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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
A REABILITAÇÃO DOS AFETOS:
UMA INCURSÃO NO PENSAMENTO COMPLEXO
DE EDGAR MORIN
Luís Guilherme Vieira Allegro
Dissertação apresentada ao Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, para obtenção do título de
Mestre em Ciências Sociais (Antropologia)
Orientador: Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho
São Paulo
2006
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
A REABILITAÇÃO DOS AFETOS:
UMA INCURSÃO NO PENSAMENTO COMPLEXO
DE EDGAR MORIN
Luís Guilherme Vieira Allegro
Orientador: Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho
São Paulo
2006
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador e amigo, Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho, pela generosidade, pela
incomum paciência, pela confiança, pelo constante encorajamento, pela inestimável
capacidade compreensiva, pela tranqüilidade inspiradora. Seu papel nesta dissertação não
poderia ser mais relevante: foi graças a ele que descobri o pensamento complexo.
À Profa. Dra. Mariza Werneck, minha “madrinha” na antropologia, por ter acompanhado o
lançamento das sementes com preciosa sensibilidade, intenso acolhimento e escuta sempre
atenta.
À Profa. Dra. Eliane Hojaij Gouveia, pelos breves, mas valiosos, momentos de uma
interlocução que me trouxeram o senso de “urgência do essencial” do qual eu tanto carecia.
Ao Dr. Lúcio Ribeiro Rodrigues, pela rara cumplicidade nos primórdios mais ancestrais de
tessitura subterrânea deste trabalho, por ter me ensinado que se perder também é caminho,
por ter me oferecido sua mão na descoberta de meus próprios afetos.
A Ailton Siqueira, por ter acompanhado desde o início minhas deambulações acadêmicas,
sempre com aconselhamentos argutos e uma amizade sem preço, operadora de escutas e
trocas que se mostraram tábuas de salvação.
A Paulino Tarraf, por ter equipado meu espírito com as mais extraordinárias armas para
incursionar pelos inóspitos territórios que circunscreveram e atravessaram este trabalho. A
presença de seu nome em minha lista de agradecimentos é ainda mais justificada por ele ter
me ensinado a “experienciar” e compreender, nos mais diversos âmbitos, a potência afetiva
representada pela gratidão.
Aos meus pais, por terem se esforçado em acreditar no caos organizador de que tanto lhes
falei. Sem esse esforço, talvez este trabalho não tivesse existido.
4
The rose is obsolete
But each petal ends in an edge…
(William Carlos Williams)
Quando partiremos rumo à felicidade?
(Charles Baudelaire)
Não existe sabedoria sem um laivo de demência
(Montesquieu)
Loucura por loucura, fiquemos com as mais nobres
(Gustave Flaubert)
Há sempre um pouco de loucura no amor,
mas há sempre um pouco de razão na loucura
(Friedrich Nietzsche)
Es el amor lo más trágico que en el mundo y en
la vida hay; es al amor hijo del engaño y parte
del desengaño; es el amor el consuelo en el
desconsuelo; es la unica medicina contra la
muerte, siendo como es de ella hermana
(Miguel de Unamuno)
As noites estão grávidas e ninguém
conhece o dia que nascerá
(Provérbio turco)
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RESUMO
Esta dissertação acompanhar a emergência da problemática da afetividade humana
ao longo da obra de Edgar Morin, realizando uma incursão que parte do turbilhão afetivo
constituinte do homem e se estende até a ética e a utopia vislumbradas a partir do
pensamento complexo. Nesse percurso, será destacada também a questão do amor.
Palavras-chave: Antropologia fundamental, Pensamento complexo, Afetividade, Amor,
Ética.
ABSTRACT
This dissertation aims at following the emergence of issues concerning human feelings
through the works of Edgar Morin by delving into the vortex which makes up mankind and
going as far as the ethics and the utopia unfolded by the complexity theory. Love will also
be addressed as part of these reflections.
Keywords: General anthropology, Complexity theory, Feelings, Love, Ethics.
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LISTA DE ABREVIATURAS
A fim de facilitar a leitura da dissertação, optamos por abreviar o título das obras de Morin
citadas com mais frequência. Para detalhes acerca dessas obras e para as outras obras de
Morin utilizadas como referência, ver bibliografia.
APS - Amor, poesia e sabedoria
BFP - Em busca dos fundamentos perdidos: textos sobre o marxismo
CC – Ciência com consciência
CHI - O cinema ou o homem imaginário
DC - Dialogue sur la connaissance
DNH - Dialogue sur la nature humaine
HM – L´homme et la mort
IPH- Introduction à une politique de l´homme.
JC - Journal de Californie
LCHI - Prefácio à nova edição francesa de O cinema ou o homem imaginário
LCVP - La Complexité, vertiges et promesses
LS - Les stars
LTBF - La tête bien faite
LVS- Le vif du sujet (entitulado, na tradução brasileira, “O X da questão: o sujeito à flor da
pele”)
M2 – O método 2: a vida da vida.
M3 - O método 3: o conhecimento do conhecimento.
M4 - O método 4: as idéias: habitat, vida, costumes, organização.
M5 - O método 5: a humanidade da humanidade: a identidade humana.
M6 - O método 6: ética.
7
MD - Meus Demônios
NCJN- Nul ne connaît le jour qui naîtra
PP - O Enigma do homem (O Paradigma Perdido)
TP – Terra-Pátria
8
SUMÁRIO
RESUMO (ABSTRACT)......................................................................................................5
LISTA DE ABREVIATURAS.............................................................................................6
INTRODUÇÃO...................................................................................................................11
I - A ANTROPOLOGIA FUNDAMENTAL E O HOMEM GENÉRICO
1. A ciência não nascida............................................................................................18
2. A grande disjunção................................................................................................18
3. A necessária conjunção.........................................................................................20
4. A ciência do homem..............................................................................................22
5. A unidade humana.................................................................................................25
6. O homem genérico e os afetos..............................................................................27
II – ECCE HOMO: O SAPIENS –DEMENS
1. A grande novidade...............................................................................................30
2. A loucura no coração do humano........................................................................33
3. As erupções do demens.......................................................................................38
a) A hubris.....................................................................................................38
b) As demências destruidoras........................................................................40
c) O homo consumans, ludens, esteticus, poeticus........................................44
d) O amor no estado poético.........................................................................52
e) Estado poético e misticismo......................................................................54
4. O cérebro.............................................................................................................55
a) A escola de complexidade.........................................................................55
b) Computo e cogito......................................................................................58
c) A consciência ............................................................................................61
9
d) Rumo à afetividade no âmbito cerebral: a psique e a alma.......................63
e) A afetividade no coração da máquina cerebral..........................................65
5. Animalidade/humanidade da afetividade e do amor.............................................69
a) O supermamífero.......................................................................................69
b) O Eros........................................................................................................71
c) O desenvolvimento da afetividade ao longo da hominização...................73
6. As grandes angústias.............................................................................................75
a) A insuportável realidade e a neurose.........................................................75
b)A noção de self-deception..........................................................................77
c) As participações afetivas e o amor............................................................78
d) As transformações da consciência e o desabrochar do amor....................79
7. O sujeito sapiens-demens......................................................................................80
a) Egoísmo e altruísmo..................................................................................80
b) A liberdade possível..................................................................................83
III – O QUADRIMOTOR AFETIVO: COMPREENSÃO, ANALOGIA, MITO,
IMAGINÁRIO
1. O digital e o analógico...........................................................................................87
2. Explicação e compreensão...................................................................................89
3. Pensamento mitológico e pensamento racional.....................................................91
4. O mito do amor......................................................................................................97
5. O real e o imaginário.............................................................................................98
6. O cinema e as participações afetivas...................................................................101
IV- A PRESENÇA DOS AFETOS NO CONHECIMENTO HUMANO
1. O erro, grande companheiro da aventura sapiental............................................110
2. A afetividade, grande companheira da aventura cognitiva.................................111
3. O delírio da razão................................................................................................113
4. A ambivalência: a afetividade como amiga-inimiga do conhecimento..............114
5. Razão e paixão....................................................................................................116
10
V – SOMOS SAPIENS-DEMENS: E AGORA?
1. Utopia..................................................................................................................118
2. O papel da consciência........................................................................................120
3. A sociedade de alta complexidade e o amor ......................................................123
4. O progresso como retorno às origens..................................................................129
5. Ética.....................................................................................................................131
a) A tríade ética............................................................................................131
b) O amor, fé ética.......................................................................................132
c) Ecologia da ação, auto-análise e moral da compreensão........................137
d) O perdão..................................................................................................140
e) A maternidade da fraternidade................................................................141
f) O marranismo, fonte da fraternidade universal........................................145
6. Eros e Tanatos.....................................................................................................148
a) O diabolus...............................................................................................148
b) O amor e o ódio.......................................................................................150
c) A religação dos saberes como resistência à crueldade do mundo...........152
d) Consciência e alta complexidade social..................................................153
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................155
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................158
11
INTRODUÇÃO
Baseando-nos tanto em suas obras científicas como em suas entrevistas e escritos
autobiográficos, pretendemos realizar uma incursão pela obra de Edgar Morin,
acompanhando a maneira como em sua “antropologia fundamental” surgem as questões
referentes à afetividade e, também, como desta última emerge a temática do amor.
Pretendemos situar a afetividade no pensamento complexo, apontando seus enraizamentos,
os modos como se estrutura e se organiza, bem como suas implicações. Mostraremos como
Morin inscreve a afetividade (e seus variados desdobramentos) no âmbito dos dinamismos
dialógicos ininterruptos e dos circuitos retroativos e reflexivos que atravessam sua obra
como um todo. Nesse sentido, não pretendemos em momento algum reduzir todos os
macrotemas do pensamento complexo aqui apresentados à afetividade ou ao amor, mas
apenas tentar desenhar o lugar, o papel e o desenrolar destes últimos no interior de tais
macrotemas.
O modo como Morin opera a questão da afetividade se insere em sua proposta de
considerar a situação existencial do ser humano, presente na literatura e nas artes, mas
ainda bastante ausente do conjunto das ciências humanas. Ele critica as ciências humanas
por terem tirado “todo o sentido desses termos: ser jovem, velho, mulher, homem, nascer,
existir, ter pais, morrer”, já que “tais palavras não remetem apenas a categorias sócio-
culturais” (M5, p. 49) ou a estruturas impessoais e abstratas. Para Morin, uma das
características do "pensar mal" é justamente privilegiar o quantificável e "eliminar tudo
aquilo que o cálculo ignora (a vida, a emoção, a paixão, a infelicidade, a felicidade)" (M6,
p. 61). Já no final dos anos sessenta, o autor se lamentava pelo fato de as ciências terem se
tornado “um raio-X do real, pois elas fazem aparecer, quase como em uma radiografia, a
estrutura matemática do real, do qual dissolvem a substância, reduzida a uma sombra
impalpável" (LVS, p. 343). Com isso, desaparece também o homem - que para Morin é um
homem de carne e osso, marcado sobretudo pelo turbilhão afetivo. Nesse ponto, são
exemplares suas críticas ao estruturalismo, por vezes bastante virulentas:
12
“como um dia, nas ciências humanas, pôde deixar de existir acontecimento, vida, amor, e
morte, apenas estruturas? Como um sequestro epistemológico justificou uma
pseudocientificidade triunfal? Como os mais finos letrados e filósofos decidiram que o
homem não existia, que ele era apenas uma invenção arbitrária? Como pessoas refinadas
eliminaram a noção de sujeito como pura ilusão? Como o dom musical dos meninos Mozart
e Menuhin foi varrido como pura ideologia? Como os mais sagazes historiadores decidiram
que os acidentes históricos não passavam de espuma de uma história sem histórias? Como
as mais arrasadoras tolices, sob a condição de serem envolvidas por uma renda fina,
tomaram a forma de leis e de dogma?” (MD, p. 213)
Ou, mais sinteticamente: "[o pensamento estruturalista] têm as virtudes e as insuficiências
do raio X: revela o esqueleto ocultando as carnes" (LVS, p. 85).
Como pano de fundo para a problemática central deste trabalho, cujo nó górdio
constitui-se justamente nessas “carnes”, apresentamos no primeiro capítulo algumas
considerações sobre o paradigma no interior do qual o anthropos deve ser estudado e
apreendido. Isso fará com que inevitavelmente desemboquemos na noção de “homem
genérico” de Marx, que, ao ser ampliada por Morin, introduz no trabalho a questão da
afetividade. Assim, nesse capítulo preparamos o terreno para que as facetas da afetividade
aqui analisadas sejam compreendidas a partir da superação da alternativa ontológica entre
natureza e cultura, tão consagrada na velha ciência. A afetividade enraíza-se sempre em
uma animalidade e se inscreve no mundo da vida, nunca podendo ser compreendida de
modo antropocêntrico.
O segundo capítulo busca explicitar como a problemática dos afetos encontra-se no
centro da noção de homo sapiens-demens, grande núcleo da Antropologia Fundamental ou
Geral e o modo como esta se contrapõe a uma antropologia racionalística. A afetividade é
compreendida como ligação entre homo sapiens e homo demens: ela é a encruzilhada entre
as duas grandes facetas humanas.
A partir da antropologia complexa, Morin busca sublinhar o papel de instâncias,
ligadas à parte mais afetiva do homem, que se encontram inexoravelmente inscritas na
maneira como o sapiens-demens percebe, experimenta e produz a realidade: a
compreensão, a analogia, o imaginário e o pensamento simbólico-mitológico-mágico.
Trata-se do que aqui chamamos “quadrimotor afetivo”, tema do terceiro capítulo.
Por conseguinte, a problemática dos afetos também despontará no exercício da
ciência e de qualquer ato cognitivo humano, o que será abordado no quarto capítulo. Diante
do caráter passional que tem o apego às nossas idéias, Morin pondera que a afetividade
13
invade o mundo do saber e do pensamento.
No último capítulo, fazemos uma incursão no horizonte utópico e no plano ético,
surgidos a partir do pensamento complexo, os quais se apóiam sobre a noção de homo
sapiens-demens e se valem de uma aposta e de uma fé nos chamados “aspectos róseos da
afetividade”.
Morin não realiza nenhuma grande reflexão sistemática sobre o amor, considerado a
“emergência maior da afetividade”; este é um tema que brota, carregado de intensidade,
quando o autor se volta a outras temáticas. Acompanharemos alguns desses momentos de
surgimento do amor. O amor advirá a partir do “estado poético”, do qual constitui uma
“emergência suprema”. Desempenhará papel primordial na sublimação das angústias
existências que assolam o sapiens-demens. Ocupará um lugar central no que Morin
considera seu "misticismo". A partir dos trabalhos do psicólogo norte-americano Julian
Jaynes, veremos como o amor encontra-se ligado ao pleno desenvolvimento da consciência
individual. Sempre enraizado na animalidade humana, o amor também apresenta-se sob a
roupagem de Eros, emergindo a partir do encontro entre espírito e sexo, entre pulsão e
psique, constituindo-se em uma força antropológica fundamental, cujo poder subversivo
ignora barreiras e transgride interditos sociais. Além disso, o amor é identificado com um
dos princípios que comandam a formação do indivíduo-sujeito, o princípio de inclusão. O
amor será o grande mito pessoal de Morin, como ele próprio admitirá ao mostrar como o
pensamento mítico jamais pode ser abolido. Finalmente, será o amor, agora entendido
como solidariedade e fraternidade, a prévia necessária para a manutenção do tipo de
sociedade que se encontra no horizonte utópico de Morin, a “sociedade de alta
complexidade”. E é a fé no amor, na compaixão, na fraternidade, no perdão o que ilumina e
nutre os fundamentos da ética e constitui-se como esforço de “resistir à crueldade do
mundo”. Na obra de Morin, a palavra “amor” encontra-se freqüentemente antes de termos
como “sobretudo” e “principalmente”: sempre destacado, o amor será sempre entendido
como um cume, como ponto máximo de alguma virtude.
Do mesmo modo como não pretendemos reduzir tudo à afetividade - não se trata de
qualquer determinismo de cunho afetivo - deixaremos claro que o amor não adquire um
papel messiânico na obra de Morin, por mais que sua importância seja reiteradamente
sublinhada.
Nesse trabalho acompanhamos, assim, o percurso que vai do turbilhão
14
antropológico de afetividade até a ética complexa da compreensão e da fraternidade,
situando o papel da afetividade e localizando os momentos de emergência do amor. Uma
das razões que nos levam a abraçar esse segmento diz respeito ao fato de que desejamos
mostrar, por meio do pensamento de Morin, quem é o homem – daí o esmiuçamento do
turbilhão acima citado -, e também o que fazer daquilo que o homem é (daí o fato de o
trabalho desembocar na ética).
A relação de Morin com a afetividade marca não apenas seu pensamento, mas
também a maneira como ele se apresenta enquanto intelectual diante do público. Em um
estudo sobre Claude Lévi-Strauss, Maurice Godelier e Edgar Morin - esses três pensadores
que, a despeito de suas singularidades, encontram-se "sintonizados quanto aos objetivos
referentes à ciência do homem" - Edgard de Assis Carvalho comenta que "há algo, porém,
que distingue Morin dos demais, expresso no vigor de suas explosões subjetivas, na
intimidade de seus diários, nas revelações de suas origens, nas desavenças de sua família,
nas agruras de sua múltipla identidade neomarrana grifada por um sincretismo franco-
ibérico-grego-judaico-turco-italiano" (CARVALHO, 2003, p. 103).
******
Falar a respeito de Edgar Morin é uma empreitada que reúne um sem-fim de
perigos. Um dos possíveis riscos dessa aventura é acabarmos realizando uma reflexão
excessivamente panorâmica e dispersiva. Essa é, aliás, também uma crítica freqüentemente
feita a Morin por seus detratores e um medo admitido pelo próprio autor: “a dispersão é a
ameaça permanente que pesa sobre minha abertura e sobre minha busca” (MD, p. 256). Isto
posto, destaquemos que a proposta deste trabalho é mais “enciclopedante
1
” do que
enciclopédica ou totalizadora, no sentido de colocar em movimento o conhecimento:
pretendemos fazer um trabalho com um centro bem definido, mas desejamos
simultaneamente abrir e fechar nosso objeto de estudo. Queremos, é verdade, fazer uma
incursão por um segmento da obra de Morin, mas fazendo um esforço para não impedir que
se notem os vários fluxos que atravessam esse segmento, para não insularizar o ponto que
norteará nossa reflexão. De qualquer maneira, acreditamos que uma certa dispersão talvez
1
Cf. MORIN, 2002 (d)
15
seja um efeito colateral inevitável de qualquer trabalho sobre Morin que se valha, em sua
tessitura, do próprio pensamento do autor. No que tange mais diretamente ao objeto central
do trabalho – a afetividade no pensamento complexo – julgamos pouco apropriada uma
abordagem que ponha de lado algumas temáticas mais gerais da complexidade, às quais os
afetos se ligam direta ou indiretamente. Sob pena de, em alguns momentos, aparentemente
afastarmo-nos da temática central do trabalho, pretendemos também mostrar os
enraizamentos da afetividade em domínios mais amplos, para assim abrir caminho ao seu
surgimento e para que ela possa ser compreendida justamente de modo complexo.
Há também, em um trabalho como este, os perigos referentes ao "falar sobre".
“How do you catch a cloud and pin it down?”, isto é, “como pegar uma nuvem e
emoldurá-la?” é o trecho de uma canção do musical A Noviça Rebelde. Essa pergunta paira,
ominosa, ao longo da elaboração desta dissertação. Como evitar os perigos da ânsia
demarcatória e classificatória, dos aviltamentos e mutilações que podem macular a
dissertação sobre qualquer autor, e ainda mais sobre um autor como Morin, que se esforça
no sentido de constituir um pensamento vivo, dinâmico, fluido e se coloca contra a
constituição de qualquer regra enregelada, qualquer esboço engessado do que quer que
seja? A física quântica, companheira de viagem do pensamento complexo, adverte-nos:
quando identificamos alguma coisa, imediatamente a retiramos do fluxo da vida. Dito de
outro modo, no exato momento em que fincamos um alfinete na borboleta para estudá-la,
ela deixa de ser a borboleta viva e inteira que antes voava... Em qualquer trabalho sobre
Morin, deparamo-nos com o mesmo problema com que este autor esteve às voltas quando
tentou falar sobre o amor, em Amor, Poesia e Sabedoria: “que a tentativa de elucidação não
seja traição, e muito menos ocultação. (...) A palavra elucidar torna-se perigosa se
acreditarmos na possibilidade de trazer à luz plenamente o que desejamos compreender”.
(APS, p. 11) Ora, se este é um trabalho sobre Morin, mas que é também imbuído de seu
pensamento em sua própria constituição e em seus pressupostos norteadores, devemos estar
cientes de todos esses perigos, devemos temer que nossa pata desajeitada caricature,
alinhave de modo insatisfatório ou avilte esse pensamento que, longe de ser um receituário,
é uma postura diante da vida, uma filosofia e um pensamento imbuídos de vida. O método
de Morin não é “descritivo, ao modo cartesiano, mas auxiliar, de modo complexo: ´pensa
por ti mesmo, e o método te ajudará´” (M3, p. 251)
O que esperamos é que sejamos capazes de abordar o pensamento complexo de
16
modo complexo. Na esperança de ter ingerido e assimilado a complexidade, gostaríamos de
perceber que a apreendemos, mais do que apenas a aprendemos, que a escutamos, mais do
que a ouvimos. Como diz um provérbio árabe, “ouvir é com o ouvido; escutar é mais para
dentro”. Esperamos, portanto, refletir a complexidade neste trabalho para além do mero
conteúdo; esperamos que ela esteja presente em sua forma, em sua alma.
Com isso, pretendemos, na tessitura desse trabalho, afastar-nos do velho paradigma
da ciência do Ocidente, que conduziu-nos, entre tantas mazelas, à fragmentação dos
saberes, esse "novo obscurantismo", perigoso justamente por advir “dos píncaros da
cultura”, permanecendo “invisível para a maioria dos produtores desse saber, que sempre
crêem produzir unicamente para as Luzes” (M3, p. 20), quando, na verdade, nossa
apregoada Era das Luzes está “na Noite e no Nevoeiro” (M3, p. 16). Estamos diante de uma
“patologia do saber” (M3, p. 19): algo como uma esquizofrenia cognitiva, onde, como
ocorre com o pensamento do esquizofrênico clínico, a cadeira, a mesa, o lustre e a poltrona,
por assim dizer, não formam nunca uma sala-de-estar. Como é impossível não ter idéias
gerais, então, com a fragmentação, as idéias gerais mais vazias reinam no espírito.
Evidentemente, há atrofias e mutilações do pensamento em toda e qualquer cultura: em
nossa civilização, temos a compartimentação do conhecimento.
A elaboração da epistemologia complexa é entendida “um método voltado para o
pensamento menos mutilador possível e a maior consciência das mutilações
inevitavelmente operadas para dialogar com o real” (M3, p. 44). Estamos cientes, portanto,
dos riscos, falhas e obstáculos intrínsecos a uma empreitada como esta; mas esperamos que
esta mesma consciência nos auxilie a evitar tais impasses. Impasses, aliás, reconhecidos
pelo próprio Morin, quando afirma que a “tragédia da complexidade” se situa em dois
níveis:
“Em nível do objeto, somos postos incessantemente diante da alternativa entre, de um lado,
o fechamento do objeto de conhecimento, que mutila a solidariedade com outros objetos
bem como com o seu meio (e exclui, em conseqüência, os problemas globais e
fundamentais) e, por outro lado, a dissolução dos contornos e das fronteiras que afoga todo
objeto e condena-nos à superficialidade. Em nível da obra, o pensamento complexo
reconhece ao mesmo tempo a impossibilidade e a necessidade de totalização, de unificação,
de síntese. Deve pois tragicamente visar à totalização, à unificação, à síntese, mesmo
lutando contra a pretensão a essa a totalidade [Morin sempre citará Adorno: “a totalidade é
a não-verdade”]
2
, unidade, síntese, com a consciência absoluta e irremediável do caráter
2
Fundamentando-se na lógica de Tarski, segundo a qual um sistema semântico não pode explicar totalmente a si mesmo,
e no teorema de Godel, que entende que “um sistema complexo formalizado não pode encontrar em si mesmo a prova de
>>>
17
inacabado de todo conhecimento, de todo pensamento e de toda obra.” (M3, p. 38)
Clamando pelas potencialidades do espírito humano (como fará com frequência),
Morin admite que “só podemos conhecer fragmentando o real e isolando um objeto do todo
do qual faz parte. Mas somos capazes de articular os saberes fragmentários, reconhecer as
relações todo/partes, complexificar o conhecimento e assim, sem, contudo, reconstituir as
totalidades nem A Totalidade, combater a fragmentação”. (M3, p. 254). Certamente não
pensamos que essa tragédia é somente a nossa, do estudante, do universitário, do
pesquisador. Trata-se sobretudo da tragédia do saber moderno. Embora a falta de
completude esteja no coração da consciência moderna, nós acabamos por “construir nossas
obras de conhecimento como casas com teto, como se o conhecimento não estivesse a céu
aberto” (M3, p. 39). Esperamos, neste trabalho, assinalar esta brecha, em vez de dissimulá-
la. Desejamos que ele seja acabado, mas não o queremos realizado, no sentido de esgotado,
como uma flecha que atingiu precisamente o seu alvo. Essa distinção é encontrada no
terceiro volume de O Método:
“É preciso não confundir realização (achievement, em inglês) e acabamento. Uma obra
deve ser acabada: o autor precisa atingir o essencial de sua informação, o extremo do seu
pensamento e o melhor da sua expressão para que ele possa atualizar ao máximo as
virtualidades que carregava no ponto de partida.” (M3, p. 263)
sua validade” (M3, p. 24), a epistemologia complexa só pode concluir que a renúncia à completude e ao exaustivo é uma
condição do conhecimento. Entretanto, é sempre possível a criação de meta-pontos de vista: Tarski e Godel também nos
indicam que “eventualmente é possível remediar a insuficiência autocognitiva de um sistema pela constituição de um
metassistema capaz de envolvê-lo e de considerá-lo como sistema-objeto” (M3, p. 24), sem que, com isso, tenhamos a
pretensão de ter elaborado “uma verdadeira metalinguagem, um metapensamento, uma metaconsciência” (M3, p. 25).
18
CAPÍTULO I - A ANTROPOLOGIA FUNDAMENTAL E O HOMEM
GENÉRICO
1. A ciência não nascida
Na abertura de O Paradigma Perdido, livro que constitui uma espécie de trailer dos
seis volumes de O Método e que anuncia a nova problemática de Morin, deparamo-nos com
um pequeno quadro: uma cronologia de alguns acontecimentos de importância fundamental
para o homem. Somos lembrados, entre outras coisas, que nossa espécie tem mais de cem
mil anos; que o Estado já conta com mais de dez mil anos; que a Filosofia ultrapassou dois
mil e quinhentos anos. Mas eis que, ao final dessa lista, constatamos a idade da ciência do
homem: “0 anos”. Somos assim imediatamente levados a nos perguntar que ciência é essa
que ainda não nasceu (e a ciência do homem não chega nem a ser “um edifício a ser
completado”, mas “uma teoria a construir” - PP, p. 228), a despeito de todo o conhecimento
acumulado ao longo de uma época que não tem precedentes na velocidade com que
ampliou nossos saberes acerca do mundo. Poderíamos aqui, como faz Morin no início de O
Método 5, lembrarmo-nos de Heidegger, para quem nenhuma época soube menos o que é o
homem. Hoje, “a mente humana é todo-poderosa e totalmente frágil. Todo-poderosa em
poder de manipulação. Frágil em poder de compreensão.” (M5, p. 256). Tal
desconhecimento, descobriremos, se dá mais por má ciência do que por ignorância.
2. A grande disjunção
Em grande medida desde Descartes e da modernidade, o homem se coloca contra a
natureza, buscando dominá-la e sujeitá-la, deixando de nela compreender nosso
enraizamento. “Ausente das ciências do mundo físico (embora também seja uma máquina
térmica), separado do mundo vivo (mesmo sendo um animal), o homem é, nas ciências
humanas, dividido em fragmentos isolados” (M5, p.16). Ou seja, estamos profundamente
marcados pela fragmentação dos saberes, que nos impede de perceber a complexidade
humana e o modo como ela se articula com a vida, o mundo, o cosmos. Temos dificuldade
de conceber a que nos remete a própria etimologia da palavra complexidade (complexus:
19
aquilo que é tecido junto).
A antropologia, em que a noção de homem desintegrou-se em disciplinas separadas
e afastou-se de sua dimensão biológica, tornou-se uma antropologia sem vida. Estamos
visceralmente marcados por um paradigma que traça uma rígida linha demarcatória entre
natureza e cultura, animalidade e humanidade, entre ciências da vida e ciências do homem,
desprezando assim a totalidade bioantropossociológica humana. Muitos são aqueles que
ainda acreditam que construímos, fora da natureza, o reino independente da cultura, como
se a natureza humana fosse uma matéria-prima dócil, maleável, quase inerte, à qual apenas
a cultura, a sociedade, a história dão forma. A natureza é vista como algo "de que o homem
se subtraiu e não, de modo algum, como aquilo que o fundamenta” (PP, p. 20). O espírito
humano e a sociedade humana são vistos, por boa parte da antropologia do século XX,
como singulares na natureza, e “devem encontrar sua inteligibilidade não só em si, mas
também em antítese a um universo biológico sem espírito e sem sociedade” (PP, p. 22).
Trata-se de um antropologismo que remete à natureza os mecanismos do instinto e
dos impulsos descontrolados, ao passo que a sociedade humana, “maravilha de
organização”, se definiria “por oposição às multidões gregárias, às hordas e às matilhas”
(PP, p. 22). Tudo se passa como se o cultural e o social se constituíssem de uma substância
própria, original. Passa-se, assim, ao largo de alguns paradoxos: “(...) se o ser biológico do
homem é concebido não como produtor, mas como matéria-prima que a cultura amolda,
então de onde vem a cultura? (...) como explicar [o homem] numa teoria que só se refere a
seu aspecto antinatural?” (PP, p.23, grifos do autor). A cultura não opera em uma tábula
rasa sobre a qual se inscreve de acordo com seus padrões; a antropologia não pode se
reduzir “a uma tênue faixa psicocultural flutuando como um tapete voador sobre o universo
natural” (PP, p. 211).
"A antropologia cultural quis sempre ignorar que o homem vivo não era amassado
pela cultura como massa para modelar e, finalmente, alcançou o beco sem saída de uma
personalidade de base sem qualquer base genética" (PP, p. 185). Contudo, por outro lado,
"a biologia ignorou durante muito tempo que a cultura representava um papel ativo no
estoque hereditário, determinando pressões seletivas sobre o genótipo e intervindo na
determinação do fenótipo” (idem). O problema, então, encontra-se dos dois lados,
epistemologicamente fechados um ao outro: tanto as ciências do homem quanto as ciências
da vida, incomunicáveis entre si, tornaram-se teorias fechadas, fragmentadas, reducionistas
20
e simplificadoras, fazendo ora do homem uma entidade separada do mundo animal
(antropologismo), ora uma entidade estritamente animal (biologismo). Se uma nova
ciência, capaz de reinserir o homem na natureza, se faz necessária, isso não significa
dissolvê-lo, perdê-lo de vista em benefício de um determinismo biológico: abrir mão do
antropologismo não significa substituí-lo por um biologismo que peque igualmente por seu
fechamento e sua insularidade. Não se trata de substituir um conceito estanque por outro,
tampouco de reservar essa abertura paradigmática apenas às ciências do homem. Aliás,
enquanto o objeto de estudo da antropologia é “o mais complexo de todos” (PP, p. 211) e a
antropologia apenas começa a conceber a complexidade do humano, a biologia, que se
debruça sobre objetos menos complexos, já está, há mais tempo, baseada em princípios
epistemológicos e paradigmáticos menos redutores e disjuntores.
Não se trata tampouco de atacar a noção de homem. O que se pretende é redefinir e
redesenhar o campo antropológico e se afastar de uma concepção insular de homem,
surgida a partir do arquipélago das disciplinas fechadas sobre si mesmas. É necessário que
nos situemos para além de qualquer forma de pensamento reducionista que faz a
multidimensionalidade do homem – que faz o próprio homem – desaparecer. “Tornado
invisível e ininteligível, o homem desaparece em benefício dos genes, para o biólogo, das
estruturas, para o perfeito estruturalista, de uma máquina determinista, para o mau
sociólogo.” (M5, p. 65).
3. A necessária conjunção
O avanço da ciência permitiu que se abrissem um ao outro domínios até então
altamente compartimentados e que se ignoravam entre si: o mundo físico, o mundo
biológico, o mundo humano. Essas aberturas - oriundas, por exemplo, da ecologia, da
etologia, da sociobiologia - representaram revoluções paradigmáticas, na medida em que
mostraram como cada um desses campos era interdependente um do outro; como, mais do
que uma separação ou uma justaposição entre esses domínios, o que parecia haver entre
eles era antes uma interação contínua: uma relação em circuito, em anel (boucle). Em O
Paradigma Perdido, somos freqüentemente remetidos à obra de Serge Moscovici, que, em
A sociedade contra a natureza, insiste: “tudo nos incita a por fim à visão de uma natureza
não-humana e de um homem não-natural” (PP, p. 18). Deparamo-nos com um animal
21
humano e com uma sociedade natural.
Com a ecologia – um ciência já comandada por um paradigma da complexidade –
aprendemos que “a natureza já não é desordem, passividade, meio amorfo: é, sim, uma
totalidade complexa” (PP, p. 32). As revelações oriundas da etologia e da sociobiologia
também trazem conseqüências irreversíveis para o paradigma fechado do antropologismo:
aprendemos com elas que a comunicação, o símbolo, o rito, longe de serem exclusividade
humana, possuem raízes que remontam à evolução das espécies. A sociedade deixa de ser
vista como criação humana; os agrupamentos animais, de serem entendidos como
comandados por obediência a um instinto cego ou de se resumirem a um ajuntamento sem
forma, baseado em uma sujeição mecânica de seus membros: "a sociologia – ciência
humana – perde sua insularidade e passa a ser a coroação da sociologia geral – ciência
natural” (PP, p. 88). Não apenas descendemos dos primatas via fisiologia/anatomia; o nosso
corpo social também se insere nessa afiliação. A cultura não repousa sobre o vazio, mas
sim sobre uma primeira complexidade constituída pela sociedade dos primatas e dos
primeiros hominídeos. A cultura “não é primeiramente a infra-estrutura da sociedade, ela se
torna infra-estrutura da alta complexidade social, o núcleo gerador da alta complexidade
hominídea e humana” (PP, p. 89)
Essa relação conjuntiva entre natureza e cultura faz com que Morin se indague:
“como não ver que o mais biológico – o nascimento, o sexo, a morte – é, ao mesmo tempo,
o mais impregnado de símbolos e de cultura?” (M5, p. 53). Somos 100% natureza e 100%
cultura. Essa lógica pouco linear – não somos metade uma coisa, metade outra - significa
que "nem a vida nem o homem podem ser concebidos como entidades substanciais, claras,
repulsivas, nem mesmo (ainda que isso seja um progresso) associativas” (PP, p.58). As
características biológicas e culturais não são nem justapostas nem superpostas. São “os
termos de um processo cíclico recomeçado e regenerado incessantemente” (M5, p. 55). Os
dois continentes – o biológico e o cultural – estão contidos um no outro. Assim, surge um
ponto de vista teórico capaz simultaneamente unir e distinguir esses dois domínios (pois,
repetimos, não se trata de dissolver um no outro: ambos possuem suas singularidades
diferenciais). Devemos construir uma ciência capaz de conceber uma “solda
epistemológica”, uma conexão entre o biológico e o cultural que reconhecesse a
22
complexidade de ambos e “concebesse a auto-organização (a auto-eco-organização)
3
. A
passagem da biologia à antropologia poderia realizar-se “pela passagem de uma
complexidade à outra” (M5, p. 55).
O homem não é mais entendido, portanto, como uma entidade estanque em relação
à natureza: ele é "um sistema aberto, em relação de autonomia/dependência organizadora
no seio de um ecossistema” (PP, p. 32). Não perdemos o campo humano, que continua
possuindo autonomia (o circuito do sistema sócio-cultural torna-se apto a autoproduzir-se
por si próprio), ainda que esta seja relativa: uma autonomia dependente.
Deparamo-nos com uma profunda presença do jogo do circuito
biopsicossociocultural na constituição do indivíduo. A herança cultural combina-se, de
modo complexo, ou seja, simultaneamente complementar, concorrente e antagônico, com a
herança genética. A totalidade da personalidade de um indivíduo “é o produto da
interferência dos dois princípios generativos, o biológico e o cultural e, evidentemente da
interferência complementar, concorrente, antagonista dos acontecimentos singulares de sua
própria história” (PP, p. 185).
Encontramos uma elaboração cultural ligada a uma evolução biológica: esses dois
pólos se inter-relacionam e interferem-se mutuamente no processo de hominização,
entendido como “uma morfogênese complexa e multidimensional, resultante de
interferências genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais”, em que “as variações ora
de um constituinte, ora de outro, fazem, cada uma por sua vez, variar diversamente as
outras” (PP, p. 65). O que chamamos o homem – o campo propriamente antropológico -
deve ser compreendido no âmbito de um sistema genético-cérebro-sócio-cultural
multidimensional e multipolarizado.
4. A ciência do Homem
Em decorrência disso, a antropologia deve sempre operar na trindade complexa
3
Esclareçamos, desde já, que a noção de "auto-organização", ou, como Morin prefere mais precisamente chamar, a "auto-
eco-organização" - uma palavra-chave da complexidade - diz respeito ao paradoxo da organização viva: este é um sistema
que possui autonomia relativa, extraindo informação, organização, energias físicas e energias biológicas do seu meio. Há
uma autonomia que se constitui na e pela dependência. Essa noção também evidencia o modo como a organização viva
associa ordem e desordem, organizando-se com a desordem e a desintegração, contra as quais, ao mesmo tempo, luta. Eis
um princípio que só ganha inteligibilidade se admitirmos também a complementaridade do que o velho paradigma
costuma apenas opôr.
23
composta por indivíduo, sociedade e espécie (a grande tríade da Antropologia
Fundamental), em que cada uma dessas instâncias mantém relações simultaneamente
complementares, concorrentes e antagônicas entre si. Os elementos desse tripé constituem
“um circuito sem começo nem conclusão entre espécie, sociedade, indivíduo, e já vimos
que tudo o que se refere à complexidade de um também se refere à complexidade do outro,
que o desenvolvimento da espécie, da sociedade, do indivíduo estão inter-relacionados”
(PP, p. 102).
A verdadeira realidade do homem não está “só nesses termos, mas também nas suas inter-
relações, e tem de ser compreendido, igualmente, que essa relação não é somente
complementar e antagonista, mas também incerta” (PP, p. 214, grifo do autor). Por isso,
“não nos podemos formular em termos de hierarquia” – não podemos proclamar um desses
termos como subordinando os outros, não é possível que isolemos um deles e o entendamos
como finalidade última ou fundamento primordial: “não podemos nos formular em termos
de realidade última ou primeira, de fim, espécie, sociedade, indivíduo; é preciso considerar
que eles são simultaneamente fim e meio um do outro e que essa relação é, ao mesmo
tempo, complementar, concorrente, antagonista e descontínua.” (PP, p. 215, grifo do autor).
Diante dessa intricada relação marcada pela incerteza, pela descontinuidade e pela abertura
de um termo em relação ao outro, o homem surge como o ser que “leva ao paroxismo o
jogo incerto da complexidade” (PP, p. 215). A humanidade é composta de zonas de
ambigüidade, de incerteza e de contradições em um nível nunca antes visto na história do
cosmo.
O homem, esse sistema auto-organizacional total, possui um epicentro, algo que
Morin chega a considerar o nó górdio da antropologia, uma verdadeira “placa giratória
biocultural”, que poderia ser erroneamente entendido tão somente como um órgão: trata-se
do cérebro humano, tema medular de sua Antropologia Fundamental, ao qual será dedicado
o terceiro volume de O Método.
Assim, o fundamento de uma verdadeira ciência do homem é policêntrico: o homem
não tem uma essência específica que poderia ser reduzida apenas à biologia ou à cultura.
De nada o velho humanismo serviria na elaboração dessa ainda inexistente ciência do
homem: Morin o define como “a filosofia de um homem cuja vida sobrenatural escapa ao
destino comum das criaturas vivas” (PP, p. 19). O pensamento complexo busca então a
construção de um novo humanismo – mas um humanismo hominizado, cujo centro é o
24
homem complexo biocultural – a partir de uma nova ciência do homem que se situe além
dos fechamentos disciplinares, das esquizofrenias cognitivas, da fragmentação e
hiperespecialização dos saberes, das disjunções mutiladoras, dos reducionismos
disciplinares unidimensionais, enfim, dessa Torre de Babel dos conhecimentos que, tendo
caráter paradigmático, têm marcado o pensamento ocidental.
É nesse contexto que se situa antropologia complexa: uma Antropologia Geral ou
Fundamental, uma antropologia no sentido do pensamento alemão do século XIX e "não no
sentido anglo-saxônico"; ou seja, "uma ciência ou teoria geral do homem" (LVS, p. 71).
Uma antropologia tanto científica (verificadora de dados, empírica, fundada no espírito de
hipótese e na aceitação da refutabilidade) quanto filosófica (reflexiva), que, portanto,
articula também ciência e filosofia.
4
Em Meus Demônios, talvez sua obra mais
autobiográfica, ficamos sabendo como Morin, sobretudo após a leitura dos Manuscritos
econômico-filosóficos de Marx, chegou
“às terras da antropologia, não a antropologia cultural ensinada na universidade, e que é
uma disciplina a-histórica e a-biológica dedicada às populações arcaicas, mas a ciência
global compreendendo em si as dimensões da economia, da psicologia, da história e,
particularmente, do mito e da biologia” (MD, p. 32).
Essa antropologia geral não se debruça unicamente sobre a esfera restrita das sociedades
arcaicas. Ao compreender que estas últimas representam apenas uma entre as várias
nascenças do homem, volta-se também para as chamadas sociedades históricas, pois “as
últimas possibilidades do sapiens são as mais significativas, as mais reveladoras” (PP,
p.219). Enfim, a antropologia de Morin não é etnografia ou etnologia, mas um saber
enciclopedante (sem ser enciclopédico), de caráter transdisciplinar, que tenta superar a
dicotomia humanidade-animalidade e restituir ao homem a unidade da qual ele foi esfoliado
por conta da fragmentação dos saberes. José Luis Solana Ruiz, em seu abrangente estudo
sobre a obra de Morin a partir da perspectiva da antropologia complexa, entende, nesse
sentido, que
“a antropologia complexa não deve ser interpretada como tentativa de estabelecer uma
espécie de catálogo, acumulativo e completo, de todos os conhecimentos físicos,
biológicos, psicológicos, sociológicos disponíveis. Essa não é nem a intenção de Morin,
4
Tendo diagnosticado, entre as inúmeras fraturas no domínio dos saberes, uma disjunção entre ciência e filosofia, a
epistemologia complexa propõe que seja adotada uma “dialógica binocular”, que compreenda que “ciência e filosofia
poderiam mostrar-se a nós como duas faces diferentes e complementares do mesmo: o pensamento” (M3. p. 30).
25
nem a função de uma antropologia geral. A antropologia complexa deve ser entendida
como um princípio de complexificação de nossa concepção de ser humano, que nos permite
tomar consciência de sua multidimensionalidade biocultural e evitar os reducionismos
biológicos e culturais, tornando viável a elaboração de uma adequada compreensão do
humano” (RUIZ, 2001, p. 13, tradução minha).
5. A unidade humana
Mais do que criar condições para o surgimento de um paradigma que conjuga
ciências da vida e ciências do homem, a antropologia fundamental ou geral também
desemboca na idéia da unidade humana. Seu foco principal será o Homem, mais do que
vários homens que não se comunicam entre si. Essa idéia de unidade, que certamente
questiona o relativismo cultural, tão presente nas ciências humanas, não se coloca na outra
ponta da dicotomia unidade-multiplicidade. O conhecimento que Morin propõe é complexo
porque concebe de modo inseparável e simultâneo a unidade e a diversidade humanas,
porque vê unidade na multiplicidade e multiplicidade na unidade. Trata-se de uma unitas
multiplex, unidade múltipla que vê a multiplicidade como seu complemento, mais do que
como seu oposto. Unidade e diversidade (assim como natureza e cultura) estão contidas
uma na outra, como os elementos yin-yang. A unidade produz diversidade, a diversidade é
produtora de unidade. Novamente, a humanidade (que, como vimos, leva a incerteza e a
ambigüidade da tríade indivíduo-sociedade-espécie ao paroxismo) é portadora de um ápice:
ela “leva ao mais alto grau o paradoxo do uno e do múltiplo” (PP, p. 223). Mais uma vez,
juntam-se aspectos que, na scienza vecchia, separavam-se e excluíam-se. Como lemos em
O Método 5 – A Humanidade da Humanidade,
“Quanto mais a diversidade humana é visível, mais a unidade humana torna-se, hoje,
invisível aos espíritos que só conhecem fracionando, separando, catalogando,
compartimentando. Ou, então, o que aparece aos espíritos abstratos é uma unidade abstrata
que oculta as diferenças. Precisamos conceber a unidade múltipla, unitas multiplex” (M5, p.
58)
Em outras palavras, ou a extrema diversidade de culturas e de indivíduos é oposta a um
princípio vago e abstrato de unidade que acaba “jogando o bebê com a água do banho”,
passa ao largo do problema da diversidade e esfolia a questão da diferença, ou então se
concebe uma heterogeneidade em que as culturas se tornam uma miríade de universos
fechados, na qual apenas a diferença é vislumbrada e qualquer fundo antropológico comum
26
é suprimido. Assim, é preciso que os universos (a multiplicidade) não ignorem o Universo
(a unidade) (cf. M5, p. 225) e vice-versa.
Se falamos em fundo antropológico comum, isso não deve ser compreendido como
mero denominador comum ou simplesmente como a unidade biológica da espécie
5
. A
unidade humana constitui um complexo gerador que produz as diferenças individuais,
culturais, sociais, históricas: “o tesouro da humanidade está na diversidade criadora, mas a
fonte de sua criatividade está na unidade geradora.” (M5, p. 65). Assim, podemos supor a
existência de certos universais psico-afetivos – para Morin, os grandes sentimentos e
emoções são universais - como “a unidade mental dos seres humanos diante da morte”
(M5, p. 61), mas admitindo que “eles só se manifestam em indivíduos concretos e mostram
potencial diferente segundo as culturas e os indivíduos” (M5, p. 63). Podemos, igualmente,
admitir a unidade cultural e sociológica do homem – “por diversas que sejam, as culturas
têm um mesmo fundamento” (M5, p. 60), mas compreendendo que “a cultura só existe
através das culturas”. Diz-se, acertadamente, tanto “a cultura”, pois podemos definir a
cultura humana por certos traços fundamentais, como “as culturas”. Cada cultura é singular,
mas mantém um vínculo indissociável com esse complexo gerador de multiplicidade que,
no entanto, é uno. Igualmente, falamos sobre “o mito”, mas “o mito só se desenvolve nos
mitos. O mesmo vale para a religião, para a magia, para o rito” (M5, p. 60) e também para a
música e a poesia. “Diz-se justamente ´a linguagem´, pois ela tem por tudo a mesma
estrutura, mas se diz justamente ´as línguas´”(M5, p. 64, grifos do autor).
As diversidades individuais, sociais e culturais não são, portanto, apenas
“modulações em torno de um gênero singular”. Elas “atualizam, na própria singularidade, a
potência diversificadora infinita do modelo singular” (PP, p. 149). Assim, a antropologia
complexa opera no “nó górdio complexo, sempre misterioso, onde se associam e se
dissociam o generativo (...) e o fenomenal” (PP, p. 227), ou seja, na relação dialógica entre
o complexo gerador e a diversidade de suas produções.
