Download PDF
ads:
WANDER LÚCIO ARAÚJO QUINTÃO
O APRENDIZ DE FEITICEIRO
WALT DISNEY E A EXPERIÊNCIA NORTE-AMERICANA NO
DESENVOLVIMENTO DA EXPRESSÃO CINEMATOGRÁFICA DO
CINEMA DE ANIMAÇÃO
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
WANDER LÚCIO ARAÚJO QUINTÃO
O APRENDIZ DE FEITICEIRO
WALT DISNEY E A EXPERIÊNCIA NORTE-AMERICANA NO
DESENVOLVIMENTO DA EXPRESSÃO CINEMATOGRÁFICA DO
CINEMA DE ANIMAÇÃO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de
Mestre em Artes.
Área de concentração: Arte e Tecnologia da Imagem.
Orientador: Prof. Dr. Heitor Capuzzo Filho
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2008
ads:
Quintão, Wander Lúcio Araújo, 1964-
O aprendiz de feiticeiro: Walt Disney e a experiência norte-
americana no desenvolvimento da expressão cinematográfica do cinema
de animação / Wander Lúcio Araújo Quintão. – 2008.
267, [4] f. : il.
Orientador: Heitor Capuzzo Filho
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais,
Escola de Belas Artes, 2007.
1. Cinema de animação – História – Teses 2. Desenho animado –
História – Teses 3. Disney, Walt, 1901-1966 – Crítica e interpretação –
Teses 4. Animação (Cinematografia) – Teses I. Capuzzo, Heitor, 1954-
II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes
III. Título.
CDD: 778.5347
Para meu filho, Gustavo
os meus pais, Maria e Rubem
e os irmãos Maíza, Eliane e Alisson.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Heitor Capuzzo, orientador desta pesquisa e de grande parte de meu
pensamento sobre o cinema e o seu efeito expandido, por sua amizade e
generosidade, por sua disponibilidade, e por tornar acessível o acervo filmográfico e
bibliográfico do mídia@rte e também o seu acervo particular.
À Prof
a
. Ana Lúcia Andrade, pelo exemplo, por seus ensinamentos, sua amizade e por
sua generosidade sempre.
À Prof
a
. Érika Savernini, por sua amizade, pelo olhar poético e crítico sobre o cinema e
sobre seus alunos e amigos.
À Prof
a
. Lucia Pimentel, pelos ensinamentos, pela amizade, carinho e por ter me
apresentado o caminho da pesquisa em artes.
Ao Prof. Evandro Lemos da Cunha, pela primeira e estimulante leitura do primeiro
capítulo deste trabalho, ao lado da Prof
a
. Lúcia Pimentel, por sua generosidade e
disponibilidade.
Ao Prof. Vlad Eugen Poenaru, por sua amizade, seus ensinamentos e sinceridade,
sempre generosos.
Ao Paulo Barbosa, meu colega de mestrado e amigo, por sua valiosa contribuição.
À Zina Pawlowski de Souza e Edmea Pizzani, pelo auxílio e o carinho em todas as
horas.
À todos os meus amigos e colegas, pela presença, sentimentos e pensamentos, tão
valiosos e tão generosamente compartilhados.
O mundo dos desenhos animados é aquele de nossa
imaginação, um mundo no qual o sol, a lua, as estrelas e
todas as coisas vivas obedecem às nossas ordens. Nós
recolhemos um pequeno personagem de nossa imaginação
e, se ele torna-se desobediente, nós o suprimimos com um
golpe negligente de borracha. Nossos materiais são tudo
aquilo que o cérebro pode imaginar e que a mão pode
desenhar, toda a experiência humana: o mundo real da paz
e da guerra e os mundos de sonhos, a cor, a música, o som
e, sobretudo, o movimento. É uma atividade fascinante, mas
para explicá-la devemos falar de pinos e de folhas de
exposição, de quadros e de croquis, de tempos de base e de
sessões na caixa de suor, de tempos acústicos e de
osciladores de audiofreqüência.
Também a história do
desenho animado é desde um imenso emaranhado de
dados.
Walt Disney
RESUMO
Analisa a contribuição de Walt Disney e de seus colaboradores no desenvolvimento da
expressão cinematográfica do cinema de animação, a partir da elaboração do
panorama histórico, técnico e estético do filme animado. O período estudado abrange
o início do século XX, na Europa, até o final da década de 1930, nos Estados Unidos
da América, desde o surgimento das técnicas rudimentares de animação, com os seus
descobridores e principais divulgadores, até os curtas-metragens animados pelos
estúdios e realizadores norte-americanos das décadas de 1910 a 1930,
principalmente Walt Disney, desde os anos iniciais de sua formação até 1937. Objetiva
compreender e definir a influência e a participação dos principais nomes envolvidos no
aprimoramento do desenho animado, principal técnica empregada pelos estúdios
norte-americanos. Procurou-se manter uma seqüência cronológica, base para a
análise de filmes representativos, considerados essenciais para o entendimento do
desenvolvimento e das mudanças técnicas e estéticas na arte do filme animado.
Examinaram-se filmes representativos produzidos nas primeiras quatro décadas do
século XX, analisando algumas de suas principais inovações e confrontando as
observações com as críticas de realizadores e estudiosos da história do cinema de
animação. O foco principal da pesquisa é a transposição da linguagem clássica do
cinema para a modalidade do cinema de animação, principalmente no desenho
animado. Fato que se deu, com maior ênfase, a partir da série Silly Symphony, da
Disney, alicerce para a elaborada revolução técnica e estética responsável pela
experimentação e mudanças que possibilitaram o desenvolvimento dos longas-
metragens de animação do estúdio. Por isso, a análise dedicada a esse período
histórico da Disney é a chave para a compreensão do estilo de animação desenvolvido
pelo estúdio e que se tornou um padrão de qualidade da indústria cinematográfica do
filme animado. Dentre as considerações finais, destaca-se a necessidade de se
propiciar uma melhor educação em artes visuais e audiovisuais, objetivando a
formação de um espectador de filme animado mais consciente e esteticamente
preparado para a fruição desta arte. A qual se evidencia como imprescindível quando
se visa à formação de mão-de-obra especializada para o aprimoramento e expansão
do cinema de animação do Brasil.
ABSTRACT
THE SORCERER’S APPRENTICE: WALT DISNEY AND THE NORTH AMERICAN
EXPERIENCE IN THE DEVELOPMENT OF THE CINEMATOGRAPHIC
EXPRESSION OF ANIMATION MOVIES.
This work analyzes Walt Disney's and his collaborators’ contribution to the
development of cinematographic expression of animation movies, from the elaboration
of the historical, technical and aesthetical panorama of animated film. The time frame
studied includes the beginning of the twentieth century in Europe, until the end of the
1930s in the United States of America, from the appearance of the rudimentary
techniques of animation, with their creators and main supporters, the animated short
films made by the north american studios and enterprisers from the 1910s to the
1930s, mainly Walt Disney, from his early years until 1937. The aim of this work is to
understand and to define the influence and the participation of the main names
involved in the improvement of animated drawing, a main technique used by north
american studios. We tried to maintain a chronological sequence, as a base for the
analysis of representative films which are considered essential for the understanding of
the development and of the technical and aesthetical changes in the art of animated
film. Representative films produced in the first four decades of the twentieth century
were examined, some of their main innovations were analyzed and the observations
were confronted with the critics of enterprisers and scholars. The main focus of the
research is the transposition of the classic language of the movies into the language of
animation, mainly in cartoons. This movement started, with larger emphasis, with
Disney’s Silly Symphony series, which was the foundation for the elaborated technical
and aesthetical revolution responsible for the experimentation and the changes that
made the development of studio’s animation films possible. Therefore, a dedicated
analysis to that historical period of Disney is the key for the understanding of the
animation style developed by the studio, which turned into a modal of quality of the
cinematographic industry of animated film. Among the final considerations, the need to
provide a better education in visual and audiovisual arts stands out, aiming to educate
the spectators into being more conscious and more aesthetically prepared to
experience, an evidently indispensable characteristic when the improvement of skilled
labor formation is sought along with the expansion of animated movies in Brazil.
SUMÁRIO
1 Introdução......................................................................................1
2 A Invenção do Cinema de Animação ........................................... 8
3 O Nascimento da Indústria do Desenho Animado........................59
4 Disney: as Primeiras Notas de uma Sinfonia Silenciosa ...........117
5 Silly Symphonies: Nasce a Narrativa Clássica de
Walt Disney ................................................................................164
6 Considerações Finais ................................................................236
Referências ..............................................................................257
Anexo 1 Filmografia .......................................................... 263
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
001 Edwin G. Lutz – “The Lighting Sketcher” (LIFE, 1897).
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 49.
002 Birt Acres: Peinture à l’envers, com Tom Merry (Inglaterra, 1898)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 51.
003 Georges Méliès : Le Voyage Dans La Lune (França, 1902).
004 Blackton: The Enchanted Drawing (EUA, 1900)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 53.
005 Blackton: Humorous Phases of Funny Faces (EUA, 1906)
006 Blackton: The Haunted House (EUA, 1907)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 15.
007 Segundo de Chomón: O Hotel Elétrico (França, 1908)
008 Segundo de Chomón: Le Théâtre de Petit Bob (França, 1909)
009 Segundo de Chomón: Sculpteur Moderne (França, 1908)
010 Arthur Melbourne Cooper: Dreams of Toyland (Reino Unido, 1908)
FONTE – BENDAZZI, p. 41; CRAFTON, 1993, p. 224.
011 Walter R. Booth: The Sorcerer’s Scissors (Reino Unido, 1907)
012 Emile Cohl com bonecos do filme Le Tout Petit Faust (França, 1910)
013 Projeto de bonecos articulados para Le Peintre néo-impressionniste (França,
1910) FONTE – CRAFTON, 1993, p.77.
014 Emile Cohl : Le Cauchemar de Fantoche (França, 1908)
FONTE – LO DUCA, p. 19.
015 História em quadrinhos de McCay - Little Sammy Sneeze (1904)
016 Daumier - Les Poires (França, 1834)
FONTE – GOMBRICH,
017 Edison – The Sneeze (EUA,1899)
018 Winsor McCay - Petit Sammy Eternue (1906)
FONTE: COCONINO
019 Muybridge , "Pandora" saltando um obstáculo (1887)
FONTE: DOVER PUBLICATIONS
020 Winsor McCay – Petit Sammy Eternue (1906)
FONTE: COCONINO
021 Winsor McCay - Little Nemo in Slumberland (EUA, 1911)
022 Winsor McCay - Little Nemo in Slumberland (EUA, 1911)
023 Winsor McCay - Como um Mosquito Opera (EUA, 1912)
024 Winsor McCay - Gertie the Dinosaur (EUA, 1914)
025 Winsor McCay - Gertie the Dinosaur (EUA, 1914)
026 Winsor McCay – Gertie the Dinosaur (EUA, 1914)
027 Emile Cohl – desenho de personagem em movimento sucessivo e em perspectiva.
FONTE – LO DUCA, p. 23.
028 Winsor McCay - O Naufrágio do Lusitânia (EUA, 1918)
029 Winsor McCay - The Centaurs (EUA, c. 1918-21)
030 Winsor McCay: Desenhos com marcas de registro (cross-hairs) de Gertie the
Dinosaur (EUA, 1914).
031 Desenhos de Bill Nolan ilustrando o Slash System: cada pose de desenho
recortado é sobreposto ao cenário a cada exposição.
032 Raoul Barré (Edison): Animated Grouch Chasers (EUA, 1915).
FONTE – BENDAZZI, p. 18.
033 Raoul Barré (IFS): The Phable of de Phat Woman (EUA, 1916).
034 Earl Hurd (Bray): Bobby Bumps starts a lodge (EUA, 1916).
035
Paul Terry – amostra de realizações, como artista, roteirista ou produtor de 1915 a 1966.
036 Van Beuren Studio: Tirinha do personagem “Cubby Bear” para promover os
cinemas da RKO (1934).
037 Van Beuren Studio: Tom and Jerry
038 Fleischer Studio: Rotoscópio. FONTE: FLEISCHER, 2005.
039
Max Fleischer : Ilustração integrante do pedido de patente do Rotoscópio, de 1917.
040 Max e Dave Fleischer : Koko , o palhaço
041
Blackton - Humorous Phases of Funny Faces (EUA, 1900). FONTE: MALTIN, p. 02.
042 Max e Dave Fleischer: The Old Man of the Mountain (EUA, 1933).
043 Ub Iwerks – The Headless Horseman (EUA, 1934).
044 Pat Sullivan e Otto Messmer – Felix Saves the Day (EUA, 1922).
045 Max e Dave Fleischer - Bedtime (EUA, 1923).
046 Winsor McCay – The Pet (EUA, 1921).
047 Max Fleischer - Pedido de Patente do Processo 3D – Detalhe.
048 Max e Dave Fleischer – Poor Cinderella (EUA, 1934).
049 Max e Dave Fleischer – Poor Cinderella (EUA, 1934).
050
Max Fleischer – Artigo sobre processo 3D revista Modern Mechanix, de Julho de 1936.
051 Max Fleischer – Artigo sobre processo 3D da revista Popular Science Monthly,
de Novembro de 1936.
052 Max Fleischer – Little Swee'Pea (EUA, 1936).
053
Max Fleischer – Detalhe do mecanismo do processo 3D (Popular Science Monthly).
054
Max Fleischer – Detalhe do mecanismo do processo 3D (Popular Science Monthly).
055 Max Fleischer – Vista esquemática do processo 3D do Fleischer Studio.
056
Max Fleischer – Detalhes do artigo sobre o processo 3D (Popular Science Monthly).
057 Max e Dave Fleischer : o mecanismo do Bouncig Ball.
058 Fleischer Studio – Preparação para gravação de um episódio de bouncing ball -
da direita para esquerda: Chas Sheltar, Louis Fleischer e Max Fleischer. FONTE:
FLEISCHER, 2005.
059 Fleischer: Rudy Valle Melodie (EUA, 1932).
060 Sullivan Studio: O gato Félix, de 1919 ao inicio dos anos 1930.
061 Equipe da Kansas City Ad Service, Disney está sentado sobre o corrimão de
tijolos, à direita. Ub Iwerks é o sétimo a partir da direita. À direita, Disney no
estúdio de Kansas City. FONTE – FINCH, p. 13.
062 Disney - Título, letreiros iniciais e personagens de The Four Musicians of
Bremen (EUA, 1922).
063 Disney Laugh-O-Grams – The Four Musicians of Bremen (EUA, 1922)
064 Sullivan e Messmer – Felix Saves the Day (EUA, 1922).
065 Animador Leon Searl - Krazy Kat and Ignatz Mouse at the circus (EUA, 1916):
Criação de George Herriman
066 Disney trabalhando no estúdio Laugh-O-Grams, 1922. FONTE – FINCH, p. 15.
067 Disney – Virginia Daves em Alice’s Day at Sea (EUA, 1923).
068
A equipe de Disney com a atriz Margie Gay, que interpretava Alice.
FONTE – FINCH, p. 16
069 Margie Gay em Alice the Fire Fighter (EUA, 1926).
070 Disney – Seqüência de Alice Chops the Suey (EUA, 1925).
071 Disney – Detalhe de cena de Bright Lights (EUA, 1928).
072 Disney – Detalhe de cena de Alice’s Wonderland (EUA, 1922).
073 Disney – Detalhes de seqüência de Crazy Plane (EUA, 1928).
074 Disney – Detalhes de seqüências de Trolley Troubles (EUA, 1927).
075 Disney – Detalhes de seqüências de Plane Crazy (EUA, 1928).
076 Disney – Oh, What a Knight (EUA, 1928).
077 Disney – The Gallopin’ Gaucho (EUA, 1928).
078 Disney – Detalhes de cena final de The Gallopin’ Gaucho (EUA, 1928).
079 Warner – Première do filme The Jazz Singer (EUA, 1927).
080 Disney – Detalhe de Steamboat Willie (EUA, 1928).
081
Disney – Folha de continuidade de Steamboat Willie
(EUA, 1928). FONTE – FINCH, p. 22.
082
Disney – Folha de continuidade de The Carnival Boy (EUA, 1929).
FONTE – FINCH, p. 24.
083 Disney – The Barn Dance (EUA, 1928).
084 Disney – When the Cat's Away (EUA, 1929).
085 Disney – Do Outro Lado do Espelho (EUA, 1936). FONTE – FINCH, p. 37.
086 Disney – Cartaz publicitário para A Dança dos Esqueletos (EUA, 1929).
087
Salomon van Rusting – “The king is dead; Long live the king” (Alemanha, 1736).
088 Disney – A Dança dos Esqueletos (EUA, 1929).
089 Disney – The Skeleton Dance (EUA, 1929).
090
Winsor McCay – Little Nemo (1910) e Disney – The Skeleton Dance (EUA, 1929).
091 Disney – Sessão de gravação musical do estúdio Disney.
092 Dodecaedro e os Doze Princípios Fundamentais da Animação.
093 Disney – Springtime (EUA, 1929).
094 Disney – Os Pássaros e suas Penas (Birds of a Feather, EUA,1931).
095 Disney – O Patinho Feio (The Ugly Duckling, EUA,1931).
096 Disney – Só Cachorros ( Just Dogs, EUA,1932).
097 Walter Lantz – The King of Jazz ( EUA,1930).
098 Disney – Cartaz de Flores e Árvores (EUA,1932).
099 Disney – Desenho de produção: A Tartaruga e a Lebre (EUA,1934).
100 Disney – Os Três Porquinhos (EUA, 1933).
101 Disney - Desenhos de produção: The Moose Hunt (EUA, 1931) - Mickey's Pal
Pluto (EUA, 1933) - Pluto's Quin-Puplets (EUA, 1937) - Society Dog Show (EUA, 1939).
102 Disney – Antecipação que indica que Oswaldo tira um sanduíche de seu bolso.
FONTE – THOMAS & JOHNSTON, 1995, p. 52.
103
Disney – Antecipação: Pato Donald. FONTE – THOMAS & JOHNSTON, 1995, p. 52.
104 Disney – Reunião da equipe em frente a um storyboard.
THOMAS & JOHNSTON,
1995, p. 200.
105 Disney – A Deusa da Primavera (EUA, 1934).
106 Disney – A Feira dos Biscoitos (EUA, 1935).
107 Disney – Mae West e Jenny Wren: Quem Matou Cock Robin? (EUA, 1935).
108
Disney – Câmera Multiplano em uso nos estúdios. FONTE – MALTIN, 1987, p. 52.
109 Disney – O Velho Moinho (EUA, 1937).
110 Disney – O Patinho Feio (EUA, 1939).
111 Disney – Norm Ferguson: estudo de expressões para Pluto.
1
INTRODUÇÃO
O cinema de animação é uma arte que, embora centenária, ainda
precisa ser mais bem conhecida. E não apenas pelos produtores e estudiosos
das imagens. A história do cinema de animação reflete o desenvolvimento de
uma arte que ao homem a capacidade de trabalhar expressivamente com
imagens, tempo e tecnologia, produzindo uma das mais fascinantes formas de
representação da cultura contemporânea, em todos os níveis.
A escolha de um tema específico para se pesquisar, para se dedicar
quase integralmente e por um considerável período de tempo, inicia-se pela
indagação, a partir do senso comum, de que se tudo já foi dito, por que
escrever? A mesma pergunta foi feita pelo escritor mineiro Eduardo Frieiro, e é
dele também a resposta: “Tudo foi dito, mas não por nós. Cada geração
refaz a seu modo o que as precedentes fizeram”
1
. É esse entendimento capital
que anima o desenvolvimento desta abordagem, tornando-se ainda mais
necessário quando se constatam os seguintes pontos: a literatura específica
sobre o cinema de animação é ainda escassa, principalmente no Brasil. O
acesso ao livro importado es limitado pelo domínio de outro idioma,
notadamente o inglês (mas não somente). E mesmo quando ultrapassado esse
limite, o desconhecimento de uma bibliografia sica torna difícil apreender a
extensão e as características específicas do cinema de animação. Isso
distancia o estudante e o pesquisador da compreensão precisa dos conceitos e
princípios fundamentais desta área de conhecimento. Acrescente a tudo isso o
fato, também elementar, de que a literatura estrangeira apresenta-se dirigida
para as necessidades próprias dos países que representam e para os quais
são, inicialmente, direcionadas. Portanto, escrever sobre cinema e, neste caso
específico, sobre o cinema de animação, não é apenas uma questão de
1
FRIEIRO, Eduardo. Basileu. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p. 41.
2
tradução e/ou de facilitação de acesso ao conhecimento. É também uma
necessidade de expor os fatos através da nossa percepção e direcioná-los às
nossas necessidades e carências bem como às nossas qualidades e valores.
A realização de estudos e pesquisas que abordam o universo da arte e
do cinema, devido a sua extensão e sua complexidade, é sempre instigante e
desafiadora. Inicialmente, pretendia-se traçar um amplo panorama, que
incluísse desde as primeiras manifestações artísticas relacionadas à
representação da imagem e, principalmente, a imagem que representa as
ações dos homens e dos animais, passando pelos primeiros experimentos de
projeção de imagem, até o cinema de animação digital. Seriam abordados, com
certa profundidade, desde os registros rupestres até os principais nomes
envolvidos no desenvolvimento que precedeu ao surgimento do cinematógrafo,
como Athanasius Kircher e seu antológico texto Ars Magna Lucis et Umbrae (A
Grande Arte da Luz e da Sombra) e Emile Reynaud e seu Praxinoscópio,
dentre outros nomes importantes. Essa ambição foi domada pela observação,
feita pelo professor Heitor Capuzzo, de que o meu modo de escrever exigia um
detalhamento que me afastava de um espectro tão grande quanto o pretendido
inicialmente
2
. Relendo minha bibliografia básica, deparei-me com a definição
de cinema de animação dada pelo professor Marcelo Tassara
3
e, por
intermédio desses dois mestres, apreendi o foco inicial que permitiu a
concretização deste trabalho.
Decorrido aproximadamente um século, o cinema de animação continua
a se desenvolver, criando novas possibilidades como entretenimento, ciência,
tecnologia e arte. Voltar ao começo do século passado para investigar um
fenômeno que se caracterizava mais por seu apelo popular e, principalmente, a
opção de concentrar esta análise no trabalho de alguns homens, ou em grupos
formados e liderados por esses homens, mostrou-se imprescindível. E justifica-
se ao se verificar que os fundamentos e os princípios por eles desenvolvidos
são ainda a energia desta arte que soube tão bem e tão profundamente
expressar o seu primeiro século de existência.
2
Também contribuiu a existência, em língua portuguesa, de autores que consagraram textos ou livros a
esses importantes predecessores do cinema, dentre eles, Arlindo Machado (Pré-cinemas & pós-cinemas,
1997), Alberto Lucena Junior (A arte da animação : técnica e estética através da história, 2002) e
Laurent Mannoni (A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema, 2003).
3
Cf. capítulo 1, p. 10.
3
A história do cinema de animação norte-americano, especificamente do
desenho animado linha principal de desenvolvimento eleita pela indústria
cinematográfica de Nova York e de Hollywood mostra-se vibrante ao mesmo
tempo em que oferece pontos nebulosos e confusos. Muitas dessas passagens
enigmáticas são características de qualquer processo histórico, principalmente
em um meio que se notabilizou pela fragilidade do suporte, o que acarretaria a
perda da maior parte dos filmes realizados até a Segunda Guerra Mundial.
Some-se a isso a pouca consideração recebida pelo cinema de animação
como forma de arte ou de cultura popular. Deve-se destacar, ainda, que uma
das características que mais prejudicam as pesquisas que abordam as
primeiras animações (e que acontecia, talvez, por este ser considerado como
um produto comercial, mais do que artístico e cultural) é o fato de que, nos
estúdios, era praxe não definir, com muita clareza, as atribuições de cada
participante do processo. Nos anos iniciais da indústria, o animador que
aparecia como responsável pelo filme era escolhido quase ao acaso, seguindo
um sistema de crédito rotativo. Em outras palavras, todo artista entrava como
responsável por algum filme. Primeiro, pela inexistência de controle das
atribuições e funções de cada um. Segundo, porque todos os artistas
trabalhavam, de modo muito livre, nos mesmos filmes e até nos mesmos
personagens.
Conhecer o percurso do cinema de animação, suas dificuldades, seus
principais obstáculos e as soluções encontradas é essencial para entender a
evolução técnica e a importância de realizadores e estúdios que levaram ao
desenvolvimento dessa arte, que por sua agilidade e alcance tornou-se tão
característica do século XX. Conforme De Sanctis, citado por Umberto Eco:
“A retórica e a história, ou seja, as leis gerais e os elementos
sociais, são cognições preliminares que podem servir de base
a um trabalho crítico, mas ainda não são a crítica... A história
dá-nos o facto puro, o conteúdo abstracto da poesia, a matéria-
prima e inorgânica comum a todos os contemporâneos”
4
.
4
ECO, Umberto. A definição da arte. São Paulo: Martins fontes, 1986, p. 41.
4
Como afirma De Sanctis, o conhecimento histórico pode fundamentar a
crítica e esta pode tornar-se uma aliada no desenvolvimento dos profissionais
envolvidos no fazer artístico, seja como realizadores, seja como educadores ou
como estudiosos. Isso se alcança pelo domínio dos conceitos envolvidos.
Como afirma José Ortega y Gasset, citado por Edith Derdyk,
"Sem o conceito não saberíamos bem onde começa e onde
acaba uma coisa; como impressões as coisas são fugazes,
fugidias, deslizam de nossas mãos e não as possuímos. O
conceito, interligando umas com as outras, acaba por fixá-las e
aprisioná-las."
5
Ao lado da crítica, fundamentada no conhecimento histórico e prático, a
necessidade da apreensão dos conceitos relacionados às especificidades
cinematográficas do cinema de animação torna-se elementar ao
desenvolvimento técnico, artístico e estético dos profissionais que atuam nesta
área, mesmo que indiretamente.
O cinema de animação consiste numa contínua busca e numa conquista
dos animadores espalhados pelo mundo todo, desde os primeiros anos. O
desenho animado clássico é uma vertente que tem em Disney, com a essencial
participação de sua equipe, o seu mais importante realizador e desenvolvedor,
mas não o único.
Walt Disney foi um aprendiz de cinema. Ele iniciou-se, ainda no Kansas,
aprendendo através de manuais os princípios dessa magia e através dos filmes
animados que chegavam a sua cidade. Disney foi o aprendiz de feiticeiro que
se transformou no grande mestre da criação do desenho animado clássico.
Como o maestro de uma sinfônica, reuniu em torno de si os melhores artistas
disponíveis, extraindo o melhor de cada um, ao permitir que trabalhassem
juntos e em harmonia, realizando em equipe muito mais do que se realizaria
individualmente ou em pequenos grupos. De modo algum se afirma que,
individualmente ou em grupo, os animadores da Disney não se destacariam
eram (grandes) artistas e encontrariam seus próprios caminhos e suas próprias
respostas. Mas Disney deu a todos, inclusive a ele próprio, a possibilidade de
5
DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo:
Scipione, 1994, p. 82.
5
realizar algo impensável para a sua época: uma obra desta grandeza e
importância que, mesmo após tantos estudos realizados, ainda oferece
muitas possibilidades e desafios, necessários para uma compreensão mais
ampla, não apenas do trabalho do próprio estúdio, mas também para o
entendimento de todo o cinema de animação.
O cinema de Walt Disney é essencial para todos aqueles que
pretendem se aprofundar no conhecimento da expressão da imagem em
movimento, como arte e como técnica, principalmente aquelas imagens criadas
artificialmente pelo artista e que têm em si a síntese da expressão humana.
Isso é feito através de representações que conseguem, como a música,
alcançar elementos impossíveis de serem atingidos a não ser por determinados
e específicos meios, no caso, pelo cinema de animação – uma arte que
possibilita mais um caminho para a compreensão da alma humana. O filme
animado é substanciado pela imagem em movimento, do quadro-a-quadro ou
do pixel, sempre inerente e dependente do tempo para ser criado e para ser
usufruído. Contudo, é também capaz de parar o fluxo do tempo ao atingir o
espectador, capturado pela luz das imagens que buscam, essencialmente,
alcançar no nosso âmago, o mais profundo dos nossos sentimentos e do nosso
espírito.
