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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
MARIA INÊS UTZIG ZULKE
A REFORMA DO ESTADO E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO:
UM ESTUDO SOBRE O TRABALHO DO SERVIDOR PÚBLICO EM
INSTITUIÇÃO DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
Porto Alegre
2007
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MARIA INÊS UTZIG ZULKE
A REFORMA DO ESTADO E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO:
UM ESTUDO SOBRE O TRABALHO DO SERVIDOR PÚBLICO EM
INSTITUIÇÃO DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Psicologia
Social e Institucional. Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social e Institucional.
Instituto de Psicologia. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
Orientador: Henrique Caetano Nardi
Porto Alegre
2007
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DEDICATÓRIA
Dedico à memória de meu irmão.
AGRADECIMENTO
Às minhas filhas lia e Amanda,
parceiras amadas, pela paciência em suportar a
minha impaciência e à minha falta de tempo por
ter todo pouco tempo livre dedicado à minha
dissertação
Ao Ronaldo, companheiro de todas as
horas, pelos sonhos construídos e partilhados
Aos meus pais pelo exemplo e pelo apoio
incansável
Ao Henrique pelos novos horizontes
teóricos
Aos entrevistados e as instituições pela
possibilidade da pesquisa
E à Maria, minha neta linda, por ter trazido
tanta vida à minha vida
“Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero,
poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade - em todo o caso, a única
espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação:
não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite
separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse
apenas a aquisição dos conhecimentos e o de certa maneira, e tanto quanto
possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a
questão é saber se pode pensar diferente do que se pensa, e perceber
diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
Talvez me digam que estes jogos consigo mesmo têm que permanecer nos
bastidores, e que no máximo eles fazem parte desses trabalhos de preparação que
desaparecem por si sós a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o
que é filosofar hoje em dia quero dizer, a atividade filosófica senão o trabalho
crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar
saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de
legitimar o que já se sabe?
(M. FOUCAULT, 1994, p. 13)
RESUMO
Esta dissertação analisa os efeitos das transformações contemporâneas nos
processos de subjetivação dos trabalhadores do serviço público estatal em um
contexto de Reforma do Estado. Trata-se de um estudo que recorta algumas
proposições do Plano de Reforma do Estado que têm sustentado o discurso
governamental sobre a ineficiência do serviço blico justificando a introdução no
seu interior de modos de operar característicos da lógica privada e empresarial. A
pesquisa foi realizada com professores e funcionários de duas instituições de
educação profissional da região do Vale do Rio dos Sinos.
Com base nas contribuições teóricas de Michel Foucault, a análise toma a
Reforma do Estado como um dispositivo que atualiza as estratégias de afirmação
de uma governamentalidade constituída a partir das novas configurações do
capitalismo. A pesquisa demonstra que a Reforma do Estado engendrou um
conjunto de procedimentos e de saberes considerados úteis para a conformação
de sujeitos e de instituições adequados às necessidades contemporâneas do
capital, no nosso caso orientado aos trabalhadores das escolas e aos futuros
trabalhadores que estão sendo formados por estas instituições de educação
profissional. Finalmente, o estudo enfatiza a heterogeneidade do Estado e a
multiplicidade discursiva que possibilitam vislumbrar as resistências que coexistem
no interior dos jogos de poder e verdade que caracterizam o campo de pesquisa.
PALAVRAS-CHAVES: Reforma do Estado, Governamentalidade, Processos de
Subjetivação, Serviço Público-Estatal e Educação Profissional
ABSTRACT
This paper analyses the effects of contemporary transformations on the
processes of subjectivation of state public service workers in a context of State
Reform. It is about a study that cuts some of the propositions from the State Reform
Plan which have been sustaining government speeches about the inefficiency of
public services justifying the introduction of modus operandi characteristic of the
private and business logics in its interior. The research was made with teachers and
employees of two institutions of professional education in the Sinos Rives Valley
area.
Based on the theoretical contributions of Michel Foucault, the analysis takes
the State Reform as a device updating the affirming strategies of a governmentality
constituted from the new configurations of capitalism. The research shows that the
State Reform generated a series of procedures and knowledge considered useful in
conforming subjects and institutions adequate to the contemporary needs of capital,
in our case oriented towards school workers and the future workers being formed by
these professional education institutions. Finally the study emphasizes State
heterogeneity and discursive multiplicity which make possible to see the resistances
that coexist in the power and truth games characteristic of this research field.
Keywords: State Reform, Governmentality, Subjectivation Processes, State Public
Service, Professional Education
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................9
1.1 O EMPREGADO PÚBLICO E O SERVIDOR PÚBLICO ............................................17
1.2 CARACTERIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES ESTUDADAS .......................................18
2 O ESTADO E A SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO DO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO...............................................................................................22
2.1 A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO ...............................................................23
2.2 O PADRÃO EFICIÊNCIA/INEFICIÊNCIA COMO UMA PRODUÇÃO POLÍTICA E
SOCIAL ..............................................................................................................................25
2.3 AS CONFIGURAÇÕES HISTÓRICAS DOS CONCEITOS DE PÚBLICO E
PRIVADO..............................................................................................................................28
2.4 O DESBLOQUEIO DA ARTE DE GOVERNAR E O NASCIMENTO DA
BIOPOLÍTICA.......................................................................................................................30
2.5 A GOVERNAMENTALIDADE: O GOVERNO DO ESTADO E DAS
MENTALIDADES ................................................................................................................31
2.6 A RACIONALIDADE GOVERNAMENTAL CONTEMPORÂNEA E A PRODUÇÃO
DOS NOVOS SUJEITOS......................................................................................................34
3 BREVE CARACTERIZAÇÃO DO MODELO INSTITUCIONAL DO ESTADO
BRASILEIRO NO PERÍODO DE 1970-90 ..............................................................38
3.1 A REFORMA DO ESTADO NO BRASIL.....................................................................39
3.2 O SERVIDOR PÚBLICO E A “REPRESENTAÇÃO MATRIZ”..................................43
3.3 OS NOVOS MODELOS DE GESTÃO ..........................................................................46
3.4 A ESCOLA COMO UMA TECNOLOGIA DE GOVERNO .........................................48
3.5 BREVES ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENSINO TÉCNICO ....................................49
3.6 A REFORMA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL .......................................................52
4 O PERCURSO DA PESQUISADORA E DA PESQUISA ...................................54
4.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.....................................................................55
4.2 AS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO CONTEXTO
ECONÔMICO E SOCIAL DO ESTADO .............................................................................60
4.3 REFORMA ADMINISTRATIVA FULMINANTE NO ESTADO ................................64
8
5 OS SUJEITOS DA REFORMA E A REFORMA DOS SUJEITOS.......................71
5.1 A EFICIÊNCIA E A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO: A PRESENÇA SIMBÓLICA
DO PRIVADO NA ESCOLA PÚBLICA PROFISSIONAL.................................................74
5.2 O REGIME DE VERDADES DA REFORMA E A ESTABILIDADE NO
TRABALHO ........................................................................................................................ 77
.
5.3 UMA NOVA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL PARA NOVOS SUJEITOS
EMPREENDEDORES...........................................................................................................81
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................86
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................90
9
1 INTRODUÇÃO
O exercício da atividade profissional em uma instituição de caráter público-
estatal tem suscitado para mim um conjunto de questões relativas à dimensão da
subjetividade em sua relação com o trabalho. Convivo, cotidianamente, com um
discurso social onde se exalta a eficiência e a qualidade do trabalho no setor
privado em contraposição à ineficiência, à morosidade e ao desperdício atribuídos
ao trabalho no setor blico-estatal. A intensificação deste discurso é
acompanhada pari passu, pela diminuição progressiva dos recursos orçamentários,
do número de servidores, do salário, enfim, a redução da própria expectativa de
futuro.
Interrogo-me sobre os impactos deste novo contexto na produção de
subjetividade, pois uma discursividade hostil dirigida ao servidor público. Na
mídia cotidiana encontramos uma associação de causabilidade entre dificuldades
financeiras do Estado e funcionários desfrutando de “regalias” injustificáveis no
contexto do capitalismo contemporâneo. Em um tempo de ausência e/ou
provisoriedade de trabalho não se justificaria o direito a estabilidade no emprego
dos servidores públicos. Trabalhadores que reiteradamente são apresentados
como aqueles que não trabalham ou, quando trabalham, o fazem de modo
ineficiente e negligente.
A minha trajetória profissional tem o seu percurso justamente nas décadas
em que tem início o programa de Reforma do Estado no Brasil e no Rio Grande do
Sul, visando a sua modernização e inserção, com eficiência, no mundo globalizado.
A problemática da Reforma, incluindo os seus desdobramentos na educação
profissional, constitui o cenário social e institucional onde se dá a minha
intervenção profissional, emergindo como meu objeto de pesquisa. Não buscarei
discutir a questão da Reforma do Estado no sentido estrito, mas sim, de buscar
compreender como as transformações macrossociais afetam a vida e o trabalho
dos sujeitos trabalhadores. Meu objetivo é investigar as relações entre a
subjetividade e um trabalho que tem sido permanentemente colocado em questão
pela sociedade, procurando conhecer os efeitos das transformações nas formas de
reconhecimento social, expresso através dos baixos salários e da utilização
corrente de estereótipos negativos que desqualificam o trabalho dos servidores.
10
Procuro, ainda, examinar as condições de possibilidade do surgimento e
permanência de determinados enunciados
1
sobre a esfera pública-estatal.
Para a realização desta pesquisa, nos deparamos com algumas dificuldades
teóricas, que reforçam a importância desta investigação. Em primeiro lugar,
acreditamos que a singularidade do público em relação ao privado exige categorias
conceituais diferentes daquelas comumente utilizadas para a análise das
organizações privadas, entretanto, existem poucos estudos sobre o tema, o que se
por um lado legitima o presente trabalho, por outro incrementa as dificuldades de
realizá-lo. Esta situação pode ser confirmada na citação de França (1993:11-12): “A
ausência de estudos sistemáticos que busquem aprofundamento teórico e
metodológico no campo das Ciências Sociais é, provavelmente, a maior
responsável pela permanência de mitos e lugares-comuns sobre o funcionário do
Estado. A imagem popular ganha ares de verdade científica: rotina, ineficiência,
desinteresse, complicação de procedimentos, burocracia, classe média, parasitas,
conformistas. Assim como as coisas públicas, eles “não funcionam” e recebem a
demais pela estabilidade e o pouco que trabalham. Ainda que esses estereótipos
possam corresponder em graus e formas variadas ao funcionamento dos aparelhos
do Estado e seus empregados os burocratas -, o que vale aqui ressaltar que eles
têm dificultado em muito a possibilidade de uma aproximação não preconceituosa
desta categoria”.
A segunda dificuldade reside justamente na tradição fragmentada do estudo
das categorias subjetividade e trabalho, pois a compreensão da relação entre estas
categorias implica em conhecer os modos de vida e os sentidos atribuídos às
experiências de trabalho dos sujeitos. Para Nardi (2002:20) “... pensar a
subjetividade nas suas conexões com o trabalho implica compreender os
processos através dos quais as experiências do trabalho conformam modos de
agir, pensar e sentir, amarrados em dados momentos mais ou menos duráveis
que evocam a conexão entre diferentes elementos, valores, necessidades e
projetos”.
Assim, mesmo se o trabalho tem sido tratado como uma categoria central da
Sociologia, este foi somente recentemente incorporado a partir de sua
especificidade como um elemento constitutivo da subjetividade, categoria central
1
Os enunciados, conforme Foucault (1997), o práticas constituintes do objeto do qual eles falam.
Por isso, a análise dos enunciados deve determinar as condições de sua existência.
11
para a Psicologia. Por isso, a compreensão da relação subjetividade e trabalho
exige um esforço teórico que busque um diálogo interdisciplinar. Nas últimas
décadas, a relação subjetividade e trabalho, vem sendo estudada a partir de novas
perspectivas teóricas que buscam superar uma visão dicotômica acerca do
indivíduo e sociedade, mundo interno e mundo externo. A definição de
subjetividade remete a um espaço de intersecção, de cruzamento de olhares e
saberes, uma vez que não é reduzida a um fenômeno psíquico individual e
tampouco como sinônimo de interioridade. Conforme Naffah Neto
2
apud Grisci
(2004, p.169):
[...] o mundo não é tão somente exterior, nem tão somente interior, es
sempre fora e dentro ao mesmo tempo, ou melhor, dizendo, constitui-se
numa imbricação de um exterior e de um interior, fluindo e refluindo por
momentos de projeção e introjeção. [...] Ao fora aprendemos a chamar de
mundo; ao dentro de subjetividade.
Por último, a compreensão das transformações que ocorrem no âmbito do
Estado em uma dimensão ainda pouco estudada, que é a subjetividade, exige
igualmente uma escolha teórica e epistemológica que reafirma uma postura de
diálogo entre diferentes campos disciplinares. Nesta pesquisa a problemática
reformista é entendida como um sintoma de rearticulação de saberes e técnicas na
produção de uma forma política centralizadora da gestão da vida e do trabalho dos
indivíduos. Assim, alguns recortes conceituais importantes oriundos de distintas
tradições teóricas serão deslocados de sua forma conceitual de origem,
especialmente no campo das ciências sociais.
Adotamos a perspectiva foucaultiana como referencial teórico-metodológico,
da qual retiramos os conceitos centrais que irão operar analiticamente para dar
conta da pesquisa: o poder, o Estado, a governamentalidade e a subjetividade.
Iremos dialogar, também, com outros autores do campo das ciências sociais para
discutir os efeitos do novo capitalismo na produção da subjetividade
contemporânea e, também, para entender a constituição do Estado Brasileiro.
Contudo, a referência a tais autores não significa a adoção de suas perspectivas
teóricas.
O problema de investigação é apresentado na seguinte formulação: Como
se configuram os processos de subjetivação na sua relação com o trabalho no
2
NAFFAH NETO, Alfredo. Outr’em- mim: ensaios, crônicas, entrevistas. São Paulo: Plexus, 1998.
12
serviço público-estatal a partir da implantação da Reforma do Estado, na década
de 90, no contexto de duas escolas de educação profissional?
A crise econômica da década de 80 trouxe para o cenário mundial um
conjunto de medidas a serem implementadas nos diferentes países do mundo
globalizado. Dentre elas, destaca-se a Reforma do Estado como um dos temas de
maior importância na agenda contemporânea.
No Brasil, a Reforma do Estado foi desencadeada a partir de 1995,
produzindo uma transformação na estrutura do aparelho estatal. As reformas
promovidas no governo Fernando Henrique Cardoso inserem o Brasil na nova
ordem mundial, propiciando a expansão do livre mercado e de sua lógica, e
introduzindo, assim, a racionalidade mercantil na esfera pública. Na transição do
fordismo para o modelo de acumulação flexível, o Estado de bem-estar social, que
não chegou a ser constituído na sua expressão clássica nos países de capitalismo
periférico, lugar a um Estado gestor, que carrega em si a racionalidade
empresarial e torna as teorias organizacionais, antes restritas aos muros das
empresas privadas, agora referências para a estrutura estatal.
O ex-ministro Bresser Pereira (1997), titular do órgão responsável pela
elaboração e implantação da Reforma, defende as qualidades do setor privado
propondo que a eficiência, agilidade dos serviços do Estado deveriam ser
semelhantes às do setor privado. O discurso que sustenta a Reforma reforça o
movimento nos meios de comunicação que, em geral, têm desqualificado os
serviços públicos ou de responsabilidade coletiva em oposição ao privado e
individual.
Fischer (2005), no seu artigo “O visível e o enunciável no dispositivo
pedagógico da mídia: contribuição do pensamento de Foucault nos estudos de
comunicação”, afirma que a mídia cria um espaço de reduplicação dos discursos
de uma época, sempre a seu modo, na sua forma de tratar aquilo que “deve” ser
visto ou ouvido. Isso quer dizer, então, que ela também estaria simultaneamente
replicando algo e produzindo seu próprio discurso, no caso do presente estudo,
sobre a ineficiência do serviço público-estatal.
No modelo da Reforma a função do governo passa a ser justamente a de
propiciar as condições políticas e sociais para que o funcionamento do mercado
seja o melhor possível. No interior dessa racionalidade, o governo direciona suas
ações para esse novo objetivo, instituindo novas práticas discursivas capazes de
13
garantir as condições de funcionamento do mercado como uma necessidade
primordial para as mudanças na quina estatal. As práticas discursivas são
entendidas a partir da seguinte formulação apresentada por Foucault :
As práticas discursivas não são pura e simplesmente modos de
fabricação de discursos. Ganham corpo em conjuntos técnicos, em
instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e
difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e as
mantém (FOUCAULT, 1997, p.12).
Nesta direção, no Rio Grande do Sul na década de 90, tem início a
estruturação do Plano Gaúcho de Qualidade e Produtividade (PGQP) como um
desdobramento do Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade (PBQP),
lançado pelo governo federal. Cabe ressaltar que o Governo Brasileiro firmou um
termo de cooperação com o Governo Japonês para a elaboração e implantação do
PBQP, através da importação dos métodos e técnicas do Modelo da Qualidade
Total ao estilo japonês. O Governo do Estado, na época exercido por Alceu
Collares, passa a constituir equipes em todos as instituições públicas-estatais para
implantação do programa. Ao mesmo tempo, dá-se início ao processo de
terceirização em diversos serviços anteriormente realizados por servidores
públicos, entre outras medidas.
O governo de Antonio Britto, cujo período coincide com o de Fernando
Henrique Cardoso, implementa no Estado do Rio Grande do Sul, o Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado. Tem início o processo das privatizações da
telefonia, da energia elétrica e da Caixa Estadual. Os demais setores previstos
(Corsan, Banrisul etc,) o foram incluídos no processo por conta da eleição, cujo
candidato vencedor era contrário às privatizações. Impõem-se contratos de gestão
nos quais as instituições devem assumir compromissos para reduzir gastos,
diminuir as funções gratificadas e as horas extraordinárias. Há, também, o
impedimento para a contratação de pessoal e a redução da cota de estagiários,
entre outras cláusulas impostas. Foi elaborado também, no período Britto, um
Programa de Demissão Voluntária (PDV) - para estimular a redução de pessoal e
de custos, uma vez que as demissões não podem ocorrer como na esfera privada.
Esta breve apresentação do cenário sob o qual a pesquisa foi realizada
limita-se a tornar familiar o campo sobre o qual iremos trabalhar e contextualizar a
operacionalização da investigação, pois tal como foi exposto, esta dissertação é
um estudo sobre os efeitos da reforma do Estado nos processos de subjetivação
14
dos trabalhadores do serviço público estatal de duas instituições de educação
profissional. Algumas das medidas adotadas pelos governos neste cenário de
reforma são entendidas aqui como elementos centrais do dispositivo da Reforma,
os quais vão ter efeitos importantes nos processos de subjetivação.
O dispositivo é compreendido, conforme apontado por Foucault como sendo,
[...] um conjunto heterogêneo que engloba discurso, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
elementos (FOUCAULT, 1984, p. 244).
Para o autor, o dispositivo pressupõe a existência de um tipo de jogo de
poder, de caráter estratégico que modifica as posições e funções entre estes
elementos heterogêneos apontados,
o dispositivo essempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre,
no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem
mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de
relações de forças sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por
eles (FOUCAULT, 1984, p. 246).
No caso da pesquisa, o conceito de dispositivo nos ajuda a ampliar
a análise da forma como a Reforma se fez sentir no ensino profissional público, ao
mesmo tempo que refletiu o acoplamento com as modificações do capitalismo.O
trabalho de campo foi realizado em duas instituições de educação profissional,
situadas na região do Vale do Rio dos Sinos. Foram escolhidos dois grupos de
trabalhadores de cada escola, constituídos por funcionários e professores que
ingressaram nas escolas em dois períodos históricos distintos. Um grupo que
iniciou suas atividades logo após a criação dos estabelecimentos, nos anos 70, e o
outro grupo que ingressou na escola na cada da Reforma do Estado, ou seja, a
partir dos anos 80. O tempo em que os trabalhadores iniciaram as suas atividades
profissionais em ambas instituições é um fator importante na pesquisa, pois são
contextos históricos que apresentam processos de organização social distintos em
vários aspectos, em especial, sobre aqueles que interessam a temática da
pesquisa, tais como: a globalização, o papel do Estado, o valor atribuído ao
trabalho, a reestruturação produtiva.
As duas instituições escolhidas foram criadas na década de 1960, no
período da industrialização e da reforma na educação no Brasil, a qual implantou o
15
ensino profissionalizante. A primeira é uma escola pública e a segunda caracteriza-
se por ser uma fundação escola pública de direito privado. O ensino
profissionalizante naquele período tinha como objetivo formar mão de obra para a
indústria emergente. Ambas escolas foram criadas através da mobilização de
empresários locais que identificavam a necessidade de qualificar jovens oriundos
das camadas empobrecidas para trabalhar nas empresas da região. A qualificação
nesta época estava relacionada a um contexto produtivo cujo modelo de
organização do trabalho era taylorista-fordista, diferentemente da noção de
competência utilizada atualmente no contexto da reestruturação produtiva. O
movimento pela criação das escolas envolveu também os poderes públicos das
esferas municipal, estadual e federal, que assumiram diferentes responsabilidades
para a viabilização destas entidades.
A escolha do campo empírico da pesquisa buscou compreender as novas
configurações do público e do privado no mundo do trabalho e na produção de
subjetividade, uma vez que as escolas pesquisadas são paradigmáticas de uma
aparente contradição. Ambas devem lidar com as transformações contemporâneas
do capitalismo, onde está inserida a Reforma do Estado, enfrentando os impactos
destas mudanças nas condições de trabalho, na função social da sua atividade
profissional, na adoção de ferramentas de gestão das empresas privadas, ao
mesmo tempo em que devem preparar os recursos humanos para este tempo de
flexibilização, de polivalência, da supremacia do individualismo, enfim, afirmando o
ideal do novo trabalhador, agora um empreendedor de si e do mundo.
O referencial escolhido e a inserção do pesquisador no campo da pesquisa
permite um posicionamento estratégico análogo ao que Foucault
3
, citado por Neves
(2000, p.16) denomina de caráter prospectivo do conhecimento: “ o conhecimento é
sempre uma certa relação estratégica que vai definir o efeito de conhecimento e
por isso seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que não fosse em
sua natureza obrigatoriamente parcial, oblíquo, perspectivo. O caráter perspectivo
do conhecimento não deriva da natureza humana, mas sempre do caráter polêmico
e estratégico do conhecimento. Pode-se falar do caráter perspectivo do
conhecimento porque batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa
batalha”. Reconhecendo que o interesse por este projeto de pesquisa surge a
3
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau editora, 1996-a.
16
partir de minha práxis profissional em uma entidade pública-estatal na condição de
servidora pública e por duas vezes, ocupando a função de Diretora Executiva,
torna-se imperativo ter presente que esse lugar tem significativas implicações na
trajetória da pesquisa e, nesta direção buscamos, conforme Lourau (1993),
construir a análise de implicação e a análise dos lugares que ocupo, ativamente, na
pesquisa.
Para o estudo sobre os efeitos das transformações contemporâneas nos
processos de subjetivação dos trabalhadores do serviço blico-estatal em um
contexto de Reforma do Estado do Rio Grande do Sul, será utilizado como
instrumento de pesquisa, entrevistas que buscam reconstituir as trajetórias de vida
e são inspiradas na perspectiva da abordagem biográfica, proposta por
Cabanes(2001), aliada a análise foucaultiana buscando compreender como os
relatos são atravessados pelos enunciados do dispositivo da Reforma do Estado.