5
Ainda que, claro, essa unidade exista. O fato de a humanidade ter se espalhado pela Terra nunca produziu cisão no
âmbito genético. O cérebro do sapiens pode suportar uma enorme gama de transformações, diferenciações e adaptações.
Todos os seres humanos, independentemente de seus fenótipos, pertencem à mesma espécie e dispõem das mesmas
características fundamentais. A despeito de toda a diferenciação cultural, étnica, social, individual entre os homens,
>>>
27
6. O homem genérico e os afetos
Morin não é o primeiro pensador a tentar ancorar a ciência do homem numa base
natural. No século XIX, por exemplo, já surgiam alguns desses intentos: uns bastante
ingênuos (como as triviais analogias postuladas por Spencer entre corpo social e organismo
biológico, ou o darwinismo social, “meramente uma racionalização rudimentar da livre
concorrência” - PP, p. 21), e outros muito mais dignos de nota e encorpados teoricamente.
Desses últimos, Morin retoma e destaca uma importante tentativa não apenas de
repensar a dicotomia que se instalou entre natureza e cultura, mas também de conceber a
unidade complexa de um complexo gerador produtor de multiplicidade: trata-se da noção
de “homem genérico”, do jovem Karl Marx, presente em seus Manuscritos Econômico-
Filosóficos, de 1844.
Marx aí coloca no centro da antropologia não o homem social e cultural, mas o que
chamou de “homem genérico”. Acreditando que a natureza é também um objeto primordial
para a ciência que se volta ao homem, Marx pensava que, no futuro, as ciências do homem
e da natureza iriam se acoplar uma à outra: “as ciências naturais englobarão,
conseqüentemente, a ciência do homem, da mesma forma que a ciência do homem
englobará as ciências naturais: passará a haver apenas uma ciência” (Marx, apud PP, p.
21). Assim, o ponto de vista original em Marx era fundamentalmente bioantropológico.
Além disso, o homem genérico - esse “demiurgo autoprodutor” (MD, p. 121) que se
confunde “com a própria noção de natureza humana” (PP, p. 163) - permite que a incrível
diversidade da humanidade seja compreendida com base no princípio da unidade de um
sistema hipercomplexo, uma unidade de princípios geradores (biológicos e culturais) a
partir da qual se desdobram as ramificações do sapiens.
O genérico aqui diz respeito não tanto ao gênero humano, mas ao complexo gerador
(e regenerador), espécie de célula-mãe, das qualidades e características humanas, tanto as já
realizadas quanto as que ainda estão em estado virtual, esperando o degelo. O genérico é “o
primordial, a arkhé, ao mesmo tempo a origem e o princípio” (M5, p. 293). Marx se
esforçava rumo à elaboração de uma dialogia entre fenomenal e generativo que se afina
com as propostas do pensamento complexo. Contudo, a ciência então vigente, que não
nenhuma nova espécie nasceu.
28
dispunha de conceitos que a obrigassem a uma reorganização paradigmática, não permitiu
que ele fosse muito longe nesse sentido. Freud também ia em direção semelhante quando
buscava no organismo humano, e encontrou na sexualidade, a origem dos problemas
psíquicos. Entretanto,
“o primeiro movimento de Marx e Freud retrocedeu, ficou sem seguimento, por não ter
encontrado um terreno de desenvolvimento, sendo arquivado como erro de juventude;
depois, os epígonos da era estruturalista esforçaram-se por lavar as duas doutrinas de todas
as manchas ´naturalistas´, enquanto se relegava ao museu a pesada ´dialética da natureza´
[fórmula proposta por Engels, que ia em direção semelhante à do “homem genérico”]” (PP,
p. 22)
Possibilidades de se articular animalidade e humanidade, busca de uma unidade que
compreenda a multiplicidade... Olhando para o “homem genérico” poderíamos pensar
estarmos diante do anthropos que Morin deseja ver no coração de sua antropologia
fundamental. Contudo, há algo que falta ao homem genérico de Marx e impede que ele
seja elevado ao status de homo complexus. Esse “algo” diz respeito justamente à
problemática da afetividade.
O homem genérico deve ser ampliado e enriquecido: ainda que tenha compreendido
a relação dialética existente entre homem e natureza, Marx priorizou em excesso a
dimensão econômica e produtiva do humano, relegando todas as demais, que "não são
concebidas como estruturas nucleares do ser humano", deixando de lado sobretudo "a
dimensão psico-afetiva”, vista por Morin como “o núcleo da psique" e "o núcleo radical e
cardinal" do ser humano (IPH, p. 18). Ao repudiar a compreensão do mundo em benefício
de sua transformação, conforme exposto na segunda tese sobre Feuerbach, Marx abandona
suas reflexões antropológicas e acaba com uma noção algo atrofiada de homem (tendo esta
última, aliás, resultado em problemáticas conseqüências téoricas e políticas no âmbito do
marxismo)
6
. Em Marx, o homem é essencialmente faber e economicus, faltando-lhe algo de
essencial: a subjetividade, a loucura, a irracionalidade, o jogo, a poesia, o corpo, “a psique,
o nascimento, a morte, a juventude, a velhice, a mulher, o sexo, a agressão, o amor” (M5, p.
117). E a ciência do homem necessita justamente “de uma abordagem existencial aberta à
angústia, ao gozo, à dor, ao êxtase” (PP, p. 218): numa palavra, aos afetos.
6
Ver BFP e IPH.
29
Nesse sentido, em Introdução a uma política do homem, lemos a respeito da
importância de “casar Marx e Freud”: enquanto ao primeiro faltava a afetividade, no
segundo o homem produtor está ausente. Assim, "unir Freud a Marx é articular ao núcleo
do homo faber o núcleo da psique. (...). Esses dois núcleos constituem uma bipolaridade em
torno da qual se ordena o fenômeno humano" (IPH, p. 23). O surrealismo é objeto de
admiração de Morin exatamente porque "tende a unir Marx e Freud, concebendo as duas
infra-estruturas - a economia e a psique - e suas dialéticas. Identifica a revolução afetiva -
mudar a vida - com a revolução prática - transformar o mundo” (IPH, p. 48). No quinto
volume de O Método, Morin vai na mesma direção quando fala em “casar Marx e
Shakespeare” (M5, p. 223). Shakespeare e Freud acrescentam a Marx o substrato de
afetividade que este havia deixado em segundo plano.
A ampliação do “homem genérico” – noção sobre a qual “deve fundar-se a
antropologia cultural e social” (PP, p. 225) – conduz-nos diretamente ao anthropos
moriniano: o homo sapiens-demens.
É assim que a afetividade se inscreve na Antropologia Fundamental de Morin:
inserida em um homem que se articula à natureza e que é portador de uma unidade
múltipla.
30
CAPÍTULO II – ECCE HOMO: O SAPIENS-DEMENS
1. A grande novidade
O surgimento do homem de Neandertal constitui uma marca no processo de
hominização, pois dá início à era do grande cérebro - era do homo sapiens, que em seguida
dará lugar ao homem atual. Apontar a grande novidade que o Neandertal traz ao mundo nos
leva, de pronto, à noção de homo sapiens-demens, nossa espécie.
Essa novidade não é, como se pensou durante muito tempo, o surgimento da
sociedade, da lógica, da técnica ou da cultura. Morin mostrará o tempo todo como uma
série de aspectos fundamentais da espécie humana tem, não a sua origem, mas o seu
desabrochar e sua realização no homo sapiens. Quando o sapiens surge o homem já era
socius, faber, loquens. O que esse novo homem traz ao mundo é exatamente aquilo que
durante muito tempo foi considerado um epifenômeno, um mero vapor ou superestrutura,
um sinal desprezível de espiritualidade: a sepultura e a pintura. Tais sinais, dos quais se
sabe já há bastante tempo, foram “desarmados antropologicamente” pela visão
unidimensional do homem racional, que enfatizava excessivamente o lado sapiens de nossa
espécie. A verdade é que eles significaram a presença de modificações antropológicas
fundamentais e marcaram uma diferença altamente significativa entre o sapiens e seus
antecessores. Já em O Homem e a Morte, de 1951, Morin mostra como a relação do homem
com a morte "introduz, entre homem e animal, uma ruptura ainda mais surpreendente do
que aquela representa pelo utensílio, pelo cérebro e pela linguagem" (HM, p.9). Trata-se da
entrada em cena do imaginário, do mito, da magia, do rito (os quais serão esmiuçados no
terceiro capítulo).
Os túmulos neandertalenses, os mais antigos que conhecemos, testemunham o
surgimento de uma relação do homem com a morte marcada por três grandes eixos: é o que
Morin denomina o “triplo dado antropológico” da morte. Em primeiro lugar, há uma
consciência realista que se dá conta da inexorabilidade da passagem do tempo e das
transformações de tudo o que é vivo, além um progresso da individualidade (da consciência
de um si-mesmo presente no mundo), o que assinala a irrupção de uma consciência objetiva
que passa a reconhecer a mortalidade. Desde então, graças a esse progresso do
31
conhecimento objetivo acerca do mundo, a presença da morte passa a afetar profundamente
a vida do homem. No bojo desse conhecimento, imediatamente, porém, surgirá toda uma
esfera subjetiva, pois “o imaginário irrompe na percepção do real e o mito irrompe na visão
do mundo” (PP, p. 107). A partir da traumática consciência da mortalidade surgem, assim,
em segundo lugar, os ritos e mitos que negam a morte e de alguma maneira tentam intervir
em suas conseqüências nefastas (enterro, cremação, quarentena de luto). Disso resulta o
terceiro dado antropológico: o aparecimento de ritos mágicos que operam a superação da
morte, através da sobrevivência de um duplo ou de alguma forma de renascimento do
finado. Passa a haver a crença de que as transformações que decompõe um corpo resultarão
em uma outra vida na qual se mantém a identidade do morto - do qual se desprende um
“duplo”-, ou farão parte de uma metamorfose-renascimento, em que o finado adquire nova
forma individual
7
. Esses três aspectos, gerando-se um ao outro, criam uma consciência
global da morte.
A partir de então, imaginário e mito passam a ser, “ao mesmo tempo, os produtos e
co-produtores do destino humano”. Ou seja, “é todo um aparelho mitológico-mágico que
emerge no sapiens e se encontra mobilizado para enfrentar a morte”. (PP, p. 107) O homem
recusa e vence a morte, achando-lhe uma solução pela via do mito e da magia.
Há, portanto, simultaneamente o desenvolvimento da consciência objetiva e a
irrupção de uma consciência subjetiva, marcada pelo surgimento do imaginário e do mito.
Ambas as consciências se unem para formar uma dupla consciência, consciência turva e
anuviada, marcada, entre a visão objetiva e a visão subjetiva, por uma brecha, aberta pela
morte, que é preenchida com os mitos e ritos de sobrevivência. Assim, a irrupção da morte
marcará, no sapiens, “ao mesmo tempo, a irrupção de uma verdade e de uma ilusão, a
irrupção de uma elucidação e do mito, de uma ansiedade e uma segurança, de um
conhecimento objetivo e de uma nova subjetividade e, principalmente, de sua ligação
ambígua” (PP, p. 110).
Além da morte, temos também, com o Neandertal, o surgimento da pintura. Uma
interrogação acerca da pintura faz-nos desembocar, mais do que meramente no fenômeno
gráfico e no aparecimento da arte, na natureza essencial e original do Homo sapiens. Assim
7
A crença no duplo e na metamorfose são para Morin dois grandes universais do pensamento mágico. Sobre o duplo, ver
sobretudo o capítulo III, item “f”.
32
como ocorreu com a relação com a morte, o aparecimento da pintura marca um nascimento
para nossa espécie: outro grande fator de diferenciação entre o sapiens e seus antecessores é
o surgimento da esfera estética.
É certo que a pintura estava associada à magia e a finalidades mágicas e rituais. Mas
falar em magia não implica esgotar ou anular a “significação antropológica daquilo que,
sob outro aspecto, é também a florescência de um universo estético” (PP, p. 115). O
desenvolvimento desses novos fenômenos são simultaneamente mágicos e estéticos: para
Morin, os fenômenos mágicos são potencialmente estéticos e os fenômenos estéticos são
potencialmente mágicos. Podemos de fato supor que o sapiens pré-histórico conhece e
busca o prazer estético.
Vemos assim como a sepultura e a pintura constituem-se como emergências do
longo processo da hominização e remetem-nos ao surgimento de um universo
antropológico com emergências míticas, mágicas e estéticas. O Neandertal viu surgir as
produções próprias ao espírito (símbolos, idéias, imagens) que constituirão as “produções
noológicas
8
”: estas são uma “névoa que passaria a envolver o progresso da humanidade”,
composta por “seres intermediários que se interpõe entre o meio ambiente e o indivíduo,
participando num e no outro, alimentando-se de um e de outro” (PP, p. 114).
O surgimento do mito e da magia no sapiens constitui, ademais, “um cimento
integrador” que se introduz em todas as fendas do corpo social, sendo fator de coesão da
sociedade. Além disso, a mitologia “integrará noologicamente a sociedade e o homem no
mundo” (PP, p. 180), servindo assim para inscrever o humano na natureza.
Com tudo isso, há a constituição de uma relação ambígua e difusa entre cérebro e
meio-ambiente e o surgimento de um information gap entre espírito e mundo, o que
constitui uma das várias fontes de desordem e desregramento no âmbito humano. Tendo
havido regressão dos programas genéticos nos comportamentos humanos (o homem é mais
inacabado do que os outros animais, é mais aberto ao meio-ambiente, à cultura e ao mundo
circundante; ele, por exemplo, deve aprender a andar), mas progressão das aptidões
8
Termo relativo à “noosfera”, o mundo das idéias, dos deuses, dos símbolos, dos espíritos, das entidades produzidas e
alimentadas pela mente humana, que, dispondo de certa autonomia objetiva, podem ser considerados seres vivos de um
novo tipo. Para os seres noológicos, o cérebro constitui um ecossistema nutritivo, sem o qual não vivem, mas diante do
qual obtém relativa emancipação. As idéias “repoduzem-se nos meios constituídos pelos cérebros humanos” (PP, p. 157).
Assim, tais seres acabam possuindo os humanos que as possuem: não são apenas os homens que se combatem por meio
dos mitos, deuses e idéias; estes últimos também se combatem por meio dos seres humanos. A noção de noosfera, que
>>>
33
heurísticas e competências organizacionais que, ainda que inatas, necessitam do papel co-
organizador do meio ambiente e da cultura (o homem conta com estruturas cognitivas mais
desenvolvidas e com mais capacidade de analisar o mundo ao seu redor e interagir com
ele), passa também a haver essa zona de incerteza entre imaginário e real, entre
subjetividade e objetividade. É devido a essa fenda, essa brecha antropológica, que “o reino
do sapiens corresponde a um aumento maciço do erro [e da desordem] no seio do sistema
vivo”. (PP. 119).
A originalidade humana aparece então justamente naquilo que por muito tempo foi
denunciado por uma ciência e uma antropologia racionalísticas “como irracionalidade, [mas
que fazem] contudo, parte da humanidade assim como a racionalidade” (M5, p. 41). A
grande novidade do sapiens é, portanto, mais da seara da afetividade (que, como veremos,
não surgiu no homem, mas que nele se desenvolve espetacularmente) do que dos campos
da racionalidade, da técnica, da linguagem, reunidos no pólo sapiens.
E é assim que começamos a passar “do problema do homem das cavernas ao
problema das cavernas do homem” (LVS, p. 139)...
2. A loucura no coração do humano
Todas essas reflexões acerca do papel fundamental exercido pelo imaginário no
funcionamento de nossa espécie, acerca do quão essencial é aquilo que, do ponto de vista
utilitário de uma antropologia racionalística, seria entendido como epifenômeno
desprezível, levam Morin à elaboração de um de seus conceitos-chave: o homo sapiens-
demens. Uma verdadeira ciência do homem deve admitir o papel fundamental exercido
pelo que ultrapassa a esfera sapiens. Uma das “carências ontológicas” das ciências
humanas é “não ter dado existência ao imaginário e à idéia”: “só se viu reflexo onde havia
desdobramento, emanação de fumaça onde havia efervescência termodinâmica de
vapores” (PP, p. 227, grifos do autor).
Assim, Morin se contrapõe a uma antropologia racionalista ao mostrar que homo
não é apenas sapiens (e faber, oeconomicus, prosaicus, functionalis, loquens) mas também,
ao mesmo tempo e de modo igualmente importante, demens - e ludens, imaginarius,
atravessa quase toda a obra de Morin, foi introduzida por Pierre Teilhard de Chardin em O Fenômeno Humano.
34
consumans, poeticus, estheticus, mythologicus e mesmo imbecilis (“somente uma reserva
impede-me de acrescentar a homo sapiens-demens, homo imbecilis, sujeito a tantos erros e
ilusões” - M5, p. 124).
Morin reintroduzirá, no coração da espécie e no centro da antropologia, o problema
da loucura, do imaginário, do mito, dos excessos, dos êxtases, dos afetos, das pulsões. O
que com isso morre é “a auto-idolatria do homem, admirando-se na imagem pomposa de
sua própria racionalidade” (PP, p. 211).
Além de questionar as antropologias de cunho racionalista, a noção de sapiens-
demens também se inclui entre os esforços de Morin de questionar a separação entre
natureza e cultura. Como veremos mais adiante (quando o cérebro for abordado), o
problema central da loucura humana surge também calcado no enraizamento do homem na
natureza.
Acompanhemos a primeira grande apresentação do homo sapiens-demens, feita em
O Paradigma Perdido:
“Surge, então, a face do homem escondido pelo conceito tranquilizador e emoliente do
sapiens. Trata-se de um ser de uma afetividade imensa e instável, que sorri, ri, chora, um
ser ansioso e angustiado, um ser gozador, embriagado, extático, violento, furioso, amante,
um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte e não pode acreditar nela, um
ser que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que
se alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo
são sempre incertas, um ser submetido ao erro, ao devaneio, um ser híbrico que produz a
desordem. E como chamamos loucura à conjunção da ilusão, do descomedimento, da
instabilidade, da incerteza entre real e imaginário, da confusão entre subjetivo e objetivo, do
erro, da desordem, somos obrigados a ver o Homo sapiens como homo demens.
Como poderá ter acontecido que o tema evidente da loucura humana, tema de meditação
dos filósofos da Antiguidade, dos sábios do Oriente, dos poetas de todos os países, dos
moralistas clássicos, de Montaigne, de Pascal, de Rousseau, tenha se volatilizado, não só na
ideologia eufórica do humanismo, justificada majestosamente pela conquista do mundo
pelo grande sapiens, mas também no espírito dos antropólogos? O racionalismo humanista,
que triunfa e expira na etnologia de Lucien Lévy-Bruhl, quis rejeitar, devolver às origens,
como debilidade infantil, o delírio do sapiens: o neo-etnologismo, admirando, ao contrário,
a maravilhosa sabedoria do homem arcaico, quis lançar a loucura sobre o homem
contemporâneo, concebido como um miserável desviado, quando, afinal, um e outro têm
sua sapiência e sua demência...” (PP, p. 123).
A concepção, em muitos sentidos dominante, de um homem sapiens, faber, economicus
oculta uma gigantesca parte constitutiva do humano e só vê um ser realista, lidando com a
materialidade do mundo exterior. Desse modo, como diz Morin quando procura uma
“sabedoria” para o homem contemporâneo, “a idéia de se poder definir o gênero homo
35
atribuindo-lhe a qualidade de sapiens, ou seja, de um ser racional e sábio, é, sem dúvida,
uma idéia pouco racional e sábia” (APS, p. 7), pois “seria irracional, louco e delirante
ocultar o componente irracional, louco e delirante do humano” (M5, p. 117). A proposta da
noção de sapiens-demens é “corrigir, complementar, dialetizar a noção de homo sapiens
(M5, p. 117): Morin não pretende substituir o sapiens pelo demens, mas sobrepor o rosto de
um ao do outro, reabilitando a questão antropológica-chave da loucura. Assim, é ao mesmo
tempo que o homo é um “animal histérico, possuído por seus sonhos e (...) capaz de
objetividade, de cálculo, de racionalidade.” (M5, p. 140).
Em suma, se definirmos o homem unicamente pela noção de homo sapiens, "a
afetividade aparece como supérflua, parasita, perturbadora" (M6, p. 135)... Se só
enxergarmos no homem seu pólo sapiens, “oculta-se dele a afetividade, disjuntando-a da
razão inteligente” (APS, p. 52). Uma das razões pelas quais atribuímos ao termo “afetos”
um lugar central neste trabalho é o fato de a afetividade ser entendida por Morin como
“uma encruzilhada”, como “ligação entre homo sapiens e homo demens” (M5, p. 120),
como aquilo que “invade todas as manifestações do sapiens-demens, as quais também a
invadem” (M5, p. 122). Sublinhemos o que representa a imagem da encruzilhada: trata-se
de um adensamento, um grande epicentro, um ponto de convergência, um espaço onde
desembocam uma série de instâncias e de onde saem tantas outras manifestações. Não
devemos, portanto, entender a afetividade como se ela fosse um fundamento, um alicerce
no sentido arquitetônico do termo, a origem ou o destino último dos fatores que constituem
o humano. Trata-se antes de sublinhar o papel do afetivo no jogo humano.
Assim, ao desenhar o rosto do homo sapiens-demens, Morin certamente propõe a
importância da afetividade no ser do homem; mas não se trata somente disso, “não se trata
apenas de conceber que o ser do homem se exprime através da e pela sua afetividade” (PP,
p. 162). É preciso que compreendamos a loucura como um problema central do homem, “e
não apenas seu excesso ou refugo”, seu detrito ou sua doença (M5, p. 128). Como diz
Lacan, “o ser do homem não só não pode ser compreendido sem a sua loucura, mas não
seria o ser do homem se não tivesse em si a loucura como limite da sua liberdade” (apud
PP, p. 145). Assim, a loucura, o delírio, a demência não são apenas perturbações
patológicas que alteram o fundo racional e sadio da natureza humana. São sobretudo
constituintes antropológicos fundamentais: “Adão não nasceu prudente. Nem Eva.” (M5,
p.116). Falamos de uma demência em sentido latu. O tema da loucura deve ser resgatado e
36
realmente operado e apreendido, mais do que palidamente admitido. Morin, longe de tentar
circunscrever a loucura a uma época ou a uma sociedade, coloca-a no cerne absoluto da
condição humana e a entende como um dos pilares definitivos sobre o qual se ergue a
humanidade. Todo indivíduo e toda sociedade possuem, mesmo que abafados, dissimulados
e escondidos, germes de toda essa loucura: “o que nos diferencia dos outros é o maior ou
menor controle, sublimação, dissimulação, transformação de nossa própria loucura” (M5, p.
118). Como disse Cornelius Castoriadis, “o homem é este animal louco cuja loucura
inventou a razão”.
A noção de sapiens-demens e os perigos inerentes a uma concepção de homem que
se cegue em relação à demência constitucional de nossa espécie são particularmente bem
ilustrados por um filme de ficção científica de 56, “Forbidden Planet”, de Fred Wilcox,
citado ao final do quinto volume de O Método. Nesse filme, uma expedição de seres
humanos chega a um planeta aparentemente deserto. Durante a noite, porém, são atacados
por espectos mostruosos e malévolos. Ao longo da história, descobrem o que havia
ocorrido no planeta: os krells, antigos habitantes do local, tinham desenvolvido uma ciência
avançada o suficiente a ponto de permitir-lhes libertarem-se de seus próprios corpos,
passando a ter uma existência apenas espiritual. No momento em que o fazem, contudo,
acabam liberando uma parte de si mesmos que desconheciam: os tais espectros
monstruosos, que os destroem e passam a habitar, sozinhos, o planeta. Este pode ser o
preço de se confiar apenas no pólo sapiens, de se fazer vistas grossas à obscuridade, à
demência constitutiva de nossa espécie: acabaremos sendo presas de nossa demência se não
a assumirmos e passarmos a dialogar com ela, a torná-la consciente, a desrecalcá-la. É
preciso que qualquer ética, qualquer conhecimento leve em conta plenamente a
complexidade da relação sapiens-demens.
Assim, Morin aponta a necessidade de
“ligar o homem racional (sapiens) ao homem louco (demens), o homem produtor, o homem
técnico, o homem construtor, o homem ansioso, o homem gozador, o homem imaginário, o
homem mitológico, o homem crísico, o homem neurótico, o homem erótico, o homem
híbrico, o homem destruidor, o homem consciente, o homem inconsciente, o homem
mágico, o homem racional num rosto de faces múltiplas em que o hominídeo se transforma
definitivamente em homem” (PP, p. 162).
Para que operemos plenamente essa conjunção, faz-se necessária a elaboração de
uma “teoria da hipercomplexidade organizacional que permita integrar de modo coerente os
aspectos incoerentes dos fenômenos humanos; somente esta poderia conceber
37
racionalmente a irracionalidade” (PP, p. 218). Isso quer dizer que precisamos compreender
a intrincada e complexa dialogia entre ordem e desordem no espírito humano, o modo
como racionalidade e irracionalidade repercutem e interferem, incessantemente, uma na
outra. Desde Niels-Bohr, a física lança mão de noções simultaneamente contraditórias e
complementares para compreender seu objeto de estudo. Assim devemos proceder ao
lançarmos nosso olhar para o homem: “ordem e desordem são antagonistas e
complementares na auto-organização e no vir-a-ser antropológicos” (PP. p. 162). Isso
porque toda essa desordem, todo esse descomedimento, toda essa demência – todos esses
fatores, como a arrebentação do imaginário na vida humana, as incertezas e confusões da
subjetividade, as manifestações mágicas e mitológicas, a multiplicação dos erros – estão
longe de terem sido apenas desvantajosos para o Homo sapiens (como poder-se-ia pensar a
partir da seleção darwiniana): ligam-se também aos seus mais extraordinários
desenvolvimentos, ao seu gênio, à sua criatividade. Daí a citação constante, por Morin, de
Rimbaud: “concluo por achar sagrada a desordem de meu espírito”
9
. O homem opera na
iminência da loucura, na beirada do abismo demencial: é, nesse sentido, um animal crísico.
Mas um sistema em crise pode tanto ser destruído ou regressar a um estado de menor
complexidade como também engendrar um progresso que aumenta sua complexidade.
Assim, o fato de o cérebro operar sempre no limite da desordem e da crise
10
também é a
própria fonte de seu funcionamento: é de seu aspecto crísico que se originam as mais
prodigiosas criações do pensamento, da arte e da ciência. Todos os progressos da
inteligência e da sociedade humanas – todas as grandes inventividades que geraram
aumentos de complexidade – têm se realizado simultaneamente a despeito de, com e por
causa da desordem e da demência. “A loucura humana é fonte de ódio, crueldade, barbárie,
cegueira. Mas sem as desordens da afetividade e as irrupções do imaginário, e sem a
9
Vemos, desse modo, como existe uma desordem sapiental originária e fundamental. Morin afirma mesmo que “há menos
desordem na natureza que na humanidade” e que “a ordem humana se desencadeia sob o signo da desordem”. (PP, p.
122).
10
Enquanto em uma máquina artificial tudo aquilo que é desordem, ruído e erro aumenta a entropia do sistema, isto é,
provoca sua degradação, as máquinas naturais funcionam não só apesar da, mas também com a desordem, o ruído e o
erro. O que aqui falamos sobre a desordem vale, assim, para qualquer sistema vivo. Trata-se do paradoxo da organização
viva: a desordem pode ser fonte de enriquecimento e de complexidade, ainda que, claro, possa representar um perigo para
a manutenção da vida. A desordem simultaneamente ameaça e embasa o sistema vivo. Nesse ponto, Morin se apóia em
autores como Henri Atlan, para quem a vida é um processo de reorganização permanente, que “reabsorve, expulsa a
entropia que se produz continuadamente no interior do sistema e responde aos atentados desorganizadores vindos do meio
ambiente” (ATLAN apud PP, p. 128).
38
loucura do impossível, não haveria élan, criação, invenção, amor, poesia” (APS, p. 7).
Há na aventura sapiental-demencial, portanto, uma relação dialógica,
retroativa/recursiva e hologramática entre a sapiência e a demência humanas. Por isso, o
sapiens-demens também é apresentado com o nome de homo complexus (cf. M5, p. 140), o
que evidencia a lógica que preside a relação entre sapiência e demência: o homem é
complexus, no sentido de reunir traços contraditórios. Sapiência e demência estão contidas
uma na outra: a definição do sapiens-demens deve ser apreendida “de modo bipolarizado
em yin-yang”, mas isto “sempre com a presença da afetividade” (M5, p. 288). Trata-se,
assim, de acrescentar o afetivo ao não-afetivo, sublinhando a existência de uma ligação
complexa entre ambos, e não de uma substituição do segundo pelo primeiro, ou de uma
mera justaposição entre ambos. Dessa maneira, não há como traçar fronteiras nítidas entre
as esferas sapiens e demens, nem como situar ambas as esferas em posições diametralmente
opostas: "não existe fronteira clara entre racionalidade e delírio, pois a afetividade os
envolve. Também não há fronteira no interior da afetividade que possa indicar em que
momento ela se torna delirante e sem moderação" (M6, p. 135) O que o sapiens tem de
melhor, sua excelência, “navega na orla da crise e da neurose” (PP, p. 160). Do mesmo
modo, o que tem de pior, o estado das demências
11
surge quando a relação entre ordem e
desordem deixa de ser criadora e organizadora. Assim, a afetividade é marcada por uma
enorme ambivalência. Como diz Kostas Axelos, "a enorme necessidade de afeto e de
carinho que sente o homem desde a infância até a morte mistura-se quase inexoravelmente
com manifestações de violência, de crueldade e de selvageria" (apud M6, p. 135).
3. As erupções do demens
a) A hubris
Pretendemos agora focar-nos em um dos esforços de Morin, situado no âmbito da
esfera demens, de reabilitar aquilo que foi negligenciado e desdenhado pela antropologia
tradicional: aquele que evidencia as características psicoafetivas humanas de caráter
11
Como veremos a seguir, Morin utiliza o termo “demência” para se referir especificamente aos aspectos violentos,
destrutivos, tanatológicos da afetividade humana.
39
eruptivo - a aptidão tanto para o êxtase, a embriaguez, o prazer, como para a fúria, a cólera,
o ódio, a destruição. São essas erupções psicoafetivas o que constitui a hubris, termo grego
que significa descomedimento, desmedida, excesso. Morin pretende apontar, no homem,
um transbordamento do onirismo, do erotismo, da violência, da afetividade, do prazer: um
descomedimento que engaja a plenitude do ser
12
.
A hubris constitui uma das grandes originalidades do campo propriamente humano.
A afetividade, que, principalmente entre os chimpanzés, já tinha se tornado pronunciada,
adquire no homem um caráter eruptivo, marcado pela instabilidade e pela desordem.
Assim, essas características têm uma origem hominídea e primática, mas é no cérebro do
sapiens, marcado, como veremos, pela hipercomplexidade, que elas irrompem em
turbilhão, levando-nos a compreender que “o que caracteriza o sapiens não é uma redução
da afetividade em benefício da inteligência, mas, ao contrário, uma verdadeira erupção
psicoafetiva”, “até o aparecimento da hubris, isto é, do descomedimento” (PP, p. 121).
Seria impossível conceber uma antropologia fundamental “que não desse seu lugar
à festa, à dança, ao riso, às convulsões, ao prazer, à embriaguez, ao êxtase” (M5, p. 127). O
interesse de Morin por tais afetos transbordantes tem também em vista a unidade humana:
baseado em pesquisas etológicas, ele sublinha que os risos e as lágrimas são inatos e
constitutivos da natureza humana, sobre os quais as culturas imprimiram suas várias
semióticas “sem jamais terem conseguido anular suas significações antropológicas
primeiras” (PP, p. 120).
A hubris representa uma das fontes de desordem e de desregramento no âmbito
humano. Contudo, conta com vários fatores de contenção, podendo ser regulada por meio
do controle sócio-cultural (os interditos e tabus impostos por uma cultura e uma sociedade);
do controle do meio-ambiente (a regulação exercida pelo mundo exterior, quando o
princípio de realidade resiste ao princípio do desejo); do controle cortical (a atividade
racional do cérebro/espírito). Entretanto, Morin chama sempre nossa atenção para o fato de
que, segundo Platão, a dikhé (comedimento, contenção) é filha da hubris (assim como,
12
Em O X da questão: o sujeito à flor da pele acompanhamos as circunstâncias afetivas em que começam a se desenhar a
preocupação com essas erupções antropológicas fundamentais. “Agora recupero plenamente o sentido dos valores de
êxtase, de adoração, de fascinação, que certamente eu tinha sempre sentido, mas que havia intelectualmente recalcado na
periferia da antropologia; temor de sua irracionalidade, de sua potência de aniquilamento, hábito preguiçoso de exaltar in
fine o homem xamanista em detrimento do homem manista, o produtor mais que o participante... Que deslocamento
provocou-se em mim, no último ano? Terá sido por ocasião da doença? Provocado pela meditação? Pelos êxtases com
>>>
40
poderíamos acrescentar, a ordem é filha da desordem). Assim, a hubris pode escapar ao
controle de inúmeros modos. Como veremos mais adiante, no cérebro a racionalidade é
apenas uma instância da trilogia razão-afetividade-pulsão, desprovida de qualquer
hierarquia interna: o controle do córtex não é dominante. Além disso, o controle sócio-
cultural “está sujeito às forças de demência nas histerias coletivas, repressões maciças,
execuções, sacrifícios humanos, bodes expiatórios e, evidentemente, às guerras” (PP, p.
143). Se o cérebro funciona no limite da crise, com a desordem e no limite da desordem,
como dissemos, ele oferece pouca resistência à hubris psicoafetiva. Assim, é importante
que o repitamos: é a mesma insuficiência dos controles reguladores da hubris e da
desordem - é justamente o fato de o homem não ser totalmente prisioneiros desses controles
– que produzirá tanto a criatividade e o gênio humanos quanto as barbáries devastadoras.
Passemos primeiramente a essa última.
b) As demências destruidoras
A hubris apresenta uma dimensão responsável pela violência, pela raiva, pela fúria,
pelo ódio: são as demências destruidoras. É a hubris a responsável por toda a violência
perpetrada pelos humanos: a violência se desencadeia no sapiens-demens fora da
necessidade, ao contrário do que ocorre com os outros animais, que matam apenas para
comer ou se defender. Na ruptura dos controles racionais, materiais, culturais, quando há
ilusão e a insensatez imperam, o homo demens é capaz de subordinar a sapiência e colocá-
la a serviço de seus mais bárbaros monstros, que muitas vezes se disfarçam sob a roupagem
da razão. Assim, a afetividade, além de seu “aspecto rosa” decorrente especialmente do
amor, também comporta “um aspecto negro”: “a afetividade humana inventou algo que não
existia: o ódio, a maldade gratuita, a vontade de destruir por destruir” (APS, p. 53).
O ódio é entendido por Morin como “hubris agressiva não controlada
geneticamente” – ao contrário da agressividade nos outros animais, que são coordenadas
por normas de comportamento bastante rígidas – “e se racionaliza na idéia de fazer justiça,
punir etc.” (PP, p. 143).
A hubris agressiva será desencadeada sobretudo nas sociedades históricas.
Mg? Doravante coloco no coração da antropo-cosmologia o êxtase, fronteira e cume do anthropos...” (LVS, p. 285)
41
Abramos um breve parênteses para explicitar que Morin se filia aos sociólogos que, a
despeito de admitirem a extrema diversidade das sociedades, acreditam que uma sociologia
fundamental, aplicável a todos os tipos de sociedade, seria válida. Daí os modelos da
arkhè-sociedade” (ou “sociedade arcaica”) e da “sociedade histórica”. Esses modelos
fazem com que reencontremos o problema da unitas multiplex, pois se referem a sociedades
que se diversificam e que apresentam diferentes florescências, mas que se atêm à
invariância de princípios antropossociológicos organizacionais fundamentais.
A sociedade arcaica marca a primeira nascença da sociedade sapiental (já que a
sociedade não é exclusiva do sapiens, como vimos no primeiro capítulo) e é portadora de
uma matriz organizacional que compreende a cultura como elemento generativo (são
sociedades que se auto-organizam a partir do patrimônio cultural, nucleando-se a partir do
mito e da magia). Estruturando-se em bioclasses (homens, mulheres, jovens, velhos), ela se
organiza por meio do parentesco, da instituição da exogamia, da regulamentação da
sexualidade, de proibição do incesto (todas essas profundas necessidades organizacionais, a
única maneira de que o grupo se mantenha como tal, como tão bem viu Lévi-Strauss) e
institui uma mesma confraternização mitológica a partir do culto de um ancestral comum.
Vale sublinhar que Morin utiliza o termo “arcaico” não para remeter de forma depreciativa
ao antigo, vencido, superado, mas à arkhè, que significa a origem, o princípio, o primordial.
As sociedades históricas, segunda nascença da humanidade sapiental, que são
possuidoras de Estado, cidades, agricultura, divisão do trabalho, classes sociais, religião,
surgiram a partir de várias dimensões de mutações organizacionais que resultaram em uma
nova organização, mais complexa, do corpo social. A sociedade histórica será bastante
heterogênea, territorial e sociologicamente (já que é composta de castas, classes, etnias e,
como ocorre nos impérios, mesmo de nações). Enquanto a arkhè-sociedade, “compondo
mais ou menos um tipo dominante de personalidade, detinha o desdobramento das
diversidades individuais” (PP, p. 197), as sociedades históricas contam com as cidades, que
são o ecossistema sócio-cultural de duas emergências capitais: o indivíduo autônomo e a
consciência. É evidente que o indivíduo e a consciência já existiam antes das sociedades
históricas; acontece que é somente nessas sociedades que ambos podem efetivamente
intervir “na ação aleatória de civilização” e procurar “representar um papel cuja
importância se torna cada vez mais decisiva, na ação cada vez mais decisiva da verdade e
do erro em que se lançou a humanidade” (PP, p. 197).
42
Como dizíamos: estando mais represada nas sociedades arcaicas, a hubris será
desencadeada pelas instáveis sociedades históricas, cuja “complexidade social permite
atualizar múltiplas virtualidades humanas. (...)” (M5, p. 182): potencialidades tanto
criadoras quando destrutivas. A dialógica sapiens-demens tomará um ritmo desenfreado e
turbulento, com cérebro humano projetando tanto complexidade e evolução quanto entropia
e desordem sobre a sociedade.
13
A história desenvolveu-se suscitando uma dialógica
complementar antagônica de ordem-desordem-organização e, prolongando a do cosmo
14
,
uma dialógica de gênese e aniquilamento, desordem e complexificação. Ela é um degelo
que liberou caoticamente as potencialidades racionais, técnicas, econômicas, imaginárias,
criadoras, estéticas, lúdicas, poéticas do homo sapiens-demens, mas também, talvez,
sobretudo, as demências e a desmedida, as barbáries desencadeadas em conquistas,
massacres, destruições, guerras, escravidões. É principalmente por meio das sociedades
históricas que Morin nos mostra como o sapiens também é killer (cf. M5, p. 117). Como já
afirmamos, a hubris agressiva pode se servir de formas racionais para a sua vazão e é
assim, como diz Michel Serres, que “no século XX a ciência e a lógica ´além de guiarem a
civilização, estão a serviço das forças de morte´” (apud PP, p. 160).
Assim, há uma associação nítida e íntima entre a sociedade histórica (e sua grande
máquina, o Estado) e a guerra, “o fenômeno humano que mais progrediu, como
testemunham as duas guerras mundiais do século XX e como pressagia o século XXI” (M5,
p. 205). As sociedades arcaicas possuíam, também, a guerra, mas estas tinham outro
caráter, não estando, “nenhuma delas (...) organizada para dominar a outra” (M5, p. 203).
A história é histérica: do mesmo modo que a histeria reifica e somatiza os abalos do
13
Como vimos, há por um lado “uma lógica da complexificação que comporta desordem” e, por outro, “uma desordem
que, incansavelmente, faz regredir e destruir a lógica da complexificação” (PP, p. 203). Quando Morin fala em evolução
(entendida com evolução da complexidade), trata-se então de uma evolução aleatória, incerta, nada linear, que faz da
sociedade histórica uma heterogênea unidade de alta e baixa complexidade. É o que Morin denomina “o jogo duplo da
história” (PP, p. 204): destruição e criatividade, desordem e aumento da complexidade social. O pensamento complexo
posiciona-se sempre contra “qualquer idéia de um progresso que obedeça ao determinismo histórico” e que se efetue de
modo linear. (M5, p. 217). O que há é não exatamente um progresso, mas uma dialógica entre complexidade e destruição,
entre Eros e Tanatos, entre bárbarie e civilização. Assim, é claro que a história comporta racionalidades, lógicas,
determinações, mas também abarca ruídos, dissipações, rearranjos inesperados, desordens, desorganizações, furores,
surpresas. A história sempre desafiou qualquer predição ou teleologia.
14
Para Morin existe uma profunda analogia entre a história humana (e sua relação com a desordem e a complexidade) e o
cosmo: “é toda a aventura cósmica, telúrica e biológica que parece obedecer a uma dialógica entre harmonia e cacofonia”;
“a história humana, torrente tumultuosa de criações e de destruições, despesas inusitadas de energia, mistura de
racionalidade organizadora, ruído e furor, tem algo de bárbaro, de horrível, de atroz, de esplêndido, evocado pela história
cósmica, como se esta se tivesse gravado em nossa memória hereditária. O cosmo criou-nos à sua imagem. (M5, p. 28,
>>>
43
espírito, podemos entender as formas históricas como histerias do sapiens-demens: “por um
lado, o histórico é histérico, como se todos os templos, palácios, monumentos edificados
fossem as materializações de delírios patéticos, como se a megamáquina se tornasse a
cristalização de uma mega-histeria” (M5, p. 223).
O homem precisou da história para dizer exatamente a que veio, e a aventura
histórica só irá se intensificar na era planetária que hoje vivemos. A história será sempre a
união e a oposição de Eros e Tanatos, de civilização e barbárie. Sobre esse ponto, Morin
cita um impactante trecho de Réguis Viguier:
Desde o começo da história, não passa um ano, provavelmente nem um mês, sem
derramamento de sangue; não há um só regime tribal, nacional, republicano, oligárquico,
monárquico, nenhuma religião (...) que não tenha se sujado com a infelicidade dos outros e
que não tenha sido, de resto, presa (do fanatismo) dos outros. Da Assíria, Babilônia, Pérsia,
Grécia, Roma, China a nossos confrontos atuais, tudo é conflito, batalhas, massacres,
genocídios, exterminações, terror; cada país foi agredido, presa, caça, agressor, caçado,
carrasco.” (M5, p. 204)
Como também vemos pela citação constante de Walter Benjamin, que evidencia como
barbárie e civilização não se excluem, mas estão implicadas uma na outra (“não existe um
só testemunho de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um testemunho de barbárie”),
Morin sempre se remete à dimensão destrutiva que vem no rastro do sapiens-demens
histórico. As devastações surgem e ressurgem em todos os lugares, mesmo entre aqueles
que outrora foram suas vítimas: como Morin sempre lembra, “no oprimido de ontem, está o
opressor de amanhã” (Victor Hugo)
15
.
Quando diante desse excesso de barbárie trazido à tona pelas sociedades históricas,
ele admite que “claro, existem algumas ilhotas de bondade, de generosidade, de amor e de
misericórdia no coração dessa espécie criminosa” (M5, p. 117). Encontramos aqui um
ponto-chave de sua cosmovisão que analisaremos mais adiante: a maneira como Morin
busca refúgio e tentar se reaquecer em forças fracas, ainda que preciosas, no seio da
crueldade do mundo.
É importante, por fim, que diferenciemos a loucura ontológica do sapiens-demens
grifos do autor). Quanto a esse aspecto-chave da Weltanschauung de Morin, ver o último capítulo.
15
O que é algo que nos vêm à mente quando consideramos os atuais desdobramentos da questão israelo-palestina, sobre a
qual Morin, juntamente com Danièle Sallenave e Sami Naïr, escreveu um artigo, “Israel-Palestine: le cancer” (publicado
no jornal Le Monde em 04.06.02) que, lamentavelmente, resultou-lhe em um processo aberto por intelectuais israelitas (do
qual, após idas e vindas, acabou absolvido em 2006).
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das demências destruidoras e das agressividades tanatológicas. Enquanto a primeira está
inexoravelmente inscrita na humanidade e contém tanto o melhor quanto o pior, a última é
um dos desdobramentos possíveis, mas não necessários, da primeira.
c) O homo consumans, ludens, esteticus, poeticus
Morin chama a atenção para autores que, como George Bataille, Roger Caillois,
Johan Huizinga, Kostas Axelos, Jean Duvignaud, Eugen Fink viram que “a vertigem e o
excesso solicitavam um lugar central da ciência do homem” e “refletiram sobre o caráter
sísmico do prazer humano”. (PP, p. 121), mostrando que o prazer que o sapiens procura
não pode se reduzir ao estado de satisfação de um desejo, de anulação de um tensão: o
prazer “também existe além do simples prazer, em estados de exaltação de todo o ser, que
chegam a alcançar o limite da catalepsia ou da epilepsia” (PP, p. 121).
Contudo, “as ciências humanas têm (...) ignorado uma dimensão antropológica
capital: o ser humano não vive só de pão, não vive só de mito, vive de poesia. Vive de
música, de contemplações, de flores, de sorrisos” (M5, p. 137). A idéia simplista de que o
homem seria primordialmente sapiens e faber ignora que “embora nos mantenhamos na
faixa média de existência”, marcada pela regularidade, pelo prosaico, pela normalidade,
“vivemos também aquém e além dessa faixa média quando amamos, odiamos, sofremos,
oramos, sonhamos”. (M5, p. 127)
Sendo assim, o sapiens também é consumans – vive de êxtases vertiginosos e
dilapidadores, que o fazem consumir-se em um fogo passional paroxístico. É ludens –
entrega-se a atividades lúdicas, a jogos que encontram si mesmos sua própria finalidade. É
esteticus, lançando-se à contemplação estética, mesmo quando a estética está associada ao
mito, à magia, à religião. E é poeticus – mergulha em uma intensa participação afetiva,
contemplativa, emocional com o mundo.
George Bataille explorou a idéia de que carregamos não apenas um princípio de
economia, mas também um princípio de despesa, dilapidação e dissipação. Em todas as
situações que carregam um “fogo passional extremo, um altíssimo grau de combustão
interior que, por isso mesmo, consome nossas energias” e nos leva a “´queimar´ nossas
vidas e a correr o risco de morte para viver mais intensamente” (M5, p. 129) – o que
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Bataille denomina “consumição” - estamos diante do homo consumans. É o que aparece
desde os potlatchs (espécie de celebração encontrada em algumas tribos nativas norte-
americanas, em um contexto de oferecimento de presentes a um determinado grupo, em que
as maiores riquezas da comunidade são eventualmente queimadas, dilapidadas, descartadas
de modo grandioso e espetacular)
16
, das orgias, dos jogos de azar de tudo ou nada até os
grandes êxtases místicos. Vive-se também para se viver plena e intensamente, “o que se
realiza a uma temperatura de autodestruição”, mas “ao mesmo tempo de regeneração” (M5,
p.130), pois a participação acaba funcionando como um modo de intensificação da vida.
Todos esses fatores – o desperdício, a despesa, a consumição – nos mostram a diferença
fundamental entre a sociedade humana e uma máquina trivial e nos indicam como a mera
aplicação de modelos racionalizadores, deterministas, econômicos deixa de lado algo de
essencial no que diz respeito ao humano. Por isso, Bataille também foi bastante lido pelos
economistas.
