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Jocilei Dalbosco
A representação dos contadores de histórias em Sagarana
Passo Fundo, janeiro de 2006
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS
Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS
Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: mestradoletras@upf.br
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2
Jocilei Dalbosco
A representação dos contadores de histórias em Sagarana
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de Passo
Fundo, como requisito para obtenção do grau de
mestre em Letras, sob a orientação da Prof. Dr.
Márcia Helena Saldanha Barbosa.
Passo Fundo
2006
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3
A familiares e amigos.
4
Agradeço, com meus melhores sentimentos, a
Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Paulo Ricardo
Becker, Jocitacler Bolsoni e Márcia Helena Saldanha
Barbosa.
5
Tempo bom de verdade, só começou com a
segurança de fechar-me num quarto e fechar a porta.
Deitar no chão e imaginar histórias, poemas,
romances, botando todo mundo conhecido como
personagem, misturando as melhores coisas vistas e
ouvidas, uma combinação mais limpa e mais
plausível, porque como muita gente
compreendeu e falou a vida não passa de histórias
mal arranjadas fora de foco.
Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa
fazer de seu tempo livre a não ser contar histórias?
João Guimarães Rosa
6
RESUMO
Este trabalho investiga a representação do contador de histórias em quatro contos de
Sagarana, obra de João Guimarães Rosa publicada em 1946. Para tanto, analisam-se a
caracterização dos personagens-narradores e dos personagens-ouvintes; as técnicas
adotadas pelos contadores de histórias ao estruturarem suas narrativas e os efeitos que
desejam ou podem provocar nos ouvintes com quem interagem e em si mesmos. Além
disso, procede-se a uma comparação entre as estratégias empregadas pelos personagens-
narradores e aquelas utilizadas pelo narrador principal do texto no qual tais personagens se
incluem. A principal constatação a que se chegou, ao final da pesquisa, é a de que o
narrador que se posiciona em primeira pessoa empreende um processo de complexificação
discursiva em seu relato em comparação ao narrador que emprega a terceira pessoa.
Também verificou-se que os narradores caracterizam-se, de um modo geral, pela forma
ingênua com que interagem com seus ouvintes, assegurada por fatores como naturalidade,
intimidade, confiança e cumplicidade. Verificou-se, ainda, que os principais efeitos que os
relatos dos narradores provocam ou tendem a provocar nos seus ouvintes e em si mesmos
são: o efeito terapêutico, que decorre do conforto motivado pela necessidade que se tem de
falar; o efeito catártico, que resulta do alívio experimentado pela identificação com aquilo
que é relatado; o efeito estético, que liberta os indivíduos, momentaneamente, dos
constrangimentos provocados pela rotina cotidiana.
Palavras-chave: João Guimarães Rosa, Sagarana, contação de histórias, posição do
narrador, procedimentos narrativos.
7
ABSTRACT
This work investigates the representation of the storyteller in four tales of Sagarana,
by João Guimarães Rosa, published in 1946. For that purpose, the characterisation of
characters-narrators and characters-listeners; the techniques applied by the storytellers
when structuring their narratives and the effects they intend or can have upon the listeners
they interact with and upon themselves were analysed. Furthermore, comparisons between
the strategies applied by the characters-narrators and those applied by the main narrator of
the text in which such characters are included were carried out. By the end of the research,
the main conclusion was that the narrator who is set in first person undertakes a process of
discursive complexification in his report as compared to the narrator who uses third person.
It was noticed that the narrators are characterised, as a whole, by the naive way through
which they interact with their listeners, ensured by factors such as naturalness, intimacy,
trust and complicity. It was also observed that the main effects the narrators reports
provoke or tend to provoke upon their listeners and upon themselves are: the therapeutic
effect, deriving from the comfort motivated by the need to speak; the cathartic effect,
deriving from the relief experienced through the identification with the issue being
reported; the aesthetic effect, which releases individuals, momentarily, from the constraints
brought about by everyday routine.
Key-words: João Guimarães Rosa, Sagarana, storytelling, narrator’s position,
narrative procedures.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9
1. O ATO DE CONTAR HISTÓRIAS ............................................................................... 13
1.1 O declínio da arte de narrar ............................................................................... 16
1.2
A verdadeira arte de narrar ................................................................................ 19
1.3 Por que se contam histórias ............................................................................... 23
1.4 O efeito estético ................................................................................................. 28
2. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM TERCEIRA PESSOA ....................................... 34
2.1 “Sarapalha” ........................................................................................................ 37
2.2 “O burrinho pedrês” .......................................................................................... 47
2.3 O exterior do contador de histórias ................................................................... 60
3. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM PRIMEIRA PESSOA ....................................... 62
3.1 “Corpo fechado” ............................................................................................... 65
3.2 “São Marcos” .................................................................................................... 76
3.3 O interior do contador de histórias .................................................................... 89
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 92
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 97
9
INTRODÃO
A investigação proposta foi motivada pelo interesse particular do pesquisador em
relação à figura do narrador e pelo desejo que possuía de entender como e por que os
contadores de histórias relatam seus casos. Além disso, o pesquisador, ao concordar com a
afirmação de João Adolfo Hansen
1
, que julga ser “o narrador um sujeito tentando a
determinação do que vive, na medida em que também é narrado
2
, concebeu o trabalho a
ser realizado como uma oportunidade de melhor perceber os efeitos que uma história
provoca ou pode provocar tanto naquele que conta quanto naquele que ouve.
Desse modo, o estudo analítico-comparativo investiga como são representados os
contadores de histórias em quatro contos de Sagarana: “Sarapalha”, “O burrinho pedrês”,
“Corpo fechado” e “São Marcos”. O livro em questão, integrado por nove narrativas curtas,
foi publicado em 1946, constituindo-se na primeira obra ficcional de João Guimarães Rosa.
O trabalho será desenvolvido tendo em vista os seguintes objetivos: verificar o modo como
são caracterizados os personagens-narradores e os personagens-ouvintes de histórias nos
textos literários selecionados; analisar as técnicas e os procedimentos por meio dos quais
esses contadores de histórias estruturam suas narrativas, bem como o efeito que desejam ou
que podem provocar nos ouvintes que com eles interagem e em si mesmos; comparar as
estratégias narrativas utilizadas pelos personagens-narradores àquelas empregadas pelo
narrador principal do texto no qual tais personagens estão inseridos; estabelecer um
paralelo entre os textos literários analisados, no que se refere aos aspectos acima
mencionados.
O critério para a seleção do corpus foi a presença marcante de eventos de contação
de histórias nos contos. Priorizaram-se, portanto, narrativas nas quais somam-se ao narrador
1
Professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e autor de O o: a ficção da literatura em
Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000.
2
HANSEN, João Adolfo. Terceira margem. Revista do instituto de estudos brasileiros. São Paulo, 1996. n.
41, p. 54.
10
principal personagens que contam histórias, e, por conseguinte, personagens que ouvem
esses relatos. Além disso, optou-se por um conjunto de contos em que existiam diferentes
tipos de narradores: o onisciente, o testemunha e o protagonista. Ao mesmo tempo,
Guimarães Rosa foi o autor escolhido não porque é visto como um dos grandes
contadores de histórias da literatura brasileira, mas também porque é um “criador de
realidades”, cuja linguagem é capaz de “expressar o que se passa no subconsciente dos
personagens e de obrigar o destinatário a refletir sobre as palavras lidas e os problemas da
existência humana”.
3
Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, no ano de 1908 e morreu no
Rio de Janeiro em 1967; casou-se aos 22 anos e formou-se em medicina um ano depois,
clinicou no interior do Estado e, a seguir, entrou para a carreira diplomática, chegando a
embaixador. Além disso, “foi reconhecido quase unanimemente como um dos maiores
escritores brasileiros, pela originalidade criadora do estilo e da visão do mundo, dentro de
uma tendência gasta, como o regionalismo”.
4
A bibliografia do autor compõe-se de
Sagarana (contos), 1946; Corpo de baile (ciclo novelesco), 1956, desdobrado, a partir da
terceira edição, em Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites no
sertão; Grande sertão: veredas (romance), 1956; Primeiras estórias (contos), 1962;
Tutaméia: terceiras estórias (contos), 1967; Estas estórias (contos publicados
postumamente), 1969.
5
Os teóricos cujas teses fundamentam o trabalho são Walter Benjamin, Mikhail
Bakhtin, Theodor W. Adorno, Georg Lukács e Wolfgang Iser. O ensaio “O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin, filósofo alemão, que
dedicou seus estudos principalmente aos conceitos de história, de crítica, de política e de
arte, em 1930, contribui com esta pesquisa por oferecer uma teoria sobre a narração. O
ensaio “Epos e romance”, de Mikhail Bakhtin, escrito em 1941, serviu de base teórica para
o trabalho por distinguir as diferentes formas de narrativa, concedendo destaque ao
romance. Os ensaios de Theodor W. Adorno, filósofo e crítico de arte alemão, intitulados
“Sobre a ingenuidade épica” e “Posição do narrador no romance contemporâneo”, escritos
3
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 2002, p. 442.
4
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: modernismo. São
Paulo: Difel, 1983. v. 3.
5
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37. ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 429.
11
em 1960, fornecem embasamento teórico à investigação por conterem reflexões sobre o
narrador. O ensaio “O romantismo da desilusão”, de Georg Lukács, filósofo e crítico
literário húngaro, também constitui-se em base teórica deste trabalho por apresentar idéias
sobre os universos interno e externo do narrador. As obras de Wolfgang Iser, membro da
Escola de Konstanz, Alemanha, que elaborou os postulados da estética do efeito, em 1970,
oferecem fundamentos básicos para a execução da pesquisa pelo fato de apresentarem uma
teoria sobre o efeito estético.
A fim de investigar a representação dos contadores de histórias em Sagarana, o
trabalho será organizado em três capítulos. O primeiro se constituirá numa revisão da
bibliografia teórica e será subdividido em quatro picos, todos voltados à reflexão acerca
do ato de contar histórias: O declínio da arte de narrar; A verdadeira arte de narrar; Por que
se contam histórias; O efeito estético. O segundo capítulo será dedicado ao exame do
contador de histórias em terceira pessoa, que está presente em “Sarapalha” e em “O
burrinho pedrês”. O terceiro e último capítulo será destinado à análise do contador de
histórias em primeira pessoa, que se observa em “Corpo fechado” e em “São Marcos”,
narrativas compostas, respectivamente, por um narrador testemunha e por um narrador
protagonista. Por último, na parte reservada às considerações finais, será efetuada uma
comparação entre os contos examinados, com o intuito de evidenciar os resultados da
pesquisa no que se refere à temática proposta e aos objetivos traçados.
Destaca-se, por fim, a relevância desta pesquisa, uma vez que, a despeito da vasta
fortuna crítica do autor em foco
6
, observou-se uma ausência de trabalhos de fôlego que
aprofundem a investigação sobre a figura do contador de histórias em Sagarana. Cabe
salientar que este estudo foi concluído em 2006, justamente no ano em que se comemoram
os 60 anos de publicação desta que é a primeira obra ficcional de Guimarães Rosa. Além
disso, esse trabalho pode propiciar uma melhor compreensão em relação aos eventos de
6
Outros textos sobre João Guimarães Rosa foram consultados para a elaboração deste trabalho, embora não
tenham sido citados: SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1982;
ARAUJO, Heloisa Vilhena de. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim,
1996; NONADA: Letras em revista. Porto Alegre: EU; Ritter dos Reis, 1997; NUNES, Benedito. De
Sagarana a Grande sertão: veredas. In: ___. Crivo de papel. o Paulo: Ática, 1998; BRANDÃO, Carlos
Rodrigues. Memória sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos no sertão de João Guimarães Rosa e de
Manuelzão. Uberaba: Editora UNIUBE, 1998; HANSEN, João Adolfo. O o: a ficção da literatura em Grande
sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000; LAGES, Susana Kampff. João Guimarães Rosa e a saudade. São
Paulo: Ateliê Editorial; FAPESP, 2002; FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: Fronteiras, margens e passagens.
São Paulo: Ateliê Editorial; Senac São Paulo, 2003.
12
contação de histórias, que vêm despertando um interesse crescente, dentro e fora do meio
acadêmico, como forma de aproximar crianças, jovens e adultos da literatura.
1. O ATO DE CONTAR HISTÓRIAS
Para se considerar o ato de contar histórias como um fato importante nas relações
humanas, e para se afirmar que tal prática é significativa na manutenção dessas relações,
deve-se avaliar o envolvimento entre o contador de histórias e o seu ouvinte, fato que é
destacado por Walter Benjamin (1984), ao analisar as narrativas de Nikolai Leskov. Este é
visto como um narrador autêntico pelo teórico, ao comentar que “a experiência que passa
de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”. Segundo Benjamin,
entre as narrativas existentes, “as melhores são as que menos se distinguem das histórias
orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”, as quais revelam diferentes tipos de
narradores e inúmeras formas de se narrar uma história. O teórico alerta, entretanto, que “a
arte de narrar está definhando porque a sabedoria o lado épico da verdade está em
extinção”. (1994, p. 198-201)
Sobre essa idéia de decadência da narrativa, Benjamin, inspirado por Villemessant –
fundador do diário parisiense Le Figaro, que costumava comentar que seus leitores se
interessavam mais pelos acontecimentos que estavam próximos a eles do que pelas histórias
que vinham de longe –, afirma que a “cada manhã recebemos notícias de todo mundo, e, no
entanto, somos pobres em histórias surpreendentes”. A razão disso, conforme o teórico, “é
que os fatos nos chegam acompanhados de explicações”. Em outras palavras, quase nada
do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Para
Benjamin, “metade da arte narrativa está em evitar informações”. (1994, p. 203)
O filósofo alemão afirma, ainda, que “a narrativa, num certo sentido, é uma forma
artesanal de comunicação; é aquilo que mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele”. Esse mergulho favorece tanto a emergência de outras “coisas” da
vida do narrador, quanto o surgimento de novas narrativas. Uma narrativa, ao se
transformar em algo comunicável, pode fazer ressurgir fatos esquecidos na memória dos
interlocutores. Assim, a narrativa “não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da
14
coisa narrada como uma informação ou um relatório”, mas se interessa em oportunizar que
a memória exerça seu papel: o de fonte de recordações. Prova disso é que os narradores
gostam de começar as suas histórias com uma descrição das circunstâncias em que foram
informados dos fatos que vão contar a seguir (1994, p. 205), o que mostra a relação
mnemônica, entre narrador e ouvinte, na preservação das reminiscências, pois, segundo
Benjamin:
a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de
geração em geração. [...] Ela inclui todas as verdades da forma épica. Entre elas,
encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em
última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra,
como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em
cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova história em cada
passagem da história que está contando. Tal é a memória épica e a Musa da
narração. (Benjamin, 1994, p. 211)
A memória, musa da narrativa, portanto, é a instância em que se alojam e se fundem
as reminiscências; é o espaço em que todos os narradores buscam o material do qual se
constituem as narrativas; o lugar onde primeiro se forma a rede de narrativas das quais se
servem os narradores. Ressalta-se que, para Benjamin, a narrativa é a experiência que passa
de pessoa a pessoa; é uma forma artesanal de comunicação que considera a tradição oral
dos inúmeros narradores anônimos, e está presente, segundo Barthes, “no mito, na lenda, na
fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na
pantomima, na pintura, nas histórias em quadrinhos, na conversação”. (Barthes, 1971, p.
19)
Entre os narradores, Benjamin destaca dois grupos arcaicos: os que viajam, trazendo
muitas histórias a contar, e os que permanecem em seu país, ganhando a vida sem sair do
lugar. O filósofo adverte que esses grupos são apenas tipos fundamentais, o primeiro
representado pelo marinheiro comerciante, o segundo pelo camponês sedentário. Porém,
Benjamin situa Leskov tanto no grupo dos viajantes quanto no dos que permanecem em seu
lugar de origem, pois o emprego como agente russo de uma firma inglesa proporcionou que
ele transitasse por toda Rússia, o que contribuiu tanto para suas experiências do mundo
como para seus conhecimentos sobre a condição russa. O contato com as seitas rurais e os
contos lendários de seu país, por exemplo, proporcionou que ele exercesse sua hostilidade
contra a burguesia eclesiástica e contra a burocracia ortodoxa, apesar de pertencer à igreja
15
ortodoxa de origem grega e ter um genuíno interesse religioso (1994, p. 199). É por isso,
então, que Leskov pôde escrever suas narrativas.
O camponês sedentário é um artífice; um mestre em seu ofício, que trabalha,
geralmente, junto a um aprendiz. O mestre, conhecedor das histórias e das tradições de seu
país, e o seu aprendiz, muitas vezes um migrante, trabalhavam a matéria em suas oficinas,
do mesmo modo que aperfeiçoavam a arte de narrar, uma vez que, em tal relação,
“associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber
do passado, recolhido pelo trabalho sedentário” (1994, p. 199). É nessa associação, entre o
saber que vem de longe e o conhecimento das histórias e das tradições locais, que Benjamin
reconhece em Leskov um narrador nato, que sabe dar conselhos. O teórico atribui, assim,
uma dimensão utilitária às histórias narradas, da qual se pode depreender a natureza da
verdadeira narrativa:
Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão
prática, seja num provérbio ou numa norma de vida de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos. (Benjamin, 1994, p. 200)
Os conselhos de Leskov, os quais vêm sob a forma de narrativas, são, na sua
maioria, inspiradas nos contos lendários russos, cujos personagens centrais representam o
homem justo, simples e ativo que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. As
narrativas de Leskov apresentam a transformação natural desse homem, sem exaltação
mítica e sem exagero no emprego do maravilhoso. E é exatamente na apresentação desse
homem que se revela a dimensão utilitária da narrativa, pois, segundo Benjamin, Leskov
sabe dar conselhos porque os busca “na substância viva da existência” que tem um nome:
sabedoria”. (1994, p. 200)
Embora o homem de hoje tenha deixado de cultivar o que, a rigor, não pode ser
abreviado, como é o caso das narrativas, e esteja desaparecendo a figura desse indivíduo
justo que preza a sabedoria presente na substância viva de sua existência (1994, p. 206), o
ato de contar histórias, da forma como se apreende nos escritos de Benjamin, ainda deve
fazer parte das relações humanas, para que não se perca a sabedoria existente nas
experiências da vida.
16
1.1
O declínio da arte de narrar
Apesar de Benjamin analisar um narrador exemplar como Leskov e ressaltar que a
extensão real do reino narrativo pode ser compreendida caso se leve em conta a
interpenetração dos dois tipos arcaicos de narradores antes mencionados, o do marinheiro
comerciante e o do camponês sedentário, o próprio teórico adverte que a arte de narrar está
em vias de extinção. Benjamin é quase trágico ao afirmar que o homem está sendo privado
da faculdade de intercambiar experiências, e chega a prognosticar que, se essa privação
continuar aumentando, o intercâmbio de experiências vai desaparecer de todo. (1994, p.
198)
Para se ter uma noção de como as ações da experiência estão empobrecendo, é
preciso lembrar que Benjamin, ainda em 1933, no ensaio “Experiência e pobreza”, já
alertava para o fato de que os combatentes que sobreviveram à primeira guerra mundial
voltavam silenciosos dos campos de batalha e ficavam mais pobres em experiências
comunicáveis, “porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que
a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação,
a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (1994, p. 115).
Torna-se oportuno perguntar o que aconteceu com os narradores do grupo dos marinheiros
comerciantes e do grupo dos camponeses sedentários; ou por que o homem deixou de aliar
os saberes que m de longe aos saberes do passado. Assim, conforme as respostas a essas
questões, pode-se dizer que, de alguma forma, o homem de hoje, comum, que trabalha,
viaja e ganha a vida honestamente, também é vítima de experiências desmoralizadoras,
como as que os combatentes vivenciaram nos campos de batalha.
Benjamin chama esse empobrecimento de uma nova barbárie, aquilo que surgiu
com o desenvolvimento da técnica, e se difundiu apenas na superfície das relações
humanas, deixando de lado a experiência e a sabedoria. Esse novo momento, angustiante,
na opinião do teórico, conduziu as pessoas sempre a partir para frente, a começar de novo, a
contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a
esquerda (1994, p. 116), pois:
17
a angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as
pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da
quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o
reverso da miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e
sim uma galvanização. (Benjamin, 1994, p. 115)
É por esse motivo, então, que as pessoas estão cada vez mais pobres em
experiências comunicáveis, como se estivessem vindo de campos de batalhas, sem
nenhuma vivência digna de ser relatada. Uma crise econômica, política, ecológica, social,
parece ser sempre iminente. Essa nova barbárie está conduzindo os indivíduos a se “libertar
de toda experiência” e a “aspirar um mundo em que possam ostentar toda sua pobreza
interna e externa, para que algo de decente possa resultar disso”. (1994, p. 118)
O mundo dos marinheiros comerciantes e dos camponeses sedentários não é mais o
mesmo. De acordo com Benjamin, os vestígios da sabedoria e da experiência vivida por
esses narradores estão sendo abolidos, para dar espaço a algo sem alma, no qual é difícil
deixar rastros, como as casas de vidro de Scheerbart, que mudaram completamente o
homem, inaugurando o que o romancista chamou de cultura de vidro. Nessa nova cultura,
passou-se a rejeitar a imagem do indivíduo tradicional, solene, nobre, adornado com todas
as oferendas do passado, para dirigir-se ao homem contemporâneo nu, quase destituído de
experiências comunicáveis (1994, p. 116). É por esse motivo, então, que Benjamin
prenuncia a morte da narrativa e aponta as causas pelas quais narradores, como os
marinheiros comerciantes e os camponeses sedentários, deixaram de contar suas histórias,
pois com eles:
desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade de ouvintes. Contar
histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as
histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou
tece enquanto ouve uma história. (Benjamin, 1994, p. 205)
Esses narradores assistiram a substituição do artesanato pela indústria, ou seja,
deixaram de fiar e tecer para integrar-se ao mundo de vidro de Scheerbart, onde nada se
fixa: o mundo duro e liso, frio e sóbrio das fábricas, que não tem nenhuma aura, e, em
geral, é inimigo do mistério e da originalidade. Esse também é o mundo do romance e o da
nova forma de comunicação – o mundo da informação –, surgido no início da era moderna,
com a consolidação da burguesia, a massificação da imprensa e o acirramento do
18
capitalismo. O universo do romance e dessa nova forma de comunicação rejeita a
experiência vivida e a sabedoria, e deserda, por sua vez, narradores como os marinheiros
comerciantes e os camponeses sedentários.
O surgimento do romance é apontado por Benjamin como o primeiro indício da
morte da narrativa, pois o romance é o resultado do homem isolado, que deixou de falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e
nem sabe dá-los. O romance, embora tenha sua origem na Antigüidade, somente adquiriu as
características atuais, tornando-se globalizante, vinculado à atualidade e inacabado, com a
invenção da imprensa, cuja difusão destruiu a tradição oral, porque nem procede dessa
tradição nem a alimenta. (1994, p. 201)
No romance, o romancista segrega-se, pois ao escrevê-lo, afasta-se do mundo e das
pessoas, na tentativa de descrever toda uma vida humana, como aconteceu em Dom
Quixote, em que se “mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um
dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a
menor centelha de sabedoria”, levando o incomensurável a seus últimos limites (1994, p.
201). A riqueza de descrição romanesca denuncia a profunda perplexidade daquele que a
vive e está imerso nessa nova forma de comunicação, onde quase tudo está a serviço da
informação (1994, p. 203). Nada disso, porém, está a serviço da narrativa; pelo contrário,
acaba por extingui-la.
A nova forma de comunicação é o segundo indício apontado por Benjamin sobre a
morte da narrativa, uma vez que a difusão da informação influencia a narrativa no que essa
tem de épico, ou seja, na sabedoria que vem do extraordinário e do miraculoso, do
particular e do surpreendente. No mundo burguês, da imprensa e do capitalismo, “a
informação aspira a uma verificação imediata, além de plausível”, pois “a informação
tem valor no momento em que é nova” (1994, p. 203-204), segundo o teórico:
passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o
que não pode ser abreviado. Com efeito o homem conseguiu abreviar até a
narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se
emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de
camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo
qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas
constituídas pelas narrações sucessivas. (Benjamin, 1994, p. 206)
19
Assim, coloca-se, de um lado, a informação, que vive o momento e que precisa
entregar-se inteiramente a este, perdendo rapidamente sua atualidade; e, de outro, a
narrativa, que não se entrega, “conserva suas forças, e depois de muito tempo ainda é capaz
de se desenvolver” (1994, p. 204). Aliás, é dessa capacidade de desenvolvimento da
narrativa e das sucessivas camadas de narração que aflora a verdadeira arte de narrar.
1.2 A verdadeira arte de narrar
Entre os escritos de Leskov, Benjamin escolheu, para comentar, as narrativas da
segunda fase do autor, porque, segundo o teórico, esses relatos estão livres de orientações
dogmáticas e doutrinárias, das quais os romances de sua primeira fase estão impregnados.
Benjamin, ao longo das considerações que faz sobre a obra de Nikolai Leskov, contrapõe o
romance à narrativa, apontando as diferenças entre essas duas formas literárias
1
. Embora a
concepção de Benjamin sobre o romance divirja da visão que Bakhtin possui sobre esse
gênero literário, principalmente no que se refere à função social do romance, destacada por
este último e contestada por aquele, é possível aproximar os dois teóricos. Tanto Benjamin
quanto Bakhtin concordam que o gênero romanesco distingue-se das outras formas de
prosa, como os contos de fadas, as sagas, as lendas, as farsas, as novelas, os poemas épicos.
Segundo Bakhtin (2002), o romance surgiu fora do limite da grande literatura
clássica grega, e levava uma existência não oficial, paralela à literatura harmoniosa dos
grupos sociais predominantes, a qual era, essencialmente, representada pelos poemas épicos
e pelas tragédias. O romance afetou a entidade orgânica dessa literatura, porque, além de
não surgir dela, parodiava-a, ou seja, “revelava o convencionalismo das suas formas e da
linguagem, eliminava alguns gêneros, e integrava outros à sua construção particular,
reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom” (2002, p. 399). De acordo com o teórico:
1
Benjamin faz distinção entre o romance e a narrativa (ou conto), apesar de essas duas formas literárias
pertencerem ao mesmo gênero, o gênero épico ou narrativo, o qual, segundo Carlos Reis (1997, p. 347),
caracteriza-se por concretizar um processo de representação autônomo, conjugando personagens, espaços e
ações, em um tempo determinado. Cabe salientar que Sergio Paulo Rouanet, tradutor do texto de Benjamin do
alemão para o português, na edição utilizada nesta análise, preferiu empregar a palavra “narrativa” em
detrimento à palavra “conto”.
