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Roberta Canuto
O Bandido da Luz Vermelha:
por um cinema sem limite
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 2006
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Canuto, Roberta.
C235b O Bandido da Luz Vermelha [manuscrito] : por um cinema sem
limite / Roberta Canuto. – 2006.
118 f., enc. : il. ; 30 cm.
Orientadora : Profa. Dra. Vera Casa Nova
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 108-116.
Inclui anexo
1. Sganzerla, Rogério, 1946-2004. 2.O Bandido da Luz Vermelha
(Filme) - Teses. 3. Cinema – Brasil - Teses. 3. Cinema – História. 4.
Cinema experimental. I. Casa Nova, Vera. II. Universidade Federal de
Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título.
CDD : 791.43
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Roberta Canuto
O Bandido da Luz Vermelha:
por um cinema sem limite
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras:
Estudos Literários.
Área de Concentração: Literatura Brasileira
Orientadora: Profa. Dra. Vera Casa Nova
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Dissertação intitulada: O Bandido da Luz Vermelha: por um cinema sem limite,
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PosLit) da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e submetida,
em de março de 2006, à banca examinadora composta por:
Profa. Dra. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova
FALE/UFMG (Orientadora)
Prof. Dr. Julio Machado Pinto
PUC-MG
Profa. Dra. Leda Maria Martins
FALE/UFMG
Profa. Dra. Eliana Lourenço de Lima Reis
Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG
AGRADECIMENTOS
Este trabalho é fruto de um milagre no qual tive cúmplices fundamentais:
Pedro, por ser minha luz e por me ensinar o amor incondicional;
Marcelo, por ter me revelado o amor em sua essência mais forte e generosa,
cobrindo minha vida de girassóis.
Minha mãe por me ensinar a caminhar no lado lúdico e verdadeiro da vida,
guiada sempre pela experiência incontestável da coragem e da fé.
Sonaly, por ser a ponte entre a esperança e a realização;
Renata e Cícero, por possibilitarem que idéias se tornassem palavras;
Ruge, por andar comigo em uma estrada difícil;
Agradeço aos amigos do SARAH, por ajudarem na tradução da dor em poesia,
em especial, à Paula, pela batalha junto à Universidade;
A minha família e a todas as pessoas que torceram por mim, pelo afeto
infinito, em especial, a meus irmãos, cunhadas, tios e tias, enfim, a todos que
me seguiram de perto;
A meus amigos queridos, pela presença fundamental;
A minha avó, por ser única;
A Rogério Sganzerla, por deixar um rastro de poesia e genialidade impresso na
história do cinema;
E agradeço a Deus, por ter iluminado esta trilha.
À Faculdade de Letras da UFMG, pela oportunidade e compreensão nos
momentos difíceis.
À Vera Casa Nova, pelo afeto e confiança
Por definição o cinema é ritmo e movimento, gesto e
continuidade. Em tudo o que vemos, temos que considerar três
aspectos: a posição do olho que olha, a do objeto visto e a da
luz que ilumina a realidade. Assim, o cinema não tem a função
de preencher um buraco na parede, já que a sua missão é bem
maior – ser uma janela sobre o mundo.
Rogério Sganzerla
SUMÁRIO
Lista de Figuras.................................................................................................................8
Resumo .............................................................................................................................9
Abstract...........................................................................................................................10
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Introdução .......................................................................................................................11
CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria ..........................................................20
1.1 A construção de uma linguagem...............................................................................20
1.2 Um bandido na mira da crítica..................................................................................35
CAPÍTULO 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro.........................................46
CAPÍTULO 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista,
experimental, poético, revolucionário” (1960-1970)......................................................58
CAPÍTULO 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação.....................................................................75
Conclusão......................................................................................................................101
Bibliografia ...................................................................................................................108
Anexo – Manifesto de Rogério Sganzerla: “Cinema fora da lei”.................................117
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Fotograma do filme Viagem a Lua (1902), de Georges Méliès................................22
Figura 2 - Orson Welles em suas múltiplas faces no cinema.....................................................36
Figura 3 - Helena Ignês abre a “mala egótica”
(Fotograma do filme O bandido da luz vermelha)......................................................................39
Figura 4 - O “bandido social”
(Fotograma do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha) ...............................41
Figura 5 - O “bandido urbano” de Sganzerla
(Fotograma do filme O bandido da luz vermelha)......................................................................41
Figura 6 - Capa de O Pasquim, nº 33, publicado em fevereiro de 1970 ....................................70
Figura 7 - Grande Otelo (ícone das chanchadas),
em fotograma do filme Tudo é Brasil, de Rogério Sganzerla.....................................................77
Figura 8 - Fotograma do filme O signo do caos,
claramente influenciado pela estética de Welles.........................................................................81
Figura 9 - Fotograma que atesta a influência western de O bandido.........................................82
Figuras 10 - O jogo entre o real e o imaginário, em O bandido e em Acossado:
(a) Fotograma de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla;
(b) Fotograma de Acossado, de Jean-Luc Godard ......................................................................86
Figura 11 - Fotograma do filme À meia-noite levarei sua alma (1964),
de José Mojica Marins: o grotesco no cinema do mestre do terror brasileiro.............................90
Figura 12 - A morte persegue Ferdinand, em fotograma de Pierrot le fou
(O demônio das onze horas), de Jean-Luc Godard .....................................................................93
Figura 13 - Fotograma do filme Pierrot le fou (O demônio das onze horas),
de Jean-Luc Godard: a morte de Ferdinand ................................................................................94
Figura 14 - Fotograma de O bandido da luz vermelha:
a morte em preto e branco do “bandido” ....................................................................................94
Figura 15 - Fotograma de O bandido da luz vermelha: o cinema observa o cinema...............100
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
9
RESUMO
Este trabalho é um estudo do filme O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla,
tendo como base a obra crítica e literária que ele desenvolveu em duas décadas
dedicadas ao jornalismo e ao estudo do cinema. Esta pesquisa dedicou-se também à
análise das principais influências estéticas e ideológicas presentes no filme, como a
literatura de Oswald de Andrade e todo o panorama artístico e cultural das décadas de
1920 e 1960, buscando aprofundar na abordagem da produção cinematográfica deste
último período, no Brasil. Além dessas influências da cultura brasileira, este trabalho
analisa a presença decisiva da obra de cineastas como Jean-Luc Godard e Orson Welles,
na produção de Rogério Sganzerla, em especial, em O bandido da luz vermelha, que, de
acordo com a conclusão desta pesquisa, consolidou-se como uma síntese experimental
do pensamento do seu criador.
Palavras-chave: cinema brasileiro; vanguarda; experimentalismo;
crítica cinematográfica
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
10
ABSTRACT
This work is a study about the film O bandido da luz vermelha, directed by Rogerio
Sganzerla. The study is based on his critical and literary production in two decades
devoted to jornalism and film study. This research brings also an analysis of the
principal esthetic and ideologic influences of the picture, as the work of Oswald de
Andrade and the whole artistic and cultural scene of the 20`s and 60`s, examining
carefully the cinematographic production of the last one in Brazil. Above these
influences of the brazilian culture, this study analyses also the definite presence of the
works of moviemakers Jean-Luc Godard and Orson Welles in Sganzerla`s films,
specially in O bandido da luz vermelha. According to the conclusion of this research,
this film was consolidated as an experimental synthesis of the critical background and
the theoric thougt of its director.
Key-words: brazilian cinema; vanguard; experimentalism; cinematographic criticism
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA
Por um cinema sem limite
Introdução
Como o artista une intuição e bagagem intelectual em sua obra? O cinema
carrega em seu primeiro século de história a herança da sua teoria, elaborada pelos
mesmos inventores de suas imagens. O diretor Rogério Sganzerla exerceu, em seu
primeiro longa-metragem, O bandido da luz vermelha (1968), uma obra síntese, um
filme-laboratório da sua brilhante trajetória na crítica e reflexão cinematográfica. E é
justamente esse território insólito que habita entre o pensar e o fazer que esta pesquisa
busca trilhar, na tentativa de desvendar como um artista pode realizar uma obra ao
mesmo tempo selvagem e intuitiva, mas repleta de um arsenal teórico e crítico cultivado
ao longo de toda uma vida dedicada ao cinema. É pesquisando esse inventário, essa
“geléia geral” que compõe o relicário intelectual de Rogério Sganzerla, e “projetando-o”
sobre os fotogramas de O bandido, que busco entender a questão que abre este
parágrafo e determina os rumos deste trabalho.
A sofisticação da crítica acabou por torná-la complementar à teorização e
consolidação da linguagem cinematográfica; alguns críticos construíram, em seu
relicário, trabalhos que transcendem os limites jornalísticos, para se tornarem autores de
textos somatórios à teoria definitiva do audiovisual. Rogério Sganzerla é um destes
autores que contribuíram para que se decifrasse o código cinematográfico ao longo da
sua consolidação como uma linguagem plenamente realizada.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Introdução
12
O cinema nasceu como uma grande aventura, uma descoberta que chegava para
afirmar junto a outras maravilhas científicas, as possibilidades espetaculares do mundo
moderno e se afirmou como uma grande invenção, como se a ciência desse as mãos à
alquimia e levasse um pouco de seu potencial revolucionário ao reino do
entretenimento. Muito antes de conquistar a aura de realização artística e intelectual, o
cinema já era entretenimento popular, a atração mais esperada das feiras mambembes
que encantavam as vilas européias no final do século XIX e início do século XX. No
Brasil, os primeiros “cinegrafistas”, como eram chamados os cineastas mambembes,
eram perseguidos pela polícia sob a alegação de prática de charlatanismo. Mas nomes
como Georges Méliès e David Wark Griffith começaram a mudar essa história; o
primeiro imprimiu em seus filmes o espetáculo e a fantasia, enquanto Griffith começou
a traçar o mapa que conduziria o cinema em direção ao poderoso mercado do
entretenimento. Méliès descobriu e revelou ao público que o cinema poderia ir além do
teatro e da literatura, porque, em sua linguagem, detinha recursos próprios que
possibilitavam subverter a realidade e enganar os olhos. Griffith ensinou ao mundo que
aquelas imagens que em principio revelaram o caráter documentarista do cinema, como
no registro da chegada do trem na Estação de Ciobat, pelos irmãos Louis e August
Lumière, na França, poderiam sim contar histórias ficcionais e transbordar
dramaticidade. Com Griffith, o cinema se descobriu narrativo, e a linearidade solicitada
pelos primeiros espectadores inábeis, para o entendimento da história, só viria a ser
quebrada, de forma implacável e arrebatadora, anos mais tarde, por um franco-suíço que
reinventou essa história e, por isso, foi cultuado por várias gerações. Por essa revolução
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Introdução
13
lingüística, Jean-Luc Godard
1
chegou a ser reverenciado por muitos seguidores como
God Art”.
Com a evolução da linguagem cinematográfica, nas primeiras décadas do
século XX, o cinema ganhou os seus primeiros teóricos, que não se refugiavam na
observação, lançando-se, antes, à experimentação do fazer cinematográfico. A escola
russa revelou nomes como Serguei Eisenstein e Dziga Vertov, entre outros, que fizeram
do cinema um veículo para a expressão de sólidos conceitos estéticos e, sobretudo,
ideológicos daquele momento.
Podemos, assim, afirmar que a crítica ou a teorização da linguagem
cinematográfica nasceu quase simultânea ao seu objeto de estudos, o que distingue o
cinema de outras formas de manifestação artística. Pela idade pueril, se comparado a
outras formas milenares de arte, como a pintura e a literatura, o cinema, com seus
recém-completados cem anos de existência, é ainda uma arte em permanente e fértil
evolução.
A crítica e a teoria audiovisual revelaram à cinematografia mundial alguns de
seus maiores realizadores. A Nouvelle Vague francesa, da qual Godard foi um dos
criadores, jogou uma nuvem de intelectualidade sobre a faceta que restava do fazer
cinematográfico primitivo. Toda a teoria, brilhantemente desenvolvida por teóricos
como André Bazin e os críticos da revista Cahiers du Cinema, encontrou na realização
o suporte para as experimentações por eles propostas.
A Nouvelle Vague reivindicava com a política do cinema de autor a mesma
liberdade e autonomia que os escritores detinham na literatura. O cinema, que até então
1
O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, precursor da Nouvelle Vague e criador de uma narrativa
que “desobedecia” à linearidade da narrativa clássica. O próprio Rogério Sganzerla assim se referia a
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Roberta Canuto
Introdução
14
dialogava com a literatura de forma recorrente, começou a tatear o reino da poesia, da
fragmentação, da alquimia semiótica e simbólica que a liberdade autoral representava.
O público afinado com esta sofisticação lingüística através dos cineclubes, passou a
reverenciar este cinema libertário e potencialmente experimental. O cinema, assim
como arte de forma geral, rompeu com o clássico, principalmente a partir da explosão
das vanguardas européias nas primeiras décadas do século XX, era uma transformação
comportamental que canalizava as revoluções estéticas e políticas daquele período.
No Brasil, assim como na Europa, as vanguardas deflagraram o seu potencial
revolucionário e ruptor sobre todas as formas artísticas. O Dadaísmo, o Surrealismo e o
Futurismo deixaram as suas marcas na literatura, nas artes plásticas e,
fundamentalmente, no cinema, como sintetizador de todas essas fronteiras criativas.
Filmado em 1930, por Mário Peixoto, quando tinha 20 anos de idade, Limite é um
marco do experimental no cinema brasileiro. Tendo vivido a adolescência na Europa, o
cineasta foi profundamente influenciado pelas vanguardas do velho continente, e rodou,
em Guaratiba, no Rio de Janeiro, um dos longas-metragens mais poéticos e
revolucionários da história do cinema mundial, naquele período. Paralelamente a essa
revolução implementada por Limite, único filme que Mário Peixoto rodou em sua vida,
o Modernismo de Oswald e Mário de Andrade também foi extremamente importante
como fonte de inspiração estética e ideológica de toda uma geração que, assim como
Mário Peixoto, faria do experimental a escola lingüística para o cinema brasileiro
moderno.
Godard em suas críticas, principalmente as escritas na década de 1980.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Introdução
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Essa geração dividiu-se, dialeticamente, na década de 1960 e, assim, surgiram
duas vertentes. A primeira era guiada pelos ideais políticos partidários de uma esquerda
que tentava construir uma cartilha ideológica através da arte, como forma de combate ao
regime ditatorial militar, e foi criada sob o ideário do Centro Popular de Cultura (CPC)
e imortalizada mundialmente como Cinema Novo. A outra vertente da intelectualidade
cinematográfica do Brasil, naquele momento, seguiu os passos transgressores propostos
por Oswald de Andrade, para deglutir antropofagicamente a liberdade existencial e
lingüística propostas por cineastas como Jean-Luc Godard e Orson Welles, trilhando o
caminho da ousadia e da ironia para construir um cinema absolutamente ruptor, e ficou
conhecida, na época, como Cinema Marginal. Este não era um movimento movido por
manifestos, como o foi o Cinema Novo. A denominação de Cinema Marginal, ou
“Udigrudi”,
2
foi cunhada, pela crítica, para aglutinar cineastas que vinham da Boca do
Lixo, zona de prostituição que também congregava produtoras de pornochanchadas, em
São Paulo, como foi o caso de Rogério Sganzerla, que se juntou à intelectualidade
carioca, representada principalmente pelo cinema de Julio Bressane. Nascia, ali, um
abismo estético e um contraponto entre estas duas escolas: uma absolutamente
comprometida com os ideais políticos do CPC, e a outra voltada para os ideais
libertários da vanguarda e para a tradição de deboche e ironia da arte brasileira, iniciada
principalmente com Oswald de Andrade.
Foi justamente dessa corrente estética que ficou rotulada como Cinema
Marginal que veio o filme mais instigante e representativo daquele momento, O
2
O termo “udigrudi” foi criado por Glauber Rocha para satirizar o cinema praticado por Rogério
Sganzerla e Julio Bressane, acusando-os de fazer pastiche do cinema underground norte-americano,
isto no auge do conflito entre os cinemanovistas e os cineastas do movimento marginal.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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16
bandido da luz vermelha, filmado em 1967 e lançado, no ano seguinte, por Rogério
Sganzerla. O bandido pode ser visto como um filme-laboratório, no sentido em que,
nele, está representada, de forma absolutamente precisa, toda a bagagem intelectual e
cinéfila de Sganzerla, desenvolvida ao longo do fértil e precoce período que ele dedicou
à crítica cinematográfica. Não que o filme seja um exercício esquemático de afirmação
teórica; ele é inteiramente original e fluente em sua proposta lingüística. Esse vigor e
potencial inventivo fazem de O bandido um filme atemporal que, hoje, afirma sua
pertinência e teor revolucionário de forma cabal.
A dicotomia entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal é, neste trabalho,
apenas um vestígio que localiza essas correntes criativas na história da cultura
brasileira, e não o ponto central desta pesquisa, já que este conflito foi muito mais uma
afirmação crítica daquele momento, do que um determinador lingüístico para a história
do cinema brasileiro.
O cinema, como já foi dito, é talvez a única forma de manifestação artística que
teve a sua evolução teórica acontecendo paralelamente ao desenvolvimento de sua
linguagem. É também no cinema que mais se identifica a transformação de críticos em
realizadores. O cinema nasceu como uma invenção mecânica advinda da fotografia,
para se tornar popular e, só mais tarde, se afirmar como arte, caminho absolutamente
original se comparado ao trilhado pela literatura e pelo teatro, por exemplo, linguagens
que já nasceram sob a aura sacra da arte.
As teorias cinematográficas, como veremos no primeiro capítulo desta
dissertação, foram, em sua maioria, elaboradas pelos próprios cineastas, e a maior parte
delas surge para legitimar e afirmar os conceitos estéticos e lingüísticos e as
idiossincrasias que aqueles cineastas defendiam em seus filmes. A bagagem teórica que
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Introdução
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o cinema detém, hoje, na maioria de sua bibliografia, advém da soma de várias
correntes estéticas e ideológicas desenvolvidas por culturas e geografias diferentes. Para
se chegar ao ponto central desta pesquisa, que é a análise do trabalho crítico de Rogério
Sganzerla e a aplicação deste em seu filme-síntese O bandido da luz vermelha, é preciso
que se acompanhe de perto a “invenção” e sofisticação da linguagem cinematográfica.
No segundo capítulo, este trabalho se dedica à importância do Modernismo e,
principalmente, de Oswald de Andrade para a geração de Sganzerla. A Antropofagia
proposta por Oswald funcionou como um alicerce intelectual para Sganzerla, na
tentativa de subverter a censura ideológica e estética da arte engajada e fazer um cinema
irônico, experimental e fronteiriço com o melhor do cinema mundial. Como ocorrera na
década de 1920, a intelectualidade retoma o discurso nacionalista e o pensamento
oswaldiano constitui, nos anos de 1960 e 1970, uma matriz para aqueles autores que
buscavam um cinema transgressor e libertário, esteticamente repleto de influências
vindas de escolas que não eram comprometidas apenas com um ideal político
doutrinário, mas que, ao mesmo tempo, queria produzir “biscoito fino para as massas”,
como propôs Oswald. Como veremos no segundo capítulo, o Modernismo não foi
apenas uma matriz ideológica e estética do cinema de Sganzerla, já que ele se apropriou
e reproduziu, de forma intertextual, longos trechos da obra de Oswald, em O bandido da
luz vermelha.
O terceiro capítulo deste trabalho analisa o contexto histórico e cultural que
emoldurava, no Brasil, aquele momento em que O bandido da luz vermelha foi
realizado, na fronteira entre as décadas de 1960 e 1970. É nesse momento que surge, na
arte, o fenômeno da “marginalidade”, que moldou não apenas a estética, mas também o
comportamento de toda uma geração. É fundamental trazer à tona as interseções entre o
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Introdução
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cinema produzido por Sganzerla e a produção de artistas como Hélio Oiticica, Lygia
Clark, Torquato Neto e os Tropicalistas, ou pós-tropicalistas, como querem alguns
teóricos. Todos eles estavam sintonizados com esse movimento de levar a periferia para
o centro do discurso artístico, não de forma paternalista, como o fez a arte engajada,
mas como parte de um quadro social que, cada vez mais, diluía as suas fronteiras. A
marginalidade era uma forma de subverter a censura e falar ironicamente do absurdo
que pairava sobre o Brasil naquele momento. Um país destroçado pela ditadura e
censurado pela sua própria intelectualidade.
Esse contraponto entre a arte engajada, defendida pelos centros de produção
cultural como o CPC, e a vanguarda poética e libertária, também é fundamental para
que se entenda o vigor com que o cinema de Sganzerla rompe com o modelo proposto
pelo Cinema Novo e, principalmente, por Glauber Rocha.
Nesse capítulo estão também os ingredientes que alimentaram aquela geração,
não só no horizonte artístico, mas, principalmente, no comportamental, que iria
determinar definitivamente a estética ali construída. O trinômio sexo, drogas e
rock´n´roll deixou as suas marcas indeléveis na arte produzida naquele momento. No
caso do cinema, o experimentalismo lingüístico se somou às experiências sensoriais
provocadas pelas “viagens” propostas por aquele tempo libertário.