Caillois, Fink, Axelos, Bataille e sobretudo Johan Huizinga
17
desenvolveram o tema
do jogo. Todas as sociedades conheceram alguma forma de jogo, de competição, de
atividade lúdica. Assim como a estética, o lúdico encontra em si sua própria finalidade. Um
ser que joga vai além das prosaicas tarefas de auto-preservação e auto-reprodução,
adentrando um território que se afasta de propósitos utilitários e racionais. O jogo
permanece no adulto humano, ao passo que desaparece no animal adulto (a não ser no caso
de animais domesticados, que permanecem em situação infantil). Uma atividade lúdica
pode incluir competições, “mas elas estão dentro do jogo, que dá prazer e volúpia, inclusive
na angústia” (M5, p. 131). Assim, uma característica importante do lúdico é que ele
representa uma espécie de cooperação realista entre homo sapiens e homo demens. Há um
demens que, sabiamente, camufla-se no jogo, no qual encontra-se “uma cooperação
sabedoria-loucura que engloba, supera e aclimata a agressão, tornando-a amistosa” (M5, p.
145). A agressividade é, desse modo, metamorfoseada, sublimada, orientada para o
universo lúdico, tanto no homem quanto em outros animais: entre os filhotes de cachorro,
16
Embora não necessariamente o potlatch inclua essa dilapidação frenética, foi sobretudo por esse potlatch “enloquecido”
que Bataille se interessou.
17
No clássico “Homo ludens: ensaio sobre a função social do jogo”, o filósofo holandês analisa como o jogo é a própria
matéria de que a cultura humana foi e continua sendo modelada, servindo para revelar aspectos distintivos do homo
sapiens.
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“o mordiscar é a versão amistosa do morder”; no homem adulto, “a agressividade é
derivada e regulada nos esportes de competição, nos jogos de cartas, nos espetáculos e
filmes de violência”; no amor, “há mordidas, simulacros de lutas, às vezes voluptuosas”
(M5, p. 145). Portanto, as atividades lúdicas não se constituem em meras distrações da vida
prática: têm raízes que mergulham nas profundezas do humano e dizem respeito também à
nossa dimensão sapiental.
Igualmente na seara dos afetos que trasbordam e na contra-mão das visões
utilitaristas, Morin atribui às manifestações estéticas um papel primordial em sua
Antropologia Fundamental. Essas manifestações, como já adiantamos há pouco, não podem
ser relegadas ao status de epifenômeno ou reduzidas às funções religiosas e mágicas.
A estética é aqui concebida não apenas como uma característica própria das obras
de arte, mas a partir do sentido original do termo aisthètikos, de aisthanesthai, “sentir”. O
homem pode experimentar, assim, um estado estético: “um transe de felicidade, de graça,
de emoção, de gozo e de felicidade” (M5, p. 132). A estética nos retira de um estado
racional e utilitário para nos transportar a um outro estado de espírito, “em que nosso ser e
o mundo são mutuamente transfigurados”, em que somos colocados em “transe, tanto em
ressonância, empatia, harmonia, tanto em fervor, comunhão, exaltação” (M5, p. 135). O
termo ressonância é aqui utilizado por analogia: enquanto na física ele diz respeito ao
momento em que um sistema físico em vibrações atinge uma grande amplitude - um ápice
vibratório - em decorrência da aproximação de uma vibração excitante externa cuja
frequência se aproxima da frequência natural do sistema em questão, na sensibilidade
estética a ressonância é “uma aptidão para entrar (...) em ´harmonia´, em sincronia com
sons, aromas, formas, imagens, cores” - pois a sensibilidade estética não se limita apenas às
formas visuais – “produzidos não só pelo universo, mas também, já então, pelo Homo
sapiens” (PP, p.118).
A relação do homem com a estética diz respeito a um aspecto bioantropológico
fundamental: a juvenilização humana (a regressão dos programas genéticos) implica a
conservação, por parte do adulto, de “uma sensibilidade infantil e lúdica”, ligada ao
“alargamento e o enriquecimento de sua afetividade”, que irão traduzir-se “em
sensibilidade ao jogo das formas reais ou imaginárias, isto é, em sensibilidade estética”.
(PP, p. 117).
47
Morin mostra-nos como uma série de aspectos fundamentais da espécie humana tem
não sua origem, mas seu pleno florescer no homo sapiens. Com a estética, não poderia ser
diferente: por exemplo, os chimpanzés, nos seus “carnavais”, já tinham, a seu modo,
descoberto o ritmo e a dança.
Como foi dito a respeito do Neandertal, mesmo quando estão ligadas a funções
religiosas e mágicas, por mais que a reprodução e a invenção de formas se inscrevam no
âmbito das atividades sociais, as manifestações estéticas “respondem a um sentimento
estético profundo” do ser humano (M5, p. 133). Há, assim, um excesso estético que
ultrapassa a utilidade. Por outro lado, podemos nos deleitar com a estética de objetos,
ornamentos, pinturas originalmente destinado a funções ritualísticas independentemente de
qualquer contexto religioso ou finalidade mágica: “o mitológico ou mítico pode dar-nos a
emoção estética quando deixamos de crer no mito e na magia” (M5, p. 134). De fato, as
civilizações modernas são um dos poucos momentos em que a estética pôde se autonomizar
e se destacar enquanto um aspecto em si mesmo, enquanto, durante grande parte da
aventura sapiental, a estética esteve presente amalgamada às funções mágicas, mitológicas
e religiosas. Ainda assim, mesmo diante da autonomização da estética, continua havendo
uma “grande comunicação oculta ou subterrânea entre a esfera mitológica e a esfera
estética” (M5, p.144). A vida estética é irrigada pelo pensamento analógico-simbólico-
mágico, ou mais precisamente, “situa-se na confluência onde se fecundam os dois
pensamentos, o mítico e o racional, os dois universos, o real e o imaginário” (M5, p. 147).
No auge da emoção estética, há uma consciência racional que permanece presente; o
espírito, todavia, é embrulhado pela emoção e por uma participação afetiva que flerta com o
mais puro pensamento mágico. O artista, quando cria, é certamente inspirado pelo
pensamento simbólico-mitológico-mágico, ainda que também lance mão da técnica, do
pensamento racional.
Desse modo, afastamo-nos do reducionismo de duas interpretações que costumam
se opôr: por um lado, uma que vê a estética apenas como fruto final da cultura, surgido
quando houvesse um destacamento das finalidades mágicas e religiosas, e que entende a
arte das formas na pré-história e nas sociedades arcaicas exclusivamente dentro do contexto
de uma finalidade ritual e mágica. Por outro, aquela interpretação que desde sempre
“reconhece pura e simplesmente o aparecimento de uma atividade artística e de uma vida
estética que encontrariam sua finalidade em si próprias”, ou que “vê a estética como uma
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qualidade universal ligada à própria exuberância da vida” (PP, 112). Ocorre que tanto no
campo antropológico quanto no biológico é quase impossível isolar num estado puro o
fenômeno estético. Biologicamente, a estética está sempre ligada a uma semiótica, à
constituição de mensagens de chamados sexuais, ameaças, etc. No campo antropológico,
ela tem quase sempre – durante boa parte da história humana - estado ligada à magia e à
religião e, mesmo quando se desprenda dessas, continua carregando uma magia em estado
larvar e incipiente. Assim, como já dissemos, os fenômenos mágicos são potencialmente
estéticos e os fenômenos estéticos são potencialmente mágicos.
A estética é um dos meios por meio dos quais atingimos o estado poético. Poesia,
aqui, não é entendida enquanto forma literária, mas como um estado, como poesia vivida,
contrapondo-se a um “estado prosaico”. Enquanto vivemos o “estado prosaico em situação
utilitária e funcional, nas atividades destinadas à sobrevivência, a ganhar a vida, no trabalho
submetido, monótono, na ausência e recalcamento da afetividade”, o estado poético é um
“estado de emoção, de afetividade, realmente um estado de espírito. Alcançamos, a partir
de um certo limite de intensidade na participação, a excitação, o prazer. Esse estado pode
ser alcançado na relação com o outro, na relação comunitária, na relação imaginária ou
estética” (M5, p. 136).
Atingimos o estado poético também pela via das grandes festas, dos torpores dos
psicoativos, das atividades lúdicas, dos grandes espetáculos de massa, das obras de arte em
geral, nas relações intersubjetivas. Morin inclui nesse grande terreno também o sentimento
do sagrado e as experiências religiosas, cerimoniais e ritualísticas, compreendidas como um
“transe que transborda além da esfera religiosa” e que “é característico das mais fortes
emoções poéticas” (M5, p. 136). O ponto alto e paroxístico de qualquer estado poético é o
êxtase.
Assim, em qualquer cultura, o ser humano produz duas linguagens a partir de sua
própria língua: uma, racional, empírica, técnica, que “tende a precisar, denotar, definir”,
que se apóia “sobre a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma expressa” (APS, p. 35) –
trata-se da prosa. Outra, que lança mão da analogia, da metáfora, da conotação, do símbolo,
do mito, da magia, e que corresponde à poesia e ao estado poético: um estado que não é,
como o estado prosaico, um “estado de visão”, mas que é “um estado de vidência” (APS, p.
36). Enquanto nas sociedades arcaicas os estados prosaico e poético encontravam-se
entrelaçados (antes de uma expedição, ou durante uma colheita, havia danças, ritos, cantos,
49
celebrações), em nossas sociedades contemporâneas ocidentais passou a haver uma
disjunção entre os estados da prosa e da poesia, o que nos remete à dissociação entre as
culturas científicas e técnicas, de um lado, e as culturas humanistas e literárias, que
abarcam a poesia, de outro. Em nossa civilização, as manifestações poéticas
“transformaram-se, de algum modo, num elemento inferiorizado em relação à prosa da
vida” (APS, p. 39). Entregues totalmente à aridez da prosa, a maioria dos humanos, hoje,
vive para sobreviver, o que mata a possibilidade de se atingir o estado poético e inviabiliza,
também, a liberdade e o pleno desabrochar das melhores possibilidades do sapiens-demens.
Ao se voltar ao estado poético, vemos como Morin, como faz com tantas outras
instâncias na qual acredita, sublinha tanto sua importância e necessidade como sua
fragilidade: o estado poético é “estado precário, aleatório, mas estado de graça” (M5, p.
137).
Como ocorre com a esfera lúdica, que usa os jogos para aclimatar a agressão, a
poesia realiza um pacto com o real: não o “pacto neurótico” da religião, mas um pacto “que
transfigura o real sem negá-lo”. É o que Morin chama de pacto “sur-realista
18
”. (M5, p.
145). A estética (e o estado poético, que dela emerge) não se reduz ao papel, neurótico, de
nos oferecer um escape para mundos imaginários. Ela também transfigura o sofrimento e o
mal de nossa realidade. Pascal, para Morin um dos pensadores da complexidade avant la
lettre, chama de divertimento “aquilo que nos distrai, em futilidade, da ´infelicidade natural
de nossa condição fraca e mortal e tão miserável que nada pode nos consolar” (M5, p. 153).
Morin se pergunta: será que os divertimentos estéticos e lúdicos podem ser entendidos
como o divertimento pascaliano? A resposta é negativa: há uma complexidade aí que
mesmo Pascal não viu, pois reencontramos nas obras de arte os problemas de nossa vida.
De fato, evadimo-nos do cotidiano, mas para entrar em um domínio que nos coloca face a
face com nossa condição existencial: "não se trata apenas de nos distrair da morte, mas
também de nos distrair na vida, gozar a vida" (M6, p. 138, grifo meu). É que a estética,
tornando suportável o insuportável, permite-nos olhar de frente o que nos causa horror. A
arte permite que até mesmo a dor seja estetizada e contemplada (o que, claro, pode
degenerar em cinismo, em indiferença à dor do outro, em triunfo da estética sobre a ética).
18
Morin opta por essa grafia da palavra “surrealista” para evidenciar a relação desse pacto com a realidade: em francês,
sur significa “sobre”. Trata-se de um pacto que se afasta da realidade, e que, ao mesmo tempo, com ela mantém estreitas
relações.
50
A estética não apenas cria belezas e alegria, não somente canta as belezas da vida, mas
permite que olhemos, de frente, a mais pronunciada crueldade do mundo. De algum modo,
purificamo-nos; catártica e provisoriamente exorcizamos o mal e a angústia. Somos
devolvidos “à condição humana mesmo nos divertindo, mergulhamos nela mesmo dela nos
distanciando” (M5, p. 147).
Essa possibilidade da estética torna-nos melhores, porque mais capazes de
compreensão: por meio de uma série de identificações e projeções, compreendemos melhor
o outro que, na vida cotidiana, nos passaria despercebido; superando o maniqueísmo e o
simplismo, somos tocados pela compreensão da complexidade humana e paramos de
reduzir o criminoso a seus traços criminais. A estética “desperta as potências inconscientes
da empatia que existem em nós” (M5, p. 148). É assim um fator que nos auxilia a despertar
a consciência e a compreensão.
Uma das grandes inspirações de Morin quando ele esmiúça o estado poético parece
ser o surrealismo, visto por ele não apenas como um movimento literário, mas também "um
movimento antropológico poético-revolucionário", "fundado sobre uma noção total e
radical de homem" (IPH, p. 48). “Revolta histórica da poesia”, admirável esforço de
desprosaização do cotidiano, o surrealismo “representou a recusa da poesia em se deixar
reduzir ao poema, quer dizer, a uma pura e simples expressão literária (...). A idéia
surrealista é a de que a poesia extrai sua fonte da vida, com seus sonhos e acasos” (APS, p.
38). Entretanto, o surrealismo desdenhou, em demasia, a prosa, não podendo apreender as
relações dialógicas existentes entre prosa e poesia. Morin não entende que a poesia seja o
modo último de existência. À sempre retomada frase de Hoederlin, “o homem habita a
Terra poeticamente”, Morin acrescenta que ele também o faz prosaicamente: poesia e prosa
mantêm relação dialógica, em yin-yang. O homem é marcado por duas bipolaridades
existenciais, portanto. Assim, nem tudo deve ser poesia: “se tivéssemos uma vida
permanentemente poética, não a sentiríamos mais” (APS, p. 59). Devemos nos abrir ao
estado poético, pois lá encontramos uma preciosa parte de nossa salvação, mas devemos
também compreender que assumir a identidade e o destino humanos é assumir “o jogo
dialógico racionalidade – afetividade, prosa-poesia” (M5, p. 153).
Contudo, por mais que haja essa necessária dialogia, Morin parece apostar no modo
de vida que se abre plenamente à poesia como aquele capaz tanto de entrar em sintonia com
a condição humana quanto de criar um mundo melhor, que resista à sua própria crueldade e
51
se abra às melhores possibilidades da vida: "viver de prosa não passa de sobreviência.
Viver é viver poeticamente." (M6, p. 138).
O capitalismo soube utilizar a necessidade humana de poesia. Em nossa sociedade,
há freqüentemente a absorção dos universos lúdico, estético e poético pela economia do
espetáculo. Entretanto, Morin aponta que a hiperprosa do liberalismo econômico, sua
devoção ao cálculo frio, técnico, burocrático e instrumental e a um modo de vida
“monetarizado, cronometrado, parcelarizado, compartimentado, atomizado” (APS, p. 40)
pode estimular uma série de contramovimentos e de resistências poéticas na seio da
sociedade civil, “com, cada vez mais, a necessidade de aventuras, de música por meio de
aparelhos de rádio, fitas, CDs, shows, bailes, festas, raves, detonação (...) Quanto mais a
prosa invade a vida, mais a poesia reage” (M5, p. 139).
19
Quando Morin imagina as vantagens advindas da existência de máquinas artificiais,
ele imagina que, se utilizadas de um modo democrático e se postas a serviço da
humanidade como um todo, essas máquinas fariam com que “os seres humanos, liberados
das limitações secundárias, das rotinas, das tarefas sem alegria e sem interesse” pudessem
finalmente “viver plena e poeticamente. O espírito humano (...) dedicar-se-ia, enfim, às
questões essenciais do seu destino” (M5, p. 247). Assim, o alargamento das possibilidades
de vivência do poético – que permitiriam ao homem levar uma vida mais rica, mais
verdadeira e mais digna desse nome - encontra-se profundamente inscrito no horizonte
utópico de Morin.
Hoje, podemos considerar possível um diálogo entre ciência e poesia. Graças às
descobertas da astrofísica, que “revelou nossa situação de perdição num gigantesco
cosmos”, da física, que dissipou a solidez do real e que relativizou a distinção entre espaço
e tempo, e de tantas outras revelações que nos causaram vertiginosos assombros, a ciência
revelou-nos “um universo fabulosamento poético ao redescobrir problemas filosóficos
capitais: ´o que é o homem?´, ´qual é o seu lugar?´, ´qual é o seu destino?´, ´o que se pode
esperar dele?´.” (APS, p. 42).
19
Remetemos o leitor aqui à obra de Michel Maffesoli, sobretudo ao livro A sombra de Dionísio: contribuições a uma
sociologia da orgia (ver bibliografia). Diagnosticando nas sociedades contemporâneas um “profundo cansaço” das formas
de sociabilidade mecânicas, racionais, atomizadoras, desencadeadas sob os grandes mitos da modernidade (Razão,
Progresso, Homem-Cidadão), Maffesoli discorre acerca do “retorno de Dioniso”: a reabilitação dos excessos, das
potências noturnas, dos torpores, das lógicas afetivas e passionais, visível em vários setores das sociedades atuais. Os
ressurgimentos, em escala social, do “irracional” culminam em uma “comunhão” do indivíduo que, nos termos de Morin,
lançam-no a um estado poético, estado “orgiástico” que Maffesoli considera um essencial e indispensável mecanismo de
>>>
52
d) O amor no estado poético
É dentro da problemática do homo poeticus que nos deparamos pela primeira vez
com a temática do amor neste trabalho: o amor surge aqui como emergência do estado
poético. Ao debruçar-se sobre esse estado, Morin sublinha sobretudo o papel do amor,
entendido por ele como “a vida real da poesia” (M5, p. 137).
“Emergência maior da afetividade” (M5, p. 122), o amor também é “emergência
suprema da poesia”, pois “concentra todas as virtudes [desta] : comunhão, deslumbramento,
fervor, êxtase; faz-nos experimentar a não-separação na separação, o sagrado, a adoração
por um ser mortal, exposto ao tempo, frágil" (M6, p. 139). O amor é o ápice e o
adensamento máximo do estado poético: se esse é um estado do ser marcado pela
“participação, (...), pela admiração, (...) pela embriaguez, pela exaltação” (APS, p. 9), o
amor “contém em si todas as expressões desse estado” (APS, p.9).
O amor é a grande poesia de nosso tempo: ele “é a poesia do mundo prosaico
moderno e alimenta-se de uma imensa poesia imaginária (romances, filmes, revistas).” O
amor, quando nasce, “inunda o mundo de poesia; um amor que dura irriga de poesia a vida
cotidiana”, enquanto “o fim de um amor nos devolve à prosa”. (M5, p. 137). O amor
tornou-se também a grande religião do indivíduo moderno (cf. LVS, p. 284). O amor “vive
de símbolos, cria o seu mito e a sua magia” (M5, p. 140): como vimos, o estado estético-
poético é atravessado pelo pensamento simbólico-mitológico-mágico.
O êxtase é o cume de qualquer estado poético. É o "momento supremo da poesia
(...), momento da não-separação na separação, experiência inusitada, [que] vem como
experiência antropocósmica sublime na qual o ser humano perde-se encontrando-se" (M6,
p. 138). No caso do amor, o êxtase nos proporciona
“o êxtase psíquico e físico; o êxtase psíquico parte da contemplação, da admiração e leva à
adoração; o êxtase físico, orgasmo, faz jorrar, entrar em fusão, extravasar em nossas
existências as energias profundas do cosmo. O amor é a religião do individualismo
moderno porque une – em nós – os dois êxtases, formas supremas da experiência poética,
ao mesmo tempo as mais universais e as mais comuns” (M5, p. 138)”.
O amor também é um dos mais importantes componentes do “pacto sur-realista”
“lubrificação” do corpo social.
53
mencionado há pouco: “unidade incandescente da sabedoria e da loucura, [o amor] faz-nos
suportar o destino, faz-nos amar a vida” (M5, p. 137):
“A poesia, no sentido vivo do termo, estabelece uma aliança com as potências geradoras e
regeneradoras da vida, com o derramamento da seiva, as eclosões, florações, o desabrochar.
Seu pacto com o real toma um aspecto encantado especialmente no amor.” (M5, p. 145)
Isso porque o amor vem de uma
“inacreditável força da vida que transfigura a vida. Liga-nos ao outro mesmo nos
restituindo a nós mesmos. Realiza plenamente nosso ser biológico e nosso ser psíquico. O
amor suscita uma quase divinização de um ser de carne, de sangue e de alma. O amor,
unidade incandescente de sabedoria e loucura, faz-nos suportar o destino e amar a vida. Não
vence a morte, mas dá-lhe a resposta mais convincente; o título do romance de Guy de
Maupassant, que o designa, não chega a ser, de fato, excessivo: Forte como a morte” (M5,
p. 146).
Assim, a poesia da vida, com o amor, “que integra e que a integra, é a única verdadeira
resposta à morte” (M5, p. 154).
A poesia e sua possibilidade máxima - o amor - são, assim, os grandes fatores que
dão sentido à existência, pois
“o sentido não é originário, não provém da exterioridade de nossos seres.
Emerge da participação, da fraternização, do amor. O sentido do amor e da
poesia é o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poesia, quando
concebidos como fins e meios do viver, dão plenitude de sentido ao ´viver
por viver´.” (APS, p. 10).
Já afirmamos que Morin entende o indivíduo a partir de sua inscrição em um circuito
trinitário – indivíduo-sociedade-espécie - onde cada termo é meio e fim do outro. Assim,
“os fins de um indivíduo são, ao mesmo tempo, plurais, incertos, complexos” (M5, p. 156),
o que possibilita que ele escolha finalidades para si próprio. Na escolha do modo poético de
existência, o papel do amor é sublinhado:
“entre essas finalidades, tudo o que dá poesia à vida, com o amor em primeiro lugar, é fim
e meio em si mesmo. A partir daí, sobreviver para viver toma um sentido quando viver
significa viver poeticamente. Viver poeticamente significa viver intensamente a vida, viver
de amor, viver de comunhão, viver de comunidade, viver de jogo, vive de estética, viver de
conhecimento, viver de afetividade e de racionalidade, viver assumindo plenamente o
destino do homo sapiens-demens, viver inserindo-se na finalidade trinitária” (M5, p. 156,
grifo meu).
54
e) Estado poético e misticismo
Morin afirma possuir quatro grandes “polaridades”, que mantêm relações
antagônicas e complementares entre si: a dúvida, a fé, o misticismo e a racionalidade (cf.
MD, p. 264). Uma das roupagens de seu “misticismo” surge ligada ao estado poético e, em
especial, ao amor.
Ele crê que pode sentir seu misticismo “numa flor, num pôr do sol, numa visão”
(APS, p. 65). Seu misticismo, “que surge como emoção diante do mistério das coisas,
manifesta-se de repente ao examinar um escaravelho, um gato, uma margarida, um rosto.
Ele se manifesta na experiência do êxtase, da embriaguez, da poesia e da música. E se
concentra no Amor” (MD, p. 68).” O amor, ápice do estado poético, emergência maior da
afetividade, é também o ponto alto do misticismo de Morin.
Grande momento de religação, relâmpago vertiginoso que é pura fusão com o
mundo e com a vida, esse misticismo se dá sobretudo por meio do outro, através do amor:
“Meu misticismo está não apenas no sentimento do mistério, mas também em minha
relação com o que faz a poesia da vida, um modo de viver na participação, no amor, no
fervor, na comunhão, na exaltação, na festa, na embriaguez, no júbilo e que culmina no
êxtase. Está na experiência do que Max Scheller chama de ´a faculdade de fusão com a
corrente de vida universal, que liga os homens uns aos outros, enquanto unidades vitais. É
de fato uma regra (cujas razões profundas nos escapam) que faz com que a realização da
faculdade de fusão cósmica com a natureza extra-humana se efetive indiretamente, em
favor da fusão afetiva inter-humana´” (MD, p. 265).
Como sempre exercitando sua introspecção e expondo o ser humano de carne e osso
por trás do pensador, Morin encontra em sua história de vida uma importante fonte dessa
sua polaridade. Em um impactante e apaixonado trecho de Meus Demônios, ficamos
sabendo como a morte precoce de sua mãe, Luna, leva-o, desde sempre, a experimentar “a
aspiração infinita de reencontrar a integração em uma substância maternal; ela me
empurrará não somente em direção a tudo que exprime o romantismo, mas também à
procura da fé, da expansão, da comunhão” (MD, p. 20).
*****
55
Claro deve estar que nem tudo são flores no estado poético. A poesia “comporta
perigos para a pessoa e para a comunidade”, pois “ludens e consumans podem transformar-
se em demens” (M5, p. 140): a consumição pode se tornar autodestruição, assim como o
amor pode deteriorar em possessividade, intoxicação e tragédia; o jogo e o uso de drogas
pode se tornar vício patológico; as exaltações e frenesis, tanto individuais quanto
comunitários, étnicos, nacionais, religiosos, podem levar ao crime, à barbárie, à violência
fanática. Enfim, "jogo, mito, amor e poesia (...) carregam uma imensa afetividade cujo
derramamento incendiário pode enlouquecer" (M6, p. 137).
Vemos, assim, como o ser humano não vive apenas de racionalidade, de técnica, de
instrumentos: ele se consome, se gasta, se dilapida; entrega-se aos mais variados estados
poéticos e se perde, para se encontrar, nas danças, nos transes, nos êxtases. Todos esses
homens – ludens, consumans, esteticus e poeticus – estão intrinsecamente ligados, pois há
uma estreita relação
“manifesta ou subterrânea, entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o imaginário,
o mito, a religião, o jogo, a despesa, a estética, a poesia; é o paradoxo da riqueza, da
prodigalidade, da infelicidade, da felicidade do homo sapiens-demens. Através da
trilogia do espírito, da afetividade, do anel que liga e opõe racionalidade,
afetividade, imaginário, mito, estética, lúdico, despesa, o ser humano vive sua vida
de alternância de prosa e de poesia, em que a privação de poesia é tão fatal quanto a
privação de pão” (M5, p., 140).
O homo sapiens tem a mesma origem do homo demens: ambos são filhos do
aumento de complexidade de que resultou o cérebro de 1500 cm cúbicos e dez bilhões de
neurônios. Procuraremos agora desenhar o sapiens-demens e seu turbilhão afetivo, grande
marca do humano e encruzilhada entre sapiência e demência, a partir desse epicentro
organizador representado pelo cérebro.
4. O cérebro
a) A escola de complexidade
Freqüentemente se referindo aos prodigiosos desenvolvimentos que as
neurociências conheceram nas últimas décadas do século XX, Morin se espanta com o
56
modo como, ao esclarecer muitos processos e desvelar muitos enigmas, essas ciências
fizeram “emergir um enorme Mistério onde havia uma imensa incógnita” e trouxeram um
curioso paradoxo: “como um buraco negro, o mistério do cérebro parece ter de engolir a
nossa inteligibilidade, enquanto se acha justamente na fonte de nossa inteligibilidade” (M3,
p. 97).
Por ser uma máquina totalmente físico-química nas suas interações, totalmente
biológica em seu âmbito organizacional e totalmente humana nas suas atividades pensantes
e conscientes, o cérebro, pela indissociabilidade de todos esses aspectos, “associa todos os
patamares do que chamamos realidade. Esse é, para retomar a expressão de Schopenhauer,
o ´nó do mundo´” (M3, p. 98).
Mas em que sentido Morin interrogará o cérebro? O que exatamente buscará ao
fazê-lo? Não é uma apresentação da questão anatômica ou fisiológica do cérebro que o
autor procura fazer: “não queremos nem podemos refletir ao nível da pesquisa”, diz ele,
mas sim “procuramos formular os problemas que a pesquisa apresenta à nossa reflexão
antropológica sobre a unidade múltipla do sapiens-demens” (PP, p. 140). Morin procura
sobretudo reconhecer e destacar os princípios gerais da hipercomplexidade – o princípio da
organização cerebral - e não concebe o cérebro como um órgão, mas como um sistema, ou
um epicentro.
O cérebro não se limita ao papel de centro organizador do organismo individual. Ele
é um sistema único que permite a integração federativa, num sistema
biopsicossociocultural, das esferas que constituem o universo antropológico: a esfera
genética, a esfera ecossistêmica, a esfera cultural e a esfera social
20
. O cérebro projeta sua
evolutividade, seus princípios de invenção e sua complexidade sobre todas as esferas da
práxis antropossociocultural. O desenvolvimento social depende não somente de mudanças
oriundas de perturbações externas, mas também da projeção dos ganhos de complexidade
cerebral sobre o corpo social. Contudo – eis outro paradoxo do pensamento complexo – a
complexidade social também é uma previa necessária para os saltos de complexidade em
nível cerebral.
Apesar do cérebro humano diferir de todos os demais cérebros animais, pois possui
organização, dimensões e aptidões bastante específicas, Morin, no seu esforço constante de
20
Todos esses, lembremos, elementos simultaneamente complementares, concorrentes e antagônicos, cujas relações
>>>
57
inscrever a humanidade na animalidade, procura sempre apontar como nosso cérebro ainda
é um cérebro animal, mamífero, primata. Não há grande diferença entre o aparelho cerebral
do chimpanzé e o do homem, a não ser a quantidade de neurônios (temos 30 bilhões de
neurônios, ou seja, quatro vezes mais que os primatas mais evoluídos) e o tipo de
organização - a qual fez surgir, no homem, as qualidades humanas por excelência que são o
pensamento e a consciência. Nosso cérebro, ademais, inscreve-se no mundo da vida, pois se
constituiu a partir de um circuito auto-eco-organizador. Nosso tecido nervoso formou-se,
filogeneticamente, a partir de interações com o mundo exterior. O conhecimento cerebral
está profundamente enraizado no Lebenswelt de que nos fala Husserl (o “mundo da vida,
solo antepredicativo e pré-categorial” - M3, p. 44).
O cérebro é um sistema hipercomplexo. Morin diferencia complexidade e
hipercomplexidade: diferenças marcadas “não por uma fronteira, mas pela acentuação de
certas características, a atenuação de algumas outras, acentuação e atenuação essas que
modificam a configuração do conjunto, que pode, então, ser considerado de um novo tipo.”
(PP, p. 130). O sistema hipercomplexo é definido como “um sistema que diminui suas
opressões, embora aumentando suas aptidões organizacionais, em especial sua aptidão para
a mudança” (PP, p. 130). Em relação a um sistema de menor complexidade, o sistema
hipercomplexo é
“fracamente hierarquizado, fracamente especializado, não estritamente centralizado,
mas mais fortemente dominado pelas competências estratégicas e heurísticas, mais
dependente das intercomunicações e, em virtude de todas essas características, mais
fortemente sujeito à desordem, ao ruído, ao erro” (PP, p. 131).
Como diz Heinz Von Foerster, citado em O Método 3, o cérebro é um “órgão
democrático”: não há nele propriamente um centro de comando. A organização de nosso
aparelho cerebral não segue os princípios cêntricos/hierárquicos/especializados que regem
as máquinas artificiais; é baseada nos princípios complexos da organização biológica, que
mesclam acentrismo, policentrismo e centralização; anarquia, poliarquia e hierarquia;
especialização, policompetências e não-especialização, comportando relações
complementares, concorrentes e antagonistas entre seus componentes. Assim, a
hipercomplexidade significa a introdução maciça da desordem e da eventualidade no nível
variam de acordo com os indivíduos, as culturas e as circunstâncias históricas.
58
cerebral. Ela é “ao mesmo tempo riqueza, fecundidade, fraqueza, fragilidade. Comporta
aptidões corretivas, estratégias, prospectivas, inventivas, mas também riscos de regressão,
bloqueios, double-binds, neuroses” (M3, p. 126).
Diante desse nó górdio do humano, complexo de sistemas complexos, unidade de
multiplicidades de unidades em si mesmas múltiplas e complexas (a unitas multiplex das
unitas multiplex), Morin não se cansa de se assombrar e de se maravilhar: “não conhecemos
nada mais complexo no Universo do que o cérebro humano, a não ser o universo que o
produziu e que contém esse cérebro.” (M3, p. 108). Por isso,
“o espírito cartesiano, ao examinar o cérebro, só poderia perceber aí a obra de um
lamentável aprendiz de feiticeiro débil mental, enquanto o computador só poderia
diagnosticar a não-viabilidade de uma máquina tão confusa. Efetivamente, tudo o que é
separado, compartimentado, incompatível com o pensamento simplificador, aparece ali
ligado, implicado, sobreposto, de maneira não apenas inseparável, mas também concorrente
e antagônica: o uno, o duplo, o múltiplo; o cêntrico, o policêntrico, o acêntrico; o
especializado, o poliárquico, o anárquico; o especializado, o policompotente, o
indeterminado; a causa, o efeito; a análise, a síntese; o digital, o analógico; o real, o
imaginário; a razão, a loucura; o objetivo, o subjetivo; e, para começar e terminar, o cérebro
e o espírito.” (M3, p. 109).
Por tudo isso, poderíamos dizer que o cérebro é uma verdadeira escola de complexidade.
b) Computo e cogito
Morin aplica ao ser vivo a noção de computo, retirada da cibernética. O computo “é
um operador chave de um processo ininterrupto de autoprodução/ constituição/ organização
de um ser-máquina que é ao mesmo tempo um indivíduo sujeito” (M3, p. 53)
21
. Toda
organização viva (célula, embrião, organismo, etc) funciona em função de um cômputo. O
ser sujeito, vivo, para que se constitua como tal, realiza uma computação de si, a partir de
si, em função de si, para si e em si, situando-se no centro de seu mundo para se computar e
computar esse mundo. Assim, o computo é inseparável de outras noções – como ser,
máquina e sujeito – que, em um processo complexo de auto-eco-organização, constituem os
aspectos primordiais e fundamentais da subjetividade. A noção de computo, estreitamente
vinculada à de conhecimento, é, portanto, inerente a qualquer forma de vida. Nesse sentido,
21
Como veremos mais adiante, a noção de sujeito é aplicável a qualquer organização viva, não sendo entendida de modo
antropocêntrico.
59
viver é conhecer: qualquer atividade viva comporta uma dimensão cognitiva. A dimensão
computacional-cognitiva é indiferenciada das instâncias produtoras do ser: “ser, fazer,
conhecer são, no domínio da vida, originalmente indiferenciados e, quando forem
diferenciados, continuarão inseparáveis.” (M3, p. 57) O conhecimento é espalhado pela
natureza, estando presente mesmo em organizações vivas onde não há nem receptores
sensoriais, nem sistemas nervosos, nem um aparelho cognitivo propriamente dito
22
. O
senso-comum compreende facilmente que o conhecer seja o produto de uma atividade do
ser; mas o inverso também é verdadeiro, ou seja, o ser é o resultado de uma atividade
computante que inclui uma dimensão cognitiva. Ser e conhecer se condicionam
mutuamente, geram-se um ao outro, em um circuito dialógico e retroativo: “a vida só pode
auto-organizar-se com o conhecimento. A vida só é viável e passível de ser vivida com
conhecimento. Nascer é conhecer.” (M3, p. 58). O ser vivo só sobrevive num meio com e
através do conhecimento desse meio. É assim que Piaget entende que “em determinada
profundidade, a organização vital e a organização mental constituem uma única coisa”
(apud M3, p. 87).
O corpo, formado por milhares de seres-máquinas computantes (as células), é
produto e produtor das miríades de inter-poli-computações organizacionais perpetradas por
essas unidades compúticas. O aparelho neurocerebral é constituído de células (os
neurônios) que possuem a mesma origem e os mesmos traços essenciais das outras células
de nosso corpo, mas que, entretanto, desenvolveram funções especializadas que permitem
computações cujo destino é propriamente o que costumamos chamar de atividade cognitiva.
Assim, a máquina cerebral humana conta com uma relativa originalidade, pois permite o
surgimento de uma complexidade organizacional que torna possível transformar
computações em cogitações – conduzindo-nos, assim, do âmbito do computo para o do
cogito. A atividade do espírito humano continua, é claro, sob a égide da computação, mas
não pode ser reduzida a esta. A cognição humana, assim, deve ser compreendida como um
desenvolvimento específico, particularmente original, de um conhecimento inerente a toda
e qualquer organização viva.
A cogitação, que é o próprio pensamento (via linguagem) e a própria atividade
22
As aptidões computantes de insetos, peixes, pássaros e mamíferos foram por muito tempo dissimuladas pelas noções de
“programa” e “instinto”.
60
cognitiva humana, surge como uma emergência
23
das operações computantes da máquina
cerebral e está sempre empregando, desenvolvendo, transformando e retroagindo sobre
essas operações. O conhecimento humano associa, portanto, de modo reflexivo e
indissociável, atividade computante e atividade cogitante (pensante), diferentemente do
conhecimento apenas cerebral, presente nos outros animais.
Com a dimensão do cogito, haverá o surgimento do espírito
24
, que emerge a partir
da conjunção organizadora entre o cérebro e a cultura
25
e se estrutura por meio da cogitação
e da consciência.
Contra toda uma filosofia do sujeito que fez com que a consciência de si, a partir da
qual surgiria o cogito, fosse ontologicamente primeira, Morin completa o cogito ergo sum
cartesiano como um cogito ergo computo ergo sum. (M3, p. 137), o que evidencia o
enraizamento do cogito no mundo da vida.
Compreendemos assim o longo circuito complexo de interações e retroações, onde
cada instância contém, à sua maneira, as outras, e que parte da/chega na computação
celular, passa pelas intercomputações celulares cujo produto e também produtor é o
organismo, este último sendo produto e produtor do cérebro – grande centro de
megacomputações, ou seja, de computações de computações – que tem como emergência,
no homem, a cogitação (pensamento), a qual desemboca na extraordinária emergência
constituída pelo espírito, que por sua vez retroage sobre todos os seus múltiplos e plurais
pontos de origem, sendo também produzido incessantemente por eles. O conhecimento
espiritual (mental) - conhecimento humano por excelência - se apresenta como a última
emergência de todo um desenvolvimento cerebral em que deságua a evolução biológica da
hominização e em que ganha corpo a evolução cultural da humanidade. Devemos sempre
ter em mente, portanto, que a formação do cérebro do homo sapiens-demens não pode ser
23
Estamos aqui diante de uma palavra que certamente teria lugar de destaque se houvesse algo como um léxico da
complexidade. Em O Método 1, a noção de emergência é assim definida: “complexo de propriedades e de qualidades que,
originário de um fenômeno organizador, participa dessa organização e retroage sobre as condições que o produzem”. Uma
emergência é dotada de propriedades novas em relação ao que a produziu e (retro)age sobre seu produtor.
24
É importante que nos detenhamos no modo como Morin utiliza o termo espírito, que aqui quer dizer mente, em sentido
amplo; mais amplo, como veremos, do que “psique”. A única palavra que a língua francesa dispõe para dizê-lo é
justamente “ésprit”, que também denota o que se entende por “espiritual” – e não é nesse sentido que o vocábulo é
empregado.
25
Os códigos linguísticos e simbólicos precisam ser registrados e transmitidos em uma cultura para que o espírito possa
emergir. Há uma relação em anel (boucle) entre cérebro, espírito e cultura: “a cultura é indispensável para a emergência
do espírito e para o desenvolvimento total do cérebro, os quais são indispensáveis à cultura e à sociedade humana, as quais
só existem e ganham consistência na e pelas interações entre os espíritos/cérebros dos indivíduos” (M3, p. 85). O
conhecimento humano é, assim, dirigido por um poliprograma, composto pelas combinações complexas de um quase-
>>>
61
separada de uma evolução bio-antropo-social que fez a cultura surgir e se desenvolver. A
evolução cerebral se completa graças à evolução cultural que, por sua vez, só pôde
continuar graças ao cérebro do sapiens-demens.
Vemos, por meio desse esquema de causalidades circulares, o profundo
enraizamento que o espírito tem no corpo. Reintegrando o espírito na physys e no bios e
vice-versa, e admitindo a conjunção entre o aparelho neurocerebral-computacional e o
aparelho psíquico-espiritual-cogitante, afastamo-nos da famigerada dicotomia mente-
corpo. O grande paradigma disjuntivo que comandou a ciência e a cultura ocidental desde o
século XVII fez com que surgisse um verdadeiro abismo “ontológico, lógico e
epistemológico” (M3, p. 78) entre cérebro e espírito. Ambos sempre foram estudados
separadamente: um pelas ciências da vida, outro pelas ciências do homem. Essa disjunção
deu origem a “duas obsessões metafísicas: a do materialismo e a do espiritualismo” (M3, p.
78).
Entretanto, negar a dualidade espírito-cérebro não significa que não possamos
diferenciar esses termos; devemos conceber simultaneamente a unidade compútica e
cogística - “a unidade fundamental do espírito-cérebro” - e também “a estranheza extrema
de ambos” (M3, p. 90). Cérebro e espírito subordinam-se um ao outro e, ainda assim,
possuem uma autonomia relativa: esta é uma contradição insuperável. O espírito depende
dos processos bio-físico-químicos-sócio-culturais, sobre os quais também (retro)age.
Estamos diante de uma unidualidade complexa: uma unidade inseparável de dois termos
que admitem distinção, tem necessidade mútua, apresentam uma irredutibilidade recíproca
e mantêm uma relação circular entre si.
Assim, embora o espírito não seja uma emancipação do corpo ou uma substância
pensante (pois é antes uma atividade pensante), de fato há uma realidade objetiva das coisas
do espírito (mitos, idéias), bem como de suas regras (linguística, lógica). É no que tange às
coisas do espírito que Morin advogará pelo surgimento da Noologia, nova ciência que se
debruça sobre a existência viva de seres noológicos (ver nota 8).
c) A consciência
O cogito, que é inseparável da linguagem e exige a existência de um campo sócio-
programa (um programa aberto) genenocerebral e um quase-programa sociocultural.
62
cultural, tem como peça fundamental a consciência. A consciência é a grande operadora do
cogito. Parte de um circuito triádico composto também pelo pensamento e pela inteligência,
em que cada termo remete ao outro, ela se constitui não como órgão ou substância, mas
como emergência de miríades de inter-retroações simultaneamente computantes e
cogitantes.
Morin entende a consciência, “flor da hipercomplexidade” cerebral, como “um
retorno do espírito sobre si mesmo via linguagem: esse retorno permite um pensamento do
pensamento capaz de retroagir sobre o pensamento e, em paralelo, possibilita um
pensamento de si apto a retroagir sobre si” (M3, p. 210). Disso decorre que possuímos um
conhecimento reflexivo acerca de nós mesmos (consciência de si) que permite também que
desenvolvamos o conhecimento das atividades do espírito através delas próprias
(consciência cognitiva). Se, assim, a consciência possibilita que o sujeito se apreenda em
sua subjetividade, ela por outro lado permite que o sujeito também se conceba como objeto
(conceba o “eu” subjetivo de modo objetivo), permitindo, ademais, que ele considere o
mundo exterior.
Assim, a consciência permite que o pensamento vá se examinando, vá passando de
sistemas para metassistemas mais amplos, de pontos de vista para meta-pontos de vista,
fazendo um movimento para n graus e dimensões do conhecimento
26
. Eis a maravilha da
consciência: a hipercomplexidade do cérebro humano permite que o homem tome
consciência de seus limites sensoriais, cerebrais, lógicos, culturais, ou seja, o próprio
conhecimento pode ser desenvolvido tendo em vista o conhecimento dos limites e da
ignorância. Morin chamará o tempo todo atenção para esse aspecto de auto-exame que pode
ser proporcionado pela consciência.
A consciência comporta várias dimensões paradoxais. Sendo uma emergência do
espírito humano, a consciência jamais poderá ser compreendida como raiz das atividades
desse espírito: é, nesse sentido, epifenomenal e pode sempre ser subjugada. Por outro lado,
justamente por ser uma emergência, é capaz de retroagir sobre as partes de que é originária.
A consciência um epifenômeno no interior da maquinaria cérebro-espiritual: disto resulta
que, se o que conhecemos do que somos nela se baseia, estamos muito longe de nós
mesmos. Mas na consciência se lastra nosso egocentrismo: ela é então também o que somos
26
É esse “processo antropológico” que é desvelado nos Ensaios de Montaigne, obra de cabeceira de Morin, que
>>>
63
e estamos, assim, muito perto de nós mesmos. A consciência oscila entre seu caráter de
epifenômeno e seu aspecto de epicentro em potencial: ela se torna “auto-organizadora e
aspira a constituir-se epicentro do cérebro, o qual, como já vimos, já é o epicentro do
universo antropológico” (PP, p. 142). Contudo, apesar disso, “a consciência humana
continua, em suas diversas formas, intermitente, vacilante, epifenomenal.” (M3, p. 136).
Eis-nos, então, diante da complexidade paradoxal da consciência: ela é sempre
“subjetiva e objetivante”; “interior a si e distante de si”; “estranha e íntima”; “periférica e
central”, “epifenomenal e essencial”, “necessária e ameaçada” (M5, p. 113)
Como já dissemos, as ilusões, o erro, os ruídos que ameaçam a formação da
informação são constantes companheiros de viagem nas aventuras cogitantes do sapiens-
demens. Se essa obscura, difusa e anuviada brecha entre espírito e mundo pode ser fechada
por meio da mitologia, da ideologia, das racionalizações, ela também sempre pode ser
aberta por meio da atividade questionadora própria a consciência. Assim, Morin aposta no
auto-exame, na capacidade de se escapar das múltiplas determinações inconscientes que se
opõe ao princípio de realidade, ainda que isso só possa se dar de forma incerta e relativa,
ainda que haja esse incontornável componente mamífero que, no homem, faz com que o ser
se agarre desesperadamente a uma crença ou a uma idéia... (ver capítulo IV). Graças à
consciência, podemos, portanto, estar mais atentos aos nossos automatismos:
“podemos resistir ao imprinting, ao paradigma, à lei. Estamos, certo, fadados a
errar, mas não estamos inexoravelmente condenados ao erro, à ilusão, à falsa
consciência. Temos relâmpagos de lucidez, momentos de liberdade, apesar de todas
as servidões e, de algum modo, graças a elas. Por isso, somos máquinas não triviais
e podemos possuir o que nos possui.” (M5, p. 286).
É a consciência que permitirá ao indivíduo manifestar esse tipo de liberdade. Ela está
intimamente ligada com a qualidade de sujeito do homem, que examinaremos mais adiante.
E é por tudo isso que a consciência desempenha um papel da mais alta relevância no
horizonte utópico de Morin, como veremos no capítulo V.
d) Rumo à afetividade no âmbito cerebral: a psique e a alma
A relativa autonomia do espírito também autoriza a existência relativamente
expressam “esta possibilidade que o sujeito possui de fazer de si próprio seu objeto de estudo” (M5, p. 79).
64
autônoma de uma psique. O psiquismo é definido por Morin como o aspecto subjetivo e
individual do espírito e, assim como este último, “emerge da atividade cerebral e retroage
sobre aquilo que emerge” (M3, p. 93). O psiquismo está “enraizado no egocentrismo
subjetivo e na identidade pessoal; engloba os aspectos afetivos, oníricos, fantasmáticos da
atividade espiritual” (M3, p. 93). O espírito é, portanto, um complexo que comporta o
psiquismo, “noção que revela a subjetividade afetiva” (M5, p. 108) do homem.
