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ELLEN BEATRIZ DE OLIVEIRA PETERS
A relação entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição do
poder familiar
MESTRADO EM LINGÜÍSTICA APLICADA
E ESTUDOS DA LINGUAGEM
PUC-SP
São Paulo
2006
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ELLEN BEATRIZ DE OLIVEIRA PETERS
A relação entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição do poder
familiar
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre em Lingüística Aplicada e Estudos da
Linguagem, sob orientação da Professora
Doutora Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva.
MESTRADO EM LINGÜÍSTICA APLICADA
E ESTUDOS DA LINGUAGEM
PUC-SP
São Paulo
2006
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________________________________________
________________________________________
________________________________________
4
À minha família, em especial, à minha mãe que, com amor, me ensinou a buscar…
5
AGRADECIMENTOS
A todos os colegas, amigos e familiares que de alguma forma contribuíram para a
concretização deste trabalho;
a Maria Cecília Peréz de Souza-e-Silva, pela confiança em meu trabalho, pela
competente orientação e pelo incentivo, principalmente nos momentos mais difíceis;
a Luiz Marine e Maria da Glória di Fanti, que participaram da banca de exame de
qualificação com contribuições valiosas;
a Marcos Cezar e Leila de Freitas, pelo incentivo, pelo apoio e pela ajuda na busca de
novos saberes;
aos colegas do Seminário de Orientação pelas trocas enriquecedoras, que
proporcionaram o meu crescimento como pesquisadora, além de ajudarem nos
momentos mais difíceis desse processo;
aos professores, colegas e funcionários do LAEL, em especial a Maria Lúcia dos Reis,
pelo apoio eficiente e amigo;
a Maria Ieda Almeida Muniz, pela sincera amizade, pelo incentivo nos momentos de
desânimo, pela competente ajuda no desenvolvimento da pesquisa e pelo exemplo de
sabedoria e determinação;
a Maria Inês Otranto, por enriquecer com valiosas sugestões as discussões sobre a
pesquisa;
a Thais Olivetti Ferreira Tadros, pela solidária ajuda nos momentos de dificuldade;
ao IECJ, em especial a Elisa, que acreditou profissionalmente no meu trabalho e
compreendeu minha ausência em função da minha pesquisa;
6
a Capes pela concessão da bolsa flexibilizada que viabilizou os meus estudos na PUC-
SP;
à minha família, especialmente a minha mãe que sempre acreditou em mim e valorizou
meus estudos;
aos meus irmãos, Andréa e Carlos Henrique, e aos meus cunhados, Delson e Cibele, que
me apoiaram durante o processo da dissertação do mestrado;
aos meus sobrinhos, Maria Júlia e Eduardo que, nos momentos mais difíceis, me
trouxeram alegria;
ao Flávio Campello De Luca Jr. que esteve ao meu lado sempre nos momentos felizes e
difíceis que compreendem a realização de uma dissertação de mestrado.
7
RESUMO
Esta investigação tem por objetivos examinar como se dá a relação entre o prescrito e o
real no discurso jurídico de destituição do poder familiar e depreender a(s) ideologia(s)
predominante(s) nessa relação. O objeto de pesquisa – um processo verificatório de
destituição do poder familiar que se encontra arquivado no fórum de uma cidade do
interior de São Paulo – foi desencadeado com a finalidade de averiguar a veracidade da
denúncia de que menores sofriam maus-tratos e abandono impingidos por seus pais. O
quadro teórico para análise é de base enunciativo-discursiva, mais especificamente é
tributário dos estudos de Maingueneau (1987, 1997) associados àqueles sobre o
trabalho, em especial a ergonomia (Guérin et al., 1997, 2001). A análise ocorre na
articulação entre as categorias lingüísticas de discurso relatado, ilha enunciativa ou
textual (Maingueneau, 2002), intertexto (Sant’anna, 2000) e as noções ergonômicas de
prescrito e real advindas de estudos sobre o trabalho e sobre o conceito de ideologia
(Chauí, 1987, 2004). Isso possibilitou constatar que a relação entre o prescrito e o real
no discurso jurídico de destituição do poder familiar realiza-se por meio do
interdiscurso via discurso relatado e as ideologias, que se destacaram nesta relação,
depreendidas foram duas. Uma se refere à existência de um padrão na sociedade quanto
a cuidar bem de um filho independentemente da renda familiar. Caso esse padrão não
seja proporcionado, é preferível que os filhos vivam em abrigo (com o mínimo
necessário à fisiologia humana) do que no berço da família onde há além de
dificuldades financeiras laços afetivos. A outra consiste na situação de pobreza
caracterizar abandono dos filhos pelos pais.
Palavras-chave: relação entre o prescrito e o real; ideologia; análise do discurso.
8
ABSTRACT
This work aims to make analyses between the prescription and the real in the forensic
speech and dismay the ideologies that characterize this relationship. The focus is based
on a process, filed in the forum in a city of São Paulo state, observing the veredict of
accusation that children were treated badly and where abandoned by their parents. The
focus to be analyses is based discursive-enunciative especially from studies
Maingueneau (1987, 1997) and specially the ergonomics (Guérin et al. 1997, 2001).
The analyses accours between Linguistic where the discursive related (Maingueneau,
2002) and “intertexto” (Santa’anna, 2000) and ergonomical notions prescribed and
real, from studies about work and the concept of ideology (Chauí, 1987, 2004). The
analyze could show that the relationship between prescription and real accours through
“interdiscurso” and related discourse and the ideologies that exceeded were two. The
first about the pattern in the society that says that children should be raised by their
families, oven though they face financial problems. It is not possible, it is advisable that
children live in a boarding, house provided with the minimum necessary for than with
the real family where there are careless and no money. The other considers poverty
itself, the real reason that parents abandon their children.
Keywords: relation between the prescribed and the real; ideology; discourse analyses.
9
SUMÁRIO
Introdução 12
Parte I
Estudos da Linguagem, do Trabalho e Aspectos de Legislação
Capítulo 1: A Lingüística Aplicada e a Ergonomia 16
1. O caráter interdisciplinar da lingüística aplicada 16
1.1 A ergonomia – um breve histórico 17
1.2 O distanciamento entre o prescrito e o trabalho real no trabalho 18
a. prescrito ou tarefa
b. trabalho real ou atividade
1.3 A lei: o prescrito no processo verificatório de destituição do poder familiar 21
1.4 A articulação da lei no processo verificatório: o trabalho real 21
1.5 O prescrito e o real no processo verificatório de destituição do poder familiar 23
Capítulo 2: Crianças e Adolescentes na Legislação Brasileira 27
2. A influência das leis portuguesas no Brasil colônia 27
2.1 As constituições do Brasil 28
2.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente: um novo olhar 30
a. A primeira medida oficial sobre cuidados para com a infância carente no Brasil
b. A roda dos enjeitados ou dos expostos
c. Primeiro código de menores: o código Mello Mattos
2.3 O Estatuto da Criança e do Adolescente: um marco na luta pelos direitos 33
Parte II
Caminhos da Pesquisa
10
Capítulo 1: O Objeto da Pesquisa e suas Particularidades 35
1. A demanda: uma preocupação social 35
1.1 Adoção de uma determinada esfera da atividade humana: um requisito para a
pesquisa em ciências humanas 36
1.2 O processo verificatório enquanto gênero discursivo 37
1.3 Contextualização da pesquisa 39
Capítulo 2: Os Princípios Teórico-medolodógicos da Análise do Discurso e o Conceito
de Ideologia 44
2. A análise do discurso 44
2.1 Ideologia 46
a. Questões ideológicas antes de Marx
b A questão da ideologia em Marx
2.2 O conceito de ideologia adotado nesta pesquisa 51
2.3 Trajetória metodológica de análise 53
Capítulo 3: Uma Contribuição da Esfera Jurídica: a Voz do especialista 56
Parte III
Análises
Capítulo 1: As vozes Discursivas no Diálogo Orientado 59
1. Os discursos que constituem o discurso 60
Capítulo 2: As Ideologias na Relação entre o Prescrito e o Real 66
2. As ideologias depreendidas 66
Considerações Finais 69
11
Referências Bibliográficas 71
Anexos 76
Anexo 1: Argumentação do promotor de justiça 71
Anexo 2: Contra-argumentação da advogada da mãe dos menores 82
Anexo 3: Sentença do juiz de direito 86
12
INTRODUÇÃO
A investigação apresentada nesta dissertação de mestrado foi desenvolvida no
Programa de Pós-graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem
(LAEL/PUC-SP). Inserida na linha de pesquisa Linguagem e Trabalho e pertencente ao
grupo Atelier/PUC-SP,
1
este trabalho busca apresentar, por meio da análise da relação
entre o prescrito e o real
2
(Guérin et al., 1997, 2004) no discurso jurídico de destituição
do poder familiar
3
e da depreensão da(s) ideologia(s) (Chauí, 1987, 2004)
predominante(s) nessa relação, reflexões acerca dos direitos legais dos menores
assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do modo como esses
direitos são articulados diante de uma situação conflituosa concreta.
O interesse em abordar menores na pesquisa e a escolha da esfera da atividade
(Bakhtin, 1979, 2000) jurídica justificam-se pela importância do ECA – um marco na
luta pelos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Com efeito, a partir dele os
menores passaram a ser considerados cidadãos, e sua aprovação em 1990
contextualizava uma nova proposta mundial que visava enquadrar crianças e
adolescentes como sujeitos de direito (Ferreira et al.).
Antes de sua implantação, prevalecia o código de menores criado em 1927 para
lidar com as chamadas crianças em situação irregular, conceito utilizado para
caracterizar menores que eram abandonados, viviam na rua, eram filhos ilegítimos ou,
então, deixados nas rodas dos enjeitados ou dos expostos. A sociedade ocupou-se
historicamente desses irregulares de forma filantrópica – numa primeira fase marcada
sobretudo pela ação da Igreja católica e pela ausência do Estado – e, depois,
1
O grupo Atelier Linguagem e Trabalho – sob a coordenação e sub-coordenação, respectivamente, de M.
Cecília P. Souza-e-Silva (LAEL) da PUC-SP e de Décio Rocha (Uerj) – congrega pesquisadores
de diferentes universidades brasileiras (USP, Unisinos, UFPe, Unirio, UFMT e UCPel) e mantém relações
com grupos franceses (APST – Analyse Pluridisciplinaire des Situations de Travail; Grupo L&T
Réseau Langage et Travail; e ERGAPE Ergonomia da Atividade dos Profissionais da Educação). As
atividades desenvolvidas pelo grupo estão voltadas para três vertentes: a) estudo das práticas de
linguagem em situação de trabalho; b) estudo dos discursos sobre o trabalho; c) estudo dos discursos que
remetem à atividade de linguagem em diferentes contextos.
2
Nesta dissertação, prescrito corresponde à lei, ao passo que real à articulação da lei conforme o objetivo
das partes envolvidas no processo.
3
Poder familiar corresponde a um complexo de direitos e deveres concernentes ao pai e à sobre mãe
direcionado ao interesse da família e do filho menor não-
emancipado, que incide sobre a pessoa e o
patrimônio desse filho e servindo como meio para mantê-lo, protegê-lo e educá-lo (Santos Neto, 1994,
p.55).
13
assistencialista ou repressiva, já que a legislação de menores, de 1979, elaborada
durante a ditadura militar, tratava da questão do menor como problema de segurança
nacional, isto é, meninos encontrados na rua, com roupa rasgada ou sujos eram
considerados irregulares e, muitas vezes, recolhidos em instituições de segregação, na
ausência total do conceito de direitos fundamentais ou de proteção integral da infância
(Ferreira et al.).
Em 20 de novembro de 1989, a Assembléia Geral das Nações Unidas,
aprofundando a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, adotou a
Convenção sobre os Direitos da Criança, uma carta magna
4
para as crianças de todo o
mundo. No ano seguinte, o documento foi oficializado como lei internacional e,
atualmente, é ratificado por vários países do mundo (Ferreira et al.).
O ECA nasceu fundamentado na constituição cidadã de 1988 que, em seus
artigos 227
5
e 228
6
, implementando a revogação do Código de Menores, afirma a
4
Correspondente à Constituição (Magalhães et al., 1990, p.176).
5
Artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil (1997): é dever da família, da sociedade e
do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente,
admitida a participação de entidades não-governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência
materno-infantil;
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores
de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente
portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a
facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e
obstáculos arquitetônicos.
§ 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de
fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de
deficiência.
§ 3º - O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no
Art. 7º, XXXIII;
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola;
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional,
igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo
dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida
privativa da liberdade;
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e
subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou
adolescente órfão ou abandonado;
VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente
dependente de entorpecentes e drogas afins.
14
criança como sujeito de direito inimputável, em outras palavras, não responsabilizável
antes dos 18 anos de idade (Ferreira et al.).
O objeto de pesquisa corresponde a um processo verificatório de destituição do
poder familiar que teve seu início e conclusão na década de 1990 e que, hoje, encontra-
se arquivado no fórum de uma cidade do interior de São Paulo.
Uma família composta pelos pais e por nove filhos menores de idade, vivendo
em situação contraditória à lei, foi denunciada. Um guarda municipal e um comissário
de menores foram convocados para averiguarem a denúncia de maus-tratos e abandono
sofridos pelos menores. Depois de confirmada a veracidade da informação, o juiz de
direito solicitou a busca, apreensão e internação dos menores em abrigo e foi instaurado
pelo promotor de justiça o processo verificatório pedindo a destituição do poder familiar
dos pais dos menores.
Conduziu-se o processo verificatório conforme os procedimentos determinados
pelo juiz de direito. Técnicos do judiciário, assistente social e psicólogo foram
solicitados para fazerem um estudo social e psicológico da família; a um médico, sem
vínculo com o poder judiciário, pediu-se um parecer a fim de que fosse avaliada a saúde
dos menores. Concomitantemente, o Estado nomeou uma representante legal para a mãe
dos menores e um representante legal para o pai, os quais atuavam de modo separado
contra a destituição do poder familiar. Na lide
7
o promotor de justiça opunha-se aos
advogados, pois sua função era promover a execução da lei perante o judiciário que,
segundo denúncia, estava sendo descumprida. Com a sentença elaborada pelo juiz de
direito que conduziu e avaliou a verificação da denúncia, o processo foi concluído e as
medidas cabíveis tomadas. Somente o pai dos menores foi destituído do poder familiar.
§ 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
§ 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de
sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
§ 7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no
Art. 204.
6
Artigo 228 da Constituição da República Federativa do Brasil (1997): são penalmente inimputáveis os
menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
7
Segundo o dicionário jurídico, lide corresponde à luta judicial, litígio, questão forense (Magalhães et al.,
1990).
15
O objetivo do processo verificatório é averiguar a veracidade do conflito que, em
discordância com a lei, o originou, a fim de assegurar o direito que não está sendo
respeitado.
Para desenvolvermos a pesquisa partiremos da análise baseada nos estudos da
linguagem articulados a noções dos estudos sobre o trabalho. A complexidade de
saberes envolvidos nos estudos sobre o trabalho marca a interdisciplinaridade do grupo
Atelier. Nesta pesquisa, temos como referência, na teoria da linguagem, a perspectiva
dos estudos de Maingueneau (1987, 1997) e, nos estudos sobre o trabalho, os conceitos
ergonômicos de prescrito e real (Guérin et al., 1987, 2004).
A presente pesquisa está organizada em três partes, seguidas das Considerações
Finais. A primeira – Estudos da Linguagem, do Trabalho e Aspectos da Legislação
divide-se em dois capítulos: um apresenta a corrente que contextualiza a concepção de
lingüística aplicada compreendida nesta pesquisa, bem como a contribuição da
ergonomia com as noções de prescrito e real, deslocadas neste trabalho como sendo
respectivamente a lei e a sua articulação diante do objetivo das partes envolvidas no
processo verificatório de destituição do poder familiar; o outro aborda as leis no Brasil,
do período colonial até a época contemporânea, a fim de contextualizar o ECA.
A segunda – Caminhos da Pesquisa – divide-se em três capítulos. O primeiro
apresenta o objeto de pesquisa, ou seja, o processo verificatório de destituição do poder
familiar e suas particularidades; o segundo expõe a perspectiva da teoria enunciativo-
discursiva (Maingueneau, 1987, 1997) empregada, as categorias lingüísticas de análise
– discurso relatado (Maingueneau, 2004), ilha enunciativa ou textual (Maingueneau,
2002) e intertexto (Sant’anna, 2000) –, o conceito de ideologia (Chauí, 1980, 2004) bem
como a metodologia adotadas; o terceiro aborda a contribuição do especialista da área
jurídica para o desenvolvimento da pesquisa.
Finalmente, a terceira parte – Análises – organiza-se em dois capítulos. Um
apresenta, com base nas categorias dos estudos da linguagem (discurso relatado, ilha
enunciativa ou textual, intertexto) bem como nas noções ergonômicas de prescrito e
real, as análises de como se concretiza a relação entre o prescrito e o real no discurso
jurídico de destituição do poder familiar; o outro se dedica à depreensão da(s)
ideologia(s) predominante(s) nessa relação.
Os objetivos desta investigação são retomados, com a finalidade de recuperar
algumas reflexões abordadas nas Análises.
16
Parte I
Estudos da Linguagem, do Trabalho e Aspectos da Legislação
Esta parte ocupa-se, no primeiro capítulo, da corrente que contextualiza a
concepção de lingüística aplicada compreendida nesta investigação, bem como as
noções ergonômicas de prescrito e real e seus deslocamentos no objeto de pesquisa; no
segundo capítulo, aborda-se o caminho percorrido pela legislação brasileira que
culminou no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Capítulo 1
A Lingüística Aplicada e a Ergonomia
1. O caráter interdisciplinar da lingüística aplicada
Com o propósito de apresentar a vertente que contextualiza a concepção de
lingüística aplicada compreendida nesta pesquisa, desenvolvida no Programa de Pós-
graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL/PUC-SP)
propomos, inicialmente, a diferenciação entre lingüística “pura” e lingüística aplicada
(LA) para, em seguida, expormos as três vertentes da LA identificando em qual delas se
encontra nossa investigação.
A lingüística “pura” e a LA destinam-se a finalidades distintas. A primeira
propõe-se a “resolver problemas lingüísticos, relacionados com algum dos subsistemas
da linguagem” (Celani, 1992, p.21), ao passo que a segunda empenha-se em solucionar
“problemas humanos que derivam dos vários usos da linguagem” (ibidem).