O capítulo final deste trabalho se dedica ao objetivo central da pesquisa: como
a soma dessas influências, expressas nas teorias que construíram a linguagem do
cinema, na Antropofagia oswaldiana e nas fronteiras estéticas, históricas e existenciais
da geração de 1960/70 se constitui como bagagem teórica para a crítica de Rogério
Sganzerla e, principalmente, como ele aplicou esse inventário crítico no filme O
bandido da luz vermelha.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Introdução
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Esse capítulo revela, em sua essência, como Sganzerla foi, antes de tudo, um
crítico apaixonado pela linguagem cinematográfica, atento às possibilidades dessa
linguagem, e como ele soube desenvolver com brilhantismo os argumentos de suas
críticas, publicadas em importantes veículos da imprensa brasileira entre as décadas de
1960 e 1980. É também visível em suas citações o seu olhar precursor e profético do
que viria a ser o cinema contemporâneo, característica responsável pelo frescor e pela
atemporalidade que pairam sobre O bandido. Nesse capítulo, Sganzerla declara, sem
pudor, a sua profunda admiração por dois grandes mestres da história do cinema: Jean-
Luc Godard e Orson Welles, apropriando-se, numa lição aprendida com genialidade na
escola antropofágica do mestre Oswald de Andrade, do que eles doaram de melhor ao
cinema.
CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
Tudo é cinema. Tudo é ciência e literatura.
E se misturássemos um pouco as coisas, tudo estaria melhor
Jean-Luc Godard
1.1 A construção de uma linguagem
Desde a sua criação, o cinema absorveu, de outras linguagens, elementos
fundamentais para a sua consolidação como forma de expressão artística. Da literatura,
veio a narrativa clássica; do teatro, a dramaturgia; da música, a sua porção lírica; da
fotografia, os seus contornos formais; e da poesia, a sua vertente experimental.
Comparando essa afirmação com o conceito oswaldiano de “Antropofagia”, podemos
dizer que o cinema já nasceu antropofágico em sua essência. Nesse sentido, os ideais do
cinema praticado por Rogério Sganzerla e por contemporâneos e parceiros estetas, como
Julio Bressane, se aproximavam espiritualmente e intelectualmente do Modernismo
pregado por Oswald e Mário de Andrade.
O deboche e a ironia como meios de contestação, a oposição aos ideais
panfletários que a arte esquerdista assumia naquele momento, a busca de um Brasil para
além dos discursos ufanistas, o diálogo com outras manifestações artísticas do planeta
são alguns pontos de interseção entre a estética modernista e o cinema de Sganzerla.
Mas, enquanto Oswald e Mário se interessavam primordialmente por uma investigação
e afirmação da cultura brasileira, multifacetada e antropofagicamente rica, a geração de
1960 representava a estética antropofágica através de um filtro social e político
essencialmente urbano.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
21
O cinema brasileiro seguia o rumo da sofisticação e bebia na fonte
existencialista do cinema francês, na crueza urbana e jazzística do noir norte-americano,
deglutindo essas influências e traduzindo-as para um universo próprio e particular. A
evolução da linguagem cinematográfica permitia essa sofisticação e, para que se
entenda esse código alegoricamente fecundo, é preciso que se resgate essa
transformação do cinema primitivo em um elaborado e pleno terreno de
experimentação.
O cinema surgiu como um instrumento quase intuitivo de criação, um atrativo
a mais nas feiras de variedades. Os grandes inventores da linguagem cinematográfica
tateavam na sala escura, na tentativa de descobrir um novo sistema de signos. O cinema
formou-se, assim, despretensioso, com conotações lúdicas e espetaculares e, para provar
que era de fato uma arte, seria preciso dotá-lo de uma linguagem específica, diferente
das linguagens da literatura e do teatro, fontes onde ele buscava suas histórias. Nessa
trilha, despontaram as várias teorias que perseguiram esse sistema de códigos e signos
próprios que, empírica e intuitivamente, veio constituir a linguagem cinematográfica.
Desde a sua criação, o cinema já abriu a possibilidade para dois caminhos que
iriam incorporar a dialética em sua linguagem: o cinema de espetáculo, com elementos
experimentais, e o cinema narrativo, guiado pelo espírito pragmático que já previa o
entretenimento popular. O “inventor” dessa primeira faceta do cinema foi Georges
Méliès, enquanto o cinema narrativo, que iria ganhar o público de todo o mundo, toma
forma pelas mãos do norte-americano David Wark Griffith. Ironicamente, o cinema
parece ter determinado seus contornos e geografia desde o nascimento: experimental e
onírico, na Europa; e “a caminho de uma indústria”, na América.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
22
Figura 1 – Fotograma do filme Viagem a Lua (1902), de Georges Méliès
Antes de o termo linguagem ser aceito, falou-se em “cinelíngua”, gramática do
cinema, retórica fílmica e “cine-estilística”. Os primeiros escritos teóricos sobre a
linguagem cinematográfica, antes mesmo de este conceito ser plenamente legitimado,
eram estudos que tentavam elaborar uma lógica teórica para aquele sistema de códigos.
Entre os teóricos responsáveis por esses estudos, destacam-se Ricciotto Canudo e Louis
Delluc, que ajudaram a clarear um período turvo, marcado pela polêmica entre as
diferenças entre as linguagens cinematográfica e verbal. Os pioneiros Delluc e Canudo
falam do “esperanto visual que surgia”; Canudo escreveu em Lúsine aux image, de
1927: “Multiplicando o sentido humano da expressão pela imagem, esse sentido que
apenas a pintura e a escultura haviam conservado até nós, o cinema vai formar uma
língua verdadeiramente universal de características ainda insuspeitadas”.
1
Nesse texto
profético, escrito em um tempo em que o cinema começava a se descobrir e se afirmar
como forma de expressão essencialmente artística, Canudo arrisca vê-lo como um
imenso tecido de grande potencial simbólico, no qual a imagem é soberana, dentro de
1
CANUDO. Ricciotto L’usine aux image, apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 159
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
23
uma estrutura que também permite o som e as palavras, era a dissolução e soma da
literatura e da música em um universo único.
Mas quem melhor definiu a distância entre os dois sistemas de códigos, verbal
e cinematográfico, foi o francês Abel Gance, com o brilhante manifesto A música da luz:
Não cesso de dizer: as palavras em nossa sociedade contemporânea já não
encerram sua verdade. Os preconceitos, a moral, as contingências, as taras
fisiológicas tiraram o verdadeiro significado das palavras pronunciadas [...]
como na tragédia formal do século XVIII, será necessário designar regras
estritas, uma gramática internacional para o filme do futuro. Só encerrados
em um espartilho de dificuldades técnicas os gênios eclodirão.
2
Segundo esse texto de Gance, o cinema se aproximava muito mais de uma
escala musical, em que os sons seriam substituídos pelos fotogramas e pela incidência
da luz, do que de um código verbal. Essa “escala de luz” tinha como característica
primordial a sua universalidade. Assim como a música, o cinema contornava as
limitações das fronteiras pátrias das línguas, transgredindo os códigos existentes de
comunicação e alcançando um universo novo de possibilidade criativa e conceitual.
Mas Gance, Delluc e Canudo são, antes de tudo, cineastas na tentativa de
provar a existência de uma complexidade artística e de uma linguagem sólida em um
apelo promocional. São eles que batizam o cinema de “Sétima Arte”, elevando-o ao
patamar de arte somatória
3
e soberana sobre as outras. Essa prática reafirma uma
característica intrínseca ao cinema, a da teoria aliada à prática; era o celeiro dos
cineastas teóricos ou dos teóricos cineastas, era a teoria se afirmando para legitimar a
prática. Mas, apesar dessa “convivência harmônica” da música e da imagem nessa
2
GANCE, Abel. A música da luz; apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 194.
3
Para esses teóricos, o cinema era a soma da literatura, do teatro, da música e das artes plásticas, uma
vez que é composto essencialmente de elementos dessas artes em sua linguagem.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
24
completitude artística que o cinema representava, a imagem era, já nesse período, o pilar
dessa arte em descoberta. O cinema, antes de ser sonoro, perseguia obstinadamente o
apuro imagético, era a linguagem das imagens que estava em formação. Esse purismo
formou uma escola para grandes mestres do cinema e criou enorme resistência entre
eles quanto à aceitação da chegada do som à película. A soberania da imagem sobre o
som foi, durante muito tempo, o pilar criativo do cinema.
O nascimento da estética do cinema na época em que ele era mudo não deixa
de ter conseqüências para as concepções mais comumente admitidas da
expressão fílmica. O cinema permanece, antes de mais nada, uma arte da
imagem e tudo o que não é ela (palavras, escrita, ruídos, música) deve aceitar
a sua função prioritária. Os filmes mudos eram mais cinematográficos.
4
Comungaram dessa premissa várias gerações de cineastas que sucederam essa
escola. Seguidores do cinema como estudo filosófico proposto por teóricos como Jean
Epstein, puristas da estética do “cinema mudo”, como Charles Chaplin, e cineastas
vindos de várias tendências adotaram a crença de que o cinema nada mais é do que uma
arte calcada na imagem, e todo o resto deve ser submisso a ela.
No entanto, apesar de terem uma importância fundamental como precursores
de uma imensa escola teórica, os primeiros críticos desenvolveram mais pergaminhos
proféticos do que textos amparados em uma análise técnica consistente. É a partir do
húngaro Bela Balazs e da escola russa que surgem as primeiras bases de uma reflexão
sobre o cinema como linguagem. Mas, antes de chegarmos a esses estudos, é preciso
mencionar o texto The film: a psychological study, publicado em 1916, por Hugo
Munsterberg, em um esforço admirável no sentido de decifrar os elementos técnicos que
4
MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 162.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
25
formavam aquele imenso sistema de códigos do cinema. Ele elabora, pela primeira vez,
um estudo sobre os elementos específicos da linguagem cinematográfica como
profundidade e movimento. Essa tentativa encontrou uma “tradução mais amadurecida”
com o estudo de 1924, desenvolvido por Bela Balaz, intitulado O homem visível.
Mais tarde, nos livros O espírito do cinema (1930) e O cinema: a evolução de
uma arte nova, de 1948, Balaz enumerou, com clareza e muita propriedade, os
elementos que distinguiam o cinema como uma arte única em relação a todas as outras,
delimitando principalmente o imenso potencial e a liberdade que o cinema tem ao
trabalhar o espaço e o tempo em sua narrativa, estabelecendo as primeiras noções de
plano, enquadramento, decupagem, abordando, ainda, a relação espectador/cena e a
importância da montagem para a narrativa.
Mas quem melhor elabora a questão da montagem para a história do cinema é a
escola russa. Mais uma vez, a prática iria subsidiar a teoria, e os cineastas e teóricos,
agrupados no VGIK, escola de cinema dirigida por Lev Kulechov, sistematizam as
primeiras teorias específicas da função da montagem, assim descrita por Pudovkin:
“Pelo agrupamento de pedaços separados, o diretor constrói um espaço fílmico ideal
que é inteiramente criação sua. Ele une e solda elementos separados que talvez tenham
sido registrados por ele em diferentes pontos do espaço real, de modo a criar um espaço
fílmico”.
5
Apesar das divergências entre Pudovkin, Eisenstein e Vertov, responsáveis
por teorias definitivas e revolucionárias para o cinema, todos têm como meta primordial
a transformação da realidade. Para esses formalistas russos, só existe arte e,
5
PUDOVKIN. Vsevolodn apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 164.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
26
conseqüentemente, “língua cinematográfica”, quando existe transformação artística do
mundo real.
Serguei Eisenstein, além de um diretor primoroso, foi um teórico essencial.
Eisenstein fez o caminho inverso de alguns teóricos, passando da experimentação à
teoria e, ao percorrer o trajeto entre o fazer e o pensar cinematográfico, aliou as duas
vertentes em um cinema extremamente rigoroso e ousado, que reinventava a narrativa.
Primeiro ele privilegia a descontinuidade, toma cada fragmento do filme
como peça de uma construção semântica baseada no princípio de
justaposição e conflito: duas imagens ou mais, ao serem aproximadas, são
capazes de produzir uma idéia, ou um conceito. Com aparências visuais,
podemos constituir uma espécie de escrita que se molda ao pensamento,
segue os movimentos do raciocínio, mesmo o mais abstrato.
6
Mas Eisenstein estava acima de um cinema estritamente ideológico. Por seus
filmes, passam a escrita japonesa, a poesia de Maiakovski, a revolução literária de
James Joyce e a vanguarda teatral. Os seus estudos sobre o monólogo interior foram
fundamentais para que o cinema estabelecesse uma forma de lidar com as barreiras da
adaptação de textos literários para os roteiros, transformando os pensamentos e
reflexões dos personagens literários em ações cinematográficas.
Mas a hipótese de uma “cinelinguagem”, de uma semântica dentro da
linguagem cinematográfica, foi explicitamente formulada por outra escola russa, a
OPOIAZ (Sociedade de estudo da língua poética). Cinco autores vindos dessa vertente
publicaram, em 1927, a revista Poetica Kino. Dentre os artigos publicados, destaca-se
Dos fundamentos do cinema, de Yuri Tynianov: “no cinema, o mundo visível é dado
não enquanto tal, mas em sua correlação semântica; não fosse isso, o cinema seria
6
XAVIER, Ismail. A experiência do cinema, 1983. p. 175.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
27
apenas uma fotografia viva. O homem visível, a coisa visível só é um elemento do
cinema-arte quando são dados na qualidade de signo semântico”.
7
É sob essa
perspectiva que nasce a concepção da imagem como um conjunto de elementos, só
possível a partir da correlação entre esses elementos como personagem, enquadramento,
luz e profundidade.
Se os russos foram fundamentais, antes de tudo pela concepção formal do
cinema, da França vieram algumas das mais importantes teorias filosóficas relativas à
linguagem cinematográfica das primeiras décadas do século XX. Destaca-se, nessa
corrente, Jean Epstein, cineasta e poeta, e teórico do cinema e da poesia. Em alguns
momentos, Epstein vai ao encontro do pensamento russo, como no conceito do cérebro
mecânico, elaborado por Vertov, em que a câmera funciona como a mente humana e
suas lentes são o olho que enquadra a realidade. Para ele, o primeiro plano era
essencialmente revelador, e do qual não escapava qualquer verdade. Ele acredita na
“sinceridade absoluta do cinema, garantida pelo automatismo e pela não intervenção do
homem [...] Para Epstein o cinema é um desafio à inteligência, apresenta afinidade com
uma nova sensibilidade capaz de fazer face ao ambiente tecnológico onde o homem
moderno se move”.
8
Epstein desenvolveu textos riquíssimos, nos quais avalia as
relações entre a poesia moderna e o cinema, como a efemeridade da vida, tema
recorrente em ambos, e a relação entre os ideogramas e a imagem na composição da
narrativa. A partir da década de 1940, Epstein começa a se dedicar à relação entre o
7
TYNIANOV, Yuri. Dos fundamentos do cinema; apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p.
164.
8
XAVIER, Ismail. A experiência do cinema, 1983. p. 180.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
28
cinema e a língua e, principalmente, entre o cinema revelador e poético e o proclamado
pela indústria. O primeiro põe em xeque a degradação humana, desnudando as
instituições sociais, enquanto o segundo atua como alicerce de uma falsa moral que
reina nas amálgamas sociais.
Mas a busca incessante dos paralelos ou interseções entre a linguagem escrita e
cinematográfica ainda não tinha encontrado descanso. Com a globalização da arte
cinematográfica e a penetração do cinema em culturas diversas, surgem as gramáticas
que tentam entender e explicar esse caráter universal da imagem. Acontece, então, uma
proliferação de manuais didáticos de cinema que se deve, principalmente, à
consolidação do cinema como uma arte popular e, agora, rentável; e também pela
expansão dos cineclubes que venciam as fronteiras do universo cinéfilo para atingir o
grande público. Esse movimento se delineia particularmente na França e Itália, mas sua
obra fundante foi Gramática do filme, escrita pelo inglês Raymond J. Spottiswoode.
Na França, merece destaque o trabalho dos teóricos André Berthomieu e
Robert Bataille. Na definição deste, a gramática cinematográfica “estuda as regras que
presidem a arte de transmitir corretamente idéias por uma sucessão de imagens
animadas, formando um filme”.
9
Essa definição resume bem a intenção e o espírito
dessas gramáticas: levar ao grande público os “segredos” de uma linguagem que, cada
vez mais, se consolidava como o espetáculo popular por excelência. As análises da
linguagem do cinema propostas por essas obras inspiram-se nas gramáticas da língua.
Os planos são comparados às palavras, com uma nomenclatura própria, e a seqüência de
planos é a “frase cinematográfica”. Mas, apesar dessa definição simplista, dada pela
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
29
analogia imagem/palavra, esses teóricos tinham a dimensão das diferenças complexas
entre os códigos escritos e visuais: “Estas gramáticas do cinema, por muito tempo,
serviram de bode expiatório para qualquer tentativa de abordagem formalizante da
linguagem cinematográfica, durante todo o período dominado pelas teses de Bazin
(André Bazin) sobre a transparência”.
10
A recusa da gramática como instrumento intelectual sério para o estudo da
narrativa cinematográfica implica em uma concepção empírica do que era a “linguagem
do cinema”. O livro A linguagem cinematográfica, escrito por Marcel Martin, em 1955,
várias vezes reeditado e traduzido, pode ser útil como ponto de referência para delimitar
essa concepção do estudo do cinema antes das análises semiológicas. Ele vincula o
aparecimento da linguagem cinematográfica à própria evolução do cinema em sua
técnica, definindo essa linguagem como resultado do fazer cinematográfico, que se
sofisticou a partir da intuição e inventividade dos seus realizadores. Martin credita a
constituição dessa linguagem a dois mentores, D.W. Griffith e S. M. Eisenstein. Para
ele, o cinema, em sua fase inicial, meramente mostrava o que estava diante da câmera;
ele só encontrou uma linguagem quando começou a querer contar histórias e veicular
idéias.
Para os teóricos que compartilhavam da opinião de Martin, a linguagem do
cinema existe por dois pressupostos: história e narratividade. Para Christian Metz, por
exemplo: “Um filme de Fellini difere de um filme da marinha americana (destinado a
9
BATAILLE, Robert apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 167.
10
MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 168.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
30
ensinar recrutas) pelo talento e pelo objetivo, não pelo que tem de mais íntimo em seu
mecanismo semiológico. Os filmes puramente veiculares são feitos como os outros”.
11
Mais tarde, com a quebra dos rígidos princípios que determinavam o que seria
linguagem, Martin propõe a existência de um estilo no fazer cinematográfico. Se a
linguagem é estática e não permite evoluções, o cinema abre precedentes para um olhar
pessoal. Ele chegou a sugerir a idéia de que a linguagem do cinema estava se diluindo e
desaparecendo, dando lugar a um cinema regido estritamente pelo estilo em algumas
cinematografias.
Cabe a Jean Mitry, em 1973, o resgate do termo linguagem, na análise de
filmes, ampliando as suas bases. No texto Estética e Psicologia, ele parte do preceito de
que o cinema é um meio de expressão de idéias, veiculadas esteticamente através das
imagens. Essa teoria valoriza o material significante do filme. Mitry define a linguagem
do cinema como sendo um veículo simbólico que traduz os pensamentos. Uma grande
evolução, se comparado aos teóricos que limitavam suas análises a analogias com a
linguagem verbal. Mitry não reduz o discurso fílmico ao simbólico, mas ele valoriza, e
muito, a existência desse discurso. O cinema passa a ser uma “representação” do real, e
não o seu “decalque”, como se afirmava até então.
Essa representação do real é baseada na semelhança, ou melhor, na
verossimilhança; no cinema, o ator é uma sombra do real, como no mito platônico da
caverna. Se, no teatro, o ator vivencia o personagem, no cinema, ele é o personagem. O
cinema sonoro vem consolidar essa representação e, cada vez mais, esse limite entre
realidade e ficção vai se dissolvendo na narrativa clássica: “O que caracteriza a
11
METZ. Christian apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 169.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
31
percepção do filme é a linearidade do desfile; a impressão de continuidade criada por
esse desfile linear é a base do domínio exercido pelo filme sobre o espectador”.
12
Essa
teoria que legitima a linearidade como preceito básico para a existência de um filme só
seria quebrada de forma vigorosa com Jean-Luc Godard. No entanto, essa quebra ficou
restrita ao cinema independente, poético, experimental ou de vanguarda, enquanto a
narrativa linear se legitimou como forma “clássica”.
A definição da heterogeneidade da linguagem cinematográfica por teóricos
como Louis Hjelmslev foi fundamental para o cinema moderno. A partir de suas teorias,
a linguagem do cinema passa a incorporar, em sua narrativa, não apenas a sonoridade
(que ele dividia em três elementos: som fônico, som musical e som analógico), mas
também vários outros elementos, ou “materiais de expressão”: letreiros, sobreposições
gráficas, legendas. Mais tarde, diretores como Godard e Rogério Sganzerla irão fazer
desses materiais elementos primordiais para a inventividade narrativa em seus filmes,
como veremos adiante.
Em Linguagem e cinema, Christian Metz opunha dois tipos de conjunto: os
concretos – ou mensagens fílmicas – e os conjuntos sistemáticos – constituídos pelos
códigos. Essas mensagens são também chamadas de textos, e esse termo logo deu lugar
a uma nova possibilidade de abordagem de filmes, a análise textual. Metz, sem
imaginar, constituiu, em sua obra, a peça mestra para toda uma corrente semiológica
que se formou na crítica cinematográfica moderna. Falar do texto fílmico é considerar o
filme um discurso significante que permitia uma análise profunda. Analisar um
elemento de um filme era contextualizá-lo dentro da narrativa, relacionando-o com
12
MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 181.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
32
outros elementos pertinentes; era também analisar esse filme comparativamente com
outros filmes, dentro de um organismo maior chamado cinema.