Este estudo inicia-se a partir da definição do conceito de cinema de
animação, apresentando alguns dos principais nomes pioneiros e alguns de
seus esforços para o nascimento desta arte. Supõe-se que muitos nomes de
realizadores e de obras, também influentes em seu tempo, tenham se perdido
para sempre. Desse modo, o capítulo 1, “A Invenção do Cinema de Animação”,
buscou traçar um panorama dos principais nomes e influências dos primeiros
anos do cinema animado, pré-industrialização, fundamentais para a divulgação
e expansão inicial desta nova forma de arte.
O capítulo 2, O Nascimento da Indústria do Desenho Animado”,
concentra-se no estabelecimento do cinema de animação, dentro dos EUA,
mais especificamente em Nova York, durante as décadas de 1910 e 1920.
Aqui, o destacados alguns dos principais nomes precursores dessa forte e
notável indústria. Cabe observar que, como indústria e como um bom negócio
nos Estados Unidos do início do culo XX, o cinema de animação
apresentava uma grande expansão no número de pessoas e estúdios
6
envolvidos na atividade. Grande parte desses não foi mencionada no presente
estudo e outra parte considerável teve seus nomes apenas citados. Esta opção
reflete, em parte, o espaço dado a esses realizadores na bibliografia sobre
cinema de animação, mas visa principalmente atender à necessidade
específica deste estudo, que é oferecer um panorama geral para a
compreensão daquele período.
O capítulo 3, Disney: as Primeiras Notas de uma Sinfonia Silenciosa”,
introduz a participação de Walt Disney na indústria do desenho animado. Note-
se que esta divisão objetiva unicamente criar uma seqüência mais linear para a
trajetória desse artista e dos artistas ligados a ele. Historicamente, esses
artistas estão referidos também no capítulo anterior, destinado aos pioneiros da
indústria do cinema de animação. O capítulo 3 concentra-se nos filmes de Walt
Disney, desde aqueles realizados ainda em Kansas City, apresentando e
resgatando a sua importância histórica para o cinema de animação, das séries
Alice Comedies e do Coelho Oswald. O capítulo analisa também a participação
e a importância do personagem Mickey no desenvolvimento do cinema de Walt
Disney.
O capítulo 4, Silly Symphonies: Nasce a Narrativa Clássica de Walt
Disney”, como o nome indica, concentra-se no desenvolvimento da rie Silly
Symphonies e em sua importância no desenvolvimento e na consolidação de
um estilo de animação próprio que, seguramente, foi uma das maiores
contribuições de Walt Disney e de seus artistas para o cinema de animação e,
de modo geral, para a própria história do cinema: o desenvolvimento artístico e
técnico de recursos que permitiram a transposição da narrativa clássica para o
mundo do desenho animado.
Este estudo, tendo como campo uma área tão ampla, mesmo
procurando se concentrar, principalmente, na obra de Walt Disney, não
conseguiria abranger toda a extensão da obra deste cineasta. Portanto, busca-
se analisar alguns pontos importantes para a consolidação da expressão
cinematográfica específica do cinema de animação, que antecedem ou foram
contemporâneas às suas produções, mas que são fundamentais para a
compreensão de seu trabalho e tiveram repercussão na história do cinema
animado.
7
Um trabalho como este é evidentemente o resultado de uma grande
união de esforços, ações e pensamentos, dos artistas e realizadores aqui
citados e daqueles não mencionados, por razões de foco; dos estudiosos e
autores cujas obras sustentam grande parte dos conceitos aqui defendidos.
Dentre eles, os meus professores e, certamente, dos mestres dos meus
mestres, pois as idéias que aqui estão foram lapidadas pelo olhar, pelo cuidado
e pelo carinho com que ministraram suas aulas e escreveram seus livros. Sem
esquecer também dos colegas e amigos, dentro da Escola de Belas Artes, da
UFMG e também os que estão fora, em outras escolas e outras atividades,
pois, às vezes, as idéias escolhem lugares e pessoas inusitadas para
nascerem e se manifestarem.
Este estudo nasceu do desejo e compromisso de contribuir com o ensino
e a educação em arte. Penso, portanto, que poderá ser útil a professores e
estudiosos de outras áreas, também instigados a pensar sobre esta área do
conhecimento. O cinema de animação, na forma do desenho animado e,
atualmente, na forma da animação digital, é um dos primeiros meios de
interação das crianças com o mundo das imagens. A priori, não se deve julgar
determinado filme como ruim para a formação e a educação, principalmente, se
se toma-se como base apenas a sua origem industrial. Deve-se, entretanto,
conhecer ao máximo essa forma de expressão e de cultura popular, que
participa intensamente do universo infanto-juvenil e, por este motivo, necessita
ser compreendido e utilizado, como um bom aliado, através de abordagens que
contemplem a interdisciplinaridade
6
.
O conhecimento da história do cinema de animação, bem como os
conceitos envolvidos, permite não apenas perceber os aspectos culturais,
econômicos e estratégicos que envolvem esta arte, mas também fundamentar
estratégias para a utilização desse importante fator da cultura, seja do ponto de
vista dos realizadores, dos estudiosos ou dos educadores.
6
O cinema de animação não é destinado apenas ao universo infantil. E, a cada dia, a indústria tem maior
interesse em expandir o seu público alcançando todas a faixas etárias. A ênfase dada (nesta introdução) ao
público infanto-juvenil busca apenas ressaltar o valor de se compreender bem a arte da animação e aliá-la
a educação, tanto por parte da família quanto da escola.
8
1
A INVENÇÃO DO CINEMA DE ANIMAÇÃO
A importância do cinema de animação ultrapassa a questão da
determinação precisa de seu nascimento ou de sua invenção. A análise dos fatos
que definem o nascimento do filme animado torna-se essencial para ampliar o
conhecimento de todas as ligações que implicam no desenvolvimento desta arte,
que, ultrapassando todos os limites técnicos, chega ao século XXI vencendo e
propondo novos desafios. A avaliação crítica, compreendendo a análise da
bibliografia e da filmografia direcionada aos momentos de renovação
tecnológica determinantes no curso histórico do filme animado permite
demonstrar o inter-relacionamento entre a tecnologia cinematográfica, específica
do cinema de animação, e a capacidade deste em ser bem-sucedido na sua
busca por expressão e, em conseqüência, por espectadores.
As publicações atualmente existentes sobre animação destinam-se aos
realizadores, experientes ou iniciantes, sendo em grande parte procedimentos
técnicos e manuais de como fazer
1
. A literatura técnica já aparece nos primórdios
do filme animado, e mesmo antes deste, considerando-se os existentes para a
fabricação dos brinquedos ópticos. Somente após a Segunda Guerra Mundial,
quando a comunicação de massa torna-se objeto de pesquisa de vários
estudiosos, o cinema de animação passa a ser abordado como meio de
expressão, com características e valores próprios
2
. Essas abordagens de reflexão
teórica e crítica tornaram-se essenciais não apenas ao aprimoramento cnico
dos profissionais ligados diretamente à realização dos filmes, mas também a
aqueles que atuam em atividades relacionadas à cultura e à educação.
1
Deve-se notar que, em língua portuguesa, e especialmente no Brasil, o número de obras e publicações ainda
é muito reduzido, mesmo após o (aumento de) interesse criado pelas novas tecnologias, e novas mídias, que
utilizam e ampliam a área de estudo e atuação dos profissionais de cinema de animação.
2
Na introdução de seu livro (p. xv), Giannalberto Bendazzi identifica essa preocupação somente a partir da
década de 1970. Entretanto, não como desconsiderar a precedência de autores como Lo Duca (Le Dessin
Animé, Paris: Prisma, 1948) e Marie-Therese Poncet (L'esthétique du Dessin Animé, Paris: Nizet, 1952),
dentre outros.
9
Vários fatores devem ser considerados ao se deparar com as diferenças de
informações e critérios adotados no estudo do cinema, principalmente dos seus
primeiros anos. Não sendo objetos deste estudo, esses fatores devem ser
apreciados por influírem diretamente na disponibilidade e na qualidade das
informações referentes ao estudo do cinema de animação.
Arlindo Machado observa que, para o nascimento do cinema, “Qualquer
marco cronológico que possam [os historiadores] eleger como inaugural será
sempre arbitrário, pois o desejo e a procura do cinema são tão velhos quanto a
civilização de que somos filhos”
3
.
O autor endossa a demonstração de Léo
Sauvage, em L´affaire Lumière, segundo a qual
(...) as histórias do cinema pecam porque são em geral escritas por
grupos (ou por indivíduos sob sua influência) interessados em promover
aspectos sociopolíticos particulares (uma certa concepção ‘industrial’ de
cinema que, todavia, se impôs a partir da segunda década deste
século), quando não se fazem veículos de propaganda nacional-
chauvinista, privilegiando os seus” inventores (Sauvage, 1985). Mas
não é só: tais histórias do cinema são sempre a história de sua
positividade técnica, a história das teorias científicas da percepção e
dos aparelhos destinados a operar a análise/síntese do movimento,
cegas entretanto a toda uma acumulação
subterrânea, uma vontade
milenar de intervir no imaginário
4
.
A observação de Machado aponta para a necessidade de se entender o
conhecimento do homem, em qualquer área, como um bem comum que é
desenvolvido ao longo da história humana e silenciosamente fomenta a
inteligência e a criatividade, surgindo eventualmente como descoberta de um
indivíduo, de um grupo ou de povo.
Conforme Charles Solomon, historiadores de cinema acreditam que de
metade a dois terços dos filmes feitos antes de 1950 tenham sido perdidos. Para
o cinema de animação, a perda seria bem mais acentuada: “Talvez duzentos
filmes animados da era silenciosa permaneçam em distribuição. Uma fração
3
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus, 2005, p.14.
4
MACHADO, 2005, p.15.
10
mínima do que foi lançado entre 1913 e 1928. Existem mais, em arquivos e
coleções particulares, mas esses raramente são exibidos”
5
.
Neste capítulo, definem-se os conceitos e fatos que possibilitam a
compreensão dos primeiros anos do cinema de animação e sua importância
histórica determinante na apreensão dos elementos e conceitos envolvidos no
desenvolvimento das técnicas de animação, como meio de expressão de idéias,
valores e sentimentos, que se torna acessível a um número cada vez maior de
espectadores e de realizadores.
As novas tecnologias ampliam o acesso ao consumo das artes
cinematográficas, facilitam sua realização e distribuição e, em contrapartida,
exigem que os países se preparem para preencher os espaços de produção
cultural, neste caso específico, audiovisual, permitindo a formação de uma base
técnica e teórica que auxilie a compreender o fenômeno da expansão da
animação internacional, quando atinge os meios de produção cultural.
O primeiro conceito que se faz necessário para melhor compreensão desta
arte é a própria definição de cinema de animação. Marcelo Tassara assinala que
Convém deixar bem claro que existe uma nítida diferença conceitual
entre animação (no sentido mais amplo e puro da palavra) e cinema de
animação propriamente dito. Enquanto o primeiro conceito cobre
qualquer técnica que vise reproduzir a ilusão de movimento (os flip-
books
6
e os anúncios luminosos animados são bons exemplos disto), o
segundo refere-se especificamente ao emprego das técnicas
cinematográficas com esse mesmo objetivo: um caso especial de
animação.
7
A distinção assinalada por Tassara é um fundamento básico no
entendimento da arte da animação. Acrescenta-se que, além do emprego das
técnicas cinematográficas e, por extensão, de boa parte dos profissionais
5
SOLOMON, Charles. Enchanted drawings: the history of animation. New Jersey: Wings Book, 1994. p.21.
6
FLIP-BOOK: Animação simples feita através de sucessivos desenhos aplicados às bordas exteriores de um
bloco de folhas encadernado. Ao se soltar rapidamente folha a folha do bloco preso aos dedos, tem-se a
ilusão de ver os movimentos das figuras desenhadas. In: BRUZZO, Cristina. Animação. São Paulo: FDE,
1996, p. 214.
7
TASSARA, Marcelo, Das pinturas rupestres ao computador: uma mini-história do cinema de animação.
In: BRUZZO, Cristina (Coord.). Coletânea lições com cinema: animação. São Paulo, FDE. 1996, p.14.
11
envolvidos na realização dos filmes, o cinema de animação se diferencia pela
necessidade do amplo conhecimento das diversas áreas das artes plásticas e
visuais. Nesse aspecto, o cinema de animação ultrapassa as exigências do
cinema fotográfico
8
, evidenciando que, sem os domínios específicos das artes
envolvidas na realização dos filmes animados, não se concebe a estruturação da
animação como uma importante modalidade da indústria cinematográfica, seja
como entretenimento, como expressão artística ou através das novas formas de
comunicação, ensino e treinamento (internet, simuladores, jogos e outros).
Nas palavras de Charles Martin Jones - Animação não é a ilusão de vida;
é a vida
9
. Essa afirmação amplia o universo do filme de animação e aproxima do
público o sentimento de um dos seus mais notáveis realizadores, evidenciando a
importância dos estúdios Disney no desenvolvimento do filme animado, sendo
esta uma alusão ao livro The Illusion of Life: Disney Animation, dos animadores
Frank Thomas e Ollie Johnston
10
. Chuck Jones representa os realizadores e
estúdios que, através de um embate competitivo e inventivo com os estúdios
Disney, fortaleceram a animação como expressão cinematográfica e expandiram
as possibilidades do filme.
A arte da animação nasceu, a rigor, antes do cinema fotográfico e do
cinema de animação, nutrindo-se das experiências dos brinquedos ópticos e de
todos os atributos herdados de outras manifestações artísticas e gráficas, como a
caricatura e as histórias em quadrinhos, no caso específico do desenho animado.
Torna-se evidente que, como uma nova arte, ela tem que se inventar e criar as
suas próprias regras e soluções. Conforme Donald Crafton:
Mais importante que a influência das histórias em quadrinhos é uma
ligação entre os primeiros cartoons animados e um híbrido de artes
gráficas e atuação conhecido como desenhos relâmpagos”. Essa era
8
Aqui, o termo cinema fotográfico é usado como equivalente ao termo live action. Deve-se observar que,
recentemente, esse termo passou a ser usado em contraposição ao cinema digital.
9
JONES, Chuck. Chuck Jones: master of animation. Disponível em <www.chuckjones.com/bio.php>,
acesso em 16 mar 2005.
10
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. The Illusion of life: Disney animation. New York: Disney Editions.
Rev. ed. 1995, p.160. Nesse livro, esses dois importantes animadores da Disney expõem a experiência de
Walt Disney e sua equipe em desenvolver um estilo próprio de animação, que influenciou toda a história da
animação. Eram conhecidos como The nine old men- uma referência a Suprema Corte de Justiça dos EUA
- apelido dado por Walt Disney. Os outros “sete” eram: Les Clark, Woolie Reitherman, Eric Larson, Ward
Kimball, Milt Kahl, John Lounsbery e Marc Davis)
12
essencialmente uma arte dos salões vitorianos que alcançou os palcos
do vaudeville no final do século XIX. De certo modo, esse momento foi a
origem do desenho animado, porque no momento que os desenhos
relâmpagos fizeram a sua entrada nos primeiros filmes, a sua
iconografia proporcionou o mecanismo pelo qual a auto-representação
primeiro ocorreu
11
.
Esses espetáculos, conforme Crafton, continham a rmula arquetípica
da multidão de filmes dos quais os primeiros desenhos animados evoluíram:
“Havia três componentes irredutíveis”, afirma o autor, “um artista, ostensivamente
o protagonista do filme, e invariavelmente atuando como o próprio realizador do
filme, uma superfície de desenho e os desenhos, mostrados ao serem executados
pelo artista”. Crafton ainda aponta para a existência de uma estrutura narrativa
básica,
na qual o artista faz os seus desenhos e eles são dotados da habilidade
mágica para se moverem, espontaneamente mudam a própria forma, ou
se tornam "reais" (tridimensionais). Eles ainda podem tentar declarar a
sua independência do artista, irritando-o ou se recusando a serem
erradicados
12
.
Os desenhistas relâmpagos (the lighting sketcher) levaram para o cinema,
além das características já identificadas, um dos primeiros efeitos a se popularizar
no cinema live action
13
e no cinema de animação: a capacidade de transformação
11
CRAFTON, Donald. Before Mickey: the animated film, 1898-1928. Chicago: The University of Chicago
Press. 1993, p. 48. No original, “More important than the influence of comic strips is a link between the first
animated cartoons and a hybrid of graphic and performing art known as "lightning sketches." This was
essentially a Victorian parlor entertainment that took to the vaudeville stage near the end of the nineteenth
century. Here, in a sense, was the birthplace of the animated cartoon, because as lightning sketches made
their entry into early films their iconography provided the mechanism by which self-figuration first
occurred”.
12
CRAFTON, 1993, p. 48. No original, Inherent in the lightning sketch act is an archetypal formula for a
multitude of films, out of which the first animated cartoons evolved. There were three irreducible
components: an artist, ostensibly the protagonist of the film and invariably played by the filmmaker himself;
a drawing surface (sketch pad, blackboard, or canvas), always initially blank; and the drawings, shown
being executed by the artist with the appropriate implements, such as pens, brushes, and chalks. There was
also a basic narrative structure. The artist makes his drawings and they become endowed with the magic
ability to move, spontaneously change their shape, or become "real" (three-dimensional). They may attempt
to assert their independence from the artist by teasing him or by refusing to be eradicated”.
13
O termo live action é utilizado para definir o cinema tradicional, ou como o nome indica, filmes com ação
ao vivo, de atores reais (ou “de carne e ossos”).
13
das imagens, como um tipo de metamorfose. Enquanto nos primeiros efeitos
visuais do cinema fotográfico isso se conseguia pela fusão de imagens, nos filmes
de desenhista relâmpago isso se obtinha pelo registro dos acréscimos dos traços
que, pouco a pouco, iam construindo e transformando a imagem. E ainda, em
alguns casos, pelo efeito de aceleração da película.
FIGURA 001 – Edwin G. Lutz – “The Lighting Sketcher” (LIFE, 1897)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 49.
Donald Crafton aponta para uma série de ilustrações do artista Edwin G.
Lutz
14
, intitulada “The Lighting Sketcher”, para a revista Life, de 15 de abril de
1897. Nessa série, podem-se ver algumas das etapas de um pico espetáculo de
desenhista relâmpago. No primeiro quadro, a tela em branco. No segundo, o
artista desenha uma cena marítima que é transformada em um pôr-do-sol de
inverno, em uma bicicleta e finalmente em um ciclista. O espetáculo, como pode
ser visto na ilustração (Fig.001), se apoiava nas modificações do desenho
(metamorfoses), e na perícia e rapidez com que o artista conseguia obter os
efeitos através dessas pequenas alterações, como pode ser percebido pelas
posições dinâmicas do desenhista.
14
Edwin G. Lutz se tornaria o autor de um dos primeiros e mais importantes manuais de animação: Animated
cartoons: how they are made, their origin and development, de 1920. Esse livro foi a primeira fonte de
informações sobre cinema de animação para Walt Disney e Hugh Harman. Cf. BARRIER, p.37.
14
A Inglaterra inaugurou a transposição dos desenhos relâmpagos, dos
palcos para as telas do cinema, em um filme de Birt Acres, um pioneiro do cinema
britânico, em 1895. O filme, de pouco mais de um minuto
15
, mostra o caricaturista
Tom Merry
16
desenhando em uma tela um retrato do Kaiser Wilhelm
17
.
Fig. 002 – Birt Acres: Peinture à l’envers, com Tom Merry (Inglaterra, 1898)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 51.
O cinema de animação compreende várias técnicas e diferencia-se ainda,
ou principalmente, quanto ao objetivo que, grosso modo, pode ser definido como
industrial ou experimental. O desenho animado no cinema industrial é o objeto
deste estudo, sem que isso signifique a exclusão de animadores não ligados
diretamente a ele, pois as influências são recíprocas e alimentam um processo
contínuo que revitaliza a expressão cinematográfica em sua totalidade.
15
Cf. HALAS, John; MANVELL, Roger. A técnica da animação cinematográfica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 1979, p. 340. Conversão conforme tabela para medição de filmes da Shelt Film Unit,
de Londres. Para um filme de aproximadamente 40 pés (12, 19 m) estima-se um tempo de projeção em torno
de um minuto e seis segundos (bitola 16 mm).
16
Tom Merry era reconhecido por sua velocidade ao desenhar e também por sua capacidade de executar o
desenho na posição invertida, ou seja, de cabeça para baixo, como pode ser visto na Fig.002 (O filme é
atribuído a um cameraman dos Lumière, c. 1898)
17
CRAFTON, 1993, p.50. No original, The transposition of lightning sketches from stage to screen came
first in England, where one of the earliest films made was an 1895 recording of a caricaturist named Tom
Merry standing by his easel sketching a lightning portrait of Kaiser Wilhelm. This 40-foot film by Birt Acres
was the first in a series by Merry, who, as proved by one of his extant performances, could draw not only at
lightning speed but upside-down as well (figure 14). He was so popular that a juvenile rival, Little Stanley
the Lightning Cartoonist, challenged him in 1898”.
15
O desenho animado e o stop-motion
18
foram as duas cnicas mais usadas
no início do cinema e exatamente entre elas reside, na maior parte das vezes, a
controvérsia sobre a invenção do filme animado. Alguns dos filmes que buscam
dar o direito de paternidade do cinema de animação ao seu realizador poderiam
ser mais bem enquadrados na categoria de efeitos especiais. Nesses filmes,
embora as cenas apresentem animação, geralmente de objetos, elas realmente
não desenvolvem o potencial da animação como forma capaz de expressar por
meios próprios a ilusão de dar vida, ou alma, aos objetos animados.
Os filmes que são considerados pela maioria dos autores como
inauguradores desta arte têm em comum o fato de se aproximarem mais dos
conceitos de cinema de animação. Ou seja, o uso da técnica cinematográfica para
criar a ilusão, não apenas de movimento, mas principalmente de vida, em um
processo que pressupõe a existência de um animador e de um elemento a ser
animado. Esse elemento pode ser desenho ou objeto, de natureza material ou,
atualmente, digital. Essa criação implica no controle de cada quadro que irá
compor o filme, característica que o diferencia do cinema fotográfico, e requer que
o elemento animado expresse, por suas ações, vida e universo próprio, mesmo
quando confrontados com o “mundo real” do cinema live action. Donald Crafton
afirma que:
O filme animado pode ser amplamente definido como um tipo de cinema
feito através do arranjo de desenhos ou objetos de modo que, quando
fotografados e projetados seqüencialmente em um filme, produz a
ilusão de movimento controlado. Na prática, entretanto, as definições do
que constitui o filme animado são influenciadas por uma variedade de
considerações técnicas, de gênero, temáticas e industriais
19
.
A variedade de considerações, apontadas por Crafton, que influenciam na
definição e, por conseqüência, no estudo do cinema de animação, será retomada
18
STOP-MOTION: é a técnica de animação que consiste na filmagem quadro-a-quadro de bonecos e objetos
previa e sucessivamente arrumados. In: BRUZZO, Cristina. Animação. São Paulo: FDE, 1996, p. 221.
19
CRAFTON, Donald. Tricks and animation. In: NOWELL- SMITH, Geoffrey (Ed.). Oxford History of
World Cinema: The definitive history of cinema worldwide. New York: Oxford University Press, 1997, p.71.
No original, The animated film can be broadly defined as a kind of motion picture made by arranging
drawings or objects in a manner that, when photographed and projected sequentially on movie film,
produces the illusion of controlled motion. In practice, however, definitions of what constitutes animation are
inflected by a variety of technical, generic, thematic, and industrial considerations.”
16
no decorrer deste trabalho, durante as análises e onde esses pontos forem
importantes e esclarecedores.
O stop-motion foi a primeira técnica de cinema de animação a ser
desenvolvida. Atribui-se ao francês Georges Méliès (Fig.003) a sua descoberta.
Em seus filmes, era utilizada para a realização de truques visuais, como por
exemplo, fazer objetos se moverem, aparecerem ou desaparecerem
repentinamente. Esse fato não determina o nascimento do cinema de animação,
sendo aceito pela maioria dos autores como uso específico de efeitos especiais.
Fig. 003 – Georges Méliès : Le Voyage Voyage Dans La Lune (França, 1902).
Alguns autores, como Charles Solomon, conferem a criação do filme
animado a James Stuart Blackton, com Humorous Phases of Funny Faces (EUA,
1906). Marcelo Tassara afirma que: “No entanto, a maioria dos estudiosos – como
Lo Duca, por exemplo atribui a Emile Cohl, nascido em Paris, em 1857, a
verdadeira paternidade do desenho animado”
20
. Parece inequívoco afirmar que
antes de Cohl, James S. Blackton havia produzido a ilusão de desenhos se
movendo em dois filmes - The Enchanted Drawing (EUA, 1900) e Humorous
Phases of Funny Faces (EUA, 1906). Do mesmo modo, alguns estudiosos
acreditam ser de autoria de Segundo de Chomón o primeiro filme de animação, O
Hotel Elétrico (El Hotel Eléctrico, Espanha, 1905)
21
.
Para melhor entendimento dos conceitos do cinema de animação, uma
breve análise dos primeiros filmes animados poderá auxiliar, esclarecendo alguns
dos aspectos que permitem definir o campo do cinema de animação.
20
TASSARA, 1996, p.17.
21
BERENGUER, Xavier. Pioneros de la animación. Institut Universitari de L'audiovisual (IUA) Disponível
em: <http://www.iua.upf.es/~berenguer/textos/pioners/principal_cas.html> acesso 25 mar 2005.
17
Fig. 004 – Blackton: The Enchanted Drawing (EUA, 1900)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 53.
The Enchanted Drawing é relativamente pouco citado como primeiro filme
de animação. Certamente isto ocorre por ele não se diferenciar do que era
apresentado nos primeiros anos do cinema. E a sua seqüência animada pode ser
classificada como típica de filmes de truques trick films
22
, não ultrapassando a
diferença de definição entre a animação e o cinema animado dada por Tassara.
No entanto, os trick films
23
(trick-picture: filme de desenho, desenho animado)
24
podem ser considerados como o ponto do qual se inicia a trajetória do filme
animado. Como afirma Crafton, “A história geral do filme animado começa com o
uso transitório de efeitos de truque nos filmes na virada do século”
25
. Os trick films
22
SOLOMON, 1989, p. 13.
23
Os filmes de truques” podem ser conceituados como um gênero (predominante no início do cinema) e se
caracterizava por ter nos efeitos especiais a grande atração do filme. Conforme Jacques Aumont e Michel
Marie (2003:95), o efeito podia estar integrado na gica narrativa ou descritiva do filme ou através de uma
lógica particular que faz do “truque” o meio e o fim do espetáculo. Os efeitos especiais podem se produzir na
cenografia (maquetes, máscaras/contramáscaras, etc); na tomada de cena (deformações ópticas, câmeras
lentas, etc); na tiragem (imobilização da imagem, desaceleração, etc.); no momento da revelação (ligações:
fusões , cortinas, íris).
24
TRICK-FILM (trick-picture). In: PIETZSCHKE, Fritz (Orient.). Novo Michaelis: dicionário ilustrado.
Volume I. Inglês-Português. 6 ed.rev. e aum. São Paulo: Melhoramentos, 1966. p. 982.
25
CRAFTON, 1997, p. 71. No original, The general history of the animated film begins with the use of
transient trick effects in films around the turn of the century. As distinct genres emerged (Westerns, chase
films, etc.) during 1906-10, there appeared at the same time films made all or mostly by the animation
technique. Since most movies were a single reel, there was little programmatic difference between the
18
e os filmes de desenhistas relâmpagos foram importantes antecessores dos
filmes animados. Entre os artistas que tinham números como “desenhistas
relâmpagos” aparecem alguns dos pioneiros do cinema de animação, como
James Stuart Blackton e Winsor McCay. O próprio Georges Méliès passou a se
exibir como desenhista relâmpago, ainda no primeiro ano do cinema, intitulando-
se como “dessinateur express”
26
.
The Enchanted Drawing assemelha-se a um documentário, no qual
Blackton demonstra sua habilidade como cartunista e, desse modo, é a ação dele
que estrutura o filme. A parte de animação não é essencial à proposta do filme,
apresentando-se mais como uma curiosidade do que como uma seqüência que
antecipa ou enriquece as possibilidades do filme animado. Isso o se aplica
ao seu filme de 1906.
