e prováveis antagonistas de Plotino............................087
3.3 A Polêmica Anti-Gnóstica e os seus Textos Fundamentais........................................... 092
3.3.1 O Tratado Zostrianos ...................................................................................................093
3.3.2 O Tratado Alógenes .....................................................................................................095
3.3.3 A “Tetralogia Antignóstica”: Enéadas III, 8; V, 8; V, 5; II, 9 .....................................097
3.4 Síntese Conclusiva do Capítulo......................................................................................100
4. A SALVAÇÃO, EM PLOTINO E ENTRE OS GNÓSTICOS, NO ÂMBITO DAS
ORIGENS E DA CONDUTA ........................................................................................102
4.1 Conceitos de Salvação....................................................................................................102
4.2 Salvação e Cosmogonia/Cosmologia na Gnose .............................................................105
4.3 Salvação e Cosmogonia/Cosmologia em Plotino...........................................................110
4.4 Salvação e Antropogonia/Antropologia na Gnose .........................................................115
4.5 Salvação e Antropogonia/Antropologia em Plotino.......................................................121
4.6 Salvação e ética na Gnose ..............................................................................................125
4.7 Salvação e ética em Plotino............................................................................................127
4.8 Síntese Conclusiva do Capítulo......................................................................................131
5. O CAMINHO PARA A SALVAÇÃO, EM PLOTINO E ENTRE OS
GNÓSTICOS...................................................................................................................133
5.1 O Modus Operandi da Salvação: êxtase e revelação......................................................133
5.2 Os Atores da Salvação: salvação ativa e salvação passiva.............................................145
5.3 A Abrangência da Salvação: salvação individual e redenção cósmica ..........................153
5.4 Síntese Conclusiva do Capítulo......................................................................................160
6. CONCLUSÃO.................................................................................................................162
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................166
1
1. INTRODUÇÃO
Já na infância, tomado por um assombro, talvez precoce, acerca da existência,
eu, rotineiramente, buscava a solidão para refletir. “O que é a vida?”, “O que é este
mundo?”, “Por que nascemos, vivemos e morremos?”, “O que devemos fazer na vida?”,
“Por que o sofrimento?”, “Por que a morte?”, eram questões que, reiteradamente, me
ocupavam.
A perplexidade aumentava à medida que eu crescia e tinha contato mais direto
com o fenômeno da morte e de seu irmão-gêmeo, o sofrimento. Pessoas amadas, bichos
queridos, nada parecia estar a salvo de desaparecer do alcance de nossos olhos atônitos.
De outra parte, parecia-me que a maior parte das pessoas vivia mecânica e
superficialmente, sem investigar o mundo, ou – pior – sem se auto-investigar.
Tal realidade levou-me, por um lado, ao estudo apaixonado da filosofia e da
religião, e, por outro, a uma busca interior por vezes dolorosa. Logo fui capturado pela
beleza da filosofia, enquanto criação sublime da razão humana. Ao mesmo tempo,
fiquei embevecido com a sabedoria proveniente das várias tradições religiosas de nosso
vasto mundo.
Entretanto, parecia-me que, se a razão, quando levada a extremos, sucumbia
diante de aporias insanáveis, a religião, na seara das verdades últimas, mostrava-se
dependente da fé, o que também implicava em um freio ao conhecimento (ao menos da
maneira como eu o concebia).
Foi então que passei a estudar a vida e os escritos de místicos de diversas
tradições, haurindo, de suas falas sobre o Indizível, o alimento para empreender a minha
busca pessoal. O que me seduzia nas experiências-cume dos místicos era, justamente, a
2
verdade – pessoal, porém, incontrastável, ao menos por parte daquele que as vivenciava
– das quais elas são portadoras.
Cada vez mais embevecido com as descrições do Invisível, realizadas por Lao-
Tsé, Patanjali, Milarepa, Rumi, Mestre Eckart, São João da Cruz, Santa Tereza de Ávila
dentre outros, passei a me perguntar se não haveria, no âmbito da filosofia grega – que
eu tanto admirava – alguém que se revestisse das características de filósofo e místico, a
um só tempo. Alguns personagens extraordinários se me apresentaram nesta procura
(como não sucumbir diante de Platão, o divino?), nenhum, contudo, tão fascinante
quanto Plotino, o genial fundador do Neoplatonismo e expoente do último período da
filosofia grega.
Nada obstante, quando, em 2004, candidatei-me a uma vaga no Programa de
Pós-Gradução em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, tencionava estudar a mística em geral, enquanto princípio norteador e inspirador
das religiões. Porém, como se cuidasse de tema vastíssimo, ocorreu-me a idéia de
estudar Plotino, e, mais especificamente, o problema da salvação neste singular filósofo.
Ponderou-me, então, o meu orientador, que seria interessante contrapor as concepções
de Plotino e dos gnósticos em chave soteriológica, com o que aquiesci, com entusiasmo.
Ao lançar-me a tal empreitada, no entanto, não vislumbrava as dificuldades que
despontavam no horizonte dos meus estudos: poucos livros, artigos e teses publicados
no Brasil, acerca de Plotino e os gnósticos, em geral, e, praticamente nada, acerca da
temática da salvação, nos mesmos; a inexistência de uma tradução integral das Enéadas
de Plotino e dos tratados gnósticos de Nag Hammadi, em português; literatura, quase
toda, em língua estrangeira, o que, aliado à complexidade, em si, do assunto tratado,
tornava ainda mais penosa a tarefa.
3
Além disso, cabia – como ainda cabe – a pergunta: Por que, no século XXI,
estudar o tema da salvação da alma, em Plotino e entre os gnósticos? O que nós, reféns
(fascinados e cativos) da tecnologia e do consumismo, esquecidos de nossa
transcendência, temos (ou teríamos) a aprender com ecos antigos, de cerca de dezoito
séculos? Por que nos debruçarmos sobre esta temática em um tempo que, em tese, lhe é
tão hostil? Porque vivenciar o estado de redenção é, em suma, superar uma condição
enfermiça, manifestar, em plenitude, as possibilidades que se encontram latentes no seu
mais profundo abismo, livrar-se de grilhões e carências, resgatar a parte mais preciosa
do próprio ser, consumar a união com o Princípio Primeiro.
Nós, homens e mulheres contemporâneos, tal qual Hefesto - o deus grego da
forja e, por extensão, da tecnologia - temos os pés voltados para trás. Parece que, quanto
mais nos fazemos senhores do mundo, menos senhores de nós próprios nos tornamos,
quanto mais adquirimos objetos fantásticos e mais assistimos nossa mente se entulhar
de informações (úteis?), mais infelicidade e incompletude parecemos ostentar. O ser
humano atual – bem como o do século II da nossa era – guardadas, evidentemente, as
diferenças, de fundo histórico e psicológico, entre ambos - tem sede de plenitude, o que
torna justificável abordar o tema da salvação em nossa época.
Mas, qual seria a melhor forma de abordar o tema da salvação, em Plotino e
entre os gnósticos?
Uma vez que um determinado pensamento se faz mais compreensível, a quem
dele se aproxima, se devidamente contextualizado em sua respectiva época, optei por,
no primeiro capítulo, descrever, ainda que de forma singela, a atmosfera espiritual
vigorante na bacia do Mediterrâneo, a partir do período helenístico até chegar à
denominada “Antiguidade Tardia”, quando se mostraram especialmente atuantes as
propostas de salvação, notadamente aquelas engendradas por Plotino e pelos gnósticos.
4
No segundo capítulo, ocupei-me de traçar as linhas gerais do Neoplatonismo e
da gnose, detendo-me, ainda, na chamada “polêmica anti-gnóstica de Plotino”. Tal
polêmica teve lugar porque Plotino (que tanto tempo convivera com gnósticos e os
recebera em suas aulas, na condição de amigos) passou, já na sua maturidade intelectual
e espiritual a ter necessidade de refutar - com ênfase e por escrito - teses gnósticas, que
ele julgava falaciosas. Neste diapasão, suas críticas também se voltaram contra a postura
ética dos gnósticos com os quais travara contato.
Porém, aí, surgiu um problema: que gnósticos eram estes, com os quais Plotino
polemizou, tendo em vista as várias escolas, ou os diversos sistemas, então existentes?
Na biografia que o discípulo de Plotino, Porfírio, escreveu sobre o seu mestre, há
a referência a cinco “apocalipses ilegítimos”, de matriz gnóstica, que teriam sido
conhecidos e criticados pelo fundador do Neoplatonismo: o de Zoroastro, o de
Zostrianos, o de Nicoteo, o de Alógenes e o de Mesos. Pois bem, destes cinco, o
Zostrianos e o Alógenes fazem parte da denominada “Biblioteca de Nag Hammadi”,
descoberta, casualmente, por um camponês, no Egito, em 1945, sendo que os
comentadores tendem a atribuir à escola gnóstica sethiana a composição destes dois
tratados, atualmente traduzidos do copta e acessíveis para análise.
Desta forma, parece possível afirmar que Plotino, muito embora conhecesse o
ideário de outros sistemas gnósticos, se voltou, na polêmica antignóstica, contra
“apocalipses” compostos pelos gnósticos sethianos. Por conta disso, este trabalho
confere mais destaque a tal sistema, embora não se restrinja às concepções pelo mesmo
arquitetadas. Isto porque, tanto em Plotino quanto na gnose, o centro para o qual
convergem todos os raios, é a questão soteriológica - é a preocupação com a salvação da
alma - de sorte que, ao cuidar deste assunto, e na tentativa de bem compreendê-lo, o
pesquisador se vê compelido a juntar as peças de um grande quebra-cabeças.
5
No terceiro capítulo, esforcei-me por responder às seguintes perguntas: Há
diferenças entre as soteriologias, plotiniana e gnóstica – particularmente a gnóstica
sethiana – no que tange à criação do mundo e do homem, e também no que concerne à
ética? Em caso positivo, quais seriam estas divergências? O referido capítulo é todo
tendente a cotejar as cosmogonias/cosmologias, bem como as
antropogonias/antropologias e também as éticas, em confronto, assinalando as
características fundamentais de cada qual e destacando as dessimilitudes entre elas.
Por fim, no quarto e último capítulo, procurei examinar o procedimento salvífico
em Plotino e na gnose, bem como as características da redenção preconizada pelos
mesmos. Diante de tal quadro, três indagações se me mostraram interessantes: Qual o
modus operandi da salvação, nas propostas estudadas? A redenção, em Plotino e na
gnose, é alcançada e consumada pelo homem, ou, ao contrário, não pode prescindir de
fatores alheios a ele? A salvação é individual ou pressupõe um grande resgate final, uma
redenção em escala cósmica?
Mostraram-se especialmente valiosas em meu esforço por tentar responder estas
espinhosas perguntas, as contribuições teóricas de Émile Bréhier, R.T. Walis, Lloyd P.
Gerson, José Alsina Clota, E. R. Dodds, Jean Brun, Hans Jonas, Kurt Rudolf, Giovanni
Reale, José Igal, Reinholdo Ulmann, Henri Charles Puech, Pierre Hadot, James M.
Robinson, John D. Turner, John Dillon, Elmer O’Brien, Antonio Piñero, José
Montserrat Torrents e Francisco Garcia Bazán, dentre outros estudiosos de escol.
Ao lado dos comentários, procurei, na medida do possível, recorrer às próprias
Enéadas, de Plotino, e aos tratados gnósticos da Biblioteca de Nag Hammadi
(especialmente os tratados Zostrianos e Alógenes).
6
No que concerne às Enéadas, fiz uso, preferencialmente, da versão, em língua
inglesa, de Stephen Mackenna, bem como daquela, em língua francesa, de Émile
Bréhier, e, ainda, de partes daquela outra, em espanhol, de José Igal.
Quanto aos tratados constantes na Biblioteca de Nag Hammadi - especialmente
o Zostrianos e o Alógenes - me vali, precipuamente, da tradução, do copta para a língua
espanhola, realizada por Antonio Piñero, José Montserrat Torrents e Francisco García
Bazán, e, na fase final da pesquisa, da recém publicada versão, em português, da
tradução que James M. Robinson fizera, do copta para o inglês.
Se, ao final das páginas seguintes, o leitor se sentir motivado a buscar um maior
aprofundamento no tema estudado ou – suprema audácia – um aprofundamento em si
mesmo, esta tentativa terá sido exitosa.
7
2. A ATMOSFERA ESPIRITUAL DA ANTIGUIDADE TARDIA
2.1 Do Homo Civicus ao Homo Interior: as transformações religiosas, no mundo
antigo, a partir do período helenístico
Diante de uma exterioridade adversa, o mergulho nos abismos interiores. Após a
prevalência do material e do imanente, a redescoberta do incorpóreo e do transcendente;
depois do aquém, o além, mas o além a partir de si mesmo. Esta flexão, de contornos
religiosos e místicos, a um só tempo, centrípeta (porque introspectiva) e centrífuga
(porquanto almejasse a superação do mundo sensível) é o mote da Antiguidade Tardia, a
era histórica que se circunscreve entre Marco Aurélio (161-180 d.C) e Justiniano (527-
565). Denominou-a, Dodds, (1965, passim) a “Era da Ansiedade”
1
, pela atmosfera de
insegurança material e inquietação espiritual que a caracterizou.
Tal período histórico iniciou-se já com Cômodo (180-192), filho de Marco
Aurélio, e, com suas crises, cuidou de instaurar, entre as populações, um intenso desejo
de transcendência da dura e áspera existência corpórea. Muitos fatores sociais
desempenharam o seu papel na percepção, pelas consciências da época, do mundo como
um lugar hostil, a ser abandonado em prol de uma nova pátria, de natureza espiritual,
1
Explica-nos, E.M. Dodds, em sua obra “Pagan & Christian in an age of anxiety”, p. 3, que a referida
expressão foi cunhada, originariamente, por seu amigo, o poeta W.H. Auden, que, todavia, a utilizara para
caracterizar os tempos atuais. Tendo em mente, porém, a insegurança material e moral próprias do
período que medeou entre Marco Aurélio e Constantino, houve, o douto helenista, por bem, qualifica-lo,
outrossim, de “Era da Ansiedade”. Pode-se argumentar que tal qualificativo é vago, eis toda era histórica
é portadora e produtora, cada qual a seu modo, de ansiedade. Entretanto, na Antiguidade Tardia tal
sentimento parece ter sido a tônica do viver, independentemente de classe social e grau de instrução.
Tanto assim é, que Plotino tinha, entre seus ouvintes, desde gente do povo até o próprio Imperador,
passando por senadores e altos dignitários do Império, todos sequiosos de salvação. A gnose, igualmente,
é um caminho de salvação, que, embora reservado a uma elite, colocava em relevo as agruras da
existência material e a necessidade de transcendê-la. Este desesperado e onipresente anseio pela salvação
parece ter sido poderosamente estimulado – senão mesmo desencadeado – pela atmosfera de intensa
insegurança individual que caracterizou o período enfocado.
8
além do devir, do sofrimento e da morte: as guerras externas travadas, por Roma, contra
os persas e os germanos, as comoções internas e disputas pelo trono, os assassinatos de
imperadores, a crise econômica e conseqüente pressão fiscal, a diminuição da
população, a redução da atividade agrícola, o que trazia a fome ao povo, além das pestes
horrendas, que ceifavam milhares de vidas.
Entretanto, para que se possa bem compreender o cenário no qual teve lugar o
embate entre Plotino e os gnósticos, é preciso recuar até as conquistas de Alexandre
Magno (334-323 a.C) e as transformações que as mesmas operaram no mundo antigo.
Mister se faz, destarte, antes de esquadrinhar a referida “Era da Ansiedade”, lançar os
olhos sobre as contribuições culturais da denominada época helenística, compreendida
entre 338 a.C., quando Felipe da Macedônia, pai de Alexandre, vence os gregos na
batalha de Queronéia, e 31 a.C., ano em que Otávio derrota Marco Antonio e Cleópatra,
na batalha naval do Actium, dando início ao período romano ou imperial. Isto porque, se
o processo de interiorização do indivíduo atinge o seu acmé, o seu ponto máximo, na
Era da Ansiedade, seus primeiros contornos já são traçados no período helenístico.
Com efeito, a longa e vitoriosa expedição de Alexandre rumo ao Leste não
somente interligou mundos, mas propiciou a emergência de um clima espiritual
radicalmente diverso do que até então tivera lugar, da Grécia à Índia.
No âmbito da cultura grega, a conseqüência mais visível da expansão
macedônica foi a fragmentação da polis. Procurando levar a efeito o seu projeto de uma
monarquia de caráter universal e divino, capaz de abarcar cidades, nações e raças
diversas, Alexandre acabou por modificar a estrutura social e política dos gregos. E,
com o seu falecimento, os novos reinos que se formaram no Egito, na Síria, na
Macedônia e em Pérgamo, sob a espada dos seus generais, primaram pela concentração
9
do poder nas mãos do monarca e a supressão das liberdades políticas. No dizer de André
Bonnard (1984, p. 613-614):
Após a morte de Alexandre, desaparece uma civilização já declinante, a da
Grécia de Sólon, de Ésquilo, de Aristófanes, caracterizada na sua estrutura
política pela forma da cidade. Mas uma outra, que em alguns dos seus
aspectos prolonga a velha tradição grega, está a nascer, a civilização a que
chamamos helenística. A estrutura política desta nova civilização é
inteiramente diferente. Nas costas do Mediterrâneo Oriental e no Próximo
Oriente, como na Grécia, não há mais vestígios de cidades livres e
democráticas. Quatro ou cinco grandes Estados, dirigidos por uma dinastia
de príncipes, ocupam agora todo o espaço conquistado por Alexandre.
(...) O fato que mais impressiona nesta época é o retraimento do povo.
Nestes grandes Estados, nestas cidades muito populosas – como Alexandria,
Pérgamo ou Antioquia – já não há cidadãos livres. Apenas uma multidão de
súditos.
(...) Onde está o povo? Será ele, nas cidades, essa massa confusa de
indivíduos de mestre múltiplos, de nacionalidades e religiões amalgamadas,
multidão sem gostos comuns, a quem apenas une uma vaga lealdade para
com o príncipe, mas não a comunidade de interesses, não a consciência
cívica ou o empenhamento numa obra empreendida por todos à glória dos
deuses ou para espanto dos homens futuros?
Ora, para o grego da era clássica, havia uma correspondência quase absoluta
entre o homem e o cidadão; a verdadeira existência se dava no horizonte moral da polis.
Consoante o autorizado magistério do historiador Fustel de Coulanges (apud REALE,
(2002, p. 6) , o Estado grego, no qual resplandeciam as poleis era aquele
em que a religião é a senhora absoluta da vida privada e da vida pública; o
Estado, uma comunidade religiosa; o rei, um pontífice; o magistrado, um
sacerdote; a lei, uma fórmula sagrada; o patriotismo, piedade; o exílio,
excomunhão. O homem vê-se submetido ao Estado pela alma, pelo corpo e
pelos bens. É obrigatório o ódio ao estrangeiro, pois a noção do direito e do
dever, da justiça e da afeição, não ultrapassa os limites da cidade...
A sublinhar esta idéia, o helenista Werner Jaeger, (apud REALE, 2002, p. 9)
assevera que
a polis impõe-se aos indivíduos de maneira vigorosa e implacável,
imprimindo-lhes o seu marco. É a fonte de todas as normas de vida válidas
10
para os indivíduos. O Estado-cidade mais antigo era para os cidadãos a
garantia de todos os princípios ideais de sua vida;.....; significa participar da
existência comum. Tem também simplesmente a significação de ‘viver’.
Por conseguinte, com o apequenamento da polis, deixou de existir a tradicional
base para que alguém se legitimasse enquanto ser humano, na relação consigo mesmo, e
com os outros. De cidadão, passa-se a súdito, deixando de ter importância o valor cívico
de alguém. A existência dos novos Estados se desenvolve sem a participação consultiva
do súdito; as decisões relativas à res publica não carecem, de modo algum, de sua
contribuição. O resultado deste enfraquecimento da polis é a depreciação do antes
cidadão e agora súdito: ele, que somente se reconhecia no âmbito de sua cidade-estado e
que era valorizado por suas virtudes cívicas, passa a experimentar um doloroso vazio,
um triste desenraizamento, que o fará desinteressar-se pelo Estado, quando não sentir
aversão por ele.
Não havia, mais, portanto, como extrair, da polis, os valores pelos quais viver.
Neste cenário, a instância doadora de sentido parece deixar o âmbito exterior e cívico da
cidade e se deslocar para a seara da intimidade de cada ser humano. A partir desta
dolorosa ruptura, alguém terá seu valor aferido não mais em função da cidade na qual
nasceu, mas de suas capacidades individuais. O homem, neste contexto, mostra-se como
o único artífice de si mesmo, o verdadeiro artesão do seu destino. A ética, que antes
versava sobre o agir do homem-cidadão, passa a considerar o homem na sua
singularidade. Este estado de coisas, se por um lado torna o homem mais livre, por
outro, o angustia e aflige, ao lhe retirar antigas certezas habituais:
Se as exigências feitas ao indivíduo pelas cidades-estados acabaram por
provocar uma tensão excessiva na vida helênica, a distensão se fizera ao
custo de um pouco do antigo sabor e significado da vida. Os indivíduos
viram-se realmente emancipados das cidades-estados sem dispor ainda de
outro objeto de dedicação satisfatório. A emancipação da tirania da cidade-
estado fora comprada ao preço do desaparecimento da devoção e do
11
entusiasmo. Agora que os velhos ídolos haviam caído, quais seriam os novos
deuses dos helenos? (TOYNBEE, 1975, p. 127).
Nada obstante, as conquistas de Alexandre aproximaram os gregos dos demais
povos, contribuindo para um ideal de igualização das raças e a superação da idéia de
que alguns são livres e outros escravos por natureza. Alexandre imaginou um tipo de
unidade mais profunda entre os povos, a homonoia ou concordia, que congregaria todos
em uma espécie de irmandade global.
A cultura grega, de outra banda, sentiu, fortemente, os influxos do Oriente,
mercê da entrada em contato com tradições e crenças que lhe eram estranhas. Se Atenas
perdia prestígio, novos centros de cultura e comércio, tais como Pérgamo, Rodes e,
sobretudo, Alexandria, comandavam o intercâmbio de idéias por todo o Mediterrâneo.
Alexandria, por conta de sua localização geográfica privilegiada, recebeu estímulos
culturais da Europa, da Ásia e da África, tornando-se um cadinho de especulações
filosóficas e religiosas. Por outro lado, a cultura helênica, espraiando-se por povos e
nações os mais diversos, tornou-se helenística.
No que tange à filosofia, as circunstâncias histórico-culturais do período
helenístico, bem como a transformação espiritual já descrita, levam a uma perda de
interesse pela teoricidade e a especulação, dando lugar a indagações acerca do problema
da vida e do viver. A filosofia se torna, por conseguinte, a fonte da qual o homem
helenístico haure os valores e a justificação que, antes, lhe davam a polis e a estrutura
social dela decorrente. Mais do que tudo, a filosofia passa a ter a função de fornecer, a
quem fora dado viver neste período, novas perspectivas para a vida espiritual; longe da
especulação pura, indica o correto caminho do viver e da busca da felicidade, nesta
vida. A preocupação dos filósofos da época é, eminentemente, ética. Cada fundador de
12
escola filosófica, antes de qualquer abstração, sente o mundo, percebe-o intuitivamente,
para, somente então, emprestar contornos teoréticos a esta percepção.
Como salientado por Giovani Reale (1994b, p. 12), “ao filósofo helenístico e aos
seus seguidores, na realidade, importava não a sophia, mas a phronesis; isto é,
importava resolver o problema da vida”. E esta phronesis, esta sabedoria, implicava no
reconhecimento de que a verdadeira riqueza jaz no interior de cada um, não sendo
dependente de quaisquer coisas exteriores, seja uma cidade organizada, um deus, ou um
além post mortem. Não as coisas exteriores, mas a opinião que fazemos delas é que
repercute sobre a nossa felicidade. Tratava-se, desta forma, da busca de aquisição de
uma sabedoria prática, permeada pela perfeita coerência entre a teoria e o modo de viver
e morrer. O sábio bastava-se a si mesmo e extraia, do seu âmago, todos os recursos para
bem viver (dispunha de autarquia, isto é, gerenciava a si próprio), buscando a felicidade
– que não era mais do que o reto logos - pela negação e a renúncia de si mesmo; o
estado propício – e pretendido - para este modo de viver era a ataraxia, tida como a
eliminação de qualquer perturbação de ânimo. Para tanto, haveria de se retornar à paz
simples da natureza não contaminada pelas inquietações do mundo. “Vive escondido”,
recomendava Epicuro, ilustrando a passagem do homem cívico para o homem interior.
Entretanto, tais escolas filosóficas – epicurismo, estoicismo, ceticismo –
buscavam resolver a problemática do viver segundo um viés imanentista, fisicista e
materialista. A felicidade, para os filósofos helenísticos, consoante já se afirmou, não
está no Além, mas no aquém, sobre a Terra. É por esta razão que o pensamento
posterior, representado, sobretudo, pelo médio-platonismo, o neo-pitagorismo e, acima
destes, o neoplatonismo, foi qualificado, pelos estudiosos, como uma redescoberta da
transcendência e do incorpóreo, instâncias, estas, que se mostravam prescindíveis para o
ideal do sábio da época helenística.
13
A passagem do homo civicus para o homo interior, iniciada com a expedição
vitoriosa de Alexandre ao Oriente e aprofundada no período helenístico, atingirá o seu
ápice na denominada “Era da Ansiedade”, quando, todavia, o anseio pela transcendência
– e não mais o ideal do sábio que encontra a felicidade na existência terrena - revelar-se-
á o motor da vida cotidiana. O anelo principal de populações inteiras passa a ser a
salvação individual, um tema religioso por excelência que perpassará o período imperial
romano e se agudizará a partir do reinado de Cômodo, filho de Marco Aurélio.
Em 31 a.C., quando Otávio derrota Marco Antonio e Cleópatra na batalha naval
do Actium, Roma se consolida como a grande potência do mundo antigo, condição, esta,
que já se vinha delineando desde o fim das guerras púnicas e a destruição de Cartago.
Após aniquilar a pátria de Aníbal, Roma faz difundir, entre as populações sob sua
influência, uma terrível sensação de impotência e amesquinhamento do indivíduo diante
do império da força. Neste contexto, as cidades perdem ainda mais prestígio e
independência frente a um avassalador poder central.
A noção de comunidade, por seu turno, se esvai, eis que, se por um lado, muitos
são agraciados com a cidadania romana, por outro, perdem o vínculo com a comunidade
de pertença, tornando-se, esta, um ente abstrato e incerto. Neste cenário,
o indivíduo foi liberado, mas deixado a si próprio e, logo, desamparado.
Neste mundo confuso e móvel, circula-se, expatria-se, emigra-se... A
urbanização do mundo romano contribuía para cortar o indivíduo de suas
raízes e para desmoralizá-lo (TURCAN, 1989, p. 22).
Tem lugar, então, mais do que uma mudança política, uma transformação de
cunho antropológico e psicológico. Toma relevo uma nova visão da existência,
14
caracterizada, a um só tempo, pela aguda percepção das agruras do mundo, e pela
interiorização, como forma de superação destas vicissitudes. Assim,
é no século II que se inicia a grande reviravolta; o mundo torna-se cada vez
mais feio enquanto o homem interior já não se recusa o conhecimento não
estilizado de seus sofrimentos, impotências e abismos (ARIES e DUBY,
2004, p. 221).
De outra parte, com a pax romana, variados cultos penetram no Império, e, a par
de serem interpretados segundo as crenças romanas, acabam por colocar em cheque a
religiosidade tradicional do povo do Lácio. Estes cultos, vindos do Egito, da Anatólia,
Pérsia e Síria, dentre outros rincões do mundo então conhecido, caracterizavam-se por
uma exótica irracionalidade, pelo sensualismo e o misticismo, albergando, em seus
contornos, ritos mais emocionais e menos formais do que aqueles da religiosidade
romana; convidavam, aquele que dos mesmos se dispunha a participar, a um maior
envolvimento, de ordem sensorial e perceptiva, oferecendo-lhe, ademais, explicações
relativas à ordem do Cosmos e promessas de superação da tribulação cotidiana.
À semelhança do que ocorrera com as póleis, no período helenístico - mas, a esta
altura, de forma amplificada - o destino pessoal de alguém não mais estava assegurado
pelo coletivo e nem por sua religião tradicional. Desenraizado de suas tradições,
oprimido pelo poder das armas, inseguro quanto à razão de sua existência, perplexo ante
a miríade de cultos que se lhe apresentam, o homem da Antiguidade Tardia se angustia.
Se o exterior lhe é hostil, resta-lhe o mergulho místico no âmago de si mesmo, em busca
do maior dos tesouros: a salvação. Com efeito,
o homem do final da Antiguidade, pois, se encontra diante de um fato que
lhe parece incontestável: o mundo, ou carece de sentido, ou é mau. O ser
15
humano se sente estranho diante dele e busca, ansioso, a saída, a solução
que lhe permita encontrar-se a si mesmo e que o ajude a regressar ao lugar
do qual procede. Alcançar a paz espiritual: este é o grande tema. O homem
do final da antiguidade busca esta salvação, via de regra, no recolhimento.
(CLOTA, 1989, p. 21).
A salvação, neste contexto, é buscada, pelo indivíduo, em solidão, e responde a
uma necessidade afetiva. Henri-Charles Puech (1982, p. 102) sintetiza, com esmero,
este fenômeno:
A transformação da cidade (polis) em um universo civilizado (oikouménê),
em conseqüência do estabelecimento das monarquias helenísticas e, a seguir,
da unificação do mundo mediterrâneo pela conquista romana, fora
desprendendo, progressivamente, o homem da cidade, onde encontrava
sentido e onde empregava suas forças; a cidade tinha feito do animal político
(zôon polítikon) de Aristóteles, o animal social (zôon koinônikon) de
Crisipo, o cidadão do mundo, solidário do universo inteiro, que, em
quaisquer rincões, se sentia em sua casa e infinitamente livre, vale dizer,
solto, só em todas as partes e deixado a si mesmo, reduzido absolutamente a
si próprio.
(...) A solidão, enquanto padecida, aparece como uma desgraça; enquanto
aprofundada, se revela como nostalgia de um estado anterior ou
transcendente, através do qual o eu se encontrava em plena posse do seu ser,
em meio ao exercício efetivo e jubiloso de sua liberdade. Daí, perguntas
como estas: Por que estou aqui embaixo? Qual é a minha origem? Como
regressar a onde eu estava, lá onde eu, verdadeiramente, sou eu mesmo?
Muitas pessoas estão imersas na solidão e no anonimato, sentindo-se como que
estrangeiras no mundo ou exiladas de sua verdadeira pátria, o reino do espírito. Para
Turcan (2005, p. 18), o sucesso das seitas gnósticas em Roma, Lyon, Cartago e
Alexandria, explica-se, dentre outros fatores, pelo fato de o tema do “estrangeiro no
mundo” ser uma de suas pedras basilares. Na Antiguidade Tardia, muitos percebiam a
existência corpórea como um exílio, tal como ocorria no âmbito da gnose.
Por conseguinte, o processo de interiorização, que remontava aos antigos
Mistérios, passara por Heráclito, Sócrates, Platão e Aristóteles e que tivera um viés
fortemente moral no período helenístico, aprofunda-se na Era Imperial Romana e se
torna mais ainda mais agudo após a morte de Marco Aurélio. A realidade, cada vez mais
16
hostil, parece conferir ao Mal, então, um status ontológico. Firma-se, neste cenário, uma
radical dualidade entre o mundo da matéria e as instâncias além dela, infensas ao seu
doloroso e mortal abraço.
2.2 As Relações entre o Ocidente e o Oriente, e o Sincretismo
2
Religioso
A perplexidade com relação ao Oriente sempre se fez sentir no mundo greco-
romano. Cumpre não olvidar, a propósito, a admiração que os gimnosofistas, ou sábios
nus, despertou naqueles que acompanharam Alexandre às terras do Leste. Séculos mais
tarde, o próprio Plotino, sequioso por conhecer a filosofia que se praticava entre os
persas e os hindus, como anota Porfírio, reuniu-se à malfadada expedição do Imperador
Gordiano, o que quase lhe custou a vida.
Assim, não se pode perder de vista as mutações religiosas que se fizeram sentir,
no Mediterrâneo e adjacências, a partir da era helenística, com o influxo das crenças
orientais, primeiro no mundo greco-romano e, depois, na Roma Imperial. Tais
transformações moldaram o forte sincretismo religioso de então e participaram da
fermentação espiritual ensejadora das construções soteriológicas posteriores.
Segundo a lição de Pierre Lévéque (1987, p. 160):
Na confrontação da Grécia com o Oriente, provocada pela conquista de
Alexandre, é difícil medir o que é que o Oriente forneceu à civilização
helenística; por assim dizer nada na literatura e na ciência, um pouco mais
na arte e na filosofia e quase tudo na religião
.
2
Sincretismo designa, atualmente, a fusão de doutrinas e sistemas religiosos e ideológicos originariamente
não relacionados entre si. O termo grego synkrètismòs foi utilizado, originariamente, por Plutarco, para
designar a coalizão de comunidades cretenses, comumente em litígio, para a defesa contra inimigos
comuns, vindos do exterior. A concepção hodierna de “mistura” é uma derivação do grego syn-keránnymi
= misturar (KÖNIG; WALDENFELS, 1998, p.554).
17
O influxo religioso vindo do Leste veio a coroar uma mudança, de caráter
religioso, que se iniciara com o declínio da religião oficial. De fato, a perda de
importância das póleis repercute, decisivamente, sobre o cidadão, incidindo, outrossim,
sobre a religião, que, de coletiva, passa a ser individual.
A religião pública preconizava que todos os fenômenos da vida estavam ligados
aos deuses e eram condicionados por eles. De sua parte, os deuses não eram
qualitativamente, mas, apenas, quantitativamente diferentes dos seres humanos. Eram,
pois, homens amplificados e idealizados, daí decorrendo que a divindade exigia do
homem não uma transformação interior da sua forma de pensar ou a negação de suas
tendências e de seus impulsos naturais, mas, antes, o desenvolvimento, elevado ao
máximo, de suas forças humanas. Esta religião naturalista (já que, nela, tudo é divino,
no sentido de que é obra dos deuses) não resiste à crise que fez reduzir a importância
das cidades, frente ao agigantamento do poder central.
Tal crise é enfrentada, pelo homem da era helenística, de duas formas
antagônicas. Alguns, diante da destruição da antiga ordem, abraçam o ceticismo,
duvidando de tudo e suspendendo o juízo acerca das questões fundamentais. Surge,
neste cenário, um novo culto, qual seja o da deusa Tyche, ou Fortuna. Esta divindade
personificava a desordem, o acaso e o fortuito, representando, assim, de modo reflexo, a
negação da providência divina. A percepção corrente, entre os céticos, era a de que os
deuses não se preocupam com as coisas do mundo, estando, a existência humana, pois,
sujeita a erráticos ventos. Parcela maior da sociedade, porém, não acolhe o ceticismo,
mas, ao revés, robustece o fervor religioso. De fato, desgarrado de suas crenças
tradicionais e dos valores antigos, em meio a uma crise social de grandes dimensões, o
contemporâneo deste duro cenário busca, desesperadamente, a salvação individual e
18
somente consegue aquietar-se através de cultos emocionais e extáticos, que lhe
proporcionam um contato direto e íntimo com o deus de sua eleição.
Sem embargo do exposto, tem-se que, em um primeiro momento, como herança
de Alexandre, floresceu o culto dos reis salvadores. Longe dos assuntos terrenos e,
muitas vezes, desinteressados deles, os deuses antigos mostravam-se menos eficientes
do que os soberanos salvadores, mais próximos – estes últimos - das aflições humanas.
Os cognomes destes reis expressam claramente tal realidade: Soter (Salvador),
Evergetes (Benfeitor), Epífanes (que se revela em uma Epifania), Theos (Deus).
Os reis salvadores, malgrado a sua atuação política e material, não se revelaram
capazes de saciar a sede religiosa dos seus súditos, o que implicou na difusão do culto
de deuses transcendentes, muitos dos quais vindos do Oriente.
O contato entre os mais afastados rincões do Império de Alexandre se perfez,
não somente no nível comercial, mas, sobretudo, no campo das idéias, ensejando um
rico intercâmbio de crenças e práticas religiosas entre o Oriente e o Ocidente. De fato,
na época helenística deu-se uma notável orientalização da religião, com a importação,
por parte do mundo grego, de cultos do Leste. Estes deuses não somente passaram a ser
venerados no Ocidente, mas acabaram por mesclar-se às divindades gregas, dando
origem a um curioso sincretismo. A divindade sincrética Dioniso-Osiris foi seguida por
Zeus-Helios (Baal), Ártemis-Anaitis, Afrodite-Astarte, dentre outras. Talvez o exemplo
mais conhecido desta estranha realidade seja o deus Hermanubis ou Hermes Thot, uma
combinação entre o Hermes Psicopompo, o condutor de almas helênico, e Anúbis, o
deus egípcio da morte (SARTON, 1993, p. 169). Outras associações conhecidas são a
de Amon com Zeus, Ísis com Deméter, Hator com Afrodite, Imhotep com Asclépio,
Khonsu com Heracles (LÉVÊQUE, 1987, p. 149).
19
A influência das religiões orientais, no mundo grego, já se vinha fazendo sentir
desde antes do período helenístico, aclimatando-se, paulatinamente, nos portos
comerciais, como o Pireo. Entretanto, a partir do século III a.C., ganham, elas,
amplitude entre as populações flutuantes que erravam de um lugar para outro. Este
processo de orientalização se fará sentir, com a máxima amplitude, no Império Romano,
entre os séculos II e III d.C., principalmente por obra dos cultos egípcios, assírios,
babilônicos, bem como da religião judaica (OHLWEILER, 1990, p. 115).
Realmente, durante a dinastia dos Severos (193-235 d.C.), Roma conheceu o
ápice da profusão de cultos orientais em seu território. Honrava-se a divindades tão
díspares como Haddad e Heliópolis (que, romanizado, tornou-se Júpiter
Heliopolitamus), Baal de Damasco (Júpiter Damascenus), Baal de Doliquéia em
Comagem (Júpiter Dolichemus), Atargatis de Bambice (Dea Síria), todos eles trazidos
da Síria. Da Arábia, provieram os cultos de Teandris e Manef; da Frigia, os cultos de
Cibélis e Átis; do Egito, os de Ísis, Osíris e Serápis (OHLWEILER, 1990, p. 178-179).
Com efeito, em um mundo no qual os seres humanos estavam à mercê de forças
astrais e aos caprichos de Tyche - a divindade que representava o acaso - os cultos
orientais ofereciam, aos seus adeptos, variadas formas de salvação. As divindades
invocadas em suas liturgias e iniciações garantiam, aos iniciados, integral proteção,
neste e no outro mundo, sem quebra de continuidade (TURCAN, 2005, p. 26).
Durante o reinado de Aureliano (270-275 d.C.), por exemplo, sobressaíram-se os
cultos sincréticos de Mitra (de origem iraniana), assim como o culto sírio de Sol
Invencível. Tanto um como outro difundiram, entre as populações, as crenças na
imortalidade da alma, da vida no além, com o paraíso e o inferno, da ressurreição e do
juízo final.
20
Com o desprestígio dos deuses locais, muitos se voltaram para divindades de
cunho mais universal, tal como Zeus, de origem pan-helênica, que, no período
helenístico, passa a ser reverenciado por suas características salvíficas, acima das
punitivas e terrificantes. O mesmo se aplica a Dioniso (deus epífano, que sempre se
mostra aos homens e, pelo êxtase místico, os salva de sua condição natural sofredora),
cujo culto se liga à difusão dos Mistérios, e Asclépio, também tido como Salvador.
Por seu lado, os antigos Mistérios
3
, com sua proposta de salvação, continuavam
operantes, em toda bacia do Mediterrâneo, da Grécia à Ásia Menor, passando pelo
Egito, ao lado das várias divindades sincréticas. Na Hélade, conheceram amplo
reconhecimento os cultos mistéricos de Elêusis, Dioniso, dos Cabiros de Lemnos e da
Samotrácia, e os órficos. Na Ásia Menor, os de Cibele, Átis, Adônis e Sabázio. No Egito
helenizado, os de Ísis, Osíris e Serápis. Cabe mencionar, também, o culto de Mitra, que
mesclava elementos persas e helenísticos e, para alguns estudiosos, a própria gnose,
tendo em vista a iniciação que lhe era imprescindível e a divisão dos membros do culto
em graus distintos, características, estas, comuns aos Mistérios em geral.
Os Mistérios demandavam uma iniciação prévia para aqueles que deles
almejavam participar e traduziam, a um só tempo, uma atitude religiosa mais
individualista e um desejo de maior proximidade com o deus cultuado. Expressavam,
ademais, uma necessidade de maior interiorização, sempre negligenciada pela religião
oficial da polis. Os mistérios tinham, em seu cerne, a ambivalência morte/renascimento,
tal como no ciclo vegetal. O deus celebrado morria para poder renascer
4
, assim como,
3
Segundo o magistério do saudoso Junito Brandão (2000, vol. II, p. 134), mistério significa,
etimologicamente, “coisa secreta”, “ação de calar a boca”, derivando de mýstes = o que se fecha, o que
guarda segredo, o iniciado”, sendo, pois, mystikós, aquilo que concerne aos mistérios, que penetra os
mistérios. Mistagogo, por sua vez, é o sacerdote encarregado de iniciar alguém nos mistérios.