Em decorrência dos objetivos distintos de ambas, em oposição ao trabalho dos
lingüistas, o dos lingüistas aplicados caracteriza-se pela dimensão essencialmente
dinâmica (Celani, 1992), isto é, os problemas para os quais estes últimos se voltam
possuem relevância social suficiente para exigirem respostas teóricas que tragam ganhos
a práticas sociais e a seus participantes na busca de uma melhor qualidade de vida, em
um sentido ecológico (Rojo, 1999).
Entretanto, falar em LA implica considerá-la não como uma única corrente, mas
sim, de acordo com as interpretações mais comumente encontradas sobre o termo, como
17
correntes. A primeira corrente interpretativa entende a LA como sinônimo do estudo
científico dos princípios e da prática do ensino/aprendizagem. A segunda não considera
a LA como uma ciência natural, mas, sim, como uma ciência aplicada; ao lingüista
aplicado cabe mediar as descrições da lingüística e de outras disciplinas. A terceira
apreende a LA como o ponto onde o estudo da linguagem intersecciona com outras
disciplinas, atribuindo, dessa forma, à LA um caráter multidisciplinar para a solução de
problemas relacionados à linguagem (Celani, 1992).
Esta investigação enquadra-se na terceira corrente, pois busca subsídios na
ergonomia e no direito para analisar a relação entre o prescrito e o real (Guérin et al.,
1997, 2004), no discurso jurídico de destituição do poder familiar, com a finalidade de
compreender, pela linguagem, essa relação.
Nesta pesquisa, de um lado, a ergonomia contribui com as noções de prescrito e
real: deslocadas para a esfera jurídica como sendo, respectivamente, a lei e a sua
articulação diante dos objetivos dos sujeitos envolvidos na lide. De outro, as
especificidades da esfera jurídica, necessárias para o desenvolvimento da investigação,
provém da área do direito.
1.1 A ergonomia – um breve histórico
A fim de introduzir a noção de prescrito e real, apresentaremos um breve
histórico da ergonomia e, em seguida, exporemos tais conceitos, deslocando-os para a
esfera jurídica.
Durante a Segunda Guerra Mundial, na Grã-Bretanha, a Defesa Nacional
britânica, visando diminuir os esforços dos homens em campo de batalha por meio da
adaptação das máquinas e dos instrumentos de guerra às características humanas, reuniu
pesquisadores das áreas da fisiologia, da antropometria e da psicologia científica,
filiados ao behaviorismo, a fim de articularem seus conhecimentos em prol do objetivo
da convocação (França, 2002).
Com base nessa primeira iniciativa de estudo do ser humano em suas atividades,
foi criada, no início da década de 1950 na Inglaterra, a Sociedade de Pesquisa
Ergonômica, que marcou o surgimento oficial da ergonomia como uma disciplina
aplicada com o propósito de adaptar a máquina ao homem. Tal vertente ergonômica,
também conhecida por primeira ergonomia, dedica-se à aplicação de conhecimentos
18
científicos sobre o organismo humano na concepção de dispositivos técnicos (França,
2002).
Paralelamente, na França, desenvolvia-se uma segunda vertente ergonômica – a
ergonomia situada, que consistia na análise das atividades do trabalho como fonte e
método de construção de saberes sobre ele (Guérin et al., 1997, 2004).
A análise do trabalho originou-se com a publicação, em 1955, da obra de
Faverge e Ombredane que também contribuiu com a ampliação do campo da psicologia
do trabalho, até então centrada na avaliação das aptidões. Tais autores mostraram que,
para compreender o trabalho, era preciso observá-lo onde ele acontecia e perguntar aos
operadores “o que há a fazer e como o fazem” (Guérin et al., 1997, 2004).
Outra cooperação relevante dada aos estudos ergonômicos foi a de Wisner que
uniu a fisiologia e a psicologia do trabalho na análise da atividade, situando-a em suas
relações com o funcionamento técnico, social e econômico empresarial (Guérin et al.,
1997, 2004). Em 1954, foi mencionada por Wisner a criação do primeiro laboratório de
ergonomia em meio industrial francês sem, no entanto, adotar a palavra ergonomia
(França, 2002).
Nesta pesquisa, a ergonomia é entendida como:
...
um conjunto de conhecimentos sobre o ser humano no trabalho e uma prática
de ação que relaciona intimamente a compreensão do trabalho e sua
transformação (Souza-e-Silva, 2003, p.339).
A contribuição ergonômica para esta dissertação traduz-se pelo conjunto de
conhecimentos sobre o ser humano no trabalho, mais precisamente pelos conceitos de
prescrito e real (Guérin et al., 1997, 2000), a fim de compreender uma relação
desenvolvida no trabalho do promotor de justiça, da advogada da mãe dos menores e do
juiz de direito.
1.2 O distanciamento entre o prescrito e o trabalho real no trabalho
Baseando-se em observações realizadas em organizações tayloristas, ou seja, em
um trabalho nas linhas de montagem que se acreditava repetitivo – o qual pressupunha a
crença na racionalização dos processos de produção por meio do controle do tempo e do
19
ritmo de trabalho – foi possível a percepção pelos ergonomistas da enorme variabilidade
a que está sujeito o trabalho humano (Souza-e-Silva, 2002).
Dessa forma, o distanciamento existente entre o que era prescrito pela
administração e o que era efetivamente realizado pelo trabalhador foi percebido,
ocasionando a oposição entre trabalho prescrito ou tarefa e trabalho real ou atividade,
base da vertente dos estudos ergonômicos que escolheram a análise da atividade como
fonte e método de construção de saberes sobre o trabalho (Souza-e-Silva, 2002).
De acordo com a ergonomia (Guérin et al., 1997, 2004), a abordagem do
trabalho nas diversas esferas da atividade humana (Bakhtin, 1979, 2000) implica três
realidades. A primeira delas corresponde à tarefa como resultado antecipado fixado em
condições determinadas; a segunda, à atividade de trabalho como realização da tarefa; e
a terceira, ao trabalho como unidade da atividade de trabalho, das condições reais e dos
resultados efetivos dessa análise (Guérin et al., 1997, 2004). Entretanto, na investigação
em desenvolvimento, o trabalho é abordado na relação do prescrito com o real (a
limitação de tempo não nos possibilita enfoques de outras dimensões).
a. Prescrito ou tarefa
Apesar de relacionar-se de modo estreito ao trabalho por meio de suas condições
e de seus resultados, a tarefa difere dele, pois a relação entre ambos vai do objetivo à
realidade, isto é, as condições determinadas não são as condições reais e o resultado
antecipado não é o resultado efetivo (Guérin et al., 1997, 2004).
Tarefa corresponde a um conjunto de objetivos dado aos trabalhadores
8
e a um
conjunto de prescrições definidas externamente para atingir esses objetivos particulares
que, conforme o caso, integra em maior ou menor grau a definição de modos
operatórios, instruções e normas de segurança, em suma, consiste em um conjunto de
elementos a levar-se em conta para atingir objetivos fixados (Guérin et al., 1997, 2004).
Por não considerar, muitas vezes, as particularidades dos trabalhadores e o que
pensam sobre as escolhas feitas e impostas, a tarefa é exterior a eles, mas passível de
parcial remodelamento com o decorrer do tempo (Guérin et al., 1997, 2004).
8
O termo operador, utilizado na ergonomia, foi substituído por trabalhador a fim de ampliar a atuação
profissional de quem desenvolve a atividade de trabalho.
20
Embora a prescrição seja imposta ao trabalhador a fim de determinar e
constranger sua atividade ela é
... um quadro indispensável para que ele possa operar: ao determinar sua
atividade, ela o autoriza. (Guérin et al., 1997, 2004, p.15)
As prescrições, por corresponderem a objetivos a serem alcançados e caminhos a
serem percorridos pelos trabalhadores com a finalidade de atingirem tais objetivos, são
essenciais no trabalho real porque, além de dizerem o que pode e deve ser feito, elas o
caracterizam.
b. Trabalho real ou atividade
A atividade corresponde a um conjunto de fenômenos fisiológicos, psicológicos,
psíquicos entre outros que caracterizam o ser vivo cumprindo atos resultantes do
movimento do homem com seu corpo, pensamento, desejos, representações e história
voltados para um objetivo (Guérin et al., 1997, 2004).
Baseando-se no que é prescrito pela empresa, o trabalhador desenvolve sua
atividade em tempo real. Assim, a atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à
situação real de trabalho. A manifestação concreta da contradição sempre presente no
ato de trabalho consiste na distância entre o prescrito e o real (Guérin et al., 1997,
2004).
O trabalho é caracterizado não pela atividade em si, mas pela maneira como os
resultados são obtidos, pelos meios utilizados e por sua finalidade. Possui um caráter
duplo, pessoal e socioeconômico, segundo o ângulo enfocado, o do trabalhador ou o da
empresa (Guérin et al., 1997, 2004).
A pesquisa que apresenta a análise do trabalho como tema central confronta-se
... com a singularidade de uma pessoa que, no ato profissional, põe em jogo a
sua vida pessoal (história, experiência profissional e vida extraprofissional) e
social (experiência na empresa, identidade e reconhecimento profissional). Mas,
ao mesmo tempo defronta-se com o modo como essa singularidade fundamental
é objeto de uma gestão sócio-econômica por parte da empresa: política social e
gestão dos recursos humanos tendo por “objeto” os trabalhadores, as escolhas
das condições e objetivos de produção determinando o uso social dessa
população.
(Guérin et al., 1997, 2004, p.17)
21
Dessa perspectiva, para analisar o trabalho é preciso considerar a vida pessoal e
social do trabalhador que são trazidas à tona no ato profissional.
Esta investigação, embora situada na linha de pesquisa linguagem e trabalho,
não se dedica a uma análise do trabalho stricto sensu, pois, ao propormos uma análise
documental, não examinamos algumas questões sobre as quais somente o trabalhador
pode falar, uma vez que são inacessíveis no objeto de pesquisa escolhido – um processo
verificatório de destituição do poder familiar.
1.3 A lei: o prescrito no processo verificatório de destituição do poder familiar
Por ser imposta exteriormente visando determinar e constranger as ações
humanas nas sociedades que possuem regime constitucional, consideramos aqui a lei
um prescrito, o qual será analisado na sua relação com o real.
A lei é uma norma de conduta estabelecida pelo poder público com a finalidade
de conduzir o indivíduo na sociedade (Estevão, 1988).
Segundo o artigo 5 § II da
Constituição da República Federativa do Brasil:
Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei.
Embora a lei, aparentemente, possua uma certa estabilidade, isto é, pareça clara
e objetiva, à medida que se relaciona com uma situação concreta envolvendo seres
humanos, ela passa a ganhar desdobramentos e interpretações conforme é articulada.
Tal articulação da lei, no processo verificatório, é denominada trabalho real.
1.4 A articulação da lei no processo verificatório: o trabalho real
A argumentação, a contra-argumentação e a sentença encontradas no processo
verificatório de destituição do poder familiar correspondem, na pesquisa em
desenvolvimento, ao trabalho real. O promotor de justiça, a advogada da mãe dos
menores e o juiz de direito, ao desempenharem suas funções como trabalhadores em
tempo real, diante de uma situação específica, guiados pelos prescritos da lei e pelos
22
específicos de seus cargos, desenvolvem por meio da linguagem verbal em forma de um
documento (processo verificatório), seus trabalhos.
Argumentar é um modo específico de raciocinar que procede por
questionamentos sucessivos, razão pela qual alguns autores da Antigüidade também
denominaram a parte do discurso retórico concernente à argumentação de questiones.
No sentido jurídico, a palavra é usada, sobretudo, em termos de alegar, trazer como
argumento (Alves, 2002).
Admitindo-se que todo problema trazido à deliberação jurídica tem o caráter de
um conflito, isto é, alternativas incompatíveis que pedem decisão, o procedimento
argumentativo chamado translatio inicia, geralmente, por questionar a consistência do
conflito. Trata-se de um questionamento prévio, condicionante da argumentação
subseqüente que tem como finalidade verificar se há mesmo um conflito e se ele é
jurídico (Alves, 2002).
Constatado que o conflito existe e é de natureza jurídica, questionam-se as
consistências fáticas das alegações estruturando, de um lado, as posições de ataque e
argumentação, e, de outro, as de defesa e contra-argumentação. Essa parte é chamada de
conjectural (Alves, 2002).
Em decorrência das posições de ataque e defesa, gera-se um procedimento
argumentativo nomeado definitio que consiste na proposição de outro objeto a fim de
modificar o conteúdo do fato, em outras palavras, ocorre uma tentativa de cada uma das
partes de demonstrar convincentemente sua definição, recorrendo a argumentos
referentes à intenção da lei ou do legislador, ao uso lingüístico geral, à etimologia e a
critérios axiológicos dominantes na cultura (Alves, 2002).
Produzidas as provas pretendidas pelas partes ou determinadas pelo juiz,
encerra-se essa fase (Alves, 2002). Trabalhando com os elementos de convicção
colhidos no processo, o juiz profere a decisão que porá fim ao processo jurídico,
procurando garantir a paz social e a supremacia da lei (Magalhães et al., 1991).
A sentença é, dos atos do juiz, o mais importante e o de maior relevância,
porque coroa todo o procedimento, constituindo-se no último ato, com o qual o juiz
termina o ofício jurisdicional.(Carreira Alvim, 1989, 2003, p.279)
Ao sentenciar, o juiz de direito põe fim à atividade jurisdicional do Estado,
solucionando a lide, mediante a aplicação da lei ao caso concreto.
23
1.5 O prescrito e o real no processo verificatório de destituição do poder familiar
A relação entre o prescrito (lei) e o real (articulação da lei no objeto de pesquisa)
será apresentada, neste ponto, para que se examine seu desencadeamento levando-se em
consideração o objetivo dos indivíduos envolvidos no processo verificatório. As
análises dessa relação, com base na linguagem, encontram-se na terceira parte da
dissertação.
Será enfocada em duas instâncias a relação entre o prescrito e o real. A primeira
analisará a articulação da lei conforme o interesse das partes envolvidas na lide, na
argumentação do promotor de justiça e na contra-argumentação da advogada da mãe
dos menores, ao passo que a segunda apreciará a articulação da lei na sentença do juiz
de direito – embora não seja parte, ele é indispensável no processo. Cabe-lhe, como
sujeito imparcial (Carreira Alvim, 1989, 2003),
... colocar-se no processo, numa posição eqüidistante das partes, para poder
mediante aplicação do direito objetivo,
9
solucionar com justiça o conflito de
interesse que gerou a lide (Carreira Alvim, 1989, 2003, p.198).
Ainda que o termo sujeito imparcial tenha sido empregado na obra de Carreira
Alvim, desenvolvida na esfera jurídica, faz-se necessária uma observação dado a
pesquisa situar-se no campo da lingüística aplicada e ter como objeto de análise a
linguagem concretizada no processo verificatório.
Do encontro de posições avaliativas estabelece-se com a palavra do outro
relações de sentido, ou seja, relações que geram significação responsiva (Faraco, 2003,
2006). Portanto, se houvesse imparcialidade no diálogo orientado pelo juiz, na lide,
provavelmente esta última não existisse.
A imparcialidade em sentenciar pode ser entendida pelo princípio de exotopia
(Bakhtin, 1979, 2000) que “significa desdobramento de olhares a partir de um lugar
exterior” (Amorim, 2003) juntamente com o artigo 151 da lei 8.069/90:
10
Compete à equipe interpessoal, dentre outras atribuições que lhe forem
reservada pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudo,
ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de
9
Corresponde a norma de conduta imposta aos indivíduos, cujo respeito é considerado pela sociedade
como a garantia do interesse comum (Duguit, 2003).
10
A lei 8.069/90 compreende o Estatuto da Criança e do Adolescente.
24
aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a
imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação
do ponto de vista técnico.
A equipe interpessoal,
11
um órgão de auxílio de assessoramento da Justiça da
Infância e da Juventude, tem por finalidade fornecer subsídios por escrito e formalmente
à autoridade judiciária, com o objetivo de que esta possa apreciar o caso alicerçada em
provas de natureza técnica, além de outras produzidas no decorrer do procedimento
verificatório. Tal equipe é basicamente composta por assistentes sociais e psicólogos,
mas nada impede que profissionais com formação universitária em outra área também
interajam (Mônaco da Silva, 1994).
No caso do processo verificatório (objeto de pesquisa), além de assistente social
e psicólogo do judiciário, a equipe interpessoal foi constituída por um médico.
A fim de deslocar-se para um lugar exterior que permita ao sujeito ver algo que
ele próprio não pode ver, pois está impregnado de valores, o juiz solicita à equipe
interpessoal subsídios para que possa julgar pelas provas técnicas, e não apenas pelas
provas contidas no processo que podem ser tomadas conforme seus valores.
Note-se, a seguir, a articulação do artigo 23 da lei
8.069/90 conforme o interesse
das partes envolvidas no processo verificatório de destituição do poder familiar.
O artigo 23 da lei 8.069/90 rege que
A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo
suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder.
Parágrafo único. Não existindo outro motivo, que por si só autorize a
decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família
de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de
auxílio.
Entretanto, dependendo da posição ocupada pela parte no processo, isto é, da
finalidade a que se propõe cada um dos profissionais, a lei é articulada a favor de seu
interesse.
Conforme o artigo 201 da lei 8.069/90 “compete ao Ministério Público
promover e acompanhar ... os procedimentos de suspensão e de destituição do poder
familiar ...”; portanto, cabe ao promotor de justiça, representante do Ministério Público,
solicitar a instauração do processo verificatório com base na denúncia realizada contra
11
Também conhecida por assistentes do judiciário.
25
os pais dos menores, de maus-tratos e abandono, e, se necessário, pedir a destituição do
poder familiar deles.
De acordo com a função que desempenha nesse processo verificatório de
destituição do poder familiar, o promotor público argumenta com base no artigo 23 da
lei 8.069/90:
Ademais, pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos e
abandono, além do que, conforme a fotografia que está nos autos, a criança
pequena estava sem fraudas (sic!) ou roupas de baixo com suas partes pudentas
(sic!) em contato com a terra, germes e excrementos de animais. (ver Anexo 1,
p. 71)
Por sua vez, a advogada da mãe dos menores possui a função de representar
legalmente sua cliente defendendo o seu interesse de não ser destituída do poder
familiar, conforme o artigo 206 da lei 8.069/90:
A criança ou o adolescente, seus pais ou responsável ... que tenha
legítimo interesse na lide poderá intervir nos procedimentos de que trata esta lei,
através de advogado ...
Parágrafo único. Será prestada assistência judiciária integral e gratuita
àqueles que dela necessitarem.
O artigo 23 da lei 8.069/90, utilizado na argumentação do promotor de justiça, é
novamente empregado, agora na contra-argumentação da advogada da mãe dos
menores; entretanto, sua articulação ocorre de forma diferente.