Fig. 005 - Blackton: Humorous Phases of Funny Faces (EUA, 1906)
Humorous Phases of Funny Faces apresenta animação expressiva das
faces dos personagens e uma pequena, mas apropriada, interação entre as
figuras animadas. Os personagens transformam-se “por si mesmos”,
características que são próprias do cinema de animação. O filme contempla ainda
uma animação, na qual em alguns momentos os personagens os bonecos de
um palhaço e de um cão ora são de recortes em giz sobre fundo negro, ora são
habilmente substituídos pelo desenho direto no quadro negro. Ainda remetendo
em muitos aspectos a The Enchanted Drawing, o filme se sustenta muito mais
animated films and others. But as the multi-reel film trend progressed after around 1912, with only a handful
of exceptions, animated films retained their one-reel-or-less length.”
26
CRAFTON, 1993, p. 50. No original, During the first year of cinematography Georges Melies became
the lightning cartoonist of the French cinema. Billing himself as the "dessinateur express," Melies
sketched caricatures of Adolphe Thiers, Chamberlain, Queen Victoria, and von Bismark in front of his
camera”.
19
como entretenimento, e é capaz, ainda hoje, de apontar para a habilidade de
Blackton, agora não apenas como desenhista, mas como cineasta e animador.
Fig. 006 - Blackton: The Haunted House (EUA, 1907)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 15.
Muitos estudiosos sustentam que O Hotel Elétrico (El Hotel Eléctrico, Paris,
1908)
27
, do espanhol Segundo de Chomón
28
, teria sido produzido na Espanha, em
1905, um ano antes do filme Humorous Phases of Funny Faces. Desse modo, o
filme teria influenciado The Haunted Hotel (EUA, 1907), de Blackton (Fig. 006). No
entanto, os últimos estudos indicam que o filme de Chomón foi rodado apenas em
1908, em Paris
29
. Essa imprecisão na data de realização do filme levou muitos
espanhóis a reivindicarem a paternidade do cinema de animação.
27
BENDAZZI, Giannalberto. Cartoons: one hundred years of cinema animation. Indianapolis: Indiana
University Press, 1994, p. 43.
28
CRAFTON, 1993, p. 25: Nome completo: Segundo Victor Aurelio Chomón y Ruiz.
29
MAROTO, Carlos Díaz. El Hotel Eléctrico. (Madrid. España), disponível em:
<www.pasadizo.com/peliculas2.jhtml?cod=246&sec=3>, acesso em 5 jan 2006. No original, Hasta hace
poco, todos los estudiosos, con el investigador Carlos Fernández Cuenca a la cabeza, argüían que el corto
se rodaría en España en 1905, para la casa Macaya y Marro Sin embargo, según el entusiasta historiador
cinematográfico Juan Gabriel Tharrats, experto en cine mudo y cine de animación, la rodaría en 1908, ya en
Francia, para la casa Pathé, acaso inspirándose en El hotel embrujado (The Haunted Hotel, 1906), del
americano James Stuart Blackton (1875-1941) -claro que también pudiera ser que Blackton se inspirara en
Chomón.
20
Fig. 007 - Segundo de Chomón: O Hotel Elétrico (França, 1908)
No filme de Chomón, em um hotel do futuro, basta apertar um botão para
tudo funcionar perfeitamente. Ou quase. Uma cadeira que se move com seu
ocupante, sem que ele precise fazer nada, e escovas de cabelos que penteiam
sozinhas os cabelos dos hóspedes são alguns dos artifícios do cineasta para dar
sua curiosa e fantástica visão do futuro. As seqüências são muito bem elaboradas
e, se não conferem a paternidade do cinema de animação ao realizador,
certamente confirmam a sua posição como um dos primeiros grandes mestres da
arte cinematográfica.
Fig. 008 - Segundo de Chomón: Le Théâtre de Petit Bob (França, 1909).
Anterior ou não a Humorous Phases of Funny Faces, o filme O Hotel
Elétrico (Fig.007) é mais bem caracterizado como filme de efeitos especiais do
que como cinema de animação. Também nesse filme, a animação de objetos tem
por objetivo os efeitos necessários para mostrar a automatização das coisas, não
21
sendo a fundamentação estética do filme e sim uma técnica de auxílio à
visualidade proposta pelo realizador.
Trabalhando para Pathé, em Paris, a partir de 1906, Chomón produziu
alguns primorosos filmes usando as técnicas de animação. E, como era comum
no período inicial do cinema, tanto na Europa quanto nos EUA, muitas de suas
importantes contribuições não foram registradas. Como afirma Crafton,
Chomón começou a trabalhar em 1906 para a Pathé, em Paris, com o
galicizado nome de Chomont. Lá ele contribuiu anonimamente com
efeitos especiais de filmes dirigidos por Ferdinand Zecca e Gaston
Velle, inclusive Le Théâtre de Petit Bob (Bob's Electric Theater nos
EUA), o qual, como cópias recentemente descobertas revelam,
continham seqüência de animação de objetos
30
.
Le Théâtre de Petit Bob (França, 1909) apresenta animação de objetos e
alguma animação de bonecos. O filme inicia com uma seqüência em live action.
Nela, três crianças decidem brincar com um teatrinho de bonecos. Armado o
palco, uma das crianças dirige-se ao espectador, convidando-o a assistir à
apresentação (Fig.008, segundo quadro). Dividido em quatro atos ou quadros, o
filme mostra em seguida um enquadramento do palco do teatrinho. Quando as
cortinas se abrem, desenrola-se um tapete, surgindo os bonecos, que iniciam
uma luta de espadas. As seqüências são semelhantes, com a ação se
concentrando na disputa dos personagens. No quarto e último quadro, aparece
um palhaço, que faz algumas acrobacias.
Sculpteur Moderne
31
(França, 1908) é um bom exemplo da qualidade e
complexidade alcançada por boa parte dos filmes produzidos na primeira
década do século XX.
O filme se caracteriza como um trick film, utilizando estratégias e truques
cinematográficos já consagrados e até popularizados por Méliès.
30
CRAFTON, 1993, p. 24. No original, Chomon began working for Pathé in Paris in 1906 under the
gallicized name of Chomont. There he anonymously contributed special effects to films directed by
Ferdinand Zecca and Gaston Velle, including Le Theatre de Petit Bob (Bob's Electric Theater in the United
States), which, as recently discovered prints reveal, contained object-animation sequences”.
31
CRAFTON, 1993, p. 25. Conforme o autor, o filme foi restaurado pelo Arquivo Francês do Filme. O autor
data os filmes Sculpteur Moderne e Le Theatre de Petit Bob como sendo, ambos, de 1906, o que não parece
exato. Grande parte dos sites consultados (com dados atualizados) datam os dois filmes como sendo de 1908.
Cf. www.imdb.com/title/tt0140537/combined e www.tvcatalunya.com/chomon/36_345.htm.
22
Fig. 009 - Segundo de Chomón: Sculpteur Moderne (França, 1908)
A qualidade com a qual foram realizados é, no entanto, impressionante a
para os olhos do espectador contemporâneo.
32
A seqüência foi cuidadosamente
32
Deve-se destacar que o filme é apresentado por uma mulher, de modo inusitado para a época. Esta era a
atriz que, ao lado de Chomón, também aparece no filme El Hotel Electrico. Julienne Mathieu trabalhava
como atriz e vedete de vaudeville quando conheceu Chomón, com quem se casou algum tempo depois.
23
construída, dando ao espectador a noção completa do espaço fílmico e teatral,
seus componentes e suas dimensões. Deve-se notar que a dimensão teatral foi
dada como estratégia de ilusão, que é atingida através de truque visual, que as
cenas são mostradas como espetáculos de variedade.
O filme inicia em plano médio, com uma seqüência live action simples, na
qual a apresentadora mostra um palco onde dois auxiliares exibem a estátua de
dois guerreiros em tamanho natural (Fig. 009, segundo e terceiro quadros). A
cortina do palco se fecha. Outro auxiliar, posicionado do lado direito do palco (Fig.
009, terceiro quadro), traz para o primeiro plano um objeto coberto por um manto,
que a apresentadora descobre, revelando as figuras estáticas de mulheres em
poses e vestimentas clássicas. Observa-se que o movimento de descobrir o
quadro é amplo, fazendo com que o manto trabalhe como uma cortina. É o
caráter fílmico que predomina, pois esta cortina permite um corte elegante e muito
eficiente para as cenas das estátuas que são mostradas na seqüência (Fig.009,
quarto e quinto quadros). Outro ponto a destacar é o movimento que traz para o
primeiro plano a escultura coberta. Ele permite um fechamento do plano médio
para o plano próximo e habilmente redimensiona os novos personagens e o novo
espaço do espetáculo, informando ao espectador as novas características
espaciais da cena. Desse modo, as dimensões das estatuetas foram definidas
pelo movimento no plano, e o espectador é induzido a acreditar naquilo que
(Fig.009, do segundo ao sexto quadro).
A primeira cena das estatuetas tem ainda o requinte de fazer com que o
conjunto gire sobre o seu próprio eixo, reafirmando a impressão de manuseio,
característica das estátuas de pequeno porte. Na cena, as figuras permanecem
imóveis, ou seja, não fazem movimentos próprios. Ao exibir outras esculturas, as
figuras movimentam-se por si mesmas, intrigando o espectador, que foi induzido a
ver o conjunto como um objeto inanimado. A seqüência de animação é
apresentada do mesmo modo que as precedentes. Deve-se notar, no entanto,
que o cenário é diferente, ou seja, não aparece mais a moldura que compunha as
cenas anteriores, não animadas. Apenas o fundo escuro predomina (Fig.009, do
sétimo ao décimo quarto quadro). Isso aponta para a filmagem, quadro-a-quadro,
em outro ambiente, talvez mais apropriado para o trabalho de animação. A
qualidade da iluminação valoriza a textura e a forma das imagens. A animação é
24
discreta, consistindo na metamorfose das estatuetas, a partir da massa informe, e
em pequenos movimentos. As seqüências são apresentadas a partir da animação
que grava a frase “Pathé Fréres Paris” em uma lápide de argila, também moldada
por animação (Fig.009, sétimo quadro).
As cenas animadas mostram vários objetos e animais moldando-se a partir
da argila, em cenas que remetem, algumas vezes, às ilustrações de livros de
histórias infantis: uma cartola, de onde surgem pequenos animais dois gatos e
um rato (Fig.009, oitavo quadro); uma bota que tem boca e olhos (com expressão
caricata), na qual surgem alguns ratinhos, e cujo cadarço se enlaça sozinho
(Fig.009, nono quadro); uma águia que move suas asas (Fig.009, décimo quadro);
um macaquinho fumante, e de cujo cachimbo sai fumaça, a qual retorna para o
cachimbo ao final da cena (Fig.009, décimo primeiro quadro); um crocodilo que
inverte o lado da cabeça (Fig.009, décimo segundo quadro); a cabeça de um leão
a rugir (Fig.009, décimo terceiro quadro); e finalmente a figura humana, uma
velhinha que parece ser substituída por uma atriz em live action, que durante a
cena é amassada por uma mão “real”, sendo remodelada no final da cena
(Fig.009, décimo quarto quadro). O filme termina com a apresentadora e seus
auxiliares guardando as esculturas que foram executadas em frente ao
espectador, por si mesmas.
A expressividade das cenas deve ser atribuída mais à qualidade artística e
técnica das esculturas em argila
33
do que à qualidade da incipiente técnica de
animação. Mesmo que tenha sido o primeiro filme de animação de massinha, ou
claymation”, Sculpteur Moderne não se sustenta sobre a animação, que é, nesse
caso, apenas mais um artifício técnico para surpreender e entreter o espectador.
Deve-se destacar, no entanto, a engenhosidade da construção das cenas, dentre
estas, a cena da velhinha. Conforme Crafton, Chomón clama ainda a invenção do
desenho animado, contudo, não foram encontrados filmes que comprovem esta
reivindicação
34
.
33
O nome “GUYOT” assinado em algumas dessas esculturas e a qualidade plástica das figuras modeladas
apontam, talvez, para a colaboração do artista Georges Lucien Guyot (1885, 1973), que foi um renomado
artista animalista parisiense, consagrado pela qualidade de suas representações (desenhos, pinturas e
esculturas), que captavam a essência do comportamento e da psicologia animal.
34
CRAFTON, 1993, p. 25.
25
A importância de Segundo de Chomón é ainda pouco reconhecida. Em
grande parte devido ao fator já apontado no início do capítulo, da perda de grande
parte do acervo fílmico existente. Talvez os filmes conhecidos, assim como o de
outros realizadores, não sejam numericamente representativos frente a toda a
produção do artista. São, entretanto, significativos
35
e tornam-se fundamentais
para o entendimento da complexidade do estudo da expressão cinematográfica,
pois preenchem lacunas e apontam para possibilidades de experimentação que,
muitas vezes, são desconhecidas, esquecidas ou desconsideradas pelos
realizadores contemporâneos.
O inglês Arthur Melbourne Cooper é outro pioneiro que compete pela
criação do filme animado. Cooper iniciou sua carreira trabalhando para Birt Acres
como cameraman. Matches an Appeal (Inglaterra, 1899) é um filme publicitário
primitivo que mostra as primeiras tentativas de Cooper de dominar os princípios
do stop-motion
36
. Versátil, como grande parte dos pioneiros, Cooper também
dirigiu comédia e trick films. Crafton afirma que
Dolly’s Toys (1901) também pode ter usado animação, ou uma variante
da [técnica de] substituição stop-action
37
de Booth. A carreira de
animação de Cooper começou realmente em 1904 com The Enchanted
Toymaker, produzido por R. W. Paul. Esse filme também marcou o
início da longa paixão de Cooper pelo tema da arca de Noé. The Fairy
Godmother (1906) mostrava uma criança que fitava maravilhada
enquanto os animais de sua arca de brinquedos desfilavam ao redor de
sua babá adormecida, e as feras de Noé eram as estrelas de Tale of the
Ark, de 1909
38
.
35
A Filmoteca de Catalunya reúne, até o momento, 105 títulos de Segundo de Chomón, de um total de
estimado de 345 filmes, sendo a coleção mais importante existente sobre o cineasta. Conforme EL
DOCUMENTAL, em < www.tvcatalunya.com/chomon/36_345.htm>, acesso 20 dez 2006.
36
CRAFTON. 1993, p. 223.
37
Stop-action é também usado como sinônimo de stop-motion. Neste caso, deve ser entendido pela definição
dada por Alberto Lucena Junior (Barbosa:83): “parada com substituição da ação”, referindo-se ao processo
“encontrado nos primórdios da animação cinematográfica por trás dos trickfilms (filmes de efeito).”
38
CRAFTON, 1993, p. 223. No original, Dolly's Toys (1901) may have also used animation, or a variant of
Booth's stop-action substitution. Cooper's animation career really commenced in 1904 with The Enchanted
Toymaker, produced by R. W. Paul. This film also marked the beginning of Cooper's long infatuation with
the theme of Noah's Ark. The Fairy Godmother (1906) featured a child who stared in amazement as the
animals in his toy ark paraded around his sleeping nanny, and Noah's beasts were the stars of the 1909 Tale
of the Ark.
26
Como em grande parte dos filmes do início do cinema, os filmes de Cooper
também são identificados com datas e nomes diferentes. The Enchanted
Toymaker, é igualmente conhecido como The Old Toymaker’s Dream, e datado
pelo próprio Crafton
39
como sendo de 1912. Com o título de The Toymaker’s
Dream, é datado por Bendazzi
40
como sendo de 1913. Este autor, contudo, não
menciona o primeiro nome usado por Crafton para esse filme. Bendazzi refere-se
a Noah’s Ark como de 1906, provavelmente o mesmo filme identificado por
Donald Crafton como Tale of the Ark e datado como sendo de 1909.
Arthur Melbourne Cooper fez muitos filmes semelhantes a Dreams of
Toyland (Reino Unido, 1908), caracterizados pelo uso de seqüências em live
action com a animação stop-motion de bonecos. Em Dreams of Toyland alguns
brinquedos, que foram dados de presentes para uma criança, ganham vida em
seu sonho. Giannalberto Bendazzi assinala:
Os bonecos são animados com precisão e delicadeza, apesar da
rapidez da rotação das sombras que originam uma atmosfera um pouco
estranha (em vez de iluminação artificial, o animador ainda usava luz
solar, e o trabalho quadro-a-quadro era afetado pela rotação da terra)
41
.
A variação da luz natural era um problema que afetava também os filmes
live action e que se tornava mais evidente nos trick films e nos filmes de
animação, justamente pelo longo tempo necessário para a realização das
seqüências de truques e, principalmente, das seqüências de animação. Esse
fenômeno e as variações atmosféricas foram os principais motivos para a
construção dos primeiros estúdios cinematográficos.
39
CRAFTON, 1993, p. 223.
40
BENDAZZI, p. 41.
41
BENDAZZI, p. 40-41. No original, In 1908, he made another valuable animated film. Dreams of
Toyland, in which toys, given as presents to a child one afternoon, come alive in the child's dream. The
puppets are animated with precision and delicacy, despite quickly rotating shadows which give rise to a
somewhat bizarre atmosphere (instead of artificial illumination, the animator still used sunlight, andI the
frame-by-frame work was affected by the earth's rotation). Other films by Cooper include Noah's Ark (1906),
Cinderella (1912), Wooden Athletes (1912) and The Toymaker's Dream
27
Fig. 010 – Arthur Melbourne Cooper: Dreams of Toyland (Reino Unido, 1908)
FONTE – BENDAZZI, p. 41; CRAFTON, 1993. p. 224.
Muitos nomes pioneiros concorrem pela criação do cinema de animação.
Nesse início, os filmes eram usados como uma demonstração de habilidade na
realização de truques e efeitos especiais ou como complementos das histórias
narradas. No primeiro caso encontram-se The Enchanted Drawing e Humorous
Phases of Funny Faces. No segundo, The Haunted Hotel, O Hotel Elétrico e
Dreams of Toyland são exemplos do uso da animação como efeito especial
integrado ao enredo da história. Deve-se assinalar que esta é uma fase de
transição, na qual nem mesmo no cinema live action existe uma nítida definição
de gêneros. Assim, por não existir ainda uma definição nítida do uso da técnica de
animação como uma modalidade própria e autônoma, surge também a dificuldade
de se apontar, categoricamente, o nome do inventor do cinema de animação.
Como afirma Crafton:
Embora não exista nenhuma evidência aceitável para verificar uma ou
outra reivindicação, a técnica da animação pode ter sido descoberta
independentemente por J. Stuart Blackton nos Estados Unidos e por
Arthur Melbourne Cooper na Inglaterra. Cada um reivindicou ter sido o
primeiro a explorar uma maneira alternativa de usar a câmera
cinematográfica: manipulando objetos no campo de visão e expondo
somente um ou poucos quadros de cada vez, a fim de imitar a ilusão do
movimento criado pelo cinematógrafo comum. Na projeção, não faz
nenhuma diferença se os quadros individuais foram expostos a 16—24
vezes por segundo ou expostos com um intervalo indefinido; a ilusão de
movimento é a mesma. Assim, a tradicional definição, tecnologicamente
baseada, de animação como construindo e fotografando quadro-a-
quadro é claramente inadequada. Todos os filmes são compostos,
28
expostos e projetados quadro-a-quadro (de outra maneira, a imagem
seria borrada). O fator técnico definidor parece estar no efeito planejado
a ser produzido na tela.
42
Donald Crafton, buscando aproximar o resultado final da projeção do filme
live action ao da animação, leva ao extremo a informação de que, tecnicamente,
cada frame é fotografado individualmente e extrapola na comparação com a
técnica cinematográfica da animação, desconsiderando, na afirmação, as
diferenças existentes e fundamentais entre o cinema live action e o cinema
animado. Dentre essas, talvez a mais notável seja a perda do efeito borrado
(blur), que existe nos movimentos de objetos ou pessoas do primeiro (live action)
e que não ocorrem no cinema de animação, uma vez que os movimentos rápidos
do filme animado não foram filmados ao vivo, e sim construídos quadro-a-
quadro
43
. A ilusão de movimento é quase a mesma, no entanto, este quase
determina o efeito artificial, ou estranho, que se nota mais claramente nos filmes
em stop-motion e nos filmes que utilizam a rotoscopia
44
. E quando o filme
animado tenta reconstruir as ações humanas, essas diferenças mínimas
existentes denunciam sua artificialidade, pois esses movimentos são os mais
conhecidos e familiares aos nossos olhos.
A diferença entre realizar uma seqüência fotografando-a automaticamente
ou construindo-a quadro-a-quadro ultrapassa a opção técnica na realização do
filme ou o resultado de sua projeção. A opção pelo cinema de animação interfere
diretamente no resultado estético do filme e, deste modo, em sua apreciação pelo
espectador.
42
CRAFTON, 1997, p. 71. No original, Although there is no acceptable evidence to verify either claim, the
animation technique might have been discovered independently by J. Stuart Blackton in the United States and
by Arthur Melbourne-Cooper in England. Each claimed to have been first to exploit an alternative way of
using the motion picture camera: manipulating objects in the field of vision and exposing only one or a few
frames at a time in order to mimic the illusion of motion created by ordinary cinematography. In projection,
it makes no difference whether the individual frames have been exposed 16—24 times per second or exposed
with an indefinite interval; the illusion of motion is the same. So the traditional technologically based
definition of animation as constructing and shooting frame by frame is clearly inadequate. All movies are
composed, exposed, and projected frame by frame (otherwise the image would be blurred). The defining
technical factor seems to be in the intended effect to be produced on the screen.”
43
QUADRO A QUADRO: um dos processos básicos da filmagem de animação. Consiste no registro
cinematográfico de cada um dos desenhos ou imagens (objetos, bonecos etc.), fotograma por fotograma, que
representam a sucessão das posições daquilo que parecerá mover-se na projeção. In: BRUZZO, Cristina.
Animação. São Paulo: FDE, 1996, p. 219.
44
Técnica de animação desenvolvida pelos irmãos Fleischer. É abordada com detalhes no próximo capítulo.
29
Dois pioneiros do cinema devem ser destacados também quando se fala
em animação: Walter R. Booth e Edwin S. Porter. Sobre o primeiro, Crafton
afirma que pairam poucas dúvidas de que a descoberta do cinema de animação
na Inglaterra foi influenciada pelo trabalho de James Stuart Blackton. Conforme o
autor, Booth era um
Mágico profissional que reconheceu o potencial do cinema, do mesmo
modo que Méliès, e começou a dirigir filmes produzidos por R. W. Paul
por volta de 1898. A especialidade de Booth era um tipo de
transformação na qual o desenho de uma pessoa se transformava em
uma figura viva pelo uso da fusão ou substituição em stop-action, um
truque que ele provavelmente usou em The Hand of the Artist. Embora
este tenha sido considerado o primeiro desenho animado britânico, ao
invés disso, a descrição do catálogo de 1906 indica quase certamente o
uso da técnica de stop-action
45
.
Crafton afirma que Comedy Cartoons (Walter R. Booth,1907) foi
claramente inspirado em Humorous Phases. Como este, o filme começa com o
desenho de um homem e uma mulher e uma piada de fumante (a smoking gag).
A movimentação do palhaço de recorte e o desenho que continua se
movimentando enquanto é apagado são outras influências de Blackton sobre
esse filme
46
.
The Sorcerer’s Scissors (Reino Unido, 1907) é um filme de Booth (o mais
antigo ainda existente) no qual se o uso de técnicas de animação: a tesoura
mágica recorta a figura que se transforma em uma pessoa real
47
, uma mulher que
45
CRAFTON. 1993, p.25. No original, “There is little question that Blackton influenced the English
discoverer of animation, Walter R. Booth, a professional magician who, like Méliès, recognized the potential
of the cinema and began directing films produced by R. W. Paul around 1898. Booth's specialty was a type of
transformation in which a drawing of a person was changed into a living figure by the use of dissolves or
stop-action substitution, a trick he probably used in The Hand of the Artist. Although this has been called the
first British animated cartoon, the 1906 catalog description almost certainly indicates the stop-action
technique instead”.
46
CRAFTON, 1993, p.25-26. No original, Booth's 1907 Comedy Cartoons was clearly inspired by
Humorous Phases. Like Blackton's film, it began with male and female portraits and a smoking gag. Booth
also borrowed the moving clown cutout from Blackton. For the finale, "the hand of the artist wipes the whole
from the blackboard, section by section, though muscular action remains even in the last portion left—one
eye—which winks at the audience in an impudent manner before being finally wiped out."15 Again, this was
an idea lifted from his American counterpart”.
47
CRAFTON, 1993, p. 23. Na versão do filme comentada pelo autor, um ursinho Teddy animado usa a
tesoura para recortar as figuras. Na versão analisada aqui, com o título francês de Les Ciseaux Magiques, a
30
começa a dançar e que tem as roupas modificadas por um pincel mágico, que se
move sozinho. Crafton ressalta: “Mas não nenhum desenho animado nesse
filme e em nenhum outro feito por Booth”
48
. Nota-se, entretanto, que atrás da
mulher, foi posicionada uma folha, sobre a qual forma-se sozinho o desenho, que
se revela como o esboço do cenário real (Fig.011, do quarto ao sexto quadro).
Fig. 011 – Walter R. Booth: The Sorcerer’s Scissors (Reino Unido, 1907)
Reconhecido como um dos mais importantes inovadores do início do
cinema, o norte-americano Edwin S. Porter também experimentou com os trick
films e com as cnicas de animação. Segundo nota Crafton, o primeiro
experimento de Porter foi em The Whole Dam and the Dam Dog (EUA, 1904)
49
,
mas é The “Teddy” Bears (EUA, 1907) que insere o nome de Porter na trajetória
do filme animado. O filme destaca-se por sua montagem elaborada, característica
de Porter e, principalmente, pela curta seqüência animada. Para Crafton,
tesoura animada recorta o título, sozinha, e depois as figuras, não sendo mostrada a animação do ursinho
descrita pelo autor. Para ver essa versão, Cf. Moving History: a guide to UK film and television archives in
the public sector”, disponível em <www.movinghistory.ac.uk/archives/bf/films/bf1sorcerer.html>, acesso em
10 dez 2006.
48
CRAFTON, 1993, p. 23. No original, The earliest existing film by Booth that does contain animated
sequences is The Sorcerer's Scissors (October 1907). In a beautifully tinted British Film Institute print,
magic scissors cut through the main tide (figure 7). An animated teddy bear uses them to cut out paper
shapes that change into live actors by ordinary stop-action techniques. An animated moving brush paints
figures, which dissolve into real persons. But there are no animated drawings in this film or in any other by
Booth.
49
Conforme o site IMDB o filme é de 1905. Cf: www.imdb.com/title/tt0235045/, acesso em 20 dez 2006.
31
O destaque era quando Cachinhos Dourados espiava pelo buraco da
fechadura, no andar superior, para observar seis ursos animados, de
tamanhos reduzidos, dançando. A animação é muito suave quando eles
executam proezas acrobáticas. O truque é ainda mais impressionante
porque foi sobreposto ao buraco da fechadura por um processo de
matte [máscara]. Porém, a seqüência é muito curta (118 pés,
aproximadamente um minuto) e bastante gratuita, visto que, em outro
momento do filme, os ursos foram representados por atores
fantasiados
50
.
The “Teddy” Bears é o filme que serve de referência quando se associa a
animação ao nome de Porter, entretanto, como ocorre para a maior parte dos
realizadores do período, a animação foi usada ali apenas como um efeito
especial.
Outros filmes de Edwin S. Porter destacaram-se também pelo uso intensivo
e aprimorado de efeitos visuais. Donald Crafton dá, como exemplo, The Dreams
of the Rarebit Fiend (EUA, 1906), livremente adaptado da série (homônima) de
quadrinhos de Winsor McCay, e sem a colaboração do mesmo. Embora a
qualidade da montagem e o uso de diferentes pontos de vistas (inspirados,
certamente, pelos originais de McCay) remetam, com relativo sucesso, à
visualidade e ao ritmo das histórias de McCay, o filme de Porter o apresenta
animação
51
.
50
CRAFTON, 1993, p. 26. No original, The 1907 Edison film The "Teddy" Bears was an up-to-date version
of the fairy tale narrated by means of a rather sophisticated montage sequence. The highlight was when
Goldilocks peeped through an upstairs keyhole to espy six animated bears of diminishing size dancing. The
animation is very smooth as they perform acrobatic feats. The trick is all the more impressive because it was
superimposed into the keyhole by a matte process. However, the sequence is very short (118 feet, about a
minute) and rather gratuitous, since elsewhere in the film the bears were portrayed by costumed actors.”
