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Sergio de Souza Salles
A resolutio como itinerário metafísico de Santo Tomás de
Aquino:
A elevação da dýnamis aristotélica a potentia essendi nas
Quaestiones disputatae De Potentia Dei
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da PUC-Rio.
Orientador: Carlos Alberto Gomes dos Santos
Rio de Janeiro, julho de 2005
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115490/CA
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Sergio de Souza Salles
A resolutio como itinerário metafísico de Santo Tomás de
Aquino:
A elevação da dýnamis aristotélica a potentia essendi nas
Quaestiones disputatae De Potentia Dei
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Carlos Alberto Gomes dos Santos
Orientador
PUC-Rio
Carlos Frederico G. Calvet da Silveira
UCP
Danilo Marcondes de Souza Filho
PUC-Rio
D. Édson de Castro Homem
Arquidiocese do Rio de Janeiro
Luis Alberto De Boni
PUC-RS
Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador(a) Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 25 de julho de 2005
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0115490/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
Universidade, do autor e do orientador.
Sergio de Souza Salles
Graduou-se em Filosofia pela PUC-Rio (1998). Mestre em
Filosofia pela PUC-Rio (2001). Professor Assistente da
Universidade Católica de Petrópolis, RJ.
Ficha Catalográfica
Salles, Sergio de Souza
A resolutio como itinerário metafísico de Santo
Tomás de Aquino: a elevação da dýnamis aristotélica a
potentia essendi nas Quaestiones disputatae De Potentia
Dei / Sergio de Souza Salles ; orientador: Carlos Alberto
Gomes dos Santos. – Rio de Janeiro : PUC-Rio,
Departamento de Filosofia, 2005.
329 f. ; 30 cm
Tese (doutorado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia.
Inclui bibliografia
1. Filosofia – Teses. 2. Tomás, de Aquino,
Santo, 1225?-1274. 3. Ser. 4. Potência divina. 5.
Causalidade. 6. Resolução. 7. Participação. I. Santos,
Carlos Alberto Gomes dos. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III.
Título.
CDD: 100
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Para Denise e Clara Salles.
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Agradecimentos
Ao meu orientador, Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos, a quem devo a
confiança e o estímulo para a execução desta pesquisa.
Ao Prof. Carlos Frederico G. Calvet da Silveira, pelas palavras de encorajamento
e pela orientação ímpar na filosofia do esse do Aquinate
Ao Prof. Danilo Marcondes, por ter acompanhado atenciosamente minha
formação acadêmica.
A Dom Édson de Castro Homem, pela generosidade em compartilhar deste
momento decisivo de minha trajetória acadêmica.
Ao Prof. Luis Alberto De Boni, pelo singular zelo e exemplo no ensino e na
pesquisa em filosofia medieval.
Aos funcionários do Departamento de Filosofia da PUC-RJ, em especial a Edna,
pelo apóio logístico e ampla cooperação.
Ao Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, na pessoa do Frei Elói Piva,
pela acolhida e utilização do acervo bibliográfico sobre o pensamento medieval.
À Seção de Referências (DBD/SER) da PUC-Rio, à equipe coordenada por
Sandra Mendes, em particular a Carlos Henrique Alexandrino, em razão da
generosidade e prontidão no acesso aos artigos indispensáveis para a pesquisa.
A todos os interlocutores, professores e alunos da UCP e da Faculdade
Eclesiástica de Filosofia João Paulo II.
A todos os amigos que estimularam, por vezes sem compreender, a nossa
busca.
À minha família pela cumplicidade nas minhas ausências, garantindo o amor e o
lazer necessários para a meditação filosófica.
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Resumo
Salles, Sergio de S. A resolutio como itinerário metafísico de Santo
Tomás de Aquino: a elevação da dýnamis aristotélica a potentia essendi
nas Quaestiones disputatae De Potentia Dei. Rio de Janeiro, 2005. 329 p.
Tese de Doutorado - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Dentre as obras de que dispomos para a reconstituição do pensamento
metafísico de Tomás de Aquino (1225-1274), encontram-se as Quaestiones
disputatae De Potentia Dei, redigidas entre 1265 e 1266. Conhecer o itinerário
(iter) filosófico do De Potentia é tarefa indispensável não só para a exegese da
obra, mas, sobretudo, para determinar a originalidade da síntese metafísica de
seu autor. O iter metafísico do Aquinate se orienta em torno de duas vias
complementares, a saber: a via de resolução (via resolutionis) e a via de
composição (via compositionis). Cada via se desdobra na consideração do ente
enquanto tal à luz das causas intrínsecas (secundum rationem) ou das causas
extrínsecas (secundum rem). A análise dos argumentos do De Potentia revela
que o termo a quo da via de resolução pelas causas intrínsecas (via resolutionis
secundum rationem) consiste na elevação da dýnamis aristotélica à condição de
potentia essendi, enquanto o seu termo ad quem é a resolução de todos os atos
e de todas as perfeições dos entes na atualidade e na perfeição do ato de ser
(actus essendi). Em perspectiva ulterior, os entes são elevados à condição de
participantes do próprio ser subsistente (ipsum esse subsistens), realizando-se
assim o itinerário da via de resolução pelas causas extrínsecas (via resolutionis
secundum rem). É a superação pela via de resolução no esse das antíteses
sobre as quais nasce nossa herança metafísica (participação e causalidade,
transcendência e imanência, platonismo e aristotelismo) que constitui a
contribuição mais original de Tomás de Aquino à vida cultural do Ocidente.
Palavras-chave
Tomás de Aquino; ser; potência; resolução; composição; participação;
causalidade; potência divina.
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Abstract
Salles, Sergio de S. The resolutio as metaphysical itinerary of Saint
Thomas Aquinas: the rising of the aristotelic dýnamis in potentia
essendi in Quaestiones disputatae De potentia Dei. Rio de Janeiro, 2005.
329p. Doctoral Thesis - Departamento de Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Among the works we dispose of for the reconstitution of the metaphysical
thought of Thomas Aquinas (1225-1274), we find the Quaestiones disputatae
De Potentia Dei, written between 1265 and 1266. To know the philosophical
itinerary (iter) of the De Potentia is an indispensable task not only for the
exegesis of that work, but, above all, for determining the originality of the
metaphysical synthesis of its author. The metaphysical itinerary of Aquinas is
guided around two complementary ways: the way of resolution (via
resolutionis) and the way of composition (via compositionis). Each of them
considers being qua being in the light of the intrinsic causes (secundum
rationem) or extrinsic causes (secundum rem). Examination of the De
Potentia’s arguments reveals that the term a quo of the way of resolution by
the intrinsic causes (via resolutionis secundum rationem) is the rising of the
aristotelian dýnamis to the condition of potentia essendi, while its term ad
quem consists of the resolution of all acts and of all perfections of beings in the
actuality and in the perfection of the act of being (actus essendi). In an ulterior
perspective, the beings are raised to the condition of participants of the self-
subsisting being (ipsum esse subsistens), thus fulfilling the itinerary of the way
of the resolution by extrinsic causes (via resolutionis secundum rem). It is the
overcoming by way of the resolution in esse of the antitheses on which our
metaphysical inheritance is born (participation and causality, transcendence
and immanence, platonism and aristotelism) that constitutes the most original
contribution of Thomas Aquinas to the cultural life of the West.
Keywords
Thomas Aquinas; being; potency; resolution; composition; participation;
causality; divine potency.
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Sumário
1 . Introdução 13
1.1. Da análise à resolutio e da síntese à compositio 16
1.2. Da ordo inventionis do De Potentia 21
2 . Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 33
2.1. Resolutio e dissolutio 43
2.2. Resolutio, abstractio e separatio 49
2.3. Da via resolutionis e da via compositionis lógica 70
2.4. Da via resolutionis e da via compositionis metafísica 85
3 . Da via resolutionis 111
3.1. Resoluções secundum rationem 112
3.2. Resoluções secundum rem 146
3.2.1. Resoluções segundo a via da participação 148
3.2.2. Resoluções segundo a via do ato e da potência 171
4 . Da via remotionis e da via eminentiae 184
4.1. Da tríplice via do conhecimento de Deus 186
4.2. Da potência divina 214
5 . Da compositio secundum rem 239
6 . Conclusão 259
Bibliografia 262
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 278
Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 303
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Lista de abreviaturas e siglas
I. Das obras citadas
Comp. Theol. Tomás de Aquino, Compendium Theologiae
De ente Tomás de Aquino, De ente et essentia
De sub. sep. Tomás de Aquino, De substantiis separatis seu de
angelorum natura.
In Anal. Tomás de Aquino, Expositio libri Posteriorum
In De Causis Tomás de Aquino, Super librum De Causis
In De Div. Nom. Tomás de Aquino, Super librum Dionysii De divinis
nominibus
In De Hebd. Tomás de Aquino, Expositio libri Boetii De ebdomadibus
In De sensu Tomás de Aquino, Sententia libri De sensu et sensato
In De Trin. Tomás de Aquino, Expositio libri Boetii De Trinitate
In Ethic. Tomás de Aquino, Sententia libri Ethicorum
In Gen. et corr. Tomás de Aquino, Sententia super libros De generatione
et corruptione
In I Cor. Tomás de Aquino, Expositio in I epistolam Pauli ad
Corinthios
In Ioan. Tomás de Aquino, Lectura super Ioannem
In Iob Tomás de Aquino, Expositio super Iob ad litteram
In Isaiam Tomás de Aquino, Expositio super Isaiam ad litteram
In Matt. Tomás de Aquino, Lectura super Matthaeum
In Met. Tomás de Aquino, Sententia super Metaphysicam
In Meteor. Tomás de Aquino, Sententia super Meteora
In Pery. Tomás de Aquino, Expositio libri Peryermenias
In Phys. Tomás de Aquino, Sententia super Physicam
In Pol. Tomás de Aquino, Sententia libri Politicorum
In Psalm. Tomás de Aquino, Expositio in Psalmos
In Sent. Tomás de Aquino Scriptum super libros Sententiarum
PL J.P. Migne, Patrologia cursus completus, series latina
PG J.P. Migne, Patrologia cursus completus, series graeca
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QDM Tomás de Aquino, Quaestiones disputatae De Malo
QDP Tomás de Aquino, Quaestiones disputatae De Potentia
QDSC Tomás de Aquino, Quaestio disputata De spiritualibus
creaturis
QDV Tomás de Aquino, Quaestiones disputatae De Veritate
Quodl. Quodlibeta
SCG Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles
STh Tomás de Aquino, Summa Theologiae
II. Dos periódicos
AnFil Anuário Filosófico
DTh Divus Thomas
Laval Laval Théologique et Philosophique
MSch Modern Schoolman
NSch The New Scholasticism
RIPh Revue Internationale de Philosophie
RM The Review of Metaphysics
RSPT Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques
RTh Revue Thomiste
RTPM Recherche Théologie et Philosophie Médiévales
III. Das citações
[3.5 #1] Quaest. Disp. De Potentia, q. 3, a. 5, primum argumentum
[3.5 §1] Quaest. Disp. De Potentia, q. 3, a. 5, primum paragraphum
a. Articulum
ad ou r. Respondeo
arg. Argumentum
c. Capitulum
co. In corpore
d. Distinctio
l. Liber
lc. Lectio
ob. Obiectio
p. Pars
proem. Proemium
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prol. Prologus
q. Quaestio
qc. Quaestiuncula
sc. Sed contra
sol. Solutio
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1
Introdução
A fim de estabelecer o estágio acadêmico em que se insere a presente
investigação sobre a metafísica de Tomás de Aquino, com ênfase nas Questões
Disputadas sobre a Potência Divina (De Potentia), é mister reconstruir, ainda que
brevemente, os elos que a unem à nossa primeira abordagem da filosofia
medieval.
Em dissertação de mestrado, dedicada às disputas medievais sobre a
natureza e os limites do conhecimento humano de Henrique de Gand a Roberto
Holcot, afirmamos que um dos pilares do ceticismo medieval são os argumentos
em torno da potência divina (de potentia Dei)
1
. Naquela ocasião, defendemos que
há na filosofia escolástica, entre 1270 e 1350, o surgimento e o desenvolvimento
de propostas epistemológicas que se aproximam de modo relevante do ceticismo
antigo, mas dele também se afastam, graças à formulação de novos argumentos
céticos baseados na potência absoluta divina (de potentia Dei absoluta). A
hipótese epistemológica do Deus enganador, imortalizada posteriormente na obra
de René Descartes (1596-1650), tem sua fonte inequívoca na hermenêutica
medieval da potência absoluta divina.
Adam Wodeham (ca. 1298-1358), dentre outros, formula a hipótese do
Deus enganador (Deus decipiat nos) nos seguintes termos:
Nenhum juízo é absolutamente evidente de uma evidência que exclua toda dúvida
possível, pois, uma vez que Deus ou a natureza causasse na mente a cognição e o
juízo possíveis, permaneceria que, por uma tal cognição, não seria significado tal
como é, em razão do poder absoluto de Deus. E concedo que todo intelecto criado
é, deste modo, de uma natureza diminuta, podendo ser enganado a respeito de
qualquer verdade contingente acerca da coisa externa, se assim assente
categoricamente ser ou não ser.
2
1
SALLES, S. S. A temática cética na Idade Média (1270-1350): a questão da certeza e dos
limites do conhecimento humano. 169 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Rio de Janeiro:
PUC-RJ, 2000.
2
“Nullum enim tale iudicium est simpliciter evidens evidentia excludente omnem
dubitationem possibilem. Quia cum hoc quod Deus vel natura causaret in mente omnem notitiam
et iudicium possibile, staret quod de potentia Dei absoluta non sic esset in re sicut per talem
notitiam apprehensam significaretur. Et concedo quod omnis intellectus creabilis est ita diminutae
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Introdução
14
As palavras do secretário de Guilherme de Ockham (ca. 1287-1347),
citadas acima, são simultaneamente problemáticas e significativas. Problemáticas,
porque, num período de densas transformações intelectuais, a hipótese teórica de
uma ação divina considerada unicamente a partir do poder absoluto prescinde dos
demais atributos de Deus, tais como a justiça, a bondade e a sabedoria, tornando-
se um lugar comum e inquestionável no decurso dos séculos quatorze e quinze.
Significativas, porque o primado da potência absoluta divina (potentia Dei
absoluta) sobre a potência ordenada (potentia Dei ordinata) no exercício da
especulação dos “artistas” e, sobretudo, dos “mestres da sagrada doutrina”, vai
muito além dos aspectos epistemológicos, anteriormente investigados, incidindo
igualmente no campo da metafísica, da filosofia da natureza, da política e da ética.
Tal primado da potência absoluta divina é, em verdade, a expressão de
uma nova forma de metafísica, cujas origens remontam a Avicena, segundo a qual
todas as coisas se reduzem à categoria estrutural do possível. O possível agora se
define univocamente como possível relativamente a uma potência ativa, como seu
objeto e seu produto
3
. Doravante, tudo o que é pensado como possível, objeto
não-contraditório de uma potência ativa concebida em geral, divina ou não, é um
ente (ens), uma realidade (res), um algo (aliquid) e não um mero nada, mesmo
que não seja uma realidade existente em ato (“sive res sit sive non sit”, na
expressão de Pedro Auréolo)
4
.
Já nos primórdios da escolástica medieval a distinção entre o poder
ordenado e o poder absoluto de Deus (potentia Dei ordinata et absoluta) servia
como via teológica para a determinação da razoabilidade dos milagres, das
profecias, em suma, das ações de Deus superiores à ordem natural das coisas
(supra naturam). Após as condenações de 1270 e 1277, motivadas pela recusa
sistemática da metafísica aristotélica, artistas e teólogos assumiram o poder
absoluto divino (potentia Dei absoluta) como único e incondicional critério de
determinação do que é ou não contraditório, do que é ou não possível, quer algo
naturae quod decipi potest circa quamcumque veritatem contingentem de re extra si sic assentiat
categorice esse vel non esse.” (ADAM WODEHAM. Lectura Secunda in Librum Primum
Sententiarum, prol., q. 6, lin.25-31). Cf. SALES, S. S. op. cit., p. 129-132.
3
MURALT, A. Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médiévale. Paris :
Vrin, 1995. p. 29.
4
Id., ibid. p. 37.
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Introdução
15
real exista quer não (sive res sit sive non sit). As questões relativas aos possíveis
(de possibilia) sobrepujam doravante àquelas relativas à realidade, tornando-se o
critério de juízo desta última. Em suma, a ordem do possível prevalece sobre a do
ser
5
.
Ao longo da escolástica medieval, a questão da potência absoluta divina
articula não só um dos problemas centrais da metafísica (o das relações entre o
possível, o contingente e o necessário; o da causalidade primeira e o das causas
segundas e instrumentais; etc.), com claros desdobramentos epistemológicos e
lógicos, mas sintetiza igualmente o problema das relações entre a ação divina e a
humana. Afinal, uma vez suposta a existência da onipotência divina, determinar
sua extensão é condição sine qua non para a determinação da natureza e dos
limites da própria liberdade humana. Em termos medievais, trata-se de explicar
filosoficamente o concurso de duas liberdades à luz dos princípios de causalidade
e de participação. Eis um aspecto singularíssimo do problema da potência divina,
nem sempre olvidado pelos estudiosos contemporâneos do pensamento medieval
6
.
As teorias escolásticas da potência divina não são um capítulo à parte na
história do pensamento filosófico, restrito ao pensamento medieval devido à sua
ambientação intrinsecamente teológica
7
. Ao contrário, as mesmas não só
exemplificam a histórica e monumental tarefa de conciliação entre a necessidade
dos princípios filosóficos racionalmente adquiridos e a revelação teológica da
radical dependência de todas as coisas em relação a Deus, mas também possuem
um elo estrutural com a subseqüente história da filosofia, envolta no problema das
relações entre o possível e o necessário, entre a liberdade divina e a humana, uma
vez suposta a ação absoluta da potência divina. É mister reconhecer a presença
desta problemática quer na figura cartesiana do deus enganador, quer na tese
spinozista da rigorosa necessidade da natureza identificada com a substância
5
Para um resumo das características do século quatorze, confira: MAURER, A. Being and
Knowing. Toronto: PIMS, 1990. p. 447-460.
6
MURALT, André. L’enjeu de la philosophie médiévale. Leiden : E.J. Brill, 1993. p. 273-
373; DE FINANCE, J. L’être et l’agir. Roma : Librairie Ed. de l’Univ. Grégorienne, 1960. p. 178-
181; p. 297-298.
7
Ainda que o debate em torno da potência divina no medievo figure como parte do
exercício da especulação teológica, jamais sendo uma reflexão puramente filosófica, isto não
significa que os princípios, os argumentos e as soluções apresentadas nas obras dos teólogos
medievais não tenham um significado e uma natureza filosófica. A principal dificuldade para uma
abordagem contemporânea da filosofia medieval continua sendo a generalizada suspeita de que as
doutrinas medievais são simplesmente teológicas. Sobre este aspecto, confira: KRETZMANN &
STUMP. The Cambridge Companion to Aquinas. Cambridge: CUP, 1993. p. 6-7.
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Introdução
16
divina, quer ainda na distinção leibniziana entre a necessidade lógica e física, ou
ainda em sua definição de possível como tudo o que é objeto de uma potência
8
.
As diferenças em relação às perspectivas medievais sobre a potência
divina são óbvias demais para serem recapituladas aqui. É suficiente assinalar que
o tema da potência divina e as soluções medievais para os mais diversos
problemas resultantes de sua consideração especulativa não constituem um campo
de interesse meramente histórico e tampouco arqueológico do saber humano. Uma
vez que as estruturas do pensamento humano, investigadas de modo analógico,
revelam-se portadoras de significados que ultrapassam os limites históricos nos
quais se desenvolveram, é mais do que oportuno aprofundar os princípios
norteadores da filosofia de Tomás de Aquino a partir das questões disputadas
sobre a potência divina.
No âmbito desta temática, procuramos esclarecer o iter (itinerário)
filosófico de Tomás de Aquino a partir das Quaestiones disputatae De potentia
Dei, obra consagrada à potência divina. Dentre as vias filosóficas que constituem
o iter tomístico, a resolução (resolutio) e a composição (compositio) são a melhor
expressão da genialidade e dos esforços de Tomás no tratamento filosófico da
dýnamis aristotélica como potentia essendi nos entes. Graças à emergência do ser
como ato (esse ut actus) no qual se resolvem todos os atos e todas as perfeições do
ente finito (ens finitum), a metafísica do santo Doutor desenvolve-se em um
horizonte verdadeiramente filosófico, na qual a teoria platônica da participação e a
aristotélica da causalidade reencontram-se e elevam-se conjuntamente em uma
nova síntese.
1.1
Da análise à resolutio e da síntese à compositio
Dentre todos os métodos filosóficos, o da análise parece ser o que melhor
expressa a natureza da própria filosofia, sendo o único a sobreviver ao desgaste
dos tempos e aos conflitos doutrinais. O prestígio que a análise possui atualmente
sobre as demais vias ou métodos da filosofia, sobretudo em razão da filosofia
8
“Considero todos os possíveis como objetos da potência” (LEIBNIZ. Teodicéia, n. 171).
Cf. FUNKENSTEIN, Amos. Theology and the scientific imagination. Princeton: PUP, 1986. p.
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Introdução
17
analítica e da análise fenomenológica, deve-se em parte à preocupação sempre
crescente em relação à tarefa e à finalidade da própria filosofia
9
. Entretanto,
somente um olhar superficial sobre a história da filosofia poderia conceber uma
idéia uniforme e constante do significado da análise como método filosófico de
investigação.
A inexistência de uma concepção unívoca da análise entre os filósofos já
foi objeto de comentário desde o Renascimento, mais especificamente desde a
obra de Jeremias Triverius (1504-1554). Após descrever os quatro métodos da
dialética (divisão, definição, demonstração e resolução, leia-se análise
10
), observa
Triverius que:
(...) todo aquele que possui algum conhecimento das questões dialéticas sabe o que
significa definição, divisão e demonstração. Contudo, até onde me parece, não
existe um consenso geral sobre o que seja resolução. Alguns identificam-na com a
divisão. Outros a consideram contrária à divisão. (...) E, uma vez que cada qual está
vinculado à sua própria opinião, eu mantenho que a resolução é o contrário da
demonstração.
11
Em plena Renascença, Triverius retoma a contraposição entre o método
resolutivo ou analítico e os demais métodos da dialética (divisão, definição e
demonstração) já exposta e defendida pelos comentadores gregos de Aristóteles,
em especial Amônio
12
e David
13
. A ausência de um consenso geral entre os
filósofos em relação à natureza da via analítica ou resolutiva para a filosofia
117-152.
9
Para uma exposição das diversas concepções de análise tanto na tradição analítica quanto
na fenomenológica, confira: BEANEY, Michael. Conceptions of analysis in early analytic
philosophy. Acta Analytica, v. 15, p. 97-115, 2000; BEANEY, Michael. Decompositions and
Transformations: conceptions of analysis in the early analytic and phenomenological traditions.
The Southern Journal of Philosophy. vol. XL, p. 53-99, 2002; HANNA, Robert. Conceptual
Analysis. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy, 1998.
10
Os termos análise e síntese são transcrições precisas dos vocábulos gregos “ajnavlusi"” e
σύνθεσις”, que foram transcritos pelos romanos como “resolutio” e “compositio”,
respectivamente. Em grego, “ανά” significa em cima, para cima, através de; enquanto “λυvσις
significa a ação de desatar, separar, libertar, pôr fim ou solucionar; daí que um dos significados
fundamentais de “ajnavlusi"” é dissolução, resolução, a partir da qual surge “resolutio”, que
mesmo não possuindo analogia verbal, mantém exatamente o sentido do vocábulo grego
correspondente.
11
TRIVERIUS, Jeremias. In Galeni clarissimi commentarii, 1547. apud, GILBERT, Neal.
Renaissance concepts of method. New York : Columbia University Press, 1960. p. 106.
12
AMMONIUS. In Aristotelis Analyticorum Priorum Librum I Commentarium. vol. IV, pt.
6, p. 7, lin. 29; p. 8, lin. 9. apud, SWEENEY, Eileen. Three notions of resolutio and the structure
of reasoning in Aquinas. The Thomist, 58, 1994. p. 198.
13
DAVIDIS. In Porphyrii Isagogen Commentarium. Ed. Maximilian Wallies. Berlin, 1891,
vol. XVIII, p. 88. apud, SWEENEY, E. ibid.
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Introdução
18
mostra que, de sua emergência na lógica aristotélica à sua concepção moderna e
contemporânea, passando pela transformação terminológica e doutrinal do período
medieval, o destino da análise não é menos rico, diverso e problemático do que
qualquer outra noção filosófica.
Compreender as diversas concepções e formas de análise ao longo da
história da filosofia é um objetivo que extrapola os limites da presente
investigação. Não obstante, sabemos o quanto pesam sobre a filosofia medieval as
palavras de Descartes acerca do método praticado pelos escolásticos, que seria
absolutamente formal, inevitavelmente vicioso e irremediavelmente estéril quanto
à ordem analítica de invenção
14
. A razão última do desvio formalista do saber
medieval reside, segundo o autor das Meditações Metafísicas, no caráter sintético
do método escolástico, que careceria totalmente do método de análise. Esta,
enquanto método de descoberta da verdade, seria a única que elevaria o espírito
humano ao conhecimento verdadeiramente científico.
O próprio Descartes observa que os antigos geômetras, dentre estes Pappus,
já faziam uso do método da análise e da síntese
15
, mas os medievais
desconheceram o caráter inventivo e demonstrativo da análise, preferindo sempre
o recurso à síntese na ordem da invenção. Para Descartes, mais do que um método
de ensino, a análise (resolução) e a síntese (composição) são vias de
demonstração, conforme é manifesto em sua resposta às segundas objeções:
A maneira de demonstrar é dupla: uma demonstra por meio da análise ou
resolução, a outra por meio da síntese ou composição. A análise demonstra o
verdadeiro caminho pelo qual a coisa foi metodicamente inventada e permite ver
como os efeitos dependem da causa (...). A síntese, ao contrário, como se
examinasse as causas a partir de seus efeitos (ainda que a prova que ela contém vá
não raro das causas aos efeitos), na verdade demonstra com clareza o que está
contido nas suas conclusões e utiliza uma longa série de definições, postulados,
axiomas, teoremas, problemas.
16
14
DESCARTES. Entretiens avec Burman. AT, V, p. 175; id. Discours de la Méthode. AT,
VI, p. 17; Regulae. AT, X, p. 439-440. A primeira reconstituição do significado histórico e
doutrinal da análise (resolutio) e síntese (compositio) para os medievais, em especial para Tomás
de Aquino, em oposição à visão cartesiana, foi elaborada por: RÉGIS, Louis-M. Analyse et
synthèse dans l’oeuvre de saint Thomas. Studia Mediaevalia. Bruges, 1948, p. 303-330.
15
Id. Discours de la Méthode. AT, VI, p. 17; Regulae. X, p. 373-377; Réponses aux
secondes objections. AT, VII, p. 155-156.
16
Id. Réponses aux secondes objections. AT, VII, p. 155-156.
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Introdução
19
Em sede cartesiana, portanto, a análise é um método que responde pela
ordem de invenção, em que o ponto de partida é sempre a intuição imanente ao
cogito do que é simples e absoluto, única capaz de explicar o efeito pela causa.
Trata-se de um procedimento intuitivo e dedutivo, único a satisfazer as exigências
da primeiríssima regra da evidência
17
. A diferença fundamental entre a ordem de
invenção própria à análise e a ordem de demonstração própria à síntese consiste,
portanto, numa certa relação entre a causa e o efeito. Enquanto a análise investiga
os efeitos pela causa, a síntese procede de modo inverso, explicando a causa pelos
efeitos
18
. É esta dupla ordem de demonstração em que a análise está para a ordem
inventiva assim como a síntese está para a ordem de justificação que garante ao
filósofo o rigor e a clareza metódica necessária para a demonstração da verdade.
Mas, se o que caracteriza a filosofia cartesiana é a prioridade da análise sobre a
síntese e o que determina a esterilidade do método escolástico é justamente o
predomínio exclusivo da síntese, então a filosofia moderna destacar-se-á
justamente por priorizar o método analítico sobre o sintético
19
.
A reconstituição das concepções medievais de análise ou resolutio, em
especial a partir do itinerário metafísico de Tomás de Aquino, permite entrever
um panorama do método escolástico completamente oposto àquele imaginado por
Descartes. Como demonstrou Louis-M. Régis (1948), somente a investigação dos
elementos que constituem o método filosófico das obras de Tomás de Aquino é
suficiente para demover a imagem caricatural da escolástica proposta por
Descartes
20
. A reconstituição histórico-doutrinal do uso e do significo filosófico
17
Id. Recherche de la Vérité. AT, X, p. 503 ; Regulae. AT, X, p. 381; Réponses aux
secondes objections. AT, IX, p. 121; Lettre à Mersenne. AT, II, p. 380.
18
Conforme veremos, para a tradição medieval de Calcídio a Tomás de Aquino, a
resolução ou análise não é a explicação dos efeitos pela causa e a síntese não é a explicação da
causa pelos efeitos, como pretende Descartes. Ao contrário, trata-se justamente do inverso, a saber:
a análise ou resolução é a investigação da causa pelos efeitos, enquanto a síntese realiza o
procedimento inverso ao da análise, procurando compreender os efeitos pela causa.
19
A concepção da análise como único método de invenção e da síntese como método de
doutrina e justificação por composição é sancionada também pela Lógica de Port-Royal (IV, 2,
grifo no original): “Ainsi: il y a deux sortes de méthodes; l’une pour découvrir la vérité, qu’on
appelle analyse ou méthode de résolution, et qu’on peut aussi appeler méthode d’invention; et
d’autre pour la faire entendre aux autres, quando on l’a trouvée, qu’on appelle synthèse ou
méthode de composition, et qu’on peut aussi appeler méthode de doctrine “. Em sua De arte
combinatoria, seguindo a compreensão cartesiana, Leibniz define a análise como divisão: “Análise
é isto: resolva-se qualquer termo dado em suas partes formais, isto é, dê-se a sua definição; sejam
essas partes, por sua vez, resolvidas em partes, isto é, dê-se a definição dos termos da definição, e
assim por diante, até as partes mais simples, ou seja, aos termos indefiníveis” (apud,
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, p. 52, 2000).
20
RÉGIS, L.-M. ibid., p. 304.
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Introdução
20
da análise (resolutio) e da síntese (compositio) na obra do Aquinate não deve ser
motivado, porém, por razões de ordem apologética. Ao contrário, esta tarefa de
relevo histórico-doutrinal só faz sentido na medida em que se reconhece o valor
intrinsecamente filosófico das diversas concepções de análise (resolutio) que
predominam não só no pensamento moderno e contemporâneo, mas também na
filosofia medieval.
Recuperar o significado autenticamente medieval da análise como resolutio
e da síntese como compositio é um dos objetivos desta investigação por duas
razões. Em primeiro lugar, porque a literatura contemporânea dedicada ao
conceito filosófico de “análise” tende a ignorar a natureza e o uso da resolutio e
da compositio como método medieval de investigação filosófica
21
. Essa carência
parece supor não só o desconhecimento da polissemia dos termos “análise” e
“síntese” na filosofia medieval, mas também uma valorização excessiva do
significado moderno de análise, entendido como dedução, extração ou
simplesmente divisão.
Em segundo lugar, porque qualquer compreensão da especificidade da
metafísica de Tomás de Aquino pressupõe o entendimento dos significados de
resolutio e compositio em sua obra, uma vez que, segundo o próprio Tomás, a
resolução é a via que qualifica por excelência o itinerário do metafísico em sua
busca do conhecimento do ente enquanto tal
22
. Por isso, o tema da resolutio na
obra de Tomás desponta como um dos meios privilegiados para o entendimento
não só de sua doutrina metafísica, mas também de sua teoria do conhecimento dos
entes.
Uma vez que qualquer juízo sobre a especificidade das noções de análise
(resolutio) e síntese (compositio) na obra de Tomás de Aquino pressupõe uma
certa comparação com a emergência destas noções na filosofia medieval e, mais
especificamente, na filosofia grega, dedicamos o primeiro e o segundo apêndice à
elucidação dos significados de análise de Aristóteles a Alberto Magno
23
. No
21
As exceções são os trabalhos de Louis-M. Régis (1948), Edmund Dolan (1950), André
Hayen (1959), Cornélio Fabro (1956 a 1974), John Wippel (1974), J. Aertsen (1989; 2004), M.
Tavuzzi (1991), Eileen Sweeney (1994) e Jesús Villagrasa (2001).
22
“Metaphysica, inquantum considerat ens et ea quae consequuntur ipsum. haec enim
transphysica inveniuntur in via resolutionis, sicut magis communia post minus communia.” (In
Met., prol.).
23
Outro percurso importante, mas inexeqüível para a presente investigação, seria a
comparação da noção tomista de resolução com as concepções modernas. Para os fins imediatos
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Introdução
21
primeiro, são examinados os diversos sentidos de análise (
ajnavlusi
") em
Aristóteles. No segundo, procura-se evidenciar a passagem da
ajnavlusi
"
aristotélica à resolutio medieval, com ênfase no surgimento do significado
calcidiano (resolução holológica) e neoplatônico de análise (resolução etiológica).
De posse desses dois paradigmas de resolução, são expostos os pilares da noção
de resolutio no medievo, destacando-se a síntese pessoal de Alberto Magno.
1.2
Da ordo inventionis do De Potentia
O objetivo último desta investigação é compreender a teoria tomista da
potência divina como um corolário de sua metafísica do ser (esse) nas
Quaestiones disputatae De potentia Dei (doravante, De Potentia). Mesmo
sabendo que Tomás aborda a potência divina em diversas obras, com destaque
para a Summa Contra Gentiles e a Summa Theologiae, a escolha do De Potentia
justifica-se, em primeiríssimo lugar, por ser obra consagrada à investigação da
potência divina. É, sem dúvida, no De Potentia que se encontra o tratamento mais
extenso, detalhado e sistemático da potência divina dentre as obras do santo
Doutor. O que, obviamente, não suprime a contribuição específica das demais
obras, especialmente das Sumas, que devem igualmente nos guiar na apreciação e
elucidação dos argumentos de Tomás, expostos no próprio De Potentia.
Se a Suma Teológica é, como seu prólogo indica, destinada à formação dos
iniciantes, as Questões Disputadas são a obra do mestre, destinada a uma
audiência mais ampla e sofisticada
24
. No século XIII, a participação nas disputas é
parte integral do currículo acadêmico, complemento singular do exercício das
leituras (lectio)
25
. O ensino sob a forma de disputa é mais rico do que a lectio
deste trabalho, é oportuno ressaltar somente que os termos resolutio e compositio perduram no
período moderno ao lado dos termos análise e síntese, nas obras de Jacopo Zabarella (De natura
logicae, 1578), Galileu (Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, 1632), Arnauld e
Nicole (La Logique ou l’art de penser, 1662), e Issac Newton (Universal Arithmetick, 1728). Para
uma apresentação dos diversos usos de resolutio e compositio durante o período moderno, confira:
GUERLAC, Henry. Newton and the method of analysis. In: Dictionary of the History of Ideas,
2003.
24
Essa idéia é sugerida por: COCONNIER, R.P.. Le vrai thomiste. Revue Thomiste, 1,
1893, p.11, apud, ZEDLER, B. Saint Thomas and Avicenna in the ‘De Potentia Dei’. Traditio, 6,
1948, p. 105.
25
A lectio podia ser legere cursorie (leitura prévia de um clássico, com um comentário e
uma paráfrase) ou legere ordinarie (depois da leitura, cabia ao mestre resolver as questões
formuladas a propósito do texto). A disputatio podia ser ordinariae, quando o mestre estabelecia
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Introdução
22
tanto na precisão do tema quanto na extensão e complexidade das objeções e
soluções propostas. O registro destas disputas acadêmicas na forma literal de
Quaestiones Disputatae constitui uma das principais fontes da criatividade e do
dinamismo intelectual no período medieval.
A vitalidade e a periodicidade com que os teólogos medievais
participavam das disputas acadêmicas é atestada pelas inúmeras e densas obras
que nos chegaram sob o título de Questões Disputadas, evidenciando o seu
privilégio na cultura escolástica. De modo particular, o De Potentia atesta a
dimensão com que o tema da potência divina era significativo para a sua audiência
e mais caro e prioritário ainda para o seu autor. A audiência do De Potentia era
constituída provavelmente pelos estudantes de teologia, membros do studium de
Roma em Santa Sabina, entre 1265 e 1266. Em se tratando de disputas
inicialmente orais, o De Potentia reúne, em sua redação final, o tema e as questões
que o próprio Tomás de Aquino considerava mais relevantes, pois era próprio do
mestre selecionar, propor, ordenar e resolver as questões que seriam disputadas
ordinariamente, além de ordenar e revisar a compilação das mesmas numa só
obra.
O De Potentia tem sido, porém, objeto de interpretações conflitantes a
respeito de sua unidade lógica e doutrinal em razão da própria ordem de exposição
de suas questões. A divisão das questões que dá origem às controvérsias
interpretativas está estruturada na seguinte ordem: 1) a potência de Deus
considerada em si mesma; 2) a potência gerativa divina; 3) a criação; 4) a criação
da matéria informe; 5) a conservação das coisas no ser; 6) os milagres; 7) a
simplicidade da essência divina; 8) a relação divina ab aeterno; 9) as pessoas
divinas; 10) a processão das pessoas divinas.
À primeira vista, o título da obra parece ser derivado exclusivamente do
título da primeira questão, não se aplicando ao conjunto das questões. Todavia, é
patente a intrínseca relação entre a primeira questão sobre a potência divina e as
questões relativas às ações divinas ad extra, ou seja, a criação, a conservação e os
milagres, atos exclusivos da potência divina (1, 3-6). Por seu turno, há uma
unidade temática facilmente perceptível entre as questões relativas às ações
tanto as questões quanto as resolvia e sistematizava, ou quodlibet, de caráter extraordinário, pois
ocorria somente duas vezes ao ano. Cf. SILVEIRA, C. F. O iter filosófico de Santo Tomás nas
Questões Disputadas. Idea, n. 2, p. 77-82, 1999.
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Introdução
23
divinas ad intra, relativas à Trindade, reunidas entre as questões sete a dez
juntamente com a segunda questão (2, 7-10). A divisão destas questões em dois
grupos parece indicar, porém, a inexistência de uma unidade mais profunda para o
De Potentia. Afinal, como encontrar um elo fundamental entre a questão sobre a
potência divina e aquela outra sobre a simplicidade divina à luz da Trindade? Ou
ainda entre a temática da criação e a da relação entre as pessoas divinas?
Não é por acaso que os intérpretes do De Potentia facilmente apontam as
significativas diferenças entre as diversas questões como testemunho da ausência
de um plano arquitetônico para aquilo que originariamente não constituía senão
disputas orais, de caráter espontâneo e, de certo modo, casual. Neste sentido, M.-J.
Scheeben (1877) sustenta que as questões do De Potentia não possuem qualquer
unidade essencial, resumindo-se a um arranjo arbitrário
26
. Em artigo relativo à
cronologia das questões disputadas de santo Tomás, o Pe. Synave (1926) reforça a
perspectiva de M.-J. Scheeben ao afirmar que o título da primeira questão não se
estende ao conjunto da obra, entendida como um simples amálgama
27
.
É com o Pe. Mandonnet (1918), porém, que ocorre a primeira tentativa de
estabelecer um critério extrínseco para a determinação da unidade do De
Potentia
28
. Essa alternativa parte da comparação do De Potentia com o De
Veritate, mostrando que ambas convergiriam no sentido de tratar da processão das
criaturas. Todavia, a primeira concentrar-se-ia na ordem eficiente da processão,
enquanto a outra na ordem da verdade. Essa alternativa tem o mérito de procurar
uma unidade relativa entre as Questões Disputadas, mas negligencia o tema da
processão das pessoas divinas tão intrínseco ao De Potentia quanto o da processão
das criaturas.
O Pe. Glorieux (1932), por sua vez, em artigo dedicado igualmente à
cronologia das questões disputadas, entende o De Potentia como constituído por
dois tratados independentes, o primeiro reuniria as questões de um a seis,
enquanto o segundo seria formado pelas questões sete a dez
29
. A importância
26
SCHEEBEN, M.-J. La dogmatique. Paris: P.Bélet, 1877, p. 672, apud, M. BOYGES.
L’idée generatrice du De Potentia de saint Thomas. Revue de philosophie, 2, 1931, p. 120-121.
27
SYNAVE, P. Le problème chronologique des questions disputées de saint Thomas.
Revue Thomiste, 31, 1926, p. 155-156.
28
MANDONNET, P. Chronologie des questions disputées de saint Thomas d’Aquin. Revue
Thomiste, 23, 1918, p. 281-82.
29
GLORIEUX, P. Les questions disputées de S. Thomas et leur suit chronologique. RTPM,
4, 1932, p. 10-14.
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Introdução
24
desta divisão em dois tratados independentes é reiterada na introdução ao De
Potentia elaborada pelo Pe. Mondin (2003) para a edição italiana da obra, nos
seguintes termos:
Como decorre desse elenco das questões, o De Potentia divide-se em duas partes.
A primeira (q. 1-6) trata predominantemente dos problemas da criação e do
governo do mundo. Aqui Santo Tomás elabora as linhas essenciais da sua
metafísica do ser, que lhe permite definir com exatidão o conceito de criação e
fazer desta uma ação exclusiva de Deus. A segunda parte (q. 7-10) estuda o
mistério da Trindade, e aqui Santo Tomás toma posição contra os teólogos gregos
que negavam a processão do Espírito Santo a partir do Filho.
30
No entanto, a divisão do Pe. Glorieux e do Pe. Mondin deixa de explicar
como a segunda questão, essencialmente vinculada às questões sobre a Trindade,
pode pertencer ao tratado “isolado” das ações ad extra. A solução deste impasse
entre a pura negação da unidade (Pe. Scheeben e Pe. Synabe) e a afirmação da
unidade relativa (Pe. Mandonnet) ou ainda da unidade circunstancial de dois
tratados independentes (Pe. Glorieux) reside na tese da unidade de propósito
histórico, defendida pela primeira vez pelo Pe. Bouyges (1931) e amplamente
corroborada pela tese doutoral da Profa. Beatrice Zedler (1947)
31
.
Nesta nova perspectiva, o De Potentia deve ser compreendido como uma
resposta à doutrina emanacionista de Avicena que, ao seguir o princípio
neoplatônico segundo o qual ab uno non fit nisi unum, negaria o dogma cristão da
Trindade e a doutrina da criação livre, imediata e exclusiva do múltiplo pelo Uno,
Deus. Com efeito, para Avicena, a potência divina só se manifesta através de um
único efeito: a emanação necessária e imediata do ser a partir do Uno e a
emanação mediata do múltiplo a partir de uma série intermediária de seres
criadores submetidos ao mesmo princípio. Na cosmovisão cristã, ao contrário, a
potência divina é entendida como princípio de dois efeitos: a processão necessária
das pessoas divinas e a livre criação dos seres. Deste modo, explica-se a origem
30
“Come risulta da questo elenco delle questioni il De Potentia si divide in due parti. La
prima (qq. 1-6) tratta prevalentemente dei problemi della creazione e del governo del mondo. Qui
S. Tommaso elabora le linee essenziali della sua metafisica dell’essere, che gli consente di definire
con esatteza il concetto di creazione e di fare di essa una azione esclusiva di Dio. La seconda parte
(qq. 7-10) studia il mistero della Trinità e qui S. Tommaso prende posizione contro i teologi greci
che negavano la processione dello Spirito Santo dal Figlio” (MONDIN, B. Le Questioni Disputate:
La potenza divina. Bologna: ESD, v. I, p. 8, 2003)
31
ZELNER, Beatrice. St. Thomas’ Critique of Avicennism in the De Potentia Dei. N.Y.:
Fordham University Graduate School, 1947.
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Introdução
25
da divisão temática do De Potentia, que reúne tanto questões relativas à potência
divina ad extra (1,3-6) quanto ad intra (2,7-10). É, portanto, no contexto histórico
do avicenismo medieval que se encontra a idéia originária do De Potentia, ou seja,
refutar a compreensão unívoca da potência divina defendida por Avicena.
A unidade de propósito histórico esclarece, assim, a estrutura, a divisão e a
ordem de invenção do De Potentia, com a ressalva de que jamais se deve esperar
de uma questão disputada o mesmo rigor arquitetônico das Sumas ou o caráter
polêmico de certos opúsculos, como o De unitate intellectus. Entretanto, as
Sumas, como mencionado anteriormente, são sínteses destinadas aos estudantes,
sendo mais limitadas quanto à extensão e a resolução das questões e objeções
propostas. Por último, se comparado ao De Veritate, o De Potentia apresenta uma
maior unidade temática (a potência divina), uma unidade de propósito histórico (o
avicenismo medieval) e uma unidade lógica (a processão ad intra e ad extra)
claramente presentes ao longo de seus oitenta e três artigos.
A emergência do De Potentia no contexto teológico da cultura medieval
não é um impedimento para a identificação de sua dimensão filosófica. O espírito
teológico que a anima é devedor de uma síntese filosófica que estrutura e
fundamenta um conjunto significativo de suas discussões. Em relação ao texto do
De Potentia, o estudioso da filosofia medieval deve privilegiar não só as questões
de natureza estritamente filosófica, mas pode e deve analisar igualmente aquelas
de natureza teológica, que expressam a seu modo a síntese filosófica de seu
autor
32
.
No entanto, há quem reforce o caráter intrinsecamente teológico de certos
raciocínios filosóficos, quando entendem que Tomás freqüentemente supõe a
distinção entre Deus e as criaturas, entre os entes que possuem o ser por
participação e o ser por essência na demonstração de seus princípios metafísicos.
Nestes casos, um grande número de argumentos filosóficos de Tomás sempre
pressuporia a prévia aceitação da existência de Deus, entendido como o ser cuja
essência é idêntica ao seu ser (esse per essentiam sive ipsum esse subsistens). É o
caso, por exemplo, das demonstrações da composição ou distinção real entre
32
O próprio Tomás explica as diferenças entre os teólogos como tendo origem em suas
divergências filosóficas, a saber: “Similiter etiam exposiones Sacrae Scripturae in hoc diversificati
sunt, secundum quod diversorum philosophorum sectatores fuerunt, a quibus in philosophicis
eruditi sunt” (In Sent, II, d. 14, q. 1, a. 2).
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Introdução
26
essência e ser (esse) nas criaturas que operam a partir da premissa segundo a qual
há um único ser simples cuja essência é idêntica ao seu ser, isto é, Deus (cum esse
Deus sit eius essentia
33
). Ou ainda, das demonstrações do caráter participativo do
esse nas criaturas que suporiam igualmente o caráter não-participativo do esse
divino.
Em relação a esses casos, é preciso discernir aqueles argumentos que
dependem intrinsecamente da prévia demonstração ou aceitação da existência de
Deus para a sua validação (é o caso dos argumentos cujas premissas supõem uma
certa concepção da existência e natureza divina para a partir disto derivarem
outras conclusões) daqueles outros raciocínios nos quais Tomás não precisaria
assumir a existência e a natureza de Deus como realidade dada, ainda que
previamente demonstrada, para que sua argumentação obtivesse êxito. Nesta
última hipótese, ainda que de fato Tomás mencione a realidade divina como parte
integrante do argumento em questão, de direito, a validade do argumento não
dependeria da prévia aceitação ou demonstração da existência e natureza divina.
Essa distinção é de suma importância para o entendimento dos princípios
autenticamente metafísicos do pensamento de Tomás e para o reconhecimento da
verdadeira ordem de descoberta filosófica suposta em seus raciocínios. Deste
modo, quando se considera o contexto, a estrutura e a natureza teológica da maior
parte das obras do santo Doutor torna-se compreensível a razão da suposição ou
inclusão da existência e natureza divina como parte integrante de um número
significativo de seus argumentos. Para fins intrinsecamente filosóficos, porém,
importa discernir entre os argumentos cuja validade realmente depende da prévia
demonstração da existência e natureza divina daqueles cuja validade não depende,
obedecendo sempre a ordo inventionis filosófica
34
. Em suma, ainda que Tomás
elabore sua doutrina num contexto estritamente teológico, é patente quando, de
que modo e por que o mesmo se serve dos princípios filosóficos como
instrumentos para a resolução especulativa das questões teológicas. Nada obsta,
portanto, proceder analiticamente em relação à fonte textual tomista, procurando
33
AQUINO. STh., I, q. 3, a. 4; In Sent., I, d. 8, q. 4, a. 1-2; SCG I, 22, 52; QDP, q. 7, a. 2;
De Spirit. Creat., a. 1; De Ent. et Ess., c. 5.
34
Esta distinção tornou-se imperiosa a partir da análise dos argumentos em favor da
distinção ou composição entre essência e ser nos entes realizada por John F. Wippel (The
Metaphysical Thought of Thomas Aquinas. Washington: The Catholic Univ. of America Press, p.
I, seção V, p.132-176, 2000).
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Introdução
27
reconstruí-la segundo a ordem e os limites da investigação verdadeiramente
filosófica.
Se o termo ad quem desta pesquisa é a determinação da existência, da
natureza e dos efeitos próprios da potência divina a partir de princípios
metafísicos, o seu termo a quo deve necessariamente consistir na determinação
destes mesmos princípios. Com efeito, somente os princípios metafísicos podem
justificar a transição filosófica do conhecimento da dýnamis dos entes naturais ao
da potentia activa divina. Esta transição filosófica é uma verdadeira dialética
ascendente que não é explícita na estrutura da série de questões que compõem o
De Potentia, em razão de sua própria natureza (é uma questão disputada e não
uma Summa Metaphysicae!) e finalidade teológica.
Os estudiosos da filosofia de Tomás de Aquino às vezes se ressentem pela
inexistência de uma Summa Metaphysicae nos padrões da Summa Theologiae. A
obra do santo Doutor é, porém, permeada intrinsecamente por sua síntese
metafísica mesmo que o contexto motivador ou a finalidade intrínseca de certas
obras seja essencialmente teológica, como testemunham os comentários à Sagrada
Escritura ou, por exemplo, as discussões teológicas sobre a visão beatífica, a
ressurreição dos corpos, a processão do Filho em relação ao Pai, dentre outras.
Não se deve, contudo, olvidar o valor dos comentários e exposições realizadas por
Tomás em relação às obras filosóficas de Aristóteles e dos neoplatônicos como
figurando entre as fontes autênticas de sua síntese metafísica.
Por esta razão, é preciso reconstruir a fonte primária desta investigação de
tal modo que os argumentos expostos ao longo do De Potentia revelem sua real
dimensão e ordem de invenção filosófica. Esta reconstrução tem como condição o
reconhecimento do método, ou melhor, da via resolutiva e compositiva (via
resolutionis et via compositionis) que atuam nos argumentos do De Potentia. Não
obstante, em termos realistas, o método tem sua fonte próxima na estrutura da
própria realidade dos entes sensíveis e sua fonte última no ser (esse). É a
descoberta da dýnamis como princípio real participante do ser (esse), elevado por
Tomás à condição de princípio, ato e perfeição de todas as potências dos entes, o
que legitima o método resolutivo. Graças à emergência do ser como ato (esse ut
actus essendi) e à compreensão da dýnamis aristotélica como potência de ser
(potentia essendi), que Tomás avança em direção a uma nova síntese metafísica
dos princípios de causalidade e participação. Entender os caminhos que justificam
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Introdução
28
a transição da dýnamis à potentia como participação no ser (esse) dos entes e a
ascensão dos entes à condição de participantes da potência divina (potentia
divina) é o objetivo último desta investigação.
Considerando que o De Potentia é o tratado mais detalhado e sistemático
sobre a potência divina em particular, é preciso ressaltar a centralidade da teoria
do ato e da potência e, sobretudo, da teoria da causalidade na dinâmica de sua
construção. Não obstante, a teoria tomista do ato e da potência assim como a
doutrina da causalidade marcam um inequívoco progresso teórico em relação à
tradicional oposição entre a teoria aristotélica da causalidade e a doutrina
neoplatônica da participação. Na verdade, em se tratando da metafísica tomista,
tanto a doutrina aristotélica da causalidade quanto a neoplatônica da participação
desempenham um papel crucial na articulação da passagem do conhecimento da
composição de ato e potência nos entes sensíveis ao da potência ativa divina
35
.
Dentre as fontes primárias da metafísica tomista da potência divina,
encontram-se Aristóteles e Avicena. A relação de Tomás de Aquino com
Aristóteles só pode ser avaliada à luz da especificidade da metafísica do primeiro
em relação ao segundo. A título provisório é suficiente mencionar que a
metafísica tomista complementa, senão transforma a demonstração da potência
ativa divina e de sua realidade infinita, já presente na metafísica aristotélica, à luz
de uma doutrina da participação e da causalidade transcendentais (de herança
obviamente neoplatônica). No De Potentia, as dimensões dinâmicas e estáticas,
causais e participativas dos entes possuem uma resolução ulterior própria e
original que é precisamente a resolução de todos os atos e de todas as perfeições
no ato de ser (actus essendi). É este o fio condutor da análise contemporânea da
originalidade metafísica de Tomás de Aquino, concretizado de modo magistral no
De Potentia. A correta apreciação das fontes aristotélicas e neoplatônicas do De
Potentia é, assim, uma condição necessária para a formulação de qualquer juízo
acerca da originalidade filosófica da síntese tomista em geral e de sua doutrina da
potência divina em particular.
Um dos mais notáveis desenvolvimentos em relação à compreensão do
pensamento de Tomás de Aquino no século passado foi, sem dúvida, a
demonstração da originalidade de sua concepção sobre o ser (esse). O abandono
35
FABRO, C. Participation et causalité. Louvain : PUL, 1960, p. 352.
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Introdução
29
de uma visão formalista ou essencialista sobre o pensamento do Aquinate
constituiu uma verdadeira mudança de paradigma para a tradição tomista. Essa
mudança paradigmática tem seu ponto de partida nas pesquisas e nas obras do Pe.
Cornélio Fabro (1911-1995). Para o autor de La nozione metafisica di
partecipazione secondo S. Tommaso (1939)
36
e de Partecipazione e causalità
(1960), a metafísica tomista constitui uma síntese original graças à noção
"intensiva do ser" que transcende a clássica separação entre transcendência e
imanência, participação e causalidade, platonismo e aristotelismo.
A interpretação do pensamento de Tomás de Aquino à luz de sua original
compreensão do ser (esse) como "ato de todos os atos e perfeição de todas as
perfeições" (noção intensiva característica do De Potentia
37
) significou ainda o
reconhecimento das características peculiares do seu método metafísico,
denominado de resolução (via resolutionis). A via da resolução (via resolutionis)
de todas as perfeições constitutivas do ente (ens) no ser (esse) não é só o termo
resolutivo das investigações filosóficas, mas é, sobretudo, um verdadeiro princípio
de derivação da verdade sobre o ente
38
. Essa investigação em torno do De
Potentia serve-se justamente da conquista paradigmática dos estudos pioneiros do
Pe. Cornélio Fabro para aprofundar as vias filosóficas do De Potentia na solução,
em termos metafísicos, das questões relativas à potência divina, sua causalidade
criadora e conservadora do ser dos entes.
Para elucidar o caráter filosófico da doutrina tomista sobre a potência
divina, é preciso determinar a natureza das vias filosóficas ou dos modos de
proceder próprios da “ciência divina”
39
. Com efeito, “antes da ciência é preciso
investigar o seu modo de proceder”, ensina-nos Tomás de Aquino. Mas, se o
prólogo de seu Comentário à Metafísica de Aristóteles nos informa que a
36
Utilizaremos, neste trabalho, a seguinte publicação: FABRO, C. La nozione metafisica di
partecipazione secondo s. Tommaso d’Aquino. Torino: S.E.I, 1950.
37
QDP q. 7, a. 2, ad 9.
38
Para uma introdução ao pensamento de Cornélio Fabro, confira: MONDIN, B. La
Metafisica di S. Tommaso d’Aquino e i suoi interpreti. Bologna: ESD, p. 97-105, 2002. Para um
estudo mais aprofundado da obra de Fabro, confira: GOGLIA, Rosa. La novitá metafisica in
Cornelio Fabro. Veneza: Marsilio Editori S.P.A., 2004, 196 p.
39
A qualificação da filosofia como ciência divina remonta ao próprio Aristóteles
(Metafísica, Α, 2, 983a 5-10; Ε, 1, 1026a 19; Κ, 7, 1064b3). Para o Estagirita, a filosofia é ciência
divina por dois motivos, a saber: porque ela é ciência que Deus possui em grau supremo e porque
tem por objeto as coisas divinas. Por isso, de modo sapiencial, conclui Aristóteles: “Todas as
outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma lhe será superior” (id., ib., A, 2,
983a10).
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Introdução
30
resolutio é a via por excelência da metafísica, a exposição do De Trinitate de
Boécio acrescenta uma precisão e uma expansão ao modo de proceder da “ciência
divina”.
De modo original e único em toda a sua obra, Tomás realiza a distinção
entre a resolutio e a compositio como espécies pertencentes ao gênero da via de
causalidade (via causalitatis). Além disso, propõe subdividir cada uma destas
vias, qualificando-as em razão da ordem de investigação, a saber: 1) a via de
resolução ou composição procedem secundum rem quando são relativas às causas
extrínsecas; 2) procedem, por outro lado, secundum rationem na medida em que
dizem respeito às causas intrínsecas. Essa perspectiva sugere que a metafísica não
só procede resolutivamente (per modum resolutionis), como propõe o Comentário
à Metafísica, mas também compositivamente (per modum compositionis) quer
isto ocorra pelas causas extrínsecas (secundum rem), quer intrínsecas (secundum
rationem).
A fim de compreender a dimensão realmente metafísica da via resolutionis
e da via compositionis, o segundo capítulo investiga a polissemia dos termos
resolutio” e “compositio” no corpus thomisticum, destacando a identificação
entre a resolutio e a dissolutio (2.1), a correlação entre a resolutio, a abstractio e a
separatio (2.2), a natureza discursiva e lógica da via resolutionis e da via
compositionis (2.3), bem como a aplicação e a natureza metafísica das mesmas
(2.4).
Uma vez circunscrito o significado verdadeiramente metafísico da
resolutio e da compositio para o Aquinate, torna-se possível a análise das questões
e dos argumentos do De Potentia, organizados a partir e em conformidade com
estas mesmas vias. É assim que o terceiro capítulo procura compreender de que
modo a utilização da via resolutiva permite fundar todas as perfeições do ente no
próprio ser (ipsum esse), quer estas perfeições sejam concebidas de modo
constitutivo (ordem predicamental de composição), quer de modo dinâmico
(ordem de causalidade e participação). Ora, a resolução dos entes no ipsum esse
pode ser compreendida como a fundação dos entes no actus essendi, princípio
intrínseco e irredutível, termo da via de resolução secundum rationem (3.1), ou
ainda como a fundação dos entes no ipsum esse subsistens, causa transcendente
eficiente de tudo o que é, termo da via de resolução secundum rem (3.2).
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Introdução
31
O ipsum esse é o mediador por excelência entre os dois momentos
constitutivos da via de resolução pelas causas intrínsecas e pelas causas
extrínsecas. Assim sendo, se o termo último da resolução pelas causas intrínsecas
é a imanência do ser nos entes (esse ut actus essendi), o termo último da resolução
pelas causas extrínsecas é a transcendência absoluta do ser subsistente por si
mesmo (ipsum esse subsistens), que as religiões chamam de Deus. Os argumentos
resolutivos secundum rem serão ordenados em função do fundamento teórico
sobre os quais se sustentam. Em primeiro lugar, são analisados os argumentos
estruturados a partir da teoria da participação (3.2.1). Em seguida, são discutidos
os que são fundamentados na teoria do ato e da potência (3.2.2).
Da resolução dos entes no actus essendi e de todos os entes no ipsum esse
subsistens, o filósofo se questiona sobre a possibilidade de avançar do
conhecimento da existência da causa incausada ao conhecimento de sua natureza.
Da resposta a essa pergunta depende essencialmente o projeto arquitetônico do De
Potentia. O quarto capítulo reúne, assim, a questão da possibilidade do
conhecimento da natureza divina, tal como discutida na sétima questão do De
Potentia, à temática da tríplice via do conhecimento de Deus em Tomás de
Aquino. A tríplice via, ou seja, a via de causalidade (via causalitatis), de remoção
(via remotionis) e de eminência (via eminentiae) constituem um prolongamento
do conhecimento metafísico fundado no princípio de causalidade e de participação
no ser. De posse da tríplice via, esclarece-se, enfim, a ordo inventionis filosófica
do De Potentia e o modo pelo qual o metafísico pode ascender ao conhecimento
ulterior do ipsum esse subsistens, de sua natureza (4.1) e de sua potência criadora
(4.2).
A reconstrução dos argumentos do De Potentia segundo a ordo inventionis
filosófica, isto é, da via de causalidade (via de resolução e via de composição) à
via de eminência, permaneceria incompleta sem a dedução do esse a partir da
potência ativa do ipsum esse subsistens. Tal dedução filosófica tem caráter
evidentemente compositivo secundum rem, na medida em que parte da potência
criadora aos seus efeitos próprios, isto é, à criação e à conservação do ser (esse) e
de tudo o que recebe o ser (esse). Visualiza-se, assim, o “círculo” da inteligência,
metáfora de inspiração neoplatônica, que Tomás utiliza para denotar o movimento
da razão que resolve os efeitos nos princípios (in primo) e compõe os mesmos a
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Introdução
32
partir dos princípios (ex primo), recolhendo a unidade a partir do múltiplo e
compreendendo o múltiplo na unidade.
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2
Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino
“Cada vez que a filosofia se renova, ela realiza um retorno ao
fundamento”
40
. De modo ímpar, dentre os primeiros que se ocuparam do método
filosófico de Tomás de Aquino, Cornélio Fabro mostra que a resolutio é a via por
excelência do “retorno ao fundamento”, sem o qual a filosofia não se pode
renovar. Faz jus, assim, às palavras e à intenção do Angélico que, no prólogo de
seu comentário à Metafísica de Aristóteles, identifica a resolutio à via por
excelência da metafísica.
Semelhante ao que ocorre com alguns dos principais temas filosóficos como
o dos transcendentais, Tomás de Aquino jamais dedicou uma obra ou breve
tratado voltado exclusivamente à via resolutionis e à via compositionis.
Entretanto, seria precipitado julgar que a resolutio e a compositio são termos
marginais em sua obra. Com efeito, de acordo com o Index Thomisticum
Manager, somente o substantivo resolutio e o verbo resolvere aparecem
seiscentas e sessenta e duas vezes nas obras de Tomás de Aquino, sem considerar
aqui a utilização de termos cognatos como dissolutio, divisio e reductio.
Investigar todas as ocorrências dos termos resolutio e compositio, bem como de
seus cognatos no corpus thomisticum é tarefa inexeqüível para os fins deste
trabalho.
É imprescindível, entretanto, consagrar nossos esforços em compreender as
principais acepções de resolutio e compositio em Tomás de Aquino antes de
considerarmos o itinerário metafísico do De Potentia. E isso se torna patente pelas
seguintes razões. A primeira consiste na polissemia dos termos resolutio e
compositio no corpus thomisticum. Tomás ora utiliza o termo resolutio para se
referir à divisão ou dissolução da própria coisa
41
, ora como via de cognição que
40
“Chaque fois que la philosophie se renouvelle, elle accomplit un retour au fondement"
(FABRO, C. Le retour au fondement de l’être. In : Tomismo e Pensiero Moderno, p. 271, 1969c).
41
"Tertio modo dicitur fieri ex aliquo, sicut simplex, ex composito ex materia et forma. Et
hoc est in via resolutionis, sicut dicimus quod partes fiunt ex toto, et versus ex Iliade, idest ex toto
tractatu Homeri de Troia; resolvitur enim Ilias in versus, sicut totum in partes. Et similiter dicitur
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 34
consiste na divisão do todo em suas partes e do composto no simples. Neste caso,
a resolutio é descrita como a transição intelectual do que é conhecido de modo
confuso e indistinto ao que é conhecido distintamente
42
.
Como modo ou via de cognição, a resolutio aparece em sentido oposto ao
anterior, ou seja, como processo de distinção por abstração (per abstractionem) do
todo da parte, do universal do particular, da forma da matéria, em sentido inverso
à mera divisão material, pois consiste na passagem da matéria à forma inteligível.
Nesta acepção, a resolução nada mais é do que abstração
43
. Em outras ocasiões, a
resolução é a operação pela qual os atos de composição e divisão do intelecto se
resolvem na operação de simples apreensão, que, por seu turno, se resolve nos
sentidos
44
. A resolução é qualificada ainda como via do juízo (via iudicandi),
oposta à via de invenção (via inveniendi), capaz de garantir da certeza dos juízos
científicos
45
. Enfim, a resolutio é entendida também como modo de raciocínio
pelo qual conhecemos a unidade a partir do múltiplo, o princípio e a causa pelos
seus efeitos, o imediato a partir do mediato, a forma universal e comum a partir
das formas particulares
46
. Como a resolutio é um processo oposto ao da
quod lapides fiunt ex domo. Ratio autem huius est, quia forma est finis in generatione. Perfectum
enim dicitur quod habet finem, ut supra habitum est. Unde patet, quod perfectum est quod habet
formam. Quando igitur ex toto perfecto fit resolutio partium, est motus quasi a forma ad materiam;
sicut e converso, quando partes componuntur, est motus a materia in formam. Et ideo haec
praepositio ex quae principium designat, utrobique competit: et in via compositionis, quia
determinat principium materiale; et in via resolutionis, quia significat principium formale." (In
Met., V, lc. 21, n. 3).
42
“Est autem duplex via procedendi ad cognitionem veritatis. Uma quidem per modum
resolutionis, secundum quam procedimus a compositis ad simplicia, et a toto ad partem, sicut
dicitur in primo Physicorum, quod confusa sit prius nobis nota. Et in hac via perficitur cognitio
veritatis, quando pervenitur ad singulas partes distincte cognoscendas. Alia est via compositionis,
per quam procedimus a simplicibus ad composita, qua perficitur cognitio veritatis cum pervenitur
ad totum” (In Met., II, lc. 1, n. 278).
43
“Est enim duplex resolutio quae fit per intellectum. Una secundum abstractionem formae
a materia, in qua quidem proceditur ab eo quod formalius est, ad id quod est materialius: nam id
quod est primum subiectum, ultimo remanet; ultima vero forma primo removetur. Alia vero
resolutio est secundum abstractionem universalis a particulari, quae quodammodo contrario ordine
se habet: nam prius removentur conditiones materiales individuantes, ut accipiatur quod commune
est.” (Comp. Theol., I, c. 62).
44
“(…) operatio intellectus componentis et dividentis resolvitur ad operationem eius qua
respicit aliquod incomplexum: quia quod quid est, est principium demonstrandi an est simpliciter,
et quia est (...)" (In Sent. III, d. 24, q. 1, a. 1, ad 2); “Cum ergo omnis cognitio intellectus nostri a
sensu oriatur, non potest esse judicium rectum nisi reducatur ad sensum." (In IV Sent., d. 9, q. 1,
qc. 1, a. 4, co.).
45
"Judicium enim perfectum haberi non potest de aliqua cognitione nisi per resolutionem
ad principium unde cognitio ortum habet." (In IV Sent., d. 9, q. 1, qc. 1, a. 4, co.).
46
“Terminus vero discursus est, quando secundum videtur in primo, resolutis effectibus in
causas, et tunc cessat discursus.” (STh I, q. 14, a. 7, co.); “(...) sed oportet omnia reducere in unum
principium primum” (QDP, q. 3, a. 6, co.); Cf. In De Trin., q. 6, a. 1, sol. 3.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 35
compositio, o que dissemos sobre as diversas acepções de resolutio vale
igualmente para os sentidos de compositio.
Os múltiplos significados de resolutio e compositio no corpus thomisticum
são a base para as significativas divergências entre os intérpretes de Tomás de
Aquino. Eis a segunda razão para nos dedicarmos ao exame destas noções a fim
de delimitarmos seu significado verdadeiramente metafísico. As divergências
podem ser explicitadas de modo paradigmático pelos impasses em torno do
comentário de Tomás ao De Trinitate de Boécio, mais especificamente em torno
da interpretação do significado de “resolutio secundum rem” e de “resolutio
secundum rationem
47
.
De acordo com L-M. Régis (1948, p. 324-326), a resolutio secundum
rationem caracterizaria o método da matemática e, em parte, o da física, que se
consagram ao conhecimento das causas intrínsecas do ente. A ciência divina ou
sabedoria se serve, por sua vez, tanto da resolutio secundum rationem quanto da
resolutio secundum rem, já que seus objetos terminam na consideração do ente
enquanto tal. Para o autor, o que há de comum em todos os significados de
resolutio é o seu terminus que sempre diz respeito a algo que sob certo aspecto é
primeiro.
O caráter científico da resolutio tomista como inquisitio rationis foi
essencialmente sublinhado por Isaac (1950, p. 481-493), segundo o qual o ponto
de partida da resolução ou análise é o resultado precedentemente obtido pelo
ensino ou pela disciplina, pela discussão ou descoberta pessoal. Este resultado,
por sua vez, só foi alcançado graças ao método de invenção (compositio), que é o
objeto de estudo da dialética. A pesquisa resolutiva é entendida como uma via
crítica de corroboração ou justificação da certeza científica na medida em que,
pela inquisitio resolvens, o espírito se volta sobre si mesmo, considerando na luz
de seus princípios formais as conclusões ou hipóteses obtidas pela invenção
(inventio). Por isso, afirma Isaac (1950, p. 494) que “não há certeza [científica]
47
In De Trin., lc. 3, q. 6, a. 1, sol. 3. Embora seja um dos pioneiros na ênfase sobre a
resolutio como método metafísico, C. Fabro não menciona a distinção entre resolutio secundum
rem e resolutio secundum rationem (cf. JESÚS VILLAGRASA. La resolutio come metodo della
metafisica secondo Cornelio Fabro. Alpha Omega, IV, n. 1, 2001, p. 35-66). De modo semelhante,
tal lacuna se faz presente nas obras do Pe. Mondin, que indica o comentário ao De Trinitate de
Boécio como fonte do significado tomista de resolução, sem fazer alusão à distinção entre a
resolutio secundum rem e a resolutio secundum rationem. Cf. MONDIN, B. Dizionario
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 36
senão por um juízo resolutivo”. Como as resoluções científicas são atos da terceira
operação do espírito, resultam sempre no mesmo tipo de juízo, embora possam
diferir em razão de seus graus de certeza. Os graus de certeza das resoluções
científicas são oriundos, enfim, da diferença entre os raciocínios apodícticos e os
dialéticos, sobre os quais se concentra o autor em sua análise da resolutio
tomista
48
.
Os contrastes entre os diversos significados de resolutio e compositio em
Tomás de Aquino, em especial entre os métodos da ciência teórica e os da ciência
prática, foram objetos da análise de Edmund Dolan (1950, p. 10-62). Partindo da
definição do silogismo demonstrativo como “compositivo” e do silogismo prático
como “resolutivo”, o autor mostra que há uma dificuldade na interpretação do
pensamento de Tomás quando se considera que a resolutio também é atribuída à
ciência teórica, assim como a compositio também é atribuída à ciência prática.
Afinal, se os raciocínios nas ciências teóricas procedem por composição, como
Tomás pode atribuir o modo resolutivo à demonstração científica? Para Dolan
(1950, p. 53-62), as aparentes contradições dos textos desaparecem quando se
distingue o sentido estrito e lato de resolutio e compositio. Conclui, então, que a
ciência prática é compositiva em sentido estrito, mas resolutiva em sentido lato,
enquanto a ciência teórica é resolutiva em sentido estrito, mas é compositiva em
sentido lato.
De modo mais específico em relação à distinção entre a resolutio secundum
rationem e a resolutio secundum rem, Oeing-Hanhoff (1971, p. 232-248)
argumenta que se trata de uma separação entre a análise dos conceitos e a análise
dos objetos naturais. Neste caso, estaríamos diante de dois métodos separados
intrinsecamente por seus objetos e pelo modo de os conhecer. Por seus objetos, na
medida em que a via de resolução secundum rationem é relativa aos conceitos,
enquanto a via de resolução secundum rem diz respeito às coisas reais. Pelo modo
de os conhecer, já que a via secundum rationem conheceria o mais geral a partir
enciclopedico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. 2000, p. 432-433; 437-439; 589; Id. La
Metafisica di S. Tommaso d’Aquino e i suoi interpreti. 2002, p. 222-229.
48
J. Isaac (1950, p. 487) não considera a resolutio como pertinente senão aos raciocínios,
excluindo os atos de simples apreensão e de juízo. Neste ponto, o juízo de L.-M. Régis (1948, p.
317-322) é mais acertado pois reconhece que Tomás também utiliza o termo resolutio
relativamente à simples apreensão e ao juízo. Sobre a resolutio no âmbito da simples apreensão,
confira também Rodriguez Arias (1998 e 2002).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 37
do particular, enquanto a via secundum rem conheceria as causas extrínsecas dos
objetos naturais.
Por seu turno, John Wippel (1974, p. 593-600) analisa a distinção entre a
resolutio secundum rem e a resolutio secundum rationem como meios de
elucidação do modo de proceder racional (rationabiliter), atribuído por Tomás à
ciência divina. Em primeiro lugar, distingue a dupla ordem de consideração da
qual parte Tomás em seu comentário ao De Trinitate de Boécio, ou seja, a ordem
da realidade (secundum rem) e a ordem do pensamento (secundum rationem). Em
seguida, mostra que a principal diferença entre estas ordens, segundo as palavras
do próprio Tomás, é que a via da resolutio, assim como a da compositio, é
qualificada como “secundum rem” na medida em que conhece seu objeto em
termos de causas extrínsecas (p.ex., quando se conhecem as substâncias
separadas), enquanto a resolutio e a compositio são qualificadas “secundum
rationem” porque conhecem seu objeto em termos de causas intrínsecas (p.ex.,
quando se conhece o ente graças aos seus princípios intrínsecos). Concentra-se em
esclarecer ainda o significado de “filosofia primeira”, “metafísica” e “teologia” a
partir destas duas ordens de causas, extrínsecas (secundum rem) e intrínsecas
(secundum rationem), e da dupla via que as acompanha, resolução (resolutio) e
composição (compositio).
Contra a interpretação de Oeing-Hanhoff, Jan A. Aertsen (1989, p. 414-416)
sustenta que a análise dos conceitos, no sentido proposto por Oeing-Hanhoff, não
está ausente do pensamento do Aquinate, mas não deve ser confundida com a
resolução secundum rationem. A análise dos conceitos é relativa à divisão do todo
em suas partes e à passagem do universal vago ao que é distinto e específico
49
.
Mas, a resolutio secundum rem e a resolutio secundum rationem não são distintas
em razão da diferença existente entre a ordem dos conceitos e a ordem das coisas
naturais, mas sim em razão da distinção entre a busca das causas intrínsecas
(secundum rationem) e extrínsecas (secundum rem) do ente enquanto tal. Assim, a
resolutio secundum rem e a resolutio secundum rationem são vias diversas para
um mesmo movimento discursivo, denominado de resolutivo, que parte do que é
mais particular ao mais universal, em sentido inverso à análise dos conceitos.
Deste modo, a resolutio secundum rationem conheceria como termo último de sua
49
In Phys., I, lc. 1, n. 6-7; In Physic., III, lc. 1, n. 277.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 38
investigação o ente (ens) e o ser (esse) em sentido transcendental, no qual se
resolve inclusive o princípio de não-contradição. Por seu turno, a resolutio
secundum rem encontraria seu termo último no ipsum esse subsistens.
De modo semelhante a Oeing-Hanhoff, Michael Tavuzzi (1991, p. 199-227)
entende a resolutio secundum rationem como restrita ao âmbito dos conceitos,
tendo como objeto último o ens commune, enquanto a resolutio secundum rem
sempre terminaria numa proposição existencial a respeito da realidade efetiva de
seu objeto, em especial do ipsum esse subsistens. A resolutio secundum rem é
entendida ainda como o fundamento da certeza da resolutio secundum rationem,
ou seja, esta última pressuporia aquela, assim como a metafísica de Tomás como
um todo pressupõe a demonstração da existência de Deus. Por essa razão, a
resolutio secundum rationem não passaria de uma conjectura, enquanto não se
demonstra efetivamente a existência de seu objeto pela resolutio secundum rem
50
.
Em sintonia com Jan A. Aertsen sobre a unidade do movimento discursivo
inerente à dupla resolutio secundum rationem e resolutio secundum rem, Eileen
C. Sweeney (1994, p. 227) diverge, porém, no que diz respeito à natureza da
resolutio. Para esta autora, mesmo se ambas as resoluções terminassem no mesmo
objeto, a resolutio secundum rationem e a resolutio secundum rem seriam sempre
um movimento ascendente, ao modo da reductio ad unum dos neoplatônicos, e
não um movimento descendente por divisão, tal como proposto por Calcídio
51
.
Por isso, o termo da resolutio secundum rationem e da resolutio secundum rem é
sempre algo universal e comum em sentido ascendente.
As divergências apontadas acima são um sinal da atualidade do método
resolutivo para a compreensão da metafísica tomista e das dificuldades de se
estabelecer o seu autêntico significado. A terceira razão para considerarmos
novamente a polissemia da noção de resolutio em Tomás consiste na necessidade
de determinar o significado metafísico da via de composição, que é correntemente
definida após e por contraposição à via da resolução. Não há um consenso sobre o
papel da compositio como método metafísico e/ou teológico em Tomás de
Aquino. Em geral, a literatura específica tende a separar o método metafísico do
50
“As a matter of principle the seizure of the ratio entis which culminates metaphysical
resolution secundum rationem represents no more than a highly sophisticated conjecture”
(TAVUZZI. Aquinas on resolution in metaphysics. Thomist, 55, p. 225, 1991).
51
Sobre o sentido calcidiano de resolução, confira o segundo apêndice.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 39
teológico, a partir da oposição entre a ordem do método resolutivo e a ordem do
método compositivo
52
. Em parte tal separação ocorre porque o próprio Tomás ora
parece restringir o método metafísico ao resolutivo
53
, ora parece ampliá-lo para
integrar também a via compositiva
54
.
Enfim, a quarta razão para investigar os significados de resolutio e
compositio no corpus thomisticum centra-se no valor intrínseco destas noções para
a compreensão do iter filosófico de Tomás de Aquino, que se utiliza da resolutio e
da compositio para definir a natureza e os termos do raciocínio científico em
geral, determinando as especificidades metodológicas da ciência teórica e da
ciência prática, da física e da metafísica, da teologia filosófica e da teologia
revelada, além de esclarecer a estrutura discursiva, lógica e dialética da razão
humana.
Estabelecidas as razões que nos movem a abordar a polissemia dos termos
resolutio e compositio na obra do Doutor Angélico, surge a questão relativa ao
modo como procederemos à sua abordagem. Poder-se-ia pensar que o uso extenso
e complexo dos termos resolutio e compositio na obra de Tomás de Aquino
deveria ser compreendido e ordenado a partir das variações semânticas
discerníveis ao longo de suas obras, tendo como chave de leitura a ordem
cronológica de suas aparições. Embora esta via possa ser fecunda para a
explicitação da gênese do termo resolutio no corpus thomisticum, a mesma não
parece ser muito promissora se compararmos os sentidos de resolutio presentes na
tradição filosófica anterior a Tomás com aqueles que utiliza desde seu Scriptum
super libros Sententiarum (1252-1256) até os comentários mais tardios às obras
do Pseudo-Dionísio e de Aristóteles.
52
É o que se pode perceber no seguinte verbete do Pe. Mondin: “Come risulta dal testo
sopra citato [In De Trin., lect. II, q. 2, a. 1, sol. 3], il metodo risolutivo (resolutio) è quello della
metafisica,il cui obiettivo è – come dice S.T. – risolvere tutti gli enti ‘in ciò che è più universale e
più semplice’, vale a dire l’esse ipsum subsistens. (...) Invece la teologia pratica il metodo della
composizione (compositio): assumiendo come princìpi le verità rivelate, trae nuove conclusioni”
(Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna: ESD, p. 589, 2000).
Todavia, o mesmo autor reconhece, em outra obra, que o método compositivo faz parte igualmente
da metafísica: “Del problema del metodo della metafisica S. Tommaso si occupa espressamente
nel suo Commento al De Trinitate di Boezio e dice che esso si articola in due momenti principali:
il momento risolutivo e il momento compositivo.” (Id. La Metafisica di S. Tommaso d’Aquino e i
suoi interpreti. Bologna: ESD, p. 224, 2002). Ausentes nas obras do Pe. Mondin, a distinção entre
as ordens de consideração, secundum rem e secundum rationem, serão decisivas para a elucidação
do caráter compositivo da metafísica e, conseqüentemente, da teologia revelada, sobre a qual,
porém, não nos detereremos aqui.
53
Cf. In Met., prol.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 40
Afora o sentido metafórico de dissolução
55
, o sentido aristotélico e
calcidiano
56
de “resolução holológica”
57
como dissolução (dissolutio) e divisão
(divisio) aparece tanto no Scriptum super libros Sententiarum (1252-1256)
58
quanto no Compendium Theologiae (1265-1267)
59
, na Sententia libri De sensu et
sensato (1268-1269)
60
, na Sententia super Metaphysicam (1270-1273)
61
, na
Sententia super Physicam (1268-1269)
62
, na Sententia libri Ethicorum (1271-
1272)
63
, na Sententia super librum De caelo et mundo (1272-1273)
64
, na Expositio
libri Peryermenias (1270-1271)
65
, na Sententia libri Politicorum (1269-1272)
66
,
nas Quaestiones disputatae De Veritate (1256-1259)
67
, nas Quaestiones
disputatae De Malo (1269-1271)
68
, nas Quaestiones disputatae De Potentia
(1265-1266)
69
, na Summa Theologiae (1268-1272)
70
, na Summa Contra Gentiles
(1259-1265)
71
e, enfim, no De substantiis separatis (1272)
72
.
54
Cf. In De Trin., q. 6, a. 2, co.
55
Em geral, este sentido está presente nos comentários bíblicos, tais como: In Isaiam, cap.
3, lc. 1; cap. 8, lc. 4; In Job, cap. 9. Ainda nos comentários bíblicos, encontram-se passagens nas
quais a resolutio possui o sentido literal de divisão, dissolução ou separação, a saber: In Job, cap.
10; In Psalmos, 15, n. 7; Super Johannis, c. 6, lc. 1; Super I ad Cor., c. 15, lc. 5 et 6; Super ad Phil.,
c. 1, lc. 3; Super ad Thim., II, c. 4, lc. 2 et 3.
56
Sobre o sentido aristotélico de resolução holológica, confira o primeiro apêndice deste
trabalho.
57
As expressões “resolução holológica”, “resolução etiológica”, “resolução teleológica” e
“resolução lógica” nos são sugeridas por Leopoldo Palacios (1962, p. 118-120). As três primeiras
são definidas como: 1) ascensão do todo às partes; 2) ascensão do efeito às causas; 3) ascensão dos
fins aos meios. A resolução lógica ou análise dos conceitos reveste-se de um aspecto único,
segundo o autor, pois é a ascensão do particular ao universal, em sentido oposto à resolução
holológica.
58
In Sent., II, d. 12, q. 1, a. 1 et a. 4; d. 14, q. 1, a. 5, ad 1; d. 18, q. 2, a. 3, co.; d. 19, q. 1, a.
2, ad 2; d. 20, q. 1, a. 2, ad 4; d. 30, q. 2, a. 2, sc 1; III, d. 16, q. 1, a. 1, co.; d. 21, q. 1, a. 2, ad 5; d.
21, q. 2, a. 1, ad 1; IV, d. 11, q. 1, a. 2, co.; d. 43, q. 1, a. 4, co. e ad 2; d. 44, q. 2, a. 1, co.; d. 44, q.
3, a. 3, co.; d. 47, q. 2, a. 3, co.; d. 48, q. 1, a. 4, co.; d. 50, q. 2, a. 3, sc 1.
59
Comp. Theol., I, c. 186; c. 234.
60
In De Sensu et Sens., lc. 9, n. 7 ; lc. 10, n. 8 ; lc. 12, n. 9 ; lc. 13, n. 9.
61
In Met., I, lc. 12, n. 8; II, lc. 1, n. 6; III, lc. 3, n. 1; V, lc. 4, n. 5-6; V, lc. 8, n. 17; V, lc.
21, n. 3; VII, lc. 6, n. 31; VII, lc. 9, n. 20; VIII, lc. 4, n. 4 et n. 25; X, lc. 2, n. 6; XI, lc. 1, n. 27;
XII, lc. 2, n. 15.
62
In Phys. III, lc. 1, n. 3; III, lc. 8, n. 8 ;
63
In Ethic., VIII, lc. 13, n. 9; IX, lc. 1, n. 5; IX, lc. 3, n. 12.
64
In De Caelo et Mundo, III, lc. 8, n. 7.
65
In Pery., I, lc. 3, n. 4.
66
In Pol., I, lc. 1, n. 8; II, lc. 3, n. 1.
67
QDV q. 5, a. 2, co.; q. 25, a. 6, co.
68
QDM q. 4, a. 8, ad 17; q. 4, a. 9, ad 6.
69
QDP q. 3, a. 9, ad 9; q. 5, a. 10, ad 7.
70
STh I, q. 76, a. 8, co.; q. 103, a. 3, co.; q. 68, a. 2, co.; q. 119, a. 2, co.; I-II, q. 28, a. 5,
co.; II-II, q. 152, a. 1, co.; q. 154, a. 5, co.; III, q. 3, a. 3, ad 3; q. 32, a. 4, co.; q. 35, a. 3, ad 3; q.
51, a. 3, sc; q. 66, a. 4, ad 2; q. 75, a. 3, co.
71
SCG I, c. 26, n. 12; III, c. 147; IV, c. 61; IV, c. 83; IV, c. 90.
72
De sub. sep., c. 6.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 41
Por seu turno, o sentido neoplatônico
73
de resolução etiológica como
regressão, recondução ou redução (reductio) às causas e princípios primeiros,
mais universais e comuns, também está presente no Scriptum super libros
Sententiarum
74
, Compendium Theologiae
75
, na Sententia super Metaphysicam
76
,
na Sententia libri Ethicorum
77
, no De Veritate
78
, na Summa Theologiae
79
e na
Summa Contra Gentiles
80
. Manifesta-se de modo decisivo, sobretudo, no Super
Boetium De Trinitate (1257-1259)
81
, na Expositio libri Boetii De ebdomadibus
82
,
no Super librum Dionysii De divinis nominibus (1265-1267)
83
, no Super Librum
De Causis (1272)
84
e no De substantiis separatis
85
. É mais sugestiva e notável a
convergência deste sentido de busca resolutiva das causas últimas e dos primeiros
princípios na Expositio libri Posteriorum (1271-1271)
86
.
Embora menos recorrentes, mas não menos relevantes para a compreensão
dos significados de resolutio em Tomás se encontram o sentido aristotélico de
análise prática e o sentido boeciano de resolutio como via iudicii. O sentido
aristotélico de resolutio como deliberação prática, análoga à análise geométrica,
aparece na Sententia libri Ethicorum
87
, no De Veritate
88
e na Summa
Theologiae
89
. Enfim, o sentido boeciano de resolutio como via do juízo certo (via
iudicii veritatis), oposta à via de invenção (via inveniendi), se manifesta no
73
O sentido de resolução como recondução aos primeiros princípios já está presente na
concepção aristotélica de “análise” relativa aos argumentos em geral. Todavia, o termo análise é
restrito na análise aristotélica ao que os medievais chamariam de resolução secundum rationem,
pois Aristóteles identifica a análise como a descoberta dos princípios e causas intrínsecas (material
e formal) das conclusões e não à descoberta dos princípios e causas extrínsecas (eficiente e final)
das próprias coisas (resolução secundum rem). É este último sentido o que qualifica a novidade da
análise ou resolução neoplatônica em relação à análise aristotélica, embora ambas caracterizem a
transição intelectual dos efeitos às causas. Sobre o sentido aristotélico e neoplatônico de análise ou
resolução, confira o primeiro apêndice.
74
In Sent., I, d. 8, q. 1, a. 3, sc 2; d. 30, q. 1, a. 2, co.; d. 37, q. 1, a. 1, ad 4.
75
Comp. Theol., I, c. 62.
76
In Met., IV, lc. 5, n. 1; IV, lc. 6, n. 9; VII, lc. 15, n. 10.
77
In Ethic., I, lc. 11, n. 7.
78
QDV q. 1, a. 12, co.; q. 10, a. 8, ad 10; q.11, a.1, ad 13; q.12, a.1, co.; q.12, a. 3; ad 2; q.
13, a. 3, ad 7; q. 14, a. 1 et a.9; q. 15, a. 1, co. et ad 4; q. 24, a. 9; q.28, a.3, ad 6.
79
STh I, q. 14, a. 7, co.; q. 79, a. 8, co.; q. 85, a. 8, ad 1; I-II, q. 57, a. 2, co.; I-II, q. 74, a. 7,
co.; I-II, q. 90, a. 2, ad 3; II-II, q. 5, a. 2, co.; II-II, q. 53, a. 4, co.
80
SCG III, c. 47, n. 6; IV, c. 54, n. 4; IV, c. 92
81
In De Trin., I, q. 2, a. 1, ad 5 ; III, q. 6, a. 1, sol.
82
In De Hebd., lc. 1.
83
In De Div. Nom., c. 1, lc. 2 ; c. 4, lc. 7
84
In De Causis, lc. 1.
85
De sub. sep., c. 9 et c. 10.
86
In Anal., I, lc. 44, n. 12; II, lc. 1, n. 9.
87
In Ethic. I, lc. 13, n. 4; III, lc. 8, n. 4; III, lc. 9, n. 2.
88
QDV q. 15, a. 3, co.; q. 22, a. 2, co.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 42
Scriptum super libros Sententiarum
90
, na Summa Theologiae
91
, no De Veritate
92
,
no De Malo
93
, e na Expositio libri posteriorum
94
.
Deste panorama das ocorrências de resolutio no corpus thomisticum, torna-
se patente que, ao longo de toda a sua vida acadêmica, Tomás não abandonou
nenhum dos sentidos de resolutio presentes na tradição filosófica. Tampouco se
pode imaginar que Tomás tenha adotado a resolutio neoplatônica somente por
ocasião dos comentários aos textos neoplatônicos, enquanto utilizava-se da
resolutio aristotélica-calcidiana em seus comentários a Aristóteles. Com efeito, a
seleção anterior mostra que Tomás utiliza ambas as noções em seus comentários,
o que ocorre igualmente em suas obras independentes. Deste modo, a única
conseqüência que se pode extrair de uma comparação cronológica dos diversos
usos do termo resolutio no corpus thomisticum é que Tomás fez coexistir
concepções tradicionalmente contrárias de resolutio, como são a resolutio-divisio
sive dissolutio de Calcídio e a resolutio-reductio neoplatônica. Isso só manifesta
ainda mais o caráter irredutível e pessoal de sua síntese.
Como chave de análise dos diversos significados de resolutio e compositio
em Tomás de Aquino, não seguiremos a ordem cronológica de apresentação e
comentário das passagens em que ocorrem os termos de nossa investigação. É em
função do desenvolvimento sistemático do tema que subdividiremos a exposição
dos textos de Tomás em quatro partes, a saber: 2.1) resolutio e dissolutio; 2.2)
resolutio, abstractio e separatio; 2.3) a via resolutionis e a via compositionis
lógica; 2.4) a via resolutionis e a via compositionis metafísica.
Os sentidos de resolução e composição que serão examinados são relativos
tanto aos diversos matizes da própria realidade quanto às diversas abordagens do
raciocínio científico. O objetivo próximo desta exposição é compreender a
resolutio e a compositio enquanto especificações do modo de proceder do
conhecimento humano, discursivamente designado para contextos distintos do
saber. Cada tipo de compositio e resolutio analisada reiterará a estrutura
89
STh I-II, q. 14, a. 5, co.
90
In Sent., III, d. 23, q. 2, a. 2, sol.; d. 35, q. 2, a. 2, co.
91
STh I, q. 79, a. 8, co.
92
QDV q. 13, a. 3, ad 7; q. 15, a. 1, co.; q. 17, a. 1, co.
93
QDM q. 6.
94
In Anal., proem.; I, lc. 1, n. 6; I, lc. 35, n. 2; I, lc. 36, n. 7; I, lc. 39, n. 7; I, lc. 43, n. 10.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 43
discursiva da razão humana, que principia de e retorna a um princípio
fundamental e fundante.
2.1
Resolutio e dissolutio
Um dos principais dilemas para quem aborda a polivocidade do termo
resolutio em Tomás de Aquino é descobrir a sua especificidade em relação à mera
dissolução material dos entes corpóreos. O termo latino que melhor caracteriza
este fenômeno é, desde Calcídio, dissolutio. Em Tomás, esse termo aparece
independentemente do termo resolutio naquelas ocasiões em que o autor pretende
se referir exclusivamente à divisão da coisa ou do corpo (divisio rei sive dissolutio
corporis)
95
, à dissolução dos elementos (dissolutio elementorum)
96
, enfim, à
dissolução dos contrários (dissolutio ex contrariis)
97
.
De modo ocasional, o termo dissolutio aparece concomitantemente ao termo
resolutio
98
. Mesmo quando não menciona o termo dissolutio, o Aquinate refere-se
à resolutio corporis em sentido geral e, mais especificamente, à resolutio de
coisas sensíveis, tais como: resolutio vaporum
99
, resolutio lacrymarum
100
,
resolutio seminis
101
, resolutio humoris
102
, resolutio odoris
103
, resguardando o
sentido primordial de dissolutio. Em outras passagens trata da possibilidade da
resolutio spirituum e da resolutio animae
104
, mostrando ser isto impossível no
caso das almas espirituais.
A resolutio holológica, ou seja, a resolução do composto material em suas
partes aparece de modo inequívoco no comentário de Tomás às obras de
95
In Sent., II, d. 19, q. 1, a. 2, ad 2; d. 30, q. 2, a. 2, sc 1; III, d. 16, q. 1, a. 1, co.; d. 21, q. 1,
a. 2, ad. 5; d. 21, q. 2, a. 1, ad 1; STh I, q. 97, a. 4, co.; STh III, q. 53, a. 1, ad 1; QDV q. 5, a. 2,
co.; q. 25, a. 6, co.
96
QDP q. 5, a. 10, ad 7.
97
Comp. Theol, I, c. 186.
98
In De Caelo III, c. 10 e 11; SCG IV, c. 61.
99
In Sent., II, d. 6, q. 1, a. 3, ad 3; d. 14, q. 1, a. 5, ad 1; IV, d. 44, q. 2, a. 1, ag. 3; d. 48, q.
1, a. 4, ag. 3; STh I, q. 68, a. 2, co.
100
In IV Sent. d. 50, q. 2, a. 3, sc 1 et co.; Quod. VII, q. 5, a. 3, sc 2.
101
In Sent. II, d. 20, q. 1, a. 2, ad 4; STh I, q. 119, a. 2, co.; STh III, q. 32, a. 4, co.; q. 35, a.
3, ad 3; Quod. VI, q. 10; QDP q. 3, a. 9, ad 9.
102
STh II-II, q. 154, a. 5, co.
103
In De An. III, lc. 1, n. 20.
104
QDM a. 9, ad 6.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 44
Aristóteles, em especial à Política
105
, à Física
106
e à Metafísica. Dada a relevância
desta acepção, transcrevemos a seguir uma das passagens em que o Aquinate
concebe a resolução à semelhança de Calcídio, como a divisão do composto em
suas partes ou elementos, quando trata dos modos segundo os quais uma coisa se
diz proveniente de outra.
No terceiro modo, uma coisa é dita provir de outra como o simples provém do
composto de matéria e forma. Isso pertence ao processo de resolução; e é neste
sentido que a parte provém do todo, como um verso da Ilíada provém de todo o
tratado de Homero sobre Tróia; pois a Ilíada é dividida em versos como o todo é
dividido em partes. E, neste sentido, se diz que as pedras provêem da casa. A razão
para isto é que a forma é a finalidade e o termo do processo de geração; pois se diz
que aquilo que alcançou sua finalidade é perfeito e completo, como se explicou
mais acima. Assim, é evidente que o que é perfeito tem forma. Portanto, quando
um todo perfeito se resolve em suas partes, há movimento em certo sentido da
forma à matéria; e, de modo contrário, quando as partes são compostas, há
movimento da matéria na forma. Logo, a preposição de, que designa um começo,
aplica-se a ambos os processos: tanto ao processo de composição, porque significa
um princípio material, quanto ao processo de resolução, que significa um princípio
formal.
107
O contexto deixa claro que Tomás não está definindo todos os modos
possíveis de resolutio, mas pressupõe uma acepção de resolução como divisão do
composto material. A resolução de um todo em suas partes é exemplificada pela
divisão da Ilíada em seus versos e da casa nos elementos que a constituem. Se o
princípio da resolução holológica é o composto material, o seu termo nada mais é
105
“Quod sicut in aliis rebus ad cognitionem totius necesse est dividere compositum usque
ad incomposita, id est usque ad indivibilia quae sunt minime partes totius; puta ad cognoscendum
orationem, necesse est dividere usque ad litteras, et ad cognoscendum corpus naturale mixtum,
necesse est dividere usque ad elementa. (…) Ad cognitionem compositorum primo opus est via
resolutionis, ut scilicet dividamus compositum usque ad individua; postmodum vero necessaria est
via compostionis, ut ex principiis iam notis diiudicemus de rebus quae ex principiis causantur” (In
Pol, I, lc. 1).
106
“Continuum enim, cum sit quoddam totum, per partes suas definiri habet: partes autem
dupliciter comparantur ad totum, scilicet secundum compositionem, prout ex partibus totum
componitur; et secundum resolutionem, prout totum dividitur in partes. Haec igitur definitio
continui data est secundum viam resolutionis; quae autem ponitur in praedicamentis, secundum
viam compositionis.” (In Phys., III, lc. 1, n. 3)
107
"Tertio modo dicitur fieri ex aliquo, sicut simplex, ex composito ex materia et forma. Et
hoc est in via resolutionis, sicut dicimus quod partes fiunt ex toto, et versus ex Iliade, idest ex toto
tractatu Homeri de Troia; resolvitur enim Ilias in versus, sicut totum in partes. Et similiter dicitur
quod lapides fiunt ex domo. Ratio autem huius est, quia forma est finis in generatione. Perfectum
enim dicitur quod habet finem, ut supra habitum est. Unde patet, quod perfectum est quod habet
formam. Quando igitur ex toto perfecto fit resolutio partium, est motus quasi a forma ad materiam;
sicut e converso, quando partes componuntur, est motus a materia in formam. Et ideo haec
praepositio ex quae principium designat, utrobique competit: et in via compositionis, quia
determinat principium materiale; et in via resolutionis, quia significat principium formale." (In
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 45
do que os elementos ou as partes materiais do todo. Por isso, há movimento da
forma à matéria (a forma ad materiam) na resolução do todo em suas partes
quantitativas. Em sentido inverso ao da resolução holológica, a compositio das
partes materiais no todo implica em movimento da matéria à forma, pois esta tem
seu termo no princípio formal e seu ponto de partida nos princípios materiais.
A noção de resolução exposta nos comentários de Tomás a Aristóteles
resguarda plenamente o sentido de análise já proposto por Calcídio. É sob a
dependência da noção calcidiana de resolutio que devemos compreender as
demais passagens em que Tomás explicitamente reitera que o que permanece após
a resolução são os elementos, os componentes, o que é completamente simples, ou
simplesmente o princípio material
108
.
Nos casos mencionados até aqui, a resolutio designa um aspecto
fundamental da realidade corpórea, sujeita ao movimento. Não se trata, neste
contexto, da resolutio enquanto via do conhecimento humano, mas sim enquanto
propriedade de todo ente corpóreo sujeito ao devir, sujeito à divisão e à alteração.
Sem dúvida, a primeira acepção de resolutio na ordem do conhecimento humano é
aquela que diz respeito à solução dos corpos mistos em seus elementos, do todo
material em suas partes constituintes (resolução ou análise holológica). Ora, a
condição de possibilidade da resolutio corporalis é a intrínseca compositio da
realidade material. Se os corpos materiais não fossem compostos careceriam
daquele princípio potencial que explica a realidade do movimento e que torna
possível toda e qualquer resolutio corporis.
Embora Tomás de Aquino se utilize com freqüência dessa acepção de
resolutio, o mesmo não deixa de advertir àqueles que pretendem empregar a mera
análise holológica do todo material em suas partes integrantes ou a divisão do
corpo em seus elementos como via para o conhecimento dos princípios
metafísicos da realidade corpórea ou da natureza divina
109
. Se a resolutio
Met., V, lc. 21, n. 3); Cf. In Met. V, lc. 8, n. 17; VII, lc. 9, n. 20; XI, lc. 1, n. 27; In Sent. III, d. 21,
q. 1, a. 2, ad 4.
108
In Sent., I, d. 8, q. 5, a. 1, ag. 2; II, d. 12, q. 1, a. 1, ag. 3; II, d. 12, q. 1, a. 4, co.; SCG
III, c. 144; In De caelo et mundo, I, lc. 7; III, lc. 4, n. 6; lc. 8, n. 7; In Gen. et corr., I, lc. 8, n. 3; In
Physic., III, lc. 8, n. 8; In Met., VIII, lc. 4, n. 4 e 25; X, lc. 2, n. 6; XII, lc. 2, n. 15.
109
“Tertium quod eos in hunc errorem induxit, est divinae simplicitatis consideratio. Quia
enim Deus in fine simplicitatis est, aestimaverunt illud quod in ultimo resolutionis invenitur eorum
quae fiunt in nobis, deum esse, quasi simplicissimum: non enim est in infinitum procedere in
compositione eorum quae sunt in nobis. In hoc etiam eorum defecit ratio, dum non attenderunt id
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 46
holológica tiver seu termo último na parte ou elemento de mesma natureza
material que o todo, não conduzirá jamais à descoberta dos princípios ou causas
primeiríssimas do composto. O equívoco deste modo de proceder reside na não
advertência de qual é o elemento mais simples resultante da análise ou resolução
holológica.
A fim de evitarmos qualquer redução dos significados de resolutio ao de
dissolutio como separação física, é oportuno recordar que Tomás distingue três
modos de totalidade correspondentes aos três modos de divisão, a saber: 1) um
todo pode ser divisível em partes quantitativas (caso da divisão da linha ou de um
corpo); 2) um todo pode ser divisível em partes de razão ou de essência (caso do
definido, que se divide segundo as partes da definição, e do composto que se
resolve nos princípios materiais e formais); 3) um todo potencial pode ser dividido
em partes virtuais
110
.
O primeiro modo de totalidade não convém às formas senão de modo
acidental, naquelas em que a natureza é indiferente ao todo quantitativo e às suas
partes. É o caso da cor branca que, em razão de sua natureza, é sempre igual a si
mesma, quer esteja sobre a superfície, quer sobre uma de suas partes. O segundo
modo de totalidade, considerado segundo a razão e a essência (secundum
rationem et essentiam), convém à forma de modo próprio e por si (proprie et per
se convenit formis)
111
. Assim sendo, a resolução holológica do definido nas partes
da definição ou do composto em matéria e forma não pode ser equiparada à mera
resolução holológica do todo em suas partes integrantes ou quantitativas, que vai
da forma à matéria e não da matéria à forma.
quod in nobis simplicissimum invenitur, non tam rem completam, quam rei aliquid esse.” (SCG I,
c. 26).
110
“Et quod tota sit in qualibet parte eius, hinc considerari potest, quia, cum totum sit quod
dividitur in partes, secundum triplicem divisionem est triplex totalitas. Et enim quoddam totum
dividitur in partes quantitativas, sicut tota linea vel totum corpus. Est etiam quoddam totum quod
dividitur in partes rationis et essentiae; sicut definitum in partes definitionis, et compositum
resolvitur in materiam et formam. Tertium autem totum est potentiale, quod dividitur in partes
virtutis.” (STh I, q. 76, a. 8, co.)
111
“Primum autem totalitatis modus non convenit formis, nisi forte per accidens; et illis
solis formis, quae habent indifferentem habitudinem ad totum quantitativum et partes eius. (...) Sed
totalitas secunda, quae attenditur secundum rationis et essentiae perfectionem, proprie et per se
convenit formis.” (ibid.)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 47
As partes se comparam com o todo não só por resolução, mas também por
composição
112
. Daqui resulta que, para cada um dos tipos de resolução ou divisão
mencionados acima, corresponde um tipo de composição, a saber: 1) a
composição das partes quantitativas em um todo material; 2) a composição das
partes da definição no que é definido e de matéria e forma no composto; 3) a
composição das partes virtuais no todo potencial. Deste modo, torna-se patente
que a ordem da composição e a da resolução são contrárias e irredutíveis entre si,
pois o que é último em resolução é primeiro em composição
113
.
A relevância da distinção entre a resolução holológica do todo em partes de
razão e de essência e do todo em partes quantitativas faz-se presente no
comentário de Tomás à Metafísica de Aristóteles em que distingue a divisão
secundum rationem da divisão secundum naturam (III, lc. 3, n. 1) e a resolução
por divisão da quantidade da divisão por alteração (V, lc. 4, n. 6).
Na primeira passagem, ao investigar se os gêneros são os princípios e os
elementos das coisas uma vez que são aquilo em que por último se divide as
realidades singulares existentes, Tomás observa que há dúvida quanto a esta
questão uma vez que o elemento é aquilo a partir do qual (ex quo) se compõe a
coisa e é aquilo no qual (in quo) por último se divide. A fim de elucidar esta
dificuldade, Tomás observa que pode haver um duplo modo de composição e
divisão, a saber: 1) o primeiro modo que diz respeito à razão (secundum
rationem), em que as espécies são resolvidas nos gêneros e os gêneros são
divididos nas espécies; 2) o segundo modo de composição é relativo à natureza
(secundum naturam), como os corpos naturais são compostos por seus elementos
materiais (água, terra, ar e fogo) e neles são resolvidos
114
. Esse duplo modo de
112
"(...) partes autem dupliciter comparantur ad totum, scilicet secundum compositionem,
prout ex partibus totum componitur; et secundum resolutionem, prout totum dividitur in partes."