E se pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos e abandono,
como menciona a inicial, estes não restaram provados nos autos, o que
realmente não pode ocorrer, a pobreza motivar a destituição do pátrio poder, em
especial quando existe amor, carinho, dedicação da mãe para com os filhos e
cuidados essenciais à criação e boa formação. (ver Anexo 2, p. 82)
Se na argumentação do promotor de justiça o artigo 23 da lei 8.069/90 é
articulado de tal forma que o modo como são cuidados os menores por seus pais
caracteriza maus-tratos e abandono e não ausência de recursos materiais da família, na
contra-argumentação da advogada da mãe dos menores o mesmo artigo, da mesma lei, é
articulado como não sendo justificativa para a destituição do poder familiar. A situação
econômica da família dos menores não pode justificar tal destituição, afinal eles vivem
bem, conforme constatado nos autos do processo, com os poucos recursos que possuem.
26
Da perspectiva da linguagem, ao sentenciar o juiz de direito desempenha a
função de sujeito imparcial. Segundo o artigo 157 da lei 8.069/90, o juiz pode, havendo
motivo grave, decretar a suspensão do poder familiar; portanto, cabe-lhe, no decorrer do
processo, verificar se há motivo grave para destituir ou não os pais dos menores ou um
deles do poder familiar. Apropriando-se do artigo 23 da lei 8.069/90 o juiz de direito
sentencia articulando-o da seguinte forma:
... optando-se pela via excepcional da destituição somente quando demonstrada
a inaptidão efetiva dos pais para o exercício do pátrio poder, o que não pode ser
presumido apenas pela situação sócio-econômica destes.
Em citação ao E. Tribunal de Justiça:
... tanto é assim que o artigo 23 do Estatuto da criança e do adolescente dispõe
que a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente
para a perda ou suspensão do pátrio poder. (Relator: Ney Almada – Apelação
Cível n. 19.192-0 – Dracena – 28.07.94). (ver Anexo 3, p. 86)
Na sentença, a destituição do poder familiar, segundo o artigo 23 da lei 8.069/90,
não pode acontecer em virtude da pobreza – nas palavras do juiz, da situação
socioeconômica familiar.
Embora a lei, por possuir caráter de generalidade e de obrigatoriedade,
12
aparente clareza e objetividade, quando ela deixa a abstração conceitual para se
concretizar na articulação, em virtude de uma controvérsia, fica evidente a necessidade
de uma intervenção desvinculada de interesses do contexto conflituoso, que aplique a lei
do modo mais coerente.
12
Conforme o dicionário jurídico, a lei é definida como norma jurídica escrita, emanada do órgão
competente do Estado, com caráter de generalidade e de obrigatoriedade (Magalhães et al.,
1991).
Formatado
27
Capítulo 2
Crianças e Adolescentes na Legislação Brasileira
Este capítulo propõe-se a abordar as crianças e adolescentes na legislação
brasileira, já que o objeto de pesquisa foi desencadeado em virtude da denúncia de que
crianças e adolescentes de uma família sofriam maus-tratos e abandono impingidos
pelos pais.
Entretanto, se tratássemos somente da lei 8.069/90, que corresponde ao Estatuto
da Criança e do Adolescente, desprezando-se o percurso das leis no Brasil, deixaríamos
de lado a justificativa da importância deste estatuto para a infância e juventude
brasileiras.
Este capítulo divide-se em duas partes. A primeira delas apresenta a influência
das leis portuguesa no Brasil colônia e as constituições brasileiras com suas principais
características. A segunda faz um breve resgate da construção histórica da categoria da
infância e juventude, seguida do primeiro Código de Menores e do Estatuto da Criança
e do Adolescente.
2. A influência das leis portuguesas no Brasil colônia
No princípio da colonização portuguesa do Brasil, estava em vigência em
Portugal as ordenações afonsinas que, posteriormente, foram substituídas pelas
ordenações manuelinas e, estas últimas, pelas ordenações filipinas. Todavia, a divisão
do território brasileiro em capitanias impossibilitava a aplicação das leis, pois para tanto
seria necessário um Estado centralizado. A efetiva aplicação de legislação no Brasil
começou a partir dos governos gerais com as ordenações filipinas (Silva, 1976, 2003).
Com a independência portuguesa, os códigos visigóticos e os cânones da Igreja
foram substituídos pela legislação foral, isto é, leis adotadas pelas diversas regiões do
Reino que se baseavam em costumes locais. As primeiras leis gerais foram elaboradas
por dom Afonso II, em 1211, e por dom Afonso III, em 1251. Nessa época, a partir da
publicação das decretais de Gregório IX, o direito canônico adquiriu forma definitiva e
o romano renasceu pelas obras de estudiosos do direito em Bolonha (Silva, 1976, 2003).
O direito romano encontrava-se em vigor durante o reinado de dom João I
(1384-1433), quando este determinou a reforma e compilação das leis num corpo
28
orgânico. A compilação tornou-se pública, em 1446, sob o reinado de dom Afonso V. A
tal compilação deu-se o nome de ordenações afonsinas (Silva, 1976, 2003).
Em 1505, dom Manuel determinou uma revisão nas ordenações afonsinas
reeditando-as e promulgando-as em 1521, a partir de então, nomearam-se ordenações
manuelinas (Silva, 1976/2003).
Uma reforma legislativa, levada a cabo por Filipe II, derivou-se do domínio da
Espanha sobre Portugal, em 1580. Tal reforma na legislação vigente desembocou numa
codificação denominada ordenações filipinas, que vigoraram até a reconquista da
independência portuguesa (Silva, 1976, 2003).
2.1 As constituições do Brasil
O Brasil teve, desde sua independência, sete constituições, promulgadas em
1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. Segue-se uma síntese dos pontos principais
de cada constituição a fim de que seja possível salientar propostas e/ou reformulações
realizadas conforme a necessidade de adequá-las à realidade brasileira e às influências
mundiais no momento de sua elaboração.
a. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824
Foi outorgada, isto é, imposta verticalmente. Estabeleceu a monarquia
constitucional no Brasil juntamente com o voto censitário e a criação do poder
moderador, o qual conferia ao imperador a competência para intervir nos poderes
executivo, legislativo e judiciário (Silva, 1976, 2003).
Com a queda do Império e a proclamação da República em 1889, o país passou a
ser regido por meio dos decretos republicanos até a promulgação da primeira
constituição republicana (Silva, 1976, 2003).
b. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de
1891
Celebrava o federalismo e o presidencialismo segundo o modelo norte-
americano e adotava uma formulação estritamente liberal no que concerne à definição
de direitos individuais e sociais. O voto era, em princípio, universal, mas excluía os
29
analfabetos e os impedimentos burocráticos restringiam o alcance do princípio da
universalidade. É considerada uma constituição sintética por apresentar 92 artigos
(Silva, 1976, 2003).
c. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934
Primeira constituição social. Propuseram-na com a finalidade de redemocratizar
o país após a Revolução de 30; ela foi marcada pelo rompimento com as tradições
liberais no tocante aos direitos sociais e à intervenção do Estado na economia (Silva,
1976, 2003).
d. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937
Também denominada de constituição “polaca” em razão da inspiração fascista.
Marca a implantação do regime autoritário do Estado Novo, suas disposições abrigam,
entretanto, um extenso rol de direitos sociais e trabalhistas dentro da concepção
corporativista (Silva, 1976, 2003).
e. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 28 de setembro de 1946
Inaugura a primeira experiência efetivamente democrática da história do Brasil
ao estabelecer as bases jurídicas do Estado de direito e ao conferir independência aos
poderes legislativo e judiciário. Todavia, manteve alguns traços distintivos do Estado
Novo, como o corporativismo (Silva, 1976, 2003).
f. Constituição do Brasil, de 24 de janeiro de 1967
Documento mediante o qual o regime militar, iniciado em 1964, tentou
institucionalizar-se. Nele sobressai a concentração de poderes nas mãos do executivo
agravada pela emenda constitucional nº. 1 de 17 de outubro de 1969 (Silva, 1976,
2003).
g. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988
Estabeleceu os parâmetros legais do regime democrático iniciado em 1985. Suas
definições de direitos humanos e coletivos foram inovadoras, assim como sua extensão
e o caráter detalhista que celebrou os direitos sociais. A forma regulamentadora da
ordem econômica também foi modificada e a promoção de transferência de receitas
30
tributárias aos estados da federação foi proposta, sem precedentes na história do país.
Corresponde à atual constituição (Silva, 1976, 2003).
O levantamento histórico das leis no Brasil realizado por ora mostra como os
primeiros prescritos vigentes, tanto as ordenações portuguesas quanto a primeira
constituição brasileira, não tinham preocupação com a realidade do país, nem
demonstravam engajamento nela. Afinal, as ordenações portuguesas foram impostas ao
Brasil, apesar das diferenças existentes entre colonizador e colonizado, e a primeira
constituição brasileira – a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 – foi
formulada em razão da dissolução da assembléia constituinte por dom Pedro I, que não
aceitou a redução do poder imperial por ela proposta.
A síntese das várias constituições apresenta o percurso traçado pela legislação
brasileira de modo que haja uma certa contextualização do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), lei 8.069/90, que garante os direitos e deveres sociais para a
infância e juventude.
2.2 O Estatuto Criança e do Adolescente: um novo olhar
Com o intuito de abordarmos o ECA, apresentaremos um breve histórico da
criança e do adolescente no Brasil, a partir da colonização, organizado em três partes.
Uma delas compreende a primeira medida oficial sobre cuidados para com a infância
carente no Brasil; outra se refere à roda dos enjeitados ou dos expostos; e a última versa
sobre o primeiro código de menores: o código Mello Mattos.
a. A primeira medida oficial sobre cuidados para com a infância carente no Brasil
Em 1553, o rei dom João II determinou que as crianças órfãs, encontradas no
Brasil, tivessem sua alimentação garantida pelos administradores da colônia. Essa foi a
primeira medida oficial sobre cuidados para com a infância carente no Brasil (Ferreira
et al.).
Nessa época, as crianças ocupavam uma posição estratégica na conquista do
Brasil pelos portugueses em razão da capacidade de aprenderem um novo idioma mais
rapidamente que os adultos. Serviam, assim, como intérpretes das línguas indígenas.
Quase dois séculos depois ainda era atribuída a elas essa mesma função, tanto que, em
31
1726, consta em registros históricos o envio ao Brasil de uma legião de órfãos
portugueses, que passaram a ser conhecidos como meninos-língua (Ferreira et al.).
b. A roda dos enjeitados ou dos expostos
Em 1730, com a criação das santas casas, o Brasil colônia importou um outro
costume português: a roda dos expostos ou dos enjeitados que consistiam em uma porta
giratória, acoplada ao muro da instituição, com uma gaveta onde as crianças enjeitadas
eram depositadas em sigilo, ficando as mães no anonimato. Geralmente, o motivo de tal
gesto era uma gravidez indesejada, mas também a pobreza podia levar as mães a
desfazerem-se dos filhos de tal maneira (Ferreira et al.).
As rodas foram instituídas para evitar a prática do aborto e do infanticídio, bem
como para tornar um pouco menos cruel o próprio abandono. Antes delas, os recém-
nascidos eram deixados em portas de igrejas ou na frente de casas abastadas, e muitos
acabavam morrendo antes de serem encontrados (Ferreira et al.).
Para cuidar dos enjeitados, as santas casas recorriam a amas-de-leite
remuneradas, o que ensejava muitas fraudes e abusos. Havia mães que depositavam seus
filhos na roda dos enjeitados, oferecendo-se posteriormente para tratar deles mediante
pagamento (Ferreira et al.).
Muitas amas-de-leite não declaravam a morte de uma criança à santa casa para
continuarem recebendo seus salários. Estas eram contratadas por três anos, mas com
incentivos para que mantivessem a criança para sempre, pois quando o menor
completasse sete anos poderia ser explorado pela ama (Ferreira et al.).
Todavia, nem todas as amas se interessavam por esse tipo de arranjo e grande
parte das crianças acabava perambulando pelas ruas. A fim de tentar contornar a
situação, as rodas encaminhavam as crianças para famílias interessadas na mão-de-obra
infantil. Os meninos tornavam-se muitas vezes aprendizes de ferreiro, sapateiro,
balconistas, ao passo que as meninas passavam a trabalhar como empregadas
domésticas (Ferreira et al.).
O sistema da roda dos enjeitados só foi extinto em definitivo na década de 1950.
Esse costume passou, naturalmente, a ser cada vez menos usado à medida que as amas
foram sendo, pouco a pouco, substituídas por orfanatos, patronatos e seminários, onde
as crianças viviam coletivamente (Ferreira et al.).
32
c. Primeiro código de menores: o código Mello Mattos
O primeiro código de menores do Brasil, também conhecido por código Mello
Mattos em virtude do nome de seu redator, foi aprovado pelo decreto nº. 17.943-A, de
12 de outubro de 1927, após intensos debates que reuniram figuras proeminentes, à
época, dos meios políticos, jurídicos, legislativos e assistenciais. Era composto por 231
artigos (Ferreira et al.).
O código Mello Mattos consolidou as leis de assistência e proteção aos menores,
refletindo um profundo teor protecionista e a intenção de controle total de crianças e
adolescentes, dessa forma consagrou a aliança entre Justiça e Assistência, constituindo-
se um novo mecanismo de intervenção sobre a população carente. Com esse código
construiu-se a categoria do MENOR, que simbolizava a infância pobre e potencialmente
perigosa, diferente do resto da infância (Ferreira et al.).
O sistema de proteção e assistência do código de menores submetia qualquer
criança, por sua simples condição de pobreza, à ação da Justiça e da Assistência. A
esfera jurídica era a protagonista na questão dos menores, por meio da ação jurídico-
social dos juízes de menores (Ferreira et al.).
Os internatos começaram a aparecer como resultado do primeiro código de
menores; seu modelo era o de reclusão. Tais instituições apresentavam dois objetivos:
amparar a criança e o adolescente vítimas do abandono e/ou dos maus-tratos
provenientes de suas famílias; proteger a sociedade dessas crianças e adolescentes que
causavam ou poderiam causar desconforto para ela (Ferreira et al.).
As denúncias de maus-tratos nessas instituições criaram na opinião pública um
clima favorável à mudança. Assim, em 1964 surgiu a Fundação Nacional do Bem-Estar
do Menor (Funabem), seguida pela implantação de núcleos da Febem nos estados. A
proposta era a da reformulação nacional de toda a estrutura de atendimento, mantendo-
se a internação, provisória e permanente, de carentes ou menores infratores (Ferreira et
al.).
O código de menores, de 1979, introduziu alguns avanços, mas não chegou a
alterar fundamentalmente o modelo predominante. Surgiram outras denúncias de maus-
tratos, mortes e exploração sexual de crianças e adolescentes, determinando novos
movimentos voltados para uma revisão das políticas de atendimento (Ferreira et al.).
33
Uma primeira medida importante foi a abertura das instituições, permitindo-se a
criação de sistemas de semi-internato com a participação da comunidade e a expansão
dos serviços de creches. Mas, dado o pouco apoio adequado recebido, o modelo
tradicional manteve-se (Ferreira et al.).
No Brasil, prevaleceu, até 1990, a doutrina da situação irregular que embasava o
código de menores. Crianças e adolescentes abandonados, vítimas de abusos e maus-
tratos e supostos infratores da lei penal, isto é, menores em situação irregular, eram os
objetos potenciais de intervenção do código (Ferreira et al.).
Os marcos decisivos na construção de novas políticas públicas voltadas à
proteção da infância e da adolescência foram a Declaração dos Direitos da Criança,
ocorrida em 1959, e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança datada de 1989.
Com base em ambas, olhar renovado foi sendo construído e lançado sobre a infância e a
adolescência (Ferreira et al.).
Em 1990, em substituição ao código de menores, cujo caráter era essencialmente
repressor e punitivo, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) levando-
se em conta uma visão socioeducativa, fruto de um amplo fórum de discussão nacional
formado por ONGs, grupos ecumênicos, sindicatos, universidades e estudiosos da
questão da criança e do adolescente (Ferreira et al.).
2.3 O Estatuto da Criança e do Adolescente: um marco na luta pelos direitos
O ECA é uma lei de caráter nacional que garante os direitos e deveres sociais
para a infância e juventude. Opõe-se ao código de menores tanto pela visão de proteção
integral à criança quanto por considerar o espaço familiar o melhor para educá-la.
Dentro dessa concepção, a família deve ser fortalecida, e o Estado deve criar condições
necessárias para que a criança continue no núcleo familiar (Ferreira et al.).
Em suma, enquanto o código de menores era dirigido à proteção e vigilância dos
menores em situação irregular, o ECA estabelece direitos a serem garantidos para todas
as crianças e adolescentes: direitos relativos à sobrevivência, ao desenvolvimento
pessoal e social assim como à integridade física, psicológica e moral, criando
instrumentos de garantia para o cumprimento desses direitos, tais como os conselhos de
direitos e os conselhos tutelares (Ferreira et al.).
34
Parte II
Caminhos da Pesquisa
35
Esta parte divide-se em dois capítulos. Um aborda o objeto de pesquisa e suas
particularidades, ao passo que o outro, os princípios teórico-metodológicos da análise
do discurso e o conceito de ideologia, a fim de possibilitar as análises da parte III.
Capítulo 1
O objeto da pesquisa e suas particularidades
1. A demanda: uma preocupação social
Atualmente, assuntos referentes à violência, no Brasil, têm merecido destaque
em diversos setores da sociedade. Embora a violência do homem contra a sociedade, do
homem contra o próprio homem e do homem contra a natureza não sejam problemas
fruto da realidade atual, pois sempre existiram, a impotência, cada vez maior, diante
dela acaba por evidenciá-la.
Ouvimos falar de furtos, homicídios, seqüestros, entre outros tipos de violência;
entretanto, a violência institucionalizada pelos meios de exploração social é desprezada,
a exemplo, a falta de moradia, o desamparo à saúde pública, o descaso na educação,
entre outras.
A violência institucionalizada, que geralmente só é percebida quando é
desencadeadora de outros tipos de agressão, chamou-nos a atenção, em especial por
envolver menores.
O objeto de pesquisa, um processo verificatório de destituição do poder familiar,
originou-se de uma denúncia que, antes de ser apurada, culminou no mandado de busca,
apreensão e internação dos menores em abrigo, por determinação do juiz de direito.
Embora, o pai, que já se encontrava separado judicialmente da mãe dos menores, na
época da denúncia, tenha sido destituído do poder familiar, foi constatado, no processo,
pelo estudo social que
A mãe é uma mulher simples, com poucos conhecimentos, porém
batalhadora e preocupada com os filhos, tentando sempre fazer o melhor
por eles.