51
CRAFTON, 1993, p. 43. No original, Porter's film, made without McCay's collaboration, was freely
adapted from one of the episodes showing a dreamer loating over the skyline in a bed. Porter changed
McCay's protagonist to a male and "rationalized" the nightmare by adding a prolog that showed the victim
stuffing himself with rarebit and ale. Significantly, in place of McCay's remarkable "montage" of different
viewpoints, Porter summoned up all the special effects the cinema had to offer—save animation—to recreate
the dream as a series of fantastic tableaux.
32
Fig. 012 - Emile Cohl com bonecos do filme Le Tout Petit Faust (França, 1910)
Emile Cohl, pseudônimo do francês Emile Courtet (1857-1938)
52
, exibiu
pela primeira vez Fantasmagoria (Fantasmagorie, França, 1908), em 17 de
agosto de 1908, no Théâtre du Gymnase, em Paris.
Para este filme de aproximadamente dois minutos de duração (36m)
53
,
Emile Cohl
Desenhou uma série de figuras a traço negro em folhas de papel branco
e fotografou-as. Na tela, utilizou o negativo e conseguiu, assim, um
movimento executado por figuras brancas sobre um fundo escuro. No
seu caso, podemos dizer que estava menos interessado em
desenvolver uma determinada técnica do que mostrar o encanto
simples de seus bonecos de um traço. Mesmo neste estágio
primitivo, a ênfase era artística e não técnica. Os primeiros filmes
alemães de silhuetas foram também motivados por considerações
artísticas e não técnicas
54
.
Nessa breve descrição de Halas & Manvell, sobre Fantasmagoria, depara-
se com uma declaração, aparentemente baseada em critérios subjetivos. Afirmar
que um filme considerado pioneiro não está preocupado com a técnica é
52
CRAFTON, 1993, p. 61. Nome complete: Emile Eugène Jean Louis Courtet.
53
LO DUCA, Giuseppe Maria. Le dessin animé : histoire, esthétique, technique .Introduction de Walt
Disney. Paris : Editions d'Aujourd'hui. 1982, p. 19.
54
HALAS ; MANVELL, 1979, p.28.
33
desconcertante, e, no mínimo, se pode dizer que os autores negligenciam dados
essenciais, como os observados por Lo Duca:
A técnica dos primeiros desenhos foi reduzida ao mínimo, e os
desenhos eram esquemáticos, porque Emile Cohl trabalhava e não
podia se permitir ao luxo de detalhes não essenciais. Apesar disso, o
melhor de seus desenhos pode ser comparado com os desenhos
animados do pós-guerra
55
.
Emile Cohl realizou mais de cem filmes, entre 1908 e 1918, mais da
metade deles nos Estados Unidos
56
. Independentemente de ter optado por
trabalhar com figuras simplificadas, Cohl desenvolveu em todos os seus filmes um
trabalho de animação coerente com a posição que ocupava no meio artístico
parisiense. Entre os dezoito e os cinqüenta e seis anos, Cohl exerceu várias
atividades, foi jornalista, ilustrador, caricaturista
57
. Convivia com inúmeros artistas
e escritores, como por exemplo, Vitor Hugo e Verlaine. Pertencia a dois grupos
artísticos Les Hydropathes e depois Les Incohérents, sendo também
freqüentador dos cabarés Le Lapin Agile e Le Chat Noir. Emile Cohl começou a
se interessar pelo cinema em 1907. Não tendo vocação comercial, preferia
oferecer os seus serviços de roteirista e criador de efeitos especiais para a
companhia Lux, mas principalmente para a Gaumont, para onde ele entrou, após
quase um ano de trabalho independente
58
. Após uma breve passagem pela Pathé
(1911), Cohl voltaria ao trabalho independente e realizaria alguns filmes,
principalmente para Eclipse, antes de ir trabalhar nos EUA, a serviço da Éclair
(estúdio francês, com filial em Forte Lee, Nova Jersey), entre 1912 e 1914. Seis
meses depois de sua volta à França, nascia o primeiro estúdio de animação
profissional dos Estados Unidos, [Raoul Barré Studio], claramente usando muitas
55
LO DUCA, 1982, p. 19. No original, La technique des premières bandes était réduite au minimum, et les
dessins étaient schématiques, car Emile Cohl travaillait seul et ne pouvait se permettre le luxe de détails non
essentiels ; cependant, les meilleurs de ses dessins animés peuvent noutenir la comparaison avec les dessins
animés d'après guerre”.
56
LO DUCA, 1982, p. 19.
57
Foi aluno e amigo do francês André Gill (1840-1885), célebre caricaturista, considerado pelo crítico e
historiador de arte Michel Ragon como o mestre da caricatura no final do segundo império.
58
Dados biográficos conforme Pierre Courtet-Cohl, estudioso e neto de Emile Cohl, , em “L’association Les
Indépendants du 1
er
Siècle” <http://www.lips.org/bio_Cohl.asp> acesso . 01/03/2005.
34
das técnicas de animação desenvolvidas por Cohl
59
. Em 1923, Cohl parou de
realizar filmes, atingido pelo fim da hegemonia do cinema francês no mundo.
Estima-se que existam apenas 20% dos mais de trezentos curtas-metragens
realizados pelo artista que, em geral, trabalhava sozinho.
Fig. 013 – Projeto de bonecos articulados para Le Peintre néo-impressionniste (França, 1910)
FONTE – CRAFTON, 1993. p. 77.
Dando o devido crédito a todos os pioneiros, e às suas inestimáveis
contribuições, cabe realmente a Emile Cohl o mérito de ter sido o primeiro a se
preocupar e a acreditar no filme animado como meio autêntico e vigoroso de
expressão artística. Cohl foi o primeiro a ultrapassar a etapa da apresentação da
novidade e alcançar a fase do filme animado como espetáculo. Através de sua
habilidosa e artística exploração do espaço e do tempo acrescentou às três
dimensões (possíveis de serem expressas graficamente) da superfície plana uma
quarta dimensão: o ritmo (o desenho dentro de uma linha temporal, onde o olhar é
iludido pela magia do cinema), com a segurança de saber desnecessário a
59
Edison impedia, com seu direito de patente, a importação de filmes estrangeiros, assim os estúdios
europeus criavam subsidiárias nos EUA para contornar o bloqueio. Conforme <http://www.asifa-
hollywood.org/2005/03/undervalued-animator-victim-of.html>, acesso 07 abr 2005, 09:00h.
35
representação fiel da realidade
60
. Seguindo sua inclinação artística, descobria os
caminhos e possibilidades proporcionados pelo desenho animado, bem como por
outras técnicas e inovações, as quais soube explorar com criatividade e perícia
técnica. Cohl também inaugurou a linha básica do desenvolvimento do filme
animado. Se a Earl Hurd deve-se a invenção do acetato
61
(cells) que tanta
liberdade deu aos animadores, deve-se a Emile Cohl a introdução do uso do
papel e da mesa de luz como base para a produção do desenho animado
62
, meio
pelo qual o cinema de animação encontrou o seu mais autêntico suporte, que
prevalece mesmo nos meios digitais, pois este nada mais é do que uma versão
digital dos recursos do estúdio de animação. Cohl ainda descobriu que, mesmo
reduzindo o número de desenhos, a impressão de movimento acontecia. Assim,
embora o filme fosse projetado a dezesseis quadros por segundo, ele fazia
apenas oito desenhos para cada segundo de animação, conseguindo uma
considerável economia de tempo e de trabalho
63
.
Fig. 014 Emile Cohl : Le Cauchemar de Fantoche (França, 1908)
FONTE – LO DUCA, p. 19
É novamente Crafton quem aponta: “Emile Cohl foi o maior responsável por
transformar os esforços de seus antecessores filmes de truques na única arte do
século XX, mas, paradoxalmente, suas próprias raízes se estendem no passado
60
Percepção em total coerência com os preceitos do grupo ao qual estava vinculado, Les Incohérents, no qual
a experiência onírica é validada como importante elemento de busca e percepção estética
61
Cf. p. 68, do capítulo 2.
62
CRAFTON, 1993, p. 61.
63
CRAFTON, 1993, p. 61.
36
distante”
64
. Uma arte que nasceu propriamente das experiências do pai do
desenho animado, que mais do que qualquer outro, merece a extensão de sua
paternidade não apenas ao desenho animado, mas também ao cinema de
animação em sua complexidade, pois definitivamente foi o primeiro artista
reconhecido a se consagrar à nova arte.
Alguns estudiosos
65
enumeram, dentre outras, as seguintes contribuições
de Emile Cohl para o filme animado: o primeiro herói de desenho animado (Le
Fantoche, 1908), o primeiro filme de marionetes
66
(Le tout petit Faust, 1910), o
primeiro desenho animado em cores (Le Peintre néo-impressionniste, França,
1910), os primeiros desenhos animados publicitários (Campbell Soups, EUA,
1912), o primeiro desenho animado didático (La Bataille d’Austerlitz, França,1910)
e o primeiro desenho animado adaptado de uma história em quadrinhos (Les
aventures des Pieds Nickelés, França, 1917)
67
. Crafton identifica ainda: “O
primeiro uso de máscara (matte) fotográfica para combinar animação com live
action, em Clair de Lune Espagnol (O Homem na Lua, março, 1909), anos antes
de outros tentarem isto”
68
. Crafton afirma que “o aperfeiçoamento do matte
fotográfico era típico da desenvoltura de Cohl. Ele também foi o primeiro a
abandonar a câmera acionada manualmente por uma com obturador acionado
eletricamente”
69
.
Como visto, as afirmações acerca da precedência sobre algum feito são,
quase sempre, controversas. Inegável é que Emile Cohl foi um entusiasta do
cinema de animação, experimentando ao ximo as suas possibilidades,
tornando-se assim um de seus mais importantes pioneiros, com influência direta
ou indireta sobre os outros realizadores, contemporâneos e sucessores,
64
CRAFTON, 1993, p. 61. No original, He was the one most responsible for transforming the efforts of his
trickfilm predecessors into a unique twentieth-century art, but, paradoxically, his own roots extended far
back into the past.
65
Cf : COURTET-COHL, Pierre. Emile COHL. In: L’association Les Indépendants du 1
er
Siècle
<http://www.lips.org/bio_Cohl.asp> acesso . 01/03/2005
66
Para alguns autores, a primeira animação de bonecos foi The “Teddy” Bears, de Porter, de 1907.
67
Note-se que, os filmes que o próprio Cohl realizou, entre 1912 e 1914, para a Éclair americana baseavam-
se em personagens já consagrados pelas histórias em quadrinhos.
68
CRAFTON, 1993, p. 74. No original, Among Cohl's extraordinary technical accomplishments was the
first use of matte photography to combine animation with live action, in Clair de Lune espagnol (The Man in
the Moon) (March 1909), years before others attempted this.”
69
CRAFTON, 1993, p. 74. No original, Perfecting matte photography was typical of Cohl's
resourcefulness. He was also the first to abandon the hand-cranked camera for one with an electrically
driven shutter.”
37
considerando-se o tempo que esteve nos Estados Unidos e o fato de que os
filmes eram muito copiados e distribuídos sem identificação de autoria ou origem.
Primeiro cineasta nascido em solo americano a se interessar pela
animação, Winsor Zenis McCay passou grande parte da sua vida em Spring Lake,
às margens do lago Michigan. Não há registros de seu nascimento, mas relatórios
do censo indicam que ele veio ao mundo no Canadá, em 1867, em Woodstock,
também a terra natal de seus pais. Certamente, isso explica o porquê de a maior
parte dos estudiosos norte-americanos considerarem-no como o pai do cinema de
animação. A qualidade minuciosa e o valor inquestionável de seu trabalho, no
entanto, não o colocam na linha mais forte da animação industrial do período
silencioso. Com um desenho sofisticado e meticuloso, tão rico em detalhes que é
considerado barroco por alguns, a linha desenvolvida por McCay o foi seguida
pela indústria nascente nos EUA, que preferiu se apropriar do estilo simplificado
mais próximo daquele desenvolvido por Emile Cohl. De acordo com o historiador
e realizador norte-americano John Canemaker:
Winsor McCay (1867-1934) é o primeiro mestre de duas das formas de
arte nativas americanas: a história em quadrinhos e o desenho
animado. Embora inventado por outros, ambos os gêneros evoluíram
para uma duradoura arte popular, de mais alta imaginação, através do
gênio inovador de McCay
70
.
Canemaker observa que McCay dizia ter sido apresentado à animação quando
seu filho lhe trouxe vários flip-books publicitários, fato que se mostra improvável,
conforme nota o autor:
[...] o artista tinha uma afinidade natural para a animação, expressa no
movimento e na ação seqüencial em todas suas histórias em
quadrinhos e no seu ato de vaudeville. Além disso, seu interesse deve
70
CANEMAKER, John. Winsor McCay and the art of animation. In. Winsor McCay: the master edition. 1
DVD (110 min.). Preto & Branco e colorido à mão. Música (composição e execução): Gabriel Thibaudeau.
New Jersey: Milestone Film & Video and the Cinémathèque Québecoise, 2004. No original, “Winsor McCay
(1867-1934) is the first master of two indigenous American art forms: the comic strip and the animated
cartoon. Although invented by others, both genres were developed into enduring popular art of the highest
imagination through McCay’s innovative genius
.
Disponível em
<www.milestonefilms.com/pdf/WinsorMcCayPK.pdf>, acesso em 4 mar 2005.
38
ter se evidenciado ao ver os filmes de dois de seus contemporâneos:
James Stuart Blackton (1895-1941), um cartunista de jornal que mais
tarde fundou o Vitagraph Studios, é geralmente considerado por ter
produzido o primeiro filme usando a animação quadro-a-quadro, em
Humorous Phases of Funny Faces (1906), e Emile Cohl (1857-1938),
um caricaturista francês considerado o primeiro grande artista da
animação que, iniciando em 1908, criou mais de 200 curtas-metragens
repletos de gicas metamorfoses. Em 1909, os filmes de Cohl
alcançaram o auge da popularidade e eram regularmente importados
para os teatros dos Estados Unidos
71
.
Afirmar que a afinidade natural do artista para a animação é demonstrada
em suas histórias em quadrinhos é verdadeiro, porém impreciso. Estudiosos de
cinema e das artes plásticas admitem que o homem sempre buscou representar,
com maior ou menor perícia, o movimento percebido em seu entorno, desde que
tentou apreender magicamente a sua caça, retratar sua comunidade em rituais e
até mesmo o movimento aparente dos corpos celestes. No caso específico de
McCay isso teve o seu desenvolvimento natural no cinema de animação, onde ele
pôde representar não apenas o movimento, mas algo mais, fazer com que os
seus personagens aparentassem estar vivos. Canemaker nota que:
O estilo de animação de McCay personagens “realísticos”
desenhados de modo naturalístico com formas fechadas, projetando
uma ilusão de peso e possuindo personalidades distintivas, precede em
aproximadamente duas décadas o início do período maduro dos
estúdios de Walt Disney, em 1934
72
.
71
CANEMAKER, 2004. No original, However, as noted, the artist had a natural affinity for animation,
expressed in motion and sequential action throughout his comic strips and in his vaudeville act. His interest
must also have sprung from viewing the films of two contemporaries: James Stuart Blackton (1895-1941), a
newspaper cartoonist who later founded Vitagraph Studios, is generally considered to have produced the
first film using frame-by-frame animation of drawings Humorous Phases of Funny Faces (l906)), and Emile
Cohl (1857-1938), a French caricaturist considered to be animation’s first great artist who, starting in 1908,
created over 200 short films full of magical metamorphosis. In 1909, Cohl’s short films reached their height
of popularity and were regularly imported to theaters in the United States.”
72
CANEMAKER, 2004, p. 3. No original, McCay’s animation style — naturalistically designed “realistic”
characters made of closed forms, projecting an illusion of weight, and possessing distinctive personalities
predates by over two decades the beginnings of the Walt Disney Studio’s mature period in 1934.”
39
Assim, parece correto afirmar que as técnicas desenvolvidas por Emile Cohl
foram, no início da profissionalização dos estúdios de animação, mais utilizadas
do que aquelas do realismo de McCay, que seriam retomadas por Disney, em
meados da década de 1930.
Fig. 015 – História em quadrinhos de McCay - Little Sammy Sneeze (1904)
Em 1914, McCay lança Gertie, um personagem cujo filme contou com a
colaboração de John Fitzsimmons, que redesenhou os backgrounds originais de
McCay em cada folha. Mais tarde, a técnica de se fazer um background que seria
utilizado por vários quadros de animação foi facilitada pela introdução dos
acetatos, inventados em 1914, por Earl Hurd. Cartunista, quadrinhista e animador,
Winsor McCay foi um talento reconhecido e estimado em seu tempo,
redescoberto na década de 1960, após um período de esquecimento.
Os estudiosos em histórias em quadrinho também reconhecem em McCay
um artista muito criativo e preocupado com o desenvolvimento do meio. Publicado
no New York Herald, em 1904,
Little Sammy Sneeze (Fig.015)
evidencia o talento
para compreender a arte e a ousadia que tinha em literalmente derrubar as
40
barreiras que então a limitava, em um dos mais ricos exemplos de metalinguagem
já produzidos no meio.
Fig. 016 – Daumier - Les Poires (França, 1834)
FONTE – GOMBRICH, 1986, p. 300.
O estudo fotográfico das fases do movimento, iniciado pelo fotógrafo inglês
Muybridge, ainda no século XIX, influenciou o trabalho de McCay à mesma
proporção que influenciou diversos artistas
73
. No entanto, a inventividade do
artista ultrapassou os limites da imagem estática, dando-lhe novas cores no
contexto da arte seqüencial. Como observa John Canemaker “Duas séries
infantis, Little Sammy Sneeze(1904) e Hungry Henrietta(1905) sustentaram
esforços que testaram conscientemente princípios de animação através de
mudanças sutis nos movimentos dos personagens”
74
.
Essa característica, mesmo considerando-se a influência do cinema e dos
estudos pioneiros da fotografia (Muybridge, Marey), é bem própria do artista,
73
Nu descendo a Escada” – (1912), de Marcel Duchamp, é certamente um dos exemplos mais conhecidos
da influência da cronofotografia e de Muybridge nas artes plásticas. Cf. CHIPP, Herschel B. Teoria da arte
moderna. São Paulo; Martins Fontes, 1999, p.398.
74
CANEMAKER, 2004, p. 4. No original, Two child-strips, “Little Sammy Sneeze” (1904) and “Hungry
Henrietta” (1905) were sustained efforts that consciously tested principles of animation through subtle
sequential changes in the characters movements.”
41
combinando aspectos de criatividade artística, pesquisa imagética e a experiência
adquirida em suas atividades profissionais como ilustrador, criador de histórias em
quadrinhos e homem de espetáculos.
Fig. 017 – Edison – The Sneeze (EUA,1899)
Ainda conforme Canemaker, em Dreams of the Rarebit Fiends”, uma das
tiras de maior duração de McCay (1904-1911, revivida em 1913) o artista
desenvolve mudanças aceleradas em tamanhos e idades, tanto quanto
42
metamorfoses, permitindo mostrar mundos alternativos e de pesadelos
75
. Mais
uma vez, McCay faz avançar as possibilidades das técnicas conhecidas dos
cartunistas. A metamorfose era conhecida e utilizada por artistas nas artes
plásticas e nas artes gráficas. Um dos casos clássicos desse uso é aquele
patrocinado por Philipon
76
, em 1834, quando as feições do rei Luís Felipe foram
transformadas em pêra por Daumier (Fig.016).
Um filme de Edison, The Sneeze (EUA, 1895), pode ter servido também de
inspiração para a criação da série que inaugurou o sucesso de Mccay como
cartunista do New York Herald, após várias tentativas frustradas (Fig.017).
Fig. 018 – Winsor McCay - Petit Sammy Eternue (1906)
FONTE: COCONINO.
Paulo Rensie aponta que
75
CANEMAKER, 2004, p. 4. No original, “The adult-oriented ‘Dreams of the Rarebit Fiend’ one of
McCay’s longest-running strips (1904-l911, revived in 1913), featured as continuing themes nightmarish
alternative worlds with an emphasis on accelerated changes in size and age, as well as metamorphosis.”
76
GOMBRICH, E.H. (Ernst Hans). Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São
Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 300. Em francês, Poire é também sinônimo de imbecil, tolo. E o jornal
satírico de Philipon assim se referia ao rei da França Luís Felipe, tendo sido por isso condenado a pagar uma
multa elevada. Para justificar o uso do adjetivo ele mostrou a semelhança do rei com a fruta através de uma
seqüência de quatro desenhos onde se vê uma metamorfose do rei em pêra.
43
Sammy era uma curiosidade: durante dois anos (até 9 de dezembro de
1906) McCay contou todo domingo a mesma piada: a história de um
menininho que espirrava sempre no pior momento possível. Todos os
painéis la Muybridge) tinham exatos seis quadrinhos, sendo que, no
quinto, Sammy espirrava e no sexto sofria as conseqüências
(geralmente o pontapé de um adulto). As variações imaginadas por
McCay, sua atenção aos detalhes e o magfico desenho eram a
grande atração dessa série. Muitos se sentiram tentados a projetar os
quadros de Sammy em seqüência, tal a perfeição dos movimentos.
77
Essa tentação a projetar em seqüência os quadros das histórias de McCay
persiste ainda
78
e comprova que McCay desenhava à la Muybridge, procedimento
que, hoje, é de praxe entre cartunistas e animadores.
Fig. 019 – Muybridge , "Pandora" saltando um obstáculo (1887)
79
FONTE: DOVER PUBLICATIONS
77
RENSIE, Paulo. Histórias em imagens. Conforme <www.teorletal.oi.com.br/Pages/historias2.html>,
acesso em 26 dez 2006.
78
Josépé e equipe animou em Flash algumas histórias de Sammy Sneeze, a partir da versão francesa do
álbum de McCay, publicada por Hachette, em 1906, “Petit Sammy Eternue”.
Cf. < www.coconino-world.com/sites_auteurs/winsor/dec_sammy/mn_sammy.htm >
79
Colótipo, Plate 644, "Pandora" Jumping a Hurdle (1887) - as denominações originais são referentes à
publicação Muybridge's Complete Human and Animal Locomotion, three edition set, Dover Publications,
1979, conforme < www.laurencemillergallery.com/muybridge.htm > acesso em 18 abr 2005.
44
A importância do trabalho de Muybridge não se reduz à evidente
semelhança de composição entre as suas seqüências fotográficas e aquela dos
quadrinhos de McCay
80
. De modo semelhante àquele despertado em McCay, o
trabalho de Muybridge deu início ao estudo meticuloso do movimento,
relacionando-o ao tempo e ao efeito estético da ação (por mais cotidianas e
conhecidas que parecessem).
Fig. 020 Winsor McCayPetit Sammy Eternue (1906)
FONTE: COCONINO.
Poucas vezes as artes visuais tiveram tão bem representadas, e com tanto
sucesso popular, as divisões da narrativa clássica introdução, desenvolvimento
e final, em o poucas imagens e falas. A repetição da gag, apresentada todos os
domingos no New York Herald, fascinava os leitores que aguardavam a última
aventura, ou desventura, de Sammy. O rigor formal com que McCay dedicou-se
por quase dois anos, a produzir as histórias evidencia-se na escolha de uma
estrutura praticamente inalterável, de um ponto de vista fixo, que evidencia e cria
80
Muybridge continua sendo referência para os trabalhos artísticos, principalmente para aqueles artistas
empenhados em conhecer com maior profundidade o fenômeno do movimento, do homem e dos animais,
como é o caso dos artistas especializados em animação ou, como define Will Eisner, na arte seqüencial. Cf.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
45
seu ritmo propositalmente monótono. Sempre seis quadrinhos, nos quais a
situação é apresentada no primeiro quadro; no segundo já inicia o crescente
dramático que, subitamente, no quinto quadrinho se desenrola a reviravolta (plot
point) sempre aguardada e sempre surpreendente. No sexto requadro
81
, o
desfecho onde o herói, às vezes, é punido, quase sempre com um pontapé e, às
vezes, sai de mansinho ou assiste, indiferente, às conseqüências de suas ações.
Considerando-se as possibilidades oferecidas a um estudioso dos
trabalhos de Muybridge, em termos de composição, evidencia-se a escolha
consciente pela simplicidade da ação, e do ponto de vista único. Assim, o sexto
quadrinho é muitas vezes mostrado por outro ponto de vista, passando ao leitor a
sensação de um corte temporal na estrutura narrativa da história. Não é difícil
imaginar o impacto do trabalho de Muybridge, Marey e outros homens da ciência
no ambiente artístico da época. Com prudência, e por sua importância no
entendimento do movimento dos animais, pode-se afirmar uma influência de
origem muybridgeana comum para os quadrinhos e para o cinema de animação.
Mas não se deve desconsiderar os inúmeros espetáculos populares da época,
apresentados em salas escuras e que, durante algum tempo, dividiram os
espaços populares com o nascente cinematógrafo, com nomes exóticos como,
Phantasmagoria, Lampascope, Panorama, e muitos outros
82
. Tampouco se pode
esquecer da veia cômica da caricatura que, a partir da difusão da imprensa, foi
aprimorada graficamente, contando com a colaboração de nomes renomados e
com sua popularização como forma de crítica e de humor.
Em 1959, Gombrich dava a Rodolphe Töpffer “o crédito – se é que se pode
falar em crédito da invenção e difusão da história figurada, isto é, em
quadrinhos”
83
. Esse artista e estudioso suíço hoje é reconhecido por seu
pioneirismo em estruturar as histórias ilustradas, chamando a atenção dos seus
contemporâneos para o valor de entretenimento e de educação inerentes ao
81
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 44. Conforme o autor, o
requadro, além de sua função principal de moldura dentro da qual se colocam os objetos e ões, o requadro
em si pode ser usado como parte da linguagem “não verbal” da arte seqüencial. Existem vários tipos de
requadro: requadros retangulares com traçado reto, que, em geral, sugerem que as ações nos quadrinhos estão
no tempo presente. Os traçados sinuosos ou ondulado é indicador mais comum de passado, mudando o
traçado também nos casos de som, emoção ou pensamento.
82
MACHADO, 2005, p. 19.
83
GOMBRICH, 1986, p. 295.
46
meio. Essa posição destacada deve-se, em parte, ao fato de que sua produção
coincide com o desenvolvimento da técnica da litografia. Do mesmo modo que o
cinema, também os precursores da arte seqüencial se perdem no tempo e a
maior parte dos seus colaboradores será para sempre uma entidade única,
desaparecida no tempo, mas de importância primordial pelos incontáveis avanços
que proporcionaram.
Winsor Zenis McCay contribuiu de maneira significativa para o cinema de
animação, para o qual levou toda a sua experiência de criador de histórias em
quadrinhos e de conhecedor das expectativas em relação aos espetáculos
populares, pois estava familiarizado com estas apresentações públicas nas
feiras e vaudevilles onde apresentava seus espetáculos como desenhista rápido e
criativo. Seu primeiro filme realizado foi Little Nemo in Slumberland (EUA, 1911),
mas foi com Gertie the dinosaur (EUA, 1914) que o artista pôde explorar o
potencial que via no cinema de animação.