Em seus comentários sobre Introdução a uma política do homem (obra publicada
em 65), José Luis Solana Ruiz afirma que, ao falar na “psique”, entendendo-a como
dimensão “psico-afetiva” do ser humano, Morin se refere “a diversas ´potências´,
dimensões e experiências humanas, tais como a afetividade (amor, ódio, angústia), a
imaginação, o sonho, o jogo, a festa, o mito e a religião, a poesia, a loucura, o mistério, o
inconsciente” (RUIZ, 2002, p. 92). A psique é o campo do espírito onde experimentamos os
eventos afetivos.
A autonomia relativa da psique torna possível “uma psicologia e uma psicanálise
relativamente autônomas”. (M3, p. 93). Para Morin, a psicanálise é, em seu princípio, uma
ciência já em muitos sentidos complexa, pois ela aponta para a complexidade bio-antropo-
social e evidencia uma dialogia complexa (relações complementares, concorrentes e
antagônicas) entre Id, Ego e Superego. Freud, ademais, sempre falou em aparelho psíquico:
este é um termo bastante apropriado, que indica “o enraizamento organizacional e orgânico
da psique” (M3, p. 93)
27
. Entretanto, a psicanálise não foi capaz de desenvolver uma teoria
bioantropológica do sujeito, nem uma teoria da relação cérebro-espírito, já que Freud
(assim como o Marx do “homem genérico”) “não podia, no seu tempo, considerar o
problema de um paradigma capaz de conceber as complexidades que revelava
(corpo/espírito, animalidade/ humanidade/sexualidade, eu/ego/superego, Eros/psique)”
(M3, p. 143). Desse modo, não se deve unicamente buscar uma determinação mecânica e
unilateral do pulsional sobre o intelectual: o que devemos conceber é um circuito retroativo
Eros-Psique. As idéias de fato deve muito de sua existência ao campo pulsional, mas
também podem relativamente libertar-se deste último e ocasionalmente retroagir sobre ele e
modificá-lo. Além disso, muitas críticas poderiam ser feitas aos discípulos dos grandes
24
O uso do termo “aparelho” será inclusive retomado e sublinhado por vários autores que desenvolveram a psicanálise ao
longo do século XX, sobretudo o psicanalista inglês Wilfred Bion (1897-1979) , que, ao meu ver, tenta construir para a
psicanálise uma epistemologia que se aproxima em inúmeros pontos da epistemologia complexa.
65
fundadores da psicanálise, que “descomplexificaram” ainda mais esse saber (como ocorreu
com o reducionismo oriundo do estruturalismo, cf. M3, p. 143), na medida em que baniram
a noção de sujeito e afastaram-se de qualquer dimensão biológica. Assim, a psicanálise
sempre oscilou entre ciência nova e ciência velha...
Além de psique, Morin também faz uso da noção de alma
28
, que talvez pudesse ser
entendida como um “precipitado” da psique. A alma “emerge a partir das bases psíquicas
da sensibilidade, da afetividade” (M5, p. 108). Podemos reconhecê-la por meio da
sensibilidade, sem, no entanto, podermos defini-la. Morin propõe assim uma reabilitação da
alma – emergência puramente afetiva - na esteira de sua postura geral de reabilitação dos
afetos, sem que isso signifique a indiferença às bases biológicas e físicas que tornam
possível sua existência: “estimo necessário restabelecer a prioridade do cérebro, descartada
pelo espiritualismo filosófico, mas estimo também necessário reabilitar a alma, expulsa
pelo objetivismo científico” (M5, p. 108).
Enquanto o espírito é “organização do pensamento e energia da vontade”, a alma “é
intuitiva, ressente e presente; é sensibilidade, com frequência, dor”. A alma (anima) está em
“complementaridade íntima” com o espírito (animus), sendo o antítodo deste último; ela é a
parte feminina do espírito hermafrodita. Conceito poético por excelência, a alma só emerge
para além da luta pela sobrevivência: encontra-se na esteira das emergências frágeis e
preciosas que Morin sempre localiza e com as quais sempre se encanta.
“A alma não é perceptível pelo olhar funcionalista ou pragmático, pois, aparentemente, não
tem função nem utilidade. Manifesta-se pelo olhar, pela emoção, pela emoção do rosto e,
sobretudo, através de lágrimas e sorrisos. Pode exprimir-se em palavras, mas a sua
linguagem própria está além da linguagem da prosa, é a da poesia e da música” (M5, p.
109).
e) A afetividade no coração da máquina cerebral
Fazendo sempre referência em seus trabalhos sobre a complexidade aos “novos
conhecimentos” relativos ao “papel da afetividade” (M5, p. 21), Morin se filia a vários
autores, também oriundos das áreas tradicionalmente identificadas como “biológicas”, para
28
Uma das razões pelas quais o conhecimento que Morin propõe é complexo deve-se ao fato de que ele reabilita uma
série de palavras que haviam sido banidas das ciências, ou que nelas tiveram seu sentido esvaziado - palavras como
>>>
66
quem todas as atividades da mente, mesmo as racionais, são acompanhadas de afetividade.
Mais do que isso: já desde o mundo mamífero, a presença e os desdobramentos da
afetividade não apenas são inseparáveis da inteligência como são essenciais para o
desenvolvimento desta última.
Morin se refere constantemente ao neurobiólogo Jean-Didier Vincent, para quem
“não há inteligência, mesmo racional, sem pathos, ou seja, sem afetividade”; fala na visão
do antropólogo José Antonio Jáuregui sobre o cérebro humano como um “computador
emocional”; repete o neurocientista António Damasio, que escreve que “existe uma paixão
fundando a razão” e que “para certos aspectos, a capacidade de emoção é indispensável à
prática de comportamentos racionais” (M5, p. 120)
29
.
As mesmas zonas do cérebro responsáveis pelos processos de raciocínio são
também encarregadas da percepção das emoções. Um déficit de emoção pode levar a um
déficit de raciocínio. Há, então, não apenas oposição, mas também complementaridade
entre paixão e razão. A paixão não apenas compromete e obscurece a consciência: sendo a
única capaz de mobilizar a razão, ela é também fator de iluminação.
A razão, em si mesma, não abarca o sentimento de realidade: “o princípio da
racionalidade só dá uma radiografia da realidade; não lhe dá substância”. O que chamamos
realidade é, assim, “o produto de uma simbiose entre o real e o vivido” (M5, p. 121).
Citando o psiquiatra Joseph Gabel, Morin reitera que “o real só é real saturado de valores”
(M5, p. 122) e acrescenta que “os valores só são valores saturados de afetividade”: “nossa
realidade é uma co-criação em que a afetividade entra com a sua parte” (M5, p. 122). Nesse
sentido, nossa realidade comporta um elemento histérico (ver capítulo III). Por mais que
necessite dos desenvolvimentos da racionalidade, a vida “precisa ser nutrida de
sensibilidade e imaginário” (M5, p. 122), conforme nos ensina o etólogo Boris Cyrulnik. É
assim que ganham vida e realidade os objetos mais prosaicos da esfera física e biológica,
mas também as entidades mais abstratas, desde a família e o povo até os deuses, espíritos, e
alma, espírito, pensamento (M5, p.19 – grifo meu).
29
Acrescentemos que muitos estudos têm insistido que a capacidade de emoção é também indispensável às práticas éticas.
Remetemos o leitor às reflexões de Michael Stocker e Elizabeth Hegeman em O valor das emoções, um estudo sobre a
relação entre afetividade e ética, em que os autores constatam que “durante os últimos cem anos (...) os filósofos em geral
têm imaginado que as emoções não são importantes para a ética” (p. 29). Colocando-se “contra as tentativas
contemporâneas de entender a afetividade contraposta à razão”, Stocker e Hegelman reiteram que “não ter emoções (...)
está profundamente ligado a erros de avaliação” (p. 41) e entendem que “a vida humana é completamente afetiva ou de
uma maneira ampla e importante constituída ou aperfeiçoada pela afetividade” (p. 379). Embora as emoções possam dar a
impressão de serem externas aos valores, elas são inseparáveis destes últimos.
67
idéias que compõem a noosfera.
Porém, de todos os recentes estudos acerca do cérebro, as pesquisas do neurologista
norte-americano Paul MacLean parecem ser as que Morin mais gosta de lembrar, sendo
citadas em vários de seus escritos, desde O Paradigma Perdido até as apresentações mais
informais sobre a complexidade. Talvez pudéssemos dizer que esses estudos funcionam
como uma introdução epistemológica, no campo cerebral, à problemática do homo sapiens-
demens.
A concepção de MacLean oferece-nos uma base filogenética e organizacional para
conceber as características hipercomplexas do cérebro. Mac Lean pretendeu analisar o
cérebro do ponto de vista da herança filogenética. Assim, distingue “três cérebros” em um:
a) o paleocéfalo (herança do cérebro réptilico), que comporta o hipotálamo – fonte da
agressividade, do cio, das pulsões primárias, “centro da procriação, da predação, do instinto
de território” (PP, p. 140); b) o mesocéfalo (herança do cérebro dos antigos mamíferos), em
que o hipocampo liga o desenvolvimento da afetividade ao da memória a longo prazo,
responsável pelos fenômenos afetivos; c) o córtex associativo, que, bastante simples nos
peixes e répteis, se hipertrofia nos mamíferos até envolver todas as estruturas do encéfalo e
formar os dois hemisférios cerebrais; depois, no homem, o neocórtex, que atinge um
desenvolvimento extraordinário, sendo considerado por MacLean “mãe da invenção e pai
da abstração” (cf. M3, p. 104): trata-se do centro das aptidões analíticas, lógicas,
estratégicas, decorrentes da possibilidade de o homem poder agora “abrir-se ao mundo
físico e social em torno, analisá-lo na multiplicidade de detalhes e na diversidade de
esquemas de organização” (Changeux apud M3, p. 104). Todas essas aptidões do neocórtex
se atualizam graças à cultura. Em função da presença do espírito, podemos considerar que a
relação triúnica cerebral torna-se também trilógica (psíquica).
O que interessa a Morin nessa idéia não é sua leitura simplificadora, que apenas
considera o cérebro humano como portador de três estratos cerebrais superpostos que
apenas se somariam, e sim sua versão complexa – a que entende o cérebro como órgão
triúnico, como uma trindade, uma unidade que é a mesma, sendo tripla. Tal abordagem
revelaria, “do seu jeito, a integração na unitas multiplex cerebral humana da herança animal
superada mas não abolida” (M3, p. 104). Assim, deve ser considerada a presença de três
subsistemas de uma máquina policêntrica.
Além dessa fundamental inscrição da animalidade no nó górdio da humanidade – o
68
cérebro-, o cérebro de Mac Lean nos ilustra também com bastante clareza a
hipercomplexidade cerebral:
“ao contrário do que nos pareceria lógico, não há hierarquia razão/afetividade/pulsão, ou,
antes, há uma hierarquia instável, em permutação, rotativa entre as três instâncias, com
complementaridade, concorrência, antagonismos e, conforme os indivíduos ou os
momentos, conforme as situações vividas, com dominação de uma instância e inibição das
outras.” (M3, p. 104).
Os três subconjuntos apresentam relações mútuas e fracamente hierarquizadas entre si, o
que gera uma ação combinatória entre ordens e desordens, regulações e desregramentos,
operações lógicas, impulsos afetivos e instintos vitais primários. Há portanto uma conexão
complexa entre racionalidade, afetividade e pulsão e uma instável, mutante e rotativa
hierarquia entre essas três instâncias
30
. O conhecimento mais racional é frágil e mobiliza
afetividades e pulsões, pela quais pode ser dominado. A afetividade invade as outras duas
instâncias, que também a invadem. A agressividade pode servir-se da lógica e empregar a
racionalidade mais técnica para administrar, organizar e justificar seus empreendimentos.
O controle pelo córtex superior é incerto, instável, débil... Assim, compreendemos mais
uma vez de que modo “a porta está sempre aberta à hubris afetiva” (PP, p. 141).
Contudo, ainda que a hierarquia entre razão, afetividade e pulsão seja incerta, há um
interessante papel aí desempenhado pela afetividade: reencontramos, no âmbito do cérebro
triúnico de MacLean, a imagem da afetividade como encruzilhada. Ocorre que o
mesocéfalo, herança do cérebro dos antigos mamíferos e responsável pelos fenômenos
afetivos, comporta o hipocampo, que “parece ser a encruzilhada entre as mensagens de
´baixo´ e de ´cima´, da pulsão e da inteligência” (M3, p. 105). Assim, é certo que a
racionalidade constitui-se apenas como um dos termos da trindade cerebral-psíquica e
nunca está isolada, podendo freqüentemente ser obsurecida e manipulada. Já a afetividade,
“em contrapardida”, é “onipresente” (M5, p. 123) nesse sistema trinitário.
Arthur Koestler, um dos autores que ajudaram a desenvolver a noção do cérebro
triúnico, lamenta-se por esse “problema de fabricação” do cérebro humano: ele se ressente
que “o poder hierárquico escape à razão neocortical”. Mas, diz-nos Morin,
30
As hierarquias instáveis e rotativas no cérebro não seo apenas entre as três instâncias razão-afetividade-pulsão.
Embora o cérebro triúnico de MacLean talvez seja um dos aspectos cerebrais mais citados, em O Método 3 são analisadas
outras instâncias cerebrais que também operam de modo semelhante e que devem ser associadas à complexidade triúnica:
a uni-dualidade complexa dos hemisférios cerebrais e dos feixes hormonais (um ligado à ação e ao prazer, outro inibidor
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69
“esse vício de fabricação é a outra face – demencial – da virtude nativa – genial – do
trissistema que, precisamente pelo fato de não ser verdadeiramente hierarquizado, é
verdadeiramente dialetizado, isto é, permite a irrigação do logos pelas forças profundas da
afetividade, os sonhos, as angústias, os desejos, fazendo do cérebro do sapiens, na verdade,
um sistema hipercomplexo” (PP, p. 143).
Reencontramos novamente, assim, a problemática da profunda e ambivalente dialogia entre
homo sapiens e homo demens.
********
Vemos assim como a presença da afetividade no nível cerebral-espiritual-psíquico-
anímico deve ser compreendida de modo complexo, sem que caiamos nos vícios
disjuntivos que a encerram ora no interior de um materialismo biologizante, ora dentro de
um espiritualismo idealista sem qualquer enraizamento no mundo da vida. Para que esse
quadro possa ser completado e para que se desenhe melhor o papel da afetividade no campo
bioantropológico, uma breve incursão na animalidade da afetividade e do amor, bem como
em seus desenvolvimentos ao longo do processo de hominização, será agora realizada.
5. Animalidade/humanidade da afetividade e do amor
a) O supermamífero
A grande novidade do homem, o surgimento da esfera demens, não está ligado
exatamente ao surgimento da afetividade, mas sim aos novos desdobramentos desta no
âmbito humano. A afetividade tem sua origem no mundo mamífero, no qual sua presença
vincula-se estreitamente ao desenvolvimento da inteligência, da memória e da capacidade
estratégica de conhecimento, aprendizagem e ação. Assim, o elo de descendência entre o
ser humano e os primatas surge não só por nossa anatomia e fisiologia, mas também pela
afetividade e pela inteligência, enriquecidas mutuamente.
Animais de sangue quente, os mamíferos nascem em um mundo frio: “nascem na
da ação e incitador da morosidade e da depressão).
70
separação, mas, em seus primeiros tempos, vivem numa união quente com a mãe” (APS, p.
19). O calor humano – literalmente – exerce um papel primordial no estabelecimento das
relações de proximidade entre dois indivíduos: “é no calor da ninhada amontoada sob a mãe
que se estabelece a relação afetiva, o laço que continuará depois da infância e, entre os
humanos, até a idade adulta e mesmo senil” (APS, p. 52).
O beijo, surgido no mundo humano, é um desenvolvimento da relação, já presente
entre os mamíferos, entre afetividade e boca: “tudo aquilo que vem da boca já se torna algo
que fala do amor, antes mesmo de qualquer linguagem: a mãe que lambe o filho, o cão que
lambe a mão” (APS, p. 19). Poderíamos nos perguntar se não estaríamos diante de uma
projeção antropomórfica epistemologicamente perigosa quando atribuímos afeto a um cão
que nos lambe a mão. Morin admite a validade dessa desconfiança, mas pondera que, de
qualquer maneira, tal projeção “é mais verdadeira do que uma projeção mecânica, do tipo
animal-máquina de Descartes, que implicaria dizer: ´eis aqui uma máquina que reage a
estímulos´” (APS, p. 18)
31
.
Enquanto nos mamíferos o contato afetivo com os pais desaparece rapidamente, nos
primatas e sobretudo nos humanos a relação infantil com a mãe e a afetividade juvenil
intensificam-se e prolongam-se até a idade adulta. Os humanos ampliam as características
lúdicas mamíferas e desenvolvem a fraternidade e a solidariedade (que surge nos
mamíferos como confraternização contra o exterior), bem como a rivalidade (que comporta,
nos mamíferos, competições pelo alimento, pelo sexo, pelo poder). Por isso, podemos
considerar o homem um “hipermamífero”: ele “desenvolve em amor e ternura, cólera e
ódio, a afetividade dos mamíferos” (M5, p. 30).
A intensidade da afetividade humana está ligada à juvenilização e à infantilização
do indivíduo: entre todos os animais, o ser humano é o menos acabado, ou seja, o mais
31
Além disso, umas das desconfianças que os termos “afeto” e “amor” podem gerar, quando referidos aos animais, advém
de uma visão de mundo essencialmente catastrófica, que leva em consideração uma fatal e incontornável crueldade na
natureza em geral e no mundo animal em particular. Trata-se de uma visão do mundo animal-natural como uma guerra de
todos contra todos e como um império de instintos necessariamente egoístas. Ora, um dos pontos de vista da biologia
contemporânea – refiro-me aos trabalhos de Maturana e Varela – conduz-nos a questionar a idéia de que a natureza é
“vermelha nos dentes e nas garras”, como disse um contemporâneo de Darwin (MATURANA E VARELA, 2001, p. 219).
Segundo esses autores, mesmo a proposta darwinista não deveria ser interpretada como uma “lei da selva”. A visão do
animal como um ser egoísta é falsa, seja porque as instâncias de comportamento que podem ser descritas como altruístas
são quase universais, seja porque a evolução natural não requer, para ser compreendida, uma visão individualista, na qual
o benefício de um indivíduo significa o prejuízo de outro. A evolução natural não é tanto uma competição, mas a
“conservação de uma adaptação”: é “um encontro individual com o meio que resulta na sobrevivência do apto”
(MATURANA E VARELA, 2001, p. 219), e não a sobreviência do mais apto, o que denotaria uma competição. Mesmo
no mundo animal extra-primático, egoísmo e altruísmo podem se confundir (Maturana e Varela nos dão o exemplo do
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71
aberto aos moldes oferecidos por seu meio circundante. Por isso, a marca existencial da
necessidade e do desejo
32
, já presente nos animais superiores, só cresce no sapiens-demens,
que se torna “cada vez mais sacudido por necessidades insaciáveis e desejos infinitos” (M3,
p. 140). A criança humana exprime o que não se encontra em nenhum outro filhote da
natureza: uma vertiginosa aflição quando está frustrada e um verdadeiro êxtase de alegria
quando se satisfaz. A linguagem humana não se baseia unicamente em necessidades
práticas e utilitárias, mas também responde a necessidades de comunicação afetiva: o
prazer de se comunicar com o outro.
b) O Eros
Só no homem os gozos podem atingir um aspecto vertiginoso e sísmico. Nenhum
outro animal, nem mesmo primata, tem a capacidade de atingir orgasmos tão intensos e
convulsivos. O orgasmo feminino é praticamente nulo entre os antropóides. A sexualidade,
que nos primatas é apenas sazonal, no homem ultrapassa o âmbito genital, espalha-se por
todo o ser, torna-se consumição, metamorfoseia-se, invade “todas as estações do ano, todas
as partes do corpo, as fantasias, e irriga até mesmo as mais sublimes atividades intelectuais”
(PP, p. 121) e os êxtases religiosos. O homem é um animal hipersexuado, que opera
ligações entre o que parece mais genético, a sexualidade, e as atividades superiores do
intelecto e do espírito. Assim, ao sublimar “o que, fora do lúbrico, parece imundo” (M5, p.
40), o erotismo é, no dizer de Georges Bataille, “a realidade mais emocionante, mas que
não deixa de ser, ao mesmo tempo, a mais ignóbil” (apud M5, p. 40).
A pulsão réptil do cio, presente no cérebro triúnico, “dissemina-se, transforma-se e
complexifica-se em erotismo e sensualidade” (M5, p. 123). Desse modo, o Eros surge
como emergência quando o espírito se encontra com o sexo. Ambos se interpenetram: o
espírito se erotiza, o sexo se espiritualiza e adquire caracteres psíquicos, ou seja, há tanto
intrusão do sexual no psíquico quanto retroação do psíquico sobre o sexual, que é
submetido a inibições e excitações, produzindo delírios e fantasias. Assim, Morin é
antílope, altruisticamente egoísta e egoisticamente altruísta).
32
A existência é definida “em função da precariedade e da incerteza próprias à vida de um ser cuja autonomia depende do
seu meio” (M3, p. 140). Os aspectos existenciais permanentes da vida animal são “a falta, a insuficiência, o perigo, e os
animais superiores são particularmente seres de necessidades, pulsões, desejos, inquietudes, temores, sempre em busca e
errantes” (idem).
72
bastante inspirado pela psicanálise: a idéia de sublimação lhe é bem-vinda, mas deve ser
complexificada, ou seja, não devemos restringir-nos à “determinação unilateral do pulsional
sobre o psíquico” (M3, p. 143). Por constituírem-se como emergências, “nossas idéias mais
puras têm, certamente, uma fonte impura, mas podem relativamente emancipar-se, ou seja,
liberar-se das suas condições existenciais de emergência e, eventualmente, retroagir sobre
tais condições e modificá-las” (M3, p. 143). Existe, portanto, um circuito que vai de Eros à
psique e da psique a Eros.
Entendido agora como conjunção entre Eros e alma, surge o amor. O amor é a
“simbiose entre o clamor do sexo que vem das profundezas da espécie e o chamado da alma
que busca adorar” (M5. p. 40). Emergência maior da afetividade, ele é a “síntese sublime
decorrente da combinação da sexualidade, do erotismo e da ternura” (PP, p. 170). Desde o
nascimento, o homem se depara com a necessidade visceral de amor: o amor materno é
vital ao recém-nascido, sendo fator insubstituível de desenvolvimento físico e mental.
O amor sexual, “inclusive homossexual, mobiliza as profundezas biológicas do ser
– animalidade da animalidade – e as suas profundezas psíquicas – humanidade da
humanidade” (M5, p. 122). Assim, o complexo de amor conta, por um lado, com um
aspecto biológico, “que não se reduz ao componente sexual, mas inclui o engajamento do
ser corporal” (APS, p. 16) e, por outro, com componentes mentais (espirituais),
linguísticos, mitológicos e imaginários. A erotização do rosto e da boca decorrente do
surgimento do coito face-a-face possibilita que a face humana una os eixos mitológicos e
físicos do amor: “o rosto permite cristalizar, em si mesmo, todos os componentes do amor”
(APS, p. 26). No rosto encontramos os olhos, identificado pela “mitologia humana como
uma das localizações da alma”, e a boca, que além de contar com funções fisiológicas “é
também a via da passagem da respiração, que corresponde a uma concepção antropológica
da alma” (APS, p. 26). O beijo na boca concentra todos os poderes biológicos, eróticos e
mitológicos da boca. Com o cinema, o poder do rosto ganha uma especial dimensão: “os
grandes planos do rosto torna-se grandiosos e isso porque nele se concentra a totalidade do
amor” (APS, p. 26).
O amor humano atinge intensidades paroxísticas, tendendo “a tornar-se consumição,
alimentando todas as forças imaginárias, provocando adoração e exaltação, criando em
qualquer civilização uma mitologia maravilhosa, levando à realização poética suprema do
êxtase” (M5, p. 122).
73
Diante de tudo isso, encontramo-nos com fórmula de Rimbaud, que Morin fornece à
pesquisa sobre o amor: “a pesquisa de uma verdade que se situe, simultaneamente, numa
alma e num corpo” (APS, p. 31).
c) O desenvolvimento da afetividade ao longo da hominização
O processo de hominização, ao apertar os elos entre mãe e filhos, mulher e homem,
e posteriormente aproximar homem e filho, permite que os laços afetivos se estreitem.
As ligações entre mulher e homem fortificam-se a partir da erotização generalizada
e da sexualização permanente, não mais limitadas apenas ao estro (o momento em que a
fêmea torna-se atraente). Com a verticalização do hominídeo surge a cópula frontal, que
permite o amor face-a-face, ao passo que nos primatas a união sexual se realiza por trás.
Isso viabiliza a erotização do rosto e da boca e, por conseguinte, o desenvolvimento da
individualização, a qual - somando-se à conservação no adulto da capacidade infantil de
amar -, possibilita o desabrochar das relações interindividuais. Surge assim a base
psicoafetiva constituinte do casal, que se realiza socialmente por meio do casamento.
A manutenção por toda a vida das relações afetivas oriundas da infância apresenta
particular importância sociológica, pois a estrutura biológica associada à reprodução poderá
tornar-se, via família, “uma microestrutura social permanente que, desde então, se
autoperpetuará e se autoproduzirá de si mesma” (PP, p. 173). Assim, nas sociedades
arcaicas haverá a “utilização de um modelo biológico de organização, transferindo-o e
transformando-o” (PP, p. 178). A sociedade então passa a se conceber “como uma
fraternidade, saída de uma substância maternal a que se deve amor, guiada por uma justa
autoridade paterna” (PP, p. 179). Trata-se de um “mito biofamiliar” que produz um
sentimento de comunidade no interior do clã, e, quando a arkhè-sociedade for ultrapassada,
“esse mito poderá ser estendido à tribo, à etnia, à nação mãe-pátria a quem seus ´filhos´
devem amor e obediência” (PP, p. 179).
Da proximidade entre homem e mulher, começam a surgir os laços entre homem e
filho. Como sabemos, em muitas sociedades arcaicas a paternidade genética não é
reconhecida como tal; entretanto, há a paternidade psicológica, que desperta quando a
autoridade protetora/repressiva da bioclasse masculina torna-se próxima à criança, seja por
74
meio do irmão da mãe, seja por meio do companheiro desta
33
. A figura paterna é, ao
mesmo tempo, protetora e inimiga, pois reprime os desejos infantis e se apropria de parte
da ternura da mãe. Com o pai e as relações ambíguas por ele criadas, surge, juntamente
com o núcleo familiar, a complexidade, ou seja, as contradições internas à microestrutura
representada pela família. A partir daí, a vida afetiva é profundamente complexificada e a
personalidade humana passa a ser marcada por pronunciadas ambiguidades entre ternura e
sexualidade, fantasia e realidade. A regulamentação da sexualidade e a institucionalização
da família despertarão nos indivíduos “um formigueiro de problemas subjacentes”,
problemas “demasiado esquecidos pela antropologia, mas bem revelados pela psicanálise”
(PP, p. 175) (embora reduzidos à dimensão genital por esta última). A partir do momento
em que exogamia e proibição do incesto tornam-se necessidades organizacionais,
casamento e desejo poderão entrar em conflito, sentimentos familiares estarão
ambiguamente associados a sentimentos eróticos.
“Amor, casal, casamento passarão, então, a poder constituir termos complementares, mas
também concorrentes e antagônicos, com uma nova complexidade introduzindo-se em nível
interindidividual, fonte de alegrias, de tristezas, de exaltações, de dramas, de felicidades e
de desesperos” (PP, p. 171).
Desse modo, criam-se “retículos clandestinos de amores proibidos e labirintos
secretos de desejos ilícitos, [aumentando] a complexidade social e [repercutindo] sobre a
hipercomplexidade cerebral” (PP, p. 175). A atração erótica “torna-se fonte de
complexidade humana, provocando encontros improváveis entre classes, raças, inimigos e
inimigas, senhores e escravos. O Eros irriga mil redes subterrâneas presentes e invisíveis
em qualquer sociedade, suscita miríades de fantasias em cada espírito” (M5, p. 40).
Eis-nos diante de outra faceta do amor: sua força subversiva. Associado ao desejo,
ambos “ultrapassam, transgridem normas, regras e interditos (...) A selvageria do amor o
conduz à clandestinidade e à transgressão” (APS, p. 22). Ainda que “decorrente de um
desenvolvimento cultural e social” (APS, p. 23), o amor – “que nunca, mas nunca mesmo,
conheceu lei” (M5, p. 40) - “não obedece à ordem social: quando aparece, ignora barreiras,
despedaça-se nelas ou simplesmente as rompe. O amor é filho de ciganos, é ´enfant de
33
A imagem do pai se liga à imagem do chefe, mas, “contrariamente à vulgarização psicanalítica, a imagem
do chefe não é uma derivação da imagem paternal, é a imagem paternal que é uma derivação, sobre a família,
da imagem do chefe que, evolutivamente, é muito anterior” (M2, p. 483). A figura do chefe já está presente
entre os mamíferos. O chefe aí “não é o pai do grupo, mas o big brother” (idem).
75
bohème´” (APS, p. 23).
6. As grandes angústias
a) A insuportável realidade e a neurose
Human kind cannot bear too much reality” (“A humanidade não consegue
suportar muita realidade”), repetirá sempre Morin, citando T. S. Eliot. A consciência
apresenta um caráter angustiante e doloroso, o que faz com que lhe sejam inerentes
regressões e perversões que camuflam a realidade.
Isso se deve à presença da afetividade, que “comporta uma dimensão [que] toma a
forma de inquietude, de ansiedade, de aflição, já presentes no mundo animal e que, no
mundo humano, aprofunda-se em angústia e exacerba-se em horror” (M5, p. 123).
Enquanto no animal não-humano essa ansiedade está ligada à vigilância e ao alerta diante
do perigo, no homem ela está relacionada à emergência da consciência, que revela a morte
e o tempo irreversível, negando as aspirações subjetivas humanas e gerando as grandes
angústias existenciais. Outro fator antropológico de angústia é o distanciamento do mundo:
o mundo externo e circundante é percebido como alheio e nossas relações com ele são
marcadas pela insegurança e pela falta de certezas, o que origina, “por contragolpe, a
tendência mitológica para reintegrar o homem no mundo” (PP, p. 153). A ansiedade
antropológica está, portanto, ancorada na “dupla brecha da morte e da incerteza” (PP, p.
152).
Mas há outros elementos que sobrederminaram essa ansiedade interior. Há o medo
do castigo e a introjeção da culpabilidade, galvanizadas pelo surgimento do pai como
protetor/repressor da família e da sociedade
34
. A própria hipercomplexidade cerebral, com
suas instabilidades e aspectos crísicos, é também fonte de angústia, de modo que “só por
sorte encontra-se, de modo duradouro, a ´paz da alma´” (M5, p. 154).
Com a entrada em cena das grandes angústias humanas, a subjetividade impregna a
realidade com suas secreções e surgem as grandes “crises da consciência das quais jorram
mitos grandiosos” (M3, p. 216), ou seja, o princípio do desejo lança-se em um embate com
34
Aqui, novamente, Morin critica à psicanálise por ter reduzido a angústia apenas a essa fonte familiar, que de modo
>>>
76
o princípio de realidade
35
. O princípio de realidade não pôde instalar-se completamente no
homem, por este não poder suportar a crueldade da realidade: “daí as inúmeras dificuldades
para a emergência de uma consciência lúcida” (M5, p. 113). É nesse sentido que surgem as
“regressões da consciência”. Morin faz constante referência ao texto de Freud O Futuro de
uma Ilusão, em que a religião, fenômeno histórico surgido do desenvolvimento mitológico
e institucional da magia, é vista como a “neurose obsessiva da humanidade”. Há um
compromisso neurótico entre o homem e a insuportável realidade, “no sentido de que toda
neurose é um compromisso entre o espírito e o real, que suscita condutas e ritos para
atenuar e conjurar a sua crueldade” (M5, p. 143). Assim, os mitos ajudam “não a negar a
realidade, mas a tecer uma realidade mais suportável” (M5, p. 124). O mito é mobilizado
para que se obtenha reconforto sobrenatural, o imaginário é ativado para a proteção da
alma, fazendo com que a neurose se constitua como resposta, de caráter mágico-ritual, às
ameaças decorrentes das múltiplas fontes de incertezas, angústias e ansiedades. Para Morin,
“Marx tinha bem razão em ver [na religião] um consolo” (M5, p. 144). O indivíduo é
aliviado de sua angústia e o espírito humano, livre da dúvida corrosiva, torna-se mais
confiante e seguro
36
. A fé religiosa é “uma força profunda que faz suportar e combater a
crueldade do mundo”, pelo menos “no que diz respeito ao fiel (pois seu fanatismo
contribui, com frequência, a aumentá-la)” (M5, p. 143). Ao oferecer segurança e consolo,
as religiões também estimularam os excesso do homo demens e reprimiram as
possibilidades de um pensamento autônomo.
Entretanto, a angústia humana não é só fonte de perversões da consciência: ela
também estimula a curiosidade do sapiens e conduz a inquietações e crises que, por meio
de uma busca errante de soluções, podem levar a progressos e inventividades. A neurose
tampouco deve ser interpretada unicamente como produtora de escapes para mundos
imaginários. Ela também está a serviço das realidades organizacionais da sociedade,
algum é sua fonte primária.
35
Morin se refere constantemente a esses dois princípios, que parece retirar do texto freudiano “Formulações sobre os
dois princípios do funcionamento mental”, de 1911.
36
De todos os ritos neuróticos engendrados pelo homem, aquele que mais revela os universais neuróticos do
comportamento humano é o sacrifício. Sendo considerado por Morin “o rito mais disseminado, mais enraizado, mais
arcaico”, o sacrifício exorcisa não só a desordem e a incerteza exteriores, mas também “as prodigiosas forças de desordem
e as incertezas ontológicas que seu cérebro fez surgir no mundo” (PP, p. 158). O sacrifício, grande e fundamental
operação mágica, “nó górdio mitológico de extraordinária riqueza” (M3, p. 179), comportando “uma verdade mitológica
essencial” (M3, p. 182), insere-se no grande eixo mítico da morte-renascimento. Ao renovar as forças da vida, ele purifica
a coletividade transferindo o mal para um bode expiatório. O sacrifício se situa na encruzilhada deste e de outro universo,
“unindo-os num ato sangrento”, “em que o sangue da vítima renova periodicamente e, caso seja necessário, com urgência,
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77
inscritas nas exigências da realidade exterior. A presença do mito articulada ao pensamento
racional (o que será abordado no próximo capítulo) “pode até mesmo ser considerada como
um fator seletivo para a espécie humana: esse duplo acompanhamento contribui fortemente
a tornar suportável a insuportável realidade sem, contudo, nos cegar totalmente” (M5, p.
151). Além disso, na tendência do espírito humano e do compromisso neurótico de criar um
mundo que faça sentido e de segregar para todas as coisas uma explicação e uma
legitimação, fantasias arbitrárias misturam-se “inextricavelmente” a uma “lógica
ordenadora, uma sutileza interpretativa surpreendente” e a “intuições profundas” (PP, p.
180).
A neurose não deve, então, ser circunscrita ao universo fechado da psiquiatria, pois
sua definição é válida para a natureza humana. Ela se constitui por meio de um duplo
compromisso: tanto com o meio-ambiente e a realidade exterior quanto com a realidade
interior do próprio homem, ou seja, com as forças noológicas presentes em seu espírito,
suas “próprias fantasias, sua própria desordem, sua própria hubris, suas próprias
contradições, sua própria natureza crísica” (PP, p. 158). A cultura exerce aí um papel
fundamental, na medida em que acena com a possibilidade de libertar os indivíduos “da
busca errante e angustiante de um compromisso, oferecendo-lhes patterns adaptativos de
segurança e de purificação” (PP, p. 158).
b) A noção de self-deception
Há uma outra importante forma de regressão da consciência, igualmente oriunda da
natureza e da estrutura paradoxais da consciência. Trata-se de um “fenômeno antropológico
capital” (M3, p. 215): a self-deception (o auto-engano). O ego é uma unidade composta por
uma incrível pluralidade de elementos, cujos recalques e inibições “permitem
extraordinárias fragmentações e cruzamentos de consciência e de inconsciência, disso
resultando os fenômenos mais constantes e os mais surpreendentes do espírito humano: a
ignorância de si, a dissimulação e a mentira para si mesmo” (M3, p. 64), que se encarnam
nas auto-justificações racionalizadoras, nas falsas memórias, no auto-cegamento....
Considerado por Morin “um problema central, que diz respeito a cada um”, o fenômeno da
self-deception foi “ignorado pelas teorias do conhecimento e pelas epistemologias,
o pacto de vida e de morte entre o mito e o homem” (M3, p. 180).
78
simplificado e mutilado pelas psicanálises(M3, p. 249), concernindo à epistemologia
complexa.
c) As participações afetivas e o amor
As angústias e ansiedades decorrentes dos horrores da existência humana, nunca
podendo ser totalmente aniquiladas, podem ser recalcadas não apenas pelo mito, pela
religião e pelas racionalizações dogmáticas que submetem o mundo ao espírito
37
, mas
também pelas atividades da vida cotidiana, pelas participações no ser social coletivo
38
e
pelas participações afetivas em geral. Entre os modos de domínio das angústias
existenciais, o papel das "participações" é freqüentemente sublinhado. Nelas, o homem
projeta sua individualidade naquilo em que participa, experimentando uma forma de
comunhão. Na maioria das participações, produz-se uma "tripla exaltação": uma exaltação
biológica (sentir intensamente a vida, fervor vital), uma exaltação egóica (ligada ao Ego e
ao orgulho pessoal) e uma exaltação do valor do qual participamos. É “esta tripla exaltação
o que, na maioria dos casos, fornece uma capacidade de enfrentar a morte" (HM, p. 77).
No campo das participações afetivas, destaca-se o amor, “forte como a morte” (o
título do romance de Guy de Maupassant que Morin tanto cita) (cf. M5. p. 123).
Em meio a uma civilização marcada - da ciência à vida social e individual - mais
pelo diabolus (separador) que pela religação,
"por termos de assumir a incerteza e a inquietude e por existirem muitas fontes de angústia,
necessitamos de forças que nos amparem e unam. Precisamos de religação, pois estamos
numa aventura desconhecida. Devemos assumir que estamos aqui sem saber a razão. As
fontes de angústia existentes levam-nos a necessitar de amizade, amor e fraternidade, os
seus antítodos." (M6. p. 104, grifo meu).
Muitos mecanismos de recalque das angústias prestam-se a efeitos colaterais que liberam as
demências destruidoras e as barbáries da hubris agressiva (como é o caso das religiões de
salvação celeste e das religiões de salvação terrestre, como o messianismo marxista). Nesse
37
Quanto a essas racionalizações, ver sobretudo capítulo IV, item 3.
38
Em O Homem e a Morte, focando-se nesse tipo de participação, Morin revela "como o horror diante da morte depende
estreitamente de quão desligado encontra-se o indivíduo em relação a seu grupo social; como, reciprocamente, a presença
imperativa do grupo aniquila, rechaça, inibe ou adormece a consciência e o horror da morte" (HM, p. 36). Em nossas
sociedades, marcada por uma maior autonomia do indivíduo, a participação social, pelo menos no modo como era
exercida nas sociedades tradicionais, tem mais dificuldade em se constituir. Somos, assim, obrigados a lançar mão de
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79
sentido, o amor e sua poesia, por mais que contenha perigos (ver capítulo V), talvez seja a
forma mais realista, e menos sujeita a extravios perigosos, de suportar a crueldade do
mundo: “o amor talvez represente nossa religião e nossa doença mental mais verdadeira”
(APS, p.30).
Assim, “a resposta à angústia é a comunhão, a comunidade, o amor, a participação,
a poesia, o jogo...” (DNH, p.39, tradução minha).
d) As transformações da consciência e o desabrochar do amor
Para exemplificar os progressos e transformações da consciência ao longo da
história, Morin faz freqüente alusão ao conceito de bicameral mind, retirado do psicólogo
norte-americano Julian Jaynes, autor de A origem da consciência e a ruptura do estado
bicameral.
Segundo Jaynes, nos antigos impérios, os sujeitos tinham suas consciências cindidas
em duas câmaras mentais (que não se confunda isso com os hemisférios cerebrais): uma
relativa à vida privada, às relações familiares, onde se exercia uma maior autonomia
pessoal, e outra ocupada pelos deuses, pelo poder soberano teocrático, pelo rei-deus, pelos
sacerdotes, pela vida na sociedade, pelas ordens que vem de cima na hierarquia social (tida
por sagrada), que garantia uma obediência incondicional à ordem do império: “a pessoa
obedece como um zumbi a tudo o que é decretado” (APS, p. 21). A partir da Atenas do
século V, abre-se uma brecha na barreira que separava as duas câmaras na mente dos
indivíduos. A câmara voltada à vida privada perde sua excessiva trivialidade, ao passo que
a hipersacralidade deixa de se prender à câmara dos deuses e do império.
Para Jaynes, a irrupção plena da consciência humana está ligada ao desabamento
desse bicameralismo do espírito. O cidadão, na sociedade laica, passou a ter o direito da
análise e da opinião sobre a cidade, sobre o mundo, sobre sua vida pessoal, já que esse tipo
de questionamento antes não lhe era permitido. O espírito individual deixou de estar
fechado no estreito círculo da vida privada. Na democratização da sociedade, os indivíduos
se submetem a deveres, mas para que possam usufruir de seus direitos. É com as sociedades
históricas que a consciência conhece uma nova nascença, já que antes, por mais que
outros tipos de participação.
80
houvesse uma consciência, esta era mais pronunciadamente recalcada e circunscrita pelo
mito. Do pleno desabrochar do indivíduo decorre a “importância antropológica da
democracia” (M5, p. 275).
Ora, essa transformação da consciência
39
e essa complexificação e laicização da
sociedade também permitirá o desabrochar do amor. A adoração e o culto às divindades, a
sacralidade antes restrita a uma das câmaras, encarnam-se na pessoa amada e invadem o
amor privado: este se torna o local onde se derrama a seiva do sagrado, antes reservada aos
Deuses do Estado. O amor só pode surgir plenamente em uma civilização que permite a
autonomização individual:
“tudo aquilo que advém do sagrado, do culto, da adoração, pode, então, projetar-se sobre
um indivíduo de carne que constituirá o objeto da fixação amorosa. O amor adquire
expressão no reencontro do sagrado e do profano, do mitológico e do sexual. Será cada vez
mais possível realizar experiência mística, extática, a experiência do culto e do divino,
através da relação de amor com um outro indivíduo” (APS, p. 21).
É assim que “se generaliza e se multiplica o amor entre pessoas, amor que comporta uma
parte de mitologia e de religião e que poetiza as existências individuais” (M5, p. 160).
7. O sujeito sapiens-demens
a) Egoísmo e altruísmo
A noção de sujeito é essencial para o pensamento e para a epistemologia da
complexidade. O homo sapiens-demens não pode ser compreendido sem que nele vejamos
sua característica de sujeito. A presença da afetividade no homem tem que ser entendida no
interior de sua condição de sujeito complexo. Igualmente, tudo o que falamos sobre
espírito, sobre consciência, sobre psiquismo, fica mal-compreendido se não nos ativermos à
essa noção, pois quem conhece não é nem um cérebro, nem um espírito, mas um ser-sujeito
por meio do cérebro-espírito.
40
Mesmo a ética complexa só pode partir de uma concepção
39
Para Morin, a consciência pode, sim, evoluir. Mas isto não quer dizer que haja, como muito tempo se acreditou, um
desenvolvimento simultâneo da história, da razão e da consciência. Novas formas de obscurantismo sempre despontarão.
Os progressos da consciência não são jamais lineares; são difíceis, aleatórios, sujeitos o tempo todo a retrocessos de todas
as ordens.
40
Morin se pergunta com Francis Crick: “se o nosso cérebro é um aparelho de televisão, quem o olha?” e retoma as
palavras de Stephen Toulmin: “um ser humano é um ser humano, nem observador fechado no próprio sensorium, nem
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81
complexa de sujeito. Além disso, a presença dessa temática neste trabalho se justifica na
medida em que a própria definição de sujeito comporta, como veremos, uma fundamental
dimensão ligada à problemática da afetividade.
Uma grande tradição filosófica ocidental baseou-se na noção de sujeito, sem
entretanto nunca inscrevê-lo no mundo da vida. Nesse sentido, o conceito de sujeito
esboçado por Morin “difere radicalmente daquele dos filósofos do Ego transcendental ou da
consciência fundadora” (M3, p. 53) Por outro lado, todo pensamento que ataca e persegue a
noção de sujeito deve ser criticado: a ciência determinista, o estruturalismo, a filosofia
positivista.
A primeira definição de sujeito se refere à lógica de auto-afirmação do indivíduo
vivo e está ligada à lógica da própria vida: “ser sujeito implica situar-se no centro do
mundo para conhecer e agir” (M5, p. 75); ou, nos termos de O Método 3, ser sujeito é
“situar-se no centro do seu mundo para computá-lo e computar-se” (M3, p. 52): o ser-
sujeito, ser vivo, realiza uma computação de si, a partir de si, em função de si, para si e em
si. A definição de sujeito não é, assim, antropocêntrica, pois não se limita à experiência
humana. Qualquer organização viva apresenta a característica de sujeito.
Na auto-afirmação do indivíduo-sujeito opera um princípio de exclusão, em que é
realizada uma disjunção ontológica entre si e não-si. Esse princípio é expresso pela noção
de egocentrismo. No caso do homem, o espaço egocêntrico é ocupado por um Eu
41
, nunca
passível de partilha, que “unifica, absorve e centraliza cerebral, mental e afetivamente as
experiências de uma vida”, sendo essa unicidade singular “a coisa humana mais
universalmente partilhada” (M5, p. 75). Mesmo as mudanças do ser individual, como no
processo de envelhecimento, não comprometem a característica de sujeito.
Apesar de a equação subjetiva Eu-Ego ser pessoal e intransferível, o sujeito também
comporta um princípio de inclusão: ele se inclui em um Nós – a sociedade, um casal, uma
família, um partido, uma igreja, uma comunidade. Assim, o egocentrismo se integra
também no genocentrismo, no sociocentrismo, no alterocentrismo. “O sujeito não está
sozinho porque o Outro e o Nós moram nele” (M5, p. 81). O sujeito pode ter inúmeras
cérebro com braços” (M3, p. 94).
41
Uma distinção deve ser traçada, portanto, entre o sujeito individual (o indivíduo) e o Eu (o Ego). O sujeito individual é,
por assim dizer, mais do que o Ego, sendo um dos termos da trindade humana (indivíduo-sociedade-espécie); é um ponto
de holograma que contém toda essa trindade (a despeito de sua singularidade). Já o Eu “está só: há nele um nó
incomunicável e que não comunga com nada” (M5, p. 81), ou seja, o espaço egocêntrico é ocupado unicamente pelo Eu.
82
formas de apego intersubjetivo e, “por amor, dedicar-se ao outro” (M5, p. 76). O princípio
de inclusão é considerado “instintivo, como no passarinho que sai do ovo e segue a mãe. O
outro é uma necessidade vital interna” (M6, p. 20). Esse princípio impulsiona o indivíduo
para a amizade, para o amor, para a religação com o outro, que é introduzido e integrado e
sem o qual nosso Eu-Ego ficaria incompleto. No plano do indivíduo-sujeito reencontramos,
assim, o problema da unidade múltipla. O indivíduo leva ao mais alto grau o paradoxo da
unitas multiplex. “um rosto é um teatro onde atuam múltiplos atores” (M5, p. 94).
Portanto, o que possuímos de fato é um tetraprograma: “um para nós no sentido
biológico, um para nós no sentido sociológico, um para Ti (relação intersubjetiva de
amizade e amor), além do para si” (M5, p. 77), em que cada componente mantém relações
complementares e antagônicas entre si.