36
Todavia, antes de ter sido averiguada a denúncia pelo poder público, via
processo verificatório, a mãe dos menores foi separada de cinco dos seus nove filhos,
em razão do mandado expedido pelo juiz.
1.1 Adoção de uma determinada esfera da atividade humana: um requisito para a
pesquisa em ciências humanas
A escolha e a incorporação de um objeto de pesquisa, na investigação em
ciências humanas, não se realiza com a aleatória seleção de material lingüístico, já que
requer um posicionamento referente à adoção da esfera da atividade humana (Bakhtin,
1979, 2000) que será enfocada, isto é, o pesquisador é convocado a escolher
determinada esfera e a renunciar outras para, conforme seu(s) objetivo(s) de
investigação, avançar em direção a uma problemática desencadeadora da demanda de
pesquisa.
O material lingüístico concreto (Bakhtin, 1979, 2000) – um processo
verificatório de destituição do poder familiar – envolve enunciados concretos
pertencentes a uma categoria de discurso, isto é, a um gênero de discurso (Bakhtin,
1979, 2000) que utiliza dispositivos de comunicação próprios a certas condições sócio-
históricas.
Os gêneros discursivos não correspondem a formas preexistentes encontradas à
disposição do locutor a fim de que este molde seu enunciado. Embora estabeleçam uma
referência com relação a obras anteriores, não se baseiam em um texto-modelo. Os
gêneros do discurso, por serem atividades sociais, são submetidos a um critério de êxito
(Maingueneau, 1998, 2000), ou seja, a um conjunto de condições de êxito que abrangem
elementos de ordens diversas tais como: uma finalidade reconhecida, o estatuto de
parceiros legítimos, o lugar e o momento legítimos, um suporte material e uma
organização textual.
1.2 O processo verificatório enquanto gênero discursivo
Visando à compreensão do objeto de pesquisa, faremos a identificação dos
elementos constitutivos do conjunto de condições de êxito a fim de reconhecê-lo como
gênero discursivo.
37
a. Uma finalidade reconhecida
Todo gênero de discurso pretende, em maior ou menor grau, uma modificação
da situação da qual participa. A determinação correta da finalidade é indispensável para
que o destinatário possa adequar seu comportamento ao gênero discursivo utilizado
(Maingueneau, 2000, 2002).
No processo verificatório de destituição do poder familiar, é imprescindível que
os protagonistas sociais nele envolvidos detectem o objetivo de seu desencadeamento
para que possam, perante a lei, defender seus interesses e a si próprios.
O intuito da lide é averiguar a veracidade da denúncia para que, posteriormente,
sejam tomadas as medidas adequadas: ou destituir os pais do poder familiar, ou intervir
criando condições para que a família consiga viver conforme as leis do Estado
brasileiro.
b. O estatuto de parceiros legítimos
Corresponde ao papel que devem assumir o enunciador e o co-enunciador. Nos
diferentes gêneros do discurso, é nítida a percepção de quem origina e a quem se dirige
determinado enunciado cabendo a ambos direitos e deveres, assim como saberes
(Maingueneau, 2000, 2002).
Tratando-se da esfera jurídica, os pais, acusados de abandonar e maltratar seus
filhos, podem somente dialogar na lide por meio de seus representantes legais. O
promotor de justiça, o juiz de direito, o representante legal do pai dos menores, a
representante legal da mãe dos menores, a assistente social e a psicóloga do judiciário, o
médico e as testemunhas têm, de forma clara, seus papéis dentro do processo e, por isso,
com base na realidade da denúncia, na situação social, econômica e psicológica da
família e na lei, assumem posições a fim de obterem êxito, cada um em sua função. A
marca do uso dos pronomes de tratamento empregados na lide, característica da esfera
da atividade em que o processo se desenvolve, ilustra o direcionamento do enunciado.
Por exemplo, o juiz de direito não se refere aos advogados por Vossa Excelência;
entretanto, esse é modo como eles se reportam ao juiz.
c. O lugar e o momento legítimos
38
Os gêneros discursivos implicam um certo lugar e um determinado momento de
enunciação que nem sempre são evidentes. Ambas características não se originam de
coerções externas, pois são constitutivas dos gêneros. Apesar disso, é possível que a
transgressão de lugar, quando ocorrida, seja significativa – quer por pretender legitimar
um lugar ilegítimo, quer por protestar sobre algo (Maingueneau, 2000, 2002).
O lugar empírico onde se encontra o objeto de pesquisa é um distrito do interior
de São Paulo, local em que vive a família, vítima de denúncia, isto é, a lide é instituída
no fórum do mesmo distrito. Por sua vez, o lugar discursivo encontra-se na esfera
jurídica, no interior do processo verificatório de destituição do poder familiar.
A temporalidade de um gênero do discurso implica vários eixos: periodicidade,
encadeamento, continuidade e validade presumida (Maingueneau, 2000, 2002).
A periodicidade do processo verificatório não existe, pois seu desencadeamento
surge da necessidade de averiguar uma denúncia. Ao finalizar tal objetivo, é
sentenciado, as providências cabíveis são tomadas e, em seguida, é arquivado nas
dependências do fórum em que a lide foi desenvolvida. A duração de encadeamento, ou
seja, a duração de realização do processo verificatório enquanto um gênero de discurso,
não é passível de se estabelecer, pois apresenta peculiaridades: pode ser mais ou menos
extenso, de acordo com o teor da denúncia e com a forma pela qual é conduzido. A
continuidade no encadeamento não é predeterminada, a retomada ou não das partes do
processo verificatório ou da lide integral é realizada conforme a necessidade. A duração
de validade presumida do processo verificatório é extensa. Caso seja necessário intervir
novamente, a lide é desarquivada e novas providências são tomadas.
d. Suporte material
Os gêneros discursivos caracterizam-se também pelo modo como são
veiculados, visto que os enunciados apresentam dimensão midiológica e, por isso, são
inseparáveis de seu modo de existência material. Uma modificação do suporte material
de um texto modifica um gênero do discurso (Maingueneau, 2000, 2002).
O processo verificatório de destituição do poder familiar, além de corresponder a
uma lide, é veiculado por meio dela ilustrando, assim, o caráter inseparável do gênero
discursivo de seu modo de existência material.
e. Organização textual
39
Os gêneros do discurso estão associados a uma certa organização textual. Em
decorrência, para trabalhar com eles, é necessário ter consciência dos modos de
encadeamento de seus constituintes em diferentes níveis: de frase a frase a suas partes
maiores (Maingueneau, 2000, 2002).
O processo de destituição do poder familiar não apresenta uma estrutura rígida;
entretanto, ele é orientado por partes desencadeadoras. O documento relatando a
denúncia e a sua verificação pelo comissário de menores e pelo guarda municipal é
sucedido pelo mandado de busca, apreensão e internação em abrigo dos menores pelo
juiz de direito. Em seguida, é elaborada uma nova peça escrita que dá continuidade à
lide e na qual o promotor de justiça pede a destituição do poder familiar. Assim,
sucessivamente surgem no corpo do processo pequenas partes formadoras do conjunto
processual.
1.3. Contextualização da pesquisa
O processo verificatório de destituição do poder familiar, objeto de pesquisa,
iniciou-se em 16 de outubro de 1996, com uma denúncia, e foi concluído em 04 de
março de 1999, com a sentença do juiz de direito. Atualmente, encontra-se arquivado
em um fórum do interior de São Paulo.
A denúncia foi realizada por uma voluntária de uma das paróquias da cidade,
que se dedicava a prestar auxílio a pessoas carentes. Em visita à família, a mãe relatou à
assistencialista que ela e seus nove filhos sofriam ameaças do ex-marido que, além de
abusar sexualmente de uma de suas filhas, mantinha relações extraconjugais.
Recebida a informação, via secretária da prefeitura da cidade vizinha, o juiz de
direito enviou um guarda municipal e um comissário de menores com um documento
que determinava busca, apreensão e internação dos menores em abrigo. Entretanto, foi
dito à mãe que ambos conduziriam as crianças ao hospital e, logo, iriam trazê-las de
volta. Os cinco filhos que se encontravam na casa foram levados. A filha que sofrera
abuso sexual negou-se a acompanhá-los e ficou com a mãe; os outros três menores
estavam na escola e o pai, ausente.
Foi solicitado o comparecimento da mãe dos menores para prestar
esclarecimentos, na 2ª. vara da infância e juventude, no dia 17 de outubro de 1996. Ao
40
comparecer no fórum da cidade em que residia, apurou-se que o documento que a
convocava provinha da vara da infância e juventude da cidade vizinha. Na mesma data,
o promotor de justiça, representante do Ministério Público,
13
pediu a instauração de
procedimento verificatório
14
visando à destituição do poder familiar
15
que os pais dos
menores exerciam sobre eles.
Foi nomeada e constituída, em 18 de outubro de 1996, como procuradora
dativa
16
da mãe dos menores apreendidos, uma advogada para representá-la legalmente.
Em 21 de outubro de 1996, ela entrou com exceção de incompetência
17
pleiteando ao
juiz de direito da 2ª vara cível e anexo da infância e juventude da cidade vizinha a
transferência do processo para o fórum da cidade em que residia a família, alegando que
a competência para imposição das medidas necessárias cabia a tal fórum, uma vez que
eram residentes do bairro de sua abrangência. O pedido foi acatado pelo juiz de direito.
Concomitantemente, a mãe das crianças, por meio de seu advogado, interpôs
agravo de instrumento
18
no Tribunal Superior (Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo) a fim de revogar a decisão que determinou a busca e apreensão dos cinco
menores, já que as crianças foram apreendidas em virtude de simples informação de
comissário de menores sem que tenha sido realizado qualquer estudo social no local que
comprovasse a veracidade da denúncia. O agravado foi o juiz de direito da vara da
infância e juventude da cidade vizinha que teve sua decisão revogada.
Foi solicitada, pelo juiz de direito da cidade em que residia a família, em 02 de
novembro de 1996, avaliação médica das crianças. Em 06 de dezembro de 1996, um
estudo social foi pedido à assistente social do judiciário retratando a situação
habitacional e socioeconômica da família.
A avaliação médica ressaltou que as crianças não se encontravam desnutridas
nem com sinais de traumatismos contusos e cortantes, escoriações ou esquimoses. As
13
Também denominado corpo de agentes do poder executivo, tem por principal incumbência promover
ou fiscalizar a execução das leis de ordem pública perante o judiciário (Magalhães et al., 1991).
14
Pode ser entendido como um complexo de atos materiais, constituintes de um processo, a fim de apurar
fatos que foram objetos de alguma denúncia (Magalhães et al., 1991).
15
Após a reforma do código civil, ocorrida em 11 de janeiro de 2003, o termo pátrio poder foi substituído
por poder familiar.
16
Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil artigo 5, LXXIV “O Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, isto é, será
nomeado um procurador dativo para defender os interesses do indivíduo em juízo.
17
Corresponde à defesa processual, preliminar, na qual se sustenta que o órgão judiciário com o qual se
encontra a demanda é incompetente para apreciá-la, ou seja, não tem atribuições para solucioná-la
(Magalhães et al., 1991).
Formatado
Formatado
41
patologias apresentadas, conforme o atestado médico, são básicas, ou seja, estão dentro
do esperado para um programa de Saúde Infantil neste país.
O estudo social em suas considerações apontou as seguintes observações:
Todos os filhos apresentavam estar saudáveis, recebendo, dentro das
poucas possibilidades socioeconômicas, o básico necessário para o
desenvolvimento, além de amor e carinho por parte da genitora;
A mãe é uma mulher simples, com poucos conhecimentos, porém
batalhadora e preocupada com os filhos, tentando sempre fazer o melhor
por eles;
O genitor, além de pessoa alcoólatra, não tem vínculo afetivo pelos
filhos e por sua esposa, sendo extremamente violento com todos, gerando
medo e angústia em toda a família.
Baseando-se nos acontecimentos desencadeadores da lide e nos documentos
constituintes do procedimento verificatório até então anexos, em 13 de dezembro de
1996, a representante legal da mãe das crianças contestou a destituição do poder
familiar de sua cliente.
Em 25 de julho de 1997, um outro estudo social foi solicitado pelo juiz de direito
da cidade onde vivia a família, estando o pai dos menores afastado do lar familiar desde
12 de março 1996. Uma nova avaliação psicológica da mãe e dos menores foi pedida
pelo mesmo juiz em 26 de agosto de 1997.
Tanto o relatório da avaliação psicológica quanto o do estudo social verificaram
que, após o afastamento do pai dos menores da casa, houve condições para a família
viver em harmonia.
... a mãe e seus nove filhos finalmente conseguiram condições habitacionais
para viverem com dignidade e a família se mostrou harmoniosa, tendo resolvido seu
maior problema, ou seja, afastar o pai dos menores do lar.
Com a ajuda de pessoas da comunidade local, a família desprovida de recursos
financeiros teve sua antiga moradia – um barraco de madeira, localizado em uma área
verde irregular (já que não era proprietária do terreno), dividido em quarto e cozinha,
com banheiro do lado de fora, sem água encanada e luz elétrica – substituída por uma
18
Trata-se de recurso que sobe em autos separados visando a obter o encaminhamento de outro recurso
indeferido e do qual são extraídas as peças que formam o instrumento, cabendo também para outros fins
previstos em lei (Magalhães et al., 1991).
Excluído:
42
casa de alvenaria com três dormitórios, banheiro, sala e cozinha, com água encanada e
energia elétrica localizada em um condomínio de um bairro da cidade. O terreno foi
adquirido com recursos financeiros advindos do programa estadual Iafam,
19
mediado
pelo Departamento de Assistência Social da prefeitura.
O pai dos menores, preso desde 12 de março de 1996, foi citado por carta
precatória
20
na penitenciária, onde se encontrava detido, em 20 de outubro de 1997, para
manifestar-se na ação de destituição do poder familiar. O diretor da penitenciária
solicitou a nomeação
21
de defensor dativo para contestação.
Na contestação feita pelo procurador do pai dos menores, o pai argumentou que
não podia ser acusado por maus-tratos e abandono, pois, na data da denúncia
desencadeadora do processo verificatório, já se havia separado judicialmente de sua
companheira. Um acordo tinha sido realizado, em 13 de dezembro de 1995, firmando a
separação dos cônjuges. A guarda dos filhos coube a mãe, foram estabelecidos os dias
de visita dos quais o pai dos menores tinha direito, bem como fixada a pensão
alimentícia e designado que o pai deixaria o lar. Contudo, o pai negava-se a cumprir tal
acordo, afastando-se do lar da família.
Foi marcada, pelo juiz de direito, a audiência de instrução.
22
Tanto a mãe quanto
o pai das crianças, por meio de seus procuradores, expressaram, nas alegações finais,
23
o
desejo de não serem destituídos do poder familiar. A representante legal da mãe dos
menores pronunciou-se em 05 de novembro de 1998, o do pai em 17 de fevereiro de
1999.
Em 04 de março de 1999, o juiz de direito proferiu a sentença da ação de destituição do
poder familiar em face dos genitores dos menores, proposta pelo Ministério Público do
Estado de São Paulo. Foi julgada parcialmente procedente a ação para destituir o pai dos
menores do poder familiar exercido em relação aos seus nove filhos, com fundamento
19
Instituto de Assuntos da Família, um programa de atendimento a famílias carentes.
20
Trata-se de uma espécie de ofício dirigido por um juiz a outro de uma mesma hierarquia solicitando-lhe
que pratique determinados atos processuais que não podem ser praticados pelo juiz que remete a
precatória – juiz deprecante – por não ter a mesma competência em razão do lugar para a prática do ato
em questão, competência essa que tem o juiz que recebe a carta – juiz deprecado (Magalhães et al., 1991).
21
Nomeação de defensor dativo ao detento é direito assegurado pela Constituição da República
Federativa do Brasil artigos 5.º, LXXIV e Art. 9.º (lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973) O juiz dará
curador especial:
II – ao réu preso, bem como ao revel cotado por edital ou com hora marcada.
22
É o ato pelo qual uma autoridade recebe outras para tomar conhecimento de suas reivindicações
(Magalhães et al., 1991).
23
Também conhecida por razões finais, corresponde à argumentação dos litigantes após a instrução do
processo e antes do proferimento da sentença (Magalhães et al., 1991).
43
no artigo 129, X, c.c artigos 22 e 24, do Estatuto da Criança e do Adolescente,
24
não
acolhendo a pretensão inicial quanto à mãe das crianças.
Capítulo 2
Os Princípios Teórico-Metodológicos da Análise do Discurso e o Conceito de
Ideologia
2. A análise do discurso
24
Artigo 129, X, c.c. artigos 22 e 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente. (Lei n.º 8.069 de 13 de
julho de 1990).
Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:
X - Suspensão ou destituição do poder familiar.
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes
ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Art. 24. A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento
contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento
injustificado dos deveres e obrigações a que alude o Art. 22.
Excluído:
44
A análise do discurso de linha francesa (AD) – também conhecida por escola
francesa de análise do discurso – originou-se na década de 1960, no interior de uma
tradição européia (que unia uma reflexão sobre texto e história), do encontro de uma
conjuntura intelectual com uma prática escolar (Maingueneau, 1987, 1997).
Tal encontro decorreu da articulação entre a escritura, a lingüística, o marxismo
e a psicanálise, e uma prática escolar, comum do colégio à universidade, de explicar
textos (Maingueneau, 1987, 1997).
A análise discursiva proposta pela AD consiste em construir procedimentos que
exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito, por meio de
pressupostos teóricos e métodos distintos (Maingueneau, 1987, 1997), em outras
palavras, a especialidade da AD é o campo do sentido (Possenti, 2005).
Para a AD o efeito de sentido resulta das enunciações (Possenti, 2005),
produzidas em condições determinadas: o modo pelo qual se enuncia deixa vestígios de
efeito de sentido que o analista do discurso procura apreender, mediante os recursos
lingüísticos, já que a AD apóia-se crucialmente sobre conceitos e métodos da lingüística
(Maingueneau, 1987, 1997).
No objeto em estudo, o recurso lingüístico que denuncia as vozes discursivas é o
discurso relatado que constitui uma enunciação sobre outra pondo em relação dois
acontecimentos enunciativos, sendo a enunciação citada objeto da enunciação citante
(Maingueneau, 2002, p.139).
O discurso relatado apresenta-se, nos dados analisados, na forma de ilha
enunciativa ou textual (Maingueneau 2002) e intertexto (Sant’anna, 2000).
A ilha enunciativa ou textual corresponde a um fragmento que o enunciador
citante emprega e que por estar integrado por completo à sintaxe é, em geral, marcada
tipograficamente pelo uso das aspas ou do itálico a fim de tornar perceptível que essa
parte do texto não é assumida pelo relator.