(In Phys. III, lc. 1, n. 3)
113
Sobre a ordem inversa da resolutio e da compositio, confira: In Sent., I, d. 8, q. 1, a. 3, sc
2; II, d. 22, q. 1, a. 1, ad 2; III, d. 2, q. 2, a. 3, ag. 1; IV, d. 17, q. 3, a. 3, ad 3; STh II-II, q. 34, a. 5,
co. ; II-II, q. 107, a. 2, co. ; De Virtutibus q. 4, a. 3, ad 11 ; In De caelo et mundo II, lc. 4, n. 4 ; In
Ethic., III, lc. 8 ; In Anal., I, lc. 2, n. 9 ; In Met., I, lc. 4, n. 6; V, lc. 4, n. 5; V, lc. 13, n. 17; V, lc.
15, n. 1; In De Causis, lc. 1.
114
“Invenimus autem duplicem modum compositionis et divisionis: unum scilicet
secundum rationem, prout species resolvuntur in genera. Et secundum hoc videntur genera esse
principia et elementa, ut Plato posuit. Alio modo secundum naturam sicut corpora naturalia
componuntur ex igne et aere et aqua et terra, et in haec resolvuntur. Et propter hoc naturales
posuerunt esse prima principia elementa.” (In Met., III, lc. 3, n. 1)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 48
resolução e composição são fundamentais para a distinção entre a resolutio e a
compositio na ordem da razão e na ordem da natureza.
Na segunda passagem, vale-se da distinção entre a divisão do composto em
suas partes quantitativas (toda parte da linha é linha) e a divisão do corpo misto
em suas partes mais simples, a qual supõe alteração do composto e não mera
divisão material, para esclarecer a natureza das partes ou dos elementos que
compõe a definição propriamente dita, sobre a qual nos deteremos a seguir
115
. Em
suma, há uma resolução do todo em suas partes integrantes que não é idêntica à
resolução do todo nas partes de razão e essência, assim como há uma divisão da
quantidade que não é idêntica à divisão por alteração do que é essencialmente
composto. Com isso, Tomás nos aponta um sentido diverso de resolutio que não
se limita à resolutio enquanto divisio corporis.
Não obstante os limites da resolutio corporalis como via de revelação dos
constituintes metafísicos do ente corpóreo, a mesma resguarda o sentido
primordial e comum da resolução enquanto transição para o princípio material,
essencialmente anterior ao composto. Na ordem da geração, a compositio dos
elementos ou das partes em um todo material é sempre anterior à resolutio
holológica deste mesmo todo.
Pelas razões expostas, a mais elementar experiência do movimento corpóreo
pode revelar que: 1) a ordem da composição é contrária à da resolução; 2) a
composição holológica dos corpos encontra seu terminus na forma, que é
princípio de perfeição e completude; 3) a resolução holológica dos corpos obtém
seu terminus na matéria, que é princípio potencial de limitação da forma.
115
“Secundum exemplum ponit in corporibus naturalibus, in quibus etiam quaedam
dicimus elementa quorumdam. Illa enim dicuntur corporum esse elementa, in quae ultimo
resolvuntur omnia corpora mixta: et per consequens ea sunt, ex quibus primo componuntur
huiusmodi corpora. Ipsa autem corpora, quae elementa dicuntur, non dividuntur in alia corpora
specie differentia, sed in partes consimiles, sicut quaelibet pars aquae est aqua. (...) Sciendum est,
quod cum in definitione elementi ponatur, quod non dividitur in diversa secundum speciem, non
est intelligendum de partibus in quas aliquid dividitur divisione quantitatis: sic enim lignum esset
elementum, quia quaelibet pars ligni est lignum: sed de divisione, quae fit secundum alterationem,
sicut corpora mixta resolvuntur in simplicia.” (In Met., V, lc. 4, n. 6).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 49
2.2
Resolutio, abstractio e separatio
Um dos sentidos mais relevantes para a compreensão da resolutio e da
compositio no processo de conhecimento humano, encontra-se na sua equação
com o tema das operações do intelecto. Esse tópico, em sede tomista, acompanha
a distinção aristotélica entre os atos de simples apreensão e os atos de composição
e divisão, pelos quais o intelecto, respectivamente, apreende a natureza ou
qüididade da coisa e formula juízos a respeito da mesma.
Trata-se de um uso particular do termo resolutio anterior à sua emergência
no âmbito dos raciocínios. Com efeito, Tomás associa a resolutio ao modo pelo
qual o intelecto distingue e apreende as formas ou espécies inteligíveis das coisas
materiais. Esse sentido já havia sido esboçado pelo contraste entre a resolutio
secundum naturam (divisão do todo em suas partes integrantes ou quantitativas) e
a resolutio secundum rationem et essentiam (divisão do todo da definição nos seus
elementos ou do composto em matéria e forma). A resolutio associada à
abstractio é evidentemente secundum rationem et essentiam. Compreender a
especificidade da resolutio associada às operações do intelecto, em particular à
abstractio e à separatio, é o nosso objetivo imediato.
Para tanto, recapitularemos as linhas gerais da teoria tomista da abstração e
da separação que tem sido objeto de constante debate entre os intérpretes de
Tomás de Aquino, desde a edição crítica de sua exposição sobre o De Trinitate de
Boécio, graças à qual se evidenciou o caráter distinto e distintivo da separatio em
relação à abstractio para a determinação do objeto próprio da metafísica
116
. Eis o
116
Dentre os primeiros artigos sobre a doutrina tomista da abstração e da separação,
encontram-se os artigos pioneiros de: GEIGER, L.-B. Abstraction et séparation d’après S.
Thomas: In De Trinitate, q. 5, a. 3. RSPT, 31, p. 3-40, 1947; ROBERT, J.-D. La métaphysique,
science distincte de toute autre discipline philosophique, selon s. Thomas d’Aquin. DTh, 50, p.
206-222, 1947. A estes seguiram os trabalhos de: LEROY, M.-V. Abstractio et separatio d’après
un texte controversé de s. Thomas. RTh, 48, p. 328-339, 1948 ; PHILIPPE, M.-D. Abstraction,
addition, separation dans la philosophie d’Aristote. RTh, 48, p. 461-479, 1948; LEROY, M.-V. Le
savoir spéculatif. RTh, 48, p. 236-327, 1948; LEROY, M-V. Abstractio et separatio d’après un
texte controversé de s. Thomas. RTh, 48, p. 328-339, 1948; KLUBERTANZ, G. P. St. Thomas and
the knowledge of the singular. NSch, 26, p. 135-166, 1952; TYRRELL, F. M. Concerning the
nature and function of the act of judgment. NSch, 26, p. 393-423, 1952; CONOLLY, F.G.
Abstraction and moderate realism. NSch, 27, p. 72-90, 1953; RIET, G. Van. La théorie thomiste de
l’abstraction. RTh, 53, p. 353-393, 1953; SIMMONS, E. D. In defense of total and formal
abstraction. NSch, 29, p. 427-440, 1955; RENARD, Henri. What is St. Thomas’ approach to
metaphysics. NSch, 30, p. 72-75, 1956; CUNNINGHAM, F. A. A Theory on abstraction in st.
Thomas. MSch, 35, p. 249-270, 1998; SCHMIDT, R. W. L’emploi de la séparation en
métaphysique. RPhL, 58, p. 373-393, 1960; FERRARI, Leo. “Abstractio Totius” and “Abstractio
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 50
texto que dá origem ao debate contemporâneo sobre a distinção entre abstractio e
separatio:
Encontra-se, portanto, uma tríplice distinção na operação do intelecto: uma, de
acordo com a operação do intelecto que compõe e divide, que é chamada
propriamente de separação, esta compete à ciência divina ou metafísica; outra, de
acordo com a operação pela qual são formadas as qüididades das coisas, que é a
abstração da forma da matéria sensível; esta compete à matemática; a terceira, de
acordo com esta mesma operação, [que é a abstração] do universal do particular;
esta compete à física e é comum a todas as ciências, porque em toda ciência deixa-
se de lado o que é acidental e toma-se o que é por si.
117
Estamos em presença de um texto decisivo para a compreensão da
especificidade da metafísica aos olhos do Doutor Angélico. Afinal, segundo o
próprio Tomás, ignorar a diferença da abstractio da matemática e da física em
relação à separatio da metafísica é cair no mesmo erro dos pitagóricos e dos
platônicos que sustentaram entidades matemáticas e universais separadas da
realidade sensível
118
. Como mostrou L.-B. Geiger (1947, p. 3-40), a distinção
entre a abstractio relativa às ciências em geral e a separatio da metafísica revela
toda a sua importância quando se constata, pelo estudo do autógrafo da expostio
ao De Trinitate de Boécio, que a mesma é uma conquista de um laborioso esforço
intelectual de precisão na distinção das ciências especulativas.
Totalis”. The Thomist, 24, p. 72-89, 1961; VICENTE, L. De modis abstractionis iuxta sanctum
Thomam. DTh, 66, p. 189-218, 1963; MURNION, W. E. St. Thomas Aquinas’ theory of the act of
understanding. The Thomist, 37, p. 88-118, 1973; WILHELMSEN, F. D. The concept of existence
and the structure of judgment: a thomistic paradox. The Thomist, 41, p. 317-349, 1977; WIPPEL,
J. Metaphysics and separatio according to Thomas Aquinas. The Review of Metaphysics, 31, p.
431-470, 1978; MORENO, A. The subject, abstraction and methodology of Aquinas’ metaphysics.
Angelicum, 61, p. 580-601, 1984; LAFLEUR, C. Abstraction, séparation et tripartition de la
philosophie théorétique. RTPM, 65, 2, 1998; ARIAS, J.M. Abstracción y ciencia en Santo Tomás
de Aquino (II). Ciencia Tomista, 125, p. 473-498, 1998; NASCIMENTO, Carlos A. Metafísica
negativa em Tomás de Aquino. (mimeo). São Paulo, 2001. Constatada a singularidade do
ensinamento de Tomás sobre a separatio, impressiona a sua ausência em certas exposições, tais
como: RAEYMAEKER, L. De. Filosofia del ser. Madrid: Ed. Gredos, p. 17-40, 1966; GARCÍA
LOPEZ, Jesús. La abstracción según Santo Tomás. AnFil, 8, 1975.
117
“Sic ergo in operatione intellectus triplex distinctio invenitur. Una secundum
operationem intellectus componentis et dividentis, quae separatio dicitur proprie; et haec competit
scientiae divinae sive metaphysicae. Alia secundum operationem, qua formantur quiditates rerum,
quae est abstractio formae a materia sensibili; et haec competit mathematicae. Tertia secundum
eandem operationem quae est abstractio universalis a particulari; et haec competit etiam physicae
et est communis omnibus scientiis, quia in scientia praetermittitur quod per accidens est et
accipitur quod per se est.” (In De Trin., q. 5, a. 3, co.).
118
“Et quia quidam non intellexerunt differentiam duarum ultimarum a prima, inciderunt in
errorem, ut ponerent mathematica et universalia a sensibilibus separata, ut Pythagorici et
Platonici.” (In De Trin., q. 5, a. 3, co.).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 51
A doutrina da abstractio e da separatio poderia ser resumida nos seguintes
termos. Para Tomás, o intelecto humano pode distinguir quer por uma primeira
operação, denominada de entendimento dos indivisíveis, dos incomplexos ou das
qüididades, quer ainda pela segunda operação, denominada de intelecto que
compõe e divide (componens et dividens). Enquanto a separatio é um ato da
segunda operação do intelecto, a abstractio é um ato da primeira operação do
intelecto. Enquanto a abstractio apreende o seu objeto pela distinção da forma da
matéria (abstractio formae) ou do universal do particular (abstractio totius), a
separatio apreende o seu objeto por um juízo negativo
119
. Não se encontra aqui
nenhuma referência aos já clássicos “três graus de abstração”. Ao contrário,
Tomás usa o termo “distinctio para englobar tanto a abstractio quanto a
separatio, que expressam distintamente a primeira e a segunda operação do
intelecto e não uma diversidade de graus de uma mesma operação do intelecto.
É essencial para os objetivos da presente investigação compreender quais
são as implicações da identificação da resolutio à abstractio e de que modo esta se
distingue da resolutio relativa à separatio. Como esta última diz respeito à
resolutio metafísica que consiste em um modo específico de raciocínio
(ratiocinatio), nos deteremos sobre o seu significado depois de considerarmos a
resolutio lógica. Por ora, consideraremos a natureza, a extensão e as implicações
da associação da resolutio à abstractio em Tomás
120
.
Uma das associações da resolução à abstração ocorre no contexto da Suma
Contra os Gentios, em que Tomás de Aquino nos explica a diferença do
conhecimento humano em relação ao conhecimento angélico a partir do contraste
entre a via de resolução e a via de composição.
As espécies inteligíveis das coisas chegam ao nosso entendimento de maneira
diversa da substância separada; porque chegam ao nosso entendimento por via de
resolução, quer dizer por meio da abstração das condições materiais e
individuantes. Daí que não podemos conhecer os indivíduos pelo entendimento.
Mas as espécies inteligíveis chegam ao intelecto da substância separada pela via da
119
Cf. SCHMIDT, R.W. op. cit., p. 376.
120
Sobre a natureza da resolutio enquanto abstractio, confira: RÉGIS, L-M. Analyse et
synthèse dans l’oeuvre de s. Thomas. Studia Mediaevalia, p. 317-320, 1948; DOLAN, S. E.
Resolution and compomsition in speculative and practical discourse. Laval, 6, p. 21-31, 1950;
RENARD, Henri. What is St. Thomas’ approach to metaphysics. NSch, 30, p. 72-75, 1956;
RODRIGUEZ ARIAS, J.M. Abstracción y ciencia en Santo Tomás de Aquino (II). Ciencia
Tomista, 125, p. 473-498, 1998.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 52
composição; pois tem ditas espécies por sua semelhança com a primeira espécie
inteligível do entendimento divino (...).
121
Neste trecho, Tomás opõe a via de resolução, própria do intelecto humano, à
via de composição, atribuída ao intelecto angélico. Em razão da sua posterioridade
em relação à realidade sensível, o intelecto humano se encontra em potência face
à determinação ou atualidade das coisas materiais. Mas, como toda coisa é
inteligível na medida em que está em ato, o intelecto humano só pode entender o
que está potencialmente presente na representação sensível por uma atividade que
torne em ato o inteligível, presente de modo potencial na representação sensível.
Assim sendo, o intelecto humano deve realizar uma atividade que lhe permita
atualizar em si mesmo aquilo que se encontra atualmente nas coisas materiais e
potencialmente na representação sensível das mesmas. Essa atividade é conhecida
como abstração.
O termo abstractio foi estabelecido por Boécio para traduzir a palavra grega
a*faivresi"
, que é utilizada por Aristóteles para se referir à via pela qual se
constitui a ciência matemática. O uso que o Estagirita faz desse termo é muito
mais restrito do que aquele que se encontra em seu equivalente latino
122
. De fato,
somente à ciência matemática é atribuída a via da abstração, como um aspecto
característico e distintivo desta em relação à física, que se serve da adição ou
composição (
provstesi"
), e à metafísica, que segue a via da separação
(
cwrivxein
). A abstração (
a*faivresi"
) é a via pela qual o matemático considera o
que não existe separadamente da matéria, nem segundo o ser, nem segundo a
noção já que a matemática abstrai da matéria sensível, mas não da matéria
inteligível ou comum.
A adição ou composição (
provstesi"
) é a via oposta à αφαιρεσις na medida
em que o físico, diversamente do matemático, considera a quantidade e as demais
realidades físicas como acrescidas à matéria sensível e ao seu movimento. Já o ato
121
“Species rerum sensibilium contrario ordine perveniunt ad intellectum nostrum et
intellectum substantiae separatae; ad intellectum enim nostrum perveniunt per viam resolutionis,
scilicet per abstractionem a conditionibus materialibus et individuantibus; unde per eas singularia a
nobis non possunt cognosci; ad intellectum autem substantiae separatae perveninunt species
intelligibiles quasi per viam compositionis (…).” (SCG II, c. 100). Cf. SCG III, c. 41; Comp.
Theol., I, c. 61-62.
122
Sobre os significados de abstração, separação e adição em Aristóteles, confira:
PHILIPPE, M.-D. Abstraction, addition, séparation dans la philosophie d’Aristote. RTh, 48, p.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 53
de separar (
cwrivxein
) é utilizado por Aristóteles para qualificar a operação do
intelecto (bem como o seu efeito) pelo qual se considera um aspecto de uma coisa
separadamente de outros ou também para qualificar a divisão ou separação
intelectual de uma coisa a partir de outra, a fim de negar qualquer união ou
implicação entre ambas. Para Aristóteles, portanto, o objeto da metafísica é
diverso da matemática porque aquele é separado (
cwrivstav
) da matéria e do
movimento não só segundo a noção, mas também segundo o ser, enquanto o
objeto da matemática é somente abstraído, ou seja, considerado à parte do
movimento, mas não é absolutamente separado (
mh cwrivstav
) da matéria
123
.
Coube a Boécio estender o significado aristotélico de abstractio a ponto de
englobar em um único termo aquelas operações do intelecto que Aristóteles
subdividiu em separação e abstração, as quais servem de base para a divisão
aristotélica das ciências teóricas e especulativas. Esse alargamento é suposto por
Tomás de Aquino que, por vezes, abarca com o termo abstractio tanto a abstração
propriamente matemática de Aristóteles quanto a abstração do todo universal em
relação ao particular. Neste sentido, abstractio é simplesmente sinônimo de
distinctio, termo mais universal utilizado por Tomás para se referir tanto à
abstração propriamente dita (da primeira operação do intelecto) quanto à
separação (da segundo operação do intelecto)
124
.
Assim sendo, Tomás de Aquino não abandona a distinção entre a abstração
propriamente dita (a da primeira operação do intelecto, ou simples apreensão) e a
separação (a abstração em sentido mais geral, específica da segunda operação do
intelecto, ou seja, do intelecto que compõe e divide), que define o sujeito da
metafísica. Compreender o modo particular com que Tomás concebe as relações
entre a resolutio-abstractio e a resolutio-separatio é imprescindível para a
compreensão da especificidade da resolutio metafísica.
No texto citado da Suma Contra os Gentios (II, c. 100), Tomás caracteriza o
esforço do intelecto em alcançar as espécies inteligíveis como uma operação pela
via de resolução (per viam resolutionis), que nada mais é senão a própria operação
461-479, 1948; PASCUAL, R. La división de las ciencias en Aristóteles. Alpha Omega, III, n. 1, p.
41-59, 2000.
123
Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. VI, 1, 1025b 1-1026a 32; XI, 7; De Anima, I, 1, 403a
27-403b 19.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 54
do intelecto agente pela qual abstrai a espécie inteligível ou forma das condições
materiais e individuantes encontradas nos entes sensíveis (per abstractionem a
conditionibus materialibus et individuantibus). Essa resolução é aquela que
permite ao intelecto passar da consideração do mais material ao mais formal e
comum. Isso ocorre na simples apreensão quando há abstração do universal do
particular (abstractio universalius) ou do todo da parte (abstractio totius).
Para elucidar a natureza resolutiva da abstração, devemos considerar
basicamente dois textos em que Tomás explicita sua teoria da abstração, a saber: o
da Suma Teológica (I, q. 85, a. 1, co.) e o da exposição sobre o De Trinitate de
Boécio (q. 5, a. 3). No primeiro, Tomás abrange no conceito de abstractio tanto a
primeira quanto a segunda operação do intelecto (ou seja, tanto a simples
apreensão quanto o juízo). No segundo, distingue a abstractio da primeira
operação do intelecto (simples apreensão) da separatio da segunda operação do
intelecto (composição e divisão). Após a análise desses textos, será possível
esclarecer em que medida há uma via resolutiva nas operações do intelecto
humano e porque, na Suma Contra os Gentios (II, c. 100), a via de resolução
pressuposta por Tomás é a via de abstração (característica das ciências em geral) e
não a de separação (propriamente metafísica).
Na Suma Teológica, Tomás explica a razão de ser da natureza abstrativa do
conhecimento humano a partir de quatro premissas fundamentais, a saber: 1) a
distinção aristotélica entre as duas operações do intelecto, uma pela qual apreende
os indivisíveis, outra pela qual compõe e divide
125
; 2) a proporcionalidade entre o
objeto cognoscível e a potência cognoscitiva; 3) o princípio segundo o qual tudo o
que é inteligível é em ato; 4) o princípio da verdade como conformidade do
intelecto com a coisa
126
.
124
Cf. NASCIMENTO, C. A.. Introdução à leitura do Comentário de Tomás de Aquino ao
Tratado da Trindade de Boécio. In: AQUINO, Tomás. Comentário ao Tratado da Trindade de
Boécio: questões 5 e 6. São Paulo: UNESP, p. 36-37, 1988. Cf. GEIGER. op. cit., p. 8-10.
125
Como observa Nascimento (1998, p. 29, n. 33), juízo não é sinônimo de segunda
operação, nem vice-versa. Se é verdade que, segundo Tomás, pela segunda operação se expressa
um juízo, não é menos verdade que há composição e divisão sem emissão de um juízo (caso da
dúvida), assim como há juízo sem composição e divisão (caso em que Tomás usa o termo
iudicium para se referir ao conhecimento sensível). Assim sendo, não se deve identificar
simpliciter as operações do intelecto com a distinção entre apreensão e juízo.
126
O princípio da verdade e da inteligibilidade como decorrente do ato estão implícitos na
formulação da resposta de Tos à questão proposta na Suma Teológica (q. 85, a. 1), mas são
claramente explicitados em seu Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio (q. 5, a. 3). Sobre o
princípio de verdade em Tomás, confira: QDV q. 1, a. 3; STh I, q. 16, a. 2; In Pery., lc. 3, n. 4.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 55
De posse dessas premissas com valor de princípio, Tomás deduz que o
objeto proporcionado à potência sensitiva é a forma (ato) enquanto existe em uma
matéria (potência), que é princípio de individuação, enquanto o objeto da potência
intelectiva é a forma (ato) separada da matéria (potência). Mas, como o intelecto
humano é forma do corpo, é sua propriedade conhecer a forma que existe
individualizada na matéria, mas não de modo individualizado tal como existe em
tal matéria. Em razão da matéria e da potencialidade inerente às coisas sensíveis,
os atos constitutivos da coisa e a inteligibilidade que deles decorrem não são
conhecidos diretamente pelo intelecto. A operação pela qual o intelecto conhece
os atos constitutivos da coisa, em especial, a forma sem as condições materiais e
individuantes é justamente a abstração
127
.
É imprescindível, neste momento, distinguir entre a noção de “objeto” e de
“coisa”. Com efeito, por “objeto”, Tomás não entende a coisa mesma “extra
animam”, mas sim a coisa enquanto é alcançada pelo ato de conhecimento: é a
espécie ou forma inteligível que se dá ao sujeito cognoscente
128
. Enquanto objeto,
existe na potência da faculdade cognoscitiva e é determinado pela natureza desta
mesma faculdade. Quando Tomás sustenta que as ciências especulativas se
distinguem pelos seus “objetos”, deve-se compreender que a divisão das ciências
não se baseia imediata e diretamente na separação real entre as coisas, mas sim na
diferença dos objetos formalmente constituídos pela consideração do intelecto, ou
seja, pelos modos de distinção (distinctio).
Não obstante, o fundamento último, porém, mediato desta divisão é a
própria estrutura ontológica da realidade. Para Tomás, a forma possuída no
127
“(…) obiectum cognoscibile proportionatur virtuti cognoscitivae. Est autem triplex
gradus cognoscitivae virtutis. Quaedam enim cognoscitva virtus est actus organi corporalis, scilicet
sensus. Et ideo obiectum cuiuslibet sensitivae potentiae est forma prout in materia corporali existit.
Et quia huiusmodi materia est individuationis principium, ideo omni potentia sensitivae partis est
cognoscitiva particularium tantum. Quaedam autem virtus cognoscitiva est quae neque coporali
materiae coniuncta, sicut intellectus angelicus. (...) Intellectus autem humanus medio modo se
habet : non enim est actus alicuius organi, sed tamen est quaedam virtus animae, quae est forma
corporis (...). Et ideo proprium eius est cognoscere formam in materia quidem corporali
individualiter existentem, non tamen prout est in tali materia. Cognoscere vero id quod est in
materia individuali, non prout est in tali materia, est abstrahere formam a materia individuali,
quam repraesentant phantasmata. Et ideo necesse est dicere quod intellectus noster intelligit
materialia abstrahentdo a phantasmatibus.” (STh I, q. 85, a. 1, co.)
128
"Ad tertium dicendum quod ipsum intelligere non specificatur per id quod in alio
intelligitur, sed per principale intellectum, in quo alia intelliguntur. Intantum enim ipsum
intelligere specificatur per obiectum suum, inquantum forma intelligibilis est principium
intellectualis operationis, nam omnis operatio specificatur per formam quae est principium
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 56
conhecimento abstrativo (denominada de “objeto”, “espécie ou forma inteligível”)
é a forma da coisa (res). Há, portanto, uma intrínseca relação, ao modo de uma
união intencional, entre o objeto inteligível (obiectum) e a coisa (res). Esse
vínculo intencional é o que justifica a distinção entre o fundamento “subjetivo”
(cujo princípio é a formalidade do objeto dado à potência cognoscitiva) e o
fundamento “objetivo” (cujo princípio é a própria realidade das coisas) da
distinção entre as ciências especulativas. Afinal, “quando se distinguem as
ciências, na medida em que são certos hábitos, é preciso que sejam distinguidas de
acordo com seus objetos, isto é, de acordo com as coisas de que tratam as
ciências”
129
.
No âmbito da resposta à primeira objeção (STh I, q. 85, a. 1, ad 1), Tomás
precisa o que entende por “abstrair” através da distinção de dois modos de
abstração, relativos às operações do intelecto. O primeiro diz respeito à abstração
por divisão (per modum divisionis) em um juízo (que é uma propriedade da
segunda operação do intelecto), pelo qual conhecemos que uma coisa não está em
outra, ou que está separada dela. Este sentido é equivalente ao de separatio,
proposto por Tomás em seu comentário ao De Trinitate de Boécio, pois diz
respeito ao âmbito da segunda operação do intelecto. O segundo diz respeito à
abstração considerada simples e absolutamente, através da qual conhecemos um
objeto sem considerar absolutamente nada de um outro. Trata-se de uma
propriedade da primeira operação do intelecto ou simples apreensão
130
.
A simples apreensão é aquele ato pelo qual nosso intelecto capta um objeto
(uma essência ou forma), nada considerando em relação a outro. A partir da
simples apreensão, o intelecto atualiza ou “forma” uma representação intelectual
simples da qüididade
131
da coisa apreendida a partir das representações
imaginárias. A expressão verbal dessa primeira operação é sempre incomplexa ou
indivisível e o que se conhece deste modo chama-se noção ou conceito
operationis, sicut calefactio per calorem. Unde per illam formam intelligibilem specificatur
intellectualis operatio, quae facit intellectum in actu." (STh I, q. 14, a. 5, ad 3).
129
“Cum autem distinguuntur scientiae ut sunt habitus quidam, oportet quod penes obiecta
distinguantur, id est penes res, de quibus sunt scientiae” (In De Trin., q. 5, a. 1, ad 1).
130
"Ad primum ergo dicendum quod abstrahere contingit dupliciter. Uno modo, per modum
compositionis et divisionis ; sicut cum intelligimus aliquid non esse in alio, vel esse separatum ab
eo. Alio modo, per modum simplicis et absolutae considerationis ; sicut cum intelligimus unum,
nihil considerando de alio" (STh I, q. 85, a. 1, ad 1).
131
O termo “qüididade“ expressa justamente a essência ou forma da coisa tal como existe
na potência do intelecto ao modo de uma espécie inteligível, ou seja, como um objeto intencional.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 57
(conceptus), em razão da concepção intelectual (conceptio). Por seu turno, a
segunda operação do intelecto é o ato pelo qual o intelecto une por composição ou
separa por divisão (componit et dividit) os conceitos. Daqui pode resultar o ato do
juízo (iudicium) pelo qual o intelecto forma ou atualiza uma representação
intelectual, de natureza evidentemente composta ou complexa, do afirmado ou do
negado.
A simples apreensão é uma operação do intelecto realmente distinta de sua
segunda operação. Entretanto, ambas as operações complementam-se mutuamente
já que a primeira operação se ordena à segunda, pois nesta última o conhecimento
chega à sua perfeição, e a segunda deve ser resolvida na primeira como a seu
princípio
132
. Por outro lado, a dualidade de operações expressa a limitação do
entendimento humano, já que a simples apreensão fornece a “matéria” (os
conceitos) do juízo, mas é insuficiente para conhecer a verdade formalmente
considerada. Essa só pode ser alcançada mediante o juízo
133
.
O exemplo que ilustra o modo de abstrair relativo à simples apreensão é a
consideração da cor e de suas propriedades separadamente do fruto colorido
(abstração da forma acidental das condições materiais e individuantes), bem como
a consideração do que pertence à razão da espécie de uma coisa material qualquer
(uma pedra, um homem, um cavalo), que podem ser considerados sem os
princípios individuais e individuantes. Com efeito, proceder deste modo é abstrair
a forma inteligível das representações imaginárias
134
.
132
“Dicendum quod in qualibet cognitione duo est considerare, scilicet principium et
terminum. Principium quidem ad apprehensionem pertinet, terminus autem ad iudicium ; ibi enim
cognitio perficitur” (In De Trin., q. 6, a. 2) ; “(…) operatio intellectus componentis et dividentis
resolvitur ad operationem eius qua respicit aliquod incomplexum: quia quod quid est, est
principium demonstrandi an est simpliciter, et quia est (...)" (In Sent. III, d. 24, q. 1, a. 1, ad 2);
“Cum ergo omnis cognitio intellectus nostri a sensu oriatur, non potest esse judicium rectum nisi
reducatur ad sensum." (In IV Sent., d. 9, q. 1, qc. 1, a. 4, co.).
133
“Et similiter intellectus humanus non statim in prima apprehensione capit perfectam rei
cognitionem; sed primo apprehendit aliquid de ipsa, puta quidditatem ipsius rei, quae est primum
et proprium obiectum intellectus; et deinde intelligit proprietates et accidentia et habitudines
circumstances rei essentiam. Et secundum hoc, necesse habet unum apprehensum alii componere
et dividere ; et ex una compositione vel divisione ad aliam procedere, quod est ratiocinari." (STh I,
q. 85, a. 5).
134
"Si vero consideremus colorem et proprietates eius, nihil considerantes de pomo
colorato ; vel quod sic intelligimus, etiam voce exprimamus ; (...). Pomum enim non est de ratione
coloris; ido nihil prohibet colorem intelligit, nihil intelligendo de pomo. Similiter dico quod ea
quae pertinent ad rationem speciei cuiuslibet rei materialis, puta lapidis aut hominis aut equi,
possunt considerari sine principiis individualibus, quae non sunt de ratione speciei. Et hoc est
abstrahere universale a particulari, vel speciem intelligibilem a phantasmatibus, considerare
scilicet naturam speciei absque consideratione individualum principiorum, quae per phantasmata
reparesentantur" (ibid.).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 58
Em seguida, Tomás considera a relação entre a dupla operação do intelecto
e o princípio da verdade. Ora, se nos é possível separar a cor do fruto colorido,
sem incorrer em falsidade
135
, pela simples apreensão da forma da cor
separadamente do fruto no qual inere e no qual está individuada, não nos é
possível julgar sem erro que a cor não se encontra no fruto colorido. Nesse caso, a
falsidade do juízo negativo que separa a cor do corpo colorido exemplifica o
primeiro modo de abstração relativo à operação pela qual o intelecto é capaz de
dividir ou compor as coisas conhecidas por simples apreensão.
Do exposto acerca da Suma Teológica (I, q. 85, a. 1) é patente que, segundo
Tomás de Aquino, tanto a intelecção por simples apreensão quanto a intelecção
por divisão são atos denominados em sentido lato de abstractio, como equivalente
de distinctio. A intelecção do objeto na simples apreensão denomina-se abstração
em sentido próprio e restrito uma vez que, por ela, o que é realmente composto é
apreendido em absoluto sem a consideração daquilo com o qual entra em
composição (compositio). Por sua vez, a intelecção de algo por divisão na segunda
operação do intelecto é decorrente de uma abstração em sentido lato, graças à qual
se considera algo como separado de outro realmente (in re). Essa abstração é
expressa propriamente pela separação dos conceitos em um juízo negativo.
Já em seu comentário ao De Trinitate de Boécio (p. 3, q. 5, a. 3), Tomás de
Aquino desenvolve a teoria da abstração de modo mais detalhado e preciso a
partir dos mesmos princípios que posteriormente serão retomados na Suma
Teológica (I, q. 85, a. 1, co.), a saber: a distinção da dupla operação do intelecto, a
relação entre inteligibilidade e ato, e o princípio da verdade como a conformidade
do intelecto com a coisa
136
. Em primeiro lugar, estabelece uma precisão
significativa quanto ao objeto da dupla operação do intelecto ao identificar a
primeira operação (inteligência dos indivisíveis) com a apreensão da “própria
natureza da coisa” (ipsam naturam rei) e a segunda operação (inteligência que
compõe e divide) com a cognição do “próprio ser da coisa” (ipsum esse rei)
137
.
135
Para Tomás, na simples apreensão conhecemos a coisa sem possibilidade de erro, exceto
per accidens (In De An., III, lc. 11, n. 763; STh I, q. 86, a. 6; QDV q. 1, a. 9).
136
Para uma apresentação e análise mais aprofundada do artigo terceiro da questão quinta
do comentário de Tomás ao De Trinitate de Boécio, confira: RAMOS, Jorge M. M. da Cunha.
Abstração e separação em S. Tomás de Aquino. Excerpta e Dissertationes in Philosophia.
Pamplona, vol.X, 2000.
137
“Prima quidem operatio respicit ipsam naturam rei, secundum quam res intellecta
aliquem gradum in entibus obtinet, sive sit res completa, ut totum aliquod, sive res incompleta, ut
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 59
Em seguida, estrutura a sua teoria da abstração a partir de duas distinções
fundamentais. A primeira consiste na distinção entre abstractio e separatio,
enquanto a segunda diz respeito à distinção entre a abstractio formae e a
abstractio totius ou universalius
138
.
O princípio de verdade implica que não existe falsidade na operação do
intelecto pela qual abstrai algo que, de acordo com a coisa, não é separado. Aliás,
não há o menor sentido em se falar da abstração senão do que está realmente
unido, do que é verdadeiramente composto na realidade. De fato, é possível
abstrair sem erro o que não está separado na própria coisa porque a primeira
operação do intelecto é a apreensão de algo sem a intelecção de outro, ou seja,
sem a composição e a divisão que estão implicadas na afirmação e na negação.
Entretanto, de acordo com a segunda operação, se o intelecto abstrai ou distingue
aquilo que, de acordo com a coisa, não é separado, então o mesmo incide em erro.
Afinal, o intelecto, pela segunda operação, não pode verdadeiramente distinguir
senão aquilo que é verdadeiramente separável in re, uma vez que a distinção,
neste caso, implica que o predicado existe ou possa existir separadamente de um
dado sujeito
139
.
pars vel accidens. Secunda vero operatio respicit ipsum esse rei, quod quidem resultat ex
congregatione principiorum rei in compositis vel ipsam simplicem naturam rei concomitatur, ut in
substantiis simplicibus.” (In De Trin., p. III, q. 5, a. 3, co.). Certos filósofos neo-tomistas, como É.
Gilson (1983; 2000), M.-D. Roland-Gosselin, J. Maritain (1996) e P.Hoenen (1953, cap. II),
baseando-se na distinção entre a apreensão da natureza ou essência e a apreensão do ser da coisa,
sustentaram que compete somente ao juízo a apreensão do esse e não à simples apreensão, que
considera a natura rei. Entretanto, o esse rei do qual fala Tomás aqui não é de modo direto,
imediato e exclusivo o actus essendi ou esse ut actus, mas o esse in actu. Como explica Fabro
(1960b), trata-se do esse da “síntese” que corresponde à afirmação ou negação de qualquer coisa.
Portanto, da distinção entre as duas operações do intelecto não emerge ainda e por si mesma a
distinção entre esse et essentia. Em suma, o esse como ato de ser (actus essendi) não se alcança
direta e imediatamente num juízo existencial, mas sim mediante uma “reflexão metafísica
intensiva”, na expressão de Fabro. Essa “reflexão metafísica intensiva”, em nossa opinião, é
justamente o procedimento denominado por Tomás de resolutivo secundum rationem.
138
As expressões “abstractio formae”, “abstractio totius” e “abstractio universalis” não se
identificam com a abstração formal e a abstração total do cardeal Caietano. Certos tomistas, ao
contrário, procuram identificar a compreensão tomista da abstração à de Caietano, como é o caso
de G. Van Riet (1953), Jesús García López (1975) e J.M.R. Arías (1998; 2002). Dentre os que
negam tal identidade, destacam-se: F. A. Cunningham (1958), E.D. Simmons (1955) e Leo Ferrari
(1961).
139
“Et quia veritas intellectus est ex hoc quod conformatur rei, patet quod secundum hanc
secundam operationem intellectus non potest vere abstrahere quod secundum rem coniunctum est,
quia in abstrahendo significaretur esse separatio secundum ipsum esse rei, sicut si abstraho
hominem ab albedine dicendo: homo non est albus, significo esse separationem in re. Unde si
secundum rem homo et albedo non sint separata, erit intellectus falsus. Hac ergo operatione
intellectus vere abstrahere non potest nisi ea quae sunt secundum rem separata, ut cum dicitur:
homo non est asinus. Sed secundum primam operationem potest abstrahere ea quae secundum rem
separata non sunt, non tamen omnia, sed aliqua.” (In De Trin., q. 5, a. 3, co.)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 60
Tomás explora mais detalhadamente as condições em que é legítima a
abstração pela primeira operação do intelecto, sem que o mesmo equivoque-se
quanto à verdade de sua operação. Para tanto, parte do princípio aristotélico
segundo o qual toda coisa é inteligível na medida em que está em ato. O princípio
do conhecimento das coisas fundamenta-se, em última instância, nos atos da
própria coisa. Com efeito, o ato é aquilo pelo qual a coisa obtém a sua
inteligibilidade (suam rationem sortiter). Ora, uma vez que o conhecimento é a
união intelectual entre o ato do cognoscente e o ato do cognoscido, de tal modo
que o intelecto em ato é o objeto concebido em ato, se segue que a ratio
140
dada
ao intelecto é a inteligibilidade do objeto.
Mas, uma coisa pode estar em ato por ser ela própria um ato (como as
substâncias simples), ou ter um ato (como as substâncias compostas de matéria e
forma, que são concebidas mediante as suas formas), ou ainda por ser em relação
ao ato de outro (como ocorre com a matéria-prima que é concebida pela forma)
141
. Daqui resulta que quando a própria natureza da coisa e daquilo pelo qual é
concebida (ratio) comporta uma ordem ou dependência em relação ao ato de
outra, então é impossível entende-la sem a outra da qual depende
142
. Neste caso, a
ordem ou dependência é posta na definição da natureza concebida (ponitur in eius
definitione). Se, porém, uma coisa não depende do ato de outra quanto ao ser
(secundum esse), então uma pode ser concebida sem a outra. Por isso, Tomás
pode dizer que aquele que abstrai “não considera a coisa diferentemente de como
é”, pois só separa o que não depende do ato de outra quanto ao ser
143
.
Tomás pondera que a dependência de uma coisa em relação ao ato de outra
coisa ocorre de três modos. Há impossibilidade da intelecção de uma coisa sem a
outra: 1) pela união da parte para com o todo (o pé não pode ser concebido sem a
intelecção do animal); 2) pela relação de união existente entre a forma e a matéria
140
Sobre os significados do termo ratio em Tomás de Aquino, confira: A. Hayen (1954, p.
177-181).
141
"Cum enim unaquaeque res sit intelligibilis, secundum quod est in actu, ut dicitur in IX
metaphysicae, oportet quod ipsa natura sive quiditas rei intelligatur: vel secundum quod est actus
quidam, sicut accidit de ipsis formis et substantiis simplicibus, vel secundum id quod est actus
eius, sicut substantiae compositae per suas formas, vel secundum id quod est ei loco actus, sicut
materia prima per habitudinem ad formam et vacuum per privationem locati. Et hoc est illud, ex
quo unaquaeque natura suam rationem sortitur." (ibid.)
142
“Quando hoc per quod constituitur natura, et hoc per quod natura intelligitur habet
ordinem et dependentiam ad aliquid aliud, tunc constat quod natura illa sine alio intelligi non
potest" (ibid.)
143
“(...) abstrahens non considerat rem aliter quam sit” (In De Trin., q. 5, a. 3, ad 1).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 61
ou o acidente e o sujeito (o arrebitado não pode ser concebido sem a sua relação
ao nariz); 3) pela relação de união existente entre coisas separadas (o pai não pode
ser concebido sem a intelecção do filho)
144
.
Contudo, é possível a intelecção de uma coisa sem a outra quer quando as
coisas são separadas entre si (o ser humano e a pedra), quer quando não são (a
letra e a sílaba, o animal e o pé, a brancura e o ser humano). Mais uma vez, a
possibilidade de tal intelecção se dá tanto naquelas coisas em que há união da
parte e do todo, quanto naquelas em que há união da forma com a matéria. Com
efeito, em relação à união da parte e do todo, por exemplo, a letra pode ser
concebida sem a intelecção da sílaba, mas não o inverso; o animal sem a
intelecção do pé, mas não o inverso. Por seu turno, a brancura pode ser concebida
sem o ente humano, e vice-versa, em se tratando de um caso de união da forma
com a matéria ou do acidente com o sujeito
145
.
Uma vez que não pode haver abstração senão daquelas coisas que estão
unidas na realidade, então haverá tantas abstrações quantos são os modos de união
realmente existentes entre as coisas e na coisa. Ora, Tomás reconhece dois modos
de união possíveis na realidade, a saber: 1) a que corresponde à união da forma e
da matéria ou do acidente e do sujeito; 2) a que corresponde à união do todo e da
parte. Em relação ao primeiro modo de união, qualifica como abstração da forma
da matéria (abstractio formae), ou do acidente do sujeito. Em relação ao segundo
modo de união, denomina de abstração do universal do particular (abstractio
universalis a particulari), ou do todo das partes (abstractio totius a partibus )
146
.
144
" Quando ergo secundum hoc, per quod constituitur ratio naturae et per quod ipsa natura
intelligitur, natura ipsa habet ordinem et dependentiam ad aliquid aliud, tunc constat quod natura
illa sine illo alio intelligi non potest, sive sint coniuncta coniunctione illa, qua pars coniungitur toti,
sicut pes non potest intelligi sine intellectu animalis, quia illud, a quo pes habet rationem pedis,
dependet ab eo, a quo animal est animal, sive sint coniuncta per modum quo forma coniungitur
materiae, vel ut pars comparti vel accidens subiecto, sicut simum non potest intelligi sine naso,
sive etiam sint secundum rem separata, sicut pater non potest intelligi sine intellectu filii, quamvis
istae relationes inveniantur in diversis rebus." (ibid.)
145
"Si vero unum ab altero non dependeat secundum id quod constituit rationem naturae,
tunc unum potest ab altero abstrahi per intellectum ut sine eo intelligatur, non solum si sint
separata secundum rem, sicut homo et lapis, sed etiam si secundum rem coniuncta sint, sive ea
coniunctione, qua pars et totum coniunguntur, sicut littera potest intelligi sine syllaba, sed non e
converso, et animal sine pede, sed non e converso, sive etiam sint coniuncta per modum quo forma
coniungitur materiae et accidens subiecto, sicut albedo potest intelligi sine homine, et e converso."
(ibid.)
146
"Et ita sunt duae abstractiones intellectus. Una quae respondet unioni formae et materiae
vel accidentis et subiecti, et haec est abstractio formae a materia sensibili. Alia quae respondet
unioni totius et partis, et huic respondet abstractio universalis a particulari, quae est abstractio
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 62
As coisas tornam-se inteligíveis ao intelecto humano na medida em que este
pela simples apreensão abstrai o ato da potência que lhe acompanha, mas não
abstrai a potência do ato que a determina e lhe dá o ser. Por essa razão, pela
primeira operação do intelecto, abstraímos a forma da matéria (abstractio formae)
e o todo das partes (abstractio totius) ou o universal do particular ou singular
(universalis a particulari sive singulari). Abstrair o universal do particular é
“afastar” o que é individual e acidental para se deter no que é essencial e comum.
Abstrair a forma acidental da matéria sensível é não considerar o sujeito de
inerência da forma acidental (pois o sujeito está em potência em relação ao ato da
forma acidental), para se ater às suas notas essenciais. Assim sendo, cada ciência
particular caracteriza-se por uma das mencionadas abstrações, ou seja, por uma
distinção nocional (ratio) que permite “isolar” um aspecto formal dos entes
corpóreos sobre os quais versam seu conhecimento
147
.
Deve-se notar que o “todo” que é abstraído na abstractio totius não provém
de partes subjetivas, mas de partes da matéria (partes materiae). Com efeito, a
natureza “homem” é abstraída “deste homem”, com estas ou aquelas
características específicas que pertencem ao indivíduo, mas não ao homem
enquanto tal. Pela abstractio totius, que também é uma abstractio universalis a
particulari, a forma abstraída é conhecida separadamente das partes acidentais.
Deste modo, a natureza “homem” é conhecida no intelecto como um “todo”, cujas
partes (a alma racional e o corpo humano) são partes essenciais do entendimento
da definição de “homem”, pois, assim como “este homem” não pode ser sem estas
partes, assim também “homem” não pode ser concebido sem as mesmas. Não há,
portanto, abstração das partes essenciais na intelecção e na definição do que é o
homem. Por isso, não devemos confundir as partes da matéria (partes materiae),
das quais se pode abstrair, com as partes da espécie (partes speciei), das quais não
se pode abstrair na definição de “homem”
148
.
totius, in quo consideratur absolute natura aliqua secundum suam rationem essentialem, ab
omnibus partibus, quae non sunt partes speciei, sed sunt partes accidentales.” (ibid.)
147
Uma questão poderia surgir aqui em relação ao conhecimento do indivíduo enquanto
indivíduo e dos singulares enquanto múltiplos. Para Tomás, este conhecimento é um atributo da
vis cogitativa, também denominada de ratio particularis (In De Anima, II, lc. 13, n. 396-398), que
é capaz de apreender a multiplicidade dos indíviduos por meio de espécies intencionais singulares.
148
“By strong contrast, the totum of Saint Thomas’ abstractio totius does existe essentially
in reality, for this is the totum of which the parts are rational soul and human body. Every existing
man has a rational soul and human body, for just as man cannot be understood without the
understanding of these, neither can he exist in reality without them. The parts from which there is
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 63
Esta mesma linha de raciocínio se encontra na Suma Teológica (I, q. 40, a.
3), embora de modo mais breve. A abstração por simples apreensão é aqui
igualmente subdividida por Tomás em dois modos, a saber: 1) o modo pelo qual
se abstrai o universal do particular (secundum abstractionem universalis a
particulari), como o animal é abstraído de homem; 2) o modo pelo qual se abstrai
a forma da matéria (secundum abstractionem formae a materia), como a forma do
círculo é abstraída pelo intelecto de toda matéria sensível
149
. Esses dois modos de
abstração, relativos à simples apreensão, representam as vias pelas quais o
intelecto opera face à composição encontrada nas coisas sensíveis, pois, como já
dissemos, seria impossível falar de abstração pelo intelecto (secundum
intellectum) se o que é abstraído não fosse encontrado de modo composto na
própria coisa (secundum rem).
Para o Aquinate, não existem abstrações diversas e contrárias a estas, pelas
quais, por hipótese, se abstrairiam as partes do todo ou a matéria da forma. A fim
de distinguir o todo essencial da parte acidental ou a forma quantitativa ou
qualitativa da matéria sensível, o intelecto procede por abstração no ato de simples
apreensão. Entretanto, não pode pela simples apreensão abstrair em sentido
contrário. Quando a parte integrante pode existir sem o todo, como no caso de
uma parte da espécie (a linha em relação ao triângulo, a letra em relação à sílaba,
o elemento em relação ao composto), dá-se lugar a uma separação, e não a uma
abstração em sentido próprio e estrito
150
.
Deve-se, além disso, evitar a identificação da abstração da forma acidental a
partir da matéria sensível com a separação da forma substancial da matéria. A
forma substancial e a matéria não podem ser abstraídas na simples apreensão,
abstraction are not parts of this whole, but partes materiae – parts, not of man as man, but of man
the individual. In abstracting from man the individual, what pertains to him as an individual is left
aside, and what is considered is that which pertains to him as man. This is to abstract the universal
from particular, and which Saint Thomas calls abstractio totius” (FERRARI, L. op. cit., p. 79-80).
149
“Una quidem secundum quod universale abstrahitur a particulari, ut animal ab homine.
Alia vero secundum quod forma abstrahitur a materia : sicut forma circuli abstrahitur per
intellectum ab omni materia sensibili.“ (STh I, q. 40, a. 3, co.). Tomás elabora ainda sua teoria da
dupla abstração concernente à primeira operação do intelecto em: In De An., III, 12; In Phys., II, 3,
n. 5; In Met., I, 10, n. 158; III, 7, n. 405; VIII, I, n. 1683; In An. Post., I, 41; De Subst. Sep., c. 1.
Devemos essas citações a Nascimento (1998, p. 38, n. 42).
150
"Non autem inveniuntur abstractiones eis oppositae, quibus pars abstrahatur a toto vel
materia a forma; quia pars vel non potest abstrahi a toto per intellectum, si sit de partibus materiae,
in quarum diffinitione ponitur totum, vel potest etiam sine toto esse, si sit de partibus speciei, sicut
linea sine triangulo vel littera sine syllaba vel elementum sine mixto. In his autem quae secundum
esse possunt esse divisa, magis habet locum separatio quam abstractio.” (ibid.)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 64
porque ambas dependem uma da outra quanto ao ser e não podem ser entendidas
separadamente
151
. De fato, não se pode abstrair a potência do ato, mas se pode
abstrair o ato da potência que o acompanha. Ora, a matéria-prima é pura potência
na ordem do ser, ordenando-se essencialmente ao ato, que lhe é anterior por
natureza e definição. Em suma, a matéria-prima só pode ser conhecida pelo ato da
forma, do qual não pode ser abstraída
152
.
Do exposto até aqui, torna-se evidente que não se pode identificar sem mais
a abstractio e a separatio, muito menos a abstractio formae à abstractio totius.
Há, com efeito, uma tríplice distinção na operação do intelecto. A primeira,
relativa ao intelecto que compõe e divide e na qual se dá a separação (separatio)
propriamente dita, expressa por um juízo negativo. Essa operação é característica
da metafísica. A segunda, relativa ao intelecto que apreende os incomplexos, é
denominada de abstração da forma (abstractio formae) porque nela o intelecto
apreende a forma (acidental) da coisa a partir da matéria sensível. Essa abstração,
por sua vez, compete à matemática. Enfim, há uma terceira distinção que
corresponde também à simples operação do intelecto, mas diferencia-se da
abstractio formae por ser a abstração do universal do particular (abstractio
universalius), do todo da parte (abstractio totius). Essa última é comum à física e
as demais ciências, pois estas deixam de lado o acidental e concentram-se no
essencial, no que é por si
153
.
151
“Similiter autem cum dicimus formam abstrahi a materia, non intelligitur de forma
substantiali, quia forma substantialis et materia sibi correspondens dependent ad invicem, ut unum
sine alio non possit intelligi, eo quod proprius actus in propria materia fit. Sed intelligitur de forma
accidentali, quae est quantitas et figura, a qua quidem materia sensibilis per intellectum abstrahi
non potest, cum qualitates sensibiles non possint intelligi non praeintellecta quantitate, sicut patet
in superficie et colore, nec etiam potest intelligi esse subiectum motus, quod non intelligitur
quantum. Substantia autem, quae est materia intelligibilis quantitatis, potest esse sine quantitate;
unde considerare substantiam sine quantitate magis pertinet ad genus separationis quam
abstractionis.” (ibid.).
152
"Licet enim in uno et eodem, quod quandoque est in actu quandoque in potentia, prius
tempore sit potentia quam actus; actus tamen naturaliter est prior potentia. Illud autem quod est
prius, non dependet a posteriori, sed e converso. Et ideo invenitur aliquis primus actus absque
omni potentia; nunquam tamen invenitur in rerum natura potentia quae non sit perfecta per
aliquem actum; et propter hoc semper in materia prima est aliqua forma. (...)Remoto igitur
fundamento materiae, si remaneat aliqua forma determinatae naturae per se subsistens, non in
materia, adhuc comparabitur ad suum esse ut potentia ad actum: non dico autem ut potentiam
separabilem ab actu, sed quam semper suus actus comitetur" (QD. De Spir. Creat., a. 1)
153
"Sic ergo in operatione intellectus triplex distinctio invenitur. Una secundum
operationem intellectus componentis et dividentis, quae separatio dicitur proprie; et haec competit
scientiae divinae sive metaphysicae. Alia secundum operationem, qua formantur quiditates rerum,
quae est abstractio formae a materia sensibili; et haec competit mathematicae. Tertia secundum
eandem operationem quae est abstractio universalis a particulari; et haec competit etiam physicae
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 65
Estabelecida a tríplice distinção da operação do intelecto, resta-nos precisar
agora sua relação com a resolutio, objeto primeiro de nosso estudo. Corresponde a
cada um dos modos de abstração (abstractio totitus e abstractio formae) um tipo
específico de resolução, que delimita o modo de proceder das ciências
especulativas. Por outro lado, há uma resolutio relativa à separatio, que é uma via
especificamente metafísica, sobre a qual nos deteremos mais adiante.
No que diz respeito à relação entre abstração e resolução, importa-nos duas
passagens do corpus thomisticum, a saber: a primeira extraída da Suma Teológica
(I, q. 12, a. 4, ad 3); e a segunda do Compêndio de Teologia (I, c. 62). Em ambas,
torna-se evidente que o sentido de resolutio já não mais se restringe à divisão ou
dissolução material já que acompanha a natureza imaterial das operações do
intelecto, ascendendo a níveis cada vez mais elevados de inteligibilidade do ato
pela resolução formal dos objetos dados na representação sensível.
Na Suma Teológica (I, q. 12, a. 4, ad 3), a equiparação da resolutio com a
abstração se faz pela afirmação da capacidade do intelecto de conhecer a coisa
concreta, cuja forma está unida a uma matéria, pela resolução do ente ou da coisa
composta em forma e matéria. O princípio dessa resolutio-abstractio é a
representação sensível, dada na imaginação, que é essencialmente composta de
potência e ato. Já o termo dessa resolutio-abstractio é a consideração da própria
forma por si mesma (considerat ipsam formam per se), o que se torna possível
pela operação do intelecto que distingue o que é composto na sensibilidade. Em
suma, por meio de uma espécie de resolutio per abstractionem formae, o intelecto
é naturalmente capaz de apreender a forma concreta (formam concretam) e o ser
concreto (esse concretum) na simples apreensão
154
.
A resolutio-abstractio por distinção do composto em forma e matéria
resguarda uma certa analogia com a noção de resolutio proposta por Calcídio. De
fato, Tomás compartilha com Calcídio tanto a compreensão do processo da
et est communis omnibus scientiis, quia in scientia praetermittitur quod per accidens est et
accipitur quod per se est" (ibid.).
154
"Sed intellectus noster potest in abstractione considerare quod in concretione cognoscit.
Etsi enim cognoscat res habens formam in materia, tamen resolvit compositum in utrumque, et
considerat ipsam formam per se. (...) Et ideo, cum intellectus creatus per suam naturam natus sit
apprehendere formam concretam et esse concretum in abstractione, per modum resolutionis
cuiusdam (…)." (STh I, q. 12, a. 4, ad 3). Em outro lugar, Tomás esclarece que um arquiteto
quando conhece e estuda uma casa, definindo-a, dividindo-a e considerando suas características
universais, o faz pela resolução do composto em seus princípios formais universais (per
resolutionem compositi in principia universalia formalia; STh I, q. 14, a. 16, co.)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 66
abstractio formae como um processo de resolutio per divisionem, quanto a tese da
prioridade da resolutio sobre a compositio, que está presente em toda definição
qüiditativa. Não obstante, é evidente o caráter material da resolutio calcidiana em
contraste com o caráter formal da resolução por abstração tomista. Em Calcídio, a
resolutio por divisão ou separação do composto possui como termo o princípio
material do composto, o que só ocorre, para Tomás, na resolução secundum
naturam, mas não na resolução secundum rationem sive intellectum. Com efeito,
em Tomás, a partir da resolutio per abstractionem formae, o intelecto apreende,
como termo de sua atividade, a própria forma considerada em si mesma (ipsam
formam per se). É sempre a primazia do ato e de sua intelecção que exige a
resolutio do composto em seu princípio formal e material. Por conseguinte, é a
consideração da própria forma (ipsam formam), cujo ato tem primazia em relação
à potência que a acompanha, o termo último da resolução por abstração.
A Suma Teológica (I, q. 12, a. 4, ad 3) não deixa dúvidas quanto à
equiparação da resolutio à abstractio formae. Já o Compêndio de Teologia (I, c.
62) avança no sentido de sublinhar o caráter resolutivo não só da abstractio
formae, mas também da abstractio totius. Vejamos como Tomás esclarece a
natureza resolutiva da dupla abstração do intelecto:
Há, com efeito, uma dupla resolução produzida pelo intelecto. A primeira consiste
em abstrair a forma a partir da matéria, através da qual se procede a partir do que é
mais formal para o que é mais material, porque o que é primeiro sujeito permanece
sempre em primeiro lugar e a última forma é o que por primeiro se remove. A outra
resolução é conforme a abstração do universal do particular, que se encontra de
certo modo em ordem inversa [à primeira resolução]: pois primeiro são removidas
as condições materiais individuantes a fim de se alcançar o que é comum.
155
De acordo com o Compêndio de Teologia, há um duplo modo de resolução
correspondente a uma dupla abstração. A razão para a aproximação do termo
resolutio ao termo abstractio parece se tornar evidente quando consideramos a
desproporção entre a natureza do intelecto e dos seus atos, por si mesmos
imateriais, e a natureza potencialmente inteligível das representações sensíveis,
155
“Est enim duplex resolutio quae fit per intellectum. Una secundum abstractionem
formae a materia, in qua quidem proceditur ab eo quod formalius est, ad id quod est materialius:
nam id quod est primum subiectum, ultimo remanet; ultima vero forma primo removetur. Alia
vero resolutio est secundum abstractionem universalis a particulari, quae quodammodo contrario
ordine se habet: nam prius removentur conditiones materiales individuantes, ut accipiatur quod
commune est.” (Comp. Theol., I, c. 62).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 67
que estão atualmente determinadas segundo as condições materiais dos órgãos dos
sentidos. Em outros termos, enquanto a imaginação possui atualmente uma forma
sensível e potencialmente uma forma inteligível, o intelecto possui potencialmente
a natureza inteligível do objeto e é atualmente imaterial. Essa desproporção deve
ser resolvida pelo próprio intelecto que, em sua atividade imanente, atualiza por
abstração a forma inteligível presente potencialmente na forma sensível da
imagem
156
.
O princípio da resolutio-abstractio formae e da resolutio-abstractio totius é
o mesmo, a saber: a realidade composta dada na apreensão sensível. Todavia,
assim como os termos dessas abstrações são realmente distintos, do mesmo modo
são os termos das resoluções correspondentes. Na abstractio formae, o intelecto
resolve a forma inteligível pela separação do acidente do sujeito, da forma da
matéria, que é sempre em potência em relação ao ato da forma e, portanto, é um
obstáculo para o conhecimento. Na abstractio totius, o intelecto resolve a forma
universal pela separação do universal do particular, do todo (essencial) da parte
(acidental), a qual está sempre em potência em relação ao ato do todo. Deste
modo, a resolutio por abstractio formae é sempre a divisão ou separação da
qüididade, forma inteligível, em relação à potência que lhe acompanha, mas
jamais o inverso. Por outro lado, a resolutio por abstracito totius é a elevação do
particular à condição do universal, ou melhor, é a passagem do menos formal ao
mais formal e comum
157
.
Outra diferença considerável entre os dois modos de proceder
resolutivamente por abstração consiste em que na resolução do universal do
particular, aquilo a partir do qual se abstrai não permanece na simples apreensão,
enquanto na resolução da forma da matéria, aquilo a partir do qual se abstrai a
forma permanece no intelecto. Com efeito, a resolução por abstractio totius de
“racional” a partir de “homem” suprime a intelecção concomitante de “homem”,
permanecendo somente “animal”. Mas, a resolução por abstractio formae da
“forma do círculo” a partir do “bronze” não suprime a intelecção do bronze que
permanece conjuntamente à intelecção incomplexa do círculo
158
.
156
SCG II, c. 77.
157
Deve-se acrescentar ainda que se o ato de apreensão da qüididade, forma inteligível,
pressupõe a resolutio do intelecto agente, a definição, em sentido estrito, supõe uma compositio.
Cf. STh I, q. 17, a. 3, co; q. 85, a. 3, ad 2; In Phys., lc. 13, n. 2; lec. 9, n. 16.
158
STh I, q. 40, a. 3, co.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 68
Em outros termos, a resolução por abstração do todo ou do universal resulta
na formação de um único conceito (p.ex., “animal” a partir deste homem),
enquanto a resolução por abstração da forma dá origem a dois conceitos ou duas
noções uma vez que o que é formalmente abstraído e aquilo a partir do qual é feita
a abstração formal são concebidos separadamente (p.ex., o “círculo” a partir deste
bronze). É por isso que a primeira resolução per abstractionem totius sive
universalius se dirige ao que é mais formal e comum secundum intellectum a
partir do mais material, enquanto a segunda resolução per abstractionem formae
ocorre pela remoção do mais formal (acidental) do mais material (sujeito).
Como o princípio do conhecimento humano é a apreensão dos sentidos e o
seu termo é um juízo, a abstractio totius e a abstractio formae possuem seu
princípio na apreensão da forma inteligível a partir das representações sensíveis e
o seu termo em um juízo resolutivo sobre a forma inteligível abstraída. Por essa
razão, o juízo decorrente da segunda operação do intelecto que versa sobre os
efeitos da abstractio totius e da abstractio formae deve ser acompanhado de uma
resolutio ad sensum. Surge, assim, a noção de uma resolução do juízo aos sentidos
(resolutio ad sensum), pela qual as coisas conhecidas pela abstração na simples
apreensão retornam ou são reconduzidas aos seus princípios próprios
159
. O
conhecimento obtido no juízo pela resolutio ad sensum é o reverso da abstração.
Esta resolutio ad sensum é distinta realmente da resolutio per modum
abstractionis. Por essa última, somos conduzidos a distinguir o núcleo essencial
do objeto conhecido, separando a forma inteligível das características materiais e
individuantes presentes na imaginação. Pela resolutio ad sensum, reencontramos a
realidade sensível, princípio do conhecimento humano, graças à qual o juízo que o
intelecto faz sobre a forma ou a natureza da coisa se conforma ao que o sentido
revela da coisa. Por essa razão, a resolutio ad sensum é exigida não só pela
característica abstrativa do conhecimento humano, mas também pela necessidade
de reconduzir a operação do intelecto que compõe e divide a seu princípio
159
"Judicium enim perfectum haberi non potest de aliqua cognitione nisi per resolutionem
ad principium unde cognitio ortum habet; sicut patet quod cognitio conclusionum ortum habet a
principiis, unde judicium retum non potest haberi nisi resolvendo ad principia. Cum ergo omnis
cognitio intellectus nostri a sensu oriatur, non potest esse judicium rectum nisi reducatur ad
sensum. Et ideo Philosophus dicit in VI Ethic., quod sicut principia indemonstrabilia, quorum est
intellectus, sunt extrema, scilicet resolutionis, ita et singularia, quorum est sensus." (In IV Sent., d.
9, q. 1, qc. 1, a. 4, co.); “Ad tertium dicendum, quod iudicium intellectus non dependet a sensu hoc
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 69
incomplexo, pelo qual se conhece o que é (quod quid est)
160
. Consolida-se, assim,
a dinâmica da inteligência humana, presente nas ciências em geral, que devem
resolver seus juízos nas apreensões incomplexas (resolutio per modum
abstractionis) e nos sentidos (resolutio ad sensum)
161
.
Antes de passarmos à consideração da resolução e da composição lógicas, é
oportuno frisar que a distinção entre a abstractio e a separatio bem como a
distinção entre os tipos de abstração (abstractio formae e abstractio totius) na
simples apreensão do intelecto são fundamentais para a distinção das ciências
especulativas. Com efeito, cada ciência particular investiga seus objetos enquanto
são em ato. Como os atos dos objetos das diversas ciências são recebidos em uma
potência correspondente, cada ciência encontra sua especificidade e seus limites
em razão da potência que acompanha seu objeto específico.
Mesmo que as ciências da natureza, pela abstractio totius, considerem a
essência das coisas naturais, discernindo o todo específico da sua realização nos
indivíduos singulares e concretos, as mesmas nunca podem prescindir da
potencialidade da matéria sensível. De modo semelhante, a abstração própria da
ciência matemática (abstractio formae) jamais oferece uma independência total e
absoluta em relação à potencialidade da matéria, uma vez que, segundo Tomás, a
abstração matemática supõe a matéria inteligível, que nada mais é do que a forma
da quantidade
162
. Embora constituam um aprofundamento na ordem do
conhecimento da atualidade do objeto conhecido, a abstractio totius e a abstractio
modo, quod actus iste intellectus per organum sensibile exerceatur; indiget autem sicut extremo et
ultimo, ad quod resolutio fiat." (QDV q. 12, a. 3, ad 3).
160
“(…) operatio intellectus componentis et dividentis resolvitur ad operationem eius qua
respicit aliquod incomplexum: quia quod quid est, est principium demonstrandi an est simpliciter,
et quia est (...)" (In Sent. III, d. 24, q. 1, a. 1, ad 2).
161
“Sed terminus cognitionis non semper est uniformiter: quandoque enim est in sensu,
quandoque in imaginatione, quandoque autem in solo intellectu. Quandoque enim proprietates et
accidentia rei, quae sensu demonstrantur, sufficienter exprimunt naturam rei, et tunc oportet quod
iudicium de rei natura quod facit intellectus conformetur his quae sensus de re demonstrat. Et
huiusmodi sunt omnes res naturales, quae sunt determinatae ad materiam sensibilem, et ideo in
scientia naturali terminari debet cognitio ad sensum, ut scilicet hoc modo iudicemus de rebus
naturalibus, secundum quod sensus eas demonstrat, ut patet in III caeli et mundi; et qui sensum
neglegit in naturalibus, incidit in errorem. Et haec sunt naturalia quae sunt concreta cum materia
sensibili et motu et secundum esse et secundum considerationem.” (In De Trin., q. 6, a. 2, co.)
162
Como observa Nascimento (1998, p. 32, n. 36): “(...) a maneira precisa como Tomás de
Aquino caracteriza a “matéria inteligível” não é constante. Aqui no Sobre o Tratado da Trindade e
no In Libros Physicorum (II, 3, n. 5) ela se identifica com a substância; na Suma de teologia (q. 85,
a. 1, ad 2), trata-se da “substância na medida em que subjaz à quantidade”; em outros textos
(Sententia De Anima III, 8; Sententia libri Metaphysicae VII, 10, n. 1496, 11, n. 1057-1058; VIII,
5, n. 1760; Expositio libri Posteriorum I, 41, p. 152 b, lin. 89-99, II, 9, p. 206 b, lin. 71-80 – p. 207
a, lin. 81-86) é identificada com o próprio contínuo (ipsa continuitas)”.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 70
formae são imperfeitas e insuficiente por si sós para conduzir ao conhecimento do
ato plenamente separável ou separado da matéria.
A limitação da abstractio totius e da abstractio formae contrasta com as
possibilidades da separatio, que corresponde propriamente à investigação
metafísica. Por meio da separatio, aquilo que está vedado ao processo abstrativo,
torna-se possível ao intelecto, a saber: a consideração das formas enquanto
separáveis da matéria, sensível e inteligível. A separatio é, assim, uma atividade
que define o modo de proceder da metafísica em sua busca do conhecimento do
ente enquanto tal. Sobre a relação entre a separatio metafísica e a resolutio
metafísica, nos deteremos mais adiante.
2.3
Da via resolutionis e da via compositionis lógica
Dentre os empregos do termo resolutio e compositio, aquele que parece ser
um dos mais promissores consiste em sua especificação como modos ou tipos de
raciocínio
163
. Neste momento, importa compreender a natureza e a finalidade de
um outro tipo de resolutio e compositio que se ocupa tão somente dos conceitos
genéricos e específicos, das proposições e de suas relações nos raciocínios,
objetos característicos da razão humana e o sujeito específico da lógica
164
.
A resolutio e compositio lógicas expressam o dinamismo da própria
inteligência humana enquanto esta procede de um modo discursivo e racional
(rationabiliter). Além disso, revelam as propriedades e as características dos
modos de proceder propriamente científico
165
, pelos quais se descobre a causa da
163
Sobre a resolutio e a compositio lógicas ou na ordem do raciocínio, confira: RÉGIS, L-
M. op. cit., p. 322-328; DOLAN, S.E. op. cit., p. 31-43; TAVUZZI, M. op. cit., 201-205.
164
“Et haec ars est logica, idest rationalis scientia. Quae non solum rationalis est ex hoc,
quod est secundum rationem (quod est omnibus artibus commune); sed etiam ex hoc, quod est
circa ipsum actum rationis sicut circa propriam materiam.” (In Anal., I, lc. 1, n. 1).
165
Para Tomás, em conformidade com Aristóteles (Anal. Post., I, 2, 71b), a ciência é o
conhecimento da coisa por suas causas próprias: “scire aliquid est perfecte cognoscere ipsum, hoc
autem est perfecte apprehendere veritatem ipsius: eadem enim sunt prinicipia esse rei et veritatis
ipsius, ut patet ex II Met. Oportet igitur scientem, si est perfecte cognoscens, quod cognoscat
causam rei scitae. Si autem cognoscerete causam tantum, nondum cognosceret effectum in actu,
quod est scire simpliciter, sed virtute tantum, quod est scire secundum quid et quasi per accidens.
Et ideo oportet scientem simpliciter cognoscere atiam applicationem causae ad effectum” (In
Anal., I, lc. 4, n. 5). Cf. SCG I, c. 94.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 71
necessidade e da certeza dos juízos e das proposições, uma vez que pela resolutio
os objetos são conhecidos em suas causas, em seus princípios primeiros
166
.
Há, contudo, uma diferença fundamental na resolutio e na compositio lógica
e nos demais tipos de resolutio e compositio. Com efeito, a resolução e a
composição lógicas possuem como objeto o ens rationis
167
, a intentio secunda, ou
ainda a relatio rationis
168
. O ente de razão (ens rationis) distingue-se, segundo
Tomás, do ente real (ens reale) ou ente natural (ens naturae) porque o segundo é
extra animam secundum esse totum completum
169
. O ente de razão pode ser
considerado ainda como algo “concebido de primeira ordem” ou de “segunda
ordem” (secundo intellecta), tal como o gênero, a espécie, o oposto, a definição, o
predicado, o silogismo, etc
170
.
As intenções, por sua vez, são divididas em primeiras e segundas intenções
na medida em que os entes de razão podem ter como objeto imediato os conceitos
das coisas (intentio secunda) ou as próprias coisas de modo intencional (intentio
prima)
171
. Enfim, as relações de razão, das quais trata a lógica, são relações cujos
termos relacionados são somente os entes de razão (res rationis tantum), tais
como o gênero e a espécie. Como nem tudo o que a razão concebe tem
fundamentum in re, uma vez que certas concepções são originariamente produtos
da imaginação, o objeto da resolução e da composição lógicas é somente o ens
rationis com fundamento na coisa ou na realidade da coisa
172
.
Tendo estabelecido os entes de razão como objetos da lógica, é preciso
dividir a resolutio e a compositio lógica em razão da diversidade dos atos da
razão. Em seguida, poderemos estabelecer a natureza e a finalidade dos tipos de
166
“Est enim aliquis rationis processus necessitatem inducens, in quo non est possibile esse
veritatis defectum; et per huiusmodi rationis processum scientiae certitudo acquiritur" (In Anal. I,
lc. 1, n. 5). “Scientia est certa cognitio rei (...) per certitudinem (...) quod non possit aliter se
habere" (In Anal. I, lc. 1, n. 4).
167
“(...) ens rationis est proprie subiectum logicae" (In Met. IV, lc. 4, n. 5). Sobre a
distinção entre o ens rationis e o ens reale sive naturae, confira: STh I-II, q. 17, a. 4, co.; I-II, q.
36, a. 1, co.; QDV q. 21, a. 2, ad 7; QDP q. 7, a. 9, co.
168
“Logica habet maximam difficultatem, cum sit de secundo intellecti” (In De Trin., lc. II,
q. 2, a. 1, sol. 2, ad 3).
169
“Quaedam autem sunt quae habent fundamentum in re extra animam, sed
complementum rationis eorum quantum ad id quod est formale per operationem anime, ut patet in
universali.” (In Sent., I, d. 19, q. 5, a. 1, co.)
170
In De Trin., q. 6, a. 1, resp. 1 ; a. 1, resp. 2, ad 3.
171
“Aliae scientiae sunt de rebus, et aliae de intentionibus intellectis“ (SCG IV, c. 11). Cf.
In Sent., I, d. 2, q. 1, a. 3, sol. ; QDP q. 1, a. 1, ad 10.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 72
resolutio e de compositio lógicas a partir dos atos da razão. Das obras dedicadas à
explicitação da resolutio e da compositio lógicas, o comentário de Tomás aos
Segundos Analíticos de Aristóteles é, sem dúvida, o nosso ponto de partida
obrigatório.
A tarefa da resolutio e da compositio no âmbito da lógica é
programaticamente delineada por Tomás no prólogo de seu comentário aos
Analíticos, em que demonstra conhecer a distinção boeciana entre as partes
resolutiva e compositiva da lógica aristotélica. É, sobretudo, nos prólogos de seus
comentários que Tomás faz a apresentação de sua síntese pessoal do conteúdo da
obra que vai expor.
Assim como estabelece uma correlação entre a resolutio e a abstractio na
simples apreensão, dividindo os modos de resolutio em razão da dupla abstração
do intelecto agente, de modo semelhante Tomás relaciona o objeto, o princípio e o
termo da resolução e o da composição lógicas às três operações do intelecto, a
saber: a simples apreensão, o juízo e o raciocínio.
Três são os atos da razão, dos quais os dois primeiros pertencem à razão enquanto
intelecto (...). O primeiro ato do intelecto é o conhecimento dos indivisíveis ou
incomplexos, com o qual concebe a idéia da essência da coisa (...). E ao estudo
desta operação é ordenada a obra das Categorias. A segunda operação do intelecto
é a composição e divisão do intelecto no qual se encontra o verdadeiro e o falso. E
deste ato da razão, Aristóteles se ocupa no livro intitulado Peri Hermeneias. O
terceiro ato da razão diz respeito ao que especificamente é próprio da razão, pois
discorre de uma coisa a outra, de tal modo a alcançar o conhecimento do
desconhecido a partir do conhecido. E deste ato se ocupam os livros do
Organon.
173
A lógica considera os atos da razão como objetos de sua ciência, mas os
ordena em função do terceiro ato da razão, pelo qual se alcança o conhecimento
do desconhecido a partir do conhecido. Conseqüentemente, a resolução e a
172
“Quaedam sunt quae nihil habent extra animam, sicut somnia et imaginatio chimerae.
Quaedam autem sunt quae habent fundamentum in re extra animam (...) ut patet in universali“
(ibid.).
173
“Sunt autem rationis tres actus: quorum primi duo sunt rationis, secundum quod est
intellectus quidam. Una enim actio intellectus est intelligentia indivisibilium sive incomplexorum,
secundum quam concipit quid est res. Et haec operatio a quibusdam dicitur informatio intellectus
sive imaginatio per intellectum. Et ad hanc operationem rationis ordinatur doctrina, quam tradit
Aristoteles in libro praedicamentorum. Secunda vero operatio intellectus est compositio vel divisio
intellectus, in qua est iam verum vel falsum. Et huic rationis actui deservit doctrina, quam tradit
Aristoteles in libro perihermeneias. Tertius vero actus rationis est secundum id quod est proprium
rationis, scilicet discurrere ab uno in aliud, ut per id quod est notum deveniat in cognitionem
ignoti. Et huic actui deserviunt reliqui libri logicae.” (In Ana. I, proem., n. 4)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 73
composição lógicas dizem respeito ao que é específico do conhecimento racional,
ou seja, a passagem do conhecimento de uma coisa mais conhecida a outra menos
conhecida, pressupondo sempre o caráter resolutivo e o compositivo dos demais
atos da razão. De fato, uma vez que a definição é o termo médio e o princípio da
demonstração propter quid, deve ser dito que o juízo obtido por demonstração é
aquele que se resolve na definição, pela qual se expressa a qüididade (quid). Ora,
como das relações entre os juízos e os raciocínios se ocupa o Organon de
Aristóteles, Tomás considera necessário esclarecer em que medida a parte da
lógica dedicada ao raciocínio demonstrativo é denominada de “analítica” ou
“resolutória”.
A parte da lógica consagrada a um tal procedimento é denominada de parte
judicatória, porque o juízo comporta a certeza da ciência. E, como não se pode
obter um juízo certo relativamente aos efeitos exceto pela resolução nos seus
princípios primeiros, esta parte da lógica é denominada de analytique, isto é,
resolutória. Ora, a certeza do juízo que é obtido por resolução depende tanto da
forma próprio do silogismo, e a isto é ordenado o livro dos Primeiros Analíticos
que trata do silogismo em sua pura essência, quanto depende da matéria com a qual
é constituído, porque nele utilizamos proposições evidentes por si mesmas e
necessárias, e a isto é ordenado o livro dos Segundos Analíticos que trata do
silogismo demonstrativo.
174
A parte da lógica, da qual fala Tomás, deverá ser aquela destinada a
alcançar a necessidade e a veracidade do raciocínio, sem a qual o juízo dela
decorrente não possuirá a certeza científica, ou melhor, deverá ser aquela a
determinar a necessidade dos argumentos e dos silogismos demonstrativos, pelos
quais será adquirida a ciência
175
. Ora, para que a inteligência humana proceda
rationabiliter, deverá preencher as exigências próprias do raciocínio lógico, que é
formalmente estruturado a partir dos primeiros princípios do entendimento.
174
“Pars autem logicae, quae primo deservit processui, pars iudicativa dicitur, eo quod
iudicium est cum certitudine scientiae. Et quia iudicium certum de effectibus haberi non potest nisi
resolvendo in prima principia, ideo pars haec analytica vocatur, idest resolutoria. Certitudo autem
iudicii, quae per resolutionem habetur, est, vel ex ipsa forma syllogismi tantum, et ad hoc ordinatur
liber priorum analyticorum, qui est de syllogismo simpliciter; vel etiam cum hoc ex materia, quia
sumuntur propositiones per se et necessariae, et ad hoc ordinatur liber posteriorum analyticorum,
qui est de syllogismo demonstrativo.” (In Anal., I, lc. 1, n. 6).
175
“Necessitas autem cuiuslibet rei ordinatae ad finem ex suo fine sumitur; finis autem
demonstrativi syllogismi est acquisitio scientiae; unde, si scientia acquiri non posset per
syllogismum vel argumentum, nulla esset necessitas demonstrativi syllogismi". (In Anal., I, lc. 1,
n. 8)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 74
A démarche da resolutio lógica, paradigmaticamente expressa no prólogo
em questão, consiste em partir de algo dado como um efeito (em geral, um
conceito, uma proposição ou um raciocínio
176
) para resolvê-lo em seus princípios
primeiros (resolvendo in prima principia). Qualquer um dos entia rationis ou das
relationes rationis que receba a qualificação da certeza epistemológica terá,
doravante, como critério fundamental a sua resolução nos primeiros princípios. É
este procedimento resolutivo que faz da lógica uma ciência analítica.
Não obstante, a certeza do juízo obtido pela resolução lógica depende tanto
da forma quanto da matéria dos argumentos, dos silogismos. Por essa razão,
Aristóteles, segundo Tomás, consagra os Primeiros Analíticos à determinação dos
princípios formais do silogismo, nos quais devem ser resolvidos seus efeitos, e os
Segundos Analíticos à tematização dos princípios materiais do silogismo, nos
quais devem ser igualmente resolvidos seus efeitos. Por princípios materiais,
Tomás entende as proposições que são o conteúdo dos raciocínios, as quais devem
ser resolvidas quer nas proposições necessárias e evidentes por si mesmas (per se
et necessariae), quer nos princípios formais das coisas significadas pelos seus
termos (sujeito e predicado).
A resolução lógica não é, portanto, a própria demonstração silogística, mas
um processo reflexivo da razão pelo qual se evidencia o caráter demonstrativo dos
raciocínios ou argumentos pela resolução dos mesmos em seus princípios formais
e materiais, os quais constituem as causas ou princípios intrínsecos das
demonstrações. A distinção feita por Tomás entre o raciocínio secundum rem e o
raciocínio secundum rationem, em seu comentário ao De Trinitate de Boécio (q.
6, a.1), lança luz sobre a natureza da resolutio e da compositio no contexto da
lógica.
De acordo com Tomás, diz-se que o raciocínio é secundum rationem quando
se volta para a determinação dos princípios ou das causas intrínsecas (material e
formal). Denomina-se, porém, de raciocínio secundum rem aquele que se ocupa
da determinação das causas ou dos princípios extrínsecos (eficiente e final). Ora,
como a lógica se ocupa dos princípios materiais e formais do raciocínio enquanto
176
J. Isaac (1950, p. 488) destaca que essa conclusão pode ser obtida pelo ensino (per
doctrinam vel disciplinam; QDV q. 11, a. 1, ad 13), discussão (quaerere scientiam), pesquisa
(inquisitio rationis sive veritatis; investigatio sive inquirendo; Comp. Theol., c. 35; STh I-II, q. 3,
a. 8) ou descoberta pessoal (per inventionem propriam; STh I, q. 60, a. 2; q. 101, a. 1; q. 117, a. 1).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 75
tal, a mesma procede sempre e somente secundum rationem. Eis uma das
principais distinções da resolutio e da compositio no âmbito da lógica em
contraste com as demais instâncias de resolutio e compositio, nas quais se inclui a
busca das causas extrínsecas (secundum rem).
Tomás de Aquino aplica a resolutio lógica nas demonstrações que são
formadas por diversos silogismos, evidenciando que, com exceção dos silogismos
simples (syllogismus simplex) que formam as primeiras demonstrações, os demais
se resolvem nestas últimas, tanto pela forma quanto pela matéria
177
. Por meio
dessa dupla resolução lógica, o juízo, com valor de conclusão (ou efeito) do
raciocínio ou argumento em questão, é conhecido com certeza, pois quando se
resolvem os juízos nos primeiros princípios per se notae, o intelecto encontra a
firmeza do juízo pela impossibilidade do que lhe é contrário. É essa a condição
necessária do assentimento com valor de certeza científica
178
.
É importante ressaltar que a necessidade de resolver os juízos ou as
proposições em seus princípios só ocorre naqueles casos em que não se conhece
ou se conhece de modo incompleto e confuso os princípios primeiros dos quais
derivam por compositio lógica. Em outros termos, a resolução só se faz necessária
quando as proposições assumidas não são por si mesmas evidentes
179
. Com efeito,
um juízo ou proposição que não são passíveis de resolução lógica ou bem são
evidentes por si mesmos ou são objetos da fé e da opinião
180
. Por isso, aqueles
177
“Illae enim demonstrationes, quae existunt in tribus terminis tantum, dicuntur esse
aliorum elementa. Nam ex his componuntur aliae demonstrationes, et in ea resolvuntur. Quod sic
patet. Secunda enim demonstratio accipit pro principio conclusionem primae demonstrationis,
inter cuius terminos intelligitur medium, quod fuit primae demonstrationis principium. (…) Prima
igitur demonstratio, quae habebat unum medium et solum tres terminos, est simplex et non
resolvitur in aliam demonstrationem, sed omnes aliae resolvuntur in ipsam. Et ideo syllogismi
primi, qui fiunt ex terminis tribus per unum medium, elementa dicuntur. (In Met. V, lc. 4, n. 7).
Cf. In Anal. I, lc. 39, n.7.
178
“(…) sed quando resolvendo pervenitur ad primum principium per se notum, firmatur ad
unum cum impossibilitate alterius” (In Sent., II, d. 7, q. 1, a. 1, co.); “dum resolvendo conclusiones
in principia per se nota, earum certitudinem efficit; et hoc est assensus scientiae; (...) in scientia
vero conclusionum causatur ex hoc quod conclusio secundum actum rationis in principia per se
visa resolvitur.” (In Sent. III, d. 23, q. 2, a. 2, co.); “actus autem scientiae proprius est ut cognoscat
conclusiones, resolvendo eas ad principia prima per se nota” (In Sent. III, d. 31, q. 2, a. 4, co.);
“judicium enim perfectum haberi non potest de aliqua cognitione nisi per resolutionem ad
principium unde cognitio ortum habet” (In Sent. IV, d. 9, q. 1, a. 4, co.); “quod certitudo scientiae
tota oritur ex certitudine principiorum: tunc enim conclusiones per certitudinem sciuntur, quando
resolvuntur in principia.” (QDV q. 11, a. 1, ad 3).
179
“Vocat autem resolutionem, quando propositiones assumptae non sunt manifestae, sed
oportet eas resolvere in alias manifestiores.” (In Anal., I, lc. 43, n. 10)
180
“(...) cognitionem autem qua homo in ultimum finem dirigitur, oportet esse certissimum,
eo quod est principium omnium quae ordinantur in ultimum finem: sicut et principia naturaliter
nota certissima sunt. Certissima autem cognitio alicuius esse non potest nisi vel illud sit per se
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 76
juízos que, após a investigação resolutiva (inquisitio resolvens), foram
reconduzidos aos seus princípios primeiros são firmemente e cientificamente
conhecidos, uma vez que se exclui, após a resolutio lógica, a possibilidade de seu
contrário
181
.
Em toda resolução lógica, portanto, as coisas mediatas são reduzidas às
imediatas (in resolutione, qua mediata ad immediata reducuntur
182
), pois são
vistas nos seus princípios (in principia per se visa resolvitur
183
). De fato,
conhecer os efeitos nas causas, as proposições mediatas nas proposições
imediatas, os juízos conclusivos em suas premissas, e estas nos primeiros
princípios é conhecer por via de resolução. Ao contrário, conhecer os efeitos a
partir das causas, as proposições mediatas a partir das imediatas, a conclusão a
partir das premissas e estas a partir dos primeiros princípios é conhecer por via de
composição.
Um elemento crucial para o entendimento do raciocínio resolutivo é a
especificação do seu princípio e do seu termo. Para Tomás, o terminus da
resolução lógica é o intelecto, o que supõe a distinção entre a razão (ratio) e o
intelecto (intellectus). Essa distinção, por sua vez, torna ainda mais evidente as
diferenças entre a via do juízo (via iudicii) e a via de invenção (via inventio),
inicialmente formulada por Boécio. Embora, a razão e a inteligência sejam uma só
potência cognoscitiva no homem, Tomás distingue a razão do intelecto para
expressar a diferença entre o movimento da inteligência (ratio) e o seu repouso
(intellectus), entre a inquisição e a invenção da verdade e a sua cognição simples e
absoluta. É o que ocorre nas Questões Disputadas sobre a Verdade:
A inteligência designa um conhecimento simples e absoluto. (...) Ao contrário, a
razão designa uma espécie de movimento discursivo pelo qual a alma humana se
aplica ou passa de um conhecimento a outro (...). E assim como o movimento é
notum, sicut nobis prima demonstrationis principia; vel in ea quae per se nota sunt resolvatur,
qualiter nobis certissima est demonstrationis conclusio” (SCG IV, c. 54). Tomás utiliza-se do
expediente analítico ou resolutório da ciência para distinguir o assentimento da fé do assentimento
científico, porque aquele não resolve suas conclusões nos princípios por si mesmos conhecidos (cf.
In Sent., III, d. 23, q. 2, a. 4, ad 4; d. 23, q. 3, a. 3, co.; STh II-II, q. 5, a. 2, co.; QDV q. 14, a. 9).
181
“Principium immediatum naturaliter cognitum determinat potestatem totam rationis;
ante enim quam ad ipsum deneniatur per inquisitionem resolventem, ita adhaeretur uni parti ut
relinquatur quaedam pronitas ad partem aliam per modum dubitationis. Sed quando resolvendo
pervenitur ad primum principium per se notum firmatur ad unum cum impossibilitate alterius” (In
Sent. II, d. 7, q. 1, a. 1, co.).
182
In Anal. I, lc. 2, n. 9.
183
In Sent. III, d. 23, q. 2, a. 2, co.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 77
comparado ao repouso, como a seu princípio e seu termo, assim também a razão é
comparada à inteligência, como o movimento à quietude, a geração ao ser (...).
Compara-se ao intelecto como ao princípio e ao termo. A seu princípio, porque a
mente humana não poderia discorrer de um a outro se seu discurso não principiasse
por alguma acepção simples da verdade, apreensão que é própria da intelecção dos
princípios. De modo semelhante, [a seu termo,] pois o discurso racional não
alcançaria algo certo se não examinasse aquilo que descobriu pelo discurso à luz
dos princípios primeiros, nos quais a razão resolve. E assim o intelecto se encontra
no princípio da razão quanto à via da invenção, e no termo quanto à via do juízo.
184
Deste modo, assim como o movimento é comparado ao repouso, a geração
ao ser, a razão é comparada à inteligência como ao seu princípio e ao seu termo.
Na ordem da composição, via de invenção (via inveniendi), a inteligência está
para a razão como o seu princípio primeiro e simples. Na ordem da resolução, via
do juízo (via iudicandi), a inteligência está para a razão como o seu termo último.
Com isso, a resolução lógica tem seu termo (terminus) no intelecto (intellectus),
isto é, seu movimento discursivo termina nos primeiros princípios, nos quais
repousa a certeza do próprio procedimento resolutivo
185
. A mesma doutrina do
De Veritate se encontra na Suma Teológica, nos seguintes termos:
A razão e o intelecto não podem ser no homem potências diferentes. É o que
claramente se vê, se consideramos o ato de uma e de outra. Conhecer é
simplesmente apreender a verdade inteligível. Raciocinar é ir de um objeto
conhecido a um outro, em vista de conhecer a verdade inteligível. (..) O raciocínio
está, portanto, para a intelecção como o movimento está para o repouso, ou a
aquisição para a posse; desses, um é próprio do que é perfeito, outro do imperfeito.
Mas pelo fato de sempre um movimento proceder do que é imóvel e terminar no
repouso, o raciocínio humano procede, pela via de inquisição ou de invenção, de
alguns conhecimentos tidos de modo absoluto, os primeiros princípios; depois, pela
via do juízo, resolvendo, volta a esses princípios primeiros, à luz dos quais examina
o que descobriu
186
.
184
“Intellectus enim simplicem et absolutam cognitionem designare videtur; (...) Ratio vero
discursum quemdam designat, quo ex uno in aliud cognoscendum anima humana pertingit vel
pervenit. (...) Et sic motus comparatur ad quietem et ut ad principium et ut ad terminum, ita etiam
et ratio comparatur ad intellectum ut motus ad quietem, et ut generatio ad esse (...). Comparatur ad
intellectum ut ad principium et ut ad terminum. Ut ad principium quidem, quia non posset mens
humana ex uno in aliud discurrere, nisi eius discursus ab aliqua simplici acceptione veritatis
inciperet, quae quidem acceptio est intellectus principiorum. Similiter etiam nec rationis discursus
ad aliquid certum perveniret, nisi fieret examinatio eius quod per discursum invenitur, ad principia
prima, in quae ratio resolvit. Ut sic intellectus inveniatur rationis principium quantum ad viam
inveniendi, terminus vero quantum ad viam iudicandi.” (QDV q. 15, a. 1)
185
“(..) in cognitionem veritatis ratio inquirendo pervenit, quam intellectus simplici intuitu
videt; unde ratio ad intellectum terminatur; unde etiam in demonstrationibus certitudo est per
resolutionem ad prima principia, quorum est intellectus” (In Sent. II, d. 9, q. 1, a. 8, ad 1)
186
“Respondeo dicendum quod ratio et intellectus in homine non possunt esse diversae
potentiae. Quod manifeste cognoscitur, si utriusque actus consideretur. Intelligere enim est
simpliciter veritatem intelligibilem apprehendere. Ratiocinari autem est procedere de uno intellecto
ad aliud, ad veritatem intelligibilem cognoscendam. (...) Homines autem ad intelligibilem
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 78
A articulação destes dois textos não deixa dúvida sobre a característica
essencialmente humana do duplo movimento de resolutio e compositio no
conhecimento científico. O intellectus é seu princípio e termo indefectível uma
vez que é apreensão imediata e imóvel da verdade, fonte e termo da atividade
racional ou discursiva. Esta, por seu turno, possui um duplo movimento que se faz
necessário pela própria característica dos objetos do conhecimento humano, que
resguardam sempre uma potencialidade para um ato ulterior. Pela via
compositionis ou via inventionis, a razão passa da atualidade de uma verdade
imediata à uma verdade mediata ou conclusão. Pela via judicii ou via resolutionis,
a razão eleva a potencialidade da verdade mediata à atualidade da verdade
imediata, conhecida em seus princípios primeiros.
A esta altura poder-se-ia questionar se há realmente necessidade do
procedimento resolutivo na lógica uma vez que a via de invenção ou composição
é suficiente para garantir a necessidade e a certeza das conclusões a partir das
premissas. Afinal, em que medida há a necessidade de um duplo processo de
conhecimento para a razão humana se os primeiros princípios são sempre
pressupostos em qualquer raciocínio e se as conclusões podem ser obtidas por
dedução (compositio)?
Em plena conformidade com os demais textos em que trata do papel da
resolutio para as demonstrações científicas, Tomás sustenta, na Suma Teológica, a
originalidade do processo resolutivo, sua irredutibilidade e relevância
epistemológica, do seguinte modo:
Antes de mais nada, porque (...) os que procedem dos princípios às conclusões não
os consideram simultaneamente. Em seguida, porque este discurso vai do
conhecido ao desconhecido. Fica então claro que, conhecido o primeiro termo,
ainda se ignora o outro, e o segundo não é então conhecido no primeiro, mas a
partir do primeiro. O final do discurso acontece quando o segundo termo é visto no
veritatem cognoscendam perveniunt, procedendo de uno ad aliud, ut ibidem dicitur, et ideo
rationales dicuntur. Patet ergo quod ratiocinari comparatur ad intelligere sicut moveri ad quiescere,
vel acquirere ad habere, quorum unum est perfecti, aliud autem imperfecti. Et quia motus semper
ab immobili procedit, et ad aliquid quietum terminatur; inde est quod ratiocinatio humana,
secundum viam inquisitionis vel inventionis, procedit a quibusdam simpliciter intellectis, quae
sunt prima principia; et rursus, in via iudicii, resolvendo redit ad prima principia, ad quae inventa
examinat.” (STh I, q. 79, a. 8, co.).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 79
primeiro, os efeitos ficando resolvidos em suas causas; aí, porém, cessa o
discurso.
187
O intelecto jamais adere a uma proposição sem que emita um juízo certo a
seu respeito, que depende necessariamente de sua evidência (visio). É a evidência
(visio) do juízo decorrente dos princípios (ex principiis) ou dos seus próprios
termos (sujeito e predicado), que determina o intelecto a aceitar uma proposição
com certeza. Mas, uma coisa é a evidência do juízo a partir dos princípios (ex
primo), outra é a evidência do juízo nos princípios (in primo). Se a razão pode
alcançar uma conclusão que segue dos primeiros princípios (ex primo), entretanto,
pode desconhecer de que modo a conclusão é no primeiro princípio (in primo). A
originalidade e irredutibilidade da resolutio, em oposição à via de composição,
está justamente em permitir que o intelecto apreenda o efeito na causa, a
conclusão nas premissas, os juízos e as proposições nos primeiros princípios.
Somente a visão intelectual (visio) nos princípios, pela via da resolução, torna
possível o repouso da inteligência.
Quando se considera o conhecimento humano como um todo, delimita-se
plenamente o âmbito da compositio e da resolutio lógicas. Afinal, como a ordem
do conhecimento humano não se esgota na mera consideração dos entes de razão,
não se deve olvidar que o princípio primeiro na ordem do conhecimento humano,
considerado em absoluto, é a realidade sensível apreendida pelos sentidos. Na
ordem do conhecimento humano em geral, o primeiro princípio de toda cognição
são os sentidos, nos quais devem ser resolvidos os conceitos obtidos por abstração
e os juízos sobre os mesmos (resolutio ad sensum). Mas, na ordem do
conhecimento científico, o princípio próximo de toda cognição é sempre uma
qüididade ou definição, obtida por abstração, que é aplicada em um raciocínio
discursivo que leva à conclusão sobre algo desconhecido. Por isso, a abstração
para as ciências em geral constitui o princípio próximo da resolução de seus
objetos. Mas, como as ciências são distintas pela formalidade dos objetos com os
quais se ocupam, as mesmas resolvem diversamente seus objetos em razão da
187
“Primo quidem, quia secundus discursus praesupponit primum, procedentes enim a
principiis ad conclusiones, non simul utrumque considerant. Deinde, quia discursus talis est
procedentis de noto ad ignotum. Unde manifestum est quod, quando cognoscitur primum, adhuc
ignoratur secundum. Et sic secundum non cognoscitur in primo, sed ex primo. Terminus vero
discursus est, quando secundum videtur in primo, resolutis effectibus in causas, et tunc cessat
discursus.” (STh I, q. 14, a. 7, co.)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 80
especificidade de seus princípios formais. Por isso, a física resolve seus objetos,
obtidos por abstractio totius, nos sentidos, a matemática resolve seus objetos,
alcançados por abstractio formae, na imaginação, enquanto a metafísica resolve
seus objetos no intelecto, mediante a separatio
188
.
Nesta perspectiva, há uma dupla resolução das conclusões conhecidas
cientificamente uma que vai dos sentidos ao intelecto por abstractio e deste aos
sentidos (resolutio ad sensum), outra que varia em razão dos princípios formais
nos quais se resolvem os objetos das ciências particulares. Por tratar somente dos
entes de razão, a lógica só pode resolver seus objetos nos princípios formais do
próprio entendimento (secundum rationem), não os resolvendo nos sentidos
(resolutio ad sensum), nem nas causas extrínsecas (secundum rem).
Por outro lado, é importante destacar ainda que a resolução dos entes de
razão nos primeiros princípios ocorre de modo diverso quer se considere os atos
de simples apreensão, juízo ou raciocínio. Na simples apreensão, há um
movimento de resolução dos conceitos mais concretos ou particulares como as
espécies nos gêneros mais próximos, e dos gêneros subalternos nos gêneros
supremos. A resolução das espécies nos gêneros e dos gêneros nos gêneros
supremos só é possível graças à abstração do universal do particular (abstractio
totius). Em última instância, a resolução dos conceitos é a atividade do intelecto
que produz o universal, inteligível em ato, a partir da abstração das condições
materiais e individuantes. Esse movimento resolutivo por abstractio totius
contrasta com aquele outro, de descenso, em que, através da compositio, passamos
dos gêneros supremos, mais abstratos em si mesmos, aos mais concretos, contidos
potencialmente na essência nocional daqueles. Esse movimento compositivo
ocorre por adição ou “concreção”, em sentido oposto ao da abstractio totius
189
.
A resolutio e a compositio ocorrem igualmente nos atos da segunda
operação do intelecto, mais especificamente nos juízos. Deve-se advertir, porém,
que há sempre compositio quando o intelecto compara um conceito simples a
outro, ou seja, há sempre, sob certo aspecto, união ou síntese no juízo
190
.
188
In De Trin., q. 6, a. 2, c.
189
Sobre o papel e os vários sentidos de “adição” (additio) em Tomás de Aquino, confira:
TAVUZZI, M. Michael. Aquinas on the operation of additio. The New Scholasticism, 62, 1988.
190
"(...) si consideremus ea quae sunt circa intellectum secundum se, semper est compositio
ubi est veritas et falsitas; quae nunquam invenitur in intellectu, nisi per hoc quod intellectus
comparat unum simplicem conceptum alteri" (In Pery., I, lc. 3, n. 4). Cf. In Anal., I, lc. II, n. 7.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 81
Entretanto, pode haver resolutio nos juízos em dois sentidos. O primeiro diz
respeito à resolutio enquanto divisão lógica do juízo em seus termos
191
. O
segundo diz respeito à recondução dos juízos não-evidentes aos evidentes por si
mesmos, que são conhecidos pela simples apreensão dos seus termos
192
. Neste
último caso, os juízos pela resolução são conhecidos em seus termos. Enfim, no
raciocínio se verifica o movimento sintético ou compositivo quando, partindo das
premissas estruturadas logicamente, se procede até a conclusão, que se torna
conhecida a partir de seus princípios próprios (via inquisitionis sive inventionis).
Este movimento de “descenso” é oposto ao movimento da resolução de uma
sentença, proposição ou juízo, assumidos como conclusão, em suas premissas ou
princípios primeiros (via iudicii).
Compreendida a resolução em função dos três atos ou operações do
intelecto, evidencia-se que é próprio da natureza discursiva da razão humana
alcançar a certeza de algo pelo exame daquilo pelo qual o discurso se origina.
Esta via resolutiva é a única a garantir o vínculo formal entre o princípio e a
conclusão dos raciocínios humanos a partir da própria conclusão, pois tem seu
termo último nos primeiros princípios. Na via do juízo, alcançamos a certeza pela
resolução das conclusões nos primeiros princípios (in primo). Na via de invenção,
porém, a certeza é obtida tomando-se como ponto de partida os primeiros
princípios (ex primo). Em suma, a resolutio lógica é aquela que justifica o que foi
descoberto pela compositio lógica, permitindo compreender as conclusões nas
premissas (in primo) e não somente a partir das premissas (ex primo).
Dentre os primeiros princípios nos quais se reduzem logicamente todos os
juízos, aquele no qual todos se resolvem sem que ele mesmo seja resolvido em
nenhum outro é, sem dúvida, o princípio de não-contradição (maxime primum
principium)
193
. Com efeito, os que realizam demonstrações reduzem todos os
juízos e as proposições ao princípio de não-contradição como o último princípio
na via de resolução. Mas, como o que é último na via de resolução é primeiro na
191
In Met. IV, lc. 5, n. 387-389; lc. 6, n. 600-610; In Pery. I, lc. 15, n. 2; STh I-II, q. 94, a.
2, co.
192
Quodl. VIII, a. 4; X, a. 7; In Met., IV, lc. 5, n. 595; I-II, q. 66, a. 5, ad 4; In De Trin., q.
6, a. 4.
193
“Et propter hoc omnes demonstrationes reducunt suas propositiones in hanc
propositionem, sicut in ultima opinionem omnibus communem: ipsa enim est naturaliter
principium et dignitas omnium dignitatum. (...) inquantum in hanc reducunt demonstrantes omnia,
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 82
via de composição, o princípio de não-contradição é o primeiro na ordem de
demonstração por dedução (per modum compositionis).
Como mostrou Jan Aertsen (1989, p. 409), Tomás desenvolve em seu
comentário à Metafísica de Aristóteles uma doutrina acerca da resolução que vai
muito além do texto aristotélico a respeito da prioridade do princípio de não-
contradição na ordem da demonstração científica. Para Tomás, há um paralelo
entre a ordem de demonstração e a ordem da definição, assim como há um
paralelo entre a ordem do raciocínio e do juízo e a ordem da simples apreensão.
Em cada uma dessas ordens é necessário proceder resolutivamente. Ora, se é
verdade que o que é logicamente primeiro em toda demonstração se resolve no
princípio de não-contradição, não é menos verdade que o que é primeiro na ordem
do conhecimento é “o que é” (id quod est). Uma vez que o que o intelecto concebe
primeiramente é o ente (ens est primum cognitum), a resolução lógica dos juízos
no princípio de não-contradição exige a resolução lógica de tudo o que é
apreendido no ente (ens)
194
. Deste modo, até mesmo o princípio de não-
contradição se resolve logicamente na apreensão incomplexa do ente (ens)
195
.
Assim sendo, a resolutio e a compositio lógicas transitam de um conceito a
outro ou de um juízo a outro, o que não pode acontecer senão graças à atividade
racional do próprio intelecto. Ora, como esta transição lógica é relativa aos atos da
razão e não às próprias coisas, os primeiros princípios nos quais se resolvem os
sicut in ultimum resolvendo” (In Met. IV, lc. 6, n. 603-604. Cf. In Met. IV, lc. 5, n. 392; In Anal.,
I, lc. 5, n. 50; In Met. X, lc. 5, n. 2211; STh I-II, q. 94, a. 2, co.
194
O locus privilegiado deste paralelismo no corpus thomisticum é a resolução dos
transcendentais no ente que ocorre nas Questões Disputadas sobre a Verdade (q. 1, a. 1, co.) nos
seguintes termos: “sicut in demonstrabilibus oportet fieri reductionem in aliqua principia per se
intellectui nota, ita investigando quid est unumquodque. (...) Illud autem quod primo intellectus
concipit quasi notissimum et in quod conceptiones omnes resolvit, est ens”. Esse mesmo
procedimento encontra-se no comentário ao De Trinitate (q. 6, a. 4): “(...) primae conceptiones
intellectus, ut entis, et unius, et huiusmodi, in quae oportet reducere omnes diffinitiones
scientiarum predictarum”. E também nas Questões Quodlibéticas (VIII, q. 2, a. 2) : “De quibus
etiam quid sint, scire non possumus nisi resolvendo in aliqua prius nota: et sic quosque
perveniamus usque ad primas conceptiones humani intellectus”. Cf. AERTSEN, J. Method and
metaphysics : the via resolutionis in Thomas Aquinas. NSch, 63, p. 415-418, 1989; Id. The
philosophical importance of the doctrine of transcendentals in Thomas Aquinas. RIPh, 2, p. 250-
256, 1998; Id. La Filosofía Medieval y los Transcendentales: un estudio sobre Tomás de Aquino.
Espanha: EUNSA, p. 81-87, 2004.