Não devemos considerar o princípio de inclusão como secundário em relação a um
supostamente fundante princípio de exclusão, um “para-si” anterior, pois “primário é o
duplo programa, o que comanda o para-si e o que comanda o para-nós ou para-os-outros; o
outro já se encontra no âmago do sujeito” (M5, p. 77). Pesquisas recentes de etologia
animal revelam a radical necessidade do outro: o sujeito já surge para o mundo
“integrando-se na intersubjetividade, no seu meio de existência, sem o qual perece” (M5, p.
78):
“A relação com o outro está na origem. O outro é virtual em cada um e deve se atualizar
para que cada um torne a si mesmo. Paradoxalmente, o princípio de inclusão (amor)
42
é
necessário ao princípio de exclusão que, pondo-nos no centro do mundo, permite-nos aí
situar o outro” (M5, p. 78).
A despeito de sua irredutível auto-afirmação egocêntrica, o sujeito, sempre uno e
indivisível, produz, “afirmando exatamente a sua unicidade, uma dualidade própria” (M5,
p. 86), na qual “eu é um outro”, para repetir a célebre frase de Rimbaud. Graças ao duplo
programa, o sujeito pode entender a si próprio como um outro, considerando-se
simultaneamente sujeito e objeto. Um dos grandes temas míticos enraizados em nossa
psique - o do duplo, sobre o qual discorremos mais adiante - remete a esse duplo
fundamento subjetivo.
42
Aqui, diante da identificação explícita do princípio de inclusão com o amor, lembramo-nos dos biólogos Umberto
Maturana e Francisco Varela, que, em A Árvore do Conhecimento, mostram-nos como, mesmo biologicamente, sem amor,
sem aceitação do outro, não há fenômeno social humano. Tal aceitação é o próprio fundamento biológico do social: “sem
amor, não há socialização, e sem esta não há humanidade” (MATURANA E VARELA, 2001. p. 269).
83
A originalidade da concepção complexa de sujeito consiste, portanto, na superação
da alternativa “entre a visão inicialmente egocentrada do sujeito (Descartes e Husserl) e a
visão que o define, antes de tudo, na relação com o outro (Lévinas)”, englobando ambas as
visões na metáfora do duplo programa e reconhecendo “o aspecto fundador, quase
simultâneo, da auto-afirmação do Eu e da sua relação com o outro” (M5, p. 79). O sujeito é,
desse modo, marcado pela auto-exo-referência. Os princípios de inclusão e de exclusão
encontram-se dialogicamente ligados: o sujeito possui a capacidade de ligar “a referência a
si ao que é outro: o meio e suas coisas” (M3, p. 55).
Disso resulta que o egocentrismo do sujeito não favorece apenas o egoísmo, mas
também o altruísmo. A qualidade de sujeito, sempre fechado e aberto, “carrega a morte do
outro e o amor do outro” (M5, p. 76). Ser sujeito, enfim, “é associar egoísmo e altruísmo”
(M6, p. 21), havendo tanto um “aspecto vital do egocentrismo” quanto, igualmente, uma
“potencialidade fundamental do desenvolvimento do altruísmo” (M6, p. 21). Constituindo-
se como "fonte original de solidariedade e de responsabilidade" (M6, p. 64), o princípio de
inclusão do sujeito é uma das fontes vivas que alimentarão, como veremos, a ética: "o
sujeito sente a vitalidade do princípio altruísta de inclusão e o apelo à solidariedade em
relação aos seus, à comunidade, além de diversas formas de dever" (M6, p. 92). Ao falar
dos princípios de exclusão e de inclusão, Morin atribui um papel destacado à afetividade,
na medida em que o egoísmo e o altruísmo são identificados com essas duas poderosas
forças de constituição da subjetividade. Assim, a questão do sujeito é freqüentemente
concebida tendo-se em vista os desdobramentos desta no campo dos afetos. Egoísmo e
altruísmo, morte do outro e amor do outro, princípio de inclusão concebido como amor... É
como se a afetividade muitas vezes desse o tom principal na análise da característica de
sujeito do sapiens-demens.
b) A liberdade possível
A noção de sujeito se refere à auto-afirmação da autonomia individual, que, como
qualquer autonomia viva, fundamenta-se sobre a noção de auto-organização, ou seja, é uma
autonomia dependente.
Falar em autonomia dependente significa abandonar determinismos mecanicistas
fatalistas e unilaterais. Todas as variáveis de onde o ser vivo extrai energia, organização e
84
informação constituem-se tanto em uma série de limitações quanto nas possibilidades
mesmas de sua autonomia. As condições ecológicas, biológicas, sociais, físicas, das quais
depende o indivíduo, são paradoxalmente o que torna possível a existência da liberdade
individual: esta será exercida exatamente no seio da dependência de tais condições. Em
outras palavras, o que produz autonomia é também o que produz dependência.
Diante, por exemplo, de um pangeneticismo determinista que nos vê como
autômatos programados e pretende atribuir aos genes qualidades de sujeito (genes egoístas,
altruístas, inteligentes, enfim, autônomos), o pensamento complexo leva-nos a entender que
“os genes humanos permitem a liberdade humana. O gene significa, assim, ao mesmo
tempo, hereditariedade e herança, fardo e presente, necessidade e liberdade. O indivíduo
submete-se a um destino que lhe dá possibilidade de liberdade.” (M5, p. 271). No momento
em que o indivíduo-sujeito se afirma, “o fatum genético transforma-se em destino pessoal
(M5, p. 272, grifo meu). Assim, “possuímos os genes que nos possuem” (M5, p. 273).
A concepção complexa do indivíduo/sujeito questiona uma ciência clássica que só
viu nos seres humanos objetos ou máquinas. No caso das ciências humanas, isso aparece
nos determinismos econômico, cultural, sociológico, psicológico, todos calcados na antiga
física. Por outro lado, devemos afastar também concepções idealistas e espiritualistas que
mitificam a liberdade, desligando-a das condições biológicas, físicas e sociais.
Assim, “a auto-afirmação do sujeito apropria-se do que o possui sem que o sujeito
deixe de ser possuído” (M5, p. 283), pois a individualidade humana “é, ela própria, o que
existe de mais emancipado e mais dependente em relação à sociedade” (PP, p. 32) e à
natureza.
O problema da liberdade individual está “na relação autonomia-dependência”,
“possessão-possessor”, relações sempre incertas e ambivalentes. Situando-se “além do
geneticismo, do culturalismo, do sociologismo”, o problema da liberdade no pensamento
complexo integra “o gene, a cultura, a sociedade” (M5, p. 279). A bipartição livre arbítrio-
determinismo é assim ultrapassada. Existem múltiplas determinações, mas não um
determinismo absoluto, unilateral, mecânico; há o que se pode chamar de liberdade, mas
isso não é de modo algum o livre arbítrio irrestrito.
O sujeito é a expressão dos mecanismos paradoxais da auto-organização no plano
do indivíduo. O indivíduo humano é uma “marionete manipulada de trás, de dentro e de
fora” (M5, p. 286) e, ao mesmo tempo, um ser que se auto-afirma – graças à consciência -
85
na sua qualidade de sujeito, criando um campo de liberdades que lhe permita retroagir
sobre seus determinantes e posicionar-se diante deles. É pela auto-afirmação do sujeito, ao
mesmo tempo passivo e ativo, que o ser humano se torna uma máquina não-trivial. Isto
quer dizer que, inserido em uma dialógica complexa indivíduo-sociedade-espécie, o sujeito,
ao se auto-afirmar, mostra o quão aberta e inconclusa é cada uma dessas três instâncias. Ele
é uma máquina não-trivial por não contar, de forma determinística, com um programa cujas
instruções sejam passivamente aplicadas. O sujeito dispõe, na verdade, de um “quase
poliprograma genético, cultural, egocêntrico”. (M5, p. 280 – grifo meu). É esse princípio de
incerteza e de inderminação essencial que garante ao sujeito a possibilidade efetiva de
liberdade.
43
Claro que, para que o indivíduo-sujeito possa exercer mais inteiramente sua
autonomia e criar maiores campos de intervenção nesses quase-programas, ele deve contar
com uma vida psíquica inventiva e uma consciência desenvolvida (ver capítulo V).
Diante dessas considerações, é importante sublinhar que apontar a afetividade como
onipresente em todo o campo humano não implica algo como um determinismo afetivo,
não significa que a afetividade se impõe como um grande fundamento, ao qual tudo o que é
humano deva ser necessária e mecanicamente remetido (o que já foi sugerido quando o
conceito de afetividade como encruzilhada foi desdobrado).
Compreender a afetividade dentro de um paradigma da complexidade implica lançar
mão dos indispensáveis conceitos de sujeito e de consciência, que permitem que, mesmo
operando nos domínios afetivos, o indivíduo conte com uma liberdade possível: a de
dialogar com suas paixões, retroagir sobre elas, criar meta-pontos de vista sobre si mesmo,
assumir seu destino marcado pelos afetos. O sapiens-demens, por ser sujeito, não é uma
entidade estanque, fechada em si mesma, blindada ao que lhe é exterior. A afetividade é de
fato essencial – mas deve ser compreendida de modo aberto. Não somos caixas-pretas
afetivas. Se a afetividade é auto-organizada e se desempenha papel tão relevante, então ela
não é um alicerce mecânico: é, propomos, o epicentro de um sistema complexo. Enquanto
epicentro, ela é a grande marca de um sistema, cujos elementos, contudo, podem se afastar
43
O indivíduo humano é o centro do espírito e da consciência. “O espírito-mente-cérebro-individual é mais complexo que
a sociedade, mais complexo que a Terra, mais complexo que a galáxia” (M5, p. 201). Por contar com toda essa
complexidade, por portar “quase-programas”, o indivíduo sujeito nunca pode ser completamente subjugado; assim, é
necessário que reabilitemos o papel do indivíduo na história - o papel “dos estrategistas, reis, príncipes, tribunos,
revolucionários, restauradores que, nos momentos decisivos, provocaram bifurcações fundamentais no curso da história”
>>>
86
de seu centro, embora sempre a ele se remetam de alguma forma. Além disso, os pontos
afastados da região central podem retroagir sobre o grande centro de comando, não sendo
por este unilateralmente determinados. Como sujeitos, podemos possuir a afetividade que
nos possui.
(M5, p. 208).
87
CAPÍTULO III – O QUADRIMOTOR AFETIVO: COMPREENSÃO,
ANALOGIA, MITO, IMAGINÁRIO
Ao buscar horizontes cognitivos para além das fragmentações e disjunções
onipresentes no modo como aprendemos a pensar, Morin se preocupa em destacar o papel
de instâncias que, por se ligarem ao lado demens e à nossa parte afetiva e sensível, são mais
representativas da totalidade do humano. Tais instâncias foram, por muito tempo,
recalcadas e negligenciadas pelos saberes oficiais, ou então não foram abordadas de modo
suficientemente complexo. Assim como devemos chamar o demens para complementar o
sapiens, admitindo simultaneamente uma oposição entre ambos, devemos reabilitar essas
forças antropológicas fundamentais, compreendendo como elas se inserem, com seus
contrapontos mais racionais, no interior de um sistema complexo unidual.
São quatro as instâncias que aqui serão abordadas, todas profundamente articuladas
entre si: a compreensão (tendo-se em vista a explicação), a analogia (diante do digital), o
pensamento simbólico-mitológico-mágico (em relação a um pensamento
empírico/técnico/racional), o imaginário (no que diz respeito ao real).
1. O digital e analógico
Há uma dialógica complexa e cooperativa entre dois princípios/regras que
organizam o conhecimento humano: de um lado o digital, ligado à lógica identitária; de
outro, os processos metalógicos e sublógicos, entre os quais se destaca a analogia. A
metáfora, por exemplo, é analógica; o conceito, digital. O digital separa o que é ligado, ao
passo que o analógico une o separado. O espírito/cérebro combina permanentemente
processos digitais e analógicos em suas atividades, enquanto existem apenas separadamente
computadores digitais e computadores analógicos. Essas duas qualidades “parecem
logicamente incompatíveis, da mesma forma que, para a partícula microfísica, a qualidade
da onda e a qualidade do corpúsculo. Contudo, é preciso associá-los para captar a
originalidade do espírito humano” (M5, p. 98).
A atividade do espírito-cérebro não pode, portanto, ser concebida como se pudesse
88
operar em apenas um desses pólos. Boa parte da ciência moderna fez vistas grossas a essa
unidualidade e manteve oficialmente uma desconfiança da analogia, mesmo muitas vezes
praticando-a clandestinamente
44
.
No terreno de reabilitação da analogia, cabe também reabilitar a forma analógica
representada pela metáfora, “um modo afetivo e concreto de expressão e de compreensão”
(M3, p. 157). A “ponte analógico-poética” representada pela metáfora “põe em
comunicação o universo real e o universo imaginário, inseminando-os mutuamente” (M3,
p. 157). A analogia (juntamente com a metáfora), além de parte indissociável da atividade
cognitiva humana, também tem valor na compreensão do mundo, não podendo ser
descartada como ilusão obstaculizadora do verdadeiro conhecimento (por mais que possa
eventualmente sê-lo) ou relegada ao status de pensamento arcaico, ultrapassado, pré-
científico, selvagem, presente unicamente na episteme das sociedades arcaicas e antigas.
Nesse sentido, praticar ciência com consciência comporta, necessariamente, a plena
compreensão da importância que a analogia e a metáfora, a poesia, o pensamento mágico
possuem na nossa constituição como sujeitos cognoscentes; inclui, em suma, "trazer a
metáfora para onde só existe metonímia, reinvidicar para o homem domesticado da ciência
o estatuto selvagem do poeta" (CARVALHO, 2003, p. 98).
Antonio Machado, poeta espanhol, pensador de cabeceira de Morin, vem aqui em
nosso auxílio, acompanhado de ninguém menos que o próprio Descartes:
“Machado dizia: ´uma idéia não possui mais valor que uma metáfora; em geral, aquela vale
menos que esta´. E Descartes, que não era apenas cartesiano, observou: ´poderíamos
espantarmo-nos com o fato de que os pensamentos profundos encontram-se nos escritos dos
poetas e não dos filósofos. A razão disso é que os poetas se servem do entusiasmo e
exploram a força da imagem´ (Descartes, Cogitationes privatae). (LTBF, p.104, tradução
minha)
A analogia, que atinge seu apogeu nos pensamentos poético e mitológico, cria pontes entre
concreto e abstrato, imaginário e real que estimulam a formação de maneiras altamente
válidas de organização do pensamento e de conhecimento. Como sempre, poderia ser
evocada, para representar essa figura dialógica entre o digital e o analógico, a imagem de
que um está no outro em yin-yang.
44
A cibernética, que, juntamente com a teoria da informação e a teoria dos sistemas, faz parte de um tripé
inspirador/organizador/operador do pensamento complexo, realizou uma primeira reabilitação científica da analogia, ao
indicar analogias de organização entre sistemas de natureza completamente distintas, como as sociedades, os organismos
>>>
89
A racionalidade verdadeira, que não quer se fechar em racionalização, não recalca a
analogia, mas dela se alimenta, para assim não se tornar estéril e pouco criativa, ainda que a
controle, pois a analogia entregue a si mesma pode conduzir ao delírio, sendo portanto o
controle da verificação dedutiva e da verificação empírica sempre necessários. Novamente,
Morin espera que os novos arautos do conhecimento assumam a complementaridade e a
oposição dos termos de uma dialogia, vendo a ambigüidade inerente a cada um desses
termos e não idealizando nunca apenas um deles em detrimento do outro.
2. Explicação e compreensão
A explicação (do latim ex-plicare, sair do implícito, desdobrar) opera sobretudo nas
searas do digital, do abstrato, do lógico, do analítico, do objetivo, explicando algo “em
razão da pertinência lógico-empírica de suas demonstrações” (M3, p. 164). Ela colhe, reúne
e articula dados relativos ao objeto sobre o qual se debruça, dele fornecendo causas e
determinações necessárias.
A palavra “compreensão”, graças ao prefixo com – aliás, o mesmo de
“complexidade” – “indica que há uma ação de envolvimento, algo que abraça, no sentido
cognitivo do termo e no sentido afetivo" (M6, p. 143). A compreensão (cujos
desdobramentos éticos serão retomados no último capítulo) se move nas esferas do
analógico, do concreto, da intuição global, do subjetivo. Comparada à explicação, a
compreensão se caracteriza sobretudo por ser mais afetiva, ligando-se às disposições
subjetivas, comportando empatias e simpatias, projeções e identificações. Capta-se assim os
significados existenciais de um dado fenômeno.
Na compreensão do outro há um “eu me torno tu permanencendo eu” (M3, p. 159):
trata-se de uma “relação complexa na qual permanecemos nós mesmos enquanto
participamos da vida de outrem” (M3, p. 159), como ocorre nos romances e no cinema. A
compreensão só pode se dar na intersubjetividade. Quando uma relação intersubjetiva
profunda se estabelece, uma série de mimetismos inconscientes são produzidos: imita-se o
riso do outro, seu comportamento e expressões faciais, seus modos de entonar a voz. Em
um limite, a “intensidade das projeções/identificações transfigura a compreensão em
vivos, os ecossistemas e as máquinas artificiais (cf. PP, p. 27).
90
identificação mimética” (M3, p. 159), como ocorre nas várias formas de possessão.
A compreensão terá importância capital no âmbito ético, pois ela constitui um
momento em que “ego alter vira alterego” (M3, p. 159), ou seja, um outro indivíduo se
torna um outro si-mesmo, assim como nós somos um si-mesmo: “a possibilidade de
compreensão permite reconhecer o outro como outro sujeito e senti-lo, eventualmente, no
amor como alterego” (M5, p. 78). Sem o exercício da compreensão, paramos de ver os
outros como sujeitos, deixamos de enxergar a humanidade que eles contêm, passando a
considerá-los apenas como objetos.
A compreensão não só pode como deve participar de todos os modos de
conhecimento dos fenômenos humanos, incluindo-se aí o modo de conhecimento científico.
Ela é um modo de conhecimento antropossocial da mais alta relevância, sendo essencial
para o “pensar bem” (M6, p. 63). Claro deve estar, contudo, que a compreensão abarca uma
série de riscos, pois “só pode compreender o que compreende” (M3, p. 163). Por outro
lado, a explicação pode, ao objetivar, desumanizar. Incapaz de estabelecer a relação de
sujeito a sujeito, cego aos significados existenciais, o castrado conhecimento
exclusivamente explicativo apresenta graves problemas: “um conhecimento que se privasse
da compreensão se automutilaria e mutilaria a própria natureza do mundo antropossocial,
como fez uma sociologia que se acreditou científica só vendo na sociedade objetos e
números” (M3, p. 163).
Assim, o conhecimento complexo articula as dimensões explicativas às
compreensivas. Uma deve se remeter a outra, num dialógico anel construtivo, contínuo
produtor de conhecimento: “pode-se imaginar uma conjunção estratégica das duas e uma
correção mútua” (M3, p. 167). “O desenvolvimento de um conhecimento objetivo do
mundo [a explicação] deve avançar junto com um conhecimento intersubjetivo do outro [a
compreensão]” (M5, p. 79). No sexto volume de O Método, Morin se refere à dialogia
explicação-compreensão como “compreensão complexa”: uma compreensão que se "nutre
da aliança entre a racionalidade e a afetividade, ou seja, entre o conhecimento objetivo e o
conhecimento subjetivo" (M6, p. 123).
A composição dessa dialogia varia conforme os momentos, os indivíduos, as
culturas. Hoje, “vivemos talvez uma disjunção muito forte entre uma cultura
subcompreensiva (científico-técnica) e uma cultura subexplicativa (humanista)” (M3, p.
166).
91
3. Pensamento mitológico e pensamento racional
O mito já se encontra de várias maneiras reabilitado pela antropologia
contemporânea, por autores os mais diversos. Foi-se o tempo em que era visto como uma
caricatura de pensamento, uma insuficiência ou um mau uso da atividade cognitiva
humana, como ocorria na antropologia do início do século XX. Não se concebe mais,
tampouco, que o mito faça parte de um tipo de pensamento exclusivo das sociedades
arcaicas ou de momentos ultrapassados de nossas sociedades históricas: a mente humana de
qualquer época e de qualquer sociedade se revela tanto no exercício do logos, pensamento
racional, quanto no exercício do pensamento mitológico, mythos. O problema da relação
entre os dois pensamentos é, portanto, um problema antropológico fundamental.
Para Morin, o mito decorre de um “arqui-pensamento” sempre vivo. Ele nos fala de
um “arqui-espírito” onde, como sempre, arkhè deve ser entendido em seu sentido
etimológico forte (e não no sentido de arcaico como ultrapassado): as forças e formas
originais e fundamentais; aqui, os princípios e os pilares da atividade cerebral-espiritual
humana. Nesse “arqui-espírito” - espírito anterior, grande circuito gerador fundamental -
encontramos duas formas de pensamento que ainda não se encontram separadas: os
pensamentos empírico/técnico/racional e simbólico/mitológico/mágico.
O pensamento empírico/técnico/racional é aquele “apto a colher e verificar
sistematicamente informações; utiliza a lógica, a idéia, o cálculo e desenvolve suas
estratégias cognitivas na relação com o mundo empírico” (M5, p. 103). O pensamento
simbólico/mitológico/mágico “desenvolve-se no mito, utiliza as analogias e os símbolos,
transgride a lógica e alastra-se num mundo onde o imaginário entrelaça-se com o real”
(M5, p. 103). Em suma, “o pensamento racional tomará a imagem da realidade para captar
a realidade da imagem; o pensamento mitológico pega a realidade da imagem para
alimentar o mundo imaginário” (M5, p. 105).
Desse modo, no arqui-espírito também se encontram indiferenciadas a objetividade
e a subjetividade: ambas pertencem “a um circuito único do qual se distinguirão e,
eventualmente, ao qual se oporão, alimentando, cada uma, um dos dois pensamentos” (M3,
p. 190). Também a linguagem se forma no arqui-espírito; assim como o pensamento, ela
posteriormente se divide em dois grandes canais, com empregos e funções distintas, ainda
92
que continue uma mesma linguagem. Do mesmo modo, a representação no nível arqui-
espiritual confunde-se com a coisa representada.
Portanto, os dois pensamentos constituem um sistema unidual: ambos têm a mesma
fonte, originam-se dos mesmos princípios primordiais que operam na mente. Sua
diferenciação e eventual oposição ou antagonismo não anula o fato de que sejam, sempre,
gêmeos siameses, que compartilham o mesmo corpo, embora tenha faces distintas. Assim,
os dois pensamentos continuam se comunicando mesmo quando se separam, ainda que isso
ocorra, muitas vezes, de modo dissimulado e secreto: “há logos por trás do mito, assim
como há mythos sob a razão” (M5, p. 105).
Se, então, o pensamento simbólico/mitológico/mágico deve ser concebido como “a
manifestação e a conseqüência polarizada dos princípios e dos processos fundamentais do
conhecimento” (M3, p. 186) - e não como um estágio infantil e ultrapassado de pensamento
-, não podemos afirmar que os indivíduos das arkhé-sociedades operam exclusivamente nas
dimensões simbólicas, mitológicas e mágicas. O pensamento racional sempre existiu, ainda
que se desenvolva principalmente nas ciências (“a razão sempre existiu, mas nem sempre
de forma racional”, são as palavras de Marx repetidas por Morin - M5, p. 159). Assim, o
pensamento arcaico é sempre uno e duplo: combina a dimensão racional/empírica/técnica e
o eixo simbólico/mitológico/mágico. Tomemos o exemplo da magia. Se o logos pode se
esconder atrás do mythos e se identificarmos logos e mythos aos princípios freudianos de
que Morin tão freqüentemente lança mão – o logos ao princípio da realidade e o mythos ao
princípio do desejo - veremos como a magia, da esteira mitológica, não pode nunca ser
reduzida ao princípio do desejo: pois “o ´desejo´ deve obedecer a regras e ritos para
realizar-se” (M3, p. 181), além de, a partir do momento em que estabelece o comércio com
os espíritos, obedecer à lógica da equivalência e da troca.
Falar em pensamento simbólico/mitológico/mágico implica reunir as noções de
símbolo, mito e magia em um macroconceito; tais noções estão subentendidas umas nas
outras (“em contrário, o símbolo permanece um estado de espírito; o mito, uma narrativa
legendária; a magia, um abracadabra” - M3, p. 183). O mito ultrapassa a esfera do símbolo,
ainda que o englobe. O pensamento simbólico, estritamente, decifra símbolos, ao passo que
“o pensamento mitológico tece um conjunto simbólico, imaginário e eventualmente real”
(M3, p. 175). A magia é a práxis e operador técnico do pensamento simbólico-mitológico e
se baseia “na potência simbólica da linguagem, na potência analógica da mímica e na
93
potência sintética e específica do rito que opera a passagem, a comunicação, a integração
no universo mitológico” (M3, p. 183).
O pensamento simbólico/mitológico/mágico dirige-se “ao nó górdio que liga a
psique e a afetividade”, mais do que ao espírito puro. Como afirma Cassirer, “o importante
no mito é a intensidade com a qual é vivido, pela qual se crê que existe de modo objetivo e
como real” (apud M3, p. 190). “O mito emociona. Dirige-se à subjetividade, diz respeito
ao temor, à angústia, à culpabilidade, à esperança, e dá-lhes resposta” (M3, p. 180).
Os mitos devem contar com força explicativa no que tange à historiografia. O mito
é também, além da técnica, um agente da história. Morin fala em uma idade paleomítica,
“atestada pelos rituais de morte”; uma idade mesomítica, marcada pelos afrescos rupestres,
pela magia e os feitiços; uma idade neomítica, “marcada pelo surgimento das grandes
deusas maternas” e associada à agricultura; e uma idade megamítica, ligada ao surgimento
das grandes religiões nas sociedades históricas. (cf. M5, p. 215). Assim, as guerras de
religião não podem ser reduzidas a seus fatores econômicos, étnicos ou políticos.
Articulados como as polaridades yin-yang, os dois pensamentos conjugam-se não
somente nas sociedades arcaicas ou nas sociedades históricas antigas e ultrapassadas, mas
também em nossas sociedades e em nossos próprios espíritos. O desenvolvimento das
sociedades históricas fez evoluir os dois pensamentos, assim como a sua dialógica. Os
tempos modernos desencantaram o mundo, mas regeneraram, em seus próprios termos, o
sempre presente – pois ligado aos fundamentos do humano – pensamento simbólico-
mitológico-mágico.
O pensamento simbólico-mitológico-mágico continuou a existir no pensamento
religioso. Durante muito tempo, aliás, o pensamento empírico-técnico-racional progrediu
também no interior da esfera da religião (astronomia se formou ligada à astrologia). Desde
o século XIX, a despeito das grandes expansões industriais e técnicas, houve, em
contrapartida, o retorno do espiritismo, da astrologia e de um sem-fim de artes mágicas.
A energia do mito anima o pensamento racional. A razão e ciência em sua forma
positivista acabaram invadidas pelo mito justamente quando acreditavam tê-lo expulsado
do horizonte mental humano, na medida em que estas se viam como entidades supremas,
messiânicas, responsáveis pela salvação e pelo progresso da humanidade. Nossa época é
comandada por motores de roupagem material – a ciência, a técnica, a indústria, o
progresso – que por vezes se apresentam e são vividos como mitos providenciais.
94
A partir das grandes aspirações de emancipação da modernidade, o pensamento
marxista, em algumas de suas vertentes, converteu-se em uma “formidável mitologia da
Salvação terrestre”, dotando-se “de um Messias redentor (a classe operária), de um Guia
onisciente e infalível (o Partido), de uma certeza absoluta (a ciência marxista) para resolver
todos os problemas fundamentais da humanidade.” (M3, p. 185). Marx reconstitui, sob uma
roupagem científica, as próprias articulações dos messianismos religiosos. Embrulhando-se
no élan do mito, também as noções soberanas de outras ideologias modernas, como a
Liberdade, a Democracia, o Fascismo, “aureolaram-se com um esplendor adorável e as
noções a elas antinômicas foram carregadas de um diabolismo odiável” (M3, p. 185) Vê-se,
assim, como o surgimento das religiões modernas da salvação e das mitologias da
providência dão-se, ao mesmo tempo, apesar de e em razão do pensamento racional (pois
este pode se transformar em racionalismo, que é o mito dissimulado sob a aparência de
razão).
Um substrato religioso-mitológico aparece na formação do Estado-Nação moderno:
este constitui “uma entidade animista, impregnada de substância paterna-materna (a mãe-
pátria), alimentando-se do sacrifício de seus heróis e transformando a história destes em
mito” (M3, p. 184). O sacrifício, grande e fundamental operação mágica, longe de ter
desaparecido, perpetua-se em nossa era sob formas patrióticas, políticas e ideológicas.
Experimentamos, sempre e dos mais variados modos, o duplo poder das palavras,
que se encontram ligadas tanto ao pensamento empírico/técnico/racional, aí comportando
predominantemente uma função indicativa e instrumental, quanto ao pensamento
simbólico/mitológico/mágico, quando exercem um papel sobretudo evocativo e concreto..
Assim, por exemplo,
“o nome do astro Marte é utilizado na linguagem astronômica de maneira instrumental
como a designação convencional de um objeto celeste. O símbolo astrológico Marte, em
contrapartida, carrega características próprias ao deus belicoso: o objeto celeste confunde-se
com um existente antropomórfico, dotado de vida cósmica, que marcará com o seu signo
toda pessoa nascida sob a sua influência.” (M3, p. 172)
A analogia antropo-sócio-cosmológica típica do mythos está morta no plano da
crença, mas “seus paradigmas permanecem vivos em nossa experiência afetiva, em nossos
´estados de espírito´ e particularmente na poesia, em que a fonte mesma do símbolo, do
mito e da magia ressurge no modo estético, renova-se sem descanso e acalma-nos”. (M3, p.
184). A força do mito atravessa a afetividade. “O amor tende a divinizar; o ódio, a
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diabolizar. Amor e ódio alimentam-se de símbolos e de filiações, deixando-se levar pelas
analogias. O mito esconde-se, incipiente, na vida afetiva” (M5, p. 122). A psicanálise
descobriu, ao explorar a psique individual, “a presença inconsciente, permanente e
determinante no espírito humano, inclusive moderno e adulto, de uma esfera
simbólica/mitológica/mágica” (M3, p. 184). Em nossa sociedade a poesia separou-se dos
mitos, “embora sempre se nutra de sua fonte, que é o pensamento
simbólico/mitológico/mágico” (APS, p. 38).
O cinema também nos indica o papel da mitologia no mundo contemporâneo, por
meio, por exemplo, das estrelas, às quais Morin consagra seu segundo livro sobre cinema,
Les Stars: "as estrelas constituem uma matéria exemplar para ilustrar um problema que não
para de se recolocar nas investigações da sociologia contemporânea: o problema da
mitologia, inclusive da magia, em nossas sociedades assim chamadas racionais" (LS, p. 9).
É claro que o fenômeno das estrelas e do cinema também está ligado ao sistema capitalista
e à sociedade do entretenimento, mas ele "responde a aspirações antropológicas profundas
que se expressam no plano do mito e da religião. A estrela-deusa e a estrela-mercadoria -
duas faces da mesma realidade - remetem-nos uma à antropologia fundamental e outra à
sociologia do século XX" (LS, p. 11).
Em nossa civilização, “a seiva do mito nutre nossos ideais e nossos valores. Valores
como liberdade, igualdade, fraternidade são, quando aderimos a eles, cheios de fervor e
tornam-se guias que orientam as nossas vidas” (M5, p. 143).
Há uma cooperação secreta e profunda entre racionalidade e o mito, com vistas à
obtenção de coragem e confiança. A força motriz dos mitos está em toda a parte. O ser
humano não pode viver sem mitos e está sempre suscetível de ser por eles possuído.
As sociedades modernas, portanto, reintroduziram o mythos em seus próprios
termos. Toda essa produção de neomitos, é claro, não chegam necessariamente a
reintroduzir os deuses e os espíritos no plano da crença, mas espiritualizam e divinizam a
idéia a partir de seu próprio interior, “inoculando-lhe uma sobrecarga de sentido que a
transfigura” em mito (M3, p. 185), mesmo mantendo, por vezes, o sentido racional da idéia.
Em outras palavras, “por toda parte onde se pensou poder expulsá-lo, o pensamento
simbólico/mitológico/mágico reapareceu subrepiticiamente ou em força”. (M3, p. 192).
Tudo isso evidencia que trazemos em nós, a despeito dos desenvolvimentos sem
precedentes do pensamento racional/empírico/técnico, um fundo antropológico mágico que
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não pode ser completamente erradicado. Morin confessa-nos: “quando estou só na floresta
durante a noite, eu tenho medo. Não de bandidos, mas de fantasmas! Sei que se trata de um
medo irracional, mas, ao mesmo tempo, sei que não posso recalcá-lo” (APS, p. 58).
No pensamento complexo, não se trata, nunca, de uma supervalorização do
pensamento mítico em detrimento do pensamento racional. Os dois pensamentos sofrem de
carências: o pensamento mitológico torna-se deficiente se não consegue ter acesso à
objetividade. O pensamento racional falha por ter dificuldades em ver o concreto e a
subjetividade:
“o primeiro está desprovido da imunidade empírico-lógica contra o erro. O segundo, do
sentido que percebe o singular, o individual, o comunitário. O mito alimenta, mas confunde
o pensamento; a lógica controla, mas atrofia o pensamento. O pensamento lógico não pode
suportar o obstáculo da contradição; o pensamento mitológico supera-o bem demais” (M3,
p. 193).
Os dois pensamentos são vitais um para o outro. Sem o auxílio do conhecimento racional-
empírico-técnico, estaríamos irremediavelmente imersos na demência e na loucura.
Afastando-se do controle da racionalidade e da lógica, mergulharíamos em delírios e
perderíamos um necessário lastro com o real. Assumindo a dialogia mythos-logos
inexoravelmente inscrita em nossa percepção do mundo e com ele presidindo nossa relação,
devemos fazer dialogar ambos os pensamentos. É a “cultura pquica” que para Morin
decorre do “bem-pensar” a responsável por que "exercitemos o diálogo com os nossos
mitos e as nossas idéias, sem que nos deixemos possuir inapelavelmente por eles" (M6, p.
97).
“A luta contra o erro prevê a detecção dos mitos que nos habitam, mas ela não saberia ser a
´desmistificação´, a ´desmitificação´, nem a ´desideologização´. A eliminação do mito é
apenas uma ilusão. Os mitos, como o imaginário, fazem parte da realidade humana. O
verdadeiro problema é reconhecer o caráter mítico de nossos mitos, distingui-los como
mitos e fazê-los dialogar com nossa racionalidade” (MD, p. 217).
Esse diálogo se justifica na medida em que o circuito dialógico entre os dois pensamentos
não pode ser superado e englobado em uma síntese. Além disso, os dois pensamentos não
podem traduzir-se um no outro. Clamando por um uso plenamente dialógico das
potencialidades do espírito humano, Morin advoga por uma razão aberta, “que saiba
dialogar com o irracionalizável” e de uma “racionalidade complexa, que reconheça a
subjetividade, a concretude, o singular e trabalhe com eles”(M3, p. 193), uma
“racionalidade aberta que reconheça o tecido imaginário/simbólico que ajuda a tecer nossa
97
realidade” (M5, p. 103). Uma razão assim concebida pode compreender o que falta e o que
há em excesso nos dois pensamentos, assim como suas virtudes. Nesse sentido, o
pensamento racional leva certa vantagem sobre o pensamento mítico: “a vantagem do
pensamento racional é que ele pode traduzir na sua linguagem uma parte das significações
míticas, enquanto que o pensamento mitológico não pode apropriar-se do pensamento
racional crítico” (M5, p. 105). Só a racionalidade – desde que seja aberta e complexa -
permite “objetivar o mundo exterior e operar uma relação cognitiva e prática” (M5, p. 140).
Dessa forma, torna-se impossível a supressão total do simbólico e do mítico, pois
isso tornaria insuportável o viver: significaria “esvaziar o nosso intelecto da existência, da
afetividade, da subjetividade, deixando lugar apenas para as leis, equações, modelos,
formas. Seria retirar todo o valor das idéias por retirar-lhes os valores” (M3, p. 192). Sem a
força afetiva representada pelo mito, a realidade estaria sem carne, sem substância. Embora
nem tudo seja mito, “parece que realmente o mito ajuda a tecer não apenas a malha social,
mas também o tecido do que chamamos real”. (M3, p. 192). Quanto a esse ponto, Morin
constantemente cita Shakespeare: “we are such stuff as dreams are made” (somos feitos da
mesma matéria dos sonhos).
Além disso, o símbolo e o mito exercem uma função comunitária. A renúncia ao
mito “não apenas desencantaria, mas desencarnaria nosso universo e desintegraria as
comunidades” (M5, p. 150). Uma comunidade humana não se formaria sem combustível
mitológico. A afetividade presente no mito “constitui o cimento da comunidade,
alimentando um sentimento de apego quase filial à tribo, à etnia ou à pátria” (M5, p. 123).
4. O mito do amor
O mito pode ser um guia que rege nossas vidas, um fio-condutor que carregamos
em nossa aventura existencial, um horizonte que, por mais impalpável que seja, atrai-nos
como um imã e sobre o qual apostamos, cheios de fervor e paixão – ainda que possamos
sempre questioná-lo e fazê-lo dialogar com nossas dúvidas.
“Desde que um mito é reconhecido como tal, ele deixa de sê-lo. Atingimos esse ponto da
consciência em que nos damos conta de que mitos são apenas mitos. Mas percebemos
também que não podemos passar sem eles. Não se pode viver sem mitos, e eu incluiria,
entre os mitos, a crença no amor, um dos mais nobres e poderosos e, talvez, o único mito ao
qual deveríamos nos apegar. E não apenas o amor interindividual, mas o amor, num sentido
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muito mais amplo, sem, evidentemente, macular o amor individual. Efetivamente,
enfrentamos um problema de convivialidade com nossos mitos, e isso não implica uma
relação de compromisso, e sim uma relação complexa de diálogo, antagonismo e aceitação.
A seu modo, o amor põe em que estão o problema do desafio de Pascal, que havia
compreendido não haver nenhum meio para provar logicamente a existência de Deus. Não
se pode provar, empírica e logicamente, a necessidade de amor. Pode-se apenas apostar nele
e sobre ele. Adotar para o nosso mito de amor uma atitude de desafio implica sermos
capazes de nos entregar a ele, dialogando com ele de modo crítico” (APS, p. 28, grifos
meus).
É desse modo que reencontramos novamente o amor. Se o homem é inexoravelmente
mythologicus (mesmo quando passa a reconhecer o aspecto de irrealidade do mito), se a
renúncia ao mito desintegraria as comunidades, se o mítico é uma força antropológica
fundamental, que não apenas nos confunde mas também nos orienta, é como se Morin
dissesse: então que nosso grande mito seja o do amor: o amor, emergência maior do que
liga sapiens e demens - a afetividade –, portanto a mais nobre emergência de todas as
possibilidades humanas; o amor, “unidade incandescente de sabedoria e de loucura” (M5,
p. 146), conjunção suprema de sapiência e demência. Assumindo plenamente sua condição
de homo mythologicus, admitindo inteiramente sua humanidade, Morin aposta no amor e
faz dele o que poderíamos considerar seu mito-motor: “Nesta noite, o amor é meu mito,
meu credo, meu desafio.” (MD, p. 267)
Como diante de qualquer mito, é sempre importante que se dialogue com o amor de
forma crítica: não se trata de uma rendição ingênua e dogmática ao poder do amor, apenas
de fazer dele nosso grande guia para resistir à crueldade do mundo.
Ao refletir sobre o modo como nossos ideais e valores são nutridos pelo mito,
Morin confessa uma das fontes de seu mito do amor:
“eu pensava nisso [na maneira como o mito embasa nossos ideais] escutando um CD com
canções inspiradas por Che Guevara, especialmente Hasta siempre; tomado de fervor e de
emoção por esse homem com rosto e destino de Cristo, pensei que Che era o símbolo vivo
do meu mito de fraternidade, mesmo que eu tenha renunciado ao mito da revolução e
repudiado o castrismo desde que se converteu ao comunismo soviético. Eu disse a N. V.,
que me deu o CD: ´É meu mito´. Ele respondeu: ´Voltar ao mito é o que dá força´. (M5, p.
160)
5. O real e o imaginário
Como já entrevemos por meio da noção de “arqui-espírito”, na qual encontram-se
99
em estado indiferenciado o pensamento racional e o pensamento mitológico, a
representação é o “ato constitutivo idêntico e radical do real e do imaginário” (M3, p. 122).
O que une a percepção, a lembrança, a fantasia, o sonho é o fato de todos eles se calcarem
na representação. Em outras palavras, “não há diferença, intrínseca à própria imagem, entre
uns e outros” (M3, p. 122). Não há dispositivo cerebral que permita a distinção entre a
alucinação e a percepção, o sonho e a vigília, o imaginário e o real, o subjetivo e objetivo:
“a única realidade da qual estamos certos é a representação, ou seja, a imagem, ou seja, a
não-realidade” (LCHI, p. X). O único modo de diferenciação se efetua por meio da
atividade racional da mente, que apela ao controle exercido pelo meio (a realidade, que
oferece resistência ao desejo) e à própria prática, a ação sobre as coisas. Há, assim, uma
ambiguidade e uma indecidibilidade fundamentais na relação entre o que se passa no
interior do espírito (imaginário, subjetividade) e o que ocorre no seu exterior (realidade,
objetividade). As mesmas aptidões cerebrais são empregadas para fazer brotar um
conhecimento objetivo acerca do universo e também as mais fantásticas construções
imaginárias. A representação é, portanto, a encruzilhada entre vigília e sonho, mesmo
havendo posterior oposição entre percepção do real e visões imaginárias.
Aqui reside “o grande paradoxo: a busca pelos fundamentos do imaginário conduz
ao real, mas a procura pelos fundamentos do real conduz ao imaginário (LVS, p. 342,
tradução minha). Desse modo, os dois eixos – real e imaginário – interferem sem parar um
no outro. Mais do que isso, sem o imaginário a realidade não ganha corpo: da mesma forma
que necessita de afetividade, a realidade precisa do imaginário para ganhar consistência. É
a afetividade que, “ligada ao imaginário, dá substância e realidade aos fantasmas, espíritos,
deuses, mitos, idéias” (M5, p. 122).
Portanto, a realidade humana só ganha substância quando é co-produzida pela
afetividade, quando é saturada de afetos, que lhe dão corpo. Essa é uma característica
antropológica-chave que pode ser comparada à antiga definição clínica da histeria. A
realidade comporta um elemento histérico, na medida em que há a “transformação em
sintomas objetivos daquilo que advém da perturbação subjetiva.” (PP, p. 110). A histeria é
considerada um fenômeno antropológico global, mais do que uma perturbação psíquica
patológica. Operando sempre em uma semi-vigília e um semi-sonambulismo, nosso estado
“pode ser qualificado de histérico no sentido em que dá substância ao mundo, o qual, se só
víssemos a sua natureza física, não passaria de ondas e de partículas; se só víssemos
100
articulações matemáticas, o mundo teria tanta carne quanto uma radiografia. Só podemos
viver na histeria, que dá consciência carnal ao mundo a partir de nosso sofrimento e de
nosso gozo. É na histeria que vivemos a intensidade de nossa realidade e a imensidade de
nossa ilusão” (M5, p. 285).
Ou, dito de outra maneira:
“Para compreender a histeria é preciso associar os termos antinômicos simulação e
sinceridade, jogo e seriedade, imaginário e vivido. A histeria pressupõe uma dualidade
fundamental, uma duplicidade estrutural no seio do eu-uno. (...) A simulação alimenta uma
relação dialética [hoje Morin diria dialógica] com a autenticidade e sinceridade. Se
entendemos que a histeria clínica é um caso extremo de um fenômeno normal, é toda nossa
experiência vivida, toda a nossa vida afetiva que poderia ser definida segundo as
estruturas elementares ou embrionárias da histeria...” (LVS, apud M6, p. 218, grifos meus)
Nosso mundo real é “semi-imaginário”. Disso resulta a necessidade de se pensar ao mesmo
tempo a unidade e a dualidade do real e do imaginário. O imaginário – essa prática
espontânea do espírito sempre sonhador – e o real são dois tecidos que se colam e se
entrelaçam para formar uma lente unidual.
Da auto-organizada autonomia relativa do espírito/cérebro decorre que a atividade
cerebral-espiritual humana não seja imediatamente dependente em relação à ação. Entre
cérebro e mundo, surge uma vasta zona de amibiguidades e ambivalências, que é colmatada
com os duplos, os espíritos, os deuses. Daí o que Morin denomina a “grande desconexão”,
donde se desenvolve, no homem,
“as proliferações fantasmáticas – sonhos noturnos e diurnos -, a reflexão e a meditação
profundas, as meditações transdecentais e os êxtases (que colocam o organismo e todo o ser
a serviço de uma comunhão metacognitiva). O espírito humano pode assim se entregar a
aventuras pericognitivas (fantasias), a atividades cognitivas e metacognitivas relativamente
liberadas dos limites da ação e do meio” (M3, p. 127).
A brecha entre real e espírito é “incessantemente atravessada seja por redes de
racionalidade que estabelecem a comunicação, seja pelas potências afetivas ou
fantasmáticas que penetram no real e confundem-se com ele” (M5, p. 140).
Há um constante e ininterrupto imbricamento do tecido do sonho com a tessitura da
realidade, sem que o ser humano necessariamente tome consciência disso. Eis uma faceta
primordial do homem, a que lhe garante a denominação de homem imaginário.
Se realidade e imaginário compõem uma dialogia em que um (retro)alimenta o
outro, então ambos estão em relação concorrente e antagônica, mas também complementar:
101
“a importância do imaginário abre caminho aos delírios do homo demens, mas também à
fantástica inventividade e criatividade do espírito humano... Assim, este sonhou tanto em
voar que surgiram aviões” (M5, p. 132). Os sonhos podem suscitar invenções técnicas. A
técnica não provém unicamente da necessidade material, mas também emerge a partir do
desejo e do sonho. Demens também está presente na técnica. A proliferação onírica é uma
fonte criadora permanente: está longe de ser mera exalação de vapores. A imaginação,
considerada a louca do sótão por Descartes, “é, ao mesmo tempo, a fada do lar” (PP, p.
137). As grandes obras de arte aparecem “na confluência de sapiens e demens, do mito e da
racionalidade, na fecundação e superação mútuas” (M5, p. 125). Em O Cinema ou O
Homem Imaginário, de 1956, Morin já se perguntava: "não será propriamente possesso de
imaginação o inventor, antes de o virem a consagrar como grande homem de ciência? Será
uma ciência apenas uma ciência? Não será ela sempre, na sua fonte inventiva, filha do
sonho?" (OCOOHM, p. 16).
A maneira como a questão do imaginário é abordada permite a reabilitação da
noção de “gênio” (bem como das noções de “autor” e de “inspiração”). A criatividade (seja
técnica, estética, intelectual ou social), por meio de “espíritos criadores e autores originais”,
concretiza “gigantescos ectoplasmas de real -- imaginário” (M5, p. 107). Devemos
compreender plenamente o papel da criatividade (e do “mistério do ato criador”), essa
palavra “inevitável”, que foi “expulsa do cientificismo, hipostasiada pelo espiritualismo,
banalizada pela administração” (M5, p. 107). Morin faz severas críticas àqueles que
“consideram essas noções como fetichismo pueril”, pois “a ilusão está do lado de um
cientificismo e um objetivismo arrogantes, cegos a uma verdade que se apresenta sob
formas ingênuas”. (M5, p. 125).