A pesquisa estuda os processos de subjetivação de um grupo especifico de
servidores em um contexto delimitado. Portanto, não existe intenção de
generalização das conclusões que serão obtidas. Entretanto, segundo Cabanes
(2001), toda história individual se refere necessariamente a uma história de
interação com a comunidade e com a sociedade a qual pertence.
A escolha de analisar trajetórias permite articular a vida experienciada por
determinada pessoa aos fenômenos sociais mais amplos. Por isso, a trajetória de
vida é utilizada como ferramenta de análise porque possibilita a compreensão dos
efeitos macrossociais do capitalismo na vida dos indivíduos. A vida sendo encarada
não como uma sucessão de eventos, mas como acontecimento vivido em um
determinado tempo e lugar, sob algumas circunstâncias. A técnica de pesquisa
escolhida possibilita compreender como o trabalho atravessa os processos de
subjetivação e como os trabalhadores construíram suas vidas tomando o trabalho
como elemento guia.
De acordo com Ferrarotti
4
, citado por Nardi (2002, 114), a abordagem
biográfica apresenta-se como alternativa para fazer a mediação entre a história
individual e a história social. A relação entre a história social e a história individual
não é vista por ele como linear e nem constitui um determinismo mecânico, pois o
indivíduo é sujeito ativo do mundo social. Para o autor, uma "reapropriação
4
FERRAROTI, Franco. Histoire et vie: la méthode biographique dans les sciences sociales. Paris:
Librairie des Meridiens, 1983.
17
singular do universo social e histórico" pelo indivíduo, o que significa a
possibilidade de “conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma
práxis individual”.
O relato das entrevistas foi construído a partir de uma questão inicial
apresentada aos sujeitos da pesquisa sobre o significado de trabalhar em uma
instituicão pública-estatal. As entrevistas tiveram por objetivo conhecer as
trajetórias de vida e de trabalho, observando alguns aspectos relativos a temas
constantes no Projeto da Reforma do Estado, tais como: a estabilidade do
trabalhador no emprego público; a ineficiência do serviço público e a precarização
do trabalho; a implantação do modelo de gestão gerencial por meio da Reforma
Administrativa no Estado do Rio Grande do Sul; a compreensão da Reforma do
Estado por parte dos entrevistados; a reforma da educação profissional e a
formação dos novos sujeitos empreendedores.
As entrevistas realizadas individualmente seguiram um roteiro auxiliar
utilizado pela pesquisadora, incluindo as seguintes questões relacionadas aos
temas:
As razões da escolha do trabalho na Instituição;
A importância do trabalho em sua vida;
As mudanças no trabalho hoje e no passado;
A compreensão sobre as transformações no papel do Estado;
A visão sobre o serviço público-estatal;
As razões dos estigmas negativos do serviço público e os seus efeitos no
trabalho e na vida do trabalhador;
As esperanças e projetos para o futuro;
O papel da escola técnica.
1.1 O EMPREGADO PÚBLICO E O SERVIDOR PÚBLICO
Mello (2000), divide a categoria dos servidores estatais em duas
subcategorias. Os servidores das pessoas governamentais de Direito Privado
(empregados em empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações
de direito privado instituídas pelo Poder Público) são regidos pela CLT e mantém
um vínculo de caráter trabalhista, sendo denominados de empregados públicos. O
18
servidor blico designa os titulares de cargos públicos que mantém com o Estado
um vinculo estatutário, em oposição ao empregado público, o servidor é
considerado “todo aquele que mantém vínculo de trabalho profissional com as
entidades governamentais, integrados em cargos ou empregos da União, Estados,
Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito blico”
(Mello, 2000, p.222)
Os sujeitos da pesquisa pertencem às duas subcategorias, sendo os
trabalhadores da Fundação Escola, caracterizada como uma entidade pública de
direito privado, denominados empregados públicos, e os da Escola Técnica
Estadual, servidores públicos. No entanto, no desenvolvimento do trabalho foi
utilizado o termo servidor público, designando as duas subcategorias.
1.2 CARACTERIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES ESTUDADAS
A Escola 1
5
tem início no ano de 1961, quando um grupo de empresários
idealiza uma escola técnica para o município de o Leopoldo. O objetivo principal
da nova escola era a qualificação dos profissionais que atuavam nas empresas da
região.
Houve a doação da área de 9.000 m², no centro de São Leopoldo, pelo
poder público municipal e, em 1964, foi criada uma organização comunitária que
assumiu a responsabilidade pela arrecadação de recursos e pela execução das
obras da escola. O governo do Estado comprometeu-se com a doação de
equipamentos e cedência de funcionários. Em 30 de julho de 1966 foi inaugurada a
então denominada Escola 1. Nos dois primeiros anos o seu funcionamento era no
noturno, passando depois a oferecer os cursos técnicos também no diurno. No ano
de 1979, é elaborado um projeto para a ampliação, atualização de equipamentos,
qualificação do ensino e aumento de vagas. Um grupo de empresários, ligados à
Associação Comercial e Industrial, consegue captar os recursos para a execução
do projeto. A partir de 1981, a escola muda novamente a sua denominação com a
5
As instituições pesquisadas serão denominadas no trabalho a partir da seguinte identificação: a
Escola Técnica Estadual de Escola 1 e a Fundação Escola Técnica de Escola 2. As demais escolas
referidas pelos entrevistados serão chamadas de Escola X ou Y.
19
integração do seu patrimônio aos bens do Governo do Estado do Rio Grande do
Sul.
A nova LDB Lei de Diretrizes e Base Lei nº 9394/96, conforme a
Reforma da Educação Profissional, propôs a desvinculação do ensino médio do
ensino técnico em nível nacional, sendo assim implantada na Escola 1 no ano de
1997. Em 2000, a Escola altera o seu nome, adequando a sua terminologia à nova
legislação. A instituição é vinculada a Secretaria da Educação do Estado do Rio
Grande do Sul, sendo o ensino gratuito. Os professores são admitidos mediante
concurso blico, autorizado e realizado de forma centralizada pela Secretaria de
Educação, sendo regidos pelo Estatuto do Funcionário Público. Há também o
expediente do contrato de emergência, que autorizado pela Assembléia Legislativa,
possibilita a contratação de professores de modo emergencial. Aliás, esta forma de
contratação tem sido utilizada intensamente pelos Governos do Estado, pois o
contingente de professores foi reduzido por conta das medidas adotadas na
Reforma do Estado. Entretanto, a demanda por professores aumenta
progressivamente exigindo a contratação de mais docentes. A contratação
emergencial permite a “prestação de serviços” sem nenhum tipo de vínculo
trabalhista e acesso aos direitos dos trabalhadores. Além, evidentemente, do
caráter temporário do trabalho.
A instituição possui oitocentos e oitenta e oito alunos, distribuídos nos três
turnos. No ensino médio existem quatrocentos e quarenta e sete alunos
matriculados e no ensino cnico são trezentos e quarenta alunos, sendo cento e
setenta e seis no curso de eletromecânica e cento e sessenta e quatro no curso de
eletrotécnica. Cento e um alunos estão realizando o estágio curricular. Os alunos
são oriundos do próprio município em que está localizada a escola.
Atualmente a escola tem trinta professores efetivos, dezenove contratos de
emergência e cinco funcionários, e destes, dois trabalham na secretaria da
entidade e três na limpeza.
O funcionamento da instituição conta com o apoio da comunidade local e do
empresariado da região. A manutenção e as reformas dos prédios, máquinas e
equipamentos contam com o apoio financeiro do Círculo de Pais e Mestres da
escola. O orçamento anual é repassado quadrimestralmente pelo Governo
Estadual, sendo administrado pela Direção da Escola, eleita diretamente e pelo
CPM.
20
A outra escola, denominada nesta pesquisa de escola 2, possui atualmente
três mil e duzentos alunos. É uma instituição pública de direito privado que foi
criada em 12 de abril de 1967, através de um convênio tripartite, onde o município
doou o terreno de 20 hectares, a União construiu os prédios e instalou os
equipamentos, e o Estado assumiu a responsabilidade pelo provimento dos
recursos humanos e a manutenção. Tendo em vista a natureza jurídica da escola,
o ensino não é gratuito, havendo a prerrogativa da concessão de bolsas de
estudos. Por isso, a entidade possui uma fonte de recursos própria, oriunda das
mensalidades dos alunos, do agenciamento de estagiários, convênios e prestação
de serviços, excetuando-se a folha de pagamento e seus encargos, paga pelo
Estado. Em relação às mensalidades escolares, cerca de 30% dos alunos são
isentos e os demais pagam entre R$ 16,00 e R$ 450,00, de acordo com a condição
sócio-econômica das famílias. A dia de valor dos alunos que pagam é de R$
60,00 mensais.
A Escola 2 é vinculada a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, mas
mantém um orçamento próprio, gerenciado pela entidade. A autonomia prevista no
seu estatuto é cada vez menor, pois a gestão da escola precisa da autorização do
Governo para a liberação dos recursos. Nos últimos anos, a própria receita tem
sido retida pelo Estado.
A Administração da Instituição está constituída por um Conselho Técnico
Deliberativo, Conselho de Curadores, Diretoria Executiva, Diretoria Administrativa,
Diretoria de Ensino, Diretoria de Pesquisa e Diretoria de Recursos Humanos. A
Direção Executiva é eleita diretamente pela comunidade escolar desde o ano de
1996. Antes disso, havia um processo de eleição através de uma lista tríplice que
era encaminhada ao Governo do Estado.
A escola atende alunos provenientes de mais de cinqüenta municípios da
região, constituindo-se como uma instituição de caráter regional. Possui cento e
sessenta e cinco professores, vinte e quatro auxiliares de ensino e sessenta
funcionários. Os servidores são contratados mediante concurso público, sendo
regidos pelo regime da Consolidação das Leis Trabalhistas. O serviço de limpeza e
segurança é feito por empresas terceirizadas a partir da década de 90.
A instituição também conta com o apoio da Associação de Pais e Mestres e
da comunidade local e empresarial para ações de melhorias da escola. Possui
também uma incubadora tecnológica na área da escola. Realiza uma feira anual,
21
de caráter estadual, nacional e internacional, dirigida aos alunos de 14 a 20 anos,
oportunizando a apresentação de projetos científicos e tecnológicos. Atualmente,
esta é a principal feira da América do Sul, projetando a instituição
internacionalmente.
São oferecidos seis cursos técnicos, sendo que a instituição, devido ao fato
de não concordar com o propugnado pela reforma da educação profissional quanto
à separação do ensino médio do ensino técnico, conseguiu encontrar uma
alternativa para preservar a integração. Por isso os cursos de eletrotécnica,
eletrônica, mecânica e química, que funcionam no diurno, foram mantidos de forma
articulada com o ensino médio. À noite, além destes quatro cursos, funcionam
ainda os cursos técnicos automotivo e segurança do trabalho. Os cursos noturnos
são pós-médios, ou seja, os alunos já devem ter concluído o ensino médio.
22
2 O ESTADO E A SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO DO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO
Para articular o trabalho à dimensão da subjetividade e compreender como a
subjetividade dos trabalhadores estudados é mobilizada para a nova racionalidade
governamental, proponho analisar aqui a Reforma do Estado, considerando as
contribuições de diversos autores sobre a formação do Estado brasileiro e sobre as
noções de público e privado sem, entretanto, adotar as suas perspectivas teóricas.
O conceito de governamentalidade desenvolvido por Foucault é utilizado
centralmente neste trabalho porque representa uma outra possibilidade para
pensar as questões do Estado e do poder na relação com a constituição do sujeito
contemporâneo.
A Reforma do Estado é analisada nesta pesquisa porque opera como um
dispositivo no âmbito público-estatal que introduz as transformações que ocorrem
no capitalismo contemporâneo. Portanto, pretendo investigar como as alterações
no mundo do trabalho, as novas configurações do público e do privado e os novos
laços sociais se manifestam no âmbito estatal.
A introdução da nova lógica de gestão da chamada “coisa pública”,
denominada pelo Ministro Bresser Pereira (1998) de “administração gerencial”, não
consistiu apenas em uma mudança na forma de gestão, pois transferiu funções
estratégicas para o setor privado e atuou no que restou do Estado, introduzindo os
princípios da competitividade, da qualidade e da redução de custos, princípios
gestados na esfera produtiva privada. Estas transformações garantiriam ao
aparelho estatal um caráter flexível e eficiente para enfrentar os desafios impostos
pela “globalização” e pela demanda crescente de serviços ao poder público.
A seguir serão mencionados os estudos de alguns autores sobre o processo
de constituição do Estado Brasileiro para auxiliar na compreensão das condições
de possibilidade dos discursos sociais relacionados ao serviço público e que tem
implicado nos jeitos de ser e de trabalhar do servidor ou empregado público.
23
2.1 A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
Desbravada a Terra de Santa-Cruz, mais tarde denominada de
Brasil, os portugueses começam a deixar suas marcas indeléveis sobre a
grande nação que se constituiria como herança de sua colonização. Na
Carta que envia a El-Rei, o escrivão-mor da frota cabralina, Pero Vaz de
Caminha, ao seu final, pede a Sua Alteza um favorzinho pessoal nos
seguintes termos: “E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que
levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa
Alteza de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer
singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu
genro o que d’Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa
Alteza (RIBEIRO, 2005, p. 5) .
Caminha inaugura uma prática, ao tentar favorecer o seu genro, que ficou
arraigada na condução da gestão do Estado português colonizador e se perpetuará
na formação e desenvolvimento do Estado Nacional brasileiro, nos tempos do
Império e da República.
São vários os exemplos e estudos que mostram um intrincado e duradouro
sistema de apropriação dos cargos para familiares, apadrinhados e afins ao longo
de nossa história. O Estado se constituía na base de sustentação dessas relações
de poder estabelecidas, sendo a prática clientelista estruturante da relação do
Estado com a sociedade no Brasil da segunda metade do século XIX.
Além das práticas clientelistas, utilizadas para consolidar a base de
sustentação das elites, o Estado brasileiro desde os tempos coloniais foi
constituído de modo a contribuir com o processo de acumulação da riqueza pelas
elites, alocando recursos de acordo com seus interesses econômicos. Esta análise
é partilhada por diversos autores que identificam o patrimonialismo e o clientelismo
como práticas constituintes do funcionamento estatal brasileiro.
Sérgio Buarque de Holanda (1995), “um dos explicadores do Brasil” (ao lado
de Gilberto Freyre e Caio Prado Junior) em seu livro Raízes do Brasil, constrói um
panorama histórico no qual ele insere a figura do “homem cordial”. Para Holanda, a
impossibilidade que o brasileiro tem em se desvincular dos laços familiares a partir
do momento que se torna um cidadão, gera o “homem cordial”. Cordialidade esta
que não é sinônimo de civilidade ou de polidez, mas que vem de cordes, coração.
Esse homem cordial é aquele generoso, de bom trato, que para confiar em alguém
precisa conhecê-lo primeiro. O rigor é totalmente afrouxado, onde não distinção
entre o público e o privado: todos são amigos em todos os lugares. O Brasil é uma
24
sociedade onde o Estado é apropriado pela família, os homens públicos são
formados no círculo doméstico, onde laços sentimentais e familiares são
transportados para o ambiente do Estado. É o homem que tem o coração como
intermédio de suas relações. No Brasil, para o autor, falta o ordenamento
impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático (weberiano).
Sobre o funcionamento estatal brasileiro, Holanda (1995, p.146) afirma ainda
que:
No Brasil, pode dizer-se que excepcionalmente tivemos um sistema
administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a
interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível
acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das
vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em circuitos
fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.
A predominância de um tipo de atitude política das elites dominantes que
identificavam no Estado apenas um sustentáculo de seus interesses materiais
tornava difícil.
[...] aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados
por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os
domínios do privado e do público. Assim eles se caracterizam justamente
pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata, conforme a
definição de Max Weber (HOLANDA, 1995, p. 145).
Fedozzi
6
, citado por Neves (2000, p.36), caracteriza o modelo patrimonialista
de formação social e política do país a partir de três elementos interdependentes:
(1) a concepção tutelar do poder engendrada pela precedência e primazia
histórica do Estado em relação à sociedade e que se processa através de
mecanismos de cooptação e de exclusão social e política; (2) a ausência
de noção de contrato social nos padrões de relacionamento da ordem
social e política, que pressupõem o reconhecimento do outro como sujeito
portador de direitos enquanto noção igualitária básica da democracia; (3) a
não distinção entre o que é público e o que é privado, configurando a
inexistência da noção republicana que está na base das democracias; (4)
a permanente reposição da dualidade entre o país real e o país formal
denotando uma esquizofrenia entre os níveis institucional e social.
A cultura do serviço público no Brasil está fortemente associada ao processo
de formação do Estado brasileiro, sendo que a questão da eficiência e do
desempenho relacionada à gestão da máquina administrativa constitui um dos
traços presentes nas diversas análises produzidas. Porém, é importante ressaltar
6
FEDDOZI, Luciano. Orçamento Participativo: Reflexões sobre a experiência de Porto Alegre.
Porto Alegre, Tomo Editorial, 1997.
25
que as análises do funcionamento estatal brasileiro referidas possibilitam pensar o
desempenho do serviço público o em termos absolutos de eficiência e
ineficiência, como sendo uma disfunção ou como uma falha da organização. Em
vários momentos da história do País, o Estado cumpriu a sua finalidade com
grande eficiência, como demonstrado por Fiori, ao se referir ao período de 1930-
1980, quando afirma que:
No cumprimento de seu papel dentro do velho projeto de desenvolvimento
nacional, o Estado criou uma ampla e complexa institucionalidade, que se
expandiu, especializando-se de forma contínua através de todo o período.
Como produtor e coordenador de grandes blocos de investimento e
principal agente de centralização financeira, o Estado brasileiro acabou
montando burocracias econômicas competentes na gestão de suas
agências, bancos e empresas produtivas (1995, p.102).
Neste estudo, proponho que o desempenho no serviço público seja
analisado a partir de uma perspectiva foucaultiana, na qual o padrão eficiência seja
entendido como uma produção política e social, ao contrário da análise feita pelos
formuladores da Reforma Administrativa que o reduzem a um problema de
paradigma de gestão.
2.2 O PADRÃO EFICIÊNCIA/INEFICIÊNCIA COMO UMA PRODUÇÃO
POLÍTICA E SOCIAL
Em sua dissertação sobre A produção da Governabilidade na Gestão do
Trabalho no Serviço Público, Neves (2000, p. 39) ao discutir o desempenho do
serviço público a partir da análise da cultura brasileira e da dinâmica da nossa
formação social propõe pensar o padrão eficiência/ineficiência como sendo mais do
que um simples desvio dos recursos públicos para incentivar a acumulação de
capital “[...] como se fosse apenas uma apropriação econômica do aparelho estatal
através de práticas patrimonialistas”. Esse padrão eficiência/ineficiência faz parte
do próprio mecanismo de dominação como uma das finalidades do Estado.
Introduz nesta análise a contribuição do pensamento de Foucault sobre as prisões,
quando este sugere que a falha no combate à delinqüência não pode ser
considerada como ineficiência do sistema prisional, pois a sua finalidade é a
produção da delinqüência enquanto um mecanismo de gestão das ilegalidades.
“Neste sentido, podemos falar da produção social e política de um padrão
26
eficiência/ineficiência no serviço público, como um componente da estratégia de
dominação”.
Sugerimos uma aproximação da noção de gestão ao conceito foucaultiano
de poder, uma vez que as formas de gestão implicam disciplinamento e
hierarquização, termos que estão fortemente relacionados ao significado de poder
em Foucault. Para o autor não existe “o poder”, mas sim, práticas e relações de
poder (1995, p.241):
Quanto às relações de poder propriamente ditas, elas se exercem por um
aspecto extremamente importante através da produção e da troca de
signos; e também não são dissociáveis das atividades finalizadas, seja
daquelas que permitem exercer esse poder (como as técnicas de
adestramento, os procedimentos de dominação, as maneiras de obter
obediência), seja daquelas que recorrem, para se desdobrarem, a
relações de poder (assim na divisão do trabalho e na hierarquia das
tarefas) (FOUCAULT, 1995, p.241).
Tal posicionamento nos permite pensar a gestão como estratégias de
disciplinamento das relações de trabalho que se associarão a um regime de
saberes-verdades, servindo de referência para pensar o trabalho em
estabelecimentos públicos de educação profissional e os processos de
subjetivação. Torna-se assim importante recortar a noção de disciplina que aparece
relacionada ao tema da educação, pois como assinalado por Castro,
[...] ainda que as idéias e as análises de Foucault tenham interessado
justamente àqueles que se ocupam da educação, nenhum texto de
Foucault foi inteiramente consagrado a essa questão. O tema da
educação que é sem vida, um tema importante na obra de Foucault
aparece sempre em relação com e a partir de outros temas; em primeiro
lugar, em relação com a disciplina (2004, p.106).
A disciplina não deve ser compreendida como uma interdição, mas como um
processo através do qual os sujeitos são construídos numa perspectiva de
maximização de produtividade. A disciplina consiste em cnicas de
individualização do poder, de vigilância, controle de conduta, do comportamento e
das atitudes. A lógica disciplinar caracterizou a implantação do modelo taylorista-
fordista (NARDI, 2002).
A idéia de disciplina deve ser acompanhada do conceito de normalização,
uma vez que as instituições disciplinares tais como o exército, o hospital, a fábrica
e neste caso, a escola constituíram-se como instâncias de normalização. A norma
afetaria todas as condutas, referindo todos os atos e condutas individuais a algo
27
que não é simplesmente da ordem do permitido e do proibido, mas sim, ao mesmo
tempo a um campo de comparação e de diferenciação, ao normal.
Entretanto, o modelo disciplinar que caracterizava o funcionamento destas
instituições de confinamento, mostrou-se insuficiente para enfrentar as relações de
produção da sociedade industrial. Há então uma sobreposição das formas de
dominação, onde permanece a gica disciplinar, porém não necessitando mais do
confinamento. O advento da sociedade de controle faz com que o poder seja
exercido de modo mais sutil e invisível, que se trata de “intensificar a
interiorização e a invisibilidade da norma na trama da própria vida(Silva&Nardi,
2005, 194-195).
A referência à emergência da sociedade de controle na contemporaneidade
auxilia na compreensão da Reforma do Estado como um dispositivo que colocou
em funcionamento um conjunto de técnicas, estratégias, leis, procedimentos e
discursos necessários para a produção de sujeitos empreendedores de si e de
instituições flexíveis e eficientes. Neste contexto, o trabalho no serviço público tem
sido investido por estes novos e sutis mecanismos de controle, oriundos de uma
produção e difusão de técnicas e conhecimentos que asseguram a gradual
incorporação da racionalidade empresarial capitalista para o interior das estruturas
estatais.
Foucault (1995) analisa a questão do Estado a partir da perspectiva de
governo. O conceito de governo foi utilizado pelo autor com a significação que tinha
no século XVI, pois designava as estruturas políticas e a gestão dos Estados, como
também a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos. O termo
conduta é sugerido por Foucault para atingir o que de mais específico nas
relações de poder. Por isso, o governo dos homens pelos homens é considerado o
elemento mais importante do exercício do poder, envolvendo modos de ação
destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos outros indivíduos.
A noção de poder como condução das condutas dos indivíduos e dos grupos
é explicitada pelo autor
O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois
adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem
do ”governo”. [...] O modo de relação próprio do poder não deveria,
portanto, ser buscado do lado da violência e da luta, nem do lado do
contrato e da aliança voluntário (que não podem ser mais do que
instrumentos); porém do lado deste modo de ão singular nem
guerreiro nem jurídico – que é o governo (FOUCAULT, 1995, p. 244).