Grande parte dos estudiosos aponta para uma influência direta de James
Stuart Blackton e de Emile Cohl nos trabalhos iniciais de Winsor McCay. John
Canemaker afirma que
McCay apropriou-se desses pioneiros em seu primeiro filme. De
Blackton, ele adaptou o motivo iconográfico de um artista vivo
desenhando personagens que ganham vida. De Cohl, ele usou
abstrações fluindo livres das linhas do lápis que formavam personagens
reconhecíveis. Onde McCay se diferenciava de seus pares era em sua
habilidade para animar seus desenhos sem sacrifícios dos detalhes da
linha; aquela, mais o movimento fluido, o timing
84
naturalista, a
84
Tanto no estudo quanto na realização de filmes animados, deve-se estar atento às traduções de termos
técnicos, principalmente quando estes assumem papel fundamental no entendimento desta arte. Deve-se
destacar que, primeiramente, o termo é designado pelo uso. Como o cinema de animação não é uma atividade
cotidiana (menos ainda industrial) em nosso país, a maior parte dos termos não gerou um correspondente na
língua. Isso produz equívocos, às vezes mais graves, outras vezes menos, mas sempre desnecessários e
principalmente preocupantes, pelo mau uso do idioma e por levar a uma assimilação incompleta ou mesmo
errônea de conceitos. Para o princípio fundamental da animação denominado TIMING, por exemplo, Alberto
Lucena Junior traduz o termo por temporização (Barbosa Junior:115) que, conforme o Aurélio, significa “Ato
ou efeito de temporizar; temporizamento”. E segue que: temporizar: 1.Adiar, retardar, demorar, delongar /
2.Transigir; condescender; contemporizar 3.Haver-se com delongas. 4.Esperar outra ocasião. Na mesma
linha, não no mesmo contexto, o livro A Imagem, (Jacques Aumont: 107) usa o termo imagem temporalizada
para se referir aos domínios que trabalham a imagem no tempo (cinema, vídeo) e não-temporalizada para os
outros (pintura, gravura, foto). Aumont afirma; “somente a primeira é suscetível de dar a ilusão temporal
convincente”. No Aurélio, Temporalizar é “Tornar temporal; secularizar”. Desse modo, parece não haver
47
impressão de peso, e eventualmente a injeção de traços de
personalidade em seus personagens são as qualidades que McCay
trouxe primeiramente para a meio da animação.
85
Para realizar sua primeira animação, McCay gastou cerca de um ano,
fazendo aproximadamente quatro mil desenhos, sobre papel de arroz e tinta
nanquim. Para prender e alinhar as folhas ao desenhar e fotografar, de modo a
manter o registro dos desenhos, usou um prendedor de madeira e marcas de
registro (cross hairs) no canto das folhas. Para dividir os segundos McCay
cronometrou a duração dos movimentos, além de utilizar um mutoscópio
86
para
conferir a suavidade do movimento
87
.
Fig. 021 – Winsor McCay - Little Nemo in Slumberland (EUA, 1911)
O filme pode ser resumido pela frase “vejam-me mover”, mostrada após
uma breve aparição do personagem Flip. Sem descuidar da qualidade dos
desenhos, o filme consiste em uma sofisticada experiência na qual o artista testa
possibilidades para a animação.
uma palavra em língua portuguesa que seja sinônimo exato para timing . Não se deve esquecer, no entanto,
que, em animação, ela é um termo técnico e por isso tem em seu uso, as suas características definidas com
maior exatidão (Cf. p.133, capítulo 3).
85
CANEMAKER, 2004, p. 5. No Original, McCay borrowed from both of these pioneer animators in his
first film. From Blackton he adapted the iconographic motif of a live artist drawing characters that come to
life; from Cohl, he used free-flowing abstractions of pencil lines forming into recognizable characters. Where
McCay differed from his peers was in his ability to animate his drawings with no sacrifice in linear detail;
that, plus fluid motion, naturalistic timing, the feeling of weight, and eventually the injection of personality
traits into his characters are qualities that McCay first brought to the animation medium.
86
O mutoscópio foi o visor de maior sucesso, inventado em 1894 pelo americano Herman Casler. Girando
uma manivela, os cartões passavam, fazendo a figura mover-se.
87
SOLOMON, p. 16.
48
Os personagens movem-se em um espaço sem cenários, mas existe a
ilusão de espaço pelo hábil uso do movimento em perspectiva, fazendo os
personagens aumentarem ou diminuírem, conforme a distância em que se
encontram do primeiro plano.
Fig. 022Winsor McCay - Little Nemo in Slumberland (EUA, 1911)
O filme contava com dois grandes apelos para encantar o público. Primeiro,
os personagens consagrados na história em quadrinhos de McCay, Little Nemo
in Slumberland, além da obstinação em desenhar detalhes com qualidade técnica
apurada e um senso estético rigoroso. As influências de Muybridge, Blackton e
Cohl já são aceitas como inequívocas pela maioria dos estudiosos.
Ninguém soube o que fazer de Little Nemo”. Ninguém tinha visto algo
como aquilo. Os filmes de Blackton e Cohl mostravam linhas simples e
figuras palitos executando movimentos simples. A sofisticada animação
de McCay retratava personagens, representados completamente, que
se moviam suave e realisticamente. Para o desapontamento do artista,
49
o público supôs que ele tinha feito o filme usando algum tipo de truque
fotográfico com atores vivos.
88
O primeiro filme animado de McCay realmente apresenta figuras mais
realisticamente elaboradas do que as de Blackton e de Cohl. James Stuart
Blackton preferiu investir o seu tempo nos negócios do Vitagraph Studio do que
no desenvolvimento do cinema de animação
89
. E, após 1908, Emile Cohl investiu
grande parte de sua energia no desenvolvimento de técnicas de animação.
Considerando a qualidade técnica e narrativa já alcançada por Winsor
McCay no desenho de suas histórias em quadrinhos, sua primeira animação não
apresenta grandes novidades. O prólogo do filme em live-action e as
metamorfoses já haviam sido usados por Blackton e por Cohl. Assim, neste
primeiro filme, a novidade foi uma caracterização mais realística dos
personagens, o que era inerente à sua proposta de apresentar
cinematograficamente os mesmos personagens que faziam sucesso nas tirinhas
dominicais do New York Herald e de outros jornais, nos Estados Unidos e em
outros países. A completa identificação dos personagens pelo público era tão
importante para McCay que ele pintou manualmente
90
cada um dos fotogramas
da parte animada do filme, que totalizavam aproximadamente quatro mil frames:
Nenhum registro indica como ou onde McCay conheceu Blackton, ou o
quanto eles se conheciam; mas os desenhos foram fotografados no
Vitagraph Studio no Brooklyn, e Blackton dirigiu o prólogo em live-
action. O filme foi completado em janeiro de 1911, e McCay pintou cada
quadro para igualar com as cores das histórias em quadrinhos. Estreou
88
SOLOMON, p. 16. No original, No one knew what lo make of "Little Nemo." No one had seen anything
like it. The films of Blackton and Cohl showed simple line or stick figures performing elementary motions.
McCay's sophisticated animation depicted fully rendered characters who moved smoothly and realistically.
To the artist's chagrin, audiences assumed lie had made the film using some sort of trick photography of live
actors.
89
Cf. SOLOMON, p. 13.
90
WILJEANCOLAS, Jean-Pierre. Nascimento e desenvolvimento da sala de cinema. In: Revista Eletrônica
O Olho da História. 2004. Disponível em <www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/salasdecinema.pdf >, acesso
em 30 abr 2005. Conforme o autor, o procedimento de colorir os filmes manualmente era rotineiro por
volta de 1896. p. 4.
50
em 12 de Abril de 1911 no Colonial Theatre em Nova York como parte
do número de vaudeville de McCay.
91
Fig. 023 – Winsor McCay - Como um Mosquito Opera (EUA, 1912)
Como um Mosquito Opera (How a Mosquito Operates, EUA, 1912) foi o
segundo filme de McCay. Também conhecido como A História de um Mosquito, o
filme narra a história de um mosquito chamado Steve, que sugava tanto sangue
que explodia. Novamente a reação do público foi de divertir-se muito, acreditando,
porém, que o filme fora feito a partir de artifícios segundo os quais um mosquito
morto havia sido manipulado por fios, como um fantoche, e copiado por McCay.
92
O realismo dos desenhos de McCay sempre apontou influência das
imagens fotográficas. McCay, deixando-se cativar pelo cinema de animação, na
época em que “completou Mosquito’ passou a declarar que a animação que
91
SOLOMON, p. 16. No original, No records indicate how or when McCay met Blackton, or how well they
knew each other; but the drawings were photographed at the Vitagraph Studio in Brooklyn, and Blackton
directed ihe live-action prologue. The film was completed in early January 1911, and McCay hand-tinted
each frame to match the colors of the comic strip. It premiered on April 12 at the Colonial Theatre in New
York as part of McCay's vaudeville act.
92
SOLOMON, p. 16. No original, “McCay's second film, "How a Mosquito Operates" (1912), also known as
"The Story of a Mosquito," met with similar reactions. Audiences enjoyed the antics of Steve, the dapper
mosquito who sucks too much blood from a fat man and explodes, but assumed McCay had rigged a dummy
mosquito on wires.”
51
tinha sido considerada uma curiosidade divertida era uma nova forma de arte
capaz de suplantar as tradicionais artes pictóricas”
93
. Essa posição inicial,
recorrente ao longo da carreira de McCay, indica o valor com que ele considerava
a nova arte e o potencial latente que enxergava no novo meio.
Fig. 024 – Winsor McCay - Gertie the Dinosaur (EUA, 1914)
O terceiro filme de McCay foi Gertie the Dinosaur (EUA, 1914). A escolha
de um dinossauro como personagem do novo filme é explicada por Solomon, por
ser um motivo que não poderia ser fraudado
94
. John Canemaker afirma que
Determinado a fazer de Gertie o mais belo cartoon animado de seu
tempo, McCay pesquisou meticulosamente a estrutura dos dinossauros
através do estudo de seus ossos e experimentou com o sincronismo de
ações específicas para fazer a criatura pré-histórica super-realista. O
filme, que estreou em seu número de vaudeville em fevereiro de 1914, é
um exemplo precoce de performance multimídia, pois quando o McCay
vivo estalava o chicote e bradava o comando, o dinossauro do filme
parecia responder. Os traços de personalidade investidos em Gertie
fazem dela de fato única; seu temperamento infantil é muito afetuoso
93
SOLOMON, p.17. No original, Around the time McCay completed "Mosquito," he began to declare that
animation which had been regarded as an amusing curiosity was a new art form that would supplant
the traditional pictorial arts.”
94
SOLOMON, p.17. No original, “For his next film, McCay chose a subject that couldn't be faked: a
prehistoric animal.”
52
quando, repreendida por um acesso de enfado, ela chora imensas
lágrimas, revelando assim a alma de uma menininha dentro do monstro
Hulk.”
95
É possível admitir que McCay tenha escolhido um ser pré-histórico para
personagem principal de seu terceiro filme por se sentir atingido pelas
desconfianças do público quanto à autenticidade de suas animações anteriores. E
que tenha investigado a estrutura anatômica dos dinossauros, pelo rigor técnico e
artístico típico de seus trabalhos. Uma análise de suas histórias em quadrinhos e
a atuação de Gertie no filme, aponta também para influências mais reais e mais
próximas ao artista.
Fig. 025Winsor McCay - Gertie the Dinosaur (EUA, 1914)
95
CANEMAKER, 2004. p. 5. No original, Determined to make Gertie the finest animated cartoon of its
time, McCay painstakingly researched the structure of dinosaurs by studying their bones and he
experimented with the timing of specific actions in an effort to make the prehistoric creature super-realistic.
The film, which premiered in his vaudeville act in February 1914, is an early example of multi-media
performance, for when the live McCay cracked a bullwhip and barked commands, the film dinosaur
appeared to respond. The personality traits invested in Gertie make her truly unique; her childish
temperament is most endearing when, admonished for a fit of pique, she cries huge tears, thus revealing
the soul of a little girl within the monster’s hulk.”
53
Considerando-se que, em lugar de um dinossauro, o espectador estaria
assistindo a um espetáculo circense, de um dócil e treinado elefante, comparando
ação de seu peso e movimentação com aqueles obtidos por McCay em seu filme
e, novamente, considerando-se as séries fotográficas de Muybridge, de animais
em movimento, verifica-se que o artista tinha bases consistentes para, com sua
invejável imaginação e talento, recriar o animal pré-histórico em seu filme. Tais
aspectos, bastante plausíveis, reiteram a maestria do trabalho de McCay, que
metamorfoseia seu próprio ambiente para animar um novo mundo, onde o próprio
artista é o elo, saindo do mundo real para penetrar imageticamente no mundo da
animação.
Fig. 026 – Winsor McCay – Gertie the Dinosaur (EUA, 1914)
Donald Crafton denomina como “artesãos” Emile Cohl e Winsor McCay
96
.
Certamente, o termo mais apropriado é artista, devido à produção e ao
posicionamento crítico no fazer do filme. Seguramente, a denominação de Crafton
96
CRAFTON, 1997, p. 73.
54
busca demonstrar não o fim do trabalho dos artistas, ou artesãos – como queiram,
mas sim evidenciar o surgimento de uma época na qual a indústria será
predominante, ofuscando quase todas as tentativas individuais de realização de
filme animados.
Fig. 027 – Emile Cohl – desenho de personagem em movimento sucessivo e em perspectiva.
FONTE – LO DUCA, p. 23.
A importância desses artistas para o cinema de animação vai além do
pioneirismo. Eles descobriram e desenvolveram primeiramente as técnicas
fundamentais do filme animado, além de apontarem novas possibilidades para as
próximas gerações de animadores. Crafton resume as inovações de Cohl,
Artista um tanto obsessivo, Cohl planejou rapidamente numerosos
procedimentos de animação que permanecem fundamentais, como os
postos de animação iluminados, com câmeras acionadas eletricamente
e montadas verticalmente, e tabelas para cálculo de duração de
movimentos e de profundidade de campo das lentes. Ele colocou sob a
câmera vários tipos de mídia, incluindo desenhos, modelos, marionetes,
recortes fotográficos, areia, impressões, e objetos variados
97
.
97
CRAFTON, 1997. p.73. No Original, A rather obsessive artist, Cohl quickly devised numerous animation
procedures which remain fundamental, such as illuminated animation stands with vertically mounted
electrically driven cameras, and charts for calculating movement duration and lens depth of field. He placed
various media under the camera, including drawings, models, puppets, photographic cut-outs, sand, stamps,
and assorted objects”.
55
Conforme Crafton, em 1914, trabalhando na filial americana da Éclair,
Emile Cohl animou The Newlyweds and their Baby, os personagens de George
McManus, já famosos nas histórias em quadrinhos. O autor conclui que o sucesso
dessa série influenciou outros cartunistas de jornais a produzir a versão animada
de seus próprios trabalhos
98
.
Crafton observa que Winsor McCay, ao lançar Gertie, contribuiu para
aumentar a popularidade do gênero. Na mesma direção, Charles Solomon
constata:
Nesse filme, McCay assenta as bases da animação de personagem, a
arte de delinear uma individualidade dos personagens através de um
estilo único de movimento. A amável, um tanto infantil, personalidade
do dinossauro é comunicada através de seus movimentos o ângulo
com o qual ela levanta a cabeça enquanto escuta o comando; a
impudência com que ela sacode sua calda enquanto desobedece. O
público finalmente percebeu que estava vendo algo novo: um filme
composto de desenhos.
99
A importância de Gertie, além do reconhecimento público ao trabalho
artístico de animação de McCay, estende-se desde o impacto causado sobre um
grupo de jovens resolvidos a se tornar animadores após terem visto o filme
(incluindo Walter Lantz, Dave Fleischer e Dick Huemer
100
), até a então nascente
indústria do cinema de animação, especificamente do cartoon animado.
Após Gertie, McCay produziu O Naufrágio do Lusitânia (The Sinking of the
Lusitania, EUA, 1918), no qual levou vinte e dois meses para completar os vinte e
cinco mil desenhos do filme, pela primeira vez fazendo uso dos acetatos em seu
trabalho. Charles Solomon enumera que
Entre 1918 e 1921 McCay trabalhou em alguns projetos de
animações”.The Centaurs”, “Flip´s Circus” e “Gertie on Tour”
98
CRAFTON, 1997. p.73
99
SOLOMON, p.17. No original, “In This film, McCay laid the Foundations of character animation, ithe art
of delineating a character's personality through a unique style of movement. The endearing, somewhat,
childish personality of the dinosaur is communicated through her motions the angle at which she cocks
her head while listening to a command; the impudence with which she flicks her tail while disobeying it.”
100
SOLOMON, p.17.
56
sobrevivem apenas em fragmentos. Três curtas-metragens baseados
em “Dreams of the Rarebit Fiend” foram lançados em 1921.
101
Conforme Solomon, ninguém sabe porque, após os filmes da rie
Rarebit”, McCay desistiu da animação. Em 1917, McCay teve de diminuir suas
apresentações de vaudeville a pedido de Hearst
102
. A principal razão pela qual
abandonou a animação parece ter sido o desgosto com os rumos tomados pelo
meio na era da indústria dos filmes silenciosos, que ele corretamente via como
inferior ao seu próprio trabalho.
Na revista Cartoonist Profiles, I. Klein, cuja carreira de animação
começou na International Film Service de Hearst em 1918, descreve um
jantar em homenagem a McCay, dado pelos artistas da jovem indústria
de animação em 1927. Após uma enfadonha introdução, McCay
proferiu um curto discurso. “Ele concluiu com uma declaração que ficou
em minha mente ‘Animação poderia ser uma arte, que é como eu a
concebi, mas eu vejo que vocês companheiros têm feito disso um
negócio... não uma arte, mas um negócio... falta de sorte.’ Ele sentou-
se. Houve alguns aplausos dispersos”.
103
A produção industrial dos cartoons animados não ousou seguir os
caminhos propostos por McCay. O tempo de produção exigido pelos seus filmes,
medidos em meses ou anos, eram proibitivos para os orçamentos destinados aos
filmes animados. Isso somente mudaria com o fortalecimento dos estúdios Disney
e dos outros grandes estúdios, após o advento no cinema sonoro. O ritmo
101
SOLOMON, p.18.
102
McCay foi contratado em 1911, por William Randolph Hearst, ainda como parte de sua estratégia de
expansão (Nesse episódio, conhecido como a guerra dos quadrinhos, iniciado em 1895, com o lançamento
de personagem do desenhista Richard Felton Outcault (mais tarde seria conhecido como The Yellow Kid), os
donos dos principais jornais de Nova York faziam de tudo para aumentar o número de leitores. Os principais
participantes desse “conflito” foram: Joseph Pulitzer, do The New York World, William Randolph Hearst
com o seu New York Morning Journal, e James Gordon Bennett do New York Herald. A disputa foi mais
acirrada entre os dois primeiros. Cf: Capítulo 2, p.73-74 e os sites: www.burburinho.com/20020602.html;
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/mat2009g.htm;
www.popbaloes.com/mats/hqnasala6.html
103
SOLOMON, p. 18. No original, In the magazine Cartoonist Profiles, I. Klein, whose animation career
began at Hearst’s International Film Service in 1918, described a testimonial dinner honoring McCay, given
by the artists of the fledgling animation industry in 1927. After a fulsome introduction, McCay gave a short
speech. “He wound up with a statement that has remained in my mind… ‘Animation should be an art, that is
how I conceived it… but as I se what you fellows have done with it is making it into a trade… not a n art, but
a trade… bad luck.’ He sat down. There was some scattered applause.”
57
necessário para atender à demanda, que aumentava a cada dia, tinha maior
identidade com as técnicas de simplificação propostas por Emile Cohl. A diferença
numérica da produção dos dois artistas não impediu que ambos tivessem um
destino semelhante. Esquecidos pela indústria e pelo público, foram reconhecidos
somente após a morte como os alicerces e primeiros mestres da nova arte, que
cedia espaço para o nascimento de um novo elo na indústria cinematográfica: a
indústria do desenho animado.
Fig. 028 – Winsor McCay - O Naufrágio do Lusitânia (EUA, 1918)
58
Fig. 029 – Winsor McCay - The Centaurs (EUA, c. 1918-21).
59
2
O NASCIMENTO DA INDÚSTRIA DO DESENHO ANIMADO
A indústria do desenho animado tornou-se a base de sustentação do
cinema de animação norte-americano. Nos primeiros anos, havia ainda
experimentações em outras técnicas de animação, principalmente stop-motion,
praticamente abandonadas posteriormente (principalmente a partir dos anos de
1920), devido ao desenvolvimento e à viabilidade cada vez maior do cartoon
animado. De modo geral, não se renunciou às experimentações dentro da
indústria esta apenas concentrou-se em técnicas que poderiam ser trabalhadas
junto ao cartoon, ou seja, as técnicas em duas dimensões predominaram, como o
uso da fotografia ou dos recortes. Após a I Guerra Mundial, que dificultou a
produção cinematográfica da Europa, quase toda a produção industrial de
cartoons era norte-americana, visto a grande força que esses estúdios passaram
a ter, em grande parte em decorrência do conflito bélico. Isso não significa que
essa superioridade refletia-se em estabilidade ou em qualidade. Em menos de
duas décadas, o cartoon animado passou por importantes aprimoramentos
técnicos, possibilitando o desenvolvimento de um estilo de animação, filiado ao
modelo griffithiniano, que seria conhecido como animação clássica
1
. O diretor e
animador Celso (Céu) d´Elia define que
dentro das diferentes modalidades de animação, uma outra forma de
divisão se faz: quando o movimento busca uma expressão natural,
querendo tornar crível a relação personagem-tempo-espaço, falamos de
animação clássica; ela possibilita a identificação do espectador com o
filme nos níveis emocional e narrativo. Quando as leis naturais são
1
O desenvolvimento do cinema de animação clássica será aprofundado a partir do capítulo IV.
60
ignoradas e prevalecem o exagero e o delírio, estamos falando de
animação cartum. Tudo é possível.
2
Essa definição, dada por Céu d’Elia, é bastante difundida. Entretanto,
devem ser ressaltados alguns pontos: geralmente, nos EUA, cartoon é o termo
usado para denominar desenho animado, não importando se a animação é
realística ou não. No Brasil, o sentido, mais usual, se aproxima da definição dada
por Céu D’Elia. Luiz Oswaldo Rodrigues (LOR), define:
O termo cartum é bastante conhecido e nós o compreendemos como
"desenho de humor de um modo geral". A expressão surgiu pelo fato
dos desenhistas usarem um papel "cartão" para os desenhos que
seriam impressos nos jornais
3
.
Por extensão, no Brasil, o termo cartum é associado ao desenho “animado”
de humor de um modo geral
4
. Para o termo animação clássica prevalece o
entendimento do cinema de desenho animado construído conforme as cnicas
convencionais desenvolvidas pela indústria norte-americana, notadamente o
estúdio Disney, nas décadas de 1930 e 1940. Assim, não apenas os filmes que
buscam a impressão de realidade, mas também aqueles nos quais os
personagens desafiam as leis naturais podem ser considerados como animação
clássica. Desse modo, consideram-se como animação clássica a produção dos
estúdios de Fleischer, Warner Bros., Metro Goldwyn Mayer (MGM), Universal,
Paramount e Disney, dentre outros. Hoje, o termo é usado ainda para diferenciar
a animação convencional, principalmente aquela produzida para o cinema, pelos
grandes estúdios dos anos de 1930 a 1950, daquela produzida a partir da década
de 1950 para a programação das redes de televisão:
Animação Simplificada - Recurso que dispensa o uso de número
suficiente de desenhos para cada segundo de ação, resultando
movimentos mais duros e quebrados. Bastante utilizado na produção de
2
D´ELIA, Celso. Animação, técnica e expressão, in. BRUZZO, Cristina (org) Animação, 1996, p. 167.
3
RODRIGUES, Luiz Oswaldo (LOR). Quadrinhos: história e análise (curso). Belo Horizonte:
Coordenadoria de Cultura do Estado de Minas Gerais, 1979, p. 11.
4
Neste estudo, são utilizados cartoon (grafado em inglês) ou cartoon animado, como sinônimos de desenho
animado.
61
séries para a televisão. Os bonecos têm poucas cores e movimentos, e
passam a maior parte do tempo falando.
5
De modo geral, alguns termos são usados (quase sempre) como
sinônimos: animação clássica, animação convencional e animação tradicional.
Esses termos são utilizados para definir a técnica de animação. Quando o filme é
feito em animação em desenho animado 2D, utiliza-se um desses termos,
principalmente para diferenciar das técnicas de animação experimental e da
animação digital em 3D.
Retornando a definição dada por Céu D’Elia para animação clássica, temos
o conceito de realismo “expressão natural, querendo tornar crível a relação
personagem-tempo-espaço” e também os conceitos relativos à dramaturgia
clássica, de Aristóteles. É certo que toda forma de arte busca, em maior ou menor
grau, a representação da realidade ou de alguns de seus aspectos, sejam
sensoriais, emocionais ou psíquicos. No entanto, a representação almejada pelo
cinema realístico (Disney e outros estúdios com preocupações semelhantes) está
mais próxima a uma busca em recriar, pela arte do desenho animado, o espaço
fílmico (semelhante ao) do cinema fotográfico e, deste modo, atingir a impressão
de realidade, no sentido clássico, como assinalada por Jacques Aumont:
Um exemplo particularmente importante de regulagem da distância
psíquica por um dispositivo de imagens é o que se chamou
classicamente impressão de realidade
6
no cinema. De fato, desde que
existem, os filmes sempre foram reconhecidos e isso com relão a
qualquer assunto, por mais fantasista que seja como singularmente
críveis.
7
Essa afirmação é (quase) natural para o cinema fotográfico, mesmo para
os temas fantasistas, como afirma Aumont. Para o cinema de animação, talvez
esse reconhecimento seja mais complexo, mas certamente existe uma relação do
espectador com o filme que suplanta a questão da mimese ou da representação
5
BRUZZO, Cristina. Animação. São Paulo: FDE, 1996, p. 210.
6
Grifo do autor.
7
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas : Papirus, 2004, p. 110.
62
fotográfica. O termo cinema clássico precisa ser sempre usado com atenção,
principalmente, devido aos vários sentidos que o termo adquire em diferentes
contextos. Jacques Aumont e Michel Marie citam alguns de seus significados. Os
autores esclarecem que, “em seu sentido original (‘de primeira linha’, ‘digno de ser
estudado’, ‘que tem autoridade’), a palavra [clássico] qualifica filmes, cineastas,
escolas cujos historiadores consideram-se [sic] exemplos notáveis da arte do
cinema”. Os autores continuam
A palavra é mais precisa em um sentido retomado da história das artes,
para designar um período da história das formas fílmicas. Esse segundo
sentido é também variável, conforme as conotações que se concedem
ao termo "clássico". Para Rohmer (1953), a era clássica de uma arte é a
que realiza melhor as possibilidades estéticas intrínsecas dessa arte
[...].
8
Os autores complementam que “[...] o sentido mais corrente, constituído a
partir da crítica ideológica da década de 1970 e da análise textual, identifica
‘cinema clássico’ e ‘cinema clássico hollywoodiano’”. E constatam que
Nesse sentido restrito, trata-se, a um só tempo, de um período da
história do cinema, de uma norma estética e de uma ideologia. Sua
periodização é incerta, mas considera-se, no mais das vezes, que a era
clássica termina no final da década de 1950, com o desenvolvimento da
televisão - que dá um golpe decisivo na preponderância do cinema
como mídia - e com a emergência desses "novos cinemas" europeus,
que questionam o estilo da transparência. O início é mais difícil de ser
fixado, mas ele remonta ao menos à década de 1920, durante a qual a
indústria hollywoodiana constituiu sua estrutura oligopolística e cujo
estilo já está fixado.
Deve-se ressaltar que, como visto, muitas vezes, o termo “animação
clássica”
9
assume o sentido restrito assinalado pelos autores, referindo-se a
aqueles filmes produzidos pelos grandes estúdios e animadores norte-americanos
8
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2006, p.
54.
9
Para essa acepção é preferível o termo “clássico da animação”, que pode ser estendido a qualquer obra
marcante da animação, independentemente da técnica e lugar de origem.
63
no período conhecido como a Era Dourada da animação (The Golden Age), que
compreende o final dos anos vinte (1928) ameados da cada de 1940, e no
período seguinte (1946-1960), que é conhecido como a Era de Prata (The Silver
Age)
10
.
Dois nomes se destacaram no período anterior ao da industrialização do
cartoon. O primeiro foi Emile Cohl que, com seus filmes animados produzidos a
partir de 1908, marcou o início do desenvolvimento do cinema de animação como
meio específico dentro da indústria cinematográfica. O segundo nome
11
foi Winsor
McCay, cujo valor para o filme animado é reconhecido devido, em grande parte,
ao sucesso de Gertie the Dinosaur e ao seu impacto junto aos novos animadores
da era industrial.
Em 1913, o canadense Raoul Barré abriu em Nova York o primeiro estúdio
de cinema especializado em animação, em sociedade com William C. Nolan, o
Studio Barré-Nolan. Nota-se que eles não foram os primeiros artistas nos EUA a
trabalharem a animação com finalidades de entretenimento e de publicidade.