20
o romance não entrava nunca nessa entidade [a dos grandes gêneros], ele não
participava da harmonia dos gêneros. Naquela época, o romance levava uma
existência não oficial, fora do limite da grande literatura. Na entidade orgânica
da literatura, organizada organicamente, entravam somente gêneros constituídos,
com personagens fixados e definidos. Eles podiam se limitar e se completar
mutuamente, conservando a natureza de seu gênero. Eles eram únicos e
aparentados entre si por suas profundas particularidades estruturais. (Bakhtin,
2002, p. 398)
Como se pode perceber, o gênero romanesco lutava pela sua supremacia na
literatura, e onde ele dominava, acabava desagregando a harmonia dos velhos neros,
como aconteceu com as epopéias da antiguidade clássica. (2002, p. 398)
Embora ignorado pelas grandes poéticas do passado, o romance evoluiu e afetou
toda a literatura. Esse gênero tornou-se supremo na segunda metade do século XVIII,
quando, em maior ou menor grau, “romancizou” a maioria dos outros gêneros, sobretudo os
que herdaram as características da épica, desconstituindo a harmonia das estruturas que os
conservavam como gêneros, como por exemplo, a presença de personagens fixados e bem
definidos nos poemas épicos. Bakhtin explica que, na presença do romance, como gênero
dominante, as linguagens convencionais dos gêneros estritamente canônicos começaram a
ter uma ressonância diferente, diferente daquela época em que o romance não pertencia a
grande literatura”. (2002, p. 399)
A epopéia representava o passado nacional épico, e servia como suporte da lenda
nacional, coletiva, da qual se destacava o herói perfeito e terminado. O mundo da epopéia
era isolado, distante, tanto do narrador quanto dos seus ouvintes, porque o passado épico se
mantinha e se desvelava somente na forma de uma lenda nacional, não acessível a uma
existência pessoal. O passado épico era dado enquanto lenda, sagrada e peremptória, que
envolvia uma apreciação universal (Bakhtin, 2002, p. 408). Esse mundo, que sustentava a
tradição oral da antiguidade clássica e do qual sobrevinha toda a sabedoria que alimentava a
grande literatura, foi desestruturado pelo romance.
Bakhtin acreditava que, além de o romance não proceder da tradição oral, nem a
alimentar, deixou de lado a apreciação sagrada do mundo épico. O narrador do romance
renunciou à experiência, à sabedoria e ao caráter oral e declamatório do ato de contar
histórias, que possibilitava a interação entre ele e o ouvinte, para se vincular essencialmente
ao livro. O romance, portanto, distingue-se da narrativa, não só porque teve origem e
21
evolução distintas da grande literatura, mas porque “só ele está organicamente adaptado às
novas formas de percepção silenciosa, ou seja, à leitura”. (Bakhtin, 2002, p. 397)
No entanto, conforme demonstrou Benjamin, é a essa tradição oral, a do mundo
épico, que os grandes narradores como Leskov se voltam para construírem suas narrativas.
Pode-se inferir, então, que um dos motivos pelos quais Benjamin não considerou os
romances de Leskov, nem os romances em geral, como formas legítimas de contar
histórias, foi porque eles se diferenciaram das narrativas, uma vez que:
a tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamental-
mente distinta da que caracteriza o romance. O que caracteriza o romance, de
todas as outras formas de prosa contos de fadas, lendas e mesmo novelas é
que ele nem procede da tradição oral e nem a alimenta. Ele se distingue,
especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência dos seus ouvintes (Benjamin, 1994, p. 201).
Como se pode observar, o gênero romanesco incorporou elementos que o distanciou
da forma artesanal de comunicação, aquela que “imprime na narrativa a marca do
narrador”. (Benjamin, 1994, p. 205)
As verdadeiras narrativas, segundo Benjamin, além de possuírem uma dimensão
utilitária, que vem do senso prático de quem sabe dar conselhos –, estabelecem uma
“relação ingênua entre o narrador e o ouvinte, dominada pelo interesse de conservar o que
foi narrado” (1994, p. 210). Em outras palavras, para o teórico, as narrativas mais
suscetíveis de serem recontadas são aquelas que estão salvas de grandes análises
psicológicas, pois:
quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas
psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais
facilmente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele
cederá a inclinação de recontá-la um dia. (Benjamin, 1994, p. 204)
Do mesmo modo, Adorno (2003), ao tratar das características da épica, revela
existir uma certa ingenuidade tanto no discurso de quem conta histórias quanto na forma
como esse discurso é empregado, com o intuito de perpetuar eventos passados. Pode-se
inferir sobre isso que a relação ingênua no ato de contar histórias é assegurada pela
naturalidade com que o narrador e o ouvinte se envolvem com aquilo que é narrado. Se essa
22
naturalidade assegura tal relação, é porque o narrador opta por contar fatos verossímeis e
livres de maiores elaborações, na tentativa de torná-los eventos particulares. Essa
naturalidade na relação entre os envolvidos em um ato de contação de histórias pode
justificar o fato de os narradores buscarem uma ocorrência de algo particular e digno de
nota (Adorno, 2003, p. 51), que detenha a atenção do ouvinte, para possibilitar que esse
evento se reproduza.
A relação ingênua entre narrador e ouvinte, assegurada pela naturalidade no ato de
contar histórias, permite que a poesia épica, da qual se alimentam as verdadeiras narrativas,
ou a tradição oral do artesão, que alia os saberes que vem de longe aos saberes do passado,
perpetuem “algo digno de ser relatado, algo que não se equipara a todo o resto, algo
inconfundível e que merece ser transmitido em seu próprio nome” (Adorno, 2003, p. 48).
Desse modo, pode-se dizer que não há uma relação ingênua entre narrador e ouvinte,
mas que as coisas que eles contam também adquirem um caráter ingênuo, ou seja, as coisas
narradas “apegam-se, em sua limitação, ao que aconteceu apenas uma vez [...], pois o
acontecimento singular não é simplesmente uma teimosa resistência a abrangente
universalidade do pensamento, mas também o mais íntimo anseio do pensamento”
(Adorno, 2003, p. 49). Essa relação ingênua entre narrador e ouvinte permite que a
memória exerça seu papel de transmissora de reminiscências de geração em geração, pois,
não se pode esquecer que, para Benjamin, “a memória é a mais épica de todas as faculdades
e somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das
coisas”. (Benjamin, 1994, p. 210)
Todos esses aspectos permitem afirmar que a verdadeira arte de contar histórias
consiste em uma relação ingênua entre narrador e ouvinte e que essa relação funda-se na
naturalidade com que o narrador transforma uma experiência particular, ou de outrem, em
algo comunicável. A verdadeira arte de contar histórias não nasce apenas do interesse do
homem em conservar o que foi narrado, como referiu Benjamin, mas também da
necessidade que ele possui de compartilhar suas experiências particulares com outras
pessoas, como inferiu Adorno.
23
1.3 Por que se contam histórias
Vários são os motivos que impelem um narrador a contar histórias. Benjamin
adverte, porém, que “comum a todos os narradores é a facilidade com que se movem para
cima e para baixo nos degraus de sua existência” (1994, p. 215). Para o teórico, as histórias
são contadas independentemente do papel que desempenham no patrimônio da
humanidade, o que explica a multiplicidade de formas com que esse acervo de experiências
se manifesta em cada indivíduo e a abundância de situações por meio das quais seus efeitos
podem ser sentidos (1994, p. 214). Roland Barthes (1972) corrobora essa idéia quando
afirma que:
a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as
sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há,
não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os
grupos humanos têm suas narrativas, e freqüentemente estas narrativas são
apreciadas em comum por todos os homens de cultura diferente, [...] a narrativa
está aí, como a vida. (Barthes, 1972, p.19)
De acordo com a variedade de situações que envolve o ato de contar histórias, o
grande mero de motivos que podem deflagrar a contação de uma história e as diferentes
formas com que as narrativas aparecem, é possível situar os dois grupos de narradores
analisados por Walter Benjamin, os marinheiros comerciantes e os camponeses sedentários.
Os narradores do primeiro grupo podem contar histórias porque desejam compartilhar suas
descobertas com outras pessoas, ou porque desejam manter viva na memória a lembrança
dos lugares por onde passaram. Já os do segundo grupo podem contar suas histórias porque
conhecem as tradições e os costumes de seu país, e são movidos pelo desejo de conservar o
que foi narrado.
Outro fator que instiga a contação de histórias, segundo Benjamin, está relacionado
com o estado psíquico do narrador, ou seja, a escolha da narrativa a ser relatada,
geralmente, é feita em função do que ele está vivendo. Um narrador, em um ato de
contação de histórias, pode estar demonstrando simpatia, envolvimento, afetividade para
com seu ouvinte; em outro pode estar revelando irritação, medo, valentia; em um terceiro,
saudade, desilusão, desconforto, ingenuidade, sabedoria. Porém comum a todas as histórias
é a intenção do narrador de revelar sua identidade e trabalhar a matéria-prima da
24
experiência a sua e a dos outros transformando-a num produto sólido, útil e único
(Benjamin, 1994, p. 221), e digna de ser relatada. (Adorno, 2003, p.51)
Esse é o caso do indivíduo que está diante da morte. Segundo Benjamin, é no
momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida –
e é dessa substância que são feitas as histórias assumem pela primeira vez uma forma
transmissível” (1994, p. 207). A morte iminente desperta no indivíduo inúmeras situações,
pois é nesse momento que passam a desfilar, com mais intensidade em sua memória, as
experiências vividas:
Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens visões de si
mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso –, assim o
inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que
lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer,
para os vivos a seu redor. Na origem da narrativa es essa autoridade.
(Benjamin, 1994, p. 207)
Dessa forma, infere-se que uma história pode ser contada porque o narrador precisa
manter um certo equilíbrio mental em relação à realidade, compreendendo da melhor forma
possível os inúmeros acontecimentos sucedidos com ele. A história contada, geralmente,
diz respeito ao estado de espírito de quem a conta, revelando que precisa entender algum
assunto que, por algum motivo, ainda não pôde entender. Pode-se dizer, então, que a
escolha do tema, as palavras empregadas e as imagens que compõem uma história estão
intimamente ligadas ao desejo do indivíduo de expressar algo ou à necessidade que possui
de organizar os pensamentos para manter-se equilibrado. Ressalta-se, porém, que é mais
comum localizar narrativas que se relacionam com o primeiro grupo de narradores
mencionados por Benjamin e com os indivíduos que contam histórias em função do seu
estado de espírito, do que encontrar narrativas que tratam apenas das tradições e costumes
locais. As primeiras, por algum motivo, foram perpetuadas pela escrita, enquanto que as
outras, em sua maioria, se perderam no tempo, por serem de caráter oral. Adverte-se, ainda,
que narradores diferentes apresentam motivos semelhantes pelos quais contam suas
histórias.
Independentemente do lugar onde o narrador esteja, da posição que ocupa, das
coisas que conta, ou, ainda, do seu estado de espírito, o ato de contar histórias pressupõe o
ato de ouvir, pois
um narrador já deve ter ouvido uma história para poder contar outra, bem
25
como um ouvinte deve saber de que se trata de uma história para entendê-la, além de ter
noção de como elas aparecem e como se estruturam. Antes de poder contar uma história,
então, o narrador deve tê-la ouvido de algum outro narrador, pois é especialmente nesse
tipo de relação que o indivíduo começa a estabelecer suas diferenças ideológicas, sociais,
culturais –, para que, de alguma forma, possa constituir, não só sua identidade, mas também
a do país ou grupo social a que pertence. Kathryn Rosenfield (1996) alude a essa relação
entre o ato de contar histórias e a constituição da identidade, comentando especificamente o
caso do Brasil:
é tipicamente brasileiro o hábito de “puxar conversa”, de parar no meio do
trabalho ou no meio do caminho, para “bater papo”, para contar e ouvir histórias.
Em intermináveis “conversas fiadas” misturam-se vida privada e pública,
curiosidade à toa e interesses, amabilidade espontânea e obrigação social, pois
“conversar”, no Brasil, não é apenas um passatempo privado ou um lazer
pessoal, mas quase uma secreta confirmação de que o laço social está intacto.
(Rosenfield, 1996, p. 10)
Rosenfield, além de mostrar o caso particular do Brasil, aponta para um sujeito que
soube lidar muito bem com os tesouros da cultura popular brasileira e que se consagrou
como um dos maiores contadores de histórias nascidos neste país: João Guimarães Rosa.
Esse escritor, segundo a ensaísta, soube distinguir o rico fundo da cultura popular brasileira,
formado pelos tesouros sonoros e semânticos da dicção sertaneja, dos curiosíssimos
amálgamas da cultura européia com o substrato indígena e o influxo africano, que deixaram
tão profundos traços na formação física e psíquica do homem brasileiro. (Rosenfield, 1996,
p. 27)
Não foi por acaso, então, que Guimarães Rosa, segundo Rosenfield, retratou “as
trilhas camufladas que nos fazem retornar a inquietantes êxtases” (1986, p. 13) e fez
emergir da cultura popular brasileira o hábito de puxar conversa, a informalidade do bater
papo e as intermináveis conversas fiadas. O charme particular das entonações e dos gestos,
as distinções precisas, a sutil impregnação da natureza nas ações, nas atitudes e nos hábitos
sertanejos, tornaram esse contador de histórias um sujeito único, que conseguiu visualizar
os mínimos detalhes da flora e da fauna, de inúmeros personagens, atribuindo-lhes
características de plantas e de animais (1996, p. 18). Guimarães Rosa amava muito seu país
e sua Cordisburgo, cidade onde nasceu, e “sempre viu, bem no centro das mais tenebrosas
26
perspectivas que se esboçam nos interstícios de suas histórias, algum detalhe amável, terno,
maravilhoso, ou alegremente irrisório”. (Rosenfield, 1996, p. 26)
É justo, então, afirmar que a maioria das histórias é contada porque os indivíduos
desejam constituir suas identidades, pois, à medida que narram experiências vividas ou
imaginadas , mostram suas lembranças, seus sonhos, suas viagens, suas leituras, ou seja,
tudo aquilo que os torna únicos. Cecília de Lara (1996)
2
dá uma noção de como as
experiências de Guimarães Rosa, transfiguradas em histórias, contribuíram para que ele se
transformasse em um indivíduo singular:
A própria maneira de ser e de viver, no sertão, encarregou-se de encaminhá-lo
para a busca da expressão pela palavra: “Deus meu! No sertão, o que pode uma
pessoa fazer de seu tempo livre a não ser contar histórias?” dia G. Lorenz
[jornalista]. “Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e
comecei formar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua
essência, era e continua sendo uma lenda”. Os comentários que acompanham o
relato dos fatos rememorados criam uma espécie de previsão retrospectiva,
fazendo convergir o vivido para a situação presente: a do escritor que nascia para
a Literatura. (Lara, 1996, p. 24)
Lara observa que Guimarães Rosa sempre manteve ligação afetiva com sua região e
que sua terra natal não foi esquecida nem no seu discurso de posse na Academia Brasileira
de Letras, que falava de uma Cordisburgo pequeníssima, plantada atrás das montanhas, no
meio de Minas Gerais. A cidade, na lembrança do escritor, era “só quase lugar”; onde “se
descerra a gruta de Maquiné, mil maravilhas, a das Fadas e o próprio campo, com
vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sobre o demais de estrelas,
falava-se: ‘os pastos de Vista Alegre’” (Lara, 1996, p. 20). Lara ressalta, ainda, que as
lembranças, os sonhos e os devaneios da infância de Guimarães Rosa sempre estiveram
presentes em sua obra, e que o escritor realizava técnicas ou processos para voltar à
infância, ou “a ‘outra’ infância”, como o próprio autor preferia chamar àquilo que resultava
do sonho: “Com algum treinamento, qualquer um consegue andar por pelo menos umas
duas horas, cada dia. E aí, a cidade vira roça”. (Lara, 1996, p. 19)
Portanto, o imaginário de Guimarães Rosa que, segundo Lara, também era
enriquecido por leituras, por viagens de estudo e por informações de amigos e parentes, não
2
É importante observar que o ano de publicação dos ensaios “João Guimarães Rosa: o contista de Sagarana”,
de Kathryn Rosenfield, e “Rosa por Rosa: memória e criação”, de Cecília de Lara, é 1996, data em que se
comemorou o cinqüentenário da primeira edição de Sagarana.
27
ligava sua maneira de ser e de viver, no sertão, às suas rememorações da infância, mas
também permitia que o escritor construísse sua identidade, re-inventando as próprias
lembranças. A fantasia se associava às recordações da infância na memória do adulo: “se
por um lado a memória do vivido é reativada pelo ‘sonho’, ou seja, o devaneio, a fantasia,
por outro o conhecimento adquirido em leituras se soma à vivência pessoal, permitindo que
novos detalhes enriqueçam a observação, quando revisita o cenário de sua infância” (Lara,
1996, p. 21). Guimarães Rosa, em entrevista a G. Lorenz, declarou que, em literatura, era
um sujeito visual, e que sabia descrever aquilo que via e, efetivamente, sonhava depois.
Esse comentário levou Lara a concluir que o escritor:
Chama de “sonho” o processo de recordar o vivido, que implica no trabalho da
fantasia sobre a realidade. Logo, Guimarães Rosa reafirma a ação da
imaginação, que se alia a outros ingredientes da recordação: o transcurso do
tempo. Fala, ainda, de “lembranças e saudades” e diz que escreve sobre o que
viu e sonhou “depois”. Reviver o passado é sonhar, portanto, com o vivido.
(Lara, 1996, p. 19)
Como se pôde perceber pela análise dos dois grupos de narradores de Benjamin, os
marinheiros comerciantes e os camponeses sedentários, um narrador não conta sua história
somente porque deseja compartilhar suas descobertas com outras pessoas, ou porque almeja
manter vivos na memória os lugares por onde passou; ele também pode contar histórias a
fim de demonstrar que conhece as tradições e os costumes de seu país, movido pelo desejo
de conservar aquilo que foi narrado por outros. Ainda, segundo Benjamin, um narrador
pode narrar histórias, motivado pelo seu estado de espírito, ou seja, ele conta sua história
porque precisa resolver assuntos pendentes, como é o caso do indivíduo que se encontra
diante da morte. Com base no exame da vasta fortuna crítica da obra de Guimarães Rosa,
pode-se dizer que esse escritor envolve-se em um ato de contação de histórias com o intuito
de estabelecer sua identidade e de tornar-se único, pois, segundo João Adolfo Hansen, “o
narrador é sujeito tentando a determinação do que vive, na medida em que também é o
narrado. Seu imaginário detona na fala aquilo que tenta pensar abstratamente, na imagem
da coisa, como memória”. (Hansen, 1996, p. 54)
Tendo em vista a análise do processo de contação de histórias efetuada por Walter
Benjamin e a representação dessa prática por parte de escritores, dentre os quais,
Guimarães Rosa, é possível afirmar que, de um lado, estão as situações que dizem respeito
28
à relação entre o contador de histórias e o seu ouvinte – o relato oral e a audição de casos –,
as quais são, na verdade, tentativas de demarcar as diferenças entre aquele que conta e
aquele que ouve; de outro estão as situações que remetem à interação do texto com o leitor
a narração, por escrito, e a leitura de histórias. A leitura é um ato solitário, que ocorre
quando alguém se relaciona com uma história que foi escrita, ou seja, quando o relato
ultrapassou a fase da oralidade e ganhou registro gráfico.
1.4 O efeito estético
Nesta época, em que se tem a sensação de que todas as histórias foram contadas,
e em que vigoram idéias de teóricos como Walter Benjamin, que prenunciaram até a
morte da narrativa, é importante que se considere a relação entre o contador de histórias e o
seu ouvinte ou leitor. Por isso, torna-se oportuno investigar a interação entre o texto e o
leitor, pelo ato da leitura, pois, segundo Wolfgang Iser, em O ato da leitura: uma teoria do
efeito estético
3
, é durante esse processo que o texto ficcional se transforma em objeto
estético e passa à consciência do receptor, provocando o efeito estético.
Segundo Iser (1996), no processo da leitura se realiza a interação central entre a
estrutura da obra e seu receptor. Por isso, o estudo de uma obra literária não pode dedicar-
se apenas à configuração do texto, mas deve aplicar-se, também e, na mesma medida, aos
atos de apreensão. Uma obra literária, então, não é nem a realidade do texto, nem as
disposições caracterizadoras do leitor; “a obra é o ser constituído do texto na consciência do
leitor”. Iser denomina esse ser que se constitui na consciência do leitor de objeto estético.
Por sua vez, o objeto estético resulta das relações internas do texto (Iser, 1996, p. 50-51),
porque, de acordo com o teórico:
podemos concluir que o objeto estético do texto se constitui através dessas
visões diferenciadas, oferecidas pelas perspectivas do texto. O objeto estético
emerge da interação dessas “perspectivas internas” do texto; ele é um objeto
estético à medida que o leitor tem de produzi-lo por meio da orientação que a
constelação dos diversos pontos de vista oferece. (Iser, 1996, p. 180)
3
Esse livro, publicado em 1976, na Alemanha, teve sua edição brasileira dividida em dois volumes. O
primeiro, editado em 1996, está dividido em dois capítulos. O segundo volume foi editado em 1999 e contêm
os capítulos terceiro e quarto.
29
As perspectivas internas do texto são organizadas pelas estratégias narrativas, que
combinam os elementos constitutivos do texto de tal forma que eles possam ser
compreendidos. As estratégias narrativas também são responsáveis pelas diferentes visões
que um leitor pode criar de uma obra literária, porque “o texto representa um sistema
perspectivístico” (Iser, 1996, p. 179), ou seja, apresenta várias perspectivas, como exemplo,
a do narrador, a dos personagens, a do enredo, a do destinatário ou leitor. Essas estratégias,
então, contribuem com a construção do objeto estético, caso se considere que:
o objeto estético se constrói através da rede dessas relações. Ele não é algo dado,
mas pode ser constituído por meio da mudança recíproca das posições delas. Se
lembrarmos que as posições do texto – as perspectivas do narrador, do herói, dos
personagens secundários, da ação e da ficção do leitor sempre representam
algo determinado, sua mudança, produzida na rede das relações recíprocas,
significa que o objeto estético do texto transcende tudo que é determinado no
texto. (Iser, 1996, p. 183)
A constituição do objeto estético na consciência do leitor, pelas estratégias textuais,
caracteriza o efeito estético, que, embora não se cristalize em algo existente, “pode ser
definido como recusa à categorização ou ainda como situação em que o receptor se afasta
de suas classificações” (Iser, 1996, p. 53). O efeito estético, portanto, é o resultado do
processo de apreensão de uma obra literária por um leitor que desvenda as estratégias
propostas pelo texto. Esse efeito não é conseqüência apenas das estruturas do texto e das
disposições do leitor, ele é o algo que ultrapassa a realidade empírica dessas duas instâncias
para adquirir o caráter de evento. Segundo Iser, isso significa:
que o leitor reage a algo que ele mesmo produzira, e esse modo de reação
explica porque somos capazes de experimentar o texto como evento real. o o
compreendemos como objeto dado, nem como estrutura determinada por
predicados; é antes de mais nada por nossas reações que o texto se faz presente.
Dessa maneira, o sentido da obra ganha o caráter de evento, e, que
produzimos o evento como correlato da consciência do texto, experimentamos o
texto como realidade. (Iser, 1999, p. 45-46)
De acordo com o teórico, além de o texto ficcional se constituir na consciência do
leitor como objeto estético, deve-se levar em conta a sua característica de ser parasitário, o
qual dispõe dos procedimentos de uma enunciação performática. O texto literário “deve ter
algumas qualidades dos atos verbais que imita, deles diferindo apenas por seu modo de
aplicação” (Iser, 1996, p. 114). Desse modo, pode-se dizer que o caráter parasitário do
30
discurso ficcional, em relação ao uso normal da fala, indica que o texto literário é uma
representação da enunciação verbal e necessita de uma situação contextual para realizar o
ato de comunicação. Ao contrário disso, um ato verbal normal mostra, pelas reações do
receptor, que ele “captou corretamente a intenção do falante, cumprindo os pressupostos
necessários para que o êxito de uma ação verbal se realize” (1996, p. 109), pois:
se o discurso é a representação de uma enunciação verbal, ele é capaz de
representar o que a enunciação verbal é, ou seja, produz. Isso significa, de um
lado, que o discurso ficcional, por meio de sua organização de símbolos,
representa o ato de apreensão da enunciação verbal, e, uma vez que no discurso
esse ato não se refere a um dado empírico e identificável, sua estrutura verbal
indica como se há de produzir o que é intencionado pelo discurso. De outro, isso
significa que o discurso representa um ato ilocucionário da fala que, no entanto,
não pode contar com uma situação contextual previamente dada e, por
conseguinte, deve trazer consigo todas as indicações que permitam ao receptor
da enunciação produzir tal situação contextual. (Iser, 1996, p. 120)
O texto artístico é capaz, então, de representar o uso normal da fala por captar e
ordenar os símbolos de uma ação verbal, e o fato de que o uso do discurso ficcional não se
confunde com o dado de uma ação atual não significa que esse discurso não produza efeitos
(1996, p. 113). Assim, é justo inferir que o discurso do contador de histórias no âmbito
ficcional causa efeitos em seu interlocutor, embora ele esteja apenas simulando um relato
oral. Assim, para se analisar o envolvimento entre o contador de histórias e o seu leitor no
texto ficcional, é preciso entender que, no ato de contação de histórias, formam-se
discursos, e que esses discursos são dotados de procedimentos narrativos, ou estratégias
narrativas que servem para representar o uso normal da fala em um ato real de contação de
histórias. Segundo Iser, o discurso ficcional, sobretudo da prosa literária, tanto se
assemelha em sua estrutura verbal ao uso normal da fala que muitas vezes é difícil de
distingui-los”. (1996, p. 116)
Entre os efeitos do relacionamento que o leitor estabelece com o texto literário está
a experiência estética, que, segundo Iser, “só funciona se tira proveito das possibilidades de
experimentar noutras condições a experiência cotidiana” (1996, p. 82). O conceito de
experiência estética foi concebido por Hans Robert Jauss (2002) e diz respeito à capacidade
da arte de libertar o ser humano, pelo imaginário, “de tudo o que faz a realidade
31
constrangedora de sua vida cotidiana”
4
(Jauss, 2002, p. 40). Vale observar a síntese das
idéias de Jauss elaborada por Zilberman (1989), que aponta para os efeitos da experiência
estética sobre o indivíduo:
liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina cotidiana; estabelece uma
distância entre ele e a realidade convertida em espetáculo; pode preceder a
experiência, implicando então a incorporação de novas normas, fundamentais
para a atuação na e compreensão da vida prática; e, enfim é concomitantemente
antecipação utópica, quando projeta vivências futuras, e reconhecimento
retrospectivo, ao preservar o passado e permitir a descoberta de acontecimentos
enterrados. (Zilberman, 1989, p. 54)
Assim se pode explicar como uma obra literária é capaz de influenciar a vida do
indivíduo quando promove a experiência estética. A consciência do leitor começa a se
ocupar do contexto criado pela obra e a produzir novas situações, que não precisam,
necessariamente, ser vivenciadas por ele. O leitor se representado na obra de tal forma
que intui circunstâncias até então inimagináveis, de modo a poder resolver conflitos antigos
e preparar-se para enfrentar problemas novos.
A leitura de um texto ficcional pode, então, provocar a experiência estética, que,
além de propiciar a mudança do horizonte de expectativas do leitor, produz neste um novo
contexto: o contexto da obra. Esse contexto, que, segundo Iser, já não conta com as
situações normais de fala, por ser diferente do contexto da realidade cotidiana (1996, p,
120), é capaz, também, de despragmatizar as normas estabelecidas por essa, ou seja:
à medida que o leitor produz esse contexto [o contexto da obra de ficção], ele
próprio começa a despragmatizar as normas. Isso significa, contudo, que ele as
separa de seu contexto de valor porque agora consegue ver o que elas excluem
em face de outras normas; desse modo, ele pode apreender o valor, representado
por cada norma, e captar sua função, que cumpria nos sistemas correspondentes.