O intertexto é uma forma de relato que recupera o dito em outros contextos
enunciativos de um modo mais atenuado, o efeito de sentido aproxima-se das idéias de
credibilidade e verdade, pertencente ao campo das certezas técnicas e da legalidade: sua
fonte não é uma pessoa, mas um documento que adquire força para ser responsável pela
execução de diferentes ações.
45
Ao unir o lingüístico ao sócio-histórico, dois conceitos tornam-se nucleares, na
AD, o de discurso (Foulcault, 1969) e o de ideologia
25
(Althusser,1970) (Brandão,
1995).
Segundo Brandão (1995), discurso corresponde a um conjunto de enunciados
que remete a uma mesma formação discursiva, isto é, a
... um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no espaço e
no tempo que definiram numa época dada, e para uma área social, econômica,
geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa
(Foulcault, 1986).
Já o conceito de ideologia
26
(Chauí, 1980, 2004) é entendido aqui como
... um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de
caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de
uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças
sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da
sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção (Chauí, 1980,
2004, p.128-9).
Assim, a AD não examina um objeto como se tivesse sido produzido por um
determinado sujeito, mas considera sua enunciação como o correlato de uma certa
posição sócio-histórica, na qual os enunciadores se revelam substituíveis (Maingueneau,
1987, 1997).
Resumidamente:
A relação do nosso dizer com as coisas nunca é direta, mas se dá
sempre obliquamente: nossas palavras não tocam as coisas, mas penetram na
camada de discursos sociais que recobrem as coisas (Faraco, 2003, 2006, p.49).
Portanto, a dimensão avaliativa da significação dos enunciados expressa um
posicionamento social valorativo, dessa forma todo e qualquer enunciado é ideológico
porque opera na esfera de uma das ideologias e expressa sempre uma posição avaliativa
(Faraco, 2003, 2006).
Tendo em vista os objetivos da dissertação, apresentaremos o conceito de
ideologia adotado. Entretanto, antes de tal abordagem, faremos uma breve retomada
histórica do termo.
25
Embora o conceito de ideologia, que influenciou a AD, tenha sido o de Althusser, nesta dissertação,
será empregado o de Marx com base na leitura de Chauí (1980/2004).
26
O conceito de ideologia será tratado no item 2.1.
46
2.1 Ideologia
Embora o termo ideologia tenha surgido em 1801, na obra de Destutt de Tracy,
Elementos de Ideologia, o interesse por questões de natureza ideológica na história dos
homens é anterior a essa data (Konder, 2002, 2003). Portanto, a introdução a tal
conceito será realizada pela retomada histórica dividida em dois momentos distintos:
questões ideológicas antes de Marx e a questão da ideologia em Marx.
O primeiro situa cronologicamente alguns pensadores que se propuseram a
discutir o conhecimento e o que poderia estar atuando sobre ele. O segundo abordará
sucintamente a caracterização da ideologia feita por Marx.
Após a retomada histórica, será exposto o conceito de ideologia adotado neste
trabalho tal como proposto por Chauí (1980, 2004) com base numa leitura de Marx.
a. Questões ideológicas antes de Marx
O entendimento de ideologia como registro de pressões deformadoras atuando
sobre o processo de elaboração do conhecimento é um tema antigo (Konder, 2002,
2003).
Na Antigüidade, a reflexão dos gregos sobre a origem e a existência do ser
humano desvinculadas de explicações religiosas fez nascer a seguinte pergunta: em que
consistia o conhecimento? (Konder, 2002, 2003).
Acreditava-se que era possível ver algo e imaginar estar vendo algo contrário
“Platão já advertia seus contemporâneos de que podiam estar enxergando sombras e
pensar que estavam vendo seres reais” – (Konder, 2002, 2003, p.15). Por conseguinte, a
reflexão sobre o conhecimento evidenciou a fragilidade do empirismo e despertou a
necessidade da abstração teórica (ibidem).
No início do Renascimento, Nicolau de Cusa sustentou a idéia da douta
ignorância: a tese de que “o verdadeiro sábio é o que se sabe ignorante”. Por meio da
analogia entre Deus e o homem, Cusa propunha um novo modo de pensar o
conhecimento: enquanto Deus está associado à estabilidade por ser o Absoluto Máximo,
o homem, por lidar com a relatividade, está associado à instabilidade, já que o
47
conhecimento humano é obtido por comparação, sujeitando-se a contradições (Konder,
2002, 2003).
Ainda no Renascimento, o inglês Francis Bacon, em sua obra Novum Organum,
propõe a revalorização do empirismo a fim de libertar os seres humanos de noções
falsas que lhe eram impostas, nomeadas pelo pensador britânico de ídolos. Eram quatro
as espécies de ídolos: os ídolos da tribo, os ídolos da caverna, os ídolos do foro e os
ídolos do teatro (Konder, 2002, 2003).
Os ídolos da tribo eram a expressão adequada da realidade da natureza e do
mundo; os da caverna correspondiam à validade natural de opinião pessoal que cada
indivíduo pensa possuir; os do foro provinham da comunicação entre os seres humanos,
mediante a linguagem; finalmente, os do teatro explicavam como todas as idéias
chegam à população na forma de verdades encenadas, sancionadas pela autoridade da
tradição e fortalecidas por sua capacidade de simplificar idéias, tornando-as agradáveis
e lisonjeiras para as pessoas (Konder, 2002, 2003).
Outro pensador renascentista que abordou a questão da ideologia sem nomeá-la
foi o francês Montaigne, que denunciava a estreiteza ideológica de sua própria cultura
ao observar a conquista da América e o desrespeito dispensado pelos conquistadores às
culturas de outros povos (Konder, 2002, 2003).
Dois séculos mais tarde, em Suplemento à viagem de Bougainville, o pensador
francês Diderot retomou a crítica de Montaigne sugerindo que a pretensão da
universalidade da cultura dos conquistadores e o comportamento predatório dos
europeus no processo de expansão colonial estavam ligados à questão da propriedade
privada (Konder, 2002, 2003).
Os iluministas confiavam no conhecimento e em que todos os problemas
poderiam ser resolvidos no plano teórico; entretanto, no início do século XIX, essa
confiança sofreu abalos em decorrência de tumultos históricos, mudanças sociais e
crises políticas inesperadas, desencadeados pela Revolução Francesa. Explicações
racionalistas tranqüilizadoras não foram mais aceitas perante as situações de tensão e
incertezas (Konder, 2002, 2003).
Diante deste cenário, Destutt de Tracy, retomando idéias iluministas, publicou o
livro Elementos de ideologia, onde concebia a ideologia como uma disciplina filosófica.
O autor acreditava que as ações dos seres humanos eram guiadas pelos conhecimentos
organizados em idéias, caso compreendessem como eram formadas as idéias a partir das
sensações ter-se-ia a solução para entender-se e construir um mundo melhor mas, para
48
isso, seria preciso decompor as idéias até alcançar os elementos sensoriais que as
constituem em sua base (Konder, 2002/2003).
Destutt de Tracy integrava um grupo de intelectuais – os ideólogos – que se
dispunham a prestar aos detentores do poder uma assessoria esclarecedora orientando-os
no sentido de promover o aprimoramento das instituições. Entretanto, na época em que
expunham suas concepções, Napoleão Bonaparte, que governava a França, sentiu-se
incomodado pelos ideólogos e os acusou de cultivarem uma tenebrosa metafísica não
contribuindo positivamente com os seres humanos. Dessa forma, Napoleão construiu
uma imagem negativa da acepção de ideologia, que prevaleceu nas décadas seguintes
(Konder, 2002, 2003).
A fim de aprofundar a reflexão a respeito da questão da ideologia uma nova
abordagem dos problemas do sujeito como construtor do conhecimento e como criador
da própria realidade conhecida foi proposta (Konder, 2002, 2003).
Na Alemanha, na transição do século XVIII para o século XIX, os principais
representantes da filosofia denominada idealismo clássico – Kant e Hegel –
propuseram-se a enfrentar o desafio de repensar a relação sujeito/objeto à luz das novas
condições históricas, nas quais os indivíduos em número crescente estavam se
reconhecendo como sujeitos capazes de se afirmarem sobre os objetos, intervindo, de
algum modo, no processo histórico da mudança da realidade objetiva (Konder, 2002,
2003).
Para Kant, todo o conhecimento era sempre uma construção subjetiva, isto é, o
sujeito não poderia pretender se apagar ou se anular em face do objeto. Cabia-lhe o
esforço para construir com rigor uma representação da objetividade a partir dele mesmo,
sujeito (Konder, 2002, 2003).
Em 1784, Kant enfatizou a necessidade de considerar a história como algo que
não se revelava à primeira vista, ou seja, situava-se por trás dos movimentos dos
indivíduos e dos povos sem que estes deixassem de conservar motivações individuais
(Konder, 2002, 2003).
Hegel, diante das idéias expostas por Kant, propôs uma forma inovadora de
considerar a verdade. Para o autor de Fenomenologia do espírito, a verdade era o todo
que não correspondia ao ponto de partida, mas sim ao de chegada sendo, dessa forma, a
totalidade sempre resultado de um processo de totalização, tanto no plano do
conhecimento quanto no plano da realidade, em outras palavras, no plano da ação
histórica dos homens (Konder, 2002, 2003).
49
Em Filosofia do direito, Hegel caracteriza três momentos necessários do
movimento de totalização, do singular para o universal: a família, a sociedade civil-
burguesa e o Estado ou a esfera estatal (Konder, 2002, 2003).
No primeiro momento, o indivíduo, por não ter desenvolvido sua capacidade de
tornar-se autônomo, recebe proteção. No segundo, o indivíduo depara-se com a
competição do mercado e, por isso, é motivado a desenvolver sua capacidade racional
de planejar e exercer sua independência. No terceiro, o indivíduo autônomo reconhece
sua pertinência à comunidade e complementa sua liberdade pessoal com a aceitação da
necessidade da cooperação fundada sobre a razão (Konder, 2002, 2003).
A concepção hegeliana do Estado foi contestada por Marx, que não aceitava a
idéia da esfera estatal ser o lugar da realização da universalidade na cidadania e,
também, não admitia que o acesso à esfera estatal viabilizaria a superação das distorções
ideológicas impostas pelas condições de funcionamento da sociedade civil-burguesa
(Konder, 2002, 2003).
b. A questão da ideologia em Marx
A caracterização da ideologia realizada por Marx encontra-se na obra A
ideologia alemã. A seguir serão expostas, sucintamente, as principais determinações
que constituem o fenômeno da ideologia (Konder, 2002, 2003).
A ideologia – por ser resultado da divisão social de trabalho e, em especial, da
separação entre trabalho espiritual/intelectual e trabalho material/manual – estabelece
uma aparente autonomia do trabalho intelectual diante do trabalho material acarretando
na valorização do trabalhador intelectual, isto é, do pensador e do trabalho por ele
produzido, as idéias (Konder, 2002, 2003).
As idéias, consideradas como autônomas, correspondem às da classe dominante
de uma determinada época que se originam da separação entre os indivíduos que
dominam e as idéias que dominam, a fim de que apenas a dominação das idéias sobre
todos os homens seja percebida e não a dominação dos homens sobre homens (Konder,
2002, 2003).
Em suma, a ideologia é um instrumento de dominação de classe, pois tem sua
origem na existência da divisão da sociedade em classes contraditórias em luta:
proprietários e não-proprietários das condições e dos produtos de trabalho (Konder,
2002, 2003).
50
Entende-se por luta de classes não apenas os momentos de confronto armado
entre as classes, mas todo o conjunto de procedimentos institucionais, jurídicos,
políticos, policiais, pedagógicas, morais, psicológicos, culturais, religiosos, artísticos,
usados pela classe dominante para manter a dominação, bem como todos os
procedimentos dos dominados para diminuir ou destruir essa dominação (Konder, 2002,
2003).
A função da ideologia como instrumento usado na luta de classes é impedir que
a dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta. Para tanto, é
objetivo da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões sociais, omitindo,
assim, sua própria origem. Em outras palavras, a ideologia esconde que se origina da
luta de classes para servir a uma classe na dominação, pois pretende dessa forma
transformar as idéias particulares da classe dominante em idéias universais válidas
igualmente para toda a sociedade. Entretanto, a universalidade das idéias ideológicas é
abstrata, pois na realidade existem idéias particulares de cada classe (Konder, 2002,
2003).
Dado o seu caráter de abstração, a ideologia constrói uma rede imaginária de
idéias e de valores que possuem base real na divisão social mas de modo que essa base
seja reconstruída de maneira invertida, imaginária. Portanto, a ideologia é uma ilusão
necessária à dominação de classe: por ilusão, entende-se abstração e inversão. A
abstração corresponde à aceitação de uma determinada realidade como algo dado, feito
e acabado que apenas pode ser classificado, ordenado e sistematizado, sem nunca
indagar como determinada realidade foi concretamente produzida. A inversão consiste
em tomar o resultado de um processo como se fosse o seu começo, tomar os efeitos
pelas causas, as conseqüências pelas premissas (Konder, 2002, 2003).
A ideologia é uma práxis social, pois parte da experiência imediata dos dados da
vida social para construir abstratamente um sistema de idéias ou representações sobre a
realidade. Sua produção ocorre em três momentos fundamentais. No primeiro deles, a
ideologia inicia-se como um conjunto sistemático de idéias que os pensadores de uma
classe em ascensão produzem para que essa nova classe apareça como representante dos
interesses de toda a sociedade, assim produzem uma universalidade com base real para
legitimar a luta da nova classe pelo poder. No segundo, a ideologia populariza-se na
forma de senso comum, tornando-se um conjunto de idéias e valores concatenados e
coerentes, aceitos por todos os que são contrários à dominação existente. O momento
essencial de consolidação social da ideologia ocorre quando as idéias e valores da classe
51
emergente são interiorizados pela consciência de todos os membros não-dominantes da
sociedade. No terceiro, a ideologia já sedimentada e interiorizada como senso comum
mantém-se mesmo após a vitória da classe emergente que se torna então classe
dominante, pois a tarefa da ideologia consiste justamente em separar os indivíduos
dominantes e as idéias dominantes, fazendo que apareçam como independentes uns dos
outros (Konder, 2002, 2003).
2.2 O conceito de ideologia adotado nesta pesquisa
Nesta pesquisa, o conceito de ideologia adotado corresponde ao de Marx,
conforme a leitura realizada por Marilena Chauí (1980, 2004). Segundo a autora, a
ideologia é
... um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias
e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos
membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que
devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem
sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo
explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter
prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma
sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças
sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da
sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário,
a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e fornecer aos
membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos
referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a
Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado (Chauí,1980,
2004, p.128-9).
Fornecer explicações racionais e universais a fim de esconder as diferenças e
particularidades reais é a função da ideologia que se originou na e por causa da luta de
classes (Chauí, 1980, 2004).
Devido a sua qualidade de justificativa teórica do real, a explicitação da origem
da ideologia não deve ser realizada por ela, pois, se a fizesse, evidenciaria a divisão
social em classes e, dessa forma, perderia a razão de ser, já que se funda em um corpo
teórico – religioso, filosófico ou científico – que não pode pensar realmente na luta de
classes que lhe deu origem (Chauí, 1980, 2004).
52
Enquanto corpo teórico e conjunto de regras práticas, a ideologia possui uma
coerência racional que se dá por meio de brancos, lacunas ou silêncios que nunca
poderão ser preenchidos, pois se isso acontecesse a coerência ideológica estaria
destruída. A ideologia é coerente como ciência, como moral, como tecnologia, como
filosofia, como religião, como pedagogia, como explicação e como ação apenas porque
não diz e não pode dizer tudo. Caso isso ocorresse quebrar-se-ia por dentro (Chauí,
1980, 2004).
Chauí (1980, 2004) exemplifica tal quebra, utilizando a idéia da família dentro
de uma sociedade capitalista, todavia, dado o contexto deste estudo, o exemplo que será
usado para ilustrar corresponde à idéia de pais.
Caso a ideologia mostrasse que no sistema capitalista existissem três tipos
diferentes de pais – o da classe média alta, o da classe média baixa e o da classe pobre –
quando se falasse “pais” a qual deles estariam se referindo? Afinal, não se poderia falar
os Pais, idéia abstrata que não tem lastro no real.
Por outro lado, se a ideologia pudesse mostrar que os pais da classe média alta
têm filhos para conservar e transmitir o capital sob a forma de patrimônio familiar e de
herança, teria de apresentar que, por esse motivo, nessa família constitui falta grave tais
pais terem filhos fora do casamento, pois assim o capital seria dividido com outros
Se a ideologia mostrasse todos os aspectos que constituem a realidade dos pais,
no sistema capitalista, não conseguiria manter a idéia e o ideal de pais e, por
conseguinte, não conseguiria justificar o motivo de não poder fazer certas coisas ou
então, o porquê de não poder dizer determinadas afirmações.
Segundo Chauí (1980, 2004), em citação a Engels e Marx, a ideologia não tem
história, mas modifica-se com o passar do tempo. Em outras palavras, a transformação
das idéias depende da mudança das relações sociais, econômicas e políticas e, por isso,
pode-se perceber que entre a ideologia e a estrutura de uma sociedade há
contemporaneidade (Althusser), ou seja, correspondência temporal entre a estrutura
social e as idéias ideológicas (Chauí, 1980, 2004).
Já as idéias não-ideológicas, isto é, aquelas que se empenham em compreender a
gênese ou a história real são capazes de ultrapassar o tempo em que são pensadas. Com
relação ao passado, de modo a não o explicar com as idéias do presente, mas
reencontrando as próprias determinações diferenciadoras constitutivas do passado; com
relação ao futuro, procurando, nas linhas de força do presente, aquilo que anuncia a
possibilidade futura (Chauí, 1980, 2004).
53
Enquanto a ideologia explica o presente como efeito do passado, o passado pelo
presente e o futuro pelo já existente, fazendo que este último deixe de ser o possível,
aquilo que os homens poderão realizar, para se tornar o previsível, aquilo que os
homens deverão realizar, o saber histórico mantém as diferenças temporais como
diferenças intrínsecas (Chauí, 1980, 2004).
A ideologia origina uma história imaginária reduzindo o passado e o futuro às
coordenadas do presente quando atribui o movimento da história a agentes ou sujeitos
que não podem realizá-lo. O exemplo dado por Chauí (1980, 2004) corresponde à
ideologia nacionalista que faz da Nação o sujeito da história, ocultando que a Nação é
uma unidade imaginária, pois é constituída efetivamente por classes sociais em luta.
