Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado, dado, trocado e
revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera um tropeiro do Indaiá,
baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do pasto — coisa muito rara para essa raça de cobras
— uma jararacussu, pendurada do focinho, como linda tromba negra com diagonais amarelas,
da qual não morreu porque a lua era boa e o benzedor acudiu pronto. (...).
A marca-de-ferro – um coração no quarto esquerdo dianteiro – estava meio apagada:
lembrança dos ciganos, que o tinham raptado (...). Mas o roubo só rendera cadeia e pancadas
aos pândegos dos ciganos, enquanto Sete-de-Ouros voltara para a fazenda da tampa (...); e o
dono, Major Saulo (...). (Rosa, 2001, p. 30)
Seguindo a história, enquanto os vaqueiros aguardam a partida da boiada, Tote conta a
Zé Grande a fatalidade ocorrida com Josias, quando eles resolveram rodear a vaca fumaça que
estava no curral com sua cria “fungando forte e investindo até no vento” (Rosa, 2001, p. 46):
“Josias falou comigo: ‘Vamos dar uma topada, pra ver se ela tem mesmo coragem
conversada’. (...) Ficamos: eu da banda de cá, ele ali.
Mal a gente tinha botado os pés no chão e ela riscou de ar, sem negaça, frechada,
desmanchando o poder de espiar. (...). Foi a conta. Ela deu o tapa, não achou firmeza, e remou
as varas para fora...Escolheu quem, e guampou o Josias na barriga...
(...)
Culpa eu tive?...Má sorte do companheiro. Era o dia dele, o meu não era!... (Rosa,
2001, p. 46)
Posteriormente, já durante a viagem da boiada, Raymundão, “o melhor contador de
casos”, segundo Ângela Vaz Leão (Coutinho, 1991, p. 250) relata mais quatro casos. Exímio
contador, “com uma fala viva e poética”, a personagem rompe o fluxo narrativo com o relato
de histórias “fantásticas”, corroborando o caráter místico presente na obra.
Em sua primeira intervenção, Raymundão narra o episódio do zebu Calundú, que fez
fugir uma “onça-tigre macho, das do mato-grosso”:
– Mas o Calundú cada vez ia ficando mais enjerizado e mais maludo, ensaiando para
ficar doido, chamando a onça para o largo e xingando todo nome feio que tem. Aquilo, eu fui
bobeando de espiar tanto para ele, como que nunca eu não tinha visto o zebu tão grandalhão
assim! A corcunda ia até lá embaixo, no lombo, e, na volta, passava do lugar seu dela e vinha
pôr chapéu na testa do bichão. Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calandu mais do que as
outras coisas, por respeito...
(...)... Mas, então foi que eu fiquei sabendo que tem anjo-da-guarda de onça!... Você
sabe que, quando a tigre arma o bote (...) nunca que ela deixa de dar o pulo, não é? Pois, nesse
dia, o cangussu (...) desmanchou o dela, andando de rastro para trás um pedaço bom (...) Onça
esperta!... (Rosa, 2001, p. 57)