Se isso sucede, então é possível para o leitor transcender o repertório da norma,
pois agora ele o que este, enquanto função reguladora no contexto
sociocultural, era capaz de produzir. (Iser, 1996, p. 189)
De acordo com o teórico, a experiência estética possibilita que se abra a hierarquia
cristalizada dos constituintes psíquicos, produzindo movimentos que são sentidos como
libertação latente, capaz de suspender a exigência do sensor e a validez dos domínios
4
Tradução do espanhol por Terezinha Maria de Melo Barros, em uma tradução não publicada da “Pequena
apologia da experiência estética”, de Hans Robert Jauss, apresentada à disciplina de Estética da Recepção, do
curso de pós-graduação em lingüística e letras, da PUCRS, Porto Alegre, no ano de 1990.
32
estabelecidos, ao menos, durante o processo da leitura (1996, p. 91). O leitor, assim, é
capaz de observar-se a si próprio e de passar a ver o seu entorno de uma forma que não lhe
é familiar, pois “perceber-se a si mesmo no momento da própria participação constitui uma
qualidade central da experiência estética; o leitor se encontra num peculiar estado
intermediário: ele se envolve e se vê sendo envolvido”. (1999, p. 53)
Outro elemento que caracteriza o texto literário, de acordo com Iser, é a sua
capacidade de representar a realidade empírica pela imagem. À medida que o leitor percebe
os signos do texto, ele passa a construir em sua memória as imagens que aqueles
representam, pois “a imagem sempre incorpora a maneira como os objetos do mundo
externo se imprimem na tábua de cera do nosso espírito” (1999, p. 57). Porém, o próprio
teórico adverte que nem o leitor é uma bua de cera, nem a percepção dos objetos do
mundo externo é imediata, uma vez que a representação “ganha o seu caráter imagístico
quando o saber que o texto oferece ou estimula no leitor é aproveitado, e isso significa que
o que deve ser representado não é o saber enquanto tal, mas a combinação ainda não-
formulada de dados oferecidos” (1999, p. 58). Pode-se dizer, então, que a imagem é a
categoria básica da representação porque:
ela se refere ao não-dado ou ausente, dando-lhe presença. [...] possibilita
também a representação de inovações que se constituem quando o saber
previamente estabelecido é desmentido, ou seja, quando determinadas
combinações de signos não são familiares. (Iser, 1999, p. 58-59)
Ora, se a experiência estética proporcionada pelas imagens do texto literário é capaz
de causar o efeito estético, libertar o ser humano dos constrangimentos e da rotina
cotidiana, provocar mudanças no horizonte de expectativas, possibilitando tanto que o
receptor re-avalie as normas estabelecidas quanto incorpore outras, então, é possível
afirmar que o relato de uma história ficcional pode tornar o leitor (ou ouvinte) “conscientes
da aquisição de experiências”. Dessa forma, na leitura de textos ficcionais, “inicia-se uma
interação entre a presença do texto e a experiência do leitor relegada ao passado, interação
esta que se manifesta na relação mútua entre reorganizar e dar forma” (1999, p. 53). Assim,
o ato de contação de histórias, realizado por escrito ou oralmente, torna os envolvidos
capazes de observarem-se a si mesmos e possibilita que o passado ressurja em suas
33
consciências para ser reorganizado, re-configurando as experiências atuais e futuras dos
indivíduos.
Ressalta-se que a ausência de estudos sobre o efeito estético de textos orais de
natureza artística dificulta uma distinção mais aprofundada entre as experiências do
contador de histórias e do ouvinte – que pressupõem uma relação coletiva, ingênua e
natural –, de um lado, e as experiências do escritor e do leitor, que se prendem a situações
de leitura solitária. Seria necessário, portanto, criar uma teoria específica para investigar os
efeitos que um texto oral artístico pode provocar em um ouvinte, complementando, desse
modo, a teoria do efeito estético de Iser, que aborda, exclusivamente, o texto ficcional
escrito.
2. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM TERCEIRA PESSOA
Sempre que se conta uma história, um narrador que se posiciona diante do que é
narrado. Segundo Helena Parente Cunha, quando um narrador coloca-se em frente ao que
narra, ele se põe numa situação de confronto em relação aquilo que conta, caracterizando
um distanciamento entre o sujeito
1
(narrador) e o objeto (mundo narrado). Esse
distanciamento “instaura um defrontar-se objetivo”, em que o narrador “se coloca diante do
objeto, segundo determinado ponto de observação, para registrar, apontar, mostrar, enfim,
apresentar esse objeto”. (Cunha, 1979, p. 106-107)
O contador de histórias em terceira pessoa parece estar sempre ocupado em
acrescentar algum detalhe àquilo que está relatando ou ao que pretende relatar. A cada
momento, o narrador pode ser surpreendido por um fato “novo”, suscitado seja pelo ouvinte
ou leitor, seja por uma reminiscência, seja por um acontecimento que presencia ou por um
objeto que lhe desperta a atenção na hora em que está contando a história. O fato é que esse
tipo de contador de histórias, que se concentra no mundo exterior para narrar, está
constantemente em conflito, como se estivesse sempre envolvido, para usar uma expressão
de Georg Lukács, em uma “luta entre dois mundos” (2000, p. 118), pois aquilo que vem de
fora se choca com o que já está no seu interior.
Lukács, ao explicar o “romantismo da desilusão”, tendência que identifica no
romance do século XIX, esclarece que o embate entre exterioridade e interioridade
acontece porque o indivíduo não consegue abarcar todas as coisas exteriores, embora seu
interior seja mais vasto que o mundo exterior (2000, p. 118). Esse paradoxo evidencia a
“inadequação que nasce do fato de a alma ser mais ampla e mais vasta que os destinos que
1
Não se deve confundir o sujeito empírico (autor) com o sujeito que narra, dentro do texto (narrador). Essas
duas entidades, segundo Carlos Reis, diferenciam-se, “tanto do ponto de vista ontológico como do ponto de
vista funcional”. Enquanto o primeiro “não deixará de ser uma entidade transitória e histórica, capaz até de se
distanciar ideológica e esteticamente do texto que escreveu”, o segundo, nunca deixará de ser “uma entidade
fictícia a quem cabe anunciar o discurso” (Reis, 1997, p. 353-355).
35
a vida lhe é capaz de oferecer” (2000, p. 117) e aponta para a amplidão da subjetividade,
que, segundo o teórico, pode estender-se até a subjetividade lírica, pois:
também a subjetividade lírica conquista para seus mbolos o mundo externo;
ainda que seja autocriado, ele é o único possível, e ela, como interioridade,
jamais se opõe de maneira polêmico-repreensiva ao mundo exterior que lhe é
designado, jamais se refugia em si mesma para esquecê-lo, mas antes,
conquistando arbitrariamente, colhe os fragmentos desse caos atomizado e os
funde fazendo esquecer todas as origens no recém-surgido cosmos lírico da
pura interioridade. (Lukács, 2000, p. 120)
De acordo com Lukács, o maior responsável pela desintegração da realidade em
fragmentos absolutamente heterogêneos entre si e pela discrepância entre interioridade e
exterioridade é o tempo, pois, “nele, escritor e personagem podem mover-se livremente em
qualquer direção” (2000, p. 128). O contador de histórias, independentemente daquilo que
narra, deve, então, estabelecer simultaneamente o tempo em que os fatos ocorrem
presente, passado ou futuro e o tempo de duração dos mesmos dias, meses e anos –,
uma vez que, segundo o teórico, tudo o que ocorre é fragmentário e está sempre irradiado
pela esperança e pela recordação. O tempo, portanto, da mesma forma que é culpado pela
fragmentação da realidade é a dimensão que:
ordena o caos aleatório dos homens e lhe empresta a aparência de uma
organicidade que floresce por si; sem outro sentido senão o evidente,
personagens emergem e, sem evidenciarem nenhum sentido, submergem
novamente, travam relações com os demais e rompem a seguir. (Lukács, 2000,
p. 132)
A posição adotada pelo indivíduo que se coloca, objetivamente, diante daquilo que
conta permite classificá-lo como um narrador em terceira pessoa. Segundo Salvatore
D’Onofrio, esse tipo de narrador é um observador imparcial que olha o mundo circundante.
Ao fazer isso, tal narrador traz o mundo passado, maravilhoso e imutável, para diante dos
olhos de quem se envolve com sua história, e mostra a vida presente como transparência
luminosa, em que predomina o espírito objetivo (D’Onofrio, 2002, p. 12). Adorno vai nessa
mesma direção, ao afirmar que esses narradores “tratavam de apresentar seu conteúdo de
maneira a provocar a sugestão do real”, em decorrência da objetividade que desejavam
imprimir em suas obras. Eles lidavam com um realismo que era imanente, utilizando
36
técnicas de ilusão que lhes proporcionavam erguer uma cortina e fazer o leitor participar do
que acontecia, como se estivesse presente ali, em carne e osso. (Adorno, 2003, p. 55-60)
Em textos ficcionais, segundo Carlos Reis, o narrador é uma entidade fictícia e
irrefutável (1997, p. 354-369), que pode posicionar-se em terceira pessoa para contar
histórias e que sempre se dirige a um narratário
2
, um sujeito não explicitamente
mencionado na superfície do texto (Reis, 1997, p. 356), também fictício, e, por isso,
previsto e controlado pelo autor. Em outras palavras, aquele que relata uma história em
terceira pessoa exerce uma situação de polaridade e de alteridade, uma vez que se coloca na
posição de quem fala a um outro – o narratário. Essa situação narrativa estrutura-se,
segundo o teórico, sob uma:
polaridade entre narrador e universo diegético, acentuando-se entre ambos uma
alteridade em principio irredutível; por força dessa polaridade, o narrador
heterodiegético tende a adotar uma atitude demiúrgica
em relação à história que
conta, surgindo dotado de uma autoridade que normalmente não é posta em
causa; predominantemente, o narrador heterodiegético exprime-se em terceira
pessoa, traduzindo esse registro à alteridade mencionada. (Reis, 1997, p. 370)
O narrador heterodiegético ou em terceira pessoa, portanto, relata uma história, ou
diegese, colocando-se em uma situação externa ao mundo narrado, ou seja, ele não atua
como personagem (Reis, 1997, p. 370), e conduz a narrativa de forma onipotente e de
acordo com sua vontade.
em um processo real de contação de histórias, há que se observar a presença do
ouvinte, aquele que se dispõe a receber o que é narrado, e que, sobretudo, interfere naquilo
que o narrador conta, relativizando a autoridade de quem narra. O ouvinte adquire
importância nesse processo, à medida que impõe sua vontade na história e impulsiona, de
alguma forma, o narrador a contá-la, transformando-se, muitas vezes, no motivo central da
narração. Quando isso ocorre, para utilizar uma expressão de Walter Benjamin, o narrador
“incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (Benjamin, 1994, p. 201).
Ao se observar as peculiaridades do narratário e as do leitor real, portanto, pode-se inferir
2
Em textos ficcionais, segundo Carlos Reis, o narratário, também é uma entidade fictícia, como o narrador.
Pode-se evidenciá-lo quando o narrador “convoca expressamente a atenção de um destinatário intratextual”.
Porém, segundo o teórico, a definição do narratário solicita a prévia distinção relativa ao leitor real, que, de
alguma forma, deve ser, por exemplo, “atento aos dramas sociais que se vão esboçando”, e ser
“razoavelmente conhecedor dos contornos de uma crise econômica em desenvolvimento”, capaz de distinguir
significados da realidade empírica. (Reis, 1997, p. 356-357)
37
que o contador de histórias que vier a utilizar o discurso normal da fala, em uma situação
real de contação de histórias, pode posicionar-se em terceira pessoa para fazer seu relato a
um ouvinte, de forma semelhante àquela que, em textos ficcionais, o narrador inventado por
um autor assume diante do mundo narrado, dirigindo-se a um narratário.
Ressalta-se que tanto o narrador ficcional quanto o contador de histórias real podem
posicionar-se em terceira pessoa e que ambos imprimem, em seus relatos, um processo de
exteriorização, o qual, segundo Reis, procura descrever e caracterizar um universo
autônomo, que depende da uma tendência objetiva e de uma dinâmica de sucessividade,
estando integrado por personagens, tempo, espaços e ações (Reis, 1997, p. 347). Esse é o
procedimento que se encontra em “Sarapalha” e em “O burrinho pedrês”, contos de João
Guimarães Rosa, inseridos em Sagarana.
2.1 “Sarapalha”
O narrador de Sarapalha” (1984, p. 132-154) conta a história de dois compadres, o
Primo Ribeiro e o Primo Argemiro, que conversavam sobre acontecimentos do passado e
sobre a sua condição de enfermos, enquanto eram assaltados por delírios e por tremores,
causados pelas complicações da malária. Eles moravam juntos e, naquela manhã, estavam
sentados lado a lado em um “casco de cocho emborcado” (1984, p. 135), em frente à casa
da fazenda, perto do vau da Sarapalha, trecho alagado pelo rio Pará, afluente do rio São
Francisco, no interior de Minas Gerais. Não se sabia se tremiam e se deliravam mais por
causa da doença ou porque lembravam e comentavam acontecimentos marcantes de seus
passados. O estado em que se encontravam, ao mesmo tempo, aumentava o grau de
intimidade entre os dois e contribuía para o surgimento de tais eventos. Entre os episódios
do passado, relembrados pelos companheiros, surgiu a história da fuga de Luísa, ex-esposa
de Primo Ribeiro, fato que, até então, nunca tinha sido abordado por eles, porque causava
comoção em ambos. Enquanto Primo Ribeiro lamentava a perda de Luísa, Primo Argemiro
tinha de esconder seu amor por ela. A eclosão do evento na memória e na fala dos dois foi
tão decisiva que acabou dissolvendo a relação de amizade entre os companheiros, ou seja,
Primo Ribeiro não suportou a confissão do amor de Primo Argemiro por sua ex-esposa.
38
No início do conto, o narrador principal mostra uma fazenda quase abandonada,
onde havia apenas os dois compadres sentados no cocho, uma negra velha que capinava
e cozinhava, um cão sarnento e o escasso milharal arruinado por bandos de pássaros
famintos. A fazenda, de propriedade do Primo Ribeiro, ficava a três quilômetros de Tapera
de Arraial, vilarejo também afetado pela chegada da malária, do qual restavam somente as
casas, a capela e o cemitério. A desolação da fazenda e do vilarejo era tão grande que até as
cobras tinham-se ido embora. Restava apenas o mato invadindo os caminhos.
Além da narração do incidente entre os dois compadres, feita pelo narrador principal
do conto, e do episódio da fuga de Luísa, contado por Primo Ribeiro, há outras histórias
inseridas em “Sarapalha”. Uma delas é narrada por Primo Argemiro e diz respeito a uma
moça que fugiu com um homem muito bonito, sem saber que se tratava do próprio capeta.
As outras, também contadas por Primo Argemiro, constituem-se no relato da lembrança da
chegada à fazenda do boiadeiro com quem Luísa fugiu e na confissão do amor que um dos
companheiros nutria pela esposa do outro. Há, ainda, a história relativa à advertência feita
pelo doutor aos moradores de Tapera do Arraial, que deviam deixar o lugar por causa da
malária, caso este contado parte por Primo Argemiro e parte por Primo Ribeiro; o episódio
em que Primo Argemiro, como forma de expressar um desejo de animar seu parceiro,
projeta uma cena futura a de que, uma vez curados da doença, poderiam, ele e o primo,
plantar uma roça em cima do morro; a história referente aos sonhos e delírios de Primo
Ribeiro, no momento em que teve sua morte anunciada por pássaros e via sua ex-esposa
perambulando entre mulheres vestidas de azul.
Observa-se que os narradores de “Sarapalha” – tanto o principal quanto Primo
Ribeiro e Primo Argemiro – na maioria dos eventos de contação de histórias, assumem uma
posição externa às histórias que contam, ou seja, não participam das ações que narram. As
exceções ocorrem quando os protagonistas relatam lembranças ou falam de desejos e de
sonhos, momentos em que se colocam como personagens dos relatos. O narrador principal
é onisciente e observa tudo o que acontece. Primo Ribeiro e Primo Argemiro são
personagens que assumem a posição de narrador em determinados momentos do relato.
Após mostrar a fazenda onde estavam os dois compadres, o narrador principal
continuidade à história e conta que era pela manhã e o sol ainda não esquentava. No
momento em questão, Primo Ribeiro, enrolado em um cobertor, advertiu o companheiro
39
sobre o zumbido dos mosquitos em seus ouvidos e sobre o frio que sentia nas costas,
prevendo que a morte viria logo. Sentados lado a lado, comparavam o tamanho de seus
baços. Esse órgão, segundo o narrador principal, sendo afetado pela doença, aumentava
consideravelmente. A comparação é feita com o intuito de verificar qual dos dois estava
sendo mais castigado pela moléstia. Porém, os comentários sobre as sensações provocadas
pela doença eram intercalados por longos momentos de silêncio, durante os quais os dois
observavam as poucas galinhas ciscarem o chão e o cão, pestilento, sacudir as orelhas, além
de especularem sobre as condições do tempo:
– Será que chove, primo?
– Capaz.
– Ind’hoje? Será?
– ’Manhã.
– Chuva brava, de panca?
– Às vez...
– Da banda de riba?
– De trás. (1984, p. 138)
Assim, nos intervalos de “mais da metade de uma hora” (1984, p.138) que faziam
entre as falas, olhando ora a cerração que se desprendia do rio e o vôo da garça em direção
à mata, ora a ação dos pássaros no milharal, os dois compadres permaneciam imóveis,
sentados no cocho, todas as manhãs desde que a chegada da malária havia modificado o
lugar –, até o sol esquentar. Porém, naquele dia, Primo Argemiro estava com medo do
silêncio, pois Primo Ribeiro, “desfiando a beirada do cobertor, com muita nervosia de
unhas” (1984, p.138), quando falava, só lembrava da morte:
quando for a minha hora, você não deixe me levar p’ro arraial... Quero ir mas é
p’ro cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda é chão de Deus... Você
chama o padre, bem em-antes... E aquelas coisinhas que estão numa capanga
bordada, enroladas em papel-de-venda e tudo passado com cadarço, no fundo da
canastra... se rato não roeu... voenterra junto comigo... Agora eu não quero
mexer lá... Depois tem tempo... Você promete? (1984, p. 139)
Primo Argemiro, catando pulgas invisíveis nas pernas das calças, sem olhar para o
outro, tinha de puxar alguma conversa, não porque o Primo Ribeiro falava de morte, e
isso não lhe agradava, mas porque tinha muitas coisas a imaginar e outras a esconder.
Então, desatava a falar, desfiando histórias. Primo Argemiro lembrava o companheiro da
ocasião em que o doutor, um ano, tinha advertido a população sobre os perigos da
40
doença, explicando “que era o mosquito que punha um bichinho amaldiçoado no sangue da
gente...” (1984, p. 140), e aconselhara que todos deixassem o lugar, antes que morressem,
pois “o mosquito torna a picar...” (1984, p. 141). Primo Argemiro contava, ainda, coisas
aparentemente banais ao primo, como da vez em que perguntou se o outro gostava de morar
naquele lugar, enredando-o em histórias de desejos:
Olha, Primo, se a gente um dia puder sarar, eu ainda hei de plantar uma roça, no
lançante que trepa para o espigão. Deve ser bom a gente poder capinar em
riba, de manhã cedinho... Tem uma noruega, atrás, cheia de samambaia e
parasita roxa. Eu havia de fazer uma roça de três quartas, mas com uns cinco
camaradas no eito, todo mundo cantando e puxando o cacumbu!... (1984, p. 139)
Primo Ribeiro, colocado na condição de ouvinte, pediu ao outro que fosse devagar
com as palavras, pois desconfiava que o primo falava “de carreira” (1984, p. 140) para
não deixá-lo falar, logo naquele dia em que havia sonhado com a ex-esposa e que se sentia
cansado de sofrer calado. Observa-se que o relato aparentemente banal dos desejos de
Primo Argemiro não é realizado apenas para distrair a atenção de Primo Ribeiro sobre os
acontecimentos, mas para revelar a esperança, o instinto de sobrevivência e a necessidade
de projetar um futuro a fim de se manter vivo. Primo Ribeiro não conseguia desviar o
pensamento do sonho que teve. As imagens da ex-mulher, “bonita como no dia do
casamento...” (1984, p. 141), e a notícia de que ia morrer, informada por um bando de
garrixas, aves avermelhadas, de asas e cauda listadas de preto, não lhe saiam da cabeça.
Primo Argemiro, mais uma vez, tentou desviar Primo Ribeiro dessas idéias, aludindo,
novamente, à história de advertência do doutor sobre os perigos da malária, mas o
compadre tinha resolvido “deixar a cabeça solta” (1984, p. 141), e pensava na esposa
fugida.
Somente um ano e meio após a fuga, Primo Ribeiro tinha resolvido comentar o
incidente e revelar que havia cansado de chorar escondido. Dizia que agora não se
importava em contar, e até acreditava que falar sobre aquilo lhe faria bem. Achava que a
sua hora de partir estava próxima e se sentia um indivíduo privilegiado, uma vez que a
morte santifica tudo o que o narrador pode contar, como se sua história de vida fosse ao
encontro de uma “história natural”, para utilizar uma expressão de Walter Benjamin. Na
situação em que Primo Ribeiro se encontrava, era-lhe permitido dizer que estava cansado
de sofrer calado, pois não tinha mais medo de ficar em posição de quem “fica frouxo e
41
arreia”. Era o seu estado de moribundo, então, que lhe conferia o estatuto de contador de
histórias, circunstância em que podia dizer, por exemplo: “o sofrimento era só meu” (1984,
p. 142). Assim, antevendo a chegada da morte e confiando no amigo, que durante anos se
mostrava um companheiro leal e dedicado, decidira contar:
Na hora, quando a Maria Preta me deu o recado dela se despedindo, mandando
dizer que ia acompanhar o outro porque gostava era dele e não gostava mais de
mim, eu fiquei meio doido... Mas não quis ir atrás, não... Tive vergonha dos
outros... Todo-o-mundo já sabia... E, ela, eu tinha obrigação de matar também, e
sabia que coragem p’ra isso havia de faltar... Também, nesse tempo, a gente já
estava amaleitado, pois não estava?... Foi bom a sezão ter vindo, Primo
Argemiro, p’ra isso aqui virar um ermo e a gente poder ficar mais sozinho... Ai,
Primo, mas eu não sei o que é que eu tenho hoje, que não acerto o jeito de tirar a
idéia dela... Ô mundo!... (1984, p. 143)
Logo depois de Primo Ribeiro contar sua história, a sombra de um cedro veio tapar
o sol, ainda, incipiente. Primo Ribeiro enrolou-se mais no cobertor, deitou-se no cocho e
advertiu o compadre de que ia delirar, sentindo os músculos do corpo a tremer
molemente, e os dentes a golpear desencontrados. Ao Primo Argemiro, com os braços
envolvendo os joelhos, sem poder conversar com o amigo, muito menos auxiliá-lo,
restavam os pensamentos; passara, então, a imaginar histórias. Porém, dessa vez, obteve
ajuda do narrador principal. Talvez seus pensamentos ainda não estivessem organizados a
ponto de se transformarem em uma história comunicável. Segundo Reis, o narrador
principal pode exercer esse papel porque sua presença é irrefutável, ou seja, incontestável, e
varia em função das situações narrativas (Reis, 1997, p. 369). No caso específico, o
narrador principal introjetou-se na consciência de Primo Argemiro, à medida que fez uso do
discurso indireto livre. Primo Argemiro passou, então, a lembrar das histórias do tempo em
que veio morar com o Primo Ribeiro e conheceu Luísa, a ex-esposa do companheiro,
revelando sentir ciúme do primo e um certo arrependimento por não haver declarado seu
amor a ela:
Bem que havia de ser razoável ter podido ao menos dizer à prima que ela era o
seu amor... Porque, assim, tinha fugido sem saber... sem desconfiar de nada...
[...] Se ele, Primo Argemiro, tivesse tido coragem... Se tivesse sido mais
esperto... Talvez ela gostasse... Podia ter fugido com ele... [...] Nem é bom
pensar nisso... Amanhã ele vai ao capoeirão, tirar mel de irussu para o Primo
Ribeiro... Deus que livre a gente desses maus pensamentos!... Primo Ribeiro vai
ficar satisfeito: ele gosta de mel do mato, com farinha... Primo Ribeiro vai ter
uma alegriazinha... (1984, p. 145-146)
42
Primo Argemiro, sentindo os estremecimentos do companheiro, e envolvido em
suas idéias, deu-se conta de que não podia delirar, pois, se isso acontecesse, poderia revelar
seu segredo, mas deixou escapar um pensamento em voz alta “P’ra que é que há-de haver
mulher no mundo, meu Deus?!...” (1984, p. 146) –, o que despertou Primo Ribeiro. Esse
levantou o corpo do cocho e permaneceu sentado, com os olhos meio avermelhados,
mostrando os sinais do delírio que o afligia:
Passam umas mulheres vestidas de cor de água, sem olhos na cara, para não
terem de olhar a gente... Só ela é que não passa, Primo Argemiro!... E eu já estou
cansado de procurar no meio das outras... Não vem!... Foi, rio a baixo, com o
outro... Foram p’ro’s infernos!... [...] Espera, Primo, elas estão passando... Vão
umas atrás das outras... Cada qual mais bonita... mas eu não quero nenhuma...
quero só ela... Luísa... (1984, p. 147)
Entre os acessos de delírios, Primo Ribeiro lembrou-se de uma história conhecida de
ambos e pediu ao outro que contasse mais uma vez. Primo Ribeiro parecia intuir os efeitos
terapêuticos da repetição daquela história sobre ele. Primo Argemiro, por outro lado,
resistiu à insistência do companheiro em contar a história, frisando que o primo já “sabia as
palavras todas de cabeça(1984, p. 147). Assim, demonstrava, talvez, que não tinha noção
dos benefícios daquele relato sobre seu ouvinte ou que os efeitos de sua narração sobre si
mesmo não eram benéficos. Porém, não teve outra alternativa senão a de contá-la
novamente, assumindo a postura de narrador. Observa-se que ele não participa das ações
relatadas, colocando-se em uma posição externa ao mundo narrado, tal como ocorre com o
narrador principal do conto e, ao provocar a sugestão do real, propicia a identificação de
Primo Ribeiro com a história, o que, talvez, justifique a insistência deste em ouvi-la
novamente. A história contada pelo Primo Argemiro revela, ainda, outra semelhança com a
história contada pelo narrador de “Sarapalha”: ambas constituem-se no relato da fuga de
uma mulher.