4
Diferentemente do que ocorria na gnose, para a qual era inconcebível a morte e o renascimento de um
deus, já que os entes da dimensão incorpórea não se misturavam com a matéria. Pelo mesmo motivo não
tem lugar, no seio da gnose, a encarnação.
21
nos Mistérios de Elêusis, Coré, filha de Deméter, que, raptada por Plutão e, após descer
ao Hades, retorna ao mundo da superfície não mais como a jovem virgem, mas como
Perséfone, rainha dos Infernos. Ao ser iniciado em um determinado mistério, seu adepto
almejava participar do destino do deus que o protagonizava, passando pela morte e
alcançando a condição de ressurecto; o iniciado, por conseguinte, passava a ser um
outro, alguém que fora introduzido na seara da salvação.
Tomem-se, como exemplo, os vetustos Mistérios órficos, cujo prestígio não foi
afetado na época helenística. Neles, diferentemente do que ocorria na religião oficial
grega, a tarefa do homem não era exercitar, ao máximo, a sua natureza, mas, sim,
purificar o elemento divino, que nele habita, mortificando, via de conseqüência, o
corpo, tido como o lugar de expiação da alma. Faz-se presente aqui, a concepção
dualista da alma, que, como se verá no correr deste trabalho, assume especial relevo no
pensamento de Pitágoras, Heráclito, Empédocles, Platão, Filo de Alexandria, Numênio
de Apaméia, Apolônio de Tiana, os neoplatônicos e os gnósticos.
A partir do período helenístico e também na Antiguidade Tardia, as tendências
sincretistas fizeram com que vários Mistérios entrassem no panteão dos deuses oficiais.
Não era incomum, naquela realidade adversa, que alguém se iniciasse em vários
mistérios no afã de superar as vicissitudes da vida ordinária. Também o envolvimento
emocional com o deus mistérico, o ato de render-se a ele e servi-lo, asceticamente, por
toda a vida ganha relevo no período helenístico (GUNTHRIE, 1966, p. 252). Já aqui,
portanto, se vislumbra a atmosfera de inquietação religiosa e de busca da salvação
pessoal, que fertilizará o solo na qual Plotino e os gnósticos semearão suas
soteriologias.
Característico, também, deste período, foi o gosto pelo maravilhoso e pela
magia, que grassava em todas as camadas sociais. A magia, naqueles dias difíceis, se
22
apresentava como um instrumento capaz de inverter a ordem natural dos fenômenos e,
desta forma, alterar o destino original dos seres humanos. A influência do Leste acabou
por incentivar este gosto pelo sobrenatural, ligado à satisfação das necessidades
humanas. A demanda pela magia não decresceu – mas, antes, só fez aumentar – com o
fim do período helenístico. Na época imperial, o anseio pela salvação tentará ser
saciado, não raras vezes, pelo recurso às práticas mágicas. Contra isso Plotino se
postará, muito embora, após a sua morte, certa corrente do Neoplatonismo vá abraçar a
teurgia, entregando-se a práticas mágicas.
De tudo se depreende que o cenário religioso que recebeu os ideários do
neoplatonismo e da gnose era extremamente difuso e complexo. Para arrematar o
quanto já dito, vale observar que a cidade de Roma, entre os séculos I e IV abrigava, em
seus limites, santuários para a realização de numerosos e díspares cultos, tais como: o
romano (Trajano), o grego (Esculápio), o de Mitra, o de Cibele, os sírio-fenícios
(Elagabal), os egípcios (Ísis e Serápis), dentre outros. Veneravam-se deuses estrangeiros
e locais por toda a cidade, desde o Capitólio, até o Circo Máximo, passando pelo
Fórum, o Palatino, o Aventino, o Campo de Marte e o Fórum Boarum (WATTEL, 2001,
p. 76). Vale dizer, poucos passos separavam um local de culto, de outro.
Tal invulgar profusão de divindades apenas expressava o anseio desesperado das
populações pela salvação. Salvar-se era, enfim, transcender o mundo e as vicissitudes
próprias da existência corpórea, buscar um estado de plenitude infenso ao mal, que, para
muitos, era o senhor da Terra.
23
2.3 As Inquietações de uma Época: não basta explicar o mundo, é preciso
transcendê-lo
2.3.1 A percepção do homem comum
É a partir do governo de Marco Aurélio, o imperador-filósofo, que o sonho da
pax romana começa a esvaecer, com as invasões bárbaras. O Império é convulsionado
por guerras civis e assolado por epidemias e inflação galopante. O quadro então
vivenciado por seus habitantes é, pois, de extrema insegurança individual, seja de cunho
material, seja de matiz ética.
O declínio material e as convulsões sociais são acompanhados pela
intensificação do sentimento religioso e místico
5
, trazendo, ambos, consigo, uma
notável mudança na visão de mundo, por parte daqueles a quem foi dado viver neste
período. Entretanto, parece mais correto dizer, com Dodds (1965, p. 4), que foi a
insegurança moral e intelectual que antecipou a material, e não o contrário.
A idéia de Infinito substitui a de Beleza do Paraíso e do mundo. A introspecção
passa a ser, cada vez mais, valorizada. A antítese entre o mundo terrestre e o mundo
celeste é, como nunca, enfatizada.
O próprio Marco Aurélio, um estóico, vê a ação do ser humano como
desimportante e mesmo um tanto irreal, mais se assemelhando a um trágico balé de
marionetes em um mundo dominado por Tyche. A vida, neste contexto, nada mais é do
5
A correlação entre distúrbios sociais e a disseminação, no meio social que suporta a crise, de uma visão
religiosa e mística da vida não é fato novo. W. Nestle e N. Jahrbb, citados por Dodds (1965, p. 100),
elencam quatro períodos da história grega, na qual teria tido lugar tal fenômeno: o século VI a.C, com
Pitágoras e o orfismo; o período pós-guerra do Peloponeso, com a filosofia de Platão; o século I d.C., com
Possidônio e o neo-pitagorismo e, finalmente, o século III d.C., com o advento de Plotino e o
Neoplatonismo. Malgrado considere relevante tal enumeração, Dodds não a reputa exaustiva.
24
que sonho e delírio; o homem, por seu turno, não passa de um estrangeiro, um exilado,
em uma terra hostil.
Por todo o mundo mediterrâneo, o logos sistematizante perde fôlego, porquanto
incapaz de transcender as mazelas da existência. A adoração do cosmos visível cede
lugar à percepção de que o mundo físico ou sublunar se encontra sob a égide de poderes
malignos, o que implica na correlação necessária entre matéria e mal. Neste diapasão,
resulta imperiosa não a busca de uma unidade com o mundo, mas, ao contrário, a
superação dele; salvar-se, eis o que deve mover o homem em sua dura existência. De
fato, conforme assevera Dodds (2002, p. 249):
Os pensamentos dos homens passaram a se voltar cada vez mais para
técnicas de salvação individual, algumas delas calcadas em livros sagrados,
pretensamente descobertos em templos orientais ou ditados por Deus a
algum profeta. Outros buscaram revelação pessoal através de oráculos,
sonhos ou visões, e outros, ainda, foram buscar segurança em rituais de
iniciação (nos numerosos “mysteria” de então) ou tentaram se valer dos
serviços de um mago em particular. Havia uma crescente demanda pela
prática do ocultismo, que não é senão uma tentativa de capturar o “reino dos
céus” através dos meios materiais – o que tem sido descrito como “uma
forma vulgar de transcendentalismo”.
2.3.2 O incorpóreo e a transcendência, segundo as escolas de pensamento do
período, influenciadores do porvir
O fato é que o sentimento das ruas encontrou abrigo nas correntes filosóficas da
época, que trataram de elaborar novas construções que contemplassem o apelo pela
transcendência, bem como redimensionassem o logos grego à luz do impulso religioso
oriental. O estudo de tais correntes, ainda que de forma perfunctória, revela-se oportuno,
já que tanto o neoplatonismo quanto a gnose aproveitarão elementos ventilados em tais
construções teóricas, que lhes foram precedentes, para moldar os seus próprios sistemas.
25
No âmbito da filosofia grega, tal interregno, pós-era helenística, coincide com o
período denominado religioso ou místico, o último antes do advento da Cristandade e da
transição para o mundo medieval.
Com efeito, como se sabe, em um primeiro momento, com os chamados
pensadores originários ou pré-socráticos, a especulação grega tratou de perquirir acerca
da physis. Era o tempo de Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, Parmênides,
Heráclito, dentre outros. A preocupação principal destes pensadores era a de,
perscrutando a natureza, descobrir o elemento constituinte fundamental de todas as
coisas. As explicações, até então, advindas do mito, não mais resistiam ao exame do
logos. Com o surgimento dos sofistas e de Sócrates, a preocupação maior dos
pensadores passa a ser o homem e, por extensão, as complexidades da vida social.
Morto Sócrates, seus discípulos Platão e Aristóteles, se debruçaram sobre, virtualmente,
todas as questões importantes da existência, procurando delas tratar, de forma
sistemática. No período helenístico, isto é, aquela nova ordem instituída por Alexandre,
o Grande, dá-se um exaurimento das especulações anteriores. É uma época de
decadência da polis grega, e a demanda é pela melhor ou mais sábia forma de viver em
um mundo permeado pela ruptura com os valores antigos. Surgem, então, escolas de
pensamento para responder a estes anseios, como a estóica, a cínica, a epicurista e a
eclética; a filosofia, aqui, é um estar-no-mundo. Para Sêneca, por exemplo, a
investigação de coisas que não podemos conhecer ou cujo conhecimento é inútil, não
devia merecer a atenção de ninguém. Todavia, tais diretrizes do bem viver não mais se
mostram adequadas aos reclamos e às peculiaridades do período seguinte, no qual
sobressaem o poderio bélico de Roma, o sincretismo religioso e o clamor pela salvação
individual. Não há mais lugar, então, para a curiosidade desinteressada; muitos têm a
alma enferma, carecendo de uma senda salvífica que lhes propicie a almejada
26
transcendência do mundo material. A filosofia não se manterá alheia a este anseio, o
que ensejará a construção de sistemas que reinterpretarão a rica herança helênica, a ela
incorporando elementos provindos do Leste, o que resultará em sínteses originais. Tal
empreitada, não por acaso, terá início na Alexandria dos Ptolomeus.
Alexandria, na foz do Nilo, por sua condição geográfica e pela diversidade
étnica de sua população, era a cidade mais receptiva ao influxo das idéias e crenças
orientais. Não é de admirar, portanto, que as mais extraordinárias tentativas de síntese
entre o racionalismo helênico e o espírito religioso e místico do Oriente, lá se tenham
verificado.
O anseio pela transcendência ganhou roupagem filosófica, primeiramente, pelo
pensamento de Filo, o Judeu, assim como pelos comentaristas e exegetas médio-
platônicos, neo-pitagóricos e neo-aristotélicos, que reenquadram, em sintonia com os
clamores da época, a sabedoria anterior. O Hermetismo e os Oráculos Caldaicos, por
seu lado, com seu viés menos especulativo e mais mágico também desempenharam
importante papel no período. Nada obstante, conceitos ventilados pelos filósofos da
época helenística - estóicos, epicuristas, céticos e cínicos – são, também, agora
retomados, seja como objeto de crítica, seja para reelaboração. O fato é que muitos dos
aportes trazidos por tais escolas e pensadores, assim como pelas religiões do Oriente,
parecem ter pavimentado a estrada que levou ao surgimento e ao desenvolvimento do
neoplatonismo e da gnose.
27
2.3.2.1 Filo de Alexandria
A importância de Filo de Alexandria, neste horizonte, é de tal jaez, que Giovani
Reale (1994c, p. 217), o qualifica como um personagem “de ruptura”, sem o qual não se
pode compreender o transcendentalismo posterior.
Filo, que era hebreu de nascimento e grego por formação, contrapôs, à visão
imanentista da época helenística, uma sofisticada construção transcendentalista, que fez
impregnar, o helenismo, com ares indubitavelmente religiosos e místicos. Sua tentativa
de fusão entre a teologia hebraica e a filosofia grega, com a interpretação alegórica da
Septuaginta
6
, “inaugura a aliança entre fé bíblica e razão filosófica helênica” (REALE,
1994c, p. 219-220). O sábio judeu é influenciado pelo pitagorismo, pelo aristotelismo, e,
especialmente, pelo platonismo. Sem embargo, do cinismo retira a idéia do prazer como
mal e fonte de pecado; já, o ceticismo, lhe põe a claro as aporias e as impotências da
razão para, sozinha, esquadrinhar o Absoluto.
Filo retoma o conceito platônico do incorpóreo, remodelando, entretanto, a
concepção de Deus, que passa a figurar acima das Idéias, consideradas, estas, como
produções e pensamentos divinos. Ademais, concebe o agir demiúrgico como ato de
criação, no sentido bíblico, e reformula a lei moral, transformando-a em um
mandamento do Supremo Ser. Demais disso, põe em relevo a idéia de revelação – a
divina inspiração da Escritura - que perpassaria tanto o sentido literal (e inferior),
quanto o alegórico (e superior) da mensagem bíblica.
6
Tradução grega da Bíblia, iniciada em Alexandria, no reinado de Ptolomeu Filadelfo (285-246 a.C.), para
atender as necessidades da grande comunidade hebraica helenizada que lá se tinha instalado. Filo
conheceu a Septuaginta por completo, mas privilegiou o Pentateuco (a “Lei” ou Torah, em hebraico),
buscando descortinar o sentido que jazia oculto sob a narrativa literal. O alegorismo tornou-se, assim, o
seu traço principal e método filosófico.
28
De outra parte, Filo de Alexandria aproxima a interpretação alegórica dos
mistérios, o que não é de admirar, visto que a idéia de que a verdade se faça oculta sob
símbolos, bem como de que se faz necessário um método para desvelá-la, deve ter
surgido, provavelmente, entre os mistérios órficos
7
.
Do exposto se depreende que, ao esposar firmemente sua crença na revelação
divina, Filo dá a lume, no seio da filosofia grega, um novo e instigante problema, qual
seja, o de conciliar razão filosófica e fé. Realmente, cumpre observar que a religião
helênica jamais conhecera algo como uma “verdade revelada”. É verdade que Platão,
em uma famosa passagem do Fédon (85, c-d), que cumpre, por sua beleza, transcrever,
cogita de uma divina revelação, que, entretanto, remanescia apenas como uma distante
possibilidade na busca da Verdade. Assim:
De fato, tratando-se desses problemas [sobre os destinos do homem e sobre
sua sorte escatológica], só é possível fazer uma dessas coisas: ou aprender
de outro qual é a verdade; ou descobri-la por si próprios; ou, se isso é
impossível, aceitar, entre os raciocínios humanos, o melhor e menos fácil de
refutar, e sobre ele, como uma jangada, afrontar o risco da travessia no mar
da vida: a menos que se possa fazer a viagem de modo mais seguro e com
menor risco sobre uma nave mais sólida, ou seja, confiando-se a uma divida
revelação
.
Para Filo, a revelação (Palavra Divina) não é uma distante aspiração, mas uma
realidade passível de ser conhecida pelo ser humano. Sendo assim, ele subordina a
filosofia (razão humana) à revelação; a filosofia, desta forma, se torna serva da
sapiência, entendida, esta, como a ciência das coisas divinas e humanas, e suas causas.
O fundamento da sapiência, por sua vez, é a fé, concebida como a convicção sólida e
inabalável que se posta além da incerteza dos argumentos humanos. Neste diapasão, a
7
Orfeu se expressava simbolicamente e ressaltava a superioridade deste falar sobre o de caráter
denotativo.
29
filosofia seria o esforço para se alcançar a sapiência, o que implica em uma superação
da máxima helenística, segundo a qual a phronesis, ou sabedoria, estaria em um patamar
mais alto do que a sophia, ou sapiência. Filo, de modo original, concebe a sapiência
como o conhecimento e o culto de Deus, deslocando, a sabedoria, para o reino da ética,
da conduta do homem em sua vida prática. Sem embargo, ele reenquadra a divisão da
filosofia em lógica, física e ética, cara aos filósofos helenísticos, propondo, ademais,
como ponto axial, desta última, um agir no mundo tendente ao conhecimento de Deus.
Assim, o mestre hebreu acaba por retirar a teologia do âmbito da cosmologia, ligando-a
ao contexto da ética “porque repudia a concepção materialista e imanentista de Deus e
do divino, sustentada por todas as escolas helenísticas, em particular a do Pórtico, e até
mesmo redimensiona radicalmente o sentido e o alcance da própria cosmologia”
(REALE, 1994c, p. 235). Isto porque, na cosmologia de contornos filonianos, é
sublinhada a realidade do incorpóreo, que, longe da negação que conheceu dentre os
filósofos helenísticos, aparece como verdadeira causa do corpóreo, que, por seu turno,
passa a carecer de autonomia ontológica, não se sustentando por si mesmo. Deus, na
visão de Filo, é incorpóreo, absolutamente simples (já que não é composto por partes) e
incorruptível, já que absolutamente transcendente ao mundo, não cessando, ademais, de
agir, por ser o princípio e o operar de todas as coisas. Não é, entretanto, um demiurgo,
mas um criador, já que produz coisas que não eram antes de Sua ação, que se manifesta
por sua graça.
O escopo fundamental da filosofia de Filo é um caminhar para Deus, que se
inicia pelo abandono da adoração do cosmo (a cosmolatria) e é seguida pela
interiorização, tendente ao conhecimento de si próprio. Esta auto-análise pressupõe o
conhecimento do próprio corpo, dos próprios sentidos, da própria linguagem e o
afastamento progressivo destas três instâncias, que se revelam enganadoras: o corpo,
30
porque considerado como uma prisão, dominada pelos prazeres e os desejos; os
sentidos, porque têm o poder de atrair, o ser humano, para os objetos dos desejos,
concitando-o a abrir mão do que lhe é inerente em prol de algo que lhe é exterior e
estranho; a linguagem, porque a bela retórica, via de regra, nos descortina um mundo de
aparências, eclipsando a realidade. Superadas estas três esferas de engano, cabe, ao
buscador de Deus, refugiar-se na própria alma (intelecto), certificando-se de que ela
mesma deve ser transcendida, porquanto incapaz de aproximar-se mais das realidades
incorpóreas e, por conseguinte, de Deus. Há que se empreender, então, pelo êxtase
místico, uma saída de si, entregando, o próprio pensamento, à sua Causa, vale dizer, a
Deus.
Em suma, o ser humano está ligado ao mundo inteligível através da parte mais
elevada e ao mundo sensível pela porção inferior, de sua alma. A salvação do ser
humano implica no abandono da existência inferior para que tenha lugar a ascensão a
Deus. A renúncia aos prazeres do mundo material é uma condição preliminar para o
alcance da intuição profunda de Deus. Entretanto, não é a percepção sensória e nem
mesmo a razão que podem fazer o homem aproximar-se de Deus, mas a iluminação
mística, que, por sua vez, não pode prescindir, em seu último estágio, da graça divina.
Esta, tal qual um raio, surge, espontaneamente, quando a luz da mente humana está
extinta. Assim, a sublime tarefa do homem é o preparar-se para a recepção deste divino
raio; em sua derradeira fase, pois, a salvação demanda a graça e a revelação (LEWY,
2004, p. 20). Nada obstante, mesmo assim é dado ao homem conhecer tão somente a
existência – não a natureza – de Deus, tendo em vista a radical distância entre Criador e
criatura; o conhecimento do homem acerca de Deus é, assim, necessariamente limitado
(JONAS, 2000, p. 149).
31
2.3.2.2 O médio-platonismo
Outra corrente filosófica que, sensível à atmosfera do período histórico tratado,
cuidou dos temas do incorpóreo e da transcendência, elaborando e ressignificando
conceitos que tiveram eco entre o neoplatonismo e a gnose, foi o médio-platonismo, isto
é, o platonismo do início da era imperial romana (WALLIS, 1995, p. 1). De fato, “sem o
movimento médio-platônico o neoplatonismo seria praticamente inexplicável” (REALE,
1994c, p. 287). Plotino valeu-se, largamente, de textos médio-platônicos em suas aulas,
bem como de escritos provindos de seguidores de Aristóteles, interpretados à luz do
médio-platonismo. A influência das idéias médio-platônicas na construção do edifício
plotiniano é de tal monta, que, nas Enéadas, sequer se dá ao trabalho, o licopolitano, de
demonstrar ou explicitar alguns conceitos, porquanto já os tivesse como devidamente
assimilados pelo leitor ou pelo ouvinte, dada a penetração do pensamento médio-
platônico em seu mundo e sua época.
Para R.T. Wallis (1995, p. 30), as fontes médio-platônicas do pensamento de
Plotino, não são fáceis de inferir, já que nenhuma obra dos filósofos médio-platônicos
sobreviveu, em sua inteireza. De todo modo, afigura-se importante consignar que havia
muitos estóicos entre os médio-platônicos, tanto que Plotino, em seus escritos,
freqüentemente critica os platônicos que haviam sucumbido ao materialismo estóico.
Rodolfo Mondolfo (1965, p. 357-358), por sua vez, prefere denominar os médio-
platônicos de “platônicos pitagorizantes”, tendo em vista a afinidade entre o
neopitagorismo e o pensamento de expoentes do referido platonismo médio, como
Plutarco de Queronéia, Apuleio de Madaura e Numênio de Apaméia.
O termo “médio-platonismo”, assim, é reservado, por aqueles que aceitam tal
denominação, ao platonismo que se desenvolveu entre os séculos I a.C. e II d.C., vale
32
dizer entre o platonismo do próprio Platão e dos seus seguidores imediatos, e o
neoplatonismo de Plotino e seus continuadores.
A característica mais marcante deste platonismo, a meio caminho entre o velho e
o novo, é a recuperação do supra-sensível, do imaterial e do transcendente; em suma, é
o rompimento com o materialismo que vicejou, com ênfase, na era helenística.
Abandona-se a visão imanentista e fisicista de estóicos, epicuristas, céticos, cínicos e
ecléticos, em prol de uma recuperação do incorpóreo, que passa a ser considerado como
o fundamento do sensível e do corpóreo. Nesta esteira, o elemento metafísico-teológico
da filosofia é retomado e mesmo alçado a um grau de proeminência sobre os demais.
Os médio-platônicos tratam de repropor a teoria das idéias de Platão, buscando
concilia-la com o aristotelismo. Assim, as idéias, no seu aspecto transcendente, são
consideradas como pensamentos de Deus, ao passo que o mundo inteligível é
identificado com a atividade e o conteúdo da suprema Inteligência; já em seu aspecto
imanente, as idéias são entendidas como “formas” das coisas (REALE, 1994c, p. 276).
O diálogo platônico mais caro a esta corrente era o Timeu, já que, por conta de
sua densidade, o mesmo se afigurava mais apto à almejada sistematização e sintetização
da filosofia platônica. Nesta empreitada, a doutrina platônica do Uno e da Díade é, em
parte, retomada, dando ensejo às construções teóricas em torno da Mônada e da Díade.
Nada obstante, o médio-platonismo, dominado por um intenso sentimento
religioso, bem como considerando a marcada transcendência de Deus e do divino, com
relação à instância da matéria, dispensou grande interesse à doutrina dos demônios,
ventilada, desde há muito, entre os helenos, seja no âmbito dos pré-socráticos, dos
órficos, de Platão, e mesmo dos estóicos. E isto se explica sem dificuldade: se o divino
era de tal modo transcendente ao mundo material, necessária se fazia a intermediação
dos daimons entre um mundo e o outro. Por outro lado, os demônios se faziam
33
necessários para explicar o mal no mundo, já que, diferentemente dos deuses (que
somente podem ser bons e fontes do bem), em razão de sua constituição mista,
poderiam, eles, ser fonte, tanto fonte do bem, quanto do mal.
Tal absoluta transcendência do divino, em relação às coisas do mundo material,
é assinalada por Plutarco de Queronéia
8
(apud REALE, 1994c, p. 289):
Não é verossímil nem conveniente, como afirmam alguns filósofos, que
Deus se encontre misturado com alguma matéria sujeita a todas as afecções
e com coisas que sofrem inumeráveis formas de necessidade, causalidade e
mudança.
Mas Deus, em si mesmo, está muito longe da terra, incontaminado,
incorruptível, puro de toda matéria que sofre destruição e morte.
Demais disso, o novo vigor religioso propiciou uma reavaliação, por parte dos
médio-platônicos, da sapiência oriental, notadamente a egípcia.
A problemática tocante ao correto viver, ou à vida ética, também foi objeto de
reexame cuidadoso: o conselho helenístico “Segue a natureza”, foi substituído pela
exortação “Segue a Deus”, ou “Imita a Deus”. A existência ética, neste diapasão, passou
a ser aquela norteada pela busca, por parte do ser humano (que habita o mundo sensível
e da corporeidade), da assimilação ao divino transcendente e incorpóreo.
Outro tema caro aos médio-platônicos, e já referido por Filo de Alexandria, é o
da incognoscibilidade e da inefabilidade de Deus. Sim, se Deus é absolutamente
transcendente ao mundo, não é possível, ao ser humano, captar a Sua essência e nem,
tampouco, transmiti-La por palavras. Representativas, nesta esteira, são as
8
Plutarco, nascido em Queronéia, viveu entre a metade do século I d.C. e o terceiro decênio do século II
d.C., tendo sido discípulo do egípcio Amônio. Grande representante do médio-platonismo, escreveu sobre
filosofia, religião, ciência, política, retórica, hermenêutica literária. Todavia, é mais bem conhecido pela
obra biográfica “Vidas Paralelas”, assim como pelas “Moralia”, escritos de temática moralista. Propõe a
existência de um Deus transcendente como o Uno platônico, antes do Intelecto (nous) e da alma (psyché).
Sensível à teologia egípcia, escreve “Isis e Osíris”. Influenciado pelo estoicismo de Posidônio de
Apaméia, distingue três partes no ser humano: o intelecto, que é solar, a alma, lunar e úmida e o corpo
sublunar, propriamente terrestre. Destes, apenas o primeiro é imortal (DUMONT, 2004, p. 722).
34
considerações do médio-platônico Albino
9
(apud REALE, 1994, p. 293), acerca de
Deus:
É inefável e captável apenas com o intelecto, como se disse, pois não é nem
gênero, nem espécie, nem diferença específica e nem mesmo, por outro lado,
lhe compete qualquer especificação, nem boa (pois seria bom por
participação em alguma coisa, e especificamente na bondade); nem é
indiferente (porque isso não corresponde à sua noção) Nem se lhe atribui
qualidade (porque não tem nada a ver com qualidades e é perfeito
independentemente da qualidade), nem é sem qualidade (porque não é
privado de qualidades que com ele possam competir). Não é parte de alguma
coisa, nem tem partes como um todo, nem, por conseqüência, é igual a
qualquer coisa, nem diferente, nada, com efeito, se lhe acrescenta por força
da qual possa ser separado das outras coisas; nem move, nem é movido”.
Emergem, de tal excerto, duas importantes constatações: a primeira diz com a
marcada antítese entre o pensamento médio-platônico e o imanentismo das escolas
helenísticas, particularmente do Pórtico; a segunda põe a descoberto uma diferença
fundamental entre o médio-platonismo e o neoplatonismo, que lhe sucedeu, no que
concerne à posição ocupada por Deus nas hipóstases: para aquele, Deus coincide com a
Suprema Inteligência; para este, está acima também dela.
Ainda um ponto a se destacar foi o esforço, levado a efeito pelo médio-
platonismo, para conciliar as visões de Platão e de Aristóteles, no que tange à doutrina
as idéias como pensamentos divinos. Como se sabe, Platão estabelecera o Absoluto
como o Inteligível (o mundo das idéias), postando-o acima da Mente e da Inteligência;
as Idéias, para ele, se situam acima da inteligência demiúrgica, superando-as tanto sob o
prisma do ser, quanto do valor. Aristóteles, por seu lado, entendera o Absoluto como a
9
Filósofo médio-platônico, autor do Didaskálikos ou Epítome (Compêndio), “prepara o neoplatonismo,
dando especial atenção ao Timeu, lido à luz de “A República”. O primeiro Deus é o Intelecto imóvel, a
saber, o Demiurgo. O segundo deus é o intelecto eternamente em ato: é o Céu. O terceiro deus é o
intelecto em potência, que é uma potência da alma do mundo. Assim, o primeiro, ainda que inefável, não
é ainda o Uno de Plotino: ele pode ser apreendido por um intelecto divino, inspirado, de uma maneira
negativa. O demiurgo, primeiro intelecto que se pensa a si mesmo, como o deus de Aristóteles, produz
sues próprios paradigmas e ‘imita’ assim as idéias” (DUMONT, 2004, p. 722).
35
Inteligência enquanto pensamento de si mesmo, isto é, Pensamento de Pensamento;
assim, o Estagirita fixou as Idéias no âmbito do Sensível, tornando-as imanentes e
fazendo, delas, formas intrínsecas às coisas.
Ambas as concepções acabavam por ter elementos aporéticos: na visão
platônica, porquanto tivesse, Platão, concebido as Idéias como estando acima da
inteligência criadora, demiúrgica; na visão aristotélica, por ter, Aristóteles, arquitetado
as idéias como estando muito abaixo da Inteligência divina, inserindo-as, pois, no
âmbito material e, conseqüentemente, no intelecto humano, que as pensa.
Para os médio-platônicos, tais concepções não eram inconciliáveis. De fato, por
um lado, diziam eles, Aristóteles está certo quando afirma que o primeiro princípio é o
Pensamento; nada obstante, Platão também está correto, no que tange ao seu “mundo
das idéias”: a conclusão é que o mundo das idéias é o conteúdo do Pensamento. Os
pensamentos de Deus (que pensa a Si mesmo) só podem ser eternos, imutáveis e o
paradigma para todas as coisas; ora, tais pensamentos nada mais são do que as Idéias
platônicas. Nesta linha de raciocínio, as Idéias transcendentes são os fundamentos e as
causas e, as formas imanentes, as conseqüências e efeitos; “as formas imanentes às
coisas individuais são as imagens ou os reflexos das Idéias impressos pelo Demiurgo na
matéria” (REALE, 1994c, p. 296-297).
O médio-platonismo repercutiu, decisivamente, na construção do edifício
plotiniano, sobretudo através da doutrina das hipóstases
10
. Ao menos em estágio
embrionário, as hipóstases plotinianas parecem estar esboçadas em escritos de Plutarco,
Apuleio e no Didascálico de Albino.
10
Plotino denominou “hipóstases”, as três substâncias principais do mundo inteligível, a saber, o Uno, a
Inteligência e a Alma. A acepção latina do vocábulo é “substância” (ABBAGNANO, 2000, p. 500).
36
De fato, os filósofos médio-platônicos, fiéis à sua visão de mundo não
materialista e antiestóica, situavam o nous (a mente, o intelecto) acima da psyché (a
alma). Se, ao lado da alma e do intelecto, for introduzido o Ser, o Uno, enfim, Deus, ter-
se-á uma tríade semelhante à plotiniana. Para Albino, a hierarquia do divino
comportaria três hipóstases, a saber: o Primeiro Deus ou o Primeiro Intelecto, o
Segundo Intelecto ou o Intelecto da alma do mundo e a própria alma do mundo.
Sublinhe-se, aqui, que uma das idéias fundamentais do médio-platonismo é a
identificação de Deus com o Supremo Intelecto. Com o passar do tempo, porém, os
filósofos médio-platônicos, sobretudo Plutarco, tenderiam a retornar à doutrina da
Mônada e da Díade, acentuando o dualismo entre bem e mal, princípios opostos que se
digladiam eternamente, sem prejuízo do demiurgo (referido, por Platão, no Timeu) que
coloca ordem na matéria, a partir do paradigma das Idéias; neste contexto, a gênese do
cosmo espelharia a imagem do Ser na matéria e o devir não passaria de uma imitação do
Ser.
Outro ponto de contato entre o médio-platonismo e Plotino diz respeito à ética,
isto é, ao correto modo de viver e conviver. Para os médio-platônicos, o objetivo
supremo da existência terrena é a contemplação, consubstanciada na busca da
assimilação, do homem, a Deus e ao divino. Trata-se de fugir para o alto, o quanto antes
possível, assimilar-se a Deus, enquanto possível, tornar-se justo e santo com o
pensamento. E, para tanto, há que ter lugar o cultivo de todo o ser. A verdadeira
felicidade não depende dos bens humanos, mas dos divinos, já que, no belo dizer do
Didascálico, de Albino, somente através destes, a alma poderá “contemplar a planície da
verdade” (apud REALE, 1994, p. 315). Mais uma vez, Albino (apud REALE, 1994c, p.
311):
37
Podemos chegar a ser semelhantes a Deus, se tivermos uma natureza
adaptada, costumes, uma educação e uma vida segundo as leis e, sobretudo,
se usarmos a razão, o ensinamento e a tradição das doutrinas, de modo a
manter-nos afastados da maioria das coisas humanas e de modo a estarmos
sempre voltados às coisas inteligíveis. Se queremos ser iniciados nos
conhecimentos mais elevados, a preparação e a purificação do demônio que
existe em nós deverão acontecer através da música, da aritmética, da
astronomia e da geometria, e deveremos nos ocupar também do corpo com a
ginástica, a qual adestra e bem dispõe os corpos à guerra e à paz.
É enfatizada, outrossim, pelo médio-platonismo, a presença, no ser humano, de
uma dimensão não material. Além disso, a alma provém de Deus e, por conta de sua
incorporeidade e imaterialidade, é naturalmente destinada a retornar, depois de
purificar-se através dos supremos conhecimentos, à instância do divino. Ademais,
embora as conseqüências das ações da alma venham a se cumprir segundo o Destino,
ela é senhora do seu agir.
Tal presença de algo incorpóreo, no âmbito do corpóreo, é apregoada também
por Plotino e pelos gnósticos, para os quais a salvação implica em fazer retornar, à
origem, esta contraparte não material do ser humano. Entretanto, a maneira pela qual
esta centelha – ou a alma – veio se imiscuir com o corpo e como, pode, ela, abandoná-
lo, recebem explicações diferentes, por parte daquele e destes, como se procurará
demonstrar, oportunamente.
2.3.2.3 O neo-aristotelismo
Outra corrente filosófica que, influenciada pelo médio-platonismo, legou, à
história do pensamento, elementos posteriormente tratados pelo neoplatonismo e o
gnosticismo, foi o neo-aristotelismo. Plotino bem conhecia as obras de Aristóteles e dos
38
seus comentadores, em especial as obras de Alexandre de Afrodisia (O’MEARA, 1996,
p. 71).
Após conhecer um período no qual tiveram lugar, exclusivamente, as
interpretações e comentários das obras do Estagirita, e durante a qual esposou uma visão
materialista e naturalística, o Perípato conhece, em Alexandre de Afrodisia e Aristocles
de Messina, no século II d.C. uma mudança de rumo, sob os influxos do médio-
platonismo.
O aristotelismo da época parece guardar grande apreço por Platão, ou, ao menos,
pelo platonismo desenvolvido pelos médio-platônicos. Aristocles de Messina tem como
amplamente possível a conciliação entre as filosofias de Aristóteles e Platão, o que o faz
qualificar, a Academia, de “Perípato de Platão”.
Outro aristotélico do período, Aspásio, comentarista da Ética a Nicômaco,
abraça a concepção dualista do ser humano e sublinha a excelência da vida
contemplativa e sua superioridade em relação à existência afeta aos reclamos da
matéria. Concorda, ele, com a tese médio-platônica de que a finalidade suprema do
homem é fazer-se semelhante a Deus. Demais disso, aproxima-se, outrossim, dos
médio-platônicos, quando adota a hierarquia do divino, segundo a qual as hipóstases, a
partir do “primeiro Deus” se situam, no âmbito do inteligível, do mais “alto” ao mais
“baixo”.
Todavia, o maior expoente do neo-aristotelismo foi Alexandre de Afrodisia,
autor da obra De Anima, que, durante largo período, foi considerado o maior
comentarista de Aristóteles, vindo, posteriormente, a se aproximar do platonismo e do
misticismo. Tal metamorfose o torna, para alguns, um filósofo “pré-neoplatônico”.
Segundo o magistério de Giovanni Reale (1994c, p. 35-36), Alexandre de
Afrodisia pode, em uma certa medida, ser considerado um influenciador do
39
neoplatonismo de Plotino, na medida em que reelabora conceitos aristotélicos à luz do
clima espiritual do período em que viveu, tornando-os passíveis de utilização por tal
escola de pensamento, que lhe foi posterior. Sua maior contribuição, nesse sentido,
parece ter sido a de afirmar que, no intelecto humano, há uma capacidade transcendente,
de captar o Intelecto divino, bem como de tornar-se divino.
Para Alexandre de Afrodisia havia três intelectos: o primeiro deles, denominado,
por ele, físico ou material era dotado da possibilidade de conhecer todas as coisas, quer
sensíveis, quanto inteligíveis; o segundo intelecto, chamado adquirido ou in habitu,
dotado do hábito de pensar, tendo adquirido a capacidade de abstrair a forma, da
matéria; já o terceiro intelecto, designado agente ou produtivo é a causa que torna
possível, ao intelecto material, separar a forma, e, assim, tornar-se in habitu. Disto
decorre que o ser humano é dotado da capacidade de separar as formas inteligíveis das
coisas materiais e, por conseguinte, de captar o Inteligível. Entretanto, malgrado o
intelecto humano seja capaz de abstrair as formas dos sensíveis, há que realizar, esta
operação, em participação com o Intelecto divino, o Nous poietikos, já que é este que
faz o nosso intelecto passar, de intelecto material, a in habitu. Este contato com o
Intelecto divino tem caráter intuitivo, afigurando-se, mesmo, como uma assimilação, o
que lhe confere feições místicas.
2.3.2.4 O neopitagorismo
Típico, da época estudada, é, também, o ressurgimento do pitagorismo, a partir
do século I a.C., nas cidades de Alexandria e Roma, em sintonia com as tendências
espiritualistas e religiosas de então.
40
Os neo-pitagóricos concebiam o Uno como absolutamente transcendente, do
qual advinham a matéria e todas as coisas; vale dizer, do incorpóreo provém o corpóreo;
da Mônada, pertencente ao mundo dos inteligíveis, advém os corpos.
Moderato de Gades e Nicômaco de Gerasa, dois expoentes do neo-pitagorismo,
afirmam a absoluta transcendência do Princípio Supremo, que, imutável e sempre
idêntico a si mesmo, é o fundamento de todas as coisas. De acordo com Dumont (2004,
p. 721), Moderato influenciou o método de Plotino e dos neoplatônicos, ao se debruçar
sobre o Parmênides, de Platão. Nicômaco, por sua vez, se detém na questão relativa à
harmonia de todas as coisas, estudando-a à luz do Timeu.
A idéia de “incorpóreo” é palmar em Numênio de Apaméia, outro grande
filósofo do período, que, embora neopitagórico, tem sua filosofia marcada pela
influência de Platão, bem como da tradição mosaica.
A maior expressão do neo-pitagorismo foi Numênio de Apaméia, sábio aberto
ao influxo oriental e às interpretações alegóricas de Filo, que se considerava um
seguidor de Pitágoras, Sócrates e Platão, e buscava demonstrar as congruências entre os
discursos pitagórico e platônico.
Numênio procurou levar a cabo um esforço de fusão entre a teologia e a
metafísica dos médio-platônicos – ancoradas, sobretudo, no Timeu – e a doutrina neo-
pitagórica da Mônada, das Díades e dos Números. A Mônada, para ele, é Deus, ao passo
que a Díade é identificada com a matéria sensível.
As construções teoréticas de Numênio antecipam muitas das bases do edifício
plotiniano. De fato, para o neo-pitagórico, o Ser é absolutamente transcendente,
imutável, eterno e incorpóreo, jamais podendo se identificar com a matéria, porquanto
seja, esta, irracional, desordenada e cambiante (sujeita ao devir), portadora, enfim, de
qualidades opostas às daquele.
41
No que tange à estrutura do ser incorpóreo, Numênio propõe a teoria dos Três
Deuses, que guarda semelhanças com a teoria das hipóstases, de Plotino. De acordo com
Wallis (1984, p. 33), o que torna, Numênio, um precursor de Plotino é, em primeiro
lugar, por apregoar a existência de três princípios divinos – e não uma miríade deles,
como advogavam os gnósticos, em geral; em segundo lugar, por correlacionar o
segundo e o terceiro princípios, a dois níveis de atividade mental, a saber, a intuição e o
pensamento discursivo. Entretanto, Numênio se afasta de Plotino ao não postar, o
Primeiro Deus, além da Inteligência.
