Capítulo III – O Desmonte de uma Teologia Apática
helenística, sendo uma das questões principais a impassibilidade de Deus de origem platônica,
sendo melhor formulada na filosofia aristotélica
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como sinônimo da imutabilidade divina,
mas que chega ao cristianismo pela leitura estóica
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da questão.
Por conseguinte, de uma posição neutra da teologia platônico-aristotélica passa-se a
uma visão negativa da apatheia do ponto de vista da psicologia estóica, tida como contrária à
sã razão, contudo ainda passando por uma releitura médio-platônica, especialmente de Fílon
experiência que lhe comunica o essencial [pei,rar, do verbo peira,w experimentar, provar, sofrer, seduzir] e
portanto, uma “ilimitada ignorância” [o termo apei,,rwn comporta tanto a idéia de “ignorância” como não-
conhecimento, como a idéia de multiplicado ao infinito], como indica Fédon, 14-18; 23-27, ao passo que do
outro lado da extremidade das coisas está a realidade das formas inteligíveis, ou as idéias, perpetuamente
idênticas a si mesmas, desprovidas de pa,qoj enquanto nada as afeta. Porém, a tudo afeta, na forma do Belo
[kalo,j] ao qual o filósofo deve se ligar “afetivamente” para orientar o lo,goj (Republica V, 476b) de modo a ser
seduzido pelo Belo e assim se afastar do a;peiron [que poderia ser traduzido aqui por não sedução pelo que é
perfeito]. Nessa perspectiva, a principal virtude do filósofo é buscar tornar-se o “semelhante a Deus segundo sua
potência” (omoiwsij Qew kata to dunaton, Teedeto, 176b), e tal “semelhança” consiste em ficar “justo e santo
em sabedoria”, pois Deus não muda de opinião [do,xa] como mudam os deuses a respeito da justiça e do Bem,
estando ele acima de todas as coisas, de toda “sensação” [paqh,mata] que faz os homens mudarem suas opiniões.
Assim, na Republica, as “virtude cardeais” [avreta,i] da temperança, coragem, sabedoria e justiça são o
resultado da educação que o filósofo, orientado pelo Belo e na semelhança ao ser divino, realiza a partir das
“paixões cardeais” (cólera, medo, arrependimento, luto, amor, inveja, ciúme, e tudo que se assemelha às “dores”
[pa,qoj] da alma) que precisam ser deslocados da ignorância ilimitada para atingir, para por meio de uma atinge
uma vai metriopaqe,ia onde o a;peiron vai recebendo a “medida” das avreta,i, como capacidade de não se deixar
mudar de “opinião” uma vez conhecido o caminho da justiça e do Bem (Republica, 47e-48d). Apesar de as
realidades inteligíveis não serem suscetíveis a afecções, deixar de sentir levaria à destruição da realidade,
enquanto incapacidade de atingi-la. E por meio do pa,qoj e do logo,j que se vão transformando a praxis e a polis
para se atingir a maior proximidade possível da realidade inteligível. Cf. PRADEAU, Jean François. Platão,
antes da invenção da paixão In PAM, pp. 23-36; REALE, Giovanni. Platão – História da Filosofia Grega e
Romana – vol. III. 9ª. Ed. São Paulo: Loyola, 2007; PEREIRA, Isidoro. Dicionário Grego-Português/
Português-Grego. Coimbra: [s.d.];para as obras de Platão cf. PLATO. Platonis Opera Omnia. New York :
Garland, 1980. 10 v. (Philosophy, Ancient: 26); PLATÃO. A República. São Paulo: Matins Fontes, 2006;
POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e seus Inimigos – 1º Vol. – O Fascínio de Platão. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo/Editora Itatiaia Limitada, 1974.
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É partir da teologia platônica que Aristóteles (384-322aC) formula a questão de Deus como aquele que,
estando acima de todas as coisas, em tudo pode causar mudança [o “motor imóvel” por excelência], mas não
pode ser mudado por elas, ou seja, o Qeo,j a``paqikh, cf. Metafísica, XII, 1073. Contudo, há uma sutil diferença na
ontologia aristotélica que resultará nas distintas psicologias. Se para Platão o pa,qoj é uma das características de
toda a realidade, ou seja, sentir a realidade coincide com a realidade, ainda que não totalmente, para Aristóteles
há uma dissociação entre a realidade [ouvsi,a] e aquilo que dela advém e afeta [pa,qoj]. O pa,qoj é na Física
aristotélica um “movimento”, ou seja, um processo que ainda não atingiu seu resultado, ainda que o
direcionamento para ele já esteja inscrito no processo. Como tal, essa relação paciente/agente está integrada na
relação potência/ato, em que a qualificação atual está presente no pa,qoj, ou seja, a causalidade motriz, ou ainda,
o “motor imóvel” da Física, como aquilo pelo qual se provoca/excita o movimento das coisas. O fato de as
paixões serem experimentadas em união com o corpo, e na dependência dele, é que une a Física com a
Psicologia aristotélica (ouvqe.n a;neu soma, toj pa,scein ou,de. poiei/n cf. De anima, I, I, 403 a 1-7). Para psicologia
de Aristóteles não é a paixão uma disposição para o vício, pois ele julga ser mais grave que uma atitude
explosiva em um estado passional, como no caso da “ira”, do que a deliberação “fria” de cometer o mesmo ato,
pois essa disposição deliberada pode não acompanhar o arrependimento, e pior, pode-se acrescentar à sua fria
deliberação a influência da paixão. Contudo, o vicioso age primeiro deliberadamente, podendo acrescentar um
estado passional a sua escolha racional. A paixão não está em oposição à virtude (isso é de competência do
vício), mas serve ainda para ilustrar as conseqüências extremadas da falta de virtude. Aproveitando o conceito da
física do pa,qoj, a psicologia afirmará que a mudança ocorre quando o movimento iniciado por uma estimulação
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