A fabricação de histórias imaginárias pela ideologia corresponde a uma forma de
legitimar a dominação da classe dominante. Para ilustrar essa afirmação, basta remeter-
se à história ideológica, isto é, aquela narrada pelos livros didáticos, por exemplo, ao
analisar a história narrada percebe-se que ela é feita do ponto de vista do vencedor ou do
que detém o poder, ao passo que os dominados aparecem nos textos dos historiadores a
partir do modo como eram vistos e compreendidos pelos próprios vencedores (Chauí,
1980, 2004).
2.3 Trajetória metodológica de análise
A metodologia empregada para análise da AD corresponde à trajetória traçada
nesta investigação, que propõe uma análise documental
27
de um processo de destituição
do poder familiar, na busca dos objetivos a que nos propomos.
A AD está submetida aos seguintes princípios metodológicos (Courtine, 1981):
a) realiza o fechamento de um espaço discursivo
A análise do discurso, para poder operar, supõe enunciados finitos, espaços
discursivos limitados: isso significa que, ou nos dedicamos a textos naturalmente
fechados, ou que, por diversos artifícios, procedemos explicitamente (por amostragem)
ou implicitamente (por generalização a partir de fragmentos) a um fechamento do texto.
(Dubois apud Courtine, 1981)
27
Por tratar-se de uma análise documental não foi necessário solicitar autorização para trabalhar com o
processo verificatório de destituição do poder familiar.
54
Com base nesta primeira exigência foi necessário definir o objeto de pesquisa
que consiste em um processo verificatório de destituição de poder familiar escolhido
conforme os seguintes critérios:
seu tema consistia em um conflito que retratava crianças e adolescentes;
encontrava-se arquivado no momento inicial da pesquisa, pois já havia sido
concluído;
seu desarquivamento era viável;
era recente, isto é, teve seu início e fim na década de 1990;
passou-se na mesma década em que o Estatuto da Criança e do Adolescente
começou a vigorar;
ocorreu em juízo no estado de São Paulo.
b) Supõe um procedimento lingüístico de determinação das relações inerentes ao texto
A análise do discurso implica a colocação em funcionamento de um método
para determinar as relações inerentes ao texto, pelas quais, por hipótese, supomos que
definem a estrutura do discurso; e essas relações são aquelas que os termos do texto
(palavras, sintagmas, frases) mantêm entre si. (Dubois apud Courtine, 1981)
Após a escolha do objeto de pesquisa e em posse do material escolhido, leituras
foram realizadas com o intuito de compreendê-lo por meio de uma análise da
materialidade lingüística: o como se diz, quem diz, em que circunstâncias etc. Isto é,
naquilo que se mostra em sua sintaxe e enquanto processo de enunciação (em que o
sujeito se marca no que diz) fornecendo-nos pistas para compreendermos o modo como
o discurso que pesquisamos se textualiza (Orlandi, 2003, p.65).
Concluída tal fase, o próximo passo foi as várias leituras do documento visando
à identificação dos trechos em que se encontram as relações entre o prescrito e o real.
Possíveis categorias de análise foram hipotetizadas; entretanto, o discurso
relatado (Maingueneau, 2002), mais precisamente, a ilha enunciativa ou textual
(Maingueneau, 2002) e intertexto (Sant`anna, 2000) depois de uma análise-piloto foram
as categoria escolhidas.
c) Produz, no discurso, uma relação do lingüístico com o exterior da língua
28
28
Segundo Maingueneau (1987, 1997, p.75), as formações discursivas não possuem duas dimensões, uma
interior e outra exterior.
55
A interpretação dos resultados obtidos pela análise de discurso não pode
resultar apenas de uma comparação interna entre dois ou vários enunciados e
de uma colocação em correspondência com modelos lingüísticos. Com efeito, o
discurso realizado, independentemente da variável “língua”, implica três
sistemas de variáveis: umas levam em conta o locutor, outras, os temas do
enunciado, as últimas, enfim, as condições de produção do próprio enunciado.
(Dubois apud Courtine, 1981)
As análises
29
permitiram alcançar os objetivos propostos: a relação entre o
prescrito e o real dá-se pelo interdiscurso via discurso relatado e as ideologias, que se
destacaram nesta relação, depreendidas foram duas. Uma refere-se à existência de um
padrão na sociedade do que é cuidar bem de um filho independentemente da renda
familiar. Caso esse padrão não seja proporcionado, é preferível que os filhos vivam em
abrigo (com o mínimo necessário à fisiologia humana) do que no berço da família onde
há além de dificuldades financeiras laços afetivos; a outra consiste na situação de
pobreza caracterizar abandono dos filhos pelos pais.
Capítulo 3
Uma Contribuição da Esfera Jurídica: A Voz dos Especialistas
29
Encontram-se na terceira parte do trabalho.
56
No desenvolvimento da investigação, dificuldades foram encontradas dado o
objeto de pesquisa pertencer à esfera jurídica. Para compreender determinadas
nomenclaturas, entender os mecanismos de ação e localizar leis, foi necessário o apoio
profissional da área, sem o qual o objeto tornar-se-ia inacessível.
A contribuição ocorreu por meio de entrevistas informais face a face e por
telefonema, que não foram registradas na íntegra, apenas as respostas às incertezas
foram manuscritas. Nenhuma pergunta que não correspondesse a uma dúvida suscitada
pelo objeto de pesquisa foi feita, entretanto os esclarecimentos, muitas vezes, excediam
o questionamento, o que, segundo Rocha, Daher e Sant’Anna (2004), é comum à
entrevista:
... no texto produzido como resultado do encontro do entrevistador com o
entrevistado sempre haverá menção a fatos que não foram perguntados, assim
como digressões, retificações, etc.
Além das entrevistas, o especialista também contribuiu indicando e orientando a
bibliografia específica da área e desarquivando o processo de destituição do poder
familiar.
Parte III
Análises
57
O nosso propósito aqui é apresentar as análises do objeto desta investigação: a
relação entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição do poder familiar.
Como mencionado anteriormente, o material é composto por recortes que privilegiam a
relação entre o prescrito e o real na argumentação do promotor de justiça, na contra-
argumentação da advogada da mãe dos menores e na sentença do juiz de direito.
Os objetivos específicos de pesquisa nortearam tais recortes, os quais
possibilitam refletir, com base nos conhecimentos partilhados na interface dos estudos
da linguagem, do trabalho e do Direito, sobre o objeto de análise.
Por meio das reflexões iniciais, foi possível perceber, na argumentação, na
contra-argumentação e na sentença, a presença constante do discurso relatado
(Maingueneau, 2000), mais precisamente do intertexto (Sant’anna, 2000) e da ilha
enunciativa ou textual (Maingueneau, 2000). Assim, para organizar a análise foram
selecionados três trechos que dialogam entre si com base no artigo 23 do ECA. O
primeiro refere-se à argumentação do promotor de justiça pedindo a destituição do
poder familiar dos pais dos menores acusados de maltratarem e abandonarem seus
filhos; o segundo trata da contra-argumentação da advogada da mãe dos menores
solicitando a não-destituição de sua cliente do poder familiar; por fim, o terceiro
consiste na sentença do juiz do direito julgando o processo verificatório de destituição
do poder familiar.
A categoria lingüística de análise intertexto, empregada nos trechos
selecionados, possui o efeito de sentido de credibilidade e verdade, pois tem como fonte
um documento (o artigo 23 do ECA), que adquire força para ser responsável pela
execução de diferentes ações como a destituição ou não dos pais do poder familiar. Por
sua vez, a ilha enunciativa ou textual, por estar integrada por completo à sintaxe do
enunciado quando o enunciador citante utiliza e menciona, emprega e cita o enunciado
citado, possibilita dupla leitura de uma mesma lei, ao ser confrontada com uma situação
contraditória: a forma como os menores vivem ser ou não decorrente de maus-tratos e
abandono pelos pais.
Levando-se em conta a reflexão do discurso relatado, o interdiscurso pôde ser
recuperado contribuindo com a compreensão da relação entre o prescrito e o real, que
proporcionou a depreensão de duas ideologias predominantes nesta relação.
Assim, a reflexão deste estudo parte de categorias provenientes da teoria
discursivo-enunciativa – discurso relatado (Maingueneau, 2000), intertexto
(Santa’anna, 2000), ilha enunciativa ou textual e interdiscurso (Maingueneau, 2000) –
58
para então estabelecer articulações às noções, advindas dos estudos sobre o trabalho, de
prescrito e real (Guérin et al., 1997, 2004).
A seguir, serão apresentadas reflexões com base nas categorias de análise
(discurso relatado, ilha enunciativa ou textual e intertexto) consideradas constitutivas da
relação entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição do poder familiar.
As partes do processo, de onde foram extraídos os fragmentos utilizados na análise (a
argumentação do promotor de justiça, a contra-argumentação da advogada da mãe dos
menores e a sentença do juiz de direito), encontram-se respectivamente no Anexo1 (p.
71), no Anexo 2 (p.82) e no Anexo 3 (p.86).
Capítulo 1
As Vozes Discursivas no Diálogo Orientado
59
O processo verificatório em estudo apresenta-se na forma de um diálogo
orientado fundamentado na lei no qual a voz do outro é recuperada e articulada de
acordo com a intenção das partes envolvidas. Em um lado, encontra-se o promotor de
justiça que tem como objetivo proteger os direitos dos menores que, segundo denúncia,
não estão sendo cumpridos. Em outro, situam-se os pais dos menores representados
cada um por seu advogado com a finalidade de não serem destituídos do poder familiar.
O orientador desse diálogo é o juiz de direito que, juntamente com os técnicos do
judiciário – assistente social e psicóloga – e um médico, verifica a veracidade da
denúncia a fim de, ao sentenciar, pôr em prática a lei.
Em tal diálogo orientado, a lei, isto é, o prescrito na relação com o real, é o
discurso fundador
30
que, além de originar discursos outros, permite que o enunciador o
cite ao mesmo tempo que o autoriza a trabalhar para desenvolver o seu próprio discurso
o constituindo heterogeneamente no trabalho real. O artigo 23 do ECA é um exemplo,
no objeto de pesquisa, do prescrito como discurso fundador, pois origina o processo
verificatório de destituição do poder familiar em razão de uma situação denunciada que
contraria a lei, autorizando o promotor de justiça e a advogada da mãe dos menores a
desenvolverem seus próprios discursos conforme o objetivo de ambas as partes, além de
possibilitar ao juiz de direito sentenciar fundamentado nele e citá-lo a fim de justificar
seu ato jurisdicional.
31
Dessa forma, o discurso, sempre inacabado, caracteriza-se pelas vozes
discursivas que o atravessam e são denunciadas de alguma forma na trama enunciativa
independentemente da vontade do enunciador (Di Fanti, 2004). Assim, para analisarmos
como se concretiza a relação entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição
do poder familiar, utilizaremos as categorias lingüísticas de discurso relatado: ilha
enunciativa ou textual e intertexto.
1. Os discursos que constituem os discursos
O pedido de destituição do poder familiar, realizado pelo promotor de justiça,
baseia-se nos artigos 19, 21, 22, 23 e 24, do capítulo III intitulado Do direito à
30
A lei é entendida, nesta dissertação, como discurso fundador a partir de um deslocamento do conceito
de dêixis fundadora que, segundo Maingueneau (1987, 1997, p.42) corresponde à(s) situação(ões) de
enunciação anterior(es), que a dêixis atual utiliza para a repetição e da qual retira boa parte de sua
legitimidade.
31
Conforme o artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil (1997) todos os
julgamentos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, as
próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.
60
convivência familiar e comunitária, do ECA, isto é, do prescrito correspondente à lei
8.069/90 que preceitua nestes artigos que:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio
da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência
familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de
substâncias entorpecentes.
Art. 21. O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela
mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito
de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução
da divergência.
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos
menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir
as determinações judiciais.
Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo
suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder.
Parágrafo único. Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação
da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual
deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
Art. 24. A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente,
em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na
hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
Dessa forma,
o promotor de justiça argumenta:
Ademais, pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos e abandono,
além do que conforme a fotografia
32
que está nos autos, a criança pequena estava
sem fraudas (sic) ou roupas de baixo com suas partes pudentas (sic) em contato
com a terra, germes e excrementos de animais. (Anexo 1, p. 71)
Esta argumentação funda-se na relação dos artigos 19, 21, 22, 23 e 24 da lei
8.069/90 com a denúncia, desencadeadora do processo verificatório de destituição do
poder familiar, de maus-tratos e abandono sofridos pelos menores por seus pais. O
promotor de justiça vincula a denúncia à situação econômica, em que vive a família,
32
Considerando-se o anonimato dos protagonistas da pesquisa, as fotos citadas não foram incorporadas
no anexo.
61
registrada por fotografias nos autos do processo e, assim, conclui que a pobreza não
justifica o modo como os menores vivem sem higiene.
A advogada da mãe dos menores contra-argumenta:
E se pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos e abandono,
como menciona a inicial, estes não restaram provados nos autos, o que realmente
não pode ocorrer, a pobreza motivar a destituição do pátrio poder, em especial
quando existe amor, carinho, dedicação da mãe para com os filhos e cuidados
essenciais à criação e boa formação. (Anexo 2, p.82)
A contra-argumentação, além de dialogar com a argumentação (sua existência se
dá em resposta a ela), busca justificar-se remetendo-se a outras partes do processo.
A advogada da mãe dos menores, ao contra-argumentar, utiliza e menciona,
emprega e cita o enunciado argumentativo do promotor de justiça; o enunciado citado
corresponde a uma ilha enunciativa ou textual. Embora a contra-argumentação
apresente uma ilha enunciativa ou textual, sua articulação é contrária, pois os objetivos
de ambas as partes são diferentes. Ao passo que o promotor de justiça justifica o pedido
de destituição do poder familiar analisando a situação em que os menores vivem como
decorrente de maus-tratos e abandono e não como a forma encontrada pelos pais para
cuidarem de seus filhos com poucos recursos materiais, a advogada da mãe dos menores
justifica que, apesar de sua cliente possuir poucos recursos, ela cuida de seus filhos
corretamente, ou seja, a denúncia de maus-tratos e abandono não é verdadeira.
O quadro a seguir traz a argumentação do promotor de justiça ao lado da contra-
argumentação da advogada da mãe dos menores a fim de identificar a ilha enunciativa
ou textual que se encontra em negrito:
Fragmento pertencente ao discurso
argumentativo do promotor de justiça
Fragmento pertencente ao discurso
contra-argumentativo da advogada da mãe
dos menores
Anexo 1 Anexo 2
62
Ademais, pobreza não é e nunca foi
motivo para maus-tratos e abandono,
além do que conforme a fotografia que está
nos autos, a criança pequena estava sem
fraudas (sic) ou roupas de baixo com suas
partes pudentas (sic) em contato com a
terra, germes e excrementos de animais.
(grifo meu)
E se pobreza não é e nunca foi
motivo para maus-tratos e abandono,
como menciona a inicial, estes não
restaram provados nos autos, o que
realmente não pode ocorrer, a pobreza
motivar a destituição do pátrio poder,
33
em
especial quando existe amor, carinho,
dedicação da mãe para com os filhos e
cuidados essenciais à criação e boa
formação
. (grifo meu)
A contra-argumentação, além de recuperar por meio da ilha enunciativa ou
textual elementos da argumentação, dialoga com outros discursos que compõem o
processo verificatório. O trecho destacado abaixo recupera o pedido de instauração do
processo verificatório, parte da lide na qual o promotor de justiça expõe a situação de
abandono e maus-tratos sofridos pelos menores e requer a instauração do processo
verificatório visando à destituição do poder familiar que exercem os genitores sobre os
menores.
E se pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos e abandono,
como menciona a inicial, estes não restaram provados nos autos, o que
realmente não pode ocorrer, a pobreza motivar a destituição do pátrio poder, em
especial quando existe amor, carinho, dedicação da mãe para com os filhos e
cuidados essenciais à criação e boa formação.
Por sua vez, os trechos destacados seguintes dialogam entre si e com o estudo
social e o parecer médico solicitados pelo juiz de direito a fim de averiguar a denúncia
de maus-tratos e abandono, desencadeadora do processo verificatório.
E se pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos e abandono,
como menciona a inicial, estes não restaram provados nos autos, o que
realmente não pode ocorrer, a pobreza motivar a destituição do pátrio poder, em
63
especial quando existe amor, carinho, dedicação da mãe para com os filhos
e cuidados essenciais à criação e boa formação.
O estudo social constatou que:
Todos os filhos aparentam estar saudáveis, recebendo dentro das poucas
possibilidades socioeconômicas o básico necessário para o desenvolvimento, além de
amor e carinho por parte da genitora.
A mãe é uma mulher simples, com poucos conhecimentos, porém batalhadora e
preocupada com os filhos, tentando sempre fazer o melhor por eles.
E o parecer médico atestou:
Declaro para os devidos fins, a pedido da parte interessada, que as crianças abaixo
mencionadas consultam periodicamente comigo no posto de saúde, de acordo com o
programa de Saúde da Criança.
... quero ressaltar que as patologias apresentadas são básicas, ou seja, estão dentro
do esperado para um programa de Saúde Infantil neste país, e apesar dessas patologias
ratifico que estas crianças não se encontram em desnutrição no momento, saliento que não
encontrei nenhum sinal de traumatismo contuso nem cortante, nem escoriações, nem
equimoses em todas as crianças examinadas no momento.
Analisando ainda a contra-argumentação, no trecho destacado que se segue, é
recuperada pelo intertexto a idéia de legalidade.
E se pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos e abandono, como
menciona a inicial, estes não restaram provados nos autos, o que realmente não
pode ocorrer, a pobreza motivar a destituição do pátrio poder, em especial
quando existe amor, carinho, dedicação da mãe para com os filhos e cuidados
essenciais à criação e boa formação.
O efeito de sentido do intertexto aproxima-se das idéias de credibilidade e
verdade, já que pertence ao campo das certezas técnicas e da legalidade, sua fonte é o
artigo 23 lei 8.069/90 que adquire força para ser responsável pela execução de
diferentes ações como a destituição do poder familiar:
A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a
perda ou a suspensão do pátrio poder.
64
Parágrafo único. Não existindo outro motivo, que por si só autorize a decretação
da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual
deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
O discurso contra-argumentativo da advogada da mãe dos menores originou-se
do discurso argumentativo do promotor de justiça solicitando a destituição do poder
familiar. Para defender o interesse de sua cliente, a advogada desenvolveu seu trabalho
real (a contra-argumentação) com base em uma ilha enunciativa ou textual; entretanto,
articulou-a de modo contrário ao empregado originalmente no trabalho real
(argumentação) do promotor de justiça. Além de utilizar informações constituintes do
processo verificatório, objeto de pesquisa, tais como o estudo social e o parecer médico,
fez referência ao prescrito, artigo 23 da lei 8.069/90, que, por meio do intertexto, pôde
ser recuperado.