Aliás, parece oportuno observar que, no século II d.C. toma corpo, entre os
pensadores, uma clara propensão a conceber, a realidade imaterial, como hierarquizada
segundo uma tríade. Fiel a esta tendência, Numênio advoga a existência de três deuses:
o Primeiro, o qual denomina “Pai”, e é inteiramente simples, estável e imóvel (age sem
mover-se, produz sem mudar, mantendo, com isso, a ordem e a estabilidade de tudo,
bem como assegurando a salvação de todos os seres); o segundo, que qualifica de
“Criador”, e o terceiro, que dele recebe o nome de “Criação”. Tal como os médio-
platônicos, a fim de marcar a absoluta transcendência do deus-primeiro, Numênio
concebe, o Primeiro deus, como relacionado exclusivamente com as essências, as
Idéias; já o Segundo deus teria função precipuamente demiúrgica, isto é, de criação do
Cosmo, imitando o Primeiro, pensando as essências produzidas pelo Primeiro e as
reproduzindo no cosmo. Tem-se, aqui, como bem anota Giovanni Reale (1994c, p. 365),
“embora embrionário, o conceito de ‘contemplação’ como fundamento da atividade
criadora que constitui o fulcro da metafísica plotiniana”.
Nada obstante, ao agir sem mudar, ao dar sem se apequenar, diminuir ou
empobrecer, o Primeiro Deus de Numênio antecipa as processões das hipóstases
42
plotinianas, que, ao desencadearem o aparecimento da instância abaixo, não perdem
nada de sua substância.
Numênio proclama a existência de duas almas: uma de características beatíficas
e, a outra, má – a matéria – que tenta se opor à ação de Deus, doadora de ordem e
racionalidade ao mundo. A alma má seria, então, para o referido neo-pitagórico, o
princípio da vida irracional e do perambular caótico da matéria; já a alma boa seria o
princípio de ordem e de harmonia, podendo, assim, ser qualificada de intelecto.
Neste cenário, a grande tarefa ética do ser humano é purificar-se, de modo a
promover a libertação, da alma, do cárcere corpóreo, até que, pela união mística com o
Absoluto, possa, ela, gozar da íntima comunhão com Ele. A vitória do bem em relação
ao mal se dá tanto no microcosmo do ser humano, quanto no macrocosmo do Universo,
pois tudo está em tudo. A união mística, tal como a viu Plotino, é, de certo modo,
antecipada por Numênio (apud REALE, 1994c, p. 371), em seu “Tratado sobre o Bem”,
consoante se pode inferir do majestoso trecho a seguir colacionado:
É preciso que o homem, depois de ter-se afastado das coisas sensíveis, entre
em íntima comunhão com o Bem, a sós com Ele, lá onde não há nenhum
homem, nem outro ser vivo, nem algum corpo, nem grande nem pequeno,
mas há uma solidão maravilhosa, inefável e indescritível, lá onde está a
morada do Bem, as suas ocupações e os seus esplendores, o próprio Bem na
paz e na benignidade, Ele, o Tranqüilo, o Senhor, que, benévolo, transcende
a própria essência. E se alguém, ficando agarrado às coisas sensíveis,
imagina que o Bem vem até ele, e vivendo nos prazeres, crê alcançar o Bem,
este está completamente enganado.
Para os neo-pitagóricos, em geral, o incorpóreo não é constituído apenas pelas
Idéias, que, em verdade, são os princípios secundários e derivados dos Números, estes,
sim, os Princípios primeiros, que exprimem o ser essencial das coisas, a arquitetura
metafísica universal.
43
Neste contexto, vale distinguir a Mônada, da Díade, já que, nos sistemas
gnósticos, como se verá posteriormente, os éons são, usualmente, criados em duplas. De
fato, para os neo-pitagóricos, sobretudo Moderato, a Mônada, princípio ativo, imaterial
e incorpóreo, traduz a idéia de unidade, igualdade, identidade, bem como sugere como
as coisas se harmonizam entre si, para a conservação do Universo. A Díade, por outro
lado, sendo o princípio passivo, aponta para o conceito de desigualdade, traduzindo o
princípio de mudança, diversidade, divisibilidade. A Mônada, em consonância com a
tendência, da época, de fazer coincidir o Princípio com a Inteligência, era o mesmo que
o Intelecto, isto é, Deus. Demais disso, a Mônada congrega, em si mesma, a um só
tempo, os dois sexos, já que pai e mãe de tudo o que existe.
Também, os neo-pitagóricos, mas no bojo de uma metafísica matematizante,
hierarquizaram o incorpóreo em hipóstases, tal como o fizeram os médio-platônicos e
como, depois, fará Plotino. Para Moderato, acima de tudo, em sua absoluta
transcendência, se postava o Primeiro Uno; depois dele, vinha o Segundo Uno, que
constituiria o inteligível ou o mundo das formas, na qual residia a Díade, ou “matéria
inteligível”, isto é, pura quantidade privada de forma; imediatamente “abaixo” se
situava o “Uno-alma” e, por último, o mundo sensível, concebido como reverberação do
inteligível, como uma sombra da pura quantidade inteligível (REALE, 1994c, p. 352).
A ética neo-pitagórica, por sua vez, se assenta no cuidado que deve dispensar, o
ser humano, ao divino que nele habita, bem como na imitação de Deus e, como ponto
culminante, na união mística com o divino, no que muito se assemelha ao modo de vida
proposto por Plotino.
44
2.3.2.5 O hermetismo
Não se mostraria apropriado fechar o quadro de influências doutrinárias do
neoplatonismo e do gnosticismo, sem traçar as principais linhas das “doutrinas
esotéricas” ventiladas pelo Hermetismo e também pelos Oráculos Caldaicos.
O chamado “Hermetismo” é identificado com o deus egípcio Thot, inventor da
escrita, intérprete e revelador do divino logos. Na época helenística (a partir de III a.C.)
e, com mais relevo, na Era Imperial Romana (séculos II e III d.C.) deram-se a conhecer
escritos, tidos por “revelações”, supostamente atribuídos a Hermes Trimegisto, o Três
Vezes Grande. É que os gregos, ao tomarem contato com o panteão egípcio,
assimilaram Thot ao seu deus Hermes, que, na religiosidade helênica, tinha, igualmente,
as características de intérprete e mensageiro dos deuses (REALE, 1994c, p. 375).
Segundo Reale (1994c, p. 376), o hermetismo conheceu uma expressão popular,
representada pelas obras atinentes às chamadas “ciências ocultas”, tais como a alquimia,
a astrologia e a magia, e outra, douta, composta de escritos filosóficos, teológicos e
místicos. Neste segundo grupo encontra-se o denominado Corpus Hermeticum,
constante de dezesseis tratados, dentre os quais o mais afamado deles, o Poimandres
(“pastor de homens”). Também deste grupo fazem parte a obra intitulada Asclépio e
vários extratos, testemunhos e fragmentos de época.
Os escritos do primeiro grupo opõem-se à idéia, tão cara aos gregos, de que a
razão se encontra apta a encontrar, por suas próprias forças, a verdade. Não cuida, esta
expressão popular do hermetismo, de especular acerca das causas fundamentais, isto é,
do universal; sua preocupação reside no particular, no específico, no individual, na
percepção do maravilhoso, do mirabilia, nas leis de simpatia e antipatia que
correlacionam os seres concretos, e cujos fundamentos se põem além das trilhas
45
alcançáveis pela razão. Estas ciências ocultas são o oposto da ciência especulativa e
racional helênica: o seu fazer não se assenta na pesquisa e no raciocínio humano, mas
no exercício do culto, da oração e da prática mágica; aqueles que as dominam são
eleitos, raros destinatários e continuadores de uma tradição mistérica; seu palco de
atuação não é o plano intelectual, mas o da religião e o da magia.
Por sua vez, os escritos de feição mais douta apresentam similitudes com as
idéias professadas pelos médio-platônicos e neo-pitagóricos. Mesmo aqui, inobstante as
afinidades filosóficas com as escolas referidas, propõe-se um novo método para o
conhecimento de Deus, não fundado na razão humana, mas na revelação advinda da
oração, do culto, da iluminação e do êxtase. Tão somente quando a razão, os sentidos e
a palavra se calassem, o conhecimento de Deus, mercê de uma união estática vivenciada
no divino silêncio, seria possível.
De acordo com Hans Jonas (1963, p. 147), o Poimandres é um documento
representativo da cosmogonia e da antropogonia gnósticas, já que narra as desventuras
do “Primeiro Homem” ao cair na matéria e a gloriosa ascensão da alma, através da
revelação. Kurt Rudolf (1987, p. 86) aduz que a cosmogonia nele versada tem uma
coloração helenística-gnóstica no âmbito da narrativa judaica da criação.
No Corpus Hermeticum têm lugar, sem excluir-se, a teologia positiva e a
negativa. Isto porque, por um lado, Deus é o totalmente outro, sem forma ou figura,
inteiramente inefável; por outro, Ele é o Bem Absoluto, o Supremo Pai de todos os seres
e todas as coisas, Causa de tudo o que existe. Ademais, sem discrepar do que diziam os
médio-platônicos, tal escrito associa, via de regra, Deus com o Intelecto Supremo,
embora, em algumas passagens, O tenha não como o Intelecto, mas como a causa da
existência do Intelecto, tal como existem a luz e a causa da existência da luz.
46
Percebe-se, outrossim, no Poimandres, a inclinação, também presente na gnose,
de multiplicar os intermediários entre o Primeiro Deus, ou o Uno, e o mundo material.
O Deus supremo, sendo o Princípio do Princípio, não tem fim e Se explicita em um
número infinito de potências. Este Deus Supremo é a Luz Suprema e o Intelecto
Supremo, sendo capaz de gerar tudo por si mesmo, porquanto possua as naturezas
masculina e feminina; abaixo Dele, na hierarquia do incorpóreo, posta-se o Logos, Seu
filho primogênito; do Supremo Deus também deriva o Intelecto demiúrgico, que é co-
substancial ao Logos; segue-se, então, o Anthropos, o Homem não dotado de
corporeidade, também derivado de Deus e imagem Dele; por derradeiro, segue-se o
Intelecto que é outorgado ao ser humano que vive na carne, sendo, pois, o que há de
divino no humano e não se confundindo com a alma, eis que diverso dela e à mesma
superior.
Também, aqui, a idéia de salvação é central, no bojo de um acerbado dualismo e
de uma concepção pessimista do mundo, já que o nascimento do homem terrestre é
devido a uma queda do Anthropos, o homem incorpóreo, que desejou unir-se à natureza
material. O mundo terrestre, para o Hermetismo douto, é o “pleroma de todo o mal”,
consoante se depreende de várias passagens do Corpus Hermeticum, VI, 4, o que se
mostra notavelmente semelhante às idéias gnósticas acerca do mal, a serem
oportunamente desenvolvidas no correr deste trabalho. A afinidade de concepções não
se encerra aí: segundo o mencionado escrito, a salvação coincide com a gnose, com o
conhecimento, de sorte que o grilhão que mantém o homem preso à matéria é a
ignorância. Assim, o caminho soteriológico pregado pelo hermetismo, implicava, em
primeiro lugar, no reconhecimento de que a verdadeira natureza do ser humano é o
intelecto; após, caberia, ao aspirante à salvação, apartar-se de tudo o que, nele, se
ligasse à matéria e, via de conseqüência, ao mal. O coroamento deste itinerário salvífico
47
viria com a percepção de que, sendo o Intelecto, parte de Deus – a saber, Deus em nós –
o ato de reconhecer-se como tal, implicaria em reconhecer a Deus. Outro aspecto
fundamental que emana das teorias presentes no Corpus Hermeticum, e que faz
reverberar os ecos do pensamento de Filo, o Judeu, é o de que o espírito divino, presente
no homem, qual seja o Intelecto, lhe é dado, por Deus, através da graça. Em suma, a
salvação, para o hermetismo, implica em que o ser humano busque, ainda nesta vida,
libertar-se das potências negativas, através da separação do corpo e da purificação do
seu intelecto; assim agindo, unir-se-á, pelo êxtase – mas sem prescindir da graça divina
- ao Intelecto de Deus.
2.3.2.6 Os oráculos caldaicos
Similarmente ao Corpus Hermeticum, os Oráculos Caldaicos, cujo conteúdo e
maneira de exposição são característicos da época dos Antoninos
11
, propõem-se a
comunicar uma verdade revelada, através de uma combinação de filosofemas
12
(hauridos do platonismo médico e do neo-pitagorismo) e de religiosidade oriental.
Todavia, em comparação com o Corpus, nos Oráculos o elemento especulativo se
eclipsa e mesmo perde sua autonomia, em prol do componente irracional, presente em
práticas religiosas e de cunho teúrgico. Nada obstante, enquanto o Corpus Hermeticum
filia-se à tradição egípcia, os Oráculos Caldaicos se ancoram na sabedoria babilônica
(REALE, 1994c, p. 388).
11
Período compreendido entre 96 e 192 d.C. Os imperadores Antoninos foram Nerva, Trajano, Antonino
Pio, Marco Aurélio e Cômodo.
12
O filosofema é um tipo de silogismo apodíctico (SILVEIRA BUENO, 1965, 3º vol., p. 1396). O
silogismo, como se sabe, é a proposição lógica composta de duas premissas, maior e menor, com uma
conclusão; se as duas primeiras forem aceitas, a terceira também o será, necessariamente. Por fim, diz-se
apodíctica, aquela argumentação convincente, evidente; por via reflexa, a apodíctica é a arte de
argumentar e de demonstrar, pelo raciocínio, a falsidade de certas proposições.
48
O autor dos Oráculos parece ter sido Juliano, o Teurgo, filho de Juliano, o
Caldeu, que viveu no século II d.C., sob a égide de Marco Aurélio. Juliano, o Teurgo,
dizia tê-los recebido diretamente dos deuses, malgrado seja possível que ele, tão
somente, tenha reduzido, a versos, as revelações de algum visionário desconhecido, ou
mesmo da deusa Hécate, divindade sempre associada a magias e encantamentos.
Os temas ventilados nos Oráculos Caldaicos guardam notável semelhança com
as idéias do neopitagórico Numênio de Apaméia e, tal como as demais correntes
estudadas, leva a efeito uma hierarquização do transcendente. Acima de tudo, encontra-
se, o Pai, identificado com o Primeiro Intelecto, e que tudo criou, de forma perfeita.
Abaixo Dele, vem o Segundo Intelecto, na condição de Díade e detentor de dupla
função: por um lado, a de conter os inteligíveis e, de outro, a de introduzir a sensação no
mundo. Segue-lhe a Alma, identificada com a já referida deusa Hécate. Há, ainda, uma
pluralidade de demônios, além das almas humanas, aptas, estas, a retornar a Deus,
quando inteiramente purificadas.
Demais disso, ao afirmarem que Deus (ou o Pai) é todas as coisas, mas de forma
inteligível, os Oráculos explicitam um princípio que será caro a Plotino e aos
neoplatônicos. Aliás, parece oportuno observar que, dentre as correntes do
Neoplatonismo, há que se distinguir entre aquelas que não abandonaram a tradição
racional e especulativa da filosofia grega (fundamentalmente a escola de Plotino),
daquelas outras que buscaram uma fusão entre a teurgia e a razão helênica (Jâmblico e a
escola de Atenas) e, finalmente, das que prestigiaram, abertamente, a teurgia, em
detrimento do elemento racional (Juliano, o Apóstata e a escola de Pérgamo).
De especial relevo é, outrossim, a concepção de “Tríade”, de berço
neopitagórico e algum desenvolvimento nos Oráculos. Deus é, nestes, concebido como
uma “Mônada triádica”, sendo, pois, a um tempo, uno e trino. Segundo tal acepção,
49
enquanto realidade, Deus é Uno, ao passo que, enquanto faculdade, Ele é trino, já que
Pai, Potência e Intelecto.
Giovanni Reale (1994c, p. 393), citando Pierre Hadot, assevera que a
organização triádica do mundo inteligível, recorrente entre os neoplatônicos, lança suas
raízes nos Oráculos Caldaicos. A influência neo-pitagórica também parece inegável na
idéia de Tríade, porquanto esta também pudesse ser concebida como o número interior
às idéias produzidas pelo Intelecto Supremo.
E o que dizer do caminho salvífico traçado pelos Oráculos Caldaicos? Deus, ou
a Mônada Triádica, não é alcançável pela mente racional, uma vez que esta opera em
termos de definição e classificação, enquanto a Ele não se aplicam quaisquer categorias.
Deus se faz acessível apenas através de uma união supra-racional, obtida através da
kenósis - do esvaziamento da alma - dos pensamentos afetos ao mundo sensível e finito.
Entretanto, tal faculdade supra-racional da alma, qual seja a de através do êxtase, unir-se
ou assimilar-se a Deus, sempre terá contornos mágicos, nos Oráculos, diferentemente do
que ocorria entre os neoplatônicos, que, imersos na herança grega, não a afastarão do
contexto da filosofia.
Com efeito, os Oráculos Caldaicos se fundam na prática da teurgia, que, no dizer
de Giovanni Reale (1994c, p. 395), “é a sapiência e a arte da magia utilizada para
finalidades místico-religiosas”. Tais escopos seriam, fundamentalmente, a libertação, da
alma, da instância corpórea e das vicissitudes que lhe são inerentes, propiciando-lhe,
assim, a união com o divino.
Dodds (2002, p. 294), com grande perspicácia, distingue a magia da teurgia,
esclarecendo que “enquanto a magia vulgar usa nomes e fórmulas de origem religiosa
para fins profanos, a teurgia usa os procedimentos da magia vulgar acima de tudo para
fins religiosos”. Estes procedimentos, segundo o referido helenista, apoiar-se-iam na
50
utilização de símbolos, visando a trazer a presença de uma divindade em um receptáculo
(consagração e animação de estátuas mágicas ligadas, simpaticamente, aos mundos
animal, vegetal ou mineral, acompanhada de invocações orais) ou no transe “de
incorporação”, mercê do qual a divindade fazia morada, temporariamente, em um
indivíduo.
Estas práticas partem da premissa de que, por vezes, mesmo a faculdade mais
elevada do ser humano pode não ser suficiente para, sozinha, conhecer e unir-se a Deus.
Daí a importância, no afã de libertar a alma, de associar a prática teúrgica com o logos
sagrado, isto é, ao pensamento mais refinado, a fim de que, então, unidos, alcancem o
seu nobilíssimo desiderato.
2.4 Síntese Conclusiva do Capítulo
O estudo do neoplatonismo e da gnose, seja em seus contornos gerais, seja
especificamente no que tange à problemática da salvação, é de ser levado a efeito sem
perder de vista o contexto histórico no qual vicejaram tais escolas de salvação.
Com efeito, consoante se buscou demonstrar no correr do presente capítulo, teve
lugar, no mundo antigo, a partir das conquistas de Alexandre Magno e o
enfraquecimento das cidades-estado gregas, uma mudança de mentalidade, que se
caracterizou pelo abandono do homo civicus, que retirava, da polis, a justificativa para o
seu viver, e o surgimento do homo interior, desapegado dos valores citadinos e dos
deuses antigos, um ser atormentado e confuso, que busca, no mergulho em si mesmo, a
superação das vicissitudes de sua existência.
Tendo Alexandria como encruzilhada de culturas, o mundo grego recebeu
notáveis influxos do Oriente, sobretudo na esfera religiosa, o que deu lugar a verdadeiro
51
sincretismo de crenças, assim como o surgimento de uma atmosfera propícia a uma
especulação de matiz mais espiritualizante.
A partir das derradeiras décadas da era pagã e os séculos inaugurais da era cristã,
já sob a égide do Império Romano, dá-se uma superação do imanentismo, do
materialismo e do fisicismo da época helenística, em prol de uma nítida preocupação
com a transcendência e o incorpóreo. Transcendência entendida não somente no seu
sentido físico, mas, sobretudo, no seu viés ontológico. O transcendente, assim, é o não-
físico, o não-corpóreo, o imutável, a suprema Inteligência e o Supremo Bem,
contrapondo-se, pois, ao material, ao sensível, ao empírico, ao devir, e por extensão, ao
mal.
A transcendência e o incorpóreo estão presentes nas correntes filosóficas e nas
escolas de pensamento e sabedoria do período referido, que, no dizer de Pierre Hadot
(1999, p. 223), “faziam culminar a filosofia numa ‘epóptica
13
, isto é, como nos
Mistérios, na revelação suprema da realidade transcendente”.
É no âmbito desta atmosfera de forte inquietação espiritual que têm lugar as
construções teóricas de Filo de Alexandria, dos médio-platônicos, neo-aristotélicos,
neo-pitagóricos, bem como aquelas presentes no Hermetismo e nos Oráculos Caldaicos,
cujos elementos se farão presentes em Plotino e entre os gnósticos, seja à guisa de
influência, seja como ponto de reelaboração e aprofundamento.
De fato, nos círculos neoplatônicos e gnósticos, se farão presentes muitos destes
elementos, a saber: a existência de uma dimensão não material no ser humano capaz de
captar o intelecto divino e se moldar a ele; a transcendência de Deus com relação ao
mundo; a busca, pela via da contemplação, bem como do viver virtuoso e do
13
Do grego epoptéia (contemplação dos mistérios) e epóptikós (aquilo que diz respeito ao mais elevado
grau de iniciação, vale dizer, à contemplação).
52
conhecimento de si próprio, da assimilação do ser humano ao divino; a hierarquização
do inteligível em hipóstases; o problema da revelação e da graça; as possibilidades da
razão humana de, por si mesma, conhecer Deus.
Plotino e os gnósticos, sensíveis aos reclamos espirituais do seu tempo,
reelaborarão estes elementos, na construção de suas soteriologias, que, inobstante
partícipes de um drama comum, mostrar-se-ão substancialmente diversas entre si. É
disso que buscaremos tratar nos capítulos subseqüentes.
53
3. PLOTINO E OS GNÓSTICOS, DAS AFINIDADES AO
CONFLITO, À LUZ DE SUAS IDÉIAS FUNDAMENTAIS
O estudo cronológico de composição das Enéadas parece permitir a conclusão de
que, até o irromper da chamada “polêmica antignóstica”, o pensamento de Plotino
guardava muitos pontos em comum com a gnose, em geral. De fato, tanto o licopolitano
como os gnósticos preocupavam-se, fundamentalmente, com a salvação da alma, ou do
“eu”, que se encontrava preso no cárcere da matéria. Ademais, nos tratados compostos,
por Plotino, antes do II, 9, vislumbra-se, tal qual nos escritos gnósticos, um acentuado
dualismo, a concepção do corpo como um mal, e da morte como libertação da alma;
além disso, a condenação do corpo, das coisas materiais, e um velado pessimismo
(PUECH, 1982, p. 144).
Entretanto, com o passar do tempo e talvez fruto de seu amadurecimento
intelectual e espiritual
14
, Plotino atenuou o pesado dualismo que antes o caracterizava,
transmudando-o para uma visão mais monista e, ao mesmo tempo, mais otimista da
vida. A matéria, por exemplo, neste contexto, deixou de ser má em si mesma, para ser
um pálido reflexo do mundo inteligível, que é inteiramente bom.
Destarte, quando Plotino, em 244 d C., se estabelece em Roma e começa a
ministrar as suas aulas, tem, dentre seus ouvintes e também interlocutores, um certo
número de gnósticos, os quais chamava de amigos, ou philoi. Plotino tinha consideração
por eles e admitia as intervenções dos mesmos em aula, tolerando, inclusive, as
interpretações particulares que os mesmos realizavam de Platão, particularmente do
Timeu. Refutava, seguidamente, os argumentos, por eles, desenvolvidos, mas sem que
14
Porfírio afirma, em sua Vita Plotini, que Plotino, ao menos durante os anos que ele, Porfírio convivia
com seu mestre, vivenciou quatro êxtases, isto é, atingiu o cume da trilha salvífica em quatro
oportunidades.
54
isso levasse a um desagradável rompimento. Neste cenário, anteriormente ao ano 263,
Plotino vai elaborando tratados (IV, 8, 4 e 8; III, 9, 6; IV, 4, 10 e 12) por meio dos quais
critica alguns pontos de certas teses gnósticas. A aludida refutação se torna sistemática e
a ruptura se faz completa com a elaboração dos quatro tratados que vieram a compor a
chamada “tetralogia antignóstica” (III, 8; V, 8; V, 5 e II, 9). Nas composições
posteriores – à exceção do VI, 7, aparentado ao II, 9 - alguns pontos são abordados, mas
sem o vigor presente na tetralogia. É o caso de II, 1, 4, III, 7, 6 e 13, III, 2, 1-3, 7 e 12,
V, 3, 12, I, 8, II, 3, 16 (PUECH, 1982, p. 144).
Plotino, após longo amadurecimento, decidiu contrastar fortemente os gnósticos,
não apenas por conta de divergências conceituais, mas porque, segundo Harder (apud
PUECH, 1982, p. 145), tinham, ambos os sistemas, em seu início, um “radical
parentesco”
15
. Isto não quer dizer, em absoluto, que Plotino tenha sido um gnóstico, mas
que, em seus primeiros tratados, são escutados ecos da gnose. De todo modo, no correr
de sua vida, foi, ele, discernindo o que lhe parecia equivocado, fantasioso e mesmo
hipócrita, nas elaborações e no viver gnósticos e, por conseguinte, se livrando das
influências que tais elementos, em um primeiro instante, haviam exercido sobre si.
3.1 Plotino e o Neoplatonismo
O Neoplatonismo, que tem, como figura exponencial, Plotino, supostamente
nascido em Licópolis, Egito, em 205 d. C., é, reiteradamente, considerado como uma
síntese do espiritualismo antigo (CLOTA, 1989, passim). O termo “neoplatonismo” foi
cunhado, modernamente, para distinguir a tradição platônica inaugurada por Plotino
15
Para tanto, cumpre ter em mente a semelhança entre o pensamento de Plotino e o do neopitagórico
Numênio de Apaméia, afinidade, esta, que alguns tinham mesmo como plágio (alegação que foi
combatida pelos discípulos de Plotino, sobretudo Amélio). Ora, segundo Dodds (apud PUECH, 1982, p.
146), o pensamento de Numênio tinha estreita afinidade com a gnose.
55
(205-270 d.C.) e atuante, no mundo antigo, até o século VI d.C., da chamada “Velha
Academia”, que teve lugar com os discípulos imediatos de Platão, e, ainda, do Médio
Platonismo, que integrou o período de recuperação do incorpóreo e do transcendente,
pós era helenística (Wallis, 1995, p. 1).
Longe de representar uma mera bricolage dos elementos teóricos trabalhados
pelas escolas que lhe precedam, o Neoplatonismo, ao revés, pode ser caracterizado
como uma suma original do pensamento antigo, de substrato teórico tão rico e proposta
de salvação tão poderosa, que influenciou, largamente, o seu porvir
16
. Conforme
assevera Lloyd P. Gerson (1996, p.13), apesar dos débitos com os pensadores que a
antecederam, a filosofia de Plotino não pode, a rigor, ser considerada eclética ou
sincrética, uma vez que, nas Enéadas, temas antigos são resgatados e desenvolvidos sob
o influxo de uma inspiração inteiramente nova.
O Neoplatonismo, efetivamente, trabalha elementos comuns ao pensamento de
Filo de Alexandria, dos médio-platônicos, dos neo-aristotélicos, dos neo-pitagóricos, do
Hermetismo, dos Oráculos Caldaicos, tendo albergado, ademais, em seus contornos,
noções ventiladas pelo estoicismo, o aristotelismo, o platonismo (por óbvio) e pelas
doutrinas de salvação que grassavam pelo Império Romano, na Antiguidade Tardia. De
Platão, os neoplatônicos haurem e reelaboram muitos conceitos, dentre os quais o de um
deus criador, demiurgo, bem como a doutrina das idéias e o papel da matéria no cenário
cósmico, muito embora a hierarquização do Ser viesse a ser plenamente concebida,
16
O tema atinente às influências do Neoplatonismo na história das idéias é vasto e transbordaria os limites
desta dissertação. Entretanto, cabe, apenas a título de ilustração, e sem pretender elaborar uma lista
exaustiva, registrar o impacto desta escola entre os teólogos e filósofos cristãos da Idade Média
(Agostinho, João Escoto Eriúgena, Pseudo-Dionísio, o Areopagita), assim como nos místicos renanos
(Mestre Eckart, Tauler e Nicolau de Cusa), no Renascimento (Marsílio Ficino, Giordano Bruno), na Idade
Moderna (Espinosa, Leibniz, Berkeley e os platônicos de Cambridge), e, em tempos mais próximos,
Schelling e Hegel; na contemporaneidade, cumpre citar Henri Bergson; já no mundo das letras, se fazem
presentes ecos neoplatônicos, na obra de Dante, bem como entre os românticos alemães, como Novalis;
alguns rastreiam traços do Neoplatonismo mesmo no nosso Guimarães Rosa.
56
apenas, por Plotino e sua teoria das três Hipóstases. Eram lidos, e comentados, no
âmbito da escola, sobretudo o Timeu, mas, também, a República, o Fédon, o Fédro, o
Banquete, o Teeteto, o Filebo, o Sofista, o Parmênides, dentre outras obras do mais
brilhante discípulo de Sócrates. Todavia, por obra do gênio de Plotino
17
, o
Neoplatonismo guarda, em seu seio, a semente da originalidade, porquanto tenha dado
um passo além, em comparação com os seus antecessores intelectuais, rumo ao
incorpóreo e a transcendência.
Com efeito, como assinala Émile Bréhier (1978, p. 169), o Neoplatonismo é,
essencialmente,
um método destinado a alcançar uma realidade inteligível e uma construção
ou descrição desta realidade. O mais grosseiro erro que se poderia cometer é
acreditar que essa realidade tem por função essencial explicar o sensível.
Trata-se, antes de tudo, de passar de uma região, onde o conhecimento e a
felicidade são impossíveis, para outra região onde são possíveis. A
semelhança, graças à qual se pode passar de uma à outra, posto que o
sensível é a imagem do inteligível, interessa menos pelo fato de explicar o
mundo sensível do que pelo fato de permitir elevar-se ao que é em si sem
relação ao mundo... O século III e os dois seguintes assinalam, no
paganismo, uma tentativa de captar a estrutura e as articulações desta
realidade. A filosofia desse tempo é um modo de descrição de paisagens
metafísicas para onde a alma se transporta por uma espécie de arrebatamento
espiritual
.
Maria Luisa Gatti (1996, p. 24-25), retoma as características fundamentais do
Neoplatonismo destacadas por P. Merlan, a saber:
A existência, no mundo inteligível, de uma pluralidade de esferas subordinadas,
hierarquicamente, uma à outra, a partir da mais alta, até o mundo sensível, as
quais existem no tempo e no espaço;
17
Para José Alsina Clota (1989, p. 13), é possível afirmar que, em certos aspectos, Plotino foi o metafísico
mais completo que já existiu; seu mérito teria sido, através das categorias tradicionais do espiritualismo
helênico, fornecer um fundamento metafísico às experiências psicológicas – de êxtase – que ele próprio
vivenciou.
57
A ocorrência de uma derivação da esfera mais baixa, com relação à mais alta,
tanto no nível implícito/explícito, quanto no de causa/efeito;
A ocorrência de uma derivação a partir da esfera mais alta de existência - de um
Princípio - que, apesar de ser causa de todo o ser, está além do ser, sendo,
ademais, superior a todo tipo de determinação do ser;
A designação, de tal princípio, como “Uno”;
O fato de o Uno estar além de toda a determinação e ser absolutamente simples;
O fato de que toda esfera inferior do ser implica em um aumento do número de
seres que contém e em uma maior determinação espaço-tempo;
O fato de que o conhecimento do primeiro princípio é radicalmente diverso do
de qualquer objeto;
A ênfase na tentativa de explicar por quê e como se dá a passagem do Uno para
a multiplicidade, assim como o papel da matéria nesta transição.
Giovanni Reale (apud GERSON, 1996, p. 25-26), ao se pronunciar sobre o
trabalho de Merlan, argumenta que, à luz das “doutrinas não escritas” de Platão,
percebe-se que as características acima já estariam presentes no pensamento
platônico. Tal observação se insere no âmbito das discussões travadas entre os
estudiosos, acerca da maior ou da menor proximidade entre a filosofia de Platão e o
Neoplatonismo de Plotino. Assevera Gatti, no artigo mencionado, que, enquanto em
alguns períodos da história, tenham sido, platonismo e plotinismo, reputados
idênticos, no século XIX disseminou-se, entre os estudiosos, uma nova percepção da
problemática, tendente a diferenciar, com ênfase, as duas escolas filosóficas. Nos
dias atuais, entretanto, novamente se está a privilegiar a aproximação entre ambas.
Assim, segundo Reale, o que verdadeiramente distingue o Neoplatonismo, da
58
Academia, é o fato de que, enquanto nesta última, a estrutura do real é explicada em
termos da bipolaridade entre dois princípios opostos – o Uno e a Díade - , naquele o
Uno é considerado o pináculo, o ponto mais alto, de tudo, segundo um determinado
tipo de monopolaridade, da qual toda a realidade deriva. Malgrado esta distinção
fundamental, cumpre não perder de vista a elaboração, por Plotino, da teoria da
processão, segundo a qual os diversos planos da realidade (hipóstases) derivam, um
do outro, a partir do mais alto, em direção ao mais baixo. Esta teoria se afigura
como uma novidade em relação ao platonismo anterior, tendo atingido, o seu pleno
desenvolvimento, com um discípulo de Plotino, Proclo. Outra concepção, do
Neoplatonismo, que se mostra inaugural é a dedução, da matéria, do inteligível, vale
dizer, a radical dedução, do mundo físico, a partir do mundo inteligível, o que faz,
aquele, não ter uma existência autárquica, ou seja, de per se. Típico do
Neoplatonismo é, também, um sentido muito proeminente da unidade de todas as
coisas, entendidas, todas elas, como manifestações do divino. Por último, a
“dissolução da ética na mística e a transformação do conceito de assimilação do
Divino no conceito de êxtase”, vale dizer, a submissão do estar no mundo ao
objetivo maior, qual seja o de retornar à origem (REALE, 1995, p. 184).
Anota, ainda, Gatti (1996, p. 24-25), que, comentando a obra de Merlan, outro
grande estudioso, Dörrie, entende o Neoplatonismo como uma fusão entre elementos do
pitagorismo, do aristotelismo e do platonismo, agrupados e reelaborados segundo um
viés original, somados a um novo elemento, de cunho místico-religioso, qual seja a
busca por um assimilar-se ao Uno, através da contemplação, que conduz ao êxtase
unitivo.
59
Para Reinholdo Aloysio Ullmann (2002, p. 95), por sua vez, “Neoplatonismo é
um conjunto doutrinal com expressão de forte sentimento religioso e tons de marcada
mística”.
Não se pode olvidar, neste contexto, o convívio conflituoso entre o
neoplatonismo, o cristianismo nascente e, sobretudo, a gnose, o que implica em
intercâmbio de idéias, ainda que mais no nível da divergência do que da convergência.
As divergências entre o neoplatonismo e a gnose, no que tange à problemática
da salvação e os temas que lhe são correlatos, serão mais bem examinados no curso
deste trabalho. Os embates com o cristianismo, por sua vez, fundam-se em
discrepâncias quanto a alguns pontos conceituais, elencados por Reinholdo Aloysio
Ullmann (2001, p. 300-301) e referidos abaixo. Embora o presente trabalho não tenha,
como objeto, as divergências entre o neoplatonismo e o cristianismo, afigura-se
oportuno, em rápida menção, trazer à baila tais pontos teóricos, eis que os mesmos nos
auxiliam a melhor compreender o pensamento neoplatônico, de forma geral. São eles,
pois:
A existência de apenas um meio legítimo para a aproximação do Uno ou o
conhecimento de Deus, qual seja o conhecimento (a filosofia potencializada, até
o máximo, pela ascese);
A salvação, via de conseqüência, é possível de ser obtida tão somente pelo
conhecimento, não pela revelação ou pela graça; não se trata de uma benesse
divina, mas do produto de uma evolução interior individual, através da qual o ser
humano, atingindo a purificação intelectual (virtude), logra entender a realidade
de Deus;
60
Afigura-se inadmissível, à luz da processão plotiniana, a existência de três
pessoas divinas consubstanciais, das quais nenhuma é a causa da outra e
nenhuma é ontologicamente superior à outra;
A alma é imortal e sujeita a reencarnações, não sendo cabível a ressurreição da
carne, por ser, o corpo, um óbice para a total libertação da alma;
A redenção de Cristo, ou de qualquer outro Ser superior, e a graça não são
necessários, já que Deus é, se por um lado, transcendente, por outro, imanente ao
homem, além de onipresente;
Não se concebe a creatio ex nihilo, a criação do mundo a partir do nada, visto
que o mundo é eterno (sempre existiu), não tendo sido criado por um ato
deliberado de vontade do Uno.
De todo modo, parece claro que o ponto nodal do Neoplatonismo é a busca pela
salvação do ser humano, expressa pelo retorno da alma ao seu lugar de origem. É o que
se depreende da Enéada I, 6, 7: “Há que se elevar novamente ao Bem, ao qual tende a
alma”.
O Neoplatonismo, na visão de WALLIS (1996, p. 4-6), inobstante traga, em seu
cerne, uma aproximação da experiência religiosa, não abandona o racionalismo grego;
antes, promove uma adaptação das categorias próprias do racionalismo helênico ao
mundo da experiência interior. Referido autor observa que isto se deve não somente à
introdução, na seara da filosofia, da experiência mística, porquanto ela já seja ventilada
nos escritos religiosos do período pré-neoplatônico, sobretudo em Filo de Alexandria e
no Hermetismo. Nada obstante, é importante notar que, assim como em Platão, a
purificação da alma, para Plotino, é alcançada, primariamente, pela filosofia, associada
à autodisciplina e ao regramento da conduta, sendo que, neste contexto, a razão abstrata
61
não tem valor por si, mas, tão somente, enquanto meio para o alcance da visão intuitiva
e da união mística. O passo decisivo, aqui, é a identificação, realizada, por Plotino, entre
realidades metafísicas e estados de consciência. Realmente, se, como nos revela Plotino,
tudo provém do Uno e nada lhe é estranho, isto torna possível um retorno ao mesmo
Uno, através do reconhecimento, no interior de cada um de nós, da presença do eu real,
ou alma, que, por sua vez, é de natureza divina. Neste cenário, o êxtase místico que nos
faz retornar ao Uno, não é, senão, a contraparte de um êxtase metafísico que faz brotar,
do Uno, uma série de manifestações, necessárias na processão das hipóstases e, todavia,
ilusórias, na conversão, no movimento de retorno a Deus (PUECH, 1982, p. 122).
O arco histórico do Neoplatonismo se situa entre a primeira metade do século II
d.C. e o ano de 529, quando o imperador Justiniano determinou o fechamento das
escolas de filosofia. O estudioso germânico Zeller propôs a existência de três
tendências a grassar no seio do Neoplatonismo, o que teria dado ensejo ao surgimento
de três escolas distintas: a primeira delas teria sido a escola de Plotino, de tendência
mais acentuadamente filosófica; a segunda seria a de Jâmblico (escola siríaca), de matiz
mais religioso; a terceira seria a escola de Atenas, uma fusão das duas outras. Já em
1910, outro grande erudito, Praecher, bradou contra a inadequação da divisão proposta
por Zeller, reputando-a demasiado hegeliana, já que alicerçada no esquema tese-
antítese-síntese. Praecher, ao revés, sugeriu a existência de seis escolas e três tendências
no seio do Neoplatonismo. Segundo esta nova divisão, que foi bem-sucedida à luz dos
estudos posteriores, a primeira escola neoplatônica teria sido a de Alexandria, fundada
por Amônio Saccas, provavelmente em torno de 200 d.C, estendendo-se, mercê da
atuação de seus membros mais ilustres – Plotino, Herênio, Orígenes (o pagão) e
Longino – até o fim da primeira metade do século III d.C. A segunda escola teria sido a
de Roma, fundada por Plotino, na capital do Império, em 244, e que floresceu, tendo
62
como membros destacados Porfírio
18
e Amélio
19
, na segunda metade do século III.
Jâmblico, por sua vez, teria sido o fundador, na Síria, pouco depois do ano 300, da
terceira escola, que, através de Teodoro de Asina, Sópatros de Apaméia e Dexipo,
floresceu até as primeiras décadas do século IV. A quarta escola, fundada, por Edésio,
discípulo de Jâmblico, em Pérgamo, teve, como expoentes, Máximo, Crisanto, Prisco,
Eusébio de Minda, Eunápio, o imperador Juliano, o Apóstata, e Salústio. A quinta
escola, chamada de Atenas, foi fundada, entre o final do século IV e os primórdios do
século V, por Plutarco de Atenas, tendo tido, como principal nome, Proclo.
Contemporaneamente, teve lugar a Segunda Escola de Alexandria, capitaneada por
Hipácia, Sinésio de Sirene, Hierócles de Alexandria, Asclépio, Olimpiodoro, dentre
outros, sobrevivendo até inícios do século VII. Ao lado destas, Giovanni Reale (1994c,
p. 540) aponta a existência dos denominados “neoplatônicos do Ocidente latino dos
séculos IV e V”, eruditos como Calcídio, Mario Vitorino, Macróbio, Marciano Capela e
Boécio, quase todos eles cristãos ou convertidos ao cristianismo. Vitorino e Boécio
empenharam-se em elaborar sínteses entre o platonismo e o cristianismo e, por conta
disso, tiveram importância na condição de intermediários entre a antiguidade e o
medievo.