A análise do texto fílmico permitiu uma sofisticação maior no olhar sobre o
cinema. As teorias rudimentares, que tateavam na tentativa da descoberta de um código,
eram agora substituídas por um olhar mais complexo sobre o filme, não apenas como
um veículo de expressão, mas como uma obra a ser desvendada semioticamente, que
permitia reflexões maiores e possibilidades estéticas mais instigantes. Na definição de
Roland Barthes, “desvia-se o texto-véu e procura perceber o tecido em sua textura, nos
entrelaçamentos dos códigos, das fórmulas, dos significantes, dentro do qual o sujeito se
desloca e se desfaz, como uma aranha que se dissolvesse sozinha em sua teia”.
13
A partir da década de 1970, proliferaram-se as análises semióticas dos filmes,
com ênfase na forma e nos elementos significantes. As análises técnicas, pertinentes à
linguagem, foram suplantadas em prol de um estudo do significado daquele elemento no
filme como um todo, conquanto essas referências já existissem nas análises de Bazin ou
de Eisenstein, garantindo aos dois o posto de precursores desse tipo de percepção crítica
de um filme. A revista francesa Cahiers du cinema foi um celeiro fundamental para a
criação de teóricos e críticos do cinema moderno, nas décadas de 1950 e 1960, sob a
tutela de cineastas como François Truffaut e Jean-Luc Godard que, por sua vez, eram
discípulos de André Bazin. Essa revista foi uma forte arma na consolidação do cinema
de autor e também na elevação de cineastas adorados pelo público, como Alfred
Hitchcock, ao patamar de mestres.
13
BARTHES, Roland apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 208.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
33
Os críticos da Cahiers não restringiam suas análises apenas a um determinado
filme de um cineasta; eles buscavam em sua obra completa o suplemento para o
entendimento do filme em questão. Havia um grande cuidado na observação concreta
das figuras estilísticas do filme, tentando-se delimitar as redes temáticas dominantes na
obra de um cineasta. Com a análise mais profunda de um filme, surge um grande vilão
da crítica do cinema moderno: a subjetividade. As preferências idiossincráticas dos
críticos serão, quase sempre, soberanas em relação às virtudes formais ou semióticas do
filme. A transcrição não é automática e, freqüentemente, a opinião do “transcritor”
compromete a fidelidade de uma tradução racional e objetiva do que era sensorial.
Uma análise mais detalhada de uma obra esbarrava em um obstáculo
primordial, o da memorização dos planos, dos detalhes da obra analisada; era
impossível “parar sobre uma imagem” para melhor analisá-la. “Estudar um filme com
um grau mínimo de precisão coloca sempre o problema da memorização, condição
fundamental da percepção fílmica, cujo fluxo jamais depende do espectador em
condições normais de projeção”.
14
A possibilidade de se rever um filme muitas vezes,
para melhor apreendê-lo, faz com que os cineclubes se fortaleçam entre os críticos de
cinema. E é nesse cenário que surgem os grandes críticos do cinema moderno, todos
eles vindos do cineclube e ávidos por se tornarem realizadores, o que geralmente
acontecia, com maior ou menor sucesso. É nesse mesmo contexto que surge Rogério
Sganzerla, vindo da produção crítica, publicada nos maiores jornais do país, antes de
completar 20 anos. Como veremos mais adiante, ele usou essa bagagem teórica para
14
MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 213.
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
34
compor o seu arsenal criativo; o seu referencial crítico foi fundamental para, com
segurança, realizar uma obra-prima em seu primeiro longa-metragem como diretor.
Podemos, assim, afirmar que a crítica ou a teorização da linguagem
cinematográfica nasceu e evoluiu de forma quase simultânea ao seu objeto de estudos, o
que distingue o cinema de outras formas de manifestação artística. Mas, mesmo seguido
de perto pela teoria, o cinema sempre cultivou a sua porção transgressora, rompendo, de
tempo em tempo, as fronteiras que a teoria delimitava. Na opinião de Roland Barthes,
“O fílmico é, no filme, o que não pode ser descrito, é a representação que não pode ser
representada. O fílmico começa somente onde terminam a linguagem e a
metalinguagem articulada”.
15
No Brasil, o cinema também teve um importante viés conceitual, desde as
primeiras décadas do século XX. Filmes como Limite, de Mário Peixoto, fizeram um
diálogo pleno entre as teorias desenvolvidas pela vanguarda e a eficiência da realização
desses conceitos na obra.
Na década de 1960, o contexto histórico resultante da dialética política, da ética
e da estética gerou uma nova onda de escolas conceituais ligadas ao cinema. A crítica
rompeu as barreiras geográficas dos contornos europeus e ganhou seguidores na
América Latina e no underground norte-americano. Nunca houve um tempo de tão
tênue proximidade entre o pensar e o fazer cinematográfico.
O experimentalismo proporcionou uma explosiva liberdade criadora, a busca
da ruptura de conceitos e formas ganhou as telas e os filmes-manifestos conquistaram
15
BARTHES, Roland. O terceiro sentido; apud MARIE, Michel. A estética do filme, 1994. p. 215.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
35
realizadores em todo o mundo. O cinema nunca foi tão poético em discursos sociais e
políticos, gerando resultados estéticos quase sempre instigantes.
O cinema moderno, através da desarticulação do discurso tradicional, rompeu
com os limites de linguagem e se metamorfoseou em poesia, artes plásticas e música. O
mestre de toda a geração de 1960, Jean-Luc Godard, disse sobre a liberdade lingüística
do cinema: “Se o cinema acabar farei televisão, se esta acabar escreverei sobre cinema,
e mesmo assim, estarei fazendo cinema”.
16
Na definição de Sganzerla, são “os homens
orquestras, trata-se de uma mise-en-scéne que constitui uma simbiose, uma estruturação
orgânica destes elementos, postos a serviço de um fim único: o filme”.
17
Obstinado pela experimentação e pela realização de um cinema poético que
desafiasse, em seu limite, as possibilidades da narrativa linear, Rogério Sganzerla fez da
sua obra audiovisual instrumento e base para o exercício dos conceitos desenvolvidos e
absorvidos por ele, no longo percurso que dedicou ao pensamento cinematográfico e à
construção do seu paideuma intelectual.
1.2 Um bandido na mira da crítica
A crítica e o estudo e pesquisa da linguagem cinematográfica, no Brasil, se
solidificaram nos anos de 1960, justamente quando acontece o boom dos cineclubes e a
busca da experimentação. A exemplo do que aconteceu na França, toda uma geração de
cineastas, no Brasil, começou na crítica, descobrindo ali os “códigos” daquela
linguagem que começava a escrever um novo capítulo de sua trajetória com a política
16
GODARD, Jean-Luc apud XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 129.
17
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite, 2001. p. 18.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
36
do cinema de autor. Pode-se dizer que o ponto-chave do surgimento de um cinema
moderno, em todo mundo, foram os filmes Cidadão Kane, de Orson Welles, e
Acossado, de Jean-Luc Godard. O primeiro, pela inovação de linguagem que
estabeleceu, pelos enquadramentos, movimentos de câmera e técnicas interpretativas,
baseadas em um cinema noir pré-existente, mas completamente inovador e único: “Em
Orson Welles, como em William Blake, a beleza é a exuberância. Em todos os sentidos:
exuberância técnica, acúmulo de personagens, de intenções históricas, histriônicas, de
montagem, exuberância do cinema americano”.
18
Figura 2 - Orson Welles em suas múltiplas faces no cinema
Acossado era a vanguarda sintetizada nas idéias, nos diálogos, na (não)
montagem, na interpretação dos atores, mas, sobretudo, no espírito ruptor e
absolutamente comprometido com uma nova forma de fazer cinema e representar o
18
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p 35.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
37
mundo, que surgia ali, sob as idéias libertárias godardianas que começavam a instigar a
mola-mestra comportamental de toda aquela geração.
Entre 1965 e 1981, Rogério Sganzerla produziu alguns dos mais lúcidos e até
proféticos artigos sobre a linguagem cinematográfica, publicados, mais tarde, no livro
Por um cinema sem limite. Esse livro é uma reunião de textos publicados no
“Suplemento Literário” dos jornais O Estado de São Paulo, na década de 1960, e Folha
de São Paulo, na década de 1980. Nele, Sganzerla criou novos conceitos sobre a
linguagem do cinema, como a “Câmera Cínica” (que passa desapercebida pela ação,
sem sugerir juízos de valores); a “Câmera Clínica” (que parece participar da ação que
filma); e “Heróis Fechados” (personagens enigmáticos que são o espírito e o centro da
trama).
Antes de realizar O bandido da luz vermelha, Sganzerla já havia delineado, em
suas críticas, os conceitos de um cinema que ele gostaria de explorar ou experimentar:
Foi meu meio de dizer as coisas, de violentar o cinema durante quatro anos.
Hoje não consigo escrever mais de vinte linhas sobre um filme; antigamente
escrevia laudas e laudas. A crítica, agora, para mim serve como política de
cinema; mais nada. Lamento que eu seja o único de minha geração a
interessar-se pela crítica; todos os outros nem querem saber de jornalismo e
crítica. A crítica brasileira continua ruim.
19
A fragmentação do tempo, a liberdade narrativa do cinema moderno, a
desvinculação da linguagem literária, que até então era dominante, a influência do
Noveau Roman francês sobre a Nouvelle Vague são apenas alguns dos temas
desenvolvidos com veemência por Sganzerla em seus artigos. O bandido da luz
19
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 44.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
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38
vermelha funciona, então, como uma espécie de laboratório, de filme-experimento das
teorias defendidas por seu diretor. Sobre as críticas recebidas pela realização de O
bandido, ele disse: “Em São Paulo tive também de fazer a crítica porque picharam ou
elogiaram sem entender. Continuo esperando uma crítica inventiva, ao nível do
provável e não da certeza idealista, das especulações sentimentais e perspectivas do
passado (e do provincianismo, principalmente)”.
20
A aplicação de conceitos elaborados pelo trabalho crítico de Sganzerla, em seu
cinema, não acontece de uma forma programática, mas com espontaneidade instintiva
conduzida pela câmera livre: “A câmera retém apenas o essencial: as aparências visuais
dos seres e objetos. Assim, ela os abstrai, até delineá-los em suas justas e verdadeiras
dimensões. A realidade é, então, despojada, abstraída e finalmente reintegrada em seu
estado bruto”.
21
Os teóricos que desenvolveram trabalhos mais ricos sobre O bandido
da luz vermelha, além do próprio Sganzerla, foram os pesquisadores Jean-Claude
Bernadet e Ismail Xavier, ambos vindos da academia. Bernadet assinou várias resenhas
para jornais e aprofundou os seus estudos sobre o filme no livro O vôo dos anjos, de
1991. A publicação é um grande ensaio com abordagem psicanalítica sobre as obras
mais importantes dos cineastas Júlio Bressane e Rogério Sganzerla. O capítulo dedicado
a O bandido da luz vermelha foi coerentemente batizado por Bernadet de “O mundo
sem limite”. Uma alusão inteligente à iconoclastia libertária da obra e aos novos
parâmetros que ela estabeleceu para o cinema brasileiro. Bernadet conduz o seu
20
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 48.
21
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite, 2001. p. 36.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
39
pensamento crítico basicamente em torno da fragmentação e da perda da identidade
reveladas em vários elementos do filme: “A questão da identidade do bandido perpassa
o filme inteiro, sendo objeto da grande maioria das vozes off, quase incessantemente”.
22
Outro ponto valorizado na obra de Bernadet em relação ao filme é a total falta
de linearidade da montagem. A trama se passa na Boca do Lixo, mas o fenômeno da
marginalidade, que dá o tom predominante da fita, ultrapassa os limites geográficos de
seus cenários. Os locutores que narram o filme nos lembram que estamos na Boca do
Lixo, mas, de repente, a ação se desloca para a Avenida Paulista: “Não se trata de
questionar o absoluto direito do diretor manipular o espaço urbano a seu bel prazer, vejo
aí, antes, uma não-delimitação do espaço. A Boca não tem fronteiras, ela se expande, se
espalha, nada neste mundo tem fronteiras”.
23
O ensaio de Bernadet elabora outros conceitos calcados na psicanálise, como a
desorganização mental do espaço e tempo incorporados pelo personagem central. O
bandido carrega consigo uma mala que, quando aberta, traz pichado o pronome “eu”.
Bernadet apelidou o assessório de “mala egótica”, que reflete a desorganização
existencial do personagem.
Figura 3 - Helena Ignês abre a “mala egótica”
(Fotograma do filme O bandido da luz vermelha)
22
BERNADET, Jean-Claude. O vôo dos anjos, 1990. p. 156.
23
BERNADET, Jean-Claude. O vôo dos anjos, 1990. p. 163.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
40
Bernadet também chama a atenção para a questão da metalinguagem no filme,
através da constante presença de salas de cinema no roteiro, ambientes preferidos de
lazer do “bandido”, que reage ali com indiferença e até com certo desprezo. Em termos
estéticos, Bernadet vê, em Jean-Luc Godard e Orson Welles, referências absolutas do
filme. Baseados na forma como ele descreve essas influências, poderemos afirmar que
elas são claramente antropofágicas. Ele faz um paralelo entre o roteiro de O bandido,
Acossado e O demônio das onze horas, estes dois últimos dirigidos por Godard: “A
digressão em torno dos filmes de Godard não visa a um estudo de fontes nem a sugerir
um plágio, mas a voltar à temática abordada, é uma incorporação. Encontramo-nos
diante de um nítido fenômeno de incorporação, o qual não se limita a Godard”.
24
Outro
paralelo importante traçado por Bernadet dá-se entre Terra em transe, de Glauber
Rocha, e O bandido da luz vermelha; só que, nesse caso, o estudioso ressalta a ironia
com que Sganzerla faz referência ao clássico de Glauber Rocha, um contraponto que
significou, historicamente, a ruptura estética de Sganzerla com o Cinema Novo.
Outra obra importantíssima para a análise crítica de O bandido da luz vermelha
é o livro Alegorias do subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema
Marginal, do pesquisador e professor da Universidade de São Paulo, Ismail Xavier. A
exemplo de Bernadet, Ismail privilegia o olhar semiótico em sua crítica sobre O
bandido da luz vermelha, só que sob um ponto de vista sociológico, investigando a forte
presença alegórica na obra. Como o próprio título sugere, o livro localiza o filme como
uma obra que reflete um horizonte cultural e histórico, influenciado esteticamente pela
Tropicália, e politicamente pela violência da ditadura militar. Ismail Xavier explora
24
BERNADET, Jean-Claude. O vôo dos anjos, 1990. p. 185.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
41
também um dos aspectos mais importantes da obra de Sganzerla, o deboche, a ironia e a
marginalidade: “Tradicional assunto de ficções naturalistas, o marginal recebe aqui
novo tratamento. Sganzerla se afasta do sério-dramático e mobiliza a colagem, o senso
lúdico, parodiando tanto o triller da indústria quanto a obra realista”.
25
O grande ponto de interseção entre a maioria das obras dedicadas a O Bandido
é o fenômeno estético da arte marginal e do anti-herói. Ismail Xavier analisa o
fenômeno da marginalidade traçando um paralelo entre o bandido social e o bandido
urbano. O primeiro é representado por um ícone do Cinema Novo, o “Corisco”, de Deus
e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Uma espécie de profeta do Terceiro
Mundo, um justiceiro social cravado na aridez do sertão, um santo guerreiro às avessas.
Já o bandido urbano não tem caráter, muito menos aspirações ideológicas: “Na postura
do bandido urbano, não há lugar para messianismos, para a pauta do bandido social do
campo”.
26
Figura 4 - O “bandido social” (Fotograma do
filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de
Glauber Rocha)
Figura 5 - O “bandido urbano” de Sganzerla
(Fotograma do filme O bandido da luz vermelha)
25
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 72.
26
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 76.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
42
Xavier explicita, no prefácio do livro, a importância da literatura modernista
para o cinema marginal, principalmente nas figuras de Oswald e Mário de Andrade.
Assim como os seus contemporâneos da geração de 1960, Sganzerla tinha uma
adoração “tropicalista” pela Antropofagia.
Com uma linguagem mais poética e menos acadêmica, o livro Cinema de
invenção, do ensaísta, poeta, crítico e cineasta Jairo Ferreira, é uma coletânea de artigos,
manifestos, poemas e declarações apaixonadas ao cinema experimental brasileiro,
produzidos, principalmente, nas décadas de 1960, 70 e 80. Participante ativo da geração
que recebeu a denominação de “cineastas marginais”, Ferreira não tem o menor pudor
em ser passional quando fala sobre os diretores e obras que marcaram aquele período.
Ele dedica um capítulo especial a Rogério Sganzerla, intitulado Rogério Sganzerla –
ponto de partida avançado. Ferreira analisa O bandido da luz vermelha com olhos de
aficionado e de crítico atento que era: “Rogério Sganzerla estréia anarquicamente como
Godard. É engolindo cru muitos diretores do primeiro escalão: Welles, Glauber, Mojica.
Um apetite antropofágico”.
27
O livro é um testemunho da ebulição criativa que
privilegiou aquela geração de cineastas. Ferreira reproduziu, na íntegra, uma espécie de
manifesto escrito por Sganzerla, na época do lançamento do filme, no qual ele revela
suas influências, traduzidas antropofagicamente no filme. Da chanchada ao cinema de
José Mojica Marins, o Zé do Caixão, passando pela sofisticação de cineastas como o
americano Howard Hawks e o italiano Roberto Rosselini. Sem o compromisso formal
ensaístico, Jairo Ferreira tece um tributo poético ao filme:
27
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção, 1986. p. 69.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
43
Em Rogério (Sganzerla), a multiplicidade de elementos a serem
decodificados está em cada plano. Por isso, muitas pessoas, espectadores
preguiçosos, irão se dar ao luxo de considerá-lo um filme confuso. Ora, se
riqueza de informações novas for prosaicamente traduzida em caos, aonde irá
a arte que procura uma interrogação mais intensa no mundo moderno? [...]
tropicalista, no melhor sentido, diz tanta coisa que nos causa desespero.
28
O bandido da luz vermelha não despertou apenas o interesse da crítica
cinematográfica. Os poetas concretos Haroldo e Augusto de Campos se debruçaram
sobre essa obra que dialogava com toda a vanguarda e revolucionava a arte daquele
momento, no Brasil. No livro O balanço da Bossa e outras bossas, Augusto de Campos
constrói uma radiografia do panorama artístico e cultural nas décadas de 1960 e 70,
guiado por um viés musical. Nos capítulos dedicados ao cinema, o autor identifica a
obra de Sganzerla como a representação mais pura da experimentação, através de
elogios generosos.
O escritor e poeta Torquato Neto também fazia reverências ao cinema de Julio
Bressane e Rogério Sganzerla, semanalmente, no jornal Zero Hora, na badalada coluna
Geléia Geral.
Não havia a segmentação que se nota, hoje, na seara intelectual; existia um
trânsito constante entre músicos, artistas plásticos, poetas e cineastas por territórios que
não pertenciam estritamente ao seu universo artístico. Vinicius de Moraes é um
exemplo de crítico apaixonado que fazia do cinema inspiração para sua obra literária.
Vinicius foi, durante muito tempo, crítico de cinema de veículos como o Jornal do
Brasil e o extinto “Suplemento Literário” do jornal A Manhã, na companhia de Cecília
28
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção, 1986. p 65.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
44
Meireles, Manuel Bandeira e Afonso Arinos de Melo Franco, sob a orientação de Múcio
Leão e Cassiano Ricardo, em 1941.
Mais tarde, o cantor e compositor Caetano Veloso incluiu, em seu livro de
reminiscências tropicalistas, Verdade Tropical, várias referências à importância estética
e artística de Sganzerla, para aquele horizonte de vanguarda em que a cultura brasileira
mergulhava.
O livro Cinema Marginal – a representação em seu limite, do pesquisador
Fernão Ramos, tem um tom mais didático e simples; trata-se de uma obra iniciática, que
localiza o leitor no universo em que esse cinema surgiu. O livro se concentra na
importância da substituição do emblema da fome, base estética do Cinema Novo, pela
estética do lixo, representada pelo Cinema Marginal. Ramos descreve,
cronologicamente, a história do Cinema Marginal e destaca as obras mais importantes.
O autor define o Cinema Marginal como um movimento de consistência estética e
ideológica, fazendo uma relação entre as consonâncias estéticas e temáticas de algumas
obras que ele elege como sendo pertencentes ao movimento. Fernão Ramos vê Rogério
Sganzerla como um dos representantes mais importantes daquele momento, e O
bandido da luz vermelha como um filme emblemático daquele cinema.
Ao longo dessas quase quatro décadas que sucederam o lançamento de O
bandido, foram organizadas mostras do cinema de Sganzerla e do Cinema Marginal, por
cineclubes e admiradores isolados. Esses eventos sempre são acompanhados de
publicações, ricas em informações sobre a cinematografia experimental brasileira, que
representam importantes fontes de pesquisa. Dentre essas mostras, uma das mais
representativas fez parte da programação da 24ª Bienal de Arte de São Paulo, e teve
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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CAPÍTULO 1
Cinema: o mistério da criação sob a luz da teoria
45
como tema “A Antropofagia no cinema”, quando O bandido da luz vermelha foi
exibido com destaque. Recentemente, entre outubro e novembro de 2005, o Centro
Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro foi cenário para uma das mais completas
mostras dedicadas à obra de Sganzerla. A Mostra “Rogério Sganzerla – cinema do caos”
apresentou, do diretor, filmes inéditos ou pouquíssimas vezes exibidos em sessões
públicas. Durante o evento, foram lançados o catálogo da Mostra, com fragmentos de
textos inéditos de Sganzerla e ainda o livro Tudo é Brasil – Projeto Rogério Sganzerla -
fragmentos da obra literária, organizado em conjunto por Helena Ignês, musa e viúva
do diretor, e Mário Drumond. Como primeiro passo de um projeto que busca restaurar e
resgatar a obra do cineasta, o livro reúne textos críticos inéditos escritos por Sganzerla,
em vários períodos de sua vida.
