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normais, vêem os humanos como humanos e os animais como animais. [...] Os animais
predadores e os espíritos, entretanto, vêem os humanos como animais de presa, ao passo
que os animais de presa vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores”
(Viveiros de Castro, 2002, p. 350). Assim, uma onça prevalece como humano sobre sua
presa. O signo do caçador consiste, pois, num arquétipo das sociedades indígenas, tal como
na civilização ocidental o signo do pastor, uma herança da cultura judaico-cristã, também o
é à sua maneira. A relação vai definir a forma e o redimensionamento do corpo, os papéis
de sujeito e objeto. É a relação entre predador e presa que define uma só maneira de
constituição do sujeito. Neste caso, o sujeito vê a si próprio e à sua espécie como humano,
não se tratando, portanto, de um sujeito isolado de tudo e de todos.
Neste sentido, uma espécie animal reconhece outros da mesma espécie como
seres humanos, com todo um conjunto de condutas e costumes (alimentar, comunicativo,
sexual, intuitivo) que se assemelhariam ao modo próprio de reprodução e instituições
humanas (aldeias, lideranças, festas, ritos, guerras). Entretanto, tal espécie não
reconheceria outra como humana, mas a qualificaria como não-humana ou como um
espírito. “Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que animais e espíritos se vêem
como humanos” (ibid., p. 350). A forma manifesta de cada espécie no pensamento indígena
é considerada um envoltório ocultando o conteúdo humano, uma essência espiritual
correlativa à consciência humana, cuja intencionalidade se materializa numa forma corporal
contingente, isto é, numa espécie de roupa descartável.
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Os xamãs, por serem
considerados seres multinaturais
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por excelência, detêm plenos poderes para identificar
uma essência humana numa indumentária animal, assim como reconhecem numa pessoa
sua faceta animal. Assim o animal passaria de uma forma à outra, transformando seu corpo
indefinidamente a fim de manter sua humanidade. No pensamento indígena os termos da
relação homem/animal se invertem: os animais são subjacentes à espécie humana,
contrastando com a concepção ocidental de espécie humana como parte integrante do
mundo animal.
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Um mito indígena ilustra bem essa noção de roupa. “Um sogro-jaguar oferece a seu genro humano roupas de
onça. Diz o mito: O jaguar dispunha de tamanhos diferentes de roupa. Roupa para pegar anta, roupa para pegar
queixada [...] roupa para pegar cutia. Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras”
(Viveiros de Castro, 2002, 394).
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“O xamã, o feiticeiro ou o mago são precisamente aqueles que se encarregam muito especialmente, na
sociedade primitiva, de fazer passar o indivíduo e o grupo de um código a outro, de um estado a outro ou, mais
exatamente, de fazer atravessar os corpos dos indivíduos e dos grupos por múltiplos códigos: desse modo fazem
traduzir um conjunto de signos por (e no interior de) um outro, pondo em relação os astros e o alimento, os
animais e as plantas” (Gil, 1988, p. 128).
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“A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. [...] Assim, se
nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela
cultura – tendo outrora sido ‘completamente’ animais, permanecemos, ‘no fundo’, animais –, o pensamento
indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos
continuaram a ser humanos, mesmo que de modo não evidente” (Viveiros de Castro, 2002, 355, 356, grifos do
autor).