Estas escolas, segundo Praecher, estariam submetidas a três tendências
principais, a saber: uma tendência especulativa – esposada por Plotino e seus discípulos
mais diretos - no bojo da qual mesmo a religiosidade tem um caráter marcadamente
especulativo, distante tanto da religião institucionalizada, quanto das práticas mágicas
ou teúrgicas; uma tendência simbiótica entre a tendência especulativa e a místico-
18
Porfírio, após uma grave crise depressiva, na qual cogitou matar-se, foi, por sugestão de Plotino, buscar
novos ares na Sicília, onde também acabou desenvolvendo as suas atividades filosóficas.
19
Amélio, que era conhecido, na escola, por sua singular operosidade, foi destacado, por Plotino, para,
juntamente com Porfírio, refutar, por escrito, as teses gnósticas então em voga, como aquelas ventiladas
nas “Revelações” de Zoroastro, Zostriano, Nicotéo, Alógenes e Mesos, dentre outras (Vita Plotini, 16).
63
religiosa-teúrgica, característica da escola de Jâmblico e da de Atenas; uma tendência
abertamente mágica-teúrgica, de claro desprestígio da especulação filosófica, verificada
na Escola de Pérgamo. Para Reale (1996, p. 542), entre os neoplatônicos alexandrinos,
assim como no Ocidente latino, prevaleceu uma tendência voltada à erudição.
3.1.1 Amônio Saccas, precursor do Neoplatonismo
De acordo com Giovanni Reale (1994c, p. 403), embora com Numênio de
Apaméia, o grande neopitagórico, se tenha alcançado o limiar do neoplatonismo, é
somente com Amônio Saccas, que tal escola filosófica se inicia.
Amônio Saccas
20
é uma das personalidades mais obscuras de toda a história da
filosofia grega. Tal como Sócrates, nada escreveu, comunicando, sua mensagem,
através da palavra viva que brotava da comunhão reservada entre mestre e discípulo.
Nasceu e cresceu em uma família cristã de Alexandria, vindo a abandonar, depois, o
Cristianismo. Floresceu no reinado de Cômodo (180-192), tendo levado uma vida
retirada, longe das láureas, ao lado de um pequeno número de seguidores, aos quais
ensinou que a filosofia é não apenas um exercício da inteligência, mas, também e,
sobretudo, um exercício de vida e uma ascese espiritual. Esta percepção de Amônio,
acerca da filosofia, terá grande repercussão em Plotino, tanto que a escola, deste último,
em Roma, caracterizava-se pelo clima “de recolhimento espiritual, onde as conversas, as
discussões e as meditações, até as mortificações, preparavam para uma iniciação que
deveria conduzir à vida em Deus” (BRUN, 1991, p. 19).
20
O termo “Saccas” derivaria, para alguns, do fato de Amônio ter trabalhado como estivador ou
“carregador de sacos” no porto de Alexandria, antes de se dedicar à filosofia. Para outros, o qualificativo
denotaria uma relação com o clã Sakhya, do norte da Índia, do qual proviera o Buda Sakhyamuni.
64
Embora Amônio Saccas não tenha gozado do status de celebridade em seu
tempo, certamente era portador de excepcionais atributos, tanto no nível intelectual,
quanto no espiritual. Se assim não fosse, um homem do porte de Plotino, que se
enfadara de inúmeros mestres da época, com ele não teria permanecido, como aluno e
discípulo, por longos onze anos.
Ainda nos dias atuais, a filiação espiritual de Amônio Saccas permanece um
mistério, divergindo, os estudiosos, fortemente, quanto a isto. Heinemann o vê como um
grande filósofo grego; para Seeberg, Amônio era um adepto do hinduísmo ou um
missionário hindu; Dörrie o considera um pitagórico capaz de realizar milagres;
Langerbeck, por sua vez, vislumbrou, no mestre de Plotino, um teólogo cristão. O
grande helenista Dodds, mais comedido, preferia qualificar Amônio Saccas como uma
enorme sombra (CLOTA, 1989, P. 50).
Malgrado isto, Amônio Saccas nos é apresentado, pelos testemunhos antigos,
conservados pelo neoplatônico Hierócles de Alexandria e por Nemésio, bispo de Emesa,
como tendo sido um filósofo que, a par de conseguir conciliar Platão e Aristóteles,
soube transmitir aos seus discípulos (dentre eles Plotino, Orígenes e Herênio, os mais
ilustres dentre todos), uma filosofia livre do espírito da polêmica vã e das vaidades
intelectuais. Ele teria operado esta purificação, na condição de theodidaktos, de alguém
instruído por Deus, e através de “um elevar-se divino ao que é verdadeiro na filosofia”
(REALE, 1994c, p. 407). Parecia, ademais, nutrir uma viva admiração pelos brâmanes,
sentimento, este, que, segundo parece, transmitiu a Plotino
21
(BRUN, 1991, p. 18).
21
Assevera Jean Brun (1991, p. 22), porém, que, no estado atual dos estudos, não é possível afirmar a
efetiva influência do Oriente sobre o pensamento de Plotino. Para ele, ainda que aproximações entre os
aludidos pensamentos sejam cabíveis, descabe falar, forçosamente, em influências daquele, neste.
Entretanto, parece ilustrativo o esclarecimento de Émile Bréhier (1999, p. 121-122): “segundo Estrabão, a
partir da época de Augusto, ter-se-iam estabelecido contínuas relações entre o mundo ocidental e a Índia,
por Alexandria, o Nilo e o Golfo Arábico. [...] Os curiosos não deixavam de informar-se sobre os
65
Josefina Maynadé (1970, p. 27), traça, poeticamente, um perfil do fundador do
Neoplatonismo, ao nos informar que
Amônio era um iniciado na ciência hermética e possuía a verdade das almas
despertas, por seu dom inato. A ave real de seu pensamento voava por
regiões siderais e contemplava, serena, o plano no qual se debatiam tantos
milhares de crenças, tantos fragmentos da mesma divindade mutilada. Ele
possuía o segredo da verdade antiga e moderna, mais velha do que o mundo
e eternamente jovem como a primavera.
Segundo a tradição antiga, Amônio fazia derivar toda a realidade a partir de
Deus. Ele aproveita a doutrina platônica do Deus artífice (que, não tendo sido gerado de
qualquer matéria pré-existente, governa a estrutura do universo visível e invisível),
dando-lhe tonalidades criacionistas
22
. Assim, basta a vontade de Deus para produzir a
subsistência das coisas, sendo que, através da união entre a natureza física e a realidade
incorpórea, Ele produziu um cosmos dotado de plena perfeição, a um só tempo duplo
(porque sensível e supra-sensível) e uno (REALE, 1994c, p. 407). Plotino se oporá a
este Deus que cria o mundo por um ato de vontade, mas defenderá, contra os gnósticos
(que consideravam o mundo como obra de um demiurgo mau), a idéia de um cosmos
perfeito.
O cosmos amoniano teria três planos hierárquicos: a instância das realidades
celestes e os deuses; a das realidades intermediárias, ou seja, aquelas constituídas pelas
naturezas etéreas (ou aéreas) e pelos anjos ou demônios bons, que serviam de intérpretes
e mensageiros das mensagens divinas para os homens; e a das realidades íntimas, a
saber, as almas humanas, os homens e os animais terrestres.
costumes e as idéias do seu país [a Índia]. [...] Os costumes dos brâmanes e dos ascetas do bosque
constituem um tema tratado extensamente”.
22
Amônio, nascido em berço cristão e, tendo vivido na mesma Alexandria de Filo, certamente conhecia a
doutrina da criação.
66
Ademais, Amônio advogava a incorporeidade da alma. Mais do que isso
entendia, ele, que a alma não se encontra, espacialmente, no corpo, como se este fosse
um mero recipiente. A alma tinha, com o corpo, uma relação de cunho ontológico, isto
é, na medida que o princípio (a alma) produz e governa o principiado (o corpo). Neste
sentido, a alma não está no corpo, mas age nele. Somente se pode admitir a assertiva “a
alma está no corpo”, no mesmo sentido da afirmação “Deus está em nós”, vale dizer,
enquanto Deus, princípio da qual derivamos, nos vivifica, rege e governa.
Observa, assim, Giovanni Reale (1994c, p. 409) que Amônio Saccas mostrou
ineditismo, em alguns pontos, com relação às concepções das escolas filosóficas de seu
tempo. Com efeito, Amônio teria sido portador de uma novidade, com relação aos
médio-platônicos, ao tentar unificar os diversos planos do ser, já que, segundo sua
concepção, o cosmos é, a um só tempo, duplo e uno; na hierarquia dos seres criados,
cada instância é causa da seguinte, havendo um primeiro princípio causador de tudo.
Com relação ao pensamento dos neo-pitagóricos, também teria sido portador de uma
concepção original, ao entender o processo de derivação da realidade como criação.
Porém, a maior reverberação do pensamento de Amônio nas estruturas do
edifício plotiniano, talvez tenha sido a doutrina da íntima união (ou hénosis) entre o
incorpóreo e o corpóreo. Segundo esta, a unificação do homem com o divino nada mais
seria do que a expressão de uma finalidade, de um telos, previsto pela Lei imprescritível
e maior, que governa toda a realidade.
Inobstante isso, o pensamento de Plotino não é uma mera derivação das
concepções de Amônio Saccas. As fontes antigas não registram, neste, duas teorias que
são capitais naquele: as doutrinas do Uno e do Nous. Ademais, Porfírio assinala, na sua
67
Vida de Plotino, que seu mestre “era personalíssimo e inovador na sua visão da doutrina
dos outros; de resto, no método de pesquisa, alinha-se ao espírito
23
de Amônio”.
3.1.2 Plotino, filósofo e místico
Plotino é descrito, por seu discípulo Porfírio, como alguém que se envergonhava
de ter um corpo; por conta disso, nada falava acerca de sua família ou de seu passado. A
posteridade somente veio a conhecer o seu rosto porque, à sua revelia, um dos maiores
retratistas da época, que freqüentara algumas de suas aulas, traçou, de memória, os seus
contornos faciais.
De todo modo, pelas informações que dele nos chegaram através de Porfírio,
sabe-se que Plotino nasceu em Licópolis, cidade próxima a Alexandria, no Egito, em
205 d.C. Em 233 d.C., após ouvir os ensinamentos de diversos mestres e eruditos da
época – e se decepcionar com todos eles – logra assistir a uma exposição de Amônio
Saccas, ao fim da qual, exclama: “Este era aquele que eu procurava”. Tocado pelos
ensinamentos e pela pessoa de Amônio Saccas, permanece, no círculo deste, por cerca
de dez ou onze anos, quando, em 242 d.C., desejoso de melhor conhecer a filosofia que
se praticava entre os persas e os hindus, engaja-se no séqüito do Imperador Gordiano,
que, à frente de um exército, rumava para a Pérsia, com o fito de combater uma
insurreição lá existente. No ano de 243 d.C., o exército imperial é derrotado, na
Mesopotâmia, e Plotino consegue, com dificuldade, se refugiar em Antioquia. Em 245
d.C., estando, provavelmente, já morto Amônio Saccas, Plotino funda uma escola
própria em Roma, cogitando, outrossim, acerca da fundação de uma cidade, a ser
23
Vale dizer, de liberdade intelectual, o que permitia, a Plotino, extrair, dos textos por ele estudados,
conclusões originais.
68
chamada Platonópolis, destinada à meditação e ao estudo, projeto, este, que jamais
logrou consumar. Em 247 d.C., ingressa, na Escola de Plotino, Amélio, antigo estóico,
que, por seu discernimento e sua grande operosidade, foi destacado por Plotino,
juntamente com Porfírio, para refutar, por escrito, teses gnósticas. No ano de 263 d.C.,
junta-se ao círculo plotiniano, Porfírio, natural de Tiro, na Fenícia, e provindo de
Atenas, onde estudara com Longino. Em 268 d.C., Porfírio, assolado por uma severa
melancolia, é aconselhado, por Plotino, a buscar refúgio no campo, o que o faz rumar
para a Sicília. Amélio, de sua parte, se muda para a Síria. No ano de 270 d.C., Plotino,
bastante enfermo, se retira para uma vila em Campânia, onde morre praticamente
sozinho, ao lado, apenas, de seu discípulo e médico Eustóquio.
A filosofia de Plotino é uma extensão do seu pensar e do seu agir: sem jamais
renegar o intelectualismo grego, tem, no ápice do seu sistema, o supra-intelectual, o
momento raro e extraordinário do êxtase
24
. Assim, pode-se dizer, com Brun (1991, p.
30- 34), que Plotino, na condição de filósofo contemplativo de um tipo de sábio que,
no isolamento e por meio dele, parte de si mesmo e das coisas, para ascender até o
Princípio Universal de todas as coisas tenha arquitetado uma “filosofia mística do
desvelamento”, da qual, é traço distintivo, o misticismo especulativo que lhe era
peculiar.
Como bem assinala Hadot (1999, p. 236):
O discurso filosófico de Plotino, para todos os níveis da realidade, conduz a
uma ascese, e uma experiência, interiores, que são o verdadeiro
conhecimento pelo qual o filósofo eleva-se para a realidade suprema,
alcançando, progressivamente, níveis mais e mais elevados e mais e mais
interiores da consciência de si. [...] Mas isso significa, para ele, que é
24
Que, na verdade, é uma “ínstase”, um voltar-se para as profundezas de si próprio, já que “o acesso ao
cimo se opera no mais profundo da interioridade” (BRUN, 1991, p. 83).
69
somente se tornando espiritualmente semelhante à realidade que se quer
conhecer, que se pode colhe-la”.
3.1.3 As Enéadas
O pensamento de Plotino foi sistematizado por seu discípulo Porfírio, em
cinqüenta e quatro tratados, dispostos em seis grupos, cada qual de nove tratados. Daí
porque a obra de Plotino recebeu o nome de Enéadas (ou grupos de nove tratados).
As Enéadas resultam de um agrupamento, realizado por Porfírio, de tratados
afins quanto à matéria tratada, não refletindo a ordem cronológica de sua composição,
tal qual levada a efeito por Plotino. As discordâncias do licopolitano, com relação aos
gnósticos que ele conheceu (provavelmente os sethianos) encontram-se expressas em
um grande libelo que foi cindido, por Porfírio, em quatro tratados distintos, quais sejam,
III, 8, V, 8, V, 5 e II,9, este último, intitulado “Contra os gnósticos”, se constituindo em
uma síntese de tais divergências.
Em homenagem ao didatismo, cumpre elencar as Enéadas e os tratados que as
compõem (QUILES, 1981, p. 15-16). Assim:
Primeira Enéada (tratados que se referem à ética):
Primeiro tratado: Sobre o animal e o homem; Segundo tratado: Sobre as virtudes;
Terceiro tratado: Sobre a dialética; Quarto tratado: Sobre a felicidade; Quinto tratado:
Se a felicidade aumenta com o tempo; Sexto tratado: Sobre o Belo; Sétimo tratado:
Sobre o Primeiro Bem e os demais bens; Oitavo tratado: Sobre a origem dos males;
Nono tratado: Sobre o suicídio.
70
Segunda Enéada (tratados que se referem à física,
sobretudo acerca do mundo e dos problemas que lhe são
comuns):
Primeiro tratado: Sobre o céu; Segundo tratado: Sobre o movimento do céu; Terceiro
tratado: Sobre o Influxo dos astros; Quarto tratado: Sobre a matéria; Quinto tratado:
Sobre a potência e o ato; Sexto tratado: Sobre a essência; Sétimo tratado: Da mescla
total; Oitavo tratado: Sobre a visão; Nono tratado: Contra os gnósticos
25
.
Terceira Enéada (tratados sobre o mundo e temas com ele
relacionados):
Primeiro tratado: Sobre o destino; Segundo tratado: Sobre a Providência, I; Terceiro
tratado: Sobre a Providência II; Quarto tratado: Sobre o daimon que nos tocou; Quinto
tratado: Sobre o amor; Sexto tratado: Sobre a impassibilidade dos incorpóreos; Sétimo
tratado: Sobre a eternidade e o tempo; Oitavo tratado: Sobre a contemplação; Nono
tratado: Considerações várias.
Quarta Enéada (tratados sobre a alma):
Primeiro tratado: Sobre a essência da alma, I; Segundo tratado: Sobre a essência da
alma II; Terceiro tratado: Aporias sobre a alma I; Quarto tratado: Aporias sobre a alma
II; Quinto tratado: Aporias sobre a alma III; Sexto tratado: Sobre a sensação; Sétimo
tratado: Sobre a imortalidade da alma; Oitavo tratado: Sobre a descida da alma no
corpo; Nono tratado: Se todas as almas são apenas uma.
25
Os títulos em negrito referem-se aos tratados que compõem a denominada “tetralogia antignóstica”.
Inicialmente, cuidava-se de um longo e único libelo no qual Plotino criticava algumas da idéias
professadas pelos gnósticos com os quais ele travou contato. Porfírio, ao organizar os ensinamentos de
seu mestre, na forma de Enéadas, desmembrou, o referido libelo, nos quatro tratados em destaque.
71
Quinta Enéada (tratados acerca da inteligência, bem como
da realidade que está além da inteligência):
Primeiro tratado: Sobre as três hipóstases; Segundo tratado: Sobre a gênese e a ordem
do que se segue ao Primeiro Princípio; Terceiro tratado: Das hipóstases que conhecem e
da transcendência do ser; Quarto tratado: Sobre o que procede do Primeiro Princípio;
Quinto tratado: Que os Inteligíveis não estão fora do Intelecto; Sexto tratado: Que
aquilo que transcende ao ser não pensa; Sétimo tratado: Sobre se há idéias dos seres
particulares; Oitavo tratado: Sobre a beleza inteligível; Nono tratado: Sobre o
Intelecto, as Idéias e o ser.
Sexta Enéada (tratados sobre o ser, os números, as idéias e
o Um):
Primeiro tratado: Sobre os gêneros do ser, I; Segundo tratado: Sobre os gêneros do ser
II; Terceiro tratado: Sobre os gêneros do ser III; Quarto tratado: Que o Uno está em
todas as partes I; Quinto tratado: Que o Uno está em todas as partes II; Sexto tratado:
Sobre os números; Sétimo tratado: Origem da multiplicidade das coisas; Oitavo tratado:
Sobre a liberdade e a vontade do Uno; Nono tratado: Sobre o Bem e o Uno.
Giovanni Reale (1994c, p. 425-426), estabelece seis eixos que perpassam as
Enéadas e em torno dos quais gravita o pensamento plotiniano, a saber:
A nítida distinção entre mundo sensível e mundo inteligível, ser corpóreo e ser
incorpóreo;
A teoria das Três Hipóstases, segundo a qual o incorpóreo é formado pelas três
hipóstases, quais sejam, o Uno, o Nous e a Psyché, ou Alma;
72
A teoria da Processão
26
das Hipóstases, através da qual o grau mais elevado
produz o mais baixo, sem se diminuir, apequenar ou empobrecer, daí decorrendo
que a segunda Hipóstase deriva da primeira, e a terceira provém da segunda;
A matéria sensível não constitui, por si mesma, um princípio subsistente, mas
derivado da última das hipóstases, daí decorrendo que o mundo sensível é
inteiramente deduzido do supra-sensível;
Tudo está no Uno, e o Uno está em tudo; igualmente, cada uma das hipóstases
inferiores está na superior, sendo produzida e sustentada por esta, de sorte que
não somente as hipóstases supra-sensíveis encontram-se unificadas, mas,
também, o mundo corpóreo e estreitamente envolvido pelo incorpóreo;
Já que tudo procede do Princípio Primeiro, nada lhe é estranho, disto decorrendo
ser possível o retorno ao mesmo Princípio, isto é, uma reunificação plena e total,
do homem, ainda em vida, com Ele, através da união mística e do êxtase; mercê
desta realidade, o ser humano pode, desprendendo-se do mundo exterior, entrar
nos abismos mais profundos de si mesmo, onde se encontra o Eu verdadeiro, a
alma (que, deriva do Espírito, o qual, por sua vez, deriva do Uno) e, assim,
retornar ao Princípio Primeiro.
26
Tal teoria é denominada, geralmente, “emanatismo”. Entretanto, para Giovani Reale (1994c, p. 525-
528), a metafísica plotiniana não pode ser assim designada, porque, no emanatismo: a) as coisas fluem da
substância do Primeiro Princípio, de modo que tal movimento implica no fluxo da própria substância de
tal Princípio, enquanto que, em Plotino, as hipóstases subseqüentes ao Uno não se mostram como um
fluxo da substância do Uno; b) em tal fluir da substância do Princípio, ocorre uma despotencialização
gradual e sucessiva da própria substância, de modo que, neste processo, embora o Princípio se mantenha
hígido e inexaurível, o fluxo vai perdendo a sua força, na medida em que se afasta do Princípio; já na
processão, tal qual a concebeu Plotino, as hipóstases não se mostram como substância despotencializada
do Uno, já que todas as coisas derivam e dependem da potência do Uno, não coincidindo, porém, com a
substância Dele; c) o fluir caracteriza-se como uma necessidade física, independente da vontade e da
razão; a processão, por outro lado, tendo em vista sua complexidade não se ajusta bem à condição de
mera “ação natural”, não implicando, todavia, em um ato de criação, nos moldes cristãos, mas em um tipo
de “necessidade” muito especial.
73
Neste rol de características fundamentais do pensamento plotiniano, emergem,
como criações realmente originais do licopolitano, a existência de três – não mais nem
menos – hipóstases. Isto porque, se por um lado, nos séculos I e II de nossa era, por
influência das escolas filosóficas que precederam o Neoplatonismo, já era usual a
estruturação do Inteligível em hipóstases, na época de Plotino, os grupos gnósticos
defendiam a existência de muitas destas, no âmbito da hierarquia do Incorpóreo; para os
valentinianos, por exemplo, havia não menos do que trinta hipóstases. Portanto, a
preocupação de Plotino não foi a de demonstrar a existência de uma hierarquia no
mundo superior (o que já era voz corrente na época), mas, sim, que as hipóstases eram
três (o Uno, o Nous e a Psyché) e não mais. A outra novidade trazida por Plotino foi a
teoria da processão, vale dizer, a explicação de como ocorre a derivação, de “cima” para
“baixo” das hipóstases, isto é, o modo pelo qual, da primeira hipóstase, procedem as
posteriores, e da última delas, provém o mundo sensível.
Afigura-se oportuno observar que a salvação da alma é o tema maior de Plotino,
já que esta é, para ele, a tarefa sublime a qual deve se dedicar o ser humano. A
epistrophê - o retorno ao Uno - é, assim, tratada, sob os mais diversos vieses no correr
das Enéadas e não apenas nos tratados que compõem a denominada “tetralogia
antignóstica”.
3.2 A Gnose e o Gnosticismo
3.2.1 A questão terminológica
O movimento filosófico-religioso que ora se está a estudar em contraposição ao
pensamento plotiniano, foi, até o século XVIII, denominado “gnose”. O termo
74
“gnosticismo”, por sua vez, foi cunhado em terras francesas, na centúria de 1700, para
designar, precipuamente, os sistemas gnósticos cristãos dos séculos II e III da nossa era.
Entretanto, a utilização de dois termos para qualificar, basicamente, o mesmo
objeto, teve o condão de causar confusões e problemas no âmbito da pesquisa
respectiva, de sorte que, modernamente, se buscou estabelecer, da forma mais nítida
possível, a diferença entre as duas denominações.
Em 1966, reuniram-se, vários estudiosos do tema, na cidade italiana de Messina,
no que ficou conhecido como o “Congresso de Messina, acerca das origens do
Gnosticismo”. Após o cotejo das diversas teses lá apresentadas, por diversos
especialistas, entendeu-se que, pelo termo “gnosis” dever-se-ia entender “um
conhecimento de segredos divinos, o qual é reservado a uma elite”, tendo, pois, um viés
esotérico, ao passo que o vocábulo “gnosticismo” poderia ser utilizado para se referir
aos sistemas gnósticos dos séculos II e III da era cristã. Segundo esta perspectiva, a
expressão “gnose”, mais ampla, englobaria o termo “gnosticismo”, mais restrito e
localizado; assim, o “gnosticismo” seria, apenas, uma forma particular da “gnose”.
Para Kurt Rudolf (1987, p. 57), entretanto, tal distinção não se afigura
suficientemente esclarecedora e significativa, já que ambas as denominações vêm
caminhando juntas no correr das pesquisas atinentes ao tema. Por esta razão, o grande
especialista alemão, prefere filiar-se à tradição germânica, que não distingue um termo
do outro. Neste diapasão, o vocábulo “gnose” seria a autodesignação de uma religião de
salvação da antiguidade tardia, enquanto que o “gnosticismo”, uma forma mais recente
daquela. “Gnose”, de todo modo, permanece como uma categoria histórica, utilizada
com vistas à compreensão de uma particular visão de mundo da antiguidade tardia.
Embora tenha havido diversos sistemas gnósticos, alguns elementos específicos
da gnose mostram-se recorrentes em todos eles, isto é, algumas idéias se repetem nas
75
variadas tradições. Foi com base nestes elementos comuns que, no aludido Congresso
de Messina, logrou-se estabelecer o mito central do gnosticismo, qual seja, a crença na
existência, no ser humano, de uma centelha, que provém do âmbito do divino e que,
neste mundo, se encontra submetida ao destino, ao nascimento e à morte. Esta chispa
divina deve ser despertada pela contraparte divina do “eu” humano para ser, finalmente,
reintegrada ao local de onde procede. Esta idéia, segundo Rudolf (1987, p.57), baseia-
se, sob o prisma ontológico, na concepção de uma “descida” do divino rumo às esferas
abaixo, sendo que a periferia do Pleroma (a reunião dos diversos éons, ou emanações do
Primeiro Princípio), periferia, esta, denominada, geralmente, Sophia ou Ennoia, viu-se
vitimada por uma crise, o que a fez criar este mundo, que será o palco da descoberta e
da recondução, ao Alto, da divina centelha, o pneuma ou espírito.
Segundo Antonio Piñero, José Montserrat Torrents e Francisco García Bazán
(2000, p. 33-34), a precisão terminológica é importante quando se busca penetrar no
pensamento gnóstico. Assim, para eles, a gnose é, no âmbito técnico da história das
religiões, um movimento religioso sincrético, que tem suas primeiras manifestações no
século I da nossa era e que floresce, com esplendor, no século II, sobretudo naquelas
versões que se relacionam com o cristianismo e o judaísmo. Esclarecem, ainda, tais
estudiosos, que o vocábulo “gnosis” é de origem grega, sendo tributário do verbo
gignósko, “conhecer”, significando, pois, “conhecimento”. Malgrado no grego clássico
e, em menor medida, na koiné, no grego vulgar, os vocábulos gnôsis e epistéme tenham
significado semelhante, no âmbito filosófico epistéme passou a designar o
conhecimento científico, oposto à simples opinião; o termo gnôsis, por sua vez, recebeu
o sentido de conhecimento enquanto oposição à ignorância, âgnoia. Já no cenário da
história das religiões, gnosis denota o conhecimento de algo divino que transcende toda
a fé, uma ‘ciência’ imediata e absoluta da divindade, ‘ciência’, esta, considerada como a
76
verdade absoluta; em síntese, a gnose seria o conhecimento perfeito, em contraposição
ao conhecimento ordinário. Da mesma raiz grega advém o termo gnóstikos, isto é,
aquele que conhece, o iniciado, e também o vocábulo gnostikói, utilizado para distinguir
os indivíduos portadores da gnose. Já o termo “gnosticismo” é moderno, tendo sido
cunhado, no século XVIII, para designar, de um modo especial, os sistemas gnósticos
cristãos que floresceram durante os séculos II e III da nossa era. Segundo os citados
autores, tal vocábulo pode ser equívoco, no âmbito das línguas européias, já que
passível de ser confundido com o termo “gnose”, que como já se pontuou, designa um
conjunto de idéias ou concepções religiosas que mantiveram, entre si, certa coerência, e
que aparecem como elementos constitutivos de certas religiões específicas do mundo
antigo, qualificadas de “gnósticas” ou “gnosticizantes”, conforme o grau de assimilação,
das mesmas, a tal conjunto de idéias. Do ponto de vista sociológico, a gnose
representaria um grupo minoritário, distinto do conjunto da sociedade à qual pertencia,
pelo fato de possuir um conhecimento superior, sobre conteúdos de matiz religioso. Em
suma, a gnose seria um conhecimento religioso reservado a uma elite, já que advindo de
uma revelação específica outorgada, pela divindade, ao chefe do grupo, ou através de
um sistema exclusivo de interpretação de certos livros tidos, previamente, como
sagrados, ou, ainda, como uma mescla dos dois casos. Neste contexto, a salvação estaria
reservada para poucos, os pneumatikói, ou homens espirituais, aos quais fora dado ter
acesso ao verdadeiro conhecimento; por sua vez, os psíquicos, isto é, aqueles ligados ao
mundo da psyché (elemento superior à matéria, mas não divino) e os hílicos ou ligados à
terra (da palavra hylé que, em grego, designa a matéria) estariam à margem da redenção.
Hans Jonas (1963, p. 32) aduz que o nome “gnosticismo” foi cunhado para
designar uma multiplicidade de doutrinas sectárias surgidas no interior do Cristianismo
ou ao redor dele, durante os primeiros séculos da nossa era, derivando do vocábulo
77
“gnosis”, que, em língua helênica, quer dizer conhecimento. A ênfase em tal
conhecimento como requisito para o alcance da salvação individual e, por conseguinte,
na necessidade de se vir a possuir referido conhecimento, é um traço comum a todos os
grupos gnósticos. É neste sentido que é possível falar-se em grupos, escolas, seita,
mitos, escritos, ensinamentos gnósticos e, por conseguinte, em religião gnóstica, em
geral.
Por sua vez, Henri-Charles Puech (1982, p. 214) não faz distinção entre os dois
termos, asseverando, todavia que, em grego, o termo “gnosis” reclama sempre um
genitivo, que explicite qual o objeto da “gnosis”, ou do conhecimento. Este objeto, nos
textos gnósticos, ora é Deus, ora um dos poderes de Deus, às vezes o verdadeiro nome
de Deus, ou, também, os mistérios de Deus. A gnose é, portanto, o conhecimento de
algo, vale dizer, de Deus ou de alguma propriedade divina, conhecimento tal que, uma
vez dado ao adepto, é imediato e absoluto, transcendente com relação à simples fé
(pistis). Além disso, não é qualquer conhecimento, mas o conhecimento verdadeiro e
profundo, adquirido por uma visão, pela revelação, pela graça e pelo kharisma,
apreendido por um ato místico e confiado a um hiéroslogos, um conhecedor do sagrado.
A gnose, portanto, se vincula a uma thea, uma visão ou contemplação, por si mesma
apoteótica, divinizante; complementarmente, é a um só tempo, consciência de nossa
natureza superior e, por conseguinte de nosso destino, além de ciência de salvação e
visão de Deus.
Nada obstante, de acordo com as conclusões a que chegaram os estudiosos, no
referido Colóquio de Messina, de 1966, o termo “gnose” deveria ser utilizado,
exclusivamente, quando para referir ao núcleo doutrinário do movimento gnóstico, ao
passo que o vocábulo “gnosticismo” estaria reservado para os sistemas gnósticos ou às
seitas filosófico-religiosas, quase todas elas cristãs ou judaicas, dos séculos I a IV da
78
nossa era, que tivessem, como base, tal núcleo doutrinário. Por esta esteira, inobstante a
divergência temporal, a ponderação de König e Waldenfels (1998, p. 249):
Para evitar confusão de conceitos, revela-se confiável a regulamentação
lingüística de Messina, baseada no método histórico e tipológico (1966):
Gnôsis...assinala um conhecimento de mistérios divinos reservado a uma
elite; gnosticismo...designa um grupo de sistemas do séc. II/III d.C. Gnóstico
deveria permitir que se reconhecesse a relação com um dos substantivos ou
então deveria ser substituído por termos precisos.
3.2.2 O surgimento da Gnose, enquanto proposta de salvação
No curso dos séculos, teorias antagônicas vêm sendo apresentadas, pelos
estudiosos, acerca das origens da gnose. Hans Jonas (1963, p. 33) argumenta que os
primeiros Padres da Igreja, assim como Plotino, destacavam a influência do platonismo
e das filosofias da época helenísticas – embora não corretamente apreendidos pelos que
se diziam gnósticos - na formação da gnose. Modernamente, diz ele, os eruditos têm
observado a existência de elementos não somente gregos, mas babilônicos, egípcios,
iranianos, judeus e cristãos, nos tratados gnósticos, o que sugere uma origem híbrida do
movimento gnóstico. Jonas (1963, p. 33) nos adverte, entretanto, que, embora a gnose
pareça ser fruto de um sincretismo, nenhuma das teorias formuladas para estabelecer a
origem da mesma afigura-se conclusiva. Ademais, ela não pode ser tida como uma mera
fusão de elementos oriundos de diversas tradições, desprovida, pois, de uma essência
autônoma.
Henri-Charles Puech (1982, p. 197) observa que os escritos antigos revelam a
presença, da gnose, inicialmente, na Samaria e na Ásia Menor, sobretudo na Síria. Tal
constatação deflue, ainda, dos primeiros grandes mestres gnósticos, a saber: Simão, o
79
Mago, natural de Gitta, na Samaria; Menandro, de Capparetea, igualmente na Samaria;
Sartornil, de Antioquia; Cerinto, originário da Ásia Menor e Cerdón, nascido na Síria.
Entretanto, alguns entendem que a gnose teria nascido no Egito, outros na
Babilônia. A primeira hipótese, levantada por Amélineau e Reitzenstein (PUECH, 1982,
p. 220), não conta com muitos partidários, uma vez que, fundada em elementos muito
exteriores ao âmago da problemática, relacionava a gnose com o hermetismo,
vislumbrando uma influência egípcia nas doutrinas da emanação, do Pleroma e da
derivação dos éons em pares de divindades masculinas e femininas. A segunda hipótese,
esposada por Kessler e, sobretudo, por Anz, em 1897, mostrou-se mais sólida, ao
apontar a ocorrência, nos variados sistemas gnósticos, de um tema comum e também
presente na religião astral dos babilônicos, a saber: a ascensão da alma através dos sete
céus e pelos guardiões dos sete planetas. Todavia, desde logo se argumentou que,
enquanto na religião babilônica, os deuses planetários eram deuses superiores, na gnose
são, eles, considerados de natureza inferior e maléfica; no cenário gnóstico, portanto,
tais deuses são inferiores a entidades mais perfeitas do que eles, devendo-lhes
subordinação. Como explicar, pois, tal contraste? Segundo Reitzenstein e Bousset
(PUECH, 1982, p. 221), tal cisão remete ao iranismo, por força da conquista da
Babilônia pelos persas, crença, esta, mesclada com antigas religiões da Ásia Menor e da
Síria, o que se depreende da semelhança entre a Mãe, personagem central dos mitos e
sacramentos gnósticos, e a Afrodite síria, a Astarté fenícia, a Ishtar babilônica e a
Anahita persa. O fato é que, com a dominação persa, os deuses babilônicos,
devidamente vencidos, cederam lugar a Ahura Mazda, que seria, provavelmente, na
visão de tais eruditos, o protótipo do Deus superior e desconhecido, da gnose. Não
bastasse, a doutrina da Queda e a concepção radicalmente pessimista do mundo,
encontradiços nos sistemas gnósticos, supõem um dualismo extremado, entre Luz e
80
Trevas, presente na religião persa. Outra semelhança parece haver entre a tríade
gnóstica constituída pelo Pai (Arkhanthropos), a Mãe e o Filho (Anthropos), e a trindade
iraniana formada por Ahura Mazda, sua esposa Spenta Armaiti, e seu filho Goyomart.
Mesmo a narração gnóstica da Queda parece remontar a um mito iraniano, segundo o
qual o Homem ou sua contraparte feminina, a Psyché, caía na matéria e se via,
temporariamente, preso à condição terrena. Além disso, há similaridades entre a teoria
das hipóstases, ou da criação dos éons, e a dos Amahraspands; por fim é de se notar as
afinidades entre o culto de Mitra e o caminho ascensional da centelha divina, de planeta
em planeta, presente no mito gnóstico.
O problema das origens da gnose, para Kurt Rudolf (1987, p. 275) é um dos
mais espinhosos da história das religiões. Segundo os Pais da Igreja, os primeiros
gnósticos teriam vindo do Oriente, mais precisamente da Samaria-Palestina, sendo, pois,
a mesma, tributária da tradição bíblica judaica. Com efeito, os tratados coptas
descobertos em Nag Hammadi, no Egito, em 1945, vêm confirmando a tese do
surgimento do gnosticismo nas bordas do judaísmo. Isto é posto a claro quando se
percebe que, nos aludidos textos, muitas personagens do Antigo Testamento, como
Adão, Seth, Caim, Sem e Noé, são tidos, pelos gnósticos, como seus ancestrais. Mesmo
a notória desvalorização do Deus criador judeu, realizada pelos gnósticos, em favor do
“deus desconhecido”, não teria o condão de mascarar a aludida conexão, já que, de todo
modo, estaria presente, in casu, o monoteísmo judaico (RUDOLF, 1986, p. 277).
81
Os tratados gnósticos são, normalmente, intitulados “apocalipses”
27
ou
“revelações”, o que também pode sugerir uma conexão entre a gnose e a tradição
judaica, embora as diferenças entre tais tradições não possam ser postas de lado. Os
“apocalipses” e as “revelações”, no âmbito do judaísmo, datam do século II a.C., a
começar com o livro do profeta Daniel, e se caracterizam pela crença em um iminente
fim do mundo. Esta tendência escatológica inclui uma visão de mundo dualista e
pessimista, segundo a qual a presente época está destinada a sucumbir e dar lugar a um
tempo de redenção. Enquanto isto não ocorre, o mundo é governado pelo demônio e por
suas potestades, sendo que, somente o conhecimento dos mistérios de Deus garante a
salvação. Este conhecimento, todavia, está acessível somente aos iniciados, não ao
homem comum, e, geralmente, é obtido, pela revelação, em meio a viagens pelas esferas
superiores. É típica, pois, desta visão de mundo, a formação de comunidades
escatológicas de salvação, seja a do “verdadeiro Israel”, seja a dos pneumáticos, ou
espirituais, dentre os gnósticos. Neste cenário, Deus e o mundo estão em oposição; as
leis do mundo não merecem ser respeitadas, já que, nele, nada está em ordem.
Duas outras tradições religiosas também se revelam importantes quando se
busca perscrutar as origens da gnose: a iraniana, ou persa, e a greco-helenística. De fato,
a tradição apocalíptica, por exemplo, não teria tido lugar sem a contribuição das idéias
27
Apokalypsis (gelyona, em siríaco) designa, em geral, um escrito de um gênero bem determinado,
construído sobre um padrão esquematicamente comum, e que responde, por sua estrutura e suas fórmulas,
a um tipo convencional: em circunstâncias excepcionais, um Revelador desvela, a um vidente, ou a um
pequeno grupo de adeptos privilegiados, mistérios sublimes, verdades que ultrapassam o entendimento
comum. Tais revelações devem ser mantidas em segredo, ou mais exatamente, não devem ser
transmitidas senão a inteligências puras, a iniciados, ou a discípulos discretos e capazes de fazer, delas,
apenas um uso santo” (PUECH, 1982, p. 127). Na Vita Plotini, 16, Porfírio nos informa que seu mestre
Plotino insurgiu-se contra cinco “apocalipses” gnósticos então em voga: o de Zoroastro, o de Zostrianos,
o de Nicoteo, o de Alógenes e o de Mesos. Destes, Zostrianos e Alógenes integram, certamente, a
Biblioteca de Nag Hammadi, descoberta por um camponês, no Egito, em 1945. Já o apocalipse de Mesos
seria, para alguns, a parte final do Alógenes. Puech (1982, p. 159) conclui, pois, serem duas, e não três, as
“revelações” dos sethianos, contrastadas por Plotino, e que se encontram na Biblioteca de Nag Hammadi.
82
religiosas presentes no zoroastrismo iraniano, notadamente no que pertine às noções de
julgamento escatológico, ressurreição dos mortos, a disposição das eras e o dualismo. A
influência iraniana mais direta, na gnose, pode ser encontrada entre os mandeanos e os
maniqueus, por conta do forte dualismo (luz e trevas, Deus e o demônio, bem e mal) tão
presente nestas escolas. Por seu lado, não é de se olvidar a influência da filosofia grega
na gnose, mormente por seu individualismo e universalismo. Ademais, é de se lembrar
que Antioquia, na Síria - onde tem lugar a formação das primeiras comunidades
gnósticas, bem como Alexandria, onde o pensamento gnóstico conheceu seu maior
refinamento - eram grandes centros irradiadores da cultura helenística e judaica. Aliás,
os sistemas gnósticos, que se desenvolveram em Alexandria, a partir do século II d.C.,
desempenharam um importante papel de ligação entre o Médio-platonismo e o
neoplatonismo. Neste cenário, figuravam como temas recorrentes, tanto da especulação
filosófica, quanto da gnose: Deus, a alma, o demiurgo, o “deus desconhecido”, a gênese
do mal, a queda da alma e o seu retorno à origem, o destino e a liberdade, o que denota
a imersão, de ambas as tradições, em um clima espiritual semelhante, no qual sobreleva
a busca pela salvação. De fato, o dualismo corpo e alma, espírito e matéria, Deus e o
mundo, tão característico do platonismo em geral, exerceu considerável importância na
gnose, malgrado, para Plotino, a interpretação que os gnósticos realizavam de Platão
fosse incorreta e mesmo desvirtuada.