Além das obras que falam diretamente do filme, outras publicações que
tangenciavam o tema também foram fundamentais para esta pesquisa, na medida em
que iluminam aquele panorama artístico que se emoldurava, no Brasil, na época do
surgimento do filme, como as cartas trocadas entre Hélio Oiticica e Ligia Clark e a
poesia marginal que se espalhava nas ruas das cidades. Para se entender a riqueza do
filme e decifrar a sua linguagem é fundamental que se compartilhe o espírito daquele
momento.
Esta pesquisa em torno do material publicado sobre O bandido da luz vermelha
só veio confirmar a atemporalidade do filme. Essas publicações datam desde a época do
seu lançamento, durante o Festival de Cinema de Brasília, de 1968, até os dias atuais.
CAPÍTULO 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio.
Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia... Nenhuma fórmula para a contemporânea
expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Oswald de Andrade
De forma e intensidade diferentes, os modernistas de 1922 e a geração das
décadas de 1960 e 70 buscaram, na Antropofagia, uma forma de romper com os cânones
da arte panfletária nacionalista que imperavam nesses períodos, não limitando o seu
terreno de criação apenas ao comprometimento político. Tratava-se, para eles, de uma
de propor uma reação estética e política ao ufanismo vigente. Enquanto modernistas,
como Oswald e Mário de Andrade eram contrapontos estéticos e culturais do
movimento Verde-Amarelo,
1
Rogério Sganzerla lutava por um cinema livre e
experimental, compromissado com a poesia, ao contrário da arte didática exaltada pelo
Centro Popular de Cultura (CPC), berço de cineastas e autores que, mais tarde, ao lado
de Glauber Rocha, estabeleceriam o Cinema Novo como condutor da nova estética do
cinema brasileiro, como será visto no capítulo seguinte.
A diferença essencial entre esses dois momentos reside, em boa parte, no
contexto histórico e cultural que os abrigou. Enquanto o Modernismo de 22 lutava por
uma libertação cultural, considerando a cultura brasileira em sua totalidade e
complexidade e absorvendo as ressonâncias da arte planetária e das vanguardas
européias, os autores experimentais da década de 1960 buscavam debater, além dessas
1
Movimento estético literário que marcou as primeiras décadas do século XX, no Brasil. Em oposição
a artistas como Oswald e Mário de Andrade, o movimento Verde-Amarelo pregava o nacionalismo
absoluto, com sérias restrições a qualquer influência cultural estrangeira.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
47
nuances culturais, importantes questões políticas. A abertura para que as influências
poéticas e experimentais chegassem ao cinema brasileiro somava-se à libertação de um
comprometimento político reducionista. O tão sonhado diálogo com o público e as
pretensões de fazer da arte um veículo ideológico colocavam o nosso cinema em uma
armadilha que o aprisionava estética e tematicamente.
Os modernistas também enfrentaram patrulhas ideológicas na década de 20.
Inúmeros intelectuais, como Monteiro Lobato, criticavam publicamente o trabalho e as
idéias da Antropofagia praticada por Oswald e Mário de Andrade, questionando se eles
eram “gênios ou bestas”. Sganzerla se apropriou desse “enigma” em O bandido: os
locutores, em over, repetem constantemente, durante o filme, “Seria ele um gênio ou
uma besta?”, em uma clara referência à polêmica que envolveu os modernistas.
A liberdade estética e ideológica da geração de 22 encantou realizadores que
flertavam com a arte libertária na década de 60, contaminando não só o cinema, mas as
artes plásticas, a poesia e até a música, com suas “recém-nascidas” guitarras elétricas.
Ideologicamente, o cinema autoral brasileiro que narrava contra a corrente política
pregada pelo Cinema Novo se encantou com Oswald de Andrade, principalmente, pela
possibilidade de dialogar plenamente com outras linguagens e com os cinemas que se
redescobriam em países como a França. A Nouvelle Vague pairava sobre o cinema
mundial, Godard significava frescor e liberdade, sentimentos traduzidos em uma
revolução lingüística. Assim como Oswald deixou-se “contaminar” pelas vanguardas
européias, traduzindo-as com genialidade para a mais pura nação brasileira, Sganzerla
mergulhou fundo no cinema de Godard e Welles para devorá-los antropofagicamente e
assumir essas influências plenamente em O bandido.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
48
Esteticamente, a geração de 22 foi essencial para os “marginais” de 60 e 70,
pelo pleno diálogo com o experimentalismo e pelo uso da ironia no discurso artístico. A
inspiração oswaldiana não pairava apenas em recursos semiológicos e literais da obra
cinematográfica de Sganzerla; Oswald foi também matriz para a sua criação literária.
Em outubro de 1970, Rogério Sganzerla escreveu em carta ao amigo Eliseu Visconti:
“Acabei de fazer um romance-invenção chamado Bestacity, bacana, bacana. Você vai
ver. Prosa poética com as primeiras 30 páginas muito oswaldianas. Depois muda o
estilo para Rogério Sganzerla mesmo”.
2
O bandido da luz vermelha busca o experimental não como um formalismo
vazio, mas como um caminho para as idéias, para as camadas submersas de um roteiro,
em princípio, absurdo e risível. A poesia modernista já flertava com o experimentalismo
formal e temático desde o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado por Oswald de
Andrade, no jornal Correio da Manhã, em 18 de março de 1924: “Experimentais.
Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa
etimológica. Sem ontologia [...] Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do
mundo. Ver com olhos livres”. O caráter experimental e vanguardista da Antropofagia
guiou espiritualmente toda a geração de 1960, no Brasil: “Proclama-se antiarte e
converte a fúria destruidora em desejo de pureza e sinceridade. Sob esse aspecto, a
antropofagia e a vanguarda coincidem na mesma trajetória”.
3
2
Carta, na íntegra, impressa no Catálogo da Mostra Retrospectiva “Rogério Sganzerla – cinema do
caos”, exibida entre 31 de outubro e 13 de novembro de 2005, no Centro Cultural Banco do Brasil, no
Rio de Janeiro.
3
BOAVENTURA, Maria.Eugênia. A vanguarda antropofágica, 1985. p. 13.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
49
O bandido da luz vermelha encontra maior proximidade conceitual com a fase
que se inicia com a “Segunda Dentição da Antropofagia”. Lançada em 17 de março de
1929, ocupando uma página inteira do Diário de São Paulo, e se estendendo por mais
quinze números, até primeiro de agosto de 1929, a Revista Antropofágica, em sua
“segunda dentição”, se inova em forma e conceito, com uma montagem que lembra uma
bricolagem de pensamentos. Nessa fase, comandada por Oswald de Andrade, ela
deflagra agressividade, misturando crítica e auto-irrisão, ingredientes que foram base
estética, conceitual e “espiritual” do roteiro de O bandido.
O filme discute, com ironia, o conceito de nacionalismo. Em um movimento
antropofágico, ele desafia a idéia de um Brasil homogêneo, para despedaçá-lo
geográfica e culturalmente. Oswald fez isso com destreza em sua obra poética Pau-
Brasil, de 1925, em Canção de regresso a minha pátria: “Minha terra tem palmares
onde gorjeia o mar. Os passarinhos daqui não cantam como os de lá. Minha terra tem
mais rosas, e quase que mais amores [...] não permita Deus que eu morra sem que eu
volte pra São Paulo”. No Manifesto antropófago, ele diz: “Somos preguiçosos do mapa
mundi do Brasil”. No filme, a questão da identidade do “bandido” passa
intrinsecamente pela geografia, a locução over que conduz o filme diz, em uma das
definições de “Jorginho”, alcunha do personagem: “Ele é um ex-garçom em Campo
Grande, ex-corredor, ex-camelô que vendia alfinetes na Avenida São João, ex-
lanterninha em um cinema de terceira classe, ex-caixa de banco na Amazônia”.
O bandido mostra a face risível e debochada da miséria, a estética urbana das
favelas e a antropofagia como resposta ao nacionalismo incondicional. O filme tem um
refrão recorrente que ecoa a todo o momento: “quem tiver de sapato não sobra!”.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
50
Oswald disse em seu Manifesto antropófago: “O que atropelava a verdade era a roupa, o
impermeável entre o mundo interior e o exterior. A reação contra o homem vestido. O
cinema americano informará”.
4
O refrão do filme é também uma referência irônica ao
profético grito apocalíptico de Glauber Rocha em Terra em transe: “O sertão vai virar
mar, e o mar vai virar sertão”. Sganzerla substitui o tom dramático, carregado de
mensagem ideológica, de Glauber, para entoar uma irônica sentença sobre a periferia do
mundo, sintetizada no filme pela Boca do Lixo.
O bandido reedita com uma linguagem moderna a preconização de um mundo
despido socialmente, à margem de uma civilização que aprendeu com o cinema
americano as suas vestimentas éticas e morais. O bandido da luz vermelha anunciou o
colapso dessa sociedade. Ao contrário da miséria levada às telas pelo Cinema Novo,
Sganzerla buscou inspiração nos casebres ocres de Oswald para construir o seu cenário
à margem da sociedade. Enquanto o Cinema Novo, na maior parte de sua produção,
descrevia com tonalidade paternalista a miséria brasileira, Sganzerla construía um
cenário miserável destituído de moral, onde os habitantes do lixão, nas primeiras
seqüências do filme, carregam o mesmo cinismo da classe média, alienada e fútil, sob a
mira do “bandido”. A mesma “maldade” que habita o político corrupto do filme não é
atenuada quando localizada nos ambientes decadentes da Boca do Lixo ou naqueles
povoados pelas crianças armadas que brincam no lixão da periferia paulistana. Assim
como Oswald, Sganzerla não faz a conexão simplista entre moral e classe social.
Quando Oswald de Andrade disse em seu Manifesto antropófago: “Contra o
mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é
4
Revista Antropofágica, Ano I, n. 1, maio de 1928.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
51
dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas... e o
esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros”,
5
sua poesia, mais uma vez, serviu de referência espiritual para o filme O
bandido da luz vermelha. Sganzerla deixa de lado o discurso calcado nas causas
coletivas para falar do indivíduo, imerso em um mundo absurdamente constrangido pela
violência da censura e da arbitrariedade. As crises existenciais do homem urbano
moderno interiorizam os conflitos que assolam o universo que o cerca. As palavras de
Oswald, citadas acima, já anunciavam essa tendência, ao pôr em foco o indivíduo que
começava a encontrar na cultura urbana e industrializada o seu algoz existencial.
O bandido da luz vermelha é o filme da inversão, da ironia substituindo o
discurso ideológico direto. O personagem diz, logo no início da fita: “Em um país como
este eu só tinha que avacalhar”. Oswald de Andrade já encontrara, no deboche, o
caminho para falar de coisas sérias: “Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo
[...] a invenção, a surpresa, uma nova perspectiva...; contra a cópia, pela invenção e pela
surpresa”.
6
A questão dessa inversão foi tomada como uma espécie de lema pelos
realizadores do Cinema Marginal, movimento não declarado no qual O bandido da luz
vermelha se insere. “O que está errado é o que está certo e o certo é o que está errado”.
Essa frase, que soa como um sofisma nonsense, foi usada em filmes emblemáticos desse
“movimento marginal”, no cinema brasileiro. Essa sentença resume o espírito daquela
geração que, através de um discurso cada vez mais indireto, começava a “escapar” da
5
Revista Antropofágica, Ano I, n. 1, maio de 1928.
6
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica., 1995. p. 42
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
52
violência e da censura, acirradas com a promulgação do Ato Institucional número 5.
7
Ela traz também conotações políticas, em um país de paradoxos latentes, onde a
corrupção ganhava o comportamento rotineiro, a inversão de valores era apenas um
detalhe dentro de uma grande engrenagem comprometida pelas contradições sociais.
O filme de Sganzerla representa, a seu modo, a cultura popular brasileira,
figurada em ícones como São Jorge, a macumba, e Nossa Senhora Aparecida, em um
cenário marcado pelo o sincretismo. Narrado em “versos livres” descontínuos e
inovadores, o filme faz o seu discurso em tom irônico. A direção de arte criada em O
bandido pelo grande cineasta Andréa Tonacci dialoga plenamente com o universo
kitsch, tão em voga nos anos de 1960 e 70. Esse simbolismo é extremamente
representativo de uma “cultura nacional”, mais eficiente que a maioria dos tratados
acadêmicos que tentavam desvendar essa tão almejada autenticidade cultural. Como a
poesia de Oswald pregava, em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil:
País de dores anônimas, de doutores anônimos [...] A riqueza dos bailes e das
frases feitas. Negras do Jockey. Odaliscas do Catumbi. Falar difícil [...]
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais, Pau Brasil. A
floresta e a escola. O Museu nacional. A cozinha, o minério e a dança. A
vegetação Pau Brasil.
8
A imagem de São Jorge, que é destacada de forma recorrente na diegese de O
bandido, nos remete também a Macunaíma, de Mário de Andrade. No filme, um plano
da lua soberana, no céu, quando a imagem de São Jorge é incinerada, marca o fim das
desventuras de Jorginho, uma alusão à fábula de Mário de Andrade. No imaginário
7
O Ato Institucional número 5, ou AI 5, cassava praticamente todos os direitos do cidadão brasileiro
que, sob “suspeita” de subversão, poderia ser preso a qualquer hora, sem a necessidade de um
mandato judicial. Essa medida, tomada pelo presidente Médici, criou um clima de terror entre a
intelectualidade que, junto à esquerda, passou a ser presa e perseguida.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
53
popular, a lua seria o refúgio solitário de São Jorge, terreno também escolhido por
Macunaíma para finalizar os seus dias de anti-herói.
A fala do político JB da Silva, uma alegórica representação do coronelismo
rural, somado ao malandro urbano, no político brasileiro, condensa os traços do
populismo sustentado por negociatas e clientelismo. O personagem diz, em uma de suas
tiradas sarcásticas: “Um país sem pobreza é um país sem folclore; sem folclore, o que
vamos mostrar para o turista? Viva a pobreza!”. Mas, além das conotações políticas,
essa fala do personagem remete também à notória expressão “macumba para turista”,
criada por Oswald de Andrade para denunciar a arte populista, a representação de um
Brasil caricato e preocupado em reafirmar os seus clichês. O colonialismo submisso à
visão estrangeira de uma nação exoticamente constituída sobre a estética do folclore, da
arte popular impregnada de uma inocência preguiçosa, construída miticamente pelo
olhar do colonizador. Um país que, até hoje, se apóia em estereótipos, assegurando a sua
porção de nação colonizada, habitada pelo “homem cordial”, pronto para devorar e ser
devorado.
Em sua obra cinematográfica, Sganzerla se apropria de forma bem humorada
do texto oswaldiano, reproduzindo-o, com efeito, na fala de seus narradores, num
movimento intertextual importantíssimo para a estrutura do filme, sublinhado a cada
passo e articulado pela locução que costura O bandido, como no trecho: “Um
personagem sanguinário, bisneto de Solano Lopes... descendente dos temíveis astecas,
ex-tapuias, um típico selvagem do século XVI jogado em plena selva de concreto; o
brasileiro à toa na maré da última etapa do capitalismo, o grande Pi-ca-re-ta,
8
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica., 1995. p. 41- 44
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
54
oportunista e revoltoso, casado na polícia, dançarino boçal, ex-turista sexual. Como
solução, o nudismo transatlântico”. Os trechos grifados foram extraídos do prefácio de
Serafim Ponte Grande, de 1933.
9
Segundo a análise de Ismail Xavier, em Alegorias do
Subdesenvolvimento, correspondem
ao trecho em que o escritor descreve criticamente o Serafim com o tom de
desabafo característico. O termo fanchono, que conota homossexualismo, foi
substituído aqui por “picareta”; o sexual foi deslocado para junto de turista,
que está no texto como também dançarino, ambos sem adjetivação, a
referência ao nudismo transatlântico vai reaparecer no filme, na seqüência da
praia, quando Jorge esborrifa inseticida no corpo e fala de novo em suicídio –
“tentei me matar no oceano Atlântico”. A enumeração oswaldiana é um
embrião do que Sganzerla radicaliza.
10
Serafim Ponte Grande foi classificado, dentro da obra oswaldiana, como um
romance de invenção, um desafio ao leitor, que tem de desvendar o livro, estruturado
em cerca de 203 fragmentos. Pode-se dizer que o romance tem uma estrutura
cinematográfica construída através de uma “montagem” ágil, que se assemelha a uma
narrativa não linear no cinema. Assim como a descontinuidade impregnou o cinema
pós-Godard, Serafim também trabalha com a não linearidade em sua estrutura, muito
antes do diretor franco-suíço propor a quebra da narrativa clássica. No romance, um
herói se confunde com outra personagem, e personagens são eliminadas repentinamente
do texto e, depois, reaparecem. Do ponto de vista estilístico, o romance é
revolucionário, o autor muda a narrativa da primeira para a terceira pessoa; textos
melodramáticos aparecem organizados sob forma de texto teatral, poemas se somam a
abaixo-assinados e diários de viagem.
9
Composto entre l925 e 1929, e publicado em 1933, Serafim Ponte Grande, junto a Memórias
sentimentais de João Miramar, constituem os maiores romances de invenção de Oswald de Andrade.
10
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 90.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
55
Essa construção lingüística, ricamente fragmentada, foi inspiração não apenas
literal para O bandido; como foi citado acima, Oswald está presente, sobretudo, na
estrutura narrativa do filme, que também trabalha, de forma neo-barroca, as
possibilidades de linguagem. Assim como o romance, o filme também é dividido em
blocos. Assim como no romance, não se respeita a linearidade espaço-tempo e,
principalmente, o filme também trabalha a questão política e social do país de forma
irônica.
O bandido da luz vermelha reúne os dois momentos oswaldianos da criação de
Serafim Ponte Grande: o da elaboração do texto, na década de 1920, e o que marcou a
edição do prefácio polêmico de 1933. “O meu país está doente há muito tempo. Sofre de
incompetência cósmica. Modéstia à parte eu mesmo sou um símbolo nacional. Tenho
um canhão e não sei atirar. Quantas revoluções serão necessárias para a reabilitação
balística de todos os brasileiros?”
11
O teor do texto denuncia o tom enfurecido que
marcava o Oswald da década de 30, “com inegável obsessão pelo lado da pobreza, pelo
senso de periferia, pela idéia de um Terceiro Mundo em ebulição e que se desenha no
movimento expansivo de sua mise-en-scene”.
12
Mas o personagem central de O bandido está longe de conter o tom de
indignação que Oswald imprime em Serafim. O Jorginho, criado por Sganzerla,
pertence ao território do deboche, da ironia, da completa descrença e desprezo em
relação ao universo político que o cerca. E é nesse discurso irônico que reside a crítica
voraz deglutida do romance de Oswald.
11
ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande; apud XAVIER, Ismail. Alegorias do
subdesenvolvimento, 1993. p. 97
12
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 97.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
56
O texto oswaldiano traz as marcas do chiste freudiano, acionada a descarga
do riso por força da condensação, mas seu teor não tem a carga radical de non
sense que recebe quando se fragmenta e se desloca para compor os delírios
das vozes a propósito de uma figura cuja biografia é outra: o dandy da Boca
do Lixo tem à sua disposição canais mais acanhados para o exercício de seu
individualismo, e diferença aristocrática, sua oposição à norma burguesa.
13
Em 1992, a presença de Oswald, em Sganzerla, se concretiza com a realização
de Perigo negro, média-metragem baseado em um argumento original de Oswald de
Andrade, sobre o craque Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”. Quando o cineasta fez
a adaptação, ele a anunciou como o “primeiro filme feito a partir de um roteiro
cinematográfico de nosso maior escritor”.
14
Oswald escreveu o texto em 1938, ano da
Copa do Mundo. O filme é o quinto episódio da série Oswaldianas, filme de episódios
realizado por vários diretores e dedicado ao escritor modernista. Na época do seu
lançamento, Sganzerla escreveu uma genial declaração de admiração pela obra de
Oswald, que vale ser reproduzida, a título de confirmação da influência oswaldiana.
Essa citação é o mapa de todo esse labirinto criativo que, neste capítulo, busco percorrer
e desvendar:
No país bandidesco da cobra-grande, do carnaval pasteurizado por cartolas
ignorantões, ameaçado pelos contrastes cada vez mais contrastantes, é
preciso ouvir as lições da voz do povo para encontrar o ponto de acerto entre
a intenção e o recado e tentar ao menos ver com “olhos e ouvidos livres” a
imprevisível descontinuidade nacional com o seu eterno jogo de imobilismo
permanente. O sentimento nativista que o movimento Modernista traz
embutido em sua forma-conteúdo explicita pelo gênio d’Andrade, o que
melhor compreendeu a nação desde os tempos trevosos das Capitanias
Hereditárias ao limiar de um novo século cujas luzes parecem estar cada vez
13
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 91.