Emile Cohl trabalhou de 1912 a 1914 na filial americana da Éclair, e o próprio
Barré, após 1910, havia feito filmes experimentais com Nolan e, mais tarde, filmes
publicitários. A importância e o diferencial do novo estúdio era o fato de ser
especializado em animação, criando um ambiente propício ao desenvolvimento
técnico e à formação de novos animadores.
Da popularidade de ‘The Newlyweds’, das extravagâncias de McCay, e
os lançamentos esporádicos de animadores estreantes ficou claro que o
público estava se encantando com esses filmes. O problema era que o
oficio era tão trabalhoso que o retorno lucrativo era insuficiente para
compensar os custos de produção. Cohl e outros tinham tentado usar
10
As datas que identificam o final da Era de Ouro variam em função do modo como os autores consideram o
período da II Guerra Mundial. Desse modo, para Solomon, o período termina em 1941 (SOLOMON, p. 183).
Para Leslie Cabarga (CABARGA, 1988), essa era estende-se de 1920 até 1942 anos que marcam também o
início e o final da atuação dos irmãos Fleischer, como protagonistas da história do cinema de animação. Para
Michael Barrier, a Era de Ouro estende-se de 1928 até 1966 (BARRIER, 1999, p. xi).
11
A ordem aqui adotada refere-se ao surgimento dos trabalhos com o desenho animado, não pretendendo
classificar a importância desses pioneiros.
64
recortes para substituir alguns desenhos demorados, mas isso
comprometia o interesse gráfico dos filmes.
12
Fig. 030 – Winsor McCay: Desenhos com marcas de registro (cross-hairs) de Gertie the Dinosaur
(EUA, 1914).
Crafton afirma que Barré e Nolan somente começaram a fazer filmes
animados em 1915 para Edison. O autor credita a Barré a introdução do conceito
de divisão de trabalho
13
. Outra grande contribuição de Barré foi a introdução do
sistema de peg-bars (barra de pinos), que viria a se tornar não apenas o padrão
da indústria norte-americana e também mundial, mas um elemento essencial da
animação de desenhos. Antes do desenvolvimento desse sistema, cada artista
usava meios próprios para realizar os seus filmes. McCay, por exemplo, fixava
com prendedores de madeira os papéis para desenhar e fotografar suas
animações e mantinha os desenhos posicionados corretamente, usando marcas
de registro (cross ,hairs)
14
.
O desenvolvimento do sistema peg-bar foi uma decorrência natural da
necessidade de desenvolver padrões que permitissem a economia de tempo e de
custos na produção industrial de filmes.
12
CRAFTON, Donald. Tricks and animation. In: NOWELL- SMITH, Geoffrey (Ed). Oxford History of
World Cinema: The definitive history of cinema worldwide. Nova York: Oxford University Press, 1997, p.73.
No original, From the popularity of ‘The Newlyweds’, McCay’s extravaganzas, and the sporadic releases by
novice animators it was clear that audiences were delighting in these films. The problem was that the craft
was so labour-intensive that the rental return was insufficient to offset production costs. Cohl and others had
tried to use cut-outs to replace some of the time-consuming drawing, but this compromised the graphic
interest of the films”.
13
CRAFTON, 1997, p. 6. Conforme o autor, a divisão de trabalho desenvolvida por Barré era melhor do que
a da indústria automobilística, baseada em nível hierárquico.
14
Bray e McCay utilizavam folhas impressas com as linhas de registro nos cantos de cada folha.
65
É atribuída a Barré a invenção do sistema peg de registro. Pinos
idênticos eram fixados em cada uma das mesas de desenho dos
animadores, e os papéis eram perfurados para se unirem aos pinos. Os
pinos fixavam o papel no lugar, não apenas enquanto o animador
estava desenhando mas também quando os desenhos eram traçados e
fotografados. Esse sistema continua em uso até hoje”
15
.
Um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento inicial do desenho
animado era a necessidade de redesenhar o fundo nas folhas nas quais os
personagens eram desenhados (animados). Em Gertie, Winsor McCay contornou
o problema contratando seu vizinho, John Fitzsimmons
16
, para redesenhar o
fundo em cada folha onde McCay havia desenhado seu personagem. Para a
produção em escala proposta pelos novos industriais do cinema essa alternativa
não era satisfatória.
Os primeiros cartoons dos estúdios eram desenhados em papel, todos
os elementos do fundo tinham de ser redesenhados todas as vezes, o
que era ineficiente e aborrecia os artistas. A solução de Barré foi o
“sistema de corte”. A animação era desenhada em uma folha, o fundo
seria desenhado em uma segunda folha que era colocada sobre ou sob
a primeira. Se o fundo estivesse na folha superior, a maior parte da
página em torno do personagem seria cortada para revelar o
personagem.
17
O sistema de corte (slash system) restringia as possibilidades da
animação, obrigando o animador a prever uma ação que facilitasse o corte em
torno dos personagens e limitando o campo de ação destes.
15
SOLOMON, p. 22. No Original, Barré is credited with devising the peg system of registration. Identical
pegs were set into each animator’s drawings table, and the paper in place was punched to match the pegs.
The pegs held the paper in place, not only while the animator was drawing but also when the drawings were
inked and photographed. This system remains in use today”.
16
SOLOMON, p.17. Fitzsimmons foi o principal auxiliar de McCay, tendo colaborado com ele em outras
animações após Gertie.
17
SOLOMON, p.22. No original, The earliest studio cartoons were drawn on paper, an any background
elements had to be redrawn every time, which was inefficient and bore the artists. Barré’s solution was the
“slash system.” The animation was drawn on one sheet, the background would be drawn on a second page
that was laid over or under the first. If the background was on the top sheet, most of the page surrounding
the character would be cut away to reveal it”.
66
Fig. 031 –– Desenhos de Bill Nolan ilustrando o Slash System: cada pose de desenho
recortado é sobreposto ao cenário a cada exposição.
O sistema de corte permaneceu ainda em uso em alguns estúdios até o
início da década de 1920. Halas & Manvell afirmam que a invenção da animação
por fases foi
o primeiro estágio de uma técnica que consistia na superposição dos
esboços, a fim de evitar a repetição do desenho do fundo para cada
fase diferente do movimento das figuras do primeiro plano. Foi uma
grande economia. As atividades das figuras do primeiro plano eram
limitadas a uma área dentro da imagem, área esta inteiramente livre dos
traços do fundo. As folhas contendo os desenhos da animação das
figuras do primeiro plano eram recortadas de modo que os desenhos do
fundo, estáticos ou também animados, ficassem plenamente visíveis
quando as folhas de papel recortadas fossem sucessivamente
colocadas sobre eles durante o processo da fotografia
18
.
Nota-se que a animação por fases é a denominação dada pelos autores ao
slash system. Os autores identificam sete fases no período compreendido entre
os trabalhos de Emile Cohl e Pat Sullivan. Essa classificação é arbitrária, uma vez
que se baseia em evidências e parâmetros subjetivos e mesmo errôneos. Por
exemplo, para os autores, a fase 4 seria o “desenvolvimento do fundo como parte
mais importante da animação. No primeiro estágio, os fundos eram desenhados,
como as figuras do primeiro plano, na mesma folha de papel para cada fotograma
do filme”. Deve-se considerar que Gertie foi feito desse modo e durante muitos
18
HALAS, John; MANVELL, Roger. p.29. Observa-se que os autores se referem à animação de modo geral,
mas usam apenas fatos relacionados ao desenvolvimento do desenho animado, desconsiderando as técnicas
experimentais e o stop-motion.
67
anos nenhum outro artista igualou a qualidade técnica e estética de Winsor
McCay - nem mesmo na fase 7, que, conforme a classificação de Halas &
Manvell, caracteriza-se pela introdução do acetato. A animação por fases,
descrita, é a fase 6.
Alguns movimentos de câmera, típicos do cinema fotográfico (live-action),
tiveram de ser reinventados para o desenho animado. Um exemplo disso é a
técnica desenvolvida por Bill Nolan quando trabalhava no estúdio de Barré.
Conforme Solomon,
Bill Nolan descobriu que se um segundo plano desenhado em um longo
pedaço de papel fosse passado sob os desenhos de um personagem
andando, uma ilusão de movimento horizontal era produzida. Essa
descoberta foi a base para todos os movimentos de pan em filmes
animados.
19
O movimento descrito nessa afirmação é o do traveling, que, parece, foi
incorporado por Solomon como uma variação da Pan
20
. A técnica desenvolvida
por Nolan abrange os movimento de câmera que desvendam o cenário, podendo
ser usadas tanto para pans quanto para travelings ou movimentos combinados.
Essa cnica permitiu o desenvolvimento dos ciclos de caminhar, pois os
desenhos de um ciclo são repetidos sobre um cenário que se move. Sem o ciclo,
o personagem teria de ser animado durante todo o percurso de atravessar a tela,
de um lado para o outro, para mostrar o seu deslocamento. Deve-se observar que
a descoberta desse movimento, relativamente simples no cinema fotográfico, foi
possível devido ao desenvolvimento do cell animation
21
. Inventado por Earl Hurd,
o cell animation consistia no uso de folhas de nitrato de celulose transparentes
para as quais eram passados os desenhos dos personagens, após serem
animados em papel, permitindo sua sobreposição ao cenário e vice-versa.
19
SOLOMON, p. 22. No original, Bill Nolan discovered that if a background drawn on a long piece of
paper was passed under the drawing of a character walking , an illusion of horizontal motion was produced.
This Discovery was the base for all pan movement in animated films”.
20
O Pan é um movimento onde a mera gira em torno de seu próprio eixo. No Traveling a câmera
acompanha o personagem. A descrição de Solomon é correta para Pan no qual o personagem gira em torno
do eixo da câmera.
21
O Sistema de corte não impossibilitaria o uso da técnica de Nolan. Mas certamente tornaria ainda mais
complexa a necessidade de planejamento do espaço de animação do personagem.
68
Fig. 032 – Raoul Barré (Edison): Animated Grouch Chasers (EUA, 1915)
FONTE – BENDAZZI, p. 18.
Conforme Solomon, Earl Hurd obteve a patente do cell animation em
dezembro de 1914
22
. Isso deixou totalmente obsoleto o sistema de impressão de
cenários (backgrounds), patenteado por John Randolph Bray também em 1914,
que o acetato
23
dispensava a necessidade de ter uma cópia do cenário para cada
quadro de animação. Mesmo tendo suas deficiências – as folhas não eram
perfeitamente transparentes, não permitindo usar mais do que três níveis de
transparências sem escurecer o cenário o cel system tornou-se o padrão da
indústria do cinema de animação, permanecendo até o final do século XX, quando
foi substituído por técnicas digitais
24
.
Raoul Barré tinha como estratégia de produção cercar-se de artistas
talentosos e criativos. Além de Bill Nolan, a equipe incluía nomes como Frank
Moser, Gregory La Cava e Pat Sullivan. Em maio de 1915, Barré lança uma das
primeiras séries para Edison, constituída por dezenas de filmes conhecidos como
22
HALAS, John; MANVELL, Roger. p. 29, a data da patente é junho de 1915.
23
No Brasil, as folhas transparentes são conhecidas como acetatos, enquanto os EUA e outros países,
principalmente os de língua inglesa, ainda mantêm o nome de cell - abreviatura de cellulose nitrate. O filme e
as folhas transparentes de nitrato de celulose, que são extremamente inflamáveis e produzem uma chama que
libera gases altamente tóxicos, foram utilizados na indústria cinematográfica até o início dos anos 1950
quando foram substituídos por filmes à base de acetato de celulose, bem mais seguros e por isso
denominados Safety films. Mais modernos, eles são à base de acetato ou de poliéster. Conforme. The
dangers of cellulose nitrate film” em: <www.hse.gov.uk/pubns/cellulose.pdf>, acesso em 01 jul 2005.
24
Deve-se considerar que os programas de animação digital utilizam muitas técnicas e conceitos
desenvolvidos a partir do cell animation.
69
Animated Grouch Chasers (EUA, 1915) - uma série de comédias com inserções
de seqüências de cartoon nos filmes live-action: “Nesta série, clipes de filme de
ação ao vivo introduzem as seções animadas: sempre que um ator um álbum
de caricatura intitulado The Grouch Chasers, este ganha vida. Aqui, os desenhos
de Barré são bruscos e intencionalmente desajeitados”
25
.
Fig. 033 - Raoul Barré (IFS): The Phable of de Phat Woman (EUA, 1916)
Em 1916, Barré foi comissionado pela International Film Service (IFS) para
filmar sete fábulas, baseadas em personagens de quadrinhos:
Ele também trabalhou com LaCava e Frank Moser do Hearst’s
International Film Service em uma série de fábulas baseadas em uma
tirinha de Tom Powers. Um grupo de pequenos gnomos que
representavam “Alegrias” e “Tristezas” apareciam embaixo do quadro
nos filmes das Fábulas.
26
25
BENDAZZI, p. 40. No original, In 1915, Barré produced The Animated Grouch Chasers, for distribution
by Edison. In this series, live action film clips introduce the animated sections: whenever an actor reads a
caricature album entitled The Grouch Chaser, this comes to life. Here Barré’s drawings are sharp and
purposely ungraceful”.
26
SOLOMON, p. 22. No original: He also worked with LaCava and Frank Moser of Hearst’s International
Film Service on a series “Phables,” based on a comic strip by Tom Powers. A group of little gnomes who
represented “Joys” and “Glooms” appeared at the bottom of the frame in the Phables films.
70
Em 1919, após desentendimentos com Bowers, Barré deixou o estúdio e a
animação, voltando apenas em 1926-27, a pedido de Pat Sullivan, para participar
da animação da série do gato Félix
27
.
John Randolph Bray foi o principal concorrente de Barré nos anos iniciais
dos filmes animados. Bray logo percebeu que poderia obter patentes das técnicas
usadas nos filmes animados, mesmo daquelas desenvolvidas por outros como
Cohl, McCay e até mesmo Barré e Nolan. Solomon declara que não se sabe
como ou onde Bray conheceu Earl Hurd, nem como concordaram em unir os seus
recursos para formar a Bray-Hurd Processing Company, em 1914. Essa união,
mais a patente adicional obtida por Bray, em 1916, asseguraram um verdadeiro
monopólio no processo de animação, com Bray não poupando esforços para
compelir os outros animadores a comprarem licenças e a pagarem royalties.
Solomon cita uma entrevista de Bray, de 1915, na qual ele defende suas ações,
insistindo que não estava tentando estabelecer um monopólio e, sim, permitir
salários justos para os animadores, bem como manter um padrão de qualidade na
animação
28
:
Primeiro, eu tenho tentado sustentar a dignidade do cartoon animado, e,
fazendo isso, tenho naturalmente contrariado a circulação de trabalhos
medíocres que poderiam dar ao público e aos exibidores uma
impressão errada... Alguns dos filmes lançados eram tão
completamente sem méritos que prejudicaram os prospectos de
negócios de todos os artistas engajados na criação de desenhos de
cartoons
29
.
27
Raoul Barré, nos sete anos seguintes, trabalhou somente com animação publicitária. Ele retornou para
Montreal no final dos anos 1920 e lá se dedicou à pintura, participando de algumas exposições. Um de seus
últimos projetos, e para o qual se dedicou com afinco, foi a criação de uma escola cooperativa - a Educational
Art and Film Co. of Montreal, na qual os alunos recebiam para trabalhar em um projeto de filme: Microbus
1
er
. O filme contaria as aventuras do rei Microbus, comandante de um exército de micróbios que vivia dentro
do estômago de um enfermo. O filme nunca foi realizado, mas Barré deixou centenas de croquis e desenhos
de seu personagem. Barré morreu em 21 de maio de 1932, aos 58 anos, vítima de câncer.
28
SOLOMON, p.25
29
SOLOMON, p. 25. No original: From de first, I have to uphold the dignity of the animated cartoon, and
doing this have naturally opposed the circulation of poor work that would give the public and exhibitors a
wrong impressionSome of the films released was so entirely without merit that it harmed the business
prospects of all artists engaged in making cartoon drawings.
71
John Randolph Bray marca o vigor e o ambiente competitivo que existia
dentro da indústria do filme animado, que, naquela época, se concentrava em
Nova York. Solomon atribui à esposa de Bray e ao seu staff de advogados as
vitórias que conseguia impor aos seus concorrentes. Dividindo os direitos da
patente do cel system com Earl Hurd, Bray ainda patenteou outras técnicas
anteriormente desenvolvidas, dentre elas o conceito de linha de montagem e o
perf-and-peg system, ambos desenvolvidos pela dupla Barré-Nolan.
Outra prática de economia de trabalho patenteada por Bray, mas
provavelmente desenvolvida por Barré, foi o ‘in-betweening’. O
animador poderia esboçar as poses iniciais e finais de uma seqüência,
então as poses intermediárias poderiam ser desenhadas por assistentes
de menor remuneração, conhecidos como in-betweeners.
30
O cel system patenteado por Hurd e Bray se tornou uma das principais
bases do desenvolvimento do desenho animado, sendo este ainda aprimorado
por Raoul Barré para Edison, por Bill Nolan com a introdução do fundo móvel
31
, e
por John Randolph Bray, entre outros.
O cell animation permitiu ainda o desenvolvimento de técnicas de
economia de trabalho e de tempo. Por exemplo, um personagem que tivesse que
mover apenas uma parte poderia ter apenas esta parte animada, sendo a outra
parte “fixa” pintada em um dos níveis da transparência. Outra vantagem do
acetato foi ter possibilitado que os personagens pudessem ser animados no
segundo plano com maior liberdade, pois uma parte do cenário podia ser
posicionada sobre os personagens que eram animados normalmente, sem a
necessidade de limitar as suas ações. A maioria dos estúdios, entre 1915 e início
dos anos de 1930, obteve a licença e pagou os royalties, no entanto, isso não
evitou que, em 1932, a patente do cell animation caísse em domínio público por
falta de inovações.
As relações entre Hurd e Bray permanecem pouco claras. “Curiosamente,
Earl Hurd cuja patente finalmente provou ser muito mais importante que as de
30
CRAFTON, p. 6.
31
HALAS, John; MANVELL, Roger. p. 29.
72
Bray trabalhava como um empregado no estúdio”
32
, após terem criado a Bray-
Hurd Processing Company
33
, em 1914. Hurd continuou a trabalhar como
animador, tendo iniciado uma série de grande sucesso Bobby Bumps, entre
outros filmes.
Fig. 034 – Earl Hurd (Bray): Bobby Bumps starts a lodge (EUA, 1916)
O sucesso da série foi tanto que o personagem Bobby Bumps, que estreou
em 1915, era ainda realizado em 1925, e foi se aprimorando com o tempo e a
passou a interagir com um animador não visto, precedendo os conflitos entre o
palhaço Koko e Max Fleischer
34
. Hurd trabalhou ainda como um dos roteiristas em
Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, EUA,
1937), dos estúdios Disney.
Após a I Guerra Mundial, John Randolph Bray dedicou-se mais a filmes
educacionais e de treinamento, para escolas, para a indústria e para os militares,
embora tenha produzido cartoons até 1928
35
. Coube ainda a Bray o lançamento
do primeiro cartoon colorido, feito através de um processo experimental chamado
de Brewster Color que, todavia, não se viabilizou economicamente, pois o
processo era muito caro. Flowers and Trees (EUA, 1932), da Disney, foi o
32
SOLOMON. p. 25.
33
Em alguns autores essa união aparece como “Bray-Hurd patent company”. Cf. Crafton, p.6.
34
SOLOMON, p.25.
35
SOLOMON, p.26.
73
primeiro filme animado em cores no processo Technicolor, a se tornar cnica e
economicamente viável.
Ao lado dos estúdios de Barré e de Bray, o outro grande estúdio de filmes
animados da era silenciosa foi o “International Film Service” (IFS), fundado em
1915 por William Randolph Hearst como uma expansão de seu Internacional
News Service (INS), uma linha de serviços planejada para competir com a
Associate Press”
36
. A grande inovação do IFS foi a utilização massiva de
personagens de cartuns consagrados nos jornais. Essa utilização havia sido
feita anteriormente pelo próprio McCay, em Little Nemo in Slumberland (EUA,
1911), seu primeiro filme, e por Cohl com os personagens de McManus, The
Newlyweds and their Baby (EUA, 1914). O que diferenciava o projeto de Hearst
de seus antecessores era o caráter industrial e comercial de sua iniciativa:
a IFS seria um modo de promover os cartunistas de seus jornais, dos quais se
destacam os nomes de Fred Opper (“Happy Hooligan”), Harry Hershfield (“Abie
the Agent”), George Herriman (“Krazzy Kat”), Thomas “Tad Dorgan (“Silk Hat
Harry”), Cliff Sterret (“Polly and Her Pals”), George McManus (“Bringing Up
Father”- conhecidos no Brasil como “Pafúncio e Marocas”
37
) e Winsor McCay, que
“foram listados como futuros colaboradores”
38
. Os animadores da IFS foram
contratados dos estúdios concorrentes, do mesmo modo como Hearst contratou
os profissionais dos jornais rivais”
39
. Todas as ações eram de responsabilidade
direta de Hearst que, para chefiar o estúdio, escolheu Gregory LaCava,
anteriormente do estúdio Barré-Bowers. A equipe incluía Frank Moser, Bill Nolan
e George Stallings. Entre os jovens animadores que iniciaram na IFS estavam
Isadore “Izzy” Klein, Walter Lantz e Grim Natwick.
40
Como destaca Solomon, os cartoons produzidos pela IFS não eram
diferentes daqueles feitos pela concorrência e não conseguiam trazer para os
filmes o estilo de humor dos artistas originais, tornando-se rapidamente gags
repetitivas. As ações de William Randolph Hearst repercutiam em todos os seus
empreendimentos, prejudicando-os: a campanha empreendida por ele a favor dos
36
SOLOMON, p. 26.
37
MOYA, Alvaro de. História da historia em quadrinhos. Porto Alegre: L&PM, 1986, p.52.
38
SOLOMON, p 28.
39
THERKELSEN, J. (1996). Joseph Pulitzer and His Prize. Cf. Defining "Yellow Journalism": Competition
with Hearst, Conforme <www.onlineconcepts.com/pulitzer/yellow.htm>, acesso em 12 jul 2005.
40
SOLOMON, p. 28.
74
alemães e contra os ingleses baniu suas publicações no Reino Unido, França e
Canadá em 1916 e a reputação da IFS, por associação, foi atingida em 1917 com
o escândalo do roubo de histórias da Associated Press pela INS
41
. A filial de
animação, a IFS, cessou suas atividades em 1918, devido às dificuldades
políticas e financeiras de sua matriz Hearst’s International News Service e
não porque não fosse lucrativa. Seus artistas se mudaram para outros estúdios de
animação
42
, incluindo o de Bray que adquiriu os direitos para animar os
personagens dos cartoons do Hearst, em agosto de 1919
43
.
Paul Terry é um nome de destaque no cinema de animação da era
industrial, tendo atuado como animador, diretor, escritor e produtor, entre 1915 e
1966. Como outros artistas do início da animação, Terry começou a carreira como
cartunista e ilustrador para vários jornais e revistas, como os jornais San
Francisco Bulletin e San Francisco Call-Examiner, entre 1904 e 1914
44
. Em 1911,
Terry estava trabalhando no New York Press (em uma efêmera tirinha de um
personagem chamado Alonzo) para o King Features Syndicate de Hearst.
Conforme Solomon, “após assistir a Gertie the Dinosaur’, de McCay, ele [Terry]
começou a trabalhar em seu primeiro filme em live-action/animação intitulado
Little Herman’, uma paródia de um conhecido gico chamado Herman
45
.” Após
algumas dificuldades em vender o seu filme, e sua tentativa frustrada de
convencer Bud Fisher a permitir que animasse seus célebres personagens Mutt &
Jeff
46
, Paul Terry foi para o estúdio de Bray onde logo se tornou chefe de seção
47
e iniciou um dos grandes sucessos do cinema animado da era silenciosa, o
personagem Farmer Al Falfa, um dos poucos que sobreviveu à transição para o
cinema sonoro, sendo produzido até 1932
48
. Terry deixou Bray em 1917 para
servir o exército. Após a guerra, formou com seus colegas animadores uma
companhia, produzindo os cartoons de Farmer Al Falfa para a Paramount até
41
SOLOMON, p 28.
42
LaCava se tornou um reconhecido diretor de comédias em live-action.
43
CRAFTON, 1997. p.74.
44
STEVENS, J. Kevi. Biography for Paul Terry (I). Conforme <www.imdb.com/name/nm0856056/bio>,
acesso 19 jul 2005.
45
SOLOMON, p.29. No original, After seeing McCay’s ‘Gertie the Dinosaur’ , he set to work on his first
film, a live-action/animation spoof of Herman, a well-known magician, entitled ‘Little Herman.”
46
Trabalho realizado por Charles Bowers.
47
SOLOMON, p.29.
48
Em 1936, Terry produziu ainda Farmer Al Falfa's Prize Package e Farmer Al Falfa's 20th Anniversary.
Conforme <www.imdb.com/name/nm0856056>, acesso 20 jul 2005.
75
1920, quando se associou ao escritor Howard Estabrook, com quem fez uma
série de cartoons, vagamente baseados nas Fábulas de Esopo, fundando um
estúdio geralmente conhecido como Fables Pictures.
Paul Terry destacou-se como um homem de mercado, cuja atenção
voltava-se para a produção em escala mais do que para a qualidade artística.
Conforme Leonard Maltin, várias gerações de seus empregados ouviam com
freqüência Paul Terry repetir o mote “Disney é a Tiffany´s no negócio, e eu sou a
Woolworth´s”
49
. Essa comparação demonstra sua atitude em relação aos filmes
que produzia: “Não havia nenhum amor envolvido, e nenhuma motivação artística.
Era um produto, que ele fabricava em um cronograma inflexível e vendia com
notável sucesso.”
50
Conforme Tommy Morryson, um veterano do estúdio, “Nós
trabalhávamos em volume e preço. s produzíamos vinte e seis cartoons por
ano com uma equipe que talvez fosse um quinto da equipe da Disney”
51
. O
cronograma era rigoroso e exigia que a cada duas semanas um novo filme fosse
lançado.
A real contribuição de Terry para a animação foi técnica. Ele é
reconhecido pelo desenvolvimento e aproveitamento das possibilidades
de economia de tempo-e-trabalho do cel system. O estúdio de Terry
deve ter um lugar entre as primeiras linhas de montagem de animação.
Ele gerenciou para produzir todas aquelas Fábulas com uma equipe
relativamente pequena e lutou com Bray até a edição da licença em
1926.
52
A afirmação de Solomon confirma-se ainda pelo fato de que Terry foi um
dos pioneiros em animar diferentes partes do corpo em diferentes acetatos. Isso
49
MALTIN, Leonard. Of Mice and Magic - A History of American Animated Cartoons. New York: Plume
Books, 1987, p.125. No Original, Several generations of Terrytoons employees came to know Paul Terry
oft-repeated motto: ‘Disney is the Tiffany’s in the Business, and I am the Woolworth’s’”. Trata-se de uma em
referência a duas das mais importantes instituições comerciais de Nova York - a primeira conhecida por seus
produtos sofisticados e a segunda por sua linha a preços populares.
50
MALTIN, p. 125. No original, There was no love involved, and no artistic motivation. It was a product,
which he manufactured on an uncompromising schedule... and sold with remarkable success.”
51
MALTIN, p. 125. No original, We worked on volume and price. We would turn out twenty-six cartoons a
year with a staff that was maybe one fifth the size of a Disney staff.”
52
SOLOMON, p. 30. No Original, Terry's real contribution to animation was technical. He is
credited with developing and exploiting the time- and labor- saving possibilities of the cel
system. Terry's studio must rank among the earliest animation assembly lines. He managed to
turn out all those Fables with a relatively small staff and fought Bray over the licensing issue until
1926.
76
propiciou grande economia de tempo e de trabalho, visto que a meta não era a
perfeição artística, e sim, alta produtividade, com orçamentos enxutos,
características responsáveis por tornar Terry um dos pioneiros dos cartoons para
a televisão e um dos seus mais bem-sucedidos realizadores. A disputa com Bray
demonstra a inflexibilidade de Terry. Conforme Donald Crafton, “Depois de quase
cinco anos de manobras legais, o caso foi resolvido fora dos tribunais em
setembro de 1926, quando Bray concordou em desistir do processo se Terry
apenas comprasse uma licença”
53
.
Em parceria com Frank Moser, Paul Terry fundou o Terrytoons em 1929
54
.