6. O cinema e as participações afetivas
Como já foi dito, a realidade humana só ganha corpo quando é co-produzida pela
afetividade. Nas análises de Morin sobre o cinema, essa papel da afetividade é sempre
destacado. O que ocorre conosco é que, “mesmo sabendo que se trata de um filme, nossas
participações afetivas dão realidade aos jogos de sombra e luz na tela” (M5, p. 121).
Ao entender que essas participações, de cunho projetivo-identificatório, bebem na
mesma fonte da magia, Morin investiga a relação do homem com o universo fílmico a
102
partir do paradigma simbólico-mitológico-mágico e de seu grande representante no plano
do imaginário: o duplo.
Com o homem de Neandertal, vimos como o imaginário irrompe na brecha
existencial aberta pela morte e mencionamos brevemente a presença do duplo no interior
das proliferações fantasmáticas então surgidas. O “duplo” diz respeito a uma experiência de
si mesmo, simultaneamente una e dupla, por parte do homem. Insere-se no paradigma da
“unidualidade”, um dos eixos a partir dos quais o mito se organiza – o qual, num plano
individual, “institui ao mesmo tempo a identidade e a alteridade de cada um, da sua própria
pessoa e do seu ´duplo´” (M3, p. 178).
No homem da arkhé-sociedade, a crença no duplo revela uma proto-consciência da
consciência de si, pois essa crença revela as características do sujeito e da consciência, que
permitem ver-se a si próprio como outro, considerar-se ao mesmo tempo como sujeito e
objeto. Assim, no homem arcaico surge uma primeira objetivação do ego por meio do
duplo: este é “a concretização corporal do Ego objetivado”. (M5, p. 79). De um lado, esse
homem percebe-se e vive sua identidade de maneira egocêntrica; de outro, reconhece-se, de
modo objetivo, no seu próprio duplo: “este não é somente uma imagem de si mesmo
refletida ou revelada pela sombra; é outro si mesmo, real na sua alteridade embora restando
realmente consubstancial a ele.” (M3, p. 178). O duplo é identificado com o Eu, mas ao
mesmo tempo é diferente dele. Autônomo, separa-se do corpo durante o sono ou após a
morte, quando sobrevive como fantasma ou espectro, conservando a identidade do vivo e
dotando-se de qualidades como a invisibilidade, a ubiquidade e a amortalidade. A
experiência do duplo se liga profundamente ao grande desdobramento da afetividade
humana representado pela angústia, cujo protótipo é a angústia diante da morte. O duplo
"concentra em si, como se aí se realizassem, todas as carências do indivíduo e, em primeiro
lugar, o seu anseio mais loucamente subjetivo: a imortalidade" (CHI, p. 30). Ele é uma
"imagem fundamental de si mesmo, [em que] projetou o homem todos os seus anseios e
temores, tal como, de resto, a sua maldade e bondade..." (CHI, p. 31).
A própria magia se baseia na existência mitológica dos duplos: o feiticeiro ou
mágico agirá a partir do poder sobrenatural de seu “duplo”, operando sobre os duplos dos
sujeitos que deseja atingir (como é o caso quando bonecos ou figuras representam esses
sujeitos).
“A existência do duplo é atestada pela sombra móvel que acompanha cada pessoa, pelo
103
desdobramento do ser no sonho e pelo desdobramento do reflexo na água, isto é, a imagem.
Assim, a imagem (simbólica por natureza e por função) já não é uma simples imagem, ela
tem em si a presença do duplo do ser representado, e permite, por meio desse intermediário,
agir sobre esse ser; é essa a ação propriamente mágica; rito de evocação pela imagem, rito
de invocação à imagem, rito de possessão da imagem (encantamento)” (PP, p. 113).
Desse modo, o ritual mágico do sapiens não se dirige apenas diretamente aos seres e
objetos dos quais espera uma resposta, mas também às imagens ou símbolos, pois é neles
que passa a se supor a localização do duplo ser representado. Para o sapiens, todo objeto
passa a ter dupla existência: “por meio da palavra, do sinal, da inscrição, do desenho, esse
objeto adquire uma existência mental até mesmo fora de sua presença” (PP, 115). Assim
sendo, a própria linguagem já abriu a porta à magia. A palavra terá a presença em potencial
daquilo que ela designa, podendo até mesmo se confundir com o objeto ou fenômeno ao
qual se refere. Com o mito, a magia amplia a realidade viva das imagens materiais e
mentais; estas últimas invadem o mundo exterior. Mito e a magia se configuram como
artifícios para a organização da ligação imaginária com o mundo.
Nas civilizações históricas, o duplo se interioriza, se encolhe, se atrofia, se
espiritualiza e finalmente aparece uma plena consciência da própria subjetividade: os
mediadores da consciência de si passam a ser a alma e o espírito.
Continuamos, evidentemente, portadores de um imaginário e nos relacionamos com
imagens a todo tempo. Ocorre que imagem e duplo mantêm uma relação íntima e são
modelos recíprocos um do outro, ou, dito de outro modo, são dois pólos de uma mesma
realidade. A imagem detém a qualidade mágica do duplo, mas trata-se de uma qualidade
interiorizada, subjetivada, nascente, germinal; o duplo possui "a qualidade psíquica, afetiva
da imagem, mas nele esta qualidade se encontra alienada e mágica" (CHI, p. 44). "Tudo o
que é imagem tende, em certo sentido, a tornar-se afetivo, e tudo o que é afetivo tende a
tornar-se mágico" (CHI, p. 35). Deparamo-nos com um eixo no qual temos, num pólo, o
duplo mágico; no outro, a imagem e,
“entre os dois pólos, uma zona sincrética, fluida, que costuma ser designada como o
domínio do sentimento, da alma ou do coração. Zona onde a magia existe em germe, na
medida em que a imagem é presença, carregada, para mais, duma qualidade latente de
tempo reencontrado. Trata-se, contudo, apenas duma magia embrionária, embora, a maior
parte das vezes, simultaneamente decadente; visto que é envolvida, desagregada, detida, na
origem, por uma consciência lúcida. E interiorizada em sentimento. Nessa zona intermédia,
tão importante nas nossas civilizações evoluídas, acha-se a antiga magia incessantemente
reduzida ao sentimento ou à estética, tal como o sentimento novo, na sua jovem
104
impetuosidade, tende, incessantemente, a alienar-se em magia, sem contudo o conseguir por
completo" (CHI, p. 35).
Quando a magia, obrigada pela consciência racional e objetiva, deixa de ser crença tomada
ao pé da letra, ela se torna sentimento, e "assim, de uma assentada, se hipertrofia a vida
´interior´ e afetiva" (CHI, p. 83). O estado psicológico subjetivo e a magia são, assim, dois
momentos da projeção-identificação; o primeiro é um momento mais abstrato; no segundo,
a identificação é tomada ao pé da letra, reificada, alienada, fetichizada: "a magia é a
concretização da subjetividade; a subjetividade é a seiva da magia" (CHI, p. 83).
Projetando-se no mundo, nos objetos e nos outros seres, e também absorvendo-os,
integrando-os afetivamente, o homem é comandado pelo complexo projetivo-identificatório
tanto em seus fenômenos psicológicos subjetivos quanto em sua relação com os fenômenos
mágicos, quando a projeção-identificação toma a forma do duplo, da analogia e da
metamorfose.
A consciência estética, mais racional, admite a irrealidade da imagem, mas "à sua
realidade prática desvalorizada corresponde uma realidade afetiva acrescida", daí o poder
afetivo da imagem.
O duplo encontra-se latente na arte, sobretudo na fotografia e no cinema, cujas
funções são "intensificar o poder afetivo do real, através da imagem" (CHI, p. 36). "As
qualidades emocionantes da fotografia se acham ligadas a uma qualidade latente do duplo"
(CHI, p. 38). Na imagem fotográfica, "fixam-se as potências afetivas próprias da imagem
mental" (CHI, p. 40). Todas as virtudes afetivas e mágicas da fotografia serão transmitidas
ao cinema e por ele ampliadas. No cinema, imagem, reflexo e sombra constituirão um
refúgio contra morte, na medida em que esses elementos contém o duplo, "invisível sobre a
tela, em potência, num estado de vírus" (CHI, p. 49).
O cinema amplia as potências afetivas humanas a um tal modo que as participações
afetivas experimentadas pelo espectador de um filme acabam localizadas entre a magia e a
subjetividade. Marcadas por um sincretismo mágico-subjetivo, essas participações devem
ser compreendidas "como estádio genético e fundamento estrutural do cinema" (CHI, p.
100). Se há subjetividade latente na magia e magia latente na subjetividade, nessa zona
intermédia "nem magia nem subjetividade são totalmente manifestas e latentes" (CHI, p.
84).
É claro que as projeções e identificações que operamos por meio das participações
105
afetivas não estão apenas no cinema. No que se refere à nossa vida cotidiana, é nesse
campo intermediário que se desenvolve "nossa vida de sentimentos, de desejos, de receios,
de amizade, de amor", sendo o amor - que aqui, como sempre, será apontado como ápice de
alguma coisa - "a projeção-identificação suprema" (CHI, p. 85). Entretanto, as imagens do
cinema, em nossa civilização, "atraem as projeções-identificações melhor, muitas vezes,
que a própria vida prática" (CHI, p. 81). O cinema lança mão de um sem-fim de técnicas
que aceleram e intensificam as projeções-identificações do espectador e aumentam o poder
afetivo e significativo da imagem, como a presença da música ("um instrumento adicional
para exprimir a tonalidade afetiva" - CHI, p. 118) e do movimento - ambos sendo "a alma
da participação afetiva" (CHI, p. 118). Além disso, o cinema conta com os ângulos de
filmagem, a sucessão de planos, a lentidão e a compressão do tempo... Assim, "o ritmo do
cinema é um ritmo psíquico, calculado em relação à nossa afetividade" (CHI, citando E.
Souriau, p. 94). A mobilidade da câmera é a mobilidade da visão psicológica. O cinema
acaba por se tornar uma "máquina de sentir auxiliar" (CHI, p. 96).
45
No cinema, magia, afetividade e estética se associam, de modo que a "magia
estrutura o novo universo afetivo do cinema; a afetividade determina o novo universo
mágico; a estética transmuta magia em afetividade e afetividade em magia" (CHI, p. 105).
É que a consciência estética apresenta um duplo eixo: é simultaneamente participante e
cética, operando uma conjunção entre saber racional e participação subjetiva e afetiva.
Afetivamente, ela confunde indivíduo e espetáculo, mas, na prática, dissocia-os. Assim, a
consciência estética, presente no espectador de um filme, faz com que a imagem do cinema
se diferencie do sonho e da visão estritamente simbólica-mitológica-mágica (ou, nos
termos que Morin utiliza em 1956, da "visão primitiva") na medida em que, vigilante, ela
desreifica as imagens e, sonhadora, desvia-se para o mundo do imaginário e das
participações afetivas. Deste modo, é claro que a magia não pode se desenvolver em plena
45
Em O Cinema ou o Homem Imaginário, de 1956, uma interessante observação é feita sobre o que o autor então
considerava o "contexto sociológico contemporâneo sobre o nosso psiquismo de cinema" (CHI, p. 102). Em nossa
civilização, a participação afetiva do espectador desdobrou-se, por vezes, em uma hipertrofia da alma, uma afetividade
exacerbada e míope, que fez com que o espectador se tornasse "incapaz de ver o filme, apenas estando apto a senti-lo"
(CHI, p. 102, grifos do autor). Morin denuncia uma "estética do sentimento que se tornou uma estética do sentimento
vago, na medida em que a alma deixou de ser exaltação e pleno desenvolvimento” para, baseada em uma "projeção-
identificação grosseira", tornando-se uma "alma gotejante", “transformar-se em jardim privado de complacências íntimas"
(CHI, p. 103). Vemos aqui mais uma vez que nem tudo são flores no mundo da afetividade; esta pode degenerar, na
admiração de obras de arte, nesse sentimentalismo hipertrofiado, enjoativo, cego ao que o ultrapassa. Na verdade, a
participação afetiva não se limita às secreções subjetivas da alma, mas justamente "faz brotar, ao mesmo tempo, vida
subjetiva e vida objetiva, uma arrastando a outra" (CHI, p. 124).
106
liberdade no mundo do cinema. Contudo, este é permanentemente irrigado por ela. A magia
esconde-se, borbulhante e incipiente, sob a rigidez perceptiva, sublimando-se para dar lugar
à participação afetiva. O cinema emerge das raízes obscuras da magia, seja no tocante à sua
técnica (edição, corte, plano, campo, etc.) - que guarda profundas ressonâncias com a
analogia, a metamorfose, o duplo e o desdobramento - seja no que diz respeito à
participação suscitada no espectador. Os objetos cinematográficos são, então, marcados por
uma unidualidade: constituem-se, ao mesmo tempo, em coisas perceptíveis (acepção
prática) e coisas visíveis (no sentido visionário do termo). O cinema é "um complexo de
realidade e de irrealidade" (CHI, p. 136), aproximando-se do sonhar acordado. No cinema,
como diz Paul Valéry, "todos os atributos do sonho se revestem da precisão do real" (apud
CHI, p. 139).
Como sabemos, no mundo arcaico magia e visão prática, pensamento
empírico/técnico/racional e pensamento simbólico/mitológico/mágico encontravam-se
conjugados. Nossa civilização cindiu os dois pensamentos, mas em muitos domínios eles
ainda seguem unidos: é o caso do cinema, que, inscrevendo o fantástico no real, "através da
conjunção da percepção prática e da visão mágica, opera uma espécie de ressureição da
visão primitiva de mundo"; "o objeto, sem que ele próprio se perca, é reintroduzido na
grande viscosidade das participações" (CHI, p. 141). Tudo se passa como se o cinema
operasse "com o mecanismos do pensamento selvagem, [aproximando-nos] da intuição
sensível o quanto podem" (CARVALHO, 2003, p. 91).
A abordagem de Morin sobre o cinema se volta à dialógica que conduz o filme
como sistema objetivo-subjetivo, racional-afetivo, cético-mágico, afastando-se das
concepções reducionistas que se debruçam sobre apenas um desses pólos. Já em 1956 são
denunciadas
"todas essas compartimentações e distinções no seio das ciências do homem [que] vêm
impedir que nos apercebamos da continuidade profunda existente entre a magia, o
sentimento e a razão, quando esta unidade contraditória é o nó górdio de toda a
antropologia" (CHI, p. 166)
46
.
46
Notemos como, já em O cinema ou o homem imaginário, o cinema é concebido a partir de pressupostos que em muito
antecipavam o pensamento complexo (o qual só iria oficialmente surgir na obra de Morin a partir dos anos 70). Sobre esse
ponto, Morin afirma, por exemplo: “[quando escrevi o livro], eu estava inspirado pela idéia, complexa e recursiva, de
poder compreender a sociedade por meio do cinema, ao mesmo tempo compreendendo o cinema por meio da
sociedade(...) Meu objetivo não era apenas considerar o cinema à luz da antropologia, mas também considerar o
anthropos à luz do cinema (...) Era preciso esclarecer um por meio do outro, no interior de um processo ininterrupto em
espiral (...) Eu ainda não tinha me dado conta que essa abordagem era o método da complexidade; eu ainda levaria vinte
anos para formular teórica e paradigmaticamente o que eu então realizava espontaneamente” (LCHI, p. X, no prefácio a
>>>
107
Assombrando-se diante do nascimento do cinema a partir de uma máquina que
inicialmente parecia destinada a propósitos triviais, prosaicos, meramente científicos, o
autor conclui que "o mais espantoso complexo afetivo-mágico que a imagem já conteve" só
poderia "procurar libertar-se, tentar abrir o seu próprio caminho para o imaginário" (CHI, p.
48): "o imaginário enfeitiça a imagem, porque esta é já uma feiticeira em potência" (CHI, p.
74). A magia está desde sempre presente no cinema, por meio de seus dois grandes pólos –
duplo e metamorfose -, por meio da simbiose afetiva mágica antropocosmomórfica, que
liga homem e cosmo, por meio da aura animista igualmente mágica que passa a revestir os
objetos retratados/filmados.
O cinema responde às mesmas "necessidades de todo o imaginário, de todo o
devaneio, de toda a magia, de toda a estética: aquelas que a vida prática não pode
satisfazer..." (CHI, p. 103). Isso permite que o cinema seja considerado, “a todos os níveis
de civilização e em todas as sociedades" (CHI, p. 104), uma das técnicas ideais de
satisfação afetiva.
Pelo fato de a linguagem do cinema ser fundada em processos universais de
participação, porque "seus sinais elementares são condensados de magia universal" (CHI, p.
172), por seus sinais acoplarem-se aos dados universais e objetivos da percepção humana
47
,
na medida em que é "vertebrado pelas estruturas antropológicas nascentes", sendo um
verdadeiro "esperanto natural" (CHI, p. 174), o cinema pode se constituir como grande
revelador de uma antropologia fundamental universalista e assim evidenciar a unidade
múltipla do homem. É por isso, como quer Edgard de Assis Carvalho, que o cinema é uma
"caverna simbólica na qual o homem se mostra como ele verdadeiramente é"
(CARVALHO, 2003, p. 90). O cinema nos oferece não só um reflexo do mundo, mas
também reflete o espírito humano: "o filme foi construído à semelhança do nosso
psiquismo total: os inventores do cinema trouxeram empírica e inconscientemente ao ar
essa edição).
47
Podemos falar em universais antropológicos de conhecimento, pois há unidade, no sapiens-demens, do cérebro e de sua
relação com o espírito, do sistema de representação, do aparelho sensorial, da utilização da linguagem de dupla
articulação, da capacidade para formar tanto um conhecimento empírico/lógico/racional quanto um conhecimento
simbólico/mitológico/mágico. Esses universais abrem espaço tanto para as condições fundamentais do conhecimento
humano quanto para os inúmeros desenvolvimentos cognitivos singulares. Deparamo-nos aqui, novamente, com a
multiplicidade inscrita na unidade: unitas multiplex. Isto não quer dizer que devamos considerar “os universais
antropológicos do conhecimento como invariantes moduladas diferentemente segundo as variantes culturais, sociais,
históricas”. O que se propõe é que “a expressão desses universais depende das condições culturais particulares, elas
mesmas dependentes da expressão desses universais” (M3, p. 258, itálicos do autor).
108
livre as estruturas do imaginário, a prodigiosa mobilidade da assimilação psicológica, os
processos da inteligência" (CHI, p. 187). Nesta caverna simbólica, saltam aos olhos as
relações entre real e imaginário, essa característica antropológica fundamental: o cinema
"fornece o exemplo cabal da retroalimentação das esferas do real e do imaginário"
(CARVALHO, 2003, p. 90). Assim, ao refletir sobre o comércio mental do homem com o
mundo, Morin pondera que
"é este comércio uma assimilação psíquica prática de conhecimento ou de consciência. Ao
revelar-nos que a ´magia´ e, mais amplamente, as participações imaginárias vêm inaugurar
esse comércio ativo com o mundo, o estudo genético do cinema ensina-nos com isso que a
penetração do espírito humano no mundo se mostra inseparável duma eflorescência
imaginária" (CHI, p. 189).
O cinema revela, desse modo, a unidade entre conhecimento e mito, inteligência e
sentimento. Vimos como para Morin os grandes sentimentos são universais. A circulação
entre real e imaginário proporcionada pelo cinema também serve para esclarecer a realidade
afetiva universal do sapiens-demens, pois em qualquer filme essa circulação se atualiza
“como se estivéssemos diante de um operador simbólico que aciona emoções incontidas,
medos arcaicos, desejos inconfessáveis e ódios reconhecidos" (CARVALHO, 2003, p. 90).
O cinema é, assim,
"a zona obscura antropocósmica que fornece pistas para a decifração dos enigmas da
cultura e para a busca de uma ontologia do sujeito, cravadas na dualidade não-antagônica
do sapiens e do demens, do ego e do super-ego, do animus e da anima, do coração e do
espírito, da razão e da paixão" (CARVALHO, 2003, p. 93).
Essa potência universalista representada pelo universo cinematográfico possui também
desdobramentos éticos, pois o cinema estimula em nós a compreensão do outro e desperta a
consciência da grandeza e da complexidade do indivíduo humano, que nunca pode ser
reduzido a apenas um de seus traços:
"Quando estamos no cinema, a situação semi-hipnótica que nos aliena relativamente ao nos
projetar psiquicamente nos personagens do filme, é simultaneamente uma situação que nos
desperta para a compreensão do outro. Somos capazes de compreender e de amar o
vagabundo Carlito, que desprezamos ao encontrar na rua. Compreendemos que o chefão do
filme de Coppola não é somente um chefe mafioso, mas um pai, movido por sentimentos
afetivos em relação aos seus. Sentimos compaixão pelos presidiários, embora, longe das
telas, só vejamos neles criminosos punidos justamente" (M6, p. 113).
109
“Nunca fomos tão capazes de compreensão de outrem quanto no cinema” (M3, p. 160)
As salas de cinema, essas “grandes cavernas exteriores”, comunicam-se diretamente
com as nossas “cavernas anteriores”. Nessas salas,
“nossa alma erra como nossos ancestrais erravam nas selvas ou nas florestas virgens; como
eles, mais do que eles, nutrem-se de sacrifícios humanos, encontram as próprias trevas nas
angústias e nos perigos da noite, comprazem-se nos subterrâneos das cidades, imagens dos
seus próprios subterrâneos, contemplam suas pulsões liberadas das inibições e que
explodem na cópula e no crime” (M5, p. 93).
110
CAPÍTULO IV - A PRESENÇA DOS AFETOS NO CONHECIMENTO
HUMANO
1. O erro, grande companheiro da aventura sapiental
Ao nos depararmos no primeiro capítulo com os problemas relativos ao paradigma
de conhecimento representado pela disjunção entre homem e natureza, entendemos como
um paradigma pode ser fator de erro e de ilusão. Tais fatores, contudo, não se originam
apenas do paradigma adotado: poderíamos ter a ilusão de que bastaria uma reforma
paradigmática para que, enfim, tivéssemos acesso à verdadeira realidade. Há muitos outros
fatores de erro envolvidos em qualquer ato cognitivo. Morin procura mostrar como o erro é
sobretudo um problema antropológico fundamental, inerente à humanidade, mais do que
uma instância que possa ser superada por algum tipo de pensamento, como o científico ou o
racional. Evitando ontologizar a noção de erro, Morin aponta a incerteza inerente a tudo o
que é humano. É o próprio Descartes quem diz: “o erro consiste justamente em que não se
apresenta como tal”. O erro é um companheiro constante da aventura sapiental. Não se
trata, portanto, de se colocar “num ponto de vista voltariano em que a incrível proliferação
das crenças humanas no espaço e no tempo aparece como uma lamentável acumulação de
erros” (PP, p. 119) (e Morin é freqüentemente acusado de ser um novo iluminista). Ao
contrário, Morin se esforça por salientar que não possui um ponto de vista ontológico e
universal de verdade e que ninguém pode escapar do “caráter incerto e errático da aventura
sapiental” (PP, p. 120).
48
Nosso conhecimento acerca do mundo carrega, assim, uma
contradição que é antropológica e fundamental: produzimos ao mesmo tempo o erro e sua
correção; o delírio e a cegueira, mas também a lucidez e a elucidação. É no momento que o
pensamento descobre a gigantesca problemática do erro que ele percebe como é importante
que se conheça a si próprio. Heidegger dizia que "a ciência não pensa". Morin, em suas
reflexões sobre a ciência, baseia-se sobretudo em uma modificação dessa frase: para ele, o
problema é que a ciência não se pensa.
48
Nem o próprio Morin: deve ser enfatizado que a epistemologia complexa em momento algum tem a pretensão de nos
conduzir à Grande Verdade Sobre o Real. Ao contrário, ela “reconhece os limites do cognoscível e sabe que o mistério do
real não se esgota de forma alguma no conhecimento” (M3, p. 245). “O pensamento complexo permite um misterioso
fortalecimento do mistério” (M5, p. 292).
111
As fontes de erro são inúmeras e os fatores que fazem com que nos apeguemos às
nossas idéias - muitas vezes “tapando os nossos ouvidos” para o que as contradiz – são os
mais variados. Morin, sobretudo no terceiro volume de O Método, dedicado às questões
referentes ao conhecimento, esmiúça um amplo espectro desses fatores. Do ponto de vista
cerebral, por exemplo, há a estabilização dos circuitos sinápticos que elimina a
possibilidade de outros circuitos. No que se refere à cultura, há as os registros
paradigmáticos e ideológicos (imprintings). No âmbito noológico, nossas idéias ganham
vida própria, dispõe de uma relativa autonomia e se tornam como que reificadas. Mas,
sobretudo, nosso apego às nossas idéias tem caráter passional-existencial, o que agora
examinaremos.
2. A afetividade, grande companheira da aventura cognitiva
Em O Método 3, baseado nos progressos da etologia do conhecimento, Morin cita a
existência de uma pulsão “exploradora” ou “cognitiva” presente já nos mamíferos –
animais em que a afetividade começa a se desenvolver e a ganhar corpo - apoiada no mero
prazer de conhecer, em “uma satisfação propriamente cognitiva de descoberta e de exame”
(M3, p. 74) desprendida de qualquer utilidade imediata. Trata-se de uma curiosidade pela
curiosidade, que tem um fim em si mesma e que se supõe estar ligada à “ansiedade vital”
(M3, p. 144) já presente em muitas espécies de mamíferos.
No homem, essa pulsão cognitiva e exploradora do mamífero se projeta nas grandes
questões metafísicas e se transforma na paixão humana de conhecer. Nele, a variável
afetiva oriunda do mundo mamífero explica a adesão total de seu ser a uma crença ou a
uma idéia. A certeza experimentada pelo ser cognoscente sapiens-demens possui assim algo
de bastante diferente daquela certeza produzida pelo computador artificial: a crença numa
idéia “ganha corpo com a adesão subjetiva de todo ser que dá evidência, convicção,
certeza” (PP, p. 142). O componente afetivo mamífero, assim, deixará suas marcas
exatamente num campo tão distante do mundo mamífero: o mundo das idéias. A
afetividade estará presente de vários modos na elaboração dos conceitos e interpretações
dos fenômenos.
Morin analisa o complexo existencial que resulta no que denomina “sentimento de
verdade”, por ele contraposto à “idéia de verdade”. A idéia de verdade nos coloca, via uma
112
razão aberta, auto-crítica, sempre se controlando e se policiando, na esteira de evidências
pontuais ou locais, ao passo que o sentimento de verdade nos remete às grandes Evidências
que fundam um sistema de pensamento doutrinário, em que há a presença de um
componente religioso no sentido etimológico do termo: o ser humano se sente religado à
essência do real e pensa ter encontrado a grande e inquestionável chave explicativa da
existência.
Nesse momento, mais do que mera comunicação entre ser humano e mundo, há uma
verdadeira comunhão entre ambos. O sentimento da verdade e de certeza está ligado às
grandes obsessões cognitivas (os themata ou os “demônios”) que inevitavelmente animam
qualquer forma de conhecimento (mesmo aquelas menos ´possuídas´ pelo sentimento de
verdade). Ele comporta os sentimentos de evidência que nascem, muitas vezes, “mais da
estética do que da epistemologia” (M3, p. 146). Morin evoca o que o psicólogo Karl Buhler
chamou de experiência do “ah”, “em que surge, de maneira irresistível e indiscutível, a
evidência” (M3, p. 146). Trata-se de um sentimento de plenitude em que “não há somente
uma feliz e evidente harmonia que se estabelece entre a teoria e o real, mas também uma
identificação secreta, por magia analógica, que se opera entre o análogo teórico e o mundo
real” (M3, p. 147).
Ainda que o conhecimento teórico não chegue ao êxtase propriamente dito – já que
este último elimina o conhecimento, uma vez que tende a abolir a limitação, a distinção e a
relatividade, pois o ser experimenta uma fusão com o mundo – ele comporta inúmeras
embriaguezes e exaltações que flertam com o mais puro êxtase. O “ah” do sentimento de
evidência traz satisfação e alegria; há nele o
“coito psíquico decorrente da Solução, da Idéia, da Fórmula, em que a plenitude feliz do
conhecimento exalta-se como gozo quase orgástico. (...) Reencontramos aqui, levado ao
paroxismo, o componente místico e pré-extático que comporta a contemplação teórica na
sua comunicação/comunhão com a Essência do Real” (M3, p. 149).
Estamos, assim, diante da afetividade, que invade tudo que é próprio do sapiens-
demens, que “invade o mundo do saber e do pensamento e torna-se adesão subjetiva de
todo ser à sua certeza, apego fanático a uma idéia, agressividade ideológica” (M5, p. 122).
A afetividade no sentido latu, a emoção, o prazer, a dor, o desejo, a paixão fazem parte do
próprio processo de conhecimento: “em qualquer situação, a afetividade é inseparável, nem
113
que seja como companhia, do conhecimento e do pensamento humano (M3, p. 106)
3. O delírio da razão
Quando impera o sentimento de verdade pode ocorrer a degradação da
racionalidade em racionalização, o que permite que se encerre “de maneira
mágica/analógica o Mundo no sistema concebido pelo espírito, o que, por extensão,
possibilita ao espírito possuir o mundo cuja verdade o possui” (M3, p. 148). Assim,
especificamente no âmbito da ciência e da racionalidade, a presença da afetividade, que faz
com que o sapiens veja o imaginário como realidade e o subjetivo como objetivo, pode
conduzir-nos “à racionalização delirante, no sentido clínico do termo, em que o excesso de
lógica e o excesso de afetividade estão ligados, com o primeiro justificando, dissimulando e
organizando os impulsos conscientes e os interesses subjetivos” (PP, p. 142). Assim como
há demência na debilidade mental, por esta não produzir sentido suficiente, há loucura na
racionalização, que engendra um “excesso semântico que produz sentido onde antes havia
ambiguidade e incerteza” (PP, p. 142). Não devemos assim combater a racionalidade, e sim
o racionalismo.
A racionalidade pesquisa e verifica se existe adequação entre um discurso e o objeto
sobre o qual esse discurso se volta; é um discurso aberto, que aceita a biodegradabilidade
de suas teorias ao permitir que estas sejam refutadas, que mantém seu pensamento a
temperatura de sua própria destruição, que se examina constantemente, sem se prender a
uma palavra de ordem fundadora que impeça uma transformação. Já a racionalização se
fecha em sua lógica: é uma forma de “delírio que, a partir de um postulado ou de uma
constatação limitada, tira conseqüências lógicas absolutas, perdendo, nesse processo, o
suporte empírico” (APS, p. 55) e obliterando e recalcando o componente afetivo que
atravessa sua tessitura. Freud utilizava o termo racionalização para se referir ao processo
“pelo qual o sujeito procura apresentar uma explicação coerente do ponto de vista lógico,
ou aceitável do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ação, uma idéia, um
sentimento, etc. cujos motivos verdadeiros não percebe (...), a racionalização intervém
também no delírio, resultando numa sistematização mais ou menos acentuada”
(LAPLANCHE e PONTALIS, 1992, p. 423).
Assim, os pressupostos do pensamento racionalizador se verificam unicamente em relação
à palavra dogmática e mistificada de seus fundadores e acabam se blindando contra a
114
experiência e os eventos do mundo real, exatamente por terem se cegado diante da paixão
que contêm. É uma razão degradada e delirante, que se torna messiânica, providencial e
auto-suficiente, que se esquece do poder da afetividade e da ubiqüidade desta em tudo o
que o homem é e produz.
4. A ambivalência: a afetividade como amiga-inimiga do conhecimento
Podemos nos perguntar se todos esses aspectos existenciais e afetivos, que ameaçam
degradar a razão em racionalismo e constituir prazerosos e confortáveis sistemas fechados
de pensamento, podem ser superados pelo sujeito cognoscente. Ora, admitindo que “na
aventura do conhecimento há uma relação dialógica, retroativa e mesmo hologramática
entre a sapiência e a demência humanas (uma inscrita na outra à maneira de yin-yang)”
(M3, p. 126), temos que admitir que a afetividade é uma constante companheira de viagem
da cognição humana. Nesse sentido, ela jamais poderá ser superada.
Contudo, evidenciar o modo como as secreções afetivas impregnam o pensamento
racional e científico não implica que Morin entenda o cientista ou o pensador como presas
inexoráveis de sua própria subjetividade
49
. Situando-se para além “da alternativa estéril
entre o idealismo solipsista, que encerra o conhecimento no sujeito, e o realismo ingênuo
(conhecimento reflexo), que exclui o sujeito constutor/tradutor/criador” (M3, p. 232),
Morin admite que há, sim, um realismo possível, mas “um realismo relacional, relativo e
múltiplo”
50
. Relacional, dada a “indestrutível relação sujeito/objeto e espírito/mundo” (o
conhecimento do conhecimento deve sublinhar que o observador humano está incluído no
que objeto que observa); relativo, posta a “relatividade dos meios de conhecimento” e a
“relatividade da realidade cognoscível” (M3, p. 245); múltiplo, já que há diferentes níveis
de realidade.
Um realismo, enfim, que deve considerar a presença ininterrupta da afetividade em
nossos horizontes cognitivos. Ocorre que, assim como tudo o que é humano, a afetividade
comporta uma ambivalência fundamental: inclui tanto aspectos progressivos como
regressivos.
49
“A questão do erro transforma a questão da verdade, mas não a destrói” (CC, p. 154).
50
Thomas Regnier, entrevistador de Morin para a revista Magazine Littéraire, observa, a esse respeito: “Morin é um
homem que, situando-se além dos movimentos formalistas, continua a pensar o real, a evocá-lo e sobretudo a nele
>>>
115
A afetividade permite a apreensão da situação existencial do ser humano,
possibilitando uma indispensável compreensão do mundo, do outro e de si, mais do que
uma mera explicação dessas instâncias – eis um de seus aspectos progressivos. Além disso,
como já dissemos no terceiro capítulo, é impossível, no âmbito cerebral-mental, conceber
uma inteligência que não se apóie na afetividade: assim, as paixões são a matéria-prima e o
combustível do conhecimento, mesmo que disso o ser cognoscente não tenha consciência.
Muitas vezes, situações ansiogênicas e traumáticas, e também experiências de alegria e de
amor são metamorfoseadas em princípios criativos, sendo assim o ponto de partida para a
elaboração de profundos investimentos cognitivos.
Por outro lado, Morin entende “as subserviências do conhecimento às pulsões e as
deformações pela emoção” (M3 p. 106) como um aspecto regressivo da atividade cerebral
humana, contra o qual – aqui sim – devemos lutar. É impossível não admitir que o
conhecimento humano tem necessidade básica de afetividade, mas ele “precisa lutar
vitalmente contra [esta], pois ela extravia e falseia a paixão de conhecer e a sede de verdade
que a suscitou” (M3, p. 176). Por mais que seja “sempre a partir de um padrão psico-
subjetivo que compreendemos o mundo à nossa volta" (ALMEIDA, 2006, p. 290),
devemos “considerar a necessidade de pôr em diálogo nossas crenças e visões de mundo”
(idem). A zona obscura de ambiguidade e incerteza entre lógico e o afetivo, imaginário e
real, espírito e mundo constitui-se certamente como fonte de erros e de confusão, mas é
também, pelas mesmas razões, fonte “de todos os conhecimentos profundos (em que se
combinam, com a explicação lógica, a intuição e aquilo a que Max Weber chamava
compreensão), todas as sublimações e invenções nascidas do desejo” (PP, p. 144). O gênio
do sapiens reside justamente “na brecha do incontrolável onde ronda a loucura, na abertura
da incerteza e da indecidibilidade onde se fazem as pesquisas, a descoberta, a criação” (PP,
p. 144). Assim, a verdadeira razão admite a importância do diálogo com a paixão, por mais
que este seja tortuoso e problemático, e sabe que as paixões não podem ser eliminadas da
atividade cognitiva (não temos como prescindir de uma certa dose do “sentimento de
verdade” há pouco descrito; sem ele, não há verdade vivida). A razão sabe que a dialogia
racionalidade – afetividade encontra-se fatalmente inscrita no coração do humano.
Admitindo, portanto, a presença inexorável da afetividade, “o amante da verdade
acreditar” (cf. MORIN, 2004).
116
deve desconfiar do que o faz gozar psiquicamente e buscar a verdade para além do
princípio do prazer” (M3, p. 148). Não podemos ser acorrentados. Há sempre a
possibilidade de nos distanciarmos, por meio do espírito e da consciência, de nossas
paixões (sem, porém, que elas cessem). Essa possibilidade advém do fato de sermos
máquinas não-triviais, dotadas de consciência e da qualidade de sujeito. Devemos – e aqui
estamos na esteira do tipo de realismo com que Morin propugna - admitir plenamente a
presença inegociável da afetividade e da subjetividade e passarmos a dialogar com elas, por
meio da capacidade da consciência e (do auto-exame que ela possibilita) de criar meta-
pontos de vista. Enfim,
“em qualquer situação, a racionalidade é frágil, deve ser objeto de reflexão permanente, de
reexame e de redefinição; além disso, a dominação da razão sobre a afetividade não
conseguiria ser sempre reconhecida com certeza, nem ser sempre considerada como
condição ótima de conhecimento” (M3, p. 106)
5. Razão e paixão
Morin, assim como tantos cientistas e pensadores contemporâneos, expõe como a
tríade razão, ciência e paixão se constitui como parte essencial do processo criativo da
ciência. Isso não apenas em seus trabalhos mais conceituais, mas também em seus escritos
auto-biográficos e confessionais. Esses últimos são parte essencial da obra de qualquer
cientista, não devendo ser considerados meramente escritos anedóticos sem valor
substantivo ou conceitual, pois tais obras, no dizer de Maria da Conceição Xavier de
Almeida,
"descortinam os contextos, eventos, obstinações e circunstâncias afetivas do interior das
quais os escultores da ciência organizam seu pensamento. Apesar de consideradas obras
ilustrativas, tais narrativas expõem o lado vivo de uma ciência levada a efeito por pessoas
de carne e osso, minadas por suas euforias, pessimismos, obsessões e emoções"
(ALMEIDA, 2006, p. 290).
Assumindo plenamente seu quinhão demens, colocando os escritos em sua vida e sua vida
em seus escritos, operando sempre na conjunção entre razão e afetividade, Morin insiste
sempre: “não escrevo de uma torre que me separa da vida, mas de um redemoinho que me
joga em minha vida e na vida. (...) Diria (...) que, sem alta combustão amorosa, eu não teria
jamais tido coragem de escrever La Méthode” (MD, p. 9)
Sem qualquer psicologismo reducionista, Morin, por exemplo, deixa claro que a
117
situação traumática representada pelo falecimento de sua mãe foi uma das fontes de seu
interesse pelo tema da morte. A emoção oriunda desse trauma foi, assim, propulsora de um
desdobramento cognitivo que redundou nessas frutíferas reflexões que tanto contribuem
para a compreensão da cultura, das relações entre real e imaginário e do surgimento da arte.
Assim, Morin se afasta dos "princípios referendados pelos ideários de uma ciência
da assepsia; destituída de sujeitos; purificada de afetos, iras, marcas inconscientes,
ideologias e valores éticos dos quais se nutrem - queiramos ou não - estudantes, professores
e pesquisadores de todos os tempos e lugares" (ALMEIDA, 2006, p. 288).
Isso tudo
"faz uma diferença crucial entre Morin e um estilo de intelectual que se mostra pela metade.
Ler os seis volumes de O Método, livros densamente povoados por conceitos, noções e
pensadores de diversas áreas do conhecimento, tendo ao lado e por suporte o desvelamento
das condições emocionais e políticas nas quais ele se encontra imerso, equivale a
dessacralizar a ciência, a facilitar a compreensão da linguagem técnica, a destituir a falácia
do poder do saber envolta pelo véu da obscuridade e do segredo. Equivale, sobretudo, a
reintroduzir o sujeito no conhecimento e o conhecimento no sujeito. Mesmo se
considerarmos apenas os Métodos, são fartos os enunciados contaminados ora de ira, ora de
afetos, ora de perplexidade, ora de incertezas. (...) É sem dúvida Edgar Morin quem
inaugura uma forma radical (e mesmo perigosa) de expor o intelectual por inteiro.
(ALMEIDA, 2006, p. 294).
A razão, assim, existe também em complementaridade com a paixão. A crença
unicamente na oposição da paixão em relação à razão, a suspeita em relação à afetividade
como uma instância que obscurece e compromete o verdadeiro pensamento fazem parte de
um racionalismo responsável por incontáveis e lamentáveis cegueiras. Como quer Theodor
Adorno, "acreditar que o pensamento possa tirar proveito do declínio das emoções graças à
objetividade que o caracteriza (...) faz parte desse embrutecimento" (apud CARVALHO,
2003, p. 102) que durante tanto tempo marcou a velha ciência e a visão de mundo
tipicamente cartesiana e moderna.
Admitidos a necessidade e os riscos da afetividade no interior do conhecimento, só
nos resta nos entregarmos ao que Octavio Paz tão acertadamente denominava uma “paixão
crítica”.
118
CAPÍTULO V - SOMOS SAPIENS-DEMENS: E AGORA?
1. Utopia
É possível identificar uma utopia a partir do pensamento complexo? A resposta é,
certamente, afirmativa, mesmo na presença das más utopias.
A má utopia é aquela que sonha com um mundo perfeito, onde tudo seria harmonia
e de onde a infelicidade teria sido erradicada. Essa utopia é efetivamente irrealizável: "no
plano antropológico (...) não poderia haver algo como uma ´salvação´, um remanso
histórico no qual os conflitos essenciais estivessem resolvidos" (IPH, p. 31). Como nos
mostra a experiência da União Soviética, e tantas outras, a má utopia é muitas vezes
imposta sobre os indivíduos de maneira extremamente cruel. Essa utopia deve ser rejeitada,
pois “traz em si não somente a ilusão religiosa da salvação, mas também a racionalização e
a funcionalização, que são as formas delirantes da razão ocidental” (MD, p. 247).
Por outro lado, a boa utopia, em lugar de sonhar em criar o melhor dos mundos,
busca apenas, a partir das possibilidades humanas, um mundo melhor. A boa utopia
comporta possibilidades ainda - apenas ainda - impossíveis, como "a eliminação da fome e
da miséria do planeta e a supressão da guerra entre nações” (M6, p. 84). Para Morin,
nenhum desses aspectos tem vinculação necessária com a humanidade.
Pura quimera, apenas um devaneio? Ora, com Morin aprendemos que a utopia pode,
paradoxalmente, ser realista. Na boa utopia, pensa-se em termos de caminho, de direção:
um caminho que não é traçado de antemão, mas que é criado à medida que se anda.
Permitindo-nos o caminhar, a boa utopia se baseia em uma possibilidade que, no entanto,
pode hoje parecer impraticável. É nesse sentido que a boa utopia mantém relações
indissociáveis com o realismo: nos fatos estabelecidos trabalham uma miríade de forças
subterrâneas que podem fazer com que surjam o novo e o inesperado. O imediato pode ser
bastante frágil e a realidade aparente pode encobrir inúmeras incertezas. A esse respeito,
Morin sempre faz referência à Europa sob o domínio nazista: quando tudo parecia perdido,
119
quando a ocupação alemã parecia fatal e inexorável, era mais realista – sabe-se agora,
olhando em retrospectiva - quem apontava para a superação desse terrível destino... Ser
realista é nunca tomar o fato por consumado. Há, assim, um realismo superior - que se
afasta do realismo trivial de aceitação do imediato - que admite a profunda incerteza
inerente ao real
51
. O problema está em "ser realista/utópico no sentido complexo:
compreender a incerteza do real, saber que existe um possível ainda invisível no real" (M6,
p. 85). Portanto, a utopia em Morin não se constitui em “um empreendimento salvacionista,
mas uma neo-utopia realista e poética para a trindade indivíduo-sociedade-espécie,
imanente ao Anthropos" (CARVALHO, 2003, p. 115). A boa utopia liga a esperança à
desesperança e conserva a esperança quando tudo parece perdido.
É bom sempre lembrar que
"na história, tudo começa com movimentos marginais, desviantes, incompreendidos, quase
sempre ridicularizados e, às vezes, excomungados. Ora, esses movimentos, quando
conseguem enraizar-se, propagar-se, conectar-se, tornam-se uma verdadeira força moral,
social e política" (M6, p. 178).
Devemos ter em mente que "o ´meta´ é o impossível possível": qualquer
"metamorfose pode parece irracional, mas a verdadeira racionalidade sabe os limites da
lógica, do determinismo, do mecanicismo" (M6, p. 180).
Na utopia de Morin, o amor desempenhará papel primordial. "Mais do que sonhar
com a harmonia geral ou com o paraíso, devemos reconhecer a necessidade vital, social e
ética de amizade, de afeição e de amor pelos seres humanos" (M6, p. 36).
A boa utopia não é nem pessimista (pois o pessimismo pode pecar justamente por
sua falta de realismo) nem comporta um otimismo nefelibata e ingênuo:
“quando me perguntam se sou otimista ou pessimista, sempre respondo: ´sou oti-
pessimista´, pois o pensamento complexo recusa a alternativa entre otimismo e pessimismo.
Eu estou atento e acredito que as probabilidades são terríveis e mesmo catastróficas, mas
sei que há mesmo assim uma pequena janela aberta para o improvável...” (LCVP, p. 26,
tradução minha).
51
Ademais, como Morin nos lembra em um de seus diários, Journal de Californie, “são os ricos, os privilegiados que
podem desfrutar da realidade social e que pedem aos outros para ser realistas, ou seja, para tomar consciência de que
devem renunciar às suas aspirações e a seus sonhos (JC, p. 40).
120
2. O papel da consciência
Qualquer metamorfose, embora seja produto de processos inconscientes, só poderá
realizar-se plenamente por meio do desenvolvimento da consciência humana. A aposta de
Morin na consciência se explica a partir das possibilidades inventivas do cérebro humano.
O cérebro é a máquina mais complicada que se conhece e, talvez, ainda subempregue
muitas de suas qualidades. A consciência, diante da história da vida, é algo que apenas
acaba de emergir, podendo se desenvolver como novo centro epigenético. Estaríamos,
talvez, em uma pré-história da consciência e do espírito, os quais, por serem emergências
últimas do desenvolvimento cerebral, estão ainda em estado embrionário e ainda
permanecem bárbaros. Considerada “o verdadeiro tesouro da humanidade”, a consciência
ainda é epifenomenal, superficial, periférica: é “uma chama vacilante, mirrada, instável,
ainda no começo, sempre frágil, correndo, sem parar, o risco da ilusão, da self-deception, da
falsa consciência. Ainda não migrou para o centro da mente/espírito para tornar-se sua
controladora permanente” (M5, p. 290). Assim, talvez não tenhamos elaborado, tanto no
que se refere à sociedade e às relações inter-individuais quanto no nível do indivíduo e da
humanidade, um modo de organização de acordo com as possibilidades cerebrais:
“ainda não conseguimos passar da complexidade inconsciente (do cérebro) à complexidade
consciente (do espírito). Em conseqüência, a possibilidade de futuro baseia-se no que
representa o nosso presente: o atraso do nosso espírito em relação às suas possibilidades”
(M3, p. 261).
Os progressos da consciência encontram-se, portanto, ligados ao pleno desabrochar da
hipercomplexidade cerebral.
Como já foi dito no segundo capítulo (ver item 3b), uma diferenciação deve ser feita
entre a loucura ontológica do sapiens-demens e as violências tanatológicas responsáveis
pela barbárie e pela demência. Nesse sentido, Morin se pergunta:
“Não poderiam uma nova sociedade e uma nova consciência constituir os controles
decisivos que deteriam os extravasamentos destruidores? (...) A loucura, isto é, não apenas
a hubris, a neurose, a desordem, mas também a parte irracionalizável da existência, por si
própria, só pode estar na raiz e no horizonte do sapiens. Mas as demências talvez estejam
ligadas unicamente aos inícios bárbaros da hipercomplexidade, nos quais ainda nos
121
encontramos. Einstein dizia que, ainda hoje, só uma fraca percentagem do espírito humano
estava sendo usada, o que traduziremos na nossa linguagem: a hipercomplexidade
antropológica – individual, social, cultural – está longe de ter alcançado seu desabrochar. A
hipercomplexidade não pode ser otimizada, mas talvez seja subdesenvolvida e possa ser
desenvolvida” (PP, p. 161, grifos do autor).