É possível, outrossim, rastrear elementos da gnose no Hermetismo, bem como
nos cultos de mistérios que, surgidos em tempos anteriores, grassaram, também, no
período helenístico, e, mesmo no orfismo, tradições, estas, cujas características
fundamentais já foram objeto de análise neste trabalho.
Até o momento, entretanto, não há textos específicos que permitam, aos
estudiosos, fazer derivar, com certeza, o conjunto do ideário gnóstico, de qualquer
83
religião antiga. Por esta razão, não há consenso, entre os especialistas, quanto à
conceituação da gnose: para Harnack, ela é uma reelaboração do cristianismo primitivo
com esquemas mentais helênicos; segundo Mosheleim e H. Ch. Puech é uma
orientalização do cristianismo; já para Schaeder, a gnose é uma helenização das
religiões orientais antigas; de acordo com Leisegang, trata-se de uma degradação da
filosofia grega; por sua vez, Reitzenstein, Bousset e Widengren a consideram uma
forma de religiosidade iraniana, centrada em um mistério de redenção, que se expandiu,
durante o helenismo, por todo o Mediterrâneo; por fim, Quispel a tem como uma
variedade de um judaísmo sincrético mitológico-dualístico (PIÑERO; TORRENTS;
BAZÁN, 2000, p. 97).
Segundo os mesmos Piñero, Torrents e Bazán (2000, p. 97-98), as idéias
gnósticas fundamentais hão de ser buscadas tanto no mundo indo-iraniano, como no
grego, bem como em certas concepções básicas da mentalidade judaica da época
helenística. Neste diapasão, podem ser arrolados como motivos e impulsos ideológicos
que se mostraram coadjuvantes na construção das idéias fulcrais da gnose, os seguintes:
a escatologia presente na Apocalíptica judaica; os mitos de salvação presentes nos
cultos das religiões de mistério; as concepções sapienciais judaicas sobre a sabedoria
personificada e a possibilidade de conhecimento da divindade, tal como aparece em
certos escritos de Qumrán; as doutrinas órfico-pitagóricas acerca da dualidade essencial
do ser humano e a transmigração das almas; a difusão do método de exegese alegórica
dos textos sagrados, sobretudo por Filo de Alexandria; a popularização das doutrinas
aristotélicas sobre as enteléquias
28
; a especulação iraniana sobre as forças espirituais
atuantes nas esferas do divino e do humano, a concepção cristã da figura do Redentor.
28
Enteléquia é, segundo Aristóteles, o ato final ou perfeito, a realização acabada da potência
(ABBAGNANO, 2000, p. 334).
84
Sem embargo, a gnose, no cenário da história das religiões, mostra-se como uma
atmosfera ou uma disposição espiritual que alberga certas idéias básicas, sem que, no
entanto, estas a possam caracterizar como uma religião independente.
3.2.3 As idéias fundamentais da Gnose
Conforme antes observado, os estudiosos reunidos em Messina, em 1966,
lograram identificar, em meio às variadas escolas gnósticas, alguns traços comuns a
todas elas, agregados no chamado “mito fundamental” da gnose, a saber, o fato de que
há, no ser humano, uma centelha divina, oriunda do mundo superior e que, por conta de
uma queda, encontra-se, a esta altura, submetida ao destino, ao nascimento e à morte,
devendo, pois, ser despertada pela sua contraparte espiritual para ser, finalmente,
restituída à sua condição original.
Em consonância com este mito central é possível trazer à baila os pontos
característicos da gnose, elencados por Kurt Rudolf (1987, p. 57-59), a saber:
Uma visão dualista com um fundo monista, já que, concorrem, na gnose, a um
só tempo, a forte separação luz/trevas, Deus/mundo, Bem/Mal, e a idéia
monista da centelha divina presente no homem e que deve ser reconduzida à sua
origem;
A idéia da cosmogonia, isto é, da criação do mundo como fator explicativo da
condição atual do homem, já que, se o planeta que habitamos é produto da
operosidade de um demiurgo mau (antidivino, por excelência), nossa condição
somente poderia ser a de desterrados de Deus e prisioneiros da carne;
85
A doutrina gnóstica da redenção, segundo a qual a salvação do ser humano
somente é possível quando, por um ato de Deus, ou através da intercessão de
seres redentores, é aberto um caminho através do qual a centelha divina pode
escapar da prisão do mundo, empreendendo uma viagem por esferas superiores
da realidade;
A doutrina gnóstica das coisas finais (ou escatológica), estreitamente ligada à
sua cosmogonia e à sua soteriologia, consistindo, todavia, não somente no
resgate da chispa divina no homem, mas, albergando, também, um sentido de
libertação cósmica;
A existência de comunidades gnósticas, separadas do seu entorno social, de
modo a demonstrar que o verdadeiro conhecimento estaria reservado a uma
elite.
O drama mítico gnóstico, de acordo com Bentley Layton (2002, p. 13-18),
malgrado as variações de detalhes e estrutura apresentadas pelos diversos sistemas,
ostenta um enredo principal, dominado por uma cosmogonia (criação do Cosmos) e
uma antropogonia (criação do homem), e um enredo secundário, que toca à perda e à
recuperação da centelha divina encarcerada na matéria.
No enredo maior, narra-se, em um primeiro momento, a expansão de um
solitário primeiro princípio – Deus – em um universo não físico, ou espiritual. Esta
fonte originária é onipotente, perfeita e inefável, estando, pois, em consonância com o
discurso filosófico presente no platonismo do século II d.C. Segundo o mito gnóstico,
este primeiro Ser, por razões insondáveis, através de um transbordamento de si mesmo,
emite uma hipóstase, um segundo ser, menos perfeito do que Ele, chamado pelo nome
86
não grego Barbeló
29
, bem como leva a efeito a criação de vários outros seres,
denominados éons
30
, através de sucessivas emissões, dentre os quais “os quatro
luminares”, Armozel, Oriel, Daveitai e Elelet, que são, a um só tempo, domínios eternos
e atores no cenário cósmico. Segue-se, a este primeiro impulso, a criação do universo
material, levada a efeito por um artífice, um demiurgo, cujo nome é Ialdabaoth ou
Yaldabaoth, o artesão que, com a matéria, constrói o Universo, copiando modelos
presentes na instância espiritual. Este universo material é constituído pelas estrelas,
pelos planetas, pela Terra e pelo inferno. Posteriormente, dá-se a criação, por Sophia,
auxiliada por éons superiores do mundo espiritual, do primeiro casal – Adão e Eva – e
de seus filhos, dando início à raça humana. De Seth, um dos filhos de Adão, se origina a
raça dos gnósticos. Ato contínuo tem lugar a história subseqüente da raça humana, no
bojo da qual se dá o envio de um salvador para despertar a humanidade gnóstica, através
da gnose - o conhecimento de si mesmo e de Deus, apto a libertar as almas da
escravidão do corpo material e do jugo dos malévolos governantes do mundo.
O enredo menor, por sua vez, também se processa em quatro fases: na primeira
delas, retrata-se a expansão do poder divino com vistas ao preenchimento do universo
espiritual; segue-lhe a perda de algo deste poder para um ser não espiritual –
Ialdabaoth; em continuidade, tal poder é transferido, por tal ser, a uma parcela da
humanidade, os gnósticos; por fim, dá-se a recuperação gradual, pelo divino, do poder
antes perdido, na medida em que as almas gnósticas são concitadas, ao caminho de
volta, por um salvador, e retornam a Deus.
29
Os termos, Barbeló ou Barberó, lembram as palavras egípcias utilizadas para designar “emissão”,
“projétil” ou “grande”, o que acabaria, no contexto gnóstico, por traduzir o sentido de “grande emissão”.
30
Éons, do grego “aiones”, que significa “domínios”, “entidades”, “eras” ou “domínios eternos”; na gnose
são, também, lugares, extensões de tempo, e, ainda, princípios abstratos como “providência”, “vida
eterna”, “incorruptibilidade”, “sabedoria”, etc.
87
A perpassar toda a gnose, está, por conseguinte, a busca da salvação pelo
conhecimento, não o conhecimento intelectual, mas aquele cuja intenção precípua é
contemplar o objeto conhecido e se fazer uno com ele. O objeto deste conhecimento é
Deus em si mesmo, absolutamente transcendente, ou tudo que Dele deriva. Conhecer,
nesse contexto, significa ser e atuar, dentro dos limites humanos, quanto a este divino
objeto. Conhecer, via de conseqüência, implica salvar-se de todo o mal no qual pode
estar imerso aquele ao qual foi concedido possuir este saber (PIÑERO; TORRENTS;
BAZÁN, 2000, p. 39). Não se trata de um processo racional ou emocional, mas de uma
tomada de autoconsciência, proporcionada, ao gnóstico, por um poder espiritual
(geralmente o Pleroma); por conta desta situação, conhecida, pelos estudiosos, como o
conceito do salvador-salvandus, é dado ao homem recordar-se de si mesmo e alcançar a
salvação (KÖNIG; WALDENFELS, 1998, p. 250).
3.2.4 Os sethianos, contemporâneos e prováveis antagonistas de Plotino
31
Desde a metade do século I d.C. teve lugar a difusão de seitas gnósticas, a partir
da Síria e da Palestina, em direção ao Ocidente, mais especificamente, à região costeira
da Ásia Menor e da Grécia, alcançando o Egito (Alexandria) e ao final, a capital do
Império, Roma. A maior parte da literatura gnóstica conhecida, inclusive os Tratados de
Nag Hammadi, data do século II, quando, ademais, floresceram as seitas gnósticas
31
Inobstante alguns como Ulmann (2002, p. 101), asseverem que os gnósticos conhecidos por Plotino e
cujas idéias foram contrastadas por ele, teriam sido, além dos sethianos, os valentinianos, certo é que, dos
cinco “apocalipses” nomeados na Vita Plotini, 16, os dois efetivamente presentes na Biblioteca de Nag
HammadiZostrianos e Alógeno – são de criação sethiana. As idéias valentinianas, por certo, foram
conhecidas por Plotino, seja por conta da estatura intelectual de Valentino, seja porque este último
ensinou, em Roma, em princípios do século III, gozando de grande prestígio até que o seu sistema foi
condenado pela Igreja. Destarte, sem negar o conhecimento, por parte de Plotino, das concepções
valentinianas, esta pesquisa optou por privilegiar, no curso do trabalho, as idéias oriundas da escola
sethiana, sem, entretanto, na medida do necessário, recorrer a outros sistemas para explicitar conceitos
importantes à compreensão da temática da salvação entre os gnósticos.
88
mencionadas pelos heresiologistas, tais como a dos ofitas, dos cainitas, dos naassenos,
dos sethianos, dos valentinianos, dentre outras. Emergem, como grandes nomes do
gnosticismo de então, Basilides, Isidoro, Marcion, Cerdón, Apelles e Valentino, autores
e propagadores de sistemas que se aproximaram do Cristianismo nascente e foram
combatidos, pelos heresiologistas, como um grande perigo para a nova fé. Não há
espaço, aqui, para aprofundar os elementos centrais destas escolas e nem, tampouco,
isto parece necessário, porquanto tenha, Plotino, segundo Porfírio, se insurgido contra
os “apocalipses” de Zostrianos, e de Alógenes, presentes nos escritos de Nag
Hammadi, e de apontada autoria sethiana.
A escola dos sethianos ou arcônticos merece, destarte, especial relevo, já que,
provavelmente, foram de sua construção os referidos tratados, com os quais o
licopolitano polemizou
32
. Segundo H. Ch. Puech (1986, p. 123), os gnósticos
pertencentes a este sistema atribuíam um grande papel aos “arcontes” – planetários e
outros – e faziam de Seth o personagem principal de seu mito. Para eles, Seth era um
Alógeno, um estrangeiro com relação ao mundo, sendo que seus sete filhos também se
chamavam allogéneis, mesma designação abraçada pelos pneumatikoi, ou espirituais,
membros da seita, que, de igual modo, se julgavam descendentes de Seth.
Característica desta escola gnóstica é a multiplicação dos níveis ou extratos, no
âmbito do processo de “descida”, o descensus ad inferiora, da divindade. Não há, aqui,
uma distinção substancial ou hipostática entre os sucessivos “níveis” da divindade. Há,
com efeito, um primeiro extrato ocupado pelo sujeito divino - que recebe o nome de
Deus ou o Espírito - em sua absoluta transcendência. Segue-lhe um segundo extrato,
formado pelos éons superiores femininos; o sujeito deste nível recebe, em quase todos
32
Aqueles nomeados na Vita Plotini, 16.
89
os escritos sethianos, um nome feminino, qual seja, Barbeló
33
. Tal personagem
feminino, Barbeló, é dotado das condições necessárias para desempenhar o seu papel de
princípio dos extratos inferiores, bem como de princípio ou causa remota do Universo.
Barbeló é portadora de disposições abstratas ou éons, que variam de número: nos
tratados Zostrianos e Alógenes (que serão analisados no correr deste trabalho), o
número de éons é três, a saber, Existência, Beatitude e Vida. Estes éons, em conjunto
com aqueles outros do extrato seguinte (os éons masculinos) constituem o Pleroma
superior. O terceiro extrato, como já se adiantou, é constituído pelos éons superiores
masculinos, que se estabelecem em estreita correlação com os éons femininos, do
extrato anterior. No Zostrianos e no Alógenes, as três disposições femininas do segundo
extrato constituem o substrato metafísico sobre o qual os éons masculinos do terceiro
extrato recebem as suas formas, configurando, assim, os três éons individuais: o Oculto
(Kalyptós), o Primeiro Manifestado (Protophanés) e o Autoengendrado (Autogenés).
Este último foi investido, pelo virginal Espírito invisível, de preponderância sobre as
demais potestades, razão pela qual é chamado, pelos sethianos, de arconte principal dos
seus éons e anjos (Zostrianos, 19, 6-26). O Autogenés atua por meio de quatro éons,
denominados “os quatro luminares”. Os éons do segundo e do terceiro extrato,
configuram, em conjunto, o Pleroma superior, que, em alguns textos, é objeto de uma
queda, por conta de uma deficiência (Zostrianos, 81,6; 9, 16-17; 27, 9-12; 10, 7-9), sem
que isso, todavia, configurasse um “pecado dos éons”, tal qual o concebia uma outra
escola gnóstica, a dos valentinianos. O quarto extrato é formado pelos éons do Pleroma
inferior – os já referidos luminares - que, em número de quatro, recebem os nomes de
Armozel, Oriel, Daveitai e Elelet, sendo neste nível, também, que se dá a aparição do
33
De acordo com o magistério de Piñero, Torrents e Bazán (2000, p. 238), barbeló é um nome semítico,
de etimologia não clara. Talvez derive do hebraico arbáh (quatro), de modo a designar a tétrada divina
(Harvey), ou advir do aramaico balbal (coração), com o sentido de “espírito que o coração resplandece”
(Tardieu), ou, ainda, do aramaico bar Baal, isto é, “o filho do Senhor” (Quipel).
90
paradigma inteligível do ser humano, o Homem Primordial. O quinto e último extrato é
ocupado pelo éon Sophia ou Pistis (a Sabedoria), identificado, por vezes, com o último
éon de Elelet, que protagoniza um momento de ruptura com a divindade e que tem a
função de criar o Universo (em verdade, Sophia é a mãe do Universo). De acordo com o
tratado Zostrianos, Sophia é aquela que “olhou para baixo”, sendo que sua queda é
explicada por estar ausente, no seu agir, a vontade do Pai, bem como por ter, ela, atuado
sem unir-se ao seu consorte, cujo nome sequer é mencionado. O produto desta ação é,
por conseguinte, uma obra imperfeita, qual seja o arconte demiúrgico ou uma sombra
que, por mediação da matéria, produz o arconte demiúrgico; isto fará com que Sophia
seja denominada “a material” (do grego hylikós). Uma vez produzido o arconte, a
Sabedoria se recolhe a um estado de esquecimento e ignorância, qualificado como
“estado de deficiência”. Em uma etapa posterior, Sophia, que, por seus atos é, em
alguns tratados, qualificada de prostituta, experimenta uma metanóia – um estado de
mudança da mente acompanhado pelo arrependimento – sendo, então, ajudada pelos
éons superiores, no sentido de obter a conjunção com seu consorte, que, por sua vez,
acaba por sanar a deficiência por ela apresentada. Sophia – a mãe dos homens
espirituais - então redimida, não regressa, de pronto, ao Pleroma, permanecendo em
uma instância intermediária entre os mundos divino e corporal (PIÑERO; TORRENTS;
BAZÁN, 2000, p. 51-55).
O qualificativo “sethiano” denota, além do referido sistema, um corpus de textos
e mitos que enfatizam a figura de Seth, o terceiro filho de Adão e Eva. Os gnósticos que
pertenciam a esta escola foram também chamados, pelos heresiologistas, de
barbelognósticos, porque a divindade feminina Barbeló se faz presente nos escritos
produzidos pela seita, dentre os quais o Zostrianos e o Alógenes, conhecidos e refutados
por Plotino, no âmbito de sua polêmica anti-gnóstica. Os autores destes escritos se
91
referem aos sethianos, isto é, a si mesmos e aos demais membros de seu grupo, como a
inabalável raça do gênero humano, ou a linhagem (semente) de Seth, posto que se
consideravam, através de Seth, como filhos de Adão e Eva, que lhes disponibilizavam a
iluminação (BARNSTONE; MEYER, 2006, p. 109-110). De acordo com o Gênesis,
com Seth tem lugar um novo princípio para a humanidade, após a violência que
permeou o relacionamento entre Caim e Abel. Por esta razão, é chamado de sperma
heteron, ou “outra semente”, no lugar do assassinado Abel. Os gnósticos sethianos,
neste diapasão, descrevem, a si mesmos, como uma outra raça, a linhagem ou a semente
de Seth. Os escritos sethianos trazem, em seu bojo, uma reinterpretação de capítulos do
Gênesis, de origem judaica, à luz da mitologia e da filosofia gregas, notadamente a
tradição platônica.
Cumpre ressaltar que, para os sethianos, a divindade primordial é o infinito Um,
o Espírito Invisível, do qual emanou a Divina Previdência, Barbeló. O casal, então,
produz um filho divino, dando origem a uma trindade. No Pleroma, ou plenitude da
divindade, há quatro luminares, Armozel, Oriel, Daveitai e Elelet, em companhia de
Garadamas ou Adão, o Estrangeiro (Alógeno) e seu filho Seth. A mãe Sophia, ela
própria uma instância divina conectada a Elelet, comete – por razões que se mostram
diversas nos textos da escola – um erro de avaliação, sendo que, por conta desde
equívoco, tem um filho prepotente e malicioso, o demiurgo criador do mundo, que se
chama Ialdabaoth (Yaldabaoth), Sakla, ou Samael.
Plotino polemizará com os sethianos, quanto à cosmologia pessimista por eles
desenvolvida, assim como à profusão de hipóstases – éons – integrantes do mundo
espiritual, esposada pelos mesmos, por sua postura ética, e, ainda, pelo caminho
salvífico preconizado pela escola, o qual, normalmente, se funda em revelações
sucessivas outorgadas, ao gnóstico, por seres incorpóreos.
92
Este sistema gnóstico parece ter merecido singular atenção de Plotino por aliar, a
uma mitologia própria, elementos da metafísica platônica, conjunção, esta, que
reverberou, fortemente, no seio da escola neoplatônica. Diante de tal quadro, Plotino
sentiu-se compelido a alinhar algumas das diferenças entre o seu pensamento e aquele
outro, de matriz gnóstica sethiana.
Portanto, embora alguns advoguem que os gnósticos conhecidos por Plotino e
cujas idéias foram contrastadas por ele, seriam, além dos sethianos, os valentinianos,
certo é que, dos cinco “apocalipses” nomeados na Vita Plotini, 16, os dois efetivamente
presentes na Biblioteca de Nag Hammadi – Zostrianos e Alógenos – são de criação
sethiana.
3.3 A Polêmica Anti-Gnóstica e os seus Textos Fundamentais
Há, na já referida Vita Plotini, 16, referência a algumas “Revelações”, de origem
gnóstica, então em voga, que mereceram contundente crítica por parte de Plotino.
Porfírio menciona, neste sentido, as “Revelações” de Zoroastro, Zostrianos, Nicotéo,
Alógenes e Meso. Destas cinco, textualmente referidas por ele, duas delas – Zostrianos e
Alógenes - constam da chamada “Biblioteca de Nag Hammadi”, um conjunto de
escritos, majoritariamente gnósticos, encontrados, casualmente, por um camponês, no
Egito, em 1945.
Tais tratados – Zostrianos e Alógenes - teriam sido compostos pela escola
sethiana. Na atualidade, porém, os estudiosos atribuem, a tal sistema gnóstico, também
os seguintes tratados constantes da “Biblioteca de Nag Hammadi”: o “Apócrifo de
João”, a “Hipóstase dos Arcontes”, o “Evangelho dos Egípcios”, o “Apocalipse de
93
Adão”, “As três Estrelas de Seth”, “Melchizedek”, “O Pensamento de Norea”,
Marsanes” e “A Protenóia Trimorfa” (TURNER, 1992, p. 425-459).
Quanto aos outros tratados referidos, por Porfírio, na Vita Plotini 16, Zoroastro e
Nicoteo permanecem, ainda, à margem da investigação. Já o de Mesos, ao que parece,
constitui a parte final do Alógenes.
Por conseguinte, embora os tratados Zostrianos e Alógenes sejam mencionados,
explicitamente, por Porfírio, como pertencentes ao grupo de “Revelações” criticadas por
Plotino, é preciso referir, vez por outra, a outros tratados – geralmente da escola
sethiana, mas também de outros sistemas – e não elencados na Vita Plotini, para bem
compreender o tema da salvação, que se mostra onipresente no seio da gnose.
Entretanto, tendo em vista, por um lado, sua importância, e, por outro, o fato de
Plotino tê-los conhecido e combatido, e, ainda, por pertencerem à Biblioteca de Nag
Hammadi, o que os torna acessíveis ao estudioso de nosso tempo, os tratados Zostrianos
e Alógenes merecem nosso exame mais detido.
3.3.1 O Tratado Zostrianos
O extenso tratado Zostrianos, escrito entre o final do século II d.C. e meados do
século III d.C., é a obra principal do Códice VIII da Biblioteca de Nag Hammadi, e tem,
como tema, a descrição, com contornos autobiográficos, de uma apocalíptica jornada
celestial empreendida por Zostrianos, personagem supostamente pertencente à linhagem
do famoso mago persa, Zoroastro (ROBINSON, 2006, p. 345-346). Tal Zostrianos,
premido pelas dores do mundo, encontrava-se profundamente desolado, no deserto,
pronto para abreviar a própria vida, quando, de súbito, lhe aparecem duas figuras: a do
“menino perfeito” e a de um anjo, que o convoca à gnose, isto é, ao verdadeiro
94
conhecimento. Convidado por tal “anjo do conhecimento”, Zostrianos abandona seu
corpo físico na Terra e empreende uma viagem, juntamente com seu guia, pelos limites
inferiores dos reinos celestiais, ascendendo de nível em nível e, em cada um deles,
participando das cerimônias de iniciação respectivas, de modo a receber a gnose, em
cada esfera, disponível. Em sua maravilhosa jornada, Zostrianos encontra diversos seres
angelicais, os quais questiona, e dos quais aprende a gnose dos vários éons celestiais
que vem a atravessar, consistindo, este conhecimento, fundamentalmente, em aprender
os nomes dos habitantes do mundo celestial e classificar as relações entre eles. Recebe,
ele, em meio a indagações e batismos, uma série de quatro revelações a cargo de seres
superiores: a de Autrunio (7, 22-13,6), que versa sobre a criação do mundo celeste; a de
Efesec (13,7-57,12), tocante aos primeiros princípios, aos quatro luminares, a Adão, a
Seth, aos diferentes tipos humanos e à salvação; a de Youel (57, 13-63,17), de conteúdo
difícil de determinar por conta da precariedade do estado de conservação desta parte do
tratado; e a derradeira, de Salamex (63, 17-128,18). Finda sua perambulação pelas
esferas do incorpóreo, ele retorna à instância da matéria, exortando aos eleitos, a “raça
santa de Seth”, a escapar dos grilhões do mundo sensível e aspirar às realidade
superiores, das quais o espírito procede (130, 5-132,5) (PIÑERO; TORRENTS;
BAZÁN, 2000, p. 278).
O mito articulador do tratado Zostrianos relata a existência de um deus superior
e insondável, chamado de “Espírito Invisível Três Vezes Poderoso”, do qual todas as
coisas emanaram, sendo, o mundo físico e seus habitantes, o extrato mais baixo de toda
a emanação, dominado pela ignorância. Entre este deus supremo e as mazelas da
corporeidade, há um vasto e complexo sistema de éons, denominado Barbeló, o
“pensamento” do Espírito. Esta Barbeló, por sua vez, é formada de três componentes de
éons, cada qual com seu próprio sistema de seres (luz, glórias, anjos, águas, etc.):
95
Kalyptós, o éon oculto, Protophanés, o primeiro-gerado ou primeiro-visível e
Autogenés, o éon autogerado ou autocriado.
O tratado Zostrianos desvela, em suas linhas, uma visão de mundo alicerçada no
mito, e uma interpretação filosófica de coloração platônica, demonstrando, assim, que
alguns grupos gnósticos buscavam, de fato, esta mescla. Apresenta, ele, semelhanças,
em seu conteúdo, com outros tratados da Biblioteca de Nag Hammadi, especialmente o
Alógenes (XI, 3), As Três Estrelas de Seth (VII, 5), o Apócrifo de João (II, 1), o
Evangelho dos Egípcios (III,2), o Apocalipse de Adão (V, 5) e o Marsanes (X, I), todos,
como já dito, pertencentes a uma tradição gnóstica comum, denominada “escola
sethiana”.
O viés filosófico do Zostrianos resta evidenciado pelo uso, no mesmo, de
indagações, categorias e termos próprios da escola de Plotino, o que indica terem tido,
os gnósticos que o compuseram, conhecimento das idéias neoplatônicas. De igual modo,
Plotino, induvidosamente, conhecia este tratado, tendo-o colocado – como nos diz
Porfírio – no rol do que qualificou como “apocalipses ilegítimos” em circulação na
época.
3.3.2 O Tratado Alógenes
O Alógenes trata das “revelações” que um certo Alógenes
34
recebe do mundo
divino e busca franquear a seu filho, chamado Messos
35
. Sua composição é atribuída a
Seth ou a um representante da “raça” espiritual sethiana (ROBINSON, 2006, p. 415-
416), parecendo ter sido escrito a uma só mão. A intenção de Alógenes, no referido
34
Alógenes, em grego, tem o sentido de “espécie diferente”, “estrangeiro”; da mesma raiz advém o
vocábulo “alienígena”.
35
Ou Meso, isto é, “o intermediário”.
96
tratado, é, com seu relato, estimular o filho a penetrar, profundamente, na verdade
revelada, de modo a superar o medo e a ignorância e buscar a realização plena do eu
espiritual no âmbito do divino.
O mencionado tratado se divide em duas partes: na primeira delas, têm lugar
cinco ou seis revelações da entidade feminina Youel, pertencente à mais alta constelação
divina, para Alógenes, caracterizadas por descrições mitológicas complexas dos poderes
divinos, notadamente daqueles próprios do éon Barbeló. A primeira revelação descreve,
de modo direto, os éons masculinos do terceiro extrato e, indiretamente, os éons
femininos do segundo extrato, ambos – masculinos e femininos – integrantes do éon
Barbeló; a segunda revelação explica as relações entre o primeiro extrato e os éons de
Barbeló; a terceira revelação trata da gnose e da origem desta, como remontando ao
Primeiro Princípio; a quarta revelação traz à baila o conceito de degradação presente na
procedência dos extratos segundo e terceiro; a quinta revelação trata, ainda uma vez, da
gnose, ou do conhecimento; a sexta revelação tem, por objetivo, transmudar o ouvinte
do relato em vidente, sendo que tal visão lhe é proporcionada por mediação dos
“luminares”, ou entes divinos, do quarto extrato (PIÑERO; TORRENTS; BAZÁN,
2000, p. 308-309). Na segunda parte descreve-se, em linguagem mais filosófica, a
ascensão de Alógenes aos reinos superiores, após receber uma visão dos “luminares”,
que, através dela, o iniciam na técnica da introspecção mística por excelência. Ao final,
Alógenes recebe, dos referidos seres celestiais, um extenso ensinamento de teologia
apofática, ou negativa, acerca de Deus. Assim, tem, ele, a revelação primária do “Ser
desconhecido”, o “triplamente poderoso”, invisível, incomensurável e incompreensível
(ROBINSON, 2006, p. 416).
Afigura-se oportuno observar, ademais, que o Barbeló gnóstico, presente no
Alógenes, semelhantemente ao que ocorre nos tratados Zostrianos (VIII, I) e As Três
97
Estrelas de Seth (VII, 5), não se ocupa de demonstrar a gênese do Mal, centrando seu
interesse, ao contrário, na revelação da realidade divina.
Este é um dos tratados mencionados, por Porfírio, no § 16 da Vita Plotini, como
sendo um dos “apocalipses” ilegítimos conhecidos e refutados por seu mestre.
Para alguns estudiosos, no entanto, alguns elementos presentes no referido
tratado parecem refletir o influxo, no pensamento gnóstico sethiano, de um
neoplatonismo posterior a Plotino, caracterizado pela reflexão filosófica mais inclinada
à teologia (PIÑERO; TORRENTS; BAZÁN, 2000, p. 307-308).
De todo modo, diante da referência expressa, do aludido escrito, na Vita Plotini,
bem como pelo fato de o mesmo pertencer à Biblioteca gnóstica de Nag Hammadi, o
que veio a comprovar a sua efetiva existência, afigura-se apropriado trazê-lo à discussão
em cotejo com o pensamento plotiniano.
Nada obstante, o Alógenes mostra-se especialmente valioso em comparação com
as idéias de Plotino, pois os gnósticos monísticos – do tipo do tratado em questão –
foram os que mais o desafiaram no plano das idéias, seja porque apregoassem,
aproveitando temas filosóficos do platonismo, que a revelação das verdades era
referendada pelo pensamento do maior discípulo de Sócrates, seja porquanto
afirmassem que, pelo conhecimento, se tornavam superiores aos corpos celestiais
(Enéada II, 9,5-11).
3.3.3 A “Tetralogia Antignóstica”: Enéadas III, 8; V, 8; V, 5; II, 9
Refere Henri-Charles Puech (1986, p.123), no que é acompanhado por Stephen
MacKenna (1991, p. 1xv) que, de início, as exposições de Plotino enfeixadas nos
tratados III, 8, V, 8, V, 5 e II, 9 das Enéadas formavam, nesta seqüência, um único
98
corpus, ou dossiê, contra os gnósticos. Porfírio, todavia, por razões metodológicas ou,
ainda, para alcançar os números perfeitos – seis, para seis Enéadas, e nove – para nove
tratados componentes de cada uma delas – teria desmembrado o longo libelo original
nos quatro tratados acima referidos. Esta constatação foi realizada pelo erudito R.
Harder, em 1936, sendo, desde então, adotada pelos especialistas.
O tratado III, 8, intitulado “Da Natureza, da contemplação e do Uno”, é um
sumário da metafísica plotiniana. Seu mote principal é o de que todas as coisas
encontram-se engajadas na contemplação, ou theoria, mesmo plantas, objetos
inanimados e a Terra, empenhando-se, assim, na busca pela unidade, que é manifestada
apropriadamente no nível do intelecto, visto que a ação é, apenas, uma contemplação de
menor amplitude. Neste tratado, Plotino concebe a Natureza como a instância inferior
da Alma, mas, também, como o princípio de crescimento para todas as coisas;
diferentemente dos gnósticos, portanto, ele entende a natureza não como algo
intrinsecamente ruim ou degradado, mas como instância necessária para o evolver dos
seres.
O tratado V, 8, por sua vez, recebeu, de Porfírio, o título “Sobre a Beleza
Inteligível”, porquanto o seu tema fundamental seja a natureza do intelecto. O
descortinar do mundo inteligível, inspirado no discurso de Diotima, no Banquete, de
Platão, é propiciado, sobretudo, pela contemplação da beleza e da ordem. Também aqui
a visão plotiniana discrepa daquela esposada pelos gnósticos, já que, para estes últimos,
não há qualquer ordem ou beleza no mundo, visto ser, este, obra de um demiurgo
perverso.
“Que os inteligíveis não estão fora da Inteligência; acerca da natureza do Bem” é
o nome conferido, por Porfírio, ao tratado V, 5, que cuida do segundo processo
ascensional da alma em direção ao Uno, visto que o primeiro deles nos é descrito por
99
Plotino no primeiro tratado da tetralogia. Aqui, a “subida para o Uno” se inicia não na
Natureza, mas no Intelecto, através de um estudo de sua realidade e beleza. Trata-se,
assim, da natureza que está além do intelecto, qual seja, o Uno, ou Deus, e do modo
como pode, ela, ser apreendida por aquele que trilhar o caminho correto.
O último e mais conhecido tratado da referida tetralogia é o II, 9, o qual pode ser
considerado uma síntese da posição filosófica de Plotino ante as idéias e o viver
gnósticos, que estavam a fazer eco entre alguns membros da escola do licopolitano. Seu
título é explicito e auto-explicativo: “Contra os gnósticos; ou contra aqueles que
afirmam ser, o criador do Cosmos, e o próprio Cosmos, mau”. Neste tratado, Plotino
põe a claro o que mais o desgosta nos gnósticos com os quais travou contato, a saber:
sua irreverência para com a tradição filosófica grega; a profusão de entidades espirituais
(ou éons) presentes em suas especulações, sua aversão pelo mundo material, o uso, em
suas “Revelações”, de termos impactantes e jargões, e, ainda, o seu perfil elitista com
relação aos demais seres. Todas estas invectivas têm, em sua base, a dissonância entre
as propostas soteriológicas em confronto, porquanto a busca pela salvação, em Plotino e
entre os gnósticos, tenha aspectos ligados à cosmogonia/cosmologia, à
antropogonia/antropologia, e à ética, ou ao modo de se estar no mundo.
Nada obstante, o tema da salvação, em Plotino, não se circunscreve ao quando
dito, por ele, na denominada “Tetralogia Antignóstica”. Isto porque o problema
soteriológico percorre todas as Enéadas, sendo tratado, pelo licopolitano, sob diversas
chaves. Como bem resume Reinholdo Ulmann (2002, p. 200), “a salvação da alma, pelo
retorno (epistrophê) ao Uno é o fulcro de sua doutrina”.
100
3.4 Síntese Conclusiva do Capítulo
Os traços fundamentais do Neoplatonismo de Plotino e da gnose foram
esboçados neste capítulo, para que se possa, com mais subsídios, cotejar ambas as
visões de mundo no que concerne à problemática da salvação.
Tanto Plotino, quanto os gnósticos, afinados com o clima espiritual de seu
tempo, cuidaram de tentar explicar o drama humano e arquitetar sendas salvíficas.
Entretanto, inobstante partilhassem, inicialmente, idéias comuns, com o tempo passaram
a ficar evidentes as diferenças entres eles, o que levou, Plotino, a explicitá-las em sua
“tetralogia antignóstica”, com especial ênfase na Enéada II, 9, que recebeu o título
“Contra os gnósticos”.
A preocupação soteriológica, no entanto, é comum e recorrente, nos sistemas
plotiniano e gnóstico, mostrando-se, pois, presente, não só nos tratados da aludida
polêmica antignóstica, mas ao longo de todas as suas produções.
Diante da variedade de seitas e sistemas gnósticos, merece destaque, porém, no
âmbito deste trabalho, a escola sethiana, pois, de acordo com o que se pode inferir das
pesquisas mais recentes, sobretudo aquelas empreendidas, pelos eruditos, após a
descoberta da “Biblioteca de Nag Hammadi”, no Egito, em 1945, os tratados Zostrianos
e Alógenes, referidos, por Porfírio, na Vita Plotini § 16, como “apocalipses” ilegítimos e
objetos da reprovação de Plotino, seriam sethianos.
Estes “apocalipses” ou “revelações”, embora de enredos diversos, trazem, em
seu interior, elementos que serão contrastados, por Plotino, mais cabalmente na Enéada
II, 9, mas, também, nos tratados III, 8, V, 8 e V, 5 de suas Enéadas, o que permite o uso
da expressão “tetralogia antignóstica” para estes quatro tratados, inicialmente
integrantes de um único grande libelo, do licopolitano, contra os gnósticos com os quais
101
travara contato, embora, como já se afirmou, o tema da salvação percorra, como fio
condutor, toda a obra do grande neoplatônico e a de seus antagonistas gnósticos.
102
4. A SALVAÇÃO, EM PLOTINO E ENTRE OS GNÓSTICOS, NO
ÂMBITO DAS ORIGENS E DA CONDUTA
4.1. Conceitos de Salvação
A salvação ou redenção pode ser entendida como um estado de integridade e
totalidade, caracterizado pela libertação de todo o alheamento e de todo o mal, bem
como pelo pela plenificação de todas as possibilidades de aperfeiçoamento de que
dispõe o ser humano. (KÖNIG; WALDENFELS, 1998, p. 522).
Na visão de G. Marchesi (2003, p. 911),
o tema da salvação é centro de todas as religiões e o que especifica sua
forma, seus conteúdos e seu escopo. Por isso, o coração de todas as religiões
pulsa vivamente na proposta concreta da via ou da meta de salvação do
homem. Com efeito, o que diferencia as religiões é o tipo de relação que elas
estabelecem com o Absoluto e com o homem, e o tipo de salvação que
oferecem; ao passo que os ritos e as práticas têm muitas vezes uma analogia
formal (oração, oferta, sacrifício, iniciação, etc.); a analogia da forma
adquire um significado diferente, segundo a concepção da salvação
.
Consigna, o mesmo autor, que os fenomenólogos da religião inclinam-se no
sentido de distinguir três grandes searas de salvação propostas pelas diversas religiões
do mundo antigo e moderno, quais sejam, a “salvação do cosmo”, cerne das antigas
religiões mesopotâmicas, a “libertação do tempo cíclico”, característica das religiões
asiáticas e, finalmente, a “participação na vida divina”, buscada pelas religiões
monoteístas.
A meta salvífica acaba por assumir, de fato, os contornos da religião que a
propõe. Assim, em apertada síntese, pode-se dizer, com Burkhard Scherer (2005, p. 43-
103
44), que, se, no Judaísmo, a meta é que todos os homens conheçam a Deus, e que Deus,
através do povo eleito, salve a humanidade inteira, no Cristianismo, tem-se que, com a
vinda de Jesus Cristo, o Reino de Deus já chegou, podendo, então, ter início uma
mudança na vida de cada ser humano, que o livre da condição enfermiça (a do homem
velho) e lhe propicie o estado salvífico (do homem novo), culminando com a
ressurreição e a obtenção de um corpo glorioso, sem máculas e em ligação eterna com
Deus. Já no Islamismo, a salvação está relacionada à paz integral (salam), através da
entrega e da reconciliação com Deus (islam), e se liga à noção de felicidade, tanto na
esfera terrena, quanto na futura, sendo que, para tanto, a alma há de ser purificada do
egoísmo, através da ação social e das práticas espirituais, porquanto somente um
coração sincero seja capaz de alcançar Deus. No Hinduísmo, por sua vez, a meta
suprema da vida é a libertação (moksha) do samsara, o ciclo das reencarnações, que é
alcançada através da superação da condição ilusória, causada por Maya. No Budismo, a
salvação implica na superação do sofrimento, através do reconhecimento das “Quatro
Nobres Verdades” e a adoção do “Caminho Óctuplo”, apto a conduzir, o sequioso pela
salvação, ao Nirvana, o estado supremo de consciência.
Na idade antiga, a idéia de salvação se afinava muitíssimo com a de felicidade,
de sorte que descobrir como alcançar a verdadeira e imperturbável felicidade equivalia a
ser redimido, curado, salvo, libertado, de uma condição patológica, e implicava no
restabelecimento de uma situação paradisíaca perdida. Daí que o termo felicidade
(eudaimonia, em grego; felicitas, beatitudo, em latim) esteja freqüentemente associado
ao vocábulo salvação (soteria, em grego; salus, redemptio, em língua latina).
De fato, como bem anota Aldo Natale Terrin (1998, p. 154),
104
Saúde e salvação são termos co-originários, ou melhor, nasceram de um
mesmo conceito e partilharam por muito tempo a mesma sorte e um mesmo
significado geral, que acabou cindindo-se bem mais tarde. Trata-se do
significado sânscrito de svastha (= bem estar, plenitude), que depois
assumiu a forma do nórdico heill e, mais recentemente, Heil, whole, hall nas
línguas anglo-saxônicas, que indicam “integridade”, “plenitude”. A mesma
coisa acontece com o termo soteria na língua grega, segundo a qual
justamente Asclépio é considerado soter: aquele que cura e que é ao mesmo
tempo o “salvador”. Na língua latina é emblemático o significado de salus,
termo capaz de incorporar, mesmo em época recente, tanto o significado de
“saúde” como de “salvação”. É preciso, porém, lembrar que também em
outras línguas acontece a mesma combinação. Lembro, entre outras, o termo
hebraico shalom (= paz, bem-estar, prosperidade) e a fórmula egípcia snb,
que também indica bem-estar físico, vida, saúde, integridade física e
espiritual; todos estes termos expressam a salvação
como “integridade da
existência”, como “totalidade de situações positivas”, não tocadas pelo mal,
pela doença, pelo sofrimento, pela desordem. Sob esse ponto de vista,
outrora era impossível distinguir entre salvação e felicidade, pois uma
confluía na outra e o aspecto teológico que hoje se atribui ao primeiro termo
dentro de um contexto exclusivamente religioso estava nivelado e não era
separado do aspecto antropológico que assumia o mesmo termo em
contextos menos religiosos.