A história de Primo Argemiro mostrava um moço bonito que apareceu em um dia
de festa, vestido com roupas domingueiras e com a viola enfeitada de fitas, e convenceu
uma moça a fugir com ele, tal como acontecera, na história principal, com o boiadeiro que
surgira na fazenda e persuadira Luísa a abandonar o marido. Na história de Primo
Argemiro, a jovem, que não sabia que o moço era o capeta, juntou seus pertences em uma
43
trouxa e foi com ele em uma canoa, descendo o rio. Quando os dois estavam fugindo na
canoa, o moço pegou a viola e começou a cantar: “– Eu vou rolando rio-abaixo, Sinhá... Eu
vou rolando rio-abaixo, Sinhá... (1984, p. 148). Primo Argemiro, depois de entoar a
canção por duas vezes a pedido do primo, continuou contando a história:
a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém não pôde saber p’ra onde foi
que eles foram, nem se a moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se
ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou se fez o sinal-da-cruz... ou se
abraçou com ele assim mesmo, porque já tinha criado amor... E, de riba, o
povo escutou a voz dele, lá longe, muito lá longe... (1984, p. 148)
Como um ouvinte atento, Primo Ribeiro intervinha constantemente na história,
incentivando que o outro a contasse, de modo a demonstrar que sentia seus efeitos e que se
comprazia com o relato. As intervenções de Primo Ribeiro eram, nitidamente, as de um
sujeito que estava se identificando com o que vinha sendo relatado, porque o conteúdo da
trama, sem dúvida, dizia respeito às experiências que vivenciara. É importante observar que
os dois compadres mantinham uma relação ingênua, ou seja, além de confiarem um no
outro, possuíam alto grau de intimidade. Essa era a condição que garantia a naturalidade
com que se envolviam, pois o surgimento dos fatos singulares e particulares em suas vidas
e as interrupções no ato de contação de histórias são típicos de quem mantém esse tipo de
relacionamento. A natureza da interlocução que se estabelece entre ambos é evidenciada
enquanto Primo Argemiro contava o episódio da moça que fugiu com o diabo e enquanto
Primo Ribeiro, mesmo delirando, interrompia a contação, associando, certamente, a moça e
o diabo do relato de seu companheiro, respectivamente, à esposa e ao boiadeiro que
participarem de sua própria história. Além disso, as interrupções demonstravam que o
ouvinte queria que o narrador fosse até o final do relato, pois Primo Ribeiro pedia que o
outro contasse o resto da história, não se importando com o fato de que se tratava de uma
passagem triste, conforme o locutor lhe advertia. Depois disso, o narrador principal retoma
a narração, a fim de prosseguir seu relato.
Primo Argemiro, comovido com os efeitos que a história provocara no amigo, temia
ser o próximo a delirar e revelar, sem querer, seu mistério. Por isso, tomou coragem e
decidiu contá-lo, lamentando a falta de oportunidade de dividir com alguém o segredo que
o atormentava: “E ele, que nem tem com quem desabafar, não tem a quem contar o seu
sofrimento!...” (1984, p. 149). Parece que Primo Argemiro, ao lamentar essa ausência de
44
oportunidades de partilhar seus pensamentos, tem noção dos efeitos causados, naquele que
conta uma história, pelo próprio ato de narrar. Caso não a contasse, além de estar sendo
injusto com o amigo que o tratava como um irmão, poderia estar perdendo os benefícios
desse ato. Então, Primo Argemiro, coberto de coragem e consciente de sua necessidade de
falar, decidiu confessar-se ao Primo Ribeiro:
Primo Ribeiro... eu nunca tive coragem p’ra
lhe contar uma coisa... Vou lhe
contar uma coisa... O senhor me perdoa?!... [...] Eu... eu também gostei dela,
Primo... Mas respeitei sempre... respeitei o senhor... sua casa... Nós somos
parentes... Espera, Primo! Não foi culpa minha, foi má-sorte minha... (1984, p.
150)
Ao ouvir isso, Primo Ribeiro levantou-se do cocho, cambaleando, com os olhos
arregalados; quase não acreditava no que o outro dizia, mas tinha a certeza de que fora
traído. Então, depois de recusar a ajuda do compadre para ficar em pé, bradou: “Fui picado
de cobra... Fui picado de cobra... Ô mundo!” (1984, p. 151). Talvez essa traição tenha-se
somado, no espírito de Primo Ribeiro, àquela que sofrera no passado, pois fica evidente que
o sentimento de traição despertado pela confissão de Primo Argemiro fez surgir, com força,
a história da fuga da esposa. Primo Ribeiro não hesitou, então, em expulsar o compadre de
sua fazenda. A cada tentativa de reconciliação por parte de Primo Argemiro, o outro era
mais enfático: “Fui picado de cobra... Some daqui, homem!... Vai p’r’as suas terras... Vai
p’ra bem longe de mim!... Mas vai logo de uma vez!”. (1984, p. 151)
Apesar da sua insistência em permanecer perto do amigo, Primo Argemiro, em
desde que tinha alcançado a última caneca de água ao companheiro, não teve escolha a não
ser reunir suas forças e se dirigir à porteira da estância. O narrador de “Sarapalha” concede,
naquele momento particular, parte considerável de um parágrafo à descrição do
desolamento do cão, que já não sabia mais a quem pertencia e a quem devia fidelidade:
O perdigueiro de focinho grosso vem correndo também. Vem, mas diz que não
vem: vira a cabeça, olha para o primo Ribeiro, que lá está sentado ainda, curvado
para o chão. O cachorro está desatinado. Pára. Vai, volta, olha, desolha... Não
entende. Mas sabe que está acontecendo alguma coisa. Latindo, choramingando,
chorando, quase uivando. Porque tem ordem de ser sempre fiel, e não sabe mais,
não se recorda mais qual dos dois homens será seu dono verdadeiro. (1984, p.
152)
45
O narrador principal mostra, assim, que a questão da fidelidade pode ser complexa,
como se Luísa a exemplo do que ocorrera com o cão também pertencesse a Primo
Argemiro e não apenas a Primo Ribeiro, e ambos pudessem sentir-se traídos com a fuga da
mulher.
Logo depois de ser expulso, Primo Argemiro seguiu em direção à estrada, rumo à
beira do rio, sem destino certo e sem poder avançar muito, pois começou a sentir as pernas
tremerem: era a sua vez de delirar. Primo Argemiro sabia que agora podia fraquejar, porque
estava só e não tinha mais segredos a ocultar. Um frio correu-lhe pelas costas; ainda
lembrou da primeira vez em que viu Luísa, sentindo a cabeça rodar, e, diante dos olhos, via
“coisinhas querendo dançar(1984, p. 153). Curvou-se sobre os joelhos, e admirou o lugar
transformado pela chegada do delírio, “bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar!...”
(1984, p. 154). O narrador principal detém-se, mais uma vez, para mostrar a nova
configuração que o lugar assumiu aos olhos de Primo Argemiro, escolhendo palavras e
cores próprias para descrever a situação delirante do desafortunado. O mato apareceu “todo
enfeitado, tremendo também com a sezão” (1984, p. 154), possivelmente como Primo
Argemiro nunca tinha visto antes, evidenciando a identificação entre o ser humano e a
natureza:
Estremecem, amarelas, as folhas da aroeira. um frêmito nos caules rosados
da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas, longas como folhas de
mangueira. Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da
vassourinha. Tirita a mamona de folhas peludas, como um corselete de um
cassununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à
grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em
convulsões. (1984, p. 154)
A análise permite perceber a relação existente entre a história contada pelo narrador
principal e as histórias contadas pelos próprios personagens os dois mineiros atacados
pela malária, no vau da Sarapalha –, por intermédio do diálogo que travam na maior parte
da narrativa. Observa-se que os relatos relacionam-se à medida que se instaura o modo
dramático, e os personagens-narradores contam histórias que interceptam a contação da
história principal, promovendo, em longos trechos, um quase desaparecimento do narrador
onisciente. Tanto a história da fuga de Luísa, contada por Primo Ribeiro, quanto a história
da jovem que foge com o moço bonito, contada por Primo Argemiro, possuem a mesma
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temática abordada pela história principal: a traição. É interessante verificar, ainda, que o
quarteto utilizado pelo autor como epígrafe do conto em questão, está intimamente ligado à
temática das histórias, além de ter sido retirado, ironicamente, do “trecho mais alegre, da
cantiga mais alegre, de um capiau beira-rio”. Tem-se a impressão de que, enquanto o
primeiro verso Canta, canta, passarinho, ai, ai, ai... anuncia a contação das histórias
dos personagens-narradores, o segundo Não cantes fora de hora, ai, ai, ai...alerta
para o perigo de alguns relatos, ou seja, para o risco de contar determinadas passagens da
vida. Da mesma forma, o terceiro e o último versos – A barra do dia vem, ai, ai, ai...e
Coitado de quem namora!...” – parecem prever o infortúnio dos dois compadres.
As características de Primo Ribeiro e de Primo Argemiro, os personagens-
narradores de “Sarapalha”, sugerem que um evento de contação de histórias pode provocar
diferentes tipos de sensações nos envolvidos, tais como o efeito terapêutico e o efeito
catártico. Ressalta-se que esses efeitos se confundem e se completam, pois constante
inversão de papéis entre os indivíduos: ora um é narrador e outro é ouvinte, e vice-versa.
No narrador, o efeito parece ser mais terapêutico do que catártico, uma vez que aquele que
conta uma história é movido pela necessidade de falar, seja por alívio ou por simples
regozijo, seja pela precisão de reavaliar vivências do passado, sobretudo porque está na
iminência da morte. No ouvinte, o efeito parece ser mais catártico do que terapêutico, como
acontece quando o indivíduo se identifica com o que é narrado, sentindo as reações da
identificação catártica que, segundo Jauss, “liberta o espectador das complicações afetivas
de sua vida real e o coloca no lugar do herói que sofre ou se encontra em situação difícil
para provocar, pela emoção trágica ou pela distensão do riso, sua libertação interior”.
3
(Jauss, 2002, p. 84)
A análise das técnicas narrativas empregadas pelos narradores, tanto pelo narrador
onisciente de “Sarapalha” quanto pelos primos Ribeiro e Argemiro, indica que eles contam
suas histórias como quem fala a um ouvinte embora essa situação se efetive no caso
dos dois personagens –, ou seja, todos recorrem a estratégias próprias da oralidade para
desfiar seu relato. A história da jovem que foge com o moço bonito, especialmente,
assemelha-se à narrativa principal, não por abordar a mesma temática e por apresentar
narrador em terceira pessoa, mas porque imita as estratégias normais da fala, ou seja,
3
Idem à nota 4 do capítulo anterior.
47
procura reproduzir a oralidade típica de uma enunciação verbal. Isso se evidencia,
sobretudo, no emprego das reticências para simular as pausas típicas do discurso oral e no
uso da linguagem coloquial para atribuir verossimilhança às personagens. O narrador de
“Sarapalha”, além disso, conduz o seu suposto ouvinte e, conseqüentemente, o leitor, a
recriar as imagens necessárias de devastação, de apatia, de desolamento, dos dois
compadres, para que possa imaginar a situação de ambos; da mesma forma age Primo
Argemiro, que organiza uma seqüência de imagens para que seu ouvinte, Primo Ribeiro,
possa visualizar o que aconteceu à moça que fugiu com o diabo.
A comparação entre as estratégias narrativas utilizadas pelos personagens-
narradores e aquelas empregadas pelo narrador principal do texto mostra, também, que o
final dado às histórias também é semelhante. No que se refere à primeira, ninguém foi
informado sobre o que aconteceu à moça depois que a canoa em que ela estava dobrou a
curva do rio; no que diz respeito à segunda, não há como saber o que aconteceu aos primos
após o desentendimento, a não ser que um ficou sentado no cocho e outro delirando à beira
da estrada. Desse modo, tanto a história principal quanto os relatos secundários podem ser
considerados narrativas abertas.
2.2 “O burrinho pedrês”
A história do burrinho Sete-de-Ouros contada pelo narrador principal transcorreu
em apenas um dia da vida do personagem, das seis da manhã à meia-noite, intervalo
durante o qual um grupo de boiadeiros conduziu uma boiada da Fazenda da Tampa até a
estação de trem do vilarejo de Arraial, tendo como obstáculo o rrego da Fome, um
afluente do Rio das Velhas. Esse dia seria normal caso a tropa de vaqueiros voltasse ilesa à
fazenda. Todavia, o grupo, que na ida atravessara o rio sem problemas, foi surpreendido na
volta por uma enchente. A tragédia aniquilou oito boiadeiros e aconteceu porque o grupo
confiou na experiência do burrinho que lhe serviu de guia: como este resolveu atravessar o
rio, os boiadeiros também decidiram fazer a travessia.
O narrador principal de “O burrinho pedrês” (1984, p. 17-79) conta que Sete-de-
Ouros era um burrinho “miúdo e resignado” e havia tido vários donos e diversos nomes, até
se tornar animal de estimação do Major Saulo, proprietário da Fazenda da Tampa. No dia
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em que ocorreu o episódio fatídico, a existência de Sete-de-Ouros já tomara outro rumo: ele
passara de corajoso, valente, audacioso, como era visto na juventude, a acomodado e
tranqüilo, encontrando-se, então, em idade avançada. Segundo o narrador principal do
conto, um dia é tempo suficiente para se conhecer a “estória” do burrinho Sete-de-Ouros,
porque:
a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no
resumo de um dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda
em algumas horas seis da manhã à meia-noite nos meados do mês de janeiro
de um ano de grandes cheias, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas
Gerais. (1984, p. 18)
O animal permanecia confortável, sonolento e sempre meio perpendicular ao cocho,
num dos currais da fazenda, uma área de três mil alqueires de terra, localizada no vale do
Rio das Velhas, centro de Minas Gerais. Sete-de-Ouros demonstrava ser bem tratado. Isso
era evidenciado pelo seu comportamento conformado e pela ausência de carrapichos e de
carrapatos em sua pelagem pedrês, salpicada de preto e de branco. O burrinho tinha, ainda,
uma marca de ferro no quarto esquerdo dianteiro, uma espécie de coração, já meio apagada,
outra evidência de sua senilidade e uma lembrança de quando os ciganos o raptaram.
À medida que o narrador principal conta a história da vida do burrinho, ele lembra
de histórias contadas por outros narradores. Assim, os personagens ganham voz e narram
suas histórias: Major Saulo e os boiadeiros – Raymundão, Sinoca, Leofredo, Silvino,
Sebastião, Benevides, Juca Bandeira, Badu, Francolim, Tote, Grande e João Manico
conversam sobre si próprios, trocam impressões acerca da boiada, falam das condições do
tempo e contam casos. Entre as histórias desfiadas pelos vaqueiros, destacam-se: o evento
da morte de Josias, relatado por Tote ao companheiro Grande; os quatro episódios
narrados por Raymundão, o primeiro sobre o resgate da vaquinha da filha do Major
Saulo, momento em que este pôde comprovar a valentia do boi Calundu, capaz de proteger
uma manada de vacas do ataque de uma onça contado a Juca, e os outros três um sobre
o dia em que se tornou vaqueiro, outro acerca da morte de Vadico provocada por Calundu e
o último relativo a um fato estranho, acontecido durante o velório de Seu Leôncio
Madurera relatados ao Major Saulo; a passagem do pretinho que, a pedido de Major
Saulo, tinha de ser entregue no Curvelo, por João Manico, contada por este último ao
49
grupo. Observa-se, também, que a tropa de vaqueiros, especialmente Francolim, o braço-
direito de Major Saulo, envolve-se com o caso da tentativa de assassinato de Badu, por
parte de Silvino, intriga que corre paralela à história do burrinho.
No dia da viagem, no curral, perto da casa-grande, o cavalo preto de Benevides
desalojou o burrinho de seu lugar na coxia, enquanto o matungo de Grande espancava o
tabique da coberta; o amarilho de Silvino saracoteava empinando; o poldro pampa de Badu
relinchava escandalosamente. O burrinho não aprovava tais atitudes e afastou-se do
conflito, até encostar-se nos pilares da varanda, cometendo o primeiro engano do dia, pois o
Major Saulo estava ali e o viu. Esse equívoco, segundo o narrador principal, “decide o
destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros, porque quem é visto é
lembrado” (1984, p. 23). Antes disso, porém, o Major Saulo tinha sido avisado de que
alguns cavalos haviam fugido na noite anterior e pedira a Francolim que inventariasse as
montarias restantes. O secretário concluíra que faltava uma. Major Saulo, ao ver o burrinho,
ordenou que Francolim o aprontasse, também, para a viagem, atitude que o vaqueiro, a
princípio, não levou muito a sério. Assim, começaram os diálogos entre os boiadeiros.
Francolim disse que o burro estava velho e quase cego, mas o Major desconsiderou
o comentário de seu interlocutor e reiterou a ordem, justificando que eram apenas quatro
léguas e que o João Manico, por ser o de menos peso, poderia montar o animal. Em
seguida, o Major, na frente da casa-grande, demonstrando contentamento, consultou o
relógio da sala pela porta da varanda, e constatou que ainda era cedo. Pensou que seria bom
que chovesse naquele momento, para que a chuva não viesse atrapalhar os vaqueiros na
hora da partida. Nisso, apareceu Maria Camélia com o café. Serviu-os e voltou à cozinha,
onde estavam as outras negras, para contar a novidade. Todas acharam muita graça em
saber que o burrinho seria montado por João Manico, o mais velho e cauteloso vaqueiro do
grupo. Na frente da casa-grande, os boiadeiros começaram os preparativos para a saída.
Leofredo cantava, enquanto montavam.
Era início da estação das cheias, época do êxodo dos rebanhos para corte, e havia
expectativa de chuva. Um cão latia para os cavalos, que rodopiavam com seus cavaleiros;
as vacas fugiam com seus bezerrinhos. Juca advertiu os companheiros de que Badu não
estava entre eles, mas Francolim solucionou o mistério, dizendo que o malandro tinha ido
despedir-se da namorada. Major Saulo ressaltava a gordura e a qualidade da boiada a
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Francolim. Este, por sua vez, contou ao Major que Silvino estava com ódio de Badu e
pretendia matá-lo, ainda naquele dia. Acrescentou que a causa da encrenca era o desgosto
de Silvino por ter perdido a moça para Badu. Francolim afirmou que estava disposto a
prender Silvino, se essa fosse a vontade do patrão, porém Major Saulo não deu muita
importância ao caso, preferindo assistir à cena de Badu a montar o poldro.
Depois, Francolim, Major Saulo e Grande rumaram em direção ao esteio, onde
estava João Manico tratando de encilhar Sete-de-Ouros. Major Saulo, no meio do alvoroço
dos vaqueiros, perguntou a João Manico se ele tinha consciência do valor de um burro. O
vaqueiro, demonstrando sabedoria, respondeu que burro servia somente para marchas de
estrada, mas não para tocar boiada. João Manico disse, ainda, que o burro era um bicho
medonho e que nunca se amansava totalmente; só se acostumava com as imposições.
Os trovões revolviam a boiada. Os vaqueiros tinham medo de que o gado rebentasse
as cercas dos currais. Grande analisou a boiada, acompanhado de Tote. Este último
chamou a atenção de Grande para uma vaca que empurrava outros animais, querendo
ficar sozinha. Grande comentou que aquela vaca parecia muito com a que havia matado
Josias. Tote, motivado por essa comparação, lembrou do episódio em que ele e Josias
tinham sido atacados pela vaca Fumaça, e passou a contar a história a Grande,
advertindo, desde o início, que a culpa pela morte de seu parceiro não tinha sido dele:
jurei que não foi culpa minha, e não foi mesmo. A vaca Fumaça estava com a
cria no meio do curral, [...] Josias falou comigo: “Vamos dar uma topada, para
ver se ela tem mesmo coragem conversada.” [...] Mal a gente tinha botado os pés
no chão, e ela riscou o ar, [...] Escolheu quem, e guampou o Josias na barriga.
[...] Eu corri. Não tinha mesmo de correr?! [...] Josias foi o mais desfeliz, porque
foi jogado para tudo quanto era lado, com a monstra sapateando em cima dele e
chifrando. [...] Culpa tive eu?... Má-sorte do companheiro. Era dia dele, o meu
não era!... (1984, p. 32-33)
Grande ouviu a história atento e interferiu três vezes. A primeira para comentar
que, realmente, não havia precisão de instigar animais em tal estado; outra quando
perguntou o que tinha acontecido com a vara, instrumento que devia estar sempre na mão
de bom vaqueiro; a última para interromper o contador da história, advertindo que parasse
de contar coisas tristes, porque o Major não gostava disso.
Logo a seguir, o Major disse que era hora de partir. Iam à frente Zé Grande, tocando
o berrante, e Sebastião, aboiando; à direita, Leofredo, Tote, Sinoca e Benevides; à
51
esquerda, Badu, Juca Bandeira, Silvino e Raymundão; mais atrás, o Major Saulo,
regozijando-se da boiada, e João Manico, queixando-se do burrinho miserável. Entre um
trompear e outro do berrante, ouviam os gritos fortes de aboio, entremeados de canções: “O
Curvelo vale um conto, / Cordisburgo um conto e cem. / Mas as Lages não têm preço, /
Porque lá mora o meu bem... Um boi preto, um boi pintado, / cada um tem sua cor. / Cada
coração tem um jeito / de mostrar o seu amor. (1984, p. 36-37)
Pouco a pouco, a boiada acalmou-se, e os vaqueiros puderam descobrir o rosto e
acomodar-se nas celas. De repente, um boi investiu contra Raymundão, fazendo-lhe
lembrar da história do boi Calundu. Então, Raymundão pediu a Juca Bandeira que
emparelhasse com ele estava tudo tranqüilo e podiam conversar sossegados –, pois sentiu
necessidade de dividir com o amigo a história lembrada. O episódio acontecera no dia em
que resgatara a vaca da filha do Major Saulo, que havia parido perto da lagoa e teve a cria
comida por um jacaré. Raymundão afirmou que, antes daquele dia, nunca tinha visto uma
lua tão brilhante e que, além disso, ainda não havia presenciado um boi proteger uma
manada de vacas do ataque de uma onça:
Eu tinha ido lá, buscar uma vaca fronteira, da filha de seu Major. A vaquinha
tinha parido na beirada da lagoa, e jacaré comeu a cria. [...] De noite, saiu uma
lua rodoleira, que alumiava até passeio de pulga no chão. [...] minha cachorra
Zeferina estava estranhando, [...] as vacas, desinquietas, estavam se ajuntando,
se amontoando num bolo, [...] eu ouvi um miado longe, e me lembrei daquela
onça preta que estava salteando estrago no gado de seu Quilitano, [...] então, o
Calundu, que era garrote delas, ainda parecia ser mais graúdo do que era mesmo,
rodeando as vacas, meio dando as costas para a manada, assim de cabeça em !
[...] O Calundu ia ficando cada vez mais enjerizado e mais maludo, [...] nunca eu
não tinha visto o zebu tão grandalhão assim! [...] E o Calundu cavacava o chão e
bufava, com uma raiva tão medonha, [...] Cruz! E até a lua começou a alumiar o
Calundu mais do que as outras coisas, por respeito. [...] Pois, nesse dia, a
cangussu [...] correu para longe, sem um miado, e foi-s’embora. Onça esperta!
(1984, p. 40-43)
A história teve várias interferências, uma porque a chuva começou a engrossar e os
vaqueiros voltaram a cantar: Chove, chuva, chorevá, / Santa Clara a clarear / Santa justa
há-de justar / Santo Antônio manda o sol / P’ra enxugar o meu lençol... (1984, p. 41); as
outras interrupções foram causadas pelo interesse do ouvinte nas passagens da história.
Juca Bandeira perguntou, por exemplo, por que a cadela chamava-se Zeferina, tendo como
resposta que esse era o nome da ex-esposa de Raymundão, que se tinha ido embora. Outras
52
interferências vieram no sentido de incentivar a contação da história: “E daí?”; “Mas, e o
zebu?”; “E depois?” (1984, p. 42). A última interferência do ouvinte foi quando
Raymundão exagerou um pouco no caso da lua iluminando Calundu: “Eu estou quase não
acreditando mais, Raymundão...” (1984, p.43). A contação da história terminou porque a
tropa de bois e de boiadeiros estava chegando no córrego.
Os vaqueiros pararam para ver a bravura das águas e constataram que devia estar
chovendo muito na cabeceira do rio. Francolim chegou a galope, com um recado do Major
Saulo dizendo que esperassem um pouco e que não espremessem o gado na travessia.
Francolim aproveitou a espera para contar aos vaqueiros que tinha passado por situação
pior na travessia do Jequitinhonha, mas o patrão chegou logo, chamando por Sebastião e
impedindo o outro boiadeiro de continuar a história.
A travessia foi tranqüila. João Manico comentou com o patrão que não precisava ter
vindo, pois estava se sentindo dispensável, e completou o comentário dizendo que, se o
burrinho tivesse morrido três dias, não faria falta nenhuma. Major Saulo riu da
casmurrice do vaqueiro e perguntou se ele achava mesmo que burro era burro. João Manico
respondeu: “Seô Major meu compadre, isso até é que eu não acho, não. Sei que eles são
ladinos demais...” (1984, p. 46). O narrador principal retomou a atenção no burrinho, que
andava indiferente, para mostrar que burro que se preza não corre desembestado, como um
cavalo qualquer, a não ser em casos extremos. Era um animal que estava sempre do mesmo
jeito, impassível, com as pestanas no meio dos olhos:
um remanso, pouso de pausa, com as pestanas meando os olhos, o mundo de
fora feito um sossego, coado na quase-sombra, e, de dentro, funda certeza viva,
subida de raiz; com as orelhas – espelhos da alma – tremulando, tais ponteiros de
quadrante, aos episódios da estrada, pela ponte nebulosa por onde os burrinhos
sabem ir, qual a qual, sem conversa, sem perguntas, cada um no seu lugar, de
vagar, por todos os séculos e seculórios, mansamente amém. (1984, p. 46)
Major Saulo e João Manico seguiam conversando e olhando a boiada. O primeiro
contou ao segundo que pouco sabia ler e escrever e que nunca estivera na escola, mas que
aprendera muito das coisas da vida e das pessoas, lidando com o gado. João Manico disse
que também mal sabia “pôr algum bilhete no papel” (1984, p. 47). Voltaram a conversar
sobre a boiada, que vinha concluindo a travessia. De repente, Francolim apareceu para
contar o que havia acontecido a Badu: Silvino tinha instigado um touro bravo contra ele,
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com a intenção de que o animal o matasse. O Major chamou Raymundão e perguntou-lhe o
que achava dessa história. Raymundão disse que não achava nada de mais, mas que, para
ele, aquilo ainda estava no começo. Os dois, então, seguiram emparelhados.