28
Assim, pode-se afirmar que não existe o poder de uma instituição estatal,
mas práticas estratégicas que animam tal instituição, pois “o poder não é uma
instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam
dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade
determinada” (FOUCAULT, 2003, p.89).
A concepção foucaultiana adotada neste trabalho, que demonstra a
impossibilidade de reduzir o funcionamento do poder ao funcionamento do Estado
ou da Administração, é importante para compreender que o Estado não pode ser
visto como origem do governo, mas como constituinte e constituídor de um campo
de cálculos e de intervenções (FOUCAULT, 1995). A Reforma do Estado deve ser
analisada dentro desta perspectiva, como um dispositivo – em múltiplos circuitos de
poder que atualiza o exercício do governo da população em consonância com as
novas configurações da sociedade. Sendo assim, sugere-se agora uma referência
à discussão conceitual e historiográfica presente na obra de Hannah Arendt (1993),
a respeito do publico e do privado. Tais noções constituem-se nos elementos
centrais para pensar a contemporaneidade cuja lógica da privatização invade as
instituições, os sujeitos e os espaços públicos.
2.3 AS CONFIGURAÇÕES HISTÓRICAS DOS CONCEITOS DE PÚBLICO E
PRIVADO
A autora remonta à Grécia Clássica para mostrar como o equilíbrio da
existência dos gregos se sustentava na clara demarcação entre o espaço público,
da pólis, espaço da liberdade e da ação, e o espaço da vida privada, da família.
Para o pensamento grego, a vida privada corresponderia à esfera da família,
que constituía-se numa organização privada com a função de garantir a
sobrevivência da espécie e a manutenção individual. A casa era onde tinham lugar
as atividades pertinentes à manutenção da vida. A família desempenhava as
funções de necessidade e as relações estabelecidas entre os seus membros eram
de desigualdade.
29
A vida pública corresponderia à pólis, onde tinham lugar as atividades
pertinentes a um mundo comum, no qual todos
7
eram iguais. Por isso, a liberdade
podia ser alcançada somente pela política, que era exercida na pólis. Na esfera da
família não existia liberdade, pois “ser livre significava ao mesmo tempo não estar
sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não
comandar” (idem, ibid., p.41).
A pólis e a casa eram, assim, entendidas como entidades diferentes e
separadas e esta divisão constituía a base na qual se assentava todo o antigo
pensamento político. O termo público se referia ao direito do povo, diferentemente
do que é concebido modernamente, uma vez que blico se refere ao direito do
Estado e não ao direito do povo.
Arendt nos ajuda a entender as condições que possibilitaram o
deslocamento ocorrido do direito do povo para o direito do Estado, quando nos fala
da emergência da esfera social como um fenômeno novo que coincide com o
surgimento da era moderna, assumindo como forma política o Estado Nacional.
Segundo a autora (idem, ibid., p.37), “a ascendência da esfera social, que não era
nem privada nem pública no sentido restrito do termo”, começou a tornar difusa a
linha que dividia os dois domínios.
Esse fato possibilitou a coincidência da política (vinculada à esfera pública),
com a economia (vinculada à esfera privada), provocando deslocamentos nas
formas de se conceber os termos “público” e “privado”. O termo economia política
era visto como uma contradição, “pois o que fosse econômico, relacionado com a
vida do individuo não era assunto político, mas doméstico por definição” (idem,
ibid., p. 38).
O público torna-se o lugar da administração do lar, da resolução dos
problemas particulares. As coletividades passam a ser consideradas como famílias
cujos negócios cotidianos devem ser atendidos em uma gigantesca administração
(ARENDT, 1993, p. 47-59).
7
“Todos” aqui se refere aos homens gregos livres e proprietários, ou seja, os cidadãos, estatuto que
excluía as mulheres, estrangeiros, escravos e trabalhadores manuais.
30
2.4 O DESBLOQUEIO DA ARTE DE GOVERNAR E O NASCIMENTO DA
BIOPOLÍTICA
As condições de possibilidade para o nascimento da economia política
podem ser encontradas nas questões colocadas a partir do século XVI e
relacionadas à problemática geral do governo, ou seja, “Como se governar, como
ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que todo, etc”
Foucault (1984, p.278).
Para Foucault, a questão referente a “como introduzir a economia isto é, a
maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no interior da
família no nível da gestão de um Estado?” (idem, ibid.), somente se torna
possível a partir da percepção dos problemas da população. Na sociedade
soberana, o sentido de população, como o entendemos hoje, era impensável, pois
na teoria do direito pré-moderna só se conheciam duas esferas sociais: de um lado,
o Estado e o soberano, e de outro, o pai de família e sua casa.
A constituição da população e os fatos a ela associados conferiram ao termo
economia o seu significado moderno. Foucault destaca três desses fatos que
imbricados possibilitaram o que ele chamou de “desbloqueio da arte de governar”:
a) a família passa a ser secundária em relação com a população, aparecendo
como um elemento interno à população e não mais como modelo mas como
instrumento de governo; b) a população, sendo sujeito de necessidades e, ao
mesmo tempo, objeto nas mãos do governo, passa a aparecer como objetivo final
de governo; c) produz-se um saber em torno das relações entre a população, o
território e a riqueza, permitindo a formação de uma razão de Estado para que o
governo se de uma forma racional e planejada. Surge então a economia política
como ciência do governo, que tem a família como instrumento, a estatística como
técnica e a população como objeto e objetivo.
O abismo entre a esfera pública (política) e privada (família) desaparece
quando a administração doméstica se transforma em atenção e utilidade coletiva,
formando-se assim “esta esfera curiosamente híbrida que chamamos de
‘sociedade’, na qual os interesses privados assumem importância pública” (idem,
ibid., p.45).
31
Quando o gerenciamento caseiro ascende para o domínio político, o Estado
toma para si parte das funções da manutenção da vida e sobrevivência da espécie,
antes exclusivamente da família. Isso permitiu “a entrada da vida na história isto
é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber
e do poder -, no campo das técnicas políticas” (Foucault, 2003, p. 133). Surgem
então novas tecnologias totalizantes de gestão da vida, que marcam o nascimento
da “biopolítica” - a operacionalização de uma nova tecnologia de poder centrada na
vida - ou seja, a estatização do biológico, que põe em ação por meio da medida
estatística, um poder regulamentador da vida.
Segundo Foucault, o “poder de vida e morte”, que antes era privilégio do
Soberano, apresenta-se, na modernidade, “como o complemento de um poder que
se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração,
sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de
conjunto” (2003, p.129).
2.5 A GOVERNAMENTALIDADE: O GOVERNO DO ESTADO E DAS
MENTALIDADES
Foucault apresenta o conceito de governamentalidade para designar este
novo e específico tipo de racionalidade, baseado na organização e controle das
condutas que agora tem por alvo a população. A governamentalidade ou a arte
de governar caracterizada por um conjunto de saberes constitutivos de uma nova
racionalidade é que irá desenhar o Estado moderno. E para dar conta da relação
entre a segurança, a população e o governo, esta arte de governar torna-se
Ciência Política, em torno do nascimento da economia política, conforme vimos no
capítulo anterior.
A arte de governar encontra uma primeira forma de cristalização ao se
organizar ao redor do tema de uma Razão de Estado. Por Razão de Estado
Foucault entende:
[...] o Estado se governa segundo as regras racionais que lhe são próprias,
que não se deduzem nem das leis naturais ou divinas, nem dos preceitos
da sabedoria ou da prudência; o Estado, como a natureza, tem sua
racionalidade própria, ainda que de outro tipo (1984, p.286).
32
A doutrina da Razão de Estado buscava definir em que medida os princípios
e métodos do governo estatal eram diferentes de como, por exemplo, Deus
governava o mundo, o pai a sua família, ou mesmo, um superior sua comunidade.
Tal doutrina esteve presente no desenvolvimento dos aparelhos administrativos da
monarquia territorial, que deram origem aos aparelhos de governamento durante o
século XVI. Houve, portanto, o reforço das estruturas de administração, incluindo
os próprios aparelhos estatais, passando pelas instituições filantrópicas e médicas,
até estruturas mais antigas como as famílias.
Esta restrição do conceito de governo às questões relativas ao Estado
ocorre na Modernidade, na qual “as relações de poder foram progressivamente
governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma
ou sob a caução das instituições do Estado” (FOUCAULT, 1995, p.247), fazendo
com que a sociedade vivesse um processo de governamentalização do Estado, ao
contrário da estatização da sociedade. Sendo assim, a compreensão do Estado
deve partir da observação das táticas gerais da governamentalidade.
A governamentalidade está ligada a questões morais, no sentido de fazer
alguém se auto-regular e conduzir-se a si mesmo como sujeito da auto-regulação.
A noção de governo está implicada no modo como o individuo questiona sua
própria conduta com o propósito de governar-se melhor. Por isso, a
governamentalidade compreende não somente práticas de governo dos outros,
mas também práticas de si.
O conceito de governamentalidade contribui com o nosso estudo sobre a
Reforma do Estado, pois vimos que o próprio Foucault sugere que a compreensão
do Estado deve considerar as táticas gerais da governamentalidade. Além disso,
esta categoria conceitual introduz a dimensão do sujeito, que se constitui, na
relação com as mudanças operadas no trabalho, o objetivo principal do nosso
estudo. A abordagem foucaultiana possibilita a articulação da problemática das
praticas de “governamentalidade”, no nível da população e, no nível do indivíduo,
pois os funcionários das instituições estudadas constituem-se ao mesmo tempo
como alvos e como veículos das políticas de governo. As políticas administrativas
conduzidas no processo de Reforma do Estado funcionam como um mecanismo de
regulação importante nas estratégias de governo.
O deslocamento do governo dos outros para o governo de si permite
introduzir a temática da autoconstituição do sujeito. Ao descrever as tecnologias de
33
governo na análise do poder, Foucault constitui as cnicas de si e a relação entre
ambas é definida pelo autor como governamentalidade. Mentalidades de governo
são racionalidades políticas pelas quais governar se torna uma questão de
conduzir de forma calculada as condutas de si e dos outros buscando atingir certos
objetivos (BAMPI, 2003).
Quando Foucault analisa o dispositivo da sexualidade se dá conta de que o
exercício do poder não deve ser entendido como pura violência ou coerção, uma
vez que o poder consiste em relações complexas. Dessa forma, as relações de
poder implicam em dominação e em resistência. As lutas forjadas nos processos
de dominação e resistência permitem uma maior visibilidade do poder,
questionando o estatuto do indivíduo e afirmando o direito de ser diferente, o que
os torna indivíduos singulares. Por outro lado, ataca aquilo que rompe a relação do
indivíduo com os outros, ligando-o a sua própria identidade de modo coercitivo. O
autor atribui dois sentidos para a palavra sujeito: “sujeito a alguém pelo controle e
dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou
autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna
sujeito a” (FOUCAULT, 1995, p. 235).
Após ter estudado o campo de governo, partindo das técnicas de
dominação, Foucault passa a analisar as tecnologias de governo não somente
orientada para os outros, mas também para si e conclui: “Se quisermos analisar a
genealogia do sujeito na civilização ocidental, é preciso considerar não apenas as
técnicas de dominação, mas também as técnicas de si” (2004, p. 95).
Ramminger (2005), em sua dissertação, problematiza a questão do sujeito,
da qual recortamos para o nosso estudo, a discussão do assujeitamento em
Foucault que deve ser relevantemente considerada na análise da relação
subjetividade e trabalho, pois o aprisionamento às normas traz em si mesmo as
possibilidades de resistência. Conforme Ramminger,
estudar a relação entre subjetividade e trabalho é estar atento, portanto,
não apenas as formas de assujeitamento, mas também às transgressões
e às possibilidades de invenção de outros modos de lidar com as normas,
quiçá transformando-as (2005, p. 26).
Nardi (2002, p.20) propõe pensar a subjetividade através dos processos e
dos modos de subjetivação. O processo de subjetivação é “a maneira como o
conjunto de regras que define cada sociedade é experienciado em cada trajetória
34
de vida“, enquanto que os modos de subjetivação referem-se à forma
predominante como os sujeitos se relacionam com a regra, reconhecendo-se como
impelidos a colocá-la em prática.
Michel Foucault utiliza a ferramenta genealógica para compreender “O que
somos hoje”, buscando encontrar no passado às condições de possibilidade de ser
o que somos no presente. A genealogia produz uma ruptura com um tipo de fazer
histórico, que se preocupa em encontrar uma origem fundacional para
determinados conceitos ou práticas. Para o autor, a verdade é produzida e cada
época determina o que pode ser dito e pensado a partir do que ele chama de
”jogos de verdade”. Os jogos de verdade são os diferentes procedimentos que
conduzem a uma verdade ou regime de verdades que sustenta uma determinada
forma de dominação. Há, portanto, uma luta permanente entre diferentes campos
de saber que produz determinados regimes de verdade.
As investigações de Foucault para compreender “como nos tornamos
sujeitos” em cada tempo e em cada contexto, nos indicam a necessidade de
identificar os regimes de verdade que balizam os processos de subjetivação dos
trabalhadores de nossa pesquisa. Por isso, a perspectiva genealógica é adotada na
pesquisa para compreender como os diferentes discursos sobre o trabalho no
serviço público-estatal, que legitimam a Reforma do Estado, incidem sobre a vida
dos trabalhadores, neste estudo, trabalhadores de escolas técnicas, determinando
o seu modo de trabalhar e a experiência que fazem de si mesmos.
É preciso reconhecer que as táticas de governo contemporâneas não seriam
eficazes sem a mobilização das subjetividades para esse objetivo. O circuito da
governamentalização no aparelho administrativo escolar se completa com a
produção da sujeição dos seus trabalhadores, que envolve também as diversas
formas de resistência praticadas.
2.6 A RACIONALIDADE GOVERNAMENTAL CONTEMPORÂNEA E A
PRODUÇÃO DOS NOVOS SUJEITOS
Ainda que reconheçamos a difusão da linha divisória entre público e privado,
as tentativas de definir os termos dicotômicos em questão constituem uma das
principais incumbências dos economistas políticos da era moderna, pois é
por meio
35
da ciência do governo que se deve estabelecer as competências do Estado,
estabelecendo os seus limites e distinguindo aquilo que é da ordem pública daquilo
que é da ordem privada.
A forma de classificação em que a divisão contém apenas dois termos
reciprocamente exclusivos (ou é público ou é privado), entrou em crise ao mesmo
tempo em que se tornou objeto da ciência política. Portanto, a liquidação da
dicotomia começa a ser produzida no momento em que a própria dicotomia é
elaborada cientificamente, ou seja, quando é capturada pela economia política e
associada ao domínio estatal, coincidindo com a transferência dos instrumentos de
governo dos grupos populacionais da lei para a norma, que age, sobretudo, na
esfera do social. Conforme Arendt (2001, p. 79),
a contradição entre o privado e o público, típica dos estágios iniciais da era
moderna, foi um fenômeno temporário que trouxe a completa extinção da
própria diferença entre as esferas privada e pública, e a submersão de
ambas na esfera do social.
Na verdade, a diluição da antiga divisão alterou profundamente o significado
da própria dicotomia e os termos desta dicotomia agora são estabelecidos segundo
uma racionalidade governamental inteiramente diferente. Bauman (2001) e Sennett
(2000), entre outros autores, apontam para o fato de que o mundo outrora
chamado de “moderno” vem passando por transformações e vem se
(des/re)organizando de tal maneira que os modos como experimentamos esse
mundo estão sendo profundamente modificados. As formas de ordenamento
consideradas modernas, ao serem rearranjadas, transformam o próprio caráter de
moderno, engendrando, assim, a contemporaneidade que quanto mais combina os
diversos elementos que a compõem (discursos, práticas, mecanismos, dispositivos,
procedimentos, técnicas), mais dificulta a percepção desses elementos em
separado.
De acordo com Bauman (2001), um dos deslocamentos mais poderosos
operado na contemporaneidade diz respeito à intensificação e expansão da lógica
de mercado que passa não apenas a influenciar, mas também e principalmente a
coordenar, conduzir, induzir, arranjar, orientar a organização dos espaços e o
controle da ordem. Trata-se de um mercado em constante movimento, o que
significa duas coisas: o fazer parte de nenhum lugar específico e com isso
estender sua presença a quase todos os lugares. Disso resulta que dificilmente
36
sabemos com certeza de que lugar as novas e móveis ordens serão estabelecidas,
porque o controle está disperso e difusamente distribuído pelo corpo social. Porém,
o controle continua tendo efeitos normalizadores, só que a normalização das coisas
relativas à vida cotidiana de cada um e da massa populacional está passando por
mudanças correspondentes às novas formas de organização da vida atual.
Richard Sennett (2000) faz uma análise dos impactos do capitalismo flexível
sobre o caráter pessoal, na qual refere que o sistema de poder que se encontra
nas formas de flexibilidade dos dias de hoje são mais sutis, mas continuam
presentes no trabalho em equipes, flexitempo, recursos tecnológicos os novos
artifícios da dominação. Acrescenta que a sociedade atual busca meios de destruir
os males da rotina com as denominadas instituições flexíveis. A repulsa à rotina
burocrática e a busca da flexibilidade, ao invés de libertarem, teriam como
resultado a produção de novas estruturas de poder e controle.
O autor argumenta ainda que uma vida de impulsos momentâneos, de ações
de curto prazo e sem rotinas que se sustentem constitui uma existência irracional,
sem objetivos nem propósitos. Sendo assim, o novo cenário econômico-social que
traz termos excitantes como agilidade, flexibilidade e mudança não propicia a
realização ambicionada, ao mesmo tempo em que corrói no indivíduo as
qualidades que criam os laços entre os seres humanos e lhes conferem uma
identidade sustentável.
Neste sentido, podemos dizer que outra transformação operada nos últimos
tempos e conectada com as demais transformações contemporâneas refere-se à
valorização generalizada do sujeito, traduzida por um individualismo cada vez mais
afastado dos grandes sistemas de sentido. A contemporaneidade parece acentuar
a fabricação de um certo tipo de sujeito privado, sujeito privatizado que vem sendo
produzido desde a ascendência da esfera que Arendt (2001, p.79) chama de
“social”:
Daí o desaparecimento de ambas estas esferas da vida a esfera
pública porque se tornou função da esfera privada, e a esfera privada
porque se tornou a única preocupação comum que sobreviveu. [...] a única
coisa que as pessoas têm em comum são seus interesses privados.
Quando o próprio Estado assume a necessidade de uma administração do
tipo gerencial, inspirando-se na lógica da administração de empresas identificadas
com o setor privado, ficam evidentes a dissolução e privatização do conceito de
37
público ou, nas palavras de Hardt&Negri (2002, p.232), “o público é dissolvido e
privatizado até como conceito”.
A transformação na delimitação do público e do privado, com o
superinvestimento no íntimo e no familiar como constitutivos da subjetividade pós-
moderna, “facilita” a construção e a manutenção da crença na importância do
privado concomitante à desvalorização do público. Isto acontece que o próprio
processo de constituição subjetiva opera a partir do molde valorativo de um espaço
em detrimento do outro e estabelece o suporte psíquico necessário à manutenção
desse aspecto da ordem social.
O novo ser humano passa a ser o indivíduo produtor-consumidor que não é
somente um empreendedor no sentido tradicional, mas, sobretudo, um
empreendedor de si e do mundo. O trabalho de “auto-elaboração de si” torna-se a
principal e mais rentável transação do mercado social em crescimento.
Nesta racionalidade de governo que se constitui, vê-se fortalecer
progressivamente a idéia de que o novo ser humano é menos o sujeito disciplinado
pelas técnicas de trabalho e pelas normas familiares do que o sujeito independente
e senhor de si a que a nova gica passa a exigir. Indivíduo que deve ser o “autor
ativo” de suas escolhas de vida e também o único responsável pelos riscos e
perigos que estas escolhas implicam. A segurança anteriormente garantida pelo
Estado se dissolve como imperativo de cada indivíduo.
38
3 BREVE CARACTERIZAÇÃO DO MODELO INSTITUCIONAL DO ESTADO
BRASILEIRO NO PERÍODO DE 1970-90
A cada de 70 é caracterizada pelo milagre brasileiro, período de
crescimento econômico e grande euforia. O Estado assume o papel de forjador do
crescimento, desempenhando funções de regulamentação, financiamento,
execução e produção, especialmente, nas áreas estratégicas.
O aparelho estatal vive um momento de abundância de recursos, de
expansão e estruturação tecnocrática, cumprindo o seu papel estratégico do ponto
de vista macroeconômico.
Nos anos 80, no plano político, houve a redemocratização do País, a
Constituição de 1988, incluindo a garantia dos direitos sociais e políticos. Em
termos econômicos, a década é marcada pela recessão. A carência de recursos
abala a máquina burocrática, desencadeando um amplo debate sobre o papel do
Estado. A dívida pública cresce dificultando os investimentos na infra-estrutura e
demandas sociais.
A crise econômica que afetou os países desenvolvidos e em
desenvolvimento na década de 80 trouxe para o cenário mundial um conjunto de
medidas a serem implementadas nos diferentes países do mundo globalizado.
Nesta nova ordem mundial um reposicionamento do Estado diante das
estratégias de transformação social.
A Reforma do Estado constitui-se como um dos temas de maior importância
na agenda contemporânea das políticas públicas. A literatura identifica duas fases
políticas da Reforma do Estado. A primeira fase tratou da gestão da crise
econômica que afetou as economias desenvolvidas e as periféricas na década de
80. A segunda fase, que se consolidou a partir dos anos 90, teve por objetivo a
estabilidade macro-econômica e a reforma das instituições públicas.
O governo Collor inaugura a década de 90, cuja centralidade das ações está
no controle do processo inflacionário, abertura econômica e reforma do Estado. O
Estado busca ser menos executor e mais inteligente/gestor, inspirado no
movimento “reinvenção de governos”, que foi adotado pelo Governo Clinton nos
EUA e utilizado no governo Fernando Henrique Cardoso em 1994.
39
A reinvenção de governos tem dois pressupostos centrais. O primeiro deles
rompe com o sentido positivo da palavra burocracia que, no passado, representava
racionalidade e eficiência. O outro pressuposto parte da constatação de que as
burocracias públicas foram estruturadas no século XX para dar conta de uma
economia industrial, encontrando-se, portanto, defasado em relação às demandas
contemporâneas da sociedade.
Apresentamos a seguir um quadro do modelo institucional do Estado
Brasileiro referente ao período histórico estudado na pesquisa:
DÉCADA DE 70 DÉCADA DE 80 DÉCADA DE 90
Contexto
Macroeconômico
Crescimento
Econômico
Recessão, Crise das
dívidas, Abertura
política
Inserção da
economia no
mercado
internacional
Estratégia
Organizacional
Regulamentador/
Financiador/
Executor/Produtor
Regulamentador/
Financiador/
Executor/Produtor
Regulamentador/
Foco nos papéis
básicos/Gestão
estratégica/
Articulação
Financiamento Abundância de
Recursos
Crise de
Financiamento/
Ausência de
recursos
Transformação do
modelo de
financiamento e
distribuição de
recursos/Busca
de parcerias
privadas
Fonte: Di Lorenzo (1993)
3.1 A REFORMA DO ESTADO NO BRASIL
Na década de 90 passa a se conformar um novo cenário com a reforma do
Estado, instaurando uma transformação na estruturação do aparelho
administrativo. O campo estatal vai conviver com a progressiva introdução da
lógica e dos mecanismos que regem o mundo das empresas privadas, resultado da
incorporação de novas práticas discursivas e não discursivas associadas a saberes
da Economia e da Administração próprios ao setor privado.