195
“Ad huius autem evidentiam sciendum est, qoud, cum duplex sit operatio intellectus:
una, qua cognoscit quod quid est (…); alia, qua componit et dividit: in utroque est aliquod
primum: in prima quidem operatione est aliquod primum, quod cadit in conceptione intellectus,
sciliect hoc quod dico ens; nec aliquid hac operatione potest mente concipi, nisi intelligatur ens. Et
quia hoc principium, impossibile est esse et non esse simul, dependet ex intellectu entis (...), ideo
hoc etiam principium est naturaliter primum in secunda operatione intellectus, scilicet
componentis et dividentis” (In Met. IV, lc. 6, n. 605).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 83
atos da razão são os primeiros princípios do próprio entendimento. Os primeiros
princípios do entendimento que são o terminus da resolução lógica são conhecidos
por si mesmos, imediatamente. A resolução lógica garante, assim, um modo de se
conhecer os primeiros princípios, evitando o problema do regresso ao infinito na
ordem da demonstração e da definição (via compositionis)
196
.
Assim como um regresso ao infinito na ordem da demonstração dos
princípios torna as demonstrações impossíveis, assim também um regresso ao
infinito na ordem das definições torna as mesmas inconcebíveis. A resolução
lógica das proposições no princípio de não-contradição e a resolução lógica das
definições nos conceitos transcendentais e, dentre estes, no ente (maxime primum)
é uma exigência tanto da justificação da ordem da demonstração quanto das
definições. Por essa razão, a resolução lógica não tem o caráter de descoberta
propriamente dita (ordo inventionis) dos princípios, mas de justificação de tudo
aquilo que pode ser reconduzido aos seus princípios (ordo judicii), ou melhor, de
tudo aquilo que pode ser evidenciado (visio) em seus princípios.
Nos limites do conhecimento puramente racional há, portanto, um duplo ato
correspondente à dupla via de conhecimento. O primeiro possui como termo a
descoberta (inventio) das conclusões. Trata-se da via de composição (via
compositionis) que envolve a dedução das conclusões a partir dos princípios (ex
primo). Essa via responde pela definição de ciência (ratio scientiae) como o
conhecimento necessário concluído a partir de algo previamente conhecido
197
. O
segundo possui como termo a justificação (via iudicii) das conclusões nos
princípios (in primo). Trata-se da via de resolução (via resolutionis) que
manifesta a certeza do assentimento dado à conclusão, aos efeitos, às coisas
mediatas uma vez que o intelecto as vê (visio) em seus princípios. A via de
resolução das proposições no princípio de não-contradição e das definições nos
conceitos transcendentais (maxime communia) é a única a evitar o regresso ao
infinito na ordem da demonstração e da definição.
Doravante, por resolutio lógica se entende um procedimento propriamente
racional capaz de reconduzir todas as cognições humanas aos seus princípios
próximos e destes aos princípios indemonstráveis, os quais são por si mesmos
196
Cf. In Anal., I, lc. 7
197
“(…) ratio scientiae consistat in hoc quod ex aliquibus notis alia necessario
concludantur” (In De Trin., q. 2, a. 2).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 84
conhecidos. Somente assim, nos diz Tomás, o juízo ou conclusão resultante de um
raciocínio encontra a certeza e a firmeza que é característica do assentimento
científico, posto que o homem não pode obter um juízo perfeito sobre qualquer
cognição exceto pela resolução nos primeiros princípios (in primo), e não somente
a partir deles (ex primo)
198
. É a necessidade de conduzir os pensamentos de
acordo com (per viam compositionis) e nos (per viam resolutionis) primeiros
princípios que justifica os sentidos de compositio e resolutio lógicas.
Do exposto até aqui, parece ser possível concluir que há quatro
características fundamentais da resolução e da composição lógica, que as tornam
paradigmáticas para as demais instâncias de raciocínio científico
199
. Em primeiro
lugar, a resolução e a composição lógica envolvem uma dinâmica entre os atos de
simples apreensão e os juízos na medida em que, por natureza, todo juízo é
compositivo em relação à simples apreensão que, por princípio, é incomplexa e
resolutiva, conforme a dupla abstração operada pelo intelecto agente (abstractio
totius ou abstractio formae). Por isso, a operação do intelecto que compõe e
divide resolve-se na simples abstração, pela qual o intelecto concebe o que é
(quod quid est), sem o qual não há demonstração quia nem propter quid.
Em segundo lugar, a resolução lógica está baseada no discernimento das
causas ou dos princípios formais e materiais das proposições e juízos que
compõem os raciocínios, enquanto a composição lógica já supõe como
determinados os princípios formais e materiais que garantem a validade e a
necessidade das conclusões.
Em terceiro lugar, a resolução lógica é denominada por Tomás de “via
iudicii” porque culmina na apreensão dos primeiros princípios a partir dos quais o
intelecto se assegura do estatuto de certeza que pertence aos juízos. Em contraste,
198
“Judicium enim perfectum haberi non potest de aliqua cognitione, nisi per resolutionem
ad principium unde cognitio ortum habet; sicut patet quod cognitio conclusionum ortum habet a
principiis; unde judicium rectum de conclusione haberi non potest nisi resolvendo ad principia
indemonstrabilia.” (In Sent. IV, d. 9, q. 1, a. 4, qc. 1, co. ); “Sed cogitationem causantem
assensum, et assensum terminantem cogitationem. Ex ipsa enim collatione principiorum ad
conclusiones, assentit conclusionibus resolvendo eas in principia, et ibi figitur motus cogitantis et
quietatur. In scientia enim motus rationis incipit ab intellectu principiorum, et ad eumdem
terminatur per viam resolutionis (QDV q. 14, a. 1, co.).
199
Cf. TAVUZZI, M. op. cit., p. 203-205. A parte judicativa, analítica ou resolutória, da
lógica serve como paradigma para os demais tipos de raciocínios nas ciências demonstrativas
enquanto, também estas, resolvem suas conclusões nos primeiros princípios (STh II-II, q. 53, a. 4,
co.; In Phys. I, lc. 1, n. 7; In Ethic. I, lc. 11, n. 7; III, lc. 8, n. 4; In Met. IV, lc. 5, n.1; In Met. IV,
lc. 6, n. 9; In De Trin., I, q. 2, a. 1, ad 5; III, q. 6, a. 1; In De Div. Nom., c. 4, lc. 7).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 85
a composição lógica é a “via inveniendi” pela qual a razão se move dos princípios
(por si mesmos conhecidos, ou ainda das definições, dos axiomas, etc.) às
conclusões.
Finalmente, a resolução lógica tem seu termo (terminus) no intelecto
(intellectus), isto é, seu movimento discursivo termina nos primeiros princípios,
nos quais encontra “repouso”, enquanto a composição lógica tem seu termo na
conclusão e seu princípio no intelecto. É patente, assim, de que modo a resolutio e
a compositio manifestam o “círculo” do conhecimento humano, que parte dos
princípios por compositio e retorna aos mesmos por resolutio.
2.4
Da via resolutionis e da via compositionis metafísica
Tomás de Aquino não se contentou em traçar as características universais da
resolutio relativamente aos raciocínios em geral, mas avançou no sentido de
indicar aplicações particulares da via iudicii no âmbito das três ciências
especulativas: física, matemática e metafísica. É essencial aos objetivos da
presente investigação determinar a natureza, a finalidade e a extensão da resolutio
e da compositio metafísica. Nosso objetivo imediato consiste em mostrar que: 1) a
via resolutionis e a via compositionis da metafísica são, antes de tudo, vias do
raciocínio, que supõem abstração e juízo, e não intuição intelectual; 2) a via
resolutionis não deve ser confundida com a separatio, assim como a via
compositionis não se reduz à additio; 3) a via de resolutionis é a responsável pela
fundação do conteúdo inteligível, irredutível e positivo da ratio entis, oriunda do
ser em ato (esse in actu), no ato de ser (ratio entis ab actu essendi sumitur); 4) a
via de resolutionis e a via compositionis em sede metafísica são espécies da via de
causalidade (via causalitatis), antecedendo à via de remoção (via remotionis) e à
via de eminência (via eminentia) no conhecimento do ipsum esse subsistens.
Como o tratamento mais extenso dado por Tomás à distinção e
complementaridade da via resolutionis e da via compositionis no âmbito da
metafísica se encontra em sua exposição incompleta sobre o De Trinitate de
Boécio, a mesma será o nosso principal guia. Antes, porém, de analisarmos os
pressupostos e as implicações teóricas da resolutio e da compositio no âmbito da
metafísica, apontaremos as semelhanças e diferenças existentes entre a via de
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 86
resolução e a de composição propriamente lógica e a via de resolução e
composição das ciências teóricas em geral. Em seguida, abordaremos a questão do
sujeito (subiectum) e do objeto especulável (obiectum speculabile) da metafísica,
uma vez que é sobre este que versa a resolutio e a compositio da “ciência divina”.
Neste momento, articularemos a questão do objeto próprio da metafísica com o
tema epistemológico da separatio, operação intelectual distinta da abstractio e
distintiva da metafísica, pela qual é apreendida a ratio entis
200
. Veremos, enfim,
como se define e se emprega a resolutio e a compositio no âmbito da metafísica, a
partir da especificidade de seu obiectum speculabile e da separatio operada pelo
intelecto face à ratio entis.
Em relação às implicações da resolutio e da compositio lógica nas demais
ciências, é preciso recordar que os raciocínios resolutivos e os compositivos nas
ciências teóricas possuem uma especificidade em relação aos raciocínios
resolutivos e compositivos da lógica, apesar da continuidade nocional existente
entre ambos. Como mostra Tavuzzi (1991, p. 205-207), tais semelhanças podem
ser descritas a partir das características comuns da resolutio científica em geral.
Afinal, a resolução lógica e a das demais ciências pertencem ao âmbito do
raciocínio e, portanto, supõem uma relação entre os atos de simples apreensão e
seus efeitos, bem como entre os atos da segunda operação do intelecto e seus
efeitos. Ambas destinam-se de modo semelhante ao discernimento das causas
formais e materiais (causas intrínsecas). Além disso, os raciocínios resolutivos em
geral terminam no intelecto (intellectus), ou seja, na apreensão dos primeiros
princípios. E, finalmente, a resolutio é sempre considerada como “via iudicii”, em
oposição à “via inveniendi” da compositio lógica e científica.
No que diz respeito às diferenças, a especificidade da resolutio no âmbito
das ciências teóricas revela-se quando se consideram três pontos fundamentais.
Em primeiro lugar, a resolução das ciências teóricas termina na apreensão dos
200
Os intérpretes contemporâneos de Tomás de Aquino concordam em considerar o ens in
quantum ens como expressão paradigmática do sujeito da ciência metafísica desde Aristóteles.
Mas, divergem quanto ao conteúdo do subiectum próprio da metafísica (há os que afirmam ser o
ente simplesmente ou o ente comum (ens commune), enquanto outros sustentam ser o ato de ser,
actus essendi). Atualmente, os tomistas dificilmente discutiriam sobre a especificidade da
separatio em relação à abstractio para a compreensão do modo pelo qual o intelecto apreende a
ratio entis como separável da matéria e do movimento. Todavia, divergem novamente sobre o que
pressupõe a separatio, sobre o seu efeito e seu alcance epistemológico para a metafísica. Mais
complexa ainda é a determinação na literatura contemporânea das relações entre o subiectum da
metafísica, a separatio e a resolutio.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 87
primeiros princípios da ciência em questão e não na apreensão dos primeiros
princípios da demonstração e do entendimento (objeto da resolutio lógica
201
).
Assim, a resolução nas ciências teóricas diz respeito aos primeiros princípios
relativos a cada um dos objetos próprios da ciência teórica em particular,
denominado por Tomás de “scibile” ou “obiectum speculabile”.
Em segundo lugar, como o termo da resolução no âmbito das ciências
teóricas são os primeiros princípios relativamente ao objeto próprio (scibile) de
cada ciência, há um vínculo essencial entre o termo da resolução científica e a
operação do intelecto pela qual o entendimento apreende seu obiectum
speculabile. Esta operação do intelecto, denominada por Tomás de abstração em
sentido lato, foi especificada acima como abstractio totius (comum às ciências em
geral), abstractio formae (própria da matemática) e separatio (própria da
metafísica).
Em terceiro lugar, a resolução nas ciências teóricas se distingue da resolução
lógica por operar tanto secundum rationem (por causas intrínsecas) quanto
secundum rem (por causas extrínsecas). Este último horizonte resolutivo no
âmbito das ciências teóricas não pode ser alcançado pela resolução lógica na
medida em que esta se limita ao discernimento dos princípios formais e materiais
(causas intrínsecas) dos argumentos e das proposições.
Enfim, a resolução nas ciências teóricas permite conhecer a realidade extra
animam na medida em que o obiectum speculabile de cada ciência não é somente
um ens rationis, mas são rationes cum fundamento in re. Com efeito, vimos que o
intelecto quando abstrai não considera a coisa diferentemente do que ela é
(abstrahens non considerat rem aliter quam sit). Por essa razão, em toda
resolução científica no âmbito das ciências teóricas emerge o valor insubstituível
da resolutio ad sensum, a partir do qual a ratio de cada uma das ciências, expressa
como o conteúdo de um conceito (obiectum speculabile), reencontra seu
201
Como é próprio do metafísico tratar os primeiros princípios de todas as coisas, cabe
também à filosofia primeira considerar os primeiros princípios da demonstração e do
entendimento, objeto da lógica. Todavia, enquanto o lógico considera os primeiros princípios do
entendimento relativamente às demonstrações (resolutio secundum rationem), o metafísico os
considera como fundados na própria natureza do ente enquanto tal. Com efeito, diz Aristóteles:
“Assim, pois, que é próprio do filósofo, isto é, do que contempla a natureza de toda substância
especular também sobre os princípios silogísticos, é evidente.” (Met., IV, 3, 1005 7-9). Cf. In Met.
IV, lc 6.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 88
fundamento real e objetivo
202
. Em suma, há uma patente complementaridade da
via de resolução e da via de composição aplicáveis às ciências particulares em
relação à resolução propriamente lógica.
Uma vez estabelecidas as semelhanças e diferenças entre a resolutio e a
compositio lógica e a resolutio e a compositio das ciências teóricas, deve-se
determinar o que é específico da resolutio e da compositio da metafísica. Mas,
como a especificidade da resolutio e da compositio dependem do objeto próprio
(obiectum speculabile) da metafísica, é necessário definir o seu sujeito
(subiectum
203
), antes de prosseguirmos
204
. Deve-se recordar que Tomás retoma a
definição aristotélica da metafísica como ciência do ente enquanto ente (ens in
quantum ens) a partir da distinção entre o objeto material desta ciência, que é o
ente (ens) e todo ente (omne ens), e o objeto formal que é o ente enquanto comum
a todas as coisas (ens commune)
205
. A afirmação de que o ente (id quod est) é o
objeto material da metafísica significa que esta ciência investiga tudo o que é em
sua máxima universalidade. Por seu turno, sustentar que o ens commune é o
objeto formal da metafísica significa que considera o ente a partir do que é
comum à natureza e ao ser de tudo o que é.
202
Enquanto Régis (1948, p. 321-322) chama atenção para o valor epistemológico da
resolutio ad sensum, qualificando-a como pedra angular do tomismo (“la clef de voûte du
Thomisme”), Tavuzzi (1991, p. 207-208) parece ignorá-lo por completo ao descrever as quatro
características fundamentais da resolução no âmbito das ciências teóricas.
203
Uma das características da noção de subiectum em Tomás é o seu caráter claramente
intencional e o realismo que isto comporta. Com efeito, no seu comentário sobre o De Trinitate de
Boécio (q. 5, a. 1, co.), Tomás especifica que as ciências teóricas ou especulativas possuem como
finalidade o conhecimento da realidade e, por esta razão, possuem por subiectum o que não é obra
do homem. Como cada ciência teórica tem um modo de consideração (modus considerandi)
próprio em razão de seu objeto, por “obiectum designa-se o modo peculiar com que a razão ou as
potências cognitivas do homem consideram o subiectum da ciência. Em outro lugar, lemos:
“oportet attendere distinctionem obiectorum secundum quod obiecta sunt differentiae actionum
animae et non secundum aliud” (Q.D. De Anima, a. 13).
204
Sobre o subiectum da metafísica, confira: ROBERT, J.-D. (1947, p. 206-222); RIET, G.
V. (1953, p. 384-393); RENARD, H. (1956, p. 64-74); MORENO, A. (1984, p. 580-585);
TAVUZZI, M. (1991, p. 205-219); ELDERS, L. (1995, vol. I, p. 21-38); WIPPEL, J. (2000, p. 11-
22).
205
“(...) considerat ut subiectum ipsum solum ens commune (...).Quamvis autem subiectum
huius scientiae sit ens commune, dicitur tamen tota de his quae sunt separata a materia secundum
esse et rationem” (In Met., proem.); “(…) inquantum haec scientia est considerativa entis” (In
Met., III, lc. 4, n. 384); “quod ad philosophum potius pertinet consideratio dignitatum, inquantum
ad ipsum pertinet consideratio entis in communi, ad quod per se pertinent huiusmodi principia
prima, ut maxime apparet in eo quod est maxime primum principium (...)” (In Met., III, lc. 5, n. 6);
“illam scientiam pertinet consideratio entis communis, ad quam pertinet consideratio entis primi,
ideo ad aliam scientiam quam ad naturalem pertinet consideratio entis communis; et eius etiam erit
considerare huiusmodi principia communia” (In Met., IV, lc. 5, n. 6). “ergo ens est subiectum
huius scientiae” (In Met., VI, lc. 1, n. 533) ; ”(...) ex quo ens est subiectum hiusmodi scientiae” (In
Met., VI, lc. 1, n. 1145).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 89
É preciso considerar ainda que o sujeito (subiectum) de uma ciência está
para a ciência, como o objeto (obiectum) está para a potência (potentia) ou hábito
(habitus). Por objeto de uma potência, Tomás entende aquilo sob cuja razão
(ratio) as coisas se referem à potência ou ao hábito. Por sujeito (subiectum) de
uma ciência, compreende aquilo do qual os predicados são atribuídos de acordo
com uma certa inteligibilidade (ratio), que é o modo próprio de consideração
(modus considerandi) do sujeito da ciência em questão
206
. Como Tomás insiste
com freqüência que o subiectum da metafísica é o ente (ens) considerado
enquanto ente (ens in quantum ens), ou seja, sob a razão de ente (ratio entis), resta
saber de que modo o intelecto pode considerar o ente enquanto tal, ou melhor, por
qual ato o intelecto apreende o ente sob a ratio entis.
Como o conhecimento humano tem seu princípio na apreensão da realidade
sensível, o que é apreendido primeiramente pelo intelecto é o ente enquanto
considerado nas coisas materiais (in rebus materialibus) sob a forma da qüididade
da coisa sensível
207
. Essa apreensão, de natureza abstrativa (abstractio totius sive
universalius), não é ainda a apreensão da ratio entis que se configura de modo
distinto como o obiectum speculabile da metafísica
208
. Todavia, é a partir desta
noção preliminar e indistinta de ente que o intelecto se forma o conteúdo
inteligível do qual emerge o especulável próprio da metafísica
209
. Como todo
especulável, o da metafísica deverá manter as mesmas propriedades dos demais, a
saber: imaterialidade, necessidade e universalidade
210
.
Mas, para que o objeto da ciência especulativa possua a forma de
universalidade, necessidade e imaterialidade é necessário uma certa remoção
206
“Sic enim se habet subiectum ad scientiam, sicut obiectum ad potentiam vel habitum.”
(STh I, q. 1, a. 7, co.)
207
“(...) nec primum obiectum intellectus nostri, secundum praesentem statum, est
quodlibet ens et verum; sed ens et verum consideratum in rebus materialibus (...)” (STh I, q. 87, a.
3).
208
O conceito de ens commune que expressa o conteúdo nocional necessário da ratio entis
não é equivalente ao primeiro conceito de ente (ens) que é primum cognitum. Este último não
prescinde da “quidditas rei sensibilis” porque é “ens concretum quidditais sensibili”. Eis a base
para a formação daquele objeto apropriado ao subiectum da ciência metafísica (“illud enim quod
primo acquiritur ab intellectu est ens, et id in quo non invenitur ratio entis non est capabile ab
intellectu” (In De Causis, l. 6)). Sobre o ens primum cognitum, confira: In Sent., I, d. 8, q. 4, a. 1,
ad 1; d. 13, q. 1, a. 3; De ente c. 5; SCG I, c. 26.
209
“Quaedam enim sunt quae possunt abstrahi etiam a materia intelligibili communi sicut
ens, unum, potentia et actus alia huiusmodi” (In De Trin., q. 5, a. 1, co.).
210
“Rationes autem universales rerum omnes sunt immobiles et ideo quantum ad hoc omnis
scientia de necessariis est. Sed rerum quarum sunt illae rationes, quaedam sunt necessariae et
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 90
(remotio) das potencialidades características da matéria individual e individuante.
Vimos que a separação da matéria se dá por uma dupla abstração, na ordem da
primeira operação do intelecto, e por uma separação, na ordem da segunda
operação do intelecto. Pela abstração, o intelecto pode considerar o que depende
da matéria secundum esse et secundum rationem ou tão somente o que depende da
matéria secundum esse, mas não secundum rationem. No primeiro caso, temos o
objeto especulável da física, que não pode ser concebido sem a matéria sensível.
No segundo caso, temos o objeto especulável da matemática, que pode ser
concebido sem a matéria sensível.
Com exceção da metafísica, Tomás entende que as ciências teóricas
apreendem seus objetos por abstração. Afinal, não é por um juízo que as ciências
distinguem a ratio que investigam da realidade material, ou seja, não é por um
juízo de composição ou divisão que as ciências descobrem a especificidade
proveniente da formalidade de seus objetos próprios, pois o objeto científico, em
sua constituição fundamental, só pressupõe a apreensão abstrativa, primeiramente
relativa às determinações essenciais do que é dado pelos sentidos.
Isso não significa que as ciências teóricas, diversas da metafísica, não
apreendem o ente, mas tão somente que o fazem de um modo particular, sob
determinado aspecto ou formalidade que não é comum a todo ente enquanto tal.
Visto deste modo, as ciências diversas da metafísica não prescindem da
consideração do ente, como se este fosse desconhecido por elas. Considerar o
conhecimento do ente como tarefa exclusiva da metafísica não responde às
exigências do pensamento de Tomás, porque o ente, sob a razão da qüididade,
também é objeto da primeira operação do intelecto. Por outro lado, as ciências não
deixam de captar os atos constitutivos das coisas, nem tampouco o ser das coisas
(esse rei) no juízo, ao afirmar que a realidade é tal qual é apreendida e não de
outro modo (abstrahens non considerat rem aliter quam sit). Mas, as ciências
teóricas não conhecem o ser da coisa sob a razão de ente (esse rei sub ratio entis)
porque não atingem o ato último e comuníssimo do ente enquanto tal. Em suma,
tanto a simples apreensão quanto o juízo conhecem a realidade da coisa (esse rei)
e, por conseguinte, as ciências cujos objetos se baseiam na simples apreensão
também podem conhecer a realidade da coisa. Mas, as ciências acentuam um
immobiles, quaedam contingentes et mobiles et quantum ad hoc de rebus contingentibus et
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 91
determinado aspecto formal da realidade que pode ser objeto de investigação
ulterior e mais universal, tarefa essencialmente metafísica.
Somente o metafísico pode considerar cada ente em particular e todos os
entes sob a razão comum de ente (omnia et alia entia sub ratione communis
entis). Por isso, a metafísica não pode fazer abstração propriamente dita das
diferenças que particularizam os entes, porque também estas são de certo modo
entes, incluindo-se no próprio objeto de investigação metafísica. Além disso, o
objeto especulável da metafísica não pode ser obtido por abstração porque, nesta
hipótese, dependeria de alguma consideração da matéria (sensível ou inteligível,
conforme se considere a duplex abstractio, abstração do todo ou da forma).
A abstractio formae não é suficiente para estabelecer o objeto próprio da
metafísica na medida em que, por ela, a forma é abstraída do sujeito material no
qual inere, mas não de toda matéria, pois a “matéria inteligível” entra em sua
definição (ratio). A abstractio totius serve à metafísica como a todas as ciências,
mas não é suficiente para estabelecer seu objeto próprio porque nela abstrai-se o
universal da realidade particular sensível, que deixa de entrar na definição do
“todo” ou do “universal” abstraído. Em ambos os casos, o intelecto considerará a
forma segundo a ordem predicamental ou categorial das coisas, mas jamais na
ordem transcendental (universal por excelência), requisito fundamental do
obiectum speculabile da metafísica. Por essas razões, o ato pelo qual o intelecto
realiza a consideração (consideratio) do ente enquanto tal é diverso da abstração,
sendo propriamente denominado de separatio
211
. Graças à separatio, o intelecto
atinge os objetos especuláveis que não dependem da matéria nem quanto ao ser
(secundum esse) nem quanto à razão ou definição (secundum rationem)
212
.
Entretanto, de modo semelhante à abstração, a separação enquanto ato da
segunda operação do intelecto tem como finalidade (terminus) evidenciar a
primazia do ato sobre a potência. Do ponto de vista subjetivo, o juízo negativo de
separação é o resultante de uma inquisição racional pela qual o intelecto, face ao
mobilibus dicuntur esse scientiae“ (In De Trin., q. 5, a. 2, ad 4 et 5).
211
“In his autem quae secundum esse sunt divisa magis locum habet separatio quam
abstractio” (In De Trin., q. 5, a. 3, co.). No De Veritate, Tomás parece conceder que a ratio entis é
apreendida por abstração: “(...), scilicet primae conceptiones intellectus, quae statim lumine
intellectus agentis cognoscuntur per species a sensibilibus abstractas, sive sint complexa, sicut
dignitates, sive incomplexa, sicut ratio entis, et unius, et huiusmodi, quae statim intellectus
apprehendit.” (QDV q. 11, a. 1, co.).
212
In De Trin., q. 5, a. 1, co.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 92
ser das coisas (esse rei), concentra-se em distinguir o conteúdo nocional
necessário do ente e de tudo o que está sob a sua razão (ratio entis) dos conteúdos
potenciais que o acompanham (materialidade e imaterialidade, p.ex.). Removidos
todos os conteúdos não-necessários ou potenciais das “rationes” que são
apreendidas pelo intelecto, o que permanece é sempre o ente
213
. Do ponto de vista
objetivo, o juízo negativo de separação manifesta que os entes sensíveis são
instâncias particulares da ratio entis, uma vez que atualizam de modo limitado,
em razão de sua potencialidade, o que pode (potest) ser independentemente
deles
214
.
A consideração (consideratio) do intelecto do que está sob a razão de ente
(ratio entis) revela que não há necessariamente nenhum vínculo entre a
inteligibilidade do ente (ratio entis) e a sua existência na matéria (“non est de
ratione eius ut sit in materia”). Se o intelecto não separasse a noção de
materialidade e de imaterialidade do que constitui necessariamente a ratio entis,
então a coexistência de entes materiais e imateriais seria contraditória e
impossível. Tanto a noção de materialidade quanto a de imaterialidade devem ser
negadas da ratio entis a fim de que sua universalidade seja verdadeiramente
máxima e comuníssima
215
.
A separatio operada pelo intelecto não significa, porém, uma exclusão
definitiva e positiva das noções de materialidade e imaterialidade da ratio entis.
Se assim fosse, ou bem a ratio entis tornar-se-ia um conceito vazio de ser em
geral incapaz de ser instanciado quer nos seres materiais quer nos imateriais, ou
bem as noções de materialidade e imaterialidade, que “caem” sob o seu domínio,
se transformariam em diferenças (differentiae) do conceito genérico de ente. Em
relação à primeira hipótese, deve-se dizer que os seres materiais e imateriais não
estão positivamente excluídos da ratio entis pela separatio uma vez que são
realizações atuais e particulares do seu conteúdo inteligível. Em relação à
213
“(…) quia remotis omnibus aliis, ultimo remanet ens” (In Sent., I, d. 8, q. 1, a. 3).
214
“(...) a separação baseia-se na primazia do ato. É um juízo fruto de uma inquisição
racional que, contemplando o ser das coisas, nos leva a descobrir aquelas partes dos entes que no
seu ser são independentes, devido à sua maior atualidade: o ser, o ato, a forma substancial, a alma,
a substância entendem-se não por abstração, mas sim por separação” (RAMOS, J. M. Abstração,
separação e método da metafísica segundo S. Tomás. In: Excerpta e dissertationes in philosophia.
Pamplona, p. 247, 2000).
215
“(…) ens et substantia dicuntur separata a materia et motu non per hoc quod de ratione
ipsorum sit esse sine materia et motu, sicut de ratione asini est sine ratione esse, sed per hoc quod
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 93
segunda, deve-se recordar que o ente não é um gênero. Assim sendo, a separatio
realiza o isolamento do conteúdo nocional da ratio entis, distinguindo o seu
constituinte necessário de inteligibilidade que não pode ser identificado nem com
a noção de materialidade nem com a de imaterialidade.
O que dissemos sobre a ratio entis aplica-se igualmente à ratio substantiae,
pois a noção ou conceito (conceptio) de substância inicialmente apreendida por
abstração (per species abstractas) está igualmente submetida àquela consideração
(consideratio) do intelecto, denominada propriamente de separatio e não de
abstractio
216
. Observe-se que Tomás não exclui a apreensão da substância por
abstração, mas diz que sua consideração “pertence mais” (pertinet magis) à
separatio do que à abstractio. De igual modo, o ente não está excluído da
abstração científica, mas “pertence mais” à separatio da metafísica. Todavia,
ainda que a noção preliminar de substância, assim como a de ente, tenha sua
origem em uma certa operação abstrativa do intelecto a partir da experiência
sensível, o intelecto pode (potest), graças ao juízo de separação (separatio),
analisar o seu conteúdo nocional (ratio) a ponto de o apreender como sendo
constituído necessariamente por uma independência em relação à matéria. Em
suma, não pertencem necessariamente à ratio entis e à ratio substantiae, dentre as
rationes que caem sob o domínio da investigação metafísica, a noção de
materialidade e imaterialidade, de mutabilidade ou imutabilidade.
Se o subiectum da metafísica é considerado sob a razão do ente e se esta não
é apreendida por abstração, mas sim por separação dos conteúdos nocionais que
não expressam necessariamente a ratio entis, então o objeto da metafísica não é
um a priori formal, nem tampouco o fruto de uma intuição, mas sim é o resultante
de um contínuo e gradativo processo de contemplação do ser das coisas (esse rei),
a partir do qual formamos a ratio entis, que reúne tudo o que é separável da
matéria e do movimento quanto ao ser (secundum esse).
Assim sendo, o objeto próprio da metafísica, o ente enquanto ente, o ente
sob a ratio entis, não pressupõe a demonstração da existência de pelo menos uma
de ratione eorum non est esse in materia et motu, quamvis quandoque sint in materia et motu, sicut
animal abstrahit a ratione, quamvis aliquod animal sit rationale“ (In De Trin., q. 5, a. 4, ad 5).
216
“Considerare substantiam magis pertinet ad genus separationis quam abstractionis” (In
De Trin. q. 5, a. 3, c.)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 94
realidade imaterial, como Deus ou a alma espiritual
217
. Com efeito, o subiectum da
metafísica é obtido pelas próprias operações do intelecto a partir da consideração
(consideratio) do que “entra” necessariamente na ratio entis. Pela separatio, o
intelecto apreende que o conteúdo nocional necessário do ente não inclui as
noções de materialidade e imaterialidade e, portanto, a ratio entis expressa sempre
a primazia do ato, do que pode ser separável da realidade material, ainda que, de
fato, exista em sua potencialidade. Diretamente conhecido nas coisas materiais (in
rebus materialibus), o ente se apresenta ao intelecto como podendo realizar-se
sem a matéria e sem o movimento, devendo, por conseguinte, ter a sua ratio
apreendida sem a matéria e sem o movimento. A separação (separatio) é, assim,
um corolário da remoção (remotio) da matéria e de sua potencialidade, desvelado
no juízo negativo de separação, condição suficiente para o estabelecimento do ens
commune como objeto próprio da metafísica.
A separação dos conteúdos não-necessários da ratio entis, tais como o de
materialidade e potencialidade, não implica na reclusão do obiectum speculabile
da metafísica à esfera dos seres imateriais. Em outros termos, dizer que o objeto
próprio da metafísica é o separável da matéria e do movimento não significa dizer
que a filosofia primeira considera os seres imateriais secundum esse et rationem.
217
Como pretende o Pe. Geiger (1947, p. 25): “(...) le jugement négatif, qui fonde
l’immatérialité de l’objet de la métaphysique, tire sa valeur objective de la démonstration de
l’existence des êtres immatériels par où s’achève la philosophie de la nature : premier moteur
immobile au huitième livre de la Physique, âme humaine avec l’intellect agente et l’intellect
possible au Traité de l’âme”. De acordo com G. Van Riet (1953, p. 387), para saber que a ratio
entis não implica realmente a matéria é preciso apoiar-se sobre a existência de seres imateriais, a
título de uma “simple necessitè psychologique”. Já o Pe. Antonio Moreno (1984, p. 594)
argumenta em favor da pressuposição da existência de Deus para a configuração do objeto da
metafísica nos seguintes termos: “What kind of spiritual being is required for the existence of
metaphysics? (…) Even more, Aquinas says that God is not parte of the subject of metaphysics,
only the cause of that subject. So, the discovery of the subject of metaphysics as separate from
matter and motion does not seem to require the knowledge of the existence of God. But it requires
the existence of at least one spiritual substance, which by exclusion, we have to conclude to be the
human soul”. No mesmo sentido do Pe.Geiger, defende L. Elders (1995, p. 24-25) que: “Ciò
prospetta la soluzione al nostro problema: per poter giungere allo studio dell’essere in quanto
essere, dobbiamo prima provare che esistono esseri immateriali. Solo sapendo con certezza che
può esistere una sostanza senza materia, e che essa non è solo un prodotto dell’immaginazione,
possiamo prendere in considerazione la sostanza in quanto tale, astratta dalla materialità.
Otteniamo questa certezza nella filosofia della natura quando, sulla base dell’analisi del processo
del pensiero, giungiamo alla conclusione che l’intelletto e il suo fondamento sostanziale (l’anima)
sono immaterialli. Giunti a questa conclusione, ci troviamo al limite tra la fisica e la metafisica, e
in procinto di iniziare lo estudio di quest’ultima“. Em nossa opinião, nada obsta que o metafísico
se sirva das demonstrações da filosofia da natureza e que esta seja como uma ciência propedêutica
em relação à metafísica. Todavia, se o objeto próprio da metafísica dependesse das demonstrações
de outras ciências para a especificação de seu subiectum, a metafísica não seria filosofia primeira
em sentido pleno, mas dependeria essencialmente de outra ciência para a sua constituição.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 95
Ao contrário, a metafísica não possui como sujeito próprio nem os objetos
materiais nem os imateriais, mas sim o ente sob a razão de ente
218
. É a ratio entis
que não depende da matéria nem quanto ao ser nem quanto ao seu conteúdo
nocional (secundum esse et rationem). Com isso, todos os entes considerados sob
a razão própria de ente pertencem à metafísica, na medida em que todas as coisas
são entes e participam da razão comum de ente (participant communem rationem
entis)
219
.
É notório que a formação da ratio ou conceptio do ente só é possível porque
em todas as operações do intelecto o que é primeiramente apreendido é o ente, que
está implícito essencialmente em todas as rationes abstractas. Para Tomás, é
suficiente a consideração (consideratio) do que é comum a todas as coisas e às
suas rationes para que o intelecto se forme a ratio entis, como objeto comum a
toda intelecção. Conseqüentemente, os objetos próprios das distintas ciências
estão para o objeto próprio da metafísica como uma limitação da extensão e da
perfeição implicada na ratio entis, que é pressuposta em todo ato de intelecção e
em toda consideração das coisas que existem extra animam.
Não é demasiado insistir que, se o ente é comum não o é em razão de uma
abstração formal deste ou daquele aspecto essencial da coisa (res), mas sim
porque a ratio entis excede ou transcende os limites desta ou daquela coisa
singular, em que está instanciada, bem como os limites dos conceitos (rationes),
obtidos por abstração. Por isso, a ratio entis obtida por separatio e não abstractio
difere das noções universais genéricas não somente pela amplitude ilimitada de
sua extensão, mas, sobretudo, pela plenitude de sua compreensão. Em outras
palavras, a ratio entis pode ser realizada segundo sua definição própria em
sujeitos que diferem essencialmente entre si, pois a ratio entis é predicada
essencialmente de tudo o que é, incluindo-se aqui as suas diferenças específicas e
individuais.
218
“(...) ens et substantia dicuntur separata a materia et motu non per hoc quod de ratione
ipsorum sit esse sine materia et motu, sicut de ratione asini est sine ratione esse, sed per hoc quod
de ratione eorum non est esse in materia et motu, quamvis quandoque sint in materia et motu, sicut
animal abstrahit a ratione, quamvis aliquod animal sit rationale” (In De Trin., q. 5, a. 4, a. 5).
219
“Advertendum est autem quod licet ad considerationem primae philosophiae pertineant
ea quae sunt separata secundum esse et rationem a materia e motu, non tamen solum ea sed etiam
de sensibilibus inquantum sunt entia” (In Met., VI, lc. 1, n. 1165). “(...) metaphysicus considerat
etiam de singularibus entibus non secundum proprias rationes, per quas sunt tale vel tale ens, sed
secundum quod participant communem rationem entis, et sic etiam pertinet ad eius
considerationem materia et motus.” (In De Trin., q. 5, a. 4, ad 6).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 96
Com isto em mente, deve-se evitar a identificação do juízo negativo de
separação com a constatação de que “há pelo menos um ente que não seja
material”, o que pressupõe necessariamente a demonstração da existência de pelo
menos um ente que seja imaterial
220
. Tal juízo não é ainda o juízo de separatio do
qual fala Tomás, embora se encontre nele um termo negativo. Com efeito, o juízo
relativo à existência de pelo menos um ser imaterial é um juízo que versa sobre
um ser em particular e não sobre o que é de domínio exclusivo da ratio entis e
comum a todas as coisas. Em outros termos, não se assume neste tipo de juízo o
ente em sua máxima extensão como sujeito de predicação. Ao contrário, trata-se
de um juízo sobre um ente em particular do qual se exclui efetivamente a
materialidade. O juízo de separatio propriamente metafísico é aquele que assume
o ente enquanto tal, a ratio entis como seu sujeito e, a partir daí, considera o seu
conteúdo inteligível irredutível e necessário.
Os juízos negativos de separação revelam o subiectum da metafísica na
medida em que excluem negativamente do conteúdo nocional da ratio entis tudo o
que não lhe pertence necessariamente. Esses juízos poderiam ser exemplificados
como: “à ratio entis não pertence necessariamente a materialidade nem a
imaterialidade”; “à ratio entis não pertence necessariamente a mutabilidade nem a
imutabilidade”; “à ratio entis não pertence necessariamente o ser causado nem o
ser causa”; “à ratio entis não pertence necessariamente a imaterialidade e a
imutabilidade, puramente atual”; “à ratio entis não pertence necessariamente o ser
substância nem o ser acidente”; “à ratio entis não pertence necessariamente a
atualidade nem a potencialidade”, etc. Em todos estes casos, o que se exclui
negativamente da ratio entis é o que não expressa de modo essencial e necessário
a sua inteligibilidade ou o seu conteúdo nocional. Somente a separatio pode
“libertar” a ratio entis das restrições provenientes da apreensão do ente nas coisas
materiais. Este é o caminho escolhido por Tomás para justificar a legitimidade da
metafísica enquanto ciência do ente enquanto tal e não como ciência do ente
enquanto material, mutável, quantificável, etc.
220
“D’altra parte un giudizio negativo riguardante la realtà afferma che è separato ciò che è
realmente separato. In relazione alla constituizone della metafisica, “separazione” non significa
altro che affermare che non tutti gli esseri sono materiali (...)” (ELDERS, L. op. cit., 1995, vol. 1,
p. 32).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 97
O único conteúdo inteligível que não pode ser separado da ratio entis, do
ens commune é o ser (esse). Com efeito, seria contraditório afirmar que: “à ratio
entis não pertence necessariamente ser ou não-ser”. Em outros termos, a separatio
remove tudo o que não é necessariamente pertencente à ratio entis, exceto o ser
(esse), que entra necessariamente na “definição”, ou melhor, na explicitação de
tudo o que é enquanto tal. Assim sendo, o esse é o conteúdo inteligível irredutível
e necessário que resiste positivamente à todas as remoções operadas pela
separatio em relação à ratio entis, ao ens commune. Entretanto, o esse como
conteúdo irredutível da ratio entis não é ainda o esse ut actus essendi (objeto de
resolução metafísica e não da separatio), mas sim o esse commune.
Afirmar a prioridade da ratio entis em relação às demais rationes
investigadas pelo metafísico significa compreender a emergência da ratio entis
como transcendental (maxime commune) às demais rationes. Ainda que Tomás
reconheça uma pluralidade de “concepções primeiras” (primae conceptiones), tal
como res, unum, verum, bonum, aliquid), o ente (ens) tem prioridade pois é
maximamente primeiro entre os transcendentais
221
. Como explica Tomás, o
verdadeiro não pode ser concebido sem o ente, pois a ratio entis está implicada na
inteligibilidade do verdadeiro, mas o ente pode ser concebido sem o verdadeiro
uma vez que “verum non est in ratione entis
222
. O mesmo procedimento de
separação (separatio) expresso no juízo “verum non est in ratione entis” poderia
ser aplicável à bondade (bonum) e aos demais transcendentais de tal forma que se
evidenciaria a pressuposição da ratio entis na intelecção de todos os
221
Cf. AERTSEN, J. op. cit., p. 252-254, 1998.
222
“Nihilominus tamen alia est ratio veri et alia ratio entis. Dupliciter enim dicitur aliquid
non posse intelligi sine altero. Aut ita quod unum non possit intelligi si non ponatur alterum esse;
et sic dicitur quod esse non potest intelligi sine vero, sicut etiam non potest intelligi sine hoc quod
est esse intelligibile. Sive ita quod quandocumque intelligitur unum, intelligatur alterum; sicut
quicumque intelligit hominem intelligit animal. Et hoc modo esse potest intelligi sine vero, sed
non e converso: quia verum non est in ratione entis, sed ens in ratione veri; sicut potest aliquis
intelligere ens, et tamen non intelligit aliquid de ratione intelligibilitatis; sed nunquam potest
intelligi intelligibile, secundum hanc rationem, nisi intelligatur ens. Unde etiam patet quod ens est
prima conceptio intellectus.” (In Sent., I, d. 19, q. 5, a. 1, ad 2); “(...) dicendum quod, cum dicitur
quod ens non potest apprehendi sine ratione veri, hoc potest dupliciter intelligi. Uno modo, ita
quod non apprehendatur ens, nisi ratio veri assequatur apprehensionem entis. Et sic locutio habet
veritatem. Alio modo posset sic intelligi, quod ens non posset apprehendi, nisi apprehenderetur
ratio veri. Et hoc falsum est. Sed verum non potest apprehendi, nisi apprehendatur ratio entis, quia
ens cadit in ratione veri. Et est simile sicut si comparemus intelligibile ad ens. Non enim potest
intelligi ens, quin ens sit intelligibile, sed tamen potest intelligi ens, ita quod non intelligatur eius
intelligibilitas. Et similiter ens intellectum est verum, non tamen intelligendo ens, intelligitur
verum.” (STh I, q. 16, a. 3, ad 3).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 98
transcendentais, mas não o inverso, pois os mesmos não pertencem
necessariamente à ratio entis
223
.
Do exposto até aqui, parece claro que a vantagem epistemológica da
separatio em relação à abstractio em sentido estrito consiste em que a apreensão
da ratio entis se dá por um processo racional, mais especificamente por um
procedimento da segunda operação do intelecto, capaz de atingir o que é maxime
commune a todas as coisas e noções (rationes). Neste sentido, a separatio não
ocorre por uma apreensão intuitiva do conteúdo da ratio entis ou do seu ponto de
partida dado na apreensão do ente nas coisas materiais (in rebus materialibus).
Afinal, o intelecto opera em direção à apreensão do ente a partir da gradativa
negação das noções (rationes) que não expressam necessariamente seu conteúdo
nocional ou sua inteligibilidade (ratio) porque limitam a atualidade da ratio entis,
sua extensão e plenitude nocional. Essa operação não pressupõe uma apreensão a
priori da ratio entis, o que significaria um circulus viciosus
224
. Isso torna o
subiectum da metafísica passível de justificação e elucidação a partir da
consideração da especificidade da separatio em relação à abstração.
Abordar a separatio em toda a sua dimensão epistemológica significa
reconhecê-la como ato da segunda operação do intelecto pelo qual o mesmo
transcende todas as limitações ou modos particulares nos quais o ente se realiza, a
fim de apreender a sua ratio irredutível e necessária. Entretanto, não se deve supor
que a separatio, ao revelar a transcendência da ratio entis em relação às demais
rationes abstratas, oponha-as como realidades antagônicas e contraditórias. Ao
contrário, toda e qualquer ratio participa de modo imanente da ratio entis, ou seja,
da comum razão de ente.
O momento epistemológico da separatio justifica-se diante da necessidade
de separar tudo aquilo que não pertence necessariamente à ratio entis, ao ens
commune, objeto da metafísica. Mas, não se deve olvidar que esta separação não
se opõe ao juízo compositivo no qual se evidencia que a ratio entis é predicado
essencial de todos os entes singulares e de todas as suas rationes. Essa predicação
223
“Non est autem inconveniens quod in aliquo ente secundum rationem non sit bonum vel
ratio boni, cum ratio entis sit prior quam ratio boni, sicut supra dictum est.” (STh I, q. 5, a. 3, ad
4).
224
É o que demonstra Tavuzzi (1991, p. 215): “Now the great value of this procedure is that
it enables the mind to move gradually towards the seizure of the ratio entis, by negating of it (in
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 99
não é de ordem categorial ou genérica, mas transcendental, pois nada pode ser
adicionado (additio) ao ente que lhe seja estranho.
Tudo o que investigamos até o presente momento a respeito do itinerário
filosófico de Tomás a partir da polissemia das noções de resolutio e compositio
ordena-se à compreensão das vias filosóficas que o guiam na descoberta e na
demonstração dos princípios e das causas, intrínsecas e extrínsecas, do ente sub
ratione entis. Corresponde este momento ao aspecto propriamente crítico do
conhecimento metafísico porque a determinação da ratio entis como objeto formal
da metafísica constitui-se como a condição transcendental de qualquer objeto.
Nenhum conhecimento pode postular um objeto que tenha precedência em relação
à ratio entis. Nada pode estar em relação ao objeto formal da metafísica como seu
critério de juízo e determinação, pois o ente é a ratio mais universal e comum a
tudo o que é, sendo sempre pressuposto em qualquer cognição. A metafísica
obtém o conhecimento de seu objeto formal de modo gradativo, em conformidade
com a imanência e a transcendência da ratio entis.
Uma vez estabelecidos o obiectum speculabile da metafísica bem como a
separatio como ato pelo qual o intelecto apreende o seu conteúdo nocional
necessário (ratio entis), devemos abordar a resolução e a composição como vias
do raciocínio metafísico. A separatio conduziu-nos à afirmação do conteúdo
inteligível necessário da ratio entis, doravante identificado com o ens commune e
o esse commune. Ora, é uma regra da compreensão aristotélica de ciência que
pertence a uma só e mesma ciência investigar o seu sujeito próprio (genus
subiectum) bem como suas causas. Neste prisma, é tarefa do metafísico investigar
o ente sob a razão de ente bem como as suas causas e os seus princípios
próprios
225
. Todavia, a separatio por si só não permite-nos conhecer os princípios
e as causas do ens commune, tarefa essencial da metafísica enquanto ciência. Essa
tarefa é realizada pelas vias de resolução (via resolutionis) e composição (via
compositionis), enquanto vias do conhecimento pelas causas (via causalitatis).
the manner indicated) what cannot possibly pertain to it as a necessary constituent, without at the
same time presupposing a prior grasp of the ratio entis (which would involve circular reasoning)”.
225
“(...) ergo ens est subiectum huius scientiae, quia quaelibet scientia est quaerens causas
proprias sui subiecti” (In Met., IV, n. 533); “Eiusdem autem scientiae est considerare causas
proprias alicuius generis et genus ipsum: sicut naturalis considerat principia corporis naturalis.” (In
Met., prol.).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 100
A principal e mais detalhada exposição destas vias enquanto vias do
conhecimento das causas encontra-se, sem dúvida, na seguinte passagem do
comentário ao De Trinitate de Boécio, em que Tomás precisa de modo definitivo
o que entende sobre o modo de investigar (modus investigandi) da metafísica ou
“ciência divina”:
Assim, portanto, é patente que a consideração racional termina na intelectual de
acordo com a via de resolução, na medida em que a razão recolhe a verdade uma e
simples a partir de muitos; reciprocamente, a consideração intelectual é o princípio
da racional de acordo com a via de composição ou de invenção, na medida em que
o intelecto abarca a multidão em um. Portanto, a consideração que é o término de
todo o raciocínio humano é por excelência consideração intelectual. Ora, toda
consideração da razão na via de resolução em todas as ciências termina na
consideração da ciência divina. De fato, a razão, como foi dito anteriormente,
procede, às vezes de um [conhecimento] ao outro de acordo com a coisa [secundum
rem], como quando se trata de uma demonstração pelas causas ou efeitos
extrínsecos; por composição, quando se procede das causas para os efeitos, e como
que por resolução, quando se procede dos efeitos para as causas, porque as causas
são mais simples e persistem de modo mais imutável e uniforme do que os efeitos;
logo, o termo último de resolução nesta via é quando se chega às causas supremas,
simples por excelência, que são as substâncias separadas. Às vezes, porém, procede
de um [conhecimento] ao outro de acordo com a noção [secundum rationem],
como quando se dá um procedimento de acordo com as causas intrínsecas; por
composição, quando se procede das formas universais por excelência para o que é
mais particular; por resolução, quando se procede ao inverso, porque o mais
universal é mais simples; ora, o universal por excelência é o que é comum a todos
os entes, e, assim, o termo último de resolução nesta via é a consideração do ente e
do que cabe ao ente enquanto tal.
226
O texto acima representa uma significativa releitura dos conceitos de
resolutio e compositio em relação às demais acepções previamente examinadas.
Afinal, Tomás já não fala mais em termos da divisão do todo em suas partes, do
226
“Sic ergo patet quod rationalis consideratio ad intellectualem terminatur secundum viam
resolutionis, in quantum ratio ex multis colligit unam et simplicem veritatem. Et rursum
intellectualis consideratio est principium rationalis secundum viam compositionis vel inventionis,
in quantum intellectus in uno multitudinem comprehendit. Illa ergo consideratio, quae est terminus
totius humanae ratiocinationis, maxime est intellectualis consideratio. Tota autem consideratio
rationis resolventis in omnibus scientiis ad considerationem divinae scientiae terminatur. Ratio
enim, ut prius dictum est, procedit quandoque de uno in aliud secundum rem, ut quando est
demonstratio per causas vel effectus extrinsecos: componendo quidem, cum proceditur a causis ad
effectus; quasi resolvendo, cum proceditur ab effectibus ad causas, eo quod causae sunt effectibus
simpliciores et magis immobiliter et uniformiter permanentes. Ultimus ergo terminus resolutionis
in hac via est, cum pervenitur ad causas supremas maxime simplices, quae sunt substantiae
separatae. Quandoque vero procedit de uno in aliud secundum rationem, ut quando est processus
secundum causas intrinsecas: componendo quidem, quando a formis maxime universalibus in
magis particulata proceditur; resolvendo autem quando e converso, eo quod universalius est
simplicius. Maxime autem universalia sunt, quae sunt communia omnibus entibus. Et ideo
terminus resolutionis in hac via ultimus est consideratio entis et eorum quae sunt entis in quantum
huiusmodi.” (In De Trin., q. 6, a.1, co.)
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 101
composto nos seus elementos mais simples (resolução holológica), nem da
abstração do todo da parte, do universal do particular ou da forma da matéria
(resolução por abstração). Essa reelaboração deve-se, por um lado, à consciência
da especificidade do obiectum speculabile da metafísica, obtido por separatio. Por
outro lado, deve-se à própria emergência do esse como princípio original e
fundante dos entes como característica distintiva da metafísica tomista, cujo
corolário epistemológico é a especificação da via filosófica da causalidade (via
causalitatis) como via resolutiva e compositiva, ou seja, como processos distintos
de fundação e derivação de todas as coisas no e a partir do ser (esse).
Em primeiro lugar, Tomás afirma que o termo da consideração racional é a
intelectual na ordem de resolução, pois a razão recolhe (colligit) a verdade una a
partir do múltiplo. Como a ordem de resolução é inversa à ordem de composição,
a consideração intelectual é o princípio da racional na medida em que o intelecto
abarca o múltiplo a partir de um único princípio. Mais uma vez a relação entre a
resolutio e a compositio expressa o dinamismo “circular” da inteligência humana
que tanto parte dos princípios por composição quanto retorna aos mesmos por
resolução. Em seguida, Tomás explicita que todas as ciências se resolvem na
ciência divina, assim como todo raciocínio se resolve no intelecto, ou seja, na
apreensão dos primeiros princípios.
A ordenação de todas as ciências à ciência divina justifica-se, em primeiro
lugar, porque as ciências particulares assumem da ciência mais universal seus
conceitos por via de composição (via compositionis). Os conceitos mais
universais são comuns a todas as ciências, como o conceito de causa, efeito,
relação, unidade, ente, matéria, forma, etc
227
. Além disso, as conclusões das
ciências particulares se resolvem em princípios particulares e comuns; mas, os
princípios mais universais e comuns a todas as ciências particulares se resolvem,
por sua vez, nos princípios universalíssimos e comuníssimos da filosofia ou
ciência primeira
228
. De tal modo que compete à filosofia enquanto ciência
227
“(...) primae conceptiones intellectus, ut entis, et unius, et huiusmodi, in quae oportet
reducere omnes diffinitiones scientiarum predictarum.” (In De Trin., q. 6, a. 4) ; “De quibus etiam
quid sint, scire non possumus, nisi resolvendo in aliqua prius nota: et sic quousque perveniamus
usque ad primas conceptiones humani intellectus” (Quodl., VIII, q. 2, a. 2)
228
Isto é patente no comentário de Tomás ao quarto livro da Metafísica, quando trata da
resolução de todos os princípios no princípio de não-contradição, do seguinte modo: “Et propter
hoc omnes demonstrationes reducunt suas propositiones in hanc propositionem, sicut in ultimam
opinionem omnibus communem: ipsa enim est naturaliter principium et dignitas omnium
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 102
universal e primeiríssima conduzir as ciências particulares à sua finalidade
229
.
Com isso, se esclarece também que a ciência divina ou metafísica na ordem de
composição é primeira em relação às demais ciências, que recebem dela seus
princípios mais universais e comuns, justificando a razão de ser “filosofia
primeira”. Mas, na ordem de resolução, a ciência divina é última, pois é posterior
à física (transphysicam), o que esclarece a razão de ser “meta-física”.
Após afirmar a resolução das demais ciências na filosofia enquanto ciência
primeira e divina, Tomás introduz dois pontos importantes. O primeiro, diz
respeito à distinção entre a ordem de consideração intelectual secundum rem e a
ordem de consideração intelectual secundum rationem. O segundo, diz respeito
justamente à diversidade das vias ou dos modos de proceder do homem em sua
busca da verdade, ou seja, a distinção entre a via resolutionis e a via
compositionis.
Em relação ao primeiro ponto, deve-se observar que a razão pode se mover
do conhecimento de uma coisa mais conhecida (ex aliquo prius noto
230
) ao
conhecimento de outra menos conhecida, quer isto ocorra secundum rem, quer
secundum rationem. No primeiro caso, a investigação concentra-se na
demonstração das causas ou efeitos extrínsecos, no segundo almeja as causas
intrínsecas. Nestes dois casos, a passagem de um conhecimento a outro pode dar-
se tanto pela via da resolução (via resolutionis) quanto pela via da composição
(via compositionis). Na ordem de consideração secundum rem, a via da resolução
deter-se-á na busca das causas extrínsecas a partir dos efeitos, enquanto a via da
composição realizar-se-á com o procedimento inverso, ou seja, das causas
extrínsecas para os efeitos. Já na ordem de consideração secundum rationem, a
demonstração das causas intrínsecas ocorre tanto pela resolução das formas
particulares nas formas mais universais, quanto pela composição, em sentido
inverso. Como o que é primeiro na composição é último na resolução e vice-versa,
dignitatum. (...) inquantum in hanc reducunt demonstrando omnia, sicut in ultimum resolvendo”
(In Met., IV, lc. 6, 603-604).
229
“Omnes autem scientiae et artes ordinantur in unum, scilicet ad hominis perfectionem,
quae est eius beatitudo. Unde necesse est, quod una earum sit aliarum omnium rectrix, quae nomen
sapientiae recte vindicat. nam sapientis est alios ordinare”. (In Met., proem.).
230
In De Trin., q. 5, a. 1, ad 9. “In scientiis speculatiuis semper ex aliquo prius noto
proceditur, tam in demonstrationibus propositionum, quam etiam in inuentionibus diffinitionum
(...)” (In De Trin., q. 6, a. 4, co.).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 103
há patente complementaridade em ambas as vias
231
. A exposição do De Trinitate
não deixa dúvida quanto à pertinência da compositio para a metafísica. A via
compositionis é definida concomitantemente e paralelamente à via resolutionis,
como um dos modos de proceder da ciência divina.
Não se deve identificar, portanto, o processo discursivo da razão pelas
causas intrínsecas com a mera análise dos conceitos. A análise dos conceitos,
tarefa da resolutio lógica, pode ser entendida quer como a passagem do universal
confuso ao que é mais distinto em si mesmo, como ocorre na divisão do todo em
suas partes, quer ainda como a transição dos conceitos menos comuns aos
comuníssimos e universais, como deve ocorrer na redução de todos os conceitos
aos transcendentais na ordem da definição. Por isso, afirmar que a resolução
secundum rationem é equivalente à análise dos conceitos é, por um lado, negar a
especificidade da via causalitatis presente na resolutio secundum rationem. Por
outro lado, consiste em negligenciar as diversas acepções que a expressão “análise
de conceitos” pode obter do estudo da resolutio no corpus thomisticum.
Como defende Jan Aertsen (1989, p. 414-415), o que qualifica a distinção
entre a resolutio secundum rationem e a resolutio secundum rem é o “outro” para
ao qual se dirige o discurso racional resolutivo que procede de um a outro (ab uno
in aliud). Esse “outro” não é necessariamente outra coisa (res) separada realmente
daquilo do qual se procede. Tomás não está pressupondo que o discurso resolutivo
procede necessariamente de uma coisa à outra (ab una re in aliud re) que são
realmente separadas entre si (separatio inter rem et rem). Ao contrário, a razão
procede secundum rationem quando almeja demonstrar as causas intrínsecas, ou
seja, material e formal na e da própria coisa (in re). Ao proceder secundum rem, a
razão investiga as causas extrínsecas, ou seja, eficiente e final da própria coisa.
Somente neste último caso, por ser relativa às causas extrínsecas, há passagem de
uma coisa à outra realmente separada (inter rem et rem).
O termo da resolução é, obviamente, diverso para cada um dos casos ou
ordens consideradas. No primeiro caso, o termo último da resolução são as causas
extrínsecas, simples por excelência e separadas das coisas sensíveis. No segundo,
o termo último da resolução são os princípios intrínsecos mais universais e
231
“(...) quod est enim ultimum in resolutione, oportet esse primum in compositione” (In
Met., V, 4); “(...) quod enim est primum in resolutione, est ultimum in compositione” (In Sent., III,
d. 2, q. 2, a. 1).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 104
comuns a todos os entes. Ambos os termos das resoluções, a saber, as substâncias
separadas na via das causas extrínsecas (secundum rem) e os princípios intrínsecos
mais universais e comuns a todos os entes na via das causas intrínsecas (secundum
rationem) constituem o objeto de investigação da metafísica. Afinal, compete a
uma só e mesma ciência estudar o seu sujeito próprio (genus subiectum) e as suas
causas intrínsecas (resolutio e compositio secundum rationem) e extrínsecas
(resolutio e compositio secundum rem).
Na medida em que é próprio do conhecimento humano encontrar a
unidade em meio à diversidade do real, é sua tarefa resolver o que é menos
comum no mais comum, o que é menos universal no mais universal, o que é
composto no que é simples, o que é por participação no que é por essência, o que
é por outro no que é por si, o efeito na causa. A resolutio exprimirá, doravante,
uma certa transição do pensamento, um modo fundamental de proceder
racionalmente (rationaliter procedere) de algo conhecido em outro que é sempre
primeiro (in primo). A via de resolução é uma via de fundação pela qual torna-se
possível a ascensão ao que há de mais inteligível e universal em tudo o que é,
tendo como ponto de partida o que é mais acessível ao conhecimento humano.
Destarte, a unidade dos princípios e das causas primeiras mais comuns, simples e
universais será sempre o termo de toda investigação metafísica estruturada
segunda a via da resolução
232
.
É igualmente próprio do conhecimento humano proceder do uno ao
múltiplo, do mais comum ao menos comum, do mais universal ao menos
universal, do simples ao composto, do que é por essência ao que é por
participação, do que é por si ao que é por outro, dos princípios ou das causas aos
seus efeitos. Eis o proceder daquele que investiga a verdade do ente segundo a via
da composição (via compositionis), a qual responde pela própria definição de
ciência (ratio scientiae) como o conhecimento necessário de uma coisa a partir de
outra previamente conhecida (ex primo). A compositio resulta, portanto, de um
modo propriamente intelectual (versari intellectualiter) de proceder a partir do
que há de mais inteligível e universal em tudo o que é.
A continuação do texto é decisiva para o esclarecimento da novidade
introduzida por Tomás com a via da resolução como método metafísico por
232
“(...) sed oportet omnia reducere in unum principium primum” (QDP, q. 3, a. 6, co.).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 105
excelência. Considerando que a resolução visa sempre o que há de mais universal,
comum e simples, quer na ordem das causas extrínsecas (secundum rem) quer na
ordem das causas intrínsecas (secundum rationem), haveria um termo último de
toda resolução metafísica secundum rationem? A julgar pelo que Tomás explicita
no prólogo do Comentário à Metafísica e no Comentário ao Tratado da Trindade,
o que é último na resolução é o ente (ens) que é primeiro na ordem do conhecer
233
e do ser (primum in esse)
234
. Assim sendo, a resolução secundum rationem
termina no que transcende aos modos particulares (categoriais) do ente, para
atingi-lo sub rationes entis.
Não obstante, em Tomás, a descoberta metafísica do ser (esse) como ato e
perfeição intrínseca e primeiríssima de todos os entes (actus essendi) exige
qualificar o termo último da resolução metafísica como sendo o ser (esse ut actus
essendi). É justamente no segundo artigo da nona questão do De Potentia que
encontramos a resolução de todas as perfeições do ente (ens) no ser (esse) – ao
qual retornaremos mais adiante em nossa exposição. Nele, Tomás afirma que o ser
(esse) é o ato de todos os atos, a perfeição de todas as perfeições, maximamente
comum e universal em todos os entes
235
.
Considerando-se, portanto, que o termo último da resolução metafísica, em
Tomás de Aquino, será sempre o ser (esse), torna-se evidente de que modo se
unem e se diversificam os termos das resoluções secundum rem e secundum
rationem. Secundum rationem, o termo da resolução será o próprio ser (ipsum
esse), compreendido como ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições
dos entes. Secundum rem, o termo da resolução será a causa extrínseca
233
A demonstração dos transcendentais no De Veritate constitui uma das mais notáveis
aplicações da via de resolução ou redução. O seu termo último é o ente, no qual se resolvem todos
os demais conceitos gerais, conforme explica Tomás nos seguintes termos: “Dicendum quod sicut
in demonstrabilibus oportet fieri reductionem in aliqua principia per se intellectui nota, ita
investigando quid est unumquodque (...). Illud autem quod primo intellectus concipit quasi
notissimum, et in quod conceptiones omnes resolvit, est ens, ut Avicenna dicit in principio suae
Metaphysicae.” (QDV, q. 1, a. 1, sol.).
234
Isto é evidente também no Comentário às Sentenças: “Praetera, illud quod est ultimum
in resolutione, est primum in esse. Sed ens, ultimum est in resolutione intellectus: quia remotis
omnibus aliis, ultimo remanet ens. Ergo est primum naturaliter” (In Sent., I, d. 8, q. 1, a. 3).
235
“(...) quod hoc dico esse est iinter omnia perfectissimum (...). Unde patet quod hoc quod
dico esse est actualitas omnium actum, et propter hoc est perfectio omnium perfectionum”. (QDP,
q. 7, a. 2, ad. 9).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 106
primeiríssima de tudo o que é, o próprio ser subistente (ipsum esse subsistens)
236
.
Deste modo, o que por último o intelecto apreende e no qual resolve todas as suas
concepções é o ens enquanto primeiro transcendental (maxime primum) e o actus
essendi enquanto princípio formalíssimo e primeiríssimo do ente. Mas, a
resolução secundum rationem cujo terminus é sempre o primeiro transcendental
deve culminar na causa transcendente de todas as coisas, como ápice (cacumen
237
)
de sua investigação intelectual. Sem a adequada resolução dos entes em suas
causas intrínsecas (secundum rationem), não se pode justificar a passagem
resolutiva às causas extrínsecas (secundum rem).
Uma última consideração se faz oportuna a respeito das relações entre a
separatio e a resolutio. No que diz respeito à resolutio secundum rationem, a
separatio opera conjuntamente à resolutio no sentido de remover tudo o que não
diz respeito à definição (ratio) necessária do objeto investigado pelo metafísico.
Pela separatio, o metafísico julga, por exemplo, que: 1) tudo o que se move não é
pura potência, nem ato puro; 2) todo composto não pode ser ato puro e
primeiro
238
; 3) o próprio ser (ipsum esse) não é composto
239
; 4) tudo o que
pertence a um certo gênero de coisas não possui a plenitude do gênero; 5) nada
pode ser acrescido ao ser que lhe seja externo, uma vez que nada pode está fora do
ser senão o não-ser
240
; 6) a forma dos entes que não são o seu próprio ser não
subsistem por si mesmas; ou ainda que as formas materiais não são subsistentes
por si; 7) a humanidade no homem não é idêntica ao homem que subsiste; 8) a
forma não pode ser o princípio do ser
241
; 9) tudo o que tem ser, ou seja, tudo o que
é composto não é o seu próprio ser
242
. Os exemplos poderiam ser estendidos. É
necessário manter somente que a separatio está na base de todo raciocínio
resolutivo, mas não se identifica essencialmente com esta. A separatio qualifica o
236
Cornélio Fabro intitula esta última via de resolução absoluta (absolute reduction). Cf.
FABRO, C. The intensive hermeneutics of thomistic philosophy. The Review of Metaphysics, 27,
1974, p. 486.
237
Cf. QDP, q. 5, a. 1, ad 4.
238
“(…) nullum compositum potest esse actus primus” (QDP q. 7, a. 1, co.)
239
“(...) res ergo composita non est suum esse” (In De Heb., lc. 2).
240
“Nihil autem potest addi ad esse quod sit extraneum ab ipso, cum ab eo nihil sit
extraneum nisi non-ens, quod non potest esse nec forma nec materia.” (QDP q. 7, a. 2, ad 9).
241
“Forma ergo in istis inferioribus, quia per se non subsistit (…)”; “formae materiales non
sunt subsistentes”; “humanitas in homine non est idem quod homo qui subsistit” (QDP q. 2, a. 1,
co.); “(…) forma non potest esse principium essendi” (QDP q. 5, a. 1, ad 18).
242
“Nulla forma vel natura creata est suum esse” (QDP q. 2, a. 1, co.); “(...) res ergo
composita non est suum esse” (In De Heb., lc. 2).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 107
juízo metafísico em termos da apreensão de seu objeto formal, enquanto a
resolutio expressa um modo de proceder racionalmente face ao obiectum
speculabile da metafísica.
No que diz respeito à resolutio secundum rem, o emprego da separatio
também se mostra operante quando o metafísico julga que tudo aquilo cujo ser
tem um princípio não pode ser causa de si mesmo, ou melhor, que é impossível
que o ser dos entes seja causado pelos seus princípios essenciais
243
. Em outro
momento, julga que as perfeições participadas por muitos não pertence a nenhum
dos participantes como algo próprio
244
. Julga ainda que todas as coisas que são
diversas entre si não podem ser o princípio de sua união
245
. Enfim, julga que
nenhum ser causado é o seu próprio ser
246
. De modo semelhante, o juízo de
separação está na base de todo raciocínio resolutivo que investiga as causas
extrínsecas (secundum rem) do ente enquanto tal, sem que haja entre ambos
identificação
247
.
Não se deve identificar, portanto, o processo pelo qual o intelecto separa
negativamente o conteúdo inteligível de “ente”, “forma”, “substância” do
processo pelo qual o intelecto busca as causas ou princípios do ente, da forma, da
substância. Não resta dúvida que a separatio é uma das condições de
inteligibilidade da resolutio metafísica. Não obstante, a separatio só leva à
formação dos conceitos (rationes) metafísicos, mas não a um juízo positivo sobre
seus princípios e causas. A separatio revela que o conteúdo positivo e irredutível
da ratio entis é o ens commune e o esse commune, mas não demonstra suas causas
e princípios intrínsecos (secundum rationem) ou extrínsecos (secundum rem), ou
243
“(...) impossibile est quod esse sit causatum tantum ex principiis essentialibus rei” (STh
I, q. 3, a. 4, co.)
244
“(...) non enim potest esse quod illud commune utrique ex se ipso conveniat, cum
utrumque, secundum quod ipsum est, ab altero distinguatur” (QDP q. 3, a. 5, co.); “non enim
potest esse quod illud unum commune utrique conveniat secundum illud quod proprie utrumque
eorum est” (QDP q. 3, a. 6, co.).
245
“Non enim diversa, inquantum huiusmodi, unita sunt” (QDP q. 7, a. 1, co.)
246
“Nullum igitur ens causatum est suum esse” (SCG II, c. 52)
247
Uma outra via da “ciência divina” dependente da separatio é a via de remoção (via
remotionis). Graças à separatio, exclui-se positivamente do esse divino tudo o que pode significar
adição ou limitação de sua essência. Por isso, o juízo de separatio “remove” gradativamente todas
as composições de Deus, sendo a última a ser removida a composição de essência e ser, o que
conduz à conclusão de que Deus é o seu próprio ser subsistente (ipsum esse subsistens). Ora, todos
os juízos que estruturam o conteúdo da via remotionis são juízos de separação porque dizem mais
o que Deus não é do que o que Deus é.
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 108
seja, não é capaz de proceder à fundação dos conceitos comuníssimos na realidade
do ente.
Além disso, o termo (terminus) da resolutio secundum rationem não pode
ser uma simples conjectura, irremediavelmente deficiente se não fosse pela
demonstração da existência de Deus pela resolutio secundum rem
248
. Se a
resolutio secundum rationem não levasse por si mesma à formação de um juízo
certo que excluísse totalmente a sua contraditória, então Tomás não teria nenhuma
razão para qualificar o processo em questão de resolutivo uma vez que, por
definição, trata-se de um movimento intelectual pelo qual se vê o efeito em seus
primeiros princípios (in primo).
Pela separatio, o que se manifesta como primeiro e irredutível na ratio
entis é o esse commune. Uma vez que a resolutio secundum rationem opera a
partir da separatio, o que a mesma acrescenta ao conhecimento da ratio entis é a
intrínseca e real dependência do ente no ato de ser (esse ut actus essendi). Por
isso, a resolução secundum rationem tem como termo a intelecção do ente no ato
de ser (actus essendi), fundamento universal e primeiro de tudo o que é. Por seu
turno, a resolução secundum rem tem como termo a demonstração do ipsum esse
subsistens no qual se resolvem os entes como em sua causa eficiente extrínseca.
Já foi dito que todos os problemas da metafísica estão simultaneamente
presentes no primeiro a respeito da ratio entis. Afinal, o ente está em tudo o que é
de modo imanente, pois tudo o que é ou é ente ou pertence ao ente, e tudo o que se
conhece ou é ente ou se refere ao ente. Mas, como não nos é dado conhecer
intuitivamente, como o intelecto divino, a unidade da composição, nem a
composição da unidade, nem a multiplicidade na unidade, nem a unidade na
multiplicidade, conhecemos uma na outra por resolução e uma a partir da outra
por composição. A metafísica, em razão de seu objeto formal, deve ser elaborada
de modo resolutivo e compositivo, enfocando, primeiramente, o que é mais
evidente para nós e menos evidente em si a fim de alcançar o que é mais evidente
para nós e em si mesmo. Só, assim, podemos compreender a unidade da
composição e a composição da unidade, os efeitos a partir das causas e nas causas.
Uma última questão poderia ser proposta a respeito da resolutio e da
compositio na medida em que ambas são vias da investigação metafísica, mas
248
É o que sustenta Tavuzzi (1991, p. 220-227).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 109
procedem de modo inverso. Qual dentre as duas vias deve ter prioridade na
investigação do ente enquanto tal? Tomás oferece-nos um critério decisivo na
Suma Teológica a este respeito. Tal critério enfatiza a dinâmica existente entre a
ordem do conhecimento humano e a ordem do ser, apontando a prioridade da via
resolutionis quando o que é primeiro na cognição não é primeiro quanto ao ser e a
prioridade da via compositionis quando o que é primeiro na cognição também é
primeiro quanto ao ser. Sendo assim, se o que é primeiro no conhecimento não é
primeiro quanto ao ser, então há processo resolutivo porque julgamos os efeitos
conhecidos resolvendo-os ou reduzindo-os às suas causas. Mas, se o que é
primeiro no conhecimento também é primeiro quanto ao ser, então há processo
compositivo porque julgamos os efeitos a partir das causas e não o inverso
249
.
Nem a via da resolução, nem a da composição, enquanto vias do
conhecimento da causalidade, são absolutamente completas em si mesmas. A
resolutio requer a compositio tanto quanto a compositio requer a resolutio.
Emerge da própria natureza do raciocínio resolutivo e compositivo a dimensão
“circular” da razão humana. A dimensão circular da via resolutionis secundum
rationem consiste em que um dos seus termos é a apreensão de todas as coisas no
ente (ens) que é primum cognitum e maxime commune. A dimensão circular da via
resolutionis secundum rem consiste em que seu termo último é a recondução de
todos os entes à sua causa comuníssima que é o primum esse, ipsum esse
subsistens.
“A circularidade [da razão]”, explica-nos Tomás, “observa-se nisto: que a
razão chega às conclusões a partir dos princípios na via de invenção, e examina as
conclusões descobertas de acordo com a via do juízo, resolvendo-as nos
princípios”
250
. No contexto das relações entre a resolutio e a compositio, Tomás
recorre às palavras do Pseudo-Dionísio sobre a circularidade da razão, pois
249
“Respondeo dicendum quod in omni inquisitione oportet incipere ab aliquo principio.
Quod quidem si, sicut est prius in cognitione, ita etiam sit prius in esse, non est processus
resolutorius, sed magis compositivus, procedere enim a causis in effectus, est processus
compositivus, nam causae sunt simpliciores effectibus. Si autem id quod est prius in cognitione, sit
posterius in esse, est processus resolutorius, utpote cum de effectibus manifestis iudicamus,
resolvendo in causas simplices.” (STh I-II, q. 14, a. 5, co.)
250
“(...) dicendum quod circulus quidam in cognitione animae attenditur, secundum quod
ratiocinando inquirit existentium veritatem; unde hoc dicit Dionysius ut ostendat in quo animae
cognitio deficiat a cognitione Angeli. Haec autem circulatio attenditur in hoc quod ratio ex
principiis secundum viam inveniendi in conclusiones pervenit, et conclusiones inventas in
principia resolvendo examinat secundum viam iudicandi. Et secundum hoc non est ad propositum
(QDV q. 10, a. 8, ad 10).
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Da resolutio e compositio em Tomás de Aquino 110
nenhuma outra imagem poderia significar melhor a complementaridade e a
unidade destas vias de retorno ao e derivação do primeiro princípio
251
. A
descrição da resolutio e da compositio como movimentos discursivos pertencentes
à “circularidade” da razão é iluminada e ilumina a comparação prévia entre a ratio
e o intellectus. A resolutio e a compositio como vias da razão estão para o
intellectus como o movimento está para o repouso, o tempo para a eternidade, o
círculo para o centro. Trata-se de um sinal indelével da dimensão sempre
perfectível da razão humana que é tanto mais perfeita quanto mais retorna a seu
princípio primeiro e último, assim como “o círculo é o mais perfeito entre todas as
figuras e o movimento circular entre todos os movimentos, porque neles o ponto
sempre retorna a seu princípio”
252
.
251
“(...) dicendum quod cum in reflexione sit quaedam similitudo motus circularis, in quo
est ultimum motus quod primo erat principium, oportet sic dicere in reflexione, ut illud quod primo
erat prius, secundo fiat posterius. Et ideo, quamvis intellectus sit prior voluntate simpliciter, tamen
per reflexionem efficitur voluntate posterior; et sic voluntas intellectum movere potest. ” (QDV q.
22, a. 12, ad 1). Cf. AERTSEN (1989, p. 417-418) ; SWEENEY, L. (1994, p. 242-243).
252
“Tunc enim effectus maxime perfectus est quando in suum redit principium: unde et
circulus inter omnes figuras, et motus circularis inter omnes motus, est maxime perfectus, quia in
eis ad principium reditur. Ad hoc igitur quod universum creaturarum ultimam perfectionem
consequatur, oportet creaturas ad suum redire principium.” (SCG II, c. 46).
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3
Da via resolutionis
Vimos que, de certo modo, as resoluções possuem prioridade
epistemológica sobre as composições quando o que é primeiro na cognição não é
primeiro quanto ao ser. Dentre as resoluções, aquelas relativas aos princípios
intrínsecos (secundum rationem) possuem, na ordem da descoberta, prioridade
sobre as resoluções pelos princípios extrínsecos (secundum rem). Com efeito, a
filosofia deve proceder da experiência sensível dos efeitos particulares dos entes à
determinação de seus princípios intrínsecos mais fundamentais e destes à causa
última, mais comum e universal. Dentre as vias filosóficas, portanto, é a resolução
secundum rationem a que primeiramente responde por esta ordem de descoberta.
Como o De Potentia é uma obra consagrada essencialmente à determinação
daquelas questões relativas à causa suprema e primeiríssima de todas as coisas, os
argumentos resolutivos secundum rationem não ocupam a mesma extensão nem a
mesma ordem de exposição que as resoluções secundum rem. Embora em menor
número, as resoluções secundum rationem são essenciais para a descoberta tanto
do caráter filosófico do De Potentia quanto da originalidade da metafísica de seu
autor. Afinal, as mesmas revelam de que modo a inteligência humana, partindo da
consideração da realidade sensível, avança em direção aos princípios intrínsecos
do que é enquanto tal, resolvendo todas as perfeições intrínsecas do ente no ser
(esse).
É a descoberta, pela via da resolução secundum rationem, do esse entendido
como ato originário, universal e fundante do ente (ens) que nos importa examinar
agora. Esta via nos conduzirá à discussão dos significados de esse em Tomás que
distingue claramente o ato de ser (esse ut actus essendi) do ser comum (esse ut
esse commune), conteúdo irredutível da ratio entis. Para tanto, será preciso
elucidar uma distinção mais fundamental, a saber: a existente entre essência
(essentia, forma ou natura) e esse (esse). Esta, por sua vez, nos introduzirá na
discussão da tese tomista da distinção e composição real de essência-ser (essentia
et esse) nos entes finitos.
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Da via resolutionis 112
3.1
Resoluções secundum rationem
A fim de exemplificar a relevância filosófica do empreendimento resolutivo
secundum rationem, nada mais pertinente do que acompanhar a releitura tomista
das noções aristotélicas de ato e potência, tal como apresentada em trechos
capitais do De Potentia. A relação entre o ato e a potência como princípios
constitutivos dos entes exerce um papel crucial nos argumentos estruturados
segundo a via da resolução. Estes argumentos adotam dois axiomas norteadores
da filosofia aristotélica do ato e da potência, a saber: (1) o axioma da prioridade
do ato em relação à potência; (2) o da dependência e da ordenação da potência ao
ato.
Estes dois princípios põem em marcha a busca pelo ato primeiríssimo do
ente enquanto tal. Esta busca só é possível graças à descoberta da potência
(dýnamis) como princípio real dos entes bem como de sua resolução no ato
(enteléqueia). Com efeito, a precedência ou prioridade ontológica do ato sobre a
potência bem como a dependência da potência em relação ao ato implicam na
resolução de todas as composições dos entes e de todos os seus atos num ato
primeiríssimo que está para os demais atos como o ato está para a potência, mas
não o inverso. Isto não seria possível se a dýnamis, tal como entendida por
Aristóteles, não estivesse essencialmente ordenada ao ato e não fosse reveladora
deste.
Dito de outro modo, se a realidade fosse simplesmente ato, então: 1) a noção
de potência se reduziria à ação ou operação (primeiro significado aristotélico de
ato e potência
253
), ocultando-se o significado passivo ou receptivo da potência
(segundo significado aristotélico de ato e potência); 2) a potência não mais estaria
ordenada ao ato intrinsecamente como o participante ao participado, mas somente
extrinsecamente como o ato segundo depende do ato primeiro (ordem causal); 3)
o ato não seria limitado senão por si mesmo ou por outro ato (tese da auto-
253
Eis a conseqüência paradigmaticamente anunciada e defendida por Sartre: “Ao mesmo
tempo vai acabar a dualidade de potência e ato.Tudo está em ato.” (SARTRE, J.-P. O Ser e o
Nada. Petrópolis: Vozes, p. 16, 2002).
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Da via resolutionis 113
limitação do ato)
254
; 4) a composição dos entes se entenderia como uma união de
princípios ou realidades atuais (composição inter rem et rem); 5) as relações na
ordem estática (predicamental) e na ordem dinâmica (causal) dos entes se
reduziria à simples prioridade entre os atos do ente e entre os entes enquanto
atuais e atuantes; 6) enfim, não haveria resolução metafísica propriamente dita
porque o ato seria ordenado a si mesmo e limitado por si mesmo, ocultando-se a
condição potencial dos entes.
Se nos for permitido insistir mais uma vez, diríamos que assim como todos
os problemas metafísicos estão inclusos no problema inicial sobre o objeto formal
desta ciência, cujo conteúdo inteligível irredutível é o ser (esse), todos os
problemas resolutivos da metafísica estão presentes na possibilidade da transição
da potência ao ato e do ato menos perfeito e mais particular ao ato mais perfeito e
comum. A resolução da dýnamis como capacidade ativa à dýnamis como
capacidade receptiva assim como a resolução do ato como operação (energeia) ao
ato como forma ou perfeição (enteléqueia) é paradigmaticamente aristotélica.
Estas resoluções encontram seu termo último metafísico, segundo Tomás, não
mais na forma, que não responde pelo ato primeiríssimo do ente senão na ordem
essencial, mas sim no ser (esse). Vejamos como isto ocorre.
No primeiro artigo da primeira questão do De Potentia, Tomás investiga se
é possível atribuir a potência ativa a Deus. A resposta à questão proposta se dá
pela elaboração de um único argumento que conclui pela atribuição da potência
ativa a Deus. Por ora, devemos salientar o aspecto resolutivo deste argumento
graças ao qual seu autor elabora sua releitura da metafísica aristotélica:
[1.1 §1] (...) a potência se diz por relação ao ato. Mas o ato é duplo, a saber: o ato
primeiro, que é a forma, e o ato segundo, que é a operação; e segundo parece o
nome de ato se aplicou, em primeiro lugar, à operação, pois tal é o sentido mais
óbvio da palavra ato, e, em segundo lugar, se aplicou à forma, pois a forma é o
princípio e o fim da operação. E, de modo semelhante, é dupla também a potência,
a saber: a potência ativa, que corresponde ao ato que é a operação, e é o sentido
primário da palavra potência, e a potência passiva, que corresponde ao ato que é a
forma, e que é o sentido secundário e derivado desta palavra. Ora, como nada
254
Esta tese é sugerida por Suárez (Disp. Met. XXX, sec. 2, n. 18; XXXI, sec. 13, no. 14).
Cf. MENG, Jude C. S. The Doctrine of Limitation of Act by Potency: aristotelianism or
neoplatonic?. Doctor Angelicus, 1, p. 41-51, 2001.
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Da via resolutionis 114
padece senão em razão da potência passiva, assim também nada age senão em
razão de um ato primeiro, que é a forma.
255
A análise da dupla significação das noções de ato e potência revela que esta
última diversifica-se na medida em que se diversifica o ato. A razão última para
tal correspondência, nos diz Tomás, reside no fato de que a noção de potência se
toma do ato ao qual está ordenada. Ora, como o que é mais imediatamente
evidente para nós são as ações dos entes, o termo ato se aplica primeiramente
(quanto ao nosso modo de conhecer) à ação ou operação e, em seguida, à forma,
princípio e fim da operação. O mesmo deve ser dito da potência que,
primeiramente, se diz potência ativa porque relativa à operação e, em seguida, se
denomina potência passiva em relação à forma, ato constitutivo do ente. A
passagem do ato como operação ao ato como forma e da potência ativa à passiva é
um procedimento tipicamente resolutivo. O que dá coerência e rigor à descoberta
dos princípios intrínsecos (ato enquanto forma) dos entes a partir dos seus efeitos
sensíveis (ato enquanto operação) é a via resolutiva secundum rationem.
Por conseguinte, em plena conformidade com Aristóteles, Tomás concebe o
ato como prioritário em relação à potência, sendo esta relativa àquele, quer por ato
se entenda a perfeição possuída quer a ação devida
256
. Entretanto, uma vez que os
tipos de ato não se esgotam nestas acepções posto que o ato se diz de tantos
modos como o ente (ens), é preciso convir ao ato de todos os atos que subordina a
si todas as demais perfeições constitutivas do ente, inclusive a forma ou a
essência. Essa passagem, por sua vez, exige a descoberta, na estrutura intrínseca
do ente, de uma composição mais fundamental entre o ato da forma ou da essência
que se comporta como potência (potentia essendi) em relação ao ato de ser (actus
essendi).
A demonstração da composição ou distinção real de essência e ser (essentia
et esse) nos entes não ocupa um papel relevante no De Potentia. Não obstante, a
255
“Ad huius quaestionis evidentiam sciendum, quod potentia dicitur ab actu: actus autem
est duplex: scilicet primus, qui est forma; et secundus, qui est operatio: et sicut videtur ex
communi hominum intellectu, nomen actus primo fuit attributum operationi: sic enim quasi omnes
intelligunt actum; secundo autem exinde fuit translatum ad formam, in quantum forma est
principium operationis et finis. Unde et similiter duplex est potentia: una activa cui respondet
actus, qui est operatio; et huic primo nomen potentiae videtur fuisse attributum: alia est potentia
passiva, cui respondet actus primus, qui est forma, ad quam similiter videtur secundario nomen
potentiae devolutum. Sicut autem nihil patitur nisi ratione potentiae passivae, ita nihil agit nisi
ratione actus primi, qui est forma”. (AQUINO.QDP. q. 1, a.1, co.).
256
ARISTÓTELES. Metafísica. Γ, 8, 1049b 4ss; 1050a21-23.
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Da via resolutionis 115
mesma é capital para o desenvolvimento dos argumentos de Tomás que a assume
como algo previamente demonstrado na maior parte de suas disputas. Isto ocorre,
por exemplo, quando Tomás apresenta a tese da distinção entre o ato da forma e o
ato de ser no contexto mais geral da demonstração da existência em Deus de uma
potência de gerar no primeiro artigo da segunda questão do De Potentia.
Nesta questão, Tomás realiza a comparação
257
entre a natureza divina e as
formas materiais (natureza criada) para, pelo contraste, estabelecer a diversidade
de suas ações. Esta comparação põe em marcha o juízo de separatio pelo qual o
metafísico estabelece que: 1) as formas materiais não são subsistentes; 2)
nenhuma natureza finita é seu próprio ser. Esses juízos de separação permitem
especificar a dupla diferença entre a natureza divina e a natureza criada.
Primeiramente, porque as formas materiais não são subsistentes (formae
materiales non sunt subsistentes) – o que é evidente uma vez que a humanidade
no homem não é idêntica ao homem que subsiste (humanitas in homine non est
idem quod homo qui subistit); enquanto a natureza divina é subsistente (ipsa
natura divina est subsistens). Em segundo lugar, nenhuma forma ou natureza
criada é o seu próprio ser (nulla forma vel natura creata est suum esse), enquanto
a natureza divina é o seu próprio ser (ipsum esse Dei est eius natura et quidditas).
O texto continua com a citação da célebre passagem do Êxodo (3,14) que,
segundo Tomás, revela o nome próprio de Deus: “Aquele que é” (Qui est)
258
.
Tomás parece entrever a necessidade de esclarecer filosoficamente as razões que
justificam a distinção estabelecida ao acrescentar que:
[2.1 §3] Com efeito, porque a forma nos seres inferiores não subsiste por ela
mesma, é preciso que aquilo no qual é comunicada seja qualquer coisa de outra
pela qual a forma ou a natureza recebe a subsistência: e esta é a matéria, que
subsiste pelas formas e as naturezas materiais. Mas, porque a natureza material ou
a forma não é seu ser [non est suum esse], recebe o ser [esse] pelo fato de ser
recebida em outra coisa. É por isto que, conforme exista em sujeitos diversos,
necessariamente terá um ser diferente [diversum esse]. Assim, a humanidade não é
una em Sócrates e Platão segundo o ser [secundum esse], mas é una segundo a
razão [secundum rationem]
259
.
257
Pode-se dizer que a comparação como instrumento demonstrativo é parte de um método
específico, que poderíamos denominar de parágone.
258
“Aliud est quod nulla forma vel natura creata est suum esse ; sed ipsum esse Dei est eius
natura et quidditas ; et inde est quod proprium nomen ipsius est : qui est, ut patet Exod. cap. III,
14, quia sic denominatur quasi a propria sua forma.” (QDP q. 2, a. 1, co.)
259
“Forma ergo in istis inferioribus, quia per se non subsistit, oportet quod in eo cui
communicatur, sit aliquid aliud per quod forma vel natura subsistentiam recipiat : et haec est
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Da via resolutionis 116
O termo esse é tomado aqui na acepção de actus essendi e não de esse
commune. Com efeito, ainda que a humanidade corresponda em Sócrates e Platão
a uma essência comum secundum rationem
260
, ambos diferem pelo ato de ser que
lhes é próprio em razão do esse (como actus essendi) ser recebido em sujeitos
diversos (a essência ou forma se comporta em relação ao ser como princípio
receptivo e, portanto, potencial). Assim, embora Sócrates e Platão possuam o ser
em comum (esse commune), necessariamente os mesmos terão um esse (actus
essendi) diverso, ou seja, um ato de ser próprio a cada um em razão do princípio
receptivo ou sujeito do esse (actus essendi), que individua o esse. Daí que o esse
só pode ser diversificado e multiplicado por algo que é diverso do próprio esse (a
essência ou forma).
Observe-se, porém, a ordem do argumento. Tomás raciocina a partir da não-
subsistência das formas materiais para a não-identidade de forma e ser nos entes
materiais (non est suum esse). Só então afirma que a forma recebe o ser, ou ainda
que o ser é recebido por diversos sujeitos que terão, portanto, um ser (no sentido
de actus essendi) diverso. Assim sendo, o argumento não demonstra a distinção
entre essentia e esse, mas a assume como conseqüência da não-subsistência das
formas por si mesmas para concluir que o esse é recebido pela essentia ou forma.
Mas, a não-subsitência das formas por si mesmas, por sua vez, parece ser uma
mera conseqüência da contraposição à exclusividade da forma divina, única
subsistente por si mesma. Neste argumento, portanto, a distinção entre a natureza
divina e a natureza dos demais entes é a condição pressuposta para a distinção
entre o ato de ser e a essência (forma) nos entes.
Em outros termos, trata-se de um argumento que, partindo da natureza da
causa última (que é o seu próprio ser) passa-se à determinação da natureza de seus
efeitos (os quais não são o seu próprio ser). A estrutura do argumento é
claramente compositiva e diz respeito às causas extrínsecas dos entes (secundum
materia, quae subsistit formis materialibus et naturis. Quia vero natura materialis vel forma, non
est suum esse, recipit esse per hoc quod in alio suscipitur ; unde secundum quod in diversis est, de
necessitate habet diversum esse : unde humanitas non est una in Socrate et Platone secundum esse,
quamvis sit una secundum propriam rationem.” (QDP q. 2, a. 1, co.).
260
A expressão “secundum rationem” denota aqui o que é de ordem nocional ou intelectual,
em contraste com o que pertence à ordem do ser (“secundum esse”). Deve-se advertir a diferença
entre esta acepção daquela que qualifica a expressão “resolutio secundum rationem” que, como
vimos, é relativa às causas intrínsecas.
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Da via resolutionis 117
rem). No entanto, o que almejamos encontrar é um ou mais argumentos que
possam demonstrar a composição e distinção entre a essência e o ser nos entes,
sem pressupor a existência de Deus. Essa é uma exigência da ordem de descoberta
filosófica, pois, ainda que Deus seja primeiro quanto ao ser, não o é na cognição
humana. Mas, o que não é primeiro na cognição humana, mas é primeiro quanto
ao ser pode ser conhecido filosoficamente pela via de resolução.
Não obstante, a possibilidade de uma tal demonstração da noção
propriamente tomista do esse, como princípio intrínseco que entra em composição
com a essentia, pelo qual (principium a quo) a substância real individual é um
ens, é objeto de controvérsias entre os tomistas. Contextos como o do primeiro
artigo da segunda questão do De Potentia (2.1 §3), favorecem a interpretação
apriorística da distinção entre essentia e esse nos entes finitos já que as premissas
do argumento são estruturadas a partir da comparação entre o ser cuja essência é
idêntica ao seu próprio ser (Deus) e os demais entes cujo ser não é idêntico à
essência, pois é recebido em uma natureza (essência ou forma
261
). Ao supor em
termos comparativos a distinção que, em princípio, deveria ser objeto de
demonstração, o argumento parece sustentar-se em algo indemonstrável
262
.
Dentre os principais defensores da indemonstrabilidade da noção tomista de
ser encontra-se Étienne Gilson (1884-1978)
263
, para quem a metafísica de Tomás
“pressupõe a presença ao espírito da noção primeira do ser como tal, ipsum esse,
ipsum purum esse
264
. Observa o autor de L’être et l’essence que a maioria dos
teólogos e filósofos medievais recusaram a composição do ser finito que resulta
da noção tomista de ser como ato em relação à essência. A título de exemplo, cita
João Duns Escoto nega absolutamente a diversidade de ser e essência nos entes
finitos com as seguintes palavras: “simpliciter falsum est quod esse sit aliud ab
261
Tomás utiliza os termos essência, forma, qüididade, substância e natureza como
conceitos análogos. Não obstante, todos os termos se referem aos princípios dos entes que estão
para o ser (esse) como a potência está para o ato, o participante está para o participado.
262
Na verdade, o pressuposto do argumento é demonstrado pela via de resolução secundum
rem, que justifica a sua adoção como premissa em um argumento de natureza compositiva
(secundum rem).
263
Para uma introdução ao pensamento de É. Gilson, confira: MONDIN, B. La Metafisica
di S. Tommaso d’Aquino e i suoi interpreti. Bologna : ESD, p. 74-86, 2000.
264
GILSON, Étienne. L’être e l’essence. Paris : J. Vrin, p. 385, 2000. Semelhante
interpretação apresenta em outra obra : “La notion première d’être, avant toute autre, est pour la
métaphysique un donné, à la fois appréhendé comme tel et éclairé de la lumière de Qui Est, cause
de tout intellect comme de tout intelligibile” (Idem. Introduction a la philosophie chrétienne.
Paris : J. Vrin, p. 123, 1960).
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Da via resolutionis 118
essentia
265
. A partir desta ponderação sobre a histórica controvérsia em torno da
composição de ser e essência nos entes finitos, conclui L’être et l’essence com as
seguintes palavras:
Eis uma grande lição de modéstia para os filósofos e teólogos. A tese sobre a qual
repousa toda a metafísica do ser é qualquer coisa de simplesmente falso, segundo
Duns Escoto. O mais extraordinário é que esta tese não é nem refutável nem
demonstrável, porque ela pertence à ordem dos princípios, os quais só se pode ver
ou não ver.
266
No entanto, se a tese sobre a qual se sustenta toda a metafísica tomista não é
demonstrável, nem refutável, porque pertence à ordem dos princípios, como
explicar que o próprio Tomás elabore argumentos em favor da composição e
distinção de ser e essência nos entes? Para Gilson, estes argumentos não são
demonstrativos senão sob certas condições, a saber: 1) pela pressuposição da
existência de Deus
267
; 2) pela pressuposição da criação dos entes
268
; 3) pela
suposição da noção tomista de ipsum purum esse
269
. Estabelecidas todas estas
265
Id., ibidem.
266
“Voilà une grande leçon de modestie pour les philosophes et théologiens. La thèse sur
laquelle repose toute la métaphysique thomiste de l’être est quelque chose de simplement faux,
selon Duns Scot. Le plus remarquable est que cette thèse n’est ni réfutable ni démontrable, parce
qu’elle appartient à l’ordre des principes, qu’on ne peut que voir ou ne pas voir.” (Idem. L’être e
l’essence. p. 385, 2000).
267
Após considerar o segundo argumento do De ente et essentia (c. 4) a favor da distinção
entre ser e essência nos entes que não são o seu próprio ser, pondera Gilson: “La valeur de
l’argument dépend doc entièrement de celle d’une certaine notion de Dieu à laquelle, quelle qu’en
soit la valeur réelle, beaucoup de théologiens, dont certains furent des saints, semblent n’avoir
jamais pensé.” (Id. Introduction a la philosophie chrétienne. p. 101, 1960).
268
Ao se referir ao primeiro argumento do De ente et essentia (c. 4), referente à intelecção
da essência (intellectus essentiae), Gilson observa que: “L’argument est irréfutable, mais que
prouve-t-il? D’abord que l’être actuel n’est pas inclus dans la notion de l’essence. (...) Pour qu’une
essence passe du possible à l’être, il faut donc qu’une cause extérieure lui confère existence
actuelle. (...). N’etant pas à soi-même la causa de sa propre existence, l’être fini doit la tenir d’une
cause supérieure, qui est Dieu. En ce sens, ce que l’on nomme distinction d’essence et d’être
signifie simplement que tout être fini est un être créé.” (Id. Introduction a la philosophie
chrétienne. p. 99, 1960). Note-se aqui a linguagem e a concepção claramente avicenista da
essência como realidade possível em razão de uma potência exterior com a qual Gilson explica o
argumento do De ente et essentia (c. 4) e que, em geral, é recusada pelo próprio autor para a
compreensão de Tomás de Aquino. Além disso, observe-se que Gilson reduz a demonstração da
distinção entre ser e essência à demonstração do ente finito como ser criado, o que pressupõe a
prévia aceitação da existência Deus e da criação dos entes.
269
Tendo considerado todos os argumentos do quarto capítulo do De ente et essentia,
conclui Gilson: “Ces raisons, et toutes celles du même genre, ont ceci de commum qu’elles
supposent déjá conçue la notion d’être entendue au sens, non pas de l’étant (ens, habens esse, ce
qui est), mais bien de l’acte d’être (esse) qui, composant avec l’essence, en fait précisément un
étant, un habens esse. Or, dès qu’on a conçu cette notion proprement thomist d’esse, il n’y a plus
de problème, il ne reste plus rien à démontrer.” (Id. Introduction a la philosophie chrétienne. p.
103, 1960).
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Da via resolutionis 119
pressuposições como verdadeiras, em especial a terceira que é exclusiva de
Tomás, obtém-se, segundo É. Gilson, o que os filósofos chamam de demonstração
da distinção real entre essência e ser nos entes finitos. Tudo passa a depender,
portanto, da noção tomista de Deus como ipsum esse posto que pensar o purum
esse é pensar Deus
270
.
Se a interpretação de É. Gilson está correta, então todos os argumentos de
Tomás em favor da distinção e composição de essência e ser não passam de
círculos viciosos. Esta conseqüência é explicitamente reconhecida pelo próprio É.
Gilson, nos seguintes termos:
Vemo-nos aparentemente colocados em uma espécie de dialética em que os dois
termos reenviam um ao outro perpetuamente: Deus é o ser puro, porque, se a
essência fosse nele distinta do ser, ele seria um ser finito, e não Deus;
inversamente, a essência do ser finito é outra em relação ao seu ser, porque, se sua
essentia fosse idêntica ao seu esse, este ser seria infinito, seria Deus. (...); como
faria [a Igreja] esta escolha [por Tomás] se a doutrina repousa no fim das contas
sobre um círculo vicioso?
271
O que chama a atenção na interpretação gilsoniana é não só a constatação do
caráter circular dos argumentos favoráveis à distinção entre essentia-esse nos
entes criados, os quais meramente supõem como dada a existência de Deus como
ipsum purum esse e o esse finitum como criado, mas, sobretudo, a tentativa de
justificar este modo de proceder como um método realmente metafísico fundado
na intuição de princípios auto-evidentes. Como nos diz É. Gilson, se a metafísica
é ciência na medida em que parte de princípios auto-evidentes, sua tarefa deve
consistir numa meditação freqüente destes mesmos princípios que servem de base
à dedução das conclusões
272
. Neste sentido, a metafísica tomista repousaria numa
meditação da revelação do nome de Deus em Êxodo (3, 14) e na dedução das
conclusões que decorrem de sua compreensão como ipsum purum esse
273
. Em
suma, para Gilson, a ordem de descoberta filosófica pressupõe e, portanto,
270
“Penser l’esse pur, c’est penser Dieu. (...) Tout dépend donc ici de la notion thomiste de
Dieu.” (Id. Ibid., p. 103, 108).
271
Id. Ibidem, p. 109-110.
272
“La métaphysique est donc science, à partir du point où, s’étant saisie du principe, elle
commence d’en déduire les conséquences.” (Id. Introduction a la philosophie chrétienne. p. 103,
1960).
273
Assim compreendida, a metafísica, segundo Tomás, procederia exclusivamente segundo
a vida de composição, via sintética e dedutiva por excelência, que vai das causas mais simples,
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Da via resolutionis 120
depende de uma descoberta teológica. Eis a principal razão para Tomás preferir as
demonstrações segundo a ordem teológica ao invés da ordem filosófica e para
justificar o que Gilson denomina de “filosofia cristã”.
Se é verdade que em grande parte da obra de Tomás a tese da distinção e
composição de essentia-esse é estabelecida em contraposição a Deus, cuja
natureza ou essência é seu próprio ser (p.ex., em 2.1 §3), não é menos verdade que
Tomás consagra seus esforços em demonstrá-la segundo a ordem de descoberta
filosófica, que é de natureza resolutiva. É sobre a existência e natureza das
demonstrações filosóficas da composição e distinção entre essência e ser nos entes
finitos que precisamos nos deter por enquanto. Com efeito, que a noção de “ser
intensivo” não é um objeto de demonstração é um ponto sobre o qual não nos
deteremos agora. Mas, que a tese da composição e distinção de essentia et esse
nos entes pressuponha necessariamente esta noção intensiva para Tomás, e, além
disso, pressuponha a existência de Deus e a doutrina da criação dos entes, deve ser
ainda objeto de discussão.
Para os fins imediatos desta parte de nossa investigação, importa investigar
se tanto a tese da não-subsistência das formas materiais quanto a segunda relativa
à não-identidade de essência (natureza) e ser (ato de ser) nos entes naturais ou
materiais são demonstráveis filosoficamente (2.1 §3, supra). Se assim for, a
metafísica tomista desenvolve-se segundo uma ordem de descoberta
autenticamente filosófica que não se dará por mera dedução (via compositionis),
como sugere Gilson, mas sim pela resolução secundum rationem de todas as
composições dos entes na composição originária de ser (actus essendi) e essência
(essentia). Assim sendo, a distinção entre essência e ser nos entes não pressuporia
necessariamente a aceitação da existência de Deus, nem a doutrina da criação dos
entes.
Os argumentos propostos por Tomás de Aquino para a demonstração da
distinção e composição de essentia e esse nos entes podem ser apresentados e
analisados na seguinte ordem
274
: 1) argumento da intelecção da essência
comuns e separadas à demonstração de seus efeitos. O que É. Gilson parece negligenciar é
justamente a dimensão resolutiva da metafísica.
274
Devemos esta ordem de apresentação, titulação e análise dos argumentos, ao trabalho do
Prof. John Wippel (The Metaphysical thought of Thomas Aquinas: from finite being to uncreate
being. Washington: CUA Press, p. 132-176, 2000). Para uma apresentação da distinção de
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Da via resolutionis 121
(intellectus essentiae)
275
; 2) argumentos relativos à impossibilidade de existir mais
de um ser cuja essência e ser sejam idênticos
276
; 3) argumentos relativos à
participação.
No quarto capítulo do De ente et essentia (ca. 1252-1256), Tomás investiga
de que modo a essência está nas substâncias separadas, isto é, na alma, nas
inteligências separadas e na causa primeira. Após considerar que até mesmo as
inteligências (substâncias ou formas) sem matéria são compostas, ou seja,
possuem potência (habent premixtionem potentiae), Tomás procura demonstrar a
natureza desta composição nos entes que são simples quanto à forma ou essência a
partir da demonstração da distinção entre ser e essência na ordem do ente
enquanto tal
277
. Em outros termos, até mesmo os entes cujas essências não são
compostas de forma e matéria na ordem da essência são compostas em razão de
algum grau de potencialidade. Ora, se assim é, ainda que simples quanto à forma
ou essência, há de haver uma outra ordem de composição real no ente enquanto tal
não mais restrita à ordem essencial de composição entre matéria e forma. Esta
ordem de composição é aquela que Tomás procura demonstrar resolutivamente
como sendo relativa à união entre essência e ser nos entes
278
.
O argumento exposto aqui em favor da distinção entre essência e ser,
segundo De Finance, é a maneira mais didática encontrada por Tomás no início de
sua carreira
279
. O argumento principia com a premissa maior segundo a qual tudo
o que não pertence à noção de essência ou qüididade lhe é acrescentada
essentia-esse a partir da ordem cronológica das obras de Tomás, confira: DE FINANCE, Joseph.
L’être et l’agir. Roma: Université Gregorienne, p. 94-111, 1960.
275
A exposição mais completa deste argumento se encontra no De ente et essentia (c. 4, n.
52).
276
Em relação ao argumento em questão, consulte: De ente et essentia. c. 4, n. 53; QDP q.
7, a. 2, ad 5.