O diálogo estabelecido entre o trabalho real do promotor de justiça e o da
advogada da mãe dos menores é retomado no do juiz de direito, isto é, na sentença que,
no objeto de pesquisa, destituiu somente o pai dos menores do poder familiar com base
nos artigos 23 e 24 do ECA. Ao sentenciar, o juiz de direito, além de considerar a
argumentação e a contra-argumentação, leva em conta o estudo social e psicológico da
família dos menores bem como o parecer médico das crianças e adolescentes acusados
de sofrerem maus-tratos e abandono com o intuito de aplicar o prescrito, a lei.
Ao sentenciar, o juiz de direito posiciona-se interpretando o prescrito, artigo 23
da lei 8.069/90, que é recuperado pelo intertexto. O efeito de sentido dessa categoria
lingüística aproxima-se das idéias de credibilidade e verdade, pois pertence ao campo
das certezas técnicas e da legalidade, sua fonte é o prescrito que adquire força para ser
responsável pela execução de diferentes ações como a destituição ou não do poder
familiar. O fragmento em negrito, correspondente ao intertexto, apresenta-se, na
sentença, seguido do emprego de uma citação literal ao Egrégio Tribunal de Justiça
conferindo autoridade às palavras do juiz e justificando sua sentença.
... optando-se pela via excepcional da destituição somente quando
demonstrada a inaptidão efetiva dos pais para o exercício do pátrio poder, o
que não pode ser presumido apenas pela situação socioeconômica destes.
Em citação ao E. Tribunal de Justiça:
... tanto é assim que o artigo 23° do Estatuto da criança e do adolescente
dispõe que a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo
65
suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder.
(Relator: Ney Almada –
Apelação Cível n. 19.192-0 – Dracena – 28.07.94).
(Anexo 3, p.86)
Por meio do discurso relatado, mais especificamente, pelas categorias
lingüísticas, ilha enunciativa ou textual e intertexto, podemos concluir que a relação
entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição do poder familiar se dá pelo
interdiscurso, isto é, pela inter-relação de vozes discursivas, constitutivas do objeto de
pesquisa.
O primado do interdiscurso, segundo Maingueneau
... inscreve-se na perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que amarra, em uma
relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro (Maingueneau, 2005, p.33).
A presença do outro no discurso ocorre pela heterogeneidade mostrada e pela
heterogeneidade constitutiva. A primeira é acessível aos aparelhos lingüísticos, na
medida em que permite apreender seqüências delimitadas que mostram claramente sua
alteridade (Maingueneau, 2005). A segunda, ao contrário, não deixa marcas visíveis: as
palavras, os enunciados de outrem estão tão intimamente ligados ao texto que não
podem ser apreendidos por uma abordagem lingüística stricto sensu (ibidem).
Entretanto, é possível pela heterogeneidade mostrada, isto é, pelo discurso
relatado recuperar o interdiscurso, mediador da relação entre o prescrito e o real no
discurso jurídico de destituição do poder familiar.
Capítulo 2
As Ideologias na Relação entre o Prescrito e o Real
66
O discurso do outro, dado o mecanismo alteritário, aparece de formas diversas
no discurso um produzindo diferentes efeitos de sentido, como relações de
concordância, de oposições e recusas (Di Fanti, 2004).
Assim, a dimensão avaliativa da significação dos enunciados exprime um
posicionamento social valorativo; portanto, todo e qualquer enunciado é ideológico
porque se concretiza na esfera de uma das ideologias e expressa sempre uma posição
avaliativa (Faraco, 2003, 2006).
A fim de depreendermos a(s) ideologia(s) predominante(s) na relação entre o
prescrito e o real, comparemos dois fragmentos. Um se refere à argumentação do
promotor de justiça, ao passo que o outro, à sentença do juiz de direito.
A escolha do fragmento do promotor de justiça justifica-se por corresponder ao
pedido de destituição do poder familiar, originado da relação entre o prescrito, artigos
19, 21, 22, 23 e 24 do ECA, com a denúncia de maus-tratos e abandono. Por sua vez, o
fragmento da sentença do juiz de direito foi escolhido em virtude de sua função de
aplicar o prescrito, isto é, a lei desvinculada de interesses do contexto conflituoso.
2. As ideologias depreendidas
Os fragmentos a seguir são comparados com a finalidade de depreendermos a(s)
ideologia(s) predominante(s) na relação entre o prescrito e o real.
Entretanto, considerando-se a dificuldade da depreensão ideológica, uma vez
que todos o enunciados são ideológicos bem como as ideologias são diversas, o
fragmento da sentença do juiz de direito será a referência para a análise, isto é, a
compreensão do contexto conflituoso tida como a que retrata a realidade corresponde à
do juiz de direito.
Fragmento da argumentação do
promotor de justiça presente na inicial
Fragmento da sentença do juiz de
direito
Anexo 1 Anexo 3
67
“Ante o relato as crianças
encontravam-se em péssimas condições,
vivendo em situação subumana, carentes de
mínimas condições de subsistência, muito mal
cuidados, sem qualquer higiene, havendo
espalhado pela casa fezes humana; morando
em local completamente inadequado,
desprovido de instalações de saneamento
básico, como água encanada, esgoto e energia
elétrica.
Acrescenta-se que tal situação não se
deve apenas em virtude do estado de pobreza,
mas pelo que se denota até mesmo pelas fotos,
pelo descaso e desleixo com a casa e com as
crianças, que ocasionam total falta de higiene e
organização, que privam os infantes das
condições mínimas de sobrevivência.
Ademais, pobreza não é e nunca foi
motivo para maus-tratos e abandono, além do
que conforme a fotografia que está nos autos, a
criança pequena estava sem fraudas (sic) ou
roupas de baixo com suas partes pudentas (sic)
em contato com a terra, germes e excrementos
de animais. (Anexo I, p.71)
As assertivas extraídas da inicial, relativamente
ao comportamento da requerida, tinham como
fundamento tão-somente as informações
prestadas ... além de algumas fotografias do
local onde residiam os menores. A conclusão
exposta na inicial, a partir daqueles parcos
elementos, não se confirmou durante a
instrução do processo.
No curso da instrução foi realizado
estudo social na residência dos menores, além
de outras visitas em caráter de
acompanhamento (fls. 104/106), objetivando
traçar um quadro nítido da situação social,
habitacional e econômica daquelas crianças,
ensejadora, segundo o autor, da então
pretendida destituição do pátrio poder.
O que se constatou, ao contrário, foi
que não obstante a condição de inegável
pobreza ostentada pela requerida, buscava ela
através do trabalho e da ajuda de entidades
religiosas a obtenção dos meios necessários
para suprir as necessidades básicas de seus
nove filhos, porquanto não contava com a
colaboração do requerido, que já há tempos
não contribuía com o sustento dos menores.
(Anexo 3, p.86)
O promotor de justiça, em sua argumentação na inicial
34
do processo
verificatório de destituição do poder familiar, interpreta o relato da denúncia e as
fotografias anexadas a ela e conclui, para efetuar o pedido de destituição dos pais dos
menores do poder familiar, que o modo como os menores vivem e são cuidados não é
fruto da condição socioeconômica da família, mas sim originada pelo descaso e desleixo
dos pais. Caso fosse justificado o modo como vive a família pela carência financeira,
conforme o artigo 23 do ECA, o pedido de destituição do poder familiar não se daria,
68
pois cabe ao Estado, por meio de programas assistenciais, proporcionar recursos
materiais à família carente.
Entretanto, na sentença o juiz de direito, além de afirmar que as informações
consideradas pelo promotor de justiça eram insuficientes, com base no estudo social e
laudo psicológico dos menores e da mãe bem como no parecer médico dos menores,
afirma que a mãe para cuidar de seus filhos trabalhava e contava com ajuda de entidades
religiosas, isto é, apesar das dificuldades financeiras ela preocupava-se com seus filhos
e procurava meios para cuidar deles.
Considerando-se a função da ideologia de apagar diferenças como as de classes
e fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando
certos referenciais identificadores de todos e para todos, é possível depreender da
argumentação do promotor de justiça a existência de um padrão único social dos pais
cuidarem de seus filhos menores de idade independentemente da situação
socioeconômica da família e do não cumprimento da lei, atribuição do Estado, que
garante condições materiais à família de crianças e adolescentes carente.
Também é importante considerar que o processo verificatório de destituição do
poder familiar teve seu início em 1996 e foi concluído em 1999, isto é, deu-se na
mesma década em que o Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado. Antes de sua
implantação, a legislação de menores, de 1979, elaborada durante o período da ditadura
militar, tratava da questão do menor carente como problema de segurança nacional, em
outras palavras, crianças e adolescentes encontrados na rua vestidos com roupas
rasgadas ou sujos caracterizando descaso e desleixo dos pais ao cuidar e seus filhos
eram considerados irregulares e, por isso, eram, muitas vezes, recolhidos em
instituições de segregação, na ausência total do conceito de proteção integral da infância
(Ferreira et al.). Portanto, a pobreza caracteriza, no objeto de pesquisa, maus-tratos e
abandono.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
34
Corresponde ao relato da ilegalidade existente e o objeto da ação.
69
As reflexões propostas nesta investigação acerca dos direitos legais dos menores
assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e do modo como esses direitos
são articulados diante de uma situação conflituosa concreta foram possibilitadas por
meio da análise da relação entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição
do poder familiar e da depreensão das ideologias predominantes nesta relação.
O processo verificatório de destituição do poder familiar, objeto de pesquisa,
ocorrido na década de 1990, mesma data que passou a vigorar o ECA, retrata um
momento de transição. A criança e o adolescente carentes deixam a condição de
menores irregulares e passam a ser considerados sujeitos de direito, isto é, deixam de
representar ameaça para a sociedade e recebem uma legislação de proteção integral.
No objeto de pesquisa, as análises apontaram que a relação entre o prescrito e o
real (Guérin et al., 1997, 2004), noções deslocadas da ergonomia para a esfera jurídica
como sendo respectivamente a lei e a sua articulação conforme o objetivo das partes
envolvidas no processo verificatório de destituição do poder familiar, ocorre pelo
interdiscurso (Maingueneau, 1987, 1997) via discurso relatado (Maingueneau, 2002),
em especial pelas categorias lingüísticas de ilha enunciativa ou textual (Maingueneau,
2002) e intertexto (Sant’anna, 2000).
Considerando-se ainda as análises da relação entre o prescrito e o real foi
possível depreendermos duas das ideologias predominantes. A primeira refere-se ao um
único padrão social dos pais cuidarem de seus filhos menores de idade
independentemente da situação socioeconômica da família e do não cumprimento da lei,
atribuição do Estado, que garante condições materiais à família de crianças e
adolescentes carente. A segunda consiste na situação de pobreza caracterizar maus-
tratos e abandono.
A articulação entre os estudos da linguagem e os do trabalho na esfera jurídica
mobilizou diferentes saberes a fim de desenvolver a pesquisa. A teoria da linguagem
deu sua contribuição com a perspectiva dos estudos de Maingueneau (1987, 1997) e os
estudos sobre o trabalho com os conceitos de prescrito e real (Guérin et al., 1987, 2004).
Assim, a linguagem foi o viés escolhido para a análise documental do discurso jurídico
de destituição do poder familiar.
É importante ressaltar que esta pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação em Lingüística Aplicada e, por isso, apresenta limitações no que concerne à
esfera jurídica. Embora um especialista desta área tenha dado sua contribuição
70
indicando bibliografias básicas e respondendo a dúvidas no decorrer da investigação
existe a restrição técnica.
Outra limitação encontrada resultou do objeto de pesquisa escolhido, dos
objetivos propostos pela investigação e do curto período de tempo para o
desenvolvimento da pesquisa de mestrado.
Além das importantes contribuições dos estudos da linguagem e dos estudos
sobre o trabalho, o levantamento histórico das leis no Brasil a partir do período colonial
a fim de contextualizar o Estatuto da Criança e do Adolescente teve demasiada
importância, pois possibilitou compreender a situação do menor carente hoje no Brasil.
Embora o ECA tenha sido uma grande conquista para os brasileiros, ela é recente, pois
foi preciso quatro séculos após sua colonização de exploração pelos portugueses para o
Brasil enxergar suas crianças e adolescentes e os considerarem cidadãos que precisam
de proteção integral para se desenvolverem.
Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente garantir proteção integral aos
menores, os conflitos originados pela infância pobre continuam existindo, por exemplo,
o processo verificatório de destituição do poder familiar, objeto de pesquisa,
desencadeado por uma denúncia de maus-tratos e abandono que, após ser averiguada,
mostrou-se improcedente. Todavia, até que fosse constatada a não-veracidade da
denúncia, a mãe e seus nove filhos sofreram por três anos a possibilidade de serem
separados definitivamente em razão da destituição do poder familiar.
O estudo da relação entre o prescrito e o real no discurso jurídico de destituição
do poder familiar, realizado na interface da lingüística aplicada com a abordagem
ergonômica, permite o embasamento em teorias que estudam o discurso e o trabalho,
tornando possível com base na análise discursiva uma reflexão da heterogeneidade
discursiva, estabelecida na tensão entre o prescrito e o real.
Dessa forma, esse novo campo do conhecimento permite, nesta investigação,
compreender discursivamente a relação entre o prescrito e o real.
71
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76
ANEXOS
ANEXO 1
ARGUMENTAÇÃO DO PROMOTOR DE JUSTIÇA
ANEXO 2
CONTRA-ARGUMENTAÇÃO DA ADVOGADA DA MÃE DOS MENORES
ANEXO 3
SENTENÇA DO JUIZ DE DIREITO
77
ANEXO 1
ARGUMENTAÇÃO DO PROMOTOR DE JUSTIÇA
78
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO.
PROCESSO
O representante do Ministério Público infra-assinado, no
uso de suas atribuições legais, com base nos arts. 22, 24, 26, 98, II e III, 129, X, 163 e
169, todos do ECA., vem expor e requerer o que segue:
1 – Trata-se de Procedimento Verificatório visando a
destituição do pátio poder dos genitores, referente aos menores JOSÉ, nascido aos
01.04.90, ESTELA, nascida aos 08.12.91, ADELINA, nascida aos 11.06.94, e
FRANCISCO, nascido aos 29.06.93 e TIAGO, nascido em data incerta com
aproximadamente um ano de idade, filhos de ANTONIO e FRANCISCA, que residem
nesta cidade, onde foram apreendidos por V. Exa., e abrigados em entidade após
averiguação de denúncia de abandono.
2 – Segundo o constante na informação através de agentes
da pastoral da moradia desta municipalidade chegou ao conhecimento deste Juízo, a
situação de miséria e abandono a que se encontravam os menores que após averiguação
foram apreendidos.
3 – Ante o relatado as crianças encontravam-se em
péssimas condições, vivendo em situação subumana, carentes de mínimas condições de
subsistência, muito mal cuidados, sem qualquer higiene, havendo espalhado pela casa
fazes humanas; morando em local completamente inadequado, desprovido de
instalações de saneamento básico, como água encanada, esgoto e energia elétrica.
79
4 – Acrescente-se que tal situação não se deve apenas em
virtude do estado de pobreza, mas pelo que se denota até mesmo pelas fotos de fls., pelo
descaso e desleixo com a casa e as crianças, que ocasionam total falta de higiene e
organização, que privam os infantes das condições mínimas de sobrevivência.
5 – Ademais, pobreza não é e nunca foi motivo para
maus-tratos e abandono, além do que conforme a fotografia que está nos autos, a criança
pequena esta sem frauda as roupas de baixo com suas partes pudendas em contato com a
terra, germes e excrementos de animais.
6 – Ocorre ainda que as crianças encontravam-se
famintas, e conforme consta estariam passando fome, sem quaisquer cuidados médicos,
apesar de doentes, com muitos piolhos e visivelmente desnutridas e abandonadas.
7 – Acrescente-se que o genitor não exerce função
laborativa, apesar de possuir nove filhos, não tendo assim condições de fornecer às
crianças mínimas condições de vida, havendo chegado a esta Promotoria por
informações do Gabinete da Prefeitura Municipal que o genitor abusa sexualmente da
filha de 16 anos, o que será averiguado em procedimento próprio, demais isso a família
vive da caridade, que lhes fornece a cesta básica, mas dadas às condições de vida dessas
crianças, sem a perspectiva de melhora, procuram a municipalidade.
8 – Além disso, consta nos autos que o genitor é pessoa
muito violenta, tendo sido acusado até de ser autor de homicídio, tanto que é muito
temido no bairro onde reside, ocorrendo também não ser esta a primeira vez que é
denunciado, já tendo comparecido pessoas neste Juízo solicitando providências com
relação aos menores.
9 – Outrossim, conforme consta a certidão de fls. o
genitor convive maritalmente com outra mulher, a qual encontra-se grávida, tem quatro
filhas menores, e que mora nas proximidades de sua residência, sendo que as
denunciantes temem pela integridade física e moral dessas menores, dada a
periculosidade do requerido, que está ameaçando as denunciantes de mal injusto e
grave.
80
10 – Pelo exposto, os genitores negligenciam no
cumprimento de todos seus deveres e obrigações, não prestando assistência médica,
material e moral aos filhos, submetidos a situação de miséria e abandono em virtude de
seus desregramentos e paternidade irresponsável, sendo que não há qualquer previsão
ou perspectiva de reversão dessa situação, que não pode subsistir, sob pena de violação
dos direitos fundamentais da criança, garantidos pelo princípio da proteção integral com
fulcro no art. Primeiro do ECA.,
Isso posto para definir a vida dos menores que estão
abandonados sob todos os aspectos, física, financeira, emocional e psicologicamente,
expostos a violência, eis que têm direito à assistência de família biológica ou adotiva,
REQUEIRO a V.Exa. a instauração de procedimento contraditório visando a destituição
do pátrio poder que os genitores exercem sobre os menores, a serem citados no
endereço de fls. 02, a fim de que, querendo, no prazo da lei ofereçam resposta escrita,
indicando provas a serem produzidas e oferecendo rol de testemunhas e documentos,
com observância dos artigos 158 e seguintes do ECA.
E mais a amparar este pedido, requeiro sejam
considerados os demais elementos de provas inseridos nos autos.
Termos em que pede deferimento.
17 de outubro de 1996.
81
ANEXO 2
CONTRA-ARGUMENTAÇÃO DA ADVOGADA DA MÃE DOS MENORES
82
AO EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO.
PROCESSO
DIZEM JOSÉ e OO, representados por sua mãe,
FRANCISCA, já qualificados nos autos,
por sua advogada.
