224
fizeram”; “uma das coisas que, uma das grandes perdas nossas pro departamento foi essa
cisão aí”) e a ênfase na idéia de corte evoca associações com a alegoria platônica para a
origem do amor. No seu “Banquete”, Platão descreve, nos primeiros anos da humanidade,
existência de três sexos: o Macho, cuja origem seria o Sol; a Fêmea, originária da Terra; e um
Andrógeno
88
, originado da Lua e composto por elementos próprios dos outros dois. Naqueles
tempos, diz Platão, os seres humanos apresentavam uma forma muito diferente da atual: eram
redondos, tinham duas faces voltadas para lados opostos, ainda que pertencentes a uma só
cabeça; quatro braços e mãos, pernas e pés tudo em dobro. Eram fortes, ágeis e muito
ambiciosos e, por isso se sentiam muito poderosos. Esses três gêneros em seu orgulho
desmedido propuseram-se a escalar o céu e bater-se contra os deuses. Zeus, o laborioso,
decidiu reduzir-lhes o poder e a insolência. Assim sendo, cortou-os pela metade, gerando-lhes
a forma atual. Desde então, conforme a lenda, o ser humano busca ansiosamente pelo seu par,
como se nele pudesse encontrar uma parte de si mesmo.
Embora descreva e critique a hybris
89
de seus colegas (“ele achava que os psicanalistas
eram, né, eles eram, como se diz? a classe dominante, eram os, o cérebro do departamento”),
S3, em seu relato, chora a parte perdida: “Essa pra mim, foi a fase da cisão do departamento,
foi a época da pior crise lá. Pior do que atualmente que a gente ta tão assim separado, que
ninguém sabe de ninguém, porque o departamento era muito unido, era uma família aquilo
ali, então, a gente gostava de estar lá trabalhando, você esquecia que tinha que voltar pra
casa, você gostava de ficar lá com seus colegas até tarde, trocando idéias, discutindo, de
repente, aconteceu isso”. S3 chora a perda da parte, chora pela dispersão e, parece chorar
ainda, pela perda de uma linguagem comum como na história bíblica da torre de Babel. Mas,
acima de tudo, S3 chora pela perda da condição que usufruía antes do “pecado original” ser
cometido.
88
É importante notar que a idéia do andrógino, embora não seja mencionada por S3, remete à mesma idéia de
completude original que a idéia de paraíso. Segundo (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1991), o andrógeno
inicial não é senão um aspecto, uma figuração antropomórfica do ovo cósmico encontrado no alvorecer de toda
cosmogonia, assim como no final – em toda escatologia. No início e no final dos opostos se confundem, seja
como nada mais que potencialidade, seja através de uma conciliação final.
89
Hybris é, para os gregos, o orgulho desmedido, o orgulho que faz homens de equipararem aos deuses. Esse
comportamento inflado é sempre punido, não só por Zeus, como também por Jeová Deus em Babel e por vários
outros deuses. Hillman esclarece esse ponto: “Existem muitíssimos mitos das origens; não da origem da língua,
mas da construção de uma torre que chegue a tocar o céu - os Nyambos têm uma no México, em Cholula, e,
ainda no México os Toltecas têm uma também, também se apresenta entre os Cuki em Assam e entre os Karen
na Birmânia: se trata sempre de manifestações de hybris, de soberba, de arrogância, da tentativa de escalar e
de agredir a potência de Deus. A punição divina no mito não consiste na destruição dos homens, como acontece
no caso de Sodoma e Gomorra ou no caso do Dilúvio: não se destrói o mundo, mas se dispersam os homens por
todo o mundo. Em outros termos, se cria a variedade, os vários estabelecimentos. É difícil dizer que se trata
realmente de uma punição. É para impedir o ato de hybris, para impedir a uniformidade que se tem a
diversidade. É um elemento sobre o qual refletir, em meio a tantos impulsos poderosos em direção à