277
“Huismodi ergo substantiae quamvis sint formae tantum sine materia, non tamen in eis
est omnimoda simplicitas, ut sint actus purus, sed habent premixtionoem potentiae.” (De ente. c. 4,
n. 52)
278
Os argumentos que demonstram a composição de essência e ser nos entes são
resolutivos secundum rationem porque possuem como termo último o que é universal e comum a
todos os entes enquanto tais e como ponto de partido o que é mais evidente para nós, a composição
de ato e potência nos entes sujeitos ao movimento.
279
Id., ibidem, p. 98. Este argumento está presente em outros trechos dos primeiros escritos
de Tomás, a saber: “(...) potest enim cogitari humanitas et tamen ignorari an aliquid homo sit” (In
Sent., I, d. 8, q. 4, a. 2); “(...) ita tamen quod ipsarum rerum naturae non sunt hoc ipsum esse quod
habent: alias esse esset de intellectu cuiuslibet quidditatis, quod falsum est, cum quidditas
cuiuslibet rei possit intelligit etiam non intelligendo de ea an sit” (In Sent., II, d. 1, a. 1, a. 1);
“quaedam enim natura est de cuius intellectu non est suum esse, quod patet ex hoc quod intelligi
potest esse cum hoc quod ignoretur an sit, sicut phaenicem, vel eclipsim, vel aliquid huiusmodi”
(In Sent., II d. 3, q. 1, a. 1).
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Da via resolutionis 122
extrinsecamente e estabelece composição com a essência. A razão oferecida por
Tomás para a aceitação desta premissa consiste em que nenhuma essência pode
ser concebida sem tudo aquilo que lhe é próprio. Com isso, tudo o que não é
concebido ao se inteligir a essência não faz parte necessariamente dela, mas lhe é
acrescentada extrinsecamente, fazendo com ela composição
280
.
A premissa menor do argumento sustenta que toda essência ou qüididade
pode ser concebida sem que algo do seu próprio ser o seja. A razão disso,
esclarece Tomás, se evidencia pelo fato do homem poder conhecer o que é o
homem ou a fênix, ignorando, ao mesmo tempo, se os mesmos tem ser na
natureza das coisas (an habeat esse in rerum natura). Ora, se é possível conceber
a essência ou qüididade do ente sem conceber ao mesmo tempo o seu ser (esse),
então o esse não faz parte propriamente da essência, ou seja, é outro em relação à
essência (esse est aliud ab essentia), sendo-lhe acrescentado extrinsecamente por
uma certa composição
281
.
O argumento faz ainda uma importante ressalva em sua conclusão que
excetua, a título hipotético (nisi forte), aquele caso no qual haja alguma coisa (res)
cuja qüididade ou essência seja o seu próprio ser (ipsum suum esse)
282
. A
importância desta observação reside, em primeiro lugar, em seu caráter hipotético
(nisi forte), ou seja, Tomás não está supondo a existência real deste ser como
condição para a validação do próprio argumento que pretende justificar a distinção
entre essência e ser nos entes. Em outras palavras, como o raciocínio conduz à
afirmação segundo a qual os entes possuem o ser distinto da essência (esse est
aliud ab essentia), Tomás se apressa em observar que poderia haver neste caso
uma exceção: a do ser cuja essência é idêntica ao seu ser (res cuius quidditas sit
ipsum suum esse). Mas, sobre esta possibilidade Tomás se concentrará no
momento seguinte, sobre o qual nos deteremos a seguir.
Por ora, duas objeções principais podem ser elaboradas em relação a este
argumento do De ente et essentia. Em primeiro lugar, a objeção segundo a qual o
280
“(...) et hoc sic patet. Quidquid enim non est de intellectu essentiae vel quidditatis, hoc
est adveniens extra, et faciens compositionem cum essentia; quia nulla essentia sine his quae sunt
partes essentiae intelligi potest.” (De ente. c. 4, n. 52)
281
“Omnis autem essentia vel quidditas potest intelligi sine hoc quod aliquid intelligatur de
esse suo : possum enim intelligere quid est homo vel phoenix et tamen ignorare an esse habeat in
rerum natura. Ergo patet quod esse est aliud ab essentia vel quidditate (...).”(ibid.).
282
“Ergo patet quod esse est aliud ab essentia vel quidditate, nisi forte sit aliqua res cuius
quidditas sit ipsum suum esse” (ibid.).
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Da via resolutionis 123
argumento consiste numa passagem ilegítima da ordem do pensamento à ordem
do ser, ou das distinções meramente lógicas às distinções reais. Afinal, o que
justificaria a transição do nosso modo próprio de inteligir a essência ao modo
desta ser realmente nos entes? Em segundo lugar, Tomás parece supor duas
acepções diversas no uso do termo esse. A primeira relativa ao esse como existere,
ou seja, como existência factual da coisa, que não é conhecida pela simples
apreensão da essência, mas somente pelo juízo. A segunda relativa ao esse como
actus essendi (ato de ser) da própria coisa que entraria em composição com a
essência, como princípio intrínseco do ente e não meramente factual.
A validade deste raciocínio desenvolvido por Tomás no início de seu
itinerário intelectual quando não é absolutamente rejeitada, é deixada como uma
questão em aberto
283
. Entretanto, o realismo epistemológico de Tomás de Aquino
implica que não é a essência concebida a base do discernimento da realidade da
essência nos entes concretos, mas sim o contrário, ou seja, é a realidade da
essência que, ao ser concebida, nos informa que a mesma não inclui em suas notas
fundamentais o ser (esse). É por essa razão que Tomás esclarece a premissa maior
do argumento dizendo que nenhuma essência pode ser concebida sem tudo aquilo
que é propriamente da sua parte. Ora, a razão para que a essência não possa ser
concebida senão com tudo o que é realmente e propriamente parte de si mesma
reside em última instância na própria realidade da essência e não no nosso modo
de concebê-la. Por conseguinte, se o ser fizesse parte da própria essência, a
conheceríamos como sendo, ou melhor, como possuindo ser essencialmente no
próprio ato de simples apreensão. Em outros termos, é porque a essência é distinta
do ser em ato que nós a inteligimos de certo modo (distinguindo do esse in actu),
e não o contrário. Por essa razão, Tomás pode partir do nosso modo de conhecer
para o ser sem que isto implique em priorizar a ordem do conhecer sobre o ser,
nem em assumir uma distinção meramente intelectual como critério de
determinação das distinções reais.
Ainda que a validade do argumento resida no realismo epistemológico de
seu autor, Tomás não se contenta somente com esta primeira justificação da
283
“Whether or not Thomas himself would have wished it to be presented as a valid
argument in its own right for anything more than a conceptual distinction remains, in my opinion,
an open question” (WIPPEL, John. Ibidem. p. 143).
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Da via resolutionis 124
composição de essência e ser nos entes. Em seguida, trata de investigar a hipótese
sugerida ao final do primeiro argumento sobre a existência de uma realidade cuja
qüididade ou essência seja o seu próprio ser. É neste contexto que Tomás introduz
e desenvolve um novo argumento que complementa o anterior e será recorrente
em sua obra, inclusive no De Potentia.
A originalidade deste argumento consiste na tese segundo a qual é
impossível que haja mais de um ser cuja essência seja idêntica ao seu próprio ser,
ou seja, todos os seres, com exceção do ser tão-somente ser (esse tantum) são
compostos de esse mais um princípio receptivo e multiplicador do ser. Com
efeito, se talvez (forte) existisse um ser cuja essência fosse seu próprio ser, então o
mesmo seria necessariamente único e primeiro
284
.
Tomás procura justificar a tese da unicidade do ser cuja essência é idêntica
ao seu próprio ser explicando que lhe é impossível multiplicar-se. A razão alegada
consiste em que a multiplicidade de uma coisa pode ocorrer de três modos,
correspondentes a três tipos de composição: 1) pela adição de alguma diferença
(como ocorre a multiplicação da natureza genérica nas espécies); 2) pela recepção
da forma em diversas matérias (como se dá na multiplicação da natureza
específica nos diversos indivíduos); 3) pela recepção em outro do que é uno e
absoluto em si mesmo. Esta terceira possibilidade é exemplificada de modo
hipotético, a saber: se houvesse o calor separado (absoluto), o mesmo seria
distinto do calor não separado (não absoluto), em virtude da própria separação
285
.
Dada estas três possibilidades de multiplicação, resta saber se a coisa que é
tão somente o seu próprio ser (esse tantum) pode ou não ser multiplicada. Ora, se
tal ser é tão-somente ser (esse tantum), o mesmo não pode ser multiplicado pelo
primeiro modo, ou seja, por acréscimo de alguma diferença. Afinal, se, por
hipótese, o ser tão-somente ser (esse tantum) recebesse acréscimo de alguma
diferença, o mesmo não seria tão-somente ser (non esset esse tantum), mas sim
284
“(...) nisi forte sit aliqua res cuius quidditas sit ipsum suum esse. Et haec res non potest
esse nisi una et prima (...)“ (De ente. c. 4, n. 52-53)
285
“(…) quia impossibile est ut fiat plurificatio alicuius, nisi per additionem alicuius
differentiae, sicut multiplicatur natura generis in species, vel per hoc quod forma recipitur in
diversis materiis, sicut multiplicatur natura speciei in diversis individuis; vel per hoc quod unum
est absolutum et aliud in aliquo receptum: sicut, si esset quidam calor separatus, esset alius a
calore non separato, ex ipsa sua separatione.“ (De ente. c. 4, n. 53).
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Da via resolutionis 125
um ser mais alguma forma acrescida (sed esse et praeter hoc forma aliqua)
286
. Em
outros termos, a hipótese de um ser tão-somente ser exclui qualquer possibilidade
de acréscimo de algo ou de alguma forma além (praeter) do próprio ser
287
.
Tampouco um tal ser tão-somente ser poderia ser multiplicado pelo segundo
modo, ou seja, pela recepção da forma em diversas matérias, que também se
comportariam como algo diverso do ser (esse)
288
. Tomás, porém, não tece nenhum
comentário sobre o terceiro modo de multiplicação, o que parece ser evidente.
Com efeito, supor a multiplicação do esse tantum pela recepção em outra
realidade que não é o próprio esse, é conceder a tese do próprio Tomás. Afinal,
também neste caso, a multiplicação exige necessariamente que o princípio
multiplicador seja distinto do esse. Mas, se assim fosse, o esse não seria tão-
somente ser (esse tantum) porque seria esse mais algum princípio receptivo
multiplicador; o que seria contraditório com a própria noção de esse tantum.
Em suma, supor a multiplicação do ser tão-somente ser (esse tantum) é
sustentar algo contraditório uma vez que se houvesse (forte) o ser tão-somente ser,
um tal ser não poderia ser senão o seu próprio ser (ipsum suum esse), ou seja, seria
impossível que fosse o seu próprio ser mais (et praeter) alguma coisa (forma ou
matéria). O ipsum esse na medida em que é esse tantum não pode ser multiplicado
nem diversificado. O ser (esse) só pode ser multiplicado e diversificado por algo
que é outro em relação ao esse. Demonstrada a impossibilidade da multiplicação
do ipsum esse enquanto esse tantum, Tomás pode sustentar sua tese segunda a
qual o ser que é o seu próprio ser não pode ser senão um único
289
. Por
conseguinte, todos os demais entes que não são tão-somente ser (esse tantum)
possuem o ser (esse) mais alguma qüididade, natureza ou forma que os
diferenciam
290
.
Poder-se-ia objetar que o argumento em questão só tem valor hipotético
uma vez que parte da suposta existência de um ser cuja essência seria idêntica ao
286
O acréscimo de qualquer forma ou de qualquer outro princípio ao esse tantum implicaria
necessariamente que o que é acrescido é essencialmente diverso do próprio esse.
287
“Si autem ponatur aliqua res quae sit esse tantum, ita ut ipsum esse sit subsistens, hoc
esse non recipiet additionem differentiae, quia iam non esset esse tantum, sed esse et praeter hoc
forma aliqua.“ (ibid.).
288
“(…) et multo minus recipiet additionem materiae, quia iam esset esse non subistens sed
materiale.“ (ibid.).
289
“Unde relinquitur quod talis res quae sit suum esse, non potest esse nisi una.“ (ibid.).
290
“Unde opportet quod, in qualibet alia re praeter eam, aliud sit esse suum et aliud
quidditas vel natura seu forma sua.“ (ibid.).
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Da via resolutionis 126
seu próprio ser para concluir pela distinção entre essência e ser nos demais entes,
ou seja, todo o argumento dependeria da prévia aceitação da existência de Deus.
Ora, como observa J. Wippel (2000, p. 146-147), o ponto principal do argumento
consiste em mostrar que é impossível existir mais de um ser cuja essência seja
idêntica ao seu próprio ser. Nem esta tese, nem a conclusão que ela legitima
possuem caráter meramente hipotético, pois Tomás justifica a impossibilidade da
multiplicação do ser que é seu próprio ser e, portanto, legitima a afirmação da
unicidade do ser tão-somente ser. Tampouco a conclusão é hipotética porque
Tomás não raciocina a partir da possibilidade da existência do ser tão-somente ser
para a sua atualidade, mas sim a partir da impossibilidade de dois entes serem o
seu próprio ser (ipsum suum esse). É este ponto de partida que permite concluir
pela existência de uma distinção e composição entre o esse e a essência (qüididade
ou forma) em todos os entes, com exceção daquele que é tão-somente ser (esse
tantum).
Em nenhuma etapa do argumento, Tomás pressupõe a existência de Deus
como parte integrante de sua tese, das premissas ou da conclusão. Isto é
absolutamente desnecessário na medida em que pretende demonstrar a distinção
entre ser e essência nos entes a partir da unicidade do ser que é idêntico ao seu
próprio ser, que, por sua vez, é sustentada pela impossibilidade de existir mais de
um ser que seja tão-somente ser. Assim, se aceitarmos que há uma multiplicidade
de entes que possuam ser (esse), então é inevitável concluir que em todos estes
entes a essência é diversa do ser (esse), porque é impossível que exista mais de
um ser cuja essência seja idêntica ao seu ser.
De herança obviamente platônica, o exemplo do calor utilizado como
suporte para a exclusão do terceiro modo de multiplicação do esse tantum é um
dos mais promissores do ponto de vista didático, sem comprometer a necessidade
lógica do raciocínio. A analogia entre o esse e a forma acidental (calor ou
brancura, p. ex.) é recorrente na obra do Aquinate, conforme veremos na análise
dos argumentos do De Potentia, servindo de ponto de referência para a exclusão
da existência de duas perfeições separadas subsistentes por si mesmas.
Em seu sentido primordial, a analogia consiste em perceber que a hipótese
de uma realidade ou perfeição separada (quer esta perfeição seja o próprio ser
quer uma forma acidental) implica na distinção ou composição desta realidade
quando recebida em outra coisa. Com efeito, se houvesse uma realidade ou
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Da via resolutionis 127
perfeição separada, a mesma seria distinta de todas as demais instâncias desta
mesma realidade que não são separadas porque são recebidas em outra coisa.
Assim sendo, se houvesse uma tal perfeição separada de um sujeito recipiente, a
mesma não poderia ser senão única. A razão da multiplicidade consiste na
diversidade dos sujeitos recipientes, o que na hipótese da perfeição ou forma
separada, é excluída. Além disso, como o que recebe deve necessariamente e
realmente ser distinto do que é recebido, se uma forma separada fosse recebida
num sujeito recipiente, ela seria distinta deste último realmente.
Deste modo, se, por hipótese, o calor ou a brancura (formas acidentais)
fossem uma realidade separada, seriam únicas e diferentes de todas as demais
instâncias do calor ou da brancura, que seriam realmente recebidas por um
princípio potencial diverso da própria perfeição recebida. Por analogia, se
houvesse um ser que fosse seu próprio ser, em razão de sua separação, o mesmo
seria único e absoluto porque diferiria de todas as demais instâncias nas quais o
ser é recebido em outra coisa. Logo, nestas coisas, o ser recebido seria realmente
distinto da essência (forma ou natureza) que o receberia como a potência ao ato.
Outro ponto relevante precisa ser mencionado relativamente à composição
de ser e essência nos entes, como uma composição de ato e potência. A
demonstração da impossibilidade da existência de mais de um ser cuja essência é
idêntica ao seu próprio ser serviu como ponto de partida para a distinção entre
essência e ser nos demais seres ou entes. No contexto desta demonstração,
consideramos que a suposição de uma não-unicidade do ser tão-somente ser
implicaria em contradição uma vez que sua multiplicação pela adição da forma ou
pela recepção na matéria ou ainda em outro princípio receptivo (essência,
qüididade, natureza ou forma) faria do esse tantum um ser mais alguma coisa
diversa do ser – o que é contraditório. Neste contexto, observamos que o exemplo
hipotético do calor separado em comparação com o calor não-separado torna
visível a necessária distinção do ser tão-somente ser (esse tantum), que é
necessariamente único, dos demais entes, que não são o seu próprio ser.
Em relação aos entes que não são o seu próprio ser, Tomás pode concluir
que possuem o ser como realidade recebida pela essência (qüididade ou forma),
realmente distinta do ser que recebem. Mas, não devemos entender esta distinção
como uma separação entre duas coisas (inter rem et rem), mas sim como uma não-
identidade de dois princípios constitutivos dos entes. Afinal, para Tomás, “tudo
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Da via resolutionis 128
aquilo que recebe algo de outro está em potência em relação a este outro, e esse
algo recebido é ato daquele que recebe”
291
. Com isso, torna-se evidente que o
itinerário para a demonstração da distinção entre essência e ser nos entes, com
exceção do ser tão-somente ser, conduz à compreensão da unidade dos princípios
constitutivos dos entes que não são o seu próprio ser como uma unidade de
composição entre a potência receptiva (essência) e o ato recebido (ato de ser).
Esta unidade de composição não é intuída, mas pode ser conhecida uma na e
a partir da outra, ou seja, de modo resolutivo e compositivo. Pela resolução
secundum rationem, a unidade da composição de essência e ser nos entes é
conhecida como termo último (ad quem) da redução da unidade de composição de
potência e ato nos entes sujeitos ao devir. Neste sentido, a unidade da composição
de essência e ser é resolvida na unidade da composição de potência e ato, o que é
universal e comum a todos os entes que não são o seu próprio ser. Pela
composição secundum rationem, a unidade de essência e ser nos entes é conhecida
como termo primeiro (a quo), pois o que é universal e comum na ordem do
conhecer e do ser é a origem dos raciocínios compositivos. É evidente pelo
exposto até aqui que Tomás se utiliza tanto da via compositiva (2.1 §3), quanto da
via resolutiva (De ente et essentia, c. 4) para o conhecimento da unidade de
composição de essência e ser nos entes.
Em outros contextos de sua obra, Tomás retoma o argumento da unicidade
do ser cuja essência é seu próprio ser procedendo de modo diverso do De ente et
essentia, já que segue a via de composição, assumindo como já estabelecido que o
ser tão-somente ser (esse tantum), o ser que é o ipsum suum esse é Deus. Nestes
casos, parte desta identificação para concluir pela distinção e composição de
essência e ser nos demais entes. Já dissemos que a razão desta ordem de exposição
do argumento tem sua origem última na própria natureza teológica das obras do
santo Doutor. É o que se nota, por exemplo, na resposta à quinta objeção do
segundo artigo da sétima questão do De Potentia, em que Tomás investiga se em
Deus a essência ou substância é idêntica ao seu ser.
[7.2 ad 5] Conforme é dito no Livro sobre as causas (prop. 4), o ser mesmo de
Deus se distingue e separa de todo outro ser pelo fato do mesmo ser um ser
291
“Omne autem quod recipit aliquod ab alio, est in potentia respectu illius; et hoc quod
receptum est in eo, est actus eius.“ (De ente. c. 4 ,n. 56).
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Da via resolutionis 129
subsistente por si mesmo, ao qual não se acrescenta nenhuma natureza que seria
distinta em relação ao ser mesmo. Mas, todos os demais seres que não são
subsistentes são individuados mediante a natureza ou a substância que subsiste em
tal ser. E neles, é verdadeiro que o ser de um é diferente do ser de outro, porque é
de uma natureza diversa; assim como, se existisse um só calor subsistente por si
sem matéria ou sujeito, por este simples fato seria distinto de qualquer outro calor;
enquanto os calores que existem em um sujeito não se distinguem senão pelo seu
sujeito.
292
O texto acima do De Potentia apresenta um daqueles argumentos
compositivos secundum rem que, embora assumam explicitamente a existência de
Deus como condição para a sua construção, poderiam prescindir ou não pressupor
a identificação de Deus com o ser que é tão-somente ser para a sua efetiva
validade. Se, por hipótese, o argumento acima começasse pela afirmação prevista
no De ente et essentia segundo a qual é impossível haver dois seres que sejam o
seu próprio ser uma vez que, neste caso, se acrescentaria uma diferença em
relação ao ser mesmo (esse tantum), então a validade do argumento concentrar-se-
ia somente na demonstração desta impossibilidade e no reconhecimento de que
todos os demais entes, com exceção do esse tantum, são individuados mediante
uma diferença, que Tomás chama ora de natureza, ora de substância, ora de
qüididade, ora de forma, ou simplesmente essência. Assim, concluir que em todos
os entes, com exceção de pelo menos um, o ser de um é diverso do ser de outro
justifica-se em razão da distinção dos princípios receptivos do ser nos entes, ou
seja, em razão da essência. A analogia com o exemplo hipotético do calor vem
reforçar a unidade dos raciocínios expostos no quinto capítulo do De ente et
essentia e na resposta à quinta objeção do segundo artigo da sétima questão do De
Potentia, embora sigam vias diversas.
Se Tomás de Aquino assume como válida a identificação de Deus com o
esse tantum no contexto do De Potentia é porque a mesma já foi objeto de
demonstração prévia, o que legitima a sua utilização como premissa dos
argumentos compositivos que procedem da causa extrínseca à determinação da
292
“Ad quintum dicendum, quod sicut dicitur in libro de Causis, ipsum esse Dei
distinguitur et individuatur a quolibet alio esse, per hoc ipsum quod est esse per se subsistens, et
non adveniens alicui naturae quae sit aliud ab ipso esse. Omne autem aliud esse quod non est
subsistens, oportet quod individuetur per naturam et substantiam quae in tali esse subsistit. Et in
eis verum est quod esse huius est aliud ab esse illius, per hoc quod est alterius naturae ; sicut si
esset unus calor per se existens sine materia vel subiecto, ex hoc ipso ab omni alio calore
distingueretur : licet calores in subiecto existentes non distinguantur nisi per subiecta.” (QDP q. 7,
a. 2, ad 5).
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Da via resolutionis 130
natureza de seus efeitos (secundum rem). Contudo, sustentamos que a validade
filosófica do argumento não consiste nesta pressuposição, o que esperamos ter
evidenciado com a análise dos argumentos do De ente et essentia. A fim de
corroborar esta linha interpretativa
293
, é suficiente considerar os argumentos
expostos por Tomás em duas outras obras, em especial em seu Comentário à
Física de Aristóteles (ca. 1268-1269) e em sua Suma Contra os Gentios (ca.1259-
1265), nos quais demonstra novamente a distinção entre ser e essência nos entes.
Em seu Comentário à Física, mais especificamente no comentário ao oitavo
livro, Tomás investiga se existe alguma composição nos corpos celestes. Após
defender a composição de matéria e forma nos corpos celestes
294
, questiona se
haveria algum outro tipo de composição nos mesmos caso não houvesse a
composição de matéria e forma. É claro que defender a ausência de qualquer
espécie de composição nos corpos celestes é sustentar o caráter puramente atual e
atualmente puro destes seres, o que negaria evidentemente o caráter móvel dos
corpos celestes. Mas, isto equivaleria a igualá-los ao ato puro, o que é impossível.
Ora, explica Tomás, tudo o que é ato ou bem é uma forma subsistente, ou bem é
uma forma recebida em outro, como o ato é recebido pela potência
295
. Neste
sentido, mesmo se não houvesse a composição de matéria e forma nos corpos
celestes, haveria algum outro tipo de composição em razão da existência de um
princípio potencial nos mesmos. Este princípio potencial é aqui denominado por
Tomás de potência de ser (potentia essendi)
296
.
É necessário, continua o santo Doutor, que toda substância simples
subsistente seja o seu próprio ser (est ipsum suum esse) ou tenha o ser por
293
Essa perspectiva hermenêutica do itinerário filosófico dos argumentos que supõem a
existência de Deus, mas que poderiam não supô-la para a sua validade, é desenvolvida por John
Wippel (2000, p. 132-176). O autor, porém, não menciona, em sua análise dos argumentos, a
natureza resolutiva ou compositiva dos mesmos.
294
“(...) et primo quia dicit quod corpus caeleste non componitur ex materia et forma: hoc
enim est omnino impossibile. Manifestum est enim corpus caeleste esse aliquid actu; alioquin non
moveretur: quod enim est in potentia tantum, non est subiectum motus, ut in sexto habitum est.”
(In Phys. VIII, lec. 21, n. 1153).
295
“Oportet autem omne quod est actu, vel esse formam subsistentem, sicut substantiae
separatae; vel habere formam in alio, quod quidem se habet ad formam sicut materia, et sicut
potentia ad actum. Non autem potest dici quod corpus caeleste sit forma subsistens: quia sic esset
intellectum in actu, non cadens sub sensu neque sub quantitate. Relinquitur ergo quod est
compositum ex materia et forma, et ex potentia et actu; et sic est in ipso quodammodo potentia ad
non esse. ” (ibid.)
296
“Sed dato quod corpus caeleste non sit compositum ex materia et forma, adhuc oportet
in ipso ponere aliquo modo potentiam essendi.” (ibid.)
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Da via resolutionis 131
participação (participet esse)
297
. Considerando que a substância simples
subsistente não pode ser senão única (princípio da impossibilidade da existência
de mais de um ser cuja essência seja idêntica ao seu próprio ser), assim como a
brancura seria única se fosse uma perfeição subsistente separada
298
, e
considerando ainda que tudo o que não é uma substância simples subsistente por
si mesma compõe-se de um participado e de um participante (o qual está em
potência em relação ao ato participado), então toda substância que não é o seu
próprio ser é potentia essendi
299
.
Dois importantes princípios surgem aqui como elucidando a relação de
composição de essência e ser nos entes que não são o seu próprio ser: 1) o
princípio de participação; 2) o princípio da potentia essendi. Em relação ao
primeiro, Tomás identifica a composição de ato e potência como sendo uma
composição de princípio participado e princípio participante. Com efeito, todo
participante é composto daquilo que participa (participante) e daquilo no qual
participa (participado), sendo que o participante está para o participado como a
potência está para o ato. Ora, todo participante é, por princípio, uma potentia
essendi, uma potência em relação ao ser, uma potência de ser. A razão última
disto é que, com exceção do ser cuja essência é idêntica ao seu próprio ser, todos
os entes possuem o ser por participação. Assim sendo, o princípio receptivo do ser
nos entes está unido ao ser como a potência ao ato, o participante ao participado.
Deste modo, Tomás esclarece o modo pelo qual é legítima a multiplicação
do ser nos entes, que corresponde ao terceiro modo exposto no De ente et essentia
(c. 4), a saber: pela recepção em outro do que é uno e absoluto em si mesmo. Esta
recepção se esclarece no Comentário à Física (VIII, lc. 21) como sendo uma
recepção por participação graças ao princípio potencial dos entes em relação ao
ser (potentia essendi). É a elevação da dýnamis aristotélica à potentia essendi,
paradigmaticamente desenvolvida por Tomás em seu Comentário à Física, o que
297
“Necesse est enim quod omnis substantia simplex subsistens, vel ipsa sit suum esse, vel
participet esse.” (ibid.)
298
“Substantia autem simplex quae est ipsum esse subsistens, non potest esse nisi una, sicut
nec albedo, si esset subsistens, posset esse nisi una.” (ibid.)
299
“Omnis ergo substantia quae est post primam substantiam simplicem, participat esse.
Omne autem participans componitur ex participante et participato, et participans est in potentia ad
participatum. In omni ergo substantia quantumcumque simplici, post primam substantiam
simplicem, est potentia essendi.” (ibid.)
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Da via resolutionis 132
permite sustentar a unidade da composição de essência (potência) e ser (ato) nos
entes como uma unidade de participante e participado.
No qüinquagésimo segundo capítulo do segundo livro da Suma Contra os
Gentios, por sua vez, encontram-se seis argumentos que manifestam o caráter
filosófico da demonstração da distinção entre ser e essência nos entes. Ao
investigar se é o mesmo o ser e a essência das substâncias intelectuais, Tomás
desenvolve seus argumentos que concluem de modo uníssono pela distinção entre
ser e essência em todos os entes, com exceção do ser subsistente que tem o ser
idêntico à sua essência. Nestes argumentos, Tomás de fato supõe como
previamente demonstrada a existência do ser subsistente. No entanto, a análise dos
três primeiros argumentos deste capítulo revelará que os mesmos são válidos sem
a pressuposição da existência de Deus.
Em relação ao primeiro argumento, deve-se observar que Tomás reitera o
principio segundo o qual o esse enquanto esse não pode ser diversificado senão
por algo diverso do próprio esse. Por isso, se houvesse uma coisa que fosse o seu
próprio ser (esse tantum), nada poderia ser acrescentado ao seu próprio ser sem
que esta mesma coisa deixasse de ser o que é, já que seria contraditoriamente o
seu próprio ser e, ao mesmo tempo, seria ser mais alguma coisa. Por contraste,
naquelas coisas que não são o seu próprio ser, explica Tomás, o ser (esse) está
unido à outra coisa diversa do ser. Assim, se ao ser (esse) se acrescentasse algo,
este algo necessariamente seria diverso do ser (esse). A título exemplar, Tomás
considera que, em um sujeito como Sócrates, a brancura poderia ser acrescida ao
seu esse substancial como algo distinto desse, como um esse acidental; pois, em
tal caso não é o mesmo ser Sócrates e ser branco, a não ser de modo acidental.
Mas, se o ser (esse) não se encontrar em um sujeito é impossível acrescentá-lo a
algo diverso de si mesmo, pois “o ser enquanto ser não pode ter algo diverso”
(esse autem, inquantum est esse, non potest esse diversum)
300
.
300
“Si enim esse est subsistens, nihil praeter ipsum esse ei adiungitur. Quia etiam in his
quorum esse non est subsistens, quod inest existenti praeter esse eius, est quidem existenti unitum,
non autem est unum cum esse eius, nisi per accidens, inquantum est unum subiectum habens esse
et id quod est praeter esse: sicut patet quod Socrati, praeter suum esse substantiale, inest album,
quod quidem diversum est ab eius esse substantiali; non enim idem est esse Socratem et esse
album, nisi per accidens. Si igitur non sit esse in aliquo subiecto, non remanebit aliquis modus quo
possit ei uniri illud quod est praeter esse. Esse autem, inquantum est esse, non potest esse
diversum: potest autem diversificari per aliquid quod est praeter esse; sicut esse lapidis est aliud ab
esse hominis. Illud ergo quod est esse subsistens, non potest esse nisi unum tantum. Ostensum est
autem quod Deus est suum esse subsistens. Nihil igitur aliud praeter ipsum potest esse suum esse.
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Da via resolutionis 133
Parece claro que Tomás poderia concluir que, afora o ser que é o seu próprio
ser (esse tantum), todos os demais entes tem um ser diverso do sujeito que recebe
e diversifica o ser (essência), o que respeitaria a ordem de descoberta filosófica,
sem pressupor como dada a existência de Deus. No entanto, de fato, Tomás não
conclui imediatamente pela distinção entre ser e essência nos entes, com exceção
do esse tantum, porque menciona já ter demonstrado que Deus é o ser que é seu
próprio ser
301
. Legitima, assim, a conclusão segundo a qual, afora Deus, todos os
entes têm o ser distinto da essência.
Em relação ao segundo argumento, Tomás sustenta a tese segundo a qual
uma natureza comum, quando considerada separadamente, não pode ser senão
única, ainda que diversos entes participem desta natureza. Com efeito, se a
natureza animal subsistisse separadamente, não incluiria aquelas notas ou
propriedades das espécies, tais como o que é próprio do homem ou do boi. Se, por
hipótese, fossem removidas as diferenças que constituem as espécies, a natureza
do gênero permaneceria não-dividida (trata-se de uma hipótese fundada na
natureza resolutiva da abstractio totius sive universalius). Logo, se o próprio esse
fosse universal como um gênero, não poderia ser senão único, uma vez que seria o
esse separado e subsistente em si mesmo. Considerando-se ainda que, com mais
razão, o esse não é um universal ao modo de um gênero, é evidente a
impossibilidade do esse ser dividido em si mesmo. Por essa razão, conclui Tomás
que, em sendo Deus o ser subsistente, todos os demais entes possuem o ser
diverso da essência. Aqui vale a mesma observação anterior segundo a qual a
validade do argumento não necessariamente depende da identificação de Deus
com o ser subsistente, porque reside somente na prova da impossibilidade da
existência de dois entes subsistentes
302
.
Oportet igitur in omni substantia quae est praeter ipsum, esse aliud ipsam substantiam et esse
eius.” (SCG II, c. 52, n. 2).
301
Cf. SCG I, c.13; c. 22.
302
“Natura communis, si separata intelligatur, non potest esse nisi una: quamvis habentes
naturam illam plures possint inveniri. Si enim natura animalis per se separata subsisteret, non
haberet ea quae sunt hominis vel quae sunt bovis: iam enim non esset animal tantum, sed homo vel
bos. Remotis autem differentiis constitutivis specierum, remanet natura generis indivisa: quia
eaedem differentiae quae sunt constitutivae specierum sunt divisivae generis. Sic igitur, si hoc
ipsum quod est esse sit commune sicut genus, esse separatum per se subsistens non potest esse nisi
unum. Si vero non dividatur differentiis, sicut genus, sed per hoc quod est huius vel illius esse, ut
veritas habet; magis est manifestum quod non potest esse per se existens nisi unum. Relinquitur
igitur quod, cum Deus sit esse subsistens, nihil aliud praeter ipsum est suum esse.” (SCG I, c. 52,
n. 3)
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Da via resolutionis 134
No tocante à analogia entre o ser (esse) e a natureza comum ou genérica,
deve-se observar que, para Tomás, o ser jamais é um gênero. Entretanto, a
analogia com o gênero, assim como a analogia com as formas acidentais (calor ou
brancura), serve como suporte para a ilustração da tese que se almeja justificar.
Afinal, se uma natureza específica ou genérica fosse subsistente em si mesma,
separada de tudo o mais, seria necessariamente única. Tanto aqui como no caso da
analogia com as formas acidentais, Tomás procura salientar a unicidade da
perfeição ou forma separada em contraposição àquelas que são recebidas em um
sujeito. Deve-se ressaltar que, em nenhum dos casos, Tomás identifica realmente
e univocamente o ser (esse) a uma natureza específica ou genérica, mas, ao
contrário, ilustra seus princípios à partir de uma analogia com estas realidades.
Caso restasse ainda qualquer dúvida com relação à validade desta analogia,
seria suficiente observar que Tomás não está afirmando que existe realmente a
natureza específica ou genérica como uma realidade separada, assim como ele não
afirma a existência real e separada das formas acidentais. Ao contrário, ele parte
da hipótese meramente especulativa da existência de tais realidades como
subsistentes em si mesmas para mostrar por semelhança a impossibilidade de
existir mais de um ente cuja essência seja idêntica ao seu próprio ser (ipsum esse).
Assim como se houvesse uma natureza genérica subsistente em si, a mesma
não possuiria as diferenças que constituem as espécies e que servem para dividir o
gênero e se houvesse uma natureza específica subsistente em si, a mesma não teria
as diferenças que constituem os indivíduos e que servem para dividir a espécie,
assim também o esse subsistente em si mesmo não possui nenhuma diferença em
si mesmo que possa multiplicá-lo. Mas, se os gêneros e as espécies podem se
multiplicar pela adição (additio) de uma diferença (específica no caso dos
gêneros; numérica no caso das espécies), o esse não pode se multiplicar pela
adição de uma diferença, mas tão somente pela recepção em um sujeito diverso do
próprio esse (terceiro modo de multiplicação exposto no quarto capítulo do De
ente et essentia)
303
.
303
É claro que o ser subsistente por si mesmo (ipsum esse subsistens) não pode multiplicar-
se em nenhum dos três casos excluídos pelo De ente et essentia (c. 4). Quando afirmamos que o
esse pode ser multiplicado pela recepção em diversos sujeitos, isto só se aplica ao ser dos entes
que não são o ser subsistente por si mesmo. Somente nestes, o esse é multiplicado em razão da
essência que está para o ser como potência (potentia essendi).
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Da via resolutionis 135
Em relação ao terceiro argumento da Suma Contra os Gentios, Tomás
procura demonstrar a impossibilidade de existirem dois entes que sejam o seu
próprio ser a partir da premissa segundo a qual é impossível que haja mais de um
esse absolutamente infinito. Este novo princípio argumentativo é justificado a
partir da própria definição do que é o esse absolutamente infinito. Para Tomás, o
esse absolutamente infinito é “o que abarca todas as perfeições do ser” (omne
perfectionem essendi comprehendit). Ora, se por hipótese, mais de um esse fosse
absolutamente infinito, então não se encontraria nenhuma diferença entre ambos,
já que ambos abarcariam todas as perfeições do esse. Contudo, neste caso, se não
houvesse nenhuma diferença, então o esse absolutamente infinito, por definição,
não poderia ser senão único
304
.
Ainda neste argumento, Tomás justifica a impossibilidade proposta na tese
dizendo que o esse absolutamente infinito não está limitado por nenhum sujeito
recipiente. Há aqui a introdução de um dos princípios mais fecundos da metafísica
tomista, a saber: o ato não pode ser limitado senão por um princípio receptivo, isto
é, pela potência correspondente. Em outras palavras, o ato em si mesmo é sempre
e necessariamente ilimitado
305
. Graças a este princípio, Tomás pode concluir que é
impossível haver mais de um ser absolutamente infinito na medida em que, se
houvesse, haveria uma diferença entre ambos quer porque um possuiria uma
perfeição de ser distinta do outro (o que contradiz a definição do ser
absolutamente infinito como o que abarca todas as perfeições do ser), quer ainda
porque um seria limitado em relação ao outro em razão da diversidade do sujeito
recipiente do ser (o que contradiz igualmente a definição do ser absolutamente
infinito que é idêntico ao seu próprio ser).
Os três raciocínios propostos na Suma Contra os Gentios (II, 52, #1-#3)
para a demonstração da distinção entre ser e essência nos entes, com exceção do
único ser que é o seu próprio ser, introduzem e pressupõem a existência de Deus
como parte integrante do argumento. Mas, nem a estrutura lógica do argumento,
304
“Impossibile est quod sit duplex esse omnino infinitum: esse enim quod omnino est
infinitum, omnem perfectionem essendi comprehendit; et sic, si duobus talis adesset infinitas, non
inveniretur quo unum ab altero differret. Esse autem subsistens oportet esse infinitum: quia non
terminatur aliquo recipiente. Impossibile est igitur esse aliquod esse subsistens praeter primum.”
(SCG II, c. 52, n. 4).
305
Sobre o princípio segundo o qual o ato não é limitado senão pela potência receptiva,
confira : J.-D. Robert (1949, p. 44-70); W. N. Clarke (1952, p. 167-194), J. Wippel (1998, p. 533-
564 ); J.C. Soo Meng (2001, p. 41-51).
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Da via resolutionis 136
nem seus princípios dependem da prévia demonstração da existência de Deus.
Afinal, em todos os argumentos apresentados até aqui, Tomás parte da
impossibilidade da existência de dois entes que sejam o seu próprio ser para
demonstrar que: 1) há pelo menos um ser cuja essência é idêntica ao seu próprio
ser; 2) a multiplicação do ser nos entes que não são o seu próprio ser só é possível
pela recepção do ser em um sujeito diverso do próprio ser (exclusão da
multiplicação pela adição de uma diferença); 3) todos os entes que possuem o ser,
mas não são o seu próprio ser, recebem o ser em um princípio potencial (potentia
essendi) realmente distinto do ser (ora denominado de essência, ora de substância,
qüididade ou forma); 4) a composição entre essência e ser nos entes que não são o
seu próprio ser é uma composição de potência e ato, participante e participado
306
.
Dentre os argumentos de Tomás para a distinção entre o ser e a essência nos
entes, destacam-se ainda os relativos ao caráter participado do ser nos entes
particulares. Com freqüência, é a partir da consideração do ente como realidade
participante do ser (actus essendi) que Tomás justifica a estrutura compositiva de
ser e essência nos entes, como uma estrutura de ato e potência
307
. Em outras
ocasiões, Tomás percorre o caminho inverso, ou seja, a partir da composição de
ser e essência nos entes, conclui pela participação da essência no ato de ser
308
.
Dada a relevância da teoria da participação para a compreensão do pensamento
metafísico de Tomás, é oportuno considerar mais detalhadamente os argumentos
em favor da distinção entre essência e ser nos entes particulares que se estruturam
segundo a via da participação.
Dentre estes argumentos que partem do caráter participado do ser para a
distinção de essência e ser nos entes, aqueles propostos na segunda lição do
Comentário ao De Hebdomadibus de Boécio servem como justificativas para a
seguinte tese: “assim como o ser [esse] e o que é [id quod est] diferem na ordem
das intenções, assim também nos entes compostos os mesmos diferem
306
Além dos argumentos considerados até aqui, poder-se-iam analisar outros propostos por
Tomás. Em todos os casos, veríamos o santo Doutor defendendo a impossibilidade da existência
de dois seres que sejam o seu próprio ser para concluir que nos demais entes o ser é diverso da
essência. É o que ocorre, por exemplo, nos argumentos presentes em: De Spirit. Creat., a. 1 (ca.
1267-1268); De Subst. Sep., c. 8 (ca. 1271).
307
Cf. In Phys., VIII, lc. 21, n.1153 (supra).
308
Cf. Quodl., II, q. 2, a. 1.
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Da via resolutionis 137
realmente”
309
. O primeiro argumento em favor da distinção real parte de duas
considerações. A primeira sustenta que o próprio ser (ipsum esse) não participa de
nenhuma outra coisa, enquanto a segunda afirma que o próprio ser (ipsum esse)
não admite nenhum acréscimo ou adição de uma realidade ou conteúdo formal
extrínseco. Por essa razão, conclui Tomás, o próprio ser (ipsum esse) não pode ser
composto
310
. Mas, se o ipsum esse não é composto, então as coisas compostas de
esse e id quod est participam do próprio ser (participatum ipsum esse), mas não
são o seu próprio ser
311
.
O segundo argumento, por sua vez, mostra que toda substância que não é
simples absolutamente é composta realmente de ser e essência
312
. A fim de
justificar esta tese, Tomás considera que as coisas podem ser ditas simples
absolutamente (simpliciter) ou relativamente (secundum quid). No primeiro caso,
diz-se simples aquela substância que carece de toda e qualquer composição. No
segundo, diz-se simples o que carece de alguma composição (p.ex., a composição
de matéria e forma), mas não carece de toda composição
313
.
Dentre as coisas ditas simples secundum quid, Tomás destaca as formas
materiais simples e as formas simples não existentes na matéria. Em relação ao
primeiro, o fogo e a água podem ser ditos simples enquanto carecem da
composição que existe a partir dos contrários, o que ocorre nas coisas mistas
314
.
Em relação ao segundo, as formas imateriais são ditas simples enquanto carecem
da matéria e da quantidade. Neste momento, Tomás sustenta que toda forma é
determinativa do próprio ser (determinativa ipsius esse), mas nenhuma é seu
309
“Est ergo primo considerandum, quod sicut esse et quod est differunt in simplicibus
secundum intentiones, ita in compositis differunt realiter” (In De Hebd., lc. 2)
310
“Dictum est enim supra, quod ipsum esse neque participat aliquid, ut eius ratio
constituatur ex multis; neque habet aliquid extraneum admixtum, ut sit in eo compositio
accidentis; et ideo ipsum esse non est compositum.” (ibid.)
311
“Res ergo composita non est suum esse: et ideo dicit, quod in omni composito aliud est
esse, et aliud ipsum compositum, quod est participatum ipsum esse.” (ibid.)
312
“Deinde cum dicit, omne simplex, ostendit qualiter se habet in simplicibus; in quibus est
necesse quod ipsum esse et id quod est, sit unum et idem realiter. Si enim esset aliud realiter id
quod est et ipsum esse, iam non esset simplex, sed compositum.” (ibid.)
313
“Est tamen considerandum, quod cum simplex dicatur aliquid ex eo quod caret
compositione, nihil prohibet aliquid esse secundum quid simplex, inquantum caret aliqua
compositione, quod tamen non est omnino simplex.” (idib.)
314
“Unde ignis et aqua dicuntur simplicia corpora, inquantum carent compositione quae est
ex contrariis, quae invenitur in mixtis; quorum tamen unumquodque est compositum tum ex
partibus quantitatis, tum etiam ex forma et materia.” (ibid.)
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Da via resolutionis 138
próprio ser (nulla est ipsum esse), mas tem o ser (habens esse)
315
. Com isso, é
evidente que se houvesse uma forma imaterial subsistente não decorreria
imediatamente daí que tal forma seria simples absolutamente falando (simplex
simpliciter), pois tal simplicidade é atributo exclusivo do ser tão somente ser (esse
tantum).
Para elucidar este ponto de sua argumentação, Tomás compara suas
premissas à opinião de Platão que sustentava a subsistência das formas imateriais
enquanto idéias e razão das coisas materiais e à de Aristóteles que concebia como
simples somente as inteligências separadas. Em nenhum destes casos, as formas
separadas são absolutamente simples, uma vez que não se identificam com o seu
próprio ser comum (non est ipsum esse commune). Como cada forma separada é
uma forma específica que se distingue de qualquer outra forma separada, a mesma
participa do ser (esse) e não é o seu próprio ser (non est ipsum esse). Por esta
razão, conclui Tomás, as formas separadas são ditas simples pela ausência de
composição com a matéria e a quantidade, mas são ditas compostas na medida em
que participam do próprio ser (est participans ipsum esse)
316
. Em suma, Tomás
sustenta, para além da tradição platônica e aristotélica, que toda substância ou
forma subsistente que não é idêntica ao seu próprio ser (simplex simpliciter)
possui uma simplicidade relativa (secundum quid) em razão da existência de uma
outra ordem de composição entitativa, a saber: a da forma como participante do
próprio ser (ipsum esse)
317
.
Para os fins imediatos desta investigação, importa destacar que em nenhum
momento do comentário à distinção boeciana entre esse e id quod est, Tomás
depende da prévia demonstração da existência de Deus para justificar a
demonstração, pela via da participação, da composição real de ser e forma até
mesmo nos entes simples secundum quid. É a emergência do ipsum esse à
315
“Si ergo inveniantur aliquae formae non in materia, unaquaeque earum est quidem
simplex quantum ad hoc quod caret materia, et per consequens quantitate, quae est dispositio
materiae; quia tamen quaelibet forma est determinativa ipsius esse, nulla earum est ipsum esse, sed
est habens esse.” (ibid.)
316
“Puta, secundum opinionem Platonis, ponamus formam immaterialem subsistere, quae
sit idea et ratio hominum materialium, et aliam formam quae sit idea et ratio equorum: manifestum
erit quod ipsa forma immaterialis subsistens, cum sit quiddam determinatum ad speciem, non est
ipsum esse commune, sed participat illud: et nihil differt quantum ad hoc, si ponamus illas formas
immateriales altioris gradus quam sint rationes horum sensibilium, ut Aristoteles voluit:
unaquaeque illarum, inquantum distinguitur ab alia, quaedam specialis forma est participans ipsum
esse; et sic nulla earum erit vere simplex.” (ibid.)
317
Raciocínio similar encontra-se na Suma Teológica (I, q. 75, a. 5, ad 4).
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Da via resolutionis 139
condição de ato participado nos entes o que legitima a defesa de uma nova ordem
de composição nos entes jamais entrevista pela metafísica aristotélica ou
platônica. É esta nova ordem de composição que, na metafísica tomista,
fundamenta todas as demais ordens de composição e participação nos entes.
Trata-se da composição entre o princípio receptivo do ser, denominado de
potentia essendi, e o próprio ser enquanto ato de ser (esse ut actus essendi). Vale a
pena ressaltar mais uma vez que todo itinerário percorrido até aqui na
demonstração da composição real de essentia-esse nos entes é fundamentalmente
um percurso filosófico, estruturado pela via de resolução secundum rationem,
graças à qual se resolvem as composições dos entes (acidente e substância,
matéria e forma) na unidade de composição real de essentia-esse.
Retomemos, ainda que brevemente, o percurso que nos trouxe até aqui. A
busca pelo ato primeiríssimo do ente enquanto tal conduziu-nos à consideração da
releitura tomista da doutrina aristotélica sobre o ato e a potência. A descoberta
aristotélica da potência (dýnamis) como princípio real dos entes bem como sua
resolução no ato (enteléqueia) justifica-se graças a estrutura intrínseca dos entes
sensíveis que são essencialmente compostos. Além disso, toda resolução da
dýnamis está fundamentada no princípio da precedência ou prioridade ontológica
do ato sobre a potência bem como no princípio da dependência da potência em
relação ao ato. Se assim não fosse, ou seja, se a dýnamis não estivesse
essencialmente ordenada ao ato, não dependesse dele, nem tampouco com ele
entrasse em composição, então seria impossível a resolução metafísica pelas
causas intrínsecas e extrínsecas. É a descoberta por resolução da unidade de
composição real nos entes de essentia-esse, amplamente defendida pelo Aquinate,
que nos conduz a um horizonte metafísico jamais entrevisto anteriormente. A via
de resolução confirma, assim, seu caráter de fundação de todas as composições
dos entes e de todos os seus atos no ato de ser (actus essendi), que está para os
demais atos como o ato (participado) está para a potência (participante), mas não
o inverso. A dýnamis aristotélica eleva-se, enfim, à condição metafísica de
potentia essendi.
A via resolutionis secundum rationem nos levou, portanto, dos atos menos
comuns e menos universais (forma, essência, natureza ou substância) ao ato mais
comum e universal (ato de ser) através da resolução das composições dos entes na
composição de essentia-esse. Essa via é aquela que respeita plenamente a ordem
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Da via resolutionis 140
de descoberta filosófica do ser como ato e perfeição irredutível e intrínseca aos
entes. A emergência desta noção intensiva de ser é anunciada de modo
paradigmático na nona objeção do segundo artigo da sétima questão do De
Potentia, que deve servir como guia e medida da novidade da metafísica do
Doutor Angélico:
[7.2, ad 9] (...) o ser é, dentre todas as coisas, perfeitíssimo, o que torna isto
manifesto é que o ato é sempre a perfeição da potência. Por isso, toda forma
determinada não é concebida em ato senão por ter ser. Com efeito, a humanidade
ou a “igneidade” pode ser considerada enquanto existente na potência da matéria,
ou enquanto existente na virtude do agente, ou ainda enquanto existente no
intelecto, mas o que tem o ser torna-se um existente em ato. Logo, é evidente que o
ser é a atualidade de todos os atos e, por essa razão, é a perfeição de todas as
perfeições. Nem se deve pensar que ao ser se possa acrescentar qualquer coisa mais
formal que o determine, assim como o ato determina a potência; pois, um ser que é
deste gênero é distinto segundo a essência daquilo ao qual é preciso acrescentar
para o determinar. De fato, nada pode ser acrescido ao ser que seja externo ao
mesmo, uma vez que nada está fora do ser senão o não-ente, que não pode ser nem
forma nem matéria. Logo, não se determina o ser por outro como a potência pelo
ato, mas, sobretudo, como o ato pela potência. E, portanto, ao formar a definição,
não se põe a matéria própria no lugar da diferença, assim como se diz que a alma é
o ato do corpo físico orgânico. E, por isso, diz Dionísio, que ainda que o viver seja
mais nobre do que o existir, o ser é mais nobre do que viver, pois o que vive não
somente tem vida, mas com a vida simultaneamente tem ser.
318
Em relação ao trecho supracitado do De Potentia, é mister considerar: 1) a
ordem de exposição (via compositionis secundum rationem), inversa à ordem de
justificação filosófica (via resolutionis secundum rationem); 2) as implicações da
noção tomasiana do ser (esse) a partir de sua ordem de exposição e resolução
propriamente metafísica. Em relação à exposição, a série de afirmações sintéticas
que constituem a resposta de Tomás à nona objeção poderiam ser recapituladas na
318
“(...) esse est inter omnia perfectissimum: quod ex hoc patet quia actus est semper
perfectio potentia. Quaelibet autem forma signata non intelligitur in actu nisi per hoc quod esse
ponitur. Nam humanitas vel igneitas potest considerari ut in potentia materiae existens, vel ut in
virtute agentis, aut etiam ut in intellectu: sed hoc quod habet esse, efficitur actu existens. Unde
patet quod hoc quod dico esse est actualitas omnium actuum, et propter hoc est perfectio omnium
perfectionum. Nec intelligendum est, quod ei quod dico esse, aliquid addatur quod sit eo
formalius, ipsum determinans, sicut actus potentiam: esse enim quod huiusmodi est, est aliud
secundum essentiam ab eo cui additur determinandum. Nihil autem potest addi ad esse quod sit
extraneum ab ipso, cum ab eo nihil sit extraneum nisi non-ens, quod non potest esse nec forma nec
materia. Unde non sic determinatur esse per aliud sicut potentia per actum, sed magis sicut actus
per potentiam. Nam et in definitione formarum ponuntur propriae materiae loco differentiae, sicut
cum dicitur quod anima est actus corporis physici organici. Et per hunc modum, hoc esse ab illo
esse distinguitur, in quantum est talis vel talis naturae. Et per hoc dicit Dionysius, quod licet
viventia sint nobiliora quam existentia, tamen esse est nobilius quam vivere: viventia enim non
tantum habent vitam, sed cum vita simul habent et esse.” (QDP, q. 7, a. 2, ad 9).
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Da via resolutionis 141
seguinte ordem: (1) o ser é ato perfeitíssimo (actus perfectissimus); (2) toda forma
é concebida em ato pelo ato de ser (actus essendi); (3) o ser é ato de todos os atos
e perfeição de todas as perfeições; (4) o ser enquanto ato de ser (esse ut actus
essendi) é outro em relação à essência, diferindo ainda do ente comum (ens
commune); (5) ao ato de ser (actus essendi) nada se pode acrescentar como algo
mais formal ou como realidade extrínseca ao próprio ser (ipsum esse); (6) todas as
coisas estão para o ser como a potência está para o ato.
A ordem de exposição da resposta à nona objeção é de natureza
evidentemente compositiva (via compositionis secundum rationem) uma vez que a
reflexão metafísica se instaura, desde o início, sob a afirmação do ser como ato de
todos os atos e perfeição de todas as perfeições para deduzir daí que nada pode ser
acrescido ao esse e que tudo o mais se comporta em relação ao esse como a
potência em relação ao ato. Mas, como a perspectiva própria à reflexão metafísica
é que o ponto de partida e o ponto de chegada coincidem efetivamente, a
afirmação do ser como ato do ente e a afirmação do ser como ato de todos os atos
e perfeição de todas as perfeições implicam-se mutuamente
319
.
A resolução secundum rationem propriamente dita está aqui implícita, uma
vez que Tomás segue a explicação do que concebe por ser (“hoc quod dico
esse”
320
) a partir de uma premissa sintética, o que ordena o raciocínio segundo a
via de composição secundum rationem, a qual procede do princípio intrínseco
formal mais universal e comum aos entes aos demais princípios ou efeitos que são
particulares face ao esse. Reconhecer o caráter explicitamente compositivo deste
trecho capital do De Potentia é imprescindível para a apreciação analítica do
argumento segundo a ordem da descoberta filosófica (secundum via resolutionis),
que segue a ordem inversa à da via compositiva (via compositionis secundum
rationem).
Como mencionado previamente, a resolução de todos os atos e de todas as
perfeições do ente no ato de ser (actus essendi) tem como ponto de partida a
ordem de composição dos entes e como princípios basilares tanto a prioridade
metafísica do ato sobre a potência quanto a dependência desta em relação àquele.
319
Cf. C. Fabro (1960b, p. 252).
320
São raras as ocasiões em que um autor medieval escreve em primeira pessoa, o mesmo
vale quase incondicionalmente para Tomás de Aquino. O caráter pessoal deste trecho do De
Potentia é revelador de uma consciência profunda da novidade aportada pela sua compreensão
filosófica do ser enquanto ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições.
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Da via resolutionis 142
Considerando que o que é mais evidente para nós é a realidade sensível submetida
ao devir e que o movimento não pode existir senão pela realidade dos contrários,
todo ente sensível é necessariamente composto, segundo a composição de
potência e ato. É a consideração da ordem de composição a partir da ordem
dinâmica (o que move está para o movido segundo a ordem da causalidade) que
manifesta o caráter resolutivo da transição intelectual do ato como ação ou
operação do ente ao ato como perfeição ou determinação intrínseca ao ente. Por
isso, a “intuição” genuinamente aristotélica do binário potência-ato e das
composições que dele resultam (substância e acidente, matéria e forma) são
compreendidas, doravante, à luz do ato de ser (actus essendi).
Dentre todos os princípios constitutivos do ente, aquele pelo qual o ente
possui realidade e atualidade, garantindo a sustentação de todas as ordens de
composição do ente, é o ser (esse). Por essa razão, todas as coisas estão para o ser
como a potência está para o ato. O ser (esse) é o primeiro dentre todos os atos e,
portanto, a forma e todos os demais atos do ente são potências em relação ao ser
(potentia essendi). Os outros atos do ente, que são particulares e se consideram
atos com relação às próprias e imediatas potências, devem se chamar potências e
em potência com relação ao primeiro de todos os atos que é o ser (esse). A divisão
do ente em essência (potência) e ser (ato) penetra, assim, com mais profundidade
a divisão aristotélica do ente em forma (ato) e matéria (potência), resolvendo as
esferas constitutivas, compositivas e dinâmicas do ente no ser (esse).
Uma vez encontrado pela via resolutiva o fundamento de toda as
composições do ente no ser (esse), entendido como ato fundante (esse ut actus
essendi), Tomás pode concluir que não se pode agregar ao ser (esse) nada que lhe
seja estranho, ou seja, extrínseco. Ora, o contrário do ser (esse) é o não-ser
absoluto. Considerando que não se pode acrescentar o não-ser ao ser
321
, é evidente
que tudo o que se acrescenta ao ser deriva sua perfeição do próprio ser (ipsum
esse). Por essa razão, nada está para o ser (esse) como algo extrínseco.
Se concordarmos com Tomás que o esse é ato de todos os atos e perfeição
de todas as perfeições, então toda vez que o esse emerge nos entes não o faz senão
de modo limitado e restrito e não de modo pleno e absoluto. Mas, se o esse nos
entes não se encontra de modo pleno e absoluto é em razão de um princípio
321
Cf. QDP, q. 9, a. 7, ad 15; In Met., lc. 9, n. 889.
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Da via resolutionis 143
intrínseco que o recebe limitando e limita recebendo. Um tal princípio não pode
ser senão a potência cujo ser depende intrinsecamente do actus essendi. É sempre
a potentia essendi (essência ou forma) o que recebe e limita o actus essendi.
Assim sendo, a razão da finitude do esse nos entes que não são o seu próprio ser
não pode ser suficientemente esclarecida senão por um princípio intrínseco
portador do esse de modo restrito e limitado.
Em sendo ato irredutível e pleno, o ser (esse) jamais se comporta como
potência em relação a qualquer outra coisa ou perfeição. Ao contrário, tudo o que
é acrescido ao ser o é como uma restrição do ser uma vez que tudo o que é está
para o ser como o princípio receptivo está para a perfeição recebida. Mas, deve-se
observar que todas estas restrições já se encontram originariamente contidas no
ser, que é o ato e a perfeição sem restrição alguma. É por isso que o Aquinate
pode afirmar que as formas e todas as operações derivadas delas, embora
determinem limitando e restringindo o ser, não são acrescidas ao ser como algo
extrínseco. O ser é sempre o princípio a quo de toda e qualquer perfeição dos
demais princípios constitutivos do ente (id quod habet esse), conferindo a
definitiva atualidade ao que é (quod est) enquanto tal.
Em razão da prioridade metafísica do ato sobre a potência e da dependência
desta em relação àquele ao qual é ordenada, resulta ainda que o ser (esse) é
perfeição primeiríssima em relação a todas as coisas e que tudo o que é depende
intrinsecamente do ato de ser (esse ut actus essendi). Sustentar resolutivamente a
prioridade absoluta do ser (esse) em relação aos demais atos do ente (ens) e a
dependência de todos os constituintes do ente em relação ao próprio ser (ipsum
esse), é compreender, por outro lado, que o ser é ato último já que toda atualidade
diversa do ser deriva sua perfeição do próprio ser (ipsum esse). Com efeito, tudo
aquilo que é em potência e em ato não possui atualidade senão enquanto tem ser
(habet esse).
Neste contexto, deve-se ressaltar ainda que o ser (esse) não é uma perfeição
meramente possível, mas uma perfeição realíssima sem a qual tudo o que é cairia
no absoluto não-ser. Que o ente é em ato (ens in actus) pelo ato de ser (actus
essendi) é uma afirmação autenticamente tomista, conseqüência legítima da
resolução de todos os atos e perfeições do ente (ens) no ser (esse). Todavia, não se
deve entendê-la como se o ser fosse simplesmente uma condição da possibilidade
da existência do ente, tal como propõe Avicena. O ser (esse) não é uma perfeição
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Da via resolutionis 144
possível acrescida ao ente, concebido essencialmente ou idealmente como algo
extrínseco ao próprio ser.
Todas as perfeições constitutivas do ente (quer seja na ordem acidental ou
na ordem substancial, quer ainda na ordem essencial de composição de matéria e
forma) bem como as perfeições operativas podem ser consideradas como
realidades existentes ou não, possíveis ou não, quer isto ocorra graças à virtude do
agente quer do intelecto, mas o ser (esse) não pode ser concebido senão como
perfeição real, atual e intensiva, raiz de qualquer outra perfeição do ente. Tudo o
que tem ser (id quod habet esse) tem sua fonte de realidade, perfeição e
sustentação intrínseca no ato de ser (actus essendi).
Mesmo se considerada na ordem do possível, a noção de qualquer realidade
depende do ato de ser. Como o ser subordina a si não só as perfeições
constitutivas, como a forma do ente em ato (ens in actus) que depende do ser tanto
para ser quanto para ser concebida em ato, mas também os atos enquanto
operações e ações dos entes, o próprio ato de intelecção e seus efeitos se fundam
em última instância no ato de ser. Por isso, a afirmação da dependência da
intelecção da forma em relação ao ser pode ser complementada pela resolução das
operações do cognoscente no ato de ser. Em suma, a resolução secundum
rationem desvela o caráter fundante do ser em relação à forma do ente em ato, à
forma inteligível (ratio) e ao próprio ato de intelecção, completando, assim, o
processo instaurado pelo juízo de separatio em relação à ratio entis, objeto formal
da metafísica. Por isso, não se deve confundir a noção de ser ou ente comum (ens
commune) com a de ser enquanto ato de ser (esse ut actus essendi).
Ao afirmar que o ser é o ato de todos os atos e a perfeição de todas as
perfeições, Tomás sintetiza de modo definitivo o caráter intensivo e absoluto do
ipsum esse face às demais perfeições constitutivas e operativas dos entes, que
dependem intrinsecamente do ato de ser (actus essendi). A síntese de todas as
perfeições e de todos os atos no ato de ser responde tanto pela exigência de um
termo último para a resolução secundum rationem (pois, é impossível proceder
aqui ao infinito já que para além do ser não há absolutamente nada), quanto pela
necessidade de encontrar um princípio primeiríssimo de derivação dos princípios
constitutivos (ordem de composição) e dinâmicos (ordem de causalidade) dos
entes. Por isso, a resolução metafísica do ente sub ratione entis no ato de ser
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Da via resolutionis 145
(actus essendi) é uma verdadeira via de fundação, única capaz de realizar
plenamente as exigências da investigação metafísica.
É possível depreender do exposto até aqui a dimensão paradigmática do ser
(esse) para toda e qualquer resolução metafísica. Com efeito, a estrutura
compositiva de sujeito (potência) e ato, encontrada na experiência do devir dos
entes (principium nostrae cognitionis est a sensu
322
) exige a resolução metafísica
(secundum rationem) do conhecimento dos entes singulares ao conhecimento de
seus princípios intrínsecos mais universais e comuns. A metafísica parte do ente
como primum cognitum no qual se resolve toda outra intelecção, pois o ente está
implícito em toda e qualquer noção (ratio) e realidade (res).
Mas, partir do ente (ens) não é partir do ato de ser (actus essendi). O esse
não nos é dado imediatamente na intelecção do ente senão como esse commune,
conteúdo inteligível necessário e irredutível da ratio entis, desvelado pela
separatio. O esse só nos é dado a conhecer como ato do ente na dependência da
resolução das composições do ente na composição de essentia-esse, em um
processo gradativo de fundação da potência no ato. Dito de outro modo, a
resolução da diversidade de composições reais nos entes à unidade analógica do
ato de ser se alcança por um processo de fundação, na expressão de C. Fabro, e
não por uma dedução ou intuição a priori. Transitar dos atos mais superficiais e
instáveis aos mais constitutivos e permanentes e destes ao ato de todos os atos é
alcançar o ser como ato (esse ut actus essendi).
Essa resolução se sustenta como um corolário da separatio e não da
abstractio e tem seu termo último na afirmação da composição de essentia-esse,
como uma unidade de composição de potência e ato, comum a todos os entes.
Assim como é impossível reduzir a ratio entis a uma ratio mais fundamental,
assim também é impossível reduzir o ato de ser (actus essendi) a um ato mais
fundamental. Se assumirmos que o ser (esse) é o ato de todos os atos e a perfeição
de todas as perfeições, caberá sempre e exclusivamente ao metafísico a tarefa
constante de conduzir cada descrição e compreensão do real à sua plena fundação
no ser (esse). Para a investigação metafísica, o ser (esse) sempre será a
concretização da busca dos princípios e causas do ente enquanto tal, revestindo-se
de um caráter paradigmático e regulativo para as demais vias filosóficas. A
322
Cf. STh I, q. 84, a. 7, co.
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Da via resolutionis 146
resolução metafísica de todos os atos e de todas as perfeições dos entes no ser
(esse) não é, portanto, mais uma alternativa metodológica, dentre as inúmeras já
propostas pelos filósofos, mas constitui, face à prioridade absoluta do ser (esse), a
via por excelência da própria filosofia, que não renuncia a ser primeira como
primeiro é seu objeto formal. A afirmação da prioridade transcendental do ser
(esse) em relação a todo e qualquer ato constitutivo e operativo do ente (ens) é,
sem dúvida, a originalidade de Tomás face à herança filosófica de seu tempo.
Neste horizonte, a perspectiva tomista não padece daquela gigantomaquia sobre a
forma ou a substância, contemporaneamente atribuída ao aristotelismo.
3.2
Resoluções secundum rem
A resolução secundum rationem é exemplar por não se deter em nenhuma
outra perfeição metafísica do ente (ens) senão no ser (esse). É exemplar também
por não se exaurir em si mesma, mas exigir do filosófico um esforço ulterior para,
em sede racional e de modo gradativo, encontrar a causa extrínseca dos entes
enquanto tais. Esse princípio extrínseco lhe é acessível por uma resolução especial
capaz de assumir as aquisições filosóficas anteriores em nova perspectiva. Em
outros termos, o ser (esse) dos entes agora não deve ser considerado mais como
termo último, mas sim como ponto de partida da ascensão filosófica à causa
primeiríssima e universalíssima do ser, efeito primeiríssimo e comuníssimo em
todos os entes (primum effectus est ipsum esse).
A ordem da descoberta metafísica se complementará, assim, na passagem da
resolução secundum rationem à resolução secundum rem. É preciso, com efeito,
resolver o efeito comum na causa primeira que possui tal perfeição como própria
(effectum communem oportet reducere in priorem causam cuius sit proprius
323
).
A consolidação desta passagem se dá, em Tomás, pela resolução do ser dos entes
no próprio ser subsistente (ipsum esse subsistens), graças aos princípios de
causalidade e participação. Para tanto, é imprescindível demonstrar que é
impossível que o esse seja causado apenas pelos princípios essenciais da própria
coisa (impossibile est quod esse sit causatum tantum ex principiis essentialibus
323
QDP q. 7, a. 2, co.
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Da via resolutionis 147
rei
324
). Do contrário, qualquer busca por uma causa do esse extrínseca aos entes
estaria invalidada a priori, uma vez suposta a possibilidade da essência ser o
princípio do esse; o que Tomás considera obviamente impossível, pois a forma
não pode ser o princípio do ser (forma non potest esse principium essendi
325
).
A importância das resoluções secundum rationem se depreende tanto pela
descoberta da distinção e composição de essentia-esse nos entes, quanto pelo
reconhecimento do caráter participado do ser (esse), que está para a essência como
o ato está para a potência, o participado está para o participante. Assumidas essas
conclusões a respeito dos princípios metafísicos dos entes finitos, Tomás pode
elaborar as resoluções secundum rem responsáveis por demonstrar que o ser (esse,
quo est) assim como o ente enquanto tal, é causado extrinsecamente (ab aliquo
exteriori) pelo ser tão somente ser (esse tantum). Neste sentido, a resolução
secundum rem introduz-nos mais profundamente na metafísica da participação e
da causalidade de Tomás de Aquino, demonstrando efetivamente a dependência
de todos os entes do ser que é seu próprio ser (ipsum purum esse).
Enquanto a doutrina do ato e da potência guiou a análise anterior, centrada
na resolução secundum rationem dos princípios constitutivos dos entes na
composição de essência e ser, a doutrina da participação orientará o exame dos
argumentos segundo a via da resolução secundum rem
326
. Vale aqui a mesma
atenção quanto à forma e à natureza realmente filosófica da resolução metafísica
pelas causas extrínsecas e dos argumentos que a desenvolvem com o intuito de
mostrar que o pensamento do Aquinate se desenvolve segundo um itinerário claro
e rigoroso, sem o qual não se responderia pela ordem de descoberta filosófica.
324
STh I, q. 3, a. 4, co.
325
QDP q. 5, a. 1, ad 18.
326
Esta ordenação dos argumentos encontra-se desenvolvida na tese de doutorado da Profa.
Susan Selner (The metaphysics of creation in Thomas Aquinas’ De Potentia Dei, 1992), que
assumimos como principal interlocutora desta parte de nossa apresentação do De Potentia. A
principal diferença da análise apresentada aqui em relação à da autora consiste na compreensão do
itinerário metafísico dos argumentos relativos à criação como pertencentes à ordem de descoberta
filosófica propiciada pela resolutio secundum rem, tema ausente da referida tese.
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Da via resolutionis 148
3.2.1
Resoluções segundo a via da participação
Dentre os argumentos resolutivos secundum rem, os relativos à
participação permitem entrever de modo privilegiado a originalidade da síntese
tomista do esse em relação à clássica separação entre a doutrina platônica da
participação e a metafísica aristotélica da causalidade. O sentido transcendental da
doutrina tomista da causalidade em relação àquela aristotélica não se pode aferir
senão pela adesão de Tomás à teoria neoplatônica da participação
327
. Por seu
turno, o sentido imanente desta última só se pode compreender à luz da teoria
aristotélica da causalidade. Mas, nem a teoria platônica de participação nem a
aristotélica da causalidade, consideradas em sua irredutibilidade histórica, podem
por si só explicar a nova perspectiva metafísica em que se insere Tomás de
Aquino. Somente a concepção do esse como ato intensivo dos entes esclarece o
novo modo de relação entre a causa e o efeito, o participado e o participante,
defendido por Tomás. Afinal, o esse emerge nos entes como realidade
comuníssima e universalíssima, cuja prioridade ontológica faz com que tudo o
mais que pertença ao ente pressuponha o esse e dele participe, mas o ipsum esse
não pressupõe nada ulterior a si mesmo.
Os argumentos resolutivos que almejam a determinação da causa
extrínseca dos entes segundo a via da participação podem ser subdivididos de
acordo com os princípios resolutivos nos quais se alicerçam. Assim, transitar
intelectualmente do efeito comum a muitos à causa única e universal, ou do que é
por outro (per alterum) ao que é por si (per se), ou ainda do que é por participação
(per participationem) ao que é por essência (per essentiam) constitui a riqueza da
via de Platão (ratio Platonis), como denomina o próprio Tomás
328
.
Na ordem de exposição do próprio De Potentia, os argumentos resolutivos
secundum rem ocupam uma posição chave ao longo da terceira questão, relativa à
criação. O modo de conceber a criação e, por ela, a dependência do ente que não é
327
Esta adesão deverá ser, obviamente, qualificada. Para evitar qualquer mal entendido, é
suficiente dizer, como sugere C. Fabro (1960b, p. 194), que Tomás acolhe uma doutrina platônica
de participação e não uma doutrina de participação platônica. A filiação de Tomás à teoria da
participação e à teoria da causalidade sempre ocorre segundo as exigências de sua própria e
original compreensão do ser (esse ipsum).
328
QDP, q. 3, a.5, co.
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Da via resolutionis 149
o seu próprio ser em relação ao ipsum esse subsistens é decisiva para a
determinação da grandeza da potência da causa primeiríssima de todas as coisas.
A origem judáico-cristã do tema da criação não deve ofuscar, porém, a dimensão
verdadeiramente filosófica de sua descoberta
329
. A afirmação da criação de todas
as coisas a partir de uma causa primeiríssima, em sede filosófica, exige ser
justificada racionalmente. É a resolução secundum rem que oferece ao filósofo a
via de fundação e derivação de todos os entes a partir do ipsum esse subsistens.
No quinto artigo da terceira questão do De Potentia, Tomás investiga se é
possível existir qualquer coisa que não seja criada por Deus. Em sua solução,
introduz uma breve história da metafísica que explica o desenvolvimento desta
ciência como uma busca gradativa da causa universal de todas as coisas, com
especial relevância para a concepção da causa eficiente da própria matéria
330
.
Deste modo, a diferença entre as diversas concepções filosóficas não
testemunham um conflito insuperável (diaphonia), mas encontram seu valor no
autêntico esforço humano de proceder a partir do que é mais acessível a nós (a
realidade sensível) ao que é mais cognoscível em si mesmo (a realidade
inteligível).
A descrição que se segue é evidentemente uma interpretação da histórica
busca da causa primeira de todas as coisas, pela qual se revela que a via de
resolução marca desde os seus primórdios a filosofia que das causas mais
particulares ascendeu ao conhecimento das causas mais comuns e universais. Os
antigos filósofos, descreve o autor do De Potentia, procedendo de acordo com a
ordem do conhecimento humano (ordine cognitionis humanae processerunt
antiqui), investigaram os princípios das coisas, identificando-os aos elementos
sensíveis e, pouco a pouco (ex his paulatim), ocuparam-se das coisas inteligíveis.
Num primeiro momento, os antigos identificaram a substância primeira à matéria
incausada, concebendo as formas como meros acidentes da matéria. A
329
Como de modo exemplar esclarece De Finance (1960, p. 120) a respeito da dimensão
filosófica da criação: “Peu importe que l’idée d’une origine radicale des choses soit, de fait, un
apport judéo-chrétien (...). La genèse de ceux-ci a bien pu être commandée par un concept
d’origine extra-philosophique : cela ne nous interdit pas de chercher comment, une fois justifiés
pour eux-mêmes devant l’esprit, ces élements (en particulier, la notion de l’esse étudiée plus haut)
appellent à leur tour, par une exigence rationnelle, la notion qui les introduisit.”
330
Esta breve história da elaboração do conceito de causa eficiente, em grande parte
inspirada pelo próprio Aristóteles, é retomada por Tomás em diversas partes de sua obra, com
nuâncias significativas que, porém, não podem ser objeto de análise aqui. Confira, por exemplo:
QDP q. 3, a. 6, co.; STh I, q. 44, a. 2, co.; SCG. II, 16; De Subst. Separatis, c. 2.
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Da via resolutionis 150
consideração posterior sobre a forma como realidade substancial e não mero
acidente da matéria significou um avanço em direção à realidade inteligível. No
entanto, esta primeira consideração da forma substancial era dirigida ainda para
certas formas especiais consideradas de modo particular, e não puramente
universal. E, por isso, os filósofos deste período identificaram certas formas
particulares (o intelecto, a amizade e o ódio, etc.) como causas eficientes da
separação e da congregação, que pressupõem sempre a matéria como realidade
incausada. Para Tomás, coube a Platão e a Aristóteles considerarem o próprio ser
universal (ipsius esse universalis) e, por isso, conceberam uma causa universal das
coisas, pela qual tudo o que é vem a ser (a qua omnia alia in esse prodirent)
331
.
Dos elementos sensíveis às coisas inteligíveis, da substância material à
imaterial, das formas acidentais às substanciais, das formas particulares às mais
universais e separadas, e destas à consideração do próprio ser universal, a via
resolutionis marca toda a histórica busca das causas últimas. É neste panorama da
busca da causa universal dos entes que Tomás insere seus três argumentos em
favor da demonstração da causa universal do que é enquanto tem ser (id quod
habet esse). Cada argumento (ratio) é atribuído a um filósofo: o primeiro pertence
à via de Platão (ratio Platonis); o segundo à de Aristóteles (ratio Philosophi); e o
terceiro à de Avicena (ratio Avicennae).
O primeiro deles, a “ratio Platonis”, mostra que o segredo da unidade das
coisas não pode ser procurado no plano mesmo no qual elas se distinguem
332
,
recebendo a seguinte formulação em Tomás de Aquino:
[3.5 #1] É necessário, com efeito, no caso de existir qualquer coisa de comum a
muitas coisas, que isto seja causado nelas por uma única causa; com efeito, é
331
QDP q. 3, a.5, co. A legitimidade da descrição tomista do “progresso” da metafísica dos
antigos filósofos a Platão e Aristóteles é objeto de controvérsia, sobretudo, em relação à atribuição
de uma metafísica da causa universal dos seres e da matéria a Platão e Aristóteles. Afinal, tanto
para Platão quanto para Aristóteles, a matéria é uma realidade incausada. Para uma comparação
desta passagem do De Potentia àquelas encontradas na Summa Theologiae (I, q. 44, a. 2) e no De
substantiis separatis (IX), confira a tabela proposta em: DE FINANCE, J. Être et agir dans la
philosophie de Saint Thomas, p. 128, n. 18, 1960. Para um discussão de sua legitimidade, confira:
STEENBERGHEN, F. Le problème de l’existence de Dieu dans les questions disputées De
potentia Dei. Pensamiento, p. 252, 1969. Há quem, como M. Johnson (1989), em oposição a É.
Gilson, utilize-se desta passagem como suporte para afirmar que Tomás atribui realmente a
Aristóteles uma doutrina da criação.
332
Segundo as palavras de De Finance (1960, p. 129): “Le secret de l’unité des choses ne
peut être cherché sur le plan même où elles se distinguent. Il faut dépasser tout l’ordre des
essences pour trouver le noeud intelligible du réel.”. Para uma outra apresentação do argumento do
De Potentia (3.5 #1), confira: SELNER, S. op. cit., p. 20-26.
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Da via resolutionis 151
impossível que aquilo que é comum pertença a ambas as coisas como algo próprio,
porque cada uma delas é em si mesma distinta da outra e a diversidade da causa
produz uma diversidade de efeitos. Ora, porque o ser é comum a todas as coisas, as
quais, porém, são distintas umas das outras, é necessário que possuam o ser não por
si mesmas, mas pela ação de uma outra causa. E isto parece ser o argumento de
Platão, o qual postulava que previamente a toda multidão deveria existir a unidade
não só nos números, mas também no mundo da natureza
333
.
Neste primeiro argumento segundo a via dos platônicos, Tomás inicia a
resolução secundum rem do efeito comum à causa comum extrínseca, ou seja, do
que convém a muitos ao que convém a uma só causa
334
. A necessidade desta
resolução (secundum rem) precisa ser justificada. Para tanto, Tomás considera
suficiente observar que os diversos entes, em razão de sua distinção, não
encontram em si mesmos a causa do que possuem em comum. Dito de outro
modo, a razão do caráter extrínseco da causa do que é comum a diversos entes
justifica-se pela impossibilidade de coisas distintas enquanto tais serem por si
mesmas a razão de sua comum unidade. Esta impossibilidade reside na própria
essência do que é próprio que, por definição, não pode ser comum. Por isso, a
diversidade oriunda do que é próprio a cada um dos entes só pode ser causa do
diverso, jamais do que é comum (diversitas causarum diversos effectus
producit)
335
.
333
“Oportet enim, si aliquid unum communiter in pluribus invenitur, quod ab aliqua una
causa in illis causetur; non enim potest esse quod illud commune utrique ex se ipso conveniat, cum
utrumque, secundum quod ipsum est, ab altero distinguatur; et diversitas causarum diversos
effectus producit. Cum ergo esse inveniatur omnibus rebus commune, quae secundum illud quod
sunt, ad invicem distinctae sunt, oportet quod de necessitate eis non ex se ipsis, sed ab aliqua una
causa esse attribuatur. Et ista videtur ratio Platonis, qui voluit, quod ante omnem multitudinem
esset aliqua unitas non solum in numeris, sed etiam in rerum naturis.” (QDP, q. 3, a. 5, co.).
334
Tomás reporta-se aqui ao primeiro princípio da participação, formulado sinteticamente
nos seguintes termos: “Si enim aliquid invenitur in aliquo per participationem, necesse est quod
causetur in ipso ab eo cui essentialiter convenit” (STh I, q. 44, a. 1, co.). A distinção entre o “ens
per participationem” e o “ens per essentiam” é decisiva para a compreensão da herança platônica
da metafísica tomista. Uma vez que os entes são por participação, deduz-se que são causados por
um outro. Assim, um ente deste gênero não pode ser senão enquanto é causado. Mas, como ter
uma causa não faz parte da definição do ente em absoluto (simpliciter), há um ente que é
incausado (STh I, q. 44, a.1, co.).
335
Observe-se que o termo “esse” é utilizado por Tomás nos dois sentidos, ou seja, como
princípio próprio e comum dos entes. No primeiro caso, o “esse” supõe por actus essendi, ou seja,
o ato de ser que é princípio intrínseco e primeiro de todas as perfeições do ente particular. No
segundo caso, o “esse” supõe por esse commune que, em Tomás, não significa o mesmo que actus
essendi. Como vimos, para Tomás, o esse enquanto tal não é divisível, não é multiplicado senão
pelo sujeito que o recebe (potência), a essência. É a essência que, ao receber o esse, o diversifica e
o multiplica. Por isso, Tomás fala da diversidade do esse de Sócrates e do esse de Platão, no
sentido de que são diversos o ato de ser que lhes é próprio em razão da essência. Mas, tanto um
quanto o outro possuem o esse em comum. É esta participação no esse commune e não no actus
essendi que sustenta o argumento em 3.5 #1 e 3.6 #1.
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Da via resolutionis 152
Estabelecidas as razões para a necessidade de uma causa extrínseca do que é
comum aos entes, Tomás introduz a perspectiva a partir da qual se revela a causa
comum do que é comum aos entes: o ser (esse). Com efeito, o esse é comum a
todas as coisas (esse inveniatur omnibus rebus commune). Assim sendo, as coisas
não possuem o ser por si mesmas (non ex se ipsis), mas recebem o esse por uma
outra causa extrínseca.
Dada a brevidade do argumento segundo a via de Platão, é oportuno
observar três coisas, a saber: 1) o horizonte do esse, no qual se centraliza todo o
argumento; 2) a transcendência do esse commune em relação aos entes singulares;
3) enfim, a relação do esse commune com os que dele participam. Em relação ao
primeiro, deve-se destacar que o horizonte no qual se situa a argumentação de
Tomás é aquele do esse e não o das essências. As premissas platônicas do
argumento são circunscritas ao âmbito do esse; do contrário, a razão da
comunidade se esgotaria no plano mesmo das essências (específicas e genéricas).
Assim, não são todas determinações universais dos entes que servem de base para
a sustentação dos princípios platônicos norteadores do argumento. A única
perfeição comum que é verdadeiramente transcendente a todos os entes, ou seja, a
única perfeição comum que não encontra a sua causa na ordem mesma dos
princípios essenciais intrínsecos aos entes é o ser comum aos entes (esse
commune).
Em relação ao segundo, o argumento supõe que o esse enquanto comum aos
entes particulares que dele participam tem caráter transcendente
336
, isto é, o esse é
irredutível às realidades particulares que a possuem posto que nenhuma destas se
identifica essencialmente com a perfeição comum. Do contrário, nada impediria
que o que convém a muitos encontrasse sua razão de ser em uma unidade de outra
ordem, como a do tipo meramente genérica
337
.
336
Não se deve confundir a transcendência do esse commune que é somente secundum
rationem com a transcendência do ipsum esse subsistens que é secundum esse. A transcendência
do esse commune é a própria excedência da ratio entis que não exclui nem implica as adições e
determinações, mas prescinde negativamente delas, conforme se demonstrou ao falarmos da
separatio. Já o ipsum esse subsistens, diversamente do esse commune, exclui total e positivamente
as adições ou limitações. Por isso, a metafísica não demonstra a existência do ipsum esse commune
por um “refinamento e determinação do ‘esse commune’”, como sustenta O’Rourke (1992, p.
154), mas sim por resolução pelas causas extrínsecas (secundum rem).
337
Isto é mais detalhadamente demonstrado em Summa contra gentiles (II, 15):
“Impossibile est autem aliquod unum duobus convenire et utrique secundum quod ipsum. Quod
enim de aliquo secundum quod ipsum dicitur, ipsum non excedit: sicut habere tres angulos duobus
rectis aequales non excedit triangulum. Si igitur aliquid duobus conveniat, non conveniet utrique
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Da via resolutionis 153
Enfim, se o esse commune que serve de termo médio em relação ao aliquid
unum da premissa maior não se identifica com nenhuma das instâncias dos entes
particulares, não se deve, porém, imaginá-lo como uma perfeição separada,
subsistente em si mesma e pré-existente aos entes que se encontraria por
semelhança nos diversos sujeitos que dela participam
338
. É este o caminho inverso
ao de Tomás que conduziria à concretização do esse commune ao modo de uma
coisa (res) ou uma essência (essentia).
Feitas estas considerações, retomemos o argumento [3.5 #1] a partir das
elucidações propostas por Tomás no artigo seguinte ao que estamos analisando do
De Potentia, no qual investiga se pode haver mais de um princípio da criação. A
solução proposta implica na elaboração de três argumentos. Todos procuram
seguir o mesmo itinerário resolutivo secundum rem, ou seja, nas palavras do
próprio Tomás: “é preciso reduzir [no sentido de resolver] todas as coisas a um
único princípio primeiro”
339
.
O primeiro argumento da solução proposta, igualmente relativa à doutrina
da participação, tem premissa idêntica ao do anterior [3.5 #1], a saber: se nas
diversas coisas se encontra qualquer coisa de comum, é preciso resolvê-las numa
única causa quanto aquilo a que é comum. A razão da necessidade da resolução
secundum rem, é igualmente a mesma, a saber: é impossível que o aliquid unum
commune seja causado pelas coisas que dele participam. Nesse argumento, assim
como no anterior, portanto, Tomás concentra-se no caráter comum do ser (esse
commune) para fazer a passagem resolutiva à causa extrínseca comum de todos os
entes
340
. Vejamos como isto ocorre:
[3.6 #1] Dentre as razões, a primeira é que, se nas diversas coisas se encontra
qualquer coisa de comum, é preciso reduzi-las a uma única causa quanto àquilo que
é comum, porque ou uma coisa é a causa da outra ou há uma causa comum de
ambas. Pois, é impossível que esta coisa única comum convenha a uma e a outra
segundo o que é próprio de cada uma delas, como foi dito no artigo precedente.
Mas, tudo aquilo que é contrário ou diverso no mundo possui uma relação comum
em uma coisa única, seja na natureza da espécie, seja naquela do gênero, seja ainda
na sua razão de ser. É por isso que é preciso que haja um princípio único de todas
secundum quod ipsum est. Impossibile est igitur aliquod unum de duobus praedicari ita quod de
neutro per causam dicatur, sed oportet vel unum esse alterius causam, sicut ignis est causa caloris
corpori mixto, cum tamen utrumque calidum dicatur; vel oportet quod aliquod tertium sit causa
utrique, sicut duabus candelis ignis est causa lucendi”.
338
Esta observação se encontra em Fernand Van Steenberghen (1969, p. 254).
339
“(…) sed oportet omnia reducere in unum principium primum.” (QDP, q. 3, a. 6, co.).
340
Para uma outra apresentação deste argumento, confira: SELNER, S. op. cit., p. 27-30.
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Da via resolutionis 154
as coisas que é para todos a causa do ser. Mas, o ser enquanto tal é bom; o que é
manifesto pelo fato de que toda coisa deseja ser, nisto consiste a razão do bem, a
saber, que ele é desejável; e, assim, é manifesto que, acima de certas diferentes
causas, é preciso estabelecer uma única causa, como entre os naturalistas que,
acima dos agentes contrários, estabeleceram um único agente primeiro na natureza,
a saber, o céu, que é a causa dos diferentes movimentos nos seres inferiores. Mas,
porque no céu mesmo se encontra a diversidade do lugar, em que a oposição dos
corpos inferiores é reduzida como a uma causa, é preciso reduzir, por conseguinte,
a um primeiro motor, que não é movido nem por si, nem por outro
341
.
Não obstante as semelhanças com o argumento anterior [3.5 #1], Tomás
amplia o seu horizonte argumentativo com as seguintes precisões. Primeiro,
acrescenta que diante de coisas que possuem algo em comum, uma
impossibilidade e duas possibilidades são dadas, a saber: 1) ambas as coisas
possuem algo comum que seria ao mesmo tempo próprio a cada uma delas, o que
é contraditório (conforme demonstrado em 3.5 #1); 2) uma coisa seria a causa da
outra que possui a perfeição comum com a primeira já que uma possui
essencialmente o que a outra possui por participação; 3) ambas as coisas que
possuem a perfeição comum seriam causadas por uma terceira coisa, que possui
essencialmente o que as outras possuem por participação. Estas duas últimas
possibilidades tratam da relação de dependência causal existente entre o que
possui a perfeição por essência e o que a possui por participação. Deve-se
ressaltar que são estas duas possibilidades determinantes na distinção entre o
modo como os entes se relacionam entre si (ordem predicamental
342
) e o modo
como os mesmos se relacionam ao ipsum esse (ordem transcendental).
Em seguida, Tomás de Aquino acrescenta que as coisas contrárias ou
diversas possuem uma relação com uma causa única que pode ser na ordem da
341
“Quarum prima est, quia in quibuscumque diversis invenitur aliquid unum commune,
oportet ea reducere in unam causam quandotum ad illud commune, quia vel unum est causa
alterius, vel amborum est aliqua causa communis. Non enim potest esse quod illud unum
commune utrique conveniat secundum illud quod proprie utrumque eorum est, ut in praecedenti
quaestione, art. praec., est habitum. Omnia autem contraria et diversa, quae sunt in mundo,
inveniuntur communicare in aliquo uno, vel in natura speciei, vel in natura generis, vel saltem in
ratione essendi: unde oportet quod omnium istorum sit unum principium, quod est omnibus causa
essendi. Esse autem, in quantum huiusmodi, bonum est: quod patet ex hoc quod utrumquodque
esse appetit, in quo ratio boni consistit, scilicet quod sit appetibile; et sic patet quod supra quaslibet
diversas causas oportet ponere aliquam causam unam, sicut etiam apud, naturales supra ista
contraria agentia in natura ponitur unum agens primum scilicet caelum, quod est causa diversorum
motuum in istis inferioribus. Sed quia in ipso caelo invenitur situs diversitas in quam sicut in
causam reducitur inferiorum corporum contrarietas, ulterius oportet reducere in primum motorem,
qui nec per se nec per accidens moveatur.” (QDP, q. 3, a. 6, co.)
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Da via resolutionis 155
espécie, do gênero ou do esse. Daí concluindo pela necessidade de haver um único
princípio ou uma única causa que esteja para todas as coisas diversas como a
causa do ser (causa essendi). Nesse momento, Tomás afasta-se significativamente
de Platão na medida em que distingue a comunidade na ordem das espécies e
gêneros (determinações universais na ordem da essência) da comunidade na
ordem do ser (ratione essendi).
Em razão desta distinção entre as determinações essenciais consideradas
universalmente (espécie e gênero) e o esse, deve-se discernir, segundo a
terminologia de C. Fabro, se a participação em questão é pertinente à ordem
transcendental (unidade de tipo analógica na qual há participação de cada ente
naquilo que é comum e transcendente a todo ente) ou à ordem predicamental
(unidade de tipo unívoca na qual a participação dos seres em algo comum os
especificaria como indivíduos de uma espécie particular ou como espécies
pertencentes a um gênero particular)
343
.
Esta distinção é crucial para o correto entendimento da resolução do esse
por participação ao esse por essência uma vez que a metafísica do ser de Tomás
de Aquino não se resume somente à consideração predicamental ou categorial,
própria da perspectiva aristotélica. Por considerar o esse como ato e por resolver
neste ato todas as perfeições intrínsecas do ente, conforme demonstrado pela
resolução secundum rationem, Tomás avança no sentido de distinguir a
participação de diversos indivíduos numa mesma espécie ou de diversas espécies
num mesmo gênero (em razão da comunidade das essências, apreendidas por
abstração) da participação de todos os entes no esse (em razão do esse commune,
apreendido por separação). A passagem da ordem de participação predicamental
àquela outra transcendental é de caráter evidentemente resolutivo secundum
rationem, quando se trata do esse como ser comum, e secundum rem, quando se
trata do esse como ipsum esse subsistens.
A necessidade da causa universal extrínseca aos participantes justifica-se,
por um lado, porque é impossível que o que separa e distingue os entes seja a
causa do que é comum aos mesmos (uma diversidade de causas produz uma
342
A participação na ordem predicamental é a participação unívoca dos entes naquelas
características com as quais são especificados como membros de uma espécie ou de um gênero
particular. A participação na ordem transcendental é a participação não-unívoca dos entes no esse.
343
FABRO, C. Participation et causalité, p. 272, 381-409, 1960b; Idem. Intensive
Hermeneutics of Thomistic Philosophy. Review of Metaphysics, 27, p. 481-485, 1974.
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Da via resolutionis 156
diversidade de efeitos – 3.5 §1) e, por outro, porque o que é comum transcende
aos próprios participantes (participação transcendental – 3.6 §1). Mas, na ordem
transcendental, o que é comum aos entes é o esse que não se identifica
essencialmente com nenhum deles (ao contrário da participação predicamental na
qual os entes se identificam essencialmente com a perfeição ou princípio comum).
Portanto, é necessário que haja uma causa do ser (causa essendi) de todos os entes
que possuem a perfeição do esse, mas não se identificam essencialmente com o
mesmo. Assim sendo, o instrumental platônico da participação está submetido
claramente à nova concepção de Tomás sobre os entes enquanto participantes do
ser comum (esse commune), base para a resolução posterior da participação dos
entes no próprio ser subsistente (ipsum esse subsistens). De fato, a premissa
menor que determina o que há de comum aos entes é fundamentalmente
dependente da resolução secundum rationem operada por Tomás alhures. O que é
comum aos entes é o ser (esse), afirma categoricamente o santo Doutor.
Em suma, a consideração do ser (esse) como efeito comuníssimo e
transcendente aos entes evidencia, primeiramente, a impossibilidade de encontrar
nos próprios entes a causa própria do ser. Em seguida, exige a resolução dos entes
em uma causa comum extrínseca aos participantes do ser, que seja o ser por
essência e não por participação. Em outros termos, uma vez que o ser (esse) é
comum a todos os entes e todos os entes são distintos uns dos outros, nenhum ente
particular pode ser propriamente a causa do ser (causa essendi), princípio comum
e transcendente a todos os entes.
A única pressuposição do argumento de Tomás é a existência de uma
diversidade de entes ou coisas e a constatação de sua intrínseca pertença ao ser
(esse), pois do contrário nada seriam. Mas, se é impossível encontrar nos entes
que possuem o ser de modo diverso a causa do ser que lhes é comum (esse
commune), então é necessário reduzir todos os entes que não são o seu ser, mas
dele participam, a uma única causa do ser (causa essendi) que é essencialmente
ser (esse per essentiam). Possuir o ser não por si mesmo, mas por outro é o que
define a estrutura e a dependência dos entes em relação ao esse.
O segundo argumento do quinto artigo da terceira questão evidencia ainda
mais o caráter participativo do esse nos entes, que não são tão somente ser, em
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Da via resolutionis 157
razão da maior ou menor participação na perfeição comum
344
. Esse argumento
torna manifesto, além disso, o caráter analógico da perfeição comum que deve ser
atribuída a tudo no qual se encontra de modo menos perfeito a partir do mais
perfeito no qual se encontra essencialmente (analogia de atribuição intrínseca
345
),
como se pode observar no que se segue:
[3.5 #2] O segundo argumento é que quando uma coisa se encontra participada de
diversas maneiras por muitos, é preciso que seja atribuída a tudo no qual se
encontra de modo menos perfeito a partir do mais perfeito no qual se encontra.
Com efeito, aquelas coisas que são ditas positivamente segundo o mais e o menos,
são assim em razão de sua menor ou maior participação em algo uno, porque se
pertencesse por si a cada uma delas, não haveria razão para que se encontrasse
mais perfeitamente em um do que em outro. Assim, vemos que o fogo que tem por
finalidade aquecer é princípio do calor nos corpos quentes. É preciso estabelecer
um único ente que seja absolutamente perfeito e absolutamente verdadeiro, o que é
provado pelo fato de que há um motor, absolutamente imóvel e absolutamente
perfeito, como provam os filósofos. É preciso, portanto, que todos os outros entes
que são menos perfeitos recebem dele sua existência. É a prova do Filósofo
(Metafísica, II, 1).
346
Enquanto nos argumentos anteriores Tomás raciocinava a partir da
resolução do aliquid unum communem diretamente à sua causa comum extrínseca,
agora considera a diversidade da participação do que é comum aos entes para
resolver (secundum rem) a perfeição participada em diversos graus a uma única
344
Outras formulações deste argumento se encontram na famosa quarta via da Suma
Teológica (I, q. 2, a. 3) e na Suma Contra os Gentios (I, 13).
345
A analogia de atribuição intrínseca é uma analogia que podemos denominar de
“vertical” na medida em que envolve uma ordem de prioridade e posterioridade, uma hierarquia
nos significados dos termos análogos, que expressam graus diversos de uma perfeição comum a
vários. Na analogia de atribuição intrínseca, a perfeição significada pelo termo análogo se realiza
intrinsecamente em todos os analogados, embora com ordem de prioridade e posteridade. Deste
modo, há um analogado que é o primeiro ou principal no qual o que é significado pelo termo
análogo se realiza de maneira plena e originária e há outro ou outros analogados (secundários e
posteriores), nos quais a perfeição significada pelo termo análogo se realiza de maneira participada
e derivada. Com diz o Aquinate: "Analogice dicitur praedicari quod praedicatur de pluribus
quorum rationes et definitiones sunt diversae sed attribuuntur uni aliqui eidem; sicut diciturde
corpore animalis et de urina et potione. (...) Omnes istae rationes attribuuntur uni fini, scilicet
sanitati" (De principiis naturae, cap.6). Cf. In Met., IV, lect. 1, n.534-543.
346
“Secunda ratio est, quia, cum aliquid invenitur a pluribus diversimode participatum
oportet quod ab eo in quo perfectissime invenitur, attribuatur omnibus illis in quibus imperfectius
invenitur. Nam ea quae positive secundum magis et minus dicuntur, hoc habent ex accessu
remotiori vel propinquiori ad aliquid unum: si enim unicuique eorum ex se ipso illud conveniret,
non esset rartio cur perfectius in uno quam in alio inveriretur; sicut videmus quod ignis, qui est in
fine caliditatis, est caloris principium in omnibus calidis. Est autem ponere unum ens, quod est
perfectissimum et verissimum ens: quod ex hoc probatur, quia est aliquid movens omnino
immobile et perfectissimum, ut a philosophis est probatum. Oportet ergo quod omnia alia minus
perfecta ab ipso esse recipiant. Et haec est probatio Philosophi (Metaph. II, 1).” (QDP, q. 3, a. 5,
co.)
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Da via resolutionis 158
causa comum extrínseca aos participantes. Mas, deve-se ter em mente que o “mais
e o menos” pode ser dito de três modos
347
: 1) segundo a quantidade do
participado, como a neve se diz mais branca do que a parede, porque a brancura é
mais perfeita na neve do que na parede; como neste caso o conceito é o mesmo,
não causa nenhuma diversidade quanto à espécie de brancura; 2) segundo um é
dito por participação e o outro por essência, quando afirmamos que a bondade é
melhor do que o que é bom; 3) segundo o termo é atribuído de uma maneira mais
eminente a uma coisa que a uma outra, por exemplo, o calor se atribui mais ao sol
do que ao fogo. Nestes dois últimos casos, não há predicação unívoca, nem
unidade quanto à espécie. É justamente nestas duas últimas acepções que se deve
entender o significado de “mais ou menos” no argumento proposto por Tomás.
A razão alegada por Tomás para justificar a resolução da perfeição
diversamente participada por muitos entes a uma única causa consiste em perceber
a impossibilidade de encontrarmos nos próprios participantes a razão da existência
da diversidade ou gradação do participado (argumento análogo ao apresentado em
3.5 §1). Afinal, se a perfeição participada pertencesse por si (ex se ipso) a cada um
dos participantes, não haveria razão para que o que é comum ser encontrado mais
perfeitamente em um do que em outro. Em suma, é impossível que os
participantes, por definição, sejam a causa da menor ou maior participação na
perfeição comum (razão já alegada em 3.5 §1).
Um dos obstáculos para a aceitação deste argumento baseado nos graus de
participação, consiste em negar a premissa segundo a qual os entes não podem ser
a causa da menor ou maior participação em uma perfeição comum. Com efeito, a
premissa da qual parte o argumento parece negligenciar o fato de que aquilo que
responde pela limitação ou restrição do esse nos entes é a própria essência. E,
Assim sendo, os entes participantes do esse encontrariam em si mesmos, ou seja,
em suas próprias essências a razão ou causa da menor ou maior presença ou
gradação da perfeição comum, não havendo necessidade de estabelecer uma causa
347
“(...) quod magis et minus tripliciter potest considerari, et sic praedicari. Uno modo
secundum solam quantitatem participati; sicut nix dicitur albior pariete, quia perfectior est albedo
in nive quam in pariete, sed tamen unius rationis; unde talis diversitas secundum magis et minus
non diversificat speciem. Alio modo secundum quod unum participatur, et aliud per essentiam
dicitur; sicut diceremus, quod bonitas est melior quam bonum. Tertio modo secundum quod modo
eminentiori competit idem aliquid uni quam alteri, sicut calor soli quam igni; et hi duo modi
impediunt unitatem speciei et univocam praedicationem; et secundum hoc aliquid praedicatur
magis et minus de Deo et creatura, ut ex dictis patet” (QDP q. 7, a. 7, ad 3).
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Da via resolutionis 159
extrínseca aos participantes do esse a partir da constatação da gradação de sua
presença nos entes.
Em relação a esta objeção, é suficiente notar que, na metafísica de Tomás, a
essência responde de fato pela contração do ser (esse), perfeição comum
participada pelos entes, e, portanto, cada ente em si mesmo é causa da menor ou
maior limitação do ser (esse). Com efeito, o que responde intrinsecamente pela
maior ou menor participação é o sujeito recipiente da perfeição comum (a
essência). Mas, como freqüentemente reitera Tomás, os entes não podem por si
mesmos (ex se ipso) ser a causa da perfeição comum diversamente participada. É
este o núcleo da resolutio secundum rem no presente argumento que, partindo da
constatação da existência real dos graus de participação dos entes na perfeição
comum, atribui a perfeição do menos perfeito ao mais perfeito, que possui tal
perfeição essencialmente, de modo único e absoluto. Por essa razão, a perfeição
que convém a muitos segundo uma maior ou menor participação tem sua causa
extrínseca em algo único.
Outra observação deve ser feita em relação à validade do argumento
proposto. Como nos outros casos, Tomás não está se referindo a toda e qualquer
determinação comum aos entes para concluir pela necessidade de uma causa
extrínseca. No caso do argumento segundo os graus de perfeição, em especial,
Tomás não se move no plano meramente lógico ou ideal, nem tampouco no plano
ontológico das essências, consideradas separadamente das coisas existentes, para
hipostasiar uma causa comum das perfeições participadas. Ao contrário, o
Angélico se move sempre no horizonte dos graus reais de participação no ser
(esse) e das perfeições transcendentais (bondade, verdade, etc.) para resolver os
participantes do esse em uma única causa essendi. São sempre as perfeições
absolutas, ou transcendentais (as perfeições conversíveis com o ens, perfeições
simples que, embora existam na matéria, poderiam ser independentemente dela,
tal como evidenciado pela separatio dos conceitos transcendentais, maxime
communia
348
) que guiam o raciocínio de Tomás em direção à causa primeira e
extrínseca do esse.
Compreendida esta ressalva, pode-se considerar agora a hipótese do
maximamente fogo (maxime calidum) que ilustra a necessidade de uma causa
348
Cf. In De Heb., lc. 2; QDV, q. 1, a. 1; De Virt. in comm., 2, ad 8.
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Da via resolutionis 160
extrínseca para as perfeições participadas em diversos graus pelos entes. Essa
hipótese tem sua origem na própria metafísica de Aristóteles e é mencionada
igualmente por Avicena
349
. Dada a importância deste exemplo para Tomás, que
freqüentemente o cita, em especial no contexto das vias da participação, citamos a
seguir o texto do Estagirita:
E também é justo chamar a filosofia de ciência da verdade, porque o fim da ciência
teórica é a verdade, enquanto o fim da prática é a ação. (...) Ora, não conhecemos a
verdade sem conhecer a causa. Mas qualquer coisa que possua em grau eminente a
natureza que lhe é própria constitui a causa pela qual aquela natureza será atribuída
a outras coisas: por exemplo, o fogo é o quente em grau máximo, porque ele é
causa do calor nas outras coisas. Portanto, o que é causa do ser verdadeiro das
coisas que dele derivam deve ser verdadeiro mais que todos os outros. (...) Por
conseguinte, cada coisa possui tanto de verdade quanto possui de ser.
