O lugar do pai: uma construção imaginária 109
escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das
glândulas o visgo peçonhento e maldito; ninguém em nossa casa há de
cruzar os braços quando existe terra para lavrar, ninguém em nossa casa
há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer, ninguém, ainda
em nossa casa há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer;
caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do
tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade,
abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só
agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o
tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é
sempre abundante em suas entregas; na doçura da velhice está a
sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o
exemplo: é a memória do avô que dormem nossas raízes, no ancião que se
alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo, no ancião cujo
asseio mineral do pensamento não se perturbava nunca com as convulsões
da natureza; nenhum de nós há de apagar da memória a formosa senilidade
dos seus traços; nenhum entre nós há de apagar da memória sua
descarnada discrição ao ruminar o tempo em suas andanças pela casa; a
paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o
suporte das nossas adversidades e o suporte das nossas esperas, por isso
é que digo que não há lugar para a blasfêmia em nossa casa, nem pelo dia
feliz que custa a vir nem pelo dia funesto que de súbito se precipita, nem
pelas chuvas que tardam mas sempre vêm, nem pelas secas bravas que
incendeiam nossas colheitas; e quando acontece um dia de um sopro
pestilento, vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as
cercanias da moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas de
nossas portas e janelas, alcançando um membro desprevenido da família,
mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão
acometido; os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram,
serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para
este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar,
deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para
ungir sua ferida, e os lábios para beijar ternamente seus cabelos
transtornados, que o amor na família é a suprema forma da paciência; o pai,
a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o
acabamento dos nossos princípios; hão de ser esses, no seu fundamento,
os modos da família: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um
teto bem suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem
se desespera, é insensato quem não se submete (NASSAR, 1989, p.53-62).
Ao relatar a tragédia do assassinato de Ana, André assim descreve o pai:
[...] não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se outro
membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio
patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina
(pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava –
essa matéria fibrosa, palpável, tão concreta, não era descarnada como eu
pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea,
resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre família nossa,
prisioneira de fantasmas tão consistentes!), e do silêncio fúnebre que
desabara atrás daquele gesto, surgiu primeiro, como de um parto, um
vagido primitivo.
Pai! e de outra voz, um uivo cavernoso, cheio de desespero.
Pai! e de todos os lados, de Rosa, de Zuleika e de Huda, o mesmo gemido
desamparado.
Pai! Pai! onde está a nossa segurança? Onde a nossa proteção? Pai! e de
Pedro, prosternado na terra.