14
Catálogo da Mostra Retrospectiva Rogério Sganzerla – Cinema do Caos, exibida entre 31 de outubro
e 13 de novembro de 2005, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, p. 57.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 2
O bandido da luz vermelha – Antropofagia quadro a quadro
57
mais obscuras, orientou o Modernismo, a Antropofagia, a Poesia Pau Brasil,
a Tropicália e o Cinema Experimental.
15
Se o texto oswaldiano é a matriz ideológica e estrutural de O bandido,
cinematograficamente, podemos filiar a obra, em boa parte, a Orson Welles e a Jean-
Luc Godard. Dessa forma, o filme trabalha com matrizes lingüísticas e ideológicas
claras, sem deixar de ser absolutamente genial e único. Essa intertextualidade permite,
em sua estrutura, a riqueza proporcionada pela Antropofagia, que reuniu, em um mesmo
banquete, Welles, Godard e Oswald de Andrade.
15
Catálogo da Mostra Retrospectiva Rogério Sganzerla – Cinema do Caos, exibida entre 31 de outubro
e 13 de novembro de 2005, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, p. 57.
CAPÍTULO 3
“Seja marginal, seja herói”
Panorama “pós-tropicalista, experimental, poético, revolucionário” (1960-1970)
O cinema teria de ser escrito em uma folha em branco pegando fogo para poder
registrar esse movimento de captação do pensamento de um filme, durante a sua realização.
Rogério Sganzerla
A virada da década de 1960 para 70 constitui um momento único para a linha
histórica que conduziu a cultura mundial, ao longo do século XX. No mundo e no
Brasil, o panorama político social e cultural representou o apogeu e apocalipse de um
pensamento que moldou a sociedade ocidental moderna. Era o fim da inocência e o
início de uma incendiária “idade da loucura”, com as portas abertas para um
psicodelismo desenfreado, aliado a experiências em todos os campos. As
experimentações artísticas geraram, nesse período, algumas das obras mais instigantes
do cinema, literatura, teatro, música e artes-plásticas; já no campo existencial, o
experimentalismo ganhava contornos trágicos e divinos, ao mesmo tempo, provocando
a morte de heróis míticos da contra-cultura e férteis viagens criativas sob o signo da
liberdade.
No Brasil, aquele momento era marcado pelo contraponto entre arte engajada e
vanguarda experimental. As vanguardas, desde a década de 50, sob as propostas formais
da poesia concreta, reivindicaram em seu cerne os ícones da modernidade. A tensão que
se iniciou nessa época iria encontrar o seu estado limite entre as décadas de 60 e 70,
quando o cenário artístico brasileiro foi dividido por um abismal obstáculo entre a arte
engajada proposta por organismos como o Centro Popular de Cultura (CPC) e a
vanguarda experimental, que encontrava representantes vigorosos em todas as
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Roberta Canuto
Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
59
manifestações artísticas. Essa crise foi bem delineada por Heloisa Buarque de Hollanda
em suas “impressões de viagem”: “Supostos adversários, o experimentalismo formal e
as propostas da arte popular revolucionária criam uma forte tensão que alimenta e
percorre tanto a produção cultural do período quanto as das tendências mais recentes”.
1
Embora localizadas em lados opostos, na forma de abordagem ideológica, as duas
vertentes acreditavam no potencial revolucionário da arte.
Na literatura, a poesia concreta flertava com o ideal de porta-voz do discurso
operário, transformando-o em tema e influência formal, as metáforas e alegorias eram
substituídas por um discurso formalmente objetivo e sem lirismo, e a poesia ganhava
aspectos funcionais.
Na década de 1960, esse discurso poético assume plenamente o caráter
didático. Mas essa euforia desenvolvimentista do concretismo teve uma vida curta; a
armadilha do subdesenvolvimento, como um estágio a ser superado, encontrou a
desilusão com a falência daquele modelo de modernidade próspera. Essa onipotência da
palavra como elemento transformador do real marcou não só o movimento da poesia
concreta, mas também aqueles que a sucederam na tentativa de libertar a palavra de
regras esquemáticas, como a Poesia-Praxis, corrente que buscava superar as limitações
concretistas, mas que caiu, do mesmo modo, na armadilha de um poema didático.
Paralelo a esse movimento na poesia, o cinema brasileiro começava a trilhar o
seu caminho em direção ao discurso político social. Influenciado por uma estética que
se construiu na Europa pós-guerra, mais especialmente, pelo neo-realismo italiano, o
1
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem, 2004. p. 42.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
60
cinema assumia para si o papel de agente transformador da sociedade, abandonando os
temas escapistas e ingênuos para voltar os seus olhos para o universo dos excluídos. Rio
40º (1955), de Nelson Pereira dos Santos, representa um marco emblemático dessa
transformação no cinema brasileiro. Pela primeira vez, o morro e as favelas cariocas
eram mostradas, no cinema, sob a perspectiva do centro da trama, revelando à burguesia
as férteis e delicadas nuances daquele universo. O elenco, formado em sua maioria por
“não atores”, também buscava o diálogo com a realidade, influenciado pelo neo-
realismo.
Esse panorama, que se delineou na década de 1950, encontrou a sua plenitude
discursiva na década seguinte. O Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de
Cultura, escrito em março de 1962, representa a teorização desse momento. Já no
primeiro parágrafo do documento, esse compromisso social e político do artista se
afirma com veemência: “Antes de ser um artista, o artista é um homem existindo em
meio aos seus semelhantes e participando, como um a mais, das limitações e dos ideais
comuns, das responsabilidades e dos esforços comuns, das derrotas e das conquistas
comuns”.
2
O CPC assumia o papel de anjo exterminador da arte alienada, de porta-voz
da sociedade e de algoz das contradições históricas. Quem não praticava essas regras
austeras de participação popular colocava-se a serviço da alienação coletiva, uma vítima
da história:
O que distingue os artistas e intelectuais do CPC dos demais grupos e
movimentos existentes no país é a clara compreensão de que toda e qualquer
manifestação cultural só pode ser adequadamente compreendida quando
2
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem, 2004. p. 135.
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Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
61
colocada sob a luz de suas relações com base material, sobre a qual se erigem
os processos culturais de superestrutura
3
.
O que se anunciava no horizonte do cinema brasileiro com Rio 40° teve sua
confirmação com o Cinema Novo, nascido e criado sob a tutela do CPC. O primeiro
trabalho de cineastas como Caca Diegues, Domingos de Oliveira e Joaquim Pedro de
Andrade foi Cinco vezes favela (1961), longa-metragem dividido em episódios,
produzido via CPC. Sob a ideologia esquerdista doutrinária, o movimento ganhou, na
figura de Glauber Rocha, força, poesia, genialidade e sofisticação em sua linguagem,
reafirmando o comprometimento com o viés político.
Emblemas tatuados na cartilha da Estética da Fome,
4
que determinava os
rumos estéticos e ideológicos do movimento, ganharam as telas do cinema brasileiro.
Uma visão maniqueísta das questões do proletariado, a redenção do povo brasileiro
como vítima da história e o deslocamento das temáticas urbanas para as rurais geraram
obras geniais, mas também filmes esquemáticos que se esgotavam em um discurso
hermético e populista. As revoluções políticas que sacudiam o mundo refletiam-se nas
manifestações artísticas de forma geral. No âmbito do nosso universo subdesenvolvido,
podemos dizer que a América Latina se tornou foco das atenções. Saímos da periferia
para o epicentro da história, sem, de fato, deixarmos de caminhar à sua margem.
A falência do discurso engajado surtiu como um catalisador de uma nova
corrente intelectual. Movimentos de vanguarda começavam a adotar outras formas de
abordagem para falar da caótica realidade política que se assentara sobre o Brasil e o
3
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem, 2004. p. 137.
4
A Estética da Fome é um dos pilares do Cinema Novo. Segundo Glauber, e os outros cinemanovistas,
o retrato real do Brasil passava pelo universo dos desvalidos, dos marginalizados e dos miseráveis.
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Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
62
mundo. Na Europa, os movimentos estudantis reivindicavam liberdade política e
existencial, enquanto, no Brasil, o AI 5 caía como uma bomba sobre as nossas cabeças.
Uma inquietação que já se anunciava com os primeiros passos da Tropicália, da poesia e
de artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark, nas artes plásticas, contaminou toda a
produção cultural na virada dos 60 para os 70. Godard, Jimmi Hendrix, Beatles, Bob
Dylan, Pop Art eram ingredientes de um caldeirão de influências que mudou
definitivamente o rumo da estética e do comportamento em todo o planeta.
A letra “câmera na mão” de Alegria Alegria, composta em 1967, por Caetano
Veloso, era um hino aos ideais tropicalistas. A crítica à intelligentzia castradora da
esquerda, a fragmentação de elementos e o diálogo pleno com a televisão eram
características que reuniam obras isoladas em um mesmo movimento forte e
revolucionário. A proposta tropicalista fez renascer, naquela geração, os ideais estéticos
e ideológicos propostos por Oswald de Andrade, como vimos no capítulo anterior. O tão
sonhado “biscoito fino para as massas” se multiplicava em uma riqueza formal neo-
barroca que somava influências e sons dissonantes de todo o planeta. O cenário musical
brasileiro se renovava sob a performance arrebatadora de artistas como: Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Jorge Mautner, Tom Zé e Torquato Neto.
“Recusando o discurso populista, desconfiando dos projetos de tomada do poder,
valorizando a ocupação dos canais de massa, a construção literária das letras, a técnica,
o fragmentário, o alegórico, o moderno e a crítica de comportamento, o Tropicalismo é
a expressão de uma crise”.
5
5
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem, 2004. p.64.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
63
A questão do fragmentário, do mundo em descontinuidade, da riqueza de
elementos de um universo que começava a se pautar pela estética “ritmada” pela
televisão, a desilusão com os discursos heróicos da esquerda, transcendia o rumo
estético da produção cultural e moldava as questões existenciais daquela geração. Essas
questões iriam se aprofundar e radicalizar a linguagem das várias manifestações
artísticas que surgiriam logo após esse momento conturbado que marcou o fim dos anos
60 e o início dos 70, para se afirmar com plenitude no período subseqüente, que ficou
conhecido como pós-tropicalismo.
Sob o signo dessa transformação de Tropicalismo em pós-tropicalismo, nasceu
O bandido da luz vermelha. Como veremos, no capítulo seguinte, a fragmentação, a
desestruturação do eu diante da sociedade, a descontinuidade, o diálogo com os veículos
de comunicação de massa (no filme, o rádio, mais enfaticamente) são apenas algumas
das influências que foram “deglutidas” por Rogério Sganzerla. É importante ressaltar
que esse modelo estético pairava sobre boa parte da produção cultural daquele
momento. Pode-se percebê-lo com clareza na Nouvelle Vague, na literatura, nas artes
plásticas, no teatro (de forma exemplar, na montagem de O Rei da Vela, de José Celso
Martinez) e na música, nos acordes experimentais de Jimmy Hendrix.
Nas artes plásticas, Hélio Oiticica e Lygia Clark fizeram da sua obra um pleno
exercício experimental de suas idiossincrasias, em que se somavam, em um mesmo
território, elementos de várias vertentes vanguardistas daquele tempo. Pela obra deles,
transitavam conceitos fundamentais para a configuração do pensamento que moldou as
décadas de 60 e 70, como as idéias desenvolvidas por Herbert Marcuse, em seu Eros e
civilização. Diz Oiticica, em uma carta escrita a Clark, em 1968: “Para Marcuse, os
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Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
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artistas são os que têm consciência e agem marginalmente, pois não possuem classe
social definida”.
6
Em 1972, em Nova Iorque, Hélio Oiticica realizou, em parceria com o
cineasta Neville de Almeida, as Cosmococas. Esses trabalhos eram chamados, também,
de “Quase cinema”, nos quais se vê a confluência entre o cinema experimental, as artes
plásticas e a porção cáustica do Pop de Andy Wharol, dos anos 66/68. Em um mesmo
ambiente, conviviam projeções de slides e fotos de ícones da cultura pop e da contra-
cultura, cobertos de fileiras de cocaína. Uma trilha sonora envolvente, nas instalações,
promovia o espaço interativo que, a exemplo das outras obras de Oiticica, resultava em
um ritual libertário. As Cosmococas foram regidas pelo conceito de “Crelazer” (crença,
criação e lazer), elaborado por Oiticica: “O Crelazer é o criar no lazer ou o crer no
lazer? Não sei talvez os dois ou talvez nenhum [...] A descoberta do Crelazer é essencial
à conclusão da participação-proposição: a catalisação das energias não opressivas e a
proposição do lazer ligado a elas”.
7
Segundo a análise do crítico Luiz Camillo Osório,
no jornal O Globo: “A referência aí é Marcuse: as potências do gozo e do jogo contra as
repressões da eficiência e do trabalho instrumental”.
8
Hélio Oiticica confessou a Lygia Clark, em uma carta de 1969: “manter-se
integral é difícil, ainda mais sendo-se marginal: hoje sou marginal ao marginal, não
marginal aspirando à pequena burguesia ou ao conformismo, o que acontece com a
maioria, mas marginal mesmo: a margem de tudo, o que me dá surpreendente liberdade
6
OITICICA, Hélio. In: FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Lygia Clark Hélio Oiticica – cartas 1964-74.
2001. p. 74.
7
OITICICA, Hélio apud OSÓRIO, Luiz Camillo. Como dispensar a atenção estética. O Globo.
“Segundo Caderno”. 21/09/2005. p. 2.
8
OSÓRIO, Luiz Camillo. Como dispensar a atenção estética. O Globo. “Segundo Caderno”. 21/09/2005. p. 2.
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poético, revolucionário” (1960-1970)
65
de ação”.
9
O conceito de marginalidade determinava o caminho de quem não pertencia à
“arte integrada”. Isto com o cinema, a música tropicalista, a poesia marginal da geração
mimeógrafo e com as artes plásticas. Hélio Oiticica foi pioneiro, ao levar o universo das
favelas para o centro da obra de arte, no Brasil. O emblemático “desfile” da Mangueira,
que o artista organizou no Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio de Janeiro,
significou uma guinada, uma grande revolução na iconografia cultural da produção
artística brasileira, naquele momento, que foi, mais tarde, “absorvida” pela “arte
oficial”. Em carta a Lygia Clark, de 1969, ele diz: “meu grande pecado: não conceder
no que sou; quando me diziam não vá a Mangueira, pensava eu: não digo nada e vou,
pois adorava; de repente aqui tudo que era pecado virou virtude, tudo que de folclore me
retratavam foi posto abaixo”.
10
O horizonte cultural brasileiro e planetário, àquela época, estabelecia-se sob
fortes emblemas; a tríade “sexo, drogas e rock’n’roll” não foi apenas um mito
eternizado por ídolos da cultura pop. Esse triângulo ditava o comportamento, o
pensamento e a estética daquele tempo. Como dizia Caetano Veloso, no filme Os doces
bárbaros (1975), de Jom Tob Azulay, “Tudo é rock, rock é a linguagem do nosso
tempo”. A revolução sexual, as experiências com as drogas e a busca de uma
consciência cósmica oriental estavam por trás da criação artística e do pensamento
intelectual daquela geração.
9
OITICICA, Hélio. In: FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Lygia Clark Hélio Oiticica – cartas 1964-74.
2001. p. 44.
10
OITICICA, Hélio. In: FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Lygia Clark Hélio Oiticica – cartas 1964-74.
2001. p. 103.
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poético, revolucionário” (1960-1970)
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Em meio a essa revolução, guiada pela contra-cultura, o quadro social proposto
pela arte brasileira ganhava novos contornos, e o urbano e sua periferia eram os novos
elementos dessa estética que ganhou as telas, partituras e páginas da produção cultural.
No cinema, essa temática já se antecipara com o Cinema Novo, mas, agora, sob nova
ótica, não a da marginalidade como vítima da sociedade, mas como elemento central
catalisador dessa mesma sociedade, em sua decadência. Segundo Heloísa Buarque de
Hollanda, “A marginalidade é tomada não como uma saída alternativa, mas no sentido
de ameaça ao sistema; ela é valorizada exatamente como opção de violência, em suas
possibilidades de agressão e transgressão. A contestação é assumida
conscientemente”.
11
Rotulado de Cinema Marginal, ou “Udigrudi”, como quis Glauber,
o cinema feito por nomes como Sganzerla, Bressane, Carlos Reichenbach, Eliseu
Visconti, Andréa Tonacci e Geraldo Veloso, entre outros, mergulhou profundamente
nessa estética urbana, substituindo os emblemas da fome pelos do lixo, e o discurso
doutrinário “esquerdofrênico” deu lugar à ironia. As experiências existenciais de cada
um desses diretores ganhavam vida na tela; naquele momento, vida e obra se fundiam
em uma experiência libertária. Em entrevista, Julio Bressane refletiu sobre esse espaço
etéreo entre a criação e a vida:
Até que ponto se exige disso que se chama cineasta? O que é preciso para
isso? É uma exigência imensa, que exige um domar, um grau de disciplina e
antenagem com os movimentos ocasionais da vida [...] A vida é um espaço e
tempo a ser contemplado e o cinema é um objeto de contemplação total.
Você precisa estar avisado de todas as disciplinas que fazem fronteira com
ele.
12
11
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem, 2004. p. 77.
12
Em entrevista concedida à autora, no Rio de Janeiro, em 1995.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
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Nesse novo cinema, o universo rural, mitificado pelo Cinema Novo, dotado de
virtudes sagradas, foi substituído pelo urbano, repleto de referências mundanas. Em
1970, Sganzerla escreveu um artigo devastador sobre aquela intelectualidade que, então,
moldava as estruturas do pensamento da esquerda brasileira. Ele ataca a formalidade
conservadora e didática da aplicação política da arte, que ignorava a invenção, para
implantar uma submissão criativa à cartilha marxista. Esse artigo resume, com
argumentos poderosos, o pensamento político por trás daquele cinema que ele defendia:
O intelectual latino-americano, quando se julga participante, é um cristão
ingênuo, deslumbrado e auto-complacente, exclusivamente racional e
autocensurado [...] com acentuada tendência ao stalinismo que, na América
Latina, acomodou-se maravilhosamente ao tradicional populismo.
13
Rogério Sganzerla identificava-se com a iconoclastia pós-Tropicália e viveu,
coerentemente, afirmando essa postura. O exílio em Londres, a vida em comunidade, a
viagem “on the road”, pela Europa e Oriente, que rendeu filmes interessantíssimos, são
momentos da experiência pessoal do cineasta que se fundem ao universo artístico que
ele delimitou para si. Apesar de ter nascido sob o signo do Cinema Novo, Sganzerla é
parte de uma geração que se contrapõe aos modelos adotados por Glauber Rocha,
rompendo “edipianamente” com o legado estético do mestre:
Se faço cinema no Brasil, então faço Cinema Novo. É difícil defini-lo, sem
dúvida. É uma igrejinha, mas também um movimento coletivo, talvez o mais
importante da cultura brasileira nestes últimos vinte anos. Se existe algum
lado negativo então é o caráter sub-literário e o dês-preparo de muitos
diretores com pretensões estritamente intelectuais [...] Os filmes têm que ser
13
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 67.
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Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
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políticos, mas podem sê-lo de outras maneiras, não somente como Rocha
(Glauber) e Saraceni (Paulo Cezar Saraceni).
14
A superação do modelo cinemanovista ganhou vigor com a afirmação do novo
cinema proposto por Sganzerla e outros diretores já citados aqui, que compartilhavam
do seu pensamento estético e ideológico. As críticas aos antigos dogmas também
ficaram mais contundentes e afirmativas: “Atacamos simbolicamente todos os filmes do
Cinema Novo, em bloco, principalmente os vexames mais vulneráveis da cúpula, na
verdade, a única responsável pelos seus abacaxis e pelo abacaxi dos outros [...] é essa
cúpula que vamos destruir. Ou destruí-la ou o cinema brasileiro afunda de vez”.
15
Mas essa discórdia é uma intriga datada; ela é parte de um contexto que
marcou a dialética cultural no horizonte do universo artístico brasileiro naqueles
tempos. A ruptura com o Cinema Novo foi parte de uma experiência histórica
importante, mas não anulou a admiração de Sganzerla por Glauber e nem comprometeu
o potencial criativo e experimental de diretores que pertenciam tanto a uma como a
outra vertente. Menciono essa ruptura para que se localize a importante superação dos
princípios que marcaram o Cinema Novo, resultando em uma importante renovação
lingüística no cinema brasileiro, que se sintetiza em O bandido. Essa é uma importante
referência para que se entenda aquela vanguarda que se formava no cinema e em todo o
cenário artístico brasileiro, na passagem dos anos 60 para os 70.
14
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 43. Grifos meus.
15
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 68.
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“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
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A superação de velhos conceitos gera um universo em turbulência, regido por
valores e regras a serem despedaçados: “em um mundo como este eu só tinha de
avacalhar”. O lema da produção da Belair, produtora de cinema criada por Rogério
Sganzerla e Julio Bressane era, sem pretensões de sê-lo, o emblema daquela geração
pós-Tropicália. Em entrevista à autora, Júlio Bressane resumiu o espírito da Belair:
Esse movimento que surgiu com a Belair foi a contracorrente do que existia
ali, e o primeiro a tocar com a mão, no cinema como organismo
demasiadamente sensível que faz fronteiras com todas as ciências [...] Os
primeiros filmes que você faz são para você aprender, mas, por outro lado,
eram filmes de gente que já estava metida em cinema; em relação ao Rogério
e eu, a coisa foi tomada com um grau de exigência intenso.