Eles lançavam seus filmes através da Educational Pictures, que fornecia os
cartoons para o departamento de curtas-metragens da Twentieth-Century Fox.
Terry continuava a resistir às mudanças nos seus filmes, sendo que seu primeiro
cartoon colorido foi produzido somente em 1938, devido às pressões da Fox e da
Educational
55
. Considerando-se as suas prioridades é curioso observar que quatro
de seus Terrytoons foram indicados ao Oscar, mesmo que não tenham vencido
56
.
O Fables Studio foi criado em 1921, após o sucesso da série Aesop´s
Fables e do seu principal personagem, Farmer Al Falfa, com o suporte financeiro
do grupo Keith-Albee Theatre, detentor de 90% das ações. Os outros 10%
pertenciam a Paul Terry. Essa composição durou até 1928 quando o Keith-Albee
vendeu a sua parte para Amadee J. Van Beuren, realizador que havia
produzido alguns curtas em live action, sendo, porém, relativamente novo no
negócio de filmes
57
.
O Van Beuren Studio foi uma extensão resultante do Aesop´s Fables
Studio de Paul Terry. Como assinala Maltin, “The Van Beuren Studio é a menos
conhecida das companhias de cartoons dos anos trinta, contudo, sua breve
53
CRAFTON, 1993. p. 157. No original, After nearly five years of legal maneuvering the case was settled
out of court in September 1926, when Bray agreed to drop the suit if Terry would just buy a license.”
54
BENDAZZI, p.90. Conforme o autor, o Terrytoons teria sido fundado em 1930.
55
SOLOMON, p.29.
56
MARKSTEIN, Donald. Don Marstein´s Toonopedia : Terrytoons. Os cartoons indicados foram: All Out
for V (1942), My Boy, Johnny (1944), Mighty Mouse in Gypsy Life (1945) e Sidney the Elephant in Sidney's
Family Tree (1958). Conforme <www.toonopedia.com/terrytoo.htm>, Acesso, 20 jul 2005.
57
MALTIN, p. 199.
77
história é pontilhada com filmes interessantes e com os principais talentos da
animação”
58
.
Fig. 035 – Paul Terry – amostra de realizações, como artista, roteirista ou produtor de 1915 a 1966
Em novembro de 1928, após tornar-se o sócio majoritário do Fables, Van
Beuren anunciou que os seus filmes seriam, daí em diante, produzidos com som.
Bendazzi afirma que
Financeiramente, a Keith-Albee Theater Company cuidava da
distribuição dos filmes, assegurando a maioria das quotas até 1928,
quando o grupo vendeu sua parte ao negociante Amadee J. Van
Beuren. O atrito criado pela chegada do sócio novo só terminou quando
Terry (e a maioria dos animadores) deixaram o estúdio em 1929. Uma
das razões para a discordância entre o Terry e Van Beuren foi o
advento do som, ao qual Terry se opôs, relutante em empreender
despesas adicionais e inovações. Ironicamente, foi uma das produções
de Terry´s (Dinner Time) que precedeu Steamboat Willie em algumas
semanas, tornando-se o primeiro curta animado sonoro.
59
58
MALTIN, p. 199, no original, The Van Beuren Studio is the least-known cartoon company of the 1930s,
yet its brief history is dotted with interesting films and major animation talents.
59
BENDAZZI, p. 57. No original, Financially, the Keith-Albee Theater Company, which took cared of film
distribution, held the majority of shares until 1928 when the group sold its shares to businessman Amadee J.
78
A carreira de Paul Terry estendeu-se até os anos 1970, atuando
majoritariamente como produtor. Diferente do que afirma Bendazzi, Leonard
Maltin informa que, com a saída de Terry do estúdio, a maior parte de sua equipe
ficou para trás
60
. A realidade é que o Van Beuren Studio foi construído sobre a
estrutura criada por Terry, utilizando alguns dos veteranos do estúdio:
Van Beuren designou John Foster, um veterano do Fables, como o seu
novo diretor de animação, para supervisionar o trabalho de seus
colegas Harry Bailey e Mannie Davis. Eles chegaram à conclusão de
que, com o ônus adicional do som, seria impossível manter a produção
anual de cinqüenta e dois filmes de Terry e cortaram a cota pela
metade.
61
Tal fato mostra que a reação de Terry aos planos de Van Beuren, mais do
que uma posição conservadora, demonstrava o seu conhecimento sobre a
realidade do mercado do cartoon animado, que a transição da tecnologia do
filme mudo para o sonoro não se resolvia apenas com o aporte de capital, sendo
imprescindível profissionais qualificados, até então praticamente inexistentes no
mercado. Em seus últimos meses no estúdio, Terry havia encontrado um meio de
contornar os custos dos filmes falados (talkies), vendendo os seus cartoons como
sonoros, pelo simples acréscimo de trilha sonora aos seus filmes semanais. Mas
isso estava longe de ser uma verdadeira produção sonora, pois não existia
nenhuma relação entre o som e as imagem nesses filmes.
62
As dificuldades encontradas pela equipe do Van Beuren Studio para se
adaptar ao mercado do filme sonoro ilustram a revolução que a nova tecnologia
promoveu. Historicamente reconhecida, essa necessária adequação às
Van Beuren. The friction created by the arrived of the new partner ended only when Terry (and the majority
of the animators) left the studio in 1929. One of the reason for the disagreement between Terry and Van
Beuren was the advent of sound, which Terry, reluctant to undertake additional expenses and innovations,
opposed. Ironically, it was one of Terry´s productions (Dinner Time) that preceded Steamboat Willie by a
few weeks in becoming the first animated sound short.” - Bendazzi nota como uma exceção os experimentos
dos irmãos Fleischer.
60
MALTIN, p. 199. No original, Apparently there were other disputes besides this one, and Terry left Van
Beuren in mid-1929. Most of his staff stayed behind.”
61
MALTIN, p. 199. No original, Van Beuren appointed Fables veteran John Foster as his new animation
director, to supervise the work of colleagues Harry Bailey and Mannie Davis. They came to conclusion that,
with the added burden of sound, it would be impossible to maintain Terry´s output of fifty-two films a year
and cut the quota in half.
62
MALTIN, p. 199
79
exigências do público causou graves conseqüências na estrutura dos estúdios do
cinema live action e do cartoon animado. Leonard Maltin cita um artigo do
Exhibitors Herald-World, no qual Douglas Fox descreve o trabalho de Jack Ward,
dançarino (former hoofer), e do maestro Gene Rodemich, recém-contratados por
Van Beuren para implementar o som nos filmes do estúdio:
É a introdução da música que... quase dobrou o custo e o trabalho de
fazer cartoons animados. A ação agora tem que se ajustar à música,
tudo é feito em batidas [beats], e a mente de mestre que pode compor a
miscelânea do quebra-cabeça se torna um executivo muito bem pago. E
este companheiro é o musical gag man, um homem para quem eles
não teriam tido uso dez ou onze meses atrás. A realização de um
cartoon animado começa com uma conferência editorial entre os
animadores e os diretores de música. A tendência geral da história é
piada [gag] e idéia. Então eles trabalham a música para acompanhá-la
[a história] e cortam os argumentos para ajustar à música. Isto é feito
por Gene Rodemich e Jack Ward, que sincronizam o trabalho inteiro, no
papel, antes de uma linha ser realmente desenhada... Ward, que pode
dançar qualquer passo já inventado, muito dos quais são puro pesadelo,
vai de um animador a outro, ajudando-os com o ritmo e com as poses
de diversas rotinas ou inventando novas para ajustar a ação. Os
personagens, claro, são todos previamente determinados, junto com o
curso da história.
63
Para Maltin, “fazer a transição para o som foi uma formidável tarefa para a
pequena equipe de Van Beuren, pois isto envolvia mais do que mera
sincronização”
64
. Não apenas o estúdio de Van Beuren foi alcançado pelos novos
63
MALTIN, p. 200. No original, It's the introduction of music which has… almost doubled the cost and
labor of making animated cartoons. The action now has to fit the music, everything is done in beats and the
master mind who can piece together the odds and ends of the jigsaw puzzle becomes a pretty well paid
executive. And this fellow is the musical gag man, a chap they wouldn’t have had use for ten or eleven
months ago… The making of a animated cartoon begins with an editorial conference between the animators
and the music directors. The general trend of the story is gags and ideas. Then they work out the music to go
with it and cut the scenario to fit the music. This is done by Gene Rodemich and Jack Ward, who synchronize
the whole business on paper before a line is really drawn… Ward, who can dance any step that was ever
invented and a good many that are just nightmares, goes from one animator to another, helps him out on the
tempo and poses of various routines or invents new ones to fit the action. Characters, of course, along with
the trend of the story, have all been determinated previously.”
64
MALTIN, p. 200.
80
ventos da animação em cartoon, mas toda a indústria foi revitalizada. Segundo
Bendazzi:
O advento do som, como também o sucesso extraordinário de Walt
Disney, mudou completamente as regras do jogo. Os animadores mais
velhos se confrontavam com a escolha de aprenderem técnicas
atualizadas ou se aposentarem. O mercado expandiu-se, e as receitas
de vendas e os empregos aumentaram. Nos anos sombrios da
depressão, jovens artistas acharam oportunidades na animação, que,
em troca, foi enriquecida pelos seus novos talentos. Além de tudo, este
era um gigantesco passo à frente para uma indústria que, de acordo
com uma edição de 1931
1
da Popular Mechanics, poderia ter sido
comprada por US$250,000 poucos anos antes
65
.
Bendazzi observa que, com exceção do pequeno grupo de animadores de
Walt Disney na Califórnia, a indústria de animação norte-americana concentrava-
se em Nova York e estava concentrada “nas mãos de aproximadamente uma
dúzia de pessoas que fundavam e dissolviam companhias, mudavam de um
estúdio para outro e constituíam o que era conhecido no jargão como raquete do
cartoon (cartoon racket)”
66
. A grande marca desse grupo era a de atender à
demanda de preencher os espaços na grade da programação dos filmes. Não
eram reconhecidos pela qualidade técnica e/ou de seus filmes. Isso significa que,
em sua maioria, não estavam interessados em investir nos filmes mais do que o
suficiente para continuarem no negócio. Desse grupo nova-iorquino destacaram-
se justamente aqueles que não se contentaram apenas com a sobrevivência,
dentre eles pode-se ressaltar o estúdio de Pat Sullivan, o dos irmãos Fleischer, o
de Paul Terry. Não por acaso, eram também os que mais investiam em
aprimoramento técnico e artístico, além de estratégias comerciais e de marketing.
65
BENDAZZI, p. 54. No original, The advent of the sound as well as Walt Disney’s extraordinary success
completely changed the rules of the game. The older animators found themselves confronted with the choice
of either learning up to date techniques or retiring. The market expanded and sales revenues and
employment increased. In the gloomy years of the depression, young artists found opportunities in animation,
which in turn was enriched by their fresh talent. Overall, it was a giant step ahead for a industry which,
according to a 1931
1
issue of Popular Mechanics, could have been bought for US$ 250, 000 just a few years
ago.Nota do original:
1
“Leslie Cabarga, The Fleischer Story (New York: Nostagia Press, 1976, p.27.” (Na
edição de The Fleischer Story de 1988, da Da Capo, o trecho citado encontra-se na página 47).
66
BENDAZZI, p. 53.
81
Fig. 036 – Van Beuren Studio – Tirinha do personagem “Cubby Bear” para promover os cinemas
da RKO (1934)
O Van Beuren Studio tinha sua distribuição feita pelo grupo Keith-Albee
Theatre Company, em continuação ao contrato com o Aesop´s Fables Studio. Em
1936, a RKO
67
passou a distribuir os filmes da Disney, suspendendo a distribuição
dos filmes de Van Beuren, levando o estúdio a encerrar suas atividades naquele
ano.
Fig. 037 – Van Beuren Studio: Tom and Jerry
Max e Dave Fleischer destacam-se na história da animação por suas
contribuições técnicas e pelos personagens consagrados pelo cinema, tais como:
Betty Boop, Popeye
68
, o palhaço Ko-ko
69
e Superman
70
. As habilidades artísticas
67
BENDAZZI, p. 57. Conforme (nota do) original: O grupo Keith-Albee, mais tarde Keith-Orpheum, o
maior circuito de Vaudeville na América do Norte, foi a fundação na qual a RKO, uma das principais
companhias de produção de Hollywood foi depois construída. RKO significa Radio-Keith-Orpheum e é o
resultado da fusão da Radio Pictures com o Keith-Orpheum.”
68
“Em 1919, o cartunista E.C. Segar lançou uma série de tiras chamada "Timble Theatre". Dez anos mais
tarde, no dia 17 de janeiro de 1929, um personagem da tira contratava um marinheiro caolho e com um pito
no canto da boca para um serviço. Assim surgia Popeye. A série, famosa antes do marinheiro, ganhou
milhares de novos leitores com ele. E o autor, um excêntrico que assinava a tira com um desenho de charuto
(cigar), em uma brincadeira fonética com seu nome, ganhou milhares de dólares. Popeye estreou no cinema
82
e mecânicas aliadas a uma inegável criatividade levaram os irmãos Fleischer a
estudarem uma forma de melhorar a eficiência e a qualidade da produção de
desenhos animados. Max Fleischer nasceu em Viena, em 1883, e emigrou para
os Estados Unidos da América com a família, instalando-se em Nova York, em
1887. Max aprendeu arte e mecânica, tendo estudado no Cooper Union e no Art
Students League. “Trabalhou como artista comercial e cartunista, mas o interesse
em mecânica levou-o para a animação”
71
.
De uma família de cinco irmãos, que muitas vezes trabalharam juntos, Max
e Dave se destacam por terem se dedicado quase exclusivamente ao cinema de
animação. Os dois disputavam algumas invenções, creditadas ora a um, ora a
outro ou a ambos, dependendo do estudioso. A invenção do rotoscópio (Fig.038)
é atribuída, por exemplo, a Dave Fleischer por Donald Crafton
72
e a Max Fleischer
por Leonard Maltin
73
.
Definido por Leonard Maltin como um “dispositivo patenteado por Max
Fleischer que permite um animador desenhar quadro-a-quadro a partir do
movimento filmado em live-action
74
, essa invenção é a primeira e mais
disputadas das invenções dos irmãos. O fato é que, como muitas das importantes
descobertas daqueles tempos, “Não está claro quem deu origem à idéia; mais
tarde, os irmãos tiveram uma grande disputa e cada um clamava o crédito. Max
solicitou a patente em 1915; esta foi concedida em 1917”
75
.
em 1933, em um desenho animado ao lado de Betty Boop. Desde então, mais de 600 desenhos animados
foram produzidos. O marinheiro também virou filme, no qual foi caracterizado com perfeição pelo ator
Robin Williams.” Conforme: www.hq.cosmo.com.br/textos/quadrindex/qpopeye.shtm - acesso em 8 dez
2005.
69
Quando relançado em uma nova série (em 1928, pela Paramount), o palhaço Koko passou a ter o seu nome
hifenizado, em razão de direitos autorais.
70
Criado em 1933, por Jerry Siegel e Joe Shuster, dois adolescentes de Cleveland (EUA) que, em vão
tentaram vender sua tira. Em 1938, a história foi levada por M.C. Gaines a Harry Donnenfeld proprietário
da quase falida Detective Comics. Siegel e Shuster, então, trabalhavam para a DC em outros projetos.
Primeiro e maior super-herói dos quadrinhos, dotado de poderes sobre-humanos, Superman foi capa do
primeiro número da revista Action Comics em 1938 e, em menos de dois meses, as edições da revista com as
histórias do herói passaram a vender 2 milhões de exemplares mensalmente. Em 1941, Superman chegou aos
cinemas pela elaborada animação dos Fleischer para a Paramount. Conforme:
<http://hq.cosmo.com.br/textos/quadrindex/qsuper_homem.shtm>, acesso em 8 dez 2005.
71
DENEROFF, Harvey. Max Fleischer the thin black line, in: Sight and Sound. Conforme:
<www.bfi.org.uk/sightandsound/archive/innovators/fleischer.html>, acesso em 25 jul 2005.
72
CRAFTON, 1993, p. 169; CRAFTON, 1997, p.74.
73
MALTIN, p. 84.
74
MALTIN, p. 468. No original, Rotoscope: The device patented by Max Fleischer that enables an
animator to trace over live-action filmed movement frame by frame.
75
SOLOMON, p. 30.
83
Fig. 038 – Fleischer Studio: Rotoscópio. FONTE: FLEISCHER, 2005.
O processo da rotoscopia foi desenvolvido com a participação ativa de
Max, Dave e Joe Fleischer
76
. Os primeiros testes do processo de rotoscopia foram
feitos no telhado do apartamento de Max, com Dave vestindo uma roupa preta de
palhaço que se destacava contra um papel branco preso a uma parede
77
. A
realização do projeto levou aproximadamente um ano. O filme foi denominado de
Experiment N
o
1 (EUA, 1915). Com as possibilidades de produção mais rápidas
desenvolvidas a partir da experiência pioneira, os irmãos persuadiram a Pathé a
contratá-los para realizar filmes usando o novo processo. O novo filme, em lugar
de desenvolver o personagem do palhaço que viria a se tornar célebre como
Koko era uma sátira a Teddy Roosevelt caçando um pássaro
78
. O filme foi
julgado insatisfatório e os irmãos foram dispensados.
Desde os primeiros experimentos de Muybridge e de outros pioneiros da
fotografia seqüencial, os fotogramas eram copiados como desenhos para permitir
sua exibição como animação em brinquedos ópticos. O sistema desenvolvido
pelos irmãos Fleischer foi uma busca pela mecanização, aperfeiçoamento e
racionalização desse trabalho. Após a captação da imagem original (Fig. 039,
detalhes Fig -1 e Fig - 2), através de uma filmagem simples, o filme era colocado
76
DENEROFF, Harvey. Max Fleischer – the thin black line.
77
SOLOMON, p. 30.
78
SOLOMON, p. 30.
84
no aparelho, que permitia ao animador traçar quadro-a-quadro os desenhos a
partir das imagens em live-action.
Fig. 039 – Max Fleischer : Ilustração integrante do pedido de patente do Rotoscópio, de
1917.
O sistema permitia movimentos bastante realistas e se enquadrava na
categoria de Method of producing moving picture cartoons”, como pode ser visto
na ilustração (Fig. 039), tendo então sua aplicação bastante direcionada para o
cartoon animado.
Após a experiência frustrada com a Paramount, Max levou seu filme para
mostrar a John Randolph Bray, de quem se tornara amigo, enquanto trabalhava
no Brooklyn Eagle. Conforme Solomon,
85
Bray o contratou [Max] para produzir um cartoon por mês para suas
séries da Bray Pictograph em 1916. A deflagração da I Guerra Mundial
interrompeu esse acordo e Max passou este período de guerra fazendo
filmes de treinamento. O rotoscópio permitiu à sua equipe de filmagem
reproduzir os complicados movimentos envolvidos na montagem de
equipamentos e tarefas similares. Dave trabalhou como editor de filmes
para o Departamento da Guerra.
79
Após a guerra, os irmãos Fleischer foram trabalhar para Bray e iniciaram,
com o uso da rotoscopia, uma série tendo o palhaço (Koko) como personagem
principal. O primeiro filme da série Out of the inkwell (EUA, 1919) foi recebido com
considerável entusiasmo, conforme artigo citado por Solomon:
Este pequeno palhaço tinteiro tem atraído atenção favorável devido a
um número de características únicas. Seus movimentos, por exemplo,
são suaves e graciosos. Ele anda, dança e pula como um ser humano,
particularmente tanto quanto um ser humano de membros-livres poderia
[fazer].
80
O autor informa que, no artigo, Max exime-se de descrever o processo da
rotoscopia, e o jornal diz “que um homem real vestido como um palhaço posa
para ele nas principais posições para ser tomada pela figura animada.” Essa
informação aponta para o cuidado com que os segredos e tecnologias estavam
sendo tratados. Mesmo tendo alcançado popularidade, os filmes da série Out of
the Inkwell eram lançados esporadicamente. O palhaço-personagem, famoso,
ganhou o nome que o imortalizou, Koko the clown (Koko, o palhaço), apenas em
1923. Em 1919, os irmãos Fleischer fundaram um novo estúdio Out of Inkwell,
Inc. “Dave relacionado como diretor de todos os cartoons, Max como produtor e
79
SOLOMON, p. 30. No original, “... J. R. Bray, who hired him to produce one cartoon a month for his Bray
Pictograph series in 1916. The outbreak of World War I interrupted this arrangement, and Max spent the
war making training films. The rotoscope enabled his film crews to reproduce the complicated motions
involved in assembling equipment and similar tasks. Dave worked as a film editor for the War Department”.
80
Solomon, p. 30. Citado de artigo do New York Times, de 22 de fevereiro de 1920. No original, “This little
inkwell clown has attracted favorable attention because of a number of distinguishing characteristics. His
motions, for one thing, are smooth and graceful. He walks, dances and leaps as a human being, as a
particularly easy-limbed human being might.”
86
Margaret Winkler, a primeira mulher a distribuir e produzir filmes animados,
controlando a produção.”
81
Fig. 040 – Max e Dave Fleischer : Koko , o palhaço. FONTE: FLEISCHER, 2005.
Richard Fleischer, filho de Max Fleischer, afirma que o pai foi quem decidiu
fazer o personagem Koko contracenar com o seu criador – o próprio Max
aumentando o nível do desafio
82
. É possível que a decisão tenha sido realmente
de Max Fleischer. Deve-se notar, contudo, que, no início, a série era produzida
dentro dos estúdios de Bray, e este estúdio havia criado uma tradição em fazer
os personagens contracenarem com os artistas/criadores. Na verdade, essa idéia
nasceu com o cinema de animação, como necessidade didática ou de espetáculo.
Espetáculo que une dois mundos, no espaço e tempo representados pela forma
fílmica: a realidade com o mundo das artes visuais, dos desenhos, pinturas e
todas as formas de representação que fazem parte da cultura desde a pré-
história. E didática, para mostrar o processo de realização do filme, oferecendo
mais uma possibilidade de aproximação do espectador com o espetáculo e com o
artista, mesmo que esta apresentação do processo não seja tão explícita ou clara.
81
SOLOMON, p. 31.
82
FLEISCHER, Richard. Out of the inkwell: Max Fleischer and the animation revolution. Lexington: The
University Press of Kentuck, 2005, p.28.
87
Um exemplo dessa prática é a introdução (em live-action) do filme de Little Nemo
(EUA, 1911), de Winsor McCay
83
.
Fig. 041 – Blackton - Humorous Phases of Funny Faces (EUA, 1900).
FONTE – MALTIN, p. 02.
Solomon destaca que os irmãos “Fleischer não foram os primeiros a
usarem a imagem do artista criando um personagem, ou a combinar o
personagem animado com imagens live-action, mas eles fizeram isso com
excepcional imaginação e magia”
84
resultantes do investimento e
desenvolvimento tecnológico empreendido pelos irmãos no cinema de animação,
a partir de 1915. Phases of Funny Faces, de Blackton (Fig.041) e Fantasmagoria,
de Emile Cohl, por exemplo, também mostravam a mão do artista dando vida
aos personagens. Como assinala Donald Crafton:
A idéia de uma mão que produz uma figura “fora do tinteiro” era uma
tradição do Bray Studio desde que Bobby Bumps” foi introduzido pelas
mãos de Hurd. Wallace Carlson concentrava uma combinação de
personagens vivos e animados em uma série de filmes de 1916. Um
desses em particular, Dreamy Dud Has a Laugh on the Boss, prenuncia
o papel de Max Fleischer como o artista-protagonista
85
.
83
Denotando essa preocupação, de didática e de espetáculo, também The Story of a Mosquito (EUA, 1912) e
Gertie The Dinosaur (EUA, 1914), de McCay, apresentavam uma introdução em live-action. Deve-se
destacar que, em Gertie, Winsor McCay animou o personagem para que esse “respondesse” às suas ordens,
interagindo com o artista que, ao final da apresentação, “entra” no filme.
84
SOLOMON, p. 31.
85
CRAFTON, 1993, p. 172. No original, The idea of a hand producing a figure "out of the inkwell" was
already a Bray Studio tradition, since every "Bobby Bumps" was introduced by Hurd's hand. Wallace
88
Os movimentos “suaves e graciosos” e a liberdade de ações, próprias dos
filmes dos Fleischer (mesmo com o uso da rotoscopia), não podem ser
compreendidos sem a percepção de que foram obtidos pelas características
próprias da animação de cartoon: as roupas largas do palhaço davam ao corpo do
personagem formas arredondadas, com curvas, sem ângulos fortes e sem linhas
retas (que, por certo, revelariam o aparelho da rotoscopia), permitindo a aplicação
dos conceitos da animação rubber hose , criados por Bill Nolan.
O desenvolvimento da rotoscopia iniciou-se em 1915, sendo que apenas
após a Guerra foi possível dar continuidade aos trabalhos com o desenvolvimento
de personagens através de Koko, o palhaço. Antes disso, nos estúdios Bray, Bill
Nolan iniciou uma série de experimentações que produziram uma verdadeira
revolução estética com o que seria chamado de animação rubber hose. Em The
Spider and the Fly (EUA, 1917), Nolan transformou os personagens dos
desenhos, estruturados com articulações rígidas nos cotovelos, em personagens
com braços e pernas que podiam se mover com grande liberdade. Através do
arredondamento das formas e tipos, Nolan evitava o efeito estroboscópico que
aparecia com os movimentos retos e angulares (podia-se ver a tremulação da luz
flicker em torno das formas quando estas se moviam). Uma das
características que, especialmente antes da tecnologia digital, denuncia o uso da
rotoscopia é a ausência de blur e a flicagem que produz um estranhamento dos
movimentos. Os irmãos Fleischer não tiveram muitos problemas com a flicagem
devido ao uso das roupas largas de Koko, que arredondavam suas formas,
obtendo um resultado semelhante aos desenhos no estilo rubber hose. Deve-se
destacar ainda que a rotoscopia foi aprimorada, e o novo dispositivo recebeu o
nome de rotógrafo
86
(rotograph):
Carlson concentrated on combining live and animated characters in a string of 1916 films. One of these in
particular, foreshadows the role of Max Fleischer as the artist-protagonist.
86
O termo rotógrafo é aqui utilizado no sentido e grafia semelhante ao espanhol e ao galego (também pouco
difundido), pois não foi encontrada essa palavra grafada em português, ao contrário de rotoscópio e de
rotoscopia que se tornaram termos usuais do cinema de animação em língua portuguesa (Tomou-se como
referência pesquisas realizadas nos livros sobre animação e buscas no google). O termo rotascópio (sic) foi
registrado em Halas e Manvell, 1979, sem, no entanto, ter sido adotado pelos demais autores e artistas. A
opção por não usar aqui o termo rotografia deve-se ao fato de este vocábulo já ser utilizado em português, na
indústria gráfica em referência a rotogravura. Além disso, o termo rotoscopia é utilizado também nos EUA
para definir o processo, mesmo quando se trata do uso do rotógrafo, ou das técnicas contemporâneas de
traçar uma animação a partir de seqüências em live-action.
89
O rotógrafo permitia sobrepor uma figura animada não apenas sobre um
fundo fixo, mas também sobre um fundo móvel. Também realizava a
combinação entre a animação de cartoon e live-action com mais
facilidades e com resultados mais elegantes
87
.
O rotógrafo era usado em cenas de movimentos mais elaborados,
principalmente naquelas em que exigia maior precisão, e em conjunto com a
animação tradicional, predominante nas demais cenas. Isso pode ser observado
em filmes como The Old Man of the Mountain (EUA, 1933). Um filme de Betty
Boop, no qual ela contracena com o personagem Velho da Montanha. Todos os
personagens são animados em rubber hose e animação convencional. Exceto em
uma seqüência na qual o velho da montanha, personagem desenhado em cartoon
convencional, passa a ser rotoscopia de Cab Calloway
88
permitindo-lhe executar
os intricados passos da dança. Novamente o layout do personagem permite a
fluidez e a suavidade dos movimentos e evita o estranhamento do olhar, o que, no
entanto, não evita que se perceba com exatidão a troca de estilo de animação.
Nas imagens do filme (Fig. 042), pode ser percebida a mudança da técnica:
no sexto quadro, a animação é convencional. No timo quadro, a animação é
uma rotoscopia a partir da ação filmada de Cab Calloway. A proporção do corpo
se aproxima mais das dimensões reais da figura humana e se afasta das
características do cartoon, principalmente as mãos e as pernas.
