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Como dizíamos: estando mais represada nas sociedades arcaicas, a hubris será
desencadeada pelas instáveis sociedades históricas, cuja “complexidade social permite
atualizar múltiplas virtualidades humanas. (...)” (M5, p. 182): potencialidades tanto
criadoras quando destrutivas. A dialógica sapiens-demens tomará um ritmo desenfreado e
turbulento, com cérebro humano projetando tanto complexidade e evolução quanto entropia
e desordem sobre a sociedade.
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A história desenvolveu-se suscitando uma dialógica
complementar antagônica de ordem-desordem-organização e, prolongando a do cosmo
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,
uma dialógica de gênese e aniquilamento, desordem e complexificação. Ela é um degelo
que liberou caoticamente as potencialidades racionais, técnicas, econômicas, imaginárias,
criadoras, estéticas, lúdicas, poéticas do homo sapiens-demens, mas também, talvez,
sobretudo, as demências e a desmedida, as barbáries desencadeadas em conquistas,
massacres, destruições, guerras, escravidões. É principalmente por meio das sociedades
históricas que Morin nos mostra como o sapiens também é killer (cf. M5, p. 117). Como já
afirmamos, a hubris agressiva pode se servir de formas racionais para a sua vazão e é
assim, como diz Michel Serres, que “no século XX a ciência e a lógica ´além de guiarem a
civilização, estão a serviço das forças de morte´” (apud PP, p. 160).
Assim, há uma associação nítida e íntima entre a sociedade histórica (e sua grande
máquina, o Estado) e a guerra, “o fenômeno humano que mais progrediu, como
testemunham as duas guerras mundiais do século XX e como pressagia o século XXI” (M5,
p. 205). As sociedades arcaicas possuíam, também, a guerra, mas estas tinham outro
caráter, não estando, “nenhuma delas (...) organizada para dominar a outra” (M5, p. 203).
A história é histérica: do mesmo modo que a histeria reifica e somatiza os abalos do
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Como vimos, há por um lado “uma lógica da complexificação que comporta desordem” e, por outro, “uma desordem
que, incansavelmente, faz regredir e destruir a lógica da complexificação” (PP, p. 203). Quando Morin fala em evolução
(entendida com evolução da complexidade), trata-se então de uma evolução aleatória, incerta, nada linear, que faz da
sociedade histórica uma heterogênea unidade de alta e baixa complexidade. É o que Morin denomina “o jogo duplo da
história” (PP, p. 204): destruição e criatividade, desordem e aumento da complexidade social. O pensamento complexo
posiciona-se sempre contra “qualquer idéia de um progresso que obedeça ao determinismo histórico” e que se efetue de
modo linear. (M5, p. 217). O que há é não exatamente um progresso, mas uma dialógica entre complexidade e destruição,
entre Eros e Tanatos, entre bárbarie e civilização. Assim, é claro que a história comporta racionalidades, lógicas,
determinações, mas também abarca ruídos, dissipações, rearranjos inesperados, desordens, desorganizações, furores,
surpresas. A história sempre desafiou qualquer predição ou teleologia.
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Para Morin existe uma profunda analogia entre a história humana (e sua relação com a desordem e a complexidade) e o
cosmo: “é toda a aventura cósmica, telúrica e biológica que parece obedecer a uma dialógica entre harmonia e cacofonia”;
“a história humana, torrente tumultuosa de criações e de destruições, despesas inusitadas de energia, mistura de
racionalidade organizadora, ruído e furor, tem algo de bárbaro, de horrível, de atroz, de esplêndido, evocado pela história
cósmica, como se esta se tivesse gravado em nossa memória hereditária. O cosmo criou-nos à sua imagem. (M5, p. 28,
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