A busca de um estado de libertação da carência, da insuficiência e da
infelicidade, ou, em outros termos, a fome de plenitude, é o cerne das soteriologias
arquitetadas, pelas religiões e escolas de sabedoria, no correr da história. Nas palavras
de Terrin (1998, p. 155), “as religiões têm de ‘salvar’ o homem em sua totalidade física,
psicológica e espiritual”. Embora cada tradição religiosa tenha seu próprio ensinamento
acerca da finalidade última da vida, todas devem, de fato, enfrentar esta questão
fundamental, qual seja a necessidade, própria do ser humano, de superar um estado
profundamente insatisfatório, permeado pela carência e o sofrimento, para alcançar um
outro, de integridade, beatitude e saciedade (HICK, 2005, p. 144-145).
Entretanto, as sendas salvíficas, das diversas tradições espirituais, tendem a
oscilar entre dois pólos, quais sejam, o da hétero-redenção, ou seja, da salvação que vem
de fora do ser humano (pela graça ou pela atuação de um redentor divino), e a auto-
redenção, isto é, da salvação dependente, tão só, dos esforços humanos daquele que a
busca. A sustentar estes dois pólos estão, de um lado, a predestinação (tudo é fatalidade,
destino) e, de outro, a liberdade (cada qual forja o seu próprio destino). Observam
105
König e Waldenfels (1998, p. 522), que “concretamente, no entanto, os seres humanos
em geral procuram seu caminho entre uma radical hétero-redenção ou auto-redenção”, o
que implicaria em uma cooperação entre Deus e o homem, na busca da aludida
felicidade. Esta distinção se mostra relevante na medida em que o caminho salvífico de
Plotino tem contornos de auto-salvação, ao passo que a soteriologia gnóstica, mercê de
sua dependência da figura de um redentor e de seu elitismo antropológico (os
pneumatikoi, ou espirituais é que são os verdadeiros gnósticos, os que detêm o
conhecimento libertador), mostra-se como uma hétero-salvação. Isto não impede, no
entanto, que sejam percebidos, aqui ou acolá, traços das duas modalidades em ambos os
sistemas.
4.2 Salvação e Cosmogonia/Cosmologia
36
na Gnose
No âmbito da especulação gnóstica, a cosmogonia se encontra fortemente
impregnada pela soteriologia. De fato, o problema fundamental que os sistemas
gnósticos tentam responder, através da cosmogonia e da antropogonia, é por que o
elemento “superior” do ser humano - a centelha divina que nele habita - sofreu a
36
Como se sabe, a cosmogonia (kósmos = ordem, universo + gonos = geração) é portadora de uma
descrição mítica do nascimento do universo; já a cosmologia (kósmos = universo + logos = razão) volta-
se ao estudo da estrutura e das características do universo, à luz da razão. Põe-se, aqui, então, um aparente
dissídio entre mythos e logos. Entre os autores há quem se valha dos vocábulos cosmogonia, assim como
antropogonia, para cuidar dos sistemas explicativos gnósticos, quanto à origem, respectivamente, do
cosmos e do homem. Outros, ao revés, se valem dos termos cosmologia e antropologia, para o mesmo
fim. De nossa parte, entendemos, com Puech (1982, p. 103), que as correntes de salvação que grassaram
por volta do século III – dentre as quais o intelectualismo-místico de Plotino e a gnose - fazem uso, tanto
do mythos, quanto do logos, para desenvolver seus conceitos. Adverte-nos, referido autor, que “se há
ocasiões em que a ciência adota um rasgo mítico, o plotinismo, de sua parte, tenciona construir um único
e mesmo sistema com os mitos e com as racionalizações, de base matemática, de Platão, ou, com maior
amplitude, com o mito do destino da alma e do universo, tal como o constrói o sábio e o contempla o
filósofo. Racionalização do mito ou - se me é permitida a expressão – mitificação da razão? É assim que,
pelo menos, levamos a cabo uma melhor aproximação do problema”. Desta forma, se, tanto no
pensamento de Plotino quanto nas correntes gnósticas, dá-se a utilização, ora do mythos, ora do logos,
optamos por tratar, em ambos os sistemas, a questão da origem e das características do Cosmos, como
“cosmogonia/cosmologia”, e o problema da origem e das características do ser humano (mais
especificamente os motivos pelos quais a alma veio habitar o corpo) como antropogonia/antropologia.
106
desafortunada queda que o aprisionou na matéria, de molde a lhe indicar o caminho de
retorno à sua divina origem.
Consoante pondera Kurt Rudolf (1987, p. 71), é característico da gnose atribuir a
origem do mundo a um ato de ignorância, levado a efeito por um demiurgo mau.
Segundo ele, o mito gnóstico e a doutrina gnóstica da redenção contemplam a união
entre cosmogonia, antropogonia e soteriologia, em um sistema fechado, que necessita
ser considerado, pelo adepto, em seu processo de superação do mundo material.
As doutrinas gnósticas acerca da origem do cosmos e do mundo, tendo em vista
o seu papel central no mito gnóstico, são complexamente elaboradas, cuidando-se,
geralmente, de interpretações livres ou paráfrases do enredo bíblico da criação,
mesclado com elementos cosmogônicos de outras lavras. Em linhas gerais, busca-se
descrever o processo de criação do universo a partir do Primeiro Princípio, do Ser mais
Alto, do Uno, enfim, de Deus, bem como o procedimento pelo qual a “divina fagulha”,
a “centelha divina” veio a se alojar no corpo material do ser humano.
De um modo geral, a visão gnóstica da estrutura do Universo não difere daquela
vigente na Antiguidade Tardia. A Terra, em homenagem ao princípio geocêntrico então
em voga, encontra-se no centro do Cosmos e é circundada pelo ar, bem como por oito (e
não dez como queria Ptolomeu) esferas superiores ou divinas. Tais oito esferas
correspondiam àquelas tocantes aos sete planetas (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e
Saturno) e às estrelas fixas que os circundavam. Além destas esferas, se encontrava o
domínio do “deus desconhecido”, o Pleroma, isto é, a completude ou inteireza, com as
suas graduações ou instâncias, os éons.
Parece oportuno observar que, se, via de regra, na Antiguidade Tardia, as esferas
tocantes aos planetas eram consideradas como sendo o reino do destino (heimarmene),
da fatalidade, do devir, que, rotineiramente, influenciava os eventos terrenos, nos
107
sistemas gnósticos este sentir é ainda mais acentuado. Como bem assinala Rudolf (1987,
p. 67), no âmbito da gnose, o reino dos sete planetas (hebdomas) caracteriza-se por ser
uma força não humana e antidivina, a qual, refletindo circunstâncias terrenas, mostra-se
tirânica. Tal área é habitada por demônios, deuses ou espíritos, que freqüentemente
recebem o nome de “arcontes”, isto é, potestades, comandantes ou dominadores. Estes
arcontes por vezes formam verdadeiros reinos com um chefe – usualmente idêntico ao
demiurgo, o criador do mundo - que é entronizado, nesta condição, tanto nos “sete
céus”, quanto nas oito instâncias inferiores, ou ógdoada, ora concebida como o trono do
demiurgo e uma parcela dos poderes que regem o mundo, ora como o reino dos doze
signos do zodíaco (dodeka), o qual pertence à mesma categoria dos planetas tirânicos,
ora, ainda, como uma instância intermediária que propicia a transição, das esferas
inferiores, para o reino da luz.
Inobstante a complexidade das nuances acima expostas, é possível afirmar que,
em sua maioria, os sistemas gnósticos adotam uma divisão tripartite do Universo,
fazendo figurar, no cimo de tudo e infenso ao mal, o reino da luz ou Deus, bem como,
abaixo deste, um reino intermediário, e, em um nível ainda mais inferior, o mundo
terreno com as esferas de estrelas e planetas que o circundam. O Cosmos é tido, pelos
diferentes sistemas gnósticos, como a plenitude do mal, um lugar de constrangimento,
violência, escuridão, fraqueza, desolação e morte, e assim o é porque criado por forças
hostis a Deus, e que exercem forte pressão sobre o ser humano. É aí que a cosmogonia
e a soteriologia gnósticas se tocam, já que somente pela compreensão, assegurada pela
gnose revelada, da origem do mundo e da existência de um reino divino além do mal,
que a salvação poderá ser alcançada; esta é a compreensão básica que deve nortear o
gnóstico na tarefa de fazer retornar, à origem imaculada, a centelha divina que nele
habita. Em outras palavras: o ser humano está subordinado, em sua existência física,
108
apenas parcialmente às forças emanadas pela esfera terrena; há, nele, uma outra
instância, denominada “verdade”, “homem interior”, pneuma (espírito), “alma” ou nous
(mente), que pertence ao reino supramundano ou espiritual. Esta “fagulha divina”, ao
digladiar-se com o corpo material que a encarcera, encontra-se na mesma situação do
homem “todo”, com relação ao cosmos malévolo que o abarca.
Consoante o ensinamento de Piñero, Torrents e Bazán (2000, pp. 62-72), a
descrição da cosmogonia dos gnósticos de Nag Hammadi, é, em suma, a verificação das
instâncias, em escala descendente, que se arregimentam, a partir da divindade criadora,
até o mundo da matéria, cumprindo notar, desde logo, que, neste particular, as
descrições presentes nos sistemas sethiano e valentiniano guardam mais divergências do
que semelhanças.
De todo modo, afigura-se possível afirmar que, em linhas gerais, as teses
cosmológicas gnósticas se aproximam daquelas ventiladas pelo médio-platonismo.
Destarte, para os sistemas gnósticos, ressalvadas as especificidades de cada qual deles,
as formas paradigmáticas (inteligíveis) do mundo se fazem presentes, com distinta
constituição ontológica, nos diferentes extratos da divindade. Já a criação do mundo
físico é atribuída, pela maioria das correntes gnósticas, a um ser divino inferior,
denominado “demiurgo” ou artesão, pelos valentinianos, “arconte”, pelos sethianos e os
valentinianos e, ainda, “Yaldabaot/Yaltabaot”, exclusivamente para os sethianos. A
introdução desta personagem, no cenário cosmogônico, tem, por objetivo, estabelecer
uma ligação entre a matéria inteligível, produzida pela Sabedoria, e a matéria corpórea e
sensível. O Demiurgo é, assim, uma figura intermediária entre o universo material e o
transcendental, por meio do qual é possível, a um só tempo, derivar o universo, em
última instância, do mundo divino (porque o demiurgo pertence ao âmbito divino) e não
atribuir, ao Ser Supremo, a criação do obscuro mundo sensível.
109
Hans Jonas (1963, pp. 43-44), também assevera que, no âmbito da cosmologia
gnóstica, o universo é o domínio dos Arcontes, afigurando-se como uma vasta prisão
cujo calabouço mais sombrio é a Terra, justamente o cenário no qual tem lugar o drama
humano. A Terra, por sua vez é circundada por esferas cósmicas, sendo sete esferas
planetárias e uma oitava, das estrelas fixas. Percebe-se, no entanto, uma tendência, por
parte de alguns sistemas gnósticos, de multiplicar estas esferas, como se vê, por
exemplo, no caso do mestre gnóstico Basilides, que mencionou a existência de não
menos do que trezentos e sessenta e cinco “céus”. Observa, acuradamente, Jonas (1963,
p. 43), que o significado religioso desta grande urdidura cósmica reside na idéia de que
tudo aquilo que se antepõe entre o aqui e o além se presta a separar, o homem, de Deus,
não somente sob o prisma da simples espacialidade, mas, também, por conta da atuação
de forças demoníacas, cada vez mais poderosas, tanto mais distantes do Princípio
Primeiro e mais próximas da Terra. Neste sentido, a vastidão e a multiplicidade do
sistema cósmico põem a claro o grau de alheamento do ser humano, de Deus.
As aludidas esferas são as moradas dos Arcontes, especialmente dos “Sete”, vale
dizer, dos deuses planetários tomados por empréstimo, pelo pensamento gnóstico, do
panteão babilônico. Os Arcontes, por sua vez, governam, coletivamente, mercê de um
fatalismo tirânico (heimarmene), o mundo, sendo que cada qual é o guardião de sua
respectiva esfera, isto é, de seu “presídio cósmico”. Enquanto gerente de sua esfera,
cada Arconte participa do processo de escravização do ser humano, porquanto não
permita a passagem, por seus domínios, das almas sequiosas de salvação, que buscam
escapar do mundo, ascendendo, de instância em instância, até Deus; os Arcontes, pois,
acabam por inviabilizar este caminho de retorno da alma até o Princípio Primeiro,
frustrando-lhes, assim, o alcance da almejada redenção.
110
4.3 Salvação e Cosmogonia/Cosmologia em Plotino
Argumenta Émile Bréhier (1998, p. 23), que são reconhecidas, pelos estudiosos,
duas ordens principais de questionamentos no pensamento de Plotino. O primeiro deles
é o denominado problema religioso, relativo ao destino da alma e ao modo de restaurá-
la ao seu estado original; já o segundo problema, qualificado de problema filosófico,
radica na necessidade de se conferir uma explicação racional à realidade. Plotino busca
demonstrar a identidade destas duas representações, de modo a afirmar o valor religioso
do racionalismo. A existência do Universo, nesta perspectiva, remonta não a um mito,
como no caso da gnose, mas a uma explicação elaborada pelo logos; daí porque se
afigure mais adequado falar-se em uma cosmologia – e não em uma cosmogonia –
plotiniana.
Conforme assinala José Alsina Clota (1989, p.53), Plotino foi o primeiro
pensador grego que tratou, de forma incisiva, do problema da “criação”, superando,
neste particular, os esforços empreendidos por Platão, no Timeu, bem como por
Aristóteles e pelos estóicos. Parece crível supor que Plotino tenha aproveitado, de Filo,
o judeu, a idéia de que Deus, em sua absoluta transcendência, engendra o universo a
partir da superabundância de sua perfeição. Este processo, que alguns denominam
emanação, sofrerá uma reelaboração completamente distinta em Plotino, recebendo o
nome de próodos, modernamente traduzido por “processão”.
Por conseguinte, a explicação racional da realidade, do cosmos, realizada pela
cosmogonia e a cosmologia plotinianas, se assentam na engenhosa teoria da processão
das hipóstases
37
. A realidade, segundo Bréhier (1998, p. 35) conhece, em Plotino, uma
37
Hipóstase (em latim, subsistentia) é aquilo que permanece infenso à mudança e às modificações de toda
ordem; são os níveis ontológicos da Realidade. No âmbito da dialética plotiniana da processão, é uma
111
dupla representação: por um lado, é uma representação assemelhada ao mito da alma,
segundo o qual o universo é dividido em instâncias ocupadas, pela alma, segundo a sua
pureza, e de acordo com o seu processo descensional ou ascensional; por outro, o
universo aparece como uma série de formas, sendo que, cada qual depende, hierárquica
e racionalmente, da precedente.
A processão é o processo, constituído de três momentos logicamente distintos,
segundo o qual toda a realidade é derivada do Uno. Estes momentos são: a manência
(do grego ménein, permanência), que diz respeito à atividade própria do Uno – que
engendra sem mudar e nem se diminuir; a processão em sentido estrito, ou saída; e o
retorno, indissociável da contemplação. Para bem compreender tal processo, é preciso
não olvidar que Plotino distingue duas formas de atividade, quais sejam, aquela que é
própria de um ente (e que coincide com a própria natureza deste) e aquela outra que
provém daquele ente (do mesmo lhe é derivada). Ora, no caso específico do Uno, a sua
primeira atividade coincide com o seu ser que é, a sua causa sui
38
; já a sua segunda
atividade se mostra como conseqüência necessária da primeira. A processão é, enfim,
uma necessidade que se segue a um ato de liberdade (o do Uno que se põe e se cria a si
mesmo); é, ademais, uma atividade que não se esgota e nem, tampouco, apequena a
substância que deriva de outra substância. Inobstante inferior com relação àquela da qual derivou, cada
hipóstase é capaz de gerar outras substâncias, porque, ela própria, é a mesma substância da qual derivou.
38
“Causa de si”, no vernáculo. A noção remonta a Aristóteles (Ética a Nicômaco, III, I, 110, a), e designa
a liberdade como autodeterminação. Veja-se, por exemplo, a Enéada VI, 8, 16, na qual Plotino define a
Inteligência como obra de sua própria atividade, enquanto “tem o ser de si mesma e por si mesma”. O
conceito chegou a Espinosa através do Neoplatonismo árabe (para o qual a causa sui era uma das muitas
expressões da natureza divina, segundo o conceito de Deus) e pela filosofia judaica. Segundo Espinosa, a
“causa de si” era ‘aquilo cuja essência implica a existência ou aquilo cuja natureza só pode ser concebida
como existente’ (Ética, I, def. 1). Hegel retomou, a partir de Espinosa, a expressão, acrescentando que
toda causa “ é em si e por si causa sui, na medida em que se reduz à Causa Infinita, que é a substância
racional do mundo (Enciclopédia Filosófica, § 153) (ABBAGNANO, 2000, p. 130). Acresça-se que, para
Plotino e Proclo, é a causa de si mesmo, o aition heatou; para Nicolau de Cusa, o movimento absoluto,
que é o repouso absoluto; segundo Fichte, é o Eu que se põe como Eu; já para Schelling, é o processo
dinâmico de autoprodução da natureza. O conceito transbordou para outras áreas do saber, como o
mostram a Teoria dos Sistemas, publicada em 1945, por Ludwig von Bertalanffy, que, por sua vez,
repercutiu entre biólogos (Humberto Maturana), etólogos, bioquímicos, neurofisiologistas, psicólogos,
sociólogos e mesmo juristas (Niklas Luhmann).
112
hipóstase da qual deriva, embora, enquanto atividade, degenere, progressivamente, de
sorte que as hipóstases produzidas são, hierarquicamente, inferiores uma à outra
(REALE, 1995, p. 213).
A processão, no dizer de Jean Brun (1991, p. 43) “não é nem criação, nem o
fabrico, nem a evolução, nem a história. Ela dá conta da maneira como as diferentes
formas da realidade estão em estado de mútua dependência”. A processão é, assim, o
modo pelo qual as três hipóstases (Enéada II, 9, 1-33) – o Uno (Hen), A Inteligência
(Nous) e a Alma (Psyché) – engendram, uma a outra, do mais “alto” até o mais “baixo”.
Nas palavras de Plotino (Enéada V, 1, 6):
Nada vem do Uno senão aquilo que há de maior depois dele. Mas o que há
de maior depois dele é a Inteligência, que é o segundo termo. Com efeito, a
Inteligência vê o Uno e não tem necessidade senão dele; mas ele não precisa
dela; o que nasce do termo superior à Inteligência, é a Inteligência; e a
Inteligência é superior a todas as coisas porque as outras coisas vêm depois
dela; por exemplo, a Alma é o verbo e o ato da Inteligência, como ela
própria é o verbo e o ato do Uno.
O Uno é o Primeiro Princípio e, enquanto tal, ocupa o ponto mais alto no
escalonamento hierárquico das hipóstases. Ele é uma condição necessária, uma vez que,
se há multiplicidade, é preciso que, em primeiro lugar, haja a unidade (Enéada VI, 1,
13). O Uno é a absoluta simplicidade, a plena auto-suficiência; carecendo de partes e de
forma, é infinito e inteiramente só. Está além do intelecto e, em razão de sua
superabundância, assim como de sua suprema faculdade de engendrar – não de sua
deliberada vontade, como no Deus cristão - tudo dele “brota” (Enéada VI, 8, 16). É ele a
fonte que flui, sem jamais se esgotar, a raiz da árvore imensa, a esfera luminosa que
projeta a sua luz sem nada perder de sua luminosidade originária e sem, tampouco,
deixar de ser luz (CLOTA, 1989, p. 55).
113
A segunda hipóstase, no sistema plotiniano, é o Intelecto, ou Nous, a “morada”
dos inteligíveis, das coisas imortais. É, o intelecto, uma luz que deriva da luz originária;
é como uma imagem do Uno. É Deus, mas não o Deus supremo (Enéada V, 5, 3). É um
ser orgânico e vivo, sendo, ademais, auto-suficiente, por abrigar, em seu âmago todo o
imortal, todo o intelecto, toda a divindade e toda a alma (Enéada V, 1, 4). Por fim, é
idêntico ao seu objeto (Enéada V, 4, 2).
A terceira hipóstase é a Alma, ou Psyché. Tanto a Alma Universal, quanto as
incontáveis almas particulares que aquela contém, são constituídas pelos inteligíveis
(idéias) que ingressam no âmbito da temporalidade. Como nos diz Plotino, a alma é
verbo e ato do Intelecto, como o Intelecto o é do Uno (Enéada V, 1, 6). A Alma tem
uma dupla natureza, inteligível e sensível (Enéada IV, 8, 7), postando-se, a um só
tempo, nos limites do inteligível e muito próxima da natureza sensível. Nas palavras de
Plotino (Enéada IV, 8, 7), é melhor, para a Alma, viver no inteligível; nada obstante, por
ter, também, uma natureza sensível, lhe é própria a necessidade de estar, igualmente, no
mundo material. A Alma produz o Cosmos, o mundo sensível, a partir da imitação dos
modelos contidos no Intelecto (Enéada III, 7, 10). Há, segundo Plotino, uma Alma
Universal, mais próxima do Intelecto, e uma Alma do Mundo, mais distante deste
último, e que se constitui na parte inferior daquela. Via de conseqüência, também, no
ser humano, há uma parte superior e outra inferior, cabendo salientar, todavia, que nossa
alma particular não é uma parte da Alma-Mundo, porquanto não possa, esta última,
estar em contato direto com as coisas mundanas, tal como o fazem as almas particulares
(Enéada IV, 8, 7).
Observa Bréhier (1998, p. 35) que a descrição do universo, levada a efeito por
Plotino, parte do modelo astronômico geocêntrico, proposto por Eudoxo, que, no século
V a.C. De acordo com este modelo, a Terra estaria no centro do universo, circundada
114
por várias esferas concêntricas, sendo que a mais exterior delas seria ocupada pelas
estrelas fixas e, as mais interiores, cada qual por um planeta. Esta representação é
portadora de uma forte conotação simbólica: a regularidade e a periodicidade do
movimento das esferas é sintomática de que a existência do mundo liga-se não a forças
caóticas, mas à razão, podendo, destarte, ser apreendida pelo conhecimento racional. O
mundo é eterno, submetido a períodos que se sucedem, sem fim, reproduzindo-se, uns
aos outros.
Plotino se detém, longamente, no problema cosmológico, dedicando-lhe,
inclusive, um tratado especial, qual seja o primeiro tratado da segunda Enéada. Tanto
ele, quanto os neoplatônicos em geral, cuidam de defender esta visão do universo contra
as dos estóicos, dos cristãos e, especialmente, dos gnósticos. Em síntese, para Plotino, o
mundo sensível constitui-se de uma determinada ordem, realizada no espaço e no
âmbito da matéria. O princípio deste mundo não pode ser senão uma ordem intelectual
absolutamente fixa, contendo, sob uma forma eterna e acessível à inteligência pura, o
produto e as harmonias manifestadas no mundo sensível. A matéria, neste cenário, serve
de degrau necessário para a elevação da alma até o Uno, uma vez que, por força da
processão das hipóstases, o mundo sensível é inteiramente deduzido do supra-sensível.
Esta constatação mostra-se repleta de conteúdo salvífico, posto que, se as três
hipóstases estão, também, na natureza das coisas – por extensão, em cada ser humano -
é possível encontrar o divino dentro de si e, a partir dele, empreender o caminho de
volta ao Uno. De fato “há em primeiro lugar o Uno, que está para lá do Ser; [...] depois,
a seguir a ele, o Ser e a Inteligência e, em terceiro lugar, a natureza da Alma” (Enéada
VI, 1, 10). E “como estas três realidades estão na natureza das coisas, é preciso pensar
que elas também estão em nós” (Enéada V, 1, 2).
115
É de se observar, desde logo, que Plotino condenava a concepção gnóstica das
hipóstases como intermediários (emanações, potências) que criavam embaraços ao ser
humano, no caminho da salvação (BRUN, 1991, p. 46). Ao invés de considerar as
hipóstases como cidadelas a serem tomadas, de guardiões tirânicos, rumo à redenção,
ele nos incentiva, a um só tempo, à interiorização e à elevação a Deus: “Ele não está
longe e tu vais conseguir” (Enéada V, 1, 3). Isto porque, no êxtase de coloração
plotiniana, o caminho ascensional da alma é, ao mesmo tempo, um mergulho em si
mesmo, já que, por conta dos processos da processão e da conversão, o Uno está em
tudo, e, por conseguinte, também nas profundezas daquele que busca a salvação. Não se
trata, assim, de atravessar reinos governados por potestades maléficas, pois, entre o ser
humano e o Uno não há distâncias e nem mesmo diferenças substanciais. A odisséia
espiritual, para Plotino, não é, portanto, espacial, mas interior.
4.4 Salvação e Antropogonia/Antropologia na Gnose
O surgimento do homem e a sua atual condição são assuntos de especial relevo
na gnose, eis que estreitamente ligados ao problema do mal no mundo e,
conseqüentemente, à situação de desterro experimentada pelo ser humano, em seu
cárcere corpóreo. Ademais, tal como ocorre com sua cosmogonia, a antropogonia
gnóstica está subordinada à sua soteriologia.
Pontuam Piñero, Torrents e Bazán (2000, p.72-79), que os gnósticos, sem
exceção, esposam a tradição órfico-dionisíaca que distingue, no ser humano, um
elemento material, ou titânico, e um elemento imaterial (alma, espírito ou centelha).
116
Nos textos de Nag Hammadi, a estrutura do ser humano é analisada à luz de seu
processo de criação, que, por sua vez, alude à narrativa encontrada no Gênesis,
interpretada, em sentido mais ou menos literal, pelos gnósticos.
Segundo a antropogonia gnóstica, a criação do ser humano se deu por obra de
um demiurgo, secundado por uma série de anjos ajudantes, previamente criados por ele,
e pertencentes ao mundo planetário. Na maior parte dos sistemas gnósticos, a criação do
ser humano ocorre porque, em um dado momento, o Transcendente – o Uno dos éons
superiores – envia aos anjos que secundam o demiurgo, ou a este mesmo por via direta,
a forma, a imagem – ou em um linguajar contemporâneo – o arquétipo, do Homem
Celeste, ou Primordial. Este Homem Celeste ou Primordial é um dos éons do Pleroma, o
Salvador, ou mesmo o Pleroma completo, que se reflete nas instâncias “abaixo” e, com
isso, desencadeia o processo de criação.
Os gnósticos de Nag Hammadi distinguem, no ser humano, três princípios, quais
sejam, o espiritual, o psíquico e o material, que, por sua vez, ensejam a existência de
três classes de seres humanos, correspondentes, respectivamente, a Seth, Abel e Caim.
O processo de criação da espécie humana remonta ao denominado “Homem
Primordial”, que é a imagem do Deus invisível, no interior do qual habita a plenitude da
divindade. Como se pode inferir do Apócrifo de João (14, 12-24) - um dos textos de
Nag Hammadi, de elaboração sethiana, que trata, pormenorizadamente, da criação, da
queda e do resgate da humanidade - ao ouvir uma voz, provinda do éon celestial
superior, que lhe dizia existir o homem e o filho do homem, o primeiro éon Yaltabaot
o monstruoso criador-deus, filho de Sophia sem o concurso do Deus Primeiro – ficou
em dúvida acerca de sua própria procedência. Então, o pai de sua mãe (Sophia), o santo,
o perfeito, a suprema inteligência, o pai de todos, aquele por meio do qual tudo veio à
existência, lhe ensinou que se manifestara em figura humana, o Homem Primordial.
117
Ora, o paradigma do Homem Primordial, presente no mundo inferior, é
qualificado como “luz”, “homem de luz” ou mesmo “Adão de Luz”. De acordo com
outro tratado da Biblioteca de Nag Hammadi, denominado “Sobre a origem do mundo”,
este “homem de luz” teria surgido no primeiro dia da criação, por vontade do deus-
demiurgo (Gênesis 1,3). Cuida-se, em verdade, do chamado “homem espiritual” junto
ao qual se posta uma mulher espiritual, ou “Eva superior”, em razão de uma lei
conhecida como “sizígia”
39
. Esta mulher é tida como uma auxiliar de Adão, uma
epinóia
40
derivada dele e que jaz escondida nele para que os Arcontes (os anjos
auxiliares do demiurgo) não a conheçam; ela é aquela que ampara todas as criaturas,
sofrendo, ademais, com o homem, e o instruindo acerca de sua queda, de sua
deficiência, e do caminho de retorno à origem.
O maravilhoso reflexo deste “Homem Primordial”, ou “Adão de Luz”, estimula,
o demiurgo e seus anjos, a criar o primeiro ser humano, Adão, que seria a reprodução,
na instância material, desta imagem celeste. Adão é criado no sexto dia, sendo dotado
da mesma essência dos seres demiúrgicos; trata-se do “homem psíquico” (Gênesis, 1,
26). Este homem psíquico é criado à imagem do Deus transcendente – já que, em ato
posterior, será o receptáculo de um espírito (um pneuma, um sopro) que, por sua vez, é
um reflexo do “Homem Primordial” – e à semelhança do demiurgo (do deus
secundário), porquanto seja, sua matéria psíquica, a mesma do seu artesão. Como,
todavia, estivesse, o homem psíquico, a jazer, sem vida, por não ter espírito, mas, tão
somente, alma, e sendo, os Arcontes, incapazes de insuflar-lhe o alento, o Espírito
“desceu” de sua instância suprema e habitou nele (Hipóstase dos Arcontes, 88, 11-14).
Com isso, o homem espiritual tornou-se um homem completo, capaz de elevar-se.
39
Do grego sýzygos = cônjuge.
40
Em grego, “astúcia”, “invenção”.
118
Há uma outra versão para o episodio, contida no “Apócrifo de João” (19, 21-34):
o demiurgo, por ser filho de Sophia – a Sabedoria – detinha o poder de sua mãe, qual
seja, o elemento espiritual. Os luminares (que haviam elaborado o corpo psíquico à
semelhança do Ser Primordial), com o objetivo de recuperar a potência de Sophia
instaram Yaltabaot, o demiurgo, a soprar, sobre o rosto do homem psíquico, o seu
próprio alento. Ao fazê-lo, Yaltabaot, sem o saber, privou-se da potência de sua mãe,
que habitava o seu interior, transferindo-a ao homem psíquico, Adão, que, ato contínuo,
se moveu e resplandeceu. Disto advém a envídia, a inveja perniciosa, nutrida, pelo
demiurgo e por seus anjos, pelo homem, visto que, através do estratagema descrito
acima, aqueles, embora tenha sido os criadores deste, não detém, em seu espírito, uma
parte divina. Este sentimento de pronto se transmudará em franca animosidade, de sorte
que a esfera demiúrgica sempre conspirará para que a parte espiritual, do ser humano,
seja inoperante.
Juntamente com o Adão psíquico surge uma Eva psíquica, a qual guarda
semelhança com a Eva espiritual e tem, como missão, vivificar, psiquicamente, seu
consorte.
Por último, na antropogonia gnóstica, tem lugar o advento do homem material.
Narra o Apócrifo de João (21, 4-9), que os Arcontes arrastaram Adão até a “sombra da
morte” a fim de modelá-lo outra vez – nesta oportunidade com uma mescla de terra,
água, fogo e o espírito que procede da matéria (a ignorância consubstanciada na
obscuridade e no desejo). Modelado, enfim, com os seus três elementos, o homem é
colocado, pelos Arcontes, no paraíso. Ocorre que a introdução, de Adão e Eva, em
corpos materiais, os havia feito olvidar o seu elemento espiritual. Ora, é justamente para
eliminar este esquecimento e desvelar a consciência adormecida de Adão, que surge a
serpente, na qual se esconde a “Eva Superior”, a ajudante de Adão. Por meio dela, abre-
119
se a consciência de Adão e Eva, posto que, ao comerem o fruto que lhes fora ofertado
pela serpente, brilhou, neles, a luz do conhecimento, o que os fez se encherem de pudor,
eis que desnudos perante o conhecimento. A ascensão do casal originário ao
conhecimento se dá contra a vontade dos Arcontes que, assim, o expulsa do paraíso
(Sobre a Origem do Mundo, 119, 13-15).
Já fora do paraíso, Eva, com o consórcio do Arconte ou dos arcontes, concebe a
Caim e Abel, homens puramente psíquicos. A geração de Seth, filho de Adão, ao
contrário, surge em razão do já referido princípio da sizígia. Segundo o Apócrifo de
João (24, 35-25, 4), Adão engendrou o filho do homem e lhe deu o nome de Seth; este,
de acordo com o modo de geração vigente entre os éons, recebeu, também, o espírito de
sua mãe. A descendência de Seth será, segundo o Evangelho dos Egípcios (59, 13-15),
de Nag Hammadi, uma raça grande, incorruptível, de grandes e poderosos homens: nada
menos do que os gnósticos, a geração indômita. O tratado Zostrianos (30, 9-13) designa
os gnósticos, precisamente, como herdeiros de Seth.
Esta concepção está estritamente conectada com a soteriologia gnóstica, já que
os descendentes de Seth, a saber, os gnósticos, já são, segundo o mito, dotados de um
conhecimento – gnose - suficiente para resgatá-los do degredo corpóreo. Entretanto, o
demiurgo e seus auxiliares tudo farão para evitar que a centelha divina, proveniente da
Sabedoria, seja despertada pelos seres humanos e neles se manifeste, razão pela qual
instilam, nestes, o desejo sexual e, com ele, o anseio de continuar gerando matéria, o
cárcere do espírito. Assim, teria lugar algo semelhante ao que já ocorrera, a Adão e Eva
– o esquecimento do elemento espiritual presente no seu próprio ser – antes da
intervenção da serpente. O objetivo do demiurgo é, em síntese, fazer com que a divina
“fagulha” permaneça adormecida e prisioneira na matéria e, via de conseqüência, não
aspire, jamais, a retornar ao transcendente e ao Pleroma, donde provém. Sua malévola
120
intenção é manter o maior número possível de seres humanos nesta obscuridade
impeditiva da redenção.
A humanidade, destarte, se multiplica por geração carnal, e se divide em três
classes: há os seres humanos puramente materiais, denominados hílicos
41
, para os quais
não há nenhuma possibilidade de salvação, eis que o demiurgo, ao criá-los, não
insuflou, em seu interior, nenhuma parte da “chispa” divina, ou pneuma
42
; situação um
pouco melhor é a dos psíquicos, a segunda classe de homens, já que recebedora de uma
semi-insuflação do demiurgo, o hálito de sua única substância, a anímica ou psíquica;
condição privilegiada é a do terceiro grupo, os pneumáticos ou espirituais, porque
agraciada com a insuflação plena, isto é, psíquica e espiritual.
Observam, argutamente, Piñero, Torrents e Bazán (2000, p. 78), que tal
estratificação da sociedade, levada a efeito pela antropologia gnóstica, teve uma
importante projeção social, visto que as três classes de seres humanos, lá
esquadrinhadas, refletem a realidade vigente no Império Romano da Antiguidade
Tardia: os pagãos eram os hílicos, destinados à aniquilação; os judeus e cristãos eram os
psíquicos, os quais, por viverem da fé e estarem submetidos a regras morais, poderiam
alcançar uma semi-salvação ou uma redenção em nível intermediário; por fim, os
gnósticos eram os espirituais, ou pneumáticos, destinatários da salvação integral,
porquanto fossem os únicos a possuir a gnose, o conhecimento da centelha espiritual ou
divina. Sua redenção, assim, se ligava à natureza, não à conduta.
Em suma, resulta cabível afirmar que, de acordo com a antropologia gnóstica, o
ser humano compõe-se de três partes: a material, que é o corpo, a anímica ou vital, à
qual se devem o movimento e as funções vitais, e a espiritual, na forma de uma centelha
41
Do grego hýle = matéria.
42
Ar, espírito, em grego.
121
divina, independente da matéria, mas, desafortunadamente, aprisionada no corpo. Neste
sentido, o “eu” verdadeiro é o espírito, cuja pátria não é este mundo. Por conseguinte,
passível de salvação plena é o espírito, ou alma superior; visto que à alma inferior toca,
apenas, uma salvação intermediária (a dos psíquicos), porquanto adstrita ao talante do
demiurgo.
4.5 Salvação e Antropogonia/Antropologia em Plotino
Discorrer acerca do homem, em Plotino, é falar da alma; via de conseqüência,
perquirir sobre a origem do homem é compreender o mecanismo de “queda” da alma.
Por fim, tratar da salvação da alma é entender como ela, a partir do mundo material,
empreende a viagem de retorno ao Uno.
De acordo com o licopolitano, as almas individualizadas estavam, na origem,
associadas à Alma Universal, a terceira hipóstase. É o que se depreende da Enéada, VI,
4, 14, citada por Reale (1994, p. 498):
Mesmo antes que ocorresse o nosso nascimento, nós estávamos lá em cima:
éramos outros homens, individualmente determinados e também deuses,
almas puras, com o Espírito juntamente com o Ser, inteiras, partes da
Realidade espiritual sem confins e sem cisões, mas pertencentes ao todo;
tanto é verdade que até hoje não estamos separados dele.
Em tal estado, a alma é capaz de conhecer, intuitivamente e através do Espírito,
o próprio Bem. Unida ao Espírito e ao Bem, a alma tudo conhece, tendo, ademais, plena
consciência de si. Se o Uno é a fonte primeira de luz, o Intelecto, que vem depois dele e
é inteiramente luminoso, pode ser comparado com o Sol, ao passo que a alma, por
receber sua luz do Intelecto, é comparável à Lua (Enéada V, 6, 4, 14-16).
122
Ora, se assim é, por que as almas descem aos corpos, quando poderiam, pela
theoria, permanecer contemplando a segunda hipóstase, da qual recebem luz? Por que
abandonam tal estado de plenitude em troca de uma condição enfermiça e dolorosa, que
é a da existência humana? A primeira razão para que isto ocorra é a própria lei da
processão, segundo a qual a Alma Universal, a fim de expressar todas as possibilidades
que lhe são inerentes, deve engendrar não só o Universo em geral – através da alma do
cosmos – mas, também, todos os seres viventes particulares – dentre os quais, o homem
– através das almas particulares. O grande objetivo de toda esta operação é nada menos
do que a plenificação do desenvolvimento da infinita potência do Uno. De fato, se a
Alma Universal pudesse permanecer como puro pensamento, não se distinguiria do
Espírito; de igual modo, se as almas particulares pudessem permanecer como espíritos
particulares, não estariam, elas, aptas a assumir a função que lhes toca na grande peça
cósmica, qual seja, a de ordenar e reger as coisas sensíveis. Portanto, esta “descida” não
é voluntária, mas inserida no bojo de um projeto maior.
Inobstante a degradação do mundo material, Plotino chega a ter uma visão
otimista da descida da alma. Isto porque o contato com o mundo corpóreo faz com que a
alma sofra a experiência do mal, o que terá o condão de nela aguçar a consciência do
bem e desenvolver todas as virtudes que jazem em seu âmago. Além disso, estará, ela,
contribuindo, com sua descida ao mundo material, para que as potencialidades do Uno
adquiram concretude em todos os âmbitos da existência. Por outro lado, entende, o
licopolitano, que a descida à seara corpórea não deixa de ser uma expiação, por conta de
um desejo, da alma, de “retirar-se na individualidade”, de “pertencer a si própria”, o que
a faria prisioneira de corpos individuais e particulares (Enéada, V, 1,1).
Esta pretensão de auto-suficiência, este “orgulho cheio de audácia” (CLOTA,
1989, p. 59) é o propulsor negativo da queda. Isto porque, se toda a realidade procede
123
do Uno, o mal somente pode consistir em um desejo de romper os laços originários com
Ele, ruptura, esta, que unicamente pode ocorrer no nível da alma, já que é, no âmbito
dele, e somente aí, que o ser, e o não ser, se tangenciam e tocam. Daí porque, para
Plotino, separar-se do corpo é um recolher-se em si mesmo, mantendo-se imune às
paixões (Enéada I, 2, 5).
Ao lado disso, tem-se que a alma, quando já sediada em um corpo, tende a
devotar excessivo cuidado a este mesmo corpo, tornando-se serviçal das coisas
exteriores e se esquecendo de si mesma e de sua origem, isto é, de Deus (Enéada, IV, 8,
4). Este é, efetivamente, o grande delito praticado pela alma individual e que caracteriza
o ser humano. “A única causa da total ignorância de Deus consiste em apreciar as coisas
terrenas e desprezar o próprio ser” (Enéada, V, 1,1).