350
Depois de ter considerado a disposição natural do homem à investigação da
verdade, Aristóteles atribui à filosofia ser por excelência a ciência da verdade das
coisas que são em grau máximo ou eminente. Neste contexto, é estabelecido o
princípio segundo o qual “qualquer coisa que possua em grau eminente a natureza
que lhe é própria constitui a causa pela qual aquela natureza será atribuída a outras
coisas”. Trata-se de um princípio de caráter analógico, mais especificamente de
uma analogia de atribuição intrínseca. Como o raciocínio do Estagirita parte da
causa cuja natureza é máxima ou eminente para os efeitos, o mesmo é de caráter
evidentemente sintético (compositivo).
Todavia, o princípio, bem como a analogia que ele comporta, justificam-se
somente se: 1) as coisas às quais é atribuída uma natureza comum não podem ser
a causa do que nelas é comum; 2) e, portanto, há de haver uma causa do que é
comum. Se o trecho da Metafísica se limitasse a afirmar a prioridade da causa
extrínseca em relação aos efeitos comuns, nada acrescentaria de novo. Mas, ao
349
Cf. AVICENA. Metafísica. VI, c. 2.
350
ARISTÓTELES. Metafísica. α, 1, 993b19-31. Observe-se o entusiasmo de G. Reale ao
comentar esta passagem : “Esta é uma das passagens mais fortes e mais belas, que exprime de
modo até mesmo paradigmático o “realismo” de Aristóteles e do pensamento grego. A verdade
não depende do pensamento (do sujeito) mas do próprio ser. Como para Platão, também para
Aristóteles a verdade e, portanto, o conhecimento das coisas, é proporcional ao seu ser. Todos os
seres sensíveis corruptíveis dependem dos seres sensíveis eternos; e, estes, por sua vez, dependem
no seu ser e no seu movimento, de uma causa primeira suprema, o Movente imóvel, Ser supremo.
A verdade suprema coincide, portanto, com o ser supremo, do qual depende o ser de todas as
coisas, como será explicado no livro Λ.” (REALE, G. Aristóteles Metafísica : sumário e
comentários, vol. III, p. 102). Ainda sobre esta passagem, confira: S. SELNER (1992, p. 33-35);
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Da via resolutionis 161
afirmar a excelência da natureza da causa em relação aos seus efeitos Aristóteles
sustenta mais do que a prioridade ontológica da causa em relação ao efeito.
Assim, para que sua premissa e conclusão possa ser plenamente justificada,
restaria demonstrar que: 3) a causa do que é comum a vários deve possuir a
natureza comum em grau máximo (maxime).
O texto da Metafísica claramente pressupõe que a causa possui a natureza
comum em grau máximo, mas não justifica a razão pela qual na causa se encontra
uma tal natureza. O único esclarecimento proposto por Aristóteles provém
justamente da analogia com o fogo. Enquanto é quente em grau máximo, o fogo é
a causa do calor em tudo o mais. Um tal exemplo só seria demonstrável caso fosse
possível evidenciar que o fogo é a causa única de tudo o que tem calor, sem que
ele mesmo receba esta propriedade de outro. Na impossibilidade de uma tal
demonstração, o exemplo do fogo consiste meramente numa hipótese ilustrativa
(per impossibile). Neste sentido, se o fogo fosse a causa única de tudo o que tem
calor, então o fogo seria quente em grau máximo.
O que é inequívoco neste exemplo é a noção segundo a qual a causa de um
determinado efeito deve possuir em grau máximo ou eminente o que é comum aos
seus efeitos, ou ainda, que o que é atribuído ao efeito de modo comum e menos
eminente deve ser atribuído à sua causa de modo máximo. Além disso, parece
evidente que se a causa possui de modo eminente ou máximo o que o efeito só
possui de modo menos perfeito, então a causa não pode ser senão extrínseca ao
efeito na medida em que nela se realiza plenamente o que no efeito só se realiza
parcialmente. Por analogia, continua Aristóteles, o que é causa da verdade das
coisas deve ser verdadeiro de modo eminente.
Entretanto, como Aristóteles justificaria que a causa possui em grau máximo
o que está presente de modo menos eminente nos efeitos? Em que casos realmente
Aristóteles, crítico da teoria platônica da participação, estaria disposto a aplicar o
princípio segundo o qual “qualquer coisa que possua em grau eminente a natureza
que lhe é própria constitui a causa pela qual aquela natureza será atribuída a outras
coisas”? A justificativa do princípio parece exigir em última instância o
desenvolvimento do que falta essencialmente à perspectiva metafísica na qual se
insere Aristóteles: uma doutrina da participação.
DE FINANCE (1960, p. 125-129); C. FABRO (1960b, p. 388, n. 60); COUESNONGLE (1954, p.
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Da via resolutionis 162
Em relação à utilização do princípio, não resta dúvida que o Estagirita não o
pretende aplicar à realidade menos universal do fogo, mas sim ao ordenamento de
todas as coisas em relação às causas primeiras e ao movente imóvel
351
. Mas, a
perfeição comum que guia a descoberta aristotélica do ordenamento do menos
perfeito ao mais perfeito, da natureza menos eminente à máxima não é senão a
forma ou a substância. Neste ponto, Tomás completaria e elevaria as
considerações de Aristóteles no sentido de identificar o ser (esse) como ato e
perfeição comum aos entes, entendendo-o de modo participado e análogo à causa
maxime, ao esse maxime, ao ipsum esse subsistens. Se no aristotelismo é a
perfeição e o ato da forma o princípio último no qual se resolvem todas as
perfeições dos entes, na metafísica tomista é o ser (esse), enquanto ato participado
aos entes, o que constitui a “fonte” última das perfeições dos entes.
Além da analogia de atribuição intrínseca pressuposta por Aristóteles na
elaboração do seu conceito de maxime, há igualmente uma analogia de
proporcionalidade estabelecida ao final do primeiro capítulo entre a verdade e o
ser. Com efeito, nos diz o Estagirita, “cada coisa possui tanto de verdade quanto
possui de ser”. Ainda que o sentido metafísico destas analogias seja motivo de
controvérsia entre os estudiosos de Aristóteles, é manifesto que Tomás utilizou-se
das mesmas como fonte de inspiração e as sustentou a partir de sua doutrina da
participação.
Em seu Comentário à Metafísica, observa o Aquinate que o termo
“verdade” não se aplica a uma classe ou gênero de entes somente, mas é atribuído
universalmente a todos os entes. Assim, uma vez que a causa da verdade é que
alguém possua o mesmo nome e a mesma estrutura inteligível que se encontra no
efeito, então o que quer que cause a verdade em outra coisa é em si mesmo mais
verdadeiro
352
. Ora, se as coisas que são a causa da verdade são mais verdadeiras
que seus efeitos, então é porque as coisas que são a causa de outras possuem por
essência o que os efeitos possuem por participação. “Isto é necessário”, explica
Tomás, “porque tudo o que é composto na natureza e participa no ser deve em
433-444).
351
REALE, G. ibidem., p. 102.
352
In Met., II, lec. 2, n. 294.
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Da via resolutionis 163
última instância ter como sua causa aquelas coisas que possuem o ser por
essência”
353
.
Em suma, ainda que Aristóteles não tenha estendido a analogia de atribuição
intrínseca proposta no segundo livro da Metafísica a outras importantes resoluções
de sua metafísica, é patente que Tomás assim a entendeu e a seu autor atribuiu o
ter compreendido que a presença de uma realidade comum existente de diversos
modos ou segundo diversos graus aponta para o caráter causado da realidade
comum. Além disso, compreendeu Tomás que o sentido metafísico e a estrutura
lógica deste pequeno trecho da Metafísica poderiam ser reconstituídos à luz de sua
concepção do esse. Afinal, se Aristóteles meramente pressupõe a existência na
causa de uma natureza eminente ou máxima (maxime), dificilmente identificável
empiricamente, Tomás poderá torná-la objeto de demonstração graças à sua
concepção sobre o ipsum esse.
A estrutura da demonstração (3.5 #2) que estamos originalmente analisando,
poderia ser resumida como se segue: 1) os entes que possuem o esse em comum,
mas não são o seu próprio ser, não podem ser a causa do esse (3.5 #1); 2) o esse
dos entes é causado por uma causa extrínseca (3.5 #1); 3) a causa do ser (causa
essendi) é necessariamente o ser em grau máximo (ipsum esse; esse maxime). Esta
conclusão implica que somente o ser que é o seu próprio ser (ipsum esse ut esse
tantum) pode ser a causa do ser (causa essendi). Ora, enquanto considerávamos o
problema da distinção entre essência e ser nos entes, vimos que é impossível
haver mais de um ser cuja essência seja idêntica ao seu próprio ser. Neste sentido,
para Tomás, é máximo aquele ser cuja essência é idêntica ao seu próprio ser.
Esclarece-se assim de que modo Tomás utiliza-se do princípio do máximo
proposto pela Metafísica, restringindo sua validade ao âmbito do esse, que nada
pressupõe.
Resta observar agora como Tomás conclui o quinto artigo da terceira
questão do De Potentia, recapitulando os princípios e as conclusões que
legitimaram até aqui a resolução do ser enquanto perfeição participada à causa
essendi. Assim como anteriormente (3.5 #1; 3.6 #1), a resolução secundum rem
aparece como o fio condutor de todo o argumento, sendo agora enunciada nos
seguintes termos: “tudo aquilo que é por outro (per alterum) é reduzido ao que é
353
In Met., II, lec. 2, n. 296.
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Da via resolutionis 164
por si (per se)”. Desta vez, Tomás atribui a origem do argumento à metafísica de
Avicena, estruturando-o como se segue:
[3.5 #3] A terceira razão consiste em que aquilo que é por outro é reduzido àquilo
que é por si, como à sua causa. Com efeito, se houvesse um só calor existente por
si, necessário seria que ele fosse a causa de tudo o que é quente, que teria o calor
por meio da participação. Mas, isto é estabelecer um ente que é seu próprio ser
(ipsum suum esse). O que pode ser provado porque há de haver um ente primeiro
que seja ato puro, no qual não há nenhuma composição. Com efeito, é preciso que
todas as demais coisas que não são o seu próprio ser, mas tenham o ser por meio da
participação, sejam a partir de um ente único. É o raciocínio de Avicena
(Metafísica, VIII, 7; IX, 4)
354
.
Após enunciar o princípio resolutivo que orienta todo o raciocínio,
reaparece a título exemplar, como hipótese, a analogia com o calor. Se, considera
Tomás, houvesse um único calor existente por si (per se existens), necessário seria
que ele fosse a causa de tudo o que é quente. Dito de outro modo, se, por hipótese,
o que não é quente por si, mas por outro se reduz ao que é quente por si, então o
que é quente por essência é a causa de tudo o que é quente. Ora, nesta hipótese, o
calor considerado como subsistente por si estaria para tudo o que tem calor como
a causa está para o efeito, o participado para o participante. Mas, se esta hipótese é
válida estruturalmente, então há um ente que é seu próprio ser (ipsum suum esse).
Não se deve pressupor que Tomás esteja partindo da consideração da
possibilidade de existir um calor subsistente por si para derivar a existência de
pelo menos um ente cujo ser é o seu próprio ser. O que está no centro da atenção
de Tomás não é a possibilidade da existência de um calor subsistente por si, mas
sim a impossibilidade daquilo que tem o ser por participação ser a causa essendi.
É esta impossibilidade que justifica a resolução secundum rem do que é por outro
ao que é por si. O mero exemplo do calor não é condição para a aceitação do
princípio, conforme já dito previamente, mas somente para a sua ilustração. Que
haja um ente que seja o seu próprio ser é uma decorrência da impossibilidade de
que haja dois entes que sejam o seu próprio ser (De ente et essentia, c. 4). Que
354
“Tertia ratio est, quia illud quod est per alterum, reducitur sicut in causam ad illud quod
est per se. Unde si esset unus calor per se existens, oporteret ipsum esse causam omnium
calidorum, quae per modum participationis calorem habent. Est autem ponere aliquod ens quod est
ipsum suum esse: quod ex hoc probatur; quia oportet esse aliquod primum ens quod sit actus
purus, in quo nulla sit compositio. Unde oportet quod ab uno illo ente omnia alia sint, quaecumque
non sunt suum esse, sed habent esse per modum participationis. Haec est ratio Avicennae (Metaph.
8, 7; 9, 4).” (QDP. q. 3, a. 5, co.)
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Da via resolutionis 165
este ente seja a causa do ser dos demais entes é uma decorrência da
impossibilidade dos entes que não são o seu próprio ser (esse per alterum, esse
per participationem, habet esse) serem a causa do ser que é comum a todos (3.5
#1).
É a necessidade de reduzir o que é por outro ao que é por si (3.5 #3)
355
e a
impossibilidade de encontrarmos a causa essendi nos diversos entes que não são o
seu próprio ser, mas que possuem o ser em comum (3.5 #1, #2 e 3.6 #1), o que
legitima a afirmação segundo a qual deve haver um ente que seja o seu próprio ser
e a causa do ser de todos os entes. É preciso ressaltar, mais uma vez, que nenhum
dos argumentos apresentados segundo a via da participação pressupõem o
conhecimento da existência de Deus ou da criação dos seres. Se há alguma
pressuposição, neste caso, é a da existência dos entes múltiplos e diversos e a
comum presença do ser (esse) em tudo o que é.
A impossibilidade do que é composto de ser e essência, ou ainda, do que
tem ser por participação (ou que tem ser por outro) ser a causa do seu próprio ser
foi demonstrada previamente (3.5 #1 e #2), justificando plenamente a ordem de
descoberta filosófica da causa extrínseca (secundum rem) do esse. Se o argumento
deve ser lido nesta perspectiva, então Tomás trata de provar a necessidade de uma
causa extrínseca do ser para os seus participantes pela impossibilidade de coisas
compostas que não são o seu próprio ser, serem a causa do ser (causa essendi).
Assim como no De ente et essentia era a impossibilidade de haver realmente
dois entes que fossem o seu próprio ser o que justificava a afirmação da
composição de essência e ser nos entes que não são o seu próprio ser, de modo
semelhante é a impossibilidade de encontrar nos próprios entes que participam do
ser a razão de seu ser que conduz à afirmação da existência de uma causa essendi
extrínseca aos que do esse participam. Com efeito, se os entes compostos
(essência e ser) não podem ser a causa do seu próprio ser, então é necessário
afirmar que há um ente primeiro que é simples absolutamente (ato puro) e que é a
causa do ser participado pelos entes.
355
Para uma apresentação do argumento (3.5 #3) à luz do problema do regresso ao infinito,
confira S. SELNER (1992, p. 83-88). A autora separa, em sua exposição, o argumento de 3.5 #3
dos demais argumentos do mesmo artigo (3.5 #1 e #2). É nosso entendimento que o argumento de
3.5 #3 tem sua validade a partir dos princípios resolutivos expostos e justificados no contexto do
próprio artigo (3.5 #1 e #2). Neste sentido, não é preciso introduzir uma premissa referente à
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Da via resolutionis 166
Um último argumento segundo a via dos platônicos deve nos ocupar ainda.
No sexto artigo da sexta questão do De Potentia, Tomás investiga se os anjos
possuem corpos naturalmente unidos ao seu ser. A sua solução defende não só a
existência de substâncias incorpóreas que não possuem a composição de matéria e
forma, mas também procura demonstrar que há distinção e composição de
essentia-esse nas mesmas. Não obstante, antes de tratar mais especificamente
sobre a natureza composta das substâncias incorpóreas, Tomás apresenta um
panorama a propósito das diversas doutrinas dos antigos filósofos sobre as
substâncias incorpóreas desde a sua simples negação até a sua plena confirmação.
A razão para a divergência dos filósofos consiste no estatuto ontológico da
matéria, que é concebida por muitos como sendo a causa primeira da subsistência
e individuação dos entes.
Contra os filósofos que simplesmente negam a existênica de qualquer
substância incorpórea, Tomás segue, primeiramente, a via da autoridade de
Agostinho e Aristóteles a fim de sustentar a existência de pelo menos uma
substância incorpórea. Os dois primeiros argumentos em favor da existência das
substâncias incorpóreas são obtidos da Física (VIII) e da Metafísica (XIII) de
Aristóteles, enquanto o terceiro argumento segue a via dos platônicos. Uma vez
que os argumentos aristotélicos são relativos à via do ato e da potência,
consideraremos os mesmos em seguida, para nos concentrarmos agora na via da
participação. O argumento em questão se estrutura do seguinte modo:
[6.6 #3] A terceira razão pode ser retirada das sentenças dos platônicos, pois, antes
que exista uma coisa determinada e particularizada, é preciso que preexista uma
não particularizada, assim como se a natureza do fogo se encontra no ferro de
modo particular e de uma certa maneira por participação, é preciso encontrar antes
uma natureza ígnea que é fogo por essência. É por isso que, como o ser, as outras
perfeições e as formas se encontram nos corpos, por assim dizer particularizados,
pelo fato que são recebidos na matéria, é preciso que preexista uma substância
incorpórea, não particularizada, mas que, com um plenitude universal, seja a
perfeição de ser em si mesma. Mas, tendo pensado que somente os corpos fossem
substâncias, os antigos se enganaram, porque não foram capazes de ultrapassar
pelo espírito a imaginação que é concernente somente aos corpos, não alcançaram
o conhecimento das substâncias incorpóreas, que são conhecidas somente pelo
espírito
356
.
impossibilidade do regresso ao infinito – como ocorre na demonstração do movente imóvel a partir
dos moventes movidos – para que se obtenha a resolução do que é por outro ao que é por si.
356
“Tertia autem ratio potest sumi ad hoc ex sententiis Platonicorum: oportet enim ante esse
determinatum et particulatum, praeexistere aliquid non particulatum, sicut si ignis natura
particulariter, et quodammodo participative, invenitur in ferro, oportet prius inveniri igneam
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Da via resolutionis 167
O princípio da participação sustenta aqui a prioridade ontológica do que é
por si de modo universal (non particulariter) em relação ao que é por outro de
modo particular (particulariter)
357
. Trata-se, obviamente, de uma especificação
dos argumentos segundo a via da participação. Neste caso, o foco do argumento é
a prioridade ontológica do que é por essência em relação ao participante. Neste
sentido, é notória a vinculação entre o princípio originariamente aristotélico da
prioridade do ato sobre a potência e o princípio fundamentalmente platônico da
prioridade do que é por essência (que é em ato por si mesmo) em relação ao que é
por participação (que é em ato por outro), do que é perfeição universal em relação
ao que tem a perfeição de modo particular.
Dando mais uma vez a prioridade ao princípio platônico da preexistênica da
perfeição separada e universal em contraste com as perfeições limitadas porque
participadas, Tomás percorre novamente a resolução do que é por outro ao que é
por si, enfatizando agora a prioridade ontológica do que é por essência em relação
ao que é participado. Como nos demais argumentos, apresenta uma analogia do
princípio que orienta a resolução secundum rem com o fogo e o ferro. Assim, se,
por hipótese, o fogo se encontra no ferro de modo particular e participado, então
seria necessário existir uma natureza que é fogo por essênica, anterior
ontologicamente aos que dela participam.
Neste momento, Tomás é fiel aqueles mesmos princípios que o guiaram na
consideração das realidades comuns e menos universais, porque particularizadas,
as quais não encontram nos seus participantes sua razão de ser (3.5 #1, #2 e 3.6
#1). Explicita e acrescenta, não obstante, a prioridade ontológica do que é por
essência em relação ao que é por participação (6.6 #3), pois o que é por si é
anterior e é causa do que é por outro
358
. Se antes esta prioridade estava implícita
naturam in eo quod est per essentiam ignis; unde, cum esse et reliquae perfectiones et formae
inveniantur in corporibus quasi particulariter; per hoc quod sunt in materia receptae, oportet
praexistere aliquam substantiam incorpoream, quae non particulariter, sed cum quadam universali
plenitudine perfectionem essendi in se habeat. Quod autem posuerunt sola corpora esse
substantias, ex hoc decepti fuerunt quod imaginationem transcendere intellectu non valentes (quae
solum est corporum) ad substantias incorporeas cognoscendas (quae solo intellectu capiuntur)
pertingere non valuerunt.” (QDP. q. 6, a. 6, co.)
357
Para uma outra análise do argumento em questão, confira S. SELNER (1992, p. 42-46).
358
“ (...) semper enim quod per se ipsum est, est prius et causa eius quod per aliud est" (De
Subst. Separ., c. 2).
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Da via resolutionis 168
nos demais argumentos, agora se revela como portadora do próprio sentido
metafísico do que é por essência.
É, contudo, no momento subseqüente ao exemplo do fogo que Tomás
introduz uma precisão de grande relevância para a compreensão da validade
filosófica do argumento e da natureza do seu próprio pensamento metafísico. Esta
precisão consiste na afirmação de que o ser (esse) e as demais perfeições (é
redundante o acréscimo de “formas”, neste contexto) se encontram nos entes
corpóreos de modo particular, isto é, limitado. A razão última da limitação destas
perfeições nos entes corpóreos, em especial a limitação da perfeição de ser (esse),
se encontra em última instância na matéria, que é princípio puramente potencial
na ordem mesma da essência dos entes sensíveis. Ora, se as perfeições dos entes
corpóreos são limitadas em razão da matéria, então conclui Tomás é preciso que
preexista uma substância incorpórea que seja a perfeição de ser em si mesma
(perfectionem essendi in se habeat)
359
.
Esta transição do que é ser de modo limitado e particularizado ao ser que é
tão-somente a perfeição de ser é justamente o que caracteriza a resolução
metafísica secundum rem. Entretanto, tal ascensão metafísica parece ser por
demais abrupta porque consiste em reclamar a universalidade das perfeições
encontradas nos entes corpóreos como derivada de uma substância incorpórea que
possui a perfeição de ser de modo não-particularizada.
Em primeiro lugar, deve-se lembrar que não são todas as perfeições
corpóreas que são aqui atribuídas essencialmente à substância incorpórea, mas tão
somente aquelas perfeições ditas transcendentais, ou seja, que existem na matéria,
mas poderiam existir independentemente dela (ser e forma, p.ex.). Além disso, é a
perfeição do ser (esse) que está no cerne do raciocínio de Tomás e, portanto, todas
as perfeições são aqui assimiladas unicamente enquanto são pertencentes ao ser
enquanto ser (esse qua esse).
Em segundo lugar, deve-se lembrar que as substâncias incorpóreas que
possuem o ser de modo particular estão aqui pressupostas no argumento (não para
a sua validade, mas para a sua plena compreensão). Afinal, de acordo com a
metafísica tomista, até mesmo as substâncias incorpóreas são compostas de
359
A démarche de Tomás aqui é semelhante àquela da Suma Contra os Gentios (II, c. 52)
quando afirma que o esse, considerado absolutamente, ou seja, sem um princípio recipiente
(potência) que o restrinja e limite, é ilimitado.
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Da via resolutionis 169
essentia-esse, ainda que não haja nelas a composição de forma e matéria. Como
estabelecido em nossa discussão sobre a distinção e composição real de ser e
essência em tudo aquilo que não é o seu próprio ser, nem tudo o que é simples na
ordem da essência é simples na ordem do ente enquanto tal uma vez que, na
hipótese de que existam substâncias incorpóreas, as mesmas não são compostas de
forma e matéria, mas sim de essência e ser. Não são simplex simpliciter, mas
simplex secundum quid.
Assim sendo, dentre todas as perfeições particularizadas, a perfeição de ser
(esse) é a mais comum e a mais particularizada dentre todas em razão de sua
recepção por um princípio realmente distinto da própria perfeição de ser (esse)
que se comporta em relação ao ser (esse) como a potência ao ato. Em suma, é
sempre a essência (potentia essendi) o princípio de contração ou particularização
do ser (esse), quer a mesma seja considerada como essência incorpórea (simples)
quer corpórea (composta de forma e matéria).
Se o esse só é contraído ou limitado pela sua recepção em outro princípio
realmente diverso de si mesmo (trata-se do terceiro modo de multiplicação do esse
sugerido por Tomás no De ente et essentia), então é necessário que o esse qua
esse seja uma perfeição universal e ilimitada em si mesma. Esta conclusão decorre
do princípio segundo o qual é impossível que as perfeições não-recebidas sejam
limitadas e particularizadas por si mesmas. Em linguagem aristotélica, o princípio
é formulado da seguinte maneira: o ato só é limitado pela potência que o recebe.
Assim sendo, o ato enquanto perfeição não-recebida é único, uno, universal e
ilimitado em si mesmo. Mas, dentre todos os atos, é o ato de ser (actus essendi) o
mediador por excelência das resoluções tomistas segundo a via da participação
secundum rem.
Reitera-se, deste modo, o fio condutor e a perspectiva metafísica na qual se
insere a reflexão de Tomás que, nos passos de Platão, Aristóteles e Avicena, mas
para além destes, concentra-se antes de tudo e, sobretudo, na busca de uma
plenitude universal que seja a própria perfeição de ser em si mesma (universali
plenitudine perfectionem essendi in se) a partir do esse que é ato participado e
comum a todos os entes.
Antes, porém, de passarmos à consideração dos argumentos resolutivos
secundum rem, baseados na doutrina do ato e da potência, é preciso destacar a
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Da via resolutionis 170
natureza da causalidade presente nos argumentos por via de participação
360
. Ao
longo da exposição, tornou-se evidente que o princípio de participação implica
que as perfeições participadas intrinsecamente aos entes são de natureza formal.
Em 3.5 #1, Tomás sustenta que o esse é comum a todas as coisas, sendo atribuído
às mesmas intrinsecamente (resolutio secundum rationem). Mas, como as coisas
que possuem o ser em comum não o possuem por si mesmas, o ser é causado por
um único princípio extrínseco (resolutio secundum rem). Em 3.6 #1, reitera que
tal causa ou princípio único extrínseco é a causa do ser (causa essendi) de tudo o
que tem o ser em comum, mas não é o seu próprio ser. Explicita, aqui, o princípio
segundo o qual toda perfeição participada é reduzida a uma única causa que
possui a perfeição por si mesma. Em 3.5 #2, demonstra que todos os entes que são
menos perfeitos recebem o ser (recipiant esse) do maximamente perfeito, que é
maximamente ser (maxime esse) porque possui em grau máximo o esse que é
comum a todos os entes. Em 3.5 #3, enfim, sustenta que tudo o que é por outro é
reduzido ao que é por si como à sua causa. Assim sendo, tudo o que tem ser por
participação é reduzido ao ente que é seu próprio ser (ipsum suum esse), que é ato
puro, sem composição. Como o esse está para os entes como princípio formal
intrínseco, então a causalidade dos argumentos baseados na via da participação é
de natureza evidentemente formal. Mas, como a causa do ser (causa essendi) não
se identifica com os entes que se diversificam conforme participam do ser, a
causalidade formal do ens primum é necessariamente extrínseca aos entes que
possuem o ser em comum. Em suma, a causa eficiente extrínseca de todas as
coisas é o ipsum esse subsistens, que é a causa incausada do ser (causa essendi),
seu efeito formal intrínseco participado aos entes.
360
Cf. S. SELNER (1992, p. 46-50).
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Da via resolutionis 171
3.2.2
Resoluções segundo a via do ato e da potência
As resoluções pelas causas extrínsecas segundo a via do ato e da potência
constituem um dos melhores expoentes da filiação de Tomás à filosofia
aristotélica. Entretanto, assim como destacamos a originalidade do itinerário
metafísico de Tomás, oriundo de sua concepção do ser (esse), em relação às
resoluções segundo a via da participação, assim também deveremos proceder no
exame dos argumentos estruturados segundo a via do ato e da potência, de origem
aristotélica. Isto é absolutamente necessário na medida em que Tomás jamais
dissocia a doutrina da participação daquela outra relativa ao ato e à potência.
A correlação destas doutrinas é sinteticamente formulada do seguinte modo:
“todo participante é comparado àquilo do qual participa como a potência ao ato,
pois o participante torna-se em ato por aquilo do qual participa”
361
. É por
considerar as noções aristotélicas de ato e potência à luz do participado e do
participante que Tomás eleva a perspectiva da dýnamis a uma condição que está
claramente ausente na metafísica de Aristóteles. A dýnamis, em sede tomista,
participa do ser (esse) porque é potência de ser (potentia essendi) e, como o ser é
ato participado nos entes que não são o seu próprio ser, vale dizer também que a
dýnamis é potentia essendi porque participa do ser. Ao vincular intrínsecamente
as noções de ato e potência às de participado e participante
362
, Tomás realiza uma
verdadeira obra de síntese filosófica que procuraremos acompanhar, desta vez,
através dos argumentos resolutivos em favor das causas extrínsecas, estruturados
segundo a via aristotélica do ato e da potência.
Assim como nas vias segundo a participação, os argumentos resolutivos
secundum rem que partem da atualidade e potencialidade dos entes para
demonstrar a necessidade de um agente primeiríssimo que é ato puro aparecem no
contexto mais geral das questões relativas à criação no De Potentia. É no sexto
361
“ (...) omne participans aliquid comparatur ad ipsum quod participatur ut potentia ad
actum: per id enim quod participatur fit participans actu tale”. (SCG II, 53).
362
Este vínculo é mais do que nocional em se tratando de uma relação concebida como
fundada realmente no esse dos entes. É o esse enquanto ato participado nos entes, descoberto pelas
resoluções secundum rationem, que serve de guia e princípio real para a ascensão resolutiva
secundum rem ao ipsum esse subsistens. Como o esse é ato participado, então tanto as vias
segundo o ato e a potência quanto as vias relativas à participação fundam-se na própria atualidade
do ser, que é participada por tudo o que é, mas não é o seu próprio ser.
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Da via resolutionis 172
artigo da terceira questão que encontramos a sua primeira formulação. Neste,
conforme já mencionado anteriormente, Tomás investiga se há somente um único
princípio da criação. Enquanto o primeiro argumento em favor da existência de
um único princípio da criação consiste na via da participação, o segundo se
estrutura a partir da natureza e da atualidade do agente. É neste argumento que
vemos operar um dos princípios basilares de sua metafísica do ato e da atualidade
do agente, expressa logo no início do segundo argumento, a saber:
[3.6 #2] A segunda razão é que todo agente age enquanto está em ato, e,
conseqüentemente, enquanto é de algum modo perfeito. Entretanto, enquanto é mal
não está em ato, pois aquilo que se denomina mal é aquilo em que a potência é
privada do ato próprio e devido. Mas, enquanto é em ato, é bom, porque, assim,
tem a perfeição e a entidade, na qual consiste a razão do bem. Assim, nada age
enquanto é mal, mas cada agente age enquanto é bom. Logo, é impossível
estabelecer um princípio ativo das coisas que não seja bom. E porque todo agente
faz algo semelhante a si, nada é feito senão segundo o que é em ato e, por esta
razão, segundo o que é bom. Assim sendo, cada uma das partes desta opinião,
segundo a qual se pensa que o mal é um princípio da criação dos males, é
impossível. E as palavras de Dioniso (Dos Nomes Divinos, c. 4) estão de acordo
com esta razão, ele que diz que o mal não age senão pelo poder do bem e que o mal
está além da intenção e da geração
363
.
O argumento acima poderia ser dividido em duas partes. A primeira se
concentraria em demonstrar a impossibilidade da existência de dois princípios
ativos que sejam a causa de todas as coisas a partir do princípio segundo o qual
todo agente age enquanto está em ato. A segunda, por sua vez, procura demonstrar
esta mesma impossibilidade a partir do princípio segundo o qual todo agente faz
algo semelhante a si. A origem do princípio segundo o qual todo agente age
enquanto está em ato parece remontar ao próprio Aristóteles
364
. Não resta dúvida
363
“Secunda ratio est, quia omne agens agit secundum quod actu est, et per consequens
secundum quod est aliquo modo perfectum. Secundum autem quod malum est, non est actu, cum
unumquodque dicatur malum ex hoc quod potentia est privata proprio et debito actu. Secundum
vero quod actu est unumquodque, bonum est: quia secundum hoc habet perfectionem et entitatem,
in qua ratio boni consistit. Nihil ergo agit in quantum malum est, sed unumquodque agens agit in
quantum bonum est. Impossibile est ergo ponere aliud activum rerum principium nisi bonum. Et
cum omne agens agat sibi simile, nihil etiam fiti nisi secundum quod actu est; ac per hoc,
secundum quod bonum est. Ex utraque ergo parte positio est impossibilis qua ponitur malum esse
principium creationis malorum. Et huic rationi concordant verba Dionysii (De Div. Nom. 4) qui
dicit, quod malum non agit nisi virtute boni, et quod malum est praeter intentionem et
generationem.” (QDP q. 3, a. 6, co.); cf. In Sent. II, d. 25, q. 1, a. 1; SCG I, 16; STh I, q. 3, a. 1.
364
S. Selner (1992, p. 68, n. 11) sugere, ao contrário, o texto do Liber de Causis: “regit res
per modum quem agit et non agit nisi per ens suum (...)” (prop. 20). Além disso, aponta outras
ocorrências do mencionado princípio no próprio De Potentia (q. 3, a. 1; a. 4; a. 5, obj. 3; a. 8; a.
11, obj. 4; a. 16, obj. 21; q. 7, a. 5; q. 8, a. 1).
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Da via resolutionis 173
que a atualidade tem aqui significado de perfeição. O santo Doutor qualifica a
expressão secundum quod actu est como conversível à secundum quod est aliquo
modo perfectum. Além disso, o raciocínio continua a plena aproximação não só do
ato com a perfeição, mas também do ato com o bem, concluindo, primeiramente,
que todo agente age enquanto é bom (agens agit in quantum bonum est).
Tomás justifica esta primeira conclusão pela impossibilidade do agente agir
enquanto é mal. Ora, se, por definição, o mal é aquilo em que a potência é privada
do ato próprio e devido, então a privação do ato não pode determinar formalmente
o ato do agente. Se o agente age enquanto é em ato e de algum modo perfeito e se
o mal é a privação do ato ou da perfeição própria e devida, então o agente não
pode agir senão enquanto é bom. Posta a correspondência intrínseca entre o ato, a
perfeição e o bem, assim como estabelecida a necessidade do agente agir enquanto
é bom, Tomás conclui que é impossível estabelecer um princípio ativo das coisas
que não seja bom, nem seja ato, nem seja perfeito. É esta a segunda e principal
conclusão da primeira parte do argumento que pretende excluir a existência de
dois princípios ou causas contrárias (um princípio ativo mal e outro bom) de todas
as coisas.
A segunda parte do argumento procura resolver tudo o que é em uma causa
primeira e universal a partir do princípio segundo o qual todo agente produz algo
semelhante a si (omne agens agit simile sibi). Este princípio funda a analogia da
causa e do efeito na causalidade eficiente e formal. Com efeito, o princípio de
causalidade comporta também a semelhança entre o efeito e a causa, ainda que
nenhum efeito possa se identificar plenamente com a causa. Mas, a semelhança
entre o efeito e a causa ocorre, segundo Tomás, por uma certa proporcionalidade
entre a forma tal como existe no agente e a forma tal como existe no efeito. É o
que Tomás explica no De Potentia em sua resposta à oitava objeção do primeiro
artigo da sétima questão, em que distingue a semelhança existente entre os efeitos
e as causas, quando estas são unívocas ou equívocas.
[7.1, ad 8] A forma do efeito no agente natural é causada enquanto o agente produz
um efeito de natureza semelhante, na medida em que todo agente produz algo
semelhante a si mesmo. Ora, isso pode ocorrer de dois modos. Em primeiro lugar,
quando o efeito traz em si uma perfeita semelhança com o agente, enquanto
proporcionado à potência do agente, assim a forma do agente está no seu efeito no
mesmo grau [eamdem rationem]; o que só ocorre nos agentes unívocos, por
exemplo, o fogo gera o fogo. Em segundo lugar, quando o efeito não é
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Da via resolutionis 174
perfeitamente semelhante ao agente, não sendo proporcionado ao poder do agente
[non adaequans virtutem agentis], pois a forma do efeito não está no agente do
mesmo modo mais em grau superior; esse é o caso dos agentes equívocos, por
exemplo, o sol gera o fogo.
365
A causalidade unívoca é aquela que produz uma semelhança específica ou
genérica, pois a forma do efeito traz em si uma perfeita semelhança com a forma
do agente. A causalidade equívoca, porém, é aquela que produz uma semelhança
de ordem não-específica, nem genérica, mas analógica, pois a forma do efeito não
traz em si uma perfeita semelhança com a forma do agente. É essa causalidade
que Tomás reserva para explicar a semelhança existente entre os entes que
possuem o ser por participação e o ens primum, que é ser por si mesmo. Entre o
ipsum esse subsistens e os demais entes por ele causados eficiente e formalmente
não há jamais semelhança perfeita.
Em 3.6 #2, o argumento não se dirige à demonstração da natureza da
semelhança existente entre o ipsum esse subsistens e os entes que possuem o ser
por participação, mas pretende excluir a privação e o mal como causa do ser. É da
própria natureza do agente produzir algo na medida em que é em ato e é bom.
Ora, se todo agente age enquanto é ato, perfeito e bom, e se todo agente faz algo
semelhante a si, então nada é feito sem que seja por semelhança ao ato, à
perfeição e à bondade do agente. Por esta outra via, Tomás conclui igualmente
que, se o mal é a privação do ato, da perfeição e da bondade devida, então é
impossível que o mal seja o princípio eficiente dos males
366
.
A resolução do mal no bem é um corolário da transição do que pertence à
ordem da privação relativa (secundum quid) à ordem do que é atual, do que tem
ser. Mas, se o argumento em questão afasta qualquer possibilidade de hipostasiar
o mal como causa eficiente, pressuposto maniqueísta, o mesmo não parece ter a
“força” necessária para conduzir à afirmação de que é necessário existir um único
agente que, em sendo ato, perfeito e bom, seja a causa de tudo o que tem ato,
365
“In agente namque per naturam, invenitur forma effectus secundum quod agens in sua
natura assimilat sibi effectum, eo quod omne agens agit sibi simile. Quod quidem contingit
dupliciter: quando enim effectus perfecte assimilatur agenti, utpote adaequans agentis virtutem,
tunc forma effectus est in agente secundum eamdem rationem, ut patet in agentibus univocis, ut
cum ignis generat ignem; quando vero effectus non perfecte assimilatur agenti, utpote non
adaequans agentis virtutem, tunc forma effectus est in agente non secundum eamdem rationem,
sed sublimiori modo; ut patet in agentibus aequivocis, ut cum sol generat ignem” (QDP q. 7, a. 1,
ad 8)
366
Cf. De Subst. Sep., c. 17.
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Da via resolutionis 175
perfeição e bondade. O que falta em 3.6 #2 para o estabelecimento da unicidade
da causa eficiente de todas as coisas é a premissa relativa ao esse como ato
primeiríssimo e participado a todos os entes.
Uma vez compreendido à luz do ato de ser, o argumento em questão poderia
sustentar que todo agente age enquanto tem ser, ou seja, enquanto participa
diversamente do ser, mas não age enquanto é o seu próprio ser. Ora, o que age
deste modo não pode ser a causa do ser em comum. Logo, somente o agente que
age enquanto é o seu próprio ser pode ser a causa do ser, da bondade e das
perfeições dos demais agentes que agem enquanto participam do ser. Outro
caminho ainda para a demonstração da existência de um único agente que age
enquanto é ser (e, portanto, é ato, perfeito e bom) seria a consideração da
prioridade absoluta do ato em relação à potência do que age mas não enquanto é o
seu próprio ser. Neste caso, a resolução secundum rem de tudo o que passa ao ato
no ser que é ato puro justifica-se pela prioridade absoluto do ato quanto à natureza
e o tempo. Tomás formula este argumento nos seguintes termos:
[6.6 #2] O mesmo se prova de outro modo (Met., XIII) porque o ato é anterior à
potência, segundo a natureza e o tempo, absolutamente falando. Tudo aquilo que
passa da potência ao ato, a potência precede o ato no tempo. Mas, porque é preciso
que seja conduzido ao ato por um ente em ato, é necessário que o ato seja
absolutamente anterior à potência mesmo quanto ao tempo. Com efeito, uma vez
que todo corpo está em potência, o que é manifesto por sua mobilidade, é preciso
que haja uma substância imóvel eterna anterior a todas as coisas corpóreas.
No argumento acima, Tomás explicitamente encaminha seu raciocínio para
a existência de uma única substância imóvel, incorpórea e eterna, cuja
anterioridade em relação a todas as demais substâncias é justificada graças ao
axioma aristotélico da prioridade do ato em relação à potência. Mesmo se, nas
coisas corpóreas, sujeitas ao movimento, o que passa da potência ao ato manifesta
a prioridade temporal da potência da substância individual em relação ao ato para
o qual é conduzida, é necessário que a substância que se move seja “conduzida ao
ato por um ente em ato”. Como tudo o que é conduzido ao ato necessita da causa
eficiente de um ser já em ato, então a causa dos seres em ato que não são o seu
próprio ser deve ter precedência ontológica sobre os seus efeitos.
Deve-se notar que Tomás desenvolve sua reflexão a partir de um axioma
que sustenta a prioridade do ato em relação à potência segundo a natureza e o
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Da via resolutionis 176
tempo, em conformidade com a doutrina aristotélica
367
. Isso não significa que a
substância imóvel seja cronologicamente anterior às substâncias corpóreas sujeitas
ao tempo. Ao contrário, a necessidade de haver uma primeira substância que seja
absolutamente anterior a tudo o que passa da potência ao ato é uma conseqüência
da prioridade ontológica do ato. Mas, saber se as coisas causadas são produzidas
no tempo ou eternamente não pode ser objeto de resolução somente pela
consideração da prioridade do ato sobre a potência. Em todo caso, a questão sobre
a eternidade ou não das coisas que são causadas pelo ipsum esse subsistens em
nada afeta à validade do argumento em questão.
A brevidade do argumento exposto em 6.6 #2 não deixa dúvida quanto à
razão para a afirmação da anterioridade ontológica do ato da causa primeiríssima
de todas as coisas em relação às substâncias sujeitas ao devir. A razão para a
afirmação da imaterialidade da substância cujo ato é a causa das demais é uma
decorrência direta de sua pura atualidade. Afinal, a materialidade e a mutabilidade
estão intrinsecamente vinculadas à composição das substâncias que não são
puramente ato, não são o seu próprio ser.
Os argumentos resolutivos secundum rem, examinados até o momento,
concluem não só pela existência do ens primum que é causa eficiente de todas as
coisas que são compostas de potência e ato, mas apontam também para o
conhecimento da natureza do ens primum, conforme se pode observar no primeiro
argumento proposto por Tomás em favor da simplicidade do ipsum esse
subsistens no primeiro artigo da sétima questão do De Potentia.
[7.1 #1] Quando em um único e mesmo ente, que se encontra ora em ato, ora em
potência, a potência sendo cronologicamente anterior ao ato, mas segundo a
natureza posterior, em absoluto, é preciso que o ato seja anterior à potência, não
somente segundo a natureza, mas também cronologicamente, porque todo ente em
potência é conduzido ao ato por um ente em ato. Assim, este ente que fez com que
todos os entes fossem em ato, já que ele mesmo não depende de nenhum outro,
deve ser o ente primeiro em ato sem nenhuma mistura de potência. Pois se ele fosse
367
“Com base na distinção dos significados de “anterior” feita precedentemente, fica
evidente que o ato é anterior à potência (...) Ora, a toda potência entendida desse modo o ato é
anterior segundo a noção e segundo a substância; ao contrário, segundo o tempo, o ato em certo
sentido é anterior e noutro sentido não é anterior. (...) O ato, depois, é anterior quanto ao tempo, no
seguinte sentido: (a) se o ser em ato é considerado especificamente idêntico a outro ser em
potência da mesma espécie, então é anterior a este; se, ao contrário, o ser em ato e o ser em
potência são considerados no mesmo indivíduo, o ser em ato não é anterior. (...) De fato, dissemos
anteriormente ao tratar da substância [Met., VII, 1032b30; 1034b17] que tudo o que vem a ser algo
deriva de algo, torna-se algo por obra de algo (...).” (Metafísica, IX, 8, 1049b 16-29).
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Da via resolutionis 177
de alguma maneira em potência, seria necessário que um outro ente existisse antes
pelo qual ele viria a ser em ato. Em todo composto, qualquer que seja a
composição, é preciso que a potência seja misturada ao ato. Com efeito, nos
compostos, ou bem um deles de onde provém a composição está em potência para
outro, como a matéria para a forma, o sujeito para o acidente, o gênero para a
diferença, ou bem às vezes como todas as partes estão em potência para o todo.
Pois as partes são reduzidas à matéria, o todo à forma, como se demonstra na
Física (III, 3), e, assim, nenhum composto pode ser ato primeiro. Mas, o ente
primeiro, que é Deus, deve ser ato puro, como se demonstrou previamente. Logo, é
impossível que ele seja composto e é por essa razão que ele é totalmente simples
368
.
O raciocínio exposto por Tomás em favor da simplicidade do ens primum
possui estruturalmente dois momentos, que partem sempre da consideração da
composição de ato e potência nos entes. O primeiro é muito semelhante ao
exposto em 6.6 #2, pois assume como premissa a composição do que ora está em
ato ora em potência, bem como o axioma da prioridade ontológica do ato para
concluir pela necessária existência de um ens primum que não só é em ato, mas é
ato puro. A razão para a necessária existência de um ente que seja puramente ato e
seja a causa do ato dos demais entes se esclarece pela impossibilidade do regresso
ao infinito dos entes que são conduzidos da potência ao ato por um ente em ato. O
segundo momento do argumento avança no sentido de precisar e justificar a
ausência absoluta de composição no ens primum, ato puro.
Este segundo momento se estrutura do seguinte modo. Uma vez que em
todo composto, o ato coexiste com a potência (passiva) e nenhum composto pode
ser ato simplesmente, então não pode haver nenhuma ordem de composição no
ens primum que é absolutamente simples. Duas coisas devem ser observadas aqui.
A primeira diz respeito à função do juízo negativo de separação que se faz
necessário para a formulação do significado do enunciado “nenhum composto
pode ser ato primeiro”. Mas, a separatio não está aqui a serviço de um argumento
368
“Quamvis autem in uno et eodem quod quandoque invenitur in actu, quandoque in
potentia, potentia tempore prius sit actu, natura autem posterius, simpliciter tamen oportet actum
esse priorem potentia, non solum natura sed tempore, eo quod omne ens in potentia reducitur in
actum ab aliquo ente actu. Illud ergo ens quod omnia entia fecit esse actu, et ipsum a nullo alio est,
oportet esse primum in actu, absque aliqua potentiae permixtione. Nam si esset aliquo modo in
potentia, oporteret aliud ens prius esse per quod fieret actu. In omni autem composito qualicumque
compositione, oportet potentiam actui commisceri. In compositis enim vel unum eorum ex quibus
est compositio est in potentia ad alterum, ut materia ad formam, subiectum ad accidens, genus ad
differentiam; vel saltem omnes partes sunt in potentia ad totum. Nam partes ad materiam
reducuntur, totum vero ad formam, ut patet in 2 Physic. (com. 31), et sic nullum compositum
potest esse actus primus. Ens autem primum, quod Deus est, oportet esse actum purum, ut
ostensum est. Impossibile est ergo Deum compositum esse; unde oportet quod sit omnino
simplex.” (QDP q. 7, a. 1, co.)
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Da via resolutionis 178
resolutivo secundum rem, mas sim da via remotionis pela qual o filósofo ascende
ao conhecimento da natureza da causa eficiente primeiríssima de todas as coisas,
ou melhor, conhece o que a mesma não é. A via remotionis, assim, supõe a
separatio, ato da segunda operação do intelecto, que constitui o caráter distinto e
distintivo da metafísica.
A segunda consiste na natureza da via remotionis, sobre a qual nos
deteremos no próximo capítulo. Com efeito, emerge das vias resolutivas
secundum rem uma série de nomes atribuídos ao ens primum, tais como imutável,
incorpóreo, eterno, ato puro, simples. Entretanto, sua adequada compreensão já
não mais pertence à via resolutiva secundum rem, mas sim à via remotionis. Por
essa via, exclui-se de modo absoluto e positivamente do ens primum não somente
a composição de matéria e forma, substância e acidente, gênero e diferença,
potência (passiva) e ato, mas, sobretudo, a composição de essência e ser, o que já
foi entrevisto quando consideramos a unicidade do ser que é tão somente ser (esse
tantum), no De ente et essentia (c. 4). Assim sendo, a resolutio secundum rem é
uma via de demonstração quia (an est), mas jamais propter quid, ou seja, é uma
via de demonstração da existência do ens primum pelo princípio de causalidade
eficiente (via causalitatis), capaz de resolver tudo o que tem ser em sua causa
extrínseca universal
369
.
Por ora, deve-se ressaltar que o juízo obtido por resolução, em 7.1 #1, a
respeito da simplicidade do ens primum é expresso em uma proposição afirmativa,
ou seja, por composição de um sujeito e um predicado. Mas, isto não significa que
seja composto o que o intelecto significa per modum compositionis. Como, para
Tomás, “uma é a maneira de operação do intelecto, outra a do ser da coisa” (alius
est enim modus intellectus in intelligendo, quam rei in essendo), o intelecto pode
significar em um enunciado a unidade e a identidade da coisa significada (res
significada) por um juízo que compõe (modus significandi)
370
. Assim sendo, o
369
A demonstração quia é essencialmente estruturada como uma transição do efeito à
causa, enquanto a demonstração propter quid se estrutura da causa ao efeito. Pode-se dizer que a
demonstração quia é sempre por meio das coisas mediatas às imediatas, enquanto as
demonstrações propter quid partem das imediatas às mediatas (“et hoc universaliter intelligendum
est, tam de scientia quia, qua scitur aliquid per mediata, quam de scientia propter quid, qua scitur
aliquid per immediata”; In An., I, lc. 13, n.11). Cf. ARISTÓTELES. An. Post., I, 13, 78a 22; In
An., I, lc. 22.
370
“(...) identitatem vero rei significat intellectus per ipsam compositionem. (...) Hanc ergo
pluralitatem quae est secundum rationem, repraesentat per pluralitatem praedicati et subiecti:
unitatem vero repraesentat intellectus per compositionem” (STh I, q. 13, a. 12, co.)
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Da via resolutionis 179
intelecto atribui, por composição de um sujeito e um predicado, a simplicidade ao
ens primum, ato puro, após a remoção de toda composição encontrada nos entes
que não são o seu próprio ser, sem que, deste modo, conheça o ens primum como
composto
371
.
Ainda por ocasião da demonstração da simplicidade do ens primum, Tomás
acrescenta um outro argumento resolutivo secundum rem. A novidade desse
argumento em relação aos demais consiste na demonstração da existência de uma
causa eficiente que seja capaz de unir as partes ou os constituintes do que é
composto. Afinal, o que compõe é sempre a causa eficiente do que é composto
(componens est causa efficiens compositi)
372
. Eis como estrutura o argumento:
[7.1 #2] Em segundo lugar, como a composição não provém das partes diversas,
estas possuem a necessidade de uma agente para as unir. Pois, enquanto tal, o que é
diverso não é unido. Mas, todos os compostos têm o ser segundo o qual seus
componentes são unidos. Logo, é preciso que todo composto dependa de um agente
primeiro. Portanto, o ente primeiro, que é Deus, de onde tudo provém, não pode ser
composto
373
.
A necessidade de um agente primeiro que una o que é diverso justifica-se
em razão da oposição entre o que é diverso (os componentes) e o que é unido (o
composto). Ora, o que é diverso enquanto tal não é unido. Mas, segundo Tomás,
todo composto em ser, bem como a unidade de sua composição, se resolve
intrinsecamente (secundum rationem) no ato de ser pelo qual seus componentes
são unidos. Como fica claro em sua exposição na Suma Teológica (q. 3, a. 7),
coisas que por si mesmas não conformam uma unidade devem ser reduzidas a
uma causa que as unifique. Pela resolutio secundum rationem, o ato de ser é a
causa intrínseca da unidade e das perfeições dos componentes que constituem os
entes. Mas, como o ato de ser não entra em composição com a essência (potentia
371
“(…) quia intellectus noster, formans propositionem de Deo, non dicit eum esse
compositum, sed simplicem. (...) Alius est enim modus intellectus in intelligendo, quam rei in
essendo. Manifestum est enim quod intellectus noster res materiales infra se existentens intelligit
immateriales, sed habet modum immaterialem in intelligendo. Et similiter, cum intelligit simplicia
quae sunt supra se, intelligit ea secundum modum suum, scilicet composite: non tamen ita quod
intelligat ea esse composita. Et sic intellectus noster non est falsus, formans compositionem de
Deo” (STh I, q. 13, a. 12, ad 3).
372
Cf. SCG I, 18.
373
“Secunda ratio est quia cum compositio non sit nisi ex diversis, ipsa diversa indigent
aliquo agente ad hoc quod uniantur. Non enim diversa, inquantum huiusmodi, unita sunt. Omne
autem compositum habet esse, secundum quod ea, ex quibus componitur, uniuntur. Oportet ergo
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Da via resolutionis 180
essendi) senão por um agente que os una, é necessário uma causa eficiente
extrínseca da unidade do que é composto de essentia-esse. Essa causa se evidencia
pela dependência do que é composto de ser e essência em relação a um agente
primeiro no qual devem ser reduzidos todos os entes e do qual recebem sua
unidade de composição. Em suma, a razão última da unidade do que é composto
de ser e essência não pode ser encontrada no próprio ente composto.
No primeiro artigo da sétima questão do De Potentia, Tomás segue a via de
causalidade (via causalitatis) por resolução dos efeitos às causas extrínsecas
(resolutio secundum rem), graças à composição universal de potência e ato nos
entes. Além disso, avança na determinação, pela via de remoção, dos atributos
divinos, em especial da simplicidade. Essa ordem de exposição respeita
plenamente a ordem de descoberta filosófica. A comparação com a Suma
Teológica (I, q. 3, a. 7) torna mais evidente este aspecto uma vez que a ordem de
exposição da Suma é de natureza evidentemente compositiva, porque pressupõe
como já demonstrada a existência do ens primum. Essa é a via mais apropriada ao
ensino do que à resolução metafísica, propriamente dita. Por essa mesma razão,
uma comparação dos cinco argumentos propostos na Suma Teológica (I, q. 3, a. 7)
em favor da simplicidade do ens primum com os argumentos do De Potentia (q. 7,
a. 1) manifesta que, na obra dedicada aos estudantes da sacra doctrina, há
prioridade da via de remoção (via remotionis) sobre a via de resolução (via
resolutionis), já que esta última só estrutura o terceiro argumento da Suma,
enquanto no De Potentia a via de resolução antecede à via de remoção.
O último argumento resolutivo secundum rem proposto por Tomás no De
Pontetia baseia-se na impossibilidade dos entes, que são diversos entre si,
concorrerem por si mesmos a uma ordem essencialmente única. Trata-se do
terceiro argumento do sexto artigo da terceira questão do De Potentia, estruturado
nos seguintes termos:
[3.6 #3] A terceira razão consiste em que, se diversos entes, sendo todos por
princípios contrários, não fossem redutíveis a um único princípio, os mesmos não
poderiam concorrer a uma ordem única senão por acidente. Pois, não há
coordenação de muitas coisas senão por aquele que ordena, a menos que por acaso
elas não concorram no mesmo por uma causa. Mas, vemos que as coisas
corruptíveis e as incorruptíveis, as espirituais e as corpóreas, as perfeitas e as
quod omne compositum dependeat ab aliquo priore agente. Primum ergo ens, quod Deus est, a quo
sunt omnia, non potest esse compositum.” (QDP q. 7, a. 1, co.)
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Da via resolutionis 181
imperfeitas concorrem em uma única ordem. Pois, as coisas espirituais movem as
corpóreas, o que é manifesto ao menos no homem. O que é corruptível também é
disposto pelos corpos incorruptíveis, como aparece nas alterações dos elementos
pelos corpos celestes. E não se pode dizer que isto ocorra casualmente, pois isto
não aconteceria sempre deste modo ou na maioria das vezes, mas somente nos
casos menos numerosos. É preciso, portanto, reduzir todas as diversas coisas a um
primeiro princípio pelo qual elas são ordenadas à unidade. É por isso que o
Filósofo (Metafísica, XII, 4) conclui que não há senão uma única origem
374
.
Em primeiro lugar, o caráter resolutivo do argumento é anunciado desde o
seu princípio. Afinal, a diversidade e contrariedade dos entes não pode ser a razão
última de sua comum e essencial ordenação. Essa impossibilidade exige a
resolução (reductio) de todos os entes que são contrários entre si a um único
princípio. Essa via é semelhante à quinta via da Suma Teológica (I, q. 2, a. 3).
Tanto na Suma quanto no De Potentia, é a existência de uma ordem essencial nos
diversos entes que exige uma explicação ulterior. Mas, na Suma, é o governo das
coisas (ex gubernationem rerum) e a sua ordem teleológica o que guia a resolução
dos efeitos à causa ordenadora. No De Potentia, é a unidade essencial da ordem
de todas as coisas que não encontram em si mesmas a razão de ser desta única
ordem que exige a resolução de todas as coisas que são sujeitas à ordenação à um
único princípio extrínseco.
É suficiente para a validade do argumento do De Potentia o reconhecimento
da necessária ordenação de todas as coisas ao ato e a eliminação do acaso como
sua pretensa explicação. Na medida em que todos os entes, com exceção do ens
primum, são ordenados ao ato, ou bem todos os entes encontram em si mesmos a
razão de ser desta ordenação ou bem são ordenados por uma causa eficiente
extrínseca aos mesmos. Como o que é diverso não pode ser causa do que é
comum (3.5 #1; 3.6 #1), a universal ordenação de todos os entes ao ato exige uma
causa essencialmente única e separada desta ordenação. Em suma, se todos os
entes concorrem essencialmente a uma única ordem, então se resolvem em um
374
“Tertia ratio est, quia, si diversa entia essent omnino a contrariis principiis in unum
principium non reductis, non possent in unum ordinem concurrere nisi per accidens. Ex multis
enim non fit coordinatio nisi per aliquem ordinantem, nisi forte multa casualiter in idem
concurrant. Videmus autem corruptibilia et incorruptibilia, spiritualia et corporalia, perfecta et
imperfecta in unum ordinem concurrere. Nam spiritualia movent corporalia, quod ad minus in
homine apparet. Corruptibilia etiam per corpora incorruptibilia disponuntur; sicut patet in
alterationibus elementorum a corporibus caelestibus. Nec potest dici, quod haec casualiter
eveniant, nam non contingeret ita sempre vel in maiori parte, sed solum in paucioribus. Oportet
ergo omnia ista diversa in aliquod unum primum principium reducere a quo in unum ordinantur:
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Da via resolutionis 182
único princípio primeiro pelo qual são unidos (6.6 #2; 7.1 #2) e ordenados ao ato
(3.6 #3).
Antes de passarmos ao próximo capítulo, é necessário recuperar, ainda que
brevemente, o caminho percorrido até aqui. Constatamos, primeiramente pela
resolutio secundum rationem, a emergência do ser como ato de ser (esse ut actus
essendi) dos entes, ou seja, como perfeição participada, irredutível e intrínseca de
tudo o que é sob a razão de ente (ratio entis). Neste ponto, a busca filosófica
poderia se deter na emergência do ser nos entes, sem interrogar-se pela sua
causa
375
.
No entanto, uma vez que o ser não se identifica plenamente com o ente e
com este entra em composição, nenhum ente pode ser a causa de seu próprio ser.
O recurso à via resolutiva secundum rem faz-se necessária para lançar luz sobre a
causa do ser (causa essendi). Ora, como o ser é a fonte primeira e última de todos
os atos e de todas as perfeições dos entes, perguntar-se pela causa do ser é
investigar a causa de todo ente e do ente como um todo. Os argumentos
resolutivos secundum rem respondem justamente por esta necessidade de
completar a busca pelas causas do ente enquanto tal, tarefa essencialmente
metafísica, pela recondução (reductio) de todos os entes que são compostos de
essentia-esse à sua causa primeira e universal, o ipsum esse subsistens. Esses
argumentos resolutivos secundum rem pertencem à via de causalidade (via
causalitatis) e se estruturam segundo a doutrina da participação e a do ato e da
potência.
Pelo princípio de participação, Tomás argumenta que: 1) as coisas que
possuem o esse em comum não podem ser a causa essendi (3.5 #1; 3.6 # 2); 2) as
coisas que possuem o esse em maior ou menor perfeição não podem ser a causa
essendi (3.5 #2); 3) as coisas que são diversas pelo esse possuem-no de modo
particularizado e limitado, em razão da potência receptiva (essentia), não podendo
ser a causa universal do ser (6.6 #3); 4) a causa essendi é necessariamente o ser
em grau máximo (esse maxime; ipsum esse ut esse tantum), ou seja, o ser que é ser
por si mesmo (esse per se) (3.6 #1); 5) a causa essendi é o ser que é a plenitude de
unde Philosophus (Metaph. 12, text. 52 et sq.) concludit quod unus est principatus.” (QDP q. 3, a.
6, co.)
375
É o que faz justamente a fenomenologia que, em razão de seu próprio método descritivo
dos fenômenos, encontra-se aqui diante da impossibilidade de determinar a causa do ser dos entes
(causa essendi).
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Da via resolutionis 183
perfeição de ser em si mesmo (6.6 #3). Pela via da participação dos entes no ser
(esse), a resolutio enquanto processo regressivo dos efeitos à causa extrínseca
separada encontra no esse participado aos entes a “ponte” com o próprio ser
(ipsum) que não é mais ato de um ente, mas ser por si e maximamente ser, cuja
causalidade é de natureza eficiente, formal e exemplar.
Pelo princípio do ato e da potência, Tomás argumenta que: 1) todo agente
age enquanto é em ato, é de algum modo perfeito e bom, excluindo o mal e a
privação como causa do ser (3.6 #2); 2) pelo axioma da prioridade ontológica do
ato sobre a potência, é necessário que todo ente em potência seja conduzido ao ato
por um ente que já é em ato (6.6 #2 e 7.1 #1); 3) pelo axioma da prioridade
ontológica do ato e pela impossibilidade do regresso ao infinito, é necessário que
haja um ens primum que seja ato sem potência (passiva), absolutamente puro e
independente de qualquer outro ente em ato (7.1 #1); 4) todo composto, que não é
o seu próprio ser, tem uma causa extrínseca de sua composição (7.1 #1 e #2); 5)
todos os compostos que são essencialmente ordenados (ao ato) são reduzidos a
uma única causa extrínseca pela qual são unidos e ordenados (7.1 #2 e 3.6 #3).
Pela via do ato e da potência, o esse que entra em composição com a essentia dos
entes é resolvido no ipsum esse, cuja essência é seu próprio ser e cuja atualidade é
absolutamente simples (omnino simplex). A causalidade do ipsum esse subsistens
revelada pela via do ato e da potência é de natureza eficiente e final.
À luz da transcendência do ipsum esse subsistens termina a segunda fase da
via resolutiva da metafísica, via ascendente por excelência, que reconduz tudo o
que é ao seu primeiríssimo princípio. Mas, a resolutio secundum rem nos apontou
mais do que simplesmente a existência de uma causa do ser (causa essendi), pois
nos introduziu na árdua tarefa de compreender a natureza do ser que é seu próprio
ser. Baseado no princípio de que o ser é o ato mais perfeito e, portanto, não é por
si mesmo limitado, Tomás conclui, por exemplo, que o ens primum é ato puro,
absolutamente simples, maximamente ser. Essas caracterizações nos movem a
investigar agora a natureza do ens primum e de sua causalidade, previamente
reconhecida como eficiente, formal e final, o que nos transporta para os temas
centrais do De Potentia, a saber: 1) o da natureza da potência divina; 2) o da
criação.
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4
Da via remotionis e da via eminentiae
Acompanhamos até aqui o iter filosófico de Tomás, que ascende, graças ao
princípio da dependência dos entes no ato de ser (actus essendi), ao conhecimento
da existência da causa do ser (causa essendi), do ipsum esse subsistens.
Observamos que tal ascensão pela via da causalidade
376
(via causalitatis),
formulada mediante a síntese do princípio de causalidade ao princípio de
participação
377
, ocorre em dois momentos distintos: a resolutio secundum
rationem e a resolutio secundum rem. Vimos ainda que a investigação per modum
resolutionis da causa do ente enquanto tal compete à metafísica que, pelo juízo
negativo de separação, apreende o esse commune como conteúdo irredutível da
ratio entis. Contudo, não é a análise da noção de esse commune que permite-nos a
demonstração da existência do ipsum esse subsistens, pois aquela não nos fornece
acesso imediato ao ente imaterial e imutável. Esse acesso se dá pela via de
resolução, via de fundação ontológica dos entes no ser (esse).
Nada seria mais contrário ao espírito de Tomás do que a suposição de um
conhecimento abstrativo ou intuitivo da causa incausada, quer da sua existência
quer de sua essência. Como a abstração não garante sequer o acesso à formalidade
específica do objeto da metafísica, a ratio entis, quanto mais o acesso ao ipsum
esse per se que transcende a tudo o que é finito. Tampouco a inteligência humana
conhece a causa incausada por co-intuição de si mesma enquanto espírito
imaterial. Que o conhecimento da espiritualidade da alma seja requerido para a
continuidade do itinerário filosófico do conhecimento de Deus, não há dúvida
378
.
376
“Unde Deum esse, secundum quod nos est per se notum quoad nos, demonstrabile est
per effectus nobis notos” (STh I, q. 2, a. 2). Não podendo conhecer a existência de Deus senão por
seus efeitos, uma vez negado o princípio de causalidade, torna-se incompreensível qualquer
demonstração da existência de Deus em bases filosóficas.
377
“Si enim aliquid invenitur in aliquo per participationem, necesse est quod causetur in
ipso ab eo cui essentialiter convenit” (STh I, q. 44, a. 1, co.)
378
“Cum enim de substantiis separatis hoc quod sint intellectuales quaedam substantiae
cognoscamus, vel per demonstrationes, vel per fidem, neutro modo hanc cognitionem accipere
possemus, nissi hoc ipsum quod est esse intellectuale anima nostra ex se ipsa cognosceret” (SCG
III, 46). Como observa C. Fabro (1967, p. 166-167), segundo Tomás, “o conhecimento da alma
como princípio espiritual é o único conhecimento estritamente qüiditativo de que o homem dispõe
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Da via remotionis e da via eminentiae 185
Mas, a finitude de nosso ser, o modo pelo qual conhecemos as coisas e a finitude
das próprias coisas marcam os limites do nosso conhecimento da natureza divina,
que é transcendente e inefável.
Ao estabelecer que os entes que possuem ser, mas não são o seu próprio ser,
só são por outro
379
, a via de resolução secundum rem já nos antecipa certos
conhecimentos positivos do “outro”, a partir do qual os entes recebem o ser. As
vias que resolvem os entes no ipsum esse subsistens levam cada uma delas à
atribuição de um nome a Deus: causa incausada, causa eficiente do ser comum,
maximamente ser, ser que é tão somente ser, ser por essência, etc. Por isso, desde
o momento em que se demonstra a existência do ipsum esse subsistens, certos
predicados lhe são atribuídos, sem os quais nada se poderia afirmar dele com
sentido
380
.
Entretanto, após completar a demonstração da existência de Deus na Suma
Teológica, Tomás aborda, na introdução da terceira questão, o conhecimento da
natureza da causa incausada do seguinte modo: “conhecida a existência de algo,
falta investigar como é (quomodo sit), a fim de saber (sciatur) o que ele é. Mas
como de Deus só podemos saber (scire) o que Ele não é, e não o que é, se trata
tanto de considerar como Ele é, quanto como não é”
381
. Em princípio, Tomás
parece defender que é impossível formular proposições afirmativas verdadeiras
sobre o que Deus é, uma vez que “só podemos saber (scire) o que Ele não é”
382
.
nesta vida (...). A percepção de nossa vida espiritual constitui, pois, o ponto de partida para uma
noção própria e positiva de Deus”.
379
“ (...) quia esse creaturae est ab altero” (In Sent., I, d. 3, q. 1) ; “ (...) ens habeat esse ab
alio ” (De ente, c. 4).
380
Cf. Rayemaeker (1960, p. 341). A distinção entre saber se a coisa é (an sit) e o que a
coisa é (quid sit) provém de Aristóteles (An.Post., II, 1, 89b 24s). Embora sejam separadas
epistemologicamente, Aristótels nota que quando sabemos que uma coisa é, sabemos ainda alguma
coisa sobre a mesma, do contrário nada poderíamos afirmar sobre sua existência (An.Post, II, 8,
93a 20-26; In An., II, lc. 1, 7, n. 475). Em sua exposição ao De Trinitate de Boécio, Tomás é ainda
mais claro quanto à suposição de um certo conhecimento da essência uma vez que se conhece da
existência de algo: “de nulla re sciri potest an est, nisi quoquo modo sciatur de ea quid est, vel
cognitione perfecta,vel saltem cognitione confusa” (q. 6, a. 3).
381
“Cognito de aliquo an sit, inquirendum restat quomodo sit, ut sciatur de eo quid sit. Sed
quia de Deo scire non possumus quid sit, sed quid non sit, non possumus considerare de Deo
quomodo sit, sed potius quomodo non sit.” (STh I, q. 3, prol.). Assim, se estabelece a ordem de
exposição das questões da Suma Teológica que procuram determinar o que Deus não é (q. 3-11), o
modo pelo qual o mesmo é conhecido por nós (q. 12) e o modo pelo qual é nomeado (q. 13).
382
Esse mesmo ponto é sustentado por Tomás em: In Sent., I, d. 8, q. 1, a. 1; In De Trin., q.
1, a. 2; q. 6, a. 3; SCG I, c. 53; III, c. 49; QDP q. 7, a. 2-7; STh I, q. 12. A afirmação de que “de
Deus não sabemos o que ele é, mas tão somente o que ele não é” já está presente em Escoto
Eriúgena (Expositiones in Ierarchiam coelestem, II, lin. 474s.), sendo transmitido nas Regulae de
Alain de Lille até Alberto Magno, especialmente, em seu comentário ao Dos Nomes Divinos de
Dionísio (I, 3, p. 254s.). Enquanto estudava com Alberto Magno, Tomás redigiu as notas deste
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Da via remotionis e da via eminentiae 186
Mas, esta primeira impressão é logo afastada pelas inúmeras predicações que se
encontram no corpus thomisticum, que não são meramente negativas, em seu
sentido formal, como é o caso da própria denominação da causa incausada como
ipsum esse per se subsistens que expressa o constitutivo formal da essência
divina
383
.
Resta investigar, portanto, após a via de resolução, se há algum
conhecimento metafísico ulterior da natureza da causa incausada e de sua
causalidade criadora. Essa questão envolve basicamente duas coisas. Em primeiro
lugar, saber se é possível avançar no conhecimento da essência da causa
incausada, do que ela é
384
. Em caso afirmativo, quais são as vias disponíveis para
um tal empreendimento e qual a natureza deste conhecimento
385
. A questão
central que se põe diante da afirmação que não sabemos o que Deus é, mas
somente o que Ele não é, pode ser assim resumida: como conciliar a
impossibilidade de saber o que Deus é com a defesa do conhecimento metafísico,
por via de resolução, de que Deus é o ipsum esse subsistens, causa essendi?
4.1
Da tríplice via do conhecimento de Deus
Com a questão anterior em mente, podemos considerar a solução proposta
por Tomás no De Potentia, em especial na sétima questão em que trata da
simplicidade divina. Desde já, é preciso observar que Tomás aborda o problema
do conhecimento da natureza divina através de uma precisão conceitual em torno
comentário de Alberto, tomando conhecimento de perto da tradição em questão. Cf. T.-D.
Humbrecht (1995, p. 9-10).
383
Cf. Mondin (2002, p. 345).
384
O esse divino é por si mesmo maximamente cognoscível. O que pode ser esclarecido
pelo princípio segundo o qual tudo o que é conhecido é enquanto está em ato (unumquodque est
cognoscibile secundum quod est in actu) ou pelo princípio da conversibilidade entre o verdadeiro e
o ente (verum est ens convertuntur). Pelo primeiro, uma vez que Deus é maximamente em ato, é
maximamente cognoscível em si mesmo. Pelo segundo, uma vez que Deus é maximamente ser,
maximamente ente, então é maximamente verdadeiro e cognoscível.
385
Sobre a questão da cognoscibilidade da essência divina e da teologia negativa em Tomás
de Aquino, confira: F. Viana (1960, p. 171-197); L. Raeymaeker (1960, p. 340-355); C. Fabro
(1967, p. 160-175); É. Gilson (1983, p. 169-230); B. de Margerie (1988, p. 23-71); T.-D.
Humbrecht (1993, p. 535-566); T.-D. Humbrecht (1994, p. 71-99); T.-D. Humbrecht (1995, p. 7-
18); M. Bastit (1995, p. 19-30); Géry Prouvost (1995, p. 67-94); Léo Elders (1995, v. II, p. 79-
109); G. Prouvost (1997, p. 485-511); Jean-Luc Marion (1995, p. 31-66); B. Davies (1998, p. 207-
226); N. Kretzmann (1999, p. 2-18); J. Wippel (2000, p. 501-575); J. G. López (2001, p. 575-592);
B. Mondin (2002, p. 341-346; 386-392).
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Da via remotionis e da via eminentiae 187
dos termos “comprehendere” e “cognoscere”. Por “comprehendere”, Tomás
entende o conhecimento em sentido estrito, próprio do saber (scire) científico, que
envolve a definição da coisa conhecida pelo seu gênero e diferença específica. A
compreensão é, assim, uma circunscrição intelectual da coisa conhecida enquanto
conhecida
386
. Por “cognoscere”, designa o conhecimento em sentido lato que não
envolve a definição da coisa conhecida, nem a sua circunscrição intelectual,
indicando o modo imperfeito e limitado do conhecimento humano. Não devemos
perder esta distinção de vista ao examinar as passagens do De Potentia, que
tratam da possibilidade do conhecimento da natureza divina.
A sétima questão do De Potentia reveste-se de um interesse particular para a
nossa investigação porque trata, no conjunto dos seus onze artigos, não só da
simplicidade divina (a. 1), atributo essencial de Deus, mas também da identidade
de ser e essência em Deus (a. 2), de sua transcendência absoluta em relação a todo
gênero e a toda espécie de coisas (a. 3), do problema dos nomes atribuídos a Deus
(a. 4-7), que envolve o tratamento da predicação analógica dos nomes divinos (a.
6-7), bem como das relações que se podem predicar entre Deus e a criatura (a. 8-
11). O tema da simplicidade divina dá oportunidade, asism, à abordagem de uma
série de problemas metafísicos, epistemológicos e semânticos ou lingüísticos,
resumidos em torno da predicação analógica de uma multiplicidade de nomes a
um ser absolutamente simples.
Vimos que Tomás, no primeiro artigo da sétima questão, oferece três
argumentos para demonstrar a simplicidade divina, dentre os quais examinamos
os dois primeiros (7.1 #1 e #2) por ocasião da demonstração da existência da
causa incausada por resolução secundum rem. Naquela ocasião, observamos que a
afirmação conclusiva a respeito da simplicidade divina, em 7.1 #1, supõe a
passagem da via de resolução secundum rem à via de remoção (via remotionis).
Além disso, sublinhamos que os argumentos são baseados em juízos de separação,
em conformidade com a via de remoção. Em suma, a via resolutionis secundum
rem conduziu da composição de ato e potência nos entes à afirmação da causa
incausada, da qual se deve excluir absolutamente qualquer composição. Por essa
razão, o ipsum esse subsistens é absolutamente simples (omnino simplex).
386
Sobre o duplo significado do termo “compreensão”, confira: In Sent., I, d. 43, q. 1, a. 1,
ad 4; STh I, q. 12, a. 7; SCG III, c. 55; QDV q. 2, a. 1, ad 3; q. 8, a. 2; q. 20, a. 5.
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Da via remotionis e da via eminentiae 188
Afirmar a simplicidade do ipsum esse subsistens implica que, em Deus, a
essência (substantia sive essentia) e o ser (esse) são idênticos. É o que Tomás
procura demonstrar no artigo segundo da sétima questão do De Potentia
387
. A
afirmação de que o ens primum é o ser cuja essência é idêntica ao seu próprio ser
levanta justamente a questão sobre a reconciliação deste conhecimento, de
natureza positiva, com a premissa segundo a qual “não sabemos o que Deus é”.
Aliás, a primeira objeção estrutura-se justamente em torno da passagem de João
Damasceno (Fidei Orthodoxa, 1, 3) na qual é dito: “que Deus exista resulta
evidente; que coisa seja segundo a substância e a natureza é absolutamente
incompreensível e ignoto”. Ora, se a substância divina nos é absolutamente
incompreensível e se conhecemos a existência divina, então a substância e o ser
de Deus não são idênticos
388
.
Em sua resposta à primeira objeção, Tomás introduz uma distinção
importantíssima quanto à relação dos termos “ens e “esse”. Esclarece-nos que
ens” e “esse” são ditos de dois modos. No primeiro sentido, “ens e “esse
significam a essência da coisa, ou ainda o ato de ser. No segundo sentido, “ens e
esse” significam simplesmente a verdade da proposição (significat veritatem
propositionis), podendo ser utilizados até mesmo para as coisas que não existem;
assim, afirmamos que “a cegueira existe” porque é verdadeiro que “um homem é
cego”
389
.
Estabelecidas estas distinções, Tomás argumenta que não podemos conhecer
a essência e o ser de Deus no primeiro sentido, mas tão somente no segundo.
Assim sendo, quando Damasceno afirma que o esse da causa incausada nos é
387
Cf. STh I, q. 3, a. 4; SCG I, c. 22, c. 52; In Sent., d. 8, q. 4, a. 1; q. 5, a. 2; d. 34, q. 1, a.
1; In Sent., II, d. 1, a. 1, a. 1; De Spirit. Creat., a. 1.
388
“Dicit enim Damascenus, in I Lib. Orth. fidei: quoniam quidem Deus est, manifestum est
nobis; quid vero sit secundum substantiam et naturam, incomprehensibile est omnino et ignotum.
Non autem potest esse idem notum et ignotum. Ergo non est idem esse Dei et substantia vel
essentia eius.” (QDP q. 7, a. 2, obj. 1). Cf. STh I, q. 3, a. 4, obj. 2.
389
“Ad primum ergo dicendum, quod ens et esse dicitur dupliciter, ut patet V Metaph.
Quandoque enim significat essentiam rei, sive actum essendi; quandoque vero significat veritatem
propositionis, etiam in his quae esse non habent: sicut dicimus quod caecitas est, quia verum est
hominem esse caecum. Cum ergo dicat Damascenus, quod esse Dei est nobis manifestum,
accipitur esse Dei secundo modo, et non primo. Primo enim modo est idem esse Dei quod est
substantia: et sicut eius substantia est ignota, ita et esse. Secundo autem modo scimus quoniam
Deus est, quoniam hanc propositionem in intellectu nostro concipimus ex effectibus ipsius.” (QDP
q. 7, a. 2, ad 1). Estes dois modos de dizer o esse é uma releitura de Tomás dos quatro modos
estabelecidos por Aristóteles (Met., V, 7, 1017a-b). Os mesmos são propostos por Tomás contra a
indistinção existente em São Boaventura e Alexandre de Hales, conforme recorda T.-D.
Humbrecht (1994, p. 82, n. 53).
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Da via remotionis e da via eminentiae 189
manifesta, o termo esse significa a verdade da proposição “Deus existe”, mas não
o ato de ser divino. Por outro lado, o esse divino permanece incógnito e
incompreensível quando o termo “esse” e “ens” são utilizados no primeiro sentido
para significar o ser e essência que são idênticas em Deus. Portanto, só
conhecemos o que Deus é quando tomamos o termo “esse” no segundo sentido,
pois este significa que conhecemos a verdade da proposição “Deus existe” que o
intelecto se forma a partir de seus efeitos próprios (ex effectibus ipsius)
390
.
A distinção entre o duplo sentido do termo “esse” como cópula que designa
a verdade da proposição e como ato de ser (actus essendi) é uma das chaves da
solução de Tomás para o conhecimento de Deus na medida em que permite situar
todo o saber humano do ipsum esse subsistens do lado da verdade da proposição e
não do lado da compreensão do ato de ser divino. Em outros termos, é impossível
ao homem compreender conceitualmente a essência e o ser de Deus, que n’Ele são
idênticos, mas é possível saber quando as proposições a respeito do esse divino
são verdadeiras a partir das perfeições encontradas nos entes (ex effectibus ipsius).
Uma outra precisão importante oferece-nos Tomás em sua resposta à quarta
objeção em torno da suposta identidade entre o “esse commune” e o “ipsum esse”.
A objeção é estruturada a partir da premissa segundo a qual o “ens não entra na
definição de uma coisa e que a substância de uma coisa distinta de outra não pode
ser o próprio ser (ipsum esse), porque o ser é comum a todas as coisas (cum sit
omnibus commune). Ora, como Deus é uma realidade distinta de todas as outras,
não entra em sua definição o ser que é comum a todas as coisas. Portanto, o seu
ser (suum esse) não é a sua substância.
A resposta de Tomás é decisiva para a compreensão do significado de ipsum
esse subsistens, a saber: o ser divino que constitui a sua substância não é o ser
genérico ou comum (non est esse commune), mas o ser distinto de todo outro ser.
Logo, pelo seu próprio ser (per ipsum suum esse) Deus difere de qualquer outro
390
“Ad primum ergo dicendum, quod ens et esse dicitur dupliciter, ut patet V Metaph.
Quandoque enim significat essentiam rei, sive actum essendi; quandoque vero significat veritatem
propositionis, etiam in his quae esse non habent: sicut dicimus quod caecitas est, quia verum est
hominem esse caecum. Cum ergo dicat Damascenus, quod esse Dei est nobis manifestum,
accipitur esse Dei secundo modo, et non primo. Primo enim modo est idem esse Dei quod est
substantia: et sicut eius substantia est ignota, ita et esse. Secundo autem modo scimus quoniam
Deus est, quoniam hanc propositionem in intellectu nostro concipimus ex effectibus ipsius.” (QDP
q. 7, a. 2, ad 1).
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Da via remotionis e da via eminentiae 190
ente
391
. A diferença entre o esse commune e o ipsum esse subsistens é
pormenorizada em sua resposta à sexta objeção. O ente comum (ens commune),
nos diz Tomás, é aquilo ao qual não se faz adição e em cujo conceito (ratio) se
exclui que se possa fazer acréscimo, mas o esse divinum não é o ser comum ou
genérico. Com efeito, ainda que prescinda negativamente das adições e
determinações, o ens commune não as exclui total e positivamente como o esse
divinum
392
.
Não se deve confundir, portanto, a transcendência do esse commune que é
somente secundum rationem com a transcendência do ipsum esse subsistens que é
secundum esse. A transcendência do esse commune é a própria excedência da
ratio entis que não exclui nem implica as adições e determinações, mas prescinde
negativamente delas, conforme se demonstrou ao falarmos da separatio
relativamente à ratio entis. Já o ipsum esse subsistens, diversamente do esse
commune, exclui total e positivamente as adições ou limitações. É por essa razão
que Deus pelo seu próprio ser (per ipsum suum esse) se distingue absolutamente
de qualquer outro ente. Daqui resulta ainda que, pelo seu próprio ser, Deus é
individuado em si mesmo (ipsum esse Dei distinguitur et individuatur) por ser o
único ser subsistente por si mesmo (ipsum quod est esse per se subsistens), no
qual se exclui positivamente e totalmente qualquer tipo de acréscimo
393
.
Em razão das objeções do segundo artigo contra a identidade de ser e
essência em Deus, Tomás foi levado a considerar o problema da simplicidade
divina à luz das dificuldades semânticas inerentes ao uso de certas noções como
ens, esse, esse commune e ipsum esse. A necessidade de depurar o nosso
conhecimento de Deus, removendo todas as imprecisões semânticas e as
391
“Ad quartum dicendum, quod esse divinum, quod est eius substantia, non est esse
commune, sed est esse distinctum a quolibet alio esse. Unde per ipsum suum esse Deus differt a
quolibet alio ente.” (QDP q. 7, a. 2, ad 4).
392
“Ad sextum dicendum, quod ens commune est cui non fit additio, de cuius tamen ratione
non est ut ei additio fieri non possit; sed esse divinum est esse cui non fit additio, et de eius ratione
est ut ei additio fieri non possit; unde divinum esse non est esse commune. Sicut et animali
communi non fit additio, in sua ratione, rationalis differentiae; non tamen est de ratione eius quod
ei additio fieri non possit; hoc enim est de ratione animalis irrationalis, quae est species animalis.”
(QDP q. 7, a. 2, ad 6).
393
“Ad quintum dicendum, quod sicut dicitur in libro de causis, ipsum esse Dei distinguitur
et individuatur a quolibet alio esse, per hoc ipsum quod est esse per se subsistens, et non adveniens
alicui naturae quae sit aliud ab ipso esse. Omne autem aliud esse quod non est subsistens, oportet
quod individuetur per naturam et substantiam quae in tali esse subsistit. Et in eis verum est quod
esse huius est aliud ab esse illius, per hoc quod est alterius naturae; sicut si esset unus calor per se
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Da via remotionis e da via eminentiae 191
premissas inconvenientes, conduziu Tomás à distinção entre a duplicidade de
significados de ens e esse, bem como a distinção entre o esse commune e o ipsum
esse subsistens. Um dos principais equívocos no uso destes termos consiste em
entendê-los como gêneros, de tal modo que até mesmo Deus estaria contido em
um gênero. Por essa razão, o terceiro artigo investiga se Deus é um gênero
394
.
Tomás de Aquino oferece três argumentos para demonstrar que Deus não é
um gênero. O primeiro consiste em perceber que toda coisa que é posta em um
gênero o é por sua essência (qüididade), que é comum. Mas, o ser (esse) de uma
coisa lhe pertence de modo exclusivo e distinto do ser (esse) de outra coisa. Ora,
uma vez que Deus é o seu próprio ser (est ipsum suum esse) não pode ser contido
em um gênero
395
. O segundo argumento sustenta que tudo o que pertence a um
gênero é composto de matéria e forma ou de ato e potência. Como Deus é ato
puro, absolutamente simples, então não pode ser contido em um gênero
396
. O
último argumento parte da premissa de que Deus é absolutamente perfeito,
compreendendo em si a perfeição de todos os gêneros (comprehendit in se
perfectionem omnium generum). Ora, como o que está contido em um gênero é
limitado à perfeição do gênero em que está contido, então Deus não pode estar
contido em nenhum gênero
397
.
A conclusão do corpo do artigo é um coro de juízos negativos de separação,
resultantes da via remotionis, a saber: Deus não é um gênero, nem uma espécie,
nem um indivíduo pertencente a uma espécie, nem há nele nenhuma diferença,
existens sine materia vel subiecto, ex hoc ipso ab omni alio calore distingueretur: licet calores in
subiecto existentes non distinguantur nisi per subiecta.” (QDP q. 7, a. 2, ad 5)
394
Cf. In Sent., I, d. 8, q. 4, a. 2; d. 19, q. 4, a. 2; STh I, q. 3, a. 5 ; SCG I, c. 25.
395
“primo quidem, quia nihil ponitur in genere secundum esse suum, sed ratione quidditatis
suae; quod ex hoc patet, quia esse uniuscuiusque est ei proprium, et distinctum ab esse cuiuslibet
alterius rei; sed ratio substantiae potest esse communis: propter hoc etiam philosophus dicit, quod
ens non est genus. Deus autem est ipsum suum esse: unde non potest esse in genere.” (QDP q. 7, a.
3, co.)
396
“Secunda ratio est, quia quamvis materia non sit genus, nec forma sit differentia, tamen
ratio generis sumitur ex materia, et ratio differentiae sumitur ex forma: sicut patet quod in homine
natura sensibilis ex qua sumitur ratio animalis, est materialis respectu rationis, ex qua sumitur
differentia rationalis. Nam animal est quod habet naturam sensitivam; rationale autem quod
rationem habet. Unde in omni eo quod est in genere, oportet esse compositionem materiae et
formae, vel actus et potentiae; quod quidem in Deo esse non potest, qui est actus purus, ut
ostensum est. Unde relinquitur quod non potest esse in genere.” (ibid.)
397
“Tertia ratio est, quia, cum Deus sit simpliciter perfectus, comprehendit in se
perfectionem omnium generum: haec enim est ratio simpliciter perfecti, ut dicitur V Metaph. Quod
autem est in aliquo genere, determinatur ad ea quae sunt illius generis; et ita Deus non potest esse
in aliquo genere: sic enim non esset infinitae essentiae, nec absolutae perfectionis, sed eius
essentia et perfectio limitaretur sub ratione alicuius generis determinati.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 192
nem pode ser definido
398
nem demonstrado por uma demonstração propter quid,
mas tão somente pelos seus efeitos (demonstração quia)
399
.
A distinção entre a duplicidade de significados de “ens” e “esse”, bem como
a distinção entre o “esse commune” e o “ipsum esse subsistens” não deixa dúvida
quanto à intenção de Tomás em evitar todas as dificuldades filosóficas oriundas
da não distinção dos termos em questão, incluindo também o significado de
genus” e “differentia”. Mas, se o termo “esse” não pode revelar absolutamente
nada a respeito do conteúdo formal da essência divina, mas tão somente nos
garante a veracidade da proposição “Deus existe”, poderíamos nos interrogar se
Tomás não supõe algo a mais ao recusar a identificação do esse commune ao esse
divino. Por outro lado, poder-se-ia insistir que é preciso investigar com mais rigor
se a veracidade da proposição segundo a qual “não sabemos o que Deus é” não
entraria em conflito com aquela que afirma que “Deus é o próprio ser
subsistente”, ou seja, se é possível realmente manter, ao mesmo tempo, a tese da
incompreensibilidade da essência divina e a tese de que certos predicados
significam o que Deus é (como “ipsum esse subsistens”), enquanto outros não (tal
como “esse commune”).
Convém prosseguir nestas questões com cautela, fazendo as distinções
necessárias para evitar as dificuldades. No artigo quarto, sempre da mesma
questão, Tomás usa três argumentos baseados na via remotionis, para demonstrar
que os termos “bom”, “sábio” e “justo” não são predicados acidentalmente de
Deus, ou seja, que são predicados essencialmente
400
. Esses argumentos
acompanham a prévia demonstração de que Deus não é um gênero, nem uma
espécie, nem um indivíduo pertencente a uma espécie, nem possui nenhuma
diferença. A esse coro de negações, acrescenta outro: em Deus, não há nenhuma
distinção entre o participante e o participado, entre o que possui e o que é
possuído, entre a natureza e o ser, assim como não pode haver nada de potencial,
398
Deus não pode ser definido porque não pode ser compreendido pelo intelecto daquele
que perfaz a definição. Assim, qualquer predicado atribuído a Deus, como “ato puro”, não o
define. Cf. QDP q. 7, a. 3, ad 4; ad 5.
399
“Ex hoc ulterius patet quod Deus non est species, nec individuum, nec habet
differentiam, nec definitionem: nam omnis definitio est ex genere et specie; unde nec de ipso
demonstratio fieri potest nisi per effectum, cum demonstrationis propter quid medium sit
definitio.” (QDP q. 7, a. 3, co.)
400
Cf. In Sent., I, d. 8, q. 4, a. 3; STh I, q. 3, a. 6; SCG I, c. 23.
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Da via remotionis e da via eminentiae 193
acidental ou estranho
401
. Como os termos “sábio”, “justo” e “bom” revestem-se de
um conteúdo formal claramente positivo, Tomás é conduzido ao quinto artigo em
que investiga se tais nomes significam a substância divina.
A solução proposta por Tomás depende da consideração de duas posições
antagônicas. A primeira, sustentada explicitamente por Maimônides (1135-1204),
afirma que os nomes predicados de Deus não significam a essência divina. A
segunda, proposta pelo Pseudo-Dionísio, afirma que os nomes predicados de Deus
significam a essência divina, embora de um modo defeituoso e imperfeito
402
.
Em relação à doutrina de Maimônides, Tomás faz duas coisas.
Primeiramente, apresenta a doutrina do filósofo hispânico-judeu, considerando-a,
em seguida, como insuficiente e inconveniente. Para Maimônides, os nomes
predicados de Deus devem ser atribuídos ou de modo meramente causal ou ainda
de modo exclusivamente negativo. No primeiro modo, são atribuídos
exclusivamente por semelhança entre os efeitos e a causa. Assim, quando
afirmamos que “Deus é sábio” não pretendemos significar que nele haja
sabedoria, mas que ele age nos seus efeitos segundo a modalidade da sabedoria,
ou seja, à semelhança de um sábio, ordenando todas as coisas ao seu devido fim.
No segundo modo, por via de negação (per modum negationis), os nomes
atribuídos a Deus são puramente negativos. Assim, quando afirmamos que “Deus
é vivente” não significamos que nele haja vida, mas retiramos dele aquele modo
de ser que caracteriza as coisas inanimadas. Do mesmo modo, quando afirmamos
que “Deus é inteligente”, removemos dele aquele modo de ser que é próprio dos
brutos. Com isso, nega-se qualquer identidade entre o modo de ser de Deus e dos
seres criados. Tanto no primeiro quanto no segundo modo, os nomes predicados
de Deus não significam a essência divina
403
.
401
“Dicendum quod, absque omni dubitatione, tenendum est quod in Deo nullum sit
accidens. (...) In Deo autem nulla est differentia habentis et habiti, vel participantis et participati;
immo ipse est et sua natura et suum esse; et ideo nihil alienum vel accidentale potest ei inesse.”
(QDP q. 7, a. 4, co.)
402
“Dicendum quod: quidam posuerunt, quod ista nomina dicta de Deo, non significant
divinam substantiam, quod maxime expresse dicit Rabbi Moyses. (...)Et ideo, secundum
sententiam Dionysii, dicendum est, quod huiusmodi nomina significant divinam substantiam,
quamvis deficienter et imperfecte” (QDP q. 7, a. 5, co.)
403
“Dicit autem, huiusmodi nomina de Deo dupliciter esse intelligenda: uno modo per
similitudinem effectus, ut dicatur Deus sapiens non quia sapientia aliquid sit in ipso, sed quia ad
modum sapientis in suis effectibus operatur, ordinando scilicet unumquodque ad debitum finem; et
similiter dicitur vivens in quantum ad modum viventis operatur, quasi ex se ipso agens. Alio modo
per modum negationis; ut per hoc quod dicimus Deum esse viventem, non significemus vitam in
eo aliquid esse, sed removeamus a Deo illum modum essendi quo res inanimatae existunt.
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Da via remotionis e da via eminentiae 194
Tomás rejeita ambas as possibilidades sugeridas pelo autor do Guia dos
Perplexos como insuficientes (insufficiens) e incorretas (inconveniens). Contra a
primeira alternativa proposta por Maimônides, Tomás argumenta que, suposta a
relação meramente causal na predicação de certos nomes a Deus, não haveria
diferença entre dizer que “Deus é sábio”, “Deus é fogo” ou “Deus tem ira”. Com
efeito, se diz que tem ira porque age como quem tem ira quando pune; diz-se que
é fogo quando age à maneira do fogo que purifica. Essa posição é contrária aos
santos e profetas que, ao falarem de Deus, aprovam certas coisas, mas recusam
outras. Aprovam, de fato, que seja vivo, sapiente e coisas semelhantes, mas não
que seja corpo ou sujeito de paixões
404
. Além disso, pondera Tomás, se a doutrina
de Maimônides fosse aceita, então Deus não poderia ser dito sábio, justo e bom
antes das criaturas existirem, porque não haveria nenhum efeito através do qual
Deus poderia agir semelhante ao sábio, ao justo e ao bom
405
.
Contra a segunda alternativa proposta por Maimônides, a respeito da
absoluta negatividade dos nomes predicados de Deus, Tomás sustenta que se
todos os nomes fossem atribuídos a Deus deste modo, então poderíamos atribuir-
lhe o nome “leão”, assim como “vivente”. Afinal, não há nenhum termo
específico que não exclua de Deus algum modo de ser que não lhe convenha. Com
efeito, todo termo específico inclui a diferença com que é excluída da espécie
oposta. Assim, o nome “leão” inclui a diferença pelo qual é um quadrúpede,
graças à qual o leão é diferente da ave. Se os predicados afirmados de Deus
fossem utilizados com o único intuito de eliminar o que Deus não é, poderíamos
Similiter cum dicimus Deum intelligentem, non intelligimus significare intellectum aliquid in ipso
esse, sed removemus a Deo illum modum essendi quo bruta existunt; et sic de aliis.” (ibid.)
404
“Uterque autem modus videtur esse insufficiens et inconveniens. Primus quidem duplici
ratione: quarum prima est, quia secundum expositionem nulla differentia esset inter hoc quod
dicitur, Deus est sapiens et Deus est iratus, vel Deus ignis est. Dicitur enim iratus quia operatur ad
modum irati dum punit: hoc enim homines irati facere consueverunt. Dicitur etiam ignis, quia
operatur ad modum ignis dum purgat, quod ignis suo modo facit. Hoc autem est contra positionem
sanctorum et prophetarum loquentium de Deo, qui quaedam de Deo probant, et quaedam ab eo
removent; probant enim eum esse vivum, sapientem et huiusmodi, et non esse corpus, neque
passionibus subiectum.” (ibid.)
405
“Secundum autem praedictam opinionem omnia de Deo pari ratione possent dici et
removeri, non magis haec quam illa. Secunda ratio, quia cum secundum fidem nostram ponamus
creaturam non semper fuisse, quod et ipse concedit, sequeretur quod non possemus dicere fuisse
sapientem vel bonum antequam creaturae essent. Constat enim quod antequam creaturae essent,
nihil in effectibus operabatur, nec ad modum boni nec ad modum sapientis. Hoc autem omnino
sanae fidei repugnat: nisi forte dicere velit quod ante creaturas sapiens dici poterat, non quia
operaretur ut sapiens, sed quia poterat ut sapiens operari. Et sic sequeretur quod aliquid existens in
Deo per hoc significetur, et sit per consequens substantia, cum quidquid est in Deo sit sua
substantia.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 195
dizer que “Deus é leão” porque não é uma ave, ou que “Deus é vivente” porque
não é bruto, etc
406
. Ao contrário, sustenta Tomás, toda negação está sempre
fundada em alguma afirmação (intellectus negationis semper fundatur in aliqua
affirmatione). Por isso, não se deve, a partir do valor dos conceitos negativos para
o conhecimento de Deus, afirmar que todos os conceitos que versam sobre a causa
incausada são negativos. Em outros termos, a menos que o intelecto humano
conceba algo afirmativo sobre Deus (aliquid de Deo affirmative cognoscere)
poderá formular um juízo de negação. Mas, se o intelecto nada concebe
afirmativamente sobre Deus, então nada poderá negar a seu respeito
407
.
A solução de Tomás para a questão é claramente dependente do Pseudo-
Dionísio, cuja doutrina afirma que os nomes em questão (“bom”, “sábio” e
“justo”) significam a substância divina de modo imperfeito e deficiente.
Reencontramos aqui o princípio da semelhança entre a causa e o efeito como
fundamento ontológico da predicação verdadeira dos nomes atribuídos a Deus.
Com efeito, todo agente age na medida em que é ato (omne agens agit in quantum
actu est) e, portanto, produz algo semelhante a si mesmo (agit aliqualiter simile).
Daí que a forma do efeito deve estar presente de certo modo no agente. Como
observa Tomás, é a universalidade deste princípio que está ausente na doutrina de
Maimônides, para quem o efeito não é necessariamente semelhante à sua causa.
Em relação à compreensão do princípio segundo o qual a forma do efeito
deve estar presente no agente, é preciso observar que a forma nem sempre está no
efeito do mesmo modo que está no agente. Afinal, um efeito é adequado à
potência da causa (virtutem agentis) nos casos em que a forma presente no agente
e no efeito são definidas do mesmo modo (eamdem rationem) e pertencem à
mesma espécie (idem speciei), como no caso do homem que gera o homem, o
fogo que gera o fogo. Mas, isto não ocorre sempre, pois, há casos em que o efeito
406
“Non enim est aliquod nomen alicuius speciei per quod non removeatur aliquis modus
qui Deo non competit. In nomine enim cuiuslibet speciei includitur significatio differentiae, per
quam excluditur alia species quae contra eam dividitur: sicut in nomine leonis includitur haec
differentia quae est quadrupes, per quam leo differt ab ave. Si ergo praedicationes de Deo non
essent introductae nisi ad removendum, sicut dicimus Deum esse viventem,- quia non habet esse
ad modum inanimatorum, ut ipse dicit - ita possemus dicere Deum esse leonem, quia non habet
esse ad modum avis." (ibid.)
407
“Et praeterea intellectus negationis semper fundatur in aliqua affirmatione: quod ex hoc
patet quia omnis negativa per affirmativam probatur; unde nisi intellectus humanus aliquid de Deo
affirmative cognosceret, nihil de Deo posset negare. Non autem cognosceret, si nihil quod de Deo
dicit, de eo verificaretur affirmative.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 196
não é igualado (adaequat) ao poder da causa (virtutem agentis). Assim, a forma
presente no efeito não é do mesmo modo na causa e no efeito, como o sol que
gera o fogo. Neste caso, a forma está no agente de modo mais eminente (in agente
eminentius), em grau superior e máximo, o que resguarda o sentido aristotélico da
relação entre a causa e o efeito proposto no segundo livro da Metafísica
408
. Ainda
nesta hipótese, a potência do agente não pode comunicar totalmente a sua forma
que se mantém sempre separada de seus efeitos, de um modo superior àquele
encontrado nas coisas por ela produzidas (modus quo forma est in agente excedit
modum quo est in facto). Vimos anteriormente que Tomás descreve esta causa
como equívoca
409
, enquanto a primeira é denominada de causa unívoca
410
.
Feitas estas distinções, Tomás passa à consideração da relação existente
entre a causa incausada e seus efeitos. Ora, nenhum efeito é idêntico (adaequat) à
causa incausada, nem a expressa totalmente. De outro modo, somente um único
efeito poderia proceder de tal potência (virtus
411
). E se nenhum efeito pode ser
igualado à potência da causa incausada, segue-se que a forma encontrada em seus
efeitos não pode ser entendida do mesmo modo que a forma atribuída à causa
primeiríssima. Na causa incausada, a forma sempre é de modo mais eminente
(modum altiorem) do que em seus efeitos, que são unidos em Deus como em uma
408
Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. II, 1, 993b 19-31.
409
“Although St. Thomas does not hesitate to call such an agent equivocal in the preceding
texts, this word must not be torn form context. St. Thomas makes it quite clear when he uses the
term equivocal cause that it is not in every way equivocal. It is in fact an analogical use of the term
equivocal. This is clear from the context itself, for St. Thomas prefaces his remarks by stating that
every agent produces something which in some way resembles it (aliqualiter simile). The cause is,
in reality, an analogical cause (…).” (FAY, T. Analogy: the key to man’s knowledge of God in the
metaphysics of Thomas Aquinas. Divus Thomas, 76, p. 353, 1973.
410
“ Cum omne agens agat in quantum actu est, et per consequens agat aliqualiter simile,
oportet formam facti aliquo modo esse in agente: diversimode tamen: quia quando effectus
adaequat virtutem agentis, oportet quod secundum eamdem rationem sit illa forma in faciente et in
facto; tunc enim faciens et factum coincidunt in idem specie, quod contingit in omnibus univocis:
homo enim generat hominem, et ignis ignem. Quando vero effectus non adaequat virtutem agentis,
forma non est secundum eamdem rationem in agente et facto, sed in agente eminentius; secundum
enim quod est in agente habet agens virtutem ad producendum effectum. Unde si tota virtus
agentis non exprimitur in facto, relinquitur quod modus quo forma est in agente excedit modum
quo est in facto.” (ibid.). Sobre a causalidade analógica, confira: Thomas Fay (1973, p. 352-355).
411
Em Tomás, o termo potentia pode significar a potência ativa ou a potência passiva. Já os
termos potestas e virtus conotam mais particularmente poder, que é relativo à potência ativa, mas
não à potência passiva. Por essa razão, Tomás, às vezes, prefere utilizar virtus ao invés de potentia,
porque significa mais imediatamente o poder e a potência ativa. Cf. N. Kretzmann (1999, p. 41, n.
25).
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Da via remotionis e da via eminentiae 197
única potência ativa. Deste modo, a semelhança dos efeitos com a causa incausada
supõe necessariamente uma dessemelhança ainda maior
412
.
A solução metafísica de Tomás é de caráter transcendental, pois se dirige
para a unidade de todas as formas que existem de modo distinto e dividido nos
diversos efeitos, graças à unidade do princípio criador, cujo ser (esse) e potência
ativa (potentia activa) é causa universal e comum de todas as formas (virtute
communi)
413
. Deve-se observar que, assim como a participação na perspectiva
tomista não é uma semelhança fundada primeiramente na forma, mas no próprio
ser (esse), que é ato (ut actus), assim também a dessemelhança entre a causa
incausada e os seus efeitos se funda no ser (esse).
A fim de elucidar a relação existente entre o princípio de semelhança do
efeito à causa e o conhecimento humano da essência divina, Tomás explica que
nosso intelecto é informado pela semelhança das perfeições encontradas nos entes,
tais como a sabedoria, a potência, a bondade, o ser, etc. Em seguida, traça uma
analogia de proporcionalidade, a saber: assim como os seres criados assemelham-
se à causa incausada (ordem transcendental), ainda que imperfeitamente, assim
também, na ordem do conhecimento, nosso intelecto se assemelha às perfeições
existentes nos seres criados pela informação da species inteligível, pois o
conhecimento não é outra coisa senão uma certa assimilação do cognoscente ao
cognoscido
414
.
Em suma, sendo Deus a causa de todas as perfeições dos entes, estas
mesmas perfeições, conhecidas intelectualmente pela informação da species
inteligível, devem de algum modo estar contidas em Deus, sendo, assim, legítima
412
“ Et hoc videmus in omnibus agentibus aequivocis, sicut cum sol generat ignem. Constat
autem quod nullus effectus adaequat virtutem primi agentis, quod Deus est; alias ab una virtute
ipsius non procederet nisi unus effectus. Sed cum ex eius una virtute inveniamus multos et varios
effectus procedere, ostenditur nobis quod quilibet eius effectus deficit a virtute agentis.”(ibid.)
413
“Nulla ergo forma alicuius effectus divini est per eamdem rationem, qua est in effectu in
Deo: nihilominus oportet quod sit ibi per quemdam modum altiorem; et inde est quod omnes
formae quae sunt in diversis effectibus distinctae et divisae ad invicem, in eo uniuntur sicut in una
virtute communi, sicut etiam omnes formae per virtutem solis in istis inferioribus productae, sunt
in sole secundum unicam eius virtutem, cui omnia generata per actionem solis secundum suas
formas similantur. Et similiter perfectiones rerum creatarum assimilantur Deo secundum unicam et
simplicem essentiam eius.” (ibid.)