16
A Belair realizou sete longas-metragens em menos de um ano de existência,
movida pelo ímpeto experimental e pelo espírito em turbilhão dos seus “sócios”, que
queriam ampliar as margens criativas que predominavam no cinema brasileiro. “O ato
criador não tem finalidade, você o faz para viver, ele está sempre colocado no futuro.
Porque no criar já há o destruir, a desconstrução é o criar. Estes filmes tinham um
caráter de criação/destruição, de maneira bastante pioneira para o cinema”.
17
A ruptura de Sganzerla e Bressane com o Cinema Novo foi suicida para ambos,
mas se refletiu de forma diferente em suas trajetórias. Enquanto Bressane, em uma
postura menos iconoclasta, conseguiu dar continuidade ao seu processo produtivo,
Sganzerla ficou na berlinda da polêmica, metralhado pela força das suas opiniões e pela
genialidade de sua obra. Em uma entrevista publicada no jornal O Pasquim, em 1970,
Rogério Sganzerla defendeu com vigor as suas convicções éticas e estéticas. Mas,
16
Depoimento em entrevista à autora, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1995.
17
Entrevista à autora, 1995.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
70
editada de forma claramente sensacionalista, a publicação veio incendiar o conflito
ideológico que pairava sobre Glauber e Rogério naquele momento.
Rogério, então com 23 anos, expôs, de forma aberta e inocente, todas as suas
opiniões sobre os méritos e as fragilidades do Cinema Novo, ressaltando a força criativa
do primeiro momento do movimento, localizado entre 1962 e 1965, e criticando os
caminhos herméticos e vazios dos filmes produzidos pelo movimento no final da década
de 60. Nas palavras de Helena Ignês, que foi entrevistada ao lado de Sganzerla: “Ele foi
entrevistado por uma patota de má fé que não assistiu a nenhum de seus filmes,
interessada apenas em espetaculizar, escandalizar e intrigá-lo com o seu interlocutor
natural, Glauber Rocha”.
18
Figura 6 - Capa de O Pasquim, nº 33, publicado em fevereiro de 1970
18
Depoimento de Helena Ignês. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 19.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
71
É interessante ressaltar o caráter pejorativo que o termo “tropicalista” tinha
naquele momento em que a esquerda repudiava todo e qualquer movimento libertário
que absorvia esteticamente influências que não exaltassem o nacional. A falência do
discurso redentor da esquerda se reflete em desconfiança. Os heróis dispostos a dar a
vida pela pátria e pelas questões marxistas eram substituídos por um anti-herói cheio de
ironia, cercado pelos ícones da modernidade. “O novo cinema deverá ser imoral na
forma, para ganhar coerência nas idéias, porque diante desta realidade insuportável,
somos anti-estéticos para sermos éticos”,
19
diz Sganzerla, sobre aquele novo cinema que
ele imprimiu com O bandido. O salvador que habitava o universo rural fora substituído
pelo marginal urbano, desmistificando o título de herói. Toda essa transformação sob a
tutela de uma grande revolução que se afirmou como modernidade, um cenário de
efervescência e contradições entendido por Walter Benjamin da seguinte forma:
Para este quadro, Baudelaire legenda: modernidade. E para vivê-la é
necessário heroísmo. Pois os obstáculos que a modernidade opõe ao élan
produtivo natural do indivíduo encontram-se em desproporção com as forças
deste herói. A modernidade parece estar sob o signo do suicídio.
20
A modernidade paira sobre o pensamento daquela época, e, com ela, toda a
simbologia que a cerca; o urbano, o movimento e o descontínuo surgem com a perda da
imagem de totalidade do mundo, o “eu” se dilui dentro dessa realidade em
desconstrução. Walter Benjamin defende a alegoria como a chave para se entender essa
realidade. “No mundo alegórico o universo concreto aparece então desvalorizado: seus
19
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 42.
20
BENJAMIN, Walter. Sobre a modernidade; apud HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de
viagem, 2004. p. 65.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
72
elementos valem uns pelos outros... a alegoria desta forma denuncia uma atitude
ambivalente em face da realidade”.
21
A alegoria assume uma postura ambivalente diante daquela realidade,
mostrando uma profunda desconfiança quanto ao cenário que se configurava ali, ao
mesmo tempo em que o representava. A alegoria se mostra, assim, uma via eficiente
para conformar o pensamento intelectual da época que, cada vez mais sufocado pelas
punições e castrações políticas, encobre-se com o véu representativo e simbólico na
construção dos seus conceitos e discursos.
Publicações da imprensa alternativa – como a revista Navilouca, e a Geléia
Geral, de Torquato Neto – e a poesia marginal eram reflexos dessa busca por uma
estética agressiva e irônica na abordagem daquela realidade que pairava sobre o Brasil
nos anos mais duros da ditadura. O sangue, a alegoria, a estética do exagero, eram
elementos reproduzidos em todos os espaços de manifestação artística, numa forma de
confrontar o absurdo através de uma estética caótica. O terror da arbitrariedade política
era enfrentado pelas tintas da loucura. Para Heloísa Buarque de Hollanda, “A loucura
passa a ser vista como uma perspectiva capaz de romper com a lógica racionalizante da
direita e da esquerda”.
22
Essas experiências sensoriais, que se refletiam de forma direta
na estética e na temática artística daquele momento, tiveram conseqüências trágicas,
como a internação, desintegração emocional e suicídio de figuras essenciais daquele
período histórico.
21
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem, 2004. p. 67.
22
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem, 2004. p. 78.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
73
Enquanto a arte engajada dialogava com o trágico, os tropicalistas e, mais
tarde, os pós-tropicalistas abusavam do humor, do nonsense e do absurdo como
elementos pertinentes às suas construções conceituais. No cinema, isso se evidencia, por
exemplo, em Terra em transe (1967). Glauber fez de um filme essencialmente
alegórico, o alter ego do diretor; Paulo Martins, personagem de Jardel Filho, é a
representação do intelectual de esquerda, em crise existencial, dividido entre a luta e a
poesia.
Terra em transe representa, com maestria, o pensamento do Cinema Novo,
naquele momento, quando o movimento se descobre em uma encruzilhada entre os
ideais de esquerda e a falência do sonho de um país mobilizado pelo discurso artístico.
Sobre esse processo, diz Sganzerla: “Discordo de um cinema brasileiro estritamente
crítico, realista e objetivo [...] O cinema brasileiro, mesmo o Cinema Novo, está se
aburguesando; virou cinema novo-rico”.
23
Esse movimento de ruptura, tendo como foco
O bandido da luz vermelha, amplia o discurso para além da gramática glauberiana. O
tom profético redentor de Glauber é substituído pela explosão apocalíptica de O
bandido, uma performance suicida em todos os sentidos: existencialmente, na postura
do artista, representada no personagem, síntese de um universo em decomposição, como
bem define Ismail Xavier: “aqui imprime uma conotação terminal, de fim do mundo, à
coleção de disparates deste universo separado da civilização, pela bomba (deles) e pela
23
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 44-5.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 3
“Seja marginal, seja herói” – Panorama “pós-tropicalista, experimental,
poético, revolucionário” (1960-1970)
74
fome (nossa), como o filme proclama. O bandido, canto paralelo a terra em transe, é
uma alegoria nacional do subdesenvolvimento”.
24
Quando realizou O bandido, Sganzerla assumiu um universo neo-barroco e
alegórico, como o cinema de Glauber, só que, dessa vez, proclamando a revolução
através da ironia e do deboche. O discurso hermético do comprometimento político, em
um país de analfabetos, deu espaço a um espetáculo grotesco de ironia. Ninguém
melhor que ele sintetizou os rumos do seu cinema, concretizando o que mais lhe atraía:
a reflexão e a realização cinematográficas, simultaneamente. Os textos que Sganzerla
escreveu enquanto filmava O bandido são pistas para o entendimento pleno de sua obra.
Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista,
malcomportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário...
O bandido da luz vermelha é um personagem político na medida em que é
um boçal ineficaz, um rebelde impotente, um recalcado infeliz que não
consegue canalizar as suas energias vitais.O que eu queria mesmo era fazer
um filme mágico e cafajeste, cujos personagens fossem sublimes e boçais,
onde a estupidez acima de tudo revelasse as leis secretas da alma e do corpo
subdesenvolvido.
25
24
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 97.
25
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 40-2.
CAPÍTULO 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
Não interessa o cinema, mas a profecia
Rogério Sganzerla
Quando realizou O bandido da luz vermelha, Rogério Sganzerla tinha pouco
mais de 20 anos, mas o seu trabalho como crítico apresentava uma maturidade
incomum. Sganzerla só começou a falar aos 5 anos; escreveu um livro de contos,
intitulado Primeiros contos, com apenas 7 anos de idade, e saiu de casa aos 11 anos,
para viver em uma pensão em São Paulo. Nessa peregrinação precoce, ele encontrou no
cinema uma espécie de oráculo para compreender o mundo.
Essa experiência pessoal foi fundamental para a formação artística de
Sganzerla. Os anos em que viveu em uma pensão barata, na grande metrópole,
imprimiram, em seus filmes, uma verdade cujas raízes estavam no submundo, e o
trabalho como jornalista fortaleceu a originalidade e brilhantismo dos seus diálogos.
O trabalho como crítico se tornou tão essencial na trajetória artística de
Sganzerla que ele a elevou à categoria de ciência, classificando o estudo crítico de uma
obra cinematográfica como “Filmologia Crítica”, o que determinava a construção da
base teórica de uma arte em constante evolução: o cinema. Na opinião do pesquisador
Ismail Xavier:
A crítica que ele (Sganzerla) escreveu durante os anos 1965-1967 é uma
preparação para o salto que dá como criador. Isto era típico nos anos 60. O
que diz sobre a capacidade de observação sem a priori moral trazida pela
“câmera cínica’ e o que sugere quando não adere ao culto do cinema “de arte
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
76
(ele preferia o cinema cinema), as preferências que manifesta como crítico,
tudo isto se expressa em O bandido.
1
Sganzerla determina o rumo do seu trabalho como um diretor experimentalista
por excelência, um mago na linguagem cinematográfica, um aprendiz dos códigos do
cinema, sem ser um autor hermético que se distancia do seu público: “Já fui crítico; e se
deixei o jornal para realizar provocações anti-ocidentais não foi para virar autor como
Bergman ou Antoninoni, mas para, no máximo, ser um anônimo copydesk de Mack
Sennett”.
2
É importante ressaltar que O bandido da luz vermelha foi um sucesso nas
bilheterias, em um outro momento, no qual o cinema, no Brasil, ainda preservava o
caráter de lazer popular, de entretenimento ao alcance do público em geral, sem se
restringir ao gueto burguês ou intelectual. Esse caráter popular era bastante valorizado
por Sganzerla, não com um cunho populista, como o proposto, em um dado momento,
por representantes do Cinema Novo, mas sim em sua natureza lúdica, como as
chanchadas o fizeram com êxito:
Podia falar muito da chanchada, que considero uma das nossas mais ricas
tradições culturais, como também sobre o estilo radiofônico desse filme; o
rádio brasileiro é outra tradição que não pode ser desconhecida,
principalmente quando se tenta mergulhar nas origens e implicações do
subdesenvolvimento.
3
1
Citação de entrevista concedida à autora, via e-mail, em março de 2005.
2
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 49.
3
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 41
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
77
Com essa afirmação, Rogério Sganzerla confirma mais uma influência clara
entre as várias referências que cercam o Bandido: as chanchadas. A Atlântida
encontrou, nesse gênero, uma eficiente e bem-humorada forma de fazer a ponte entre o
público e a cultura brasileira. De forma ingênua, esses filmes também se apropriaram de
mitos e histórias do cinema hollywoodiano, para reinventá-los em versões
absolutamente brasileiras.
Figura 7 - Grande Otelo (ícone das chanchadas),
em fotograma do filme Tudo é Brasil, de Rogério Sganzerla
O universo neo-barroco, antropofagicamente repleto de referências, já fazia
parte da base crítica de Sganzerla, e se realizou plenamente em O bandido. Cada
enquadramento permite uma leitura demorada dos objetos de cena, da riqueza detalhada
de informações contidas em cada diálogo, em cada plano seqüência e em cada
artimanha inventiva da montagem. No artigo O legado de Kane, publicado em 1965, no
“Suplemento Literário” do jornal O Estado de São Paulo (dois anos antes de realizar O
bandido), Rogério escreveu sobre Cidadão Kane: “A fita possui uma forma aberta
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
78
(como na arte barroca e na arte contemporânea), incompleta; trata-se de um jogo a ser
mentalmente organizado pelo espectador”.
4
Em O bandido, tudo é propositadamente exagerado, o figurino, as
interpretações, e até a duração dos planos. Adepto dos neologismos, na linguagem
escrita, e da invenção, na audiovisual, Rogério Sganzerla definiu essa influência neo-
barroca na introdução do seu livro Por um cinema sem limite, teorizando a relação
profunda entre a linguagem literária e cinematográfica e as revoluções de estilo por que
ambas passaram a partir da segunda metade do século XX:
Na prática, o que constitui exatamente a essência do cinema moderno: sua
relatividade voluntária, a desarticulação do cinema tradicional e uma vocação
neo-barroca. Trata-se de incorporar nossa experiência como um fenômeno
interligado ao áudio-visual mundial, sob o ponto de vista de renovação de
linguagem e criatividade, destacando a figura do realizador independente,
motor de idéias cinematográficas. Evocaremos, assim, as relações profundas
entre o veículo clássico e o moderno, através de uma interpretação o quanto
mais exata possível da vanguarda do cinema e do romance moderno.
5
Dois filmes são fundamentais para que se entenda essa relação direta entre a
crítica realizada por Sganzerla e a aplicação, em O bandido, dos conceitos nela
desenvolvidos: Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, e Acossado (1959), de Jean-
Luc Godard, duas obras emblemáticas na passagem do cinema clássico para o moderno.
Sganzerla pontua essa passagem no texto Noções de cinema moderno, de 1965: “a partir
de 1955, alguns realizadores compreenderam a desatualização da sintaxe
cinematográfica tradicional e tentaram novas formas. Depois veio the spontaneous
4
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p 37.
5
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 11.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
79
cinema norte-americano, a Novelle Vague e as diversas modalidades publicitárias”,
6
e
ainda: “com o cinema moderno verifica-se uma passagem ao relativo. O cinema desce à
altura expressionista, abandona o plongée para situar-se à altura do olho. O cinema
deixa de ser Lang (Fritz Lang) para ser Hawks (Howard Hawks). Essa passagem
constitui a essência da ruptura cinema clássico/moderno”.
7
Com o cinema moderno, os filmes profundamente influenciados pelo
espetáculo teatral do expressionismo pós-guerra de Fritz Lang (baseado nas
interpretações carregadas, encenadas em estúdios impregnados por uma luz desenhada
pelas sombras), abandonavam aquela escola dramática para ganhar as ruas e o cotidiano.
Os monstros expressionistas de Lang davam lugar à elegância humanista de
personagens cotidianos, no cinema de Howard Hawks, e Cidadão Kane é a obra-chave
dessa revolução estética. Todos os elementos que marcaram a transformação de um
cinema meramente narrativo em um cinema com uma sofisticada riqueza de signos
estão presentes nessa fita. A câmera deixa de registrar o que lhe é mostrado para
interferir, definitivamente, na diegese:
O criador de Citizen Kane muito influenciou a geração norte-americana de
após guerra... inclusive e sobretudo o novo cinema no Brasil – todo um
cinema baseado na recusa da montagem clássica, no amor pela cena longa (o
que supõe a liberação do ator, personagem, diálogo, música, câmera e
microfone)... Welles abre as perspectivas do cinema moderno, fechando
definitivamente o período mudo do cinema e do clássico só noto que, lá por
1935, segundo alguns críticos, alcançou seu apogeu. Estão lá na fita de 1941,
todas as virtudes e vícios do cinema contemporâneo: o excesso de diálogos, a
câmera subjetiva, a multiplicação de pontos de vista, flashbacks em cadeia,
plano-sequência e plano-flash, montagem descontínua, ritmo variável,
mistura de estilos, corte sonoro, abuso da lente grande-angular, complexidade
6
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 15.
7
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 17.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
80
dos personagens, o protótipo do herói fechado, a confusão da história,
inúmeros personagens anônimos, voz off, e os tempos mortos,
desdramatização do humor, os travellings e movimentos de câmera
intermináveis, foto fixa e presença de anúncios luminosos, displays,
outdoors, cartazes e feitos tipográficos, cine-jornal, falso-documentário, o
filme dentro do filme cobre a reflexão do cinema que nos leva a indagar:
Citizen Kane, começo ou fim do cinema moderno? Sim, simplesmente
porque, antes do neo-realismo e mais que todo cinema moderno, Welles sabe
que um filme é um filme e nada mais.
8
Essa foi a interpretação definitiva da obra-prima de Welles, por Sganzerla, no
texto crítico Um filme é um filme, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 1964.
Mais tarde, o aprendiz encantado aplicaria praticamente todos os elementos de
linguagem relacionados na citação acima, em O bandido da luz vermelha. Estão lá: o
cine-jornal,o falso documentário, a montagem fragmentada, os outdoors e anúncios
luminosos e os longos planos-seqüência. Além da influência direta na linguagem, paira
sobre O bandido a aura espiritual noir do cinema de Welles. Segundo Ismail Xavier:
Welles impregna todo o filme de Rogério, não só este (O bandido da luz
vermelha), mas todos os que fez até o fim. Isto porque Rogério era totalmente
fascinado pelo diretor de Cidadão Kane. E adorava o film noir, gênero que
inspira O Bandido do começo a fim. Há a questão do tema: o criminoso
perseguido, a noite urbana; há a questão da forma: a voz over e as falas do
protagonista, como em Dama de Shangai (Orson Welles, 1942). Marca da
maldade (Orson Welles, 1958) é importante pelos enquadramentos, pelo
desequilíbrio, pelo plano-seqüência inicial, pela corrupção, pelas intrigas,
etc... Enfim, há o lado barroco de Welles que Rogério reproduz.
9
Os últimos três filmes realizados por Sganzerla são dedicados à passagem de
Welles pelo Brasil: Nem tudo é verdade, de 1986, Tudo é Brasil, de 1998, e O signo do
caos, de 2003. Realizados a partir de uma “colagem antropofágica” de imagens do
8
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 56.
9
XAVIER, Ismail. Em entrevista à autora, via e-mail, em março de 2005.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
81
documentário inacabado de Welles, It’s all true (interrompido pela morte trágica de um
dos personagens) e de imagens iconográficas da cultura brasileira, os filmes traduzem a
obsessão que predominou na relação de Sganzerla com Orson Welles. Essa admiração
não se limitava apenas ao cinema do diretor de Kane, mas também à personalidade
desse notável realizador que, assim como Sganzerla, mergulhou na amargura
irreversível de gênio incompreendido.
Figura 8 – Fotograma do filme O signo do caos, claramente influenciado pela estética de Welles
Rodado ainda sob o frescor de uma carreira que se iniciava, cheia de
inquietações e amparada por toda uma teoria brilhantemente desenvolvida, O bandido
absorveu, com muita intuição e sem refúgios esquemáticos, toda a bagagem crítica
formada ao longo dos anos por Sganzerla. Em alguns momentos do filme, o diretor faz
homenagens evidentes a Cidadão Kane. Enquanto Welles queima o trenó-enigma
Rosebud”, no final do filme, revelando todo o mistério que envolve a tragédia
existencial do personagem, Sganzerla queima uma imagem de São Jorge, um símbolo
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
82
brasileiríssimo da identidade alegórica do “bandido” que, segundo Ismail Xavier,
“representa uma irônica referência à consumação da identidade e seus enigmas”.
10
Essa questão da crise identitária forma a base do personagem e da narrativa de
O bandido. O personagem é um caleidoscópio de identidades sintetizadas em uma só;
ele pode ser “um gênio ou uma besta”; é dono de um repertório de ex-funções (ex-
bancário, ex-campeão de futebol); depositário de uma lista de características que fazem
dele um personagem que é, ao mesmo tempo, único e síntese da coletividade.
O noticiário luminoso que pontua o filme traz a história do “Zorro dos pobres”;
as vozes pedem para que não se faça dele um herói, “afinal ele não passa de um ladrão
analfabeto, um mentiroso com um imenso repertório de palavrões”. Sganzerla disse, em
um genial manifesto
11
lançado à época da exibição de O bandido, que desejava fazer um
western, a exemplo de muitos de seus mestres, personagens constantes em suas críticas:
“Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é fusão e mixagem de vários gêneros
[...] do documentário a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da
comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos
conflitos (Mann)”.
12
10
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 76.
11
Anexo neste trabalho.
12
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 39.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
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Figura 9 - Fotograma que atesta a influência western de O bandido
As mesmas vozes, em speaker, perguntam: “Afinal quem é ele? Um maníaco
sexual? Um mero provocador? Um mágico? Um anormal à procura da verdade? Um
João ninguém fascinado com o seu próprio sucesso? Ou um pé-de-chinelo saído de
Freud ou da Boca do Lixo?”. Essa identidade em ruínas se reflete também na forma
fragmentada da narrativa, dividida em blocos que se interligam através de elipses
inusitadas. Em uma passagem do filme, a conexão se dá com a resposta a uma questão
lançada no início da fita, quando o “bandido” pergunta: “Quem sou eu?”. Muitas
seqüências depois, em um plano claramente influenciado pelo cinema noir, com um
cigarro no canto da boca, dentro de um carro, ele responde: “posso dizer de boca cheia
que sou um boçal”. E assim, sucessivamente, um quebra-cabeça vai sendo preenchido
com uma rica amálgama de signos organizados pela montagem. Sganzerla já havia
falado sobre essa estrutura de montagem em “puzzle”, em uma crítica de 1965, quando
analisava Cidadão Kane:
Inspirado em novos recursos narrativos, principalmente do romance (Falkner,
John dos Passos), Welles recusa a construção clássica (clara e unitária),
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
84
linearmente progressiva das películas de então. Cidadão Kane apresenta uma
estrutura voluntariamente fragmentária... O imenso puzzle de que fala o
repórter e que Susan simbolicamente monta parece ser a fita em si, ao
compor um extenso painel histórico-humano, o filme-objeto – ou filme-
puzzle – que não chega a se completar.