Como dito, no Brasil a Reforma do Estado foi desencadeada pelo governo
Federal a partir de 1995, produzindo uma transformação na estrutura do aparelho
estatal. Do ponto de vista normativo destas transformações, destaca-se a
40
elaboração do Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (PDRAF), pelo
Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), cujo Ministro era Luiz
Carlos Bresser Pereira, um dos principais teóricos do projeto. O documento
denominado “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado” diz que a “crise
brasileira da última década foi também uma crise do Estado(Brasil/MARE, 1995,
p.2).
A crise do Estado no Plano Diretor (BRASIL, 1995:15), é definida “(1) como
crise fiscal, caracterizada pela crescente perda de crédito por parte do Estado e
pela poupança pública que se torna negativa; (2) o esgotamento da estratégia
estatizante de intervenção do Estado, a qual se reveste de várias formas: o Estado
de bem-estar social nos países desenvolvidos, a estratégia de substituição das
importações no terceiro mundo, e o estatismo nos países comunistas; e (3) a
superação da forma de administrar o Estado, isto é, a superação da administração
burocrática”.
O plano delimitou a nova área de atuação do Estado, realocando atividades
para o setor privado ou o setor público não-estatal e reorganizando as funções que
permaneceram no âmbito estatal. De acordo com o então ministro, o setor público-
estatal corresponderia às “[...] entidades do terceiro setor, [...] entidades sem fins
lucrativos, organizações não-governamentais, organizações voluntárias”
(BRESSER Pereira, 1988, p. 26). Dessa forma, o papel do Estado foi delimitado
pelos processos de privatização, publicização (transferência de um serviço da
esfera estatal para a não-estatal) e terceirização.
As funções que permaneceram no âmbito do Estado foram assim definidas
pelo PDRAF:
- Núcleo Estratégico: corresponde ao setor onde são formuladas as políticas
públicas, compreendendo o Presidente da República, os ministros e seus
assessores diretos, as secretarias formuladoras das políticas públicas, o Legislativo
e o dirigente máximo das instituições públicas estatais, fundações e autarquias;
- Atividades Exclusivas de Estado: setores de atividades monopolistas que
só podem ser realizadas pelo Estado, não sendo passíveis de realização em
ambientes de concorrência, tais como: definir e fiscalizar as leis, exercer o poder de
polícia, arrecadar impostos, previdência social básica;
41
- Atividades não-exclusivas de Estado: serviços sociais e científicos como
saúde, educação, produção cultural e tecnológica, ou seja, os serviços que podem
ser transferidos para a esfera não-estatal;
- Atividades de produção de bens e serviços para o mercado: compreendem
as áreas de infra-estrutura e produção de insumos como telecomunicações,
eletricidade, bancos, extração de petróleo, siderurgia, etc, que seriam objeto de
privatização.
Com estas mudanças, conforme o Plano, estavam lançadas as bases para
uma estrutura de Estado que permitisse a desregulação econômica, o aumento da
governança e o aumento da governabilidade. Os conceitos de “governança (ou
governance) e “governabilidade”, utilizados pelo Banco Mundial, são os princípios
que orientaram os debates sobre a reforma do aparelho de Estado (PEREIRA;
DINIZ, 1998 e 1997).
“Governança” corresponderia às “condições financeiras e administrativas
para transformar em realidade as decisões que toma” (Bresser Pereira, 1998,
p.40). “Governabilidade” seria a capacidade política de governar e produto do
equilíbrio entre as demandas destinadas ao governo e da disponibilidade de
instrumentos para resolvê-las, com base em um elevado grau de institucionalização
política. No caso do Brasil, a governança seria conquistada através do processo de
reforma do Estado e a governabilidade a partir da reforma política, sendo a primeira
fundamental para garantir a segunda.
Benites (2000, p.60), em sua dissertação, propõe pensar estes conceitos a
partir de uma perspectiva foucaultiana, como sendo “atualizações explícitas da
problematização das táticas da governamentalidade na contemporaneidade”,
sendo as suas formulações elaboradas a partir dos organismos internacionais (FMI,
Banco Mundial, etc.), dos cnicos políticos que participam da gestão do Estado e
das disciplinas como a Economia, a Ciência Política e a Administração Pública.
De acordo com Bresser Pereira (1998), estariam lançadas as bases para a
implantação de uma nova lógica de gestão da chamada coisa pública, denominada
de “administração gerencial”. Entretanto, Benites (2000) alerta que a introdução
desta nova lógica e dos mecanismos que regem o mundo das empresas privadas
não se restringe apenas a uma mudança na forma de gestão. Trata-se de uma sutil
forma de privatização que exclui somente o núcleo estratégico do novo Estado,
pois transfere funções diretamente para o setor privado ou permanece operando no
42
seu interior utilizando os princípios gestados na esfera produtiva privada:
competitividade, qualidade, redução de custos. Estas transformações foram
justificadas como necessárias para garantir ao aparelho estatal um caráter flexível
e eficiente capaz de enfrentar os desafios impostos pela globalização e pela
demanda crescente de serviços públicos.
O plano de reforma ainda não está concluído e as ações implementadas
não o contemplam na sua totalidade, o que se deve em parte aos problemas de
“importação” do modelo, criado em outro contexto sócio-político e ainda à
correlação de forças sociais na definição das estratégias de poder ou de resistência
ao referido processo (BENITES, 2002, p. 62). Assim, além da sua
operacionalização ser parcial no interior do Estado Brasileiro, existe um processo
de mudanças em curso devido ao resultado da eleição presidencial de 2002.
A discussão sobre o papel do Estado está inserida no contexto de
transformações do capitalismo, que tem impactos relevantes no mundo do trabalho.
A sociedade contemporânea vive a transformação do papel do Estado, modelado
no interior de um regime de verdades legitimador de um conjunto de práticas
governamentais que encaminha para o setor privado, atribuições relativas ao
cuidado da população. O conceito de regime de verdades é definido por Foucault
como os,
[...] tipos de discursos que a sociedade acolhe e faz funcionar como
verdadeiro: os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados falsos ou verdadeiros; a maneira pela qual se sanciona a
ambos; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para
obtenção da verdade; o estatuto daquele que se encarrega de dizer o que
funciona como verdade (1995, p.131).
Busca-se, instituir no âmbito estatal, modos de operar característicos da
lógica privada e empresarial, com o objetivo proposto de dar agilidade, eficiência e
qualidade aos serviços.
Enquanto as empresas do setor privado se adaptam aos novos tempos e
adotam os modernos modelos gerenciais, exaltando a imagem da empresa como
sinônimo de eficiência e qualidade, a imagem do serviço público é diária e
severamente atacada. As mídias pautam a qualidade do serviço público,
produzindo uma série de reportagens buscando “flagrar” o mau atendimento, a
ineficiência, a morosidade, etc. Consagra-se uma visão que associa a empresa
privada com bom funcionamento, ao contrário da organização pública-estatal, que
43
é vista como não tendo jeito mesmo. uma naturalização de algo que é
construído social e historicamente pelos sujeitos e que se constitui em uma
verdade para a sociedade.
Ineficaz, ineficiente e responsável pelo déficit público são alguns dos
adjetivos enunciados centrais utilizados no discurso que designa a crise estrutural
do Estado, fortalecendo a dicotomia entre público e privado. Por público,
caracteriza-se tudo o que é ineficiente, aberto ao desperdício e à corrupção, e por
privado, a esfera da eficiência e da qualidade.
3.2 O SERVIDOR PÚBLICO E A “REPRESENTAÇÃO MATRIZ”
Assistimos, assim, a deterioração das imagens sociais do serviço público e
dos próprios servidores públicos, sempre associadas a estereótipos pejorativos.
Veneu (1990) sintetiza as imagens negativas do funcionário público em uma
“representação matriz”, que o caracteriza como um indivíduo acomodado, sem
ambições intelectuais, sem preocupação com os resultados do trabalho e que
geralmente atende mal os que o procuram. As organizações públicas carregam o
estigma de ineficiência, de desperdício, de falta de coordenação e de controle,
estando sujeitas ao clientelismo, ao nepotismo e a corrupção.
O funcionário público tem inspirado escritores, músicos, cineastas e ocupado
capítulos na literatura acadêmica. Está presente nos clássicos da literatura como
Dom Casmurro, de Machado de Assis, A Metamorfose, de Kafka, Recordações do
Escrivão, de Lima Barreto, Angústia, de Graciliano Ramos. No filme Carlota
Joaquina, Princesa do Brasil, dirigido por Carla Camurati, em 1994, aparece o
futuro Dom João VI de Portugal distribuindo os cargos e o poder para governar
melhor a sua colônia. A música “Maria Candelária”, de Clécio Caldas e Armando
Cavalcanti, cantada em 1951, faz uma crítica bem humorada ao cotidiano de um
servidor público (KUPSTAS, 1997).
As figuras do Barnabé e da Maria Candelária, que representavam os
funcionários públicos nos anos 50, foram substituídos por estereótipos mais
contemporâneos como os aspones, os marajás, os anões do orçamento, numa
referência crítica ao clientelismo da máquina administrativa e à corrupção.
44
Marcos Veneu (1990, p.5), no seu artigo “Representações do Funcionário
Público”, discute estes estereótipos ao analisar algumas das representações
elaboradas sobre o funcionário público, entendido no sentido lato, como “o
trabalhador empregado pelo Estado nos níveis federal, estadual e municipal, seja
na administração direta, seja nas autarquias e empresas de economia mista”.
Neste estudo, Veneu identifica a diversidade interna da categoria, distinguindo três
grandes grupos: os funcionários da administração direta, com tarefas mais
burocráticas; os que trabalham nos “serviços sociais” do Estado, que seriam as
áreas da saúde, educação e cultura; e os empregados nas empresas estatais e
órgãos ligados à área econômico-financeira do Estado.
A nossa pesquisa corrobora esta diversidade, pois ainda que possamos
dizer que ela envolve o grupo dos que trabalham nos “serviços sociais” do Estado,
como dissemos na Introdução, os trabalhadores entrevistados, estão divididos
também em duas subcategorias do serviço publico: trabalhadores da administração
direta e da indireta, sendo um subgrupo estatutário e o outro vinculado a CLT. O
trabalho do referido autor interessa para este estudo no sentido de ressaltar a
heterogeneidade da categoria “funcionário público” e a reprodução no seu interior,
da desigualdade social que existe na sociedade.
Ainda com relação à imagem do funcionário público, Mello (1998) apresenta
uma pesquisa realizada no final dos anos 50 com moradores de o Paulo. Eles
tiveram que classificar as trinta profissões que lhes foram apresentadas. O
resultado identificou quatro grupos: o da base da sociedade (lixeiro, estivador,
trabalhador agrícola, pedreiro, garçom), o do trabalho qualificado (condutor de
trens, carpinteiro, tratorista, cozinheiro de restaurante de primeira classe,
balconista, motorista, mecânico), o da classe média (o dono do pequeno
estabelecimento comercial, o professor primário, o funcionário público de nível
médio, o escriturário, o viajante comercial, o empreiteiro, o sitiante, o despachante,
o guarda-civil) e o do topo da sociedade (diretor superintendente, fazendeiro,
gerentes, advogado, médico, padre, jornalista).
Dois critérios de valor orientaram o julgamento das profissões: o do valor
mercantil de cada profissão e o critério de valor social. O critério de valor social
predominou sobre o critério de valor mercantil, o que significa dizer “que a família, a
política e o Estado, a vida religiosa ou escolar, foram consideradas formas
superiores de existência em relação à atividade dos negócios” (p.588-589).
45
O valor da educação era visto como um meio de qualificação, mas
igualmente como uma extensão da família e da Igreja no processo de socialização
e integração social.
A década de 50 e o início dos anos 60 foi caracterizada por um processo
rápido de industrialização e urbanização, criando inúmeras oportunidades de
investimento. As transformações relativas à organização do Estado são descritas
nesta longa, mas importante citação:
O novo Estado que emergiu em 1930 não resultou da mera centralização
de dispositivos organizacionais e institucionais preexistentes. Fez-se, sem
dúvida, sob fortes impulsos de burocratização e racionalização,
consubstanciados na modernização de aparelhos controlados nos cumes
do Executivo Federal. Mas não se reduziu simplesmente à
“desapropriação” dos instrumentos locais e regionais de poder
estruturados sob o Estado oligárquico. A centralização trouxe elementos
novos, que alteraram a qualidade e a natureza do conjunto de
instrumentos políticos ou de regulação e controle anteriormente vigentes.
Velhos órgãos ganharam nova envergadura, estruturaram-se
gradativamente as carreiras, assim como os procedimentos sujeitaram-se
crescentemente à lógica racional legal. Ao mesmo tempo, erigiu-se um
novo aparelho de regulação e intervenção econômica: estruturou-se no
Estado uma área social na qual passaram a ser gestadas políticas
públicas de caráter nacional; finalmente, os organismos coercitivos e
repressivos estatais adquiriram substância qualitativamente nova (MELLO,
1998, p.593).
O aparelho social do Estado cresce especialmente nas áreas de educação,
saúde e previdência. Na educação pública ampliam-se as vagas, o mero de
escolas e o número de professores. O ensino de primeiro grau (os antigos
primários e ginásio) em 1960 era oferecido pelos estados e municípios para cerca
de 7,5 milhões de alunos contra apenas 860 mil dos colégios privados. Segundo o
autor (1998), neste período vinha se constituindo no Brasil um “verdadeiro espaço
público”. A construção da Nação e da civilização brasileira eram valores que uniam
homens e mulheres de diferentes linhas de pensamento. Entretanto, a resistência
“tenaz” dos interesses dominantes ganhava força na sociedade e nos meios de
comunicação. A “Revolução de 1964 impôs uma das formas possíveis de
sociedade capitalista que estava em disputa na sociedade brasileira. O
autoritarismo plutocrático fechou o espaço público e “abastardou a educação “,
dando lugar ao entreterimento massificado, através da expansão da indústria
cultural, leia-se televisão. O capitalismo brasileiro no período entre 1967 e 1979,
combina a concentração de renda e a desigualdade social, com uma ampliação
rápida dos padrões de consumo.
46
A crise mais recente do modo de produção capitalista expressa-se nos
países periféricos a partir da década de 80, envolvendo uma série de
transformações econômicas, sociais e políticas, tendo como cenário o processo de
globalização e de reestruturação produtiva. Há, então, uma renovação das
estratégias capitalistas para a sua sobrevivência, que implica na produção de
diferentes tecnologias de produção e de gestão.
3.3 OS NOVOS MODELOS DE GESTÃO
A Reforma do aparelho de Estado no Brasil trouxe, para o interior das
estruturas administrativas estatais, por meio de um jogo estratégico de táticas de
governo, os saberes e técnicas consolidadas no mundo empresarial capitalista. No
setor estatal se constróem mecanismos que engendram saberes e práticas
destinadas à qualificação e procedimentos de controle institucional da ação dos
indivíduos cujo trabalho é a regulação e controle dos demais indivíduos da
sociedade. Para governar a população é preciso que o Estado governe-se a si
próprio.
Ao longo do século XX, em países como o Brasil, a tentativa de construção
de uma burocracia pública se deu sob a lógica do autoritarismo, ao mesmo tempo,
em que o aparelho do Estado que se estruturava observava mais a perspectiva de
acomodação dos interesses das classes dominantes do que um projeto de
desenvolvimento, de institucionalização da democracia ou da promoção da
cidadania, tendo como resultante uma burocratização incompleta, associada ao
elevado grau de patrimonialismo e clientelização dos espaços públicos. O processo
que emerge da segunda metade da década de 1980 passa a utilizar uma nova
retórica e no discurso oficial há uma valorização das expressões “controle social”,
“cidadão-usuário”, “desempenho”, “eficiência”. O cidadão de direito é colocado
agora no lugar de cliente.
O New Public Management (LIMANA, 2002) constituiu-se na referência
teórica do paradigma gerencialista hegemônico que inspirou os programas
nacionais de Reforma Administrativa. A sua concepção está expressa nas
premissas da “Nova Gerência Pública”, movimento de reformas da administração
pública iniciado em 1984, na Nova Zelândia, e adotado, em toda a extensão, a
47
partir de 1986 no Reino Unido, EUA, México, Itália, Suécia, Holanda, Austrália,
Argentina e Brasil, embora com variantes nos programas de cada país. Trata-se de
uma flexibilização do direito administrativo e de suas regras gerais, visando afastar
as diferenciações entre o setor público e o setor privado, dar maior capacidade de
gestão aos administradores públicos, reduzir as prerrogativas dos servidores
públicos, desregulamentando seus direitos, enfim, busca a abertura de espaço à
introdução de instrumentos gerenciais e contratuais em lugar do império da lei e da
relação hierárquica típica daquele regime. Tem por princípios gerais a ênfase na
eficiência e na elevação da performance, a introdução de mecanismos de mercado
na gestão pública, a orientação por resultados, a descentralização dos controles
gerenciais no sentido de maior autonomia, responsabilização e flexibilização de
procedimentos, bem como uma importante distinção entre as funções de
formulação e implementação das políticas públicas.
O novo paradigma aderiu a uma lógica pós-burocrática na qual são
preferidas estruturas descentralizadas de gestão. Modelos flexíveis de gestão
operando em ambientes competitivos são os tipos ideais do paradigma
gerencialista. Por fim, a cultura burocrática dos controles e meios deveria ser
substituída por uma cultura gerencial voltada para os resultados, onde os gestores
públicos operariam com mais autonomia, menos controles burocráticos, e maior
atenção aos resultados. O padrão de accountability
8
por controles deveria ser
progressivamente substituído pela accountability de resultados.
De acordo com Álvaro Merlo (2004, p.362), estas novas formas de gestão,
[...] transformaram a organização e a administração do trabalho no serviço
público, uma vez que passaram a enfocar, essencialmente, a
produtividade e a eficiência, em detrimento do controle e do registro
privilegiado pelo modelo anterior, mais burocrático. Apesar da dedicação e
polivalência exigidas pelo novo modelo, em contrapartida, não houve o
estabelecimento de uma estrutura adequada para o desenvolvimento do
trabalho, como boas condições de trabalho, recursos materiais, físicos e
humanos suficientes, salários justos, reciclagem e ascensão profissional.
Esse novo modelo de gestão do serviço público, combinado com as
políticas de diminuição, descentralização e privatização do Estado,
principalmente nos anos 1990, poderiam estar influenciando o estado de
saúde e doença dos trabalhadores.
8
O termo accountability ou responsabilização é utilizado para designar a prática de prestar contas
da atuação governamental através de mecanismos de controle social. Esta noção vincula-se
fortemente aos princípios de Governança, constituindo-se na concepção fundante da Reforma do
Estado.
48
Para Merlo, o Estado brasileiro construiu um modelo de gestão híbrido,
incorporando aspectos do fordismo, do taylorismo e do toyotismo. Contudo, “esse
‘frankstein’ gerencial não oferece contrapartida alguma, de nenhum dos modelos,
nem o salário fordista, nem a possibilidade taylorista de se crescer na carreira,
tampouco a valorização e a autonomia toyotistas” (2004, p. 374).
Volnovich (1995) analisa a subjetividade nas organizações, assinalando que
a subjetividade moderna não pode ser compreendida sem considerar os atuais
fenômenos de reconversão econômica e de hegemonia da economia de mercado.
Segundo ele, a subjetividade melancólica dos modelos estatais tem sido
substituída por uma subjetividade fragmentada característica das práticas
neoliberais. A incerteza sobre o futuro da estabilidade no emprego público, a
desvalorização do servidor público, a baixa remuneração, e tantos outros
fantasmas que rondam o setor público-estatal estão produzindo mudanças no
processo de subjetivação destes trabalhadores.
A flexibilidade, conforme análise de Sennett (2000) tornou-se um imperativo
organizacional, estética e politicamente correto. As imagens que revelam agilidade,
adaptação e leveza são valorizadas socialmente, ao contrário, a forma dura, rígida,
pesada, que lembra gordura, sobras está associada a um padrão obsoleto,
antiquado e que não condiz com as exigências voláteis da sociedade.
As críticas feitas ao serviço público inserem-se neste contexto, pois as
imagens sobre o trabalho realizado na máquina pública evocam burocracia,
lentidão, morosidade, rotina, estrutura pesada, estabilidade no emprego. Cenário
que está na contramão da história de um tempo flexível, ágil, mutante, veloz,
enxuto.
Como o presente estudo trata de instituições de ensino profissional propõe-
se agora uma análise para entender a função da escola no contexto
contemporâneo.
3.4 A ESCOLA COMO UMA TECNOLOGIA DE GOVERNO
O nascimento da escola está inserido no contexto da nova racionalidade
governamental do século XVII, constituindo-se em uma tecnologia de governo dos
estados nacionais que se multiplicaram por todo o ocidente ao longo da
49
modernidade. A gerência destes territórios e de suas populações só se fez possível
com a multiplicação de domínios de poder exercidos por especialistas ao nível de
uma microfísica de relações de força governo da economia, segurança interna e
externa, bem estar social, disciplina moral, etc. Neste contexto, identificamos o
nascimento da escola como um dos meios encontrado pelo Estado para o
treinamento moral de sua população.
A escola se tornou, então, tal como havia acontecido aos hospitais e
prisões ao longo do século XIX, lugar privilegiado de (re)produção de saber sobre o
homem. Produzindo sujeitos, ela também, e ao mesmo tempo, produzia verdades
sobre eles. Mais do que lugar de aplicação dos conhecimentos sobre este sujeito, a
escola é também um lugar de produção deste sujeito.
À medida que se multiplicaram as tecnologias de produção e o mercado
passou a exigir mais do que corpos dóceis como requisito de empregabilidade, foi
agregado ao treinamento moral um conjunto de saberes necessários à
profissionalização dos cidadãos.
A escola deve ser pensada, sobretudo, como o lugar em que subjetividades
são produzidas e o são de acordo com o regime de verdades existente na
sociedade em questão.
3.5 BREVES ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENSINO TÉCNICO
O ensino técnico profissional no Brasil tem sua história marcada por uma
concepção dualista/separatista que remonta ao Império, onde aos cegos, surdos e
aleijados, num primeiro momento, incorporando-se depois os menores carentes,
era destinado um ensino profissionalizante, com o sentido de ofertar-lhes, como
uma benesse do Estado, uma possibilidade de inclusão à força de trabalho.
Anteriormente, no período colonial, não houve qualquer sistematização pedagógica
ou estruturação curricular fixada, sendo os ofícios então existentes, repassados “de
pai para filho”, sempre nas camadas mais pobres da sociedade. Trabalho manual
era sinônimo de trabalho escravo, tendo, portanto, um caráter segregacionista, que
depois assume aspectos correcionais. em 1837, o Arsenal da Marinha da Corte
recebia menores abandonados para serem profissionalizados e, portanto "úteis à
nação", preocupação esta que vem a se repetir em 1885, com a criação da Escola
50
de Santa Cruz, por D. Pedro II, que tinha como finalidade profissionalizar os filhos
dos ex-escravos da Corte. Na primeira república, o trabalho manual aparece como
solução para diferentes problemas que afligiam a nação, como justifica o
presidente Venceslau Brás, em citação de Machado (1989):
A criminalidade aumenta; a vagabundagem campeia; o alcoolismo ceifa,
cada vez mais, maior número de infelizes, porque em regra, não tendo as
pobres vítimas um caráter bem formado e nem preparo para superar as
dificuldades da existência, tornando-se vencidos em plena mocidade e se
atiram à embriaguez e ao crime. [...] Dê-se, porém, outra feição às escolas
primárias e às secundárias, tendo-se em vista que a escola não é apenas
um centro de instrução, mas também de educação e para esse fim o
trabalho manual é a mais segura base [...].