414
“Intellectus autem noster cum a rebus creatis cognitionem accipiat, informatur
similitudinibus perfectionum in creaturis inventarum, sicut sapientiae, virtutis, bonitatis et
huiusmodi. Unde sicut res creatae per suas perfectiones aliqualiter,- licet deficienter,- Deo
assimilantur, ita et intellectus noster harum perfectionum speciebus informatur. Quandocumque
autem intellectus per suam formam intelligibilem alicui rei assimilatur, tunc illud quod concipit et
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Da via remotionis e da via eminentiae 198
a atribuição das mesmas à sua causa eficiente e formal. Por isso, os nomes que o
intelecto concebe quando é informado pela semelhança das perfeições das coisas
devem existir verdadeiramente em Deus (in Deo vero existant), a quem tais
perfeições devem sua existência e se assemelham
415
.
Não obstante, Tomás se apressa em observar que nenhuma species
inteligível pode nos dar uma perfeita compreensão (compreehendere) de Deus,
pois nenhuma species é uma perfeita expressão da essência divina. Logo, os
nomes predicados de Deus significam realmente a essência divina (significent id
quod est divina substantia), não de modo perfeito como é em si mesma, mas
segundo o nosso modo de inteligí-la (secundum quod a nobis intelligitur). Os
nomes significam a essência divina, mas não segundo a perfeição que possuem no
esse divino, na medida em que são concebidos por nós (secundum quod a nobis
intelligitur) a partir das perfeições existentes nas coisas. Com efeito, os nomes de
perfeições puras (simples ou transcendentais
416
) tais como “bom”, “sábio” e
“justo” significam a substância divina, mas não de tal modo que possamos
compreendê-la e defini-la, pois significam de modo imperfeito, isto é,
analógico
417
.
Diante da oitava objeção que põe em questão o princípio de analogia entre a
causa e o efeito, Tomás responde distinguindo as perfeições simples ou puras das
perfeições mistas. Estas não se confundem com os termos metafóricos, tais como
“leão”, “pedra”, que são também atribuídos a Deus para designar a imobilidade, a
força, a consistência. As perfeições mistas designam as perfeições que significam
formalmente seu modo limitado de ser, por exemplo, “homem”, “animal”,
“paixão”, etc. Essas perfeições se encontram em Deus virtualmente como em sua
causa, ou seja, são atribuídas a Deus causaliter, mas não formalmente. Somente os
enuntiat secundum illam intelligibilem speciem verificatur de re illa cui per suam speciem
similatur: nam scientia est assimilatio intellectus ad rem scitam.” (ibid.)
415
“Unde oportet quod illa quae intellectus, harum specierum perfectionibus informatus, de
Deo cogitat vel enuntiat, in Deo vero existant, qui unicuique praedictarum specierum respondet
sicut illud cui omnes similes sunt.” (ibid.)
416
Cf. Rayemaker (1960, p. 340-342); C. Fabro (1967, p. 169-170).
417
“Si autem huiusmodi intelligibilis species nostri intellectus divinam essentiam
adaequaret in assimilando, ipsam comprehenderet, et ipsa conceptio intellectus esset perfecta Dei
ratio, sicut animal gressibile bipes est perfecta ratio hominis. Non autem perfecte divinam
essentiam assimilat species praedicta, ut dictum est; et ideo licet huiusmodi nomina, quae
intellectus ex talibus conceptionibus Deo attribuit, significent id quod est divina substantia, non
tamen perfecte ipsam significant secundum quod est, sed secundum quod a nobis intelligitur. Sic
ergo dicendum est, quod quodlibet istorum nominum significat divinam substantiam, non tamen
quasi comprehendens ipsam, sed imperfecte” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 199
termos que servem para designar perfeições que não implicam necessariamente
um modo de ser limitado podem ser ditos formalmente de Deus. Esses termos são
chamados pelos escolásticos de perfeições simples ou puras (ser, viver, inteligir),
nas quais se incluem as perfeições transcendentais (ente, uno, bom, verdadeiro,
etc.). Aliás, as perfeições puras competem primeiramente a Deus, porque nele
existem de modo eminente, ou seja, sem limitações, enquanto nas criaturas não
atingem sua plena realização formal
418
.
A solução da questão proposta sobre a significação dos nomes predicados da
substância divina, conclui-se com um comentário a respeito do nome “Aquele que
é”. Para Tomás, trata-se do nome mais apropriado a Deus, pois significa a
essência divina sem determiná-la, ou seja, sem restringi-la a uma forma
determinada de ser já que expressa o ser indeterminadamente (esse
indeterminate), ou seja, o ser sem adições, restrições, limites
419
. Note-se que a
própria expressão “esse indeterminate” supõe o processo de depuração ou
purificação nocional, resultante de um juízo negativo de separação. Além disso,
dizer que Deus é “esse indeterminate” não significa dizer que Deus é
indeterminado ao modo do “esse commune” que precisa da adição (additio) para
ganhar consistência ontológica. Ao contrário, Deus é “ser indeterminado” no
sentido de não ser determinado por nenhuma adição, por nenhum princípio
acrescido ao seu ser, posto que é esse tantum, purum esse
420
.
Em outras palavras, ainda que possamos atribuir as perfeições puras de
modo verdadeiro a Deus, significando a substância divina (in Deo vero existant),
como as conhecemos de modo limitado, devem ser submetidas à depuração
418
“Similiter consideranda sunt in creaturis quaedam secundum quae Deo similantur, quae
quantum ad rem significatam, nullam imperfectionem important, sicut esse, vivere et intelligere et
huiusmodi; et ista proprie dicuntur de Deo, immo per prius de ipso et eminentius quam de
creaturis. Quaedam vero sunt secundum quae creatura differt a Deo, consequentia ipsam prout est
ex nihilo, sicut potentialitas, privatio, motus et alia huiusmodi: et ista sunt falsa de Deo. Et
quaecumque nomina in sui intellectu conditiones huiusmodi claudunt, de Deo dici non possunt nisi
metaphorice, sicut leo, lapis et huiusmodi, propter hoc quod in sui definitione habent materiam.
Dicuntur autem huiusmodi metaphorice de Deo propter similitudinem effectus.” (ibid., ad 8)
419
“Et propter hoc, nomem “Qui est”, maxime Deo competit, quia non determinat aliquam
formam Deo, sed significat esse indeterminate” (ibid., co.).
420
“Relevons tout d’abord que Thomas commence pour dire non pas que Dieus n’est pas
determiné, mais qu’il n’est pas déterminé par quelquer choese d’ajouté.” (CÔTÉ, A. L’infinité
divine dans la théologie médiévale (1220-1255). Paris : J. Vrin, p. 124, 2002). Deus é o ser
absolutamente determinado e distinto de todo outro ser. Mas, dizer que o esse divino é
determinado não significada acrescentar ao seu esse um princípio limitador, mas reconhecer a sua
absoluta distinção em relação aos demais entes. Sobre o duplo modo em que uma coisa pode ser
determinada (por limitação ou por distinção), confira: Quod., VII, q. 1, a. 1.
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Da via remotionis e da via eminentiae 200
nocional quanto ao modo de significá-las antes de serem atribuídas
verdadeiramente a Deus. É o caso do conhecimento do esse que é primeiramente
concebido como inerente a todos os entes de modo particular (ens ut esse in actu)
e como comum a todos (esse commune). Mas, como vimos, a Deus não se pode
atribuir o esse como algo comum, nem o esse como inerente ao ente, mas somente
o esse indeterminate, ou seja, o ser dito de modo indefinido (indefinite) como
ipsum purum esse. Como explica Tomás em sua resposta à sétima objeção do
segundo artigo:
[7. 2, ad 7] (...) o modo de significar que nós damos às coisas é conforme ao nosso
modo de conhecer; de fato, os nomes significam os conceitos de nossa mente (De
interpret., 1). Ora, o nosso intelecto conhece o ser [esse] como se encontra nas
coisas inferiores, a partir das quais obtém o seu saber e nas quais o ser não é
subsistente, mas inerente. Entretanto, a razão descobre que há um ser subsistente; e,
embora o que digo “ser” [esse] signifique pelo modo concreto, o intelecto quando
atribui o ser a Deus transcende [transcendit] o modo de significar, atribuindo a
Deus aquilo que é significado, mas não o modo de significar.
421
O texto acima permite-nos recuperar o itinerário filosófico de Tomás
percorrido até aqui. A sua resposta à objeção supõe um paralelismo entre os
nomes e os conceitos, pois “os nomes significam os conceitos de nossa mente”.
Ora, os conceitos são obtidos pela apreensão do que nos é dado diretamente da
realidade sensível. Vimos que, dentre todos os conceitos, o conceito de ente é
aquele no qual todos os demais se resolvem (secundum rationem) e sua ratio nada
mais é senão a excedência do esse commune em relação aos seres particulares. Por
sua vez, a resolução metafísica (secundum rationem) dos entes no ser (esse),
enquanto ato de ser (actus essendi), esclarece que o esse entra em composição
intrinsecamente com a essência (potentia essendi), sendo, assim, inerente e não
subsistente. Em seguida, a razão nos mostra, pela resolução secundum rem,
fundada no princípio de causalidade e de participação, que existe um ser
subsistente (demonstração quia) do qual depende tudo o que tem ser. Ao atribuir o
esse à causa incausada, o intelecto transcende (transcendit) o modo de significar
421
“Ad septimum dicendum, quod modus significandi in dictionibus quae a nobis rebus
imponuntur sequitur modum intelligendi; dictiones enim significant intellectuum conceptiones, ut
dicitur in principio Periher. Intellectus autem noster hoc modo intelligit esse quo modo invenitur in
rebus inferioribus a quibus scientiam capit, in quibus esse non est subsistens, sed inhaerens. Ratio
autem invenit quod aliquod esse subsistens sit: et ideo licet hoc quod dicunt esse, significetur per
modum concreationis, tamen intellectus attribuens esse Deo transcendit modum significandi,
attribuens Deo id quod significatur, non autem modum significandi.” (QDP q. 7, a. 2, ad 7)
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Da via remotionis e da via eminentiae 201
para se concentrar na perfeição atribuída, ou seja, para se ater única e
exclusivamente no esse.
O Doutor Angélico termina sua solução do quinto artigo da sétima questão
do De Potentia citando João Damasceno e o Pseudo-Dionísio. Do primeiro, retira
a expressão segundo a qual o nome “Aquele que é” denota um “oceano infinito de
substância”. Do segundo, cita a passagem em que diz: “porque todas as coisas são
inclusas na divindade simplesmente e sem limites, é conveniente que ele seja
louvado e nomeado de modos diversos”. Comentando esta passagem, Tomás
explica que por “simplesmente” (simpliciter) Dionísio significa que as perfeições
presentes nos seres criados de formas diversas são atribuídas a Deus de acordo
com a simplicidade de sua essência que é idêntica ao seu ser. E por “sem limites”
(incircumfinite) Dionísio expressa que nenhuma perfeição das criaturas
compreende a essência divina e, por isso, ao compreender as perfeições puras a
partir dos entes causados, nosso intelecto é incapaz de definir e compreender Deus
em si mesmo
422
.
Do exposto é evidente que Tomás defende explicitamente a capacidade do
intelecto humano em atribuir de modo verdadeiro, embora imperfeito, certos
nomes a Deus (em especial, os nomes que significam perfeições puras e
transcendentais) e, por meio destes, conhecer (cognoscere) o que Deus é. A
possibilidade de conhecê-Lo (cognoscere) verdadeiramente através da predicação
de certas perfeições conhecidas nas coisas se funda no princípio de causalidade e
de participação dos efeitos na causa incausada.
A doutrina da participação pode articular eficazmente no plano do ser o que
a analogia realiza no plano do conhecer
423
. Afinal, a doutrina da participação
supõe a causalidade eficiente que explica a dependência intrínseca dos entes no
esse ut actus essendi, resolvendo-os em seu princípio extrínseco, no ipsum esse
subsistens. A doutrina da participação supõe ainda a causalidade formal pela qual
422
“Et hoc est quod dicit Damascenus, quod hoc nomen qui est, significat substantiae
pelagus infinitum. Haec autem solutio confirmatur per verba Dionysii, qui dicit, quod quia
divinitas omnia simpliciter et incircumfinite in seipsa existentia praeaccipit, ex diversis
convenienter laudatur et nominatur. Simpliciter dicit, quia perfectiones quae in creaturis sunt
secundum diversas formas, Deo attribuuntur secundum simplicem eius essentiam: incircumfinite
dicit, ad ostendendum quod nulla perfectio in creaturis inventa divinam essentiam comprehendit,
ut sic intellectus sub ratione illius perfectionis in seipso Deum definiat. Confirmatur etiam per hoc
quod habetur V Metaph., quod simpliciter perfectum est quod habet in se perfectiones omnium
generum; quod Commentator ibidem de Deo exponit.” (ibid.)
423
Cf. B. de Margerie (1988, p. 40-41) ; T.-D. Humbrecht (1993, p. 559; 564-566).
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Da via remotionis e da via eminentiae 202
todas as perfeições dos entes, dentre elas a perfeição irredutível do esse, se
assemelham à e preexistem formalmente na causa transcendente. Em suma, a
doutrina da participação implica na separação e na eminência do ipsum esse
subsistens, encontrando seu equilíbrio na afirmação do esse ut actus imanente
participado ao ente e causado pelo ipsum esse subsistens, que permanece em si
mesmo inefável e incompreensível porque transcendente
424
. Sob este prisma,
vemos que a explicação de Tomás para o conhecimento de Deus tem como ponto
de partida a radical dependência intrínseca dos entes no ser (esse), que é ato
causado e participado.
Torna-se inegável, portanto, que a predicação dos nomes divinos não é de
nenhum modo meramente acidental, mas essencial, pois significam realmente o
que Deus é. Entretanto, isto não implica que possamos compreender
(comprehendere), circunscrever (circumscripere) e definir (definire) o que Deus é,
uma vez que as perfeições predicadas não o são segundo o modo como elas se
realizam em Deus, mas segundo o modo imperfeito e derivado encontrado nas
coisas e no nosso modo de concebê-las. Que Deus seja incompreensível
(incomprehensibili) para nós pertence à infinita distância que separa os entes
finitos do esse divino.
As respostas às objeções são significativas para a compreensão da solução
proposta por Tomás para o problema dos nomes divinos. Na resposta à primeira
objeção, Tomás reitera que os nomes atribuídos a Deus não significam o que Deus
é de modo perfeito, ou seja, se há predicação verdadeira sobre Deus – o que
Tomás justificou previamente –, não pode haver, porém, nenhuma predicação
definidora e compreensiva (definiendo vel comprehendendo) do que Deus é em si
mesmo
425
.
424
“En effet, l’actus essendi participé, en tant précisément que participé, est
intrinséquement dépendant de Dieu, tout en restant toujours act et en acte dans toute la ligne
métaphysique, une fois qu’il est crée et aussi longtemps qu’il n’est pas annihilé.” (FABRO, C.
Participation et causalité, p. 30, 1960b). “Cet esse d’autre part soutient un double rapport : rapport
de causalité et de participation, émanation de la cause, inhérence à l’effect.” (HAYEN, A.
L’intentionel selon s. Thomas d’Aquin, p. 240, 1954). Cf. FAY, Thomas. Participation : the
transformation of platonic and neoplatonic thought in the metaphysics of Thomas Aquinas. Divus
Thomas, 76, 1973.
425
“Ad primum ergo dicendum, quod Damascenus intelligit, quod huiusmodi nomina non
significant quid est Deus, quasi eius substantiam definiendo et comprehendendo; unde et subiungit
quod hoc nomen qui est, quod indefinite significat Dei substantiam, propriissime Deo attribuitur.”
(ibid., ad 1)
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Da via remotionis e da via eminentiae 203
A segunda objeção recebe um tratamento mais detalhado da parte de Tomás
de Aquino. A mesma parte da afirmação de Dionísio segundo a qual as negações
são verdadeiras, mas as afirmações são vagas, e da premissa segundo a qual
nenhum termo que significa a essência de uma coisa pode ser verdadeiramente
negado desta coisa, para concluir que os termos não significam a substância
divina. Em sua resposta, Tomás recorre à distinção, freqüente em sua obra, entre a
coisa significada (res significata) e o modo de significá-la (modus significandi).
Por esta via, esclarece que os nomes são verdadeiramente atribuídos a Deus
em relação ao que significam (res significata), porque significam o que é em Deus
de modo eminente (sublimiori modo). Mas, em relação ao modo de significar
(modus significandi), os nomes devem ser negados de Deus (via remotionis), pois
nesta perspectiva significam as perfeições de um modo determinado, definido e
restrito, o que não pode ser atribuído a Deus. O modus significandi revela,
portanto, a dimensão em que tais perfeições existem nas coisas finitas e em nosso
intelecto
426
.
A partir da distinção entre a res significata e o modus significandi, Tomás
pode elucidar, em seguida, a tríplice via do conhecimento de Deus, proposta pelo
Pseudo-Dionísio, a saber: via causalitatis, via remotionis e via eminentiae. Pela
primeira, via afirmativa, os nomes que significam as perfeições puras são
atribuídos a Deus de modo verdadeiro, ou seja, segundo a res significata, mas não
segundo o modus significandi. Neste caso, quando se diz que “Deus é sábio”
significamos que há na essência divina de modo eminente, o que há na sabedoria
do intelecto criado por semelhança ao incriado.
Pela via de remoção, via negativa, entendemos que a “sabedoria” não é
atribuída a Deus segundo o modo de significá-la (secundum modus significandi),
pois, neste caso, trata-se de sua acepção determinada e restrita tal como existe no
intelecto e nas coisas. Por isso, a sabedoria, quanto ao modus significandi, é
negada de Deus, não por deficiência de seu esse, mas em razão da limitação de
426
“Ad secundum dicendum, quod ita Dionysius dicit negationes horum nominum esse
veras de Deo quod tamen non asserit affirmationes esse falsas et incompactas: quantum enim ad
rem significatam, Deo vere attribuuntur, quae in eo aliquo modo est, ut iam ostensum est; sed
quantum ad modum quem significant de Deo negari possunt: quodlibet enim istorum nominum
significat aliquam formam definitam, et sic Deo non attribuuntur, ut dictum est. Et ideo absolute
de Deo possunt negari, quia ei non conveniunt per modum qui significatur: modus enim
significatus est secundum quod sunt in intellectu nostro, ut dictum est; Deo autem conveniunt
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Da via remotionis e da via eminentiae 204
nosso modo de concebê-la e expressá-la a partir do modo determinado como se
encontram nas coisas. Com efeito, a sabedoria não é negada de Deus porque Ele é
carente de sabedoria, mas porque se encontra n’Ele de um modo mais eminente
(supereminentius) do que àquela encontrada no intelecto criado e que serve de
base para o nosso modo de concebê-la e afirmá-la. E, por isso, é necessário dizer,
em linguagem dionisiana, que Deus é super-sábio (supersapiens)
427
.
Quando Tomás afirma que não sabemos (scire) “o que Deus é” devemos
entender que exclui absolutamente do homem qualquer possibilidade de significar
a substância divina de modo compreensivo (comprehensibile), circunscritivo
(circumscriptive) e definitivo (definitive). Mas, Tomás defende explicitamente que
podemos conhecer (cognoscere) a natureza divina de modo imperfeito na medida
em que somos “informados” pelas perfeições encontradas nos seres criados, que
resguardam certa semelhança da causa incausada e que existem de modo eminente
em Deus (in Deo vero existant).
É preciso ressaltar ainda que a via negativa para o conhecimento
(cognoscere), jamais compreensivo, do que Deus é, supõe a via afirmativa, a da
causalidade (nisi intellectus humanus aliquid de Deo affirmative cognosceret,
nihil de Deo posset negare). Pela via afirmativa da causalidade,
paradigmaticamente expressa na complementaridade da via resolutiva (do efeito à
causa) e compositiva (da causa ao efeito), Tomás justifica a capacidade do
intelecto de investigar e conhecer que Deus é (an sit; quia est).
Como toda negação está baseada em uma afirmação, toda via de remoção
está sustentada na via de causalidade, cujo fundamento é a causalidade eficiente e
formal do ipsum esse subsistens em relação a seus efeitos. Assumindo como
princípio que todo efeito é semelhante à sua causa e a analogia existente entre a
semelhança das criaturas ao criador e da inteligência às coisas, torna-se possível
justificar que certos nomes são predicados de Deus de modo verdadeiro e
sublimiori modo; unde affirmatio incompacta dicitur quasi non omnino convenienter coniuncta
propter diversum modum.” (ibid., ad 2).
427
“ Et ideo, secundum doctrinam Dionysii, tripliciter ista de Deo dicuntur. Primo quidem
affirmative, ut dicamus, Deus est sapiens; quod quidem de eo oportet dicere propter hoc quod est
in eo similitudo sapientiae ab ipso fluentis: quia tamen non est in Deo sapientia qualem nos
intelligimus et nominamus, potest vere negari, ut dicatur, Deus non est sapiens. Rursum quia
sapientia non negatur de Deo quia ipse deficiat a sapientia, sed quia supereminentius est in ipso
quam dicatur aut intelligatur, ideo oportet dicere quod Deus sit supersapiens. Et sic per istum
triplicem modum loquendi secundum quem dicitur Deus sapiens, perfecte Dionysius dat intelligere
qualiter ista Deo attribuantur.” (idid., ad 2).
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Da via remotionis e da via eminentiae 205
positivo
428
. Não obstante, a fim de evitar qualquer mal-entendido a respeito desta
conclusão é preciso distinguir a veracidade do que é significado pelas perfeições
predicadas (res significata) do modo de significá-las (modus significandi). É o
modo de significá-las que é negado na via remotionis e não a própria perfeição
atribuída (res significata).
Além disso, como a via de remoção e a via de eminência são sempre
acompanhadas por um conhecimento de tipo afirmativo, pois um conhecimento
absolutamente negativo de qualquer coisa é impossível, as mesmas conduzem à
formação de um juízo que se expressa em um enunciado composto, que une ou
separa um predicado a um sujeito. Para expressar a unidade e a identidade da
própria coisa ou realidade significada, o intelecto deve realizar uma compositio,
sem a qual é impossível formular um juízo e obter formalmente a verdade do
conhecimento. “Identitatem vero rei significat intellectus per ipsam
compositionem”, esclarece Tomás na Suma Teológica (I, q. 13, a. 12). Por isso, o
modo de significar a natureza e a identidade do ipsum esse subsistens supõe
sempre compositio da parte de nosso intelecto.
Uma vez que a resolução dos entes em sua causa essendi revelou sua
natureza absolutamente separada (transcendente) em relação a todos os seus
efeitos, a causa extrínseca incausada se manifestou como absolutamente
incompreensível para nós, embora absolutamente inteligível em si mesma. Ora, se
não podemos compreender (comprehendere), nem definir (definire), nem
circunscrever (circumscripere) o que Deus é (quid sit), mas tão somente o que não
é (quid non sit), podemos significar pelos nomes de perfeições puras o que o
mesmo é, conhecendo (cognoscendo) verdadeiramente a natureza divina, ainda
que de modo imperfeito. Com efeito, o intelecto conhece a unidade e a identidade
do ipsum esse subsistens por composição de um sujeito e um predicado numa
proposição verdadeira. A compositio é acompanhada sempre do juízo negativo de
separatio que evita a identificação entre a perfeição significada pelo predicado e o
428
Em sua resposta à nona objeção do quarto artigo da terceira questão do De Potentia,
Tomás faz ver que entre Deus e as criaturas não há nenhuma semelhança de gênere ou espécie,
mas há uma semelhança analógica como a que existe entre a potência e o ato, a substância e o
acidente, fornecendo dois motivos: 1) as coisas criadas imitam ao seu modo a idéia da mente
divina (causalidade formal exemplar extrínseca); 2) as coisas criadas imitam ao seu modo a
própria natureza divina na medida em que do ente primeiro provém os entes, do bom provém as
coisas boas, etc. Cf. QDP q. 3, a. 4, ad 9. Sobre a questão da causa divina como causa exemplar
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Da via remotionis e da via eminentiae 206
modo de significar. Mas, como em Deus se identificam o modus e a perfectio
ipsa, em última instância a perfeição divina permanece em si mesma
incompreensível para nós (quoad nos)
429
. Por isso, observa Tomás a propósito da
décima quarta objeção:
[7.5, ad 14] Pelo fato de nosso intelecto não se igualar à essência divina, a mesma
essência supera a nossa inteligência e permanece ignorada por nós. Logo, o homem
alcança o ponto mais alto de sua cognição (cognitionis humanae) de Deus quando
sabe (sciat) não saber (nescire) Deus, enquanto conhece (cognoscit) que aquilo que
Deus é supera (excedere) tudo aquilo que dele inteligimos (intelligimus)
430
.
Note-se a ordem de explicação sugerida pela passagem acima: o homem
sabe (sciat) não saber (nescire) o que Deus é, porque conhece (cognoscit) que
aquilo que Deus é supera tudo o que dele pode ser concebido. A negação jamais
significa que se abandonou absolutamente o conhecimento de Deus, mas implica
que não se deve supor como alcançado o que é motivo de investigação ulterior,
sempre insuficiente e limitada na ordem natural. A negação, em sede filosófica,
supõe e termina na afirmação. Supõe a afirmação da perfeição significada (res
significada) e termina, após afastar o modo de significá-la (modus significandi),
na afirmação ulterior da perfeição significada (res significada) para além dos
limites de sua inerência nas criaturas, ou seja, na afirmação de sua eminência na
causa incausada.
Esse processo particular envolve uma abertura semântica e gnosiológica
fundada ontologicamente na transcendentalidade e na analogia do ser (esse),
graças à qual os nomes de perfeições puras significam o ipsum esse subsistens,
porém de um modo imperfeito. É a imperfeição do nosso modo de conhecer e não
da coisa significada que caracteriza a tríplice via do conhecimento de Deus como
vias da analogia do ser (esse). Como a tríplice via do conhecimento de Deus se
funda no princípio de causalidade eficiente e formal, a analogia do ser também se
funda nos mesmos princípios.
em Tomás, confira: J. L. Farthing (1984, p. 183-222); S. Selner (1992, p. 101-107); A. Muralt
(1995, p. 103-109); L. Elders (1995, v. II, p. 309-312).
429
Cf. C. Fabro (1967, p. 170).
430
“(...)quod ex quo intellectus noster divinam substantiam non adaequat, hoc ipsum quod
est Dei substantia remanet, nostrum intellectum excedens, et ita a nobis ignoratur: et propter hoc
illud est ultimum cognitionis humanae de Deo quod sciat se Deum nescire, in quantum cognoscit,
illud quod Deus est, omne ipsum quod de eo intelligimus, excedere.” (QDP q. 7, a. 5, ad 14).
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Da via remotionis e da via eminentiae 207
No sétimo artigo da sétima questão do De Potentia, Tomás explicitamente
enfrenta o problema da predicação unívoca, equívoca e analógica dos nomes
atribuídos a Deus. Antes, porém, de passarmos ao exame do conteúdo do sétimo
artigo, é necessário acompanhar o artigo precedente em que Tomás investiga se os
nomes de perfeições puras são sinônimos, ou seja, se “bom”, “justo”, “sábio”
significam sempre o mesmo, em especial como nomes da única, idêntica e simples
essência divina
431
. Observa o Doutor Comum que, em geral, se compreende que
os nomes em questão não são sinônimos, o que pode ser facilmente sustentado
(facile esset sustinere) pelos que defendem a tese segundo a qual os nomes não
significam a essência divina (Maimônides). Mas, uma vez que Tomás demonstrou
que os nomes significam a essência divina, a questão se torna mais difícil
(maiorem difficultatem) na medida em que, neste caso, deve-se conciliar a
unicidade e a simplicidade divina com a pluralidade de nomes que significam a
divina essência.
A solução de Tomás de Aquino exige, em primeiro lugar, compreender que
os significados dos nomes não se referem à coisa imediatamente, mas mediante o
intelecto (mediante intellectu). Novamente é evocado o paralelismo entre as
palavras (voces) que significam as “paixões da alma” (anima passionum) e os
conceitos (conceptiones) que significam as similitudes das coisas (rerum
similitudines). Isto significa que a não-sinonímia dos nomes depende do modo
como o intelecto os concebe, em conformidade com as semelhanças existentes nas
perfeições das próprias coisas.
Por esta razão, pode-se demonstrar que os nomes que significam a essência
divina não são sinônimos quer da parte da própria coisa quer da parte dos
conceitos, significados pelos nomes. Neste sentido, os nomes que são ditos de
Deus não significam nenhuma diversidade da parte da própria coisa (res
significata), mas somente a diversidade dos próprios nomes que são correlatos à
diversidade dos conceitos
432
. Por isso, Averróes afirma que a multiplicidade dos
nomes atribuídos a Deus tem origem no intelecto (secundum differentiam in
intellectu), mas não no ser (sed non in esse). Em suma, Deus é sempre uno e
431
Cf. In Sent., I, d. 2, q. 1, a. 3; d. 22, q. 1, a. 3; SCG, I, c. 35; STh I, q. 13, a. 4.
432
“Horum ergo nominum quae de Deo dicuntur, synonyma impediri non possunt per
diversitatem rerum significatarum secundum praehabita, sed solum per rationes nominum quae
sequuntur conceptiones intellectum” (QDP q. 7, a. 6, co.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 208
simples quanto ao ser (secundum esse) e os conceitos são múltiplos quanto ao
nosso modo de inteligir (secundum rationem).
Poder-se-ia objetar que os conceitos diversos que existem em nossa mente
são de tal natureza que não correspondem a nenhuma realidade externa ao próprio
intelecto (nihil respondeat ex parte rei). Neste caso, os conceitos não
significariam nada em Deus (nihil esset in Deo), nem em si mesmo (vel secundum
ipsum), nem em seus efeitos (vel secundum eius effectus). Todavia, observa
Tomás, o intelecto estaria, nesta hipótese, irremediavelmente em erro ao formular
proposições sobre Deus, o que é inconveniente (quod est inconveniens). Por
último, isso equivaleria a falsear a própria linguagem, pois quem afirma algo
sobre Deus não intenta expressar somente conceitos, nem sequer negá-los
simplesmente, mas pretende afirmar algo sobre a realidade da própria coisa .
A fim de demover esta objeção, Tomás pondera que há de fato conceitos
que não correspondem a nenhuma realidade extra animam, como é o caso dos
gêneros e das espécies que o intelecto atribui às coisas não como são em si
mesmas (in se ipsis sunt), mas só segundo o modo como são conhecidas
(intellectuae sunt). Mas, tampouco aqui há falsidade, quando o intelecto atribui às
coisas o gênero e a espécie uma vez que o intelecto reflete sobre si mesmo
(intellectus in ipsum reflectitur), conhecendo, ao mesmo tempo, as coisas como
são extra animam e como são conhecidas pelo intelecto (pelos conceitos ou
noções). Assim, pode o intelecto saber quando os conceitos ou as noções
correspondem às coisas conhecidas. Por isso, a noção de homem ou o conceito de
homem corresponde à realidade extra animam, enquanto o gênero e a espécie
correspondem à realidade enquanto são conhecidos (respondet solum res
intelecta)
433
.
Mas, se os nomes atribuídos a Deus tivessem a mesma natureza dos gêneros
e das espécies, que correspondem à realidade enquanto são conhecidas, então, ao
formularmos a proposição “Deus é bom”, o sentido da mesma consistiria em que
433
“Nec tamen intellectus est falsus: quia ea quorum sunt istae rationes, scilicet genus et
species, non attribuit rebus secundum quod sunt extra animam, sed solum secundum quod sunt in
intellectu. Ex hoc enim quod intellectus in se ipsum reflectitur, sicut intelligit res existentes extra
animam, ita intelligit eas esse intellectas: et sic, sicut est quaedam conceptio intellectus vel ratio,-
cui respondet res ipsa quae est extra animam,- ita est quaedam conceptio vel ratio, cui respondet
res intellecta secundum quod huiusmodi; sicut rationi hominis vel conceptioni hominis respondet
res extra animam; rationi vero vel conceptioni generis aut speciei, respondet solum res intellecta.”
(ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 209
nós pensamos que Deus seja bom, embora em realidade não saibamos o que ele é.
Ora, é impossível que o sentido da proposição “Deus é bom” se esgote em uma
referência ao significado dos nomes para o próprio intelecto porque, em tal caso, o
sentido dos conceitos e das proposições seria redutível ao modo de serem
entendidos, o que é claramente falso (quod patet esse falsum). Portanto, deve-se
dizer que os nomes atribuídos a Deus almejam significar o que Deus é em si
mesmo (secundum quod in se est)
434
.
Uma última dificuldade é enfrentada por Tomás em relação à tese segunda a
qual os nomes são predicados de Deus por denominação extrínseca, tal como
exposta na teoria de Maimônides
435
. Tampouco esta solução é satisfatória porque,
uma vez que o efeito procede por semelhança da causa, é necessário, de certo
modo, conhecer primeiramente a causa antes de conhecer a natureza do efeito.
Esta teoria, como demonstrou Tomás previamente, possui o grave defeito de
condicionar a predicação das perfeições a Deus à sua existência nos efeitos, pois
os nomes deveriam ser atribuídos primeiramente aos efeitos e depois,
extrinsecamente, à causa. Mas, “Deus não é chamado sábio porque é a causa da
sabedoria, mas é a causa da sabedoria porque é sábio”
436
.
Em seguida, Tomás recapitula as linhas gerais de sua resposta ao quinto
artigo, fundamentando a predicação dos nomes divinos no princípio de
causalidade e de participação, efeito formal da causalidade. As perfeições
existentes nos efeitos são imagens imperfeitas da causa. Uma vez conhecidas pelo
intelecto e expressas por meio de diversos conceitos, as perfeições puras ou
simples atribuídas a Deus só são verdadeiras na medida em que são semelhanças
das coisas que, por sua vez, são semelhanças imperfeitas do que é em Deus (in
Deo vero existant). Os conceitos ou noções que expressam as perfeições simples
respondem por algo que é em Deus e que é Deus (quod est in Deo et qoud est
434
“Non autem est possibile huiusmodi esse rationes horum nominum quae de Deo
dicuntur: quia sic intellectus non attribueret ea Deo secundum quod in se est, sed secundum quod
intelligitur; quod patet esse falsum: esset enim sensus, cum dicitur Deus est bonus, quod Deus sic
intelligitur non autem quod sit. ” (ibid.)
435
A denominação extrínseca é aquela que significa intrinsecamente a perfeição dos efeitos
mas não da causa. A mesma evita a sinonímia dos nomes divinos porque os mesmos passam a
significar a intrinsecamente a diversidade das perfeições existentes nos efeitos, mantendo a
simplicidade da causa. Nesta linha de raciocínio, dizer que “Deus é sábio” significa que é a causa
da sabedoria, nada acrescentando ao nosso conhecimento da essência da causa, mas tão somente
dos seus efeitos.
436
“Non ergo sapiens dicitur Deus quoniam sapientiam causet, sed quia est sapiens, ideo
sapientiam causat.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 210
Deus), mas a diversidade e a multiplicidade dos nomes depende do nosso
intelecto
437
.
Uma vez demonstrado que os nomes de perfeições puras ou simples não são
sinônimos, nem significam uma pluralidade de perfeições em Deus, mas uma
pluralidade e diversidade de conceitos que expressam o que é em Deus e que é
Deus de modo idêntico, uno e simples, Tomás passa a considerar mais
detidamente o problema da analogia no sétimo artigo da sétima questão
438
. Neste,
investiga se os nomes ditos de Deus e da criatura são segundo um significado
idêntico (unívoco), um significado totalmente diverso (equívoco), ou em parte
igual, em parte diverso (análogo)
439
.
Em relação à suposição de uma univocidade entre as perfeições predicadas
de Deus e da criatura, Tomás observa que isto é impossível por duas razões. Em
primeiro lugar, porque o efeito de um agente unívoco corresponde perfeitamente à
perfeição do agente, mas, nenhum efeito da causa incausada iguala-se
perfeitamente à sua perfeição. Em segundo lugar, porque toda perfeição é na
causa incausada idêntica ao seu ser, porque Deus é o seu próprio ser (ipsum esse),
enquanto nos efeitos não é idêntica ao seu ser
440
. Portanto, o esse não pode ser
predicado univocamente de Deus e das criaturas e, como uma conseqüência,
nenhuma outra perfeição pode também ser predicada univocamente, pois a
437
“Cum ergo, ut ex superioribus patet, conceptiones perfectionum in creaturis inventarum,
sint imperfectae similitudines et non eiusdem rationis cum ipsa divina essentia, nihil prohibet quin
ipsa una essentia omnibus praedictis conceptionibus respondeat, quasi per eas imperfecte
repraesentata. Et sic omnes rationes sunt quidem in intellectu nostro sicut in subiecto: sed in Deo
sunt ut in radice verificante has conceptiones. Nam non essent verae conceptiones intellectus quas
habet de re aliqua, nisi per viam similitudinis illis conceptionibus res illa responderet. Diversitatis
ergo vel multiplicitatis nominum causa est ex parte intellectus nostri, qui non potest pertingere ad
illam Dei essentiam videndam secundum quod est, sed videt eam per multas similitudines eius
deficientes, in creaturis quasi in speculo resultantes.” (ibid.)
438
Cf. In Sent., I, prol., a. 2; d. 19, q. 5, a. 2; d. 35, q. 1, a. 4; QDV q. 2, a. 2; SCG I, c. 32-
34; STh I, q. 13, a. 5.
439
Sobre a questão da analogia em Tomás de Aquino, confira: A. Hayen (1954, p. 52-85);
A. Nemetz (1955); G.P. Klubertanz (1960); C. Fabro (1969a, p. 419); T. Fay (1973a, p. 343-364);
A. Muralt (1995, p. 149-153); L. Élders (1995, p. 250-283); J. Wippel (2000, p. 543-575); J.G.
Lópes (2001, p. 578-585); B. Mondin (2002, p. 420-440)
440
“Dicendum quod impossibile est aliquid univoce praedicari de Deo et creatura; quod ex
hoc patet: nam omnis effectus agentis univoci adaequat virtutem agentis. Nulla autem creatura,
cum sit finita, potest adaequare virtutem primi agentis, cum sit infinita. Unde impossibile est quod
similitudo Dei univoce in creatura recipiatur. (...) Deus autem alio modo se habet ad esse quam
aliqua alia creatura; nam ipse est suum esse, quod nulli alii creaturae competit. Unde nullo modo
univoce de Deo creatura dicitur; et per consequens nec aliquid aliorum praedicabilium inter quae
est ipsum primum ens. Existente enim diversitate in primo, oportet in aliis diversitatem inveniri;
unde de substantia et accidente nihil univoce praedicatur.” (QDP q. 7, a. 7, co.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 211
primeira de todas as perfeições e de todos os atos é o ser (esse), que nada
pressupõe.
Em relação à tese da equivocidade, atribuída a Maimônides, Tomás também
oferece duas razões contrárias. Em primeiro lugar, porque na predicação equívoca
a perfeição significada não manifesta a relação de uma coisa à outra (de uno per
respectum ad alterum), o que é suposto em toda predicação verdadeira sobre
Deus. Em segundo lugar, uma vez que todo o nosso conhecimento de Deus
provém dos seus efeitos, se entre os efeitos e a causa não houvesse nada de
comum, não se poderia ter nenhum conhecimento de Deus, exceto dos nomes
441
.
Tendo eliminado tanto a equivocidade, quanto a univocidade, a solução de
Tomás parece ser evidente: as perfeições puras predicam-se dos entes e do ipsum
esse subsistens por analogia. A analogia é um modo de predicação segundo o qual
um certo predicado comum se atribui a distintos sujeitos, em parte no mesmo
sentido e em parte em sentido diverso. Por isso, noções, conceitos e termos
análogos significam uma perfeição comum aos analogados.
Para Tomás, a predicação analógica pode ocorrer de dois modos: 1) quando
uma coisa (perfeição) é predicada de duas coisas (dos entes) por referência a uma
terceira (aliquid praedicatur de duobus per respectum ad aliquid tertium), como o
ente é predicado da quantidade e da qualidade por referência à substância; 2)
quando uma coisa (perfeição) é predicada de duas em razão da relação de uma à
outra (aliquid praedicatur de duobus per respectum unius ad alterum), assim o
ente é predicado da substância e da quantidade.
No primeiro caso de atribuição analógica, é necessário que as duas coisas
sejam precedidas pela terceira à qual se referem, como a substância tem
precedência sobre a qualidade e a quantidade, e a relação entre as mesmas
justifica aplicar o termo ens a todas e a cada uma delas. No segundo caso, isto não
é necessário, pois uma das duas coisas deve preceder a outra. Ora, como nada tem
precedência em relação a Deus, pode-se predicar as perfeições puras ao mesmo de
441
“Quidam autem aliter dixerunt, quod de Deo et creatura nihil praedicatur analogice, sed
aequivoce pure. Et huius opinionis est Rabbi Moyses, ut ex suis dictis patet. Ista autem opinio non
potest esse vera: quia in pure aequivocis, quae philosophus nominat a casu aequivoca, non dicitur
aliquid de uno per respectum ad alterum. Omnia autem quae dicuntur de Deo et creaturis, dicuntur
de Deo secundum aliquem respectum ad creaturas, vel e contrario, sicut patet per omnes opiniones
positas de expositione divinorum nominum. Unde impossibile est quod sit pura aequivocatio. Item,
cum omnis cognitio nostra de Deo ex creaturis sumatur, si non erit convenientia nisi in nomine
tantum, nihil de Deo sciremus nisi nomina tantum vana, quibus res non subesset.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 212
acordo com o segundo tipo de predicação analógica, mas não de acordo com o
primeiro. A razão desta escolha parece clara uma vez que, no segundo tipo de
predicação analógica (unius ad alterum), é afirmado, ao mesmo tempo, que a
perfeição se encontra nas duas coisas como em seus sujeitos e que há
subordinação de uma coisa à outra (unum esse prius altero)
442
.
Deve-se observar em relação à doutrina da analogia do ser proposta no De
Potentia que Tomás não menciona a analogia de proporcionalidade
(correspondente ao legovmenon cat *a*nalogivan
443
), mas tão somente a de
atribuição, pois as expressões “analogia unius ad alterum” e “analogia secundum
prius et posterius” convém à analogia de atribuição intrínseca (correspondente ao
proV" e$n legovmenon
ou proV" mivan ajrchvn
444
). A analogia de atribuição é aquela
justamente em que a perfeição análoga existe de modo principal ou perfeitamente
em um analogado, denominado de primeiro analogado, e secundariamente em
outro(s) analogado(s)
445
. Por isso, expressa a perfeição intrínseca dos sujeitos, ao
mesmo tempo, que resguarda a ordem de dependência entre os mesmos
(secundum prius et posterius; unius ad alterum)
446
.
442
“Et ideo aliter dicendum est, quod de Deo et creatura nihil praedicetur univoce; non
tamen ea quae communiter praedicantur, pure aequivoce praedicantur, sed analogice. Huius autem
praedicationis duplex est modus. Unus quo aliquid praedicatur de duobus per respectum ad aliquod
tertium, sicut ens de qualitate et quantitate per respectum ad substantiam. Alius modus est quo
aliquid praedicatur de duobus per respectum unius ad alterum, sicut ens de substantia et quantitate.
In primo autem modo praedicationis oportet esse aliquid prius duobus, ad quod ambo respectum
habent, sicut substantia ad quantitatem et qualitatem; in secundo autem non, sed necesse est unum
esse prius altero. Et ideo cum Deo nihil sit prius, sed ipse sit prior creatura, competit in divina
praedicatione secundus modus analogiae, et non primus.” (ibid.)
443
A analogia de proporcionalidade é decisiva na estruturação da filosofia aristotélica,
como testemunham os seguintes textos: Ética a Nicômaco, I, 6, 1096b 25ss; V, 3, 1131a 29-b 16;
Tópicos, I, 17, 108a 7; Primeiros Analíticos, I, 46, 51b 22; Física. I, 7, 191a 9-12; De part. dos
animais, I, 5, 645b 1-12; Metafísica, , 1016b 31-35; Η, 6, 1048b 5; Λ, 4, 1070a 31s, b 26; 5,
1071a 30; Ν, 6, 1093b 18.
444
Cf. Metafísica. Γ, 2, 1003a 33-34; Ζ, 1, 1028a 10-31; Κ, 3, 1060b 30 - 1061a 17.
Observe-se que o termo “analogia de atribuição” não se encontra materialiter em Aristóteles, mas
sim formaliter na sua doutrina da relação proV" e$n. Por essa razão, ainda que Aristóteles não tenha
usado esta expressão, formalmente ela se apresenta nos diversas referências àquela relação que une
tudo o que é à substância.
445
Como observa John Wippel (2000, p. 565-566), a posição de Tomás no De Potentia é
consistente com sua doutrina exposta previamente na Suma Contra os Gentios (I, c. 34), embora
sua argumentação no De Potentia seja mais breve do que na Suma.
446
A relação analógica, especialmente a de proporcionalidade metafísica, não deve ser
confundida com aquela de ordem matemática. Os termos de cada uma das relações analógicas
abordadas pelo metafísico concernem à realidade íntegra e concreta do ente. Por esse motivo, a
relação analógica não subsiste sem os seus termos e os termos analogados só podem ser
concebidos em sua união analógica. Em última instância, toda relação analógica tem seu princípio,
valor e sentido último na participação de todos os entes no ser (esse), primeiro analogado de todo e
qualquer ato do ente. A analogia de atribuição intrínseca é uma analogia que podemos denominar
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Da via remotionis e da via eminentiae 213
Esta opção do De Potentia em favor da analogia de atribuição intrínseca
significa três coisas. Em primeiro lugar, as perfeições nos entes são causadas,
participadas, imperfeitas e finitas, enquanto em Deus são a sua mesma essência
447
.
Em segundo lugar, as perfeições finitas das criaturas estão em ordem de
dependência a Deus, no qual tais perfeições existem de modo eminente e, por isso,
é a causa primeiríssima de todo ser. Enfim, o commune analogum não é uma
forma unívoca e estática, idêntica nos diversos analogados, mas um efeito formal
da causalidade eficiente, fundamento da participação dos entes no ipsum esse
subsistens
448
.
Pelo exposto, parece evidente que a solução de Tomás, na sétima questão do
De Potentia, para o problema do conhecimento da natureza divina e da predicação
verdadeira dos nomes divinos envolve o uso da tríplice via a partir dos seguintes
pilares: (1) a distinção entre o duplo sentido do termo “esse” como significando o
ato de ser ou a verdade da proposição, que situa o conhecimento da natureza
divina na veracidade das proposições e não na apreensão do ato de ser divino; (2)
a distinção entre o duplo sentido de “compreehendere” e o uso preferencial de
cognoscere”, que permite sustentar, sem contradição, que conhecemos
imperfeitamente, mas não compreendemos o que Deus é
449
; (3) a fundação do
conhecimento humano da natureza divina no princípio de causalidade e de
participação, efeito formal da própria causalidade eficiente divina
450
; (4) a
de “vertical” na medida em que envolve uma ordem de prioridade e posterioridade, uma hierarquia
nos significados dos termos análogos, que expressam graus diversos de uma perfeição comum a
vários. Por outro lado, a analogia de proporcionalidade pode-se considerar “horizontal” uma vez
que, não envolve uma ordem de prioridade e posterioridade, mas sim uma relação entre quatro
termos análogos, comparados dois a dois. Em ambos os casos, porém, o que se enuncia é, ao
mesmo tempo, a unicidade própria de cada analogado e sua pertença a uma ordem comum.
447
“(…) quod similitudo creaturae ad Deum deficit a similitudine univocorum in duobus.
Primo, quia non est per participationem unius formae, sicut duo calida secundum participationem
unius caloris; hoc enim quod de Deo et creaturis dicitur, praedicatur de Deo per essentiam, de
creatura vero per participationem” (QDP q. 7, a. 7, ad 2)
448
Cf. C. Fabro (1967, p. 172); A. Hayen (1954, p. 71-73).
449
“De Dios no tenemos conocimiento quiditativo (...) y mucho menos lo tenemos
comprehensivo por eso. Por eso son completamente inaceptables las doctrinas de Descartes,
Malebranche y Spinosa; la de los ontologistas, como Gioberti o Rosmini; el racionalismo de todos
los tiempos, que es tan falso en filosofía como en teología, y que tiene su mejor expresión en esta
afirmación de Spinosa: “mens humana... cognitionem aeternae et infinitae essentiae Dei habet
adaequatam” (Ethica, II, prop. 47)” (VIANA, Félix. Cognoscibilidad de Dios según santo Tomás.
De redictu ad sanctum Thomam. Pontificia Univ. Lateranensis, 1960, p. 191).
450
Em virtude da dependência causal no ser, as criaturas possuem, cada qual de acordo com
sua essência (potentia essendi), uma semelhança com Deus. Tomás, inspirando-se em Agostinho,
utiliza da noção de vestígio para falar da semelhança das criaturas irracionais a Deus, e da noção
de imagem para expressar a semelhança das criaturas espirituais a Deus. Essa “imagem” é elevada
à ordem sobrenatural pela graça. Cf. C. Fabro (1967, p. 175).
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Da via remotionis e da via eminentiae 214
distinção entre os nomes de perfeições mistas, que se aplicam metaforicamente a
Deus, e os nomes de perfeições puras ou simples, que se predicam analogamente
de Deus e das criaturas; (5) a distinção na predicação dos nomes de perfeições
simples entre a res praedicata e o modus praedicandi, posto que a Deus se aplica
somente a res praedicata, excluindo-se absolutamente o modus praedicandi; (6) a
distinção entre os dois tipos de analogia, uma em que se predica a perfeição de
duas coisas em relação a uma terceira (ad aliquid tertium), e outra pela qual se
predica a perfeição em razão da dependência existente entre as duas coisas (unius
ad alterum).
4.2
Da potência divina
Expostas as vias que orientam a doutrina de Tomás de Aquino no De
Potentia e evidenciado o ser (esse) como princípio de estruturação e fundação das
mesmas, esclarece-se de que modo o De Potentia pode ser lido segundo a ordem
de descoberta propriamente filosófica (ordo inventionis). Em primeiro lugar, pelos
argumentos resolutivos secundum rationem que concluem pela irredutibilidade e
atualidade do ser como ato dos entes. Em segundo lugar, pelos argumentos
resolutivos secundum rem que demonstram a existência do ipsum esse subsistens.
Em seguida, pelos argumentos a respeito da natureza do ipsum esse subsistens que
envolvem a consideração analógica dos nomes divinos no âmbito da tríplice via.
Enfim, pelos argumentos que introduzem e aprofundam a questão da natureza
divina a partir da potência ativa. Dentre os atributos divinos, o da potência (ativa)
é o “primum movens” do De Potentia, a obra mais sistemática e detalhada de
Tomás sobre a causalidade divina
451
.
A atribuição da potência a Deus é o resultado de um processo gradativo do
conhecimento humano que, mediado pela descoberta do ser como ato (esse in
actus) e da essência como potentia essendi nos entes, ascende ao conhecimento da
451
“Le De Potentia, le traité plus systématique et le plus détaillé sur la causalité, marque un
progrès, même dans la terminologie, peut-être parce qu’il suit de plus près les sources (Platon,
Aristote, Augustin, Boèce, De Causis...) qui affleurente partout.” (FABRO, C. Participation et
causalité. p. 352, 1960b). Sobre a potência divina em Tomás de Aquino, confira: J. Royce (1960,
p. 431-437); M. A. Pernoud (1972, p. 69-95); E. Brito (1988, p. 549-579); H. Kainz (1970, p. 308-
320); M. J. Kelly (1979, p. 474-479); L. Elders (1995, v. II, p. 342-349); N. Kretzmann (1999, p.
41-53); J. F. Boyle (2000, p. 581-592); J. G. López (2001, p. 655-663); B. Mondin (2002, p. 377-
380).
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Da via remotionis e da via eminentiae 215
natureza divina
452
. Saber que a potência é apropriadamente atribuída a Deus é
parte do projeto mais amplo de Tomás em ampliar a descoberta aristotélica da
potência infinita de Deus
453
, evitando os limites da concepção neoplatônica da
potência divina, paradigmaticamente presente em Avicena. De nossa parte, o tema
da potência divina permite-nos compreender o modo como coerentemente se
estruturam os argumentos de Tomás no De Potentia a partir da tríplice via do
conhecimento da natureza divina. A metafísica tomista da potência divina é a
expressão do ápice (cacumen) de sua síntese filosófica, corolário da identificação
da potência (potentia activa) ao ser (esse) em Deus e expressão da compreensão
de todas as coisas como potência (potentia passiva) de ser (potentia essendi).
Vimos que a identificação do esse ao ato (esse in actus), ou do próprio ser
(ipsum esse) como ato de todos os atos é o critério mais fundamental e fundante
da atribuição ou não de certos nomes a Deus. A noção intensiva de ser (esse)
permite lançar nova luz sobre a causa essendi como potentia activa cujo efeito
próprio é o ser (esse) dos entes. Dada a centralidade da noção de potência e ato na
resolução da potentia essendi na potentia activa divina, convém primeiramente
analisar a sua fonte aristotélica, antes de examinar a doutrina tomista sobre a
potência divina. Deve-se observar, porém, que Aristóteles jamais deve ser
considerado como a fonte primária e principal das discussões medievais sobre a
potência divina, uma vez que foi obra dos neoplatônicos atribuí-la ao Uno como
expressão do seu infinito poder
454
.
A compreensão do ente à luz das dimensões do ato e da potência é, sem
dúvida, uma das principais contribuições de Aristóteles não só para a superação
dos dilemas relativos à realidade do ente móvel
455
, mas, sobretudo, para a
constituição de uma verdadeira teologia filosófica, capaz de revelar o sentido
último da filosofia primeira. A resolução metafísica do movimento nos princípios
do ato e da potência consistiu na primeira via aristotélica para a resolução de tudo
452
Cf. In Sent., I, d. 42, q. 1, a. 1; SCG II, c. 7; STh I, q. 25, a. 1.
453
Cf. SALLES, S. A potência divina segundo Aristóteles. Communio, 22, nos. 2 e 3, p.
403-417, 2004.
454
Cf. Leo J. Elders (1995, v. II, p. 342-343); Leo Sweeney (1998, p. 167-171).
455
Isto é manifesto na célebre definição do movimento na Física (Γ, 1, 201ª10): “o
movimento é o ato do ente em potência enquanto está em potência”.
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Da via remotionis e da via eminentiae 216
o que é movido em um princípio absolutamente primeiro, eterno, imóvel, simples,
ato puro
456
.
Não obstante, a noção aristotélica de dýnamis (potência
457
), que está na
base da resolução metafísica dos entes no ato puro, não é redutível a um único
significado. Há muitos significados de potência, assim como há múltiplos
significados de ente. A polissemia da noção de potência é patente no décimo
segundo capítulo do quinto livro da Metafísica, dedicado a elucidar os cinco
primeiros sentidos de potência, todos relativos de certo modo ao movimento, a
saber: 1) a potência como princípio de mudança e de movimento existente em
algo diferente da coisa que é movida ou na própria coisa enquanto outra (potência
ativa); 2) a potência como princípio pelo qual a coisa é mudada ou movida por
outro ou por si enquanto outra (potência passiva); 3) a potência como capacidade
de conduzir uma coisa a bom termo ou como se deveria; 4) a potência como
capacidade que a coisa tem de ser mudada por outra ou por si mesma enquanto
outra; 5) a potência como estado em virtude do qual as coisas são imutáveis ou
dificilmente mutáveis para pior.
Observe-se que o terceiro significado é uma especificação do primeiro
enquanto o quarto é uma determinação do segundo. Esta classificação supõe um
princípio ordenador das mesmas que é verdadeiramente analógico
458
, por
reconduzir a diversidade concreta a uma unidade significativa principal. Afinal,
todos os significados de potência, nos diz Aristóteles, são relativos ao de potência
ativa
459
. A diversificação e a distinção real das potências ativas e passivas são
provenientes de seu sujeito; todavia, como se unem concretamente no ato, umas
são ditas em relação às outras segundo uma ordem analógica. Enfim, como a
potência ativa se funda no ato, a compreensão metafísica dos significados de
potência se conclui no ato.
A análise aristotélica das diversas acepções de potência bem como sua
resolução analógica na potência ativa, reveste-se de especial interesse para a nossa
456
Cf. Metafísica. Λ, cap.6-8
457
Cf. Metafísica. , 12, 1019a 15ss; Η, 1-5, 1045b 25ss.
458
Cf. Ibid. Θ, 6, 1048b 6-9.
459
Cf. Ibid. , 12, 1020a 4-6. Tomás assim explica esta recondução dos demais significados
em relação ao primeiro: “E diz isto porque, ainda que padeça por si mesmo, não o faz enquanto
que é o mesmo, mas enquanto é outro (assim ocorre quando o médico se cura a si mesmo). Esta
potência se reduz à primeira, à potência ativa, porque a paixão é causada pelo agente. Por isto, a
potência passiva se reduz à ativa” (In Met., IX, lec.1, n. 1777).
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Da via remotionis e da via eminentiae 217
investigação na medida em que Aristóteles atribui a potência ativa ao ato puro.
Essa passagem se esclarece tanto na Física como na Metafísica como o resultado
de um esforço ulterior de precisão da natureza do primeiro motor imóvel. Além
disso, é acompanhada pela atribuição do infinito à potência ativa, cuja
interpretação tem sido objeto de recente debate
460
. Eis o pequeno e críptico trecho
do sétimo capítulo do livro Λ da Metafísica, no qual seu autor atribui a potência
infinita (duvnamin avpeipon) à substância imóvel, eterna e separada das coisas
sensíveis, denominada Deus (oj qeovz):
Portanto, do que foi dito, é evidente que existe uma substância imóvel, eterna e
separada das coisas sensíveis. E também fica claro que essa substância não pode ter
nenhuma grandeza, mas é sem partes e indivisível. (Ela, de fato, move por um
tempo infinito, e nada do que é finito possui uma potência infinita; e, dado que toda
grandeza ou é infinita ou é finita, pelas razões já apresentadas, ela não pode ter
uma grandeza finita, mas também não pode ter uma grandeza infinita, porque não
existe uma grandeza infinita).
461
A demonstração da infinitude da potência divina, que move por um tempo
infinito, em Aristóteles, só faz sentido se: 1) houver um movimento infinito em
um tempo infinito (o que decorre, segundo o Estagirita, da própria potencialidade
infinita da matéria, submetida à forma da quantidade); 2) houver uma causa que
seja o princípio (ativo) do movimento eterno por um tempo infinito; 3) a causa do
movimento eterno for uma potência (ativa) infinita (porque uma potência finita
não causa um efeito infinito); 4) a potência (ativa) infinita for puramente atual ou
ato puro (porque do contrário poderia não mover
462
); 5) tal potência (ativa)
460
Para P. Aubenque (1997, p. 372), a teologia de Aristóteles como um todo, enquanto
discurso sobre Deus, não é em larga medida senão uma teologia negativa, isto é, um discurso que
não atinge Deus senão se anulando a si mesmo como discurso. Para além desta posição mais
extrema sobre a teologia aristotélica, as interpretações contemporâneas podem ser agrupadas do
seguinte modo, especialmente a partir da discussão sobre a atribuição da potência infinita ao ato
puro. O primeiro grupo de intérpretes considera que a afirmação da potência infinita divina implica
em uma nova acepção do infinito irredutível àquela relativa à matéria, à quantidade. Neste grupo,
encontram-se as clássicas interpretações de Tomás de Aquino e Rodolfo Mondolfo (1968). O
segundo grupo entende que a afirmação da potência infinita divina não implica em uma concepção
do infinito diversa essencialmente daquela discutida na Física em relação à matéria, à quantidade,
ao movimento e ao tempo. O principal expoente desta hermenêutica e crítico da interpretação de
Rodolfo Mondolfo é Leo Sweeney (1998).
461
Metafísica. Λ, 7, 1073a 3-10.
462
“Se existisse um princípio motor e eficiente, mas que não fosse em ato, não haveria
movimento” (Metafísica. Λ, 6, 1071b 12ss).
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Da via remotionis e da via eminentiae 218
infinita e puramente atual pertencer a uma substância infinita (porque nada do que
é finito tem potência infinita)
463
.
A teologia aristotélica não carece, assim, dos primeiros princípios (o
princípio do ato e da potência) de uma demonstração metafísica da infinitude da
potência e da natureza divina. Mas, depende essencialmente de uma cosmologia
em que o movimento infinito do mundo em um tempo infinito é o ponto de
partida para o entendimento da causalidade infinita do ato puro. Com efeito, de
que modo o Estagirita poderia sustentar a potência infinita do ato puro se o
movimento do mundo não fosse potencialmente infinito? No entanto, a teologia
aristotélica carece de uma explicitação do modo pelo qual o filósofo pode
verdadeiramente atribuir a potência (ativa) ao ato puro, evitando todas as
imprecisões inerentes à definição de potência ativa, provenientes da realidade do
movimento transitivo. As imprecisões inerentes à compreensão da potência ativa
correlata ao movimento transitivo começam a ser depuradas filosoficamente
graças ao neoplatonismo. Neste, a potência é sinônimo de poder, de atividade e de
perfeição no âmbito da metafísica da emanação a partir do Uno
464
.
Mas, como o primeiro princípio, em Plotino, transcende à forma e ao ser e,
portanto, a toda e qualquer determinação e descrição positiva, só podemos
conhecer a potência infinita do Uno por exclusão de todo eidos da mente, ou seja,
por uma indeterminação do conhecimento face à realidade que se espera
conhecer
465
. Em Plotino, a predicação do infinito é sempre sinônima da
predicação do “não-ser”, correlato epistemológico do “não-saber” contemplativo
do Uno
466
. Deste modo, a predicação do infinito ao Uno, assim como a predicação
de qualquer outro atributo, nada afirma positivamente do Uno em si mesmo
467
.
Se o discurso metafísico sobre a potência divina e sua infinitude não se deve
anular no puro “não-saber”, então a passagem do infinito material (potencialidade
463
É absolutamente equivocado afirmar, conforme Léo Elders (1995, v. II, p. 342), que,
segundo Aristóteles, o primeiro motor imóvel “si muove nel tempo infinito e deve possedere un
potere infinito”.
464
“(…) devemos considerá-lo (o Uno) como infinito (apeiron): não em sua
incomensurável extensão ou inumerável quantidade, mas na dimensão inconcebível de seu poder”
(PLOTINO. Enéadas. VI, 9, p. 132). Cf. Leo Sweeney (1998, p. 143-166; p. 195-209).
465
Cf. Leo Sweeney (1998, p. 185-187).
466
Cf. Leo Sweeney (1998, p. 195)
467
“A propósito d’ele (do Uno) é preciso suprimir o pensamento e as associações, o
pensamento interno ou externo, pois ele não deve ser associado ao pensador, mas à essência da
intelecção. (...) E se, por ele não ser nenhuma dessas coisas, teu pensamento cai num estado de
indeterminação, mantém-se nesse estado e, a partir dele, contempla!” (Id. Enéadas, VI, 9, p. 134).
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Da via remotionis e da via eminentiae 219
passiva) ao infinito atual da potência ativa divina só pode ser plenamente
justificada, no plano do ser, por uma metafísica da causalidade fundada no ser
como ato (esse ut actus) e, no plano do conhecer, pela analogia da potência ativa
dos entes à potência ativa divina. Esse modo de proceder inclui, como seu
momento intrínseco o juízo de negação (separatio), mas não como ponto
culminante, o que distingue o apofatismo das filosofias neoplatônicas da
metafísica tomista.
Quando aborda a natureza divina, a preocupação inicial de Tomás é sempre
a de afastar qualquer mal-entendido em relação ao modus essendi do sujeito da
predicação do seu modus intelligendi. O mesmo ocorre com a atribuição da
potência a Deus. Afinal, o termo latino para potencialidade e poder é o mesmo
(potentia). Neste contexto, é justo depurar o sentido do termo “potentia a fim de
que seu conceito expresse somente a perfeição da ação (actio) e do poder (virtus)
e não a imperfeição da passividade, da potencialidade. Além disso, o termo
potentia” é vinculado, pela tradição filosófica, ao que é princípio de ação ou
operação (principium operationis sive actionis). Ora, como em Deus não pode
haver realmente um princípio de ação diverso da própria ação, então é necessário
depurar igualmente o sentido do termo “potentia” a fim de não mais identificá-lo
ao que é princípio de ação ou operação. É o que se pode perceber na resposta de
Tomás à questão “utrum in Deo sit potentia”, que inaugura as questões do De
Potentia.
O argumento único do De Potentia a favor da atribuição da potência ativa a
Deus, se comparado com outros propostos no corpus thomisticum, é conciso e
depende tanto da demonstração de Deus como ato puro e primeiro quanto do
princípio segundo o qual todo agente age enquanto está em ato. É importante
ressaltar que essas demonstrações pertencem à ordem filosófica tanto quanto a
demonstração da potência ativa divina. Nos escritos de juventude, em especial em
seu Comentário às Sentenças, a demonstração da potência ativa implica em
reconhecer que: 1) pertence à primeira imposição do nome “potência” a noção
(ratio) de não poder padecer (non posse pati)
468
; 2) pertence também à noção de
potência o poder de agir, e ao seu sujeito ser potente (potens); 3) ora, todo agente
age enquanto é ente em ato e perfeito (nihil enim agit nisi secundum quod est actu
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Da via remotionis e da via eminentiae 220
ens et perfectus), assim como todo paciente padece enquanto é ente em potência e
imperfeito, possuindo algo de material (unumquodque enim patitur ratione
alicuius materialis in ipso); 4) como Deus é ato puro e primeiro convém atribuir-
lhe a potência ativa
469
.
Os argumentos da Suma Contra os Gentios, por sua vez, marcam uma
perspectiva ulterior por considerarem a potência ativa como princípio do ser
(principium essendi) dos efeitos
470
, aprofundando o alcance metafísico do
princípio segundo o qual a potência passiva é proporcional ao ente em potência,
enquanto a potência ativa é proporcional ao ente em ato
471
. Essa perspectiva é
devedora da afirmação central à Suma segundo a qual “o ser é ato” (“esse est
actus”)
472
. Doravante, a potência ativa é o poder (virtus) cuja ratio denota, antes
de tudo, a perfeição da própria coisa (de perfectione rei est), o seu ser que é em
ato. Ora, como Deus é ato (esse actu), que inclui em si todas as perfeições (omnes
perfectiones in se includit), então convém atribuir-lhe a potência ativa
473
. Ao
afirmar que o “esse actus est”, Tomás estabelece uma proposição de positividade
máxima que só encontra a plena realização de seu modus essendi em Deus.
O argumento único do De Potentia supõe esta compreensão exposta na
Suma Contra os Gentios, segundo a qual a ratio da potência ativa convém ao ser
que é ato, significando a perfeição da própria coisa. Para esclarecer este novo
prisma, Tomás vincula a distinção entre a potência passiva e a potência ativa à
distinção entre o ato primeiro (sinônimo de perfeição) e o ato segundo (sinônimo
de ação). Esse vínculo só é possível porque “a potência é dita a partir do ato”
(potentia dicitur ab actu). Como o nome “actus” é dito de duplo modo, também o
nome “potentia” o é. Tomás observa ainda que o nome “actus” foi, em primeiro
lugar, atribuído à operação e à ação (ex actione devenit) e, depois, transposto para
468
Essa primeira acepção de potência, usada inicialmente para se referir à capacidade e ao
poder humano (potestas), provém de Avicena (Metafisica, IV, c. 2). Cf. J. Wippel (1998, p. 229).
469
In Sent. I, d. 42, q. 1, a. 1, co.
470
“Potentia enim activa est principium agendi in aliud secundum quod est aliud. Deo
autem convenit esse aliis principium essendi. Ergo convenit sibi esse potentem”. (SCG II, c. 7, #1).
471
“Sicut potentia passiva sequitur ens in potentia, ita potentia activa sequitur ens in actu:
unumquodque enim ex hoc agit quod est actu, patitur vero ex hoc quod est potentia. Sed Deo
convenit esse actu. Igitur convenit sibi potentia activa” (SCG II, c. 7, #2).
472
Cf. SCG I, c. 38.
473
“Divina perfectio omnium perfectiones in se includit, ut in primo libro ostensum est.
Virtus autem activa de perfectione rei est; unumquodque enim tanto maioris virtutis invenitur
quanto perfectius est. Virtus igitur activa Deo non potest deesse.” (SCG II, c. 7, #3).
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Da via remotionis e da via eminentiae 221
significar a forma, na medida em que esta é princípio e finalidade da operação
474
.
Em suma, a potência ativa é aquela que corresponde ao ato que é operação, sendo
a primeira a que se atribui o nome de potência, enquanto a potência passiva é
aquela que corresponde ao ato primeiro, que é a forma
475
.
Exposta a correlação entre a potência passiva e o ato primeiro (forma,
perfeição), bem como entre a potência ativa e o ato segundo (ação, operação),
Tomás estabelece a seguinte analogia de proporcionalidade: “assim como nada
padece a não ser em razão da potência passiva, assim também nada age a não ser
em razão do ato primeiro, que é forma”
476
. Daqui resulta que, sendo Deus ato puro
e primeiro, convém atribuí-lo, por eminência, o ser e o agir em grau máximo. Em
Deus, é justo dizer que há absoluta identidade entre o grau máximo do ser
(maxime esse) e o grau máximo do agir (maxime agere). Mas, ao que é
maximamente deste modo convém maximamente o poder (virtus), a potência ativa
(potentia activa)
477
.
O argumento do De Potentia tem a vantagem de não pressupor a definição
aristotélica de potência ativa, ou melhor, de não pressupor tudo aquilo que está
envolvido em sua definição como o poder de agir em outro enquanto outro, que
está originalmente vinculada à realidade da atividade transitiva
478
. Todavia, após
atribuir a potência ativa a Deus, Tomás nos diz que “a potência é dita ativa
enquanto é princípio de ação” (secundum quod est principium actionis). Mas, em
que medida pode-se afirmar que a potência divina é o princípio da ação divina
sem contradizer a identidade de ser e agir em Deus?
É esta dificuldade que está na base da primeira objeção, respondida por
Tomás com duas precisões. A primeira, faz ver que o termo “potência” significa
474
“Ad huius quaestionis evidentiam sciendum, quod potentia dicitur ab actu: actus autem
est duplex: scilicet primus, qui est forma; et secundus, qui est operatio: et sicut videtur ex
communi hominum intellectu, nomen actus primo fuit attributum operationi: sic enim quasi omnes
intelligunt actum; secundo autem exinde fuit translatum ad formam, in quantum forma est
principium operationis et finis” (QDP q. 1, a. 1, co.)
475
“Unde et similiter duplex est potentia: una activa cui respondet actus, qui est operatio; et
huic primo nomen potentiae videtur fuisse attributum: alia est potentia passiva, cui respondet actus
primus, qui est forma, ad quam similiter videtur secundario nomen potentiae devolutum.” (ibid.)
476
“Sicut autem nihil patitur nisi ratione potentiae passivae, ita nihil agit nisi ratione actus
primi, qui est forma.” (ibid.)
477
“Deo autem convenit esse actum purum et primum; unde ipsi convenit maxime agere, et
suam similitudinem in alias diffundere, et ideo ei maxime convenit potentia activa” (ibid.)
478
Compare com os argumentos expostos por Tomás em: SCG II, c. 7, #1; STh I, q. 25, a.
1; In Sent., I, d. 42, q. 1, a. 1, ad 3. A importância da definição de potência ativa pode-se perceber
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Da via remotionis e da via eminentiae 222
não somente o princípio da operação, mas também do efeito. A segunda, ressalta
que há distinção entre as relações atribuídas a Deus secundum esse daquelas
secundum rationem. Graças à primeira observação, Tomás pode afirmar que se
atribuímos a potência a Deus é em razão de ser princípio do efeito, e não em razão
de ser princípio da essência divina, que é idêntica à sua própria operação. Graças à
segunda, esclarece que o significado de potência ativa como princípio de ação não
estabelece senão uma relação de razão (relatio rationis) e não uma relação real
(relatio realis) entre a operação divina e a sua essência
479
.
Tendo em vista que o nosso intelecto se esforça por exprimir Deus de
modo perfeitíssimo (“quod intellectus noster Deum exprimere nititur sicut aliquid
perfectissimum
480
), deve o mesmo introduzir tantas depurações (separationes,
remotiones) quantas forem necessárias para preservar a modo eminente do ser
divino. Como o intelecto não pode compreender a essência divina em si mesma,
mas conta somente com a semelhança de seus efeitos, o mesmo se esforça por
designar a Deus removendo (totum a Deo amoveatur) todas as imperfeições
encontradas nos entes. As imperfeições do termo “potência” e “potência ativa” se
reduzem à realidade do movimento e da composição dos entes, pois possuem
nestas realidades sua origem, mas na medida em que exprimem o princípio do
efeito conotam sempre perfeição. É em razão da perfeição significada e não do
modo de significá-la que atribuímos a potência ativa a Deus.
No De Potentia, a razão para a atribuição da potência ativa a Deus é
acompanhada por um paralelo sobre a razão da atribuição do ser e da substância a
Deus, o que antecipa desde o primeiro artigo da obra a teoria tomista dos nomes
divinos e a centralidade do ser para a mesma. Em consonância com o exposto até
pelas restrições impostas por Tomás às objeções baseadas em Aristóteles: QDP q. 1, a. 1, ad 13; ad
15; ad 16.
479
“Ad primum ergo dicendum, quod potentia non solum est operationis principium, sed
etiam effectus; unde non oportet, quod si potentia in Deo ponitur quae sit effectus principium,
quod essentiae divinae quae est operatio, sit aliquod principium. Vel dicendum, et melius, quod in
divinis invenitur duplex relatio. Una realis, illa scilicet qua personae ad invicem distinguuntur, ut
paternitas et filiatio; alias personae divinae non realiter sed ratione distinguerentur, ut Sabellius
dixit. Alia rationis tantum, quae significatur, cum dicitur quod operatio divina est ab essentia
divina, vel quod Deus operatur per essentiam suam. Praepositiones enim quasdam habitudines
designant. Et hoc ideo contingit, quia cum attribuitur Deo operatio secundum suam rationem quae
requirit aliquod principium, attribuitur etiam ei relatio existentis a principio, unde ista relatio non
est nisi rationis tantum. Est autem de ratione operationis habere principium, non de ratione
essentiae; unde licet essentia divina non habeat aliquod principium neque re neque ratione, tamen
operatio divina habet aliquod principium secundum rationem.” (QDP q. 1, a. 1, ad 1).
480
QDP q. 1, a. 1, co.
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Da via remotionis e da via eminentiae 223
aqui, diz-nos Tomás que: “o ser (esse), por exemplo, significa alguma coisa de
pleno e de simples, mas não de subsistente; enquanto, a substância (substantia)
significa alguma coisa subsistente, mas sujeito de outra coisa”
481
. Quando
atribuímos o esse e a substantia a Deus é necessário remover todas as
imperfeições do modo de significá-las, mantendo de modo análogo suas rationes.
Assim sendo, “pomos em Deus a substância e o ser, mas a substância em razão da
subsistência e não em razão de ser sujeito de outros, enquanto que o ser em razão
da simplicidade e plenitude, e não em razão de sua inerência, pela qual é inerente
a outro”
482
. Com isso, a potência ativa é atribuída a Deus não porque seu ser
alcance a completude pela potência e pela atividade, mas porque é
permanentemente pleno e plenamente ativo, sendo princípio maximamente atual
de seus efeitos.
O primeiro artigo da primeira questão do De Potentia inaugura a obra com
uma perfeita aplicação da tríplice via do conhecimento de Deus. Em primeiro
lugar, o argumento parte das realidades dos entes, que são compostos de ato e de
potência, de potência passiva e de potência ativa, de ato primeiro (forma,
perfeição) e de ato segundo (ação, operação). Em seguida, estabelece a analogia
entre o agir e o ato primeiro, e entre o padecer e a potência passiva. Na ordem do
conhecer, essa analogia permite a atribuição da potência ativa a Deus porque a
potência também é dita de Deus em razão de ser ato puro e primeiro. Ora, como o
ato de Deus é o seu ser e a sua substância, que lhe são atribuídos em razão da
plenitude, simplicidade e subsistência, a potência divina é o seu ser e a sua
substância. Mas, como não compreendemos a essência, o ser e a ação divina em si
mesma, mas somente conhecemos seus efeitos, devemos remover todas as
imperfeições da atribuição do termo “potência” a Deus, como, por exemplo, o
significado de relação real presente na idéia de “princípio de ação em outro”.
481
“Et quia in ipsum devenire non potest nisi ex effectuum similitudine; neque in creaturis
invenit aliquid summe perfectum quod omnino imperfectione careat: ideo ex diversis
perfectionibus in creaturis repertis, ipsum nititur designare, quamvis cuilibet illarum perfectionum
aliquid desit; ita tamen quod quidquid alicui istarum perfectionum imperfectionis adiungitur,
totum a Deo amoveatur. Verbi gratia esse significat aliquid completum et simplex sed non
subsistens; substantia autem aliquid subsistens significat sed alii subiectum.” (QDP q. 1, a. 1, co.)
482
“Ponimus ergo in Deo substantiam et esse, sed substantiam ratione subsistentiae non
ratione substandi; esse vero ratione simplicitatis et complementi, non ratione inhaerentiae, qua
alteri inhaeret. Et similiter attribuimus Deo operationem ratione ultimi complementi, non ratione
eius in quod operatio transit. Potentiam vero attribuimus ratione eius quod permanet et quod est
principium eius, non ratione eius quod per operationem completur.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 224
Enfim, dizer que Deus tem potência ativa significa mais do que
simplesmente negar qualquer passividade em Deus (via remotionis). Significa
conhecê-lo como causa e princípio de seus efeitos (via causalitatis). Significa,
além disso, conhecer, ainda que imperfeitamente, a identidade eminente em Deus
entre ser (maxime esse), agir (maxime agens) e poder (maxime potens). Em suma,
a potência ativa é atribuída a Deus em razão da perfeição que comporta o ser
princípio dos efeitos (res significata) e não em razão de ser uma noção
perfeitíssima (modus significandi). Com efeito, “se bem que a Deus se deve
atribuir tudo o que é perfeitíssimo, não é necessário que tudo o que é atribuído a
Deus seja perfeitíssimo”, o que se aplica de modo especial ao termo “potência”
483
.
Como é de costume em suas obras, após introduzir um novo atributo a
respeito do ipsum esse subsistens, Tomás passa a argumentar que a absoluta
simplicidade divina não fica comprometida pelo novo passo dado na investigação.
Não é por acaso que das dezoito objeções do primeiro artigo da primeira questão
do De Potentia, dez se referem explicitamente ao problema da identidade e da
simplicidade de ser e essência em Deus
484
. Em primeiro lugar, reforçando, ao
longo de sua resposta às objeções, que a potência ativa de Deus é idêntica ao seu
ser e, portanto, não significa uma relação indicada pelo nome de princípio, mas é
o próprio princípio. Em segundo lugar, que é idêntica à sua ação, pois a absoluta
simplicidade exclui total e positivamente qualquer adição ou composição em
Deus.
O nosso intelecto, ao compreender a dependência dos entes no ipsum esse
subsistens, o faz mediante o estabelecimento de uma relação entre os efeitos e a
causa incausada. Ora, como o intelecto não pode pensar qualquer coisa relativa a
uma outra sem pensar a relação no termo oposto (relatio rationis), o mesmo
concebe em Deus alguma relação de princípio, que acompanha o seu modo de
pensar (modum intelligendi) e não o modo de ser (modus essendi), referindo-se ao
ipsum esse subsistens de modo mediato e imperfeitamente
485
. O que a atribuição
483
“Ad secundum dicendum, quod licet omne perfectissimum sit Deo attribuendum, non
tamen oportet quod omne illud quod Deo attribuitur, sit perfectissimum; sed oportet quod sit
conveniens ad designationem perfectissimi, ad quod competit aliquid ratione suae perfectionis
quod habet aliquid se perfectius, cui tamen deest illa quam aliud habet.” (QDP q. 1, a. 1, ad 2).
484
Cf. QDP q. 1, a. 1, ad 1; ad 3; ad 5; ad 6; ad 8 ; ad 11; ad 12; ad 14; ad 15; ad 17.
485
“Et similiter est de relatione principii quam addit potentia supra essentiam: nam ei
respondet aliquid in re mediate, et non immediate. Intellectus enim noster intelligit creaturam cum
aliqua relatione et dependentia ad creatorem: et ex hoc ipso quia non potest intelligere aliquid
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Da via remotionis e da via eminentiae 225
da potência ativa a Deus acrescenta (addit) é um novo modo de significar o ser e a
essência divina em relação aos seus efeitos
486
.
Este acréscimo, porém, é segundo o intelecto ou a razão (secundum
intellectum). Por isso, a simplicidade divina não torna supérflua e contraditória a
noção de “potência ativa divina”, pois se é verdade que Deus age imediatamente
pela sua essência é verdade também que nós não conhecemos imediatamente a
operação divina, mas tão somente os seus efeitos, através dos quais pensamos a
relação existente entre a causa incausada e seus efeitos, acrescentando só a relação
de ser princípio (solam relationem principii) ao nosso modo de inteligir
(secundum intellectum) a essência divina
487
. Assim como de Deus não se remove
o agir, mas somente o agir segundo a modalidade dos entes, de modo semelhante
não se remove de Deus a potência ativa, mas somente a potência ativa segundo a
modalidade dos entes
488
.
Daqui resulta o valor cognoscitivo da “potência ativa” no conhecimento da
relação de dependência dos entes no ser (esse), resultante da ação divina. A razão
de princípio (ratio principii) que comporta o termo “potência ativa” é uma certa
relação de razão que nós concebemos em Deus e lhe atribuímos. Relação de razão
com fundamento na realidade, mas não na realidade mesma de Deus, como se
Deus se relacionasse realmente com seus efeitos que produz, mas, em verdade,
trata-se de uma relação inversa, relação real de dependência dos efeitos no ipsum
esse subsistens, e relação de razão da potência da causa incausada a respeito de
seus efeitos
489
.
Depois de deduzir filosoficamente a existência da potência ativa em Deus,
Tomás considera no De Potentia a intensidade e a extensão da mesma. Em relação
relatum alteri, nisi e contrario reintelligat relationem ex opposito, ideo intelligit in Deo quamdam
relationem principii, quae consequitur modum intelligendi, et sic refertur ad rem mediate.” (QDP
q. 1, a. 1, ad 10).
486
“(…)Tamen quia verum est quod potentia activa est idem in Deo quod eius essentia,
ideo dicendum, quod licet essentia divina et potentia sint idem secundum rem, tamen quia potentia
maxime modum significandi addit, ideo speciale nomen requirit: nam nomina respondent
intellectibus, secundum philosophum.” (QDP q. 1, a. 1, ad 6).
487
“Ad nonum dicendum, quod essentia Dei sufficit ad hoc quod per eam Deus agat, nec
tamen superfluit potentia: quia potentia intelligitur quasi quaedam res addita supra essentiam, sed
superaddit secundum intellectum solam relationem principii: ipsa enim essentia ex hoc quod est
principium agendi, habet rationem potentiae.” (QDP q. 1, a. 1, ad 9).
488
“(…) quod agere non removetur a Deo simpliciter, sed per modum rerum naturalium,
quae agunt et patiuntur simul.” (QDP q. 1, a. 1, ad 18).
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Da via remotionis e da via eminentiae 226
à intensidade, refere-se à potência ativa como infinita (a. 2)
490
. Em relação à sua
extensão, trata das coisas que são possíveis à potência ativa divina (a. 3-7),
concluindo pelo exame da atribuição da onipotência a Deus (a. 7)
491
.
O exame da infinitude da potência divina permite-nos interrogar se é
justificada a asserção de É. Gilson quando diz que “no tomismo, a infinidade não
acrescenta nada à noção de Deus concebido como ato puro de esse
492
. Não é isso
que sugere a leitura e análise do segundo artigo da primeira questão do De
Potentia. Se é verdade que o infinito enquanto tal nada acrescenta realmente ao
esse divino secundum esse, porque nada pode ser acrescido ao esse tantum, não é
menos verdade que a noção (ratio) de infinito acrescenta ao esse divino secundum
rationem a não-limitação de sua perfeição absoluta
493
. A infinidade acrescenta
(secundum rationem) à noção de ato puro a negação de qualquer limitação ou
restrição (via remotionis et eminentiae), de tal modo que o esse tantum não pode
ser compreendido enquanto tal sem ser ao mesmo tempo afirmado como simples,
absoluto e infinito.
Em relação à infinitude da potência divina, Tomás observa que o “infinito”
se diz de um duplo modo. O primeiro modo, privativo, quando se diz que aquilo
que é infinito é o que por natureza deve ter fim, mas não possui. Esse infinito
(potencial) é dito, sobretudo, da quantidade
494
. O segundo, negativo, para
significar o que não possui limite (per remotionem finis)
495
. Ora, no primeiro
modo o infinito não convém a Deus, seja porque Deus é sem quantidade, seja
489
Sobre a questão da “relação” entre Deus e as criaturas segundo Tomás de Aquino,
confira: C. G. Kossel (1948, p. 151-172); J. Anderson (1950, p. 263-283); C. Williams (1969, p.
1-10); F. D. Willhelmsen (1979, p. 107-133).
490
Cf. In Sent., I, d. 43, q. 1, a. 1; SCG I, c. 43; STh I, q. 25, a. 2; Comp. Theol., I, c. 19;
QDV q. 29, a. 3. Sobre o conceito de infinito em Tomás, confira: G. F. J. LaMountain (1956, p.
312-338); O. Argerami (1971, 217-232); D. L. Balas (1981, p. 91-98); S. Selner (1992, p. 63-67);
Léo Sweeney (1998, p. 432-437); R. Burns (1998, p. 123-139; 1998, p. 57-69); A. Côté (2002, p.
115-125).
491
Sobre a onipotência divina segundo Tomás de Aquino, confira: R. J. Teske (1979, p.
277-294); A. Muralt (1993, p. 256-272) ; J. Wippel (1998, p. 227-247).
492
“(...) dans le thomisme, l’infinité n’ajoute rien à la notion de Dieu conçu comme l’acte
pur d’esse” (GILSON, É. Jean Scot. Introduction à ses positions fondamentales. Paris : Vrin,
1952, p. 208). Cf. A. Côté (2002, p. 118).
493
Desde o seu Comentário às Sentenças, Tomás vincula a noção de absoluto à de infinito:
“Sed esse non receptum in aliquo, non est finitum, immo absolutum” (In Sent., I, d. 8, q. 5, a. 2,
s.c. 2).
494
A característica do infinito potencial é ser unum post aliud, enquanto a característica do
infinito atual é ser todo completo e simultâneo (esse totum simul). Cf. QDV q. 2, a. 11, co.
495
Eis uma distinção e uma linha de raciocínio que Tomás mantém em todas as obras
quanto à solução do problema da infinitude de Deus e da potência divina. Cf. STh I, q. 7, a. 1, c.;
Quodl. III, q. 2; QDP q. 1, a. 3, obj. 8 e ad 8; QDV q. 2, a. 11, co.
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Da via remotionis e da via eminentiae 227
porque a privação conota sempre imperfeição
496
. Mas, no segundo modo o infinito
(atual) convém a Deus e a tudo o que dele se pode verdadeiramente predicar. A
dupla significação do infinito e a predicação analógica do segundo sentido a Deus
só é possível se o valor ontológico do ser infinito como tal depender do valor
ontológico do ser em ato do qual é predicado. Se um ser é essencialmente ato
puro, então ser infinito para este ser significa ser sem limites. Em razão de seu
próprio ser, de sua pura atualidade, é infinito como é perfeito pura e
simplesmente.
Novamente, Tomás sustenta sua posição em relação à plenitude e
atualidade ilimitada do ipsum esse subsistens por uma série de negações: Deus
não é limitado por si mesmo ou por outra coisa, nem a sua essência, nem a sua
sapiência, nem a sua potência, nem a sua bondade, pois tudo n’Ele é infinito. No
que concerne em particular à potência ativa, observa ainda que a potência ativa
acompanha o ato e, portanto, tanto abunda na virtude de agir, quanto mais está em
ato
497
.
Uma vez que o status da potência divina como infinita só pode ser
decidido se a essência divina for infinita, Tomás passa argumentar em favor da
infinitude de Deus. Para demonstrar que Deus é infinito, Tomás considera,
primeiramente, a realidade e a natureza do ato que só pode ser limitado de um
duplo modo. Em seguida, considera a realidade e a natureza do ser (esse) que só
pode ser limitado por um co-princípio diverso do ipsum esse. Em relação à
realidade e a natureza do ato, Tomás supõe aqui o princípio segundo o qual o ato
só pode ser limitado pela potência
498
. Deste modo, o ato só pode ser limitado ou
da parte do agente ou da parte do recipiente. Da parte do agente, por exemplo, a
beleza da casa é limitada pela quantidade e pelos limites da vontade do artista. Da
496
“Dicendum, quod infinitum dicitur dupliciter. Uno modo privative; et sic dicitur
infinitum quod natum est habere finem et non habet: tale autem infinitum non invenitur nisi in
quantitatibus. Alio modo dicitur infinitum negative, id est quod non habet finem. Infinitum primo
modo acceptum Deo convenire non potest, tum quia Deus est absque quantitate, tum quia omnis
privatio imperfectionem designat, quae longe a Deo est.” (QDP q. 1, a. 2, co.)
497
“Infinitum autem dictum negative convenit Deo quantum ad omnia quae in ipso sunt.
Quia nec ipse aliquo finitur, nec eius essentia, nec sapientia, nec potentia, nec bonitas; unde omnia
in ipso sunt infinita. Sed de infinitate eius potentiae specialiter sciendum est, quod cum potentia
activa sequatur actum, quantitas potentiae sequitur quantitatem actus; unumquodque enim tantum
abundat in virtute agendi quantum est in actu.” (ibid.)
498
“Nullus enim actus invenitur finiri nisi per potentiam, quae est vis receptiva: invenimus
enim formas limitari secundum potentiam materiae. Si igitur primum movens est actus absque
potentiae permixtione, quia non est forma alicuius corporis, nec virtus in corpore, necessarium est
ipsum infinitum esse.” (Comp. Theol., c. 18).
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Da via remotionis e da via eminentiae 228
parte do recipiente, por exemplo, o calor da madeira é limitado e recebe a sua
quantidade segundo a disposição da madeira. Mas, como o ato do ipsum esse
subsistens não é limitado por nenhum agente, nem por nenhum sujeito recipiente,
porque Deus é o seu próprio ser (ipsum esse suum) não recebido em nenhum
sujeito, resulta que Deus é infinito
499
. A solução centrada no caráter não-receptivo
do ipsum esse divino acompanha Tomás desde o seu Comentário às Sentenças
500
.
Tomás acrescenta que a infinitude do esse divino se pode demonstrar ainda
de outro modo. Com efeito, o esse do homem é limitado à espécie humana, porque
é recebido na natureza da espécie humana; o que também vale para o esse do
cavalo, e de todas as demais coisas. Mas, o esse de Deus, uma vez que não é
recebido em outro, mas é esse purum, não é limitado a qualquer modalidade de
perfeição do ser, mas possui em si mesmo todo o ser (sed totum esse in se habet).
E porque o ser tomado universalmente se pode estender a infinitos objetos, o ser
divino é infinito, resultando que é infinita sua virtude ou potência (virtus sive
potentia) ativa
501
.
Vimos que, segundo Tomás, o esse e as demais perfeições e formas são
encontradas nos entes de um modo particular (6.6, #3; 7. 2, ad 5). Nos entes que
não são o seu próprio ser, o esse é limitado pela sua recepção na essência, que
contrai o esse e todas as perfeições dele derivadas a um grau e modo de ser
particular. O corolário necessário desta tese consiste em que o esse não-recebido
não é particular, nem é limitado, mas possui a plenitude universal e ilimitada de
ser em si mesmo (“universali plenitudine perfectionem essendi in se habeat
502
).
499
“Deus autem est actus infinitus, quod patet ex hoc quod actus non finitur nisi dupliciter.
Uno modo ex parte agentis; sicut ex voluntate artificis recipit quantitatem et terminum pulchritudo
domus. Alio modo ex parte recipientis; sicut calor in lignis terminatur et quantitatem recipit
secundum dispositionem lignorum. Ipse autem divinus actus non finitur ex aliquo agente, quia non
est ab alio, sed est a se ipso; neque finitur ex alio recipiente, quia cum nihil potentiae passivae ei
admisceatur, ipse est actus purus non receptus in aliquo; est enim Deus ipsum esse suum in nullo
receptum.” (QDP q. 1, a. 2, co.)
500
In Sent., I, d. 8, q. 2, a. 1; d. 43, q. 1, a. 1.
501
“Unde patet quod Deus est infinitus; quod sic videri potest. Esse enim hominis
terminatum est ad hominis speciem, quia est receptum in natura speciei humanae; et simile est de
esse equi, vel cuiuslibet creaturae. Esse autem Dei, cum non sit in aliquo receptum, sed sit esse
purum, non limitatur ad aliquem modum perfectionis essendi, sed totum esse in se habet; et sic
sicut esse in universali acceptum ad infinita se potest extendere, ita divinum esse infinitum est; et
ex hoc patet quod virtus vel potentia sua activa, est infinita.” (ibid.)
502
QDP q. 6, a. 6, # 3.
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Da via remotionis e da via eminentiae 229
Ora, como Tomás aceita que “infinitum dicitur per remotionem finis
503
, então o
esse divino é infinito.
O axioma segundo o qual “o esse não-recebido é ilimitado” está na base da
noção intensiva de esse proposta por Tomás no De Potentia (7.2, ad 9) como ato
de todos os atos e perfeição de todas as perfeições. O argumento que Tomás
oferece em favor da validade deste axioma e que freqüentemente reaparece no
corpus thomisticum depende de uma analogia com a forma ou perfeição
considerada em si mesma, isto é, separada (princípio da perfectio separata). Com
efeito, toda forma ou ato considerado a parte da potência receptiva possui uma
certa infinitude. Assim, a brancura não-participada não é restrita de nenhum
modo, porque carece de um princípio receptivo. Entretanto, mesmo o conteúdo
inteligível (ratio) da brancura separada é restrita a um certo modo de ser, pois se
trata de um tipo particular de cor. Mas, o ato de ser considerado separadamente,
em absoluto, não é auto-limitante. Por isso, se algum ente for o seu próprio ato de
ser será infinito absolutamente falando
504
. Vimos que pela resolutio secundum
rem é possível demonstrar que o ser que é tão somente ser é a causa de todo ser,
sendo o único ser cuja essência é idêntica ao seu próprio ser
505
. É neste ser,
portanto, em que o ser infinito, enquanto perfeição ilimitada de ser, identifica-se
plenamente com seu modus essendi.
Dentre as implicações do axioma segundo o qual o esse não-recebido é
ilimitado, a que nos acompanhou até agora se reveste de especial interesse para a
compreensão da resolutio secundum rationem, pois diz respeito à natureza dos
próprios entes que não são o seu ser. Com efeito, em todos os entes limitados, o
princípio de limitação indica que há composição de esse e do que limita o esse, ou
seja, a essência. O esse é o que há de mais atual e mais perfeito em tudo o que é.
A limitação do esse, a restrição de sua plenitude, não pode ser obra do próprio
esse, mas sim de um princípio distinto em que é recebido. Se o esse é limitado
porque é recebido, então é limitado pelo princípio receptivo, a potência. Com
efeito, se o esse fosse limitado por si mesmo, então o esse não seria o ato de todos
503
QDP q. 1, a. 2, ad 8.
504
“The infinity of form is an infinity of perfection, because it is an unboundedness of
actual being. If this be true of forms in general, it is a fortiori the case with that most formal of all
entities, that ipsum esse (…)” (LAMOUNTAIN, G. The concept of infinite in the philosophy of st.
Thomas Aquinas. The Thomist, 19, p. 332, 1956).
505
Cf. J. Wippel (1998, p. 231-232).
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Da via remotionis e da via eminentiae 230
os atos e a perfeição de todas as perfeições irrestritamente. Por isso, em sendo o
ato maximamente formal de todos, o esse não é auto-limitante
506
. Além disso, este
axioma implica que, em todos os entes finitos, o esse não é irrestrito e absoluto,
mas sempre limitado porque recebido em um princípio diverso de si mesmo.
Reconhecer isto é fundamental para a resolutio secundum rem de todos os entes
no ipsum esse subsistens, cujo esse não é recebido (6.6 #3; 7.1 #2).
O entendimento da participação em termos da recepção de uma perfeição
infinita, o esse, que só é limitada pela essência, implica em uma transformação da
teoria platônica de participação que só foi possível pela evolução da noção de
infinito como perfeição no pensamento neoplatônico. Não obstante, é a afirmação
categórica de Tomás a respeito da plenitude do esse, segundo a qual o ser é ato, ou
melhor, é ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições, o que permite
entender o infinito do esse como uma perfeição positiva. Como diz Tomás na
Suma Teológica, o próprio ser é o que é maximamente formal (illud quod est
maxime formale omnium est ipsum esse
507
). Ora, o único ser em que se realiza a
identidade entre o seu modus essendi e o ipsum esse que é maximamente formal é
o próprio ser que, por não ser recebido em algo, é subsistente por si mesmo
(ipsum esse subsistens per se). Não é a nova noção de infinito neoplatônica que dá
a Tomás a oportunidade de afirmar a infinitude do esse, mas é sua noção intensiva
de esse que o permite afirmar positivamente a noção de um infinito atual
508
.
Não se deve, portanto, supor que é a crença na existência do ser divino
como infinito que conduz Tomás ao axioma segundo o qual o esse não é auto-
limitante. Ao contrário, é a convicção metafísica profunda de que o esse em si
mesmo é absoluto e ilimitado – convicção esta obtida pela resolução de todos os
atos e de todas as perfeições no ato de ser (actus essendi) – que permite
demonstrar a infinitude do ipsum esse subsistens, e não o inverso. Por isso, o
axioma em questão não pode ser justificado pela prévia aceitação da infinitude
divina, mas tão somente pela resolução metafísica, via de fundação de todas as
perfeições e atos limitados dos entes no ato de ser.
506
Cf. J. Wippel (2000, p. 167s).
507
STh I, q. 3, a. 4.
508
S. Selner (1992, p. 66-67) afirma, em conformidade com W. Clarke (1952, p. 184-187,
que é a nova noção neoplatônica de infinito que torna possível a concepção tomista do esse. Para
Leo Sweeney (1999, p. 319s), a concepção cristã da infinitude divina não pode ser retraçada ao
neoplatonismo porque o Uno neoplatônico é infinito sob a condição de estar acima de todo ser.
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Da via remotionis e da via eminentiae 231
Após estabelecer que o esse divino é infinito uma vez que não é limitado
por um princípio recipiente diverso do esse, nem tampouco é auto-limitante,
Tomás pondera que a potência divina é infinita não só em razão da essência, mas
em razão de ser princípio dos efeitos, recebendo um modo de infinidade (modum
infinitatis) que não se encontra na essência divina. Com efeito, nos objetos ou
efeitos da potência divina se encontra uma pluralidade que não se encontra na
essência divina, o que permite atribuir à potência ativa divina uma “quantidade
intensiva” (quantitas intensiva
509
) e uma “quantidade extensiva” (quantitas
extensiva) que não se encontra no esse divino, mas tão somente em seus efeitos
510
.
Em suma, quer se considere a potência divina a partir da essência e do ser
divino, quer a partir dos seus efeitos, deve-se afirmar que a potência divina é
infinita porque o esse não-recebido é ilimitado, infinito. Se Deus é maximamente
ser, é a plenitude universal de ser em si mesmo, e o poder é uma perfeição que não
pode faltar ao que é sumamente perfeito, é claro que a potência divina há de ser
máxima, sem limites, infinita. É pela negação (via remotionis) de toda e qualquer
limitação de Deus que atribuímos a infinitude à potência ativa divina que é
idêntica ao seu ser (ipsum suum esse). Assim, o infinito atribuído a Deus, embora
seja um conceito negativo, pertence propriamente e formalmente ao ipsum esse
subsistens porque o que é dele negado pela noção de infinito (a matéria e a
essência como potências passivas e receptivas do esse) pertence à esfera da ratio
entis. Em outros termos, Deus não é infinito porque está além do ser (Plotino),
mas porque é o ser tão somente ser, o ser não-recebido em outro, o próprio ser
subsistente.
Em sendo infinita, a potência divina não produz tantos efeitos que não
possa produzir mais, nem age tão intensamente que não possa agir mais
509
A noção de uma quantitas intensiva é a que permite Cornélio Fabro cunhar a expressão
“noção intensiva de ser” uma vez que se encontra no próprio Tomás, em especial no De Potentia
(q. 1, a. 3, co.), a terminologia original do “ato intensivo”. Cf. C. Fabro (1960b, p. 253).
510
“Sed sciendum quod quamvis potentia habeat infinitatem ex essentia, tamen ex hoc ipso
quod comparatur ad ea quorum est principium, recipit quemdam modum infinitatis quem essentia
non habet. Nam in obiectis potentiae, quaedam multitudo invenitur; in actione etiam invenitur
quaedam intensio secundum efficaciam agendi, et sic potest potentiae activae attribui quaedam
infinitas secundum conformitatem ad infinitatem quantitatis et continuae et discretae. Discretae
quidem secundum quod quantitas potentiae attenditur secundum multa vel pauca obiecta; et haec
vocatur quantitas extensiva: continuae vero, secundum quod quantitas potentiae attenditur in hoc
quod remisse vel intense agit; et haec vocatur quantitas intensiva. Prima autem quantitas convenit
potentiae respectu obiectorum, secunda vero respectu actionis. Istorum enim duorum activa
potentia est principium.” (QDP q. 1, a. 2, co.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 232
intensamente. Como sempre, deve-se observar que a intensidade em questão não é
considerada em relação à essência divina, mas sim em relação aos efeitos, porque,
em si mesma, é sempre infinita e a mesma
511
. Por outro lado, não se deve olvidar
que a infinitude da potência divina não é atribuída a Deus porque há um efeito
infinito na natureza (nenhum efeito da potência divina é idêntico à sua causa
porque Deus não é um agente unívoco
512
), mas pelo seu próprio ser (ipsum suum
esse) que é infinito. Por este motivo, o ipsum esse subsistens não é somente
infinito em sentido meramente negativo (via remotionis), mas implica a eminência
da plenitude do ser que contém em si toda a perfeição do ser (via eminentiae).
Após ter examinado a potência divina à luz da intensidade de sua ação,
Tomás considera a sua extensão, encerrando a primeira questão com o tema da
onipotência divina. No terceiro artigo, investiga se as coisas que são impossíveis à
natureza são possíveis a Deus. No quarto artigo, trata mais especificamente do que
é possível e impossível à potência das causas inferiores e superiores. No quinto
artigo, investiga se Deus pode fazer o que não faz e mudar o que faz. No sexto
artigo, se pergunta se Deus pode fazer o que fazem os demais seres que pecam,
caminham, etc. No sétimo artigo, se Deus é onipotente.
O esclarecimento do que é possível ou não à potência ativa divina é
acompanhada sempre por uma distinção entre os significados de possível e
impossível. Para Tomás, em conformidade com Aristóteles, uma coisa é dita
possível e impossível de três modos: 1) em relação à potência ativa; 2) em si ou
por si mesma; 3) em relação à potência matemática. Tomás deixa de lado o
terceiro modo para se ater nos dois primeiros
513
.
511
“Utroque autem modo divina potentia est infinita. Nam nunquam tot effectus facit quin
plures facere possit, nec unquam ita intense operatur quin intensius operari possit. Intensio autem
in operatione divina non est attendenda secundum quod operatio est in operante, quia sic semper
est infinita, cum operatio sit divina essentia; sed attendenda est secundum quod attingit effectum;
sic enim a Deo moventur quaedam efficacius, quaedam minus efficaciter.” (ibid.)
512
O efeito da ação ad extra da causa incausada não pode ser infinito simpliciter não por
falta de eficácia da causa primeira de todas as coisas, mas porque tudo o que não é o seu próprio
ser tem o ser de modo limitado e finito.
513
“Dicendum, quod, secundum philosophum, possibile et impossibile dicuntur tripliciter.
Uno modo secundum aliquam potentiam activam vel passivam; sicut dicitur homini possibile
ambulare secundum potentiam gressivam, volare vero impossibile. Alio modo non secundum
aliquam potentiam, sed secundum se ipsum, sicut dicimus possibile quod non est impossibile esse,
et impossibile dicimus quod necesse est non esse. Tertio modo dicitur possibile secundum
potentiam mathematicam quae est in geometricis, prout dicitur linea potentia commensurabilis,
quia quadratum eius est commensurabile. Hoc autem possibili praetermisso, circa alia duo
consideremus” (QDP q. 1, a. 3, co.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 233
No segundo modo, uma coisa é dita impossível em si ou por si mesma em
razão da recíproca exclusão dos termos, ou seja, em razão da mútua exclusão de
uma afirmação e de uma negação. Trata-se da impossibilidade decorrente da
contradição dos termos em questão. Mas, esse sentido não pode ser atribuído a
nenhuma potência ativa porque esta é conseqüência da atualidade e da entidade do
ser a que pertence (“omnis activa potentia consequitur actualitatem et entitatem
eius cuius est”). Ora, como todo agente faz algo semelhante a si, toda ação de uma
potência ativa termina no ser (“terminatur ad esse”). Até mesmo o não-ser
produzido pela ação, como ocorre na corrupção de um sujeito, é o resultado da
incompatibilidade em relação ao ser de outra coisa. O fundamento último para a
recíproca exclusão dos termos contraditórios é a própria ratio entis que exclui a
possibilidade da coexistência da afirmação com a negação porque o ser suprime o
não-ser, e vice-versa (esse tollit non esse, et non esse tollit esse)
514
. Por isso, o
impossível enquanto contraditório não pode ser nem termo principal nem o termo
secundário da potência ativa, muito menos da potência ativa divina que é o seu
próprio ser
515
.
Em sendo impossível por si mesma porque contraditória, uma coisa jamais
pode ser o termo da potência ativa divina. Mas, suposto que algo é possível
porque não é em si mesmo contraditório, parece não haver nenhum impedimento
para atribuir-lhe à potência divina. Todavia, deve-se recordar que uma coisa é dita
impossível em relação a uma potência de dois modos: 1) em razão de um defeito
intrínseco à potência ativa em si mesma; 2) em razão de um impedimento externo.