O apego do homem, à matéria, é, assim, a causa de seus infortúnios. Entretanto,
é curioso observar que, embora associe a matéria ao mal, Plotino, na polêmica
antignóstica, afirma, contrariamente aos seus antagonistas, a positividade do mundo
físico. Como compreender esta aparente contradição? Ora, para Plotino, a matéria ocupa
a instância mais inferior de todas, abaixo da terceira hipóstase, não sendo possível,
depois dela, ter lugar qualquer outra coisa. Ela é o oposto do Uno: enquanto este é auto-
suficiente, pleno e do qual todos os entes dependem, a matéria é carente de plenitude,
incompleta: o seu modo de existir é caracterizado pela privação, a passividade e, por
extensão, pelo mal. Nada obstante, como já se afirmou algures, se inexistente a matéria,
a alma não travaria contato com o mal e, por conseguinte, não desenvolveria as suas
máximas virtudes, privando-se, assim, da redentora epistrophê, do ardentemente
almejado retorno à sua verdadeira pátria. Em outras palavras, o caminho salvífico da
alma começa no corpo, daí a positividade da instância material. Se o corpo é o cárcere e
a tumba da alma (Enéada I, 1, 3), é justamente a partir dele que a alma deve tentar
124
escapar do seu império. Ademais, para Plotino, a instância material é um reflexo –
pálido, é verdade - do inteligível, que é perfeitamente bom e belo; sendo reflexo, não
tem luz própria, e sendo reflexo de algo bom e belo, não pode ser ontologicamente má,
como asseveravam os gnósticos.
Portanto, embora Plotino, tal como Platão, conceba o corpo como uma tumba
(sema) ou um cárcere (phroúra) da alma, não parece correto inferir, disso, uma
depreciação da matéria à maneira gnóstica. A matéria, como já se asseverou acima,
participa de um complexo modelo explicativo da realidade e do homem, denominado
descendente, ou por via de participação, no âmago do qual os entes materiais ocupam
uma posição secundária, porém necessária. Neste quadro, Plotino não atribui ao
káthodos, ou queda da alma no corpo, um sentido marcadamente negativo, ou mesmo
como sendo, esta, a causa do mal em um sentido estrito, como o faziam os gnósticos. O
que torna a alma real e dolorosamente caída não é o káthodos em si, mas o
esquecimento de sua origem, que experimenta ao capitular aos encantos do mundo
material e conceber, este último, como sendo a única realidade. Para esta alma, olvidada
de si, o corpo é, efetivamente, um cárcere, já que suas asas, apegadas à terra, se fizeram
atrofiadas. Entretanto, este processo não deriva, de modo inevitável, do káthodos; ao
revés, é algo não natural, verificado, somente, por culpa da alma, que deveria ter
guardado uma distância prudente do corpo, restringindo-se ao seu papel de ordenadora e
governante daquilo que, na ordem dos seres, vem depois dela (SANTA MARÍA, 2005,
p. 118-119). A salvação, malgrado isso, sempre está ao alcance da alma – e, por
conseguinte, do ser humano - que se disponha a, relembrando sua procedência,
empreender o caminho de retorno ao Uno.
125
4.6 Salvação e ética na Gnose
Assinala Kurt Rudolf (1987, p.252) que a ideologia gnóstica, pelo fato de nutrir
uma profunda antipatia pela instância material, pouco se interessa pela ética, isto é, pela
maneira mais sábia de se estar no mundo. Sua atenção se volta ao que está além e fora
da realidade sensível já que esta é, apenas e circunstancialmente, um local de passagem,
obscuro e repugnante - a morada do mal, do qual se deve escapar, o quanto antes.
Destarte, o local da praxis ética, entre os gnósticos em geral, se resume às pequenas
irmandades de redimidos. Trata-se de uma “ética soteriológica de irmandade”, que não
tem compromisso com o mundo presente; antes, deve, ela, assegurar, aos membros da
comunidade, por um lado, a conveniente separação da vida extramuros, da
mundanidade, e, por outro, a salvação plena no outro mundo, o final retorno do espírito
ao Pleroma. A segregação parece clara: “Não batizai a vós mesmos com a morte e não
confiai naqueles que são inferiores a ti...” (Zostrianos, 131, 2-3).
O destinatário desta ética não é, a bem da verdade, o indivíduo carnal – embora
ela seja exclusivista e mesmo solipsista – mas o núcleo impessoal, não mundano, deste
mesmo indivíduo, a saber, a divina centelha que jaz, idêntica, em cada ser, inobstante as
flutuações e as aflições da existência material.
Trata-se, efetivamente, como pontua Rudolf (1986, p. 253), de uma “ética da
irmandade”, já que são, justamente, a antipatia pelo cosmos e o sentimento de serem
estrangeiros no mundo, que unem os membros da comunidade gnóstica e os fazem
irmãos.
O visceral desapreço pelo mundo, por um lado, e o viver conforme um
conhecimento libertário da dimensão corpórea, por outro, tornava, os gnósticos em
geral, fortemente arredios às convenções morais, já que estas tinham origem terrena e
126
buscavam ordenar os assuntos terrenos. Este singular modo de encarar a existência
humana ensejava a adoção, por parte dos gnósticos, de duas posturas aparentemente
contraditórias de estar no mundo: o ascetismo e o amoralismo libertino (JONAS, 1963,
p. 46). Assim, enquanto, em algumas comunidades gnósticas, a luxúria parecia reinar
sem freios, em outras prevalecia a mais estrita abstinência sexual. Embora antagônicas
tais condutas remontam a uma só atitude: a recusa na subordinação aos ditames de um
mundo degradado, impuro, mau e que, portanto, não é capaz de criar regras que regulem
a vida daqueles que, em relação a ele, são estrangeiros. Os pneumáticos, ou espirituais,
por já terem tido a revelação de sua origem e de seu fim último, tinham sua salvação
assegurada e, portanto, não se julgavam adstritos a nenhum jugo de natureza moral –
quer do demiurgo, quer das fontes humanas - o que os tornava aptos a fazer o que
quisessem, em absoluta liberdade. Na raiz de tudo está, como se viu, a suprema
indiferença gnóstica ao mundo presente (originário de um erro, de um ato disparatado,
sem sentido, do demiurgo), que não é passível de reforma, mas, ao contrário, está
destinado à aniquilação, para ceder lugar ao mundo ideal, de natureza puramente
espiritual, existente no início dos tempos. A diferença entre o asceta e o libertino é que o
primeiro opta por um modo de vida caracterizado pela renúncia a tudo o que é corpóreo
e material, tudo que, em suma, o aparta da Verdade; já o segundo, por se considerar
inatingível pelas garras pestilentas da matéria – impotentes, que são, diante de seu
espírito imune - entrega-se, sem pejos, à vida mundana (PIÑERO; TORRENTS e
BAZÁN, 2000, p.84).
Daí porque a ética, neste contexto, não se mostre uma condição sine qua non,
para a redenção, mas, longe disso, seja portadora de um nihilismo cosmológico – de
aberto confronto com o cosmos demiúrgico (acosmismo), e, expresse, outrossim, um
127
modo de estar com os irmãos, em uma comunidade de indivíduos insubmissos ao
mundo material e às suas convenções.
4.7 Salvação e ética em Plotino
Diferentemente da apequenada importância que os sistemas gnósticos atribuíam
à ética, em Plotino esta assume grande relevo no contexto da salvação. De acordo com o
licopolitano, o ato de se pronunciar o nome Deus, quando ausente a verdadeira virtude,
não passa disso: a vocalização de um nome, e nada mais (Enéada II, 9, 15, 42-44). Dá-
se, in casu, a umbilical ligação entre saber e virtude: “só há bem em e pela progressão
existencial na direção do Bem” (HADOT, 1999, p. 236). Para conhecer Deus, é preciso,
antes de tudo, assemelhar-se a Ele, pois somente o semelhante pode conhecer o
semelhante.
Trata-se, porém, de uma ética toda centrada no retorno da alma à sua origem,
“uma ética voltada para o sábio da Antiguidade Tardia” (DILLON, 1996, p. 318), sábio,
este, cuja vida gravita em torno do espírito, pois, como nos diz Plotino, “o mundo
sensível existe para o Espírito e olha para o alto” (Enéada, II, 9, 9). Cumpre não olvidar
que, em Plotino, os valores do espírito se postam em primeiro plano, sendo, os outros,
instrumentais em relação àqueles (REALE, 1994c, p. 513). De fato, para Plotino, a ação
boa é, em última instância, aquela que nos faz compreender o verdadeiro Ser, ou que
nos propicia a comunhão com Ele. Portanto, toda ação deve ser valorada, ab initio, à luz
de sua capacidade de nos aproximar ou, ao contrário, afastar, da instância divina.
À ética plotiniana não basta o viver de forma proba, isenta de culpa; cabe, ao ser
humano, ser Deus (Enéada I, 2, 6). Em outros termos, não é suficiente, ao homem,
assemelhar-se a Deus, o que ocorreria pela prática das virtudes civis da ética clássica -
128
justiça, sabedoria, fortaleza e temperança; impõe-se-lhe assimilar-se a Deus, o que
implica em assemelhar-se a Ele para, efetivamente, despojando-se de tudo o que é
exterior à alma, tornar-se um com Ele, na vivência rara e majestosa do êxtase. Neste
contexto, “apenas a experiência moral ou mística pode dar conteúdo ao discurso
filosófico” (HADOT, 1999, p. 243).
De fato, se as aludidas virtudes civis servem para moderar as paixões (o que já é
algo importante), as virtudes catárticas, atuam como purificações, livrando, aquele que
as pratica e observa, das paixões do mundo e dos interesses materiais, possibilitando,
com isso, que a alma, desapegada do sensível e toda voltada para o mundo inteligível, se
una ao Espírito, que lhe é afim (Enéada I, 2). Ao contemplar o Espírito, as virtudes da
alma se transfiguram, à luz das virtudes do Espírito – as matrizes, os modelos ideais -
das quais derivam. Como anota Reale (1994c, p. 514):
(...) neste nível superior a sabedoria torna-se contato da alma com o Espírito,
a justiça, o voltar-se do ato da alma para o Espírito, a temperança, o íntimo
aderir da alma ao Espírito, e a fortaleza, o perseverar impassível da alma no
Espírito impassível, sem sofrer qualquer paixão do corpo. Em resumo: nesse
nível as virtudes-paradigma são, justamente, o modo de viver da alma que,
desapegada das coisas sensíveis e tendo
reentrado totalmente em si, vive em
absoluta pureza a própria vida dos Deuses, ou seja, tornada semelhante ao
Espírito, vive a mesma vida do Espírito.
Esta onipresente adequação do agir a um fim espiritual não se assemelha, porém,
ao antinominalismo gnóstico, de franco repúdio a quaisquer normas de convivência
vigentes fora dos muros da irmandade. Para Plotino, parece ter sido relevante, não a
afronta direta aos costumes sociais e às leis – desde que decentes - mas a submissão,
destes regramentos, a um princípio maior, de natureza transcendental. Trata-se, ainda
uma vez, de balizar a vida em função das coisas do Alto, de molde a que, cada ato fosse
um passo para a salvação.
129
Por este diapasão, é possível, também, conciliar a figura de Plotino descrita por
Porfírio – a de um zeloso tutor de órfãos, afável, amoroso e preocupado com as demais
pessoas - com sua ética, marcadamente autocentrada, voltada para a salvação individual
e o além-mundo. Com efeito, segundo John M. Dillon (1996, p. 319), o cuidado, que
Plotino tinha com os outros, era, de fato, exemplar; nada obstante, a sua mente
remanescia sempre direcionada para o reino espiritual, no esforço de assimilar-se ao
Uno, objetivo maior da vida do ser humano. Isto se liga ao fato de que, para Plotino,
diferentemente de que para os gnósticos, todos os seres humanos eram, igualmente,
capazes de alcançar a salvação, sendo, pois, merecedores de idêntico respeito. Além
disso, se para assimilar-se ao Uno, era necessário assemelhar-se a Ele, e Ele era o puro
Bem, nada mais natural do que cultivar a bondade na vida cotidiana. Segundo o
licopolitano, quanto melhor alguém é, tanto mais gentil é com todas as coisas e toda a
humanidade (Enéada II, 9, 9, 44-45). Neste sentido, anota, Pierre Hadot (1993, p. 96),
que a vida inteira de Plotino consistiu na exteriorização desta gentileza, que nada mais
era do que a explicitação do Bem na vida cotidiana. Como asseverava o licopolitano, “o
Bem é gentil, suave, muito delicado e sempre à disposição de todo aquele que por ele
anseie” (Enéada V, 12, 33-35).
Salvação e ética, em Plotino, se auto-implicam, já que é pelo desenvolvimento
progressivo do espírito que o ser humano galga os primeiros degraus do corpóreo ao
incorpóreo. Enfim, como assevera Reinholdo Ulmann (2002, p. 134), “para desprender-
se do mundo dos sentidos, é mister uma constante purificação, a fim de que o homem se
unifique sempre mais”, até o inteligível puro, o Uno. E o ser humano se torna bom, na
medida em que age conforme a razão e busca a simplificação (hénosis) interior. Esta
simplificação ou purificação interior conduz, aquele que a empreende, ao
130
reconhecimento do estado originário de sua alma e, ato contínuo, à união, do seu ser,
com o Uno.
Em suma:
Pelas virtudes, o homem conquista a liberdade interior, a qual o resguarda
das inclinações, desejos e paixões que buscam a satisfação corporal.
Subjuga-se, assim, o mal pela aretê
43
, a fim de praticar um permanente
exercício da presença de Deus. A virtude plotiniana tem por fito a união com
o divino (ULMANN, 2002, p. 142).
Por derradeiro, certo é que, segundo Plotino, o homem virtuoso, embora padeça
sofrimentos, não é, no nível da alma, afetado por eles: “A pobreza e a enfermidade nada
são para as pessoas de bem...[Tais coisas] são uma desgraça apenas para os malvados”
(Enéada III, 2, 5). Isto porque o homem virtuoso e cultivado sabe que sua melhor parte é
imortal e imune às desventuras terrenas.
A prática da virtude, destarte, como que preserva, o homem virtuoso, de ser
afetado pelas vicissitudes da existência corpórea, preparando-o, outrossim, para a via da
dialética, a arte seguinte no caminho ascensional. De fato, se, através da purificação
proporcionada pela ética, o ser humano parte do material e alcança o inteligível, será por
meio da dialética, a ciência de conhecer os princípios que o permitam mover-se pelas
alturas (Enéada I, 3, 3), que o homem elevar-se-á ainda mais. Entretanto, a ciência é
discursiva e, como tal, implica em multiplicidade; daí porque o coroamento do sistema é
o êxtase supra-intelectivo, a simplificação do ser para assimilar-se ao Ser.
43
Excelência, virtude, em grego.
131
4.8 Síntese Conclusiva do Capítulo
A obtenção do estado salvífico, entendida como o cume da existência humana,
mostra-se como a maior preocupação de Plotino nas Enéadas. De igual modo, o
problema soteriológico é onipresente na gnose, uma doutrina de salvação por
excelência.
A salvação liga-se à vivência de um estado de plenitude, propiciada pelo resgate
de uma condição originária imaculada e perfeita, que, por razões diversas e em um
determinado momento, foi perdida ou olvidada, pelo ser humano, desde então refém da
carência e da incompletude.
Neste capítulo, buscou-se examinar o tema da salvação, em Plotino e entre os
gnósticos em geral, e sethianos em particular, sob três vieses: o
cosmogônico/cosmológico; o antropogônico/antropológico e o ético. Isto porque a
soteriologia, tanto na visão plotiniana, quanto gnóstica, perpassa os problemas atinentes
ao surgimento do cosmos e do ser humano, repercutindo, outrossim, de forma mais ou
menos pronunciada, no viver e no conviver humanos.
Assim, se, segundo os gnósticos, o mundo é produto de uma falha e moldado
pela atuação de um artesão perverso, sendo, por conseguinte, mau, para Plotino ele é
resultado de um bem articulado processo de irradiação do Uno, cujo nível mais baixo é
a matéria, negativa porque sinônimo de insuficiência, mas, também, positiva, no sentido
de que é dela que a alma parte para empreender o caminho de volta, o epistrophê, ou
conversão.
De outra banda, enquanto a antropogonia gnóstica advoga a existência de três
espécies de seres humanos, sendo que somente a uma delas é assegurada a redenção,
132
para Plotino a salvação é algo ao alcance do ser humano em geral, desde que observadas
condições de purificação interior que propiciem o êxtase e a união com o Uno.
Por último, tratou-se da importância que Plotino, de um lado, e os gnósticos, de
outro, atribuíam à ética: elevada, para o primeiro, e nenhuma, para os últimos. Isto
porque, se para Plotino, o cultivo das virtudes pavimentava a senda salvífica, para os
gnósticos - que no rol das três espécies de homens, seriam os pneumáticos ou espirituais
- a salvação já estava assegurada por natureza, independentemente do seu agir no
mundo.
133
5. O CAMINHO PARA A SALVAÇÃO, EM PLOTINO E ENTRE OS
GNÓSTICOS
Após a análise da salvação, no bojo das concepções, plotiniana e gnóstica, das
origens e da conduta, nos resta formular três questões, tocantes ao caminho salvífico em
si, e que, a nosso ver, merecem aprofundamento, com vistas à correta compreensão do
tema estudado. Assim, segundo Plotino e os gnósticos ora enfocados:
Qual o modus operandi da salvação, ou em outras palavras, como se atinge o
estado de redenção?
Quem é o protagonista da salvação: aquele que, por seus próprios esforços,
busca redimir-se, ou, ao contrário, forças exteriores ao homem?
A salvação se completa no âmbito daquele que se redime, ou está sujeita à
superveniência de uma redenção cósmica?
5.1 O Modus Operandi da Salvação: êxtase e revelação
O problema da salvação, para Plotino, bem como para os gnósticos, surge, em
síntese, como observa Puech (1982, p. 110), da confrontação entre a existência eterna,
da verdadeira permanência em Deus, e a nossa situação atual, caracterizada pela
insuficiência e dominada pela ilusão.
Mas, qual ilusão? A ilusão do “eu”, que se julga distinto de sua origem e,
portanto, particular, este “eu” que se encontra apartado do originário estado de
134
universalidade e, a esta altura, limitado ao mundo do espaço e do tempo (Enéada VI, 4,
4).
Em bela passagem (Enéada, I, 6, 22-28), Plotino equipara, a salvação, a uma
viagem mística da alma para o Absoluto, um retorno ao Pai, à verdadeira pátria, que se
perfaz através da entrada, do ser humano, em si mesmo.
Pois bem, nossa pátria é aquela da qual partimos, e nosso Pai lá está.
E que viagem é esta? Que fuga é esta?
Não se pode realizá-la a pé: os pés nos levam sempre de uma terra à outra.
Tampouco deves te valer de uma carruagem ou de uma embarcação, mas
prescindir de todos estes meios e não pôr os olhos neles; antes, como que
fechando os olhos, deves trocar esta vista por outra e despertar a que todos
têm, mas que poucos usam.
Diferentemente dos gnósticos em geral, para os quais o mundo espiritual era um
lugar supraterrestre, do qual estava, a alma, separada por uma vastidão de espaço
celestial, para Plotino a instância incorpórea era do que o próprio self em seu nível mais
profundo (HADOT, 1998, p. 25), vale dizer, em seu mais recôndito – e maravilhoso –
abismo. Disto resulta que, ao cerrar a vista material, desperta-se a vista imaterial, por
meio da qual a alma perscruta o seu íntimo e lá encontra o Uno, interiorizando-se e
elevando-se, a um só tempo.
Com efeito, consoante pontua Puech (1982, p. 119), a ascensão plotiniana pode
ser entendida como sendo uma travessia de uma série de mundos escalonados em
hipóstases (da Alma, à Inteligência, até alcançar o Uno). Todavia, não se cuida aqui,
verdadeiramente, da ultrapassagem de terrenos demarcados, como se verifica no mito
gnóstico. Neste, a alma, após uma revelação ou uma série de revelações, vai superando
as diversas esferas contidas no Pleroma, recebendo, em cada “arcontado”, ou instância
dominada por um Arconte, um batismo que lhe permite seguir adiante; já naquela – na
135
ascensão plotiniana – tais mundos não se acham sobrepostos, uns aos outros, no espaço,
posto que se cuida de uma única e mesma realidade, da qual a Alma, a Inteligência e o
Uno, no contexto da processão, são, apenas, aspectos sucessivos.
Este processo de ascensão, em Plotino, traz, em seu cerne, a relação entre
potência e ato. Como bem observa Puech (1982, p. 119), nossa alma particular é alma
particular em ato, mas é Alma Universal em potência, ao passo que a Alma Universal é
universal em ato, mas almas particulares em potência (Enéada VI, 4, 116). De igual
modo, cada inteligência particular é particular em ato, enquanto que, em potência, todas
são Inteligência Universal. Esta última, por sua vez, é, em potência, cada uma das
inteligências individuais (Enéada VI, 2, 20). Há, desta forma, uma única e idêntica
realidade, que, todavia, se mostra em níveis diferentes, no âmbito de um equilíbrio entre
ato e potência, entre atualidade e virtualidade. A alma que almeja ascender ao Uno há
de deixar de se particularizar em ato; há, ao revés, de se desprender de sua singularidade
presente e ativa, em prol do que é em potência, sucessivamente, até o estado de
simplificação absoluta, que caracteriza o Uno (Enéada VI, 9, 11).
Neste contexto, já em vida é possível, ao ser humano, redimir-se. Sua salvação
depende, primeiramente, de um processo depurativo, que percorre o caminho das
virtudes – das inferiores, ou cívicas, para as ditas purificadoras e, em seguida, para as
superiores. Este processo, contudo, não é capaz, por si mesmo, de assegurar, ao homem,
a salvação. À purificação segue-se a conversão e, a esta, a união com a Inteligência. O
Uno, de sua parte, por remanescer além da Inteligência, somente pode ser alcançado
pela parte supra-intelectiva da alma, após a mesma abandonar tudo, inclusive o seu
nível intelectivo.
A purificação é entendida, por Plotino – no que ele é tributário de Platão – como
um processo através do qual a alma busca assemelhar-se a Deus através da virtude.
136
Haveria, neste sentido, de acordo com o Teeteto (176 b) dois graus de assemelhação a
Deus pela virtude, sendo, o primeiro deles, aquele proporcionado pelas virtudes cívicas,
cuja prática visa não ainda a separação da alma, do corpo, mas o regramento dos
apetites e das paixões a fim de que os mesmos não superem os ditames da razão
(Enéada I, 2, 1, 16-21 e 2, 13-16). O outro e superior processo seria aquele
proporcionado pelas virtudes purificadoras, que teria, como escopo, efetivamente
separar a alma do corpo, de tal modo a que as afecções deste último – prazeres, dores,
iras e apetites – não mais afetassem, de qualquer modo, aquela. Todavia, para Plotino,
mesmo essas virtudes não são ainda as ditas superiores, justamente porque o processo
de purificação, mesmo em seu grau mais elevando, traz, em si, a marca do negativo:
trata-se de livrar, a alma, de suas indesejáveis aderências terrenas, fruto de seu contato
com a matéria, não – nesta fase – de propiciar-lhe a conversão e a posterior união com a
Inteligência (que é um procedimento positivo, no sentido de que não apenas livra a alma
do que não lhe é inerente, mas lhe propicia a assunção de um estado novo).
Plotino se vale de belas imagens para designar o processo de purificação: trata-
se de remover, da alma, o que não lhe é próprio (Enéada I, 2, 3-5), isto é, de livrá-la do
barro que a reveste, tal qual o garimpeiro depura o ouro, separando-o da terra, que
aderira ao mesmo, por força do contato com a matéria (Enéada I, 6, 5, 31-58).
Entretanto, a purificação não implica em livrar, a alma, de uma mancha original,
que ela carregasse desde o início dos tempos. Isto porque as nódoas e os vícios são
exteriores a ela e, portanto, não a maculam. A purificação, assim, não se liga à limpeza
da alma, mas ao abandono, por parte desta, de tudo quanto lhe é exterior e estranho, de
tudo que a impede de recobrar a originalidade primeva. “Áphele panta”, “Elimina
tudo”, é o que nos recomenda Plotino, para que possamos nos purificar (Enéada VI, 8,
21) e o será, também, na ante-sala do Uno, quando a alma deverá se despir mesmo de
137
sua capacidade intelectiva. Eliminação, ou desprendimento, por primeiro, do corpo, ou
melhor, das paixões, privilegiando, ademais, a contemplação, à ação; em seguida, das
manifestações terminais da alma, que a ligam à multiplicidade do mundo: sensação,
imaginação e memória, já que a sabedoria advém, segundo este enfoque, do ato de
esquecer, porquanto este também atue na redução do múltiplo; por último, de tudo o
quanto é diferenciação (e o intelecto, ao operar no nível da razão, é discriminador por
excelência), já que entre nós e o Uno – que é a total indiferenciação - não há distância
alguma, apenas diferenças engendradas pelo “eu” artificial, que, repleto de acréscimos
que lhe são estranhos, perambula na ilusão.
À purificação segue-se a conversão e, a esta, a união da alma com a Inteligência.
Esta união, no dizer de Jesus Igal (2001, p. 96) já é a virtude superior perfeita,
caracterizando-se por uma iluminação, através da qual frações do inteligível, na alma,
são despertadas (Enéada I, 2, 4, 13-29). É desta forma que o homem superior, ao deixar
o mundo sensível e ingressar no inteligível, empreendendo, a um só tempo, um
movimento ascensional e interior, modela sua própria estátua e se põe, efetivamente, no
caminho de retorno ao que, verdadeiramente, é (Enéada I, 6, 9, 7-15 e I, 3, 1, 12-14).
Nada obstante, a Inteligência não é, ainda, o porto de chegada. A Inteligência
segue pensando-se; em seu agir há, ainda, sujeito e objeto, o que a coloca um passo
aquém da suprema - e redentora - indiferenciação. O processo de salvação, em Plotino,
tem como acmé - cume, ponto máximo - uma experiência supra-intelectiva insuscetível
de análise racional, uma vivência do Uno, que não é pensamento, mas, sim, contato
imóvel; que não é ciência, mas, sim, o verdadeiro estado salvífico (Enéada VI, 9, 9, VI,
7, 34 e VI, 9, 4). Trata-se de uma comunhão (synousia); é a maravilhosa percepção
daquele que, tendo saído de si, simplificado e abandonado a si mesmo, “contempla o
que há no santuário” (Enéada, VI, 9, 11). E o que lhe é propiciado, por meio do êxtase,
138
contemplar no santuário? “A fonte da vida, a fonte do Nous, o princípio do Ser, a causa
do Bem, a origem da alma” (Enéada VI, 9, 9, 1-2).
Cuida-se, em suma, nas precisas palavras de Puech (1982, p. 121), da
experimentação pessoal de um estado teopático. É justamente esta experiência redentora
que confere uma certeza experimental ao procedimento salvífico proposto por Plotino; é
ela que confirma o que as linhas das Enéadas sugerem (Enéada VI, 9, 4 e 9). Diz-nos o
licopolitano: “Lá em cima não há engano; onde poderia a alma encontrar a verdade mais
autêntica do que ali?” (Enéada VI, 7, 34, 27-28). Outra prova da ocorrência da salvação
através do êxtase é através dos frutos dele decorrentes: “que o Bem foi atingido prova-
se (...) quando se atingiu a plenitude do Bem e se permanece com Ele e não se procura
outra coisa” (Enéada VI, 7, 26, 12-14).
E qual é o motor que impulsiona este retorno? Nada menos do que o amor, o
desejo, o nous erôn (Enéada VI, 7, 35). Diz-nos Plotino que somente a alma enamorada
da beleza supra-sensível poderá chegar à instância inteligível (Enéada V, 9, 2). E é
justamente amor nostálgico o que a alma sente quando o que há de inteligível nela é
despertado, fazendo-a rememorar a sua origem. Isto se explica porque, sendo a alma
originária de Deus, lhe é natural amá-Lo (Enéada VI, 9, 9, 24-27). Ora, tal qual a pessoa
que, ao ver a imagem do ente querido, sente o desejo de compartilhar, com ele, o seu
amor, assim também ocorre com a alma, ao reconhecer, em si, algo do sublime Bem,
que é Deus (Enéada VI, 7, 31, 8-11).
Salvar-se, pois, é retornar à pátria querida (Enéada I, 6, 8, 16), à casa do Pai
(Enéada VI, 9, 9, 34-38), ao verdadeiro Amado (Enéada VI, 9, 9, 44). É aphaíresis
(abstração do mundo sensível), epistrophê (retorno), hénosis (unificação), apokatástasis
(regeneração, restauração), paradochê (acolhida do que já está presente). É, em suma, a
fuga do só para o Só (Enéada VI, 9, 11, 45-47).
139
A salvação, em Plotino, não se funda em revelações, cultos, orações ou magia
(Enéada IV, 4, 30-45), mas se perfaz pelo mergulho místico, do ser humano, em si
mesmo, já que, por conta da processão das hipóstases, não há qualquer interrupção da
irradiação do Uno, de “alto” a “baixo”, o que permite a ascensão do homem, a partir de
si, até Ele; inexiste, por conseguinte, um hiato entre a realidade sensível e a inteligível.
Em verdade, “a alma nunca desce por inteiro até aqui embaixo, já que possui sua
própria permanência no inteligível e não se pode desprender dele” (Enéada IV, 8, 8).
Jesus Igal (2001, p. 99) entende que o êxtase final é portador de uma revelação
súbita, análoga à epopteía das religiões de Mistério. Entretanto, segundo nosso juízo,
esta revelação, que ocorre durante o êxtase, difere da revelação de matriz gnóstica, seja
daqueles que seguem um padrão ascensional, seja naquelas outras que se submetem a
um padrão descensional. De fato, nesta última, há um Revelador, um ser de esferas
superiores, que, de lá provindo, disponibiliza, ao gnóstico, o conhecimento de
mensagens sublimes; vale dizer, o conhecimento sagrado e libertador “desce”, dos
píncaros celestes, para o gnóstico, que habita o mundo terreno. No chamado padrão
ascensional, o próprio gnóstico é quem suscita, em si mesmo, a ocorrência de estados
superiores de consciência, no bojo dos quais uma ou mais revelações teriam lugar.
Porém, mesmo esta parece não ser idêntica à revelação de matriz plotiniana. É que na
revelação gnóstica, em seu tipo ativo ou ascensional, embora o ser humano gnóstico
empreenda, por si só, uma ascensão, recebe, quando chegado às superiores instâncias, o
ensinamento de um ou mais seres, que o guiam pelas seras celestes, dirigindo-lhe
sucessivos batismos e lhe disponibilizando esclarecimentos inigualáveis.
Ora, no êxtase plotiniano, não há seres intermediários, a um só tempo,
portadores e disponibilizadores de “revelações”. Portanto, quer nos parecer que o termo
“revelação”, em Plotino, mereça remanescer circunscrito à acepção de “iluminação”,
140
“desvelamento”, “descortinar”, mas, sempre, no âmbito da experiência extraordinária
daquele que a empreende, sem o consórcio de auxiliadores extracorpóreos que
“descem” ao nível do ser humano ou que o guiam nas esferas celestiais.
De fato, uma das razões para isto, é que o universo plotiniano se mostra como
uma “estrutura” formada por realidades subordinadas umas às outras, “como uma
hierarquia que é expansão e como uma subordinação que é continuidade” (PUECH,
1982, p. 107). Não há, como se disse e diferentemente do que ocorre nos mitos
gnósticos, uma quebra na irradiação do Princípio Primeiro. Ensina-nos Plotino que
“todas as coisas são, portanto, como uma Vida que se estende em linha reta; cada um
dos pontos sucessivos da linha é diferente, mas a linha inteira é contínua”. (Enéada V, 2,
2). As hipóstases plotinianas – o Uno, o Nous e a Alma – são como que aspectos
estáveis desta linha, que, todavia, não obstaculizam a continuidade dinâmica que lhe é
própria. Ora, esta hierarquia é eterna, disto decorrendo que tais graus da realidade
coexistem e são simultâneos: a instância inferior deriva, simultânea e eternamente, da
superior, e a superior está sempre presente na inferior; tratar-se-ia, em uma analogia
proposta por Puech (1982, p. 108), de esferas sobrepostas, que, malgrado de raios
diferentes, contam como o mesmo centro.
Ora, se o inferior traz, dentro de si, a presença do superior, do qual extrai sua
origem e no qual tem o seu ser, o processo salvífico implica em uma operação
semelhante à mudança do curso das águas de um rio, fazendo-as retornar à fonte
originária, ou ao redirecionamento de um raio de luz, da dispersão, para o seu foco
irradiador. No ser humano, isto se dá por um processo de interiorização, no bojo do qual
concentrar-se é recolher-se ao centro, retirar-se da multiplicidade e, encontrar o divino,
que está sempre presente, embora isto não implique em Lhe emprestar uma localização
espacial ou temporal: “Deus não é exterior a nenhum ser; está em todos os seres, só que
141
eles não o sabem. Passam distantes Dele, ou, melhor dizendo, longe deles mesmos”
(Enéada III, 8, 6). Há, portanto, uma “coexistência ontológica” (PUECH, 1982, p.110)
entre o ser inferior e o ser superior, e é, por conta dela, que pode ocorrer o livre trânsito
do primeiro para o último, na ascensão redentora.
A salvação, de feição plotiniana, implica, destarte, em um retorno a nós mesmos,
mediante a consciência plena de nós mesmos. É, por outro lado, a libertação do estado
ilusório do “eu”, consistente no julgar-se autárquico e divorciado de sua fonte. É o
processo ascensional, através do qual o sensível – o reino da dispersão - e,
conseqüentemente, o diverso e o múltiplo, são abandonados, em prol do inteligível e da
unidade; trata-se, enfim, de uma simplificação, já que o Uno – o porto de destino da
odisséia espiritual do ser humano - é perfeitamente simples.
O êxtase – que, em verdade, é ínstase, porque ocorre nos abismos de nossa
interioridade - redentor é o desvelamento, em um átimo, da presença do Uno; é o ato de
descortinar, em uma fração de tempo, o eterno, é “uma acolhida do que já está presente”
(ULMANN, 2002, p. 157). É de outra parte, na célebre formulação de Puech (1982, p.
122), “a contrapartida ou a correção de um êxtase metafísico, que faz brotar, do Uno,
uma série de manifestações, necessárias na processão, ilusórias na conversão”. É
facultado, destarte, a qualquer ser humano, salvar-se ainda em vida, desde que se
proponha a livrar-se da ilusão em que se encontra.
Como assinala Brun (1991, p. 77), Plotino (Enéada VI, 9, 11), nos convida ao
êxtase (ékstasis), ao desnudamento (áplosis), ao abandono de nós mesmos (epídosis
antou) e ao desejo de um contato (ephesis prós aphén), contato, este, desencadeado pela
amorosa nostalgia do filho que anseia por retornar à casa do Pai, mas que somente
poderá fazê-lo, quando tornar a ser o que, nas profundezas de si mesmo, sempre foi.
142
Para os gnósticos, diversamente, a salvação alcançada em vida é provisória; não
se a atinge plenamente até o momento da morte, o momento liberatório por excelência.
Então se dá a sylléxis, a reunião da substância luminosa e divina - que, desgraçadamente
se vira obrigada a habitar o corpo material - com o nosso verdadeiro ser, isto é, o nosso
lugar primitivo e próprio (PUECH, 1982, p. 316). Enquanto o instante final não vem,
cabe, ao gnóstico, atuar com fortaleza e perseverança, no cárcere terreno, de modo a que
o seu viver se mostre de acordo com as exigências do conhecimento superior, que detém
(PIÑERO; TORRENTS; BAZÁN, 2000, p. 80-81). A salvação gnóstica é, pois,
segundo os autores acima referidos, uma restauração do estado primitivo da alma, um
retorno do que é espiritual ao reino do espírito, sendo que a alma desperta, do seu
entorpecimento material, através da revelação da gnose, isto é, do conhecimento relativo
à essência, à origem e ao destino do ser humano.
Ora, esta salvação é dependente da revelação, isto é, da mensagem de um
Redentor, entidade sobrenatural cujo mister é o de fazer recordar, ao gnóstico, que ele
possui, em si, a centelha divina que, por um processo desafortunado, se fez prisioneira
da matéria, bem como instruí-lo na arte de fazer, esta “chispa” espiritual – que é o
espírito, ou a melhor parte do ser humano – retornar à sua origem celestial ou
pleromática. “E então, meu filho Messos, o Ser todo-glorioso, Youel, falou a mim
novamente. Ele me fez uma revelação e disse: Ninguém é capaz de ouvir estas coisas,
exceto apenas os grandes poderes, ó Alógeno” (Alógeno, 50, 9-11).
Mas o que torna, nos sistemas gnósticos, imprescindível, a revelação?
A concepção, comum a todos eles, de que Deus é absolutamente transcendente
ao mundo, não o tendo criado e nele não interferindo (JONAS, 1963, p. 45). Este Deus,
lá em suas alturas, não pode ser conhecido ou descoberto, no âmbito do mundo, ou a
partir dele, a menos que através de uma revelação propiciada, ao gnóstico, por um ser de
143
fora da corporeidade, que, assim, nele desperta o impulso para salvar-se, mediante o
conhecimento de quem é ele, de sua atual condição e de sua verdadeira origem.
Este Salvador é completamente exterior ao mundo material, totalmente não
encarnado, já que, nos sistemas gnósticos, afigura-se impensável que algum ser divino
possa mesclar-se com o mundo corpóreo – decaído e fruto da obra de um demiurgo
perverso. Tal Redentor é um Iluminador (phôstêr): “é o instrutor que traz, consigo, a
gnose, o protótipo que mostra de que maneira, mediante a gnose, é possível que o nous
chegue a se desfazer da matéria” (PUECH, 1982, p. 319).
Verifica-se, na gnose, a concepção de uma revelação repetida, porém
descontínua, isto é, que se vai tendo lugar, sucessivamente, em vários estágios da
humanidade, mas de forma não previsível (PUECH, 1982, p. 319). É o que se verifica,
por exemplo, no Apócrifo de João, um tratado da escola sethiana, que retrata o
descenso, ao mundo, por três vezes, da Providência, ou Prónoia. No Pensamento
Trimorfo, outro tratado da Biblioteca de Nag Hammadi, a revelação, ou chamada,
também ocorre em três oportunidades (PIÑERO; TORRENTS; BAZÁN, 2000, p. 81).
A trilha ascensional da alma superior (ou centelha divina) do gnóstico até o
Pleroma (a totalidade, plenitude ou perfeição da divindade), ou céu, é uma viagem do
espírito através das esferas planetárias. Por conseguinte, diversamente da odisséia
espiritual propugnada por Plotino, que é interior, a ascensão do espírito, na gnose, tem
uma conotação espacial, visto que o gnóstico deve, em sua jornada, vencer as diversas
esferas planetárias, que são governadas, cada qual, por um nada amistoso Arconte. Este
ser lhe oporá as dificuldades mais variadas, com a finalidade de impedir ou, ao menos,
tornar mais custoso e sofrido, seu retorno ao Pleroma. De acordo com o tratado As três
estrelas de Seth (127, 30), tal qual o Salvador deve abandonar o Pleroma e descer à
matéria para propiciar, aos gnósticos, a revelação salvífica, cabe, a estes últimos – ou à
144
parte superior dos mesmos, isto é, o espírito - atravessar, cautelosa e resolutamente, as
perigosas esferas dominadas pelos Arcontes do Demiurgo.
Para defender-se, o gnóstico pode se valer de certos ritos ou símbolos especiais.
Do mesmo modo, pode lançar mão de algumas conjurações e fórmulas mágicas, que
consistem, principalmente, no ato de pronunciar o nome do Arconte, bem como o de
seus auxiliares, de modo a desarmá-los (PIÑERO; TORRENTS; BAZÁN, 2000, p. 86-
87).
Em sua trilha ascensional, o gnóstico não pode ceder às insinuações dos espíritos
adversários, ou permitir que sua alma seja apoderada por eles, sob pena de sofrer uma
irremediável condenação, a saber, a aniquilação total (Apócrifo de João, 27, 21-27).
De outra parte, a fim de ingressar na instância dos éons de luz, o gnóstico se
submete a alguns batismos purificadores (Zostrianos 23, 53, 14), à medida que ascende
no reino espiritual: “Tu recebeste todos os batismos nos quais devia ser batizado, e tu te
tornaste perfeito”, diz Youel a Zostrianos (Zostrianos, 62, 3-4).
No tratado Zostrianos (130, 9-10) colhe-se um brado de estímulo que, ademais,
condensa a proposta soteriológica gnóstica: “Despertai vossa parte divina a Deus, e
quanto à vossa alma eleita e sem pecado, fortalecei-a”, porque “vós não viestes para
sofrer; ao contrário, vós viestes para escapar de vossa prisão” (131, 5). Por fim: “O
bondoso Pai vos enviou o Salvador e vos deu força. Por que hesiteis? Procurai quando
fordes procurados; quando fordes convidados, escutai, pois o tempo é curto” (131, 7-9).