As Escolas de Aprendizes e Artífices, criadas em 1909, através do Decreto
7.566, são consideradas o marco inaugural do ensino técnico profissional no
país, tendo um objetivo muito mais social do que técnico. A criação dessas escolas,
que possuíam um caráter terminal e não se articulavam com os demais graus de
ensino, formaliza a dualidade estrutural, que perdura até os dias atuais, conforme
se pode perceber no Decreto que as institui:
Considerando: que o aumento constante da população das cidades exige
que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades
sempre crescentes da luta pela existência; que para isso se torna
necessário, não habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o
indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-los adquirir hábitos
de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade, escola do vício e do
crime; que é um dos primeiros deveres do Governo da República formar
cidadãos úteis à Nação (Decreto Lei nº. 7.566 de 23 de setembro de
1909).
O ensino propedêutico, por sua vez, mantinha-se reservado àqueles
indivíduos destinados a dirigir os rumos da nação e com possibilidades de
continuar seus estudos em grau superior. Esse grupo privilegiado, merecedor de
uma formação geral, passa a representar a minoria pensante de intelectuais que
tem acesso à literatura, à arte, à sensibilidade crítica e demais manifestações
culturais.
Essa concepção dualista vai prevalecer até a Revolução de 30, quando a
educação passa a assumir um papel relevante na implementação da "missão
pedagógica" do Estado no período do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo
Capanema, sendo considerada um ,
veículo privilegiado no que se refere à introdução de novos valores e
modelagem de condutas (...) para transformar a identidade nacional de
caráter individualista em identidade nacional coletiva, considerada
51
elemento constitutivo primordial da política de massas introduzida no
período (CAPELATO, 1998, p. 211-212).
A disseminação da cultura oficial é tão marcante nesta época em que esteve
à frente do Ministério (1934 e 1945) que recebeu a denominação de
"tempos Capanema". As determinações do Estado são consolidadas através da
reforma educacional implementada por Capanema a partir de 1942, com as Leis
Orgânicas de Ensino. As medidas referentes ao ensino técnico profissional, de uma
forma geral, encobrem os reais interesses das classes empresariais, que
encontram no Estado a sustentação dos seus interesses mediante a política
educacional voltada para a formação da força de trabalho, necessária à
manutenção do capital. São os interesses maiores dos setores privados da
economia os beneficiados efetivamente com as medidas legislativas.
Assim, as escolas técnicas vão ser as escolas dos filhos dos
outros´, ou melhor, a única via de ascensão permitida ao operário. Que
essa via é falsa e se revela um beco sem saída, está implícito na
especificidade dessa escola. Sendo de nível médio ela não habilita seus
egressos a cursarem escolas de nível superior. Criou-se a dualidade do
sistema educacional que, além de reproduzir a força de trabalho para o
processo produtivo, garante a consolidação e reprodução de uma
sociedade de classes, mais nitidamente configurada que no período
anterior (FREITAG, 1980, p.53).
A primeira LDB (Lei 4.024/61) e a Lei que instituiu a obrigatoriedade da
profissionalização em nível de segundo grau (Lei 5.692/71), no período do Regime
Militar, evidenciaram o distanciamento entre o ensino para a elite e o ensino para a
maioria da população. Ambas traduzem um ideário marcadamente capitalista e
privilegiam a cultura elitista, tendo se legitimado em momentos em que os Acordos
de Cooperação cnica com os EUA (Acordo MEC-Usaid) ditavam os padrões a
serem seguidos. A Lei 7.044/82, que revoga a obrigatoriedade da
profissionalização, em nada altera o ideário adotado.
Após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, e do processo de
discussões que a originou, educadores organizados nos movimentos sociais,
objetivando a elaboração de uma política nacional que garantisse, dentre outras
coisas, uma formação cidadã, em todos os níveis, sem dualidades e
discriminações, bem como a definição de uma política de formação e valorização
do magistério, constituíram o Fórum em Defesa da Escola Pública. Este Fórum
garantiu a realização de inúmeros eventos - seminários, congressos, debates,
audiências blicas etc. - e acompanhou as discussões, no âmbito do Congresso
52
Nacional, do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tentando
garantir o atendimento das principais reivindicações (Cf. Soares, 1999). No
entanto, um outro projeto, que desconheceu o acúmulo de discussões, terminou
por ser transformado em Lei 9.394/96, a nova LDB, que reforça mais uma vez a
dicotomia entre o ensino propedêutico e o ensino profissional, além de abrir
espaços para uma legislação complementar que retroage no tempo e busca
inspiração na já mencionada Reforma Capanema.
Na década de 90, outro "acordo", agora envolvendo o Banco Mundial,
apresenta novas formulações para a educação profissional tendo em vista as
transformações da sociedade capitalista.
3.6 A REFORMA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
As mudanças estruturais do capitalismo contemporâneo impuseram um
movimento de reformas institucionais também na esfera da educação brasileira. Na
segunda metade dos anos 90, uma série de transformações paradigmáticas desta
nova racionalidade ocorreu na educação através da reforma curricular, realizada
em todos os níveis e modalidades e a reforma no financiamento educacional
articulado com a política avaliativa do Sistema Nacional de Avaliação, dentre outras
ações. Tais medidas visam à rearticulação das esferas pública e privada, que
resultam dos deslocamentos do capital no processo de universalização do
capitalismo.
No campo da educação profissional, um conjunto de medidas legais do
governo federal compõe, igualmente, o projeto de reforma nesta área visando
estabelecer uma rede própria, separada da rede regular da educação básica,
acompanhada de uma nova organização curricular com objetivo de adequar a
formação às tendências do mundo do trabalho.
O diagnóstico que constitui a base de argumentação para definição do novo
perfil do trabalhador e do conteúdo da nova educação profissional diz que “um
novo paradigma tecnológico e um novo padrão industrial estão em construção no
sistema capitalista, desde os anos 80, em resposta à crise sistêmica que ainda
perdura...” (KIRSCHNER, 1993 e BRASIL. MEC/MCT/MTb, 1995).
53
A flexibilização da educação profissional era apresentada como um dos
princípios norteadores da reforma. Em termos organizativos, essa flexibilidade se
concretizaria na possibilidade de criação, alteração e extinção de cursos, e na
alocação de vagas segundo as demandas da esfera produtiva. Em termos
curriculares, a flexibilidade seria expressa na modularização dos cursos e
viabilização de diferentes itinerários formativos, e de outro lado, numa formação
orientada para um perfil técnico também flexível, capaz de adaptar-se a novas
exigências de qualificação.
A aproximação entre ensino técnico e empresas, tanto na gestão quanto na
reorientação dos currículos, era justificada no discurso governamental segundo
uma lógica que atribuía às empresas ou às pesquisas de mercado a capacidade de
orientar as decisões sobre os currículos e ofertas de vagas.
O novo paradigma pedagógico proposto nos Referenciais Curriculares
Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico, passa a ter o foco na
aprendizagem e na constituição de competências em contraposição ao paradigma
tradicional de acumulação de conhecimentos. A metodologia decorrente desta
concepção estaria orientada para o processo de trabalho do sujeito que aprende.
As competências, segundo os Referenciais Curriculares, são “saberes articulados e
mobilizados através de esquemas mentais” e as habilidades “permitem que essas
competências sejam colocadas em ação em realizações eficientes e eficazes”
(BRASIL. MEC, 2000
a
, p.26-8).
Podemos encontrar na Reforma da Educação Profissional as mesmas
noções e intenções presentes na Reforma Administrativa do Estado. A referência
ao mercado tomado como uma realidade dada e onipresente, a flexibilidade, a
competência associada à eficiência, a tentativa de senaização das escolas técnicas
públicas através da transposição da experiência das agências de preparação de
mão-de-obra vinculadas às empresas privadas compõem a nova racionalidade
governamental.
54
4 O PERCURSO DA PESQUISADORA E DA PESQUISA
Essa pesquisa toma como referência dois eixos para sua análise: o primeiro
atualiza as estratégias adotadas pela governamentalidade contemporânea com a
progressiva introdução no serviço público da gica e dos mecanismos presentes
na esfera produtiva privada buscando a normalização de sujeitos e instituições a
esta nova racionalidade política. O segundo eixo trata dos efeitos das medidas
reformistas nos processos de subjetivação dos trabalhadores, ou seja,
compreender como estes novos saberes e técnicas intervém nas trajetórias de vida
e de trabalho.
Procuramos compreender o papel da Reforma do Estado como
dispositivo nas estratégias adotadas pela governamentalidade contemporanêa,
uma vez que o trabalho educacional é modelado e modulado por certos
mecanismos da racionalidade reguladora estatal.
Benites, ao discutir o trabalho burocrático, propõe assumir “o trabalho
enquanto agenciamento concreto [que] não produz somente a objetivação do
trabalhador (por meio de zonas de enunciação e visibilidade e de correlações de
força precárias e instáveis), mas também atua ao moldar e modular formas de
subjetivação, ao produzir uma “dobra”
9
(2004, p.290). Acredita existir um nexo
entre o controle e a regulação da vida dos indivíduos na atividade dos
trabalhadores do serviço público e as práticas exercidas por esses mesmos
trabalhadores sobre si como forma de prender o trabalhador à sua própria
identidade. O exercício do governo de si seria condição para o exercício do
governo dos outros. A subjetivação, no caso do serviço público escolar,
aproximaria-se da sujeição, ao conjunto de normas e conteúdos que fazem deste
trabalho um mecanismo de segurança estratégico para o exercício do governo da
população e estratégico na produção de um sujeito moralmente “apegado” à sua
identidade de trabalhador no serviço público.
A Reforma do Estado como um dispositivo engendrou um conjunto de
procedimentos e de saberes considerados úteis para a conformação de sujeitos e
9
O conceito de dobra é utilizado por Deleuze como uma membrana, uma prega que ao vergar às
forças externas, produz a interioridade. Esta concepção rompe com a tradicional oposição objetivo-
subjetivo, tão enraizada nas ciências sociais. Para o autor, não haveria simplesmente uma
interiorização da exterioridade, mas em uma analogia à fisiologia, movimentos peristálticos nos
quais o lado de fora é vergado para dentro, sendo também coextensivo.
55
de instituições adequados às necessidades contemporâneas, no nosso caso
orientado aos trabalhadores das escolas e aos futuros trabalhadores que estão
sendo formados por estas instituições. Ou seja, este conjunto de procedimentos e
saberes da lógica privada, implantados no setor púbico-estatal como garantia de
eficiência e qualidade, são os mesmos que estão nos currículos dos cursos
técnicos, agora também reformados e atualizados para a (con)formação do novo
sujeito trabalhador.
Recortamos os seguintes elementos para análise presentes no contexto do
capitalismo contemporâneo e que foram utilizados como justificativas e alvos da
Reforma do Estado:
- A estabilidade do trabalhador no emprego público;
- A ineficiência do serviço público e a precarização do trabalho;
- A implantação do modelo de gestão gerencial por meio da Reforma
Administrativa no Estado do Rio Grande do Sul;
- A compreensão da Reforma do Estado por parte dos entrevistados;
- A reforma na educação profissional e a formação dos novos sujeitos
empreendedores.
4.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A realização desta pesquisa teve início no ano de 2006 através do contato
com as duas Instituições visando à autorização para a realização das entrevistas.
Na Escola 1, o Diretor, que também é professor da outra escola que integra o
campo empírico da pesquisa, nos auxiliou sugerindo os professores e funcionários
que poderiam ser entrevistados. Foi encontrada uma certa dificuldade em função
do critério temporal, pois uma rotatividade maior na escola 1 e, também, muitos
professores em contrato de emergência. Na Escola 2, os servidores foram
convidados pessoalmente/diretamente para participar da pesquisa.
A configuração final dos participantes da pesquisa foi definida em razão das
contingências do próprio campo. A escolha dos entrevistados obedeceu a dois
critérios fundamentalmente: o primeiro era constituir a amostra com funcionários e
56
professores das escolas e o segundo observar o período de ingresso. Tivemos
assim, dois funcionários e dois professores, sendo o quinto aposentado. Uma parte
ingressou na escola em meados da década de 70 e a outra parte a partir do final da
década de 80. Na apresentação dos entrevistados, percebemos que alguns
ingressaram na educação pública e o na escola estudada, o que acreditamos
não ter comprometido os objetivos do trabalho. Embora tenha havido algumas
dificuldades para a realização das entrevistas, cabe destacar que a maioria das
pessoas contatadas colocou-se prontamente a disposição em colaborar com a
pesquisa. Outro aspecto que deve ser mencionado, diz respeito a questões de
ordem hierárquica, pois na Escola 1 houve um contato pessoal do Diretor com os
professores e funcionários sugerindo a participação dos mesmos e nos casos em
que o pesquisador fez o contato, foi orientado pelo Diretor para que a
entrevistadora fizesse referência a sua indicação. na outra escola, ainda que no
contato em que era feito o convite ao professor ou funcionário era esclarecido pela
pesquisadora o seu papel no momento da pesquisa, o de servidora, o fato de estar
ocupando atualmente a função de Diretor da Escola não pode ser desconsiderado.
Cabe explicitar que a pesquisadora trabalha em uma das instituições mais de
uma década, tendo acesso a documentos, discussões e mudanças que
acompanham as instituições públicas de educação profissional. A pesquisadora
está, portanto, imersa no campo da pesquisa, conforme discutido na introdução.
Esta posição certamente teve influência na análise e na relação com os
entrevistados, sugerindo uma referência à noção de implicação:
A implicação é concebida em ligação com o implícito do texto, o que não
designa necessariamente o inconsciente ou o escondido, mas sobretudo,
segundo meu ponto de vista, os níveis ou modos de escritura
recomendados, autorizados ou proibidos pela instituição. O implícito é, por
exemplo, o intertexto ronronante das relações de pesquisa sociológica sob
contrato, esse jargão, essa citação infinita, esse sistema de referência
fechado como uma ostra; em suma, um certo tom, uma certa maneira de
dar o na gravata da escritura, uma musiquinha sem palavras... Analisar
tal intertexto é compreender o implícito das relações com o objeto, com
a encomenda social, com a instituição (ALTOÉ, 2004, p.252).
A análise de implicação não pretende abordar a longa trajetória do debate
científico sobre a questão da neutralidade, porque a abordagem teórico-
metodológica utilizada na pesquisa deixa claro o posicionamento da pesquisadora
sobre as importantes categorias conceituais envolvidas nesta problemática.
57
A condição de servidora de uma das instituições estudadas insere
fortemente a pesquisadora no contexto histórico analisado. O fato de estar
exercendo o mandato de Diretora Executiva talvez tenha contribuído para a
realização da pesquisa, permitindo uma determinada configuração dos
entrevistados que poderia não ser a mesma caso a pesquisadora estivesse no seu
cargo de Psicóloga e Professora. Assim, a resposta negativa de alguns em relação
à participação na pesquisa pode ser considerada paradigmática de um ambiente
institucional com mais liberdade. Na instituição pública os trabalhadores podem se
manifestar e expressar as suas opiniões sem o medo de represálias e demissões,
com exceção de alguns momentos na história da educação no Estado em que
instalou-se um clima de maior restrição democrática. Outro aspecto a ser
destacado, refere-se à condição de diretora eleita pela comunidade escolar, o que
confere igualmente uma relação de maior identificação e confiança. Também o fato
da pesquisadora ser psicóloga permitiu igualmente uma relação de confiança para
a realização das entrevistas, onde os entrevistados eram convidados a falar das
suas vidas e dos seus trabalhos. Por último, retomando o que foi mencionado na
definição de implicação, a escritura foi produzida sem interdições institucionais.
Penso que o desafio desta pesquisa era conseguir justamente o que
Foucault aborda na epígrafe da minha dissertação, ou seja, produzir
deslocamentos no pensamento, conseguir entender ou pensar diferentemente do
que pensava antes de iniciar o trabalho.
A análise de alguns documentos foi incluída no corpus da pesquisa,
particularmente matérias de jornais e revistas da região e do
Estado. Foram realizadas dez entrevistas, sendo cinco de cada instituição, assim
distribuídos por escola: dois funcionários, dois professores e um professor
aposentado.
Os participantes da pesquisa apresentam as seguintes características:
Ada
10
funcionária aposentada, natural de Canoas, casada, 03 filhos, filha
de pai comerciante e, a sua mãe, costurava para uma loja. Iniciou
trabalhando no comércio e depois entrou na escola, onde ficou 22 anos.
Trabalhou na secretaria da escola a maior parte do tempo, mas também
esteve um tempo na área de estágios, na supervisão e deu aula de Moral
10
Os entrevistados serão referidos segundo nomes fictícios de modo a preservar sua identidade.
58
e Cívica e OSPB. Está aposentada, mas continua trabalhando em um
projeto de alfabetização de adultos.
Paulo, 51 anos, professor exercendo atividades na secretaria da escola,
natural de Uruguaiana, casado, 04 filhos, seu pai era fiscal da Receita
Federal. Foi militar, fuzileiro naval durante quatro anos no Estado do Rio
de Janeiro. Depois foi para São Paulo e trabalhou em grandes
indústrias. Veio para o Rio Grande do Sul e começou a trabalhar no
comércio, voltou para a indústria e neste período fez o curso de
História, ingressando no Estado em 1990. Foi professor em escolas de
Portão, de Novo Hamburgo e então, no ano de 1992, entrou na Escola 1.
Lecionou a disciplina de informática e depois passou para a Secretaria da
Escola, onde está até hoje.
Sonia, 60 anos, natural de São Leopoldo, filha de pai industrialista e e
dona de casa, casada, 01 filho, professora, aposentada. Fez o curso de
Letras-Inglês e Português, especialização em língua inglesa, ingressando
no Magistério em 1974 na Escola X, depois foi para outra escola estadual
em São Leopoldo lecionando em várias escolas públicas e privadas.
Começou a trabalhar na Escola 1 em 1985, onde permaneceu durante 11
anos, até se aposentar, em 1996. Atuou em uma escola privada depois
que se aposentou e atualmente aulas particulares, quando
eventualmente procurada.
Rogério, 55 anos, professor, casado, 02 filhos. Fez o curso de Educação
Física em uma Universidade Pública e começou a trabalhar no Estado em
1972, formando-se em 1973. Trabalhou em várias escolas públicas e
também particulares, assim como em diferentes municípios. No início da
sua atividade profissional atuou como docente na Escola 1, depois saiu e
14 anos voltou para a escola. Possui também um pequeno
estabelecimento comercial.
Francisco, 57 anos, professor, eletrotécnico, natural de São Leopoldo, o
pai trabalhava em uma serralheria e a mãe era dona de casa. Casado, 02
59
filhos. Foi aluno da escola nos anos 70, nas primeiras turmas, e trabalha
desde então como docente. Atuou em empresas, leciona também nas
escolas de uma rede particular, vinculada às empresas, e na Escola 1.
Adora dar aulas e, com 14 anos, fez um curso no Senai. É um dos
professores mais antigos da escola e não pensa em parar as atividades.
Faltam poucos anos para se aposentar, porém não consegue se imaginar
sem dar aulas. Pensa em continuar mantendo alguma relação com as
escolas.
Ricardo, 67 anos, estudou até o ginásio, motorista, natural de Porto
Alegre. O pai era da Polícia Civil e a mãe dona de casa. É casado e tem,
02 filhos. Trabalhou no exército, em uma firma de engarrafamento e
depois ingressou na Escola 2. É um dos funcionários mais antigos da
Instituição. Não pensa em aposentadoria, adora o seu trabalho.
Bento, 71 anos, professor, natural de Santa Cruz do Sul, filho de
agricultores, casado, 02 filhos. Saiu de casa para estudar em uma época
em que isto não era muito comum. Seus pais não aprovaram a sua atitude,
mas ele sabia que precisava sair para ter acesso aos estudos, que era o
que queria. Fez o curso de física, trabalhou em escolas públicas, técnicas
e de ensino médio, universidades e ingressou na Escola 2 em 1971;
Tânia, 55 anos, Química, professora, natural de Novo Hamburgo, filha de
pai mecânico de oficina e motorista de caminhão e a sua mãe costurava
sapatos , solteira. Foi ex-aluna e iniciou na Escola 2 como auxiliar de
ensino em 1971. Depois fez concurso para professor, atuou em
empresas, deu aula em escolas estaduais e particulares. Está se
preparando para a aposentadoria;
Flávia, 43 anos, terceiro grau incompleto, agente administrativo III, natural
de São Leopoldo, o pai metalúrgico ee dona de casa, casada, 01 filho.
Já trabalhou em um clube esportivo e no sindicato dos metalúrgicos,
como secretária. Fez o concurso para agente administrativo na Escola 2
em 1990, onde está até hoje. Pensa em buscar outra alternativa
60
profissional, talvez na área imobiliária, através de um curso de corretor de
imóveis. Fazia o curso superior de quiropraxia, porém queria uma
qualificação mais rápida e que lhe desse retorno econômico;
Caio, 50 anos, engenheiro e professor, natural de Augusto Pestana, filho
de pai farmacêutico e mãe professora, casado, 02 filhos. atuou em
empresas privadas, escolas blicas e particulares. Atualmente trabalha
na Escola 2 e em uma Universidade Particular. Ingressou na Escola 2 em
1990 e esteve fora do país para fazer um curso de pós-graduação.
4.2 AS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO CONTEXTO
ECONÔMICO E SOCIAL DO ESTADO
As duas instituições pesquisadas foram criadas na década de 60,
período marcado por um processo de recuperação e reestruturação da economia
gaúcha, que até então apresentava uma participação contrastante com a expansão
acelerada da indústria no centro do país.
No início dos anos 70, a indústria gaúcha caracterizou-se por um
crescimento acelerado em diversos setores produtivos. Também nesta época, em
Novo Hamburgo e São Leopoldo, municípios da região denominada de Vale dos
Sinos e onde estão localizadas as duas escolas do nosso estudo, se
constituíram parques industriais diversificados, abrangendo os ramos de
metalurgia, mecânica, borracha e produtos de matéria plástica . A Região do Vale
dos Sinos era comparada ao ABC Paulista pela grande concentração de indústrias
e trabalhadores, constituindo igualmente um movimento sindical forte.
Entretanto, apesar do crescimento industrial no Estado, esta mesma época é
marcada pelo início do processo de deterioração da educação. Esta situação é
confirmada pelo decréscimo na participação do orçamento investido em educação
na despesa total orçamentária estadual. Em 1978, o percentual da despesa total
era de 21,4%, chegando em 1998 a 9,52% (RIO GRANDE DO SUL, apud
CARDOSO, 2002, p.87), ao passo que o número de matrículas quintuplicou neste
mesmo período. Podemos identificar em alguns relatos dos entrevistados a
61
situação das escolas públicas no inicio da década de 70, considerada ainda na sua
época áurea:
Olha, eu tive o privilégio de trabalhar em escola pública na época
do auge das escolas públicas. Começei em 1974, na Escola X e depois
vim para o Colégio Y, na Scharlau. Todas essas escolas viviam sua época
de auge. Todas estavam bem preparadas, com ótimas equipes de
professores. Nos não dispúnhamos de tecnologia, quando muito um
retroprojetor. Passávamos nossas provas no mimeógrafo. Mas era muito
gratificante, porque tudo funcionava [...]. Acredito que atualmente nenhum
professor tem condições e nem boa vontade pra fazer esse tipo de
trabalho fora de sua carga horária sem ganhar nada. O salário está tão
defasado, o professor ganha tão pouco, precisa se desdobrar em várias
escolas...então acho que ele não tem mais nem tempo (Professora Sonia).