O Major, que valorizava os vaqueiros e gostava de ouvir suas histórias, perguntou se
Raymundão ainda lembrava da primeira vez que enfrentara boi bravo. Raymundão
respondeu afirmativamente e passou a contar a história do dia em que seu pai atiçou um boi
contra ele:
Meu pai, que era vaqueiro mestre, achou que era o dia de experimentar minha
força. [...] Só, na horinha em que o bicho partiu em mim, eu achei que ele era
grande demais, e pensei que, de em-antes, eu nunca tinha visto um boi grande
assim, [...] quando dei fé, a festa tinha acabado, e meu pai estava dando um
cigarro, que ele mesmo tinha enrolado para mim, o primeiro que eu pitei na
frente dele... E foi falando: “Meu filho, tu nasceu para vaqueiro, agora eu
sei”... (1984, p. 52-53)
O Major, depois de ouvir essa história, perguntou a Raymundão o que ele tinha
conversado com Juca Bandeira e Badu, ainda do outro lado do rio. O vaqueiro disse que era
conversa sem importância sobre o Calundu e perguntou ao Major se ele sabia que esse boi
terrível tinha matado Vadico, o filho do Borges. O Major demonstrou interesse pelo caso,
perguntando se o boiadeiro tinha trabalhado e dando início, assim, à terceira história de
Raymundão:
Ah, nunca imaginei que ainda ia ver o menino morrer daquele jeito. [...] Seu
Vadico gostava muito do Calundu, e o zebu também gostava dele, [...] Doideira,
eu sempre achei. Zebu é bicho mau, que a gente nunca sabe o que é que eles vão
cismar de fazer. [...] Seu Vadico foi fazer festa nele, dando sal para ele lamber na
mão. [...] Pois eu juro, seô Major, que aquilo foi de supetão... Eu vi o Calundu
baixar a cabeça, [...] E, aí, de testada e de queixo, ele deu com o menino no chão,
[...] foi uma chifrada só, [...] o sangue subiu atrás, num repuxo desta altura. [...] o
Velho Valô Venâncio, vaqueiro cego que não trabalhava mais, explicou para a
gente que era um espírito mau que tinha se entrado no corpo do boi. [...] De
manhã cedo, no outro dia, ele estava murcho, morto, no meio do curral. (1984, p.
55-57)
A história era interrompida por Major Saulo, a fim de mostrar que se interessava
pelo que ouvia e, também, para incentivar o desfecho da mesma. Numa das interferências, o
Major comentou, referindo-se à presença de um espírito mau no corpo do boi e àquilo que
as pessoas não conseguem definir: “Às vezes vêem coisas dessas, que a gente não sabe,
54
Raymundão” (1984, p. 57). Nisso, Raymundão emendou outra história, que ouvira do pai,
sobre um fato curioso, ocorrido no velório do seu Leôncio Madurera:
Sei de um caso que se passou, muitos anos, contado por meu pai, que quando
moço foi campeiro de um tal Leôncio Madurera, [...] era um homem herodes,
que vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada. [...] Pois
meu pai contava que, quando ele morreu, [...] as vacas de leite começaram a
berrar feio, [...] o garrote preto urrava: Madurera!... Madurera!... [...] Foi
p’r’os infernos!... Foi p’r’os infernos!... [...] Tiveram de soltar tudo e exortar
para o pasto, porque eles não queriam sair de de-perto da casa. E meu pai contou
que, de longe, a gente ainda escutava a maldição deles, que subiam a caminho do
morro, sem parar de berrar. (1984, p. 57)
O evento de contação de histórias dissipou-se porque viram o Arraial, com a
igrejinha, as casas da Rua-de-Baixo e da Rua-de-Cima, e a fumaça da locomotiva. O
amontoado de bois e vaqueiros cruzou as ruas do vilarejo e logo estava toda a boiada
acomodada nos vagões do trem. Os boiadeiros saíram para comer e, principalmente, para
beber. As montarias ficaram na cobertura de um curral para descansar. Sete-de-Ouros
alojou-se num canto, sério, cumpridor do seu dever.
Mais tarde, os homens voltaram, pegaram suas montarias e saíram, deixando para
trás Badu, muito bêbado, e o mísero Sete-de-Ouros, fato que levou o narrador principal a
comentar: “Era uma vez, era uma vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês” (1984, p.
60). Badu insistiu na procura do poldro pampa, mas o cavalo havia sido montado por
João Manico, que chegara primeiro. Então, Badu montou o burrinho. Sete-de-Ouros
enrugou a pele do pescoço e amoleceu as orelhas: não queria saber de complicações. O
animal concordou com a montaria do vaqueiro, não por causa das chilenas que esse
possuía, mas porque pressentia que estava indo-se em direção ao caminho de casa, uma
promessa de repouso e solidão.
Na volta, escurecia, e os vaqueiros emparelharam-se, a fim de ir conversando.
Leofredo cantava, e Sinoca dizia que mal podia esperar pelo momento de ver o tempo dos
embarques se acabar, porque sabia que todo aquele gado ia morrer e o gostava disso.
Tote, irmão de Silvino, aconselhou-o a desistir daquela “loucura” que pretendia fazer,
referindo-se ao enfrentamento dele com Badu. Sebastião aproximou-se de João Manico e
insistiu em uma história já contada pelo companheiro em outra ocasião, embora todos a
55
conhecessem. Era o episódio do pretinho que João Manico teve de entregar no Curvelo, a
pedido de um compadre do Major Saulo. O grupo reuniu-se mais, e a história iniciou:
conto porque é o meu compadre Sebastião quem está pedindo, [...] Se
duvidar, para mais de vinte anos. Não tinha trem de ferro no Arraial... Ainda
nem tinha casa-de-fazenda na Tampa. [...] Foi que a gente tinha ido por longe,
[...]. Pegamos uma boiada de carepas: só bicho mazelento e feioso: bom quase
que nenhum, [...]. Mas, o pior, Deus que me livre dele, foi o menino... o pretinho
[...]. Um negrinho, assinzinho, regulando por uns sete anos, um toquinho de
gente preta... O fazendeiro que vendeu o gado pediu a seu Saulinho para trazer,
para entregar a um irmão, no Curvelo, [...]. O pretinho vinha comigo na garupa,
dando soluços grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima, [...]. E foi
[...] que o pretinho começou a cantar, [...] logo que ele principiou a toada, eu vi
que o gado ia ficando desinquieto [...]. Aí, então, comecei a me alembrar de uma
porção de coisas, do lugar onde eu nasci [...]. Mas – Virgem Santa Mãe de Deus!
acordei, de madrugada, foi com os gritos do patrão. Que é do gado?! [...]
Tinham espandongado por ali a fora. [...] Um prejuizão! [...] E o pretinho, esse
ninguém não viu, nem teve notícia dele mais! (1984, p. 65-71)
A história foi a mais longa e sofreu várias interrupções pois os ouvintes eram
muitos –, a maioria das quais serviu de incentivo ao narrador para continuar seu relato:
“Onde é que você campeava, então?”; “Que pretinho, Manico?”; “E o menino preto?”;
“Mas, como foi?”; “E o negrinho?”; “Mas, conta o resto...”. As interrupções que não
tinham como objetivo estimular o narrador eram motivadas pelo envolvimento dos ouvintes
com o que era narrado: “E ir buscar coisa ruim assim, tão longe!”; “Assim é que eu gosto!,
respeito”; “Que inferno!”; “É isso mesmo...”. Ressalta-se que o uso do ponto de
interrogação nas interferências feitas pelos ouvintes no curso da história e o emprego do
ponto de exclamação e das reticências, nas mesmas circunstâncias, são procedimentos
narrativos por meio dos quais o autor cria efeitos de realidade. Tais estratégias conferem
verossimilhança à narrativa, como se narrador e personagens estivessem participando, de
fato, de um ato de contação de histórias.
Terminada a história de João Manico, Grande estranhou o chão encharcado e
perguntou se estavam no caminho certo. Logo os boiadeiros ouviram o barulho da
enchente. Chegaram na encosta do rio e decidiram esperar o burrinho, pois não tinham
certeza se deveriam fazer a travessia. Silvino opinou dizendo que o burrinho era quem ia
decidir: “se ele entrar n’água os cavalos acompanham, e nós podemos seguir sem susto.
Burro não se mete em lugar de onde não pode sair!” (1984, p. 73). Alguém pediu para
prestarem atenção no canto do pássaro que parecia dizer: “João, corta pau! João, corta
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pau!” (1984, p. 72). Segundo João Manico, o pio do pássaro era indício de mau agouro e,
por isso, resolveu respeitá-lo, contendo o poldro pampa:
Eu não entro! A modo e coisa que esse passarinho ou veio ficar aqui para dar
aviso para mim, que também sou João, ou então ele está mas é agourando... Para
mim, de noite, tudo que há, agoura. [...] o vou e não vou, de jeito nenhum!
Para esse poldro me tanger dentro d’água no meio do córrego?... O burrinho é
beócio... E não vou mesmo! Não sei nadar... (1984, p. 74-75)
Juca Bandeira alegou que também ia permanecer em terra, pois estava resfriado e
não podia molhar o corpo. Sete-de-Ouros chegou com Badu, bêbado, abraçado em seu
pescoço. O burrinho “chafurdou, espadanou a água, e foi” (1984, p. 74). Todos os
vaqueiros se lançaram atrás do burrinho, menos João Manico, que respeitou o agouro da
ave, dizendo que, além de tudo, não sabia nadar, e Juca, que afirmava não sentir-se bem.
Este último sugeriu a Manico que esperassem o dia clarear para procurar um lugar alto,
apropriado à travessia.
Sete-de-Ouros metia peito; dava as braçadas devagar, mas precisas. Parou para
deixar passar um pedaço de pau. Não tinha pressa, pois no fim de tudo sabia que teria o
pátio, com os cochos cheios de milho, e muita sombra, capim e sossego. Atrás dele, de
súbito, “o córrego crispou uma sístole violenta” (1984, p. 76), e ninguém mais pôde
encontrar o caminho; se via homens e cavalgaduras se debatendo. O narrador principal
ressaltou que, no momento em que contava a história, ainda se ouvia falar da grande
enchente do córrego da Fome, que resultara na morte de oito boiadeiros. O burrinho pedrês,
sem susto, deixara-se levar pela água, para saber onde subir a encosta, e trouxera Badu no
lombo, agarrado à crina, e Francolim, pendurado à cauda:
E aquele um aconteceu ser Francolim Ferreira, e a coisa movente era o rabo do
burrinho pedrês. E Sete-de-Ouros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube
que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao querer da correnteza. Pouco fazia
que esta o levasse de viagem, muito para baixo da travessia. Deixou-se tomando
tragos de ar. Não resistia. Badu resmungava más palavras, sem saber que
Francolim se vinha agüentando atrás, firme na cauda do burro. (1984, p. 79)
Assim que sentiu não haver mais água debaixo dos cascos, o burrinho parou. Deu
um coice em Francolim e esperou que Badu resolvesse descer. O vaqueiro desceu,
bradando nomes feios, para, logo depois, começar a cantar uma cantiga de negros do tempo
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da escravidão e para acomodar-se em uma cama de madeira, ali mesmo no paiol. Alguém
que despertou com a algazarra veio desarrear o burrinho. Folgado, Sete-de-Ouros foi para a
cobertura do curral. Farejou o cocho, achou milho e comeu. Depois, saracoteou, dançando
de patas no ar e esfregando as costas no chão, e procurou um lugar para dormir entre a vaca
mocha e a vaca malhada, que ruminavam, tranqüilamente, na escuridão.
A análise das estratégias narrativas empregadas por João Guimarães Rosa na
construção do conto revela que a voz do narrador principal de “O burrinho pedrês” é
entrecortada pela voz dos personagens-narradores. Ao mesmo tempo que o narrador
principal relata um episódio da vida do burrinho e as peripécias do grupo de boiadeiros
naquele dia fatídico, ele dá voz aos próprios boiadeiros, permitindo que estes desfiem suas
histórias e que, assim, transformem-se em narradores. Ressalta-se que as histórias contadas
pelos personagens-narradores assemelham-se àquela relatada pelo narrador principal,
porque todas podem ser agrupadas sob um mesmo eixo temático: o cotidiano dos
boiadeiros com as lides do gado na fazenda. Tal semelhança temática é reforçada na
medida em que a maioria das histórias dos personagens-narradores, a exemplo do que
acontece com a história principal, relatam eventos relacionados à morte. A predileção pelo
tema da morte é evidenciada tanto nas histórias de Tote e Raymundão – relativas ao
desaparecimento de Josias, de Vadico, da cria da vaquinha da filha do Major, de Calundu e
de Leôncio Madurera –, quanto naquelas contadas pelo narrador principal, de que é um
exemplo o próprio afogamento dos boiadeiros.
Um indício da semelhança temática que irá aproximar as tramas pode ser
encontrado logo após a introdução da história de “O burrinho pedrês”, quando o narrador
principal conta que a vaca Açucena havia dado à luz. Nesse momento, ele afirma que é
prudente desviar de animal em tal estado, pois “é crível que o homem mais virtuoso do
mundo possa ser atirado a seis metros de distância, [...] com alças do intestino penduradas e
muito sangue de pulmão à vista” (1984, p. 22). Parece que, nessa passagem, o narrador
principal é solidário a Tote, pois aceita antecipadamente e de modo indireto as explicações
que seriam dadas pelo vaqueiro no sentido de desobrigar-se da morte de Josias.
Vale ressaltar, ainda, que os dois quartetos que servem de epígrafe a esse conto
também assemelham-se às histórias contadas, no que se refere à temática. Enquanto a
primeira quadra de desafio Lá em cima daquela serra, / passa boi, passa boiada, / passa
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gente ruim e boa, / passa a minha namoradaparece aludir tão-somente às agruras dos
boiadeiros no dia-a-dia, com as lides do gado, a segunda quadra ‘For a walk and back
again’, said / the fox. ‘Will you come with me? / I’ll take you on my back. For a / walk and
back again’
4
retirada de uma “estória” de Grey Fox
5
para meninos, refere-se,
diretamente, à história do burrinho Sete-de-Ouros, que se transformou num carrasco para
oito boiadeiros, convertendo-se em herói somente para dois integrantes do grupo.
Também vale destacar certa semelhança entre o narrador principal e um dos
personagens que se transformam em narrador. Tem-se a impressão de que Raymundão
desata a contar histórias com a mesma disposição que o narrador principal do conto, apesar
de não receber qualquer tratamento especial por parte deste último, ao contrário do que
acontece com João Manico, que é apresentado como um sujeito sensato, esperto, cauteloso,
além de bom contador de histórias. Talvez, ao relatar as quatro histórias, Raymundão
procure entender acontecimentos que lhe soam contraditórios. Primeiro, ele conta uma
história em que o Calundu figura como herói, e, logo a seguir, narra outra em que o próprio
boi é a causa da morte de Vadico. Depois, deixa transparecer que não entendia bem o que o
pai representava para si, pois em um momento conta que o velho atiçara um boi contra ele,
a fim de testar a força do filho, e, em outro, demonstra afinidade com a figura paterna, que,
além disso, contava-lhe histórias, como a da maldição dos bois sobre o seu Leôncio
Madurera.
De certa forma, pode-se dizer que o narrador principal também conta sua história a
fim de investigar acontecimentos contraditórios ou porque precisa entender algo que ainda
não compreendera, como por exemplo: o que teria levado o grupo de boiadeiros a confiar
no burro?; por que a viagem do gado não fora transferida devido ao mau tempo e pela falta
de montarias?; seria o acaso, o destino ou uma decisão pensada (quem sabe uma vingança
contra a rejeição que sofrera ou contra o fato de ser arrancado de seu sossego), o fator que
levara oito homens à morte pela atitude do burrinho?; qual a relação da “estória” de um
burrinho com a “história” de um homem grande? Possivelmente, a busca de respostas a
4
‘Para caminhar e voltar novamente’, disse / a raposa. ‘Queres vir comigo? / Eu colocar-te-ei em minhas
costas. Para / caminhar e voltar novamente’. (tradução nossa)
5
Literalmente, Raposa Cinzenta; provavelmente uma criação do autor, visto que não foi encontrada nenhuma
referência a qualquer escritor da língua inglesa com essa denominação.
59
essas perguntas leve o narrador principal a tentar compreender os inúmeros sinais inscritos
na história ou a aceitar o mistério presente nos episódios.
É interessante ressaltar, ainda, que uma das tramas se aproxima da história principal
não exatamente pela temática: o episódio do menino preto, relatado por João Manico, o
qual não trata da morte. As duas histórias, a principal e aquela lembrada por esse
personagen, revelam a sabedoria dos narradores, a característica principal de quem sabe
contar histórias. A astúcia do narrador principal pode ser observada, no decorrer da
narração, pelo modo como utiliza os provérbios, embora a maioria deles seja atribuída a
Major Saulo: “quem vai na frente bebe a água limpa!”; “joá com flor formosa não garante
terra boa!”; “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma!”; “suspiro de vaca
não arranca estaca!”; “para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha”; “galinha,
tem de muita cor, mas todo ovo é branco”. A sabedoria de João Manico, por sua vez, pode
ser notada, ao longo do relato, sobretudo, pela decisão que tomara, de orientar-se pelo pio
do pássaro e não pelo burrinho, respeitando, assim, sua intuição e os ensinamentos
advindos da cultura popular. Tendo em vista essa semelhança entre o narrador de “O
burrinho pedrês” e João Manico, pode-se inferir que esse personagem-narrador é o alter-
ego do autor, ou seja, é nele que João Guimarães Rosa deposita suas experiências, ao
menos as que deixa transparecer, por meio do discurso do narrador principal, na construção
da história do burrinho pedrês.
Cabe, ainda, ressaltar que a principal diferença entre a história principal e as
histórias dos personagens-narradores é que a primeira é contada por um narrador em
terceira pessoa ou heterodiegético, enquanto que as outras são relatadas por narradores
posicionados em primeira pessoa ou homodiegéticos. É interessante observar que esses
personagens-narradores contam suas histórias, à medida que dialogam, promovendo a
instauração do modo dramático em várias passagens do conto. Essa diferea entre
narrador principal e personagem-narrador permite que se observem os processos de
exteriorização e de interiorização empreendidos no ato de contação de histórias.
60
2.3 O exterior do contador de histórias
Mediante a análise dos narradores de “Sarapalha” e de “O burrinho pedrês”, pode
ser percebido o enfrentamento entre idéia e realidade. João Guimarães Rosa, nas duas
narrativas, tendo-se decidido pelo ponto de vista externo para contar a história principal,
recorre a descrições minuciosas do universo exterior, no qual deseja inserir seu leitor, como
se estivesse a demonstrar, ao mesmo tempo, que entende do assunto de que trata e que se
envolve com a matéria narrada. Ao que parece, por meio de tais descrições, o autor deseja
revelar um pouco da sua interioridade e mostrar a capacidade que possui de observar a
realidade, antes de dar início à história propriamente dita. Isso se observa em “Sarapalha”,
no parágrafo dedicado à catalogação das plantas que estavam invadindo os caminhos após o
abandono do vilarejo por parte dos moradores, em virtude da malária:
Aí a beldroega, em carreirinha [...] apontou caules ruivos no baixo das cercas das
hortas [...], o cabeça-de-boi e o capim-mulambo, já dono da rua, tangeram-na de
volta [...] porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e
com o gervão em flor. E, atrás da maria-preta e da vassourinha, vinha urgente,
do campo, o amor-de-negro, com os tridentes das folhas, e fileiras completas,
colunas espertas, do rijo assa-peixe. [...] A gameleira, fazedora de raízes, brotou
com o raizame nas paredes desbarrancadas. (Rosa, 1984, p. 134)
O mesmo procedimento pode ser identificado em “O burrinho pedrês”, no trecho
destinado à exibição dos diferentes tipos de bois que integravam a boiada tangida pelos
boiadeiros, da Fazenda da Tampa para o Arraial:
Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos,
retintos, gateados, baios, vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanho
tirando a rubros, pitangas com longes pretos; betados, listados, versicolores;
turinos, marchetados com polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás
estranhos, com estrias concêntricas no pelame curvas e zebruras pardo-sujas
em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira
lavrada, ou faces talhadas em granito impuro. (Rosa, 1984, p. 19)
As descrições de Guimarães Rosa promovem o encontro entre essas duas
dimensões: a interioridade e a exterioridade. Ao contar suas histórias sejam elas reais ou
imaginárias –, o escritor não ultrapassa a impossibilidade de abranger a totalidade do
mundo exterior e a vastidão de seu universo interior, mas também mostra as formas de que
61
lança mão para reordenar os acontecimentos, ao transportá-los do mundo exterior para o
universo interior do indivíduo.
Em “Sarapalha” e em O burrinho pedrês”, Guimarães Rosa, então, supera o “caos
aleatório” da vida provocado pelo tempo, limitando e localizando, no tempo e no espaço, os
eventos que quer apresentar como acontece ao contador que deseja introduzir o ouvinte
no universo de sua história ou sugerindo possíveis nexos entre os acontecimentos. Nos
dois contos, os fatos ocorrem em um tempo passado e indeterminado; duram apenas um dia
da vida dos personagens, ao contrário do que poderia ocorrer, caso o escritor quisesse
abarcar a totalidade dessas existências, e não advertisse, em um dos contos, que a “estória”
de um burrinho, como a história de um homem grande, “é bem dada no resumo de um só
dia de sua vida”. Na impossibilidade de abarcar tal totalidade, ele opta pela exemplaridade,
ou seja, apresenta aquele dia como um dia exemplar. Assim parece buscar aproveitando
as palavras de Adorno –, algo único e digno de ser relatado.
No primeiro conto, a exemplaridade pode ser observada pela descrição dos dois
homens, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, “sentados, juntinhos, num casco de cocho
emborcado, cabisbaixos, quentando-se ao sol”, cujo efeito assemelha-se ao Era uma vez,
era outra vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês”, do segundo conto. Tais
afirmações explicitam que os limites estabelecidos quanto ao tempo e ao espaço em que se
situam os personagens tornam-se rarefeitos, dando lugar a um tempo e a um espaço
míticos: o dia primordial, que encontra sua realização no umbigo do mundo equivalente
ao casco de cocho emborcado –, representado pelo vale do Rio das Velhas ou pelo território
próximo ao vau da Sarapalha.
O contador de histórias em terceira pessoa, de uma forma ou de outra, precisa
diminuir o conflito entre interioridade e mundo exterior, pois a polaridade entre esses dois
âmbitos mostra-se mais acentuada no narrador onisciente do que no narrador em primeira
pessoa. Segundo Lukács, essa dualidade pode ser superada pelo sujeito, se ele vislumbrar a
unidade orgânica de toda sua vida como fruto do crescimento de seu presente vivo, a partir
do fluxo vital passado, condensado na recordação. Esse parece ser o caso das histórias de
Guimarães Rosa, que recorrem à exemplaridade, concentrando num dia da existência das
personagens o significado de toda sua vida.
62
3. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM PRIMEIRA PESSOA
Os contadores de histórias posicionados em primeira pessoa parecem estar sempre
falando de si próprios, do que foram, do que são ou daquilo que gostariam de ser.
Concentram-se no interior de si mesmos e se dispõem a revelar suas experiências e sua
subjetividade para contar histórias. Ao relatar acontecimentos ocorridos com outras
pessoas, esse tipo de narrador diz ter visto, ouvido ou presenciado os fatos, a fim de marcar
a sua participação na história. Esses indivíduos desejam mostrar a matéria de que são feitos,
ou seja, sua interioridade. As histórias que eles contam são “metonímias” de suas próprias
vidas (Reis, 1997, p. 350). Cada história não é senão uma parte sua; uma síntese de sua
vida, de seu estado de alma, de suas lembranças, de suas frustrações e de seus medos; uma
sugestão, um desejo.
Ao contrário do que ocorre em histórias narradas por um narrador em terceira
pessoa, em que predomina a polaridade e o enfrentamento entre sujeito e objeto, nas
histórias relatadas por um contador posicionado em primeira pessoa, tende a diminuir o
distanciamento e o conflito entre essas entidades. Segundo Reis, em histórias narradas em
primeira pessoa narrativas homodiegéticas , o narrador conta suas próprias experiências
como protagonista ou como personagem testemunha da história. Contudo, esclarece que,
até mesmo nas situações em que o narrador é o próprio protagonista, certo
distanciamento entre ambos, pois:
o narrador quase sempre nos fala da personagem que foi, procurando vê-la (ou
ver-se) como um outro, com quem chega a imaginar diálogos. Assim se
confirma o princípio da exteriorização que verdadeiramente se anula quando
o sujeito da narração se centra, de forma insistente e sistemática (não apenas de
forma pontual), sobre o seu universo interior. Tende-se, nesse caso, para a
interiorização própria do modo lírico e a narrativa chega a fazer-se precisamente
narrativa lírica. (Reis, 1997, p. 348)
63
Observa-se que Reis considera várias formas de posicionamento do narrador, tanto
nas histórias narradas em terceira pessoa, quanto naquelas narradas em primeira pessoa.
Essa gama de possibilidades nos tipos de posicionamento significa que é a presença do
narrador que revela o grau de objetividade ou de subjetividade da narração, o qual é
regulado pelas intrusões da referida entidade; em outras palavras, é a instância do narrador
que qualifica e quantifica as variáveis, de acordo com as situações narrativas. Reis lembra
que uma narrativa, “apesar de muitas vezes procurar cultivar um certo pendor objetivo, [...]
não escapa a incursões subjetivas mais ou menos flagrantes”. Enquanto um narrador em
terceira pessoa, cujo grau de intrusão é limitado, reserva maior atenção a elementos
observáveis fora de si, como as perspectivas narrativas do personagem, do espaço ou da
ação, o narrador em primeira pessoa concentra-se mais em seu próprio interior, pois, “tendo
atravessado experiências e aventuras várias, relata, a partir de uma posição usualmente
amadurecida, o devir de sua existência”. (Reis, 1997, p. 69-71)
Adorno, ao analisar a posição do narrador no romance contemporâneo, ainda na
década de 60, já alertava sobre a diminuição da polaridade sujeito-objeto. Segundo o
teórico, o narrador do romance tradicional perdeu a onisciência e teve sua identidade
desintegrada em “decorrência do subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem
transformá-la” (2003, p. 55). O narrador deixou de apresentar ao leitor o mundo em que
esse devia participar do que acontecia como se estivesse presente, para, “ora deixá-lo do
lado de fora, ora guiá-lo pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de máquinas”,
abalando o que havia de fundamental na relação entre narrador e leitor: a forma que
garantia a distância estética. (Adorno, 2003, p. 61)
Ainda de acordo com Adorno, a nova posição do narrador inaugura um mundo
desencantado, estranho e enigmático, que vai contra a mentira da representação, instaurada
pelas técnicas de ilusão do romance tradicional, e ataca o componente fundamental desse
tipo de representação: a distância estética. O encolhimento da distância estética existente
entre sujeito-objeto e a desintegrão do narrador onisciente parecem:
fundar um espaço interior que lhe poupa [ao narrador] o passo em falso no
mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom que age
como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo
é puxado para esse interior atribuiu-se à técnica o nome de monologue
intérieur e qualquer coisa que se desenvolve no exterior é apresentada como
[...] um pedaço de mundo interior, um momento de fluxo de consciência,
64
protegido da refutação pela ordem espaciotemporal objetiva. (Adorno, 2003, p.
59)
Segundo Adorno, pode-se dizer que esse tipo de narrador inaugura um espaço
interior para, de alguma forma, compreender, organizar, assimilar o mundo estranho que o
cerca. Em outras palavras, o narrador em primeira pessoa interioriza o universo exterior
para poder explicá-lo, pois:
quando se declara livre das convenções da representação do objeto, reconhece ao
mesmo tempo a própria impotência, a supremacia do mundo das coisas, que
reaparece em meio ao monólogo. É assim que se prepara uma segunda
linguagem, destilada de várias maneiras do refugo da primeira, uma linguagem
de coisa, deterioradamente associativa, como a que entremeia o monólogo não
apenas do romancista, mas também dos inúmeros alienados da linguagem
primeira, que constituem a massa. (Adorno, 2003, p. 62)
O contador de histórias em primeira pessoa não se contenta apenas em relatar o
mundo exterior, em registrar, apontar, mostrar, apresentar o objeto, em somente decifrar os
enigmas da vida exterior; ele “converte-se no esforço de captar a essência, que por sua vez
aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento
imposto pelas convenções sociais” (Adorno, 2003, p. 58).