Ora, uma vez estabelecido que o impossível se diz enquanto algo é contraditório,
Tomás pode concluir que há, em princípio, três sentidos fundamentais em que
uma coisa é dita impossível, a saber: 1) por defeito da própria potência ativa; 2)
514
Como observamos anteriormente, Tomás resolve o princípio de não-contradição na ratio
entis, no esse.
515
“Sciendum est ergo quod impossibile quod dicitur secundum nullam potentiam, sed
secundum se ipsum, dicitur ratione discohaerentiae terminorum. Omnis autem discoherentia
terminorum est in ratione alicuius oppositionis; in omni autem oppositione includitur affirmatio et
negatio, ut probatur X Metaph.; unde in omni tali impossibili implicatur affirmationem et
negationem esse simul. Hoc autem nulli activae potentiae attribui potest; quod sic patet. Omnis
activa potentia consequitur actualitatem et entitatem eius cuius est. Unumquodque autem agens est
natum agere sibi simile; unde omnis actio activae potentiae terminatur ad esse. Etsi enim aliquando
fit per actionem non esse, ut in corruptione patet, tamen hoc non est nisi in quantum esse unius non
compatitur esse alterius, sicut esse calidi non compatitur esse frigidi (...). Hoc autem quod est
affirmationem et negationem esse simul, rationem entis habere non potest, nec etiam non entis,
quia esse tollit non esse, et non esse tollit esse: unde nec principaliter nec ex consequenti potest
esse terminus alicuius actionis potentiae activae.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 234
por um impedimento extrínseco à potência ativa; 3) pela contradição de seus
termos
516
.
Estabelecidos os três sentidos segundo os quais algo é dito impossível,
Tomás retoma o que é proposto na questão, investigando se algo que é impossível
à natureza é possível a Deus. Ora, é evidente que Deus pode realizar o que é
impossível à natureza no primeiro (que decorre dos impedimentos intrínsecos da
própria potência ativa da natureza) e no segundo sentido (que decorre dos
impedimentos extrínsecos) de impossível. Mas, Deus não pode realizar o que é
impossível no terceiro sentido porque Deus é ato máximo e ente principal, jamais
pode agir contraditoriamente. Assim sendo, a solução de Tomás implica que a
ação divina termina principalmente no ser (principaliter ad esse) e,
secundariamente, no não-ser, mas jamais no ser e no não-ser ao mesmo tempo e
sob o mesmo aspecto. Deve-se observar que afirmar a impossibilidade de Deus
agir contraditoriamente não significa atribuir a Deus um defeito ou impedimento à
sua potência ativa, nem limitá-la, na medida em que tais coisas contraditórias não
podem ser feitas porque estão privadas da ratio de possibilidade
517
.
A solução do quarto artigo da primeira questão do De Potentia nos recorda
que o juízo sobre a possibilidade e a impossibilidade de uma coisa pode ser
considerado também da parte do que julga ou da parte da coisa julgada
518
. Se o
terceiro artigo esclareceu de que modo algo é dito possível e impossível em
relação à coisa julgada, o quarto se volta para a elucidação do juízo alcançado
pelo teólogo, que julga a partir das causas superiores, e pelo filósofo, que julga a
partir das causas inferiores
519
. Como a questão proposta diz respeito aos efeitos
516
“Impossibile vero quod dicitur secundum aliquam potentiam potest attendi dupliciter.
Uno modo propter defectum ipsius potentiae ex se ipsa, quia videlicet ad illum effectum non potest
se extendere, utpote quando non potest agens naturale transmutare aliquam materiam. Alio modo
ab extrinseco, utpote cum potentia alicuius impeditur vel ligatur. Sic ergo aliquid dicitur
impossibile fieri tribus modis. Uno modo propter defectum activae potentiae, sive in transmutando
materiam, sive in quocumque alio; alio modo propter aliquod resistens vel impediens; tertio modo
propter hoc quod id quod dicitur impossibile fieri, non potest esse terminus actionis.” (ibid.)
517
“Sed id quod tertio modo dicitur impossibile, Deus facere non potest, cum Deus sit actus
maxime, et principale ens. Unde eius actio non nisi ad ens terminari potest principaliter, et ad non
ens consequenter. Et ideo non potest facere quod affirmatio et negatio sint simul vera, nec aliquod
eorum in quibus hoc impossibile includitur. Nec hoc dicitur non posse facere propter defectum
suae potentiae: sed propter defectum possibilis, quod a ratione possibilis deficit; propter quod
dicitur a quibusdam quod Deus potest facere, sed non potest fieri.” (ibid.)
518
“Dicendum quod iudicium de possibili et impossibili potest considerari dupliciter: uno
modo ex parte iudicantium; alio modo ex parte eius de quo iudicatur” (QDP q. 1, a. 4, co.)
519
“Est enim duplex sapientia: scilicet mundana, quae dicitur philosophia, quae considerat
causas inferiores, scilicet causas causatas, et secundum eas iudicat; et divina, quae dicitur
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Da via remotionis e da via eminentiae 235
produzidos pelas causas inferiores que podem ser causadas igualmente pelas
causas superiores, é evidente, nos diz Tomás, que o juízo sobre a possibilidade e a
impossibilidade deve basear-se, primeiramente, nas causas próximas que
determinam a natureza dos efeitos à semelhança das causas remotas, que podem
ser conhecidas por analogia
520
.
Determinado que a potência ativa divina termina principalmente no esse,
que é ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições, e que pode realizar
eficazmente tudo o que em si mesmo não é contraditório, pois o contraditório
repugna à ratio possibilitatis que se funda igualmente no esse, Tomás passa a
considerar um dos temas centrais ao De Potentia na discussão com o
emanacionismo neoplatônico. Afinal, em que medida a potência divina depende
da existência da ordem atual das coisas por ela criadas? Essa questão está
subentendida no quinto artigo da primeira questão do De Potentia que investiga se
Deus pode fazer o que não faz e mudar o que faz. A solução de Tomás para a
mesma envolve o afastamento da perspectiva de Avicena segundo a qual a
potência divina não pode fazer diversamente do que faz. Embora Avicena não seja
explicitamente citado por Tomás, é patente que sua resposta se dirige ao filósofo
árabe
521
.
A tese de que a potência divina não pode se estender a coisas diversas do
que faz se sustenta no axioma segundo o qual Deus opera per necessitatem
naturae. Mas, o que age deste modo, nos diz Tomás, possui uma natureza
determinada a um único efeito (cum natura sit determinada ad unum). Trata-se de
uma decorrência do princípio neoplatônico segundo o qual do uno não se faz
senão o uno (ex uno simplici non fit nisi unum). Para Tomás, é fácil ver (planum
est videre) que Deus não age por necessidade natural, mas por vontade e pelo
intelecto. Com efeito, todo agente age em vista de um fim, mas é impossível que o
theologia, quae considerat causas superiores, id est divinas, secundum quas iudicat. Dicuntur
autem superiores causae, divina attributa, ut sapientia, bonitas, et voluntas divina, et huiusmodi.”
(ibid.)
520
“Effectus autem causarum secundarum, de quibus est quaestio, secundum iudicium
theologi, dicuntur possibiles et impossibiles secundum causas superiores; secundum autem
iudicium philosophi, dicuntur possibiles vel impossibiles secundum causas inferiores. Si autem
consideretur istud iudicium quantum ad naturam eius de quo iudicatur, sic patet quod effectus
debent iudicari possibiles secundum causas proximas, cum actio causarum remotarum, secundum
causas proximas determinetur, quas praecipue effectus imitantur” (ibid.)
521
Sobre as relações entre o De Potentia e Avicena, confira os artigos de Beatrice Zedler
(1948; 1955).
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Da via remotionis e da via eminentiae 236
agente que age por necessidade natural determine a si mesmo o fim
522
. A razão
desta impossibilidade consiste em que o agente que age por si mesmo encontra em
si o poder de agir ou de não agir; o que não pode ocorrer ao agente que age por
necessidade de natureza
523
. Por isso, é necessário que toda coisa que age por
necessidade natural tenha o fim determinado por outro, que é um ser inteligente.
Ora, se é impossível que o que age por necessidade de natureza seja o princípio da
finalidade de sua própria ação, porque o fim vem determinado por outro, então é
impossível que Deus aja por necessidade natural
524
.
A relevância da posição contrária à proposta por Tomás é manifesta pelas
objeções estruturadas a partir da tese segundo a qual Deus age por necessidade
natural. Em sua resposta à terceira objeção, o Doutor Comum deixa claro que os
que sustentam essa opinião o fazem em razão de uma certa concepção da natureza
como algo determinado a um único efeito. Mas, a sapiência divina não é
determinada a um único efeito, pois seu conhecimento se estende a muitas outras
coisas. A resposta à terceira objeção permite entrever que os adversários de
Tomás negam que Deus possa agir de modo diverso porque excluem de Deus não
só a possibilidade de causar imediatamente o múltiplo e o diverso, mas também
porque excluem de Deus a possibilidade de conhecer o múltiplo e o diverso.
A extensão do poder ou da potência divina, entendida do modo como Tomás
expõe, se denomina propriamente onipotência, porque se estende a tudo o que é
possível. Dizer que Deus é onipotente porque seu poder é infinito não explica
suficientemente a ratio omnipotentiae, mas indica somente a sua causa. Enquanto
a infinitude da potência divina é atribuída muito mais em razão do esse divino que
é infinito, referindo-se à sua eficácia produtora, a onipotência se refere à própria
extensão da potência divina, voltando-se para os objetos sobre os quais o ipsum
esse subsistens exerce seu poder.
522
“Omne enim agens agit propter finem, quia omnia optant bonum. Actio autem agentis,
ad hoc quod sit conveniens fini, oportet quod ei adaptetur et proportionetur quod non potest fieri
nisi ab aliquo intellectu, qui finem et rationem finis cognoscat, et proportionem finis ad id quod est
ad finem; aliter convenientia actionis ad finem casualis esset.” (QDP q. 1, a. 5, co.)
523
“Impossibile est autem, id quod agit ex naturae necessitate, sibi ipsi determinare finem:
quia quod est tale, est ex se agens; et quod est agens vel motum ex se ipso, in ipso est agere vel
non agere, moveri vel non moveri, ut dicitur VIII Physic., et hoc non potest competere ei quod ex
necessitate movetur, cum sit determinatum ad unum. Unde oportet quod omni ei quod agit ex
necessitate naturae, determinetur finis ab aliquo quod sit intelligens.” (ibid.)
524
“Ex his ergo colligitur quod id quod ex necessitate natura agit, impossibile est esse
principium agens, cum determinetur sibi finis ab alio. Et sic patet quod impossibile est Deum agere
ex necessitate naturae; et ita radix primae positionis falsa est.” (ibid.)
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Da via remotionis e da via eminentiae 237
Determinar a ratio omnipotentiae é tarefa árdua pois se pode atribuir à
potência divina uma extensão maior ou menor do que a mesma realmente possui.
Assim, na história da filosofia moderna, já houve quem supusesse que a
onipotência divina se estenderia a absolutamente tudo, também às coisas
impossíveis, como as contradições puras e simples (Descartes); ou ainda quem a
diminuísse, afirmando que a onipotência divina se limitaria a fazer o melhor
possível (Leibniz), ou que teria que fazer tudo o que é possível, ou que não
poderia criar nada distinta de si mesma (Spinoza), ou que não poderia comunicar a
outras coisas o seu poder de agir (Malebranche), etc. A ratio omnipotentiae deve
excluir esses extremos, estabelecendo-se em uma via média.
Para Tomás, a ratio omnipotentiae não se encontra na potência infinita, nem
na impassibilidade do ser divino, nem na vontade divina, porque não explicam
suficientemente a relação entre a operação e seus objetos, que estão implícitos na
ratio omnipotentiae
525
. Uma vez estabelecido que a potência divina se estende a
tudo o que não implica contradição em si mesmo, então a verdadeira ratio
omnipotentiae é que a potência divina se estende a tudo o que é intrinsecamente e
de modo absoluto possível
526
. Assim sendo, a ratio omnipotentiae não se afirma
porque Deus pode tudo o que pode (o que seria pura tautologia), mas porque pode
tudo o que é absolutamente ou intrinsecamente possível
527
.
Vimos que a potência ou poder de cada agente se funda no ato pelo qual age
e, por isso, um agente é tanto mais perfeito quanto mais está em ato ou quanto
maior atualidade possui. Ora, como Deus é maximamente ato, maximamente ser,
o fundamento da potência ou do poder divino não é outro senão o seu próprio ato,
525
“Dicendum, quod quidam volentes rationem omnipotentiae assignare, quaedam
acceperunt quae ad rationem omnipotentiae non pertinent, sed magis sunt causa omnipotentiae, vel
pertinentia ad perfectionem omnipotentiae, vel pertinentia ad rationem potentiae, vel ad modum
habendi potentiam. Quidam enim dixerunt, quod ideo Deus est omnipotens, quia habet potentiam
infinitam. Qui non dicunt rationem omnipotentiae, sed causam; sicut anima rationalis est causa
hominis, sed non est eius definitio. Quidam vero ideo dixerunt Deum omnipotentem, quia non
potest aliquid pati nec potest deficere, nec aliquid potest in ipsum, et alia huiusmodi, quae ad
perfectionem potentiae pertinent. Quidam etiam dixerunt, quod ideo dicitur omnipotens, quia
potest quidquid vult; et hoc habet a se et per se; quod pertinet ad modum habendi potentiam. Hae
autem rationes omnes ideo sunt insufficientes, quia praetermittunt rationes operationum ad obiecta,
quas implicat omnipotentia.” (QDP q. 1, a. 7, co.)
526
“Ea vero quae contradictionem implicant Deus non potest; quae quidem sunt
impossibilia secundum se. Relinquitur ergo quod Dei potentia ad ea se extendat quae sunt
possibilia secundum se. Haec autem sunt quae contradictionem non implicant. Constat ergo quod
Deus ideo dicitur omnipotens quia potest omnia quae sunt possibilia secundum se.” (ibid.)
527
“(...) Deus dicitur omnipotens quia potest omnia possibilia absolute.” (QDP q. 1, a. 1, ad
4).
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Da via remotionis e da via eminentiae 238
o seu próprio ser que é idêntico à sua ação. Assim, a potência divina não é restrita
ou limitada a um modo de ser particular, mas se estende a tudo o que de algum
modo é ser ou está contido no ser. A única coisa que se opõe radicalmente ao ser é
o não-ser (esse tollit non esse, non esse tollit esse), ou seja, a negação absoluta do
não-ser. Mas, a negação absoluta do não-ser é absolutamente impossível e,
portanto, não cai sob o domínio da onipotência divina. O que é contraditório em si
mesmo, o que envolve em si o ser e o não-ser ao mesmo tempo não se pode
atribuir a Deus porque uma tal coisa não pertence à ratio possibilitatis, ou seja, é
impossível em si e por si mesma. Como magistralmente esclarece Tomás na Suma
Teológica: “melhor se deve dizer que estas coisas não podem ser feitas, que dizer
que Deus não as pode fazer”
528
.
A teoria da potência divina em Tomás é devedora de sua noção intensiva de
ser (esse). A afirmação da infinitude da potência divina, derivada do axioma
segundo o qual o esse não-recebido é ilimitado, assim como a tese de que toda
potência ativa termina principalmente no ser (terminatur ad esse), juntamente com
aquela outra segundo a qual a potência divina é onipotente por poder realizar
eficazmente tudo que é possível, ou seja, tudo o que pertence à ratio entis,
dependem essencialmente de sua nova compreensão do esse como pura
atualidade, maximamente formal dentre todas as perfeições. Os atributos divinos,
sustentados e depurados pela triplex via, são discerníveis quoad nos, mas são
idênticos per se ao ipsum esse subsistens, único ser que possui em si mesmo a
plenitude de todo ser (omnem perfectionem essendi comprehendit).
528
“Unde convenientius dicitur quod non possunt fieri, quam quod Deus non potest ea
facere.” (STh I, q. 25, a. 3.). Na Suma Teológica, quando demonstra a onipotência divina, Tomás
centra seu argumento na própria natureza da ratio entis, porque todos os possíveis absolutos estão
contidos na ratio entis, à semelhança do que ocorre no De Potentia. Mas, já na Suma Contra os
Gentios, Tomás se move neste mesmo horizonte porque Deus é causa essendi e pode fazer tudo o
que é compatível, isto é, não contraditório com o ser (esse). Cf. SCG II, c. 22.
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5
Da compositio secundum rem
Nos capítulos anteriores, procuramos reconstruir os argumentos do De
Potentia segundo a ordo inventionis filosófica. Em primeiro lugar,
acompanhamos a resolução de todos os atos e de todas as perfeições dos entes no
ato de ser (resolutio secundum rationem). Em seguida, examinamos os
argumentos que demonstram a existência da causa incausada, resolvendo os entes
no ipsum esse subsistens (resolutio secundum rem). Face ao ipsum esse subsistens
alcançado pela via de resolução, o filósofo se interroga pela possibilidade do
conhecimento de sua natureza, o que é, de certo modo, antecipado, ao final da
resolutio secundum rem. A via resolutiva, enquanto via de afirmação pela
causalidade, dá lugar agora à via de remoção e à de eminência, que
complementam o movimento ascensional ao ipsum esse subsistens. O mediador
formal de todo este gradativo processo é sempre a emergência do esse ut actus
essendi nos entes.
Graças à exposição de Tomás ao De Trinitate de Boécio (q. 6, a. 1), vimos
que compete à “ciência divina” ser o terminus de todas as ciências na via de
resolução (secundum viam resolutionis). Mas, a metafísica enquanto “ciência
divina” não procede por uma única via. Com efeito, a razão não pode atingir a
união do múltiplo na unidade nem a unidade do múltiplo por intuição, mas pode
fazê-lo gradativamente e discursivamente por composição ou por resolução. Na
via de resolução, a consideração racional termina na intelectual enquanto a razão
recolhe (colligit) a verdade una e simples a partir do múltiplo. Na via de
composição, a consideração intelectual é o princípio da racional enquanto o
intelecto compreende o múltiplo na unidade.
Ambas as vias são apresentadas por Tomás como pertencentes à “ciência
divina”, à metafísica. Ora, como a razão pode proceder ao conhecimento das
causas ou efeitos intrínsecos ou extrínsecos, deve-se subdividir a via resolutiva e a
compositiva em razão da natureza das causas ou efeitos investigados. Assim,
distinguem-se claramente as quatro vias disponíveis à metafísica: 1) a via de
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Da compositio secundum rem 240
resolução dos efeitos nas causas intrínsecas (resolutio secundum rationem); 2) a
via de resolução dos efeitos nas causas extrínsecas (resolutio secundum rem); 3) a
via de composição das causas intrínsecas aos efeitos (compositio secundum
rationem); 4) a via de composição das causas extrínsecas aos efeitos (compositio
secundum rem). Os princípios ou as causas das quais parte ou para as quais se
dirige a reflexão metafísica são sempre simples e separadas por excelência quando
se procede secundum rem e são mais universais e comuns quando se procede
secundum rationem. Enquanto vias relativas à causalidade, a resolutio e a
compositio são espécies da primeira dentre as três vias propostas por Tomás para
o conhecimento do ipsum esse subsistens.
De acordo com este panorama, a metafísica procede tanto por resolução
quanto por composição, investigando tanto as causas intrínsecas quanto as
extrínsecas do ente enquanto tal. No entanto, esta pluralidade de itinerários nem
sempre é reconhecida pelos intérpretes do pensamento metafísico do Aquinate.
Em artigo dedicado ao título “filosofia primeira” de acordo com Tomás de
Aquino, o Prof. John Wippel (1974, p. 597-600) nega que a metafísica procedesse
sinteticamente (via compositionis) a partir das causas extrínsecas (secundum rem).
O argumento proposto pelo autor poderia ser resumido da seguinte forma: o
conhecimento dos efeitos a partir de Deus só é possível “em um universo em que
o homem goza de algum tipo de insight direto da essência divina e em que não
existe liberdade da parte de Deus para criar ou não criar”
529
; como nenhuma
destas condições são possíveis para Tomás de Aquino, então a metafísica não
pode proceder pela via de composição secundum rem.
529
“Why not view this science in terms of extrinsic causes (secundum rem), but according
to the process of synthesis? (…) While such might indeed obtain in a universe wherein man enjoys
some kind of direct insight into the divine essence and wherein there is no freedom on the part of
God to create or not to create, neither of these conditions would be conceded by Thomas Aquinas.
Hence there would have been little point in his viewing metaphysics in terms of extrinsic causes
according to the process of synthesis.” (WIPPEL, John. The title ‘first philosophy’ according to
Thomas Aquinas and his different justifications for the same. Review of Metaphysics, 27, p. 597-
598, 1974). É importante ressaltar ainda que há uma via de composição secundum rem restrita, de
fato, ao conhecimento teológico enquanto revelado. Na exposição ao De Trinitate (q. 6, a. 1),
porém, Tomás não aborda a questão das vias da teologia revelada ou sobrenatural, mas tão
somente das vias da metafísica ou da teologia filosófica enquanto scientia divina. Ao contrário, a
análise do contexto da exposição do De Trinitate deixa claro que as vias de resolução e
composição, expostas como pertencentes à metafísica qua scientia divina, não se referem à
“scientia divina quae est per inspirationem divinam acceptam” (q. 5, a. 4, ad 3), a qual é
denominada de “theologia quae in sacra Scriptura traditur”.
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Da compositio secundum rem 241
Deve-se reconhecer que, para Tomás de Aquino, é impossível ao homem
obter um conhecimento imediato da natureza da causa primeiríssima de todas as
coisas. Mas, como sustenta o próprio John Wippel (2000, p. 543-575), em
consonância com sua análise de Tomás de Aquino, é possível ao homem conhecer
o que Deus é pela predicação analógica das perfeições simples dos entes criados,
as quais existem verdadeiramente em Deus (in Deo vero existant
530
). Há, assim,
uma fase da reflexão metafísica em que o ipsum esse subsistens é afirmado como
a causa do objeto formal da metafísica, tornando-se um ponto de partida para uma
nova inquisição da razão. Vimos que se o que é primeiro na cognição é também
primeiro quanto ao ser, a ciência não procede por modo de resolução, mas sim
pela via de composição
531
. Logo, se Deus, que é primeiro quanto ao ser, também
for primeiro quanto à cognição, haverá sempre processo compositivo e não
resolutivo.
Poder-se-ia objetar que Deus jamais é primeiro quanto à cognição. Neste
caso, deve-se recordar, com Tomás, que o que é último na ordem da resolução é
primeiro na ordem de composição, e vice-versa. Obviamente, o ipsum esse
subsistens não é o primeiro objeto do intelecto (primum obiectum intellectus) nem
é o princípio imediato naturalmente conhecido pelo intelecto (principium
immediatum naturaliter cognitum), mas é o termo da resolutio secundum rem.
Ora, se Deus pode ser conhecido pelo metafísico como a causa ou princípio do
objeto formal da metafísica e se o metafísico pode elevar-se ao conhecimento da
natureza divina por analogia, então pode extrair conseqüências para o
conhecimento dos efeitos a partir da causa incausada (via compositionis secundum
rem). Uma vez assumido o ipsum esse subsistens como parte integrante do
processo reflexivo e discursivo da metafísica, lança-se nova luz sobre os
argumentos dedutivos (via de composição em sentido lógico) que, partindo da
existência e da natureza da causa incausada, determinam a natureza e o modo de
ser dos efeitos. O princípio imediato do qual parte a via de composição determina
todo o poder da razão e, ao mesmo tempo, esclarece seus limites (principium
immediatum cognitum determinat potestatem totam rationis).
A vontade de clarificar e precisar as vias metafísicas do conhecimento do
ipsum esse surge da necessidade de investigar o modo de proceder da ciência
530
QDP q. 7, a. 5, co.
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Da compositio secundum rem 242
antes das ciências (“modus scientiae debet quaeri ante scientias
532
). Se a
interpretação anterior sobre a relevância metafísica da via compositionis é correta,
então o terminus da tríplice via não é um juízo absolutamente negativo, mas um
juízo afirmativo sobre o caráter de eminência das perfeições predicadas de Deus
por analogia, o qual abre novo horizonte para o conhecimento dos seus efeitos.
Afinal, se o termo ad quem da resolutio secundum rationem serve como termo a
quo da resolutio secundum rem, e o termo ad quem da resolutio secundum rem
serve como termo a quo da via remotionis e da via eminentiae, então a tríplice via
é igualmente “circular” uma vez que retorna à via de causalidade para, pela via
compositionis secundum rem, proceder ao conhecimento dos efeitos a partir da
causa incausada, simples, universal e separada por excelência.
Uma das principais aplicações do procedimento compositivo pelas causas
extrínsecas (secundum rem) se encontra na terceira e na quarta questão do De
Potentia, em que Tomás aborda, através de vinte e um artigos
533
, o tema da
criação divina, ação exclusiva da potência ativa divina
534
. A razão principal para
abordarmos os argumentos de Tomás sobre a criação não consiste em perceber o
caráter compositivo dos mesmos, mas em compreender de que modo a criação
recebe um fundamento teórico graças à noção intensiva de esse, cuja emergência
no ente como ato participado só pode ser explicada em última instância pela
própria criação
535
.
531
Cf. STh I-II, q. 14, a. 5, co.
532
In De Trin., q. 5, a. 1, ad 3.
533
Os dezenove artigos da terceira questão são assim ordenados: 1. Se Deus pode criar
alguma coisa; 2. Se a criação é uma mutação; 3. Se a criação é qualquer coisa de real na criatura;
4. Se a potência de criar é comunicável a uma criatura; 5. Se pode existir alguma coisa que não
seja criada por Deus; 6. Se o princípio da criação é um só; 7. Se Deus opera em toda operação da
criatura; 8. Se a criação se insere na obra da criatura; 9. Se a alma é criada; 10. Se a alma é criada
no corpo ou fora do corpo; 11. Se a alma sensível e aquela vegetativa tem origem por criação; 12.
Se a alma está no sêmen quando dividido; 13. Se um ente proveniente de outro pode ser eterno; 14.
Se o que é essencialmente distinto de Deus pode ter sempre existido; 15. Se as coisas são
produzidas por Deus por necessidade; 16. Se do uno pode proceder o múltiplo; 17. Se o mundo
sempre existiu; 18. Se os anjos foram criados antes do mundo visível; 19. Se os anjos poderiam
existir antes do mundo visível. Os dois artigos da quarta questão são, por seu turno, ordenados do
seguinte modo: 1. Se a criação da matéria informe precedeu na ordem do tempo à criação das
coisas; 2. Se a matéria informe foi criada toda ao mesmo tempo ou em momentos sucessivos.
534
Sobre o tema da criação em Tomás de Aquino, confira: J.F. Anderson (1950, p. 263-
283; 1952); F.D. Wilhelmsen (1979, p. 107-131); M. Johnson (1989, p. 129-155); S. Selner (1992,
276p.); T. J. Kondoleon (1993, p. 51-61); L. Elders (1995, v. II, p. 354-388); T. B. Noone (1996,
p. 275-300); N. Kretzmann (1999, 482p.); J. G. López (2001, p. 664-682); B. Mondin (2002, p.
507-515).
535
Cf. C. Fabro (1961, p. 539).
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Da compositio secundum rem 243
A questão da origem do ente enquanto tal não faz sentido para o pensamento
grego, em especial para Aristóteles. Na concepção aristotélica, nos recorda C.
Fabro (1961, p. 538), duas doutrinas são igualmente hipóteses sem fundamento. A
primeira consiste em conferir ao esse como tal (
tov
ei\nai
) uma significação
própria e irredutível ao ens (
tov
o!n
). A segunda consiste em propor como
fundamento de toda causalidade predicamental a causalidade transcendental do
esse, efeito próprio da criação. Em termos de itinerário filosófico, a primeira é o
objeto da resolução secundum rationem, a segunda é o objeto da resolutio
secundum rem e da compositio secundum rem.
No primeiro artigo da terceira questão do De Potentia, Tomás pretende
demonstrar que Deus pode criar todas as coisas do nada. Para tanto, parte do
princípio segundo o qual todo agente age enquanto está em ato (omne agens agit
secundum quod est actu), o que torna a atribuição de uma ação a um agente
proporcional ao seu modo de ser em ato. A estratégia do argumento consiste em
contrastar a ação divina em relação à ação dos agentes naturais. Em primeiro
lugar, considera a natureza das coisas particulares, de seu modo de ser em ato. Em
seguida, deriva a natureza da ação das coisas particulares, contrastando-a, enfim, à
natureza e à ação divina.
Toda coisa particular é em ato de modo particular (res autem particularis
est particulariter in actu), o que pode ser observado de dois modos: 1) em relação
a si mesma ou ao seu próprio modo de ser em ato; 2) ou em relação à outra coisa
em ato. Em relação a si mesma, toda coisa particular é em ato de modo limitado,
pois, em sua substância, há composição de potência e ato. Por isso, as coisas
naturais e particulares não agem com todo o seu ser (non agit secundum se totam),
mas somente pela sua forma que é em ato (agit per formam suam per quam est in
actu). Deste modo, uma vez que as coisas naturais são em ato, mas não são seu
próprio ato de ser, as mesmas não agem com todo o seu ser.
Em relação ao ato de outra coisa, nenhuma coisa natural inclui em si mesma
o ato e a perfeição de todas as coisas em ato, porque cada coisa particular tem um
ato determinado a um gênero e a uma espécie definida. Por isso, nenhum agente
natural é capaz de realizar uma atividade que abarque o ente enquanto tal (nulla
earum est activa entis secundum quod est ens), mas somente um ente determinado
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Da compositio secundum rem 244
nesta ou naquela espécie
536
. Além disso, o agente natural age movendo, ou seja,
supondo uma potência passiva, como a matéria que preexiste ao próprio
movimento, enquanto sujeito de mutação.
Justificada a tese segundo a qual o agente natural não produz o ente em
absoluto (simpliciter ens), mas um ente preexistente e determinado a este ou
àquele modo de ser, através de um movimento ou mutação que supõe a
preexistência de uma potência receptiva, é evidente que o agente natural não
produz qualquer coisa a partir do nada
537
. Diferentemente do agente natural, Deus
é totalmente ato puro, quer seja considerado em si mesmo (porque não possui
nenhuma potencialidade) quer em relação ao ato de outro ente em ato (porque é a
causa de todo ente enquanto tal). Por isso, Deus pode, mediante a sua ação,
produzir o ente subsistente sem pressupor nada (totum ens subsistens nullo
praesupposito). De modo mais específico, deve-se dizer que Deus é princípio de
todo ser na sua totalidade (totius esse principium et secundum se totum), cuja ação
se denomina propriamente criação
538
.
É importante ressaltar que a natureza e a estrutura do argumento proposto
acima não é resolutiva, ou seja, não procede da natureza da ação dos entes
naturais à natureza da ação divina, dos efeitos à causa incausada. É evidente que
essa resolução é pressuposta para a demonstração da existência do ato puro, mas o
desenvolvimento do argumento é de natureza claramente compositiva secundum
rem, ou seja, da causa extrínseca incausada ao seu efeito próprio. Com efeito, o
argumento depende da premissa segundo a qual há um ser que é totalmente ato
puro para concluir que a criação, propriamente falando, é a produção do ente
536
“Res autem particularis est particulariter in actu: et hoc dupliciter: primo ex
comparatione sui, quia non tota substantia sua est actus, cum huiusmodi res sint compositae ex
materia et forma; et inde est quod res naturalis non agit secundum se totam, sed agit per formam
suam, per quam est in actu. Secundo in comparatione ad ea quae sunt in actu. Nam in nulla re
naturali includuntur actus et perfectiones omnium eorum quae sunt in actu; sed quaelibet illarum
habet actum determinatum ad unum genus et ad unam speciem; et inde est quod nulla earum est
activa entis secundum quod est ens, sed eius entis secundum quod est hoc ens, determinatum in
hac vel illa specie” (QDP q. 3, a. 1, co.)
537
“Et ideo agens naturale non producit simpliciter ens, sed ens praeexistens et
determinatum ad hoc vel ad aliud, ut puta ad speciem ignis, vel ad albedinem, vel ad aliquid
huiusmodi. Et propter hoc, agens naturale agit movendo; et ideo requirit materiam, quae sit
subiectum mutationis vel motus, et propter hoc non potest aliquid ex nihilo facere.” (ibid.)
538
“Ipse autem Deus e contrario est totaliter actus,- et in comparatione sui, quia est actus
purus non habens potentiam permixtam - et in comparatione rerum quae sunt in actu, quia in eo est
omnium entium origo; unde per suam actionem producit totum ens subsistens, nullo praesupposito,
utpote qui est totius esse principium, et secundum se totum. Et propter hoc ex nihilo aliquid facere
potest; et haec eius actio vocatur creatio.” (ibid.)
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Da compositio secundum rem 245
subsistente em absoluto, sem nada pressupor (totum ens subsistens nullo
praesupposito).
O argumento compositivo secundum rem, quer nas suas premissas, quer em
sua conclusão, não supõe nenhum insight em relação à natureza da causa
incausada, em relação ao seu actus essendi. Ao contrário, trata-se de uma
conquista da via argumentativa da causalidade, da remoção e da eminência, que
permitem atribuir verdadeiramente a perfeição de comunicar o esse ao ser que é
tão somente ser, que é ato de modo máximo e puríssimo
539
. Conhecemos a
verdade da proposição que atribui a ação de criar exclusivamente a Deus, mas não
compreendemos o modus essendi e o modus operandi divino tal qual é em si
mesmo.
A solução proposta por Tomás, além de justificar porque Deus pode criar
todas as coisas a partir do nada e porque tal poder não pertence aos entes que não
são o seu próprio ser, permite compreender a relação entre a causalidade
predicamental e a causalidade transcendental. A causalidade predicamental é a
causalidade acrescida ao ser (esse superadduntur) ou é aquela mediante ao qual o
ser é especificado (esse specificatur). Por pressupor o esse, efeito próprio da causa
universal, a causalidade predicamental é causa segunda, que age informando o
ente que já possui o ser em ato. Já a causalidade transcendental é a causa do ente
em absoluto (ens simpliciter) na qual se resolvem todas as demais causas
(causalitates entis absolute reducuntur in primam causam universalem). À época
da redação desta solução, seguindo de perto o Liber de Causis (prop. 18), Tomás
parece conceder que as coisas podem dar o ser (dat esse) na medida em que
participam do poder divino
540
.
539
“Dicendum quod natura cuiuslibet actus est, quod seipsum communicet quantum
possibile est. Unde unumquodque agens agit secundum quod in actu est. Agere vero nihil aliud est
quam communicare illud per quod agens est actu, secundum quod est possibile. Natura autem
divina maxime et purissime actus est.” (QDP q. 2, a. 1, co.)
540
“Et inde est quod in Lib. de causis, dicitur, quod esse eius est per creationem, vivere
vero, et caetera huiusmodi, per informationem. Causalitates enim entis absolute reducuntur in
primam causam universalem; causalitas vero aliorum quae ad esse superadduntur; vel quibus esse
specificatur, pertinet ad causas secundas, quae agunt per informationem, quasi supposito effectu
causae universalis: et inde etiam est quod nulla res dat esse, nisi in quantum est in ea participatio
divinae virtutis. Propter quod etiam dicitur in Lib. de causis, quod anima nobilis habet operationem
divinam in quantum dat esse.” (ibid.). Não se trata propriamente de uma concessão na medida em
que, para Tomás, é “impossível que qualquer criatura opere na criação, mesmo como instrumento”
(QDP q. 3, a. 4, co.).
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Da compositio secundum rem 246
Como sempre, a vontade de precisão acompanha Tomás ao longo de suas
respostas às objeções. Em sua resposta à sétima objeção, baseando-se em
Anselmo (Monologion, c. 5 e 8
541
), esclarece os dois sentidos da expressão “ex
nihilo”. A negação incluída nesta expressão pode significar: 1) a negação da
preposição “ex”; 2) ou pode estar incluída na preposição.
Por um lado, se o “nihil” significa a negação da preposição “ex”, isto pode
ser entendido em dois sentidos: 1’) a negação se refere ao todo, negando-se não só
a preposição mas também o verbo; 1”) a negação não se refere ao todo, pois o
verbo permanece afirmativo. No primeiro caso, diz-se que “algo é feito a partir do
nada porque não é feito” (aliquid ex nihilo fieri quia non fit); assim, podemos
dizer que “Deus é feito a partir do nada porque não é feito”. Esse modo de falar,
nos diz Tomás, não é comum (non sit consuetus). No segundo, diz-se que “algo é
feito a partir do nada porque algo é feito, mas sem preexistir aquilo a partir do
qual faz” (aliquid ex nihilo fieri, quia fit quidem, sed non praeexistit aliquid ex
quo fiat); assim, podemos afirmar que “alguém se entristece por nada”, quando a
tristeza não possui uma causa, ou ainda que “algo é feito a partir do nada mediante
a criação”.
Por outro lado, se a preposição inclui a negação, isto também pode ser
entendido de dois modos, um falso e outro verdadeiro: 2’) falso, se o “nihil
refere-se à causa, pois o não-ente não pode ser causa do ente; 2”) verdadeiro, se
importa somente a ordem, pois é legítimo dizer que “algo é feito do nada porque
vem depois do nada” (aliquid fieri ex nihilo quia fit post nihilum”. Em suma, a
expressão creatio ex nihilo só pode ser entendida de acordo com 1” e 2”, ou seja,
a negação ou se refere à preposição, mas não ao verbo (1”) ou é incluída na
preposição, importando uma certa ordem (2”).
Resta observar ainda, em relação às respostas às objeções, duas coisas. Em
primeiro lugar, que Deus não cria, propriamente falando, nem a matéria, nem a
forma, nem os acidentes que são princípios do ente que não subsistem por si, mas
sim a coisa subsistente (res subistens). Como vimos, a potência ativa divina
termina no ser (terminatur ad esse), a ação criadora termina propriamente no que
convém ser por si (cui convenit per se esse), ou seja, a coisa subsistente. Por este
motivo, a forma, a matéria e os acidentes são ditos concriados, ou seja, criados
541
Para uma comparação entre os sentidos de “fieri ex nihilo” em Anselmo e Tomás de
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Da compositio secundum rem 247
simultaneamente com a criação da res subsistens
542
. Em segundo lugar, que Deus,
mediante a criação, simultaneamente dá o ser e produz o que recebe o ser (a
essência), não sendo necessário que aja a partir de algo preexistente, nem que crie
primeiramente o esse e depois a potentia essendi
543
. Nada poderia ser mais
estranho ao pensamento do Doutor Comum do que a concepção de uma essência
possível sem o esse, uma vez que a essência sem o esse correspondente não é
absolutamente nada.
Uma das principais preocupações de Tomás é em afastar a compreensão da
criação como uma passagem, um movimento transitivo, tema do segundo artigo
da terceira questão
544
. Já na terceira objeção do primeiro artigo há um exemplo
paradigmático da confusão entre a natureza da ação criadora divina e a do
movimento. A objeção em questão afirma ser impossível passar (transeat) do não-
ente em absoluto (simpliciter) ao ente, porque é impossível atravessar
(pertransire) uma distância infinita (infinitam distantiam). A metáfora da
“distância”
545
possui o inconveniente de tratar do não-ente como uma realidade
concreta (a relação entre o não-ente absoluto
546
e o ente é uma relação de razão e
não uma relação real), mas tem a vantagem de especificar a intensidade que é
exigida pela ação do agente que produz o ente absolutamente, ou seja, a partir do
nada.
Em sua resposta, Tomás concorda que entre o ente e o não-ente em absoluto
há uma “distância infinita”, mas nem sempre do mesmo modo. Com efeito, às
vezes é infinita de ambas as partes (como ocorre quando se compara o não-ser ao
ser divino), às vezes de uma só das partes (como acontece na comparação do não-
Aquino, confira: S. Selner (1992, p. 98, n. 65).
542
“(…) neque materia neque forma neque accidens proprie dicuntur creari, sed concreari.”
(ibid., ad 12).
543
“(…) quod Deus simul dans esse, producit id quod esse recipit: et sic non oportet quod
agat ex aliquo praeexistenti” (ibid., ad 17).
544
Cf. QDP q. 3, a. 1, ad 1; ad 3; ad 8; ad 10; ad 11; q. 3, a. 2. A criação só é correlacionada
ao movimento em razão do nosso modo de compreender que, neste caso, se expressa
metaforicamente ou imaginativamente (cf. q. 3, a. 2, co.). Por isso, também a atribuição da criação
envolve a via remotionis pela qual negamos da ação divina tudo o que é relativo ao movimento, à
passagem tal como encontrada no devir dos entes. Como observa F. Wilhelmsen (1979, p. 113-
114): “Given that the ratio of creation is total dependence in being, we are constrained by the
limits of our human modes of knowing to think of creation as though it were a passage from non-
being to being, all the while imagining non-being as though it were being”.
545
Tal metáfora ocorre freqüentemente no De Potentia e em outras obras do Angélico. Cf.
QDP q. 3, a. 1, obj. 3 et ad 3; q. 3, a. 4, co.; q. 5, a. 3, obj. 15; q. 6, a. 3, obj. 16; In Sent., IV, d. 5,
q. 1, a. 3, sol. 3.
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Da compositio secundum rem 248
ser absoluto ao ser criado que é finito). Se é impossível a passagem do não-ser
absoluto ao ser infinito (esse infinitum), não é impossível a passagem do não-ser
absoluto ao ser finito (esse finitum), porque a “distância” é proveniente de uma só
das partes e não de ambas as partes. Mas, propriamente falando, não se trata de
uma passagem, tal como ocorre no movimento contínuo no qual uma parte é
sucedida por outra
547
.
A metáfora da “distância infinita” reaparece no quarto artigo da terceira
questão por ocasião da demonstração de que o efeito da criação exige uma
potência ativa infinita. O quarto artigo refere-se à incomunicabilidade da potência
criadora, sendo contextualizado por Tomás em torno da opinião de Pedro
Lombardo, para quem é possível à criatura receber o poder de criar, e da doutrina
neoplatônica, presente no Liber de Causis (prop. 10) e na Metafísica (IX, c. 4) de
Avicena
548
, segundo a qual a criação é um processo mediado pela criação das
coisas inferiores pelas superiores
549
.
A importância do De Potentia para o tratamento desta questão deve ser
sublinhado aqui. Em seu Comentário às Sentenças, Tomás inclina-se a uma
posição diversa do Mestre das Sentenças, sustentando que a criação exige uma
potência infinita que é incomunicável à criatura. Todavia, não extrai daí todas as
conseqüências necessárias, pois concede à criatura o poder de agir “se tota” e,
portanto, de participar da potência criadora na medida em que é capaz de produzir
algo sem pressupor a existência da matéria
550
. No De Potentia, porém, todas as
concessões desaparecem, pois o esse, efeito próprio da criação, não pode ser
546
“(…) non esse autem non est in illo instanti nec in aliquo reali, sed in aliquo imaginario
tantum” (QDP q. 3, a. 1, ad 10).
547
“Ad tertium dicendum, quod entis et non entis simpliciter est aliquo modo et semper
infinita distantia, non tamen eodem modo: sed quandoque quidem ex utraque parte infinita, sicut
cum comparatur non esse ad esse divinum quod infinitum est, ac si comparetur albedo infinita ad
nigredinem infinitam; quandoque autem est finita ex una parte tantum, sicut cum comparatur non
esse simpliciter ad esse creatum quod finitum est, ac si comparetur nigredo infinita ad albedinem
finitam. In illud ergo esse quod est infinitum, non potest fieri transitus ex non esse; sed in illud
esse quod est finitum, talis transitus fieri potest, prout distantia non esse ad illud esse ex una parte
terminatur, quamvis non sit transitus proprie: sic enim est in motibus continuis, per quos transit
pars post partem. Sic enim contingit nullo modo infinitum transire.” (ibid., ad 3).
548
Para Avicena, a criação não é uma produção absoluta do ente subsistente, nem implica
em uma dependência intrínseca radical dos entes em relação ao próprio ser (ipsum esse), mas
somente significa a dependência extrínseca do ser possível em relação ao ser necessário. Sobre a
noção de criação em Avicena, confira: B. Zedler (1948, p. 105-159; 1955, p. 1-18; 1976, p. 504-
521; 1981, p. 113-130); T. O’Shaughnessy (1960, p. 665-679); S. Selner (1992, p. 2221-237); B.
Mondin (1999, p. 257-279); Rahim Acar (2004, p. 65-80)
549
Sobre a incomunicabilidade da potência criadora em Tomás, confira: J. de Finance
(1961, p. 142-149).
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Da compositio secundum rem 249
criado pelo ente que tem ser, mas não é o seu próprio ser e não age “se toto
551
.
Vejamos como isso ocorre.
As doutrinas de origem neoplatônica, segundo Tomás, resistem à concepção
de uma criação imediata de todas as coisas a partir de uma só causa incausada em
razão do axioma segundo o qual do absolutamente uno não pode provir
imediatamente senão o uno (ab uno simplici non posset immediate nisi unum
provenire). Por isso, interpretavam a causalidade divina como uma causalidade
por necessidade natural (per necessitatem naturae) da qual do uno não deriva
senão um único efeito (ex uno simplici non fit nisi unum).
A fim de resolver a questão sobre a possibilidade da comunicação da
potência criadora às criaturas, Tomás fornece a definição mais objetiva e clara do
termo “criação” que podemos encontrar no De Potentia nos seguintes termos: “a
criação designa a potência ativa pela qual as coisas são produzidas no ser (in esse
producuntur), sem o pressuposto de uma matéria preexistente e de qualquer
agente precedente, que são as únicas causas pressupostas para a ação”
552
. A
criação, em sentido estrito, necessariamente há de ser entendida como uma ação
ex nihilo, por não pressupor nenhuma matéria preexistente nem um agente
precedente, exceto a própria potência ativa pela qual as coisas são produzidas no
ser (in esse).
Como o primeiro efeito é o próprio ser (primum effectus est ipsum esse), que
não pressupõe nenhum outro efeito, mas é pressuposto por todos os demais, é
necessário que dar o ser enquanto tal (dare esse in quantum huiusmodi) seja um
efeito exclusivo e próprio da causa primeira que age por virtude (virtus)
própria
553
. Por isso, em sentido próprio, a criação é uma ação que pertence
exclusivamente ao primeiro agente, pois as causas segundas agem sob o influxo
da e pressupõem a causalidade (transcendental) do agente primeiríssimo.
Neste momento, Tomás considera a hipótese segundo a qual as causas
segundas dão o ser e possuem este poder não por virtude (virtus) própria, mas sim
550
In Sent. II, d. 1, q. 1, a. 3; In Sent., IV, d. 5, q. 1, a. 3.
551
Para a exposição desta evolução do pensamento de Tomás, confira: J. de Finance (1961,
p. 142-149).
552
“Ad horum autem evidentiam sciendum est quod creatio nominat activam potentiam,
qua res in esse producuntur; et ideo est absque praesuppositione materiae praeexistentis et alicuius
prioris agentis: hae enim solae causae praesupponuntur ad actionem.” (QDP q. 3, a. 4, co.)
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Da compositio secundum rem 250
como um instrumento da causa primeira. Com efeito, no Liber de Causis se
afirma que as coisas possuem o ser por criação, mas possuem a bondade, a vida e
as demais perfeições por informação. Além disso, o Mestre das Sentenças afirma
que o ser é comunicável às criaturas não por virtude própria (propria virtute), mas
como causas instrumentais. Todavia, nos diz Tomás, quem considera de modo
diligente (diligenter consideranti) a questão perceberá que uma tal coisa é
impossível
554
.
A razão aduzida por Tomás para a impossibilidade da comunicação da
potência de criar é, sem dúvida, motivada pelo mesmo princípio que o guiou até
agora: todo agente age enquanto está em ato. Como todo ente criado age enquanto
é um ser em ato de modo determinado e particular, a potência do ente criado é
finita, o que torna impossível que opere na criação, mesmo como um instrumento,
pois a ação de criar o ente ex nihilo exige um poder infinito na potência do agente
(creatio infinitam virtutem requiri in potentia)
555
.
A démarche de Tomás de Aquino até aqui supõe que a criação exige uma
potência infinita e que uma tal potência não pode ser comunicada às criaturas na
medida em que estas são finitas. Em outras palavras, os filósofos neoplatônicos
poderiam concordar que a potência divina é infinita, que há necessariamente uma
redução de todas as causas segundas à causa primeira, que a produção dos seres se
dá pela criação do esse, mas poderiam discordar de Tomás afirmando que dar o
ser não é ação própria somente da potência divina. A fim de demover qualquer
oposição, Tomás propõe cinco argumentos em favor da prerrogativa da potência
divina na criação do ser, dentre os quais mencionaremos os dois primeiros por sua
relevância para a nossa discussão.
553
“Primus autem effectus est ipsum esse, quod omnibus aliis effectibus praesupponitur et
ipsum non praesupponit aliquem alium effectum; et ideo oportet quod dare esse in quantum
huiusmodi sit effectus primae causae solius secundum propriam virtutem” (ibid.)
554
“Et per hunc modum posuerunt quidam philosophi, quod intelligentiae primae sunt
creatrices secundarum, in quantum dant eis esse per virtutem causae primae in eis existentem.
Nam esse per creationem, bonum vero et vita et huiusmodi, per informationem, ut in libro de
causis habetur. Et hoc fuit idolatriae principium, dum ipsis creatis substantiis quasi creatricibus
aliarum, latriae cultus exhibebatur. Magister vero in IV sententiarum ponit hoc esse
communicabile creaturae non quidem ut propria virtute creet, quasi auctoritate, sed ministerio
quasi instrumentum. Sed diligenter consideranti apparet hoc esse impossibile” (ibid.)
555
“Nam actio alicuius, etiamsi sit eius ut instrumenti, oportet ut ab eius potentia
egrediatur. Cum autem omnis creaturae potentia sit finita, impossibile est quod aliqua creatura ad
creationem operetur, etiam quasi instrumentum. Nam creatio infinitam virtutem requirit in potentia
a qua egreditur” (ibid.)
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Da compositio secundum rem 251
O primeiro argumento é baseado no fato de que a potência do agente é
proporcionada à “distância” que existe entre o que vem a ser produzido e a coisa
oposta a partir da qual é produzido. Ora, o absoluto não-ser “dista” do ser
infinitamente, o que é evidente pelo fato que o não-ser é “mais distante” de
qualquer ente determinado, por mais “distante” que este seja de outro ente
determinado. Logo, produzir uma coisa do absoluto não-ser não é possível senão
há por uma potência infinita
556
.
O segundo argumento sustenta-se na premissa segundo a qual o modo de
produção do efeito depende e é proporcional ao modo de ação do agente. Ora,
como o agente age enquanto é em ato, só age segundo todo o seu ser (id solum se
toto agit) o que é totalmente em ato (totum actu est), o que é próprio somente do
ato infinito que é o ato primeiro. Por essa razão, produzir uma coisa segundo toda
a sua substância é próprio somente de uma virtude infinita (virtutis infinitae)
557
.
Este argumento adota um prisma diverso do primeiro na medida em que
parte da natureza da coisa que é feita segundo a medida da ação do agente para
concluir pela necessidade de uma virtude infinita na causa incausada que é
incomunicável às causas segundas. Uma vez que o modo pelo qual uma coisa é
feita depende do modo pelo qual o agente produz tal coisa, a produção do ente em
absoluto, em todo o seu ser, exige uma causa que: 1) seja o princípio de todo o ser
do efeito, isto é, seja capaz de produzir por sua própria potência ativa ou poder
(virtus) o ente em absoluto (ens simpliciter); 2) seja capaz de agir segundo o seu
próprio ser e o seu ser todo (totius esse principium et secundum se totum), o que
só é possível para um ser cuja natureza não é composta de ato e potência.
Vimos que uma tal causa é aquela que possui em si mesma todo o ser (totum
esse in se habent
558
). A única causa que age “tota se” é a que possui em si mesma
todo o ser, sem limites, adições ou restrições. Ora, aquela causa que age com todo
556
“Prima est ex hoc quod potentia facientis proportionatur distantiae quae est inter id quod
fit et oppositum ex quo fit. Quanto enim frigus est vehementius, et sic a calore magis distans, tanto
maiori virtute caloris opus est ut ex frigido fiat calidum. Non esse autem simpliciter, in infinitum
ab esse distat, quod ex hoc patet, quia a quolibet ente determinato plus distat non esse quam
quodlibet ens, quantumcumque ab alio ente distans invenitur; et ideo ex omnino non ente aliquid
facere non potest esse nisi potentiae infinitae” (ibid.) Este argumento é oferecido também no
primeiro “sed contra” do quarto artigo da terceira questão.
557
“ Secunda ratio est, quia hoc modo factum agitur quo faciens agit. Agens autem agit
secundum quod actu est; unde id solum se toto agit quod totum actu est, quod non est nisi actus
infiniti qui est actus primus; unde et rem agere secundum totam eius substantiam solius infinitae
virtutis est. ”. Argumento semelhante se encontra em: SCG I, 16.
558
QDP q. 1, a. 2, co.
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Da compositio secundum rem 252
o seu ser, possuindo em si e por si mesmo todo o ser, deve ser inteiramente ato e
não só em ato, assim como deve ser simples e infinita. Como nenhum ente finito
possui em si mesmo todo o ser, nem age segundo todo o seu ser (uma vez que
todo agente age na medida em que está em ato e o ente finito está em ato e em
potência, estando limitado às suas potencialidades), nenhum ente finito pode ser a
causa de todo o ser. Logo, produzir uma coisa em todo o seu ser é próprio
somente do que age segundo todo o seu ser, cuja potência é necessariamente
infinita.
Deve-se ressaltar, novamente, que Tomás não sustenta que Deus seja
infinito atualmente porque é necessário para esclarecer e justificar a criação. Ao
contrário, a demonstração da infinitude do ipsum esse independe da realidade da
criação. É a própria natureza do ato, considerado em absoluto, sem restrições, e
identificado com o ipsum esse, que exige a infinitude do ipsum esse subsistens.
Decorre da natureza da própria atualidade do ipsum esse subsistens que seja a
única causa do ser (causa essendi), do ente em absoluto (ens simpliciter). A
criação, portanto, só pode ser compreendida da parte do efeito (criação em sentido
passivo) à luz da atualidade do esse como actus essendi dos entes e da parte da
causa incausada (criação em sentido ativo) à luz da atualidade do ipsum esse
subsistens, que age totalmente por sua própria essência, por seu próprio ser (toto
se agit).
Uma vez analisado o que é a criação, em que medida a criação é “ex nihilo”,
qual é o seu terminus, o porquê de sua exclusiva atribuição a Deus e sua
conseqüente incomunicabilidade ao agente natural, Tomás considera a
universalidade da criação no quinto artigo, ou seja, se pode haver alguma coisa
que não seja criada por Deus, e, no sexto artigo, se o princípio da criação é um
somente. Como os argumentos propostos por Tomás no quinto e no sexto artigos
foram examinados no tópico referente aos argumentos resolutivos secundum rem,
é oportuno nos concentrarmos agora em relação às conseqüências da afirmação da
ação criadora divina para a compreensão da natureza do ser (esse) e da operação
(operatio) dos entes, o que Tomás desenvolve no sétimo artigo.
A questão proposta no sétimo artigo consiste em saber se Deus opera em
toda operação da criatura
559
. A solução desta questão exige compreender de que
559
Cf. In Sent., II, d. 1, q. 1, a. 4; SCG III, c. 67 ; STh I, q. 105, a. 5; Comp. Theol., c. 135.
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Da compositio secundum rem 253
modo a ação divina e a ação da criatura podem coexistir sem que a afirmação de
uma anule a outra, ou seja, de que modo Deus opera em tudo o que opera (Deus in
quolibet operante operatur) sem anular as causas segundas. Com efeito,
Maimônides (1135-1204) e Avicebron (ca. 1020-ca. 1059), cada qual ao seu
modo, sustentaram que a ação da causa primeira em tudo o que é tem como
corolário a ausência de atividade da parte das causas segundas. Em nenhuma outra
passagem do corpus thomisticum, Tomás analisa tão detalhadamente e critica com
mais propriedade as teses de Maimônides e Avicebron sobre a moção divina.
Deixando de lado, porém, a disputa de Tomás em relação a estes filósofos,
examinaremos os argumentos em favor da presença do agente primeiro na ação
das criaturas, a fim de ressaltar a prioridade da noção intensiva de esse e de sua
teoria da participação na resolução da questão proposta
560
.
Deve-se notar, observa Tomás, que de muitos modos se diz que uma coisa é
a causa da ação de outra. Dentre os diversos modos, Tomás seleciona quatro
sentidos através dos quais se evidencia em que medida uma coisa é a causa da
ação da outra. Em um primeiro sentido, porque a primeira dá a outra a capacidade
de agir (causalidade de fundação). Em um segundo sentido, porque a primeira
conserva a capacidade de agir da segunda (causalidade de conservação). Em um
terceiro sentido, porque a primeira move a segunda a agir (causalidade de
atuação). Em um quarto sentido, porque a primeira é a causa principal da ação da
segunda, que age como um instrumento (causalidade de aplicação).
Em relação ao primeiro sentido, é justo dizer que Deus age em todas as
ações das criaturas porque é a causa primeira da capacidade de agir das causas
segundas. Mas, Deus não age deste modo como o que simplesmente gera a
capacidade de outra coisa, mas também como aquele que conserva continuamente
a capacidade de agir das causas segundas no ser (continue tenens virtutem in
esse), pois Deus é a causa do próprio ser. Neste sentido, Deus é a causa da ação de
todos os entes, porque é a causa do ser e da conservação de todas as coisas no ser
(in quantum causat et conservat virtutem naturalem in esse)
561
. Eis o segundo
560
Para uma análise mais ampla do texto do De Potentia, confira : C. Fabro (1961, p. 397-
409).
561
“Uno modo quia tribuit ei virtutem operandi; sicut dicitur in IV Physic., quod generans
movet grave et leve, in quantum dat virtutem per quam consequitur talis motus: et hoc modo Deus
agit omnes actiones naturae, quia dedit rebus naturalibus virtutes per quas agere possunt, non
solum sicut generans virtutem tribuit gravi et levi, et eam ulterius non conservat, sed sicut continue
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Da compositio secundum rem 254
sentido em que uma coisa é a causa da ação da outra porque conserva a
capacidade de agir da segunda, que é atribuída a Deus porque conserva a ação e o
ser das criaturas.
Em relação ao terceiro sentido, o mesmo só pode ser atribuído a Deus se o
movimento for entendido em sentido lato e se o que move ou dá o movimento não
estiver em movimento. Neste sentido, não se designa a causa do ser ou da
conservação do ser e da capacidade de agir, mas sim a aplicação da capacidade à
ação (applicatio virtutis ad actionem), assim como o homem é a causa do
entalhamento da faca porque usa para talhar o corte ao manipulá-la. Neste sentido,
Deus é a causa da ação das coisas naturais enquanto dá a essas o movimento e
aplica a capacidade à ação, como um instrumento da primeira
562
.
Este terceiro sentido permite Tomás introduzir uma importante precisão
quanto à natureza instrumental das causas segundas em relação à causa primeira.
Assim como a ordem das causas corresponde à ordem dos efeitos em razão da
semelhança entre a causa e o efeito, assim também a causa segunda não tem poder
por si mesma sobre o efeito da causa primeira, embora seja instrumento da causa
primeira em relação ao efeito. De fato, toda coisa age enquanto está em ato, ou
seja, segundo o seu modo próprio de ser. Assim sendo, o instrumento é causa do
efeito da causa principal ao seu modo, mas jamais pela sua própria forma ou por
sua própria capacidade. Ora, o que age como instrumento da ação de outro age por
participação e não por essência, ou seja, as causas que agem pela moção da causa
primeira agem enquanto participam ao seu modo da ação da causa principal
563
.
tenens virtutem in esse, quia est causa virtutis collatae, non solum quantum ad fieri sicut generans,
sed etiam quantum ad esse, ut sic possit dici Deus causa actionis in quantum causat et conservat
virtutem naturalem in esse.” (QDP q. 3, a. 7, co.)
562
“Nam etiam alio modo conservans virtutem dicitur facere actionem, sicut dicitur quod
medicinae conservantes visum, faciunt videre. Sed quia nulla res per se ipsam movet vel agit nisi
sit movens non motum. Tertio modo dicitur una res esse causa actionis alterius in quantum movet
eam ad agendum; in quo non intelligitur collatio aut conservatio virtutis activae, sed applicatio
virtutis ad actionem; sicut homo est causa incisionis cultelli ex hoc ipso quod applicat acumen
cultelli ad incidendum movendo ipsum. Et quia natura inferior agens non agit nisi mota, eo quod
huiusmodi corpora inferiora sunt alterantia alterata; caelum autem est alterans non alteratum, et
tamen non est movens nisi motum, et hoc non cessat quousque perveniatur ad Deum: sequitur de
necessitate quod Deus sit causa actionis cuiuslibet rei naturalis ut movens et applicans virtutem ad
agendum” (ibid.)
563
“Sed ulterius invenimus, secundum ordinem causarum, esse ordinem effectuum, quod
necesse est propter similitudinem effectus et causae. Nec causa secunda potest in effectum causae
primae per virtutem propriam, quamvis sit instrumentum causae primae respectu illius effectus.
Instrumentum enim est causa quodammodo effectus principalis causae, non per formam vel
virtutem propriam, sed in quantum participat aliquid de virtute principalis causae per motum eius,
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Da compositio secundum rem 255
O terceiro sentido já introduz o aspecto determinante do quarto sentido
segundo o qual se diz que uma coisa é a causa da outra enquanto esta última age
como causa instrumental da primeira. Neste sentido, nos diz Tomás, deve-se
afirmar que Deus é a causa da ação de toda coisa natural. Com efeito, “quanto
mais elevada é uma causa, tanto mais é comum e eficaz, e quanto mais é eficaz,
mais profundamente penetra no efeito e o conduz ao ato a partir de uma potência
distante”
564
.
A reflexão de Tomás integra, de modo analógico, a causalidade e a
participação na ordem natural das coisas com a causalidade e a participação das
coisas no ipsum esse subsistens. A fim de esclarecer a diferença entre estas duas
ordens de causalidade e participação, de modo a precisar ainda mais o sentido da
ação divina nas criaturas, Tomás esclarece o significado da participação e da
causalidade nas coisas naturais (de ordem predicamental), contrastando, em
seguida, com o sentido de participação e de causalidade no ipsum esse (de ordem
transcendental). Tomás observa que as coisas naturais possuem quatro
características: 1) por serem entes possuem algo em comum com todos os entes, o
ato de ser; 2) por serem naturais caem sob o gênero dos entes naturais; 3) por
possuírem uma essência ou forma determinada pertencem a uma espécie que é
comum aos indivíduos da mesma espécie; 4) por possuírem acidentes pertencem
propriamente a um indivíduo particular
565
.
Assim sendo, todas as coisas naturais participam do que é comum a todos os
entes e a todos os entes naturais, de acordo com um modo específico de ser que é
comum a todos os indivíduos que participam de uma mesma forma ou essência.
Por essa razão, cada coisa natural é causa de um efeito proporcional ao seu modo
de ser enquanto indivíduo, enquanto pertencente à uma determinada espécie e
enquanto é um ente natural. Por essa mesma razão, cada indivíduo determinado
pode, pela sua própria ação, constituir um outro da mesma espécie na medida em
sicut dolabra non est causa rei artificiatae per formam vel virtutem propriam, sed per virtutem
artificis a quo movetur et eam quoquomodo participat.” (ibid.)
564
“ Unde quarto modo unum est causa actionis alterius, sicut principale agens est causa
actionis instrumenti; et hoc modo etiam oportet dicere, quod Deus est causa omnis actionis rei
naturalis. Quanto enim aliqua causa est altior, tanto est communior et efficacior, et quanto est
efficacior, tanto profundius ingreditur in effectum, et de remotiori potentia ipsum reducit in actum.
” (ibid.)
565
“In qualibet autem re naturali invenimus quod est ens et quod est res naturalis, et quod
est talis vel talis naturae. Quorum primum est commune omnibus entibus; secundum omnibus
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Da compositio secundum rem 256
que participa da natureza comum à espécie
566
. Nos entes naturais, portanto, a
participação no agir é uma conseqüência da participação em um certo modo
determinado e limitado de ser, em razão da essência.
Pela mesma razão que o indivíduo participa da espécie, a qual participa do
gênero, o qual participa da comum razão de ente (ratio entis commune), o
indivíduo não pode ser a causa universal do esse simpliciter, do ipsum esse,
porque é ente de um modo particular, determinado e limitado. Ora, “o próprio ser
[ipsum esse] é o efeito mais comum, primeiro e mais íntimo de qualquer outro
efeito”
567
. Mas, a universalidade de extensão do efeito deve corresponder à
universalidade da extensão da causa, ou melhor, uma vez que o esse é
absolutamente primeiro, universal e comum, sua causa própria e adequada não
pode ser senão um único agente primeiro, universal e comum, princípio de todo
ser por sua própria essência (totius esse principium et secundum se totum). A
universalidade do esse excede a todo e qualquer ato, perfeição ou modo de ser dos
entes que não são o seu próprio ser e, conseqüentemente, só pode ser causada por
Deus, único ser que é o seu próprio ser. O esse participado é o terminus próprio da
causalidade divina que constitui o ente finito como um todo em seu ser e em seu
agir.
Como mostra C. Fabro (1961, p. 397, n. 82), o exame deste trecho do De
Potentia, em particular, revela a pertença da causalidade ao esse e a
interpenetração da causalidade transcendental e da predicamental. O De Potentia
desenvolve a analogia entre a causalidade transcendental e a predicamental a
partir da causalidade instrumental. A causalidade transcendental é o fundamento
de toda e qualquer causalidade predicamental na medida em que se instaura como
comunicadora do próprio ser (ipsum esse), que é comum a todas as coisas e
rebus naturalibus; tertium in una specie; et quartum, si addamus accidentia, est proprium huic
individuo.” (ibid.)
566
“Hoc ergo individuum agendo non potest constituere aliud in simili specie nisi prout est
instrumentum illius causae, quae respicit totam speciem et ulterius totum esse naturae inferioris. Et
propter hoc nihil agit ad speciem in istis inferioribus nisi per virtutem corporis caelestis, nec
aliquid agit ad esse nisi per virtutem Dei.” (ibid.)
567
“ Ipsum enim esse est communissimus effectus primus et intimior omnibus aliis
effectibus” (ibid.). “ Horum tamen causa etiam Deus est, magis intime in eis operans quam aliae
causae moventes: quia ipse est dans esse rebus. Causae autem aliae sunt quasi determinantes illud
esse. Nullius enim rei totum esse ab aliqua creatura principium sumit, cum materia a Deo solum
sit; esse autem est magis intimum cuilibet rei quam ea per quae esse determinatur; unde et
remanet, illis remotis, ut in libro de causis dicitur. Unde operatio creatoris magis pertingit ad
intima rei quam operatio causarum secundarum” (In Sent., II, d. 1, q. 1, a. 4, co. ; grifo nosso).
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Da compositio secundum rem 257
pressuposto irredutível de tudo o que é. A emergência do esse nos entes não pode
ser concebida senão como criada pela causa total do esse simpliciter, a mesma que
conserva o ente no seu ser e a sua ação no seu agir.
O desenvolvimento da solução mostra que a compenetração da causalidade
divina na causalidade dos entes criados ocorre a partir do que há de mais íntimo
na ação e no ser de toda criatura, o seu actus essendi. Se os entes particulares são
causas imediatas de sua própria ação, isto não exclui, mas, ao contrário, supõe a
ação da causa universal do ser de todas as coisas. Assim sendo, Deus é a causa
total e exclusiva do ser, mas não é a causa exclusiva da ação das criaturas, embora
seja causa total das mesmas enquanto participam da ação divina.
Ao longo deste capítulo, procuramos mostrar que os argumentos relativos à
criação divina estruturam-se no plano da via de causalidade. Mas, como a via
causalitatis, em Tomás, não é única, mas se desdobra em dois momentos
complementares, nem é exclusiva, mas se amplia graças à via de remoção e à via
de eminência, o exame da terceira questão do De Potentia conduziu-nos à análise
de seus argumentos como relativos ora à via resolutionis, ora à via compositionis,
sem olvidar as conquistas da via de remoção e de eminência acerca da natureza de
Deus.
Vimos que a razão básica para que o ato de ser (actus essendi) não possa ser
o resultado de um processo, não possa ser produzido por meio de um tipo de
mudança, nem encontre sua causa no próprio ente, se deve ao fato de que tal ato é
absolutamente primeiro, irredutível e universal na ordem do ser. Pressuposto por
toda realidade, atualidade ou perfeição, o esse não pressupõe nada. Uma vez que o
esse é absolutamente primeiro, universal e comum, sua causa própria e adequada
não pode ser senão um agente primeiro, universal e comum
568
. Em outros termos,
uma vez que o esse é ilimitado na ordem do ser
569
, a causalidade cujo termo é o
esse em absoluto deve ser adequada a esta ordem. Do contrário, seria uma
causalidade particular, limitada a um certo modo ou determinação do ser.
Invertendo a ordem da argumentação resolutiva (secundum rem), ou seja,
procedendo de modo compositivo (secundum rem) é lícito afirmar que é
568
“Inter omnes effectus, universalium est ipsum esse. Unde oportet quod sit proprius
effectus primae et universalissimae causae, quae est Deus.” (STh I, q. 45, a. 5). Cf. SCG II, 16.
569
“(…) ipsum esse, absolute consideratum, infinitum est. Nam ab inifinitis et modis
infinitis participari possibile est” (SCG I, 43). Cf. J. De Finance (1961, p. 60s).
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Da compositio secundum rem 258
impossível que o agente natural seja a causa do esse simpliciter, pois o mesmo
não é ato puro, não age com todo o seu ser, nem possui uma potência infinita para
do nada produzir o esse simpliciter
570
. Em suma, somente o ser que é
maximamente ser, que age por sua própria essência que é idêntica ao seu ser
possui a potência ativa infinita de ser causa do ser em absoluto, de agir na ação de
seu efeito, de conservá-lo no ser e no agir, de aplicá-lo à ação e à consecução de
sua finalidade, agindo imediatamente na atividade de tudo o que é enquanto tal
571
.
Se ainda restasse alguma dúvida quanto à natureza compositiva de certos
argumentos metafísicos, bastaria assinalar as seguintes palavras de Tomás, em sua
resposta à primeira objeção do quinto artigo da terceira questão do De Potentia, a
respeito da necessidade de deduzir o esse que é intrínseco a todos os entes do ser
divino como da sua causa própria: “(...) o ser [esse] que é intrínseco [inest] à coisa
criada não pode ser concebido senão enquanto deduzido [deductum] do ser divino
como o efeito próprio não pode ser concebido senão enquanto deduzido
[deductus] da causa própria”
572
.
570
“(...) quod nulla est maior potentia quam potentia creandi: nec oportet quod potentia
creantis ad hoc se extendat quod alicui creaturae potentiam creandi communicet, eo quod creaturae
communicabilis nullo modo est. Quod enim aliquid fieri non possit, non solum provenit ex
defectum potentiae facientis, sed quandoque ex ipsa factione rei, quae fieri non potest; sicut Deus
non potest facere Deum, non propter defectum suae potentiae, sed quia Deus a nullo fieri potest; et
similiter potentia creandi finita esse non potest, nec creaturae communicari, cum sit infinita.”
(QDP q. 3, a. 4, ad 15)
571
“ Et ideo potest dici quod Deus in qualibet re operatur in quantum eius virtute quaelibet
res indiget ad agendum: non autem potest proprie dici quod caelum semper agat in corpore
elementari, licet eius virtute corpus elementare agat. Sic ergo Deus est causa actionis cuiuslibet in
quantum dat virtutem agendi, et in quantum conservat eam, et in quantum applicat actioni, et in
quantum eius virtute omnis alia virtus agit. Et cum coniunxerimus his, quod Deus sit sua virtus, et
quod sit intra rem quamlibet non sicut pars essentiae, sed sicut tenens rem in esse, sequetur quod
ipse in quolibet operante immediate operetur, non exclusa operatione voluntatis et naturae.” (QDP
q. 3, a. 7, co.)
572
“Ad primum ergo dicendum, quod licet causa prima, quae Deus est, non intret essentiam
rerum creatarum; tamen esse, quod rebus creatis inest, non potest intelligi nisi ut deductum ab esse
divino; sicut nec proprius effectus potest intelligi nisi ut deductus a causa propria.” (QDP q. 3, a. 5,
ad 1)
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6
Conclusão
O núcleo teórico original do De Potentia é o ser (esse) concebido como “ato
de todos os atos e perfeição de todas as perfeições”. O tema filosófico capital da
obra é a dedução do ser (esse) a partir da potência divina, fazendo coincidir
efetivamente o seu ponto de partida com seu ponto de chegada. O termo a quo é a
potência ativa do próprio ser subsistente (ipsum esse subsistens), no qual o ser e o
agir identificam-se plenamente. O termo ad aquem é o ser (esse) como ato
participado aos entes (esse ut actus essendi), como ato que funda intrinsecamente
a subsistência e a ação autônoma dos entes criados, ao mesmo tempo em que
esclarece a natureza da causalidade e da participação do ser e da ação das criaturas
no ser e na ação do Criador.
O itinerário metafísico que evidencia esta coincidência é, não obstante,
inverso à ordem de apresentação das questões do De Potentia. Com efeito, as
questões do De Potentia seguem uma ordenação mais apropriada ao ensino, em
conformidade com a própria natureza das questões disputadas. Por isso, a dedução
do esse como efeito próprio do ipsum esse subsistens é posterior à demonstração
da existência e da natureza da própria potência divina, que ordena o conjunto da
obra. Se a ordem de resolução filosófica procede por via inversa à ordem de
exposição do De Potentia, então o itinerário metafísico de seu autor não pode ser
refeito senão mediante uma compreensão das relações existentes entre a via de
resolução (via resolutionis) e a via de composição (via compositionis) e entre
estas duas e a triplex via do conhecimento de Deus (via causalitatis, via
remotionis e via eminentiae).
A fim de compreender a dimensão verdadeiramente metafísica da via de
resolução e da via de composição, investigamos as ocorrências dos termos
resolutio e compositio no corpus thomisticum, destacando os seus múltiplos
significados e suas diversas aplicações teóricas. Uma vez circunscrito o
significado verdadeiramente metafísico da resolutio e da compositio para o
Aquinate, tornou-se possível a análise das questões e dos argumentos do De
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Conclusão
260
Potentia, organizados a partir e em conformidade com estas mesmas vias. Deste
modo, compreendemos a utilização da via resolutiva como via de fundação de
todas as perfeições do ente no próprio ser (ipsum esse), quer estas perfeições
sejam concebidas de modo constitutivo (ordem predicamental de composição)
quer de modo dinâmico (ordem de causalidade e participação).
A resolução dos entes no ipsum esse pode ser compreendida como a
fundação dos entes no actus essendi, princípio intrínseco e irredutível, termo da
via de resolução secundum rationem, ou ainda como a fundação dos entes no
ipsum esse subsistens, causa extrínseca eficiente de tudo o que é, termo da via de
resolução secundum rem. O ipsum esse revelou-se, portanto, como o mediador por
excelência entre os dois momentos constitutivos da via de resolução pelas causas
intrínsecas e pelas causas extrínsecas. Com efeito, o termo último da resolução
pelas causas intrínsecas é a imanência do ser nos entes (esse ut actus essendi),
enquanto o termo último da resolução pelas causas extrínsecas é a transcendência
absoluta do ser subsistente por si mesmo (ipsum esse subsistens).
O ipsum esse não poderia ser o mediador entre a via de resolução pelas
causas intrínsecas (via resolutionis secundum rationem) e a via de resolução pelas
causas extrínsecas (via resolutionis secundum rem) se tudo o que é não fosse
justamente potentia essendi em relação ao actus essendi. É a realidade intrínseca
da dýnamis (potência passiva), descoberta originária da metafísica aristotélica, que
permite a resolução dos atos segundos nos atos primeiros e, destes, no ato de
todos os atos, no actus essendi. Mas, é a via de resolução pelas causas intrínsecas
de todos os atos e de todas as perfeições no actus essendi que eleva a dýnamis
aristotélica a potentia essendi.
A via de resolução pelas causas intrínsecas é exemplar por não se deter em
nenhuma outra perfeição metafísica do ente (ens) senão no ser (esse). É exemplar
também por não se exaurir em si mesma, mas exigir do filósofo um esforço
ulterior para, em sede racional e de modo gradativo, encontrar a causa extrínseca
dos entes enquanto tais. Esse princípio extrínseco lhe é acessível por uma
resolução especial, a via resolutionis secundum rem, capaz de assumir as
aquisições filosóficas anteriores em nova perspectiva. Nesta, o ser (esse) dos entes
não deve ser considerado como termo último, mas sim como ponto de partida da
ascensão filosófica à causa primeiríssima e universalíssima do ser, efeito
primeiríssimo e comuníssimo em todos os entes (primum effectus est ipsum esse).
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Conclusão
261
Para a investigação metafísica, o ser (esse) sempre será a concretização da
busca dos princípios e causas do ente enquanto tal, revestindo-se de um caráter
paradigmático e regulativo para as demais vias filosóficas. A resolução metafísica
de todos os atos e de todas as perfeições dos entes no ser (esse) não é, portanto,
mais uma alternativa metodológica, dentre as inúmeras já propostas pelos
filósofos, mas constitui, face à prioridade absoluta do ser (esse), a via por
excelência da própria filosofia, que não pode renunciar a ser primeira como
primeiro é seu objeto formal.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 278
Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica
A prioridade da análise (
ajnavlusi"
) como método de investigação filosófica
é uma descoberta autenticamente aristotélica
1
. Ainda que se possa aproximar a
origem da análise da dialética platônica e mais especificamente do método
platônico da divisão (
diaivresi"
), Platão jamais utilizou o termo
ajnavlusi"
em
suas obras
2
. O absoluto silêncio do suposto inventor da análise quanto ao
significado e à natureza deste método filosófico contrasta com a relevância da
ανάλυσις em Aristóteles que, em sua obra, se refere por volta de quarenta vezes a
este termo e seus cognatos.
Se não existe consenso em torno da origem do método filosófico de análise,
há, porém, acordo no que diz respeito à influência do método matemático de
análise dos antigos geômetras tanto em Platão quanto em Aristóteles. Todavia, há
novamente significativo desacordo quanto à natureza da análise geométrica entre
os gregos e quanto ao modo como esta efetivamente influenciou Platão e
Aristóteles
3
. Afinal, a literatura contemporânea reconhece ora a forma dedutiva
ora a não-dedutiva da análise geométrica anterior a Platão
4
.
1
A nossa principal referência sobre a natureza, a extensão e a finalidade da análise como
método filosófico e científico em Aristóteles consiste na ampla e minuciosa obra de Patrick Byrne,
Analysis and Science in Aristotle (1997). Devemos a esta obra igualmente as referências às
inúmeras ocorrências do termo “análise” no corpus aristotelicum.
2
Além da obra do geômetra Pappus, a discussão da matemática nos livros seis e sete da
República, em que Platão contrasta o método dos geômetras ao do dialético é a fonte principal
destas discussões. Platão descreve o método dos geômetras como procedendo “para baixo”, ou
seja, como partindo de hipóteses aceitas como dadas para deduzir conclusões. Em contraste, o
método dialético procede “para cima”, partindo das hipóteses para os princípios inteligíveis
necessários por si, isentos de caráter hipotético (República, 510A-511C). A explícita identificação
entre dialética e análise ocorre somente no Tratado das Enéadas (I, 3, 4) de Plotino, que a concebe
como uma das partes da dialética, essencialmente posterior ao método platônico da divisão. O
neoplatonimso é o responsável pelo elo histórico e doutrinal entre a análise e a dialética; elo do
qual emergem as estruturas do pensamento medieval.
3
Para uma síntese das várias interpretações sobre o significado geométrico de análise e sua
possível influência em Platão e Aristóteles, confira: BYRNE, P. Analysis and Science in Aristotle.
N.Y.: State University of New York Press, 1997, p. 3-9.
4
Dentre os que defendem o caráter não-dedutivo da análise geométrica entre os gregos
antes de Platão e estendem este significado ao próprio Platão, encontra-se F.M. Cornford (1932)
que entende a análise como procedendo por passos “intuitivos” na busca dos antecedentes das
conclusões. Em oposição a Cornford, Richard Robson (1936) e Michael Mohaney (1968)
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 279
Para os fins imediatos deste trabalho, é suficiente esclarecer os significados
de análise em Aristóteles uma vez que é este, e não Platão, quem mais poderia ter
influenciado o modo como o próprio Tomás de Aquino entendeu a análise como
método filosófico. Ainda que Aristóteles se refira às investigações que atualmente
são conhecidas sob os títulos de Primeiros Analíticos e Segundos Analíticos como
“os Analíticos” (
tav Analutikav
)
5
, o mesmo jamais esclareceu a razão deste título,
graças à qual explicar-se-ia a natureza “analítica” dos diversos tópicos tratados ao
longo desta que parece ter sido inicialmente uma única obra. Qualquer apreciação
sobre o(s) significado(s) filosófico de
ajnavlusi"
para Aristóteles exige um olhar
atento à função que este termo exerce no corpus aristotelicum como um todo e,
mais especificamente, em “os Analíticos”.
De acordo com Patrick Byrne (1997, p. 1-3), há uma diversidade de sentidos
para os termos “ajnavlusi"” e “ajnavluein” no corpus aristotelicum, o que pode ser
evidenciado pelas passagens em que tais termos bem como seus cognatos
aparecem vinculados com (1) a decomposição, divisão ou dissolução física
6
, (2)
com as definições ou fórmulas
7
, (3) com as figuras e as demonstrações
geométricas
8
e (4) com a análise lógica dos argumentos
9
.
Em relação ao primeiro significado de análise como decomposição e/ou
divisão física, é oportuno destacar que, mesmo aqui, o aspecto formal da análise é
o que guia a reflexão do Estagirita. Com efeito, a teoria da aristotélica da análise
defendem que os passos da análise geométrica são deduções a partir da conclusão. Norman Gulley
(1958), por seu turno, acredita que existem dois tipos de análise na geometria grega
correspondentes cada qual à análise não-dedutiva (F.M. Cornford) e à análise dedutiva (Robson e
Mohaney).
5
ARISTÓTELES. Tópicos, VIII, 11, 162a11; VIII, 13, 162b32; Refutações Sofísticas, 2,
165b9; Metafísica, IV, 3, 1005b2-5; VII, 12, 1037b8; Sobre a Interpretação, 10, 19b31; Ética a
Nicômaco, VI, 3, 1139b27-32. Cf. BYRNE, P. ibid., p. xiii.
6
ARISTÓTELES. Meteorológicos, I, 3, 339a36-b2; Tratado sobre o Céu, I, 3, 270a22-23;
Tratado sobre o cosmo, 4, 394b17-18; Sobre a geração dos animais, I, 18, 724b27-28. Eileen
Sweeney (1994, p. 209) acrescenta como fontes do significado de análise como divisão as
seguintes passagens: Metafísica VII, 3, 1029a10-15 e VIII, 4, 1044a22-25. No primeiro caso,
Aristóteles considera a ação de excluir ou retirar (αφαιροµένου) as determinações formais e
qualitativas do ente até que se chegue à matéria. No segundo, se refere à dissolução (αναλυθεντος)
dos compostos materiais em seus constituintes elementares. Nestes casos, Aristóteles está, na
verdade, rejeitando a mera divisão ou decomposição física como via filosófica para a descoberta
do princípio primeiro das coisas.
7
ARISTÓTELES. Tratado sobre o Céu, III, 1, 300a7-12; Sobre a geração e a corrupção,
II, 1, 329a23; Metafísica, V, 28, 1024b5-16.
8
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, III, 3, 1112b12-24; Refutações Sofísticas, 16,
175a21-31.
9
ARISTÓTELES. Primeiros Analíticos, I, 32, 47a4; I, 42, 50a5-10; I, 44, 50a30, 50b3; I,
45, 50b30, 51a2, 51a18-b4.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 280
no âmbito da física se funda no hilemorfismo, ou seja, na composição de matéria e
forma própria das substâncias materiais. A teoria do hilemorfismo depende, por
sua vez, da composição dos princípios metafísicos por excelência que são,
segundo o Estagirita, o ato e a potência, que se realizam de modo diverso nos
entes.
Sob este horizonte de relevância metafísica, Aristóteles considera que todas
as coisas compostas que são em potência outra coisa podem ser analisadas em um
substrato comum. Afinal, o fogo, o ar, a água e a terra vêm a ser um a partir do
outro e que cada um deles existe potencialmente em outro. É a realidade potencial
dos elementos que compõem os entes sensíveis que guia o filósofo na busca de
uma resolução formal dos elementos primordiais em um substrato comum e
último. Assim, todas as coisas que são em potência outra coisa podem ser
analisadas no sentido de resolvidas (
ajnavluontai
) em um substrato comum e
último, que é a matéria-prima, cuja existência não é separada dos próprios entes
materiais
10
.
É claro que a análise dos entes sensíveis em seus elementos constitutivos
(fogo, terra, ar, água) não é o mesmo que a análise destes últimos na matéria-
prima. No primeiro caso, temos a análise como decomposição, divisão ou
dissolução física-material, enquanto no segundo temos a análise propriamente
formal, objeto da física, que é a ciência daquelas coisas que não são separadas
(
cwristav
), nem são consideradas como separáveis (
mh dh cwristav
) da
matéria
11
.
A análise, neste último caso, não resulta de uma divisão material do fogo, da
terra, do ar e da água pela qual se separaria uma substância material comum e
mais fundamental dos elementos analisados. A razão da impossibilidade de se
tratar a análise dos elementos em um substrato comum como uma divisão que
resultaria em uma separação real entre duas coisas consiste em que a matéria-
prima não é uma coisa ou um ente, nem tampouco um elemento físico do
composto material, mas sim um princípio dos entes corpóreos.
Enquanto elementos materiais cujo substrato próximo é diferente, o fogo, a
terra, o ar e a água não podem ser analisados (separados) em algo comum. Mas,
10
ARISTÓTELES. Meteorológicos, I, 3, 339a36-b2.
11
ARISTÓTELES. Metafísica, VI, 1, 1025b 1- 1026a 32.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 281
enquanto são elementos potenciais uns dos outros, em sentido metafísico, seu
substrato último necessariamente há de ser comum. Por isso, há de se ter em conta
que a diversidade dos substratos próximos e a irredutibilidade física-material que
daí decorre não se opõem à análise formal dos elementos potenciais, que são
“analisáveis” ou redutíveis (αναλύεται) a algo comum, ou seja, à matéria-prima.
Em suma, para Aristóteles, diversamente dos naturalistas pré-socráticos, não
é a análise como divisão ou decomposição física que permite ao filósofo encontrar
o princípio do que é material enquanto tal. Com efeito, deve-se distinguir entre a
possibilidade da análise enquanto redução física dos elementos constituintes dos
entes materiais (terra, fogo, ar e água) em uma substância física comum (o que é
expressamente negado por Aristóteles em razão da diversidade do substrato
próximo) e a possibilidade de análise como resolução destes elementos em um
princípio e um substrato metafísico comum.
Doravante, denominaremos de “análise holológica”
12
aquela que expressa a
simples divisão de um todo em suas partes, quer as partes integrem materialmente
o todo, quer não
13
; enquanto reservaremos a expressão “análise etiológica” para a
busca metafísica dos princípios ou causas dos entes, quer estas sejam intrínsecas
(material e formal), quer extrínsecas (eficiente e final). Esta distinção entre a
análise holológica e a análise etiológica evita a identificação da busca das partes
que compõem um todo qualquer com a busca metafísica das causas ou princípios
que o constituem.
Não obstante, a análise etiológica não se opõe senão metodologicamente à
análise holológica, pois a divisão resultante desta última importa em uma
distinção metafísica dos conceitos que se referem às partes metafísicas e não
físicas do ente, tais como o conceito de matéria e forma, substância e acidente.
Esses designam o termo da análise etiológica do movimento acidental (local,
qualitativo e quantitativo) e da mudança substancial (geração e corrupção). Assim
sendo, há complementaridade na transição da potencialidade dos elementos
12
Esta expressão é sugerida por L. Palacios (1962, p. 118-121).
13
Entendemos por partes integrantes aquelas partes que possuem a mesma natureza do todo
e que podem subsistir independentemente do mesmo por simples divisão. Por outro lado,
entendemos por partes essenciais aquelas partes que são essencialmente partes, ou seja, que não
são da mesma natureza que o todo e que não podem subsistir por si mesmas fora do todo. As
primeiras são as partes materiais, submetidas à quantidade. As partes essencialmente partes são os
princípios metafísicos dos entes, tais como o ato e a potência, a matéria e a forma, a substância e
os acidentes, que jamais podem subsistir enquanto tais fora do ente.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 282
constituintes dos entes sensíveis à potencialidade metafísica da matéria primeira,
ou melhor, da análise holológica à análise etiológica. Dito de outro modo, nem
toda análise holológica constitui-se como mera divisão material de um todo em
suas partes integrantes na medida em que pode haver uma divisão formalmente
compreendida, em que as partes do todo não o integram materialmente, mas o
constituem como princípios essenciais do todo e são conhecidas de modo abstrato.
A descoberta da potência como realidade metafísica dos entes materiais é o
que guia o pensamento de Aristóteles para além da redução física dos entes
sensíveis aos seus elementos constituintes materiais
14
. O significado comum e
imediato de potência consiste na capacidade de realizar uma ação,
fenomenologicamente corroborada pela atividade e pelo movimento em geral dos
entes sensíveis. A originalidade filosófica de Aristóteles em relação à realidade da
potência foi, sem dúvida, sua determinação metafísica como capacidade receptiva
do ato, ou seja, como princípio intrinsecamente passivo dos entes corpóreos
15
.
Somente à luz deste significado metafísico de potência torna-se
compreensível a relevância filosófica da análise holológica e etiológica na
determinação dos princípios constitutivos do ente enquanto tal. Com efeito, o que
não tem a potência de ser dividido não pode estar sujeito à análise holológica. De
modo semelhante, aquilo que não possui a potência de ser causado por outro não
pode estar sujeito à análise etiológica. Em suma, a condição de possibilidade da
análise holológica do todo em suas partes e da análise etiológica do efeito na
causa é sempre o princípio metafísico da potência.
Mas, como a potência se estende a todas as categorias e assume tantos
significados quantas são as categorias, pois há um modo de ser em potência
segundo a substância, outro segundo a qualidade, outro segundo a quantidade, e
assim sucessivamente, a análise metafísica não se esgota num único significado de
potência
16
. Em todo caso, o modo de ser que não é o ato, mas é a capacidade de
ser em ato é o fundamento metafísico de qualquer análise, seja como a divisão do
14
Para uma outra interpretação da análise como decomposição em Aristóteles, confira
Patrick Byrne (1997, p. 11). Concordamos com este autor no que diz respeito ao aspecto não-
reducionista da noção aristotélica de análise como decomposição. Todavia, acrescentamos que a
diferença substancial da perspectiva aristotélica sobre a análise física consiste justamente em sua
noção metafísica de potência, ausente da explicação sugerida pelo autor.
15
ARISTÓTELES. Metafísica. IX, 7-9; XI, 9, 1065b 9-16.
16
ARISTÓTELES. Metafísica. IX, 3, 1047a 20-24; 10, 1051a 34-b1; XI, 9, 1065b 5-7.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 283
todo em suas partes (análise holológica), seja como a busca das causas a partir dos
efeitos (análise etiológica).
A possibilidade da análise holológica é abordada novamente por Aristóteles
no contexto da Metafísica, não mais sob a égide da divisão física ou material, mas
sim sob o aspecto da divisão dos conceitos, mais especificamente dos gêneros e
das espécies. É neste novo contexto que se esclarece o significado da análise
lógica das “coisas diversas pelo gênero”, vinculada à questão da possibilidade de
transição do que é diverso ao que é comum.
A transição lógica do que é diverso ao que é comum, nos diz o Estagirita, só
é possível se as coisas relacionadas entre si não são “diversas pelo gênero”. É
justamente a partir da compreensão do significado de uma coisa enquanto diversa
ou não de outra pelo gênero que se esclarece a possibilidade ou não da análise
lógica. Mas, a análise pelo gênero é, na verdade, a análise pela definição da coisa,
através da qual se expressa sua essência ou o que a mesma é (τω τι εστι).
De fato, a análise conceitual ou intelectual dos gêneros ou das definições almeja
em última instância estabelecer o que há realmente de comum e realmente de
diverso nas próprias coisas. Assim sendo, a análise lógica tem como finalidade a
análise metafísica, única que pode realmente determinar o que há de realmente
comum e realmente diverso nos entes enquanto tais.
A fim de esclarecer este procedimento de análise lógica e metafísica é
mister compreender o que Aristóteles entende por “coisas diversas pelo gênero”.
Em seguida, deveremos precisar quando uma coisa é ou não analisável em outra, o
que nos conduzirá à análise redutiva dos gêneros subalternos aos gêneros
supremos e a impossibilidade de analisar estes últimos num gênero supra-
categorial
17
. Após explicar os quatro sentidos segundo os quais o termo “gênero”
é utilizado, mais especificamente após definir o quarto sentido relativo à definição
pela essência da coisa, Aristóteles explica o que são as coisas diversas pelo gênero
do seguinte modo:
17
Veremos que, na escolástica medieval, surge um procedimento análogo ao realizado por
Aristóteles para a análise dos gêneros subalternos nos gêneros supremos. Tal procedimento
consiste na resolução dos conceitos universais nos transcendentais (“ens, verum, unum,
bonum, res”), que não são gêneros, mas conceitos supra-categoriais e comuníssimos
(communissima).
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 284
Além disso, gênero significa o constitutivo primeiro das definições, contido na
essência: esse é o gênero do qual as qualidades são diferenças. (...) Diversas pelo
gênero se dizem (a) as coisas das quais o substrato próximo é diverso e que não se
podem reduzir [αναλύεται] uma à outra nem ambas a uma terceira que lhes seja
comum (a forma e a matéria, por exemplo, são diversas pelo gênero); (b) todas as
coisas que pertencem a diversas figuras de categorias do ente
18
[του οντος] (...);
também essas não se reduzem [αναλύεται] umas às outras nem todas a algo único.
19
De acordo com o quarto sentido, “gênero” significa o elemento primário
dado numa definição, o qual é predicado essencialmente e cujas diferenças são
suas qualidades. É esse o sentido em que na definição de “homem”, por exemplo,
“animal” é dado primeiro como expressão de um elemento primário de sua
definição, predicado essencialmente. Ora, “racional” é predicado como diferença
específica, ou seja, como uma certa qualidade substancial ou essencial da
definição de “homem”, pois o gênero está para a diferença como o substrato está
para a qualidade, a matéria está para a forma. Em razão desta analogia de
proporcionalidade, Aristóteles entende que o gênero é, de certo modo, como uma
matéria.
Após determinar o quarto sentido de “gênero”, Aristóteles explica os
diferentes sentidos nos quais as coisas são ditas diversas em gênero. O primeiro
consiste em que as coisas diversas pelo gênero são aquelas que possuem um
substrato próximo diverso e que não podem ser resolvidas (
analuvetai
) umas nas
outras. O segundo consiste na diversidade genérica das categorias do ente que
também não são redutíveis (
analuvetai
) entre si, nem em relação a uma outra
coisa. Esta última poder-se-ia denominar de diversidade de gênero supremo,
enquanto a primeira seria a diversidade de gênero subalterno
20
.
A impossibilidade de resolver ou reduzir coisas genericamente diferentes
entre si ou em alguma outra coisa reside na própria realidade das coisas, ou
melhor, no que elas são. Afinal, o gênero significa o que a coisa é de acordo com
a essência da própria coisa. Nesta perspectiva realista, as definições ou as
fórmulas que expressam as definições revelam em que medida as coisas são ou
18
Na tradução de G. Reale da Metafísica de Aristóteles, o termo “ον” é traduzido por “ser”
e não por “ente”. A fim de manter a distinção entre o ser enquanto verbo no infinitivo e seu
particípio presente, optamos por substituir o termo “ser”, da tradução original, por “ente” todas as
vezes em que o termo “ser” pretende expressar o particípio presente do verbo grego “ειναι”.
19
Metafísica V, 28, 1024b5-16.
20
Isto é sugerido por G. Reale em seu comentário à passagem supra citada (REALE, G.
Metafísica de Aristóteles. vol. III, n. 11, p. 294).
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 285
não diversas pelo gênero, ou seja, em que medida as coisas são ou não diversas
pela essência
21
.
A exegese de Tomás de Aquino a respeito deste trecho da Metafísica nos é
de grande auxílio neste momento. Tomás assume como exemplo a cor e o sabor
que são diversos pelo gênero-substrato segundo o primeiro critério. Com efeito, a
cor e o sabor possuem uma matéria ou substrato próximo diverso que os torna
irredutíveis fisicamente (a superfície seria o substrato da cor, enquanto o líquido
seria o substrato próximo do sabor)
22
. Entretanto, deve-se acrescentar ao
comentário de Tomás que, uma vez considerados genericamente enquanto
pertencentes à categoria da qualidade e não mais como pertencentes à uma
matéria ou substrato próximo diverso, a cor e o sabor não são diversos pelo
gênero-categorial. Embora não sejam redutíveis entre si fisicamente em razão da
matéria ou substrato próximo, a cor e o sabor são “analisáveis” ou redutíveis
genericamente em relação à categoria da qualidade. Por isso, diz-se que uma coisa
é redutível (
analuvetai
) a outra quando uma está inclusa na outra (mesmo que
potencialmente quanto à matéria, o que não ocorre no caso em questão) ou ambas
podem ser incluídas em uma terceira (na categoria ou gênero da qualidade, o que
ocorre no caso em questão).
O mesmo vale para o exemplo da matéria e da forma utilizado por
Aristóteles para esclarecer o primeiro critério de distinção entre as coisas
genericamente diversas. A matéria enquanto substrato potencial indiferenciado e a
forma enquanto substrato atual diferenciante são diversos pelo gênero no primeiro
sentido uma vez que é da própria definição da matéria e da forma o não possuírem
nada em comum (quod nihil est commune utrique
23
). Contudo, deve-se novamente
acrescentar à exegese de Tomás de Aquino que, sendo a matéria e a forma partes e
princípios da substância, os mesmos pertencem ao gênero categorial da
substância. Nesta acepção, portanto, a matéria e a forma não são genericamente
diversas no segundo sentido proposto por Aristóteles, sendo assim “analisáveis”
ou redutíveis a uma outra “coisa”, ou melhor, ao gênero-categorial da substância.
21
“A definição da essência de uma coisa é só a que exprime a coisa sem incluí-la na própria
definição. Portanto, se alguém dissesse que a essência da superfície branca é a essência da
superfície lisa estaria dizendo que a essência do branco e a essência do liso são uma só e a mesma
coisa” (Metafísica, VII, 4, 1029b19-22).
22
In Met., V, lec. 22, n.1124-1127.
23
Id. Ibidem. n. 1125.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 286
Em outros termos, a matéria e a forma estão inclusas genericamente na categoria
da substância, mas as categorias do ente (substância, qualidade, ação, tempo, etc.)
não estão inclusas em um gênero-comum superior a todas as categorias e,
portanto, são absolutamente irredutíveis
24
.
Se é claro que, para Aristóteles, as coisas que não são diversas em gênero
são “analisáveis” ou redutíveis entre si ou em relação a uma terceira coisa, resta
especificar ainda qual a natureza desta resolução. A distinção entre o duplo
sentido em que algo é dito diverso em gênero permite entrever que há igualmente
em Aristóteles uma duplicidade de sentidos em relação ao significado do termo
analuvetai
. O primeiro sentido é claramente material ou físico (análise holológica
por divisão do todo integral em suas partes integrantes), enquanto o segundo
permanece no âmbito conceitual ou lógico (análise holológica por divisão ou
redução conceitual).
De acordo com o primeiro sentido em que algo é dito diverso em gênero,
Aristóteles é categórico em afirmar a impossibilidade de uma análise holológica
por mera divisão material do todo integral em seu substrato próximo. No que diz
respeito ao segundo sentido em que algo é dito diverso em gênero, a
impossibilidade de uma resolução conceitual é restrita às categorias ou gêneros
supremos do ente que são irredutíveis a um gênero superior comum. Assim sendo,
nada obsta que as coisas diversas em gênero no primeiro sentido (gênero-substrato
ou gênero subalterno) não sejam diversas em gênero no segundo sentido (gênero-
categorial ou gênero supremo), pois são inclusas por análise ou resolução em uma
categoria comum (p. ex., o sabor e a cor são redutíveis à categoria da qualidade).
Esta última possibilidade de análise é considerada pelo lógico e pelo metafísico,
enquanto a primeira é considerada pelo filósofo da natureza ou físico
25
.
24
Daqui se pode demonstrar que a divisão do ente nas categorias ou gêneros supremos não
implica que o mesmo seja um gênero supra-categorial uma vez que é impossível reduzir as
categorias ou modos originários de ser do ente a uma terceira coisa mais genérica que elas, porque
comum a todas. A multiplicidade e irredutibilidade dos significados categoriais do ente constitui a
base e a originalidade da metafísica aristotélica.
25
Tomás conclui seu comentário enfatizando o caráter lógico da resolução dos modos de
ser do ente aos gêneros-categoriais, o que, porém, não deve ofuscar sua dimensão verdadeiramente
metafísica. Eis o texto do Doutor Angélico: “Patet autem ex dictis quod aliqua continentur sub
uno praedicamento, et sunt unum genere hoc modo secundo, quae tamen sunt diversa genere
primo modo. Sicut corpora caelestia et elementaria, et colores, et sapores. Primus autem modus
diversitatis secundum genus consideratur magis a naturali, et etiam a philosopho, quia est magis
realis. Secundus autem modus consideratur a logico, quia est rationis.” (Ibidem.)
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 287
Tendo em vista que as categorias representam os significados nos quais
originariamente se diz o ente e, por isso, são as supremas divisões (
diairhsei
")
ou gêneros do ente, é evidente que a resolução lógica (
analuvetai
) dos demais
modos de ser e dos demais significados do ente aos gêneros-categoriais não se dá
por uma dedução a partir das categorias, nem tampouco estas são dedutíveis a
partir da noção de ente. Ao contrário, ao falar dos gêneros ou divisões supremas
do ente e da impossibilidade de sua resolução num gênero supra-categorial,
Aristóteles está indicando a impossibilidade de se encontrar algo comum entre os
diversos gêneros supremos. É, porém, a possibilidade da análise enquanto redução
lógica dos gêneros não-supremos (subalternos) nos gêneros supremos e a
impossibilidade desta mesma análise dos gêneros supremos num gênero supra-
categorial que está na base da afirmação da irredutibilidade das categorias ou dos
significados originários do ente.
É evidente que tal análise dos gêneros nada tem a ver com a decomposição,
dissolução ou divisão material ou física, nem tampouco com a dedução lógica-
conceitual das categorias a partir da noção supra-genérica de ente uma vez que,
para Aristóteles, o ente não é um gênero. A análise das categorias não é a divisão
do todo (ente) em suas partes (categorias), nem a extração destas a partir daquele.
Por isso, deve-se excluir da análise das categorias a noção de divisão material e a
de dedução lógica das mesmas a partir do ente. Em verdade, para Aristóteles,
trata-se de uma análise intelectual em que as coisas que possuem uma realidade
comum expressa pela definição são redutíveis a esta mesma realidade ao modo de
um gênero, enquanto os gêneros supremos por definição não são redutíveis a um
gênero comum supra-categorial. Em termos metafísicos, a impossibilidade da
análise ou redução lógica das categorias exige compreendê-las metafisicamente
como modos originários de ser e de significar o ente enquanto tal.
Ainda que o sentido holológico de análise, como decomposição ou divisão,
esteja entre os significados aristotélicos de ανάλυειν, o mesmo não é o significado
principal nem o que esclarece o método de resolução dos significados de ente às
categorias ou aos gêneros supremos do ente na Metafísica, nem o que melhor
caracteriza o método filosófico dos Analíticos. Antes, porém, de considerarmos o
significado de análise no contexto dos argumentos, é mister reconhecer um
significado de análise muito particular em Aristóteles, que aparece na Ética a
Nicômaco vinculada à questão da construção das figuras geométricas. É a acepção
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 288
da análise, apresentada na Ética a Nicômaco à luz da analogia com a análise
geométrica, que esclarece o significado posterior da análise relativamente aos
argumentos
26
.
No terceiro capítulo do terceiro livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles
aborda a questão dos objetos, da extensão e da ordem da deliberação. O objeto da
deliberação, diz Aristóteles, são aquelas coisas que estão ao nosso alcance, podem
ser realizadas mediante a ação, mas nem sempre do mesmo modo (o que exclui do
objeto da deliberação as coisas eternas, p.ex.)
27
. Ao ponderar que o homem não
delibera acerca dos fins, mas a respeito dos meios, Aristóteles observa que o
homem que delibera parece analisar (
analuvein
) a partir da finalidade a fim de
estabelecer os meios que permitem alcançá-la. Neste sentido, a deliberação
envolve uma certa ordem, um método por assim dizer, uma vez que a deliberação
é uma espécie de investigação (
zhvthsi"
).
Dada a importância deste novo significado de análise, a qualificaremos
como “análise teleológica”, espécie de análise etiológica que expressa a singular
passagem da finalidade aos meios ou aos antecedentes da ação em relação aos
demais tipos de análise. A emergência da análise teleológica se dá de modo
paradigmático na seguinte passagem da Ética a Nicômaco:
Não deliberamos acerca de fins, mas a respeito de meios. Um médico, por
exemplo, não delibera se há de curar ou não, nem um orador se há de persuadir,
nem um estadista se há de implantar a ordem pública, nem qualquer outro delibera
a respeito de sua finalidade. Dão a finalidade por estabelecida e consideram a
maneira e os meios de alcançá-la; e, se parece poder ser alcançada por vários
meios, procuram o mais fácil e o mais eficaz; e se por um só, examinam como será
alcançada por ele, e por que outro meio alcançar esse primeiro, até chegar ao
primeiro princípio, que na ordem de descoberta é o último. Com efeito, a pessoa
que delibera parece investigar e analisar [
analuvein
] de maneira que descrevemos,
como se analisasse uma construção geométrica (nem toda investigação é
deliberação: vejam-se, por exemplo, as investigações matemáticas; mas toda
deliberação é investigação); e o que vem em último lugar na ordem da análise
[
anavlusei
] parece ser primeiro na ordem da geração.