Na época era valorizado o professor. Até então era valorizado
relativamente muito bem ainda, tá? Tanto financeiramente, até porque na
relação que eu faço agora, com 12 horas, eu conseguiria viver mais do
que 40 horas. Era uma alternativa boa. Até quando eu tinha 12 horas eu
me mantinha. Eu ia pra Porto Alegre, pagava a minha alimentação e
transporte. A Ufrgs era gratuita né? Mas tinha a caixinha. A locomoção eu
conseguia me sustentar, conseguia almoçar, conseguia jantar, conseguia
me vestir, conseguia deixar um dinheiro em casa, conseguia guardar um
dinheirinho pra comprar um carrinho usado. Hoje com 40 horas não se
consegue nem a base de alimentação e transporte (Professor Rogério).
A rede de ensino público estadual começou a enfrentar a falta de recursos e
o achatamento salarial dos professores e funcionários. Nas escolas técnicas, o
quadro era ainda mais grave, porque o custo do ensino técnico é maior
comparativamente ao ensino fundamental e médio. São necessários recursos para
a aquisição, manutenção e atualização de equipamentos, assim como, para a
compra de insumos para os laboratórios e oficinas, custo que inexiste nas escolas
de ensino médio.
A década de 80 ficou marcada pelas gigantescas assembléias, passeatas,
acampamentos e as longas greves do magistério gaúcho. Período este que deu
início a um quadro de perda salarial que não seria mais recuperada pela categoria.
Na Escola 2 a situação mostrava-se igualmente insustentável, pois muitos
professores vinham de outros municípios para lecionar, onerando o seu
deslocamento. E mais, alguns docentes eram profissionais, cuja formação lhes
dava a possibilidade de trabalhar na iniciativa privada, ganhando melhores
salários. A saída de vários servidores naquela época foi referida, conforme
depoimentos que seguem:
[...] em 87 passamos por maus momentos, financeiramente até
houve uma debandada muito grande, nós quase estávamos pagando para
trabalhar (Funcionário Ricardo)
62
Em 1987, quando tinha mudado o Governador, passou a ser o
Governador Simon na época e a Escola 2 tinha passado por uma situação
difícil no ano anterior, quando o salário do grupo de servidores estava
muito rebaixado, muito aquém do que devia. Então houve muitas
demissões no ano anterior e precisavam urgentemente de mais pessoas
pra compor o quadro de servidores [fala do período em que ingressou na
instituição] (Funcionária Flávia).
Nesta época, pela primeira vez na história da Escola 2, havia uma direção
eleita pela comunidade escolar, através de um processo eleitoral que apresentava
uma lista tríplice com os três candidatos mais votados. Esta lista era corroborada
pelo Conselho Técnico Deliberativo que a encaminhava para o Governador do
Estado designar o Diretor Executivo. A conquista do processo eleitoral foi resultado
de uma intensa mobilização interna dos professores, funcionários e alunos, com o
objetivo de garantir uma escolha democrática, substituindo o processo que estava
em vigor desde a criação da Escola 2, onde o Diretor era indicado pelo Governador
do Estado. O primeiro Diretor eleito tinha um bom relacionamento político com o
Governo do Estado, conseguindo estabelecer uma negociação para enfrentar as
questões salariais e de investimentos. O resultado foi considerado positivo pelos
servidores, contribuindo para que não houvesse mais saídas de pessoal e gerando
também um grande número de inscritos nos processos seletivos da Instituição,
devido aos salários pagos a partir de então.
Além das questões salariais, teve início nos anos de 87 e 88 a discussão e
elaboração de um Projeto para o ensino técnico no Estado, envolvendo a Escola 2
e a Secretaria Estadual da Educação. Iremos nos deter, ainda que brevemente, no
Projeto de Reorientação de Ensino Industrial para o Estado, conhecido como
Projeto Piloto, para compreender os depoimentos dos entrevistados, especialmente
da Escola 1, uma vez que fazem, nas suas falas, referências importantes ao projeto
e também porque significou melhorias no quadro de pessoal e de investimentos
nas escolas, conforme manifestado pela entrevistada:
“Teve uma época que teve aqui dentro um projeto da Escola 2, o que fez a
Escola levar bastante vantagem em termos de aperfeiçoamento,
qualidade, manutenção. Tudo isso foi muito bom para a escola”
(Funcionária Ada)
O Projeto foi implantado em 1990, último ano do governo Pedro Simon, em
cinco escolas técnicas estaduais que foram escolhidas levando em conta a
situação geoeconômica, a proximidade entre as escolas e o desejo de participação
das mesmas. As escolas estavam situadas nos municípios de Caxias do Sul,
63
Taquara, Portão, Montenegro e São Leopoldo, sendo a escola 1 integrante do
projeto. O projeto envolvia convênios, acordos e contratos para a formação de
recursos humanos de disciplinas técnicas, o aperfeiçoamento de professores,
contratação de professores e funcionários, aquisição de equipamentos, matéria
prima, material de consumo, obras e instalações necessárias. Para o
desenvolvimento do projeto eram destinados recursos financeiros à Escola 2, que
gerenciava a sua execução. Um dos convênios do Projeto era o Esquema II,
dirigido a candidatos egressos do Grau, nas áreas de Eletrônica, Mecânica e
Eletrotécnica, que buscava suprir a necessidade da formação de professores para
o ensino técnico industrial. Este convênio envolvia também uma Universidade da
região e era financiado pelo Governo do Estado, sem custo para os candidatos.
O grande problema apontado no Projeto Piloto estava relacionado com a
questão salarial, pois os professores e os funcionários contratados para o Projeto
passavam a trabalhar nas escolas cnicas estaduais, ganhando o mesmo salário
pago aos servidores da Escola 2, portanto, superior aos dos colegas que
desenvolviam as mesmas atividades, utilizando os mesmos espaços pedagógicos,
os mesmos recursos e recebendo o salário pago para o magistério estadual.
Reproduziremos uma citação, extraída da tese de doutorado sobre “A
Reforma do Ensino Técnico Segundo os Professores: Adaptações e Resistências
em Duas Escolas Técnicas Industriais Gaúchas”, onde é apresentada uma síntese
sobre a experiência do Projeto Piloto:
Em 1989, a escola recebeu, como outras escolas técnicas estaduais,
professores contratados através de convenio entre a Secretaria de Educação e a
‘Escola 2’, (...), uma iniciativa do Governo Simon. Alguns deles eram também
professores da rede estadual. Num quadro de deterioração do ensino público, do
qual a ‘Escola 2 estava relativamente preservada, essas contratações
acompanhadas do envio de alguns novos equipamentos – deveriam cumprir o
papel da difusão de um modelo de ensino técnico, ou talvez, da preparação para a
transformação das escolas em fundações. O convívio entre professores que
desempenhavam as mesmas tarefas, mas eram contratados segundo regimes e
com salários bem diferentes foi, entretanto, fonte de conflito interno (BURIGO,
2005, p. 114).
Reconstituímos brevemente o cenário que antecede o período de
implantação da Reforma do Estado no Rio Grande do Sul, noticiada nos jornais da
64
seguinte forma “Reforma Administrativa é fulminante” (Correio do Povo, 17/11/91)
porque nos ajuda a compreender os textos e os contextos do nosso campo
empírico.
4.3 REFORMA ADMINISTRATIVA FULMINANTE NO ESTADO
O novo Governador do Estado, que propôs tal reforma fulminante, toma
posse num cenário de dificuldade econômica, prenunciado no editorial do principal
jornal do Estado, em outubro de 1990, que, através da manchete “O Estado aperta
o cinto”, diz que “O Governo do Estado começa a despertar para uma realidade
inquietante. As receitas deixaram de entrar nas áreas do erário nas generosas
proporções dos últimos exercícios” (Jornal Zero Hora).
O novo Governo do Estado que assumia propunha uma Reforma
Administrativa com o objetivo de “recompor a relação de debilidade entre a
sociedade e o Estado”, conforme as palavras do criador da reforma e Diretor da
Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos (FDRH) da época, Eduardo
Dutra Aydos. Entre as ações previstas, destacava-se o corte de 20 mil servidores
(através das demissões voluntárias) e principalmente a adoção de uma nova
filosofia de gestão pública, com a adoção de uma concepção “empresarial”,
conforme matérias veiculadas nos órgãos de imprensa do Estado. Um dos
desdobramentos desta Reforma, que atingiu diretamente as instituições
pesquisadas, foram a extinção do Projeto Piloto e a extinção da estrutura
mantenedora da Escola 2. O Governo do Estado enviou um projeto para a
Assembléia Legislativa onde propunha a extinção da mantenedora da Escola 2,
transformando-a em uma escola técnica estadual, extinguindo assim a sua
estrutura mantenedora que lhe assegurava uma certa autonomia e uma condição
diferenciada para o desenvolvimento do trabalho. Neste período, houve uma
intensa mobilização da Instituição e comunidade da região. Passeatas, abaixo
assinado, manifestações nas cidades vizinhas, no brique da redenção da capital,
protestos, enfim, um conjunto de ações, conforme podemos conferir em algumas
das manchetes veiculadas pelos principais jornais da região e da capital: “Passeata
estudantil marca o descontentamento com Collares”, “Estudantes fazem protesto
contra o governo do Estado”, palavras de ordem como “Collares, ingrato, devolve a
65
‘Escola 2’”, “’Escola 2’ é salva pela mobilização”, “Deputados rejeitam a extinção da
“Escola 2”, “Extinção da ‘Escola 2’ rejeitada na Assembléia”. A tentativa de extinção
teve tamanha repercussão que o jornal Zero Hora publicou a seguinte nota no dia
21/11/91:
QUEDA-DE-BRAÇO entre Secretaria de Educação do Estado e ‘Escola 2”,
de Novo Hamburgo, teve sua primeira vítima. De tanta preocupação com
possível fim da fundação, o diretor Carlos £
11
teve enfarte e se afastou da
fundação (Zero Hora, 21/11/91).
A decisão governamental de terminar com o Projeto Piloto, por sua
vez, não teve resistência das instituições envolvidas a ponto de barrar esta
iniciativa. Houve vozes contrárias localizadas, porém insuficientes para evitar a
extinção do projeto. O ponto de maior atrito foi relativo à demissão de professores e
funcionários que haviam sido admitidos através do Projeto Piloto e com a extinção
seriam desligados. Vários foram demitidos e outros passaram a incorporar o
quadro funcional da própria Escola 2, trabalhando a partir daquele momento
nesta instituição.
Outra medida adotada nos anos 90, que está inserida no contexto da
reforma, foi a instauração da prática dos contratos emergenciais, que buscava
atender a falta de servidores uma vez que a demanda por vagas na escola pública
aumentava crescentemente. A nova forma de contratação estava inserida nas
transformações contemporâneas do capitalismo, precarizando as relações de
trabalho através de um mecanismo flexível para a contratação.
Ressaltamos que a falta de pessoal foi uma das dificuldades mencionadas
por todos os entrevistados da Escola 1, conforme revelam/mostram os
depoimentos a seguir:
A única falta é de pessoal (...). O número de pessoas era maior
porque tinha o projeto piloto da ‘Escola 2’. Quando eu cheguei éramos
cinco pessoas na Secretaria, e hoje são dois ( Funcionário Paulo).
É´, 12 anos após eu ter ingressado no Estado ainda peguei uma
fase áurea na Escola 1. Até foi uma época em que vi o Projeto Piloto, que
uniu a escola 1 com a escola 2. Trabalhávamos conjuntamente com
professores das duas Escolas, em perfeita união em prol do aluno e da
escola. Depois, na época em que estava saindo da Escola 1 houve um
pouco de decréscimo da qualidade de educação. Por ser uma escola
técnica, tínhamos falta de professores da área técnica (Professora Sonia).
11
O nome do diretor é fictício para resguardar a sua identidade.
66
A situação do quadro funcional das escolas estudadas remete-nos à análise
que propusemos sobre a possibilidade de pensar o padrão eficiência-ineficiência do
serviço publico estatal a partir da gestão das ilegalidades, no sentido dado por
Foucault. Ou seja, a gestão dos recursos humanos nas escolas é um mecanismo
de gestão de ilegalidades que se constitui em uma das finalidades do próprio
Estado. Os governos não realizam concursos públicos e ainda propõem planos de
demissão voluntária para dar conta dos déficits orçamentários do Estado,
reduzindo assim os custos da quina estatal. Porém, esta “solução” gerava um
outro problema, que era a falta de professores e funcionários nas escolas, fazendo
com que os alunos ficassem meses sem ter aulas de diversas disciplinas. O
problema gerado não era de natureza econômica, sendo os seus efeitos
relacionados à qualidade da educação, uma vez que não havendo aulas, não havia
ensino e não havia aprendizagem. Esta situação produzia igualmente um clima
geral de desânimo nas escolas, pois além do salário baixo e da falta de pessoal
começava a se consolidar na sociedade a descrença com a qualidade da escola
pública. Organizavam-se então formas de resistência coletiva, como as greves e
paralisações, cujos resultados, do ponto de vista das reinvindicações da categoria,
eram praticamente nulos. Anos letivos interrompidos, planos de recuperação das
aulas precários, falta de pessoal, alunos sem aula, salários baixos, enfim, formava-
se um quadro na educação pública que fortalecia os enunciados constituintes do
arcabouço da Reforma do Estado e das novas configurações das noções de
público e privado.
Tal perspectiva de análise é válida para as duas instituições estudadas,
apesar de reconhecermos as diferenças existentes entre elas no que se refere às
formas de contratação de professores e funcionários. Ambas têm os seus
professores e funcionários admitidos através de concurso público, sendo que a
Escola 2 realiza o seu próprio processo para o ingresso na entidade, enquanto
que o concurso para as escolas técnicas estaduais é elaborado e coordenado pela
Secretaria Estadual de Educação que, através das Coordenadorias Regionais de
Educação, administra posteriormente o atendimento das demandas das escolas.
Outra diferença consiste na possibilidade de contratação emergencial, que é uma
forma “legal’ adotada pela Secretaria de Educação para admitir professores e
funcionários com duração determinada e atribuição de carga horária estritamente
67
conforme as necessidades das escolas estaduais, não valendo portanto para o
caso da Escola 2.
As dificuldades que envolvem o funcionamento e a manutenção das escolas
são referidas nas entrevistas, porém não são apontadas com a mesma gravidade
que a falta de pessoal. Talvez isso ocorra pelo fato de que as escolas consigam
conviver com estas dificuldades, viabilizando o ano letivo ainda que com máquinas
obsoletas ou estragadas, iluminação precária, impressora sem tinta. Tais
problemas não implicam em ausência ou interrupção de aulas, como acontece
quando faltam professores. Também porque alguns destes problemas foram
minimizados com os recursos advindos do CPM e/ou parcerias com empresas.
Um dos entrevistados da Escola 1 que também trabalha em uma escola
privada, vinculada à entidade das indústrias que mantém cursos técnicos e
profissionalizantes, faz referência à facilidade com que esta empresa adquire,
repõe ou renova os equipamentos ou outros insumos necessários para as
máquinas e laboratórios dos cursos:
Existem duas realidades. A escola y é uma escola privada,
mantida pelas empresas. Tem recursos, então não podemos nem
comparar. Então, ali a estrutura é bem diferente. Nós temos material,
ferramentas e maquinário na escola y e se faltar alguma coisa é só
solicitar que vem (Professor Francisco).
Esta fala reproduz a naturalização de algo construído socialmente, ou seja, a
existência de recursos e de estrutura que caracteriza a escola privada é
apresentada como um dado que independe das ões humanas, tanto no sentido
de construir um cenário com esta configuração, onde o privado tem tudo, como em
uma perspectiva de poder constituí-lo de outras formas.
Há um outro aspecto importante a ser destacado nos depoimentos dos
professores que trabalharam em escolas privadas e comparam estas
experiências com o trabalho que realizam nas escolas públicas, particularmente as
de educação profissional, ressaltando a diferença para melhor da atividade docente
desenvolvida com alunos da escola pública. Em primeiro lugar, referem-se ao fato
de que os alunos que vão para a escola técnica têm um objetivo claro e por isso se
comprometem com o curso, “levam a sério os estudos”. Em segundo lugar, porque
os alunos são provenientes, em sua grande maioria, das camadas empobrecidas
da sociedade, valorizando o acesso à educação, acrescida da oportunidade de
qualificação para ingressar no mercado de trabalho e, assim, poder ajudar a sua
68
família e, ainda, realizar o sonho da família em ver o filho na Universidade, através
do seu próprio esforço e salário. Em terceiro lugar, fazem referência aos alunos de
escola particular, como sendo desrespeitosos com os professores e
descomprometidos com os estudos, mas sentem-se os tais porque a escola precisa
de alunos/clientes e acaba passando a mão por cima de tudo que eles fazem.
Mesmo porque, diante de algum problema, os pais vão até a escola cobrar a
atitude da Direção em relação a alguma eventual medida disciplinar contra os seus
filhos, fazendo com que a Escola volte atrás na sua decisão para não correr o risco
de perder alunos. Os alunos e as famílias, segundo os entrevistados, sempre
teriam razão diante do professor e da escola. É a máxima dos Programas de
Qualidade envolvendo a relação da empresa com o consumidor - “o cliente é rei” -
levada à educação. No entanto, podemos evidenciar que esta máxima que integra
os enunciados da Reforma do Estado não opera na escola pública, sendo
questionada pelos professores, conforme ilustrado nos depoimentos a seguir:
Sobre escolas particulares, posso te dizer, por exemplo, da Escola
Y, em Novo Hamburgo. Oferece uma clientela classe A. Eu simplesmente
me desiludi, porque tu estás em uma escola onde tudo funciona
perfeitamente bem, tem uma estrutura fantástica, mas o aluno deixa a
desejar. É aquele aluno, não generalizando, que tem as costas quentes,
então qualquer coisa ele diz que é filho do fulano, por exemplo. Tu não
podes excluir um aluno da sala de aula, por mais que ele venha a pedir
que isso aconteça. Muitos pais o aceitam que o filho não esteja
correspondendo aquilo que o professor gostaria que ele fizesse. Então há,
por parte da escola, uma proteçãozinha. É uma realidade que a mim não
agrada. Pude, então, nessa minha trajetória, ter muitos comparativos, pois
trabalhei em escola publica diurna e noturna -, escola técnica, escola
normal, escola mais elitizada, alem de trabalhar com supletivo, que é uma
outra realidade. Peguei alunos das mais diversas origens e situações
(Professora Sonia).
Em 95, quando os aposentados saíram, eu pensei: ‘eu vou ter que
dar um jeito na minha vida, não vou ficar o resto da vida na Escola 2.
Quem sabe eu não experimento um outro lugar pra dar aula e me
aposentar também?’. Daí no fim do ano eu fui lá, fiz a seleção e comecei a
trabalhar na Escola X. E deu o PDV aqui. Pedi o PDV e fiquei dando aula
lá. E daí é que foi a minha decepção total. Entrei em crise, porque aqui os
nossos alunos valorizam o professor, respeitam, eles vêem no professor
um amigo, uma pessoa com quem podem contar. E na Escola 2, claro,
é diferente de quando eu era aluna. Tu é um zero à esquerda, não deu pra
outra coisa e esta dando aula. Se eu fosse professora principiante, eu
teria desistido de ser professora. Mas como eu não era... Eles não
respeitavam de jeito nenhum. Tu é aquele ser que estava ali pra servir
eles. Aqui, o aluno se forma e graças ao estudo, ele supera em três ou
quatro vezes a situação econômica dos pais... então eles valorizam o
professor, que permitiu que as condições da família mudassem. E não,
eles aprendem as coisas em casa, com informática. Quando chegava
perto de bater eles ficavam atrás da porta parados, esperando. Se tu
saísse no recreio, eles abriam todas as janelas. Era uma situação tão
69
deprimente, tu tinha que fechar as janelas, ninguém ajudava. Então eu
liguei pra coordenadora e disse que não iria mais. Ai decidi que viria pra
Escola 2 e desistiria do PDV. E ai que eu vi como os alunos tinham
carinho, fizeram uma festa que eu tinha desistido. Veio até o Diretor da
Escola X na Escola 2, falou que eles não poderiam concorrer com a
Escola 2, porque o problema não é tanto nos professores, mas nos alunos.
Porque o aluno que vai pra Escola 2 sabe o que quer, o que espera. São
valores que vem de família. A particular eu acho pior que a estadual
(Professora Tânia).
A propósito dos Programas de Qualidade, conforme já referido na Introdução
deste trabalho, tratava-se de um conjunto de práticas discursivas oriundas de outro
campo social, buscando ser integradas ao universo educacional estatal como tática
para redefinir a relação da população usuária dos serviços, no caso, os alunos e
suas famílias com os trabalhadores das escolas para potencializar a capacidade de
trabalho. A qualidade do trabalho passa a ser medida ou verificada posteriormente
a partir da avaliação do nível de satisfação do cliente. Entre tantas codificações
operadas por esta racionalidade, como qualidade no atendimento, trabalho em
equipe, polivalência na execução das tarefas, satisfação do cliente, a noção de
cliente se destaca, pois passa a ser utilizada com a finalidade de substituir um
nome que faz parte da tradição pedagógica educacional, que no nosso estudo é o
aluno. Porém, não se trata de uma simples troca de denominação, mas tal noção
torna-se objeto de estratégias de ressignificações. Os enunciados desta formação
discursiva se desterritorializam dos saberes orientados para a administração de
empresas privadas e se reterritorializam no universo estatal conferindo novos
atributos ao sujeito que freqüenta a escola (BENITES, 2002).
Estas novas técnicas de gestão do processo de trabalho e as novas
estratégias de controle dos trabalhadores introduzidas no âmbito estatal resultaram
das transformações ocorridas no mundo do trabalho em nível internacional. Os
Programas de Qualidade compreendiam, então, um conjunto de ações na área de
treinamento, processos de trabalho e aferição do desempenho dos servidores e
dos setores, buscando através da informatização, a agilidade e a modernização no
atendimento e, ainda, por meio de uma série de práticas gerenciais criar uma
cultura de atendimento focada na satisfação do cliente.
Neste contexto, torna-se esclarecedora a afirmação de Foucault: “As
práticas discursivas não são pura e simplesmente modos de fabricação de
discursos. Ganham corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em esquemas de
70
comportamento, em tipos de transmissão e difusão, em formas pedagógicas, que
ao mesmo tempo as impõem e as mantêm” (1997, p.12).
Apesar do esforço do Governo da época para a implantação do Programa da
Qualidade no Estado, houve dificuldade na sua aplicação, conforme avaliação do
seu sucessor. Para ele,
o PGQP consegue ter na iniciativa privada uma resposta
admirável. [...] E vai mal para dentro, porque a aplicação do programa dentro do
Governo passou por algumas dificuldades que pretendemos vencer. [...]
estabelecer dentro do gabinete do governador um responsável pelo Programa
dentro do governo, de modo a evitar a situação atual onde, na verdade, aderiu
quem quis, como se aqui fossem empresas privadas em que cada um pega se
quiser. É obrigatório. Tomando como instrumento o contrato de gestão nas estatais
e tomando como embrião para começar a fazer a boa fermentação, pontos focais
em cada secretaria que podem ter medições minimamente objetivas.