Georg Lukcás vai nessa mesma direção, ao afirmar que a problemática decisiva
entre romance tradicional e romance moderno foi instaurada por parte deste último,
mediante “a perda do simbolismo épico” do narrador, que foi substituído pelo cosmos lírico
de sua interioridade (2000, p. 118). O teórico observa que esse narrador, ao interiorizar-se,
não apenas mostra seu psicologismo, mas expressa seu julgamento sobre a realidade, uma
vez que “a elevação da interioridade a um mundo totalmente independente não é mero fato
psicológico, mas um juízo de valor decisivo sobre a realidade: essa auto-suficiência da
subjetividade é o seu mais desesperado gesto de defesa, a renúncia de toda a luta por sua
realização no mundo exterior”. (Lukács, 2000, p. 119)
Pode-se inferir que, ao esforçar-se para captar a essência das coisas, ao elevar sua
interioridade a um mundo totalmente independente e ao buscar a auto-suficiência de sua
subjetividade, o narrador em primeira pessoa complexifica-se. Em outras palavras, esse tipo
de narrador realiza um processo de complexificação em relação ao narrador em terceira
pessoa. O contador de histórias em primeira pessoa ou homodiegético pode aparecer como
65
personagem secundário ou mera testemunha, quando presencia e relata algum
acontecimento, o que não desqualifica sua condição de contador de histórias, como se
verifica em “Corpo fechado”. Pode, também, surgir como protagonista, quando manifesta
participação efetiva nos fatos relatados, muitas vezes encenando uma narração executada
sobre a irrupção espontânea de reflexões cujo teor desordenado e caótico é devido
justamente ao imediatismo de tal narração”, que se configura como o monólogo interior
(Reis, 1997, p. 368), procedimento encontrado em “São Marcos”.
3.1 “Corpo fechado”
O narrador testemunha de “Corpo fechado” (1984, p. 271-300) parece contar a um
suposto ouvinte, um episódio ocorrido com Manuel Fulô, sujeito pequeno, com “cara de
bobo de fazenda” (1984, p. 277), que põe fim à época de valentia nas cidades do interior de
Minas Gerais, ao matar o último dos valentões, munido apenas de uma faca pequena. O
narrador que testemunha o acontecimento é um doutor, provavelmente, oriundo da cidade
grande, que se transferira para Laginha, um arraial típico do interior, a fim de exercer a
profissão de médico. Percebe-se que, além de mostrar o entrecruzamento de culturas a do
doutor e a do capiau –, o relato do narrador revela a relação entre a ciência e a magia, uma
vez que, nesse conto, essas duas formas de significar o mundo são valorizadas.
O fato abordado torna-se curioso não só porque Manuel Fulô conseguiu desbancar o
valentão com a ajuda de um feiticeiro, mas também porque isso aconteceu diante dos olhos
do doutor. O narrador conta que chegara a Laginha em tempos calamitosos e que, logo que
conheceu Manuel Fulô, foi “tomando de tudo a devida nota” (1984, p. 276). O forasteiro e
Manuel Fulô tornaram-se amigos, principalmente, depois que Beija-Flor, a mula do capiau,
aprendeu o caminho da casa do médico. Manuel Fulô ia à residência do doutor diariamente,
e os dois ficavam conversando. Em uma dessas visitas, o doutor perguntou a Manuel Fulô
se ele havia conhecido o José Boi, um dos valentões que diziam haver caído de um
barranco de vinte metros e ter quebrado o pescoço. Nessa ocasião, observa-se que o doutor-
narrador tornou-se um ouvinte de Manuel Fulô. O matuto respondeu que sim e disse, ainda,
que também havia conhecido o Desidério, o valentão que tinha ficado no lugar de José Boi.
Manuel Fulô afirmou que esse, além de bruto, era coiceiro, e concluiu o pequeno relato,
66
contando que o valentão acabou morto na cadeia, lugar onde os soldados “abotoaram” o
desalmado (1984, p. 272). A seguir, o doutor-ouvinte lembrou-se de outro sujeito, o
Adejalma, mas Manuel Fulô disse que, antes desse, havia o Miligido, o qual era “valentão
valente, mesmo”, mas que não matara muita gente porque todos fugiam dele. Por fim,
afirmou que Miligido, ao contrário do outro, devia estar vivo ainda, perto dos setenta anos,
sem aquela valentia toda (1984, p. 273). Logo após, Manuel Fulô voltou a falar do
Adejalma e resolveu prolongar a história:
Lhe conto, seu doutor. Foi na venda: eu estava comprando cadarço de roupa,
coisa de paz... O homem veio chegando enjoado com cara de herege... [...],
virou p’ro Pércio, que era caixeiro nesse tempo, e perguntou: “O senhor tem
dessa raça de faca que entra na barriga e murguêia?” E olhou pra mim, outra
vez, p’ra ver se eu estava com receio... [...]. Eu ia serrar de cima, mas nem não
tive tempo, porque nessa horinha vinha entrando um tropeiro de Soledade, que
era homem duro, e pensou que a ofensa era p’ra ele... E aquilo foi o tropeiro
dando um murro no balcão e tossindo, e perguntando também p’ra o Pércio:
“Por falar nisso, o senhor não tem também dessa raça de bala que bate na testa e
chatêia?!” Pois o Adejalma se riu de medo, e disse que estava era brincando...
(1984, p. 272)
Depois de ouvir essa história, o doutor lembrou que o valentão, no momento, era o
Targino. O capiau disse que nem era bom falar nesse “flagelo”, que não respeitava nem a
honra das famílias (1984, p. 273). O doutor perguntou se ele tinha raiva desse também, e
Manuel Fulô garantiu que não era raiva o que sentia; era “gastura”, porque esse era mais
maligno do que todos os outros valentões juntos. O capiau lembrou, ainda, de mais alguns
valentões, apontando para outras histórias, possíveis de serem contadas, e preferiu deixar
Targino de lado, advertindo que, um dia, “esse sujeitinho ainda vai ter de dançar de ceroula,
seu doutor! Isso é terra de gente brava...”. (1984, p. 274)
Aos poucos, o doutor foi conhecendo melhor Manuel Fue descobriu que ele era
de uma “apócrifa e abundante” família Veiga, e não filho natural de um dos maiores
negociantes do arraial Nhô Peixoto , como afirmava o matuto. O capiau, segundo o
doutor, além de ser meio bobo do tipo de sujeito que quase toda fazenda possui –, era
meio surdo e gago. O médico descobriu, também, que, por trás daquele indivíduo miúdo,
escondia-se um sujeito que morria de amores por sua mula, a Beija-Flor, e que tinha três
desejos: o primeiro era possuir uma sela mexicana para o animal, igual a do Seu Antonico
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das Águas, o feiticeiro do arraial; o segundo era ser boticário; o terceiro, era chefe de trem-
de-ferro.
É interessante notar que o doutor-narrador interrompe a narração das conversas que
tivera com o capiau para dizer que, somente naquele instante, a história de Manuel Fulô ia
começar de fato, pois tinha sido naquele meio-dia de calor e sonolência que ouvira uma voz
feminina chamar-lhe do lado de fora de sua casa:
Era uma rapariguinha risonha e redonda, peituda como uma perdiz. Bonita
mesmo e diversa, com uma pele muito clara e os olhos cor de chuchu. Pasmou
parada, e virou pitanga, pois não contava decerto encontrar gente de cidade e
gravata. [...] Então ela me disse que ia casar, e que por isso estava percorrendo o
arraial, pedindo “adjutório”. Dei com prazer o “adjutório”, mas perguntei quem
era o noivo. Era o Manuel! (1984, p. 280).
Porém a narração da história de Manuel Fulô que deveria começar pelo momento
em que o forasteiro conhecera Maria das Dores, a noiva do capiau –, não evoluiu. Observa-
se que o doutor-narrador preferiu contar sobre o momento em que Manuel Fulô convidou-o
para beber cerveja, ainda naquele mesmo dia. O doutor conhecia o matuto a ponto de
saber que ele gostava de exibir a sua amizade com o médico e, por isso, sugeriu que fossem
à venda. chegando, ambos sentaram-se nas cadeiras dobradiças do armazém e deram
início a nova sessão de conversas. Foi, então, que o doutor ficou sabendo que a sela
mexicana, desejada pelo capiau, era para a mula Beija-Flor, que, por ter o corpo
desproporcional aos pés, maxilares que não se encontravam e fama de esperta, era parecida
com seu dono. Ressalta-se que, nessa conversa, o doutor soube, também, que Manuel Fulô
já havia desistido de ser boticário, ou chefe de trem-de-ferro, e que queria casar.
Em um instante em que se fez silêncio entre ambos, o doutor aconselhou Manuel
Fulô a parar de beber e, logo depois, notando o abatimento do amigo, perguntou se ele não
gostava da moça. Manuel disse que estavam “criando amor” (1984, p. 282), mas o que
queria mesmo era a sela mexicana, aquela do seu Antonico das Águas, com os arreios e os
bordados no couro dos estribos, para Beija-Flor. O capiau afirmou que era por isso que
estava daquele jeito: com raiva, e não bêbado. Manuel Fulô passou a elogiar a mula e a
dizer que quem entendia de montaria naquele arraial era ele, pois ele havia passado dois
anos junto a um grupo de ciganos, “acompanhando aquele povo p’ra baixo e p’ra riba”
(1984, p. 282). O doutor perguntou, então, se Manuel Fulô tinha vivido com os ciganos,
68
demonstrando interesse pela história, e o capiau, instigado pelo médico, passou a contar o
episódio:
Foi por causa que eu estava sem gosto p’ra caçar serviço bruto, naquele tempo...
Garrei a maginar: o que eu nasci mesmo p’ra fazer é negócio de negociar com
animal. [...] Pois então eu quis viajar no meio da ciganada, por amor de aprender
as mamparras lá deles. [...] E tomei assunto, ligeiro, de um ror de coisas na
língua disgramada que eles falam... [...]. E, ao depois, trabalhavam com animais,
p’ra botar eles bonitos, [...]. Eles gostavam muito de mim, porque pensavam que
eu era bobo de deveras... [...]. Já entendia de tudo quanto era manha de lidar com
cavalo. [...] Então, não tinha mais ninguém p’ra poder comigo, [...]. Quando eu
larguei a ciganagem, vim p’raqui p’r’o arraial, negociar por conta própria, [...].
Calcule o senhor que, de vez em quando, eu pegava a pensar e tinha uma raiva
danada dos ciganos terem me abusado, achando que eu era coió... [...]. Então eu
arresolvi amostrar p’ra eles o quê que é gente que tem sangue de Peixoto! [...],
daí cacei dois sujeitinhos ordinários de cavalos, que eram mesmo o restolho da
porcaria maior de tudo quanto é cavalo ruim que não presta. [...] Então eu pus
um perto do outro, e dei risada: pois há-de ser mesmo com estes mais
mambembes que vou tochar uma certa naquela cambada. [...] Nem comia nem
dormia direito, inventando outras papiatas p’ra compor a minha junta de
mulas-sem-cabeças de tirar vingança de cigano... [...]. Eu sabia que na Semana-
Santa os tais tinham de vir no arraial. E vieram mesmo. Mas Ventarola e
Furta-Moça estavam no ponto. [...] E Bartolameu junto com seu Pachencho
mais com o Cuntrino, futricaram, um tempo todo, falando depressa na língua
atrapalhada lá deles. [...] Foi a gente fechar o negócio, e eu peguei a dar viva,
gritando que tinha embrulhado os ciganos, [...]. Até hoje eu ainda gosto mais de
me alembrar disso do que de comer doce!... (1985, p. 282-290)
O forasteiro, que demonstrava ser um ouvinte atento e instruído, talvez concebesse a
dupla de cavalos ordinários, apresentados aos ciganos por Manuel Fulô, como um
verdadeiro “presente de grego”
1
, e imaginasse a reação dos ciganos quando descobriram
que haviam sido enganados. O médico interrompeu o contador de histórias inúmeras vezes,
porém tais interrupções ocorreram porque o doutor demonstrava seu envolvimento com
aquilo que era narrado. Observa-se que o doutor quis saber, por exemplo, se Manuel Fulô
tinha presenciado muitos roubos de cavalo; comentou que devia haver muita moça bonita
entre os ciganos e, também, que o capiau devia estar ganhando muito dinheiro lesando os
outros. Depois perguntou se o matuto levara uma vida boa junto com os ciganos, indagou
sobre o motivo pelo qual o capiau tinha abandonado o negócio com animais e sobre a
reação dos ciganos quando constataram que haviam sido ludibriados.
1
Observa-se aqui uma semelhança o disfarce entre os cavalos vendidos por Manuel Fulô aos ciganos e o
cavalo de madeira, ofertado pelos gregos aos troianos na Ilíada de Homero.
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A seguir, o doutor, percebendo que a longa história ia terminar, ao mesmo tempo
que ofereceu mais cerveja a Manuel Fulô, reparou que o capiau ainda estava alterado. Por
fim, recomendou que o amigo bebesse mais devagar. Manuel Fulô repetiu que estava com
raiva, não só porque ninguém mais queria fazer negócio com ele – diziam que enganava até
os ciganos –, mas também porque não era dono de uma sela mexicana. O matuto passou a
lamentar o fato de Antonico das Águas ter a sela que ele desejava para a Beija-Flor e disse,
com ódio, que, além de possuir tal objeto, o curandeiro fazia-lhe, constantemente, propostas
de compra da mulinha. Manuel Fulô aproveitou a menção ao feiticeiro para advertir o
médico de que aquele sujeito devia ter relação com o “diabo”, pois sabia fazer feitiço e,
o que era pior, estava desestimulando as pessoas de consultar o médico. O capiau alertou o
amigo para o fato de que o outro poderia vir a tirar-lhe o lugar, afirmando que era provável
que o feiticeiro tivesse feito alguma macumba contra o dico. Torna-se importante
observar que o doutor, tranqüilo, disse que feitiço não “pegava” nele.
Manuel Fulô insistiu no perigo que Antonico das Águas representava para o médico.
Na verdade, o matuto temia pelo risco que ele próprio corria, de perder a Beija-Flor para o
feiticeiro, pois ainda o entendia como um sujeito poderia ser proprietário de uma sela
mexicana, sem possuir uma montaria. O capiau aceitou a assertiva do doutor, de que devia
parar de beber e continuou contando histórias. Passou a desfiar mais “astúcias”, “trapaças”,
“manhas”, “tretas”, sempre pronto a introduzir um fato novo em sua conversa: “Só queria
lhe explicar ainda, seu doutor, que eu...” (1984, p. 292). Porém o doutor, embora atento
àquilo que o outro dizia como bom ouvinte que era , não pôde deixar de perceber a
entrada de Targino na venda. Ressalta-se que o narrador, nesse momento, interrompe
novamente o relato e afirma, pela segunda vez, que somente naquele momento a história de
Manuel Fulô estava começando:
E Manuel Fulô desceu cachoeira, narrando alicantinas, praga e ponto e ponto e
praga, até que... Até que assomou à porta da venda – feio como um defunto vivo,
gasturento como faca em nervo, esfriante como um sapo Sua Excelência o
Valentão dos Valentões, o Targino e Tal. E foi então que de fato a história
começou. (1984, p. 292-293)
Targino, seguro de si, pela autoridade que sua figura representava para os demais,
foi direto a Manuel Fulô e disse-lhe que tinha “um particular” para tratar com ele. O
valentão foi sucinto: “Escuta Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho
70
visitar sua noiva amanhã... mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês
podem casar. Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não...” (1984, p. 293). Targino,
depois de apontar o indicador direito para o matuto, imitando um tiro, e de deixar clara sua
intenção de passar uma noite com a noiva de Manuel Fulô, girou o corpo e foi-se embora.
Sem demora, um grupo de pessoas juntou-se para lamentar o infortúnio do pobre capiau. O
médico, talvez para retribuir a preocupação do amigo, que o alertara sobre a possibilidade
de perder a clientela para o feiticeiro, resolveu livrá-lo de tal exposição e levá-lo a sua casa.
chegando, o doutor lançou mão de todos os recursos que a ciência lhe oferecia e tentou
reanimar Manuel Fulô da bebedeira. Afirmou: “Não fazer nada seria uma infâmia... Temos
de defender a das Dor!” (1984, p. 294). Porém, é interessante notar que o médico não teve
outra alternativa senão a de deixar o capiau dormir aquela noite inteira, porque não obteve
sucesso nas tentativas de reanimar o matuto.
Pela manhã, o doutor acordou cedo e foi à procura de ajuda. Conversou, na rua,
com Vicente Sorrente, o sapateiro, e comentou com este sobre o assunto; foi à casa do
Coronel Melguério; entrou até na igreja, em busca do Vigário, mas nenhum deles quis
intrometer-se entre Targino e Manuel Fulô. O médico voltou para casa e ficou contando
com a sorte, sem saber o que fazer com toda aquela gente reunida dentro e fora da sala.
Salienta-se que, nesse instante, pela terceira vez, o doutor-narrador interrompe a narrativa e
afirma que, “de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui”, referindo-se à entrada
repentina de Antonico das Águas em sua residência:
Era uma vez um pedreiro Antonico das Pedras ou Antonico das Águas, que tinha
alma de pajé; e tinha também uma sela mexicana, encostada por falta de animal,
e cobiçava ainda a Beija-Fulô, a qual, mesmo sendo nhata, custara um conto e
trezentos, na baixa, e era o grande amor do meu amigo Manuel Fulô. Pois o
Antônio curandeiro-feiticeiro, apesar de meu concorrente, lá me entrou de
repente em casa, exigindo o Manuel Fulô a um canto para assunto
secretíssimo. (1984, p. 297)
Nem o doutor, nem ninguém pôde ouvir o que Antonico das Águas dizia a Manuel
Fulô; somente começaram a entender o que se passava quando o feiticeiro abriu a porta do
quarto, requisitando agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas. O
matuto apareceu, também, na porta do quarto e disse que podiam entregar a Beija-Flor ao
seu Antonico, porque, a partir de então, a mula era do feitideiro. Depois encerraram-se
71
novamente no quarto. Passado algum tempo, a porta se abriu e Manuel Fulô saiu
transformado, “teso” e “sorumbático”, rumo à rua, onde já haviam anunciado a presença de
Targino. O feiticeiro saiu do quarto no mesmo instante e tranqüilizou as pessoas a seu
redor: “Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de fogo eu garanto!”.
(1984, p. 298)
As pessoas que estavam dentro da casa, inclusive o doutor, correram até as janelas
para presenciar o enfrentamento, que, na opinião dos parentes Veigas, que estavam
presentes, acabaria na morte do “pobre do Manuelzinho”. Targino e Manuel Fulô estavam
distantes dez metros um do outro, quando o valentão puxou o revólver e o capiau retirou da
cintura uma faquinha, tão pequena que parecia um canivete. Essas foram as últimas ações
vistas pelo doutor, antes de retirar o rosto da janela, para ficar apenas escutando os
estampidos dos cinco tiros que se seguiram. Quando o médico tornou a olhar, viu, surpreso,
Manuel Fulô intocado pelas balas , esfaquear, na altura do peito, o valentão, que, depois
de ser atingido, permanecia paralisado e ainda em pé, provavelmente, também, sob os
efeitos da magia de Antonico das Águas. Logo o grandalhão caiu, com um olhar de temor.
Manuel Fulô, a despeito da presença dos Veigas, perguntou ao “0diabo morto”, sabendo
que não obteria resposta, se agora ele conhecia “o que é raça de Peixoto!”. (1984, p. 299)
Assim findou a época dos espanta-praças e concluiu-se a história de Manuel Fulô,
porque, além de o capiau ser apenas “um valentão manso e decorativo”, preocupado
somente com a “mantença da tradição”, veio logo para o arraial um destacamento policial
(1984, p. 300). O doutor-narrador que testemunhou o caso de Manuel Fulô conta que o
matuto comemorou um mês inteiro, para depois casar-se, e que, quando conseguia burlar a
vigilância de Maria das Dores, via-se montado na mulinha Beija-Flor, que lhe era
emprestada por seu Antonico das Pedras-Águas.
A análise das estratégias utilizadas por João Guimarães Rosa na construção de
“Corpo fechado revela a presença de um narrador testemunha, o doutor, que conta a
história de Manuel Fulô ao leitor, e de um personagem-narrador, o próprio capiau, que não
narra ao doutor episódios de seu envolvimento com um grupo de ciganos, como também
introduz o forasteiro no mundo do interior mineiro, ao relatar as histórias dos valentões. Os
dois narradores contam suas histórias posicionados em primeira pessoa, porém nenhum
deles realiza o que se chama de monólogo interior, que, segundo Reis, se caracteriza por
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um momento de fluxo de consciência desencadeado pela irrupção espontânea de reflexões
marcadas pelo imediatismo da narração em relação aos fatos expostos (Reis, 1997, p. 368).
Ressalta-se que a ausência do monólogo interior não desqualifica nem as narrativas, nem os
seus respectivos narradores. O que se quer mostrar são as diferenças possíveis de serem
identificadas entre os narradores em primeira pessoa.
Observa-se que o doutor conta ao seu suposto ouvinte fatos que, de forma geral, não
aconteceram consigo, ou seja, ele situa-se como testemunha dos acontecimentos. Assim,
empreende um processo de exteriorização para contar a história, na medida em que esta
ocorre com outro personagem que não ele, e localiza as ações num tempo passado, o que
impossibilita o surgimento do monólogo interior. Nota-se que o personagem-narrador
Manuel Fulô conta ao doutor a história do seu envolvimento com os ciganos posicionado
como protagonista e, por isso, realiza um processo de interiorização. Porém, o personagem-
narrador, também, situa suas ações em um tempo passado e concentra-se no mundo exterior
para relatar os fatos, desvelando as condições de vida e a cultura dos ciganos. Desse modo,
pode-se dizer que nem o discurso do doutor, nem o de Manuel Fulô caracterizam o
monólogo interior.
Sobre a temática abordada nas narrações, ressaltam-se três aspectos: a aproximação
entre o mundo erudito e o universo popular; o confronto entre aparência e caráter; e a
relação entre ciência e magia. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que a
história de Manuel Fulô é contada por um narrador que possui alto nível de instrução, um
médico, provavelmente vindo da cidade grande, que detém elevado grau de conhecimento e
domínio da linguagem-padrão, além de haver adquirido o sotaque e o vocabulário regional
do interior mineiro, ao entrar em contato com os habitantes de Laginha, como se pode
observar na maioria das passagens em que sua voz aparece:
Pois bem, Manuel Fulô dera para visitar-me, mais que diariamente. E, como a
Beija-Fulô depressa aprendia as coisas, assustei-me bastante, numa tarde em que
ela veio escoucear minha porta, com seu proprietário escornado em cima do
arreio, na mais concreta abstração. [...] Então, eu esvaziei um jarro d’água na
cabeça do cavaleiro, e depois perguntei onde ele queria ir. Perene e solene,
respondeu: Eu?!... Eu: Tões, Militões, Canindés, Maquinés! Loucura, porque
nem nunca que ele havia de chegar à fazenda do Tão, nem do Militão, pior ainda
no Canindé, nem nunca que nunca no Maquiné. (1984, p. 280)
73
O domínio da linguagem-padrão por parte do doutor fica bastante evidente na
habilidade com que ele emprega os verbos, os advérbios, as conjunções e os pronomes no
trecho acima, e também na circunstância em que conta ao leitor o episódio sobre uns
subvalentões da região de Laginha, os filhos do Quintiliano. Parece que aí o narrador deseja
deixar clara a intimidade que possui com a língua portuguesa. Trata-se da história de
Manuel Baptista, mestre-escola do arraial, que, por ter conhecimento da língua-pátria,
provocou nos subvalentões a suspeita de que havia escrito um “pasquim” que satirizava os
pretendentes a valentões:
Vissem lá se ele era homem para andar pregando em árvore bobagem sem
assinatura! E com tantos erros! Ele entendia de gramática, e seus pasquins, muito
bem caprichados, sempre numa meia folha de papel almaço, eram lidos por
pessoas capazes de apreciá-los, e, mesmo assim, tendo cada um de solicitar a sua
vez, com muito empenho! (1984, p. 276)
a história contada por Manuel Fulô ao doutor, sobre o seu envolvimento com os
ciganos, revela um narrador que emprega a linguagem coloquial, mas o exatamente da
mesma forma que esta aparece no dia-a-dia dos sertanejos. Tanto na fala do doutor como na
voz do capiau, destaca-se a transfiguração da linguagem regional, operada pelo escritor.
Vale ressaltar que João Guimarães Rosa, segundo Antonio Candido (1987, p. 207),
promoveu “uma explosão transfiguradora” na linguagem gasta do regionalismo tradicional
e instaurou “a modernidade da escrita dentro da maior fidelidade à tradição da língua e à
matriz da região”, como se pode observar no trecho a seguir:
Preferi fôssemos para a venda, porque sabia que Manuel Fulô gostava de
exibir nossa amizade. E, mal nos sentamos nas cadeiras dobradiças, fui
perguntando:
– Me conta, Manuel, você gosta mesmo dela?
– Amo! Isso, lá, amo mesmo, seu doutor...
– Faz bem, Manuel, faz bem...
Então, nos desolhamos, e pegamos a pensar, cada um para o seu lado, até
que Manuel suspirou e explicou:
É o jeito. Eu só queria treis coisas só: ter uma sela mexicana, p’ra arrear
a Beija-Fulô... E ser boticário ou chefe de trem-de-ferro, fardado de boné! Mas
isso mesmo é que ainda é mais impossível... A pois, estando vendo que não
arranjo nem trem-de-ferro, nem farmácia, nem a sela, me caso... Me caso! seu
doutor... (1984, p. 281-282)
Quanto ao segundo aspecto aparência versus caráter , as duas histórias tratam de
atitudes que convertem um indivíduo comum num sujeito esperto, astuto ou ladino.
74
Observa-se que, enquanto o doutor narra a astúcia de Manuel Fulô para desbancar o
valentão Targino, o próprio capiau conta como utilizou a inteligência para enganar o grupo
de ciganos. Convém salientar que o caráter de Manuel Fulô contrapõe-se à imagem de
bobo, estúpido e ingênuo, que o doutor formara a seu respeito no instante em que o
conhecera, e que os ciganos tinham do capiau, tanto que confiaram na fama de tolo e na
aparência infantil do matuto.
Quanto ao último elemento mencionado a relação entre a ciência e a magia –,
observa-se, no conto, uma perfeita co-existência entre essas duas formas distintas de
explicar a natureza humana e o universo. Nota-se, por exemplo, que o doutor fica apenas
surpreso, e não contrariado, com a entrada do curandeiro em sua casa, fato que evidencia
não o respeito que tinha pelo trabalho do outro, mas também um certo conhecimento do
que estava para acontecer. A relação pacífica entre magia e ciência é explicitada pelo fato
de que o doutor sabia que estava lidando com uma manifestação da cultura popular e não
tentou impedir o “fechamento do corpo” do capiau. É importante salientar que não são
apenas a história principal e as histórias contadas pelos personagens-narradores que
estabelecem uma semelhança temática entre si. A epígrafe do conto – “A barata diz que tem
/ sete saias de filó... / É mentira da barata: / ela tem é uma uma quadrilha retirada de
uma cantiga de roda, também, parece referir-se à fama dos valentões ou à imagem de
esperteza atribuída aos ciganos, ambas desfeitas por Manuel Fulô e, simultaneamente, à
passagem em que o capiau transveste a dupla de cavalos mazelentos para enganar os
ciganos.