13
A questão da montagem é fundamental em O bandido da luz vermelha, nela
reside boa parte da inventividade e singularidade do filme, construído, em sua essência,
na moviola. O montador, Silvio Renoldi, trabalhou em perfeita sintonia com Rogério
Sganzerla, construindo, além da fragmentação narrativa, todo o simbolismo e alegoria
que enriquecem o filme, estruturados nessa etapa de realização.
14
De fato, a possibilidade de manipular a narrativa e de criar conceitos a partir da
distribuição dos elementos significantes do filme através da montagem significou uma
importante renovação para a linguagem do cinema moderno, e a montagem por
aproximação, proposta por Eisenstein, foi o pilar de toda a estética desse cinema.
15
Mais tarde, a quebra da narrativa linear, levada a cabo por Godard e outros
adeptos dos novos cinemas que pontuaram a década de 1960, concretizou-se, algumas
vezes, no momento da montagem, em total ruptura com as regras do cinema clássico,
que obedeciam à ordem: plano geral, plano de conjunto, primeiro plano e plano de
detalhe. Na era pós-Godard, o cinema se libertou dessa gramática limitada, para ganhar
asas através dos longos planos-seqüência, o que representou uma revolução na história
13
SGANZERLA, Rogério. In: IGNÊS, Helena; DRUMOND, Mário (Org.). Tudo é Brasil – Projeto
Rogério Sganzerla, 2005. p. 36.
14
Apesar dessa liberdade exercitada na construção narrativa na moviola, é impressionante a fidelidade
do filme de Sganzerla ao roteiro, escrito com riqueza de detalhes. Nota-se, apenas na sonoridade, mais
exatamente, na trilha sonora do filme, mudanças significativas em relação ao roteiro original.
15
A “montagem por aproximação” significa, em linhas gerais, um modo de organização dos signos
presentes em um filme de maneira a construir um discurso simbólico. A justaposição de elementos do
discurso fílmico construía um conceito, na época, claramente político, a ser revelado.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
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do cinema. A montagem não estava mais a serviço da linearidade; ela, agora, era
inventiva e iconoclasta, desrespeitando o pacto com a compreensão do público.
Dois anos antes de filmar O bandido, Rogério Sganzerla escreveu, no artigo
Noções de cinema moderno: “Nestes realizadores (do cinema moderno) verifica-se uma
displicência geral na montagem, o amor pela cena longa e os movimentos insinuantes,
além de uma absoluta liberdade narrativa (ausência de progressão dramática, seqüências
longas ao lado de curtas; ritmo na imagem e não na montagem)”.
16
Em O bandido, a montagem funciona como articuladora das idéias de
Sganzerla; todo o conceito por ele elaborado só funciona, de fato, a partir da
estruturação do filme. As elipses, os planos paralelos, a narração over, a inserção dos
letreiros, todo o discurso simbólico e direto desses elementos só se realizou com tanta
eficiência pela magistral intervenção de Silvio Renoldi, ao lado de Sganzerla, na
concepção da obra. Para Ismail Xavier,
A montagem vertical e a fragmentação das cenas criam, ao longo do filme,
um jogo de realidade e aparência que subverte constantemente as nossas
hipóteses. E as numerosas citações e referências a variados cineastas
projetam a fragmentação e o problema da identidade como discurso do outro
para além do retrato do herói, atingindo o nível da própria forma do filme.
17
Esse jogo entre realidade e ficção, mencionado por Ismail Xavier, foi outro
aspecto da linguagem teorizado por Sganzerla em suas críticas, e, mais tarde, aplicado
de forma contundente em O bandido. Sobre o assunto, o cineasta diz, no livro Por um
cinema sem limite:
16
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 19.
17
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 80.
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Em sua passagem ao relativo, o cinema atual propõe uma solução dialética:
conflitar os dois métodos de captação da realidade (Destino versus história),
sobrepor o destino individual com o coletivo, comunicar a mente com a
massa. Tratar o indivíduo em termos históricos significa levantar o véu de
Ísis sobre seus problemas coletivos: emigração, exploração, segregação do
homem-lobo-do-homem, visto pelo novo homem, conseqüentemente pela
nova humanidade. Acentua-se um conflito dialético entre realidade e ficção,
o destino e a história, o real e o imaginário. A maioria dos novos filmes se
baseia nessa intercalação de dois níveis diferentes, acentuando os
contrastes...
18
No texto acima, Rogério Sganzerla expõe todos “problemas coletivos” e
sociais que formam a personalidade multifacetada do personagem central de O bandido:
a questão da emigração, da falta de caráter e da perda da identidade, tudo dentro de um
jogo entre o real e o imaginário, onde o absurdo e a ironia dão o tom da narrativa. Em
um momento do filme, a locução adverte: “qualquer semelhança com fatos reais ou
irreais, pessoas vivas, mortas ou imaginárias, é mera coincidência”.
(a) (b)
Figuras 10 - O jogo entre o real e o imaginário, em O bandido e em Acossado:
(a) Fotograma de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla;
(b) Fotograma de Acossado, de Jean-Luc Godard
Na análise que Ismail Xavier faz de O bandido da luz vermelha, no livro
Alegorias do subdesenvolvimento, o filme é dividido em nove blocos, interligados
18
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 23.
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através de metáforas ou de elipses. Essa divisão adotada por Xavier permite por em
pauta a questão da fragmentação, sempre apontada por Sganzerla como uma
característica primordial do cinema moderno:
Se o filme clássico pretende ser um todo indivisível e irreversível o filme
moderno, pelo contrário, baseia-se nas noções de divisibilidade da arte
contemporânea. A atual estrutura cinematográfica é fragmentária,
incompleta, barroca, fundamentando-se na independência e autonomia de
seus elementos... os filmes tendem a ser uma sucessão de quadros
independentes e momentos privilegiados sobre alguns personagens em um
importante trecho de sua existência... Um filme moderno, de certa maneira,
pode ser uma reunião de curtas-metragens diferentes; livre montagem de
momentos de euforia e momentos de depressão numa forma que vai do
tímido ao revolucionário.
19
Esse trecho foi extraído de um artigo de Sganzerla, coerentemente intitulado de
Divisibilidade, no qual o diretor define a estrutura narrativa de sua obra, que, em O
bandido, dá-se como uma sucessão de seqüências individuais, como estrofes de um
poema livre. Em um certo momento do filme, Janete Jane, a prostituta vivida pela atriz
Helena Ignês, ouve do “bandido” que ele pertence ao bando do político corrupto JB da
Silva; na seqüência seguinte, isso é anunciado como novidade, mas nunca se explica
como esse fato aconteceu. Não se busca especificar as reais relações entre o
protagonista e essa quadrilha, “a proliferação de perguntas, conjeturas, personagens,
tudo compõe um mosaico gerador de uma ambigüidade programada: o essencial é
manter à disposição do expectador uma coleção de motivos para certas ações”.
20
O cinema instintivo e visceral encantou a geração de 1960; ele se expressava,
formalmente, pelo uso que fazia da linguagem, como na Nouvelle Vague; ou,
19
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 63-4.
20
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 85.
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tematicamente, pelos personagens marginais do cinema noir norte-americano e da
geração de diretores que marcaram as décadas de 1940 e 50, como Samuel Fuller. Essa
relação sensitiva se metamorfoseava em liberdade; enquanto Godard reinventou a
narrativa com a quebra da linearidade, o cinema noir permitia a concepção de
personagens bizarros, obscuros e atormentados, fora dos padrões estéticos e existenciais
da maioria dos filmes do cinema tradicional. Essa porção instintiva do cinema sempre
foi observada de perto pela crítica de Sganzerla, e logo levada aos limites estéticos e
temáticos em O bandido.
Em um texto seu, de 1964, com o título de Câmera cínica, ele dizia: “Jean-Luc
Godard diz que, em seus filmes, tudo se passa no nível animal e ainda este nível animal
é filmado de um ponto de vista vegetal, quando não mineral. Tanto Hawks, quanto
Fuller, quanto Godard usam a câmera como objeto sensorial, o que só pode acontecer no
universo do instinto”.
21
Nesse mesmo artigo, ele diz ainda:
Pode-se observar que nos filmes destes diretores os conflitos provêm do
caráter animal das personagens, da condição animal do homem. E é por isto,
que a psicologia é relegada ao segundo plano, tornando-se impotente para
explicar este instinto (o mesmo acontece com a moral e a sociologia) [...] Não
se sabe por que o vilão é vilão, por que se tornou um marginal. Apresenta-se
apenas um fato: ele é vilão, assim como o policial é policial. Godard explora
uma situação idêntica, com humor negro em Acossado (1959), quando
Michel diz: “denunciar é normal, os delatores delatam, os assaltantes
assaltam, os assassinos assassinam, os amorosos amam”.
22
O bandido é repleto de personagens bizarros e instintivos, e o melhor exemplo
deles é o próprio “bandido”, que, a todo o momento, questiona a si mesmo – “quem sou
21
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 38.
22
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 39.
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eu?” –, e responde em seguida: “posso dizer de boca cheia que eu sou um boçal”. Em
outra situação, enquanto assiste a um filme, ele se lambuza com uma espiga de milho,
ou tenta suicidar-se bebendo uma lata de tinta, transformando-se em um clown
tragicômico. Há, também, o personagem vivido pelo ator Sérgio Mambertti, um gay
exagerado que dá receita de pudim ao “bandido” em uma de suas faces, a de um
motorista de táxi. Mas, na galeria dos bizarros, o personagem mais marcante de O
bandido é o “anão profeta” que, em uma paródia às sentenças apocalípticas do Cinema
Novo (como a indelével “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão), repete o refrão
nonsense: “quem estiver de sapato não sobra... não pode sobrar!”.
Há toda uma legião de personagens “boçais” que desfilam pela Boca do Lixo:
há o delegado idiota e o seu assistente, o político canalha e a prostituta traidora. Sobre
essa autenticidade e força do cinema autoral de Sganzerla, Ismail Xavier comenta: “O
bandido da luz vermelha confia na força do estilo. Em tudo, conta com a leitura do
expectador mediada pela matriz que elegeu. Como nos filmes de Godard referidos ao
filme noir, é pela referência ao gênero que a intriga se impõe”.
23
Há, nessa “boçalidade”, uma grande influência do cinema de José Mojica
Marins, com o seu genial “Zé do Caixão”. A poesia bruta e instintiva dos
enquadramentos de Mojica, somada à facilidade com que o diretor retratava tipos
brasileiros encantaram Sganzerla, que, assim como Mojica, encontrou no deboche e no
absurdo o caminho para um cinema visceral. Mojica foi mestre de toda aquela geração
de cine-poetas marginais, a total liberdade lingüística do cinema do mestre do terror
brasileiro foi ao encontro da proposta experimental de Sganzerla.
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Figura 11 - Fotograma do filme À meia-noite levarei sua alma (1964), de José Mojica Marins:
o grotesco no cinema do mestre do terror brasileiro
A relação entre o documentário e a ficção também é uma vertente
importantíssima para a análise do filme. O bandido apresenta um retrato interessante da
imprensa sensacionalista que atuou, pós-64, no país. Isso pode ser visto, em alguns
momentos, como um sarcástico documentário marginal, repleto de referências à forma
como essa imprensa encobria a realidade com um “véu de boçalidade”, desde a locução
radiofônica, que lembra a dos órgãos oficiais da época, às seqüências que simulam os
antigos documentários em formato de grandes reportagens.
Em suas críticas, Rogério Sganzerla dividia os cineastas em “documentaristas
da alma” e “documentaristas do corpo”:Os grandes cineastas da atualidade são, todos
eles, documentaristas: Antonioni, Resnais, Visconti (documentaristas da alma) Godard,
Losey e Hawks (documentaristas do corpo). Ou quando adotam uma ficção dão um
tratamento que pode ser definido como uma ficção documental”.
24
Os cineastas da alma
são aqueles que elevam o cinema ao mundo das idéias, quase sempre de forma
23
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 85.
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sofisticada. Já os cineastas do corpo fazem da câmera um objeto de cunho instintivo,
pelo qual o cinema flui livre, permitindo a improvisação e a soberania do momento
presente. Mas, para Sganzerla, em ambos os casos há um completo diálogo entre o
documentário e a ficção: “A grande maioria dos filmes modernos são reportagens ou
ensaios sobre uma ficção [...] O cinema moderno generalizou o apelo ao documentário.
Não existem mais documentário puro ou ficção absoluta. A dissolução dos gêneros é
outra constante”.
25
Essa teoria foi amplamente aplicada em O bandido. O filme faz questão de não
tentar ser real, como prescreve a regra da quebra do ilusionismo do cinema norte-
americano, proposta por Godard, mas, todo o tempo, ele flerta com os mecanismos que
constroem, no imaginário coletivo, as garantias do “mundo real”: a política, a imprensa
e a sociedade, todos eles, no filme, em um tom corrompido e delirante. Sobre essa tênue
fronteira entre a realidade e a ficção, que hoje é preponderante em praticamente todas as
cinematografias modernas, Sganzerla afirma, em um artigo escrito na década de 1960:
Não há situações preconcebidas, estas nascem em contato com o espaço e
tempo reais, determinados, concretos e individuais. Uma parede imprevista,
um gesto não ensaiado, um reflexo solto, são instante espontâneos e fugazes
que, registrados pela objetiva, tornam-se preciosos e vitais: são instantes da
liberdade. É o mesmo tratamento dado a seres e objetos em certos cine-
jornais que juntamente com a televisão e o documentário, influenciaram
tremendamente o cinema moderno. Estamos em pleno domínio do cinema
ensaio, gênero relativista por essência.
26
24
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 19.
25
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 24.
26
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 18.
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Outra questão importante do filme, que remete a todo o inventário teórico de
Sganzerla, é o conceito do provisório. Esse conceito pode ser entendido através de duas
vertentes que, naquele momento, são somatórias: a política e a estética. Na primeira, o
provisório passa pela questão da tortura, da ditadura, do golpe, da descontinuidade de
um processo democrático e renovador. Passa, também, pelo discurso indireto do Brasil
como um país do transitório, que não é índio, nem português, nem latino-americano,
nem hispânico, nem negro, mas que, ao mesmo tempo, é tudo isso. Um país cujos
anseios democráticos haviam sido abafados por um regime ditatorial que, naquele
momento, começava a mostrar a que tinha vindo. Quanto à questão estética, o
provisório pertence ao universo do neo-barroco, que se afirmou com inventividade na
arte experimental das décadas de 1960 e 1970, expressando-se com vigor
principalmente no cinema, na poesia e nas artes-plásticas, como na arte sensorial de
Hélio Oiticica, em suas Bólides e nos Parangolés. Era a dessacralização de uma arte que
se imaginava eterna e agora se incorporava à transitoriedade do universo cotidiano.
Sobre essa transitoriedade latente, Sganzerla disse:
Abandonando qualquer certeza, os filmes ingressam na perspectiva de um
talvez: hoje a narração é falível, incompleta e até obscura. Os personagens se
tornam ambíguos; toda a rigidez tende a desaparecer. O filme moderno
comporta inclusive defeitos técnicos. Sentimos a limitação (base instrumental
da arte barroca) destes filmes frágeis e nervosos que não ambicionam se
eternizarem.
27
Essa relação da arte com o cotidiano e o transitório marcou muito o cinema
europeu das décadas de 1950/60. Antonionni, Godard, Truffaut, todos eles
27
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 22.
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disseminaram uma torrente existencialista em seus filmes; o que fora filosofia, na
França, transforma-se em sarcasmo e ironia no cinema de Sganzerla. “Um cara como eu
só podia avacalhar”, dizia o “bandido”, como uma espécie de porta-voz do diretor. O
que fora tema para uma sofisticada e civilizada investida filosófica, no cinema francês,
foi tratado de forma mais contundente e “bruta”, no Brasil, um país do Terceiro Mundo,
vigiado por uma classe média ignorante e preconceituosa e martirizado por uma
ditadura feroz. Sobre Godard, comenta Sganzerla:
Violentamente, em Pierrot le fou Godard substitui o determinismo típico do
cinema tradicional pelas novas noções de probabilismo. Tudo é provisório. A
incessante improvisação da vida e do cinema, por parte dos personagens,
combina-se com o desejo do autor: filme aberto, contemporâneo, relativo,
não foi feito para eternizar-se; é um objeto incompleto, móvel e provisório.
28
Figura 12 - A morte persegue Ferdinand, em fotograma de Pierrot le fou
(O demônio das onze horas), de Jean-Luc Godard
28
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 51.
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Essa fugacidade atribuída a Pierrot le fou (O demônio das onze horas – 1965)
está na essência de O bandido. Até a morte do personagem central de ambos os filmes é
muito semelhante; dois anos depois do filme do cineasta franco-suíço, Sganzerla faz-
lhe, claramente, uma espécie de homenagem e, nas telas brasileiras, Jorginho, o
“bandido”, suicida-se com dinamites, a exemplo de Ferdinand, personagem central do
filme de Godard. Porém, o “bandido” se mata enrolando um emaranhado de fios
elétricos em torno do pescoço, em uma locação cercada de dejetos, enquanto Ferdinand
escolhe, como palco de sua morte, uma colina bucólica cercada pelo Mediterrâneo, em
uma cena de sublimação poética, com direito a versos de Rimbaud em narração over. O
“bandido” morre em branco e preto, em meio ao lixo, num contraste imenso com as
cores intensas desenhadas por Godard. Em vez de versos, a montagem de O bandido
intercala os planos de sua morte com um noticiário que anuncia a invasão de fuzileiros
navais. Para fechar a seqüência de absurdos, que culmina com a morte tragicômica do
“delegado cabeção”, na armadilha suicida de Jorginho, os locutores do filme anunciam:
“enquanto o bandido nacional, Luz para os íntimos, terminava sua carreira criminal com
um curto-circuito na favela do Tatuapé, eles estavam chegando do leste... Sim, naquela
tarde, os misteriosos discos voadores...”, e, num jogo de justaposição de cenas, a
montagem insere trechos de filmes de ficção.
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Figura 13 - Fotograma do filme Pierrot le fou
(O demônio das onze horas), de Jean-Luc Godard:
a morte de Ferdinand
Figura 14 - Fotograma de O bandido da luz
vermelha: a morte em preto e branco do
“bandido”
Para coroar esse espetáculo, temas de candomblé, numa referência clara a
Terra em transe, uma ironia à forma como o filme de Glauber Rocha tratava a morte
como uma saída diante da crise político-intelectual do seu personagem-chave. Apesar de
todo o humor, aparentemente sem sentido, a morte do “bandido” estava impregnada de
conotações políticas: a invasão vinda do leste, citada acima, é uma clara referência à
xenofobia comunista implantada, no Brasil, pelos militares. Sganzerla optou pelo
discurso irônico, ao contrário de Glauber, que apostava no doutrinário. Ismail Xavier
analisa com clareza essa relação:
O Pierrot de Godard, ao contrário do marginal de Sganzerla, declama
poemas, exalta a natureza, escapa do mundo urbano empacotado e ganha a
cumplicidade das vozes que aderem à sua consagração dos instantes de
liberdade... tal elevação não tem lugar no mundo da Boca, onde a errância da
personagem se dá num cenário grotesco e infernal, o mal estar da
incivilização é o sentimento dominante nesta paródia, cujo bom humor não
esconde o lado grave de sua simulação de apocalipse.
29
A figura do anti-herói, do “Zorro dos pobres”, como dizia a locução over, é
essencial na construção de O bandido. Ele pode ser visto pela perspectiva de uma
29
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 94.
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homenagem ao western, como vimos anteriormente, ou sob o conceito de anti-herói.
Esse conceito fora extensamente desenvolvido por Sganzerla em suas críticas, em dois
artigos escritos, em 1964, três anos antes da realização da película. Em suas reflexões,
Sganzerla classificava esses personagens como “heróis vazios” e “heróis fechados”.
Nesses artigos, intitulados Câmera cínica e Beco sem saída, Sganzerla teoriza em torno
da transformação da personalidade do herói no cinema moderno. Ele deixa de ser um
personagem virtuoso para ser mais complexo, ambíguo e, às vezes, amoral,
aproximando-se da figura do vilão, deixando para trás o maniqueísmo do cinema
tradicional. Ele diz, em um trecho do artigo Câmera cínica: “As personagens destes
diretores (modernos) não sabem nem possuem nada: agem; assim como nós não as
possuímos ou conhecemos, apenas vemo-las. Daí a propriedade de chamá-las de heróis
vazios”.
30
No artigo Beco sem saída, ele se dedica mais à elaboração de um estudo sobre
esses personagens, sobre essa ambigüidade espiritual que marcou aquela geração, que
fugia das vias de mão única da cultura “careta” que antecedeu à revolução cultural, e
buscava novos conceitos, novos valores, nova forma de pensar o mundo. Esses
personagens abandonavam aquela nau esquecida dos heróis perfeitos, para enveredar
em novos oceanos, os mesmos que conduziam a literatura, as artes plásticas e o cinema
por uma revolução estética: “O anti-herói, típico do pós-guerra e da guerra fria em
diante, é o herói ideologicamente nu diante da câmera e este cinema é, antes de mais
nada, o cinema da derrubada de mitos”.