EM
CONTESTAÇÃO
A presente ação de destituição de pátrio poder teve início
com a busca e apreensão dos menores contestantes, determinada pelo Juízo, porque
segunda alega as crianças estariam
“em completo estado de abandono, e em condições
miseráveis de sobrevivência, sem qualquer
assepsia, em local de péssimas condições e com
manifesto prejuízo até para a saúde das crianças”.
Todavia, baseado em um relado de um comissário de
menores, uma guarda municipal, e pessoas pertencentes a pastoral, o MM Juiz sem
qualquer cautela determinou a apreensão dos menores e sua colocação provisória em
abrigo, apreensão esta que causou traumas e danos irreparáveis a mãe dos menores e,
principalmente, aos menores que certamente carregarão a imagem deste triste dia até o
fim de suas vidas.
E mais, o DD Magistrado invadiu a jurisdição ao decidir,
e até se corrigir o lamentável equívoco se passaram longos oito dias, que somente quem
acompanhou o sofrimento da mãe pela perda dos filhinhos, e a alegria do reencontro dos
menores com ela pode avaliar o triste pesadelo.
83
Somente ao receber a ordem do E. Tribunal de Justiça,
proferida em liminar de agravo de instrumento, foi que o MM Juiz permitiu a entrega
dos menores à sua mãe.
Poder-se-á alegar que aquele magistrado agiu assim
conforme norma legal, protegendo direito dos menores, porém não se deve perder de
vista que a norma legal tem aplicação genérica, cabendo ao magistrado, quando de sua
aplicação usar de cautela e bom senso, que deve ser comum a eles, pela sua posição e
ofício de decidir.
A retirada dos menores de sua mãe foi baseada
simplesmente em um relato de comissário
de menores, guarda municipal e informação
de pessoas
de pastoral, quem são estas pessoas? Que informação possuem? Qual o grau
de instrução delas?
Serão estas pessoas semi-analfabetas, ou quiçá, até
frustradas em sua própria vida e para desafogarem o mal sucedido compõe a pastoral?
Ora, pobreza das pessoas é fato, mas não pode constituir
motivo a privar as crianças da convivência materna.
As condições de sobrevivência da família deveriam ser
comprovadas por técnicos, como fora determinado e realizado por esse E. Juízo, e
somente após, se for o caso, em situações extremas, destituir os pais do pátrio poder.
O que se apurou desde o início pelos laudos de fls. 49 a
55, é que de fato a família dos menores é pobre, mas vive dignamente.
Senão vejamos.
– dos nove filhos de D. Francisca, todos os que estão em idade escolar
freqüentam as aulas;
84
– Pedro e Paulo com 15 e 13 anos de idade, além de freqüentarem a escola
regularmente, freqüentam escola de futebol, com gratuidade concedida em consideração
às suas pessoas;
– Maria com 16 anos de idade, além de freqüentar a escola regularmente,
aprende a tocar violão e canta no coral da Igreja católica do bairro.
Onde mora, apesar de ser barraco de madeira com chão de
terra, é local higienizado e segundo a Sra. Assistente Social existem flores plantadas.
A mãe dos menores mantém contato constante com os
filhos, trabalha para mantê-los, porém executa serviços em duas chácaras vizinhas à
moradia e com seus filhos sempre à sua volta.
Apesar da pobreza da família dos contestantes, que
infelizmente é uma realidade em grande percentual da sociedade brasileira, devem ser
consideradas as condições de sobrevivência, avaliando a afetividade entre os membros
da família, os meios de possibilidade de uma vida melhor no futuro.
Os laudos apresentam condições normais de
sobrevivência, em especial o laudo médico que considera os menores em condições
normais de saúde, denunciando somente verminose, que é realidade das crianças de
todos os níveis sociais.
No requerimento de destituição de pátrio poder formulado
pelo ilustre representante do Ministério Público de fls. 14 a 16, menciona-se que,
“ ... conforme fotografia que está nos autos as
crianças pequenas estavam sem fraudas ou roupas
de baixo com suas partes pudentas em contato com
a terra, germes e excrementos de animais.”
fato esse estanho, porque a olho nu não dá para se observar que as crianças estão sem
roupas de baixo ou fraldas, e nem dá para perceber excremento de animais.
85
E se a pobreza não é e nunca foi motivo para maus-tratos
e abandono, como menciona a inicial, estes não restaram provados nos autos, o que
realmente não pode ocorrer, a pobreza motivar a destituição do pátrio poder, em
especial quando existe amor, carinho, dedicação da mãe para com os filhos e cuidados
essenciais à criação e boa formação.
A considerar viáveis casos como este dos contestantes,
preferível seria tornar todas as mulheres pobres estéreis, a deixá-las serem mães e
bruscamente sob alegação de “maus-tratos” oriundos da situação econômica (pobreza),
separar mãe e filho.
Cabe enfatizar aqui que o bebê de um ano, Tiago, quando
bruscamente tirado da mãe no dia 25/10/96, era ainda por ela amamentado, e foi forçosa
e violentamente desmamado, e colocado por oito dias entre pessoas estranhas.
A menor Adelina de dois anos até agora, já passados três
meses dos fatos entra em desespero ao deparar com quaisquer estranhos, chora e se
agarra à mãe de medo de ser novamente separada (fls. 51).
Se essas crianças não tivessem o carinho e dedicação da
mãe não se portariam dessa forma.
Assim, conforme exposto é incabível, e inviável a
destituição de pátrio poder em relação à mãe dos menores pela simples ausência dos
motivos que possam ensejá-la, devendo a ação ser julgada improcedente.
Protesta-se pela produção de prova testemunhal e
documental, cujas testemunhas serão arroladas posteriormente.
13 de fevereiro de 1997.
86
ANEXO 3
SENTENÇA DO JUIZ DE DIREITO
87
PODER JUDICIÁRIO
PROCESSO
Vistos.
O Ministério Público propôs Ação de Destituição do
Pátrio Poder em face de Antonio e Francisca, pela qual pretende sejam demandados
destituídos do pátrio poder exercido sobre seus filhos menores, José, Estela, Adelina e
Francisco, alegando, em síntese, que as crianças estavam sendo submetidas abandono
material pelos pais, já que viviam em moradia sem qualquer higiene, desnutridas e com
evidente risco à sua saúde. O requerido, por seu lado, é pessoa não dada ao trabalho, que
ostenta temperamento violento, tendo abusado sexualmente de sua filha de dezesseis
anos de idade (fls.14/16).
Em contestação, a requerida negou que os menores
estivessem em estado de abandono, afirmando que todos os seus filhos em idade escolar
estão matriculados em estabelecimentos públicos de ensino. A partir apenas de relato
oferecido por voluntário que presta serviços junto ao Juízo, determinou-se a apreensão
dos menores, medida adotada sem que fosse realizado sequer o necessário estudo social
na residência dos demandados. Não obstante reconheça o estado de pobreza em que
vive, a requerida nega que tenha abandonado seus filhos ou infligido a estes maus-
tratos, como alegado na inicial (fls.91/94).
O requerido encontra-se preso, razão pela qual ofereceu
contestação por intermédio de curador especial, alegando em sua defesa que a
88
condenação por crime cometido contra um de seus filhos, não determinaria a perda do
pátrio poder em relação aos demais. De outra parte, por ocasião da apreensão dos
menores, o requerido já não mais vivia em companhia da requerida, não podendo ser
responsabilizado por eventual estado de abandono ao qual foram expostos os infantes
(fls.129/131).
No curso do processo foram realizados dois estudos
sociais (fls.49/53 e 104/106), além de avaliação médica (fls.54/55) e psicológica
(fls.108/112).
Durante a instrução foram ouvidas quatro testemunhas
(fls.153/157), sobrevindo nova informação por conta de vista realizada pela Assistente
Social do juízo na residência dos menores (fls.164/165).
As Partes ofertaram suas alegações finais, tendo o autor,
naquela oportunidade, pugnando pela procedência da ação somente em relação ao
requerido, ale, do encaminhamento de cópias de depoimentos à Autoridade Policial para
a instauração de inquérito pelo crime de falso testemunho (fls. 180/183).
É o relatório.
DECIDIDO.
As circunstâncias particulares que cercaram a tramitação
deste processo, exigem alguns esclarecimentos iniciais acerca de aspectos não
diretamente relacionados ao mérito da causa.
A análise dos autos revela que o procedimento
envolvendo alguns dos filhos dos demandados teve início por informação prestada por
Mateus e Daniel, respectivamente, voluntário e guarda municipal, que prestavam
serviço junto à Vara da Infância e da Juventude.
Segundo os informantes, a partir de denúncia formulada
por Edna, teriam comparecido à residência dos menores, constatando que estes estariam
sendo tratados sem as mínimas condições de higiene, apresentando-se desnutridos e
sujos, sendo certo, ainda, que o genitor destes seria pessoa violenta, provocando temor
nos demais moradores do local (fls.03/04).
A partir daquelas informações, na mesma data, o MM Juiz
daquela vara determinou a busca e apreensão dos menores, os quais foram internados
89
em local não indicado nos autos, sobrevindo, no dia seguinte àquela medida, a
propositura da presente ação de destituição.
Tendo sido este Juízo informado pelo Ministério Público
de que os menores residiriam no município, oficiou ao Juízo da Infância de Juventude
solicitando o encaminhamento dos autos para a adoção das medidas cabíveis (autos em
apenso), o que somente foi efetivado quando, em razão de decisão proferida pelo
E.Tribunal de Justiça em agravo interposto contra a decisão daquele Juízo, suspendeu-se
a medida cautelar aplicada.
Observo que a aludida medida, adotada em caráter
protetivo, alcançava apenas os filhos mais novos dos requeridos, não atingindo os
demais, inclusive Maria, apontada como vítima de abusos sexuais praticados por seu
genitor.
Com estas observações iniciais, necessárias à melhor
compreensão dos fatos que determinaram a propositura da ação, cumpre analisar a
questão em seu mérito.
Há que se distinguir as condutas atribuídas a cada um dos
requeridos, uma vez que a estes são imputadas violações específicas aos deveres
inerentes ao exercício do pátrio poder.
No que tange a requerida Francisca, que pelo que indicam
os autos, encontrava-se com a guarda dos filhos do casal, eis que o requerido, mantendo
relacionamento extraconjugal, já não participava diretamente da criação dos filhos,
recaindo sobre ela a imputação de abandono material dos menores, porquanto seria
responsável pela exposição destes ao risco de doenças, dada a falta de higiene de sua
moradia, além de não prover a alimentação daquelas crianças, permitindo que
chegassem ao estado de desnutrição.
As assertivas extraídas da inicial, relativamente ao
comportamento da requerida, tinham como fundamento tão-somente as informações
prestadas às fls.03/04, além de algumas fotografias do local onde residiam os menores.
A conclusão exposta na inicial, a partir daqueles parcos elementos, não se confirmou
durante a instrução do processo.
No curso da instrução foi realizado estudo social na
residência dos menores, além de outras visitas em caráter de acompanhamento
(fls.104/106), objetivando traçar um quadro nítido da situação social, habitacional e
90
econômica daquelas crianças, ensejadora, segundo o autor, da então pretendida
destituição do pátrio poder.
O que se constatou, ao contrário, foi que não obstante a
condição de inegável pobreza ostentada pela requerida, buscava ela através do trabalho
e da ajuda de entidades religiosas e obtenção dos meios necessários para suprir as
necessidades básicas de seus nove filhos, porquanto não contava com a colaboração do
requerido, que já há tempos não contribuía com o sustento dos menores (fls.49/53).
Os menores foram submetidos à avaliação médica, que
afastou a alegação de desnutrição, concluindo estarem em boas condições de saúde,
apresentando patologia (verminoses) própria para a faixa etária e para as condições
socioeconômica destes.
A avaliação psicológica, por seu turno, revelou que a
requerida possui vínculos afetivos com seus filhos, sendo estes recíprocos, sendo
apontada pelos menores como uma “figura positiva e gratificante” (fls.108/112).
A mesma avaliação apontou que a requerida tem exercido
influência positiva sobre seus filhos, sendo que os mais velhos demonstraram
disposição em colaborar com ela na obtenção dos recursos necessários à melhoria das
condições de vida daquela família (fls.108/112).
A prova oral não se contraria a direção indicada pelos
estudos técnicos, exceto quanto aos depoimentos prestados pelas testemunhas Mateus e
Daniel.
A testemunha Edna, apontada como autora da denúncia
que ensejou a posterior busca e apreensão dos menores, ouvida em Juízo, não confirmou
a veracidade das imputações lançadas contra a requerida.
Segundo a mencionada testemunha, a requerida recebia
auxílio de religiosos, entre eles a própria depoente, tendo esta, à época, percebido que a
demandada e seus filhos eram pessoas que demonstravam evidente tristeza, fato que lhe
chamou a atenção. Indagada a respeito pela testemunha, a requerida confidenciou acerca
dos abusos sexuais praticados pelo requerido contra a menor Maria, como também o
medo que incutia em todos os membros da família, em razão de seu temperamento
violento. O pedido de intervenção da autoridade judiciária prendia-se, segundo a
testemunha, aos atos praticados pelo requerido, em relação ao qual pretendiam fossem
adotadas as providências para afastá-lo do lar, uma vez que consideravam a requerida
apta a cuidar de seus filhos (fls.153).
91
Ao contrário do que afirmaram Mateus e Daniel, a
testemunha Edna revelou que, não obstante o estado de efetiva pobreza em que vivam
os menores, a requerida dedicava-lhes os cuidados necessários, apresentando-se sempre
limpos e alimentados (fls.153).
O depoimento prestado pela testemunha Júlia (fls.157),
que também prestava auxílio à família dos menores, não se afasta do relato oferecido
por Edna, indicando que a requerida prestava aos filhos os cuidados próprios de sua
condição socioeconômica, infirmando a narrativa apresentada pelos subscritores da
informação que determinou o início do procedimento.
Existe inegável harmonia entre os diversos elementos de
prova colhidos ao longo da instrução, revelando que a requerida não adotara em relação
aos filhos o comportamento desidioso que lhe foi atribuído na inicial.
O estado de pobreza, infelizmente vivido pela maioria da
população, não constitui fundamento eficaz para a destituição do pátrio poder.
Não se admite que o Estado, na aplicação da lei, imponha
sanção àquele que já sofre as vicissitudes de uma condição social que alcança a
indignidade e para qual não contribuiu, posto que lhe foi desde logo imposta, sem que
disponha na maioria das vezes dos meios necessários para modificá-la.
Constituiria inegável absurdo impor-se de imediato a
perda do pátrio poder tão-somente por tal escopo, mesmo que se demonstrasse, o que
não ocorreu no caso dos autos, que a mãe descuidava-se da higiene e alimentação de
seus filhos.
A pretexto de situações que na maioria das vezes são
oriundas da ausência de orientação e da impossibilidade de acesso aos meios
indispensáveis para a sobrevivência de uma família, não se poderia simplesmente optar
pela apreensão dos menores e da destituição do pátrio poder, com a desintegração do
núcleo familiar onde vivem.
Ao contrário, é imperativo legal a busca dos meios que
propiciem a permanência dos menores na família natural, optando-se pela via
excepcional da destituição somente quando demonstrada a inaptidão afetiva dos pais
para o exercício do pátrio poder, o que não pode ser presumido apenas pela situação
socioeconômica destes.
Neste sentido, já decidiu o E.Tribunal de Justiça:
92
“...Estado de miserabilidade, ademais, que não pode
ser razão para impor a perda do direito de ter o filho sob responsabilidade –
Recurso provido. A perda do pátrio poder só se permite quando os pais
descumpram, injustificadamente, seus deveres e obrigações por desídia, emulação
e indignidade; tanto é assim que o artigo 23 do Estatuto da Criança e do
Adolescente dispõe que a falta ou carência de recursos materiais não constitui
motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder” (Relator: Ney Almada
– Apelação Cível n. 19.192-0 – Dracena – 28.07.94).
Constata-se, pois, diante do quadro probatório e das
circunstâncias que cercaram a instauração do procedimento inicial, que a iniciativa da
presente ação, no que tange a requerida Francisca, evidenciou-se inegavelmente
prematura.
O mesmo não se pode afirmar em relação ao requerido
Francisco.
Os elementos de prova indicam que o requerido não
ostenta as condições mínimas para prosseguir no exercício do pátrio poder em relação
aos seus filhos, mesmo no tocante àqueles que não foram mencionados no inicial.
Os documentos de fls.140/149 revelam que o requerido
fora condenado pela prática de atentado violento ao pudor contra sua filha Maria, tendo
lhe sido imposta, em caráter definitivo, a pena de 08 anos e 02 meses de reclusão em
regime fechado. O mesmo delito foi também praticado pelo requerido contra Edna,
nascida de uma relação extraconjugal mantida pelo demandado, sendo igualmente por
aquele condenado a 09 anos e 04 meses de reclusão.
Além dos crimes praticados contra suas filhas, o
demandado também foi condenado por ameaça praticada contra sua esposa Francisca
(fls.149), o que corrobora a conclusão extraída dos autos, o requerido mantinha seus
familiares sob constante clima de temor, impedindo que estes denunciassem as
atrocidades que então praticava.
O depoimento da testemunha Edna revela que tanto a
requerida como seus filhos eram, na verdade, vítimas da saga criminosa de Antonio, que
além do abandono material a que relegava seus familiares, utilizava de uma de suas
filhas para a satisfação de sua lascívia, não raramente por meio de ameaças e violência
física.
93
Os estudos social e psicológico também indicam a
conduta imputada ao requerido, demonstrando, em consonância com a prova oral, que
este não reúne as mínimas condições para o desempenho do pátrio poder.
Não se pode ter como aceitável a argumentação oferecida
em favor do requerido, no sentido de que a conduta assumida em relação à menor Maria
por si só não indicaria inaptidão para o exercício do pátrio poder quanto aos outros
menores.
A ação criminosa praticada contra aquela menor, reiterada
pelo requerido no relacionamento mantido fora do lar, é indicativo seguro de uma
personalidade marcada pela perversão, violência e completa inexistência de vínculo
afetivo com a família, traços incompatíveis com a dignidade exigida de quem assume o
dever de criar e educar seus filhos.
Ante o exposto, julgo parcialmente procedente a
presente ação para destituir Antonio do pátrio poder exercido em relação aos seus filhos
José, Estela, Adelina e Francisco, com fundamento no artigo 129, X, c.c. artigos 22 e
24, do Estatuto da Criança e do Adolescente, não acolhendo a pretensão inicial em
relação a Francisca, pelas razões já apresentadas. Com relação a esta, determino o
acompanhamento social pelo prazo de um ano, por intermédio do setor técnico deste
Juízo. Aguarde-se o trânsito julgado, expedindo-se o respectivo mandado. P.R.I.C.
04 de março de 1999.
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