Percebe-se que, tanto a história contada pelo doutor ao leitor, quanto a relatada por
Manuel Fulô ao médico, confirmam a co-existência entre ciência e magia no interior de
Minas Gerais, porém de uma forma peculiar. Nota-se que há uma troca de papéis entre os
dois personagens, ou seja, enquanto o doutor conta ao leitor uma história de magia a
passagem em que testemunhou o fechamento do corpo” de Manuel Fulô pelo feiticeiro –,
o capiau parece referir-se ao emprego de métodos científicos, ao narrar ao médico os
acontecimentos relativos à transformação dos cavalos velhos em verdadeiras montarias,
prática que aprendera com os ciganos:
Foi uma campanha! Levei quase treis meses. Mas caprichei, porque eu estava
todo determinado p’ra etcétera... E como eu sou mesmo opiniúdo, e quando
75
entesto de fazer alguma coisa faço mesmo, [...] Passei banha de jibóia no aleijão
da perna do Furta-Moça, trabalhei de dentista, p’r’amór de retocar os dentes dos
dois... Pelejei, pelejei!... Pintando de preto, só um pouco, ao redor dos olhos, [...]
limpei as orelhas, tosei direito, escovei, lavei, pus bom freio, fantasiei a visagem
deles... Fiz tudo!... (1984, p. 286-287)
A análise das estratégias narrativas de “Corpo fechado” ainda permite afirmar que o
conto chama atenção para um fato: as tramas são construções dos próprios narradores e,
assim, várias são as maneiras de se começar a contação de uma mesma história, ou seja,
qualquer narrador possui livre arbítrio e escolhe o momento em que deve começar seu
relato, a fim de prender a atenção do ouvinte. As diversas formas de se iniciar uma história
podem ser percebidas, em “Corpo fechado”, nas três investidas realizadas pelo doutor para
dar início à história de Manuel Fulô: a primeira quando o médico conheceu Maria das
Dores; a segunda ao ver o valentão Targino entrar na venda e se dirigir ao matuto; a terceira
no momento em que teve sua casa invadida por Antonico das Águas, que fora até lá para
“fechar o corpo” do capiau. Outra estratégia narrativa que merece destaque é o final
semelhante dado às histórias, pois tanto a trama exposta pelo doutor, que testemunhou um
sujeito “pingadinho” derrotar um valentão, quanto a apresentada por Manuel Fulô, que
enganou um grupo de ciganos, historicamente experimentados na arte do logro, comprovam
que a esperteza, a astúcia, a inteligência de um indivíduo não pode ser medida por sua
aparência.
Vale perguntar o que sustentava a relação entre o doutor e o capiau?; quais seriam
os motivos que levaram o médico a contar a história do matuto ao leitor?; por que o capiau
contou ao forasteiro, precisamente, o seu envolvimento com os ciganos?; que sensações o
doutor experimentou ao contar a história de Manuel Fulô e ao ouvir do capiau o episódio
sobre os ciganos?; que efeitos o capiau sentiu ao relatar sua aventura com o grupo de
ciganos?
A relação entre o doutor e o capiau pode ter sido mantida pelo fato de os
personagens pertencerem a mundos distintos, tanto no que se refere ao espaço físico como
ao universo cultural de onde provinham, o que representava um atrativo e uma
possibilidade de troca e de aprendizado para ambos. Enquanto o primeiro era instruído,
demonstrava conhecimento da língua-padrão e maior domínio sobre suas emoções, o
segundo era instintivo e espontâneo. O médico, talvez, tenha contado a história do matuto
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não porque desejava entender o universo daquela figura, mas também porque precisava
compreender ou, simplesmente, assimilar algo que não era capaz de explicar por meio da
razão: o “fechamento do corpo” do capiau, como resultado da magia, e a aquisição, por
parte de Manuel Fulô, da força e da coragem necessárias para enfrentar o valentão. o
matuto pode ter relatado ao médico o episódio do seu contato com os ciganos, porque
queria comprovar sua esperteza e livrar-se da fama que possuía, de ser ingênuo, bobo e
infantil.
Caso se aceite a hipótese de que o doutor tenha contado sua história porque queria
compreender ou elaborar internamente o mistério que envolvia o “fechamento do corpo” do
capiau, pode-se afirmar que ele buscava beneficiar-se dos efeitos da experiência estética
propiciada pelo seu próprio relato. A atenção do médico feito narrador voltava-se para algo
que o libertava dos constrangimentos e da rotina impostos pelo seu cotidiano, e, à medida
que submergia num outro universo o do capiau –, o doutor não desvencilhava-se do
pragmatismo das normas que regiam o seu mundo, mas também estabelecia uma distância
entre si e a “realidade” que vivenciara, o que lhe permitia compreender ou assimilar os
fatos narrados. Da mesma forma, o capiau também poderia estar sentindo os efeitos de uma
experiência estética, pois, enquanto rememorava o seu envolvimento com os ciganos,
demonstrava sua sagacidade e desfazia-se da fama de ingênuo, que o perseguia numa terra
habitada por vários valentões.
Por fim, os dois contadores de histórias poderiam estar motivados pela necessidade
de comunicar experiências e, talvez, intuíssem que, de alguma forma, aquilo que contavam
tinha significado não somente para si próprios. Tal interpretação é autorizada pela
afirmação de Nelly Novaes Coelho: “o impulso de contar estórias deve ter nascido no
homem, no momento em que ele sentiu a necessidade de comunicar aos outros certa
experiência sua, que poderia ter significado a todos”. (Coelho, 1985, p. 5)
3.2 “São Marcos”
A história contada em “São Marcos” (1984, p. 241-268) é a de um indivíduo que
perdeu, momentaneamente, a visão durante um passeio a uma mata, em Calango-Frito,
interior de Minas Gerais. O narrador é o próprio protagonista, João, que também respondia
77
pelo nome de José. Ele não acreditava em feiticeiros e, por isso, não fazia questão de
demonstrar simpatia com quem lidava com “o contra-senso” (1984, p. 241). João/José é um
sujeito que não anuncia seu nome, nem deixa clara a sua origem; somente se percebe que
era sofisticado e possuía uma posição social privilegiada, ao constatar-se que usava paletó e
chapéu, era dono de um relógio de pulso e fumava cigarros industrializados. Nota-se,
também, que o forasteiro era instruído, porque conhecia o nome científico das diversas
espécies animais e vegetais que encontrava na mata e utilizava a linguagem-padrão.
João/José perdeu a visão porque insultara João Mangolô, o feiticeiro mais respeitado de
Calango-Frito. A falta de controle do protagonista sobre seus instintos e o desprezo que
manifestava pelo feiticeiro foram os motivos que levaram este último a dirigir, contra
João/José, o feitiço que o tornou cego.
Enquanto conta as aventuras que vivenciara em Calango-Frito, o narrador-
protagonista reproduz histórias secundárias, narradas por outros personagens, ou seja,
surgem na sua memória e afloram em seu relato episódios antes contados por personagens-
narradores. Esse é o caso de Nhá Rita Preta, a criada de João/José, que narra o episódio
por ela presenciado provavelmente antes da chegada do protagonista em que a
lavadeira, outra criada da casa, fora acometida por uma dor inexplicável no pé, e, também,
o caso de Aurísio Manquitola, que conta a história de Tião Tranjão, sujeito “meio leso”,
que adquirira força para fugir da cadeia e coragem para se vingar da esposa e do amante,
pelo fato de ter recitado uma reza “sesga, milagrosa e proibida” – a oração de São Marcos.
João/José debochava das pessoas que faziam uso da magia, como Nhá Tolentina,
que, em seu entendimento, estava enriquecendo com o preparo de sapos com a boca
costurada e batizados em pias de igreja para serem escondidos no telhado de algum sujeito.
O protagonista achava esse tipo de atitude uma “barbaridade”. Em Calango-Frito, conforme
seu depoimento, até os meninos de dez anos faziam feitiços. Um desses garotos era
Deolindinho, que quase provocara a morte de um professor malvado, ao colocar um feitiço
debaixo da cama do mestre. O que espantava João/José era a originalidade com a qual
aquilo havia sido feito: cada um dos colegas do menino fechara os olhos e apanhara uma
folha de bambu; depois disso, eles urinaram dentro da lata onde haviam colocado as folhas
e a esconderam debaixo da cama do professor. O protagonista comenta que a tragédia
não foi completa porque, em virtude do mau-cheiro, o preparo fora descoberto a tempo.
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João/José não escondia de ninguém sua repulsa aos feiticeiros e não faltava quem o
advertisse do perigo que corria. Ele próprio admitia que “zombava já por prática” e, nos
momentos em que expressava sua antipatia pelos feiticeiros, ouvia as recomendações de
Nhá Rita Preta: “– Se o senhor não acredita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-de!” (1984,
p. 242). Assim, as histórias secundárias que se reproduzem na memória do narrador têm
como mote os conselhos de Nhá Rita Preta, que vinham acompanhadas de exemplos de
pessoas que tinham praticado alguma desfeita” a um feiticeiro, como havia acontecido
com a lavadeira:
e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar a roupa suja. De repente, deu um
grito horrendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no (lá
dela!)
...
A gente acudiu, mas não viu nada: não era topada, [...] nem bicho-de-pé
apostemado, nem mijacão, nem coisa de se ver... Não tinha cissura nenhuma,
mas a mulher não parava de gritar, e... qu’é de remédio?! Nem angu quente, nem
fomentação, nem bálsamo, [...] nem alcanfor!... ela se alembrou da desfeita
que tinha feito para a Cesária velha, e mandou um portador às pressas, para pedir
perdão. Pois foi o tempo do embaixador chegar lá, para a dor sarar, assim de
vôo... Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do pé da calunga de cera, que
tinha feito, aos pouquinhos, em sete voltas de meia-noite: “Estou fazendo
fulana!... Estou fazendo fulana!...”, e depois, com a agulha: Estou espetando
fulana!... Estou espetando fulana!... (1984, p. 243)
Desde que chegara a Calango-Frito, João/José ia passear, todos os domingos, no
mato das Três Águas, e Nhá Rita Preta, assim que percebera a aversão do moço pelos
feiticeiros, passara a alertá-lo sobre o risco a que ficava exposto nessas caminhadas. Na
manhã do domingo fatídico em que o protagonista perderia a visão, enquanto costurava
uma das mangas do paletó do patrão – que já estava de chapéu posto e pronto para
empreender seu passeio –, a preta-velha disse: “Coso a roupa e não coso o corpo” (1984, p.
243). O aviso de Nhá Rita Preta era claro: ela não garantia proteção ao patrão; apenas
costurava sua roupa. A criada recomendou-lhe, em tal ocasião, que ele não “enjerizasse”,
especialmente, o Mangolô, o feiticeiro mais respeitado da região.
Eram sete horas da manhã, o dia estava claro e a manhã “espaçosa”. O aventureiro
ia sozinho e levava somente uma pequena bagagem, boa provisão de alimento, o binóculo e
a espingarda, por uma razão específica:
eu não podia deixar o povo saber que eu entrava no mato, e passava o dia
inteiro,
para ver uma mudinha de cambuí a medrar da terra de dentro de um
buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-
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cabaças [...]; para namorar o namoro dos guaxes, pousados nos ramos compridos
da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua
olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar sozinho, no concurso de
salto-à-vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhotos cinzentos [...]; e para rir-
me, à glória das aranhas-d’água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a
casca de água do poço, pensando que aquilo é chão mesmo para se andar em
cima. (1984, p. 244)
O viajante dispensava companhias e costumava dizer que nem os cães eram seus
sócios nos passeios. Em sua opinião, esses animais estorvavam; andavam por onde
queriam e, além disso, viam a sua frente apenas o que lhes interessava: o paqueiro, as
pacas; o veadeiro, os veados; o perdigueiro, as perdizes. Assim, não demorara a convencer-
se da inutilidade dos cães: “uma vez, no começo, trouxe comigo um desses ativistas
orelhudos, de nariz destamanho. Não dei nem tiro, e ele estranhava, subindo para mim
longos olhares de censura. Desprezou-me, sei; e eu me vexei e quase cedi. Nunca mais!”
(1984, p. 244). O protagonista parecia preferir a solidão em suas viagens, em primeiro
lugar, porque não queria despertar a curiosidade das pessoas, que poderiam não entender
suas excentricidades de observador atento da natureza; em segundo lugar, porque a
presença de um cão seria capaz de desviá-lo do caminho.
No domingo em questão, o aventureiro caminhava tranqüilo pela estrada, quando
levou um choque ao ouvir alguém gritar atrás de si: “– ’Güenta o relance, Izé!...”. João/José
acreditava estar sozinho, e, por isso, o grito o fez estremecer e voltar-se para olhar:
porque, nesta estória, eu também me chamarei José. Mas não era comigo. Era
com outro Zé, Zé-Prequeté, que, trinta metros adiante, se equilibrava em cima
dos saltos arqueados de um pangaré neurastênico. Justo no momento, o
cavalicoque cobreou com o lombo, e, com um jeito de rins e depois um desjeito,
deu com o meu homônimo no chão. (1984, p. 245)
Logo após esse incidente, ao qual não atribuiu maior importância, tomou uma trilha
afluente. O caminho era de chão batido e muito limpo, apesar de estreito. Alguns passos
adiante, o aventureiro avistou a cafua de João Mangolô, o “preto; pixaim alto, branco
amarelado; banguela; horrendo” (1984, p. 245). O feiticeiro, que estava perto da cerca,
sorriu para o passante, sem imaginar a antipatia do sujeito por ele. João/José, sem pensar,
disse: “– Pensei que você era uma cabiúna de queimada... [...] Com um balaio de rama de
mocó, por cima!” (1984, p. 246). Depois, perguntou ao outro se ele sabia quais eram os três
mandamentos do negro e, ignorando os muxoxos de Mangolô, foi logo dizendo: “todo
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negro é cachaceiro”; “todo negro é vagabundo”; “todo negro é feiticeiro”. João Mangolô
passou do riso à expressão de ódio, resmungou e entrou na casa, batendo com a porta.
João/José, ainda insultando o feiticeiro, seguiu seu caminho; passou perto do chiqueiro,
para, no final do feijoal, pegar a trilha que se bifurcava à direita, onde se abriam os gravatás
enfeitados de flores azuis. (1984, p. 245-246)
Assim que apanhou a trilha, o caminhante escutou um barulho de alpercatas. Era
Aurísio Manquitola, um “mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole
velho”, que fazia o caminho contrário ao do moço. Num tom de zombaria, João/José
perguntou a Aurísio Manquitola se ele estava vindo da cafua do Mangolô. O mameluco
respondeu, de modo particular, que não: “– Tesconjuro!”. Depois, completou a resposta e
informou que vinha da missa, para deixar claro que não gostava de “urubu”, referindo-se ao
macumbeiro. O moço indagou, ainda, se o outro tinha medo do feiticeiro. A resposta de
Aurísio Manquitola foi, novamente, negativa e peculiar: “– Há-de-o!” (1984, p. 246). O
velhote disse que não era medo; apenas não gostava de abusar, pois “não paga a pena”.
Posteriormente, contou que, quando jovem, gostava de lidar com feitiços; revelou que
havia ido até a cemitério, mas garantiu que, no momento, procurava sossego e, para
comprovar isso, ofereceu uma laranja-da-china a João/José, cortando a tampa da fruta com
uma foice.
O moço, ao notar a foice do velho, ainda em tom de galhofa, comentou que o
instrumento devia ter serventia para tudo, menos para tirar bichos-de-pé. O outro disse que
foice era uma arma poderosa, à qual não se comparavam nem a arma de fogo, nem a faca:
“Para foice não tem nem reza, moço...”. João/José, ouvindo a referência à reza, perguntou
se, para foice, não havia nem as “sete ave-marias retornadas”, nem “São Marcos”, e
começou, logo, a recitar esta última: “Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo
Mau, seu e meu companheiro...”. O mameluco pulou para a beira da estrada; disse-lhe que
isso era “reza brava” e quis saber se o moço não tinha noção do poder das palavras dessa
oração, advertindo-lhe: “o senhor não sabe com o que é que está bulindo!... É melhor
esquecer as palavras...” (1984, p. 247). Nesse instante, Aurísio Manquitola passou a contar
a João/José a história de Tião Tranjão, perguntando-lhe se ele conhecia esse capiau e um tal
de Gestal da Gaita.
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Aurísio Manquitola revelou ao forasteiro que Gestal da Gaita sabia a oração de São
Marcos e era um bom sujeito, porque se compadecia de Tião Tranjão, um indivíduo “meio
leso”, que, além de ter sido traído pela mulher e pelo melhor amigo, o Cypriano, levava a
culpa de haver batido em Felipe Turco com um pedaço de pau. Depois, Aurísio Manquitola
contou que, um dia, Gestal da Gaita resolveu ensinar a reza a Tião Tranjão, para que esse
tivesse alguma “valença nos apertos” (1984, p. 249). Logo após aprender a oração, o capiau
foi preso por causa da suposta paulada no turco, mas não ficou por muito tempo na cadeia.
Aurísio Manquitola parecia não ter dúvida quanto ao método utilizado pelo matuto para
fugir da prisão:
Ele deve de ter rezado a reza à meia-noite, da feição que o diabo pede, o senhor
não acha? Pois, do contrário, me conte: quem foi que deu fuga ao preso, das
grades, e carregou o cujo de volta para casa quatro léguas –, que, de-
madrugadinha, estava ele chegando lá, e depois na casa do outro, e entrando
guerreiro e fazendo o pau desdar, na mulher, no carapina, nos trastes, nas
panelas, em tudo quanto há?! [...] E: olhe aqui: quando ele tinha chegado, caçou
uma alavanca para abrir a porta, com cautela de economia, por não estragar...
pois, no fim da festa, acabou desmanchando a casa quase toda. [...] Foi precisão
de umas dez pessoas, para sujeitar o Tião, e se a gente não tonteasse o pobre...
(1984, p. 251)
Aurísio Manquitola encerrou a história da fuga de Tião Tranjão da cadeia e
despediu-se: “Bem, seu moço, se o senhor vai tomar dessa banda de lá, nós temos de se
desapartar, que o meu rumo é este aqui. Bom, aoutro dia. Deus adiante, paz na guia!”
(1984, p. 251). João/José seguiu o caminho que descia, entrando na capoeira baixa e saindo
do capoeirão alto. Logo depois, avistou o bambuzal cuja beleza comparou a de um mar
suspenso, ondulado e parado –, que lhe fez lembrar-se de uma história acontecida assim que
chegara a Calango-Frito: o episódio do duelo verbal que travara com Quem-Será. É
interessante imaginar o estado contemplativo de João/José diante dos bambus. Enquanto ele
recorda a história, pode-se ter uma noção do que se passa no seu interior durante o relato e
da sensação que experimentara ao vivenciar os fatos, além de perceber o lirismo que
sobressai do episódio narrado. Como se também estivesse suspenso tal qual o mar e o
bambuzal e como se pudesse ignorar a natureza a sua volta, pôs-se a rememorar a história:
Foi quase logo que eu cheguei ao Calango-Frito, [...] os grandes colmos jaldes,
envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém gravara, a canivete ou
ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó: Teus olho tão singular /
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Dessas trancinhas tão pretas / Qero morer eim teus braço / Ai formosa marieta.
E eu, que [...] tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo: Sargon /
Assarhaddon / Assurbanipal / Teglattphalasar, Salmanassar / Nabonid,
Nabopalassar, Nabucodonosor / Belsazar / Sanekherib. E era para mim um
poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e
representados na poesia. [...] quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo
e bradá-lo Ó colossalidade! na direção da altura? E não é sem assim que as
palavras tem canto e plumagem. [...] No domingo seguinte, quando retornei ao
bambuzal, vi [...] sob o meu poema dos velhos reis de alabastro: Língua de turco
rabatacho dos infernos. Mas também aceitara o floral desafio, já usando certeza
e lápis: Na viola do urubu / o sapo chegou no céu. / Quando pego na viola / o
céu fica sendo meu. [...] “Quem-Será” ficou sendo meu melhor amigo, aqui no
Calango-Frito. Mas não tive dúvida, o mato era um menino dador de brinquedos,
e fiz: Tempo de festa no céu / Deus pintou o surucuá: / com tinta azul e
vermelha, / verde, cinzenta e lilá. / Porta do céu não se fecha: / surucuá fugiu
pra cá. E mais, por haver lugar: Tem o teu e tem o meu / tem canhota e tem
direita, / tem a terra e tem o céu – / escolha deve ser feita! [...] Isso me
perturbou; escrevi: Ou a perfeição, ou a pândega! No domingo imediato,
encontrei: Chegando na encruzilhada / eu tive de resolver: / para a esquerda fui,
contigo. / Coração soube escolher! [...] O tema se esgotara, com derrota minha e
triunfo de “Quem-Será”. Me vinguei, lapisando outra qualquer quadra, começo
de outro assunto. E nesse caminho estamos. (1984, p. 252-255)
Posteriormente, João/José apanhou outra vez a estrada-mestra para continuar sua
caminhada em direção à mata das Três Águas, avistada do alto de uma encosta. O viajante,
recobrando a atenção em si e na trilha que seguia, antes perdida nas lembranças de fatos do
passado, aparentava ter deixado para trás suas perturbações. Não apenas esses fatos, mas
também os acontecimentos recentes e os personagens com quem se envolvera as
advertências de Nhá Rita Preta, a história de Aurísio Manquitola, o seu enfrentamento
com João Mangolô, bem como o duelo verbal que travara com Quem-Será no bambuzal ,
pareciam distantes. O protagonista dava indícios de que estava consciente de seus atos e
concentrado na paisagem que apreendia por meio dos sentidos, “porque não é a esmo que
se vem fazer uma visita: aqui, onde cada lugar tem indicação e nome, conforme o tempo
que faz e o estado de alma do crente” (1984, p. 257). João/José, mesmo afirmando passar
por aquele lugar todos os domingos, manifestava um inegável encantamento com o que
estava diante de seus olhos:
Pelas frinchas, entre frestões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das
Três Águas. Três? Muitas mais! A lagoa grande, oval, tira de seu pólo dois
córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, o
brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhados
de poços, e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. (1984, p. 256)
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A seguir, o aventureiro desceu a encosta e, demonstrando ser um conhecedor do
local e das espécies vegetais e animais ali encontradas, escolheu uma das entradas do mato,
a das duas árvores, as sentinelas, identificadas em outros passeios e pelas quais sentia-se
observado: “um cangalheiro, de copa trapezoidal, retaca; e uma cajazeira que oscila os
brônquios verdes no alto das forquilhas superpostas” (1984, p. 256). João/José visitou,
primeiro, as Rendas da Yara, para escutar de perto os rumores do riacho, e decidiu meditar
sobre as belezas da castidade, sobre a precariedade dos gozos da matéria, mas não podia
demorar-se muito naquele local, porque a frieza do recanto era intensa. O viajante deixou o
lugar para retroceder às três clareiras, com suas respectivas árvores tutelares, em busca de
aconchego e de proteção, porém ainda não havia chegado a seu destino: “vou indo, vou
indo, porque tenho pressa, mas ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta e um altar a
Pan”. (1884, p. 257) Parece que o protagonista, ao se referir a Pan, que é, ao mesmo tempo,
o deus dos bosques, segundo a mitologia grega, e o radical grego para “tudo”, alude ao
desejo que sente de meditar, analisar, avaliar, observar e escutar não só os elementos da
natureza, mas tudo o que possui “indicação e nome”, inclusive os elementos que compõem
“o estado de alma do crente”.
Algum tempo depois, João/José atingiu, enfim, o “sancto-dos-sanctos” das Três
Águas, a clareira onde se encontrava a grande suinã, uma coraleira, eritrina, grossa e com
poucos espinhos, entre o começo do mato e um dos braços da lagoa. Nesse lugar, o seu
sentimento de proteção tornava-se completo, pois a lagoa parecia uma palma de mão, lisa
e maternal”, e a coraleira era farta, além de bela, calma e bondosa, “com ninhos e cores,
açúcares e flores, e cantos e amores e é uma deusa, portanto”. O viajante tirou o paletó e
recostou-se na coraleira: “– Uf! Aqui, posso descansar” (1984, p. 258). Então, passou a
observar a movimentação intensa dos insetos e das aves ao redor, como se essas criaturas
fossem elementos de sua interioridade: lembranças, aspirações, sentimentos, sensações,
medos, sonhos, desejos. Seus pensamentos parecem transitar do consciente para o
inconsciente e vice-versa, da mesma forma que, na natureza, as abelhas e as vespas
esvoaçam; as narcejas vêm e vão, os paturis anunciam sua chegada e as formigas pretas
ferroam:
todos aqui são bons ou maus, mas tão estáveis e o-humanos, [...] toda raça de
abelhas e vespas, esvoaçando, [...] formigas, muitas formigas marinhando tronco
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acima, [...] o pato bravo, que deve ter vindo de longe, [...] o marrequinho de
gravata é muito gentil, [...] os frangos-d’água eu sei de onde vêm, [...] as
narcejas há tempo que vieram, e se foram, [...] os paturis estão para chegar, [...] e
aquele? Ah, é o joão-grande. Não o tinha visto, contemplativo, ao modo em que
eu aqui estou, [...] as saúvas, que vão sob as folhas secas, [...] as formigas pretas
caçadoras amarimbondadas, que dão ferroadas de doer três gritos. (1984, p. 258-
260)
O tempo fora passando; a paz imperava, e chegou um momento em que João/José,
sonolento, encostou-se na coraleira e acomodou-se para dormir. Durante o estágio de semi-
consciência que antecede o sono, ainda surgiu em seu pensamento “uma borboleta de
páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas sumiu,
logo, na orla das tarumãs prosternantes” (1984, p. 260). Foi nesse instante que,
repentinamente, João/José perdeu a visão. Ele não conseguiu comparar aquela experiência a
qualquer outra sensação, de fato, conhecida, a não ser às impressões de estar “preso no
compacto de uma montanha”, de ser atacado por uma “muralha de fuligem”, ou de
ingressar no “último salão de gruta, com os archotes mortos” (1984, p. 261). O viajante
exasperava-se: “Estaria eu... Cego?... Assim de súbito, sem dor, sem causa, sem prévios
sinais?...”. João/José tateava o chão ao redor, esperançoso de que a escuridão durasse
apenas alguns segundos, mas logo concluiu que estava, mesmo, cego; compreendeu que a
tragédia era um fato, e que, ironicamente, no meio de tantos olhos os de todas as espécies
da natureza, algumas das quais pareciam observá-lo, e/ou os dos demais seres humanos que
habitam o universo –, somente os dele haviam cegado: “pois, só para mim as coisas
estavam pretas. Horror!...”. (1984, p. 262)
A movimentação da mata parecia haver crescido, na mesma medida em que
aumentavam as perturbações mentais do desafortunado. Os trilos dos pássaros que se
debulham, as pombas cinzentas que soluçam, o araçari que ensaia e reensaia seu discurso,
as formigas aturdidas pelo “rataplã” do pica-pau-chanchã, sugerem que o estado de espírito
o sofrimento, o desespero, o atordoamento e as atitudes do protagonista o tatear, o
alvoroço, o bramido –, assemelham-se à movimentação dos elementos da natureza:
a debulha de trilos dos pássaros; o patativo, contando clássico na borda da mata;
mais longe, as pombas cinzentas, guaiando soluços; e, aqui ao lado, um araçari,
que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai taquigrafando com
esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau-chanchã. E esse eu
estava adivinhando: rubro-verde, vertical, topetudo, grimpando pelo tronco da
imbaúba, escorando-se na ponta do rabo também. Taquigrafa, sim, mas, para
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tempo não perder, vai comendo outrossim as formigas tarus, que saem dos
entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã. (1984, p. 261-262)
O desespero de João/José crescia a cada instante. Então, ele, sem saber o que fazer,
apelou à Santa Luzia, a santa protetora dos olhos das pessoas, em uma quase-oração: “Santa
Luzia passou por aqui, com seu cavalinho comendo capim!...”. Não obteve graça alguma;
apenas sentiu seu estado de perturbação aumentar: “Maldita hora! Mais momento, eu vou
chorar, me arrepelando, gritando e rolando no chão” (1984, p. 262). Logo a seguir, porém,
decidiu acalmar-se e esperar um pouco, sem nervosismo, porque, além de saber que para
tudo havia solução, entendia que lidava com suas próprias dificuldades: “São meros mansos
fantasmas, agora; são meus”. Então, o protagonista tirou o relógio; acendeu um cigarro, que
não teve o mesmo gosto dos outros, e, engatinhando, voltou a tatear o chão, agora para
retornar ao local onde antes encontrara a proteção da grande suinã-coraleira-eritrina.