28
26
Dentre as teses de Patrick Byrne, encontra-se aquela que entende a análise dos
argumentos como uma extensão do modelo de análise proposto por Aristóteles na Ética a
Nicômaco em comparação com a análise geométrica. Cf. BYRNE, P. Ibidem., p. 19.
27
Ética a Nicômaco, III, 3, 1112a20-1112b11.
28
Ibid., III, 3, 1112b12-24. Para uma outra análise deste trecho da Ética, confira: BYRNE,
Patrick. Ibidem., p. 15-20; SWEENEY, Eileen. Ibidem., p. 229-237.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 289
A deliberação pertence à ordem prática porque diz respeito às coisas que
podem ser realizadas mediante a ação. Mas, a deliberação prática é aqui
comparada à investigação especulativa, pois em ambas os princípios são dados
como estabelecidos, tornando-se o ponto de partida da investigação. Na
deliberação, o que é dado como estabelecido é a finalidade da ação, que assume a
posição de princípio (último quanto à ação e primeiro quanto à intenção, já que
nas coisas práticas o fim é anterior à ação na ordem da intenção). Por essa razão,
não deliberamos sobre os fins que são assumidos como algo estabelecido, mas
somente sobre os meios em relação aos quais investigamos.
A razão de ser da análise teleológica na deliberação consiste em permitir ao
agente investigar como ou por quais meios se pode atingir o fim, supondo que este
já está previamente dado na intenção do agente na forma de um princípio último
da ação. Afinal, o médico, por exemplo, não delibera se irá ou não curar, nem o
estadista se há de implantar a ordem pública, nem ninguém delibera sobre sua
finalidade. É em relação às coisas práticas dadas no presente como meio para uma
finalidade futura que se investiga, por exemplo, se há mais de um meio que
permite alcançar o fim procurado, ou ainda, qual é o meio mais fácil e mais eficaz
para alcançar o fim almejado. Determinar as ações que são necessárias, úteis e
eficazes como meios para um determinado fim, previamente assumido como
princípio da deliberação, é a finalidade da investigação analítica concernente às
coisas práticas.
Se o termo último da análise teleológica não é o fim último a ser alcançado
mediante a ação, que já está dado previamente à própria análise deliberativa, então
a ordem desta análise exige uma investigação sobre as coisas presentes em vista
das coisas futuras, sobre os meios que antecedem ao fim procurado. Na ordem de
descoberta, a análise teológica-deliberativa encontra seu termo último o que deve
ser realizado primeiro e imediatamente na ordem da ação. Por isso, o que é
primeiro na ordem da ação é último na ordem analítica da deliberação.
Assim sendo, a análise teleológica no âmbito da deliberação ou resolução
prática é aquela que assume a finalidade da ação como dada e a partir dela
investiga sobre os meios que levam à finalidade. Por isso, há um duplo termo ou
fim da análise de um problema prático: em primeiro lugar, há a finalidade da ação
como termo a partir do qual (terminus ex quo) se principia a análise teleológica e
pelo qual (terminus a quo) se orienta a investigação deliberativa; em seguida, há o
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 290
termo ou fim da própria análise teleológica (terminus ad quem), que consiste na
conclusão da resolução prática. Esta conclusão regride à ação presente após
determinar os meios que levam à finalidade almejada e pressuposta como dada (na
ordem da intenção).
Embora nem toda investigação especulativa envolva análise teleológica-
deliberativa, mas somente as que tratam das coisas realizáveis mediante a ação
(coisas práticas), Aristóteles não hesita em afirmar que toda investigação das
coisas práticas é deliberativa segundo um modo analítico. A fim de clarificar
ainda mais a ordem e o método da deliberação, Aristóteles realiza uma analogia
entre a análise investigativa das coisas práticas e a investigação especulativa
própria do geômetra que precisa resolver um problema mediante a construção de
um diagrama. Assim como aquele que deseja provar uma conclusão a partir de um
diagrama deve resolver a conclusão nos princípios até que se alcance os princípios
primeiros indemonstráveis, de modo semelhante, aquele que deseja alcançar
mediante a ação uma determinada finalidade deve resolver os meios a partir da
finalidade até que se alcance o que é primeiro na ordem da ação (que será último
na ordem da análise deliberativa).
A referência à construção geométrica vincula a descrição do método
analítico da deliberação na Ética a Nicômaco à análise realizada pelos geômetras.
A explicação mais acurada do método geométrico grego nos é dada por Pappus de
Alexandria que, embora vivendo posteriormente a Aristóteles, consiste na fonte
mais completa do que se concebia por análise nos tempos de Platão e Eudoxo
29
. É
o método analítico da geometria grega, canonizado posteriormente na obra de
Pappus, a fonte última do modelo e da ordem da deliberação proposto por
Aristóteles na Ética a Nicômaco. Em suas Coleções Matemáticas
30
, Pappus atribui
29
É oportuno observar que Descartes concebeu seu método de análise como uma
revitalização do antigo método matemático de Pappus de Alexandria no qual a solução dos
problemas geométricos se dá por análise. Um método que é radicalmente diferente, segundo
Descartes, daquele que está presente na geometria euclidiana que propõe a solução dos problemas
em termos de definições, axiomas e postulados. Este método sintético é concebido por Descartes
como um método de apresentação, mais voltado para a didática, do que um método de descoberta
ou invenção, exclusividade da análise.
30
A obra de Pappus foi desconhecida ao longo da Idade Média, mas foi redescoberta no
Renascimento e recebeu notoriedade através da tradução latina de 1589. A evidência de que
Tomás de Aquino obteve alguma notícia do método analítico dos geômetras gregos provém mais
especificamente das exposições de Alberto Magno sobre a Ética a Nicômaco, escritas enquanto
Tomás era seu estudante (ca. 1250-52). Além disso, uma descrição dos métodos geométricos foi
inserida por um comentador árabe, Ali Ibn Ridwan ou Haly Rodhan, na Ars Parva ou Microtegni
de Galeno (ca. 129-210) que foi traduzida para o latim por Constantino, o Africano, no séc. XI, e
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 291
a elaboração da análise e da síntese à obra de Euclides, Apollonio de Perga e
Aristaeus de Elder
31
. Assim descreve Pappus o método analítico dos geômetras:
A análise é o caminho do que é procurado – como se fosse admitido – a partir de
seus concomitantes a fim de alcançar algo admitido na síntese. Pois, supomos na
análise que o que é procurado já está previamente dado, e investigamos a partir do
que daí resulta, e novamente o que é o antecedente do último, até que de trás para
adiante lançamos luz sobre o que já conhecemos e é primeiro em ordem.
32
De acordo com Pappus, não é a partir de premissas axiomáticas que o
geômetra realiza a análise, mas sim a síntese (o que corresponde à noção latina de
compositio). A prova pela análise consiste em assumir a conclusão que se quer
demonstrar como se fosse verdadeira e a partir dela reconstituir, por uma sucessão
de operações intelectuais regressivas, o caminho ou os meios que resultam da
pressuposição da legitimidade da conclusão a fim de alcançar algo que é
conhecido como verdadeiro e que está para a conclusão como o que a antecede,
como seu princípio indemonstrável
33
.
De modo mais específico, a análise geométrica de um diagrama supõe que o
mesmo já está dado ou construído (a conclusão é assumida como válida e
demonstrada) e a partir dele se procura o(s) meio(s) que legitimaria(m) sua
construção e que, em última instância, se resolve num princípio indemonstrável.
Essa análise procura resolver o diagrama suposto como verdadeiro pela
reconstrução do caminho que justifica o seu estabelecimento como algo
posteriormente por Gerardo de Cremona (1114-1187), que manteve o comentário árabe. Cf.
SWEENEY, E. Ibid., p. 231, n. 80. É no parágrafo introdutório desta obra que Galeno apresenta os
três métodos da arte da medicina, a saber: a análise (traduzida por conversio ou resolutio), a
síntese (compositio), e a definição.
31
Cf. GUERLAC, Henry. Ibidem., p. 5.
32
Analusis toinun estin hodos apo tou zêtoumenou hôs homologoumenou dia tôn hexês
akolouthôn epi ti homologoumenon sunthesei. En men gar têi analusei to zêtoumenon hês gegonos
hupothermenoi to ex hou touto sumbainei skopoumetha kai palm ekeinou to proêgoumenon, heôs
an houtôs anapodizontes katantêsômen eis to tôn ynôpizomenôn hê taxin archês echontôn."
(PAPPI ALEXANDRINI. Collectionis Quae Supersunt. Berlin: Ed. Hultsch, 1876-1877, vol. II,
pp. 634-635. apud, HINTIKKA & REMES. Method of Analysis, 1974, p. 8.
33
Se esta interpretação é correta, então não se encontra em Pappus o sentido de análise
geométrica como dedução das conseqüências a partir da conclusão dada, mas sim a procura ou
investigação dos antecedentes da conclusão a partir da própria conclusão. É esta estrutura e o seu
propósito que estão na base do que diz Aristóteles na Ética a respeito do modo de proceder
deliberativo nas coisas práticas em analogia com a investigação geométrica. Para Hintikka e
Remes, ao contrário, a análise direciona-se a coisas que “caminham com” ou são concomitantes à
conclusão, quer sejam antecedentes, conseqüentes ou paralelos logicamente à conclusão. Por isso,
criticam a compreensão da análise como a mera busca pelos antecedentes da conclusão
(HINTIKKA & REMES. Ibid., p. 19).
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 292
demonstrável. Esse caminho agora pode ser uma nova figura geométrica ou
diagrama que esclarece a origem do diagrama suposto como dado. Em suma, o
processo não consiste em demonstrar o diagrama a partir das premissas e dos
axiomas geométricos (via sintética), mas sim em revelar os meios que legitimam a
construção do diagrama, que na ordem da análise geométrica é assumido como
previamente dado
34
.
A descoberta pela análise dos meios que legitimam o diagrama não é,
porém, um fim em si mesma. A análise geométrica deve reconduzir a conclusão
assumida como válida (o diagrama, p. ex.) ao princípio indemonstrável que
independe da pressuposição da validade da figura geométrica, isto é, deve resolvê-
la em um axioma indemonstrável ou em um teorema anteriormente demonstrado.
A descoberta analítica do caminho que resulta da construção da figura geométrica
e do princípio indemonstrável que o legitima é seguida pela demonstração
sintética, que se move em sentido oposto à análise. Na síntese, o geômetra parte
de premissas já conhecidas como verdadeiras (definições, axiomas e teoremas
previamente demonstrados) a fim de demonstrar por uma série de passos
dedutivos suas conclusões. A síntese, neste caso, tem uma forma semelhante às
demonstrações silogísticas e é o método mais familiar das provas da geometria
euclidiana.
É por essa oposição entre a análise como determinação do caminho para a
conclusão a partir da própria conclusão e a síntese como a demonstração dedutiva
da conclusão a partir de princípios indemonstráveis ou previamente demonstrados
que se esclarece a opinião de Jeremias Triverius sobre a oposição entre a análise e
a demonstração, que é uma via essencialmente sintética ou compositiva
35
. Os dois
métodos, não obstante, parecem estar disponíveis ao geômetra como vias
alternativas a serem escolhidas de acordo com as exigências da própria
investigação. De acordo com a Ética a Nicômaco, o método analítico parece ser
aquele utilizado preferencialmente para fins de investigação na ordem da
34
Para uma apresentação e discussão do método de análise de um problema geométrico tal
como a construção de um quadrado igual a uma figura retangular dada, confira: BYRNEY, P.
Ibidem., p. 16-17; 26-27.
35
Devemos novamente a Eileen Sweeney (1994, p. 230) esta observação sobre Jeremias
Triverius, que esclarece a origem da oposição entre análise e demonstração na obra deste pensador
renascentista.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 293
descoberta, enquanto o método sintético seria o método dedutivo ou
demonstrativo por excelência.
Uma vez mais a exegese de Tomás nos serve de auxílio na compreensão da
relação entre a análise geométrica e a análise deliberativa a respeito das coisas
práticas. Esclarece o Santo Doutor que:
Ele [Aristóteles] afirma que a causa do que é primeiro na operação é último na
descoberta porque aquele que delibera parece inquirir, se diz, por um tipo de
método resolutivo, assim como alguém que deseja provar uma conclusão por um
diagrama, isto é, uma representação geométrica, deve resolver a conclusão em
princípios até alcançar os princípios primeiros indemonstráveis.
36
Se a solução analítica de um problema geométrico não consiste, conforme
Pappus, em partir de premissas axiomáticas para a conclusão que se almeja
justificar, mas sim em assumir a conclusão como válida (o diagrama, p. ex.) e a
partir dela resolver o problema pela construção dos meios que a legitimam, então
a deliberação das coisas práticas (práxis, no caso do agente que age
virtuosamente) ou produtivas (poíesis, no caso daquele que produz algo) é análoga
à investigação geométrica uma vez que se pode decidir o que deve ser feito
mediante a ação não pela dedução da ação a ser realizada a partir de ações ou
princípios anteriores às coisas presentes (modo sintético de investigação), mas sim
pela análise dos meios a partir do fim procurado. Transitar do posterior aos
antecedentes e destes à causa ou princípio primeiro da ação, último na ordem de
descoberta, é proceder de modo analítico.
A relevância desta descoberta autenticamente aristotélica no tocante à
ciência prática deve ser aqui sublinhada. Com efeito, para Aristóteles, os
primeiros princípios ou causas são considerados últimos na ordem de descoberta
(via analítica), mas são primeiros quanto à ordem de demonstração (via sintética).
Mas, os princípios primeiros que são últimos na ordem analítica de investigação
geométrica não são os elementos materiais que constituem o diagrama (os pontos,
as linhas e a representação material), mas sim as definições e os axiomas. Por isso,
a análise geométrica envolve não só a figura dada e aquela procurada, mas,
36
"Et dicit quod ideo causa quae est prima in operatione est ultima in inventione, quia ille
qui consiliatur videtur inquirere, sicut dictum est, per modum resolutionis cuiusdam.
Quemadmodum diagramma, id est descriptio geometrica in qua qui vult probare aliquam
conclusionem oportet quod resolvat conclusionem in principia quousque pervenit ad principia
prima indemonstrabilia." (AQUINO. In Ethic., III, lc. 8, n. 476.)
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 294
sobretudo, a busca da forma inteligível de interconexão entre o que é dado e o que
é procurado. Como observa Byrne, “o objetivo da análise geométrica não é a
redução de algo em seus elementos materiais”, mas sim a descoberta da “forma
inteligível”
37
.
O que caracteriza a estrutura e o propósito da análise geométrica, segundo
Aristóteles, é a descoberta tanto das formas inteligíveis que permitem a
construção do diagrama quanto das formas axiomáticas ou daquelas expressas
pelas definições que justificam na ordem da demonstração o diagrama construído.
Com isso, se exclui da análise geométrica a redução do diagrama em seus
elementos materiais (pontos, linhas e figuras), que de nada acrescentariam à
ordem de justificação da validade do diagrama
38
. De modo análogo, a análise
teleológica-deliberativa é um movimento para a causa ou princípio formal da ação
a partir de um fim formalmente dado na intenção do agente, e não uma redução ou
divisão materialiter dos fins nos meios, o que em nada acrescentaria ao agente e à
sua ação.
Tomás de Aquino, por seu turno, torna ainda mais evidente o caráter
analítico ou resolutivo da deliberação na Suma Teológica (I-II, q. 14, a. 5), em que
investiga se a deliberação procede de modo resolutório. Esclarece primeiramente
que toda investigação deve começar por algum princípio. Deve-se observar,
porém, que a ordem do raciocínio e da investigação a respeito das ações é
contrária à ordem das próprias ações. Como diz Aristóteles, o princípio na
investigação da deliberação é o fim almejado pela ação. Mas este, acrescenta
Tomás, é sempre primeiro na ordem da intenção e posterior na ordem do ser. É
necessário, portanto, conclui Tomás em plena consonância com Aristóteles que a
investigação da deliberação seja resolutiva, ou melhor, seja uma resolução
teleológica, pois começa por aquilo que se busca no futuro como finalidade da
ação até que se chegue ao que deve ser feito imediatamente no presente
39
.
Do exposto até aqui, parece ser evidente que o significado de análise na
Ética a Nicômaco tem sua fonte na própria geometria grega e na diversidade de
37
Cf. BYRNE, P. Ibidem., p. 17.
38
Ibid., p. 18-19.
39
“Principium autem in inquisitione consilii est finis, qui quidem est prior in intentione,
posterior tamen in esse. Et secundum hoc, oportet quod inquisitio consilii sit resolutiva, incipiendo
scilicet ab eo quod in futuro intenditur, quousque perveniatur ad id quod statim agendum est” (STh
I-II, q. 14, a. 5, co.)
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 295
seus métodos. Mas, ao ser transposta para o domínio das coisas realizáveis
mediante a ação, a análise teleológica própria da deliberação mantém uma relação
análoga e não-unívoca ao método geométrico em razão da ordem do raciocínio ou
da investigação e não em razão da ordem da demonstração (dedutiva), que se
segue à análise geométrica no modo sintético de proceder do geômetra. O método
sintético dos geômetras está ausente da investigação deliberativa uma vez que
Aristóteles concebe a análise deliberativa como uma investigação intelectual
regressiva (do posterior ao anterior) a partir dos fins ou conclusões práticas
previamente dadas (na ordem da intenção), enquanto a síntese é uma investigação
progressiva (do anterior ao posterior) das conclusões a partir de princípios
indemonstráveis, caminho que está vedado à deliberação sobre os meios em razão
do fim.
Se esta interpretação é correta, então um dos significados que melhor
caracterizaria a concepção de análise em Aristóteles é aquele semelhante ao
praticado pelos antigos geômetras que consiste em uma investigação intelectual
do que é anterior a partir do posterior em que se almeja determinar o vínculo de
união formal entre o que é dado (a finalidade da ação na ética, ou o diagrama
proposto como demonstrado na geometria) e o que é procurado (os princípios e os
meios da ação na ética, ou as definições, os axiomas e os meios de construção do
diagrama na geometria).
É esta concepção da análise como a busca do vínculo ou união formal entre
o posterior e o anterior que aparece de modo técnico e detalhado ao longo dos
Analíticos, mais especificamente nas passagens relativas à análise dos
argumentos. Como o sentido de análise presente na resolução dos argumentos dos
Primeiros e Segundos Analíticos é o mais recorrente e complexo dentre os
mencionados até aqui, um estudo mais aprofundado das diversas passagens em
que ocorre o termo análise foge completamente aos objetivos do presente capítulo.
A fim de alcançarmos, porém, o propósito de compreender a emergência e o
significado de análise em Aristóteles é suficiente recuperar as conclusões de
Patrick Byrne (1997) a respeito das relações entre a análise e a ciência
demonstrativa em Aristóteles, de modo semelhante ao que foi feito em relação aos
demais significados de “análise”.
De acordo com P. Byrne (1997, p. 20-21), há dois sentidos de “análise dos
argumentos” em Aristóteles. O primeiro consistiria no sentido mais geral de
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 296
análise em que são assumidas, como dados iniciais, certas expressões ou sentenças
simplesmente “arranjadas em série”
40
a partir das quais se procuraria estabelecer
qual sentença comporia a conclusão, quais são relativas às premissas, ou ainda
quais não fazem parte da relação entre a conclusão e as premissas no argumento.
A esta análise preliminar se seguiria a análise em sentido mais estrito, ou seja, a
que assume como dada uma proposição ou sentença, a título de conclusão, para
investigar a partir dos termos da conclusão (sujeito e predicado) as premissas que
a antecedem. Essa análise, em sentido estrito, envolveria a investigação da forma
lógica do argumento concomitantemente à busca da relação entre a conclusão e as
premissas
41
. Por isso, a análise no âmbito da lógica sugere um método destinado a
retraçar verdades já conhecidas e descobertas aos seus princípios primeitos, pois
remonta da conclusão (efeito) às premissas (princípios, causas) que fundamentam
a conclusão na ordem inversa à da análise.
Após estabelecer quais são os elementos e de que modo os mesmos formam
as demonstrações, Aristóteles nos Primeiros Analíticos acrescenta que há uma
tarefa ainda a ser realizada. Esta consiste em estabelecer de que modo ocorre a
análise dos silogismos nas figuras. Com efeito, diz Aristóteles:
Do que foi estabelecido, é evidente de quais elementos são formadas as
demonstrações e de que modo, e sobre quais pontos devemos investigar em cada
problema. Nossa próxima tarefa é estabelecer como podemos analisar os
silogismos às mencionadas figuras; pois esta parte da investigação ainda
permanece. Se devemos investigar a produção dos silogismos e temos o poder de
descobri-los, e, além disso, se pudermos resolver os silogismos produzidos nas
mencionadas figuras, nosso projeto original terá alcançado a conclusão. Ocorrerá
ainda, ao mesmo tempo, que o que foi dito anteriormente será confirmado e sua
verdade se tornará mais clara por aquilo que estamos prestes a dizer. Pois tudo o
que é verdadeiro deve em todos os casos concordar consigo mesmo.
42
Em princípio, o que caracterizaria o sentido primordial de análise nos
Primeiros Analíticos seria a redução das demonstrações ao silogismo, os
silogismos nas figuras, as figuras nas proposições, e as proposições em seus
termos, a fim de que alcançássemos aquelas proposições que são evidentes por si
mesmas a partir unicamente da compreensão dos seus termos. De acordo com esta
40
ARISTÓTELES. Refutações Sofísticas, 16, 175a31; Primeiros Analíticos, I, 42, 50a 5-
10.
41
BYRNE, Patrick. ibid., p. 20-21.
42
ARISTÓTELES. Primeiros Analíticos, I, 32, 46b38-47a9.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 297
compreensão, a análise dos argumentos seria nada mais do que a divisão dos
argumentos em seus elementos, ou seja, a divisão dos silogismos nas figuras, das
figuras nas proposições, e assim sucessivamente até que se alcançasse a divisão
derradeira da proposição auto-evidente em seus termos. Ainda segundo esta
perspectiva, a conclusão de um argumento está previamente contida, ainda que
implicitamente, nas premissas de tal modo que a conclusão seria incapaz de nos
levar a conhecer algo verdadeiramente novo. A análise do argumento nada mais
seria do que a compreensão dos elementos que o compõem (termos, conclusão,
premissas, figura, etc.) e que se seguem dedutivamente segundo a forma lógica do
silogismo, expresso de modo paradigmaticamente nas três figuras.
Dentre as teses de Patrick Byrne, a que mais nos chama a atenção é aquela
que procura afastar a perspectiva anterior da análise dos argumentos como
divisão, invertendo o próprio significado da resolução dos argumentos a partir da
análise da conclusão, que de certo modo “contém” as premissas
43
. À luz desta
nova perspectiva, a análise dos argumentos é aquela que parte da conclusão para
explicitar quais são as premissas e qual a forma lógica do argumento em questão.
Em suporte de sua interpretação, Byrne examina a passagem dos Primeiros
Analíticos em que Aristóteles menciona a análise do “sorites”
44
, nos seguintes
termos:
Não devemos esquecer que no mesmo silogismo nem todas as conclusões são
alcançadas através de uma única figura, mas uma após uma, outra após outra
figura. É evidente, com efeito, que devemos analisar [a*navlusei"] os argumentos
de acordo com isto. Uma vez que nem todo problema [problema] é provado em
toda figura, mas certos [problemas] o são em uma figura específica, será evidente a
partir da conclusão em que figura as premissas devem ser procuradas.
45
Como uma seqüência de expressões e sentenças pode aparentar a forma de
uma seqüência lógica, é tarefa do filósofo analisá-la a ponto de encontrar a
conclusão e as premissas que realmente antecedem a conclusão, ao mesmo tempo
em que se busca a forma lógica do argumento. O “mesmo silogismo” de que fala
Aristóteles na citação anterior é o “sorites”. Em geral, o sorites é descrito como a
seqüência de expressões e sentenças que pode ser posta numa forma lógica válida
43
BYRNE, P. ibid., p. 20.
44
“Sorites” em grego significa amontoado e arranjado.
45
ARISTÓTELES. Primeiros Analíticos, I, 42, 50a5-10.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 298
em que o predicado da primeira premissa se torna o sujeito da próxima, o
predicado da segunda o sujeito da próxima premissa, e assim sucessivamente até a
conclusão que une o predicado da última com o sujeito da primeira. Nesta
acepção, o sorites possui uma forma claramente progressiva. Entretanto, a
estrutura progressiva do sorites só é possível na condição de que já se saiba quais
são as diversas figuras que o compõem e o estruturam numa forma lógica a partir
das premissas. A forma dedutiva ou progressiva do sorites reduziria a sua análise
à mera divisão das partes ou dos elementos que o constituem.
No entanto, adverte Aristóteles que, em se tratando de um sorites, nem todas
as conclusões são alcançadas por uma única figura. Com efeito, as conclusões
intermediárias vinculam-se às suas premissas segundo uma determinada figura e
servem como premissas adicionais para a argumentação até que se alcance a
conclusão derradeira. Como cada conclusão intermediária envolverá uma figura
específica, a condição para a resolução do sorites é encontrar as figuras em
questão e as premissas correspondentes a cada uma das figuras sempre “a partir da
conclusão”. Como observa Patrick Byrne (1997, p. 22), a análise do sorites só
alcança seu objetivo quando encontra as figuras silogísticas apropriadas a partir da
conclusão e não quando faz a redução ou divisão dos elementos que compõem o
sorites pela separação das premissas
46
. Este sentido de análise é obviamente
regressivo, ou seja, trabalha-se a partir da conclusão para as premissas pelo
conhecimento das figuras específicas que se unem formalmente umas às outras,
revelando a razão de ser da própria conclusão.
Antes de concluirmos esta apresentação sobre os sentidos de análise em
Aristóteles, é oportuno ressaltar ainda uma última reflexão sugerida por Patrick
Byrne (1997, p. 23-25) a respeito do significado e da tradução de “analuvein” em
Aristóteles. Em duas passagens dos Primeiros Analíticos, Aristóteles utiliza o
verbo
anavgein
como sinônimo de
analuvein
47
. Ambos os termos aparecem no
contexto da resolução dos argumentos nas figuras do silogismo categórico. A
questão proposta por Byrne poderia ser assim recapitulada: em que medida o
sentido de “
anavgein
” lança luz sobre o de “
analuvein
”? Ao mesmo tempo, mas
46
O autor examina o significado de análise dos argumentos, distinguindo a relação entre
análise e a definição de silogismo, a análise dos silogismos completos e incompletos, a análise dos
silogismos modais e dos problemáticos ao longo de sua obra, mais especificamente do capítulo
segundo ao quinto (BYRNE, P. Ibid., p. 29-163).
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 299
sob diverso aspecto, une-se à questão das relações entre “
anavgein
” e “
analuvein
o problema das traduções latinas destes termos, mais especificamente a tradução
de “
anavgein
” por “reductio”. Afinal, quais as conseqüências da tradução latina de
anavgein
” por “reductio” para a compreensão do sentido principal de
analuvein
” em Aristóteles?
Em primeiro lugar, observa Byrne, reductio não é o sentido primordial e
comum de “
anavgein
”. Dentre os sentidos arcaicos, o termo “
anavgein
” significa
enviar, conduzir de um lugar a outro, especialmente de um lugar mais baixo a um
mais alto. Daí que “
anavgein
” signifique também elevar, sentido que o próprio
Aristóteles utiliza ao falar da evaporação, isto é, a elevação da água pelo vapor
48
.
Além disso, Aristóteles freqüentemente utiliza “
anavgein
” como equivalente a
“referir-se a”. Nesta última acepção, o porquê da coisa está em última instância
“referido” à sua essência, expressa pela definição
49
. Dentre as demais ocorrências,
é digno de nota as passagens em que “
anavgein
” é utilizado como expressando a
transição da potência ao ato
50
. Em todos estes casos, a tradução de “
anavgein
como redução (reductio) parece estar vinculado a uma concepção regressiva da
análise, que Byrne qualifica como reducionista por desconsiderar o ato de
“elevação” presente na análise aristotélica
51
.
Em contraposição à concepção reducionista de análise, portanto, Byrne
sugere interpretar e traduzir “
anavgein
” por “elevar”, mesmo no caso da
transformação de um argumento de acordo com a primeira figura. Assim sendo,
uma conclusão é “elevada” em sua inteligibilidade quando se reconhece suas
premissas e a forma lógica do argumento; um fato é “elevado” quando são
conhecidos seus princípios; e, enfim a potência é “elevada” ao ato.
A relação com o ato de analisar e o de elevar parece evidente. Com efeito,
os contrários são “analisados” e “elevados” a seus princípios; os elementos são
“analisados” e “elevados” quando seus princípios ou formas são encontrados;
47
ARISTÓTELES. Primeiros Analíticos, I, 32, 46b40-47a21; 42-44, 50a16-32.
48
ARISTÓTELES. Metereológicos, I, 9, 347a8. Veremos que este sentido está amplamente
presente na obra de Tomás de Aquino.
49
ARISTÓTELES. Metafísica, VII, 16, 1040b20.
50
ARISTÓTELES. Metafísica, IX, 9, 1051a30; Ética a Nicômaco, IX, 9, 1170a18.
51
“When Aristotle uses anagein to relate advanced arguments to elementary ones, or to
relate things to their principles, or potency to act, translators have most often rendered anagein as
‘to reduce’ or ‘refer back to’ rather than ‘to elevate’. But there does not seem to be any
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 300
enfim, analisar e elevar algo se refere ao ato de encontrar “a conexão inteligível”
entre as coisas que, sem a análise ou a elevação, permaneceriam ininteligíveis. Em
suma, a análise aristotélica é “o enriquecimento do entendimento de algo pela
descoberta das relações inteligíveis entre seus constituintes”
52
.
A reflexão de P. Byrne sobre o significado de “
anavgein
” e sua crítica a uma
certa interpretação reducionista da análise como divisão é de suma importância
para os objetivos da presente investigação. Em primeiro lugar, porque é se trata do
significado originariamente aristotélico de análise. Em segundo lugar, porque a
crítica de Byrne se dirige especialmente à tradução latina de “análise” como
“redução” (reductio), um dos termos correlatos ao termo “resolução” (resolutio)
na tradição medieval. Por fim, o termo “
anavgein
” expressa um ato ou operação
do intelecto que reaparece de modo inequívoco na tradição neoplatônica, graças à
concepção da análise como parte ascendente da dialética, responsável pela
elevação, conversão e regressão (“epistrophé”) ao Uno.
É curioso observar que o próprio P. Byrne não menciona a tradução de
análise como resolução (resolutio) em sua crítica à interpretação reducionista da
análise, nem tampouco considera a apropriação neoplatônica da análise vinculada
estritamente à dialética em seu momento ascendente, ou seja, de elevação
(“
anavgein
”). Graças ao neoplatonismo, o que P. Byrne reivindica para Aristóteles
(a análise como elevação) está explicitamente desenvolvido na tradição medieval.
Mesmo concedendo que a compreensão reducionista do significado de análise em
Aristóteles utilize-se do termo latino reductio, não nos parece que se encontre
aqui, na própria tradução, a origem senão materialiter da interpretação
reducionista. A crítica de P.Byrne se dirige, sobretudo, à interpretação
reducionista da análise como divisão, atingindo, ao mesmo tempo, a tradução
latina de análise como reductio. Contudo, a etimologia do termo reductio revela
que o mesmo não possui o significado primordial nem comum de divisão, mas
sim expressa a ação de fazer voltar, de retornar ou reconduzir algo à sua origem,
ao seu princípio e fundamento.
philological reason for this choice of translation. It rather seems to be motivated by a reductionist
misunderstanding of analuein with which anagein is equated” (BYRNE, P. Ibidem., p. 24).
52
“On the other hand, if we understand analysis as having to do, not with tearing something
down into lower elements, but with enriching the understanding of something by finding the
intelligible relationships among its constituents, then the more common interpretation of anagein
as “elevation” would be entirely appropriate (…).” (BYRNE, P. Ibidem., p. 24).
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 301
Este sentido de redução como recondução não é contraditório tampouco em
relação ao sentido de “
anavgein
”. Ainda que o termo “elevar” conote mais
facilmente um sentido de ação para cima, o mesmo significa igualmente a ação de
reconduzir a algo superior. É neste sentido que acreditamos encontrar uma
aproximação válida entre “
anavgein
” e “reductio”, especialmente quando
correlacionados ao termo “
analuvein
”. Com efeito, a noção de recondução que
supõe o termo “reductio” não se opõe a priori ao sentido de elevação. Levando-se
em consideração que, para Aristóteles, o que é primeiro na ordem do ser é último
na ordem da descoberta, a ação de elevar (“
anavgein
) uma conclusão em sua
inteligibilidade é idêntica à ação de conduzi-la (ductio) às premissas e à forma
lógica do argumento.
Mas, se é verdade que a análise conduz (ductio) às premissas e à forma
lógica a partir das conclusões, não é menos verdade que as premissas na ordem do
ser são anteriores às conclusões (ordem sintética de demonstração). Neste sentido,
a análise conduz o posterior (a conclusão) ao anterior (as premissas), o que é o
mesmo que re-conduzir (re-ductio). Na ordem de investigação analítica, porém, a
conclusão é anterior porque é dada como ponto de partida da busca, enquanto as
premissas são posteriores porque são descobertas por último na ordem analítica,
graças ao conhecimento da forma inteligível do argumento. Dependendo,
portanto, da ordem de consideração das relações entre as premissas e a conclusão
obtém-se que o que é primeiro numa certa ordem é último em outra.
Ao utilizarem o termo “reductio” como transcrição do termo grego
anavgein
”, os latinos não traíram o significado deste último, mas sublinharam
uma certa ordem de consideração das coisas que privilegia o que é anterior na
ordem dos princípios ou das causas (as premissas) em relação ao que é anterior na
ordem do conhecimento (a conclusão). Como a análise não dispõe do que é
anterior quanto ao ser como algo previamente dado, ou melhor, a análise não parte
dos princípios para as conclusões (via sintética), mas procede justamente ao
contrário, ou seja, investiga o que é anterior (as premissas e a forma lógica do
argumento) a partir do posterior (a conclusão) quanto ao ser, então a análise re-
conduz o posterior ao anterior. É esta acepção de retorno ao fundamento lógico e,
portanto, formal das conclusões e não a de divisão do argumento como um todo
em seus elementos constituintes o que marca o significado latino de reductio.
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Apêndice I: Da ανάλυσις aristotélica 302
Se esta interpretação é válida, poderíamos parafrasear o próprio Byrne
dizendo que uma conclusão é “elevada” em sua inteligibilidade quando é
“reconduzida” às premissas e à forma lógica do argumento; os fatos são
“elevados” quando são “reconduzidos” aos seus princípios; ou ainda, a potência é
“elevada” quando é “reconduzida” ao ato. Com efeito, é uma marca indelével de
Aristóteles distinguir a ordem do conhecer da ordem do ser, o que lhe permite
entender o ato como anterior à potência, os princípios ou as causas como
anteriores aos efeitos na ordem do ser, mas posteriores na ordem do conhecer.
Ordem esta que dá sentido à própria análise, quer esta seja entendida como
elevação aos princípios, às formas e ao ato, quer como re-condução aos princípios,
às formas e ao ato.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 303
Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo
A apresentação dos diversos significados de “análise” em Aristóteles
permite entrever a polissemia e a complexidade deste termo no corpus
aristotelicum, que ora está vinculado ao ato mesmo de divisão ou dissolução de
uma coisa em seus elementos constituintes, ora à investigação deliberativa dos
meios que antecedem à finalidade da ação na ordem prática, ora se refere à
transição conceitual do que é diverso num certo gênero-subalterno ao que é
comum em outro gênero-supremo ou à descoberta da forma lógica do raciocínio e
da união formal entre a conclusão e as premissas.
Daqui emergem os quatro significados de análise presentes no corpus
aristotelicum, já previamente mencionados, a saber: 1) análise holológica; 2)
análise metafísica das categorias ou modos de ser do ente; 3) análise teleológica
no domínio prático; 4) análise lógica dos conceitos e dos argumentos. Em todos
estes casos, a solução de um problema filosófico não se dá pela mera divisão
material do todo em suas partes, nem por redução do que é logicamente confuso e
indistinto em seus elementos constituintes. Assumindo como modelo analógico a
análise geométrica, Aristóteles ampliou o significado de análise para o âmbito das
discussões filosóficas, entendendo-a como a descoberta da “conexão inteligível”
ou união formal entre os diversos constituintes do problema filosófico, que
permaneceria ininteligível sem a análise filosófica.
Essa descoberta foi caracterizada como uma verdadeira transição intelectual
do mais conhecido ao menos conhecido para nós, sendo qualificada, ao mesmo
tempo, como uma recondução e uma elevação a partir do que é dado como efeito,
fato ou conclusão às suas causas e aos seus princípios. Os diversos significados
unem-se de modo analógico no sentido mais geral de análise como a transição ao
princípio, que é sempre último na ordem do conhecer, pois a resolução é sempre
daquilo que é posterior numa certa ordem em algo que lhe é necessariamente
anterior.
Importa agora descrever algumas das diversas acepções de resolutio,
correspondente latino de “ανάλυσις”, na tradição medieval anterior a Tomás de
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 304
Aquino. A cautela no exame das noções medievais de resolutio e sua comparação
com os sentidos aristotélicos de análise deve evitar tanto a simplificação doutrinal
que resultaria da mera identificação dos sentidos de ανάλυσις e resolutio quanto a
tese da incomensurabilidade destas noções.
O que constitui o ponto de partida desse exame é a seguinte questão: a
divergência de vocabulário existente entre a doutrina aristotélica e a medieval é
simplesmente verbal ou reflete uma diferença doutrinal? A diversidade do
contexto histórico-doutrinal, em que se encontra a teoria aristotélica e as teorias
medievais, evidenciará que a diferença entre as mesmas não é só terminológica,
mas de relevo doutrinal. Entretanto, as diferenças doutrinais sobre o significado de
resolutio entre os medievais resguardam entre si uma semelhança estrutural com
os sentidos aristotélicos de análise, ao mesmo tempo que deles se distancia pela
incorporação do visão neoplatônica de resolutio como reductio ad unum.
Da resolutio holológica
O primeiro texto latino que discute a natureza e a finalidade da análise e da
síntese como métodos filosóficos é o comentário de Calcídio (ca. 300) ao Timeu
de Platão
53
. Para este cristão neoplatônico do século quarto, o que define o método
propriamente filosófico é a “duplex probatio”, ou seja, o duplo método de
demonstração, denominado de resolutio e compositio
54
. É no contexto da
discussão do número e da natureza dos princípios das coisas que Calcídio formula
seu método
55
.
53
Até o séc. V d.C., houve uma contínua tradição de comentários sobre o Timaeus de
Platão, que incluiu, em adição a Plutarco, Plotino e Proclo, o comentário latino de Calcídio. O
Timaeus foi, por séculos, a única obra conhecida de Platão pelos medievais na tradução latina
incompleta com comentário de Calcídio, tornando-se a principal e única fonte genuína no
platonismo medieval.
54
Na tradição dos Padres Gregos, João Damasceno, transmissor da cultura grega ao mundo
mulçumano, em sua Dialectica (PG XCIV, c. 68, p. 671), define a resolução como transição dos
compostos nos simples de modo materialiter (resolução holológica): “Sciendum est quatuor esse
dialecticas methodos, id est logicas; divisionois, quae nimiruni genus in species per differentias
interjectas et medias dividit; definittionis quae ex genere et differentiis per priorem illam divisis,
subiectum definit; resolutionis quae composita in simpliciora resolvit; hoc est, corpus in humores;
humores in fructus; fructus in quatuor elementa; elementa denique in materiam et formam;
demonstrationis quae per medium aliquid probat subiectum argumentum (...)”.
55
“Est igitur propositarum quaestionum duplex probatio. Altera quae ex antiquioribus
posteriora confirmat, quod est proprius syllogismi. Praecedunt quippe ordine acceptionis, quae
elementa vocantur, conclusionem. Altera item, quae posterioribus ad praecedentium indaginem
gradatim pervenit; quod genus probationis resolutio dicitur. Nos ergo quia de initiis sermo est,
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 305
O problema pressuposto por Calcídio é o do conhecimento da matéria
enquanto princípio potencial último de todas as coisas sensíveis e que não existe à
parte destas. Como a matéria per se não existe, o seu conhecimento só é possível
por resolução. Doravante, a resolutio é um método de descoberta que principia
pelas coisas sensíveis, anteriores na ordem do conhecimento (mais conhecidas
para nós) a partir das quais conhecemos os princípios materiais das coisas, que são
anteriores na ordem da natureza ou do ser. A análise holológica enquanto
decomposição da coisa em seus princípios constitutivos é uma investigação
intelectual que vai dos efeitos sensíveis ao princípio material, constituindo-se
como uma espécie de resolução regressiva.
Por sua vez, em Calcídio, a compositio é o método inverso ao da resolutio,
consistindo em assumir os princípios primeiros como dados (mais evidentes em si
mesmos) e a partir deles alcançar as conclusões particulares a respeito de todas as
coisas. Como movimento intelectual oposto à resolutio, a compositio é uma via de
união, enquanto aquela é uma via de separação. É por essa razão que a resolutio é
claramente um método de divisão ou redução em Calcídio, que principia pela
separação das formas e figuras das coisas sensíveis para alcançar o princípio
material que contém e sustém todas as coisas materiais.
Se, por meio de nosso intelecto, procuramos afastar as qualidades e as quantidades,
estas formas e figuras, e então consideramos o que mantém todas estas coisas
inseparavelmente juntas e as contém, devemos descobrir que não há nada além do
que procuramos, isto é, a matéria, e, desta feita, encontramos o princípio material.
Este é um dos dois métodos possíveis de argumentar, denominado resolução.
56
Os dois procedimentos não formam um único método. A resolutio é o
método que permite alcançar os princípios materiais das coisas e, a partir desta, a
quibus antiquius nihil est, utemur probationis remediis ex resolutione manantibus (...). Sunt ergo
tam sensibilia quam intelligibilia. Et intelligibilia quidem sunt, quae intellectu comprehenduntur
rationabili indagine. Sensilia vero, quae irrationabili opinione praesumuntur, incerto quodam
opinionis eventu. Illa quidem ex aeternitate, nec ullum initium habentia; haec temporaria, et ex
aliquo initio temporis e regione nostra primaria, ad naturam versus secunda. Rursum intelligibilia,
e regione quidem naturae priora, juxta nos vero secunda sunt. Quotus quisque igitur in disputatione
sic exordietur, ut ab iis quae prima sunt ad nos versum, ascendat ad ea, quae sunt a nobis secunda,
resolvere dicitur quaestionem (...).” (CALCÍDIO. Timaeus a Calcídio translatus commentarioque
instructus. London & Leiden: E.J. Brill, 1962, sec. 303. apud, RÉGIS, L.-M. Ibidem., p. 21-22).
56
“Si ergo has qualitates et quantitates, etiam formas figurasque volemus inseparabiliter
adhaerens complexumque contineat, inveniemus nihil aliud esse quam id quad quaerimus, silvam;
inventa igitur est origo silvestris. Et hoc quidem est unum duarum probationum genus, quod
resolutio dicitur” (CALCÍDIO. Timaeus a Calcídio translatus commentarioque instructus. London
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 306
matéria-prima de todas as coisas pela separação ou divisão do que não é
estritamente material no objeto (gêneros, qualidades e formas). Há aqui evidente
analogia entre o processo físico ou material de dissolução de uma coisa em outra e
o processo intelectual de separação das formas, que culmina na afirmação da
matéria informe. Não é por acaso que Calcídio utiliza não só o termo resolutio,
mas também dissolutio para descrever o processo intelectual análogo à
transformação e transição físicas de uma coisa sensível em seus elementos
materiais e destes na matéria primeira informe (silva).
A compositio, ao contrário, é uma espécie de reconstrução do objeto pela
união do que foi separado pela resolutio. Além disso, a compositio tem uma
aplicação mais ampla na medida em que conduz à demonstração dos princípios e
relações formais (genera, qualitates, figuras), além de conduzir à compreensão da
ordem do todo à luz do princípio primeiríssimo de tudo, Deus
57
. Por essa razão, na
ordem da natureza, a compositio das coisas sensíveis é anterior à resolutio
(entendida como dissolução material). Na ordem do conhecer, porém, ocorre o
inverso: a resolutio é anterior à compositio porque parte dos efeitos mais
conhecidos por nós às causas ou princípios mais cognoscíveis em si mesmos.
Calcídio, portanto, compartilha o sentido mais geral de análise proposto por
Aristóteles, ou seja, a resolução do posterior nos seus antecedentes, princípios ou
causas. Não obstante, Calcídio reduz significativamente o alcance metafísico da
análise ou resolução ao compreendê-la como via de descoberta do princípio
material dos entes corpóreos. É este horizonte da resolutio calcidiana que conduz
& Leiden: E.J. Brill, 1962, sec. 302. Apud, RÉGIS, L.-M. Ibidem., p. 21-22 Apud, RÉGIS, L.-M.,
Ibidem., p. 22).
57
“Nunc illud aliud consideremus, quod compositio cognominatur. Sequitur quippe
resolutionem compositio et discretionem concretio. Quae igitur modo separare animo videbamur a
silva, rursus ei repraesentemus ac velut in suum locum reponamus, hoc est genera, qualitates,
figuras. Nec inordinate haec ipsa et utcunque, sed cum cultu et ordine. Ordo autem sine harmonia
esse non potest. Harmonia demum analogiae comes est. Analogia item cum raitone, et demum
ratio comes individua providentiae reperitur. Nec vero providentia sine intellectu est;
intellectusque sine mente non est. Mens ergo Dei modulavit, ordinavit, excoluit omnem
continentiam corporis. Inventa ergo est demum opificis divina origo (...). Opera vero ejus
intellectus sunt, qui a Graecis ideae vocantur: quo pacto invenitur tertia exemplaris origo rerum.
Porro ideae sunt exempla naturalium rerum. Igitur, silvam quidem juxta legem rationemque
dissolutionis invenimus, juxta compositionis vero praecepta ipsum opificem Deum.” (CALCÍDIO.
Timaeus a Calcídio translatus commentarioque instructus. London & Leiden: E.J. Brill, 1962, sec.
302. Apud, RÉGIS, L.-M. Ibidem., p. 21-22 Apud, RÉGIS, L.-M., Ibidem., p. 22).
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 307
à posterior identificação da análise com a divisão material do todo em suas partes
constituintes, paradigmaticamente expressa pelo termo “dissolutio
58
.
Assim como Calcídio, na história da tradução e compreensão latina do
termo “ανάλυσις” e seus cognatos, a importância de Boécio (c. 480-525/6) não
pode ser olvidada. Este foi, em primeiro lugar, responsável por uma das principais
fontes da tradução dos termos “ανάλυσις” e “ανάλιτικως” para “resolutio” e
resolutoriis”, o que dá à resolução um status de conceito filosófico
essencialmente derivado dos Analíticos de Aristóteles
59
. Em segundo lugar, deve-
se ressaltar que Boécio contrapôs as resoluções (resolutoria) aos tópicos (topica)
como duas fases de um único método filosófico. A resolução seria responsável
pelo conhecimento judicativo da verdade (judicativa veritatis), enquanto os
tópicos seriam vinculados à ordem de invenção da verdade (inventiva veritatis)
60
.
Em Boécio, a resolução é a divisão dos argumentos demonstrativos em suas
partes e a compreensão da necessidade da verdade do juízo dele resultante. Por
isso, a análise não tem como ponto de partida as conclusões e termo último a
descoberta da forma lógica do raciocínio, mas sim a resolução dos argumentos nas
demonstrações por um processo contínuo de divisões das demonstrações nas
figuras, das figuras nas premissas e conclusões, das sentenças (premissas e
conclusões) em seus termos, até que se possa compreender a necessidade da
verdade da conclusão (via iudicii veritatis). Dos comentadores gregos de
Aristóteles
61
a Calcídio, passando por Boécio, o significado primordial de análise
parece estar definitivamente vinculado ao de divisão e separação, cuja principal
referência, em Calcídio, é a dissolução física de um ente corpóreo em seus
elementos constitutivos, enquanto, em Boécio, é a divisão dos argumentos e das
demonstrações em sua estrutura formal.
Vimos que o processo físico de dissolução subjaz ao primeiro significado de
análise holológica já presente nos Metereológicos de Aristóteles. Contudo, o que
favorece a redução da análise a este único significado no período medieval é a
utilização da dissolutio como sinônimo de resolutio. É o que se pode corroborar
58
É importante recordar que o próprio Aristóteles já havia criticado a compreensão da
análise como mera divisão material do composto, em sua discussão com a via dos pré-socráticos.
59
Sobre a noção de resolutio em Boécio, confira: RÉGIS, L.-M. op. cit., p. 307-308.
60
BOÉCIO. In Top. Ciceronis, lib. I, PL, 64, col. 1047B-C ; Diff. Topicis, lib. I, PL, 64, col.
1174 C. apud, RÉGIS, L.-M. op. cit., p. 308, n. 1.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 308
pela leitura dos autores do século doze que identificam preferencialmente a
resolutio à dissolutio. Dentre as fontes textuais deste período, destaca-se a de
Clarembaldo de Arras (ca. 1110/20- ca.1187)
62
que, em seu comentário ao De
Trinitate de Boécio, descreve o processo de abstração das qualidades como
dissolutio, identificando o que é último na dissolutio com o que é primeiro na
composição material (compositio) dos entes corpóreos
63
.
Ainda no século doze, João de Salisbury (ca. 1115/20-1180) aborda a
natureza e utilidade da análise em sua obra Metalogicon (1159). Em sendo a
primeira obra latina que demonstra um conhecimento de todos os livros do
Organon, em especial dos Segundos Analíticos
64
, o Metalogicon constitui uma
referência obrigatória para a compreensão da história da resolutio no medievo.
João de Salisbury não parece ir muito além da concepção calcidiana de análise
uma vez que a define em termos da divisão do que é composto em suas partes ou
elementos constituintes
65
. Entretanto, o ponto de partida e o termo último da
análise, em João de Salisbury, contrasta com a compreensão de Calcídio na
medida em que compreende a resolutio como uma via de análise das expressões
ou sentenças, ao invés da dissolutio material. Emerge aqui uma variante da
resolutio-dissolutio relativa à tradução do que não é evidente ao que é evidente.
Vejamos como isso ocorre no Metalogicon, nossa principal fonte sobre o
significado de resolutio para João de Salisbury.
O objetivo central do Metalogicon é defender a unidade das disciplinas ou
partes da filosofia, em especial mostrar que a eloqüencia e as artes do trivium,
artes do raciocínio e da expressão verbal, não estão separadas da sabedoria. O
título original da obra é uma síntese de derivação dos termos gregos “µετα” e
λογικων”, significando uma investigação sobre a lógica ou a arte das sentenças e
61
Sobre o significado de análise para os comentadores gregos de Aristóteles, confira:
SWEENEY, E. op. cit., p. 207-208.
62
Clarembaldo de Arras pertenceu à Escola de Chartres, junto a qual estavam vinculados
Thierry de Chartres (fl. c. 1130-1150) e Gilberto de Poitiers (c. 1085-1154), que se concentraram
na compreensão e comentário da tradição neoplatônica e aristotélica a partir dos tratados
teológicos de Boécio. A sua principal obra consiste em comentários a Boécio e na elaboração de
um breve tratado (Tractatulus) de síntese entre as teorias platônicas da criação e a narração da
criação no Gênesis, incluindo aqui uma discussão sobre a natureza da forma e da matéria.
63
SWEENEY, E. op. cit., p. 208, n. 29.
64
Sobre a história das traduções latinas do Organon, em particular, e das obras de
Aristóteles em geral, confira: DOD, Bernard G. Aristoteles Latinus. In N. Kretzmann & A. Kenny
(ed.). The Cambridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1988, p. 45-79.
65
SALISBURY, J. The Metalogicon, IV, cap. 1-8.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 309
dos raciocínios. O autor nos informa, no prefácio, que o título é, além disso, uma
defesa dos estudos do trivium diante das acusações de um certo grupo que
Salisbury denomina de “Cornificus”
66
.
Salisbury consagra o quarto livro do Metalogicon ao exame dos Analíticos
de Aristóteles. Do primeiro ao oitavo capítulo, o autor explora a posição dos
Analíticos no corpus aristotelicum, elucida o significado etimológico e filosófico
do seu título, distingue seu objeto das demais disciplinas filosóficas, em especial
da retórica, bem como as dificuldades desta ciência. Para Salisbury, a ciência dos
Analíticos é tão útil que qualquer um que professasse ser um lógico sem ela seria
ridículo
67
. O significado do título desta ciência se compreende, como em Boécio,
quando se tem notícia do que o termo grego “analeticen
68
significa
resolutoriam”, o que pode ser entendido de modo mais inteligível quando a
traduz por “expressão equivalente”
69
. Isto justifica-se na medida em que “ana”,
em grego, pode ser traduzido por “igual”, enquanto “lexim” se traduz por
“expressão”. Nasce aqui o sentido de análise como tradução, ou melhor,
conversão de um termo ou uma sentença em outra mais inteligível.
Quando o significado de uma expressão não é evidente ou não é familiar,
explica Salisbury, desejamos que a mesma seja esclarecida pela resolução
equivalente em algo que é mais facilmente conhecido por nós. Neste sentido,
pedimos diante de algo não-evidente e pouco familiar que isto seja “analisado”.
Com efeito, pedir que algo seja “analisado” é solicitar ao interlocutor que explique
o não-evidente em termos equivalentes, porém, mais evidentes. Ora, agir desta
maneira é dividir as expressões compostas em seus elementos constituintes. Por
isso, à propriedade da análise de tornar evidente o não-evidente pela equivalência
do não-evidente em termos de algo evidente soma-se o significado primordial de
análise como a divisão do que é composto em suas partes. São estas propriedades
intelectuais da análise que a tornam um instrumento não só últil, mas
indispensável para a aquisição do conhecimento científico
70
.
66
SALISBURY, J. ibid., I, p. 1-3.
67
Id. ibid., IV, cap. 2, p. 205.
68
O editor e tradutor do Metalogicon observa que “analeticen” é uma translação latina do
termo grego. Cf. Id. ibid., IV, 2, p. 205, n. 15.
69
“And its name becomes still more intelligible when we translate Analyticen as
‘equivalent expression’.” (Id. ibid., IV, 2, p. 205.).
70
“When my [greek] interpreter would hear a term with wich he was not familiar,
especially if it was a compound word, he would say to me: ‘Analyse this’, signifying that he would
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 310
Após determinar a razão de ser do título e o objetivo geral dos Analíticos,
Salisbury passa a considerar separadamente os objetivos de cada um dos livros
dos Analíticos separadamente. Ao longo da descrição dos objetivos do primeiro e
do segundo livro dos Analíticos (capítulos quarto e quinto respectivamente),
Salisbury não se preocupa em mostrar em que medida a explicação aristotélica da
natureza dos raciocínios dialéticos e demonstrativos, das proposições universais,
particulares e indefinidas, dos silogismos perfeitos e imperfeitos, bem como a
compreensão dos termos, sujeito e predicado, e das conversões são relativas à
“análise” propriamente dita.
Ao longo da apresentação dos objetivos dos Analíticos, Salisbury demonstra
ser absolutamente sintético na aproximação dos itens tratados por Aristóteles,
reiterando constantemente que os Analíticos é demasiadamente extenso em
exemplos, incompleto em relação a certos tópicos (p.ex., os silogismos modais),
insuficiente quanto às expressões retóricas
71
. Em raras ocasiões, Salisbury
menciona a correlação entre a análise e os tópicos dos Analíticos. Somos
informados de que Aristóteles, no primeiro livro, “analisa as três figuras” e
explica “como os silogismos podem ser reduzidos ao modo da primeira figura”,
mas em nenhum momento Salisbury aprofunda em que consiste a “análise” das
figuras e a “redução” dos silogismos.
Em princípio, considerando que o objetivo geral do Metalogicon é a
investigação das expressões e dos raciocínios e que a análise é a translação de
algo não-evidente em algo evidente, as figuras dos silogismos estariam para os
raciocínios como as formas evidentes estão para as não-evidentes. O mesmo
valeria para a relação entre o silogismo categórico e os não-categóricos e entre os
like to have it explained in equivalent terms. Such analysis into component parts is a very great aid
to our intellect in the acquisition of [scientific] knowledge.” (Id., ibid.).
71
“Although what it teaches is necessary, the book [of the Analytics] is not itself equally
necessary. For everything the work contains is elsewhere explained in an easier and more
satisfactory manner, though certainly nowhere with more precise accuray or more forceful
congency, since, even from the unwilling, this book extorts assent.” (Id., ibid., p. 205); “But the
book is so confusing because of its intrincately involved examples (…)” (Ibid., cap. 3, p. 206);
“(…) this book is practically worthless for providing rethorical expression” (Ibid.); “But, even
though it achieves its purpose to a certain degree, it by no means fully measures up to what its
promise would lead one to expect” (Ibid., IV, cap. 5, p. 211). João de Salisbury não hesita, deste
modo, em mostrar a sua preferência pela retórica, em detrimento da análise lógica e demonstrativa.
Afinal, para Salisbury, a retórica é suficiente e mais fácil do que a lógica para persuadir o homem
da necessidade de uma vida virtuosa.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 311
princípios evidentes por si e as premissas dos silogismos. Em todos estes casos, a
análise consistiria na passagem do que não é evidente a algo evidente.
Se esta interpretação é correta, então há um sentido mais abrangente de
análise para Salisbury do que a mera divisão do composto em suas partes, do
complexo no simples. Ao que parece, a análise enquanto divisão está subordinada
ao sentido mais geral de análise enquanto transição do não-evidente ao evidente.
Entretanto, o único exemplo do sentido de análise nos Analíticos que de fato está
presente no Metalogicon é efetivamente a divisão das expressões nas palavras, o
que poderia ser estendida à divisão das demonstrações no silogismo, do silogismo
nas figuras, das figuras nas proposições (premissas e conclusões) e destas nos
termos, tal como exposto primeiramente por Boécio.
Da resolutio etiológica
No período medieval, ao lado do significado de resolutio como divisio sive
dissolutio (Calcídio) e resolutio como divisio sive judicativa veritatis (Boécio), há
uma outra acepção de resolutio que está intrinsecamente vinculada à perspectiva
neoplatônica
72
. A compreensão da resolutio no âmbito do neoplatonismo
medieval opõe-se à concepção da análise como mera divisão, separação ou
dissolução do todo em seus elementos ou princípios constitutivos materiais.
Enquanto nesta última perspectiva, a resolutio é análise holológica descendente,
direcionada para os elementos ou partes de um todo integrante, material (Calcídio)
ou formalmente considerado (Boécio e Salisbury), na perspectiva neoplatônica a
resolutio é análise essencialmente etiológica, voltada “para cima”, ou seja, para as
causas ou princípios mais universais de todas as coisas
73
.
A novidade da noção neoplatônica de análise ou resolução é uma
conseqüência da afirmação da necessária processão (proodos) e regressão
(epistrophê) de todas as coisas ao Uno. Como a divisão está implicada na
processão e a união na regressão, o movimento resolutório dos efeitos à causa será
compreendido como uma ascensão ou elevação intelectual que se dá pela
72
Sobre a tradição neoplatônica, confira: GATTI, Maria L. Plotinus: the platonic tradition
and the foundation of neoplatonism. In: GERSON, Lloyd P. (ed.). The Cambridge companion to
Plotinus. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1996, p.10-37.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 312
regressão unificadora dos efeitos aos princípios, do múltiplo à unidade, do diverso
ao comum, do composto ao simples. Doravante, a tradição neoplatônica, reserva o
termo “análise” para a transição ascendente dos efeitos à causa, opondo-o à
“divisão” (que, em Calcídio, é sinônimo de análise). É o que se pode observar da
explicação de Plotino para a natureza e a finalidade das partes da dialética no
Tratado das Enéadas:
O que é essa dialética, que também deve ser ensinada ao músico e ao amoroso? É
uma ciência que pode se pronunciar a respeito da verdade final, da natureza e da
relação de todas as coisas. Pode dizer o que cada coisa é, como difere das outras,
que qualidade comum têm, a qual espécie cada coisa pertence, onde cada espécie
reside, e se sua existência é em ato ou em potência. A dialética também trata do
Bem e do não-Bem, e das coisas que são classificadas como boas ou como seu
contrário, e do que é eterno e do que não é eterno – não como uma mera opinião,
mas como uma ciência autêntica. (...) Ela emprega o método platônico da divisão
para discernir as espécies de um gênero, para definir a natureza essencial de cada
coisa e para chegar à Forma ideal [ao arquétipo] e às primeiras espécies [ou
categorias]. À luz da Inteligência, ela estabelece a filiação de tudo que procede
dessas primeiras espécies, até ter atravessado todo o Mundo Inteligível; então, pela
análise, toma o caminho contrário e retorna ao Primeiro Princípio.
74
Em sua Teologia Platônica, Proclo retoma a característica ascensional da
análise etiológica como parte do método dialético nos seguintes termos: “Nossa
dialética realiza grande uso da divisão e da análise como os principais meios do
conhecimento e como imitando a processão dos seres a partir do Uno e o seu
retorno ao mesmo (...)”
75
. Deve-se reconhecer, nesta perspectiva metafísica, o
sentido claramente negativo da divisão e do múltiplo que será superado pela
resolução de todas as coisas ao uno (resolutio ad unum).
Em sede neoplatônica, a tarefa da análise é sempre o retorno ou a regressão
do que foi dividido ao seu princípio ou causa simples e mais universal (análise
etiológica) e não o prolongamento das divisões e multiplicações dos seres em seus
elementos constituintes (análise holológica, segundo Calcídio). A via da análise é,
portanto, inversa e oposta à via da divisão. Essa última parte do primeiro princípio
para o múltiplo, aquela parte do múltiplo ou dos efeitos para a causa primeiríssima
73
Cf. BUSSANICH, John. Plotinus’s metaphysics of the One. In: GERSON, Lloyd P. (ed.).
ibid., p. 38-65; SWEENEY, E. op. cit., p. 215-217.
74
PLOTINO. Tratado das Enéadas, I, 3, 4, p. 48-49 (grifo nosso).
75
“Our dialetic makes great use of division and analysis as the principal means of
knowledge and as imitating the procession of beings from the One and their reversion back again”
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 313
de todas as coisas, que é una por si mesma. Ambas são partes de um único
método, a dialética, mas somente a análise etiológica corresponde à dimensão
ascendente não só da inteligência em sua busca pelo conhecimento de todas as
coisas no primeiro princípio, mas da própria realidade que deve regredir
(epistrophé) à sua causa primeiríssima.
Uma outra característica marcante da tradição neoplatônica da análise ou
resolução é a compreensão da necessária existência da composição (compositio)
em tudo aquilo que não é o próprio Uno. Com efeito, a absoluta simplicidade do
Uno contrasta com a necessária composição de todas as coisas que não são o Uno.
O que provém do Uno é uno (ad unum non fit nisi unum), mas sob uma nova
condição: a compositio. Esta compositio originária significa uma real separação
entre o Uno e o que dele provém, mas implica, por outro lado, na necessária
resolutio do que não é essencialmente uno no Uno, a fim de que aquilo que é
essencialmente composto possa retornar ao que é essencialmente simples. O Uno,
por ser “auto kath’auto”, não pode ser composto, não pode ter partes, nem
tampouco qualquer relação interna ou externa
76
.
Deste modo, se do movimento descendente de separação (divisio) provém
todas as coisas que estão submetidas à condição metafísica da composição
(compositio), então somente um movimento ascendente de análise pode superar a
condição compositiva, preparando a união contemplativa com a verdade tal como
existe na natureza da Inteligência
77
. Mas, não se deve esquecer que, para Plotino,
a racionalidade discursiva (dianoia), que se utiliza dos conceitos para a análise e
se move sucessiva e inferencialmente, não pode realizar a união efetiva com o
Uno, mas somente preparar seu advento
78
. Daqui surge o valor das comparações
analógicas (analogiai) e das negações (aphairesis) para o conhecimento
contemplativo do Uno
79
.
(PROCLO. Théologie Platonicienne. Paris: Societé d’Edition, 1968, vol. I, 1, 9, p. 40, apud,
Sweeney, E. op. cit., p. 12).
76
PLOTINO. Ennéades. VI, 8, 8; VI, 9, 6.
77
Sobre a finalidade da dialética em relação à alma e ao intelecto, confira:
BLUMENTHAL, Henry J. On soul and intellect. In: Gerson, Lloyd (ed.). op. cit., p. 82-104.
78
Id. Ibid., V, 3, 2-3, 7-9; cf. BUSSANICH, John. op. cit., p. 39.
79
Id. Ibid., VI, 7, 36; cf. BUSSANICH, John. op. cit., p. 40-41.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 314
Esta cosmovisão é patente na obra de João Escoto Eriúgena (c. 800 - c.
877)
80
. No início do primeiro capítulo do Tratado sobre a Predestinação Divina,
Eriúgena afirma que a filosofia (philosophia) é a disciplina que investiga todas as
coisas num sistema doutrinal verdadeiro e completo. Se, como diz Agostinho, a
filosofia enquanto estudo da sabedoria não é outra coisa diversa da religião, mas a
exposição das regras e doutrinas da verdadeira religião pelas quais se conhece a
causa primeira de todas as coisas, então “a verdadeira filosofia é a verdadeira
religião”
81
. Mas, se o objeto de investigação da filosofia é o mesmo que a religião,
pois ambas se referem a causa primeiríssima de todas as coisas, a filosofia, porém,
se diferencia da religião em razão de suas partes e do modo de conhecer a causa
primeiríssima.
A fim de esclarecer não só o objeto de estudo da filosofia como sendo
idêntico ao da religião, mas, sobretudo, suas divisões ou partes constituintes,
Eriúgena aborda o problema do método da própria filosofia. Mesmo que haja uma
diversidade das partes da filosofia, parece existir, argumenta Eriúgena, uma
unidade no método filosófico de solução das questões. Esta unidade não se opõe à
diversidade das partes necessárias para a solução dos problemas filosóficos
82
.
Os gregos denominaram as partes da filosofia de: 1) “diairetike”; 2)
optike”; 3) “apoditike”; 4) “analitike”; enquanto, os latinos chamaram
respectivamente de: 1)diuisoria”; 2) “diffinitiua”; 3) “demonstratiua”; 4)
resolutiua
83
. Em plena sintonia com a tradição neoplatônica, Eriúgena entende a
parte da filosofia denominada de “diairetike” ou “diuisoria” como separada e
oposta à parte resolutória. A razão desta distinção consiste em que “a primeira
procede pela divisão do que é uno em muitos, separados; a segunda, pela
determinação do que é uno a partir de muitos, conclui; a terceira, pela indicação
80
Sobre a noção de resolutio em João Escoto Eriúgena, confira: RÉGIS, L-M. op. cit., p.
308-309; SWEENEY, Eileen. op. cit., p. 215-219.
81
“It follows then that true philosophy is true religion and conversely that true religion is
true philosophy” (ERIUGENA. Tratise on Divine Predestination, cap. 1, p. 7).
82
“While philosophy may in many and various ways be divided up, it is seen, however, to
have twice two principal parts necessary for the solution of every question” (EIUGENA. Ibidem.,
p. 7-8).
83
Idem. Ibidem., p. 8.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 315
do que está velado a partir do que é manifesto, revela; a quarta, pela separação dos
compostos nos simples, resolve”
84
.
Em princípio, a definição de Eriúgena para resolutio não parece diferir
substancialmente daquela proposta por Calcídio. Afinal, poder-se-ia pensar que “a
separação dos compostos nos simples” nada mais é do que a divisão da coisa
material em seus elementos ou partes constituintes. Neste caso, a parte resolutória
da filosofia, da qual fala Eriúgena, se identificaria com a análise holológica de
Calcídio. No entanto, o contraste estabelecido entre a parte da filosofia
denominada “diairetike (“diuisoria”) e aquela outra conhecida como “analitike
(“resolutiua”) lança luz sobre a especificidade da resolução em relação à divisão.
Em termos neoplatônicos, a divisão é sempre o ato concomitante à processão do
múltiplo a partir do Uno, que se tornam doravante separados. Por oposição, a
resolução não é a divisão, mas a descoberta do que é simples na natureza das
coisas compostas.
A resolução etiológica realiza a regressão (intelectual-formal e não física-
material) do composto no que é simples no sentido de resolver as essências
compostas nas essências simples, indivisíveis e unas em si mesmas. Por outro
lado, uma vez que as essências simples são as causas primeiras dos compostos,
então a resolutio é a regressão das coisas compostas e diversas entre si em seus
princípios mais simples até que todas as coisas compostas sejam resolvidas nas
simples e as simples regressem novamente ao Uno. Esta resolução etiológica é
sempre uma transição intelectual-formal do que é diverso, particular, específico e
composto ao que é uno, universal, genérico e simples em si mesmo.
Se há uma analogia entre a resolutio de Eriúgena e aquela de Calcídio, esta
consiste em que a análise holológica de Calcídio é etiológica por excelência uma
vez que encontra seu termo no princípio ou causa material das coisas corpóreas.
Mas, uma vez que a causa de todas as causas e o princípio primeiríssimo de todas
as coisas no neoplatonismo é outro em relação à matéria, a análise etiológica de
Eriúgena é essencialmente regressiva-ascendente, enquanto a de Calcídio é
regressiva-descendente. Com efeito, a simplicidade obtida por resolução, segundo
Calcídio, se resume à simplicidade das partes ou dos elementos materiais de um
84
“Of these, the first by dividing one into many, separates; the second, by determining one
from among many, concludes; the third, by indicating what is hidden through what is manifest,
reveals; the fourth, by separating compound intro simple, resolves” (Id., ibid.).
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 316
todo integral, enquanto a simplicidade alcançada pela resolutio ou reductio ad
unum neoplatônica é a própria essência do Uno, que não possui partes nem
elementos. Em suma, a resolução etiológica de Calcídio conduz ao que há de mais
elementar e intrínseco nas realidades sensíveis por dissolução do composto
sensível, enquanto a resolução etiológica de Eriúgena está ordenada ao Uno, que
transcende e é causa de tudo o que é. É o que se pode corroborar pela seguinte
passagem do Periphyseon:
Não há nenhuma divisão racional, quer seja da essência nos gêneros ou do gênero
nas espécies e indivíduos ou do todo em suas partes (...) ou do universo em suas
divisões que a reta razão contemple nelas mesmas, que não possa novamente ser
reconduzida pelos mesmos estágios através dos quais a divisão foi previamente
ramificada na multiplicidade, até que se alcance o Uno, que permanece inseparável
em si mesmo em relação àquilo do qual a divisão assumiu sua origem.
85
É esta perspectiva, de origem evidentemente neoplatônica, que marca o
advento de uma nova compreensão que separa a via de divisão e a via de
resolução. Enquanto a primeira dá origem ao múltiplo, a segunda reconduz o
múltiplo ao uno, o materialmente composto ao imaterialmente simples. Trata-se,
doravante, de dois aspectos da dinâmica da própria realidade que procede do Uno
por divisão e a ele deve retornar por resolução ou análise. Mais do que qualquer
outra parte da filosofia, a resolutio é o método por excelência do metafísico que,
após contemplar a processão das coisas a partir do Uno, “reconduz” todas as
coisas à sua unidade originária, que não possui nem partes, nem entra em
composição com qualquer coisa, sendo absolutamente separada.
Por essa razão, só a resolutio etiológica pode transcender os limites da
composição e divisão material, regredindo à causa primordial, simples e universal
de todas as coisas. Em sede neoplatônica, portanto, é a superação da análise
holológica o que está na origem da necessária ascensão ou elevação resolutória ao
Uno. Em suma, o movimento resolutivo da inteligência (nous) é um “espelho da
85
“Nulla enim rationalibus divisio est sive essentiae in genera sive generis in formas et
numeros sive totius in partes (...) sive universitatis in ea quae vera ratio in ipsa contemplatur quae
non iterum possit redigi per eosdem gradus per quos divisio prius fuerat multiplicata donec
perveniatus ad illud unum inseparabiliter in se ipso manes ex quo ipsa divisio primordium
sumpsit”. (ERIUGENAE, Iohannis S. Periphyseon, II, 526a-b. Apud, SWEENEY, E. Ibidem., p.
216, n. 44).
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 317
ordem do ser”
86
, pois assim como os seres procedem do Uno e a ele retornam, a
inteligência procede do simples e ao mais simples retorna por resolução.
Se este panorama histórico é correto, então o pensamento medieval do
século doze foi testemunha da releitura da noção aristotélica de análise à luz da
metafísica neoplatônica do “retorno ao Uno”, especialmente na obra de Eriúgena.
É importante ressaltar não só o advento desta nova acepção de resolutio, oriunda
da metafísica neoplatônica da divisão e do retorno ao Uno, mas também destacar
os limites da apropriação medieval do sentido grego de análise. Com efeito, dos
quatro significados de análise em Aristóteles, somente três receberam a atenção
dos filósofos medievais até o século doze.
Em primeiro lugar, mantém-se a compreensão da análise como resolução
física, ou seja, como dissolução ou divisão do composto em seu princípio material
(Calcídio), que resguarda o primeiro sentido de análise já presente em Aristóteles.
Em segundo lugar, há continuidade na análise enquanto resolução lógica, presente
quer na resolução dos argumentos nos princípios da demonstração (Boécio), quer
na resolução das expressões não-evidentes nas evidentes por si mesmas
(Salisbury). Essas resoluções poderiam ser aproximadas respectivamente ao
quarto (análise lógica dos argumentos) e ao segundo sentido de análise (análise
das definições, fórmulas e gêneros), presentes em Aristóteles.
Até o século doze, portanto, parece estar ausente da reflexão medieval sobre
a resolutio o sentido de análise como investigação pertinente à ordem prática e
análoga à investigação geométrica, tal como exposta na Ética a Nicômaco
87
.
Somente o advento das traduções latinas de todo o corpus aristotelicum,
realizadas no decurso do século treze, juntamente com a prática medieval dos
comentários, na forma de quaestiones ou sententia, vão possibilitar uma nova
abordagem da resolutio enquanto método filosófico de investigação. Dentre as
ocorrências do termo resolutio nas obras do século treze, deve-se distinguir entre
o significado propriamente filosófico de resolutio daquele outro que expressa a
86
A metáfora do espelho é sugerida por E. Sweeney (1994, p. 219).
87
A Ética a Nicômaco circulou no século doze graças a uma tradução, de autor
desconhecido, que continha somente o segundo e o terceiro livros, o que já seria suficiente para o
conhecimento do significado de análise como investigação análoga ao procedimento geométrico.
Esta versão da Ética a Nicômaco é conhecida como “Ethica vetus”. No início do séc. XIII, a Ética
a Nicômaco é finalmente traduzida para o latim a partir do grego de modo, porém, não sistemático.
Dentre as traduções latinas do séc. XIII da Ética a Nicômaco, destacam-se a de Roberto
Grosseteste (1240) e a de Guilherme de Moerbeke (1260). Cf. B. Dod (1988, 47-49).
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 318
mera dissolução ou divisão física de um corpo em seus elementos ou partes
constituintes.
Esse último sentido está presente no Comentário às Sentenças de São
Boaventura (ca. 1217-1274). O termo resolutio aparece no contexto mais geral
das discussões sobre a corrupção e a ressurreição dos corpos. Por analogia,
Boaventura contrasta a via de resolução à via de composição como uma oposição
equivalente à ordem de destruição e de construção
88
. Procura mostrar assim que a
resolução holológica é um processo de corrupção ou destruição do corpo, o que
revela a natureza necessariamente composta dos entes corpóreos. Em outra
ocasião, argumenta que nada pode ser apreendido pelos sentidos do corpo sem a
extensão quantitativa. E observa que a composição do corpo se funda na natureza
extensa e quantitativa da matéria. Sendo assim, é da própria natureza da coisa
material estar sujeita à resolutio, pela qual tudo o que é corpóreo é divisível em
suas partes extensas
89
.
A identificação da resolução com a divisão ou dissolução do todo material
em suas partes integrantes ocorre uma vez mais no Comentário às Sentenças por
ocasião da distinção dos dois modos em que algo pode ser corrompido. Para
Boaventura, um corpo pode corromper-se materialmente quer pela corrupção da
forma, quer pela dissolução do composto em suas partes constituintes. A mesma
passagem que entende a corrupção como dissolução do composto em suas partes,
exemplifica isto em termos de resolutio
90
. A resolutio não significa, assim, um
processo intelectual de descoberta das causas ou princípios formais e universais da
88
Embora este contraste se apresente, primeiramente, em uma objeção, ele revela a
compreensão e o uso dos termos resolutio e compostio em Boaventura: “Ordo enim destructionis
contrairus est ordini constructionis, quae enim sunt ultima in componendo sunt priora in
resolvendo [Arist. Ethica, III, c. 3] (...)” (BOAVENTURA. In II Sententiarum, d. 21, a. 1, q. 3,
obj. 1, p. 496); “Nec oportet etiam, omnino per eundem ordinem respondere reparationem
destructioni; immo frequenter est contratio, sicut via resolutionis et compositionis oppositis modis
habent terminari et inchoari” (Id. In II Sent., d. 22, a. 1, q. 1, p. 517).
89
“Dicendum, quod Augustinus intelligit de visu corporali, et de hoc verum est quod dicit,
quod omne visibile est mutabile. Nihil enim potest videre sensus corporalis sine extensione
quantitatis ; ubicumque autem est extensio quantitatis, ibi est compositio ; ubi vero est compositio,
possibilis est resolutio et mutatio ad minus, quantum est de natura rei" (Id. In II Sent., d. 8, p. 1, a.
3, q. 2, p. 224).
90
“Et propter hoc dicunt alii aliter, quod duplex est corruptio: quaedam per dissolutionem
sive separationem principiorum componentium sive partium; quaedam per corruptionem formae.
(...). Certum est enim quod forma carnis humanae corrumpitur, generatur inde vermis et serpens; et
sicut potest corrumpi in carnem serpentis vel alterius animalis, sic resolvi potst, sicut et illus
animal, etiam in quatuor elementa, et unumquodque elementorum corrumpi in aliud, et ita
corrumpuntur formae mixti et elementi” (Id. In IV Sent., d. 43, a. 1, q. 4, p. 888-889).
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 319
realidade material, mas tão somente um processo de separação, divisão e
dissolução física, cujo termo último são as partes integrantes do todo material.
Se o termo “resolutio aparece em Boaventura de modo incipiente,
vinculado estritamente à dissolução dos corpos (dissolutio corporis), o mesmo
não pode ser dito da apropriação deste termo na obra de Santo Alberto Magno
(1200-1280). O teólogo dominicano, mestre de Tomás de Aquino, foi o primeiro
escolástico a intentar comentar todo o corpus dionysianum e o corpus
aristotelicum. Além disso, trata-se do primeiro a utilizar os diversos significados
de resolutio dispostos pela tradição filosófica de modo sistemático em seus
comentários na forma de quaestiones.
Dentre a volumosa obra de Alberto, as que mais revelam sua concepção
sobre a natureza do método filosófico da resolutio e o da compositio são seus
comentários aos Analíticos de Aristóteles e às obras do Pseudo-Dionísio
91
. Ao
comentar os Primeiros Analíticos, Alberto, seguindo a interpretação de Boécio,
descreve as duas partes da lógica como sendo relativas respectivamente à ordem
da descoberta (ordo inventionis) e à ordem do juízo (ordo judicii) sobre a verdade.
Em seguida, Alberto identifica a tarefa dos Analíticos com a ordem do juízo da
verdade e não com a ordem de descoberta da verdade.
Reaparece aqui a idéia segundo a qual a análise ou resolução diz respeito à
parte da lógica denominada por Boécio “judicativa veritatis”, em contraste com a
ordem da invenção ou descoberta (via inventionis vel inquisitionis). Alberto
acrescenta ainda que a divisão dos Analíticos em Primeiros e Segundos Analíticos
justifica-se na medida em que o primeiro trata da resolução dos argumentos em
suas principais formas silogísticas, enquanto o segundo trata da resolução das
coisas concluídas em seus princípios e causas.
O que há de comum em ambas as obras é, portanto, o método resolutivo que
encaminha para o que é anterior por natureza. Com efeito, não há resolução senão
do que é posterior no anterior (“non resolvitur nisi vel posterius in prius”). A este
sentido mais comum e universal de resolução, Alberto acrescenta que a passagem
do posterior ao anterior ocorre pela resolução dos compostos nos simples, o que
91
Sobre os significados de resolutio e compositio em Santo Alberto Magno, confira:
RÉGINS, L.-M. op. cit., 309-313; SWEENEY, Eileen. op. cit., 220-224; AERTSEN, J. op. cit., p.
56-77.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 320
seria o mesmo que resolver os princípios materiais nos princípios formais
92
.
Sendo assim, coexiste no pensamento de Alberto a concepção de resolução
holológica como divisão do composto em suas partes mais simples com a da
resolução etiológica como regressão ou recondução ao princípio mais formal,
universal e comum.
Em plena sintonia com o Estagirita, Alberto Magno compreende o sentido
mais geral de resolução como a transição do posterior ao anterior quanto à
natureza (“omnis resolutio est ad priora secundum naturam”). Por isso, a análise
ou resolução é sempre anterior quanto ao nosso modo de conhecer (quoad nos),
pois principia pelo que é posterior quanto à natureza e primeiro quanto ao nosso
modo de conhecer para alcançar o que é primeiro quanto à natureza e posterior
quanto ao nosso modo de conhecer. É a partir deste sentido primordial de análise
ou resolução que devemos precisar as espécies de resolutio reconhecidas por
Alberto Magno.
Por ser o primeiro na ordem cronológica, completado antes de 1246,
enquanto Alberto ainda era mestre de teologia na Universidade de Paris (1245-
1248), o Tratado sobre o Bem (De Bono) de Alberto oferece uma das primeiras
versões da compreensão da resolução como método filosófico, intrinsecamente
vinculado à doutrina sobre os transcendentais
93
. Os dez artigos da primeira
questão giram em torno do bem sob a razão comum de bem. No segundo artigo da
primeira questão, Alberto investiga se tudo o que é bom o é por um único bem
simples, denominado de sumo bem.
Neste contexto, encontramos a primeira formulação da resolução etiológica
como via metafísica do composto ao simples em sentido neoplatônico, ou seja,
dos efeitos compostos às causa mais simples e universais. Em sua solução,
pondera Alberto que, formalmente falando, nenhum bem criado é o bem cuja
bondade é primeira. Entretanto, se o que é bom for considerado de modo exemplar
e efetivamente (loquatur exemplariter et effective), então tudo o que é bom o é por
92
“Et quamvis inventio quoad nos prior sit resolutione, eo quod non possit resolvi et
judicari nisi quod jam inventum est, quia omnis resolutio est ad priora secundum naturam, quia
non resolvitur nisi vel posterius in prius, vel compositum in simplex, vel materiale in suum
formale principium; et ideo ars resolvendi et judicandi secundum rationem resolutionis est ante
artem inveniendi” (ALBERTI MAGNI. Liber I Priorum Analyticorum, tr. I, cap. I. Apud, RÉGIS,
L.-M.op. cit., p. 311). Cf. SWEENEY, Eileen. op. cit., p. 222, n. 58.
93
Devemos a J.Aertsen (2004) a análise sobre as relações entre a resolutio e os
transcendentais em Alberto Magno.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 321
uma bondade primeira. Afinal, todo bem criado é efeito da bondade primeira, no
qual se encontra a razão de bondade de modo exemplar
94
.
Deve-se ressaltar, porém, que a comunidade de tudo o que é bom segundo
uma causa exemplar não é a que se funda na participação dos indivíduos numa
mesma espécie, nem na participação das espécies num mesmo gênero. Esta
comunidade poder-se-ia chamar de comunidade em sentido lógico-categorial em
oposição à comunidade metafísica, fundada na participação transcendental. É a
existência destas duas ordens de participação (a lógica-categorial e a metafísica-
transcendental
95
) que faz Alberto diferenciar as ordens de participação e
comunidade dos entes, distinguindo três sentidos para a resolução (resolutio) do
que é diverso no que é comum.
Em primeiro lugar, devemos distinguir a resolução dos indivíduos na
espécie e das espécies no gênero daquela outra resolução das perfeições
participadas em sua causa exemplar. A resolução dos indivíduos na espécie se dá
pela remoção da matéria individuante (per remotionem materia), enquanto a
resolução das espécies no gênero comum ocorre pela remoção das diferenças
específicas (per remotionem differentiarum). É evidente o caráter eminentemente
conceitual ou lógico desta resolução, que está fundamentada em última instância
na capacidade abstrativa do intelecto humano, própria da primeira operação do
intelecto ou simples apreensão. Por seu turno, a resolução dos efeitos na causa é
de natureza essencialmente diversa da mera remoção (remotio) da matéria e das
diferenças específicas, efeito da abstração, pois é aquela que é capaz de
reconduzir a perfeição participada ao seu exemplar que não pertence a uma
espécie ou gênero
96
.
94
“Dicendum, quod formaliter loquendo nullum bonum creatum est bonum bonitate prima.
Si vero loquatur exemplariter et effective, tunc omne bonum est bonum bonitate prima. Omne
enim bonum creatum est effectus primae bonitatis,in quo relucet prima bonitas, sicut exemplar in
exemplo." (ALBERTI MAGNI. De Bono, tr. I, q. 1, a. 2, sol.)
95
Como mostra Aertsen, o termo “transcendência” e “transcendental” não aparecem no De
Bono e nos primeiros escritos de Alberto. Um termo próximo se encontra em seu comentário ao
Pseudo-Dionísio De Divinis Nominibus (c. 4, n. 6, ad 2): “exceto Aristóteles em sua Ética, os
filósofos raramente falam do bem que abarca (circuit) todos os gêneros”. Em seu Liber De
Praedicabilibus (I, tr. IV, c. 3), encontra-se o seguinte: “aquilo que transcende (transcendit) os
gêneros, como ‘coisa’, ‘unidade’ e ‘algo’” (cf. AERTSEN, J. op. cit., p. 58).
96
“Et quod dicit ‘tolle hoc et illud’, non intelligit tantum resolutionem contrahentium
formarum in simplicius, quod contrahitur, sicut fit resolutio individuorum ad speciem per
retomationem a materia et si qua fit resolutio specierum ad genus per remotionem differentiarum,
sed etiam intelligit resolutionem creati in causam, non quae essentialiter est in creato sic, ut sit esse
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 322
Em relação à distinção dos três tipos de resolução (dos indivíduos na
espécie, das espécies no gênero, e do causado na causa), é mister reconhecer que o
termo último da resolução etiológica é de ordem não- genérica, mas
transcendental em relação às categorias ou gêneros supremos. Para esclarecer o
significado metafísico da resolução etiológica em direção ao que é de ordem
transcendental, é preciso considerar as diferenças entre a causalidade formal do
exemplar e a causalidade formal genérica e específica.
A forma específica e a forma genérica são, segundo Alberto, predicadas
univocamente da causa e do efeito. Por isso, a causalidade formal de tipo
específica ou genérica é sempre unívoca. Por contraste, a forma exemplar não é
predicada univocamente da causa e do efeito. Ao contrário, a causalidade formal
que não pertence a uma espécie ou gênero é aquela que se predica analogamente,
uma vez que a causa é absolutamente extrínseca ao efeito que é semelhante à
causa na ordem exemplar. Em outras palavras, enquanto na causalidade formal
categorial ou genérica é necessário que a forma comum se encontre de modo
idêntico em todos os sujeitos que dela participam, na causalidade formal de tipo
não-categorial e não-genérico, a forma é predicada segundo a prioridade e a
posterioridade do exemplar, isto é, segundo a analogia
97
.
O princípio da analogia é explicitado por Alberto no quarto artigo da
primeira questão do De Bono no qual esclarece a natureza da comunidade entre os
bens criados e o bem incriado. Ora, a analogia se pode entender em três sentidos:
1) na relação com um sujeito, como se diz “ente” em relação à substância; 2) na
relação com um ato, como se diz que o médico e seus instrumentos “curam”; 3) na
relação com um fim, como se diz “são” do animal e da medicina. É neste último
sentido que se deve reduzir a analogia entre as perfeições participadas pelos
efeitos e a perfeição incriada, uma vez que esta é a causa exemplar e o fim
extrínseco de todos os demais bens
98
. Alberto, assim, é o primeiro escolástico a
creati, sed quae est in creato, sicut in quo relucet, et similis esset resolutio, si resolveretur figura
cerae impressa in figuram sigilli”. (ALBERTI MAGNI. De Bono, tr. I, q. 1, a. 2, ad 1)
97
Cf. AERTSEN, J. op. cit., p. 67-69.
98
“Dicendum quod ibi est communitas proportionalitatis […], quae reducitur ad tertium
modum analogiae. Licet enim unus finis non sit, quem altingat omne bonum ut complementum
suum, tamen unus finis est extra, ad quem se habet omne bonum creatum, inquantum potest. Et hic
finis est summum bonum. Alia enim bona non sunt bona nisi ab illo et ad illud." (id. Ibidem, q. 1,
a. 4, n. 17). Na primeira página do seu comentário ao De Divinis Nominibus (c. 1, n. 1), Alberto
diz que os atributos da causa exemplar se dizem do causado univocamente, por uma univocidade
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 323
utilizar a resolutio do que é diverso no que é comum, distinguindo a comunidade
de tipo genérica-específica da comunidade dos efeitos na causa, na qual há a
redução das perfeições participadas pelos efeitos à causa exemplar extrínseca.
Ao lado da resolução metafísica dos efeitos na causa exemplar comum (de
ordem não-categorial), encontra-se a resolução dos conceitos nos conceitos
comuníssimos (communissima), que é parte da via metafísica para o
estabelecimento dos transcendentais
99
. “Ente”, “unidade”, “verdade” e “bem” são
os primeiros conceitos do intelecto uma vez que não podem ser resolvidos em
nada que lhes seja anterior. Em outros termos, os transcendentais são aquilo em
que termina a resolutio do intelecto em sua busca pelo fundamento último dos
conceitos.
Dentre os conceitos transcendentais, o de “ente” possui prioridade, pois não
é redutível em nenhum outro que lhe seja anterior, enquanto os demais
transcendentais são redutíveis ao ente. Como afirma Alberto no sexto artigo da
primeira questão: “o conceito de ente é o conceito do mais simples, que não é
resolúvel em nada que lhe seja anterior. Sem embargo, o bem é resolúvel no ‘ente
relacionado com um fim’”
100
. A prioridade do ente se esclarece ainda na medida
em que os demais transcendentais “acrescentam” algo ao ente, no caso do bem,
uma relação ao fim.
O método resolutório reaparece com mais vigor no comentário, em forma de
quaestiones, de Alberto ao De Divinis Nominibus, escrito em Colônia por volta de
1249
101
. Observa o teólogo que o próprio método seguido por Dionísio é o
modus resolutorius”. Neste caso, a resolução não é a divisão do todo em suas
partes, nem a resolução dos conceitos aos communissima (ente, unidade, verdade
e bem), mas sim a recondução ou redução dos efeitos na causa exemplar – sentido
este já presente no De Bono
102
.
de analogia (univocatio analogiae), ou seja, as coisas emanam de Deus como uma causa unívoca,
participando na perfeição que existe em Deus em um sentido absoluto.
99
Esta via foi reconhecida pela primeira vez no medievo por Felipe, o Chanceler, falecido
em 1236. Em sua Summa De Bono, a partir da qual se estrutura o De Bono de Alberto, lê-se: “ens
et unum et verum et bonum sunt prima [...]. Primae intentiones simplices dicuntur, quia non est
ante ipsas in quae fiat resolutio. Ante prima non est quod in eroum veniat definitionem" (Apud,
AERTSEN, J. op. cit., p.38, n.12).
100
ALBERTI MAGNI. De Bono, q. 1, a. 6, n. 21.
101
Em 1248, Alberto retorna a Colônia para estabelecer o studium generale dos
dominicanos na Alemanha, sendo seguido por Tomás de Aquino, que aí permanece até 1252.
102
ALBERTI MAGNI. Super Dionysium De Divinis Nominibus, cap. 1, n. 4.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 324
Não obstante o método resolutório do De Divinis Nominibus ser qualificado
como a recondução do causado à causa exemplar, Alberto também faz uso
daquela primeiríssima forma de resolução holológica, cuja origem remonta a
Calcídio. É o que se nota, por exemplo, na discussão sobre a possibilidade da
matéria existir por si mesma sem a forma (materia esse sine forma)
103
. Contudo, a
resolução como regressão à causa exemplar é a que ocupa mais extensa e
intensivamente a sua exposição sobre a obra do Pseudo-Dionísio. É neste âmbito
que a resolutio está envolvida na compreensão da derivação das cognições a partir
de uma primeira (“omnes cognitiones derivantur ab una prima”)
104
, assim como
na explicação da redução dos amores num amor primeiro (“omnes amores in hoc
unum ultimum resolvuntur”)
105
.
Em relação à primeira acepção de resolução como divisão em Alberto, é
mister observar que a mesma se desenvolve, em primeiro lugar, na objeção,
aparecendo novamente na resposta à objeção. A objeção que conclui pela
existência da matéria em si mesma independente da forma se estrutura em torno
da premissa segunda a qual tudo o que é composto é resolúvel em seus
componentes (“omne compositum est resolubile in sua componentia”). E continua
do seguinte modo: como tudo aquilo que pertence ao gênero da substância é
composto de matéria e forma, então é possível a resolução da substância na
matéria e na forma (“ergo est resolutio possibilis in materiam et formam”). Mas,
aquilo em que resulta a resolução como em um fundamento pode ser por si
mesmo (“sed, id in quo stat resolutio sicut in fundamento, potest esse per se”).
Logo, pela via de resolução por divisão pode-se concluir que a matéria é capaz de
existir por si mesma
106
.
A resposta de Alberto é categórica: a matéria não pode existir por si mesma
sem a forma. Por isso, a resolução holológica dos corpos mistos em seus
elementos não é a resolução do corpo na pura matéria sem forma (quod corpora
mixta resolvuntur in elementa, quae non sunt materia sine forma). Isto justifica-se
na medida em que a resolução do corpo não tem como termo último uma matéria
sem forma, mas sim os elementos do corpo misto que estão sempre informados.
103
ALBERTI MAGNI. Ibid., cap. 4, n. 147.
104
ALBERTI MAGNI. Ibid., n. 69.
105
ALBERTI MAGNI. Ibid., n. 141-143.
106
ALBERTI MAGNI. Ibid., n. 147, sc 3, p. 233, lin. 61-68.
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 325
Em outros termos, uma vez que os elementos também são compostos de matéria e
forma, a resolução holológica não se dá pela separação da matéria e da forma, mas
sim pela separação do todo em suas partes constituintes, que são igualmente
compostas de matéria e forma.
Por isso, a geração dos elementos envolve um círculo no qual a geração de
um é a alteração do outro, o que ocorre pela perda de uma forma e a recepção de
outra, de tal modo que a matéria nunca está sem a forma. Em suma, se é verdade
que os corpos mistos se dividem por resolução holológica em seus elementos, não
é menos verdade que os elementos jamais se dividem por resolução holológica de
uma matéria sem forma (elementum vero non resolvitur ad aliquam materiam sine
forma existentem)
107
.
Em relação à segunda acepção de resolução etiológica como regressão ou
recondução à causa mais simples e universal, é importante destacar a sua
prioridade no pensamento metafísico de Alberto Magno. É esta acepção e não
aquela relativa à divisão que o socorre na explicação da transição do que se
encontra em muitos ao modo de composição ao que é uno em si mesmo e
simplesmente. Uma das aplicações deste proceder resolutivo se encontra na
resolução dos amores ao amor primeiro. Ora assim como todos os amores
procedem a partir de um primeiro (sicut exitus omnis amoris est ab uno primo),
que é o amor divino (deus amor), assim também todos os amores são resolvidos
neste único e último amor (ita etiam omnes amores in hoc unum ultimum
resolvuntur)
108
.
Desde o De Bono, Alberto já esclarecera que o modo de participação
analógica que ocorre entre Deus e os demais seres criados só pode existir na
ordem do que é causado pela causa exemplar. Assim, Deus é amor e bondade por
sua essência, enquanto todas as demais coisas participam no bem e no amor de
diversos modos, segundo sua semelhança e aproximação à causa exemplar,
extrínseca e final
109
. É a recondução de todas as perfeições participadas à
causalidade primeira de Deus, como forma exemplar, extrínseca e final de todas
as coisas, o que marca o principal significado de resolutio em Alberto.
107
ALBERTI MAGNI. Ibid., n. 147, ad 3, p. 234, lin. 69-79.
108
ALBERTI MAGNI. Ibid., cap. 4, n. 142, sol., p. 230-231.
109
"Sed est tamen aliquis modus analogiae ipsius ad creaturas, non quod idem sit in
utroque, sed quia similitudo eius quid est in deo, invenitur in creatures secundum suam virtutem"
(Id. Ibid., c. 13, n. 22, p. 445)
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 326
É esta acepção que está presente igualmente em seu comentário aos
Segundos Analíticos de Aristóteles. Nesta obra, Alberto esclarece, em primeiro
lugar, que o universal, o particular e o singular não diferem quanto à natureza ou a
substância (per naturam et substantiam), mas quanto ao ser (per esse). O que é
universal torna-se particular e dividido quanto ao ser pela individuação, assim
como se torna singular pelos acidentes próprios e individuantes. A este processo
de individuação do universal no particular e do particular no singular chama de
via de composição (via compositionis) na medida em que o universal é princípio
formal dos particulares e o particular está para o singular como o sujeito e o
suppositum estão para o acidente. Na ordem da natureza, portanto, o universal, por
ser princípio formal do particular, é sempre anterior às coisas particulares. Se é
verdade que o particular é posterior ao universal, não é menos verdade que é
anterior às coisas singulares, que são sempre posteriores na ordem da natureza. É
imprescindível reconhecer aqui a prioridade quanto ao ser do modo de proceder
sintético-compositivo, característico da visão neoplatônica
110
.
Em contraste à via de composição, na via de resolução (via resolutionis) o
movimento é inverso ao da ordem da natureza e da substância uma vez que o
último torna-se primeiro e o primeiro torna-se último. A resolução ocorre, pois,
das coisas compostas nas simples, das posteriores nas anteriores, das causadas na
causa formal-exemplar. Por partir do que é último conforme a natureza, a
resolução principia pelo que é imediatamente acessível pelos sentidos, de modo
mais especificamente pelos sensíveis per accidens.
A fim de exemplificar este processo do mais cognoscível para nós ao mais
cognoscível por natureza, é suficiente dizer que nosso conhecimento não principia
pela apreensão da substância ou natureza do homem, mas pela apreensão “deste
branco crespo” apreendemos “este homem” e “neste homem” apreendemos “o
110
"Et ideo universale secundum id quod est, et particulare secundum id quod est, et
singulare secundum id quod est, non differunt per naturam et substantiam, sed differunt per esse
(...). Et illud quod est universale fit particulare divisum secundum esse per individuationem, et
idem fit singulare ab accidente proprio et individuante. Et haec vocatur via compositionis
secundum quam universale (secundum id quod est) principium formale est particularis ; et
particulare se habet ad singulare sicut subjectum et suppositum in ipso : et hoc modo, prius
secundum naturam est universalem, et posterius secundum naturam est particulare, et postremum
secundum naturam est singulare, super quod immediate cadit sensus." (ALBERTO MAGNO.
Liber I Posteriorum, tr. II, cap. 3. Apud, RÉGIS, L.-M. op. cit., p. 310).
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 327
homem”, ou melhor, a natureza humana
111
. Deste modo, a resolução e a
composição são distintas em razão da própria ordem de ser das coisas universais,
particulares e singulares que enquanto são em si mesmas existem segundo uma
ordem de natureza inversa à ordem de sua existência na inteligência e no
conhecimento humano.
Alberto faz valer o mesmo princípio aristotélico exposto na Física
112
segundo o qual o conhecimento humano principia pelas coisas anteriores e mais
conhecidas para nós para alcançar aquelas coisas que são anteriores e mais
conhecidas por natureza. Assim sendo, a resolução, enquanto via judicativa da
verdade, é uma via do intelecto que abstrai e que “caminha” para o que é
formalmente primeiro quanto à natureza e que é, ao mesmo tempo, princípio do
entendimento do que é a natureza ou substância das coisas sensíveis
113
. Em suma,
a resolução é uma transição intelectual em direção a algo mais universal, que é
posterior quanto ao nosso modo de conhecer (quoad nos), mas é anterior quanto
ao ser (per se).
Deve-se ressaltar, porém, que a resolução do menos universal no mais
universal, como redução das formas particulares nas formas universais, possui três
sentidos, já expostos previamente no De Bono (q. 1, a. 2). Em primeiro lugar, há a
resolução das formas particulares na forma universal específica. Em seguida, há a
resolução das espécies na forma universal do gênero. Enfim, há a resolução das
perfeições participadas na causa formal primeiríssima, que é Deus. A estes três
sentidos poder-se-ia incluir um quarto, também presente no De Bono (q. 1, a. 6),
relativo à resolução dos conceitos aos communissima (ente, unidade, bondade e
verdade) que não são redutíveis a nenhum outro conceito.
Deste modo, se as formas universais de todas as coisas são os princípios
formais das coisas particulares, isto não se deve entender senão como princípios
próximos (gêneros e espécies), uma vez que a resolução das formas particulares
111
"In via autem resolutionis, ultimum efficitur primum, et e converso, primum fit ultimum.
Resolutio enim est compositi in simplicia, posterioris in prius, et causati in causam. Et incipit ab
ultimo secundum naturam quod immediatum sensibile est sensuum, non quidem per se vel
commune sensatum, sed per accidens: quia in hoc albo crispo accipitur hoc homo, et in hoc
homine homo, et sic usque ad primum in quo stat resolutio." (Id., ibidem).
112
ARISTÓTELES. Física. I, 1, 184a22-b10.
113
"Et hoc igitur modo differunt nobis priora et notiora ab his quae natura sunt priora et
notiora. Et dicuntur natura priora, secundum intellectum notiora : quia via resolutionis est via
intellectus abstrahentis, quae vadit ad naturam primam formaliter naturantem quae est etiam
principium intelligendi id quod naturat." (Id., ibidem)
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 328
não termina nas formas universais, como se estas fossem realidades separadas e
subsistentes em si mesmas. Ao contrário, para Alberto, o termo último da
resolução metafísica é Deus, enquanto causa formal, simples e final de todas as
formas universais. Por essa razão, como observa Sweeney, não devemos
identificar a resolução nas formas mais universais (gêneros, p. ex.) com a
resolução na causa primeiríssima, eficiente e exemplar de todas as coisas
114
. A
primeira tem caráter intrinsecamente conceitual e lógico, enquanto a segunda tem
relevância etiológica e metafísica.
Do exposto até aqui, torna-se manifesto o quanto a tradição medieval não é
homogênea em relação ao uso e à compreensão da resolutio como via de
investigação filosófica. Da redução dos significados aristotélicos de análise à
resolução holológica como dissolução do todo integrante em Calcídio à primeira
tentativa de síntese dos diversos significados de resolutio em Alberto Magno, em
especial à luz das exigências de conciliação da ανάλυσις aristotélica com a via
resolutionis do Pseudo-Dionísio, é patente a ausência “de um consenso geral
sobre o que seja resolução” (Triverius). Todavia, as diversas acepções de resolutio
resguardam entre si um significado comum que afasta qualquer suposição de
equivocidade inerente ao seu conceito. Com efeito, toda e qualquer resolutio é
sempre em direção ao anterior (“omnis resolutio est ad priora”). Sentido este
primordial e comum que remonta evidentemente à noção aristotélica de ανάλυσις
e perpassa toda a discussão medieval sobre a resolutio.
Com Alberto, a resolutio é não só um método utilizado, mas claramente
definido a partir de um esforço sintético que integra a resolução holológica-física
de Calcídio à resolução holológica-conceitual de Boécio e João de Salisbury,
elevando ainda a resolução à condição de via metafísica. É, sem dúvida, a via
neoplatônica da resolutio, previamente esboçada em Eriúgena e explicitamente
atribuída por Alberto ao Pseudo-Dionísio, que permite distinguir com precisão a
resolução lógica da resolução metafísica. A primeira visa encontrar o que é
anterior na ordem dos raciocínios e das demonstrações, das espécies e dos
gêneros, bem como o que é primeiro e irredutível na ordem dos conceitos,
denominados de communissima (ente, verdade, unidade, bondade). Já a via
114
“Albert is careful to prevent precisely this identification of the most general conception
and the first, efficient cause, between what Albert calls the forma universalis and ‘the first
principal of all effects”, i.e., God”. (SWEENEY, Eileen. Op. cit., p. 223).
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Apêndice II: Da polissemia de resolutio no medievo 329
metafísica da resolução etiológica tem seu termo último na afirmação da
existência da causa primeiríssima de todas as coisas, na qual se resolvem as
perfeições participadas e na qual se fundamentam os conceitos transcendentais
(communissima).
Na medida em que Tomás de Aquino recebeu sua formação filosófica e
teológica de Alberto Magno, é natural que procuremos estabelecer as semelhanças
e diferenças existentes entre ambos quanto ao uso e à compreensão da resolutio.
Com efeito, durante três anos em Paris (1245-1248) e mais quatro em Colônia
(1248-1252), Tomás ouviu Alberto comentar as Sentenças de Pedro Lombardo, o
corpus dionisiano completo, bem como a Ética a Nicômaco, além dos livros do
Antigo e do Novo Testamento. Durante estes sete anos, Tomás conheceu, graças à
síntese filosófica de Alberto, o significado metafísico de resolutio a partir dos
comentários de seu mestre ao Pseudo-Dionísio, bem como o significado prático da
análise teleológica, análoga à investigação geométrica, graças ao comentário de
Alberto à Ética a Nicômaco. Além disso, aprendeu o valor lógico e metafísico da
resolução dos conceitos nos transcendentais (communissima).
Entretanto, mais do que a adequada compreensão das diversas aplicações da
resolutio, Tomás descortinou o sentido fundamental desta via para o filósofo que
investiga as causas últimas a partir dos efeitos, o simples a partir do composto, o
uno a partir do múltiplo, a perfeição separada a partir das perfeições participadas.
O que se revela na obra do Aquinate como fruto de uma síntese absolutamente
pessoal não é a invenção do método metafísico da resolutio, nem tampouco a
distinção de seus diversos significados, mas sim a plena realização da resolutio
como via de justificação do conhecimento humano e de descoberta da verdade e
do fundamento do ente enquanto tal. É a resolução de todas as coisas no ser (esse)
como ato de todos os atos e perfeição de todas as perfeições, jamais entrevisto
pelos seus antecessores, o que marca a originalidade da resolutio tomista.
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