Havia na época um forte apelo para o Programa da Qualidade, que passava
de certa forma ao largo da vida cotidiana das instituições estudadas. Na área da
educação havia um cenário de muito conflito entre a Secretária de Educação e a
comunidade. Houve a adoção de um conjunto de medidas que teve efeitos
significativos no cotidiano das escolas, tais como: a implantação do calendário
rotativo
12
, que modificou o funcionamento das escolas, alterando o período de
férias escolares e interferindo na organização das famílias, o que gerou uma
intensa mobilização da sociedade; a indicação de diretores da confiança do
Governo numa atitude de desrespeito às eleições diretas nas escolas; as
mudanças nos espaços administrativos das escolas e da própria Secretaria de
Educação com a retirada das paredes que dividiam os setores, inaugurando uma
nova disposição arquitetônica característica da lógica contemporânea de controle,
na qual todos podiam ver todos trabalhando, ampliando, assim, o potencial do
regime de visibilidade e controle imposto ao trabalho.
12
O calendário rotativo estabelecia anos letivos diferenciados entre as turmas, visando à ampliação
de vagas através da total ocupação das escolas durante todo o ano.
71
5 OS SUJEITOS DA REFORMA E A REFORMA DOS SUJEITOS
A análise do corpus de pesquisa nos mostrou que a Reforma do Estado não
é conhecida ou identificada, pois todos os entrevistados, quando foram
apresentados à pesquisa e leram o termo de consentimento, demonstraram uma
certa estranheza diante da expressão Reforma do Estado. Vários deles
disseram que o sabiam se iriam poder me ajudar e alguns me indagaram sobre
o que era a Reforma do Estado, sugerindo ser a Reforma na Educação da década
de 70, resultante do acordo firmado entre o Governo Brasileiro e o Governo dos
Estados Unidos.
Talvez, as instituições estudadas, por serem públicas-estatais, estão muito
vulneráveis as trocas de governo, tanto no Estado como em nível federal. Ou seja,
de quatro em quatro anos mudam-se políticas, legislações, procedimentos,
discursos, enfim, as mudanças, ou melhor, as tentativas de mudanças no aparelho
estatal são permanentes. Na educação, as experiências adotadas pelos diversos
governos produzem efeitos sobre o funcionamento e a organização das escolas
que as desacomodam completamente (QPE, Calendário Rotativo, Contratos
Emergenciais, Constituinte Escolar, LDB, Reforma da Educação Profissional). No
entanto, apesar de dizerem não saber do que se trata, nas suas falas ao evocarem
suas memórias lembram e mencionam todas as medidas, que de certa forma
integram o Plano da Reforma do Estado.
Os entrevistados não percebem tais medidas como estando articuladas em
um conjunto de ações, discursos, saberes, verdades e procedimentos que
integram o cenário de transformação do capitalismo contemporâneo, assim descrito
por Veiga-Neto:
O que está ocorrendo é uma reinscrição de técnicas e formas de
saberes, competências, expertises, que são manejados por “expertos” e
que são úteis tanto para a expansão das formas mais avançadas do
capitalismo, quanto para o governo do Estado. Tal reinscrição consiste no
deslocamento e na sutilização de técnicas de governo que visam fazer
com que o Estado siga a lógica da empresa, pois transformar o Estado
numa grande empresa é muito mais econômico rápido, fácil, produtivo,
lucrativo (VEIGA-NETO, 2000, p.198).
72
Diante do exposto, cabe retomar o conceito de dispositivo definido como “um
conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas
[...] o dito e não dito são os elementos do dispositivo” porque nos possibilita
compreender que a Reforma do Estado é justamente a rede que articula os
elementos desse conjunto e os põe a funcionar (FOUCAULT, 1984, p. 244).
Observamos ainda, a partir da pesquisa, que existe um regime de verdades
partilhado pelos nossos entrevistados, acerca do poder e do Estado sobre o qual
Foucault problematiza na sua obra, pois que a existência destas verdades legitima
e fortalece uma relação de sujeição. Neste regime de verdades o poder não é visto
como uma relação, mas como algo que está localizado no Estado, entidade
substancializada, de onde emana o poder. De acordo com uma das precauções
metodológicas sobre a noção de poder, formulada por Foucault (2000), não
devemos tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo
de um indivíduo sobre outros. O que está em jogo são as relações de poder, no
qual a liberdade surge como uma condição de existência do poder. Para que o
poder seja exercido é necessário que haja liberdade:
O poder só se exerce sobre sujeitos livres, enquanto livres
entendo por isso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um
campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e
diversos modos de comportamento podem acontecer. Não relação de
poder onde as determinações estão saturadas a escravidão não é uma
relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se de uma relação
física de coação) mas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar
(id., ibid., p. 244).
Esta “verdade” à respeito do poder é própria da forma de
governamentalidade que atribui ao Estado o “poder” sobre as vidas. Assim, para os
governados, resta a esperança de que as coisas melhorem:
Mas sempre na troca de governo ficamos na esperança de que
mude, melhore um pouco, tanto pro funcionalismo como pra Escola. A
nossa tem bastante recursos porque vem de fora, que nem os laboratórios
que foram feitos pela escola 2 [...]. Mas tu outras escolas por exemplo
que não tem nem computador pra passar as notas, tem que passar tudo a
mão. Tem umas que não tem Recursos Humanos, as vezes nem gente
prá trabalhar na Secretaria (Funcionário Paulo).
Eu acho que o funcionário público tem toda aquela esperança do
dia seguinte. ‘Amanhã vai melhorar’. Então tu fica naquela expectativa,
entra e sai correndo, pensando que amanhã vai melhorar. E vai levando,
sempre na esperança de que vai ser valorizado (Funcionária Ada).
73
Vimos que as formas coletivas clássicas de resistência sucumbiram diante
das mudanças contemporâneas, apologéticas do individualismo e da
competitividade concorrencial. As saídas passam a ser individuais, podendo até
mesmo significar a doença, de acordo com o depoimento de um professor, que
expressa um posicionamento crítico em relação às formas de organização da
sociedade contemporânea, especialmente quanto ao trabalho e à questão do
consumo:
Hoje em dia as pessoas não fazem mais greve, elas adoecem.
um treco na pessoa. o só aqui no Brasil. Não da mais pra fazer
batucada. Elas adoecem, e adoecem mesmo (Professor Caio).
A outra coisa que eu vejo é a questão da religiosidade. É
impressionante, do meu ponto de vista, a babaquice disso ai. Quando tu
não resolve isso, porque a resolução do problema está muito além da tua
forca, o sindicato foi pro brejo, a política também simplesmente também, tu
é um escravo do trabalho, tu quer uma forca do além, né? (Professor Caio)
Não adianta mais fazer greve, passeata, enfim qualquer forma de
mobilização não tem resultado. Resta, então, cada um buscar mais trabalho para
poder sobreviver, conforme situação identificada em nossas entrevistas. Quase
todos entrevistados possuem outras atividades, seja em outras escolas ou mesmo
algum pequeno negócio na área do comercio ou da informática. Sobre as formas
coletivas de resistência do magistério público, é importante referir que as greves
não contavam com a adesão das escolas técnicas, nem mesmo nas épocas áureas
das mobilizações. Apenas poucos trabalhadores aderiram a tais movimentos. No
caso da Escola 2, como as negociações coletivas o vinculadas ao Sinpro e ao
Saae, e a sua estrutura jurídica fundacional é diferente das escolas particulares, as
poucas greves e paralisações ocorreram de forma isolada, mas com adesão, no
geral, da categoria.
A análise das formas de resistência contemporâneas deve considerar as
contribuições de Arendt (2001), pois envolve as novas configurações do público e
do privado. Para a autora, quando o espaço público é invadido pela esfera privada,
coloca em risco o processo de interação na diversidade e na pluralidade, que é
condição de toda ação e principal garantia da liberdade.
O que ocorre é a perda do
mundo público, do mundo político. As idéias de liberdade e de política são
autonomizadas na modernidade, abrindo espaço para que a liberdade se deteriore
em liberação das necessidades da vida. Essa transformação tem suas origens
com o aparecimento do social. Quando se perdem os limites da esfera da ação, em
74
que se desenrola a trama política e se tece a liberdade humana, perde-se também
a importância da palavra, da linguagem e de seu potencial de desvelamento e de
elucidação das questões da vida em comum, do mundo público. Quando a esfera
social se identifica com o político, o mundo é dominado pelo comportamento, pelo
conformismo e pela massificação,
Destacamos a questão da conformidade identificada nas entrevistas e que
de certa forma define o comportamento em geral dos trabalhadores neste contexto
de reestruturação produtiva e buscamos entendê-la como um discurso, no sentido
dado por Michel Foucault (2000), como sendo práticas que constituem os objetos e
as realidades ao dar-lhes um sentido. Prática não significa a atividade de um
sujeito, mas no sentido foucaultiano, designa regras que submetem os sujeitos. As
práticas são sempre produtivas e não existe prática livre do sistema discursivo. As
práticas acionam saberes atravessados por poderes e instituem regras que
estabelecem verdades. Os significados passam a ser entendidos como fluidos e
indeterminados, na medida em que a linguagem não representa uma realidade,
mas sim a define e a constitui. Isso possibilita afirmar que não são os sujeitos que
constituem a linguagem. Assim, compreendemos que os sujeitos estudados se
constituíram numa rede de relações marcadas por lutas por imposições de sentido.
A busca não é pelo que um discurso revela ou não de cientificidade, mas por “ver
historicamente como se produzem efeitos de verdade” (FOUCAULT, 2001, p. 7).
5.1 A EFICIÊNCIA E A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO: A PRESENÇA
SIMBÓLICA DO PRIVADO NA ESCOLA PÚBLICA PROFISSIONAL
O enunciado da eficiência nos serviços do Estado, presente no discurso que
sustenta a Reforma do Estado, constituiu um dos eixos de análise na nossa
pesquisa. vimos que existiu um movimento discursivo buscando desqualificar o
serviço público e oferecendo como exemplo de sucesso e eficiência o trabalho no
setor privado. Entretanto, o que concluímos a partir de nosso estudo interroga uma
certa homogeneidade com que tratamos este discurso desconstitutivo do setor
público. Ou seja, existem algumas áreas de atuação do Estado que estão fora
desta suposta ineficiência, tendo, ao contrário, um desempenho importante e
reconhecido/valorizado pela sociedade. A propósito desta heterogeneidade, é
75
importante dizer que as práticas governamentais o exercidas num campo
estratégico em que existem diferentes forças e discursos jogando. Evidenciamos
que o tema da eficiência do trabalho não é uma questão presente nas escolas
técnicas estudadas. Ambas instituições são valorizadas e reconhecidas nos seus
municípios e regiões pelo trabalho que realizam, pois resultam na qualificação
profissional dos jovens, possibilitando o ingresso destes jovens no mercado de
trabalho. Com isto, não se quer dizer que existe uma correspondência por parte do
Governo do Estado ao reconhecimento existente por parte da comunidade.
A eficiência das escolas estudadas leva-nos a pensar em duas
possibilidades para compreender esta situação. A primeira delas diz respeito ao
trabalho que, apesar das mudanças contemporâneas no mundo do trabalho,
preserva o seu valor simbólico na sociedade. As famílias atribuem ao trabalho
associado à educação a oportunidade de oferecer uma vida melhor aos seus filhos.
Estamos tratando pois de duas tecnologias de poder que servem a produção de
sujeitos pautados na organização e controle das condutas, ou seja: a escola e o
trabalho. Por sua vez, os seus filhos reproduzem/consolidam/partilham desta visão
e assumem uma postura diferente, conforme as falas dos professores, dos alunos
de escola particular e/ou apenas de ensino propedêutico, comprometendo-se muito
mais com os estudos. Agrega-se a isto o próprio contexto escolar de uma escola
técnica que permite ao aluno estar nos laboratórios e oficinas, desenvolvendo
projetos, praticando o conhecimento aprendido. O outro aspecto está relacionado à
estreita vinculação das escolas ao setor produtivo privado, outra esfera muito
valorizada pelo discurso governamental e social. Ou seja, há um resultado no
trabalho destas escolas que atende os interesses e as necessidades das empresas
da região. Por isso, diferencia-se das escolas de ensino médio, onde os alunos
saem como rias sem destino, pois não tem condições financeiras para continuar
os seus estudos na Universidade e também porque a formação obtida não lhes
nenhuma qualificação para conseguir um trabalho cuja remuneração seja razoável.
E ainda, uma formação onde, nos três anos letivos do ensino médio, se não houve
reprovação, provavelmente tenha havido vários dias sem aulas por falta de
professores ou mesmo paralisações, onde os docentes, estes sim, desvalorizados
socialmente, fazem jus a este desreconhecimento, ocupando este lugar construído
socialmente para o professor de escola pública.
76
O regime de verdades que legitima o reconhecimento da eficiência nas
escolas técnicas estudadas é apresentado neste depoimento:
Eu penso que, por exemplo assim, o pai que tira o filho daqui é
burro. Tenho como exemplo os meus filhos: a filha que fez Escola 1 está
bem empregada, com um ótimo salário, tem o carro dela e pensando
em comprar um apartamento; já o que estudou na escola X está
desempregado. Ai eu fico pensando se eu tivesse deixado ela na escola X,
será que ela não estaria em casa que nem o meu filho? Eu vejo pais que
tiraram os filhos daqui e colocaram na escola X, dizendo "ah, isso aqui não
era escola pro meu filho". Ai eu fico pensando, "e será que é escola pro
teu filho", "será que não é um luxo, pra dizer que numa escola
particular"? E eu passei na pele, o que se formou aqui empregado e o
que se formou desempregado. Até incentivo ele pra vir pra cá, ele
acha que já velho, tem 27 anos. Mas eu digo que tem caras com 50
anos que estão fazendo curso técnico porque estão almejando alguma
coisa. Nunca é tarde prá começar. Faz um curso técnico que tu vai te
colocar no mercado de trabalho. Então eu não vejo que o ensino seja
fraco. É certo que às vezes falta um professor, diferente de uma escola
particular, por exemplo. Mas pelo menos a escola que eu estou eu não
acho que não tem qualidade, tanto é que tem gente aqui com carrão, com
dinheiro, que tem condição de pagar um curso técnico particular, mas está
aqui dentro. E o aluno daqui sai bem empregado, tanto aqui como na
Escola 2. Então não vejo que seja fraco, pelo contrário, sempre incentivo
os pais a colocarem os filhos aqui ou na Escola 2, fazer um curso técnico.
Não adianta fazer o Ensino Médio porque estudou no Colégio X ou no
Y. Isso não mais emprego. Então eu vejo que nossos alunos estão
bem colocados no mercado de trabalho, enfim, quem faz curso técnico
está bem colocado. Mas também são aqueles que querem, que se
dedicam, fazem cursos, se qualificam. É que nem minha filha, que faz
cursos, se formou em Engenharia de Produção e procurando sempre
crescer. Eu digo prá ela estar sempre por dentro de alguma coisa que sair
de novo prá não ficar prá trás (Funcionário Paulo).
Porque aqui na escola a gente tem máquina, como igualmente tem
nas indústrias, de torno, fresadora. Aqui nessa sala nós temos o CNC,
uma estrutura recente. Então nessa parte nós estamos bem equipados.
Uma escola pública ter o porte que a escola 1 tem hoje é muito bom. E
nossos alunos são bem aceitos dentro da região. A gente faz o possível
prá isso, faz um esforço muito grande aqui. Temos muita dificuldade, a
questão do maquinário, por exemplo, mas o änimo que a gente tem, a
força de vontade de todos, o engajamento da direção e coordenação,
enfim, a gente não mede esforços pra melhorar cada vez mais o padrão
de ensino da escola 1 (Professor Francisco).
[...] uma escola de padrão quase que particular, ela oferece
condições muito boas pros alunos, né? A parte física é excelente e o corpo
docente {também}. Pelo conhecimento que eu tenho o relacionamento dos
alunos e o corpo docente da escola também é muito qualificado. Então, o
aluno que vier na escola 1, possivelmente, tendo vontade de estudar, que
é o básico prá todo mundo né, vai sair altamente qualificado para o
mercado de trabalho (Professor Rogério).
77
5.2 O REGIME DE VERDADES DA REFORMA E A ESTABILIDADE NO
TRABALHO
Ah, a estabilidade econômica te uma certa segurança, né? A
mim ao menos. Vejo as colegas também. Isso é de praxe, né? Saber que
provavelmente tu não vai ser demitida. E posso sair se eu quiser. Mas tem
um lado negativo, por outro lado eu observo em mim e nas colegas, tu
pára um pouco no tempo, porque a própria instituição não te possibilita.
Quando entrei achei que iria crescer, aprender mais coisas... mas na
verdade o é, acho que a instituição publica não exige muito de mim
como profissional, em termos de qualificação. Gostaria de ter crescido
mais, ter aprendido muito mais coisas, e não foi me possibilitado. Muito
limitado isso. Vejo na minha experiência. E isso vai te frustrando, em
alguns momentos é muito difícil, tu conseguir ter motivação pra trabalhar e
se sentir bem aqui dentro. Acho que isso é uma característica da
instituição pública. Até porque não foi possibilitado porque o estado não
tem condições (Funcionária Flávia).
É´ uma garantia, né? Apesar de tu ser celetista, tem uma
estabilidade, um horizonte. Porque fora é difícil [...] (Funcionário
Ricardo).
Nos depoimentos acima podemos recortar elementos importantes para
pensar a questão da estabilidade, um dos alvos da Reforma do Estado, que a
entende como justificativa para a implantação da administração gerencial,
possibilitando assim maior eficiência na máquina estatal. A apologia do risco, da
mudança e da mobilidade são os elementos chaves do discurso de gestão que se
pretende introduzir no serviço público-estatal.
Sennett (2004) e Bauman (2000), entre outros autores, tem estudado os
efeitos das transformações contemporâneas do capitalismo no que se refere à
fluidez das relações de trabalho na produção da subjetividade, apontando os
possíveis danos do ponto de vista psíquico. Podemos perceber nas falas da
maioria dos entrevistados a referência positiva à estabilidade como um fator de
segurança existencial e como uma garantia de horizontes.
Ainda que na Escola 2 os servidores o têm direito a estabilidade pelo fato
de serem celetistas, as demissões são muito difíceis e raras. Já ocorreram e
sempre foram muito traumáticas, sejam aquelas ocorridas por decisão interna da
própria direção, sejam aquelas orientadas pelo Governo do Estado, com base na
necessidade de reduzir pessoal e custos, como no período da Reforma do Estado
no Rio Grande do Sul. Todas estas demissões referidas envolveram um grupo de
servidores, ao passo que os desligamentos individuais e isolados, muito poucos, é
verdade, não provocaram objeções da comunidade interna porque tinham
78
justificativas funcionais e profissionais relevantes. A propósito disso, é importante
mencionar que a demissão na Escola 2, por se tratar de uma instituição de
natureza pública, ainda que de direito privado, deve estar muito embasada do
ponto de vista legal, porque o risco de uma ação judicial colocando em questão a
demissão é grande. Por isso, mesmo havendo a possibilidade de demissão na
Escola 2, assim como nas entidades privadas e diferentemente das escolas
técnicas estaduais, onde existe a estabilidade legalmente assegurada, dificilmente
ocorreu. Tanto é assim que todos os entrevistados desta instituição falam da
estabilidade como se ela estivesse assegurada legalmente.
Outro elemento que apareceu nas entrevistas associado à estabilidade foi a
acomodação. Ou seja, o problema da estabilidade estaria no fato de que as
pessoas, como sabem que não podem ser demitidas, “se provalecem”, “abusam”,
”não trabalham como deveriam”:
Tem muita gente que o sabe usar o que tem, ou se provalece
dessas coisas. São pessoas que não tem responsabilidade, deixam de
cumprir seu dever e quem trabalha deve ganhar, assim como quem ganha
deve trabalhar. Se a gente pegou seus serviços durante àquelas horas ali,
tem que dar o retorno para aquilo que recebe (Funcionário Ricardo).
Vimos que os relatos evocam as inúmeras dificuldades presentes no serviço
público, tais como: a falta de pessoal, de investimentos financeiros, de baixos
salários, ausência de políticas de qualificação e capacitação de servidores, tanto
funcionários como professores falaram sobre isso, no entanto, estes aspectos não
são associados à acomodação. A questão da acomodação dependeria da pessoa,
pois apesar de todos estarem potencialmente “capturáveis” pela acomodação,
somente alguns se acomodam. Assim, existiriam os bons e os maus profissionais:
Isso vai muito do bom profissional. Com certeza tem os bons e os
maus profissionais. Uma coisa que muitas vezes eu vejo dentro do estado
é que a pessoa presta um concurso, entrou para a repartição pública e
parece que daí se acomoda. Porque não vai ser demitida, então faz e
acontece. Parece que ele não tem mais liderança nenhuma, desenvolve
conforme a sua intenção. Enquanto que na particular, na privada, nós
temos cobrança e essa cobrança não é que nem no estado que se tu não
fez, não fez. Não, é cobrança mesmo, se tu não fizer tu é demitido. Aquilo
ali é teu cargo, então tu tens uma responsabilidade muito grande. Além de
ensinar tu tens que manter teu emprego. Acho que os caminhos são bem
diferentes. Mas é o que eu penso na minha forma de trabalho. Eu iniciei
como contratado, agora sou efetivo. Mas não é pelo fato de ser efetivo que
vou deixar de fazer as coisas certas e sérias quando devem ser feitas.
Acho que isso vai muito da pessoa. Eu vou dizer sinceramente, nós temos
aqui gente concursada e contratada e todos vestem a camiseta. A gente
respeita a direção e coordenação, as orientações que recebemos. Agora
sabemos que tem muitas situações em escolas que não são bem assim.
79
Muitos profissionais acham que podem desenvolver aquilo que é do seu
interesse, e não interesse da escola (Professor Francisco).
Olha, o problema do serviço público eu acho que ele existe. E nossa
Escola 2 deve ver que ele existe. As pessoas se acomodam. Teria que
haver um meio termo. As pessoas, por exemplo, aqui na Escola: se tu sai
prá estudar, tu é visto com maus olhos. Mas a pessoa não te vê com maus
olhos porque tu saiu pra estudar, ela quer sair também mas ela não quer
estudar. Então ela acha que é uma coisa fácil o que tu vai fazer. Então
aqui as pessoas são acomodadas, tu vai ver que tem um grande número
de professores que não mudaram, que são 20 anos as mesmas
pessoas, a mesma aula, o mesmo estilo, os mesmos problemas... e
poderiam mudar. Não mudam porque sabem que nada acontece se eles
não mudam. INSS, por exemplo, eu tive que usar isso. E eu vi os absurdos
lá. Tava ali, na fila, tem que tirar ficha, as pessoas são mal atendidas.
Chegou no mês de janeiro, o INSS ali em São Leopoldo tem quatro ou
cinco médicos, numa época quente de verão. Todos os médicos pedem
atestado. Há uma libertinagem. Isso jamais vai acontecer num serviço
privado, porque tem conseqüências. Creio que teria que ser feita
alguma coisa pra que o funcionário público incorporasse a importância de
ser funcionário público. Por outro lado, tu pega funcionários públicos com
baixíssimos salários, totalmente desmotivados, sem um ambiente de
trabalho adequado. É o caso do magistério estadual. Eu peguei e fui
embora.(...) Agora aqui na escola não. Creio que se ganha um bom
salário aqui, é um bom ambiente de trabalho, com todas dificuldades que
tem, a qualidade dos alunos é excelente, os alunos são ótimos, não tem
porque tu se acomodar. Não tem porque abrir o mesmo caderno que tu
usava 20 anos e fazer a mesma coisa. Não tem porque ser
extremamente exigente com os alunos e não orientar trabalhos de
conclusão, por exemplo. Então tem coisas no serviço público que
deveriam ser mudadas. Isso no nosso nível, agora se tu pegar o Judiciário
ou o Legislativo, por exemplo, ai é um caos completo. São ineficientes,
ganham demais. É uma máfia (Professor Caio).