Desse modo, se a hubris destruidora pode ser controlada por um aumento de consciência
decorrente do uso mais pleno das aptidões e potencialidades cerebrais, isso não implica a
supressão do lado demens e as instâncias a ele associadas, inexoravelmente inscritos na
ontologia do homem. A crise, a desordem, o erro, a loucura não poderiam ser erradicados a
partir de uma otimização da maquinaria cerebral; portadores de uma profunda
ambivalência, esses fatores são simultaneamente fonte do melhor e do pior no humano. Na
hipercomplexidade cerebral, “o ´melhor´contém como ingrediente aquilo que sem cessar
ameaça degradá-la e corrompê-la” (PP, p. 160). Ao admitir que muitas possibilidades do
cérebro hipercomplexo não foram ainda realizadas, o que podemos é tentar reduzir “seus
estados neuróticos, diminuir os riscos de regressão” e também, “talvez, eliminar as
demências” (PP, p. 160). Lembremos também a esse respeito que a hubris destrutiva do
sapiens-demens não deve ser compreendida como mera reprodução da agressividade dos
outros animais, pois nestes a agressão se baseia em normas de comportamento rígidas. Na
humanidade, o ódio constitui-se, antes, em “fracassos profundos e graves da
hipercomplexidade” (PP, p. 160). Assim, “incessantemente surgem no homem delírios em
que a hipercomplexidade é destruída” (PP, p. 143).
Em outras palavras,
“o progresso da complexidade fez-se, apesar, com e por causa das loucuras humanas. Mas
quantos horrores que, longe de dissolver-se no começo do terceiro milênio, ultrapassaram,
hoje, todos os do passado. Não se pode eliminar a loucura, mas seria preciso conseguir
eliminar os seus aspectos horríveis.” (M5, p. 128).
A reforma da humanidade por meio do desenvolvimento da consciência e do espírito
"afastaria os aspectos mais perversos, bárbaros e viciosos do ser humano" (M6, p. 168), o
que redundaria em um mundo com mais amor. Temos que assumir plenamente o destino da
dialogia sapiens-demens: isso implica contemplar plenamente nosso quinhão demens, mas
sem nos deixarmos tragar pelos aspectos negros da afetividade.
122
Um aumento de complexidade da consciência e do espírito não é impossível. Afinal,
“o começo de uma organização superior é sem dúvida sempre bárbaro em relação às
realizações da organização inferior precedente. Assim, os primeiros modos de organização
policelular foram, durante muito tempo, menos complexos do que os modos de organização
celular” (M3, p. 222)
Nada impede que nos encontremos em começos grosseiros, apenas recentemente
alinhavados, passíveis de inúmeros e inesperados desdobramentos...
Uma consciência lúcida, auto-reflexiva, que lute contra o erro e ao mesmo tempo
saiba que a incerteza estará sempre no horizonte da práxis humana, é sempre buscada: “o
exercício permanente da consciência tende a destruir as ilusões e através disso as certezas”
(M5, p. 110). A consciência, embora ainda hesitante e frágil, permite ao espírito humano
conhecer seu próprio conhecimento, impedir a possessão incontornável por idéias-mestras,
retroagir sobre os imprintings da cultura em que se formou, desenvolver o retorno reflexivo
do pensamento sobre o pensamento. Ela pode ser desenvolvida para que atinja um nível de
complexidade superior, que nos permita um maior controle de nossos atos e nossos
pensamentos e o estabelecimento de novas zonas de intervenção em nossas vidas. Assim
como é próprio do sapiens-demens criar as maiores quimeras, também lhe é próprio duvidar
de tudo isso, inquietar-se com o estabelecido, pôr em causa verdades arraigadas. A ética
planetária que surge a partir do pensamento complexo, como veremos, necessitará de
"tomadas de consciência capitais" (M6, p. 163)
Zygmunt Bauman define nossa era – por ele denominada “modernidade líquida” –
como “modernidade sem ilusões”. Varremos várias ilusões que nos guiaram ao longo da
modernidade, como a idéia de um progresso concebido como lei da História e as promessas
de um futuro radioso. Assim, ainda que a consciência possa evoluir para uma maior
complexidade, Morin não se rende a qualquer ilusão moderna: tal progresso não é garantido
nem se efetiva de modo linear. Qualquer progresso é sempre reversível, incerto, frágil,
ameaçado. A aposta na consciência como entidade infalível e heróica, que resolva todos os
nossos males, só pode ser equivocada, pois é próprio da consciência não só “eliminar o
erro, mas também iluminar o devaneio” (PP. p. 152). A consciência não é um grande farol
que ilumina, de modo constante, o mundo e o homem, mas sim a “luminosidade ou o flash
que ilumina a brecha, a incerteza, o horizonte” (PP, p. 152). Embora seja indispensável ao
desabrochar do que ainda dormita no espírito humano, a consciência “não traz qualquer
123
solução permanente ou sui generis” (PP, p. 152). Desse modo,
“é vão esperar o reino soberano e infalível da consciência. Como toda eflorescência última
da complexidade, como tudo o que é mais precioso e melhor, a consciência só pode ser
frágil, e, repetitamos, as aptidões à regressão e à perversão são inerentes à consciência.
Claro, quanto mais for complexa, mais ela disporá dos recursos inventivos da complexidade
para lutar contra o que tende a corrompê-la. Mas não cessará, nem por isso, de comportar
limites insuperáveis. Assim como a consciência do mundo só pode estar limitada a um
pequeno pedúnculo quase separado do mundo, a consciência de si só pode ser uma pequena
parte quase separada de um si sempre inconsciente. As possibilidades da reflexão do mundo
na consciência humana e da reflexão de si na sua própria são irremediavelmente limitadas.”
(M3, p. 218)
Uma das razões pelas quais as nossas possibilidades espirituais encontram-se
subdesenvolvidas é o fato de que “as civilizações, até agora, só permitiram a elas
desenvolvimentos unidimensionais (M3, p. 222). De fato, os progressos da consciência
rumo a uma maior complexidade dependem da complexificação social. Por outro lado, os
progressos da complexificação social também dependem, paradoxalmente, do
desenvolvimento das consciências individuais: “(...) a consciência surge hoje como a prévia
necessária para a nova complexidade social, a qual, contudo, é a única capaz de criar as
condições de seu desenvolvimento” (PP, p. 230).
3. A sociedade de alta complexidade e o amor
Se o desenvolvimento de complexidade que se encontra no horizonte utópico de
Morin é representado, no âmbito do indivíduo, pelo desenvolvimento da consciência, na
esfera sócio-cultural ele seria realizado pelo desabrochar da “sociedade de alta
complexidade”.
Qualquer sociedade histórica é estruturada de modo a comportar uma dialógica
entre centrismo, policentrismo e acentrismo. São de baixa complexidade as sociedades que
“tendem a impor ao máximo, em todos os campos, a autoridade do centro estatal”
52
,
enquanto apresentam alta complexidade aquelas que “favorecem a pluralidade do
52
Uma organização social totalmente cêntrica-hierárquica-especializada seria inviável e se auto-destruiria, pois passaria a
obedecer à lógica da máquina artificial e não mais à lógica da vida. Para Umberto Maturana e Francisco Varela,
sociedades como a espartana constituem “sistemas sociais humanos desvirtuados, que perderam suas características
específicas e despersonalizaram seus componentes” (MATURANA E VARELA, 2001, p. 221). Isso porque elas
assumiram a forma de organismos individuais (“seres de segunda ordem”), ao passo que as sociedades animais são “seres
de terceira ordem”, isto é, contam necessariamente com uma maior autonomia de seus participantes.
124
policentrismo e a espontaneidade do acentrismo” (M5, p. 188)
53
.
A sociedade de alta complexidade comporta a criatividade, a liberdade e a
autonomia física e mental do indivíduo. O conjunto social assim beneficia-se de
estratégias, iniciativas, invenções ou criações individuais. O imprinting cultural da
sociedade de alta complexidade passa a prescrever a liberdade de espírito e a tolerância; as
regras da democracia e do pluralismo se inscrevem na cultura, na política, na economia,
constituindo-se como “caldeirões de cultura das liberdades individuais” (M5, p. 274). Os
desviantes de uma sociedade de alta complexidade contribuem para a complexificação
social, no momento em que são respeitados e tolerados. Há, freqüentemente, uma grande
luta entre indivíduo e sociedade nas sociedades históricas. No caso das sociedades de baixa
complexidade, a iniciativa e a liberdade individuais são sufocadas em detrimento da grande
máquina social. Nesses modelos totalitários, o antagonismo indivíduo-sociedade é
dominante. Já uma sociedade complexa possui mais chances de contar como “uma sadia
aliança entre a sociedade (...) e os indivíduos” (M5, p. 200). A complementaridade
indivíduo-sociedade é aí dominante. Assim, a sociedade de alta complexidade cria
condições para o surgimento da complexidade individual, que por sua vez é produtora da
complexidade social: “a complexidade do ser social é o caldo de cultura da complexidade
individual” (M5, p. 200). Quanto maior a complexidade da trindade indivíduo, espécie,
sociedade, maior a parte de autonomia individual
54
(mais o indivíduo conseguirá fazer uso
de sua condição de sujeito), pois mais rica será a consciência (o que possibilitará que o
indivíduo-sujeito tenha maior autonomia diante dos seus quase-programas sociais,
genéticos, culturais). A consciência “é a condição da pertinência da escolha e da decisão, é
a condição do valor moral e intelectual da liberdade humana” (M5, p. 280).
Nada disso impede que as sociedades muito complexas também comportem
inúmeras formas de subjugação, de desigualdade e de exploração. Contudo, essas
53
Claro deve estar que essa separação entre sociedade de alta e baixa complexidade não se constitui em algo tão nítido,
nem é meramente uma tipologia para a análise social. A baixa complexidade pode surgir no seio da alta complexidade,
que pode então sempre regredir. Sociedades de baixa complexidade podem fazer surgir setores de alta complexidade,
precários, incertos, que não se mantém por muito tempo. Não há qualquer evolução mecânica e linear que leva da baixa à
alta complexidade, nem essas são categorias estáveis e monolíticas. Há assim uma dialogia entre alta e baixa
complexidade: “a complexificação oscila, hesita, amplia-se, recai, regride, desenvolve-se, é esmagada, dispersada,
renasce, recomeça, prossegue. O ruído e o furor rompem, inúmeras vezes, o processo de complexificação, mas este pode
recuperar o que foi transformado em detrito.” (M5, p. 220).
54
Vê-se o elogio que Morin faz ao individualismo, que, porém, comporta dois lados: “o lado positivo do individualismo
moderno é poder conceder a cada um mais responsabilidade e autonomia; seu lado negativo é fazer degradar as
solidariedades e fazer crescer o sentimento de solidão” (DC, p. 44).
125
sociedades têm a vantagem de permitir, “por um lado, a retroação das emergências
adquiridas em nível superior sobre os níveis inferiores, como a educação, os direitos
cívicos, as liberdades; por outro lado, há o controle dos controladores pelos controlados
através de eleições pluralistas” (M5, p. 188). Nas sociedades de baixa complexidade, só as
elites acabam se beneficiando das emergências oriundas da complexificação da sociedade.
A maioria da população acaba sendo obrigada a viver para sobreviver, o que impede a
ampliação dos campos de liberdade e inviabiliza o pleno desabrochar das melhores, e
também as mais delicadas, possibilidades da vida: a poesia vivida e o sentimento vivo de
fraternidade e de amor.
Para Morin, a boa sociedade é aquela que “gera e regenera alta complexidade” (M5,
p. 199): isso porque a sociedade de alta complexidade é o contexto sócio-cultural para o
desenvolvimento da consciência individual e para a produção do amor, da fraternidade, da
poesia
55
. Secreção da complexidade cerebral e ao mesmo tempo condição para que essa
mesma complexificação se desdobre, só essa sociedade poderia gerar as condições para o
surgimento, em escala social, das mais nobres possibilidades do espírito humano, todas elas
da ordem do “aspecto róseo” da afetividade.
Uma sociedade de alta complexidade se alimenta de conflitos. Essa sociedade só
pode surgir a partir da presença da criatividade, da pluralidade, da tolerância; ora, essa
mesma liberdade pode facilitar o desencadeamento dos antagonismos, da hubris agressiva
e das demências e provocar, por contra-efeito, o regresso às formas de sujeição sobre as
quais se baseiam as formas sociais de baixa complexidade. Reencontramos a profunda
ambigüidade da desordem: em termos sociais, ela pode tanto ser libertária quanto
destrutiva. A liberdade aumenta as chances de barbárie criminal, “mas a liberdade é a
civilização”: enfim, “a ambiguidade humana é fundamental: a civilização que inibe a
demência criminal garante, ao mesmo tempo, as liberdades, que permitem o crime...” (M5,
p. 126). Assim como o bom pensamento, a boa sociedade é bastante frágil e “se mantém à
temperatura de sua própria destruição”. A sociedade de alta complexidade não é, portanto,
55
Morin entende a democracia, o socialismo, o comunismo, a anarquia como “mitos anunciadores da
hipercomplexidade”, pois todos “remetem ao mesmo sistema ideal: um sistema fundado sobre a intercomunicação e não
sobre a coerção, um sistema policêntrico e não monocêntrico, um sistema fundado sobre a participação criadora de todos,
um sistema fracamente hierarquizado, um sistema que aumenta suas possibilidades organizadoras, inventivas, evolutivas
com a diminuição de suas opressões” (PP, p. 205). O marxismo recebe, sempre, especial destaque entre esse mitos, sendo
considerado um extravio e um desvio das aspirações à hipercomplexidade, que tomam a forma da “Doutrina infalível que
pretende ter solucionado os enigmas da história e ter nela a consciência do devir” (PP, p. 207).
126
um paraíso terrestre marcado pela harmonia suprema...
Para subsistir, ela tem necessidade de poderosas forças de regeneração - que só
podem surgir do sentimento vivo de solidariedade, de comunidade, de fraternidade, de
amor interiorizado em cada um de seus membros. São essas as forças gerativas e
regenerativas da alta complexidade social, são esses os grandes antídotos aos antagonismos
que essa sociedade cria e que podem eventualmente destruí-la. Mais do que manter sua
coesão por meio de leis justas, a sociedade complexa se sustenta a partir da solidariedade e
da consciência de seus cidadãos: nela, “existe um vínculo solidariedade-complexidade-
liberdade” (M6, p. 149). Na tríade liberdade-igualdade-fraternidade, esta última parece
levar uma certa vantagem sobre os outros dois termos, pois "a liberdade sozinha destrói a
igualdade e corrompe a fraternidade; a igualdade imposta destrói a liberdade sem reavaliar
a fraternidade; somente a fraternidade por si mesma pode contribuir para liberdade e para a
igualdade" (M6, p. 81).
Assim, a sociedade de alta complexidade não apenas cria o espaço para a
emergência das belas potencialidades humanas representadas pelo amor, mas também se
alimenta e se mantém a partir dessas mesmas emergências.
Até hoje as “forças do amor nunca conseguiram reduzir os antagonismos” (M5, p.
197), pois ainda são fracas e epifenomenais... Como veremos mais adiante, o amor sempre
existiu em abundância entre os homens; contudo, sempre foi, paradoxalmente, uma força
frágil porque esteve “congelado” em ideologias abstratas, amarrado a egocentrismos e
sócio-centrismos que o circunscreviam no interior de rígidos limites. Nesse sentido,
“o problema da hipercomplexidade não é produzir energia amorosa. Incessantemente, o
amor ressurge e reinsurge-se. O problema da hipercomplexidade é salvaguardar, esclarecer,
regenerar, refecundar a onijorrante energia amorosa, que incessantemente se perde, se
dispersa, se degrada. A hipercomplexidade apela, depois da primeira – crística – e da
segunda – revolucionária -, para um terceira e nova emergência afirmativa do amor que
recolha a herança das duas primeiras emergências, as amplie, as transforme, elucide o seu
próprio fundamento e necessidade e possa preservar-se dos desvios. Isto significa que não
anuncio a utopia do reino do amor e da fraternidade. Permanece, no âmago do amor como
de todas as coisas vivas e físicas, um princípio de degradação e de negatividade que
nenhum pensamento pode doravante ocultar e que nenhum pensamento complexo pode
ocultar. Falo da nova emergência do amor e não de solução geral pelo amor. (...) De tal
modo que o amor possa tornar-se princípio gravitacional da hipercomplexidade” (M2, p.
489).
A idéia de liberdade é, para Morin, uma “idéia-motora” (M5, p. 278). Talvez
127
pudéssemos pensar que, numa sociedade libertária como a sociedade de alta complexidade,
o amor seria um “mito-motor”.
Encontramo-nos hoje diante de uma crise “tão generalizada, tão ampla de
possibilidades de aniquilamento universal, de Opressão generalizada, de nova Criatividade”
(PP, p. 205). Uma crise que só pode ter como desfecho “uma avalanche destrutiva ou uma
metamorfose”. (M5, p. 243). Uma crise contém riscos de regressão e de morte, mas é
também condição de progressão, de criatividade, de reorganização de um sistema rumo a
uma maior complexidade. Onde cresce o perigo, cresce também o que salva, como bem diz
Hoederlin. O gênio da auto-organização, trabalhando sempre no sentido de incorporar a
desordem e dela se alimentar, “pode segregar tecidos novos, as formas inéditas, as
tentativas espontâneas, as florescências prematuras, mas proféticas, da metassociedade”
(PP, p. 231). Diante da crise da sociedade histórica, há dois caminhos possíveis:
"sair do poder absoluto dos Estados e das guerras, alcançando uma era pós-histórica, a da
sociedade-mundo, seria sair da História por cima. Infelizmente, é possível sair da História
por baixo, pela regressão generalizada depois de catástrofes nucleares e explosão de uma
barbárie à Mad Max" (M6, p. 179).
Não é impossível um desvio em relação à sociedade histórica que nos conduza a uma nova
forma de organização social, pois
“a evolução o homem não está necessariamente ligada à história e, assim, também podemos
imaginar a possibilidade de uma evolução meta-histórica, isto é, uma evolução que se
efetuaria, não, por certo, sem desordem e incerteza, não sem ´ruído´, mas sim sem fúria”
(PP, p. 205),
ou seja, sem as demências destrutivas e as barbáries que são o fracasso da
hipercomplexidade, mas não sem a desordem inerente a tudo o que é humano e a todo o
universo. “O destino histórico não era inerente à humanidade. Esta viveu dezenas de
milênios sem história; esta faz irrupção e entra em erupção há menos de 10 mil anos” (M5,
p. 145), ou seja, desde o aparecimento do homem, a evolução histórica ocupou de 0,2 a 0,5
por cento desse tempo.
A ultrapassagem rumo a uma quarta nascença da humanidade – pois o aparecimento
da sociedades históricas foi a terceira – dar-se-ia não somente a partir do trabalho
inconsciente e imprevisível da auto-organização, mas também por meio da parte consciente
representada por uma ciência, uma ética e uma política que se orientassem nessa direção: “é
128
na ligação entre as morfogêneses sociais inconscientes do gênio coletivo e ciência-
consciência-política que a nova nascença do homem encontrará suas possibilidades de
sucesso” (PP, p. 230).
Uma das razões que nos acenam com a possibilidade de uma evolução meta-
histórica está, literalmente, dentro de nós:
“(...) existe, na Terra, em três bilhões de exemplares [hoje, mais de seis bilhões] e com uma
possibilidade de reprodução praticamente ilimitada, um sistema hipercomplexo que
funciona com uma população de dez bilhões de indivíduos: o cérebro do homo sapiens;
sabemos, também, que esse sistema pode não estar, necessariamente, submerso pela
demência, ainda que funcione nas fronteiras da desordem e da loucura” (PP, p. 205).
Entretanto, é evidente que Morin não é ingênuo a ponto de acreditar que a passagem
rumo a uma sociedade hipercomplexa é simples, possível, facilmente realizável. O sistema
generativo de dominação tem raízes profundas, que remontam às sociedades primáticas.
Além disso, a própria sociedade histórica não apresenta atualmente nenhuma promessa de
deperecimento. No jogo histórico triplo entre desordem, baixa complexidade e alta
complexidade, “nenhum dos três jogadores conseguiu, até aqui, obter uma vitória decisiva,
e encontramo-nos, agora, numa época em que cada um deles parece próximo da vitória”
(PP, p. 204).
Uma revolução que levasse a uma nova sociedade ultrassaria “em muito tudo o que
se entende por esse termo: trata-se, ao mesmo tempo, de ´mudar a vida´ e de ´transformar o
mundo´, de revolucionar o indivíduo e de unir a humanidade, de realizar uma
metamicromegassociedade que se articule da relação interpessoal à ordem mundial” (PP, p.
207).
Ao assombrar-se diante do surgimento da vida, quando, em meio a uma miríade de
desordens e encontros de macromoléculas, “elaborou-se aquilo que viria a ser um
fenômeno surpreendente, um conjunto, uma unidade coerente, organizada: a célula” (PP, p.
208), Morin nos lembra que “muitos montros temporárarios vieram ao mundo para durarem
um determinado tempo, para se desmembrarem” (idem). Não estaríamos hoje,
analogamente ao período pré-biótico, em uma época pré-social? Pode-se pensar que “as
sociedades históricas não são sistemas viáveis, mas sim monstruosos esboços que se
constituem estocasticamente”; que a história é “um período de tentativas e erros,
societalmente análogo ao período pré-biótico” (idem).
129
Ao assumir a hipercomplexidade como utopia, percebemos que as dificuldades da
sociedade atual “são de operar uma complementaridade fecunda entre a legalidade
protetora-emancipadora do Estado e as liberdades do tecido auto-organizador espontâneo
que lhe escapam” (M5, p. 196).
Diante de todos esses fatores – progresso da consciência, progresso da
complexidade social – o que está em jogo é, em última análise, uma evolução que
desemboque em um mundo com mais amor, que reduza a crueldade humana e afaste os
aspectos negros da afetividade: “podemos excluir ou, ao menos, reduzir a crueldade?
Desenvolver a bondade e a compreensão? Gerar oásis de felicidade na insuportável
realidade? É a isso que se poderia chamar realmente de progresso” (M5, p. 154).
4. O progresso como retorno às origens
Em qualquer metamorfose, o que ocorre é o "despertar e a ação das potências
geradoras e regeneradoras que se tornam potências criadoras" (M6, p. 182). Qualquer
revolução profunda “parte de um movimento de retorno a uma fonte, mítica ou real (...) [e]
se volta simultaneamente ao passado e ao futuro" (IPH, p. 121). Trata-se, assim, de um
retorno que é, paradoxalmente, uma novidade: é que “a verdadeira novidade nasce sempre
de uma volta às origens” (APS, p. 43). A origem é o grande arcabouço do qual são
extraídas possibilidades insuspeitadas, forças regeneradoras, potências reorganizadoras.
Ao promover uma ciência que busca os fundamentos da humanidade, a antropologia
complexa coloca-nos diante de um complexo gerador que é “o que deve estimular o novo
devir humano” (M5. p. 294): reencontramos, assim, o "homem genérico" de Marx, esse
homem dotado de capacidades de geração e regeneração, essa força antropológica primária
que necessita de uma crise para se manifestar plenamente e que tende a estar adormecida
em tempos "normais", quando "somente os indivíduos desviantes, artistas, filósofos,
escritores, poetas, inventores e criadores em todos os campos apresentam as aptidões
geradoras e regeneradoras da humanidade" (M6, p. 182).
Para renovar-se e criar novos campos de intervenção em sua vida, é de importância
capital que o indivíduo pratique e encarne a Antropologia Fundamental: pois, “para
progredir, deve-se reencontrar a fonte geradora” (M5, p. 294). É em uma arkhè que o
homem deve se banhar para se regenerar. A arkhè não é um ponto que ficou para trás no
130
tempo, um começo irremediavelmente perdido, mas, ao contrário, a força atual que sempre
nos acompanha. Nesse aspecto, Morin retoma Heidegger e sua concepção do “Inicial”: “o
Começo é agora. Ele não jaz atrás de nós (...) mas se ergue à nossa frente” (M5, p. 293).
Esse paradoxal progresso-retorno implica assumir o destino antropológico do homo
sapiens-demens – destino “que implica nunca cessar de fazer dialogar em nós mesmos
sabedoria e loucura, ousadia e prudência, economia e gasto, temperança e ´consumição´,
despreendimento e apego” (APS, p. 11) e que nos inscreve na trindade indivíduo-
sociedade-espécie.
É assim que a utopia complexa “aposta no potencial genérico (criador, regenerador)
do ser humano. Por isso ela acredita na metamorfose que produziria um renascimento da
humanidade" (M6, p. 198).
Para que o ser humano progrida no século XXI, ele deverá encontrar O Humano.
Hoje, encontramo-nos
“no momento da era planetária que nos permite reencontrar a origem comum. É agora que
se deve, para realizar a humanidade, beber nessa origem comum, conservando os
enriquecimentos singulares adquiridos ao longo das diásporas e, depois, das miscigenações
(...) Por isso, nosso devir planetário necessita de uma antropoética e de uma antropolítica
que associam a regeneração da verdade genérica e a busca de um progresso regenerado”.
(M5, p. 294).
A mundialização, aliada a uma antropologia fundamental capaz de conceber a unidade na
multiplicidade, oferece-nos a chance de reencontrar a unidade humana. Estando situados ao
fim de um processo de hominização, iniciaríamos agora a humanização, conhecendo e
admitindo plenamente nossa humanidade, e utilizando tal conhecimento para aprimorá-la e
nutrir seus aspectos mais positivos, mais róseos, mais amorosos.
Uma política que se baseie nesse retorno às fontes fundamentais do anthropos, que
se oriente no sentido da construção da alta complexidade social, que busque um
aprimoramento das débeis forças representadas pela consciência e que esteja, portanto, a
serviço do gênero humano, deve admitir o papel primordial das instâncias afetivas aqui
analisadas. Como comenta José Luis Solana Ruiz,
“A política do homem deve ter consciência das necessidades poéticas do ser humano, dever
levar em consideração que o imaginário e o poético são componentes básicos da realidade
humana. Se o imaginário é parte do complexo tecido da realidade humana, se o mito é uma
das instâncias produtoras da cultura e da sociedade, se a afetividade é uma dimensão vital
131
do humano, então a política não pode se limitar ao nível prosaico do tecno-econômico”
(RUIZ, 2002, p. 102).
5. Ética
a) A tríade ética
A realidade humana comporta três instâncias - indivíduo, sociedade e espécie.
Como "viver humanamente é assumir plenamente as três dimensões da identidade humana:
a identidade individual, a identidade social e a identidade antropológica" (M6, p. 202),
devemos também conceber um pensamento ético que passe por cada um desses três eixos: a
finalidade ética é trinitária. Temos não apenas um dever egocêntrico, mas também um
dever geno e sociocêntrico para com os nossos e com nossa sociedade. Além disso,
necessitamos de uma ética que tenha em vista o gênero humano como um todo. Assim,
Morin concebe três eixos éticos: auto-ética, sócio-ética e antropoética.
A auto-ética diz respeito à dimensão autônoma da ética que surge no plano do
indivíduo e que se constitui, em última análise, como resistência à nossa barbárie interior.
Trata-se de uma emergência que só pôde advir em condições histórico-culturais nas quais o
indivíduo ganhou espaço, podendo assim se afastar do Superego cívico das éticas
tradicionais. A auto-ética se situa no interior da "dinâmica da ´paixão de si´ que encontra a
´responsabilidade de si´ e, ao mesmo tempo, o enfraquecimento do Supergo" (M6, p. 91).
Ela só é possível se "o indivíduo experimenta a exigência moral que (...) comporta uma fé
nela mesma, sem fundamento exterior ou superior" (M6, p. 92). Enquanto nas éticas
tradicionais "a civilidade era praticada quase instintivamente" devido ao fato de que nelas
"o imprinting cultural da comunidade estava enraizado nos espíritos individuais" (M6, p.
105), hoje a civilidade está vinculada à auto-ética.
A sócio-ética é a ética cívica, ou, se quisermos, é a ética da comunidade, se se
define comunidade como "um conjunto de indivíduos ligados afetivamente por um
sentimento de pertencimento a um Nós" (M6, p. 147). A antropoética será esclarecida pela
antropologia complexa: ela "contém o caráter trinitário do circuito indivíduo/espécie/
sociedade e assim nos faz assumir o destino humano nas suas antinomias e na sua
plenitude" (M6, p. 160). A antropoética é a dimensão ética que abraça plenamente a
132
unidade múltipla de tudo o que é humano, tornando-se, desse modo, universalista. Essa
“frágil e tardia ética antropocêntrica" emerge "primeiro nas grandes religiões universalistas
e depois se afirma nas idéias humanistas; reconhece em qualquer ser humano um ego alter
(um sujeito como si mesmo) e pede para confraternizar com ele como alter ego (um outro
si mesmo)" (M6, p. 49).
Sócio-ética e antropoética passam necessariamente pelo nível da consciência, da
reflexão e da decisão pessoais, isto é, pelo nível da auto-ética. Assim, se a auto-ética passa
pelo plano mais individual possível, engaja a responsabilidade pessoal e comporta uma fé
nela mesma (sendo, nesse sentido, sem fundamento), ela simultaneamente é “um ato
transcedental que nos liga às forças vivas de solidariedade, anteriores às nossas
individualidades, originárias da nossa condição social, biológica, física e cósmica. Une-nos
ao outro e à nossa comunidade, mais amplamente ao universo e, como tal, é ato de
religação" (M6, p. 142). Sócio-ética e a antropoética articulam-se à auto-ética, precedendo-
a e transcendendo-a.
Graças ao princípio de inclusão inscrito na auto-organização biológica do indivíduo-
sujeito, transmitida geneticamente, podemos considerar a existência de uma fonte natural
da ética, anterior à humanidade. Contudo, simplesmente constatar a existência do princípio
de inclusão na constituição da subjetividade não basta para que se adentre o campo ético,
pois, como Morin sempre enfatiza, um dever não pode ser deduzido de um saber. Assim,
diante da constatação do duplo princípio de definição do sujeito humano, a dialógica
egocêntrica/altruísta que rege o indivíduo-sujeito é assumida de modo ético, buscando-se o
fortalecimento da parte responsável pelo altruísmo (cf. M6, p. 159). Desse modo, a auto-
ética poderia ser resumida em dois mandamentos: "disciplinar o egocentrismo" e
"desenvolver o altruísmo" (M6, p. 142). Colocado nos termos da problemática do sujeito, o
grande problema ético contemporâneo é que "tudo, na civilização ocidental, tende a
favorecer nosso ´programa´ egocêntrico, enquanto nosso ´programa´ altruísta ou
comunitário permanece subdesenvolvido" (M6, p. 174).
b) O amor, fé ética
Analogamente ao que ocorreu no âmbito do duplo programa de constituição do
sujeito, a ética complexa não é deduzida da antropologia complexa, mas nela se baseia,
133
constituindo-se, desse modo, como "modo ético de assumir o destino humano" (M6, p.
159). A dimensão ética “ordena que assumamos eticamente a tríade humana indivíduo/
sociedade/espécie; a triuncidade psíquica pulsão/afetividade/razão; as antinomias sapiens/
demens, faber/mitologicus, economicus ludens, prosaicus/poeticus" (M6, p. 194). Por meio
da ética, controlamos “o homo demens para exercer um pensamento racional, argumentado,
crítico, complexo. Temos necessidade de inibir em nós o que o demens tem de homicida,
malvado, imbecil” (APS, p. 8). A ética em Morin funda-se, portanto, na antropologia
complexa do sapiens-demens.
Contudo, ela se liga sobretudo a uma fé que a ilumina e alimenta: a fé no amor, na
compaixão, na fraternidade, no perdão. É aqui que acompanharemos outra emergência do
amor: na ética, ele aparece como fraternidade universal e aposta no perdão como forma de
resistência à crueldade do mundo. A ética está, portanto, profundamente ligada à
afetividade, seja porque ela é atravessada pela fé no amor e na fraternidade, seja porque ela
deve dialogar constantemente com as instâncias do turbilhão afetivo sapiencial-demencial.
Já foi dito que o “misticismo” é, juntamente com a racionalidade, a fé e a dúvida,
uma das quatro polaridades de Morin, que mantêm relações antagônicas e complementares
entre si. Aqui, reencontraremos o seu misticismo, que não será tanto o sentimento de
mistério e a relação com a comunhão e com o êxtase que foram abordados quando nos
debruçamos sobre o estado poético. Ele se apresenta agora ligado à fé, complementando-a:
não se trata da fé em um deus da revelação, mas fé em “alguns princípios que podem ser
chamados de ´valores´” (APS, p. 65): “a fé improuvable (não-provável) em Deus tornou-se
para mim aimprobable (improvável) em um mundo menos bárbaro, em uma inteligência
menos cega e a fé imperturbável na verdade do amor” (MD, p. 67). Para Morin, "a fé ética
é o amor" (M6, p. 202).
O humanismo presente na tríade ética universalista liberdade-igualdade-fraternidade
constitui uma complexa combinação de racionalidade e de “fé quase mística”, pois “não se
pode eliminar nem o componente racional nem o componente místico do universalismo
ético, e só se pode destacar o componente fé que aí está contido” (M6, p. 21). O amor é o
ponto de encontro entre fé e dúvida.
A fé nos valores éticos não elimina de modo algum nossa incerteza sobre a vitória
desses valores. Pascal mostra como fé e razão podem ser complementares. Nesse pensador
também coexistem “a dúvida e o misticismo”, ou seja, “a alta racionalidade e o
134
conhecimento dos limites da razão” (APS, p. 65). A complementaridade entre fé e dúvida é,
ademais, um dos grandes tesouros da tradição a que Morin se filia:
“A fé que dialoga com a incerteza, presente em Pascal, Dostoievski, Unamuno, Adorno,
Goldmann, é um dos bens mais preciosos que a cultura européia nos deixou; o outro desses
tesouros é a racionalidade auto-crítica, que constitui nossa melhor proteção contra o erro”
(LTBF, p.69, tradução minha)
Operando simultaneamente na dúvida e na fé, Morin reitera:
“nunca pude me encerrar numa fé. Minha fé sempre conservou em si a dúvida. Nunca
consegui crer como a maioria crê, mesmo quando eu estava no élan messiânico da minha
resistência da guerra (e a dúvida voltou rapidamente para corroer a crença). Mas nunca
pude me fechar na dúvida e minha dúvida sempre conservou em si mesma a fé.” (MD, p.
68)
A ética, “se pudesse se inscrever na psique de cada um, nos inscreveria em uma
fraternidade terrena que constituiria nossa religião terrestre. Aqui, reencontro a própria
fonte de minha ´fé´: o amor-religião” (MD, p. 100).
O cristianismo, claro, é sempre uma referência quando se trata de amor no âmbito
ético. Uma verdadeira política do homem - a antropolítica - "deverá integrar a noção de
amor extraída do Evangelho" e instituir "uma nova religião do amor, pós-evangélica e pós-
cristã" (IPH, p. 37), de modo a "religar - religere - a humanidade a si mesma e ao
misterioso mundo" (IPH, p. 35). Assim, o amor constitui tanto um valor ético fundamental
como também um propósito político. Deve haver uma "política do amor", por mais que soe
ousado e problemático falar nesses termos:
"Aqui é necessário pronunciar a palavra da qual temos tanta vergonha que, nunca,
politicamente, ousamos empregá-la (...) Essa palavra, que não é, claro, a única a ter sido
maculada, desgastada, empobrecida, mas que o foi sobretudo por ser a maior palavra de
todas, essa palavra, apesar de tudo, deve ser pronunciada... Nenhuma paráfrase, nenhum
outro vocábulo pode substituir a palavra amor" (IPH, p. 34, tradução minha).
O sujeito revolucionário para a realização dessa política é o "homem de boa vontade"
(expressão retirada do Evangelho), termo que aparece já em Introdução a uma política do
homem, de 65, e que é retomado mais recentemente em Terra-Pátria. Morin admite que
essa expressão é bastante vaga, mas a considera "a menos insuficiente" (IPH, p. 89).
Se o amor é emergência maior da afetividade, ele também será "a expressão
135
superior da ética" (M6, p. 37). Sendo a ética sempre religação, o amor "é a experiência
fundamental de religação dos seres humanos. Em nível da mais alta complexidade humana,
a religação só pode ser amorosa" (M6, p. 37). "Conectar-se ao amor significa conectar-se à
religação cósmica. O amor, último avatar da religação, é desta forma e força superiores:
´Forte como a morte´, segundo o Cântico dos Cânticos" (M6, p. 37). A ética, “em nível
humano, deve realizar, na fraternidade e no amor, a união na separação ou, em outras
palavras, a união da união e da separação" (M6, p. 195). Se as melhores possibilidades da
ética apóiam-se no princípio altruísta de inclusão presente no indivíduo sujeito, "o amor
leva ao paroxismo a aptidão integracionista" (M6, p. 107) desse princípio. Novamente,
deparamo-nos aqui com o amor como o ápice das melhores possibilidades humanas.
Em Meus Demônios e nas “notas introspectivas” do sexto volume do Método,
Morin revela como seu pensamento ético e sua crença no amor “tem certamente uma fonte
subjetiva ´neurótica´” (MD, p. 69), pois ele se sentia secretamente culpado pela morte de
sua mãe: “por um lado, a consciência culpada fez-me aspirar à redenção pela provação ou
pelo sacrifício; por outro, a hemorragia de amor desencadeada pela morte da mãe me
devotou à procura desvairada da comunhão, do fervor, da adoração” (MD, p. 69). Ficamos
sabendo também como o cinema e a literatura marcaram profundamente sua visão sobre o
valor da redenção, da compaixão, do perdão: Morin nunca se esqueceu do filme soviético O
Caminho da Vida (“um dos impactos mais violentos que sofri em toda minha existência,
que me atingiu repentinamente como um raio, como ocorre nas experiências místicas”
56
) e
foi intensamente tocado pelos romances Ressurreição, de Tolstoi, e Crime e Castigo, de
Dostoievski, cuja mensagem, “em tudo que tinha de cristianismo nascente, foi totalmente
vivida e integrada por minha sensibilidade judia à humilhação” (MD, p. 70).
Entretanto, não podemos desenhar bem o espaço e a tessitura do amor no interior da
ética e da utopia sem que sublinhemos que Morin não tem uma crença infantil,
deslumbrada, poliânica, messiânica e ingênua no amor. O amor não é uma panacéia rósea
que fundamenta sua ética, pois a ética complexa "não é a norma arrogante nem o evangelho
melodioso", mas antes "o confronto com a dificuldade de pensar e de viver. A ética
complexa é sem salvação e sempre promessa" (M6, p. 197). Como sabemos, o pensamento
de Morin é vivo, dinâmico, marcado pela dialógica, pelo conflito, pelo embate de verdades
56
Ver LCHI, p. VIII
136
contrárias, pela aversão a qualquer tipo de reducionismo. Qualquer pensamento digno desse
nome deve se manter à temperatura de sua própria destruição. Assim, diz-nos Morin, “é
quase instintivamente que, diante de qualquer idéia, procuro seu contrário” (MD, p. 65).
O amor pode degenerar em seu contrário. Por isso, ele precisa sempre de uma
consciência racional vigilante. É verdade que o amor é a expressão superior da ética;
porém, “o amor pela humanidade foi capaz de inspirar as mais glaciais desumanidades”
(MD, p. 103). Diante da barbárie produzida pelas religiões do amor, da destruições surgidas
a partir das ideologias da fraternidade, só se pode constatar que “a história da humanidade
mostra-nos o tempo todo que o amor e a fraternidade, expressões supremas da moral,
podem ser facilmente enganados. Nenhuma religião foi mais sangrenta e cruel que a
religião do amor” (M6, p. 186). É verdade que “houve derramamentos sublimes de amor,
mas também avalanchas delirantes de amor destinados aos ídolos, às idéias, às idologias, às
ideologias (...); o amor pela humanidade deixou-se embalar pela desumanidade” (M5, p.
205). Torna-se necessário “descongelar a enorme quantidade de amor pertrificada em
religiões e abstrações, destinando-o não mais ao imortal, mas ao mortal" (M6, p. 37).
Além disso, a antropologia complexa deixa claro que o homem pode, sim, civilizar-
se, mas que ele, "tal como é, não pode alterar suas estruturas antropológicas. Essa
tautologia significa, em linguagem moral, que o homem não pode chegar a ser bom;
permanece bom-mal" (LVS, p. 210, grifos do autor).
Talvez se possa dizer que a idéia do amor na ética constitui uma idéia genérica e
não geral. A idéia geral corre o risco de ser reducionista e se degenerar em idéia abstrata ou
vazia. Por outro lado, as idéias genéricas – Morin afirma ser a esse tipo de idéia que se
apega ao longo de sua obra – definem-se como
“idéias nucleares, aquelas que estão no núcleo dos sistemas de pensamento ou de crença,
aquelas que são capazes de desorganizar ou de reorganizar estes sistemas, aquelas que
permitem gerar um pensamento, o que chamo, sob um outro ângulo, os paradigmas” (MD,
p. 259).
Como sempre, o “genérico” aqui diz respeito não apenas ao seu sentido habitual de “geral”,
mas é empregado na acepção de “gerador”, de complexo generativo. O amor, que chamei
de mito-motor de Morin, também é o grande operador no centro do campo em que se
desdobra sua ética.
Uma ética que se baseia nesse tipo de fé, “pode soar como uma moral banal” (MD,
137
p. 79). Mas se o amor, como foi sugerido, é uma idéia genérica e não geral, vaga, abstrata e
etérea, ele é um princípio gerador que se desdobrará e se metamorfoseará em outras noções
no interior da ética. Morin não pretende, ao falar em amor, fazer da ética um evangelho da
salvação. Ao entrarmos no território da ética portando conosco a fé no amor, deparamo-nos
com um vertiginoso labirinto.
As especificidades que situam a ética complexa para além de um moral banal
situam-se em três eixos (cf. MD, p. 79): a preocupação auto-crítica da ética-para-si (auto-
exame), a consciência da complexidade e dos desvios das ações humanas (ecologia da
ação) e uma moral da compreensão, todos eles operando no circuito trinitário formado por
auto-ética, sócio-ética e antropoética.
c) Ecologia da ação, auto-análise e moral da compreensão
A ecologia da ação evidencia uma das maneiras por meio das quais a ética
complexa não escapa às contradições: ela nos “indica que toda ação escapa, cada vez mais,
à vontade do seu autor na medida em que entra no jogo das inter-retro-ações do meio onde
intervém. Assim a ação corre o risco não somente de fracassar, mas também de sofrer
desvio ou distorção de sentido” (M6, p. 41). Admitindo que uma boa intenção pode
desembocar em uma má ação, uma ética que tem a fraternidade universal como seu
horizonte deve conhecer as condições e situações em que é praticada e estimular a
responsabilidade. Muitos carrascos nazistas apenas eram bons funcionários... Eichmann
“era um burocrata comum colocado em circunstâncias excepcionais e não um monstro por
natureza. Esse funcionário tornou-se atroz por mediocridade quando a engrenagem da
máquina nazista o levou a programar assassinatos em massa” (M6, p. 46). Diante disso,
Morin se pergunta se não seria a mediocridade (isto é, a fragmentação dos saberes e falta de
consciência da complexidade da relação da parte com todo e do todo com a parte) “ao
mesmo tempo, o instrumento e o executor das mais baixas práticas da história humana”
(M6, p. 46).
A importância do auto-exame já apareceu de vários modos ao longo deste trabalho:
no modo como podemos apostar na consciência como forma de distanciar-se de si e de criar
meta-pontos de vistas sobre si mesmo e sobre o mundo, incluindo o observador na sua
observação; na maneira como a afetividade está inerentemente presente nas atividades
138
cognitivas humanas e no modo como devemos fazer nossa racionalidade dialogar com ela
e seus vários desdobramentos. Parte essencial da “cultura psíquica” responsável pelo “bem-
pensar”, o auto exame – que inclui a auto-crítica e a introspecção, essas verdadeiras
“ginásticas psíquicas” (M6, p. 97) - não prescinde “da intervenção simpática” e da “crítica
de outrem”: “o auto-exame só pode ser auto-hetero-exame” (M3, p. 215). A introspecção
deve ser complementada pela “extrospecção” (M6, p. 95). A necessidade da auto-análise se
justifica ainda mais quando nos damos conta dos desdobramentos afetivos que marcam a
nossa relação com os outros, em meio aos quais é encontrada, novamente, a histeria: "a
vida cotidiana de cada um é tecida segunda um processo ´histérico´ de boa/má-fé, de
inconsciência obtusa das próprias agressões, de hiperconsciência das agressões dos outros,
de deformações incessantes das afirmações dos outros" (M6, p. 98).
Mas foquemo-nos na compreensão: ela ilustrará mais satisfatoriamente em que
resulta uma ética que se baseia na fé no amor. Em termos éticos, a fraternidade se
desdobrará sobretudo nas noções de compreensão, de magnanimidade e no “ato de
confiança na natureza humana” (M6, p. 129) representado pelo perdão.
A célebre frase do dramaturgo romano Terêncio - "sou um homem, e nada do que é
humano me é estranho" – poderia servir como fio-condutor para a moral da compreensão.
O axioma do escritor Robert Antelme, “não arrancar ninguém da sua condição humana”, é
para Morin um princípio ético primeiro (cf. MD, p. 87). A compreensão em nível ético
lastra-se na compreensão da complexidade humana: baseando-se na antropologia complexa
do sapiens-demens, passa pela consideração do outro em sua multidimensionalidade, o que
significa nunca reduzi-lo a um único aspecto de sua personalidade.
A compreensão complexa deve levar em conta também a compreensão dos
contextos nos quais se formam as mentalidades e se efetuam as ações humanas: contextos
culturais, contextos históricos, conjunturas particulares que atualizam personalidades
potenciais.
Devemos ser capazes de compreender a incompreensão e suas múltiplas fontes. A
incompreensão se origina por vezes de diferentes determinações paradigmáticas e visões de
mundo (mindscapes
57
, conforme a feliz expressão de Magoroh Maruyama), além do
problema dos imprintings culturais (os padrões culturais que estruturam os pensamentos e
57
Neologismo formado a partir da palavra inglesa landscape, que significa paisagem. Mindscape (mind quer dizer
>>>
139
as idéias). A problemática do erro e da self-deception são também geradores de
incompreensão. Há a indiferença, essa "verdadeira calcificação que nos torna indiferentes
ao sofrimento ou à desgraça do outro" (M6, p. 118). Há as idéias que, por não serem
meramente instrumentos intelectuais, mas entidades possessivas com relativa vida
autônoma, obstaculizam a compreensão. Há a cegueira antropológica oriunda da demência
humana. Há os modos de se pensar que, por meio do excesso de racionalização e de
abstração, são incapazes de exercitar a compreensão subjetiva. Enfim, as fontes de
incompreensão são as mais variadas, mas passam todas pelo desconhecimento da
complexidade. Assim, compreender a incompreensão é uma das forças da compreensão: a
compreensão compreende o fanático, que é incapaz de compreendê-la. Enquanto a
"incompreensão está na fonte de todos os males humanos, a compreensão está presente no
que há de melhor no homem" (M6, p. 123).