João/José mal chegou à árvore e ouviu, vindo não sabia de onde, provavelmente de
seu próprio interior, um aconselhamento de resistência, conhecido dele: “– ’Güenta o
relance, Izé!”. E, sem ao menos pensar, prorrompeu em um grito: “– E agüento mesmo!...”
(1984, p. 263). Essa exclamação, dita em voz alta e em tom combativo, devolveu ao
desesperado a força de que necessitava, investindo-lhe de nova coragem. Nesse momento,
começaram a desfilar em sua memória acontecimentos do passado, em especial o episódio
do duelo verbal que travara com Quem-Será no bambuzal.
É importante observar que, num instante, o viajante se assombrava, pois sentia que
algum “botão” ou “rodel” havia se mexido em sua cabeça, e tentava andar, guiando-se
pela audição: “não devo, não posso ficar parado aqui. Tenho, já, já, de correr, de me atirar
pelo mato, seja como for”. Logo em seguida, tentava acalmar-se: “Eu conheço o meu mato,
não conheço? Seus pontos, seus troncos, cantos e recantos, e suas benditas árvores todas
como as palmas das minhas mãos”. Entretanto, entre devaneios, evasões e lembranças,
João/José perdeu, novamente, o amparo da suinã e, mais uma vez, o desespero tomou conta
de si: E agora? Como chego á estrada?”. Então, a lembrança de Quem-Será surgiu em sua
mente com mais intensidade, na forma dos dois últimos versos do poema com o qual seu
adversário o havia derrotado no embate final : para a esquerda fui, contigo. / Coração
soube escolher (1984, p. 265). João/José, instantaneamente, decidiu substituir a visão pelo
instinto, que tanto admirava nas criaturas da mata:
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Sim. Mas, e as aves, e os grilos? Os pombos de arribada, transpondo regiões
estranhas, e os patos-do-mato, de lagoa em lagoa, e os machos e fêmeas de uma
porção de amorosos, solitários bichinhos, todos se orientando tão bem, sem
mapas, quando estão em ceca e precisam ir a meca?... O instinto. Posso
experimentar. Posso. Vou experimentar. Ir. Sem tomar direção, sem saber do
caminho. Pé por pé, pé por si. Deixarei que o caminho me escolha. Vamos!
(1984, p. 265).
O aventureiro andava devagar e passou a experimentar sensações adversas, como a
mão de um homem tocar em seu rosto ou puxá-lo pelo ombro: “vem alguém atrás de mim?
Paro. Não é ninguém”. Eram apenas os “cipós espinhentos, cipós cortinas, cipós cobras,
cipós chicotes, cipós braços humanos, cipós serpentinas uma cordoalha que não se acaba
mais”. Depois, João/José começou a sentir o cheiro do charco, de húmus e água podre, e
teve a sensação de que seus pés afundaram na lama. O desafortunado percebeu, então, que
o instinto não soubera conduzi-lo: “o instinto soube guiar-me apenas na direção pior para
os fundões da lama, cheia de paludes de águas tapadas e de alçapões de barro comedor de
pesos?!...”. O cansaço atingira João/José física e mentalmente, como se pode observar na
repetição e no baralhamento de um de seus pensamentos: “Pé por pé, por si... Pèporpé,
pèporsi... Pepp or pepp, epp or see... Pêpe orpèpe, heppe Orcy...” (1984, p. 266). Então, o
desespero do protagonista fê-lo gritar alto novamente: “Deus de todos! Oh... Diabos e
diabos... Oh...”. A pronúncia dessas palavras reproduziu, na mente de João/José, pela
terceira vez, o brado companheiro: “ ’Güenta o relance, Izé”. Aliada a esse grito, chegou-
lhe a lembrança de Aurísio Manquitola e do episódio contado por este: a história sobre o
poder da oração de São Marcos.
Nesse momento, João/José, mais desesperado do que nunca, passou a bramir a
oração de o Marcos. Logo sentiu-se mudado, possuído de grande força, e viu surgir
dentro de si uma vontade inexplicável de derrubar, de esmagar e de destruir. O poder das
palavras da oração surpreendeu tanto o protagonista que ele chegou a pensar que havia se
transformado em uma grande fera. Ainda sem conseguir enxergar, correu e, sem saber
explicar como, chegou até a estrada. Em seguida, ouviu grunhidos de porcos: era o
chiqueiro de João Mangolô. Embora não entendesse direito de onde lhe vinha aquela
certeza, João/José compreendeu que o mal que o atingira originara-se da casa de Mangolô e
se dirigiu, furioso, para lá. Assim que chegou, ouviu o feiticeiro gemer e choramingar a um
canto, e partiu para cima do indivíduo. O protagonista estava estrangulando o feiticeiro,
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quando voltou a enxergar, e, nesse momento, afrouxou as mãos do pescoço do homem.
Rapidamente, João/José viu João Mangolô tentar esconder, debaixo de um jirau, a bruxa de
pano e a faixa de tecido preta, que cobria os olhos do boneco. O protagonista exigiu
explicações sobre os acontecimentos, e o outro respondeu-lhe que amarrara a tira nas vistas
do boneco apenas para que ele não precisasse incomodar-se com a feiúra da própria
fisionomia de feiticeiro. João/José notou uma “ruindade mansa” nos olhos do feiticeiro e
decidiu entrar em acordo com ele: “você viu que não arranja nada contra mim, porque eu
tenho anjo bom, santo bom, e reza-brava... Em todo caso, mais serve não termos briga...”.
(1984, p. 268)
Após selar o acordo de paz com Mangolô, João/José estendeu-lhe uma nota de dez
mil-réis e saiu da casa do macumbeiro. O protagonista trazia as roupas em trapos, sangue e
esfoladuras por todo corpo, aspecto que espantava, sobretudo, as mulheres presentes no
local. Provavelmente, o aventureiro, que, em outros tempos, não acreditava em feitiçaria,
passou a acreditar, especialmente depois de ver o boneco com os olhos vendados e de
constatar o poder da oração de São Marcos. Percebe-se que a reconquista do sentido que
perdera fez com que ele passasse a valorizar mais a visão, de modo que a natureza,
contemplada após o episódio, ganhara novas cores, e a vida adquirira novo significado:
Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz
andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de
cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três
qualidades de azul. (1984, p. 268)
A análise dos procedimentos narrativos empregados em “São Marcos” revela a
presença de um narrador-protagonista que empreende um processo de interiorização para
contar sua história e que se transforma, em determinadas passagens, em personagem-
ouvinte, ao escutar casos relatados por alguns personagens-narradores. A passagem de
João/José da posição de narrador-protagonista para o lugar de personagem-ouvinte ocorre
no momento em que recorda as histórias de advertência de Nhá Rita Preta e de Aurísio
Manquitola quanto ao poder dos feiticeiros. Esses dois personagens são caracterizados
como indivíduos que viviam no local, acreditavam em feiticeiros e utilizavam a linguagem
coloquial típica da região. Observa-se que João/José narra suas próprias aventuras
posicionado em primeira pessoa e que os personagens-narradores relatam histórias que
aconteceram com outros, empregando, portanto, a terceira pessoa do verbo. Ressalta-se,
88
ainda, que João/José conta ao leitor outras histórias, além da principal, como é o caso do
episódio em que os meninos quase mataram um professor por causa de um feitiço; da
passagem que explica sua aversão à companhia dos cães e do trecho em que lembra o duelo
verbal que travara com Quem-Será no bambuzal.
A maioria das histórias está centrada numa mesma temática: o universo da magia e
dos feiticeiros. Até mesmo a quadra que serve de epígrafe ao conto – Eu vi um homem
na grimpa do coqueiro, ai-ai, / não era homem, era um coco bem maduro, oi-oi. / o era
coco, era a creca de um macaco, ai-ai, / não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi
–, está vinculada à feitiçaria, visto que o próprio autor afirma serem os versos parte de uma
cantiga de espantar males. Além disso, o eu que toma a palavra na cantiga não tem certeza
daquilo que enxerga, da mesma forma que o protagonista de “São Marcos” não consegue
enxergar o universo mágico dos feiticeiros. Não é por acaso, então, que João/José
rememora as histórias de Nhá Rita Preta e de Aurísio Manquitola, pois, enquanto ele
conta ao leitor a história principal o episódio em que sofrera a perda momentânea da
visão, em uma de suas visitas à mata das Três Águas, por ter insultado João Mangolô –,
lembra as histórias narradas pelos dois personagens antes mencionados sobre alguns
sujeitos que haviam passado por sérias dificuldades, exatamente, por terem afrontado um
feiticeiro.
A história que foge à temática da feitiçaria é aquela que se refere ao duelo verbal em
que o protagonista enfrentara Quem-Será. João/José parece contar essa história para
demonstrar que compreendia o poder e o significado das palavras, ou seja, para atestar que
entendia que “as palavras têm canto e plumagem”. No entanto, a força das palavras
contidas nas histórias de advertência que ouvira não tivera sobre ele qualquer efeito; não
fora suficiente para que desistisse de insultar os feiticeiros. Observa-se que o protagonista,
ao mesmo tempo em que ignorava as palavras de advertência de Nhá Rita Preta e de
Aurísio Manquitola, não tinha, nem mesmo, noção do poder exercido pela oração de São
Marcos ou pelos atos do feiticeiro. Além disso, desconhecia o efeito que suas próprias
palavras poderiam provocar em João Mangolô, ignorância que o levou a insultar o
feiticeiro, quando passava diante da casa em que este morava. É importante salientar que,
somente depois da vivência dos fatos, ele passou a valorizar as histórias que ouvira e, por
isso, decidiu recontá-las, reproduzi-las.
89
A comparação entre as estratégias narrativas adotadas no relato da história principal,
contada por João/José, e aquelas utilizadas no relato das histórias secundárias, de autoria de
Nhá Rita Preta e de Aurísio Manquitola, demonstra, ainda, que o final dos enredos é
semelhante. Até mesmo a história do enfrentamento verbal entre João/José e Quem-Será no
bambuzal, contada pelo próprio protagonista, encerra-se da mesma maneira. Em todos esses
relatos, o desfecho não revela o destino dos personagens de forma clara. A preocupação dos
diferentes narradores está em mostrar o caráter de cada personagem, da imprudência de
João/José à prudência de Sá Nhá Rita Preta e de Aurísio Manquitola, e, mais do que tudo, a
exemplaridade de cada história.
3.3 O interior do contador de histórias
Como se afirmou anteriormente, os narradores em primeira pessoa podem assumir o
lugar de testemunhas ou de protagonistas. O primeiro caso pode ser observado em “Corpo
fechado”, a narrativa de João Guimarães Rosa em que o doutor, um forasteiro, é quem
conta a história de Manuel Fulô, da qual fora testemunha. Os narradores que se comportam
como o doutor em “Corpo fechado” apenas contam fatos ocorridos com outras pessoas,
embora se posicionem em primeira pessoa para relatá-los. Eles realizam um processo de
interiorização para contar sua história, porém o atingem o que se chama de monólogo
interior. Esses narradores, além de ambientarem as ações de suas histórias em um tempo
passado, concentram-se, sobretudo, no universo exterior de outro personagem, condições
que não contribuem para o surgimento do monólogo interior.
O segundo caso observa-se em “São Marcos”, a narrativa roseana cujo narrador
protagonista revive o desespero de ter perdido a visão, embrenhado em uma mata. Esse
narrador, ao relatar a história que protagoniza, em algumas passagens, mergulha no
monólogo interior, pois é possível afirmar, recorrendo às palavras de Reis (1997, p. 357),
que João/José “assume-se como destinatário imediato de reflexões e evocações enunciadas
na privacidade de sua corrente de consciência”, como se pode verificar no trecho abaixo:
Vamos ver o faz-não-faz. Estou aqui num lugar onde ninguém mais costuma vir.
Se tento regressar tacteando e tropeçando, posso cair fácil no brejo e atolar-me
até dois ou cinco palmos para cima do couro-cabeludo; posso pisar perto de uma
90
jararacussu matadora; posso entranhar-me demais pelo esconso, e ficar perdido
de todo. Onças de-verdade não por aqui; mas um maracajá faminto, ou uma
maracajá mãe, notando-me assim mal-seguro, não darão dois prazos para me
extinguir. Mau! agora é que vejo o ruim de se estar no mato sem cachorro.
(Rosa, 1984, p. 263)
Os narradores que se concentram no seu mundo interior para contar sua própria
história parecem estar sempre em ebulição, pois encenam, de acordo com Reis (1997, p.
358), o “diálogo [...] de um eu com suas próprias dúvidas, tensões, angústias e íntimas
vivências”. Observa-se que o narrador de “São Marcos”, além de empreender um diálogo
consigo mesmo, transfigura os elementos externos, como por exemplo, as espécies animais
e vegetais, em elementos internos lembranças, sentimentos, sensações, medos, sonhos,
desejos, aspirações. Assim, o narrador traz o universo externo para o interior de si próprio.
Pode-se afirmar que o fato de o protagonista de “São Marcos” ser um grande explorador
das espécies animais e vegetais da região, ou do mundo exterior, transforma-o,
progressivamente, em um investigador de sua interioridade. Para o personagem, o mergulho
na mata é, também, um mergulho no interior de si mesmo. Ele fica, momentaneamente,
cego para o que está fora de si, e isso permite que, depois de recuperar a visão, esse exterior
surja, para ele, renovado. Em outras palavras, quanto maior sua perceão, seu
conhecimento e sua astúcia, maior a sua capacidade de autoconhecer-se.
O contador de histórias em primeira pessoa que interioriza o mundo externo para
relatar suas aventuras é, portanto, um narrador complexo. Ele complexifica-se à medida que
retira subsídios do universo exterior para compreender, ordenar, explicar sua interioridade,
como se observa no enfrentamento das dúvidas, angústias, tensões e vivências íntimas por
parte do protagonista de “São Marcos”. Tal aprendizado ocorre, por exemplo, quando o
protagonista entende que estar “num lugar onde ninguém mais costuma vir” pode ser uma
referência ao seu interior, onde ninguém pode, efetivamente, penetrar; quando ele detecta
perigos de morte e consegue evitá-los, pois nota que tanto pode “cair fácil no brejo e atolar-
se”, como pode “pisar perto de uma jararacussu matadora”; quando compreende que a
busca incessante pelo oculto, pelo secreto, pelo misterioso pode levá-lo à loucura e entende
que pode “entranhar-se demais pelo esconso, e ficar perdido de todo”; quando percebe que
os ditos populares têm fundamento não apenas nas ocasiões em que são tomados como
metáforas, mas também em seu sentido literal, como é o caso da expressão “o ruim de se
estar no mato sem cachorro”.
91
O narrador que realiza o processo de complexificação para contar sua história
consegue avaliar o mundo externo, além de tornar-se capaz de elaborar suas vivências
íntimas com base no universo externo a si, tal como aconteceu com o protagonista de “São
Marcos”, que pôde explicar seus medos da morte, da loucura e da solidão –, por meio de
elementos da natureza. Tal situação remete à afirmação de Mikhail Bakhtin, (2004, p. 22),
que, ao analisar as manifestações da linguagem tomando como fundamento as teorias
psicanalíticas de Freud, concluiu que “o pensamento é um espelho duplo, e [...] nunca
reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer; com este, ele reflete também o ser
do sujeito cognoscente”.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo acerca da representação dos contadores de histórias em “Sarapalha”, em
“O burrinho pedrês”, em “Corpo fechado” e em “São Marcos”, quatro dos nove contos que
compõem Sagarana, foi realizado por meio da análise da caracterização dos personagens-
narradores e dos personagens-ouvintes; das técnicas narrativas utilizadas pelos contadores
de histórias os personagens-narradores e o narrador principal para estruturarem suas
narrativas e dos efeitos que esses narradores desejam ou podem provocar nos ouvintes com
quem interagem e em si mesmos.
Constatou-se, ao final da investigação, que são várias as formas de narrar uma
história, inúmeros os modos pelos quais os narradores estruturam suas narrativas, diversos
os motivos que impelem os seres reais e fictícios a contarem sua história e múltiplos os
efeitos que podem ser sentidos pelos envolvidos em um ato de contação de histórias.
Descobriu-se que os narradores não contam suas histórias apenas porque desejam expor sua
interioridade ou sua capacidade de observar o universo externo, mas também porque
buscam entender o mundo que os cerca, compreender a si próprios e compartilhar suas
experiências com os outros. Comprovou-se que, além de se estabelecer uma relação
ingênua entre o narrador e seu ouvinte, naturalmente assegurada por fatores como
confiança, intimidade e cumplicidade, os próprios conteúdos de suas narrações demonstram
possuir um caráter ingênuo, ou seja, aquilo que é contado torna-se único, particular e
valioso para aquele que conta.
Verificou-se que tanto o contador quanto o ouvinte beneficiam-se da prática de
contar histórias: o contador é motivado pela necessidade de falar e sente-se confortado pelo
efeito terapêutico que o ato produz; o ouvinte, por sua vez, pode se identificar com a
história e experimentar o alívio que o efeito catártico provoca. Ao mesmo tempo, ambos
sentem-se renovados pelo efeito estético, que os liberta, momentaneamente, dos
93
constrangimentos e da rotina cotidiana. Evidenciou-se, ainda, que, enquanto algumas
histórias provocam efeitos instantâneos e efetivos nos interlocutores, outras podem passar
despercebidas aos ouvintes no momento em que são contadas e surtirem efeitos apenas
posteriormente. Constatou-se não que um narrador pode assumir vários pontos de vista
para relatar sua história, mas também que uma complexificação no discurso daquele que
se posiciona em primeira pessoa e que realiza um processo de interiorização para contar
suas histórias, em comparação ao que enuncia seu discurso empregando a terceira pessoa e
que procede à exteriorização para relatar suas aventuras.
Verificou-se, simultaneamente, que o contador de casos pode se comprazer em
mostrar que a história é uma construção sua, que ele possui livre arbítrio e que escolhe o
momento em que deve começar ou reiniciar a contação da mesma, sobretudo a fim de
prender a atenção do ouvinte. Descobriu-se, também, que, nos eventos de contação de
histórias representados em Sagarana, os narradores reproduzem narrativas relatadas por
outros narradores e que, não raro, essas narrativas giram em torno do mesmo eixo temático
que a história do narrador principal, dialogando com esta. Percebeu-se, por fim, que o final
dado às historias relatadas pelos personagens e pelo narrador principal, em geral, é
semelhante, e que os contadores preocupam-se mais com a exemplaridade de suas
narrativas e com o efeito ou aprendizado que daí advêm do que, propriamente, com o
destino dos personagens.
Em “Sarapalha”, foram destacados três contadores de histórias. Um deles é o
narrador principal, posicionado em terceira pessoa, que conta ao leitor a história dos dois
primos atacados pela malária, que acabaram rompendo a relação de amizade que os unia
por amarem a mesma mulher. Os outros dois são os próprios personagens da história,
Primo Ribeiro e Primo Argemiro, que se alternam, constantemente, na condição de
narrador e de ouvinte. Na posição de narrador, Primo Ribeiro narrava a Primo Argemiro o
episódio da fuga da ex-esposa Luísa e sentia os benefícios do efeito terapêutico de seu
relato; na condição de ouvinte, Primo Ribeiro ouvia de Primo Argemiro a história de uma
moça que fugiu com um homem muito bonito e vivenciava o efeito catártico, por ver-se
representado na história. Primo Argemiro fez, ainda, uma série de relatos secundários ao
Primo Ribeiro, a maioria dos quais desencadeados pelo primeiro com o intuito de envolver
o segundo em um emaranhado de histórias e de, assim, esconder deste o segredo que o
94
atormentava: seu amor pela ex-esposa do primo. A última dessas histórias, por sua vez, foi
uma busca por redenção, a derradeira atitude de Primo Argemiro para aliviar seu
sentimento de traição diante do primo, mesmo que a revelação de seu segredo
comprometesse a relação entre ambos.
Em “O burrinho pedrês”, foram evidenciados quatro contadores. Um é o narrador
principal, também posicionado em terceira pessoa, que relata ao leitor a desventura de uma
tropa de boiadeiros, por ter confiado num burro ao fazer a travessia de um rio, em um ano
de enchente. Os outros narradores são Tote, Raymundão e João Manico, três personagens
que contam histórias secundárias enquanto conduzem o gado. Observou-se que todas as
histórias secundárias são típicas de boiadeiros e que se aproximam, em sua maioria, da
história principal, pelo fato de abordarem a temática da morte.
Em “Corpo fechado”, destacaram-se dois contadores de histórias, um narrador
testemunha, que conta ao leitor a história do “fechamento do corpo” de Manuel Fulô, e um
narrador protagonista, o próprio capiau, que relatou ao doutor o seu envolvimento com um
grupo de ciganos. Os dois posicionam-se em primeira pessoa para contar suas histórias,
porém concentram-se no mundo exterior para fazê-lo e remetem as ações de suas histórias a
um tempo passado. Observou-se que o narrador principal, o doutor, provavelmente vindo
da cidade grande, relatou sua história porque buscava entender o processo mágico que
proporcionou o fechamento do corpo do capiau; e que o matuto contou sua história ao
forasteiro porque queria libertar-se da fama de bobo, de infantil e de ingênuo. Talvez nesse
conto, mais do que em todos os outros, o narrador faça questão de evidenciar que a história
é uma construção sua e que ele é o “protagonista” da aventura da linguagem que se
processa durante o relato.
Em “São Marcos”, por fim, foram destacados três contadores, João/José, Nhá
Rita Preta e Aurísio Manquitola. O primeiro é o narrador-protagonista, que, além de narrar
a história da perda momentânea da visão, vivenciada por ele em uma de suas visitas à mata
das Três Águas, relata o episódio do duelo verbal que travara com “Quem-Será” no
bambuzal. Os outros dois são personagens-narradores que contam histórias de advertência a
João/José pelo fato de o protagonista não esconder sua antipatia em relação aos
macumbeiros e descrer do poder da magia. Observou-se que João/José não conta
histórias a fim de demonstrar sua interioridade, ou sua capacidade de apreciar e apreender o
95
mundo externo, mas também porque precisa entender o motivo pelo qual perdeu a visão.
Em “São Marcos”, constatou-se, ainda, que algumas histórias não causam efeitos
instantâneos em seus ouvintes. Tal é o caso das histórias de advertência, contadas por
Nhá Rita Preta e por Aurísio Manquitola a João/José, que não alcançaram um grau de
eficácia capaz de deter o protagonista em suas provocações aos feiticeiros, embora, mais
tarde, tenham sido, justamente, essas histórias que levaram o personagem principal a
lembrar-se da oração de São Marcos.
A comparação entre as estratégias narrativas utilizadas pelos narradores principais e
aquelas empregadas pelos personagens-narradores identificados nos quatro contos permitiu
descobrir que os narradores principais de “Sarapalha” e de O burrinho pedrês”, bem como
o doutor de “Corpo fechado” e o protagonista de “São Marcos”, são indivíduos que
possuem erudição e que absorvem a sabedoria inscrita na cultura popular, além de
mesclarem a linguagem-padrão ao modo de falar dos sertanejos, que é submetido, nas
narrativas, a um processo de recriação. Por outro lado, os personagens-narradores Primo
Ribeiro, Primo Argemiro, Tote, Raymundão, João Manico, Manuel Fulô, Sá Nhá Rita Preta
e Aurísio Manquitola são sujeitos que vivem o dia-a-dia do sertão, que compartilham as
crenças do lugar e que utilizam a linguagem coloquial, também transfigurada pelo autor,
que acaba abolindo, em sua obra, as fronteiras entre prosa e poesia. Ao relatar suas
histórias, esses contadores mostram o mundo a que pertencem; revelam suas vivências, suas
particularidades, sua individualidade, enfim, divulgam aquilo que os torna únicos e que
marca sua identidade, e também experiências e aprendizados que adquirem um caráter
exemplar.
Por fim, a análise das estratégias narrativas adotadas nos quatro textos selecionados
e a investigação acerca da exterioridade e da interioridade dos contadores de histórias
revelaram que o narrador posicionado em primeira pessoa realiza um processo de
complexificação em relação ao narrador que se coloca em terceira pessoa. A comparação
entre as diferentes posições assumidas, sobretudo, pelos narradores principais de
“Sarapalha”, de “O burrinho pedrês”, de “Corpo fechadoe de “São Marcos” mostrou que
o narrador complexifica-se à medida que o grau de exposição de sua interioridade aumenta,
pois, além de o seu discurso voltar-se para o mundo exterior, passa a abarcar o interior do
próprio indivíduo. A complexidade do relato do narrador cresce à medida que decresce sua
96
onisciência. Assim, enquanto os narradores principais de “Sarapalha” e de “O burrinho
pedrês” são oniscientes e concentram-se, principalmente, no mundo exterior para narrar
suas histórias, revelando, apenas, um pouco de sua interioridade; o doutor-narrador de
“Corpo fechado”, embora sirva apenas de testemunha para as aventuras de outro
personagem, envolve-se em maior grau nas ações e, ao vivenciá-las em posição secundária,
expõe suas reações diante dos fatos, mostrando distintos aspectos de sua interioridade.
João/José, em “São Marcos”, além de ser o protagonista de seu próprio relato, interioriza o
mundo exterior para contar suas aventuras, além de reviver, com significativa intensidade,
as angústias sentidas no momento em que perdeu a visão, atingindo o monólogo interior e
alcançando o ponto máximo de complexificação do narrador.
97
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