31
Sob o conceito dos anti-heróis, nasciam os
30
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 39.
31
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 55.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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“heróis fechados”. Já se sabe que o herói do filme moderno recebe um tratamento
diverso do tradicional:
O filme não se dispõe a “explicar” ou definir o interior do personagem, seja
através da psicologia, psicanálise, intimismo, etc. [...] Não é possível
conhecer o seu íntimo, no máximo o que se pode fazer é olhá-lo. Chama-lo-ei
de herói fechado. Sofre crises profundas e insondáveis, que não são definidas
pelo filme [...] No filme moderno, o que acontece em relação ao herói são
erupções de facetas e temas ligeiramente insinuados... Pode-se notar que há a
predominância do desconhecido, do irracional sobre o racional, do fatalista
sobre o realista. Faltando qualquer explicação, os temas adquirem ares
ilógicos e passam a representar o absurdo do mundo contemporâneo.
32
Esses personagens carregam toda a crise de consciência que se abateu sobre o
mundo, no pós-guerra; o que viria a se tornar matéria-prima para os personagens do
cinema de vanguarda nas décadas de 1960 e 70, havia começado a mostrar a sua força
dez anos antes. Os textos de autores, como os do dramaturgo norte-americano Tenesse
Willians, somaram-se, no cinema, aos novos mitos que Hollywood ajudou a erguer,
como Marlon Brando e James Dean, incorporando essas figuras típicas da vanguarda ao
cinema clássico e ao imaginário coletivo. Era toda uma revolução cultural que se
iniciava na década de 1950, para encontrar, nas duas décadas seguintes, o seu apogeu e
decadência. No início da década de 70, toda a rebeldia iniciada na década de 50, e
transformada em contra-cultura nos 60, soa como ingênua. Na vanguarda e no
experimentalismo, principalmente no Brasil, a ruptura estética foi tomada por nuances
pessimistas, o mundo idealizado pela revolução libertária começava a ruir.
É esse contexto que dá a tônica do personagem central de O bandido,
sobrepondo o fatalista ao realista: a sucessão das tentativas grotescas de suicídio, as
32
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 41-2. Grifo do autor.
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frases desconexas, as mudanças repentinas de cenário, a quebra total da linearidade de
espaço e tempo, tudo isso leva o filme ao encontro das teorias pré-concebidas por
Sganzerla. O bandido é um exemplo claro do pensamento iconoclasta de uma geração
que, no Brasil, acuada pela censura, via-se diante do discurso irônico como uma saída
possível para disseminar suas idéias. “Um cara como eu só podia avacalhar”; através
desse monólogo interior, o personagem se faz alter ego do diretor e declama a máxima
que viria a ser uma espécie de lema daquela geração de “cine-poetas” experimentais,
representada pelo discurso brilhante de Sganzerla. “Segundo o cinema moderno não é
possível conhecer todo o interior de um personagem. Diante do herói fechado o máximo
que se pode fazer é olhá-lo. O que acontece são ligeiras erupções de facetas e temas que
o autor não impõe, não diz nada, insinua”.
33
A questão da morte não é colocada de forma catártica, no filme;
metaforicamente, ela é uma saída possível diante do absurdo. Não em uma metáfora
sofisticada da liberdade, como fizeram os franceses, em soluções dramáticas, como em
Pierrot le fou, de Godard, ou Jules e Jim (1961), de François Truffaut. A morte, em O
bandido, se concretiza de uma forma grotesca e debochada, com um humor grosseiro,
uma espécie de chanchada ao avesso, uma piada de mau gosto entre o nonsense e o
drama barato: “A fantasia suicida de Jorginho (Bandido) é antiga, se podemos crer no
que diz: Já tentei me matar quatro vezes, a primeira foi em Bauru, eu tinha doze anos”.
34
Ainda no artigo Beco sem saída, Sganzerla explica:
33
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 60.
34
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento, 1993. p. 85.
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A construção atual diverge daquela convencionada pelo uso por que a intriga
se desenvolvia em “crescendo”... Usam a repetição constante, que não evolui
e é um eterno errar, retornar, continuar em círculo vicioso. Com este processo
o herói está preso numa sucessão circular, vale dizer, encarcerado no tempo.
A tônica dos personagens modernos é a procura da liberdade, a busca de uma
saída. Por outro lado, as condições de encarceramento variam de autor pra
autor. Alguns realizadores as aprisionam no tempo, na existência que é
sempre a repetição de idêntico processo doloroso. A liberdade dá-se com a
destruição do herói. Trata-se do tema da saída através da morte. A saída
através da morte é visualizada por um esquema plástico: o herói corre por um
caminho fechado, estreito e aprisionante até desembocar em espaço aberto, a
saída, onde encontra a morte.
35
Aqui, voltamos a pensar acerca de uma questão do neo-barroco: a morte como
saída literal, nos heróis de ideologia castrada, e metafórica, como representativa dos
ideais de liberdade. Assim como no Barroco, a arte encontrava um período de trevas no
cenário social, as revoluções políticas foram asfixiadas e os ídolos libertários
começavam a ser suplantados por uma onda individualista que se abateria sobre a
juventude. No Brasil, a censura intelectual e o terror da tortura guiavam a criação ao
encontro de tonalidades do trágico, no caso de O bandido, genialmente permeadas pela
leveza e sagacidade do humor e da ironia. “Como pode-se observar, o herói desenvolve
uma trajetória infinita, sem alcançar a saída (a morte). Está aprisionado no tempo,
condenado a suportar passivamente a existência: a tragédia paralisada”.
36
Todos esses conceitos, analisados em O bandido da luz vermelha, ora se
reafirmam ora se renovam na filmografia de Rogério Sganzerla. Ele continuou a fazer
crítica em toda a sua realização cinematográfica, em textos que somam mais de
quinhentas páginas deixadas em seu legado. Seus filmes, em especial O bandido, o mais
35
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 43.
36
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limites, 2001. p. 45. Grifo do autor.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
Capítulo 4
O bandido da luz vermelha – filme-experimento
Do paraíso da crítica ao inferno da criação
100
genial e arrebatador deles, traduzem o ideal de um cinema que ele reverenciou ao longo
de sua trajetória.
Sganzerla fez do seu cinema um exercício de experimentação e discurso
imagético, libertando a nossa cinematografia de um discurso literário, para transportá-la
ao reino da liberdade poética. Rogério Sganzerla fazia “filmes de cinema”, como ele
ironizou nos letreiros iniciais de O bandido, zombando dos velhos conceitos de “cinema
de arte”, que a intelectualidade teimava em cercear em correntes e escolas. Rogério
Sganzerla soube pensar e fazer cinema como poucos, somando o potencial das palavras
ao das imagens, para desvendar um universo que, para ele, vivia em permanente
invenção, e pelo qual ele trilhou sua vida. Em seus momentos finais, em um hospital,
lutando contra o câncer, Sganzerla resumiu a força do cinema em sua vida, dizendo: “Só
uma câmera poderia me salvar”.
Figura 15 - Fotograma de O bandido da luz vermelha: o cinema observa o cinema
CONCLUSÃO
Quando fez O bandido da luz vermelha, Rogério Sganzerla não tinha a
dimensão do que o filme representaria para o cinema e para a cultura brasileiros. Como
bem define Julio Bressane, sobre essa “irresponsabilidade” pelas ressonâncias da obra
de arte, “não somos nós que fazemos a arte, e sim, ela é quem nos faz”. Aquele cineasta
de pouco mais de 23 anos lançou, em seu primeiro longa-metragem, todos os dados
conceituais que colheu em uma vida dedicada à reflexão e ao pensamento artísticos,
criando, de forma absolutamente sofisticada, um dos filmes mais importantes da
cinematografia experimental realizada em todo o mundo.
Apesar de guiado por um instinto visceral, o filme mantém seu frescor e força,
ao longo dos quase quarenta anos que sucedem o seu lançamento. O bandido aglutina
em si a experiência de uma arte centenária, preservando o melhor da narrativa herdada
do cinema clássico, somada a elementos do cinema moderno. Essa inspiração na
vanguarda cinematográfica mundial concentra-se, especialmente, em dois diretores,
Jean-Luc Godard e Orson Welles, dois referenciais para toda a história da narrativa
cinematográfica moderna.
Essa riqueza de referências advém, principalmente, da brilhante e atenta
trajetória de Sganzerla na crítica e no pensamento cinematográfico, desenvolvido antes
da sua realização como diretor. A exemplo dos grandes mestres do cinema do século
XX, Rogério Sganzerla aprendeu a filmar através do pleno exercício da cinefilia.
Sua pesquisa percorre o insólito território da “transcriação”, da transformação
de idéias e textos em imagens. Essa “tradução” resultou em O bandido, um filme que
transcendeu a teoria para reafirmá-la, com mais rigor, em uma obra absolutamente
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Conclusão
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original e única. Ao mesmo tempo em que Sganzerla bebe nas matrizes da narrativa do
cinema moderno europeu e norte-americano, ele rompe com todas elas para reinventar
uma nova estética, autenticamente brasileira.
Como foi visto no primeiro capítulo desta pesquisa, a linguagem
cinematográfica foi construída e se consolidou ao longo do exercício de seus
realizadores. O cinema nasceu como uma atração de feira, para se afirmar, mais tarde,
como obra de arte. Essa evolução estética só foi possível por meio das experiências
lingüísticas dos realizadores, somadas ao trabalho de críticos e teóricos, representados,
principalmente, por cineastas ávidos por entender, afirmar e sofisticar aquela
linguagem.
Rogério Sganzerla pertenceu a uma geração que aprendeu a filmar pela prática
de uma cinefilia incessante, quando os cineclubes eram responsáveis pelo surgimento de
toda uma geração de diretores, não só no Brasil, mas, também de forma profícua, na
Europa, principalmente na França, onde jovens diretores tiveram o cinema clássico
como escola, para, a partir dele, romper com os cânones estabelecidos por aquela
narrativa e reinventar novas formas de expressão cinematográfica.
O cinema é uma arte jovem que, diferentemente das outras, nasceu popular,
assumindo para si, somente por volta dos anos de 1960, uma aura intelectual,
consolidando-se como uma arte que se permite a ambigüidade de ser hermética e erudita
e, ao mesmo tempo, burlesca e popular. Essa possibilidade de transcender limites
sociais e intelectuais fez do cinema um veículo de idéias em potencial, e é essa vertente
conceitual que atraiu centenas de realizadores geniais, que encontraram ali um meio de
expressão pleno. Desde o seu nascimento, o cinema acompanhou de perto as evoluções
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e revoluções sociais e, no Brasil, na década de 1960, as telas se tornaram painéis de
idéias incendiárias.
No segundo e terceiro capítulos desta pesquisa, pôde-se observar como o Brasil
das décadas de 20 e 60 passeia pelos fotogramas de O bandido – no caso da década de
20, não um Brasil histórico, mas estético, o Brasil enquadrado pelas lentes modernistas
de Oswald de Andrade, referência definitiva da obra de Sganzerla.
A presença oswaldiana em O bandido é evidente: trechos completos da obra de
Oswald de Andrade foram recriados no filme. A ironia, como uma forma de se
questionar a mordaça estética e política da esquerda, foi uma inspiração que o diretor foi
buscar nos mestres modernistas, para transformá-la em uma das preciosidades
lingüísticas do longa. Essa inspiração se resolve de forma genial na solução estética que
o filme propõe. A narrativa soma uma locução radiofônica a outros elementos da mídia
característica do final da década de 1960, como os cine-jornais e a imprensa, fazendo de
O bandido um importante registro documental do seu tempo, não com o intuito de ser
realista, mas na tentativa de, ironicamente, questionar a forma sensacionalista e velada
como a imprensa reagia à censura.
Com esses subterfúgios, Sganzerla cria um jogo em que realidade e ficção
percorrem a mesma trilha. O próprio argumento do filme já anunciava essa opção; o
fato de o roteiro ter sido inspirado em um personagem real, que foi reinventado pelo
diretor, já antecipa essa ambigüidade que o filme carregaria, denunciando um universo
em desconstrução, onde “o que está errado é o que está certo”.
O bandido traduziu a irreverência da literatura de Oswald de Andrade, a arte
sensorial de Hélio Oiticica e o caldeirão cultural pós-Tropicália, em um grande painel
cultural, regido pela linguagem cinematográfica. Além dessas referências, há a
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declarada admiração pelo gênero cinematográfico desprezado por gerações e gerações
de intelectuais, a chanchada. Sganzerla inspirou-se no humor e na ironia da Atlântida,
para criar um discurso certeiro contra a repressão intelectual e política daquela época.
O filme dialoga plenamente com elementos emblemáticos da cultura
experimental brasileira, mas, com uma naturalidade que permitiu que essa sofisticação
tivesse alcance popular, fazendo de O bandido um dos filmes mais assistidos do seu
tempo. A idéia de “biscoito fino”, inventada por Oswald de Andrade, teve, em O
bandido, um dos seus exemplares mais bem sucedidos. Essa busca pela comunicação
com o público era fundamental naquele momento em que, no Brasil, a intelectualidade
pensava o cinema como um instrumento revolucionário.
Apesar de impregnado por elementos pertinentes àquele momento em que foi
produzido, o emblemático ano de 1968, O bandido é absolutamente atemporal, uma vez
que o retrato que o filme pinta de uma grande cidade em decadência, atormentada por
personagens boçais, políticos corruptos, uma polícia ineficiente e outros personagens do
submundo, ainda se sustenta sobre esses pilares, na contemporaneidade. Essa
atemporalidade e frescor do filme registram-se também no terreno estético; as soluções
lingüísticas de O bandido são ainda uma referência narrativa absolutamente original nos
dias de hoje, quando o cinema brasileiro se restringe, na maioria das vezes, a uma
diálogo pragmático com a linguagem.
O terceiro capítulo desta pesquisa aprofunda as questões históricas que fizeram
da transição dos anos de 1960 para os 70, um tempo determinante para a cultura e a
estética mundiais, iniciando-se, ali, uma revolução comportamental em todo o planeta.
No Brasil, a dicotomia entre a arte experimental e a arte engajada traçou os rumos da
produção cultural do país. Apesar de datado, o conflito entre as idéias doutrinárias do
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Cinema Novo, e as libertárias, da vanguarda, é absolutamente significativo para que se
entenda a força narrativa de O bandido. O filme foi um marco da ruptura entre aquela
estética criada pelo Cinema Novo e um novíssimo cinema que começava a surgir. Essa
substituição de emblemas – que transitam da fome para o lixo – não foi apenas uma
revolução estética. O discurso político implantado por O bandido era também vigoroso
e genial, e pôde, através da ironia, falar mais alto ao público do que as idéias alegóricas
e herméticas propostas pelo Cinema Novo, no final da década de 1960.
O filme é também um grande painel da vanguarda brasileira, naquele
momento. Ele dialoga com a música tropicalista e com as artes plásticas, absorvendo o
conceito de marginalidade proposto por artistas como Hélio Oiticica; com a literatura
experimental de Torquato Neto, com o conceito de kitsch que dessacralizava a arte,
através de criações geniais disseminadas pela Pop Art. Enfim, O bandido pode ser visto
também como um grande caleidoscópio da atmosfera criativa que fez daquele período,
que marcou a passagem entre as décadas de 60 e 70, um dos mais férteis da cultura
brasileira.
O último capítulo deste trabalho buscou identificar todas essas influências,
buscando perceber como elas se fundem em um roteiro riquíssimo. Apesar de parecer
ter sido construído livremente, O bandido foi filmado a partir de um roteiro decupado
detalhadamente, com os diálogos impressos, literalmente, como estão no filme. Apenas
a banda sonora do longa-metragem foi recriada na montagem. Cada referência do filme,
cada diálogo, cada plano foi pensado minuciosamente pelo seu diretor.
Esse capítulo dedicou-se ao estudo narrativo de O bandido, na tentativa de
identificar o que o filme representa para a linguagem cinematográfica. Ali estão
“impressos” conceitos elaborados por Sganzerla, as teorias formuladas nos anos em que
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se dedicou à crítica e à pesquisa. Alguns desses conceitos preconizam, esteticamente, o
que o audiovisual seria décadas depois: a proximidade quase híbrida entre ficção e
documentário, e a procura do cinema independente pela simplicidade estética e
barateamento dos custos de produção – com equipes pequenas, iluminação natural,
câmera na mão, enfim, o que Sganzerla previa e aplicou em seu primeiro longa-
metragem – seria modelo para toda uma produção que arrebata o público em
cinematografias de todo o mundo no século XXI.
Esse capítulo final também identifica a presença de duas referências
cinematográficas essenciais para O bandido: Orson Welles e Jean-Luc Godard.
Orson Welles representou, para o cinema mundial, uma revolução estética,
com Cidadão Kane. Pode-se dizer que há o cinema antes e depois de Kane. O diretor
aplicou, no filme, movimentos de câmera e outros elementos lingüísticos que
imprimiram as tintas da modernidade no cinema. A forma como Welles retratou a
decadência da sociedade burguesa norte-americana, somada à crítica ao poder
inescrupuloso das grandes esfinges do século XX, como a mídia, significou uma
guinada estética para a história do cinema. Cidadão Kane é um filme completo, dono de
uma narrativa sofisticada, que conseguia transgredir a narrativa clássica e, ao mesmo
tempo, usar o que ela herdou de melhor do seu mentor, D. W. Griffith.
Jean-Luc Godard também representa um divisor de águas para a história do
cinema; a quebra definitiva e “despudorada” da linearidade, a sofisticação intelectual, a
rebeldia estética e a liberdade plena do diretor conquistaram toda a geração de jovens
realizadores que sucederam os primeiros sopros da Nouvelle Vague. Os dois diretores
mereceram homenagens explícitas em O bandido, com claras e assumidas referências a
momentos indeléveis da cinematografia de ambos.
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De certa forma, o quarto capítulo sintetiza a idéia central deste trabalho: a
investigação da aplicação teórica dos conceitos do artista Rogério Sganzerla em um
filme que se eterniza como o mais emblemático de sua trajetória. O cineasta conseguiu,
“antropofagicamente”, absorver e transformar não só o referencial estético que
construíra para si, mas o espírito libertário de um cinema que se permitia todas as
possibilidades de linguagem.
Rogério Sganzerla experimentou, em seu primeiro longa-metragem, fotograma
a fotograma, quadros, seqüências e movimentos de câmera que ele aprendeu a amar nos
mais de vinte anos dedicados à crítica de cinema.
Para ele, o cinema era a observação da vida em pulsação. Quando flerta com
o documentário, é esta nuance que ele persegue, a da realidade em seu momento, a
verdade a vinte e quatro quadros por segundo, como definiu Godard, não a verdade de
uma realidade construída pela intelectualidade, mas a do instante em vibração,
inalcançável por outra arte que não seja o cinema. Talvez, por isso, o diretor, que foi tão
fértil no terreno literário, tenha optado pelo audiovisual como a linguagem mais
vigorosa para expressar a sua reflexão sobre um mundo sem limites. Para Sganzerla, o
cinema é, antes de tudo, um elemento perturbador, transformador da ordem, catalisador
da vida.
“O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema –
como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso
sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse
país, tudo é possível e, por isso, o filme pode explodir a qualquer momento.”
Rogério Sganzerla, maio de 1968
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O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
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Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. X, n. 2. 2. semestre/1989, USP.
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O BANDIDO DA LUZ VERMELHA: POR UM CINEMA SEM LIMITE
Roberta Canuto
116
WELLES no Brasil. Videopress, Belo Horizonte, [s/d].
Entrevista com Júlio Bressane, 02, abr. 1995, em seu apartamento, no Leblon, Rio de
Janeiro (RJ).
Entrevista com Júlio Bressane, set. 1998, no Usina Unibanco de Cinema, Belo
Horizonte (MG).
Entrevista com Júlio Bressane, nov. 2003, no Hotel Nacional, Brasília (DF).
Entrevista com Rogério Sganzerla, out. 1998, no Hotel Nacional, Brasília (DF).
Entrevista com Rogério Sganzerla, nov. 2001, no Hotel Nacional, Brasília (DF).
Entrevista com Neville de Almeida, jan. 2006, Arpoador, Rio de Janeiro.
Entrevista com Ivan Cardoso, 01, abr. 1995, em seu flat, no Leblon, Rio de Janeiro, 01,
abr. 1995.
Entrevista com Guará Rodrigues, 29, abr. 1995, no Usina Unibanco de Cinema, Belo
Horizonte (MG).
Entrevista Ismail Xavier (via e-mail), mar. 2005.
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117
ANEXO
Manifesto de Rogério Sganzerla
“Cinema fora da lei”
1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários
gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial,
comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade
(Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett,
Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).
2 – O bandido da luz vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões
metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem
não pode fazer nada, ele avacalha.
3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.
4 – Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.
5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais.
6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da
montagem.
7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa
dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente
banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo –
acadêmico.
8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings.
9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo
exterminador.
10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas Ray.
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11 – Porque o que eu queria mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos
personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as
leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a
sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque
entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus
personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro;
desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do
Caixão e pelos párias de Barravento.
12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando
os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand.
É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política
e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo.
13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço
total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas,
na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a
instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos
nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os
personagens medrosos. Nesse país, tudo é possível e, por isso, o filme pode explodir a
qualquer momento.
Rogério Sganzerla, maio de 1968
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