Ao compreender a incompreensão, nos deparamos com o difícil paradoxo da
responsabilidade-irresponsabilidade humana. A concepção complexa de sujeito impede que
a compreensão complexa dissolva a responsabilidade do indivíduo em determinismos que
anulam a autonomia individual. Por outro lado, se a responsabilidade é admitida, isso deve
necessariamente se dar de modo a evitar qualquer moralismo da ordem da "moralina"
nietzscheana, ou seja, qualquer moralismo implacável, dogmático, redutor, disjuntor,
maniqueísta e unidimensional, pois há todos esses fatores determinantes que geram a
incompreensão e que se encontram indissociavelmente presentes na visão de mundo de
qualquer um de nós. Existe, portanto, uma
"verdadeira aporia na qual desemboca toda compreensão: a da irresponsabilidade e da
responsabilidade do outro. Não se pode evitar essa contradição. Pode-se somente tentar
superá-la (superar significa conversar aquilo que se supera) pela magnanimidade, pelo
perdão" (M6, p. 122).
O efetivo enraizamento das faculdades humanas de compreensão é um dos passos mais
decisivos para afastar a barbárie e civilizar profundamente os espíritos. A estética (talvez
sobretudo por meio do cinema) aí desempenha papel fundamental, pois ela “desperta as
potências inconscientes da empatia que existem em nós. Daí sua virtude capital em nossa
civilização” (M5, p. 148).
“mente”) poderia, assim, ser entendido como “paisagem mental”.
140
d) O perdão
A compreensão abre caminho para o perdão, na medida em que não reduz um ser
humano à sua falta ou ao seu crime e também admite "que ele tem possibilidade de
recuperação" (M6, p. 127). O perdão pode se seguir ao arrependimento do criminoso, mas
pode, inversamente, levar ao arrependimento: ele pode ocorrer "antes do arrependimento: é
um ato capaz de desencadeá-lo ou, ao menos, de promover a tomada de consciência do
horror que é o crime" (M6, p. 129). A magnanimidade e o perdão são maneiras de resistir à
nossa barbárie interior, que clama pela vingança e pela aplicação da lei de talião.
A tolerância e o perdão são necessários, mas comportam contradições, incertezas,
ambiguidades: não devemos tudo tolerar e perdoar, por mais que haja dificuldade em
definir o intolerável e o imperdoável. A tolerância que tudo tolera é intolerável: "até que
ponto se deve tolerar aquilo que pode destruir a tolerância? Quando a democracia está em
perigo, a tolerância pode tornar-se suicida" (M6, p. 48). Assim, "compreender não significa
justificar. A compreensão (...) favorece o juízo intelectual, mas não impede a condenação
moral. Não leva à impossibilidade de julgar, mas à necessidade de complexificar o nosso
julgamento" (M6, p. 121). Retomamos o adágio pascaliano: há, sim, uma moral, mas seu
princípio é antes o trabalhar pelo bem pensar.
Admitidas, portanto, as insuficiências da compreensão,
“deveríamos menos temer [estas últimas] do que os excessos da incompreensão.
Reservamos a nossa compreensão apenas para alguns confrades, correligionários,
compatriotas, congêneres e a estendemos somente a alguns animais familiares. Ora, a
compreensão deveria e poderia abrir-se a todos os nossos congêneres, nossos “irmãos
humanos”, deveria poder superar não apenas a face negra da subjetividade, feita de
desprezo e ódio, mas também a face cinza da objetividade, a indiferença. Ambas nos
impedem de compreender; ora, recusar a compreensão a outro significa recusar-lhe a
subjetividade e assim recusar-lhe o direito à autonomia, ou mesmo à existência. A nossa
compreensão poderia, até mesmo, para além dos animais de estimação, abrir-se aos nosso
primos macacos, aos nosso tios mamíferos e, pelo querer viver, a todos os seres vivos”
(M3, p. 166).
Os grandes sentimentos são sempre universais. No que se refere à crueldade do
homem, aos aspectos menos róseos de sua afetividade, Morin chega a se indagar (cf. M5, p.
60) se a idéia de vingaça, de punição, de Lei de Talião não seria um desses sentimentos
universais, enraizados em um princípio de reciprocidade profundamente inscrito no
psiquismo humano. As sociedades de alta complexidade, altamente civilizadas, poderiam
141
superar o desejo de castigo por meio da magnanimidade e do perdão. "Interromper o ciclo
da vingança" e "renunciar à lei de talião" são "uma primeira verdadeira conquista da
civilização" (M6, p. 125). A ética poderia ser compreendida como modo de “evitar ceder às
pulsões vingativas e maldosas” (APS, p. 61).
Essa postura, que recusa a vingança e a punição e aposta na compreensão, no perdão
e na compaixão, que inclui também o auto-exame, “nos remete à via oriental” (APS, p. 64).
Nesse sentido, Morin se considera um “neobudista”: “não podendo aderir ao substrato
metafísico da metempsicose”, ele considera que “a mensagem de compaixão pelo
sofrimento – não apenas humano, mas de qualquer ser vivo”, que constituía a principal
mensagem do budismo, “poderia e deveria ser incorporada em nós” (APS, p. 51). Essa
mensagem coincide com a mensagem evangélica (infelizmente sempre recoberta pelo
dogmatismo das igrejas). A compaixão cristã, mesmo sendo limitada aos humanos,
“comporta algo de original ou importante: a capacidade do perdão”. Morin aqui realiza um
“sincretismo filosófico-ético-cultural, tomando dessa mestiçagem o que [lhe] convém
(idem).
Deve-se compreender, enfim, que a compreensão complexa não tem qualquer
ambição de se tornar entendimento totalizante ou exaustivo do fenômeno em questão:
"compreender não é tudo explicar. O conhecimento complexo sempre admite um resíduo
inexplicável. Compreender não é compreender tudo, mas reconhecer que há algo de
incompreensível" (M6, p. 124).
e) A maternidade da fraternidade
Morin distingue duas hélices comandando o atual processo de mundialização.
Iniciada no século XVI, a primeira hélice “põe em comunicação, para bem e para mal, os
cinco continentes” (M5, p. 225) e, “pertencente à megalomania humana”, comporta
conquista, violência, opressão, destruição, escravismo, exploração dos continentes africano
e americano. Em nossos dias, essa hélice é animada pelo “quadrimotor ciência-técnica-
indústria-lucro”.
Hoje, o mundo se depara com uma aliança entre duas barbáries: uma fundamental, a
barbárie do sapiens-demens e dos aspectos negros de sua afetividade, que “vem do fundo
dos tempos históricos e traz a guerra, o massacre, a deportação, o fanatismo”; outra, global:
142
oriunda do quadrimotor capitalista. Trata-se de uma barbárie “gelada, anônima, que vem de
nossa civilização técnico-industrial, que só conhece o cálculo e ignora os indivíduos, a
carne deles, os sentimentos, almas” (M5, p.242). Assim, é necessário um pensamento e
uma política que permitam à humanidade “tomar o controle do quadrimotor tomando o
controle de si mesma” (M5, p. 258).
A segunda hélice da mundialização “desenvolve as potencialidades universais do
humanismo europeu, que se atualizam na afirmação dos direitos do homem, do direito dos
povos à soberania, nas idéias de liberdade, igualdade, fraternidade, no valor universal da
democracia”. (M5, p. 231). Destino de várias correntes emancipadoras do passado, nova
roupagem das esperanças revolucionárias que marcaram o século XX, a segunda hélice
infelizmente ainda é pouco organizada. Vanguarda da cidadania terrestre, ela se volta aos
problemas comuns de toda a humanidade (problemas ecológicos, problemas relativos ao
capital frio e tecnicista e à homogenização da cultura planetária, problema da superação das
guerras, etc.)
58
.
Inscrevendo-se nessa última hélice, a antropoética é marcada por um cunho
universalista, que abraça o gênero humano em suas mais variadas singularidades. O amor aí
presente é um amor do tamanho de nosso planeta: ele se baseia na fraternidade universal e
se calca na unidade múltipla humana. Até hoje, as éticas universalistas e cosmopolitas
foram freqüentemente marcadas por um internacionalismo míope, concebendo uma
identidade humana abstrata que, por ignorar as singularidades culturais, mostra-se ineficaz
para a realização de uma efetiva união da humanidade. Além disso, essas éticas foram
formuladas em um momento em que a espécie humana ainda não se encontrava
concretamente reunida. Ocorre que desde a segunda metade do século XX a humanidade
passou a estar ligada como nunca, não só devido às inúmeras redes que passaram a
envolvê-la, mas também por estar sujeita a perigos que abarcam todo o globo terrestre,
como os problemas ecológicos e a ameaça das armas nucleares. Estamos hoje na era da
“comunidade de destino” de toda a humanidade: problemas fundamentais, como os de vida
e de morte, se estendem a todos os seres humanos. Tudo isso confere uma concretude ao
58
Que se entenda que Morin fala em duas hélices da globalização mas não em dois processos disjuntos: “as duas
globalizações antagônicas são inseparáveis: as idéias emancipadoras desenvolveram-se em contraponto às dominações”
(M5, p. 235). Além disso, as idéias universalistas da segunda hélice se apóiam fortemente no desenvolvimento técnico das
comunicações para serem divulgadas, e “por meio de muitas censuras, inibições, possibilidades abortadas, a cultura
universalista parasita o comércio mundial e a indústria da mídia, que, ao mesmo tempo, parasitam a cultura universalista”
>>>
143
universal.
Além disso, hoje se faz necessária a tomada de consciência de outro aspecto
bastante concreto: somos desde sempre unidos por uma identidade comum, oriunda de
“uma filiação a uma entidade materna e paterna que concretiza o termo pátria e traz a
fraternidade a milhões de cidadãos sem laço consanguíneo” (M5, p. 240). Essa entidade é a
Terra-Pátria, da qual somos filhos e cidadãos, de onde é originária a humanidade.
Mais do que nunca, o homem necessita praticar um cosmopolitismo terrestre. Não
se trata de um cosmopolitismo abstrato e sem raízes: a consciência de filiação à Terra-
Pátria opera na unitas multiplex constitutiva da humanidade e não exclui os enraizamentos
étnicos ou nacionais. Ao contrário, reconhece as comunidades locais e concretas, desde que
estas reconheçam uma outra concretude: seu pertencimento à totalidade da comunidade
humana, comunidade que é "concreta, mesmo se ainda não é vivida como tal, pois é uma
comunidade de destino e uma comunidade de origem (...) A ética planetária é uma ética do
universal concreto." (M6, p. 163). Assim, cosmopolitismo terrestre e identidades étnicas
podem perfeitamente se complementar: beber no passado cultural é uma necessidade
identitária profunda para cada um, mas essa identidade é compatível com a identidade
propriamente humana, ainda mais profundamente enraizada no passado, na qual devemos
também beber para nos renovarmos” (M5. p. 240). A fraternidade entre os seres humanos
só pode se apoiar na consciência da filiação à Terra-Pátria, ou seja, "nada de irmãos sem
mãe" (M6, p. 165).
Contamos hoje com um maquinário econômico, um aparato tecnológico e uma rede
de comunicação desenvolvidos em escala mundial. Carecemos, porém, de instâncias
superiores, de mecanismos de regulação capazes de guiar o processo de mundialização a
uma verdadeira sociedade civil planetária, freando os avanços predatórios do quadrimotor
da primeira hélice da mundialização e permitindo, assim, as tomadas de consciência
capitais relativas à Terra como nossa comunidade de origem, de destino e também de
perdição. Formamos uma comunidade de perdição porque “sabemos que estamos perdidos
no universo gigantesco e estamos todos fadados ao sofrimento e à morte" (M6, p. 165). A
idéia de perdição é um dos combustíveis que anima a constituição da fraternidade
universal:
(M5, p. 234).
144
“Nascemos sem saber por quê, morremos sem saber por quê. A meu ver, o imperativo
religioso que hoje se impõe diz respeito à tomada de consciência desse destino comum.
Temos um destino comum: nascer e morrer, sofrer e poder ser feliz. Para mim, a religião só
pode ser a religião dos homens perdidos. Para mim, a religião não deve se fundar sobre a
idéia de saúde, como ocorria nas religiões tradicionais, mas sobre uma idéia de perdição.
Nós estamos perdidos juntos”. (NCJN, p.37, tradução minha)
A fraternidade é experimentada e encarnada tendo-se em vista não uma salvação iminente e
messiânica (terrestre ou celeste), mas a nossa filiação à comunidade de perdição:
“(...) devemos compreender que nos encontramos nesse pequeno planeta, nessa casa
comum, perdidos no cosmos, e que nossa missão deve ser efetivamente a de civilizar as
relações humanas sobre o nosso planeta. As religiões e política salvacionistas reiteram:
sejamos irmãos, porque seremos salvos. Acredito que hoje seja necessário dizer: sejamos
irmãos porque estamos perdidos num planeta suburbano, de uma galáxia periférica, de um
mundo desprovido de centro. Mesmo assim, possuímos plantas, pássaros, flores, assim
como a diversidade de vida, as possibilidades do espírito humano. Doravante, aqui residirão
nosso único fundamento e nosso único recurso possível.” (APS, p. 41)
A religião da Terra-Pátria seria sem revelação (como o budismo), baseada no amor (como o
cristianismo), e “sem providência, sem futuro radioso, mas que nos ligaria uns aos outros
na aventura desconhecida” (TP, p. 282). Trata-se de uma religião que incluiria o
pensamento racional, mas que conteria “algo de sobre-racional” e “um sentimento místico e
sagrado”, pois participaríamos plenamente daquilo que nos ultrapassa; uma religião sem
promessa, mas com raízes: “raízes em nossas culturas, em nossa civilização, na história
planetária, na espécie humana, na vida, nas estrelas que forjaram os átomos que nos
constituem, no cosmos onde apareceram as partículas que constituem nossos átomos”, na
qual “a ausência de um deus revela a onipresença do mistério” (TP, p. 282).
Eis-nos diante de mais uma pré-história: a da sociedade-mundo. “Continuamos na
idade de ferro planetária” (M5, p. 235). Ainda estamos longe de um conjunto global que
pudéssemos denominar A Humanidade. A interdependência não cria, por si mesma, a
solidariedade; a comunicação, cada vez maior entre fragmentos do globo, e o acúmulo de
conhecimentos e de informação não geram, entregues a si próprios, a compreensão. Não
sabemos, portanto, “se seremos capazes de ir rumo a uma sociedade-mundo portadora do
nascimento da própria humanidade” (M5, p. 243), pois, ainda, “a humanidade não consegue
parir a Humanidade” (M5, p. 242).
A sociedade-mundo desejada por Morin não é a que se constituiria nos moldes dos
145
Estados-Nação. A comunidade da Terra-Pátria, “dedicada a civilizar as relações entre os
seres humanos” e a “diminuir a crueldade do mundo” (M5, p. 254), poderia muito bem
“beneficiar-se dos extraordinários progressos técnicos e comunicacionais capazes de evitar
a formação de um Estado mundial”, o que então possibilitaria a formação de uma sociedade
de alta complexidade, “fortamente desburocratizada, que garantiria o desabrochar das
inicitativas dos indivíduos e dos grupos e as simbioses férteis entre os espíritos, a
integração bem-sucedida das inteligências artificiais e dos universos das técnicas” (M5, p.
255).
f) O marranismo, fonte da fraternidade universal
Marranos são judeus espanhóis convertidos que conservaram, quase sempre
secretamente, por mais ou menos tempo, sua identidade judaica no seio da identidade
espanhola (cf. MD, p. 136). Assim, os marranos foram desviantes em relação aos cristãos e
aos judeus. Eles trouxeram à cultura européia o “ceticismo de um Montaigne, o gênio de
um Cervantes, a racionalidade de um Spinoza, assim como os neomarranos, dos séculos
XIX e XX, já além do judaísmo e do cristianismo, Marx, Freud, Einstein, Chaplin.” (M5, p.
210).
Filho de pais com origem marrana, que entretanto se vinculavam fracamente a essa
tradição, Morin não chegou a incorporar nenhum rito ou crença judias. Assimilando
sobretudo a cultura européia, ele se via, na escola, definido como judeu pelos outros (sem
que com isso sofresse qualquer animosidade por parte de seus colegas), embora ele próprio
não encontrasse em si o sentido da palavra: “eu não era do mundo dos gentios, ainda que
fosse como eles, e não me sentia judeu, ainda que o fosse. Neste sentido, eu era como os
outros, sem ser na verdade dos deles. Eis, portanto, minha identidade nebulosa: era um
judeu não-judeu e um não-judeu judeu” (MD, p. 111).
Assim, a brecha da identidade dilacerada e dupla própria do marrano só se ampliou
no contexto quase secularizado em que Morin se formou. Sua parte judia levava-o a se
solidarizar com as vítimas de desprezo e humilhação e a se sentir rejeitado pelo anti-
semitismo; sua formação secularizada e a identidade heterogênea do marranismo conduzia-
o à busca de uma verdade universalista que se situasse para além do mundo dos judeus e
dos gentios, o que o levou, em um primeiro momento, ao marxismo.
146
Morin prefere se definir como neomarrano, pós-marrano ou “espinosante” (escrito
com “s”, em vez de “z”, para fazer um trocadilho com o verbo francês oser, ousar): “o
espinosante é aquele para quem a palavra judeu, deixando de ser substantivo, torna-se
adjetivo; é um adjetivo entre outros, mas não da mesma natureza que os outros, porque traz
neles muitos sofrimentos e uma insondável diferença” (MD, p. 137). Afastado de qualquer
ortodoxia, Morin reconhece que “todos os judeus que me atraem foram malditos pela
sinagoga: Jesus, Espinosa, Sabbetai...” (MD, p. 124) e que é sobretudo “na mensagem
grega e na mensagem de Jesus que reconheço minhas origens (MD, p. 141)
Uma das fontes de seu universalismo, na medida em que impediu que Morin se
fechasse em uma identidade monolítica, o (neo-pós)marranismo é um dos combustíveis que
animam sua aposta na fraternidade universal e na identidade humana fundamental que nos
enraíza, antes de qualquer identidade étnica particular, na Terra-Pátria. Ligando-se, desse
modo, à ética, o marranismo também pode servir para esclarecer o próprio pensamento
complexo: Morin chega a dizer que “o pensamento complexo é o estado supremo do
marranismo (a preocupação em integrar pontos de vista diferentes e às vezes antagônicos,
inclusive o ponto de vista da racionalidade, do misticismo e da fé).” (MD, p. 145).
Zygmunt Bauman, ao comentar a noção de freischwebende Intelligenz (inteligência
em suspensão livre) de Karl Mannheim, traz um interessante aporte a esta discussão,
permitindo que nos remetamos ao aspecto universalista da ética complexa, à recusa de
Morin em se encerrar em rótulos e em identidades grupais
59
, à dialogia entre o universal e o
particular.
Bauman considera “claramente impossível obter um discernimento abrangente dos
problemas se o observador ou pensador está confinado a um dado lugar na sociedade”
(Maurice Natanson, apud BAUMAN, 1999, p. 93). Sem se fechar em particularismos e
filiações que comprometem a busca pela universalidade, o intelectual livre elogiado por
Mannheim, um errante perpétuo, vê “como uma missão” “a capacidade de adquirir um
ponto de vista mais amplo” (Mannheim, apud idem, p. 94). Freqüentemente pagando o
preço da exclusão e do espurgo, esse intelectual, livre de lealdades grupais, livra-se da
“estreiteza e das limitações que restringem um ponto de vista” e corrige estas últimas “pelo
choque com pontos de vista opostos”, atingindo o único local “do qual se pode ter uma
59
Expressando o desconforto que sempre sentiu diante dos rótulos e das nomenclaturas intelectuais e universitárias, Morin
>>>
147
perspectiva global” (idem, p. 94). Comenta Bauman: esses pensadores “estão agora
maduros para o papel de tomadores de decisão (ou, mais precisamente, tomadores de boas
decisões” (p. 94, grifo do autor). Portador de um ímpeto em direção à universalidade ao
relativizar as “verdades” paroquiais, esse “estranho” não se encaixa plenamente em
nenhuma categoria estabelecida e “oferece uma mistura única e irremediavelmente
ambivalente de programa universalista e prática relativista” (p. 95), que visa, em última
análise, eliminar “todas as divisões que se colocam no caminho da humanidade uniforme,
essencial” (p. 95) – em termos morinianos, da Humanidade.
Somente o encontro com essa Humanidade permite a Morin abraçar o mundo por
meio do amor universal.
*******
Devemos concluir lembrando que vale para a ética os mesmos princípios de auto-
organização que valem para toda organização viva: a ética é simultaneamente autônoma e
dependente. Assim, "reforma ética, reforma da vida, reforma educativa e reforma social são
interdependentes e alimentam-se umas das outras" (M6, p. 176). A reforma ética não pode
ser solitária: admitido o malogro de "séculos de pregação pela bondade e pelo amor ao
próximo", é certo que "a reforma ética só pode realizar-se numa polirreforma da
humanidade" (M6, p. 177).
Além disso, a ética deve sempre ser flexível, aberta e criativa de modo a poder
sempre se regenerar: deparamo-nos mais uma vez com "regeneração", uma das palavras-
chave do pensamento complexo: "regenerar é a palavra-chave comum à vida, ao
conhecimento e à ética (...) Se esta não regenera bebendo nas suas fontes vivas, degrada-se
em moralina, esclerose e petrificação da moral" (M6, p. 197). Dada a incerteza do devir, a
complexidade do mundo e as formas inesperadas e imprevistas engendradas pelo gênio da
auto-organização, a ética nunca poderá ser um receituário engessado. Nesse sentido, "a
ética não é um relógio suíço cujo movimento nunca se desajusta. É uma criação
permanente, um equilíbrio sempre prestes a ser rompido, um tremor que nos convida a todo
instante à inquietude do questionamento e à busca da boa resposta" (Theo Klein apud M6,
abre Meus Demônios lembrando o projeto, em 1974, de um livro cujo título seria Eu não sou um dos seus (ver MD, p. 7).
148
p. 55).
6. Eros e Tanatos
Aqui nos depararemos com um ponto fundamental da cosmovisão de Edgar Morin:
sua referência a forças fracas e fugidias, mas preciosas e as únicas que podem nos salvar,
no seio da desordem inexorável, da crueldade, da morte. Morin se baseia sempre na idéia de
que as mais belas e desejáveis emergências são precárias, frágeis, vulneráveis. Isso torna
evidente sua visão trágica de mundo, mostrando que suas considerações sobre os aspectos
róseos da afetividade nada têm de otimismo tolo e servindo para desenhar melhor o papel
do amor na ética e na utopia.
a) O diabolus
A vida aparece na Terra como tendência inédita, fraca e improvável em meio a todo
o caos e toda a morte do caldeirão de átomos que se chocavam, sem nada produzir rumo a
uma nova organização:
“Nosso universo é catastrófico desde o início. Desde a deflagração formidável que o fez
nascer, ele é dominado pelas forças de deslocações, de desintegrações, de colisões, de
explosões e de destruição. É constituído no e pelo genocídio da anti-matéria pela matéria, e
sua aventura aterradora prossegue nas devastações, nos massacres e nas dilapidações
singulares. A saída é impiedosa. Tudo morrerá. Neste desastre medonho, apareceram forças
fracas de associação e agregação que se aproveitaram dos inúmeros encontros ao longo do
caos para unir as partículas em núcleos, depois em astros e átomos. Mas as milhares de
galáxias constituem apenas minorias isoladas e perdidas numa desordem e num vazio
incomensuráveis. Nascida sobre um minúsculo planeta no seio de uma violência extrema de
tormentas, erupções e tremores de terra, a vida, fruto de associações entre miríades de
macromoléculas, luta (...) contra a crueldade do mundo” (MD, p. 272)
A vida surge como "uma vitória inusitada das virtudes de religação", que travam “uma luta
patética contra a dispersão", em um "minúsculo planeta perdido, feito de um agregado de
detritos de uma estrela desaparecida, fadada aparentemente às convulsões, tormanetas,
erupções, terremotos" (M6, p. 32). "A matéria organizada só reúne 4% do cosmos; a vida
representa apenas uma pequena espuma da casca terrestre” (M6, p. 33).
É também cruelmente que a vida resiste à morte e à crueldade do mundo. A partir
da predação entre as espécies, vê-se como
149
“todo ciclo ecológico de vida é, ao mesmo tempo, um ciclo de morte; este ciclo de morte é,
ao mesmo tempo, um ciclo de solidariedade; este ciclo de solidariedade é, ao mesmo
tempo, um ciclo de destruição (...) A vida é a ´unidade escondida da bondade e da
crueldade´ que evoca [o autor de ficção científica norte-americano] F. Herbert em Duna
(MD, p. 272).
"A natureza é simultaneamente mãe e madrasta" (M6, p. 187). Vivemos de morte,
morremos de vida, conforme a fórmula de Heráclito. Mantemos a vida em nosso organismo
regenerando-nos constantemente a partir da morte de milhões de células. Tudo se passa,
portanto, como se, saindo do turbilhão de morte, de dissociação e de desordem, a vida (e
tudo o que a ela se associa), marcada por uma pífia tendência de religação, resistisse à
morte utilizando a morte:
"o mal da morte é utilizado para o bem da vida sem deixar de ser o mal da morte (...) É
preciso compreender que é desintegrando-se que o mundo se organiza e organizando-se que
ele se desintegra: isso determina simultaneamente a crueldade do mundo e a possibilidade
de resistência a ela" (M6, p. 187).
Analogamente ao cosmo, as sociedades humanas, os indivíduos e a história
associam dialogicamente a concórdia e a discórdia, a criação e a destruição, a bondade e a
crueldade: "o cosmo criou-nos à sua imagem" (M5, p. 28). As grandes violências e fúrias,
os genocídios, as grandes devastações são "como que continuadores ou herdeiros das
violências e fúrias cósmicas" (M6, p. 188). Porém, no caso do ser humano – em que há
“uma formidável proliferação de maldade, de vontade de fazer mal, prazer em fazer mal” –
essa crueldade não sai apenas da crueldade objetiva da natureza, mas também “da crueldade
subjetiva do ser humano, a qual se origina, embora não se reduza a isso, do fechamento
egocêntrico" (M6, p. 189). Uma outra especificidade do homem em sua relação com a
crueldade do mundo é que ele pode, por meio do espírito, refletir sobre essa crueldade e se
horrorizar com ela.
Morin possui uma atração bastante pronunciada por cosmogonias como a cabala,
que entende que o mundo se originou de “uma retirada ou de um exílio do infinito, surgiu
da ruptura dos ´vasos da perfeição´, o que acarretou a queda e a degradação generalizada,
daí a proliferação do mal e a dispersão do bem” (M6, nota 141, p. 221).
Da cosmologia contemporânea, é retirada a idéia de que nosso mundo só pode
existir por meio da separação, da ruptura e da deflagração daquilo que o precede: um "não-
separado, um infinito ou indefinido chamado pelos cosmólogos de ´vazio´, desconhecendo
150
espaço e tempo" (M6, p. 31).
O mundo, desde que nasceu, é marcado pela separação, pelo "diabolus" (o que
separa), pela aniquilação, pela morte, pela dispersão, pela desorganização, pelas
dissociações e desuniões. Em meio a tudo isso surgem minoritárias, marginais, frágeis
forças de religação, de integração, de associação, de união.
Esse aspecto de sua cosmovisão é também entendido por Morin como uma de suas
“intuições fundamentais”. Para ele, qualquer “teoria, toda visão de mundo comportam
postulados sob a forma de intuições fundamentais, inverificáveis, que podem ser fecundos
ou maus”. É uma dessas intuições sua “idéia de que o mundo é trágico, é um tecido de
contradições e que, no entanto a harmonia comporta a discórdia” (AIDC, p. 74).
b) O amor e o ódio
É nessa situação, "na extremidade da patética luta da religação contra a separação, a
dispersão e a morte", que "desenvolvemos a fraternidade e o amor" (M6, p. 36) e que
encontramos a ética, entendida sempre como um ato de religação "com o outro, com os
seus, com a comunidade, com a humanidade e, em última instância, inserção na religação
cósmica" (M6, p. 36).
O amor, como de costume, parece ser a quintessência dessas forças
hiperminoritárias onde podemos nos aquecer em meio à crueldade do mundo, pois são essas
forças que, “em nível humano, mantêm o que há de mais precioso, e que é ao mesmo tempo
o mais ameaçado e mortal, o amor” (MD, p. 273). “Nossa única realidade encontra-se nos
fenômenos fugazes, que têm tão pouco de realidade, mas o mais frágil e o mais efêmero, o
amor, é também a realidade mais sublime” (MD, p. 66). Forma máxima de resistência à
crueldade do mundo, “o amor é a única força que pode se opôr à morte” (DNH, p.36,
tradução minha).
O amor se opõe à morte não apenas por ser força religadora, mas também porque,
com a poesia, diminui nossas angústias decorrentes da crueldade do mundo: “saberemos
que somente o amor e a poesia vividos são respostas capazes de levar a enfrentar a angústia
e a mortalidade? (...) Poderemos fortalecer o mais precioso, o mais frágil, essas últimas
emergências que são o amor e a amizade?” (M5, p. 295)
151
Nesse sentido, a fraternidade presente na ética não é tanto uma “finalidade ideal”,
mas uma “virtude de resistência às forças da barbárie” (M5, p. 234). Assim, "o sentido que
eu dou, enfim, à ética, caso seja necessário um termo que englobe todos os seus aspectos, é
o de resistência à crueldade do mundo e à barbárie humana" (M6, p. 199), resistência que se
pela solidariedade, pelo amor, pela religação e por comiseração pelas infelizes vítimas. O
combate essencial da ética é a dupla resistência à crueldade do mundo e à crueldade
humana. ´É impossível que o mal desapareça´, dizia Sócrates em Teeteto. Sim, mas é
preciso tentar impedir o seu triunfo." (M6, p. 193).
Por meio do amor, resistimos ao ódio, a barbárie, a cegueira, à incompreensão, às fúrias
devastadoras. Mais uma vez é Hoederlin quem ilustra a ética do amor como ética de
resistência:
"quanto mais somos atacados pelo vazio que, feito um abismo, ameaça, por todos os lados,
engolir-nos, ou por essa coisa múltipla que é a sociedade dos homens com suas atividades e
que, sem forma, sem alma e sem amor, persegue-nos e distrai-nos, mais a resistência da
nossa parte deve ser apaixonada, veemente e selvagem..."
(apud M6, p. 200).
Nesse ponto, Morin trava um constate diálogo com a última formulação da teoria
das pulsões de Freud, a que opõe pulsões de vida e pulsões de morte (Eros e Tanatos). Em
O Mal-Estar na Cultura, uma das questões levantadas é saber até que ponto os progressos
da civilização, da seara de Eros, poderiam conter, dominar, transformar as pulsões de
agressão e de auto-destruição, da esteira de Tanatos. Nesse texto, Freud espera que o “outro
dos dois Poderes Celestes, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com
seu não menos imortal adversário” (FREUD: 1978, p. 358).
As referências a Eros e Tanatos atravessam a obra de Morin. Por exemplo, em O X
da questão, de 1969, é empregado o termo Elohim (o criador do início do Livro do Gênesis)
para se referir à fonte primordial de onde, no homem, brotam os afetos. Há dois elohim
primordiais, que Morin opta, nesse momento, por chamar de "Eros ou Empatia" e "Tânatos
ou Agressividade": uma entidade representante do amor e do bem, outra do ódio e do mal,
aos quais se associam outros elohim secundários (cf. LVS, p. 183).
Eros e Tanatos são dois inimigos profundos, mas inseparáveis: se a vida resiste à
morte utilizando a morte, ambos também se complementam. O mundo é a união da união e
152
da desunião, da discórdia e do acordo. O que une e o que separa nascem ao mesmo tempo,
a ordem estabelece-se no seio da desordem, como Morin reiteradamente assevera: "o
princípio da religação não poderia ser independente do seu contrário. É preciso, então,
colocá-los em relação complexa (não apenas antagônica, mas também concorrente e
complementar)" (M6, p. 186). Há, assim, "ao mesmo tempo, luta mortal e cópula entre Eros
e Tanatos" (M6, p. 34). O amor é “a negação da dispersão no próprio processo de
dispersão" (M2, p. 487).
A maneira como a vida resiste à morte pode ser vista pelo ângulo da “regeneração”,
uma outra palavra-chave da cosmovisão moriniana. Só vive o que incessantemente renasce.
A regeneração é essencial para o amor, para a amizade, para tudo o que desejamos manter:
“para conservar uma aquisição, é preciso regenerá-la incessantemente (...) tudo o que não
regenera, degenera. ´Quem não está nascendo, está morrendo´, canta Bob Dylan” (M5, p.
294, grifos do autor). Morin admite ser a importância da regeneração a lição mais
importante que tirou de seu trabalho com a complexidade.
Tudo o que é vivo se submete ao segundo princípio de termodinâmica, a entropia,
um princípio de desintegração e degradação universal. Vivendo de nossa própria
desintegração, só podemos combatê-la pela incessante regeneração (até o momento em que
isso deixa de ser possível). Mesmo o amor, nosso bem supremo, deve constantemente se
regenerar. Morin aponta a diferença que a língua italiana faz entre innamoramento e amore:
"o innamoramento corresponde ao amor nascente, carregado de poesia e de fascinação.
Amore só permanece amor se nele se regenera a poesia do innamoramento; em contrário,
ele se converte em afeição ou degrada-se, azeda, perece" (M6, p. 138).
c) A religação dos saberes como resistência à crueldade do mundo
A religação é o centro gravitacional tanto da epistemologia quanto da ética
complexas. O abraço praticado pelo pensamento complexo se prolonga na ética da
solidariedade, que abraça a Humanidade da Terra-Pátria:
“Religar, religar. Tornou-se, não a palavra-chave, mas a Idéia-mãe. O conhecimento que
religa é o conhecimento complexo. A ética que religa é a ética fraternal, a política que
religa é a política que sabe que a solidariedade é vital para o desenvolvimento da
complexidade social.” (MD, p. 260).
153
Podemos mesmo inverter os termos. Se o pensamento complexo se atém ao que está tecido
conjuntamente e sua ética propõe a solidariedade universal, pode-se também dizer que a
ética complexa entende que todos os homens estão inseridos conjuntamente no mesmo
tecido (seja por sua condição humana desde sempre universalmente partilhada, seja por se
encontrarem na era planetária) e que uma nova ciência necessita de solidariedade entre
domínios até hoje concebidos separadamente. Ademais, os princípios do pensamento
complexo são também os princípios da ética complexa: trabalhar pelo bem pensar, o
esforço da auto-análise e da inclusão de si no que no que é observado...
A compartimentação e a atomização do saber não resultam unicamente em má
ciência; apresentam também importantes conseqüências éticas, na medida em que atrofiam
a consciência das responsabilidades e impedem que se conceba a ecologia da ação. “O
pensar mal rói a ética nas suas fontes: solidariedade e responsabilidade” (M6, p. 62). Nesse
sentido, a fragmentação dos saberes também favorece a crueldade do mundo. É como se o
pensamento complexo também fosse uma forma de amor e de resistência aos aspectos
terríveis da existência: “a especialização e a compartimentação destroem o sentido de
responsabilidade. Cresce, assim, a crueldade por indiferença, desatenção e cegueira” (MD,
p. 273).
d) Consciência e alta complexidade social
De modo análogo, quando falamos sobre a consciência, vimos com ela é em muitos
sentidos minoritária, epifenomenal, frágil emergência do espírito-cérebro humanos, mas a
mais extraordinária dessas emergências, sendo um tesouro insubstituível. O valor da
consciência, assim, “está ligado à sua fragilidade, como tudo que para nós é o melhor e o
mais precioso” (M5, p. 110).
Também os momentos de alta complexidade na história - momentos de
confraternização, de comunhão, de felicidade coletiva, de poesia encarnada, como a
libertação de Paris e a Revolução dos Cravos – são ainda “relâmpagos fulgurantes,
desabrochamentos provisórios (...), êxtases da história” (PP, p. 204).
*****
154
E assim entendemos como
“a consciência, a liberdade, a verdade e o amor são frutos, flores. Os charmes mais sutis, os
perfumes, a beleza dos rostos e das artes, os filmes sublimes aos quais nos entregamos, são
eflorescências de sistemas de sistemas de emergências de emergências de emergências...
Representam o que há de mais frágil, de mais alterável: um nada os deflorará; serão os
primeiros atingidos pela degradação e pela morte, embora quiséssemos e acreditássemos
que são imortais (M3, p. 274 – nota 112).
Consciência, liberdade, beleza e sobretudo o amor: são essas fragilíssimas forças
minoritárias que se encontram no horizonte utópico de Edgar Morin. Se a crueldade
encontra-se irremediavelmente inscrita no cosmo, se sabemos que, no final, é a
desintegração que ganhará a partida, poderemos algum dia, ao menos entre os humanos,
fortalecer o que resiste ao horror do mundo? Poderemos ao menos civilizar nossas relações
e disciplinar nossas barbárie interior? Enquanto isso não ocorre, só nos resta, por meio da
resistência, ajudar essas forças fracas, essas potências perecíveis, esses tesouros
emergentes... Só nos resta buscar refúgio e consolo “nos seres bons e doces que amam e
que podem compreender-nos com nossas fraquezas e doenças" (M6, p. 199), pois “existem
algumas ilhotas de bondade, de generosidade, de amor e de misericórdia no coração desta
espécie criminosa” (M5, p. 117). São essas ilhotas, os homens de boa vontade, a aposta
obstinada e infatigável de Morin. No seio de toda a desesperança que o mundo nos suscita,
é por meio desse “esforço cósmico desesperado” (MD, p. 274) de resistir à fatal destruição
que a esperança pode surgir.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A “cultura psíquica” preconizada por Morin identifica-se com uma sabedoria
voltada ao homem contemporâneo. A partir da informação e do conhecimento, é preciso
fazer emergir uma sabedoria - palavra desgastada que o pensamento complexo permite
reabilitar. Na tradição racionalista, a sabedoria é entendida como "arte de viver pela qual a
razão governa dominando ou eliminando as paixões, essa fonte de ilusão e de delírio" (M6,
p. 135). A prudência recomendada pela sabedoria racionalista apóia-se na inteligência, mas,
como sabemos, a inteligência, desde o mundo mamífero, só pode ser mobilizada por um
aumento – e não por uma contenção – da afetividade. Sabemos que as paixões são a grande
marca distintiva e indelével de nossa espécie, encontrando-se no coração de nossa
cognição, de nossa psique, de nossa cerebralidade, de nossa práxis, de nossa
existencialidade, de nossa animalidade. É por essa razão antropológica-chave que o antigo
modelo de sabedoria grega hoje é inadequado. A eliminação do não-racional e do afetivo,
por parte de um conhecimento que aspira constituir-se em sabedoria, só pode ser uma idéia
pouco sábia.
Morin se indaga: “se a sabedoria nos incita ao desapego do mundo da vida, será que
ela está sendo verdadeiramente sábia?” (APS, p. 9). Apegar-se ao mundo da vida significa
aceitar uma parte da loucura da vida, que deve se integrar à racionalidade para construir
uma “louca sabedoria" (M6, p. 137). Isso implica assumir os grandes circuitos dialógicos
do qual somos tecidos, “que podem ser resumidos nas dialógicas sapiens-demens e prosa-
poesia” (APS, p. 66). É certamente sábio ter prudência e cuidado com os excessos
destrutivos do demens, sempre à espreita, mas isso não significa evitar riscos a qualquer
custo, fugir das experiências da consumição, da dissipação, do êxtase...
Sempre marcada pela brecha, pela incerteza, pela indecidibilidade que a
humanidade levou ao paroxismo, a sabedoria nunca pode se tornar norma arrogante: se
assume as dialogias inscritas na humanidade, ela própria deve ser marcada por uma dialogia
com a não-sabedoria. "Não é sábio ser apenas sábio" são as sábias palavras de Santayana
repetidas por Morin. Aberta à vida, sempre auto-eco-organizada, a sabedoria deve renascer
incessantemente, refazer-se a todo tempo, lançando-se no ritmo e no fluxo do devir da vida.
Se o excesso de sabedoria se torna loucura, o amor e a poesia constituem uma salvação para
156
a sabedoria: “a sabedoria só evita a loucura ligando-se à loucura da poesia e do amor" (M6,
p. 135).
Ao abarcar a afetividade, a sabedoria que se apóia na antropologia complexa deve
viver, “sem nunca deixar que ele se degrade, um jogo em yin-yang entre razão e paixão que
as mantém e cujos excessos de uma estimulam o crescimento da outra” (M6, p. 136).
Podemos, “ao mesmo tempo, dar razão às nossas paixões e apaixonar a nossa razão”(idem).
A sabedoria, assim, se liga ao pleno exercício da nossa qualidade de indivíduos-sujeitos
conscientes, que nos permite o exercício da “paixão crítica” aspirada por Octavio Paz. A
dialógica razão-paixão é “uma arte existencial delicada: é preciso saber correr os riscos da
paixão, mas evitar ser aniquilado por ela; é preciso saber se perder e se encontrar no amor,
perder-se para encontrar-se, encontrar-se para perder-se” (idem).
Essa sabedoria não se baseia, é claro, unicamente sobre uma antropologia
fundamental: para que seja verdadeiramente complexa, a sabedoria deve se abrir à
multiplicidade de vozes consonantes e dissonantes presentes na vida, situando-se nas
confluências entre ciência, arte, filosofia, espiritualidade.
A sabedoria deve promover um conhecimento que faça o homem mergulhar de
corpo e alma (expressão que, aliás, é um pleonasmo, porque se baseia em uma disjunção
que ignora que ambos se interpenetram) no turbilhão afetivo humano e no turbilhão da
vida, ao mesmo tempo resistindo ao mundo e à sua crueldade e aceitando-o, celebrando-o
poeticamente, amando-o, rendendo-se a ele, cantando o fato da vida. Na ética de resistência
à crueldade do mundo discutida no último capítulo existe também, paradoxalmente, uma
dimensão de aceitação. No sexto volume do Método, Morin freqüentemente recorre à
fórmula de Beethoven - "Muss es sein? Es muss sein!" (Isto pode/deve ser? Isto pode/deve
ser!) - para expressar como devemos "aceitar o nosso destino de homo sapiens/demens do
qual não podemos extirpar a loucura, aderir à vida apesar dos seus horrores, aceitar a
crueldade objetiva que nos faz viver da morte de outros, mas recusar a crueldade subjetiva
que consiste em querer fazer mal, fazer sofrer, torturar" (M6, p. 201). É necessário, sim,
aceitar as coisas, “mas nos revoltando enquanto as aceitamos” (DC, p. 41, tradução minha).
O “viver de amor” conjuga-se, assim, ao “amor pelo viver” (M6, p. 102).
Uma das “linhas de força da sabedoria moderna consistiria na compreensão” (APS,
p. 64). Assim, a sabedoria “exige a união da ética da compreensão com a ética da poesia e a
união da ética da poesia com a auto-ética" (M6, p. 141). É certo que não podemos encontrar
157
uma poética ressonância psíquica profunda com todas as pessoas à nossa volta. Supor que o
faríamos seria negar nossa humanidade, com seus imprintings e múltiplas determinações
inconscientes. Contudo, podemos intuir essa ressonância; podemos, pelo menos em algum
grau, atingir essa simpatia pelo outro, por meio do esforço compreensivo, da crença no
poder do amor, da consciência de nosso solo, origem e destino comuns. Podemos nos
esforçar para nos tornarmos menos fanáticos e bárbaros. A ética do amor brota desse
esforço cósmico religador, permitindo-nos ver a humanidade dos outros, compreendê-los
como sujeitos como nós mesmos e admitir nossa primordial ligação com eles. “A beleza do
amor, que reside na interpenetração da verdade do outro em si, implica encontrar sua
verdade através da alteridade” (APS, p. 31).
A sabedoria ensina que a vida, o mundo, o homem, o conhecimento, a ciência
constituem sistemas abertos. A abertura “brecha aberta sobre o insondável e o vazio, ferida
original de nosso espírito e da nossa vida, também é a boca sedenta e faminta pela qual
nosso espírito e nossa vida desejam, respiram, bebem, comem, beijam” (PP, p. 232). A
mesma abertura que nos faz seres inacabados e introduz as angústias da existência, permite-
nos a religação com a vida e com o cosmo por meio da religação com o outro - religações
que nos permitem suportar e enfrentar os horrores dessas angústias e da crueldade do
mundo.
Essa abertura primordial é também o que torna sempre possível a aposta na
incerteza do real, permitindo assim a criação de um horizonte utópico-realista apoiado no
amor e no universalismo. Tal horizonte é certamente impalpável, mas pode ser possível;
enquanto ele não se realiza e enquanto duvidamos de sua concretização efetiva, ele age
como um combustível para nossas ações, constitui-se em um guia em nossas vidas, opera
como um vetor - um vetor fluido, refazendo-se a todo instante - que aponta para a criação
de um mundo melhor.
Ética complexa, antropologia complexa e epistemologia complexa unem-se para
resistir à barbárie do espírito. Em meio a tudo isso, o amor aparece como operador máximo
de religações, poetizações, regenerações.
158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Moraes Editores, 1980.
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Paulo: Círculo do Livro, 1984.
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Michel Wieviorka. Actes du Colloque de Cerisy. Paris: Fayard, 1993.
Prefácio à nova edição de Le cinema ou l´homme imaginaire. Paris: Éditions de Minuit,
1995
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Pleurer, aimer, rire, comprendre - 1 janvier 1995 - 31 janvier 1996. Paris: Arléa, 1996
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Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 1998.
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Um ano sísifo - diário de um fim de século. Lisboa: Europa-América, 1998 (b)
O método 3: o conhecimento do conhecimento. Tradução: Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 1999.
159
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Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2002
Meus Demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 (a)
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Em busca dos fundamentos perdidos: textos sobre o marxismo. Org. Maria Lúcia
Rodrigues e Edgard de Assis Carvalho. Tradução: Lucia Rodrigues e Salma Tannus. Porto
Alegre: Sulina, 2002 (c).
Grand entretien no 9: Edgar Morin (entrevista conduzida por Antoine Spire
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2002 (d).
Dialogue sur la connaissance. Paris: Éditions de l´Aube, 2002 (e)
O método 2: a vida da vida. Tradução: Marina Lobo. Porto Alegre: Sulina, 2002 (f)
Introdução ao pensamento complexo. Tradução: Dulce Matos. Portugal: Instituto Piaget,
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Entrevista concedida à revista Le Magazine Littéraire, no. 437 (dezembro de 2004),
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- tese nasceu de vários percursos
1) o meu de interesse por Morin, que me fez procurar a PUC pq era só lá q ele era estudado.
2) minha revolta com as pessoas que dizem que o Morin é um velho coroca, carola, um
francês xarope que fica falando trivialidades romanticas, que tem um sentimentalismo
hipertrofiado, que é um poeta piegas e brega que só fala em amor, q tudo o que ele fala é
tão óbvio, tão “assim”, tão etéreo, tão sem aplicação, até de direita... que edgard é ótimo,
mas tão católico... e mr. love..
mas claro que o trabalho não é só sobre o amor, é sobre afetos.
Se falaram que fé não é misticismo, dizer que é verdade, ele faz essa diferenciação, mas tb
diz que os termos das quatro polaridades tem relações complexas entre si, portanto tb
complementares, fé e misticismo se complementam e em vários momentos ele os trata
indiferenciadamente, como quando ele fala em fé quase mística (M6, p. 21), ou por
exemplo quando diz em APS p. 65 quando parece resumir as quatro polaridades em duas:
dúvida e misticismo, dúvida comportando a racionalidade, fé comportando o misticismo, o
trecho: “no que me concerne, ensaio assumir não apenas minha própria dialógica de
sapiens-demens, mas também a dialógica entre quatro forças que são muito poderosas em
mim, na qual nenhuma delas chega a dominar as outras e na qual eu aceito a coexistência e
o conflito. Quero falar da dúvida e do misticismo. É por isso que amo Pascal, que se tornou
um autor-chave para mim. Encontro nele esta alta racionalidade e o conhecimento dos
limites da razão”