Na pública, o teu comprometimento sempre deveria ser um pouco maior,
né? Afinal de contas é uma instituição que no principio ela procura
desenvolver ações com toda uma gama de pessoas daquela região, local,
sociedade e tal. No meu caso, por exemplo, a universidade particular já
está ligada a uma instituição que tem filosofia própria diferenciada, no
caso é católica. vai limitando as coisas. Mesmo que tu não combine
com tais padrões, tu é obrigado a se encaixar naquilo. E na pública, no
caso a Escola 2 aqui, é uma coisa mais aberta, precisa ter mais
responsabilidade, mais solto. Tu podes ser mais criativo por outro lado,
mais livre. Então a instituição blica pra mim tem esse aspecto, tu podes
desenvolver muito mais coisas que na particular. Por isso, requer de ti
uma pró-atividade maior. Mas acontece justamente o contrário, porque na
privada tu tens que sair correndo atrás das coisas. Na pública tu acomoda.
É´ uma contradição porque tu podes fazer muito mais coisas numa
instituição pública (Professor Caio).
Percebemos que existe certo desconforto ou incômodo com a confirmação
da existência da acomodação como um problema existente por parte dos
entrevistados, pois aquilo que é defendido como algo importante para a vida das
pessoas, que é a segurança do emprego e do salário no final do mês, constitui-se
numa possibilidade de acomodação. Discurso este que sustentou o debate sobre a
80
mudança nas leis visando adequar a estrutura estatal ao novo paradigma gerencial,
identificando no direito à estabilidade um atraso na gestão pública.
O enunciado da estabilidade faz parte de um regime de verdades que
legitima e naturaliza o trabalho no serviço público. A análise do enunciado,
diferentemente da análise das representações que caracteriza a maioria dos
estudos sobre o funcionalismo público, é explicitada na seguinte formulação de
Foucault, citada por Nardi
A tarefa implicada na análise dos saberes deve ir para além da
análise das representações e dos signos e buscar o nível do enunciado,
ou seja, o nível das possibilidades de enunciação e das regras
enunciativas que regem determinadas racionalidades, as quais se
apresentam sob a forma de verdades em determinados tempos históricos
e em determinados espaços geográficos (2002, p.117).
A análise das condições de possibilidade do enunciado-verdade sobre a
estabilidade associada à acomodação do trabalhador no serviço público deve ser
feita levando em consideração o próprio contexto de formação do Estado Brasileiro
que, como vimos, apresentou(a) traços marcadamente patrimonialistas e
clientelistas. E ainda, poder entendê-la, assim como a questão da eficiência, a
partir do mecanismo de gestão de ilegalidades. Podemos identificar os baixos
salários, a ausência de investimentos para a qualificação dos trabalhadores e para
a estrutura das escolas como sendo estratégias que atendem a finalidade do
governo. Neste sentido, vale lembrar Foucault quando diz que “o sucesso do poder
é proporcional àquilo que esconde de seus mecanismos” (1990)
Ainda para contribuir com o nosso estudo sobre o enunciado da estabilidade,
trazemos a análise feita por Neves (2000, p. 60-61) que sugere a compreensão da
organização como um campo de batalhas, no qual os diferentes agentes atuam de
acordo com seus interesses. Estes podem ser pensados em dois âmbitos: num, os
interesses da organização, nesta pesquisa, o interesse público e no outro, os
interesses particulares, privados e corporativos. Entretanto, a caracterização dos
âmbitos em interesses é utilizada apenas como função explicativa, porque na
organização estatal, os agentes estão em uma posição híbrida, mesclada entre
esses âmbitos.
Dreyfus e Rabinow (1995, p.121-122) apud Neves afirmam que “O jogo de
forças em qualquer situação histórica particular torna-se possível pelo espaço que
as define. É esse campo ou clareira que é primário. (...) Foucault utilizava esta
81
noção de espaço ou clareira em que ocorrem sujeitos e objetos. Todavia, nesta
época, ele pensava o espaço como governado por um sistema de regras que
emerge descontinuamente e sem nenhuma inteligibilidade. Agora, esse campo ou
clareira é compreendido como o resultado de práticas de longa data e como o
campo onde estas práticas operam (...). O genealogista (...) estuda o surgimento de
um campo de batalha que define e esclarece um espaço. Os sujeitos não
preexistem para em seguida, entrarem em combate ou harmonia. Na genealogia,
os sujeitos emergem num campo de batalha e é somente que desempenham
seus papéis” (apud Neves, 2000, p. 60).
5.3 UMA NOVA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL PARA NOVOS SUJEITOS
EMPREENDEDORES
O estudo da Reforma do Estado e os processos de subjetivação em
instituições de educação profissional levaram em conta os novos paradigmas
propostos para a educação profissional, que buscavam atender a nova
racionalidade governamental. Portanto, em nossa pesquisa, entender a Reforma do
Estado como um dispositivo para os processos de governamentalização implica
reconhecer as modificações ocorridas também nas escolas técnicas como
ferramentas do dispositivo que agem moldando condutas.
No contexto das transformações no mundo do trabalho deveria haver uma
completa mudança de comportamento e de habilidades por parte dos
trabalhadores, de modo a melhorar a produtividade num momento de
competitividade e fragmentação dos mercados. À escola caberia ajustar a
formação do indivíduo ao novo perfil de trabalhador que estava sendo requisitado
pelo mercado, onde agora não mais vigorava a lógica do pleno emprego, mas a
lógica da empregabilidade. Para disputar o mercado de trabalho passa a ser
necessária comunicação clara e precisa; capacidade de análise tanto para
solucionar conflitos como para prever e corrigir problemas do sistema produtivo;
familiaridade com computadores e novas tecnologias; saber enfrentar as mudanças
individualmente e em equipe; ser responsável, versátil, equilibrado
emocionalmente, polivalente; deve estudar continuamente. Enfim, estas
82
características dariam garantias de empregabilidade ao indivíduo e promoveriam as
melhorias contínuas no processo produtivo.
Para estar à altura das exigências de um mercado versátil, caberia ao
indivíduo ser “empresário de si mesmo”. Na versão contemporânea do liberalismo,
o postulado do Homo Economicus é extremado, na medida em que o sujeito deve
ser um empreendedor de sua utilidade governando sua própria conduta.
Vimos que a mudança do ensino técnico envolveu um conjunto de
formulações e saberes contidos na denominada Reforma da Educação
Profissional. Ela ocorreu no mesmo período em que houve a aprovação do Plano
Diretor da Reforma do Estado e foi talvez mais avassaladora e mais bem sucedida
na sua implementação que a própria Reforma do Estado. As escolas de todo o
país, apesar das preocupações quanto ao conteúdo da reforma, migraram na sua
totalidade para as novas modalidades propostas. Cabe destacar que não houve
articulação das escolas para evitar a reforma ou mesmo tentar estabelecer uma
negociação de alguns aspectos contidos na reforma. Houve uma adesão sumária
do conjunto das escolas, sem nenhum movimento de resistência. Característica
que deve igualmente ser ressalvada como pertencendo a um tempo de verdades
que desconstituiu a potência dos movimentos políticos reivindicatórios tradicionais.
Neste contexto, a Escola 2 foi a única, ao menos que se tem notícia no país,
que construiu uma alternativa curricular “driblando” a legislação para manter um
formato dos seus cursos que era identificado como responsável por uma diferença
na formação dos seus alunos. A permanência da articulação do ensino técnico com
o ensino médio era visto como uma condição necessária para “uma formação
sólida do ponto de vista humanístico, cultural, cientifico e tecnológico” (Projeto
Político-Pedagógico, 2000). A outra escola estudada implantou as alterações
propostas na reforma da educação profissional. Entretanto, apesar da Escola 2 não
adotar algumas diretrizes da Reforma, a formação discursiva-regime de verdades
que passa a operar nas escolas técnicas, tais como a pedagogia das
competências, a empregabilidade, o empreendedorismo, o novo perfil do técnico,
enfim, um conjunto de termos e expressões mencionados no nosso estudo, foi
incorporado às práticas e saberes escolares, conforme entrevista de um professor
que traz inclusive o modelo pedagógico, utilizado na instituição privada, na qual
também trabalha como docente:
83
É´ que como eu trabalho na Escola X, esse sistema de ensino eu
trago de lá. Temos muito curso, muito preparo lá, em função dessa parte
pedagógica, coisa que no estado não tem. Eu tô há quase 30 anos aqui na
Escola 1 e nunca tirei nenhum curso de aperfeiçoamento na parte
pedagógica, por exemplo. Todo o conhecimento que eu tenho vem da
Escola X. a gente, semestralmente, está envolvido com preparação
pedagógica. A última modalidade de ensino é por competência. Então isso
que eu trago prá Escola 1 é o que a gente executa lá. Vamos dizer que
30% ou mais dos alunos da escola são oriundos da Escola X. Já vem com
uma bagagem muito boa de conhecimento. Aqui eles vivem o trabalho
(Professor Francisco).
Cabe reafirmar que os novos saberes coexistem com os discursos
existentes, gerando muitas vezes confrontos de diferentes lógicas ou
racionalidades que foram importadas parcialmente de sociedades cujas condições
sociais o bastante diferentes daquelas apresentadas nos contextos
importadores. Este fenômeno é denominado de hibidração em Badie e Hermet
13
apud Benites (2004).
A discursividade produzida pela reforma da educação profissional em prol da
formação dos novos sujeitos potencializa as estratégias de governo e auto-governo
dos indivíduos.
Este discurso ao produzir a necessidade de educar para a
empregabilidade, ao fazer emergir novas racionalidades políticas, põe em
funcionamento técnicas sutis de governamentalidade, através das quais é
possível moldar e normalizar a conduta, as aspirações, as decisões dos
indivíduos, com o propósito de alcançar objetivos considerados desejáveis
(BAMPI, 2003).
As práticas de governo contemporâneas ao subjetivarem os indivíduos, os
objetivam como cidadãos empreendedores. Para tal é necessário que se auto-
governem de uma forma específica, ou seja, sujeitos de diálogo, respeitosos,
cumpridores de deveres e merecedores de direito, que saibam conviver em grupo.
Sujeitos de saber, objetivados e guiados pelas sedutoras promessas de liberdade e
flexibilidade, ao contrário da tão criticada rigidez disciplinarizada dos tempos
tayloristas-fordistas.
Crestani (2001) reproduz a seguinte passagem da apostila Oficinas de
Empreendedorismo para o ensino médio de um Centro Federal de Educação
Profissional:
13
BADIE, Bertrand; HERMET, Guy. Política Comparada. México: Fondo de Cultura Econômica,
1993.
84
NÃO É A TOA QUE WILLIAM BRIDGES BATIZOU ESSE NOVO
PROFISSIONAL DA ERA DA EMPREGABILIDADE COMO VOCÊ&CO. O
executivo tem de ser hoje uma empresa.Tem de possuir para si mesmo
vários “departamentos” dos quais tomará conta como o fazia antes para os
seus empregadores: marketing, pesquisa e desenvolvimento, recursos
humanos (ele mesmo), etc. Essa constatação é, a um tempo,
assustadora e libertadora. Saber que fracasso ou sucesso estão ambos
em nossas mãos é salutar. Essa angústia é a da liberdade de que tanto
nos falavam os existencialistas. Escolha o seu destino. Isso é possível.
Forja-se então, contudo, no meio da crise mundial um novo tipo de
conceito: mais importante que ter emprego é ter empregabilidade (DAVID
& MEYER, 1998, p.4, adptado).
Neste texto, o professor que é instrumento e alvo deste discurso trabalha
com os alunos inserido em um regime de verdades em que a vida é uma questão
individual e que o indivíduo é o senhor do seu próprio destino, prescindindo do
contexto social e econômico. As condições de nossas vidas seriam dadas apenas
por nós. O sujeito senhor de si e de sua carreira, tendo adquirido todas as
competências e saberes, tudo pode. Cabe ao indivíduo a sua vida e o seu sucesso.
Neste sentido, pode-se dizer que estamos diante de uma transformação
operada nos últimos tempos que é a hipervalorização generalizada do indivíduo.
Vemos um hiperinvestimento do Eu, seja como resposta a situação de
vulnerabilidade com a qual os sujeitos vêm se deparando, seja como tentativa de
seguir a lógica da privatização. Penso que as instituições pesquisadas, nas quais
identifica-se a qualidade do ensino associada à satisfação dos seus trabalhadores,
a partir de um engajamento coletivo, revelam a existência de um modelo
conciliador. Talvez síntese criadora de jeitos possíveis de lidar com um contexto,
no qual o papel do Estado está em disputa na sociedade, colocando em ameaça
permanente a existência das instituições e do emprego. Ao mesmo tempo em que
o resultado do trabalho é reconhecido e valorizado pela comunidade e pelos
próprios trabalhadores das escolas, que demonstram orgulho nos seus relatos.
Pode-se sugerir ainda uma síntese possível nos processos de produção das
subjetividades tendo em vista a contradição enfrentada nos seus cotidianos
profissionais. Devem adotar nos seus contextos laborais o conjunto de saberes,
procedimentos, leis e tecnologias que é acionado pelo dispositivo da Reforma do
Estado e da própria educação profissional: na condição de servidores e na
condição de educadores. Através da incorporação das novas pedagogias e dos
novos discursos sobre a empregabilidade e a competência, devem conduzir a
conduta dos seus alunos-trabalhadores de modo a atender às demandas da
85
sociedade contemporânea. Apesar da potência dos enunciados da Reforma, o
trabalho nestas escolas preserva ainda um espaço de autonomia, criação e
liberdade que se situa na valorização do próprio trabalho e no grau de liberdade
próprio a uma determinada noção de educação pública que resiste a gica do
aluno-cliente.
86
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos estudar a Reforma do Estado e os processos de subjetivação
em trabalhadores de duas instituições públicas-estatais de educação profissional,
tomando a Reforma como um dispositivo que tem em nossa contemporaneidade a
função de fazer com que o serviço público-estatal se constitua num instrumento
eficaz. Portanto, procuramos analisar as implicações deste dispositivo na e para a
produção de um novo servidor blico que atendesse às transformações do
capitalismo.
Evitamos pensar o Estado enquanto uma unidade homogênea, mesmo
reconhecendo as suas características centralizadas e centralizadoras, propondo
algumas noções formuladas por Foucault, especialmente a noção de
governamentalidade. Assim, buscamos compreender como a escola técnica
pública opera nas redes das práticas governamentais, através de um conjunto de
técnicas, práticas e saberes que se originaram fora do universo estatal e que foram
nele introduzidas por conta de uma multiplicidade de estratégias de poder. Por isso,
entendemos que as mudanças nos regimes de poder no capitalismo
contemporâneo e as novas configurações do ethos social extrapolam o espaço
estatal e as modificações no seu interior não devem ser redutíveis aos processos
produzidos no seu próprio espaço.
Entendemos, neste estudo, que as atividades dos trabalhadores nas
instituições de educação profissional pesquisadas se constituem em um
componente do exercício de governo, no qual articulam-se o governo dos outros e
o governo de si. O governo dos outros envolveria o aprofundamento e a
sofisticação dos instrumentos de controle sobre os trabalhadores, através das
estratégias de gerenciamento-empresariamento trazidas para o interior do Estado
(terceirização, precarização do trabalho, práticas discursivas orientadas para a
eficiência e a qualidade, etc.), de modo a potencializar a capacidade de controle
sobre a população e os funcionários. O outro jogo, jogado na esfera do indivíduo,
nos mostra que as táticas de governo não seriam eficazes sem a mobilização das
subjetividades para esse objetivo.
Identificamos a partir da análise das entrevistas que o trabalho é regido por
determinados princípios que valorizam alguns preceitos a serem cumpridos no
87
desenvolvimento das suas atividades. Assim, a obediência a estes preceitos
implica a constituição de uma certa relação consigo, produzindo o sentido das
formas de atuar face às prescrições normativas do trabalho. Ainda que existam
diferenças no trabalho desenvolvido pelos funcionários e pelos professores,
podemos pensar que há uma racionalidade imersa na cultura administrativa e
educacional que constrói o lugar do trabalhador do serviço público, fornecendo-lhe
os elementos para a constituição de sua identidade. O cuidado de cada
trabalhador, seja funcionário ou seja professor, na realização atenciosa e exemplar
do ponto de vista da sua conduta, é uma forma de sujeição à lógica que regula o
aparelho estatal na área educacional.
O conjunto de saberes e práticas compartilhados entre os trabalhadores
para a realização da missão da escola os faz agentes ativos no processo de
produção de verdades cujo alvo é a população de alunos. Deste processo é que
emergem determinados processos de subjetivação no serviço público. É preciso
produzir-se enquanto sujeito zeloso, responsável, prudente, pois produzir-se como
sujeito seguro e convicto é uma tática para impor e legitimar as verdades
produzidas no meio educacional e empresarial, no caso das escolas técnicas.
Vemos que a racionalidade governamental funciona através dos sujeitos
que se constituem em aliados importantes para a eficácia da implementação dos
seus programas e projetos. Entretanto, identificamos também a partir da
problematização de si e do trabalho de reflexão possibilitado pela entrevista, que os
trabalhadores deixam aparecer microrresistências através de discursos queixosos
que envolveriam o “não-trabalho de alguns colegas, que não fariam por merecer a
oportunidade que estão tendo”, os baixos salários e a falta de investimento nas
pessoas e nas escolas.
Na nossa pesquisa, surpreendemo-nos com o desconhecimento dos
entrevistados sobre o Plano da Reforma do Estado, cuja implantação teve inicio no
Brasil e no Rio Grande do Sul a partir da década de 90. Por isso, o estudo da
Reforma do Estado como dispositivo permitiu que durante o processo de
construção teórica e empírica da pesquisa revíssemos uma certa concepção ainda
presente no pesquisador sobre o poder e o Estado. Reconhecemos, portanto, que
o percurso teórico foucaultiano adotado desconstruiu no próprio pesquisador a
concepção clássica da ciência política sobre tais categorias conceituais. A ação do
dispositivo da Reforma é o mais eficaz quando sua própria ação passa
88
desapercebida e é naturalizada, como se não houvesse existido uma intervenção
articulada, sistemática e intencional.
Não pretendemos realizar generalizações a partir do nosso estudo tendo em
vista o referencial metodológico escolhido, mesmo porque o serviço público estatal
apresenta uma heterogeneidade no seu interior e também porque lidamos com o
contexto da educação, mais particularmente da educação profissional.
Ressaltamos as diferenças existentes entre as instituições investigadas, ainda que
apresentem um elemento em comum, fundamental na análise da racionalidade
governamental. Neste sentido, os resultados da investigação nos possibilitaram
uma reflexão importante sobre o reconhecimento da eficiência e da qualidade da
escola técnica. Todos os trabalhadores afirmaram que as suas escolas são muito
boas e que apesar das dificuldades financeiras e dos baixos salários,
especialmente, na escola técnica estadual, os alunos recebem uma excelente
formação profissional, sendo absorvidos pelas empresas da região. O que nos faz
pensar que apesar das tentativas dos governos de reduzir investimentos e até
mesmo de transferir a responsabilidade pela educação profissional ao setor
privado, identifica-se ainda na escola técnica uma tecnologia discursiva potente
para legitimar, e também deslegitimar, no sentido de mostrar que o público pode
funcionar, claro que se aliado ao privado, tratando-se de fato de uma tensão interna
aos distintos modelos de liberalismo, o regime de verdade presente na sociedade.
Apesar ainda de ser uma escola pública, funcionando com poucos recursos
financeiros, vem operando com muita eficácia a condução da conduta dos
trabalhadores, através de novas tecnologias de poder gerencial que buscam se
apropriar das individualidades capturando agora não somente os seus corpos como
também as suas almas. Ainda que a lógica de gestão do setor privado encontre
resistências nos trabalhadores para ser implantada na gestão das escolas públicas,
ela está entranhada, de forma invisível e pulverizada nas práticas discursivas das
escolas e da sociedade, fazendo com que a escola continue cumprindo com
eficiência a sua função disciplinadora e normalizadora.
Os caminhos da pesquisa nos mostraram como a escola tem assumido um
papel relevante na constituição de subjetividades na sociedade atual,
A educação institucionalizada sintetiza todos os problemas de
governamentalidade, para utilizar uma expressão de Foucault, enfrentados
pelo estado capitalista numa situação de profundas transformações
econômicas e sociais. A educação não está apenas no centro do projeto
89
educacional moderno, ela está no centro dos problemas de
governamentalidade do moderno estado capitalista (SILVA, T. 1995, p.
253).
Pudemos perceber, por meio das entrevistas e dos textos analisados, o
funcionamento de diferentes tecnologias que se articulam, se justapõem e, muitas
vezes, entram em contradições.
Podemos constituir como pista de trabalho futuro a conclusão deste estudo.
O fato de a lógica privada estar presente no interior das escolas técnicas, em
razão das alianças com o capital regional, sugere que a Reforma do Estado, ao
importar mecanismos de gestão privados, se fez pouco sentir, uma vez que
reforçou uma lógica preexistente. O que não quer dizer que está aliança elimine
com a possibilidade de resistência que se afirma a partir de uma noção de público
que valoriza a liberdade presente no interior do sistema público, o qual protege
seus trabalhadores, por enquanto, da competitividade que produz uma espécie de
servidão voluntária nos ambientes ferozes de trabalho do setor privado.
Mais do que finalizar questões, as análises apresentadas pretendem
transformar-se em inquietudes e convites para novas análises. O universo empírico
está em constante devir tornando necessários novos estudos sobre este tema
ampliando os horizontes de interpretação e incluindo aspectos que possivelmente
não foram contemplados nesta dissertação.
90
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95
Termo de Consentimento pós-informação
Eu.........................................................................................declaro para os
devidos fins que concordo em participar como entrevistada(o) da pesquisa que está
sendo realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Instituto de
Psicologia Social e Institucional: “A Reforma do Estado e os Processos de
Subjetivação: um estudo sobre a relação subjetividade-trabalho com servidores
públicos em instituições de educação profissional que está sendo desenvolvida
pela mestranda, Maria Inês Utzig Zulke, com a orientação do Professor Henrique
Caetano Nardi, do Programa de Mestrado em Psicologia Social e Institucional da
referida Universidade.
Esta pesquisa tem como objetivo compreender os processos de
subjetivação dos servidores blicos na sua relação com o trabalho, a partir da
implantação da Reforma do Estado no contexto de duas escolas de educação
profissional. A metodologia qualitativa utilizará a trajetória de vida como
instrumento de análise de pesquisa e as entrevistas serão realizadas, a partir de
uma questão inicial que se apresentada para dez servidores das duas escolas,
divididos entre professores e funcionários, considerando o período de ingresso nas
instituições (década de 70 e década de 80).
Estou disposto (a) a participar da mesma, permitindo as entrevistas e
respondendo aos questionamentos pertinentes. Fico ciente ainda de que as
informações colhidas e as análises serão desenvolvidas sem identificação dos
entrevistados. As fitas contendo as entrevistas ficarão guardadas por um período
de cinco anos no Instituto de Psicologia da Universidade. Fui informado (a) de que,
terei liberdade de retirar meu consentimento de participação e no caso de
desistência em participar desta pesquisa, deverei avisar à pesquisadora
responsável, assim como comunicar qualquer alteração ou situação imprevista que
venha a ocorrer, através do telefone 33165458.
Novo Hamburgo, 03 de janeiro de 2007.
__________________________ __________________________
Entrevistado (a) Pesquisador
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