145
5.2 Os Atores da Salvação: salvação ativa e salvação passiva
Paul Henry (1991, 1xviii-xix), destaca que, tal qual os gnósticos, Plotino formula
uma doutrina da salvação da alma; entretanto, para ele, a salvação se dá pelas mãos de
quem a busca, não havendo, neste proceder, lugar para um Redentor que desça, de suas
lonjuras, para resgatar o homem de sua dolorosa condição e, nem, tampouco para o que,
no campo da teologia, denomina-se graça.
De fato, costuma-se ponderar que, fazendo-se, o Uno, presente em tudo e,
estando, todas as coisas, Nele, Ele se faz acessível, diretamente, ao homem, no êxtase,
não havendo lugar, neste contexto, para um ato gracioso ou um dom gratuito, por parte
da divindade, em relação a este último.
Ulmann (2002, p.147-148) destaca a participação ativa do ser humano, neste
processo:
Também a hénosis
44
plotiniana não resulta de uma revelação repentina e
casual do Uno, mas ela tem como pressuposto profunda meditação e
reflexão. Por conseguinte, a reflexão, a interiorização em si próprio, a
consciência do que o homem é, constituem preâmbulos da união com o
divino. Requerem-se, a par disso, a retidão moral e o desprendimento das
coisas terrenas, o que corresponde à via purgativa.
Destarte, à primeira vista pode parecer que, em Plotino, a salvação é
integralmente ativa, isto é, encontra-se, ela, circunscrita às exclusivas forças do homem,
ao passo que, na gnose, ela seria sempre dependente de um redentor, de um ser provindo
das alturas celestiais, do além-humano.
44
Hénosis, segundo Beierwaltes (apud ULMANN, 2002, p. 145) é um processo, um evento ou uma
experiência de superação da consciência, no bojo do qual esta atinge as suas máximas potencialidades, o
que, no sistema plotiniano, parece traduzir a união extática da alma com o Uno.
146
Todavia, na proposta soteriológica de Plotino, a ausência da figura de um
salvador parece não querer significar que, em todo o caminho salvífico percorrido pelo
homem, não se dê, em instante nenhum, um movimento, das instâncias superiores, em
direção a ele. Com efeito, ao tratar do amor nostálgico que desperta, na alma, o desejo
de retornar ao Pai, Plotino refere que tal amor nasce quando a alma recebe uma espécie
de ardor emanado pelo Supremo Bem, através do qual ela se sente confortada e
estimulada a rejeitar as coisas sensíveis e não se deter, em seu caminho ascensional, até
atingi-lo (Enéada VI, 7, 22, 8-21).
Segundo Ulmann (2002, p.112-113), “para Plotino, a graça de Deus é
desnecessária, porque o homem pode auto-redimir-se. A salvação é tarefa exclusiva do
homem. Ele é o artífice de sua salvação”. Isto porque, a realização união mística do ser
humano, com Deus, dependeria, tão só, de uma contemplação contínua e de que a alma
não sofresse perturbações corpóreas (Enéada VI, 9, 10). Entretanto, logo a seguir,
referido autor emenda: “no entanto, há passos em que o licopolitano deixa entender que
o auxílio divino é necessário”.
Realmente, não bastasse o referido ardor que se apodera da alma, há outras
passagens das Enéadas que parecem traduzir um abandono da mesma, que se deixa
levar pela atividade do divino. Neste sentido, a Enéada VI, 9, 9, 10 e 49, e VI, 9, 8.
De fato, no momento último do êxtase redentor, após a alma ter eliminado tudo
que obstaculizava o seu progresso no caminho ascensional, ela é como que raptada pelo
Uno, o que implica na postura ativa, deste último, e em uma postura passiva, daquela,
ao menos neste instante. É o que se infere da Enéada VI, 9, 11, 13-16:
Como que raptado, arrebatado ou possuído de Deus, (o ser humano) entra
silenciosamente na solidão, em um estado que desconhece perturbações e
não mais se afasta do ser dele (do Uno), nem gira mais em torno de si
mesmo, imóvel, idêntico à própria imobilidade
.
147
O tema do raptus é tratado, com singular competência, por Ulmann (2002, p.
158), pelo que vale a transcrição abaixo:
Três palavras gregas de Plotino, referentes ao raptus (ter sido arrebatado),
nos chamam a atenção: exenechtheís (é particípio passivo do aoristo do
verbo ek+phérô = tendo sido arrebatado) e harpastheís ê enthousiásas. Os
três termos significam atitude passiva de parte da alma (categoria da paixão
de Aristóteles). O fenômeno de arrebatamento parece assemelhar-se à
realidade cristã da graça dada por Deus, conforme sugerem os verbos
didónai (= dar) e chorêgeîn (= conceder) e o substantivo chorêgós. A união
com o Uno exige esvaziamento da alma, para ele poder dar tudo. Embora
vazio de tudo, o Uno contém eminenter todas as coisas.
O próprio licopolitano assim descreve, na Enéada VI, 9, 11, 13-16, este
abandono a Deus, típico da fase derradeira do êxtase:
Como que raptado, arrebatado (harpastheís) ou possuído de Deus
(enthousiásas), [o ser humano] entra silenciosamente na solidão, em um
estado que desconhece perturbações e não mais se afasta do ser dele [Uno],
nem gira mais em torno de si mesmo, imóvel, idêntico à própria imobilidade
(apud ULMANN, 2002, p. 157).
O Uno parece, de fato, agir ativamente, em relação à alma, no instante de
consumação do êxtase. É o que se depreende deste excerto belíssimo:
E quando a alma tem a chance de encontrá-Lo, quando Ele vem a ela,
melhor ainda, quando Ele lhe aparece presente, quando ela se desvia de toda
outra presença, estando preparada para ser a mais bela possível e tendo
chegado assim à semelhança com Ele (pois essa preparação, essa ordenação,
são bem conhecidas por quem as pratica), O vê aparecer subitamente em si
(pois nada há mais entre eles e já não são dois, mas os dois são um; com
efeito, tu não podes mais distingui-los a partir do momento em que Ele está
aí: a imagem disso são os amantes e os amados neste mundo que querem
muito fundir-se um no outro), quando a alma não tem mais consciência do
seu corpo, nem que se encontra neste corpo e ela não diz mais que é
diferente Dele... (Enéada VI, 7, 34, 9-37).
Malgrado isto, certo é que o caminho salvífico proposto por Plotino não sinaliza
para a dependência, por parte do buscador da redenção, de um Salvador exterior ao
148
homem, ou para uma intervenção sobrenatural no tempo, tal como se verifica no seio da
gnose.
Para o licopolitano cabe ao homem esculpir a própria estátua, isto é, trabalhar
sobre si mesmo, de sorte a resgatar seu brilho original, ofuscado pelo que, em seu
contato com a matéria, lhe foi aderindo ao rosto primeiro e o transfigurando. É o que se
depreende desta marcante passagem:
Faz como o escultor de uma estátua que há de ser bela; suprime uma parte,
raspa, pole, limpa, até que, do mármore, se desprenda a beleza de suas
linhas; como ele, elimina o supérfluo, endireita o que está torto, limpa o que
esta fosco até torná-lo, novamente, brilhante (Enéada I, 6, 9, 8-12).
Ademais, se o Uno, em Plotino, é onipresente e está em todos os seres (Enéada
VI, 9, 7), Ele é acessível pelo êxtase, não por conta de um ato gracioso seu, em relação
àquele que O busca, mas pelo fato de lhe ser próprio estar em tudo. Não bastasse, se
cada ser tem o seu correspondente no mundo inteligível, lhe é possível reintegrar-se à
sua contraparte incorpórea lá existente e, com isso, assimilar-se ao Ser Universal
(Enéada V, 7 e V, 1, 11), por si só.
De fato, observa Puech (1982, p. 109), que “esta ubiqüidade, esta onipresença
(do Uno), são idênticas a cada instante; sua manifestação não pressupõe nenhuma
condição ou interposição temporal”. Portanto, em um instante singular, em um hapax,
como se vê na Enéada VI, 8, 21, o Uno, no âmbito da experiência mística, aparece
instantaneamente, sem que isto decorra de um gesto condescendente ou gracioso, seu.
Isto por conta de sua onipresença eterna, que não se coaduna com qualquer intervenção
volitiva na história, que se perfaça através da graça no envio de um Redentor. Em outras
palavras: a presença de Deus está sempre próxima de nós, não reclamando, para ser
percebida, da supressão de nenhum espaço ou da consumação de nenhum fato no
149
tempo; não estando dependente, outrossim, de múltiplos intermediários (como, no caso
gnóstico, os éons, que constituem o Pleroma, os Arcontes, cada qual governante de uma
esfera, por exemplo) ou de qualquer ato gracioso, como o do redentor gnóstico, que, por
sua graça e por seu exclusivo talante, disponibiliza a um dado ser humano, uma
revelação, de cunho salvífico. As palavras de Plotino, quanto a isso, são de grande
estímulo ao buscador da salvação: “Busca a Deus sem vacilação com a ajuda de
semelhante princípio (a alma) e eleva-te até Ele; não estás verdadeiramente longe e
chegarás a Ele; os intermediários
45
não são numerosos”. (Enéada V, 1, 3).
Ademais, tendo em vista a coexistência ontológica entre o superior e o inferior –
entre a alma encarcerada no corpo e as hipóstases “acima” dela, é possível a salvação, o
retorno à origem, no âmbito do “mergulho ascensional”. E mais, aquela, inobstante
inferior, goza de todas as condições para empreender o almejado retorno, não
carecendo, para tal, do concurso de um Salvador, ou do desfrute de uma graça. É o que
nos afirma Plotino:
Existe...também em nós o princípio e a causa da inteligência, que é Deus;
isto não quer dizer que Deus se divida, já que Ele permanece imóvel, senão
que, ainda que não se encontre em um dado lugar e continue imóvel, Ele é
visto em todos os seres múltiplos, na medida em que cada um é apto a
recebê-Lo, como se Ele tivesse partes diferentes. Da mesma maneira,
permanece, em si mesmo, o centro, enquanto que cada qual dos pontos do
círculo, o contém, e os raios lhe transferem suas propriedades. Em virtude
deste elemento é que nós alcançamos a Deus... e nos estabelecemos Nele
desde o momento em que nos inclinamos até Ele (Enéada V, 1, 11).
Em razão de todo o exposto, parece lícito concluir que, embora, em Plotino, a
salvação do ser humano não esteja adstrita à atuação de um redentor e nem, tampouco, a
45
Os intermediários a que se refere Plotino, neste trecho, são, à evidência, apenas as três hipóstases.
Também neste ponto ele diverge dos gnósticos, que multiplicavam os intermediários (éons, Arcontes)
entre o homem e o Primeiro Princípio.
150
uma ou mais revelações, outorgadas, por este, àquele, há momentos, no processo
salvífico, em que o homem se abandona ao influxo divino. Isto pode ocorrer, ademais,
no início do processo ascensional da alma (como no caso do ardor que lhe faz sentir a
nostalgia de sua origem), como no final, quando, já tendo se purificado, a alma é
raptada pelo Uno.
De outra parte, inobstante, na gnose, seja usual que o alcance da salvação se
subsuma ao talante de um redentor, que opera pela graça, isto não implica em uma total
passividade humana nesta busca.
Costuma-se ponderar que, na soteriologia gnóstica, a Divindade é a primeira
interessada em que o espírito – ou a centelha divina presa na matéria – retorne ao seu
lugar de origem, uma vez que, com isso, porções de Sua substância, perdidas em tempos
pré-cósmicos, retornariam a Si, colaborando para a recuperação de Sua inteireza
(JONAS, 1963, p. 45). Assim, envia, Ela, ao mundo, um redentor, cuja atuação se dará
não apenas na dimensão corpórea, mas também na instância do Pleroma, onde ocorrerá
o resgate do éon Lapso (Sabedoria) pelo éon Salvador. Este processo, como anotam
Piñero, Torrents e Bazán (2000, p. 79), se repetirá na Terra, cumprindo, neste sentido,
observar que, nem mesmo os homens espirituais, predispostos, por natureza, à redenção,
podem descartar a graça divina, que vem de fora, isto é, da divindade, no processo
salvífico.
Tal graça opera, normalmente, por meio de um chamado, que desperta, na alma,
a percepção de que o mundo terreno não é o seu mundo. Esta conclamação provém da
instância divina, e tem, como escopo, excitar o núcleo interno e superior do ser humano,
ébrio ou adormecido pelos encantos ilusórios do mundo material, habilitando-o para a
salvação (PIÑERO; TORRENTS; BAZÁN, 2000, p. 79). Algumas vezes, a revelação é
sobremaneira poderosa e não se restringe a uma simples despertar:
151
Quando eu fui levado pela Luz eterna sem a vestimenta que me cobria, e
levado para um lugar sagrado cuja semelhança não pode ser revelada no
mundo, foi então que, através de uma grande benção, eu vi todos aqueles
dos quais eu tinha ouvido falar (Alógeno, 58, 9-12).
Em outras, o ser de luz parece reforçar a tese da impossibilidade de o homem
alcançar o conhecimento verdadeiro sem a revelação:
Pára de travar a inatividade que existe em ti, buscando assuntos
incompreensíveis; em vez disso, escuta sobre ele enquanto for possível por
meio da revelação primária e uma revelação (Alógenes, 61, 10-13).
Entretanto, isto não quer dizer que, na gnose, e mais particularmente no sistema
sethiano, a salvação prescinda, por completo, da postura ativa daquele que a almeja.
É verdade que, segundo alguns tratados gnósticos, de raiz sethiana, como o
Apócrifo de João e a Protenóia Trimorfa – ambos presentes na Biblioteca de Nag
Hammadi – a salvação se perfaz através de uma série de “descidas” ao mundo material,
do Primeiro Pensamento, em variadas roupagens. Segundo este esquema, o ser divino se
manifesta, a cada nível cósmico por ele atravessado, em uma forma compatível com as
características e as necessidades de tal esfera.
Nada obstante, este tipo de salvação, proporcionado, por redentores que
“descem” de seus píncaros, de modo a disponibilizar a sabedoria por entre aqueles que
habitam instâncias inferiores, não é o único verificado no seio da gnose.
De fato, em outros tratados sethianos constantes da aludida Biblioteca de Nag
Hammadi, tais como As Três Estrelas de Seth, o Marsanes, o Alógenes e o Zostrianos -
estes dois últimos referidos por Porfírio, na Vita Plotini, como tendo sido alvo de crítica
de Plotino – a salvação é alcançada não através das mencionadas “descidas” de seres
superiores, ao nível da matéria, mas, ao revés, por meio de uma série gradual de visões
ascensionais iniciadas pelo próprio gnóstico. “Havia em mim uma calma silenciosa, e eu
152
ouvi o Bem-Aventurado de modo que eu conheci o meu próprio eu” (Alógenes, 60, 7-8).
A redenção, neste caso – consoante já se afirmou - parte do homem e ruma em direção à
instância divina, não o contrário, malgrado continue sendo necessária a revelação,
disponibilizada por um ser de luz que, desta vez, não desceu à terra, mas foi alcançado,
pelo gnóstico, no céu. É o que se depreende, por exemplo, de Zostrianos, 3, 14: “Eis
que surgiu diante de mim o anjo do conhecimento da luz eterna...”. E mais adiante
(4,10): “...eu subi com ele a uma grande nuvem de luz”.
Com efeito, mediante o emprego de uma técnica específica, o visionário
experimenta sucessivos estágios mentais de desprendimento do mundo material –
caracterizado pela mudança e a multiplicidade – com a progressiva assimilação do “eu”
a níveis cada vez mais refinados de existência, até o estado de absoluta auto-unificação
e total solidão, no âmbito do qual a alma se “deifica”.
Daí porque Turner (http://jdt.unl.edu/lavalpap.htm) entenda ser possível falar-
se em um “padrão descensional” e um “padrão ascensional”, no que concerne ao
processo de redenção entre os gnósticos, ou, ao menos, entre os gnósticos sethianos.
Pondera, ele, que, nos textos representativos do sistema mencionado, há uma tendência
de retratar o “padrão descendente” como sendo caracterizado por uma série de três
sucessivas descidas, cada qual levada a efeito de uma forma específica, pelo portador da
revelação, ou redentor, ou, ainda, de descrever o “padrão ascensional” tal qual a
travessia de três ou mais níveis do ser, cada qual, por sua vez, tripartido e
correspondente a estados mentais determinados, também em número de três. Observa,
ainda, referido autor, que, enquanto o “padrão descendente” é típico do judaísmo e do
cristianismo apocalíptico, o “padrão ascensional” encontra arrimo na tradição platônica,
de Platão a Plotino.
153
No “padrão ascensional”, a salvação não é trazida, ao ser humano, de esferas
superiores, por meio da figura de um redentor, mas, ao contrário, ocorre mercê dos
estados contemplativos ascensionais cada vez mais sutis, obtidos pelo gnóstico, a um
tempo, em sua mente, e nas esferas divinas. Mesmo assim, ao chegar a tais instâncias
superiores, o gnóstico é guiado por um ou mais seres incorpóreos que lhe suscitam
batismos e iniciações e lhe franqueiam uma sabedoria extraordinária.
À luz de todo o exposto, parece possível afirmar que, em Plotino, a salvação é
majoritariamente ativa, permeada por alguns influxos divinos, seja no início da jornada
de regresso (pelo ardor e a nostalgia amorosa que o Uno desperta na alma) ou no seu
final, quando, tendo eliminado tudo, inclusive inibido a sua instância intelectiva, a alma
é raptada pelo Uno. De igual modo, parece restar factível asseverar que, na gnose, a
salvação é prevalentemente passiva, seja por conta de seu caráter elitista (das três
espécies de seres humanos, apenas os pneumáticos ou gnósticos tem a salvação
assegurada por natureza), seja por conta da intervenção usual de um Redentor que,
vindo do Alto, disponibiliza mensagens sublimes, ao gnóstico; entretanto, descabe
olvidar os casos nos quais o próprio gnóstico, através de estados contemplativos
engendrados por si mesmo, eleva-se até as esferas superiores e chega a intuir verdades
relevantes, malgrado lá se deixe guiar por seres de luz e se submeta a rituais e batismos
à medida que cumpre o seu itinerário ascensional.
5.3 A Abrangência da Salvação: salvação individual e redenção cósmica
Plotino estava de acordo com os gnósticos ao asseverar que o seu verdadeiro
“eu” não era deste mundo, vale dizer, não estava adstrito às vicissitudes da instância
material. Daí porque, para ambos, a salvação implicava em um retorno à origem.
154
Entretanto, como bem observado por Pierre Hadot (1998, p. 25), a salvação do
indivíduo, em Plotino, não guarda qualquer vinculação com um suposto fim do mundo
ou uma propalada redenção cósmica disto decorrente. Não há alma humana que
necessite aguardar pelo advento da extinção e posterior regeneração do universo – que,
para Plotino, também é, em essência, espírito - para retornar ao mundo espiritual.
Vale dizer, o destino do “eu” se circunscreve ao próprio eu, não se fazendo
dependente de eventos a serem verificados em escala maior. O homem é responsável
por seu destino e por sua liberdade (Enéada III, 2, 9). Neste sentido, a observação de
Puech (apud BRUN, 1991, p. 84):
[...] Nesta perspectiva, a questão do nosso destino parece simples: resume-se
à relação que o meu eu pode, que eu posso manter comigo próprio. Sou eu
que, ao singularizar-me, ao ligar-me às minhas manifestações exteriores:
apreensão de um objeto do mundo sensível em tal instante ou
prosseguimento de uma ação que leva a um desenvolvimento do tempo e me
transporta para fora de mim, crio a minha ausência em mim próprio.
Isto porque, para Plotino - fiel à sua herança helênica - o universo é eterno e, a
noção de tempo, circular; já, no seio da gnose, o tempo é linear e, o universo,
condenado à extinção. Como adequadamente assevera Puech (1982, p. 272), acerca da
noção de tempo entre os gregos:
Em outros termos, não podia haver, propriamente falando, um começo e
nem um fim do mundo; o mundo, movendo-se desde sempre em uma série
infinita de círculos, é eterno: resulta inconcebível qualquer idéia de Criação
e de Consumação do Universo.
Por conseguinte, não se prefigura, em Plotino, a dependência entre a salvação do
“eu” e a redenção do Cosmos. Mas, neste diapasão, caberia perguntar qual o destino do
“eu” que encontra o Uno. Ele se mantém, enquanto “eu”, se dissolve no Uno, ou se
155
torna outra coisa? Esta pergunta é importante pois, se em Plotino, o que tem lugar é a
salvação individual, que destino tem o “eu” ao salvar-se?
Para José Igal (2001, p. 100), a experiência mística plotiniana conduz não à
simples união da alma com o Uno, mas a uma verdadeira identificação – embora
momentânea – com Ele, e não apenas psicológica, mas real. É o que Dodds (apud
IGAL, 2001, p. 100) caracterizou como “a atualização momentânea de uma identidade
potencial entre o Absoluto, no homem, e o Absoluto, fora do homem”.
Tal identificação não seria absoluta, pois remanesceria a dualidade em potência.
Ademais, não é a alma e nem a substância da alma, mas o “eu” supra-intelectivo, que se
identifica com o Uno.
Haveria, então, neste contexto, a perda do “eu”?
As Enéadas contém passagens que sugerem a perda do “eu” quando da
experiência-cume: a inteligência sai de si mesma e realiza a entrega de si mesma
(Enéada VI, 9, 11, 23), sendo arrebatada pelo Uno, o que faz com que o vidente deixe
de ser ele mesmo e se transforme em outro, vale dizer, Deus. De outra parte, por vezes
isto parece não se dar assim, já que a alma recupera, após o clímax místico, o seu
verdadeiro “eu”: ao empreender a subida, a alma não vai ao Outro, mas vem a si mesma
(Enéada VI, 9, 11, 38-39) e, ao atingir o êxtase, retorna ao que verdadeiramente era
(Enéada VI, 9, 11, 38-39 e VI, 7, 34-35). Para José Igal (2001, p. 101), esta suposta
antinomia tem uma solução: na experiência mística, de contornos plotinianos, a
inteligência se despoja do seu “eu” normal e intelectivo, transcendendo-o e o
substituindo por seu outro “eu”, supra-intelectivo, dotado de uma inteligência “demente
e enamorada”, que é o único a permanecer ativo no momento sublime de identificação
com o Uno-Bem. Por esta razão, a alma, ao imiscuir-se com Ele, não sai de si mesma, já
que se conhecer a si mesmo, é conhecer a própria origem (Enéada VI, 9, 7, 33-34).
156
José Alsina Clota (1989, p. 65), assim aborda tal problemática:
No momento do êxtase, o eu plotiniano não se aniquila, nem fica
inconsciente, posto que se vê. Se é verdade que a alma já não tem
consciência de si mesma (parakoloúthesis), goza, ao menos, de uma espécie
de superconsciência (synaísthesis): “A alma se eleva até o Alto e lá
permanece, satisfeita de estar junto a Ele (VI, 7, 13)”.
Esta experiência sublime é rara, porém passível de ser vivida neste mundo e
também além da morte. Nada obstante, de acordo com Plotino (Enéada VI, 9, 10, 2-3),
em virtude da imortalidade da alma, “tempo virá em que a sua contemplação será sem
fim, ininterrupta, sem os incômodos do corpo” (apud ULMANN, 2002, p. 161).
E, se em Plotino não há o que se pode denominar “redenção cósmica”, que fim
terão aqueles seres que, não lograrem, em sua existência atual, alcançar a união com o
Uno, através do êxtase? Voltarão, eles, à vida, através da metempsicose (reencarnação)
ou, melhor, da metensomatose, já que, para o licopolitano, é possível reencarnar não
somente em corpos humanos, mas, também, em corpos de animais e mesmo plantas,
conforme o tipo de vida que antes se tenha levado.
E, ao cabo das transmigrações, qual será o destino das almas?
Todas as almas deverão retornar ao Uno, isto é, conhecerão a regeneração
(apokatástasis). Entretanto, como nos diz Ulmann (2002, p. 173) e diversamente do que
ocorre na escatologia gnóstica, o Uno – da mesma forma como não se despotencializou
quando da processão – não recebe qualquer acréscimo, em sua substância, com o
retorno das almas ao Seu seio.
De todo modo, malgrado este resgate final, tem-se que a salvação – tal qual a
imortalidade - em Plotino, é individual e não dependente de uma salvação emvel
cósmico, mesmo porque o Cosmos não carece ser dissolvido e, posteriormente,
157
regenerado. Diz-nos, ele: “A alma que se tornou pura estará lá onde está a essência, o
ser, a divindade” (Enéada IV, 24, 25-26).
De outra banda, Kurt Rudolf (1984, p. 171) divisa, na gnose, uma preocupação
escatológica que se coloca em dois patamares: o individual e o universal. Neste sentido,
a redenção se dá, por primeiro, no momento da morte - vista, esta, como um ato de
liberação por excelência - já que, livre dos grilhões do corpo, a alma se encontra apta a
ascender ao seu verdadeiro lar. A salvação, daí decorrente, separa, do corpo, o espírito,
o “eu” verdadeiro, e, ao introduzi-lo em uma situação transcendente às limitações do
mundo fenomênico, coloca-o, via de conseqüência, fora do tempo.
Nada obstante, a salvação não se limita ao âmbito individual, mas transborda do
homem para abarcar todo o universo. Portanto, a gnose se interessa, não apenas pelo
destino último do homem, mas, também, da humanidade e do cosmos. Isto porque, se o
mundo proveio de um erro que o maculou, por completo, a sanação deste erro não pode
prescindir do fim do universo.
Realmente, para os gnósticos, as almas, imersas em um drama cósmico, se
viram, à sua revelia, aprisionadas no mundo da corporalidade. Um poder malévolo criou
o universo sensível e neste as encarcerou, malgrado sejam, elas, partículas de luz, do
mundo espiritual. A salvação, destarte, conforme anota Hadot (1998, p. 24), consiste,
em suma, em uma mudança do locus da alma – da esfera material, onde é uma exilada,
para o Pleroma, sua verdadeira pátria. E este retorno ao Pleroma se consumará, em
plenitude, com o fim do mundo, quando o mal, personificado pelo demiurgo, for
derrotado.
E o que estaria a justificar a apontada diferença de pontos de vista, entre Plotino
e os gnósticos, quanto a este ponto específico do problema salvífico?
158
Como bem assevera Puech (1982, p. 103-104), a salvação, para o gnóstico, está
sujeita a condicionantes de ordem mítica, vindas de fora do mundo, e atuantes nele,
como é o caso de revelações descontínuas e intemporais. Para que tal ocorra, o universo
não pode ser – como no caso de Plotino e da tradição helênica em geral – um todo
ordenado e eterno.
De fato, os gnósticos de Nag Hammadi não parecem ter uma visão cíclica do
tempo (como a dos persas) e nem tampouco alicerçada em idades (como se verifica, por
exemplo, na Teogonia de Hesíodo, ou aquela outra, de matriz indiana, fundada nos
ciclos de duração imensa, ou yugas). Diferentemente, a visão, dos sistemas gnósticos
em geral, acerca do tempo, se assenta na apocalíptica judaica. Segundo esta concepção,
a história do mundo caminha, linearmente e pela vontade do Ser Supremo, para um final
único e definitivo, sendo que este desfecho se vai aproximando paulatinamente, na
medida em que os espíritos dos gnósticos se liberam, também paulatinamente, dos seus
invólucros corpóreos e, ato contínuo, retornam ao Pleroma.
Salvação individual e redenção cósmica se alimentam, uma a outra, no mito
gnóstico, partícipes, que são, de um grande e mesmo drama. Com efeito, de acordo com
Hans Jonas (1963, p. 45), equipada com a gnose – ou o conhecimento verdadeiro - a
alma, após a morte do corpo físico que a agrilhoava, em sua ascensão, vai deixando, em
cada esfera, partes de sua vestes – seus agregados – terrenos, até que, despida de tais
acréscimos, se reúne à divina substância. Este processo não se restringe à alma em si, já
que ela, ao realizá-lo, acaba por participar da restauração da integridade da divina
inteireza, a qual, em tempos pré-cósmicos se debilitara, pela perda de porções de Sua
substância.
Neste contexto, a redenção total ocorrerá quando um número previamente
determinado de espíritos gnósticos alcance a sua plenitude, em nível individual. Quando
159
tiverem se reunido, no Pleroma, todas as partículas de luz, o universo será entregue, pela
divindade, à aniquilação e, então, será restaurado, retornando ao status quo anterior à
“deficiência” que viciou o seu surgimento.
Tal conflagração derradeira, que se realizará por meio do fogo e de cataclismos
vários (Pensamento Trimorfo, 1, 43, 4-17) servirá, também, para purificar as últimas
centelhas divinas ainda presentes no mundo, assim como para destruir o demiurgo
46
e
seus perversos auxiliares.
Diversamente, em Plotino, o cosmo é retratado como uma totalidade coerente,
imutável e eterna em sua perfeição, o que pode ser vislumbrado no movimento circular
e regular do céu – nada mais do que a imagem de uma lei maior que tudo rege. O
universo, em sua perfeição e constância, pode ser perscrutado pela razão, é permeável a
ela, já que todas as coisas nele existentes são eternamente as mesmas, animadas pela
Providência; em suma, o universo é belo porque é o que é (Enéada II, 9, 16-18):
perfeito, coerente, eterno e acessível à razão. Não se trata do mundo mau, oriundo de
uma falha, somente sanável pela aniquilação completa, como pregam os mitos
gnósticos.
Na especulação plotiniana, não há lugar para a criação, nem, tampouco, para a
destruição final, do mundo, e, por conseguinte, para uma redenção em escala cósmica.
Tampouco há espaço para intervenções súbitas, do plano divino, no curso do tempo e
nas coisas do mundo. Tais intervenções, comuns na gnose, têm caráter mítico, já que
são súbitas, imprevisíveis, arbitrárias, e, portanto, alheias a uma justificação racional.
Na visão de Plotino, em suma, a salvação é individual e não se faz dependente
de acontecimentos exteriores à ordem do universo e nem de vontades ou voluntarismos
46
Em outro tratado gnóstico, Sobre a Origem do Mundo (127, 10), ao contrário, ocorre uma espécie de
reabilitação do demiurgo, que segue vivendo, junto com os seus Arcontes – também reabilitados – na
Ógdoada (PIÑERO; TORRENTS; BAZÁN, 2000, p. 89).
160
que não se submetam a esta ordem. A transcendência, para o licopolitano, é imóvel e
eternamente impassível; o movimento - o descenso e a ascensão da alma, do self, ou do
verdadeiro “eu” - se dá em nós mesmos, infenso à noção de tempo e espaço. Com
efeito, diz-nos Plotino, que o tempo somente existe em um nível inferior da escala dos
seres, e, assim mesmo, como uma ilusão, ou uma realidade provisória, desaparecendo
quando a alma apaga a distância que a separa da Inteligência, alcançando o inteligível e
se reabsorvendo nele (Enéada III, 7, 11-12).
5.4 Síntese Conclusiva do Capítulo
As sendas salvíficas de Plotino e dos gnósticos se distinguem, também, quanto
ao modo para o alcance do estado de redenção, a postura daquele que busca salvar-se e
a abrangência da salvação.
De fato, enquanto a salvação, para Plotino, é uma experiência-cume que se dá no
interior do próprio homem (já que o Uno lá habita), mediante a vivência do êxtase
contemplativo, no seio da gnose, a redenção depende de uma revelação, disponibilizada,
ao gnóstico, por um ser enviado, do Pleroma, por Deus, ou ocorrente no bojo de estados
contemplativos estimulados e vivenciados, pelo gnóstico, em si e nas esferas divinas.
Tal revelação é que desperta, no homem, o conhecimento verdadeiro e libertador – a
gnose – que o faz relembrar a sua origem, avaliar o seu estado atual de exílio no mundo
da matéria, e lhe descortinar o caminho de retorno à sua verdadeira origem.
Destarte, em Plotino a salvação tem, como artífice, o próprio ser humano, muito
embora, em algumas situações, o influxo divino pareça impulsioná-lo adiante em seu
esforço por redimir-se. De todo modo, não há lugar, na soteriologia plotiniana, para um
Redentor nos moldes gnósticos, razão pela qual se pode qualificá-la ativa, no sentido de
161
que, nela, o alcance da salvação, por parte do homem, não depende – ao menos
substancialmente – de forças outras, que não as emanadas dele próprio. Já no âmbito da
gnose, a participação, do ser humano, na obtenção de sua salvação, é, majoritariamente,
passiva, porquanto não possa, ela, ocorrer sem uma revelação, que lhe é facultada, via
de regra, por um Revelador ou Redentor do além mundo, embora, em alguns casos, o
próprio gnóstico, mediante estados alterados de consciência engendrados por si mesmo,
é que propicia o recebimento desta revelação. De fato, os estudos mais atuais têm
assinalado a existência, ao menos em alguns tratados gnósticos, de dois padrões ligados
à obtenção da salvação: o descensional, no qual a postura do pretendente à salvação é
inteiramente dependente de uma revelação do Alto, e o ascensional, no qual, por meio
de uma série de êxtases, provocados pelo próprio buscador, têm lugar revelações já em
um estágio superior, ou espiritual. Neste último padrão, a postura daquele que almeja a
salvação é muito mais ativa do que a daquele que trilha o primeiro padrão, embora a
revelação ocorra em ambos.
Por fim, é de se observar que a salvação, em Plotino, é individual e não está
ligada a uma redenção cósmica, destinada a ocorrer no final dos tempos. Isto porque,
para o licopolitano, o cosmos é eterno – eis que o tempo é circular – e bom. Já na gnose,
o mundo é produto de um erro que o maculou inteiramente, de modo que somente sua
aniquilação poderá trazer sua regeneração, vale dizer, a recuperação de seu status quo
ante. Diante de tal quadro, salvação individual e redenção cósmica são
interdependentes, porquanto, à medida que as porções do divino, antes presentes nas
almas individuais, retornam ao Pleroma, a Divindade recupera a sua inteireza.
162
6. CONCLUSÃO
Salvar-se, redimir-se, superar um estado enfermiço, de carência e insatisfação,
substituindo-o por outro, de plenitude e indizível liberdade; pôr ao largo opressivos
grilhões, recuperar a higidez originária, conhecer a Vida em sua mais absoluta inteireza,
em suma, comungar da presença divina e de Sua perfeição. Segundo Plotino, retornar ao
Uno, que, imune à alteridade, está sempre presente; para os gnósticos, tornar ao
Pleroma, o conjunto dos éons. Tanto naquele, quanto nestes, a sede de eternidade.
Ao tempo em que Plotino e os gnósticos conceberam as suas soteriologias, isto
é, suas teorias acerca da salvação do ser humano, a preocupação maior dos seus
contemporâneos, em meio a um mundo em decomposição, era a de escapar da
existência terrena, caracterizada pela dor, a insuficiência e a frustração.
Entretanto, malgrado o fundo comum, as propostas de salvação, difundidas por
Plotino e pelos gnósticos – particularmente os sethianos – diferem em muitos aspectos.
Tais desacordos se alinham, por um lado, nas searas da cosmogonia/cosmologia,
antropogonia/antropologia e ética e, por outro, no procedimento salvífico, no papel do
homem no alcance de sua salvação e, ademais, na abrangência da redenção.
Realmente, se, na visão gnóstica, em geral e sethiana, em particular, o mundo é
derivado de um erro e criado segundo o agir deletério de um artesão perverso sendo, por
conseguinte mau, para Plotino ele é resultado de um ordenado processo de irradiação do
Uno, cujo nível mais baixo é a matéria. Esta, na visão do licopolitano, é negativa no
sentido de que, depois dela, na processão das hipóstases não há nada, mas também
positiva, porquanto seja dela que a alma parta para empreender o caminho salvífico, o
epistrophê, ou conversão.
163
Por outro lado, enquanto a antropogonia de coloração gnóstica sustenta a
existência de três espécies de seres humanos, sendo que à somente a uma delas – a dos
pneumáticos ou espirituais - é assegurada a redenção, para Plotino a salvação é algo ao
alcance do ser humano em geral, desde que o mesmo se purifique interiormente, de
modo a criar condições para o clímax redentor, o êxtase que lhe propiciará a
identificação com o Uno e o retorno à Origem.
No que tange à ética - ou ao modo alegadamente mais sábio de viver e conviver -
tem-se que em Plotino ela assume grande relevo, já que o agir puro modela o buscador
da salvação, conferindo-lhe condições para empreender o caminho de retorno ao Uno.
Já para os gnósticos – que se salvam por natureza e não por conduta – ela é
desimportante, seja porque prescindível para a consumação da redenção, seja porque o
convívio do gnóstico deva se restringir ao pequeno núcleo de seus iguais, ou irmãos,
daqueles já salvos e estrangeiros com relação ao mundo.
Quanto ao modus operandi da salvação, as visões em estudo também apresentam
diferenças. Isto porque em Plotino a salvação é alcançada mediante um movimento da
alma, a um só tempo, de interiorização e ascensão. De fato, ao mergulhar em si mesmo
e eliminando de sua alma tudo que não lhe é próprio originariamente, o ser humano
encontra em suas profundezas o Uno, que está em tudo. Neste contexto, não há lugar
para atos mágicos, batismos, imprecações em busca de favores do mundo espiritual e
nem para uma suposta revelação, apta a descortinar ao homem o que ele, por si só, não
lograria descobrir. Já no seio da gnose, a revelação é imprescindível para o alcance da
redenção, seja facultada ao ser humano por obra e graça de um ser do além-mundo que
“desce” ao nível terreno, seja no bojo de uma série de contemplações desencadeadas
pelo próprio gnóstico, que o levarão a revelações nas esferas superiores. É aí que,
164
modernamente, se está a falar em “padrão descensional” e “padrão ascensional”,
conforme a revelação gnóstica se dê em atenção a uma ou outra sistemática.
De outro modo, sob o prisma dos atores da salvação, parece lícito afirmar que
em Plotino o ser humano é o protagonista de sua própria salvação, atuando ativamente
para alcançar o seu desiderato, embora em alguns trechos das Enéadas se vislumbre
alguma participação do Alto no processo salvífico. Na gnose, ao contrário, a postura do
gnóstico é prevalentemente passiva, seja porque ele é salvo por natureza e não por
conduta, seja porque, via de regra, alguma revelação lhe é outorgada por seres do Alto,
a fim de despertar a centelha divina que dormita em seu interior, instando-a a
empreender o caminho de retorno. Nada obstante, casos há em que o gnóstico não
apenas espera, mas também atua, provocando em si mesmo estados contemplativos que
lhe propiciam a revelação, já na esfera espiritual. Por conseguinte, parece mais correto
dizer que a salvação em Plotino é prevalentemente – mas não inteiramente – ativa, ao
passo que a redenção gnóstica é majoritariamente – mas não integralmente – passiva.
Finalmente, no que diz respeito à abrangência da salvação, depreende-se da
análise dos textos originários e de seus comentadores que a redenção, em Plotino, se
circunscreve ao indivíduo, não havendo falar-se em algo como uma aniquilação final do
mundo, como nos mitos gnósticos. É que, fiel à tradição grega, Plotino concebe o tempo
como sendo circular, e o Universo como eterno e bom. Ademais, para o licopolitano o
alcance da salvação é possível a todo tempo, inclusive já nesta vida, pois não há solução
de continuidade em termos de processão entre o Uno e o homem e nem, tampouco,
distância entre os mesmos. Em contraste, no âmbito da gnose a salvação já é, desde
sempre, assegurada a um grupo especial – o dos espirituais ou pneumáticos. Assim
mesmo, é uma salvação provisória, já que somente com a morte física a alma se liberta
do cárcere corpóreo. Não bastasse, a salvação não se completa na escala do indivíduo,
165
mas tem uma dimensão cósmica. Esta redenção em nível macroscópico se consumará
quando as porções divinas, perdidas pela divindade quando da malfadada criação do
mundo pelo demiurgo, retornarem à sua origem, restaurando assim a inteireza de Deus.
Quando isto ocorrer, o mundo conhecerá sua aniquilação e posterior regeneração, desta
vez livre da mácula que antes o viciara por conta da atuação deletéria do Demiurgo e
seus perversos auxiliares, que também perecerão ao fim dos tempos, ou segundo outras
versões do mito, conhecerão uma regeneração a seu modo.
As conclusões a que ora chegamos não são, em absoluto, definitivas. Foram
construídas em ambiente adverso, haja vista os raros estudos no Brasil sobre a filosofia
de Plotino e as idéias gnósticas, notadamente no que diz respeito à soteriologia.
De todo modo este trabalho pretende, malgrado sua singeleza, estimular os
estudos acerca de Plotino e da gnose em nosso país, estando convicto o seu autor de
que, inobstante a distância de quase dois mil anos que separam dos seres humanos do
século XXI o licopolitano e os gnósticos com os quais polemizou, a mensagem daqueles
continua válida para nós.
Com efeito, até parece que aquietando-nos um pouco chegamos a ouvir, vinda
do recuado passado, a voz do licopolitano: “Fujamos para a verdadeira pátria... A nossa
pátria é lá de onde viemos, e lá em cima está nosso Pai” (Enéadas I, 6, 8, 16 e I, 6, 8,
21-22). Ou, em outros termos, “despoja-te de tudo” (Enéada V, 3, 17), para ser Tudo.
Oxalá este convite reverbere em nossos corações.
166
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