87
FLEISCHER, p. 30. No original,
The Rotograph allowed an animated figure to be superimposed
not only over a stationary background but over a moving background as well. It also made
combining cartoon animation with live action easier and the results more graceful.
88
Cabell Calloway nasceu em Rochester, New York, Estados Unidos, no dia 24 de dezembro de 1907 e
será sempre lembrado por sua canção, o clássico "Minnie the Moocher", sucesso de 1931. Dirigiu uma big
band até 1948 e apareceu em diversas produções da Broadway, bem como no cinema, onde interpretou
Curtis e o seu inesquecível tema no filme "The Blues Brothers" (1980, EUA, dir. John Landis). A Cab
Calloway Orchestra, originou-se da famosa orquestra "Big Band Swing Jazz Orchestra", tradicional banda
que tocou anos na também famosa casa de espetáculos, Cotton Club e na Savoy Ballroom, no Harlem
Renaissance, durante a Era de Ouro do Radio nos anos 1930 e 1940. A Cab Calloway Orchestra existe até
os tempos de hoje dirigida pela família Calloway. Cab Calloway faleceu em 19 de novembro de 1994.
Conforme Biografia de Cab Calloway 100 Anos de Música, em
www.anaflavia.com.br/100anosdemusica/jazz_cabcalloway.htm, acesso em 21 set 2006. Conforme o site o
conteúdo do texto foi extraído do CD-ROM “100 anos de música”, copyright by BMGV.
90
Fig. 042 – Max e Dave Fleischer: The Old Man of the Mountain (EUA, 1933)
Note-se a proporção dos pés em relação ao corpo e a diferença na
definição dos joelhos e cotovelos entre o sexto e o sétimo quadro. Quando os
estúdios Fleischer buscaram desenvolver personagens humanos realísticos,
como em As Viagens de Gulliver (Gulliver´s Travels, EUA, 1939), os problemas
característicos da rotoscopia ressurgiram.
Algumas das características mais interessantes dos filmes do estúdio
Fleischer podem ser observadas em The Old Man of the Mountain, tais como a
utilização de músicos famosos e de seus sucessos mais consagrados. O filme é
todo musical, os personagens estão sempre se movendo no ritmo da música. Ao
contrário dos filmes de Disney, que eram direcionados ao público infanto-juvenil,
os filmes dos Fleischer continham uma certa dose de malícia e de sensualidade,
como pode ser observado na ilustração (Fig.042).
Característica marcante dos irmãos Fleischer era a busca por soluções que
aliavam pesquisa e tecnologia com resultados artísticos, estéticos e funcionais
para o desenvolvimento de seus filmes. Tendo a sua filmografia baseada no
desenho animado, desde a rie Out of the Inkwell eles experimentaram outras
91
possibilidades estéticas, como imagens fotográficas e maquetes, instigando o
olhar do espectador e a pesquisa por parte de outros realizadores. Dentre esses
experimentos, um dos mais ricos em possibilidades foi o processo tridimensional
desenvolvido pelos irmãos nos anos de 1930. Entretanto, não foram eles os
pioneiros.
Fig. 043 – Ub Iwerks – The Headless Horseman (EUA, 1934)
Em 1933, Ub Iwerks iniciou os seus experimentos com o processo
tridimensional, construindo sua própria câmera multiplano. Os primeiros filmes de
Iwerks a usarem o processo foram The Cave Man (EUA, 1934), The King’s Tailor
(EUA,1934)
89
e The Headless Horseman (EUA, 1934), da série Comicolor
(Fig.043). O dispositivo de Iwerks consistia em uma câmera que podia fotografar
acetatos colocados em planos diferentes. Essa distância entre os planos produzia
o efeito de paralaxe os planos mais distantes parecem se mover mais
lentamente do que aqueles mais próximos e desse modo, a cena apresentada
passa ao espectador a impressão de profundidade.
A questão da ilusão de profundidade foi uma constante busca do cinema
de animação, desde os seus primeiros realizadores, como Emile Cohl e Winsor
McCay. Ao se produzir animação sobre um fundo fotográfico, seja este estático ou
móvel, o artista é estimulado a explorar a profundidade proporcionada pela
perspectiva realística da imagem. Nos filmes do personagem Bobby Bumps
animados por Earl Hurd, e de Dreamy Dud – animados por Wallace Carlson, ainda
89
MALTIN. p. 196. The Cave Man, da série do personagem Willie Whopper, foi (provavelmente) o primeiro
filme a usar sistema tridimensional de Ub Iwerks. O nome correto do filme The King’s Tailor, ao qual o autor
se refere, é The Valiant Tailor (EUA, 1934), da série Comicolor.
92
na década de 1910, se pode perceber esse aproveitamento. Em Felix Saves
the Day (EUA, 1922), Otto Messmer utiliza com grande versatilidade as
possibilidades dessa união, tanto ao fazer o gato Félix tomar um táxi e um vagão
reais para chegar ao seu destino que aparecem como fundo fotográfico, como
também na utilização de seqüências em live-action (Fig.044, do quarto ao sexto
quadro).
Fig. 044 – Pat Sullivan e Otto Messmer – Felix Saves the Day (EUA, 1922)
Deve-se notar que não existe ainda, nesses casos, uma interação entre os
personagens animados e os atores filmados/fotografados. Nas cenas em que o
personagem animado aparece, as pessoas são apenas fotografias e nas cenas
em live-action, não aparecem os personagens. Essas limitações não tiram a
qualidade do filme, que é trabalhado com um ritmo e uma montagem dinâmica e
surpreendente.
Os filmes do estúdio Fleischer foram além da simples combinação entre
fotografia e personagem animado. Com o desenvolvimento do rotógrafo, o estúdio
alcançou a possibilidade de combinar ação filmada e a animação de
personagens. Conforme Leonard Maltin,
Max projetou uma nova invenção chamada de rotograph, que dava ao
animador uma flexibilidade renovada na combinação de live-action e
animação. Nessa variação do rotoscópio, um projetor irradia uma tira de
filme live-action, um quadro de cada vez, no lado inferior de uma lâmina
93
de vidro translúcido. O animador então posiciona o acetato claro de
Koko sobre o topo do vidro, combinando o cartoon com o filme ao vivo,
que é então fotografado por uma câmera posicionada acima [...].
No texto, o autor cita como exemplo o personagem Koko. No entanto, a
técnica foi utilizada também com Betty Boop e com outros personagens. Maltin
continua:
[...] Esse processo permitia Koko aparecer em uma seqüência de
movimento em vez de ficar limitado às fotografias de suas aventuras no
mundo real. Infelizmente, a qualidade dos elementos “ensanduichados”
variava, desde que todo o filme era refotografado, mas os resultados
eram mais do que adequados. Era um procedimento meticuloso, para
ser seguro, e era usado esparsamente
90
.
Em Bedtime (EUA, 1923), a qualidade e criatividade do roteiro somadas a
uma animação habilidosa deram ao estúdio mais uma de suas pequenas obras-
primas. O início do filme mostra a mão de Max Fleischer interagindo com o
palhaço Koko, que está dentro de uma bolha (Fig.045, três primeiros quadros). Na
seqüência que segue, Max desenha uma paisagem e faz um pico, onde deixa o
palhaço, para ter tranqüilidade para dormir (Fig.045, quarto e quinto quadros).
Não conseguindo dormir, o personagem se vê perseguido por um gigante e
decide sair do espaço do filme animado e entrar no espaço do filme live-action.
No quarto de Max, o palhaço começa a crescer até se transformar em um gigante
que persegue o artista por toda a cidade (Fig.045, sétimo, oitavo e nono quadros).
Invertendo a situação inicial do filme, o personagem animado passa a molestar o
personagem em live-action. A seqüência, embora curtíssima, é bastante rica em
significado e referências: primeiro, o personagem não apenas trocou de papel
com o artista – trocou também de tamanho (Fig.045, décimo quadro).
90
MALTIN, p. 88. No original, However, Max devised a new invention called the rotograph, which gave the
animators new flexibility in combining live action and animation. In this variation of the Rotoscope, a
projector beams a strip of live-action film one frame at a time onto the underside of a translucent pane of glass.
The animator then lays his clear cels of Koko on top of the glass, matching the cartoon to the live film, which is
then photographed by a camera stationed above. / This process enabled Koko to appear in a moving
sequence instead of being limited to still photographs for his adventures in the real world. Unfortunately,
the quality of the "sandwiched" elements was variable, since the live film was being rephotographed, but the
results were more than adequate. It was a painstaking procedure, to be sure, and was used sparingly
94
Segundo, o filme faz uma bela referência ao trabalho de Winsor McCay e
ao seu filme The Pet (EUA, 1921), da série Dream of a Rarebit Fiend (Fig.046).
Fig. 045 – Max e Dave Fleischer - Bedtime (EUA, 1923).
De modo semelhante ao que será feito pelos Fleischer, o filme de McCay
usa da perspectiva da cidade para criar a ilusão de profundidade. Deve-se
observar que, ao contrário dos filmes dos Fleischer, o cenário no filme de McCay,
que é primorosamente realístico, não é fotográfico
91
. Nesse filme de McCay, um
91
A qualidade dos cenários da animação de Winsor Mccay antecede a virtuosidade da backgrounds dos
filmes de realizadores como Hayao Miyazaki, Isao Takahata e Osamu Tezuka (apenas para citar alguns), que
são um dos mais fortes atributos do consagrado cinema de animação japonês. Os pontos em comum são
percebidos principalmente com Miyazaki: o fascínio por máquinas voadoras e seqüências aéreas, o trabalho
95
filhote de um animal desconhecido acaba por se tornar um gigante que atravessa
a cidade, destruindo carros, bondes e construções e sendo atacado pela força
aérea, explodindo no final, como em The Story of a Mosquito (EUA,1912). A
fidelidade ao real é essencial para que o espectador acompanhe o crescimento do
“filhote”, permitindo ainda a realização de algumas seqüências memoráveis.
Acrescenta-se que para dar a sensação de catástrofe pretendida pela artista o
seu estilo realístico é extremamente apropriado.
De modo semelhante ao filme (e à série) de McCay, Max acorda no final,
revelando que se tratava apenas de um sonho (Fig.045, penúltimo quadro).
Precavido, o artista opta por devolver o personagem animado para o tinteiro (Fig.
045, último quadro), dando ao filme o final tradicional, do personagem retornando
ao tinteiro.
Fig. 046 – Winsor McCay – The Pet (EUA, 1921).
A qualidade da ilusão de profundidade verificada nos filmes de McCay e
dos irmãos Fleischer está intimamente ligada à qualidade técnica da perspectiva
obtida no background, pelo desenho ou pela fotografia. E tanto McCay quanto os
artistas do estúdio Fleischer escolhem os melhores ângulos para apresentar seus
que se constrói sem muita antecipação e as preocupações artísticas e humanitárias superando os interesses do
filme como produto comercial.
96
personagens, nas diferentes ações e dimensões. Esse atributo, intimamente
ligado à ilusão de realidade desde a pintura renascentista e que, principalmente
com a popularização da fotografia, tornou-se o paradigma da representação
pictórica e imagética ocidental, permite aos artistas trabalharem com grande
expressividade os diferentes planos, unindo as qualidades artísticas com as
necessidades dramáticas exigidas por suas histórias.
O pedido de patente para o processo 3D do estúdio Fleischer foi feito no
final de 1933 (Fig.047) e aprovado em 1936. Por essa época, o estúdio Disney
havia se tornado o mais forte rival dos Fleischer, e inovava em diversas técnicas
de animação.
Fig. 047 – Max Fleischer - Pedido de Patente do Processo 3D – Detalhe.
O processo 3-D do estúdio Fleischer diferenciava-se da câmera multiplano
de Ub Iwerks e daquela do estúdio Disney principalmente por sua concepção: a
ilusão de profundidade era obtida pela utilização de cenários em miniatura.
Leonard Maltin relata que
97
Um comunicado de imprensa da Paramount explicava, na época: “Os
cartoons comuns hoje são desenhados, e os desenhos são
fotografados. Com o método que Fleischer introduziu para Popeye, o
estúdio de cartoon se assemelha a uma duplicata em miniatura de um
campo de produção comum de Hollywood. Os cenários são construídos
e reduzidos, e então eles são adaptados sobre uma plataforma giratória.
Esse cenário está a seis pés de alcance de uma câmera e lentes
especiais. O mecanismo requerido no novo processo pesa umas três
toneladas. Tem suportes, mesas móveis, manivelas, vigamentos de
aço, engrenagens e dispositivos suficientes para deixar atordoado um
engenheiro mecânico”
92
.
Uma explicação necessária e que esclarece o processo desenvolvido pelo estúdio
Fleischer é dada por Leonard Maltin:
Simplificando, uma estação e uma câmera de animação horizontal são
presas a uma enorme plataforma rotativa, na qual cenários em
miniaturas foram construídos. Como sempre, os personagens são
traçados e pintados em acetatos, mas os acetatos ficam suspensos
verticalmente em uma armação de aço que revela, atrás destes, o
cenário “ao vivo”. Um mecanismo especial permite o cenário girar um
pouco de cada vez, da mesma maneira que uma pessoa moveria um
background tradicional de papel para uma tomada panorâmica.
Fleischer e John Burks, os quais inventaram o sistema, perceberam
mais tarde que colocando alguns objetos no primeiro plano, na frente
dos personagens animados, criariam uma maior sensação de
profundidade e perspectiva
93
.
92
MALTIN, p.113. No original, A Paramount press release explained at the time, ‘Ordinary cartoons
today are drawn and the drawings are photographed. With the method which Fleischer has introduced for
Popeye the cartoon studio looks like a duplicate in miniature of a regular Hollywood production camp. Sets
are built and scaled down so that they will fit on a revolving turntable. This set' is within six feet of a special
lens and camera. The machinery entailed in the new process weighs some three tons. It has trusses, mov-
able tables, cranks, steel framework, gears and gadgets enough to make a mechanical engineer dizzy’."
93
MALTIN, p. 113. No original, Simply put, a horizontal animation camera and stand were attached to an
enormous revolving turntable, on which miniature sets were built. The characters were inked and painted on
celluloids as always, but the cels were then suspended upright in a steel frame that revealed the "live"
backgrounds behind it. Special machinery enabled the background to turn a tiny bit at a time, just as one
would move a traditional paper background for a panning shot. Fleischer and John Burks, who invented the
system, further realized that placing some objects in the foreground, in front of the animated characters,
would create an even greater feeling of depth and perspective”.
98
Em 1934, o estúdio Fleischer apresentou Poor Cinderella (EUA, 1934), o
primeiro filme do estúdio a ser realizado em cores, sendo também a única
produção colorida de Betty Boop (Fig.048). Richard Fleischer informa que “como
um toque final, Max decidiu usar a técnica tridimensional (3-D) que ele chamava
de processo estereotípico. Ele aperfeiçoou o processo por alguns anos,
juntamente com um brilhante engenheiro chamado Johnny Burkes”. Deve-se
notar que o filme foi lançado com o aviso de que o processo especial usado no
filme estava aguardando a patente (Fig.048, primeiro quadro).
Fig. 048 – Max e Dave Fleischer – Poor Cinderella (EUA, 1934).
Como o processo 3D era complexo e caro, seu uso era limitado a algumas
seqüências, com maior ênfase para aquelas que tivessem no movimento
horizontal o seu principal eixo de deslocamento. Essas seqüências, geralmente
curtas, eram inseridas ao longo do filmes nos quais, em sua maioria,
predominavam as seqüências com background 2D, ou seja, os tradicionais fundos
desenhados. Conforme se observa nas ilustrações (Fig.048, oitavo quadro e
Fig.049, primeiro, segundo, terceiro, quinto e décimo terceiro quadros), o efeito é
99
notável, e traz para os cenários uma poderosa ilusão de profundidade, ainda
capaz de impressionar.
Fig. 049 – Max e Dave Fleischer – Poor Cinderella (EUA, 1934).
Conforme Richard Fleischer, Max convenceu a Paramount a fazer o filme
em dois rolos
94
e não apenas em um, como era usual para os cartoons animados
do período
95
.
94
Grande parte das cópias em circulação principalmente na internet, tem a duração entre 7 e dez minutos e
não dos aproximadamente 20 minutos que teria o original em dois rolos.
95
FLEISCHER, p. 84. No original, “And, just to put the cherry on the pie, he convinced Paramount to let him
make the picture as a two-reeler instead of the conventional single reel. As far as I know, this was the first
two-reel color cartoon ever made. In any event, it was a groundbreaker for feature-length cartoons. "
100
Fig. 050 – Max Fleischer – Artigo sobre processo 3D revista Modern Mechanix, de Julho de 1936.
O filme utilizava o processo Cinecolor, um sistema de duas cores, então
muito utilizado nas animações, especialmente aprimorado (para os seus filmes)
por Max Fleischer para permitir melhores resultados
96
. Richard Fleischer
complementa:
Max cuidou do processo duas cores da Cinecolor inventando um
método secreto de uso de filtros especiais. O resultado final era que
dificilmente se poderia saber a diferença entre o Cinecolor e o
Technicolor. O processo de Max era realmente um segredo. Ele não
queria que a Cinecolor, e especialmente a Technicolor, soubessem
sobre isso. Uma vez, ele me ouviu mencionar Cinecolor para alguém,
me chamou de lado e, com um jeito conspirador, sussurrou para que eu
nunca falasse sobre nenhuma companhia para ninguém
97
.
96
O sistema Cinecolor era bastante utilizado na produção de curtas-metragens devido ao seu baixo custo.
Entretanto, para as produções de longas-metragens o custo não compensava as dificuldades técnicas
apresentadas pelo processo, principalmente a aqueles relacionados à complexidade das reações químicas de
seu manuseio e à incompatibilidade de seu sistema sonoro com o sistema usado nos filmes em preto-e-
branco, ainda predominantes na época. Por esse motivo, o primeiro longa-metragem a usar o sistema
Cinecolor foi o western da Monogram Pictures, The Gentleman From Arizona, (EUA, 1939, Earl Haley).
Conforme www.chambel.net/?cat=8, acesso em 10 out 2006.
97
FLEISCHER, p. 84. No original, “Max took care of the two-strip Cinecolor process by inventing a secret
method of using special filters. The end result was that you could hardly tell the difference between Cinecolor
and Technicolor. Max's process really was a secret. He didn’t want Cinecolor, and especially Technicolor, to
101
Nota-se pelo comentário de Richard Fleischer que seu pai cuidava de
manter máxima discrição sobre os segredos do estúdio. Por isso, apenas após a
obtenção da patente, em 1936, o estúdio passou a investir na divulgação do
processo 3D (Fig.050 e Fig. 051), usado no estúdio desde 1934
98
.
Fig. 051 – Max Fleischer – Artigo sobre processo 3D da revista Popular Science Monthly, de
Novembro de 1936.
Esses artigos apresentam-se bastante detalhados e são até didáticos sobre
o funcionamento do processo 3D do estúdio. A divulgação comprova, em primeiro
lugar, a necessidade estratégica de manter o espectador informado também
sobre os avanços tecnológicos do estúdio frente à concorrência. E ainda salienta
o grande valor dado por Max Fleischer para as revistas de divulgação científica,
que marcaram o seu início de carreira e que continuavam sendo vistas com
atenção pelo produtor. Na edição de novembro de 1936 da revista Popular
Science Monthly, o funcionamento do processo 3D (Fig.051) é explicado com
know about it. He once heard me mention Cinecolor to someone, took me aside, and, in a conspiratorial
manner, whispered never to speak about either company to anyone”.
98
Poor Cinderella foi lançada em 03 de agosto de 1934.
102
detalhes. As fotografias e gráficos permitem uma boa noção das dimensões dos
equipamentos utilizados
99
. O artigo inicia explicando que
Como imensas fatias de torta em um prato de doze pés, curiosos
cenários de cinema em miniatura feitos de argila, madeira, espuma,
gesso e papelão acrescentam agora novo realismo para os cartoons
animados, criando uma ilusão de profundidade. Nos estúdios de Nova
York onde Popeye, Betty Boop e outros famosos personagens dos
cartoons do cinema ganham vida, tais cenários estão substituindo as
superfícies planas, desenhadas nos backgrounds familiares no
passado
100
.
A afirmação de que os cenários tradicionais, desenhados e pintados,
fariam parte do passado deve ser atribuída apenas aos autores da matéria, já que
os próprios filmes do estúdio Fleischer, que usavam os cenários tridimensionais,
continuaram a usar também os cenários “planos”.
Fig. 052 – Max Fleischer – Little Swee'Pea (EUA, 1936).
O cenário é de Little Swee'Pea (EUA, 1936), conforme a miniatura
mostrada na ilustração (Fig.053), identificada pela legenda MINIATURE
SETTING, do lado esquerdo da imagem, e que pode ser vista nas imagens do
filme (Fig.052) e comparada com as imagens ampliadas (Fig.053 e Fig.054). A
diferença dos pontos de vista pode ser observada nos dois primeiros quadros.
(Observa-se que no primeiro quadro, Popeye passa em frente a uma varanda,
que é mostrada de perfil, quase uma vista lateral. No segundo quadro, a imagem,
99
Para um parâmetro para isso, note-se a presença de um técnico na primeira foto do artigo.
100
Popular Science Monthly, p.16. No original, Like immense slices of pie on a twelve-foot plate, curious
miniature movie sets made of clay, wood, sponges, plaster, and cardboard now add new realism to
animated cartoons by creating an illusion of depth. In the New York studios where Popeye, Betty Boop, and
other famous characters of the screen cartoons come to life, such sets are replacing the flat, sketched-in
backgrounds familiar in the past”.
103
ainda de perfil, mostra detalhes que permitem identificar a fachada principal da
varanda). Essa diferença é que criava o efeito de paralaxe
101
ou
estereoscópico
102
.
Fig. 053 – Max Fleischer – Detalhe do mecanismo do processo 3D (Popular Science Monthly).
Na ilustração da revista (Fig.053), podem ser vistos os elementos
componentes do cenário miniatura de um filme de Popeye no acetato
identificado pela seta com a legenda CARTOON DRAWN ON TRANSPARENT
SHEET (Ver ampliação do detalhe na Fig.054).
101
Paralaxe: é o deslocamento aparente da posição de um objeto estacionário que se encontra a uma certa
distância de um observador em movimento. Quanto mais próximo estiver o objeto do observador, maior será
o deslocamento aparente deste.
102
Estereoscopia: é um fenômeno natural que ocorre quando se observam duas imagens fotográficas de uma
mesma cena, tomadas de pontos diferentes.
104
Fig. 054 – Max Fleischer – Detalhe do mecanismo do processo 3D (Popular Science Monthly).
O artigo da revista Popular Science Monthly afirma ainda que vários
cenários podiam ser montados, ao mesmo tempo, sobre a plataforma giratória.
Desse modo, após gravar uma seqüência, poderia se passar com rapidez para a
cena seguinte, simplesmente girando-se a plataforma. O artigo conclui afirmando
que Max Fleischer ainda havia previsto uma aplicação de métodos similares para
os cenários dos filmes sonoros de Hollywood
103
.
103
No Original, Several sets can be prepared on the rotating table at the same time. As soon as the filming
of one set is completed, the table can be swung to the next. Max Fleischer, who has patented the new
technique, predicts that similar methods may be applied on Hollywood sound stages in the production of
feature pictures
105
Fig. 055 – Max Fleischer – Vista esquemática do processo 3D do Fleischer Studio.
A ilustração (Fig.055), que é a ampliação e tradução para o português do
gráfico da revista Popular Science Monthly, de novembro de 1936 (Fig.051),
mostra esquematicamente a disposição dos principais elementos componentes do
processo tridimensional do estúdio Fleischer. Na ilustração, percebe-se que o
cenário era construído em perspectiva, ou seja, a parte mais próxima da câmera
era construída em tamanho maior que as partes mais afastadas para aumentar a
sensação de profundidade. Isso também pode ser constado através de outras
imagens que ilustram o artigo (Fig. 056), nas quais pode ser observado como o
cenário projeta-se em perspectiva para o primeiro plano da fotografia, e, no caso
do filme, em direção ao espectador.
Na Fig.056, a ampliação (e composição) das fotografias da revista Popular
Science Monthly (Fig.051) mostra um técnico girando a plataforma rotativa este
procedimento criava o movimento panorâmico do cenário no filme. Do lado direito,
pode-se observar, detalhadamente, a maquete construída em perspectiva e ainda
um acetato de um filme de Betty Boop e Little Jimmy (Fig.056). A legenda explica
que o acetato era fotografado contra o background preparado e que a ilustração
(Fig.056, abaixo, lado esquerdo) mostra como a cena filmada vista na fotografia
(Fig.056, acima, lado direito) aparecia para o “olho da câmera”.
A disputa pela invenção da câmera multiplano, tanto por parte de Ub Iwerks
como pelo estúdio Fleischer, não é, na realidade, relevante. Os dispositivos
desenvolvidos por esses estúdios diferenciavam-se, conceitual e tecnicamente,
106
inclusive quanto a aquele criado pelo estúdio Disney, que teve sua patente aceita
após a aprovação da patente de Max Fleischer
104
. O próprio uso dado aos
dispositivos diferenciava-se por parte dos estúdios.
Fig. 056 – Max Fleischer – Detalhes do artigo sobre o processo 3D (Popular Science Monthly).
Do mesmo modo que a câmera multiplano de Ub Iwerks, o processo 3D do
estúdio Fleischer apresentava melhores resultados em movimentos de traveling
ou panorâmicos, não tendo sido usado em movimentos no eixo da profundidade.
Nos filmes do estúdio Fleischer e naqueles de Ub Iwerks, a ilusão de
profundidade obtida apresentava-se mais como uma opção estética, ao passo
que o estúdio Disney utilizava a sua câmera multiplano como uma necessidade
funcional e parte inerente à atmosfera requerida pelos filmes. Certamente essa
opção deve-se mais à complexidade e ao custo da utilização dos dispositivos,
104
Não se encontrou nenhuma referência a pedido de patente da câmera multiplano de Ub Iwerks, ou
imagens do dispositivo.
107
pois os dois realizadores destacam-se pela utilização criativa e primorosa do
espaço dos personagens.
A qualidade do trabalho dos irmãos Fleischer evidencia-se não apenas pela
influência exercida em sua época, mas especialmente por ainda apresentarem
possibilidades de renovar o olhar dos realizadores de nosso tempo. O riso
espontâneo do espectador assinala a capacidade inerente e o frescor das
situações criadas pelos artistas, eficazes ainda hoje.
Os filmes produzidos pelos Fleischer não se limitaram à série Out of the
Inkwell após ter se destacado e se estabelecido através da série, o estúdio
também investiu em filmes educacionais. Dentre esses, o primeiro e mais
conhecido é Einstein´s Theory of Relativity (EUA, 1923), um filme de quase uma
hora no qual foram combinados live-action, fotografias, gráficos e algumas
animações mais simples. Esse filme é considerado um marco na obra de Max
Fleischer, vinculando-se à preferência do realizador pelos temas científicos e
educacionais. O sucesso do filme levou Max a produzir um segundo longa
educacional, em cooperação com o American Museum of Natural History: o filme
Evolution (EUA, 1923), baseado na teoria de Charles Darwin e repetindo a
fórmula de seu antecessor
105
.
Destaca-se dentre os experimentos dos Fleischer o desenvolvimento da
série Song Car-Tunes, iniciada em 1924, quando a série Out of the Inkwell
havia se estabelecido. A idéia nasceu após a visita de Charles K. Harris, um
famoso escritor de músicas, interessado em encontrar um meio que permitisse ao
público acompanhar, cantando, os cartoons animados. Nascia assim a série Ko-
Ko Song Car Tunese a famosa Bouncing Ball
106
. Esses cartoons geralmente
começavam com um pouquinho de animação, levemente relacionada ao tema da
canção, e então se iniciava a canção que seria acompanhada pelo público. A
bolinha, que nos primeiros cartoons era animada, “pulava” sobre as palavras,
tocando nas sílabas que as pessoas iriam cantar. Como o objetivo era permitir
que o público cantasse acompanhando a canção, a animação da bolinha seguia
com exatidão o tempo da música, permitindo que todos cantassem no ritmo certo,
105
MALTIN, p.90-91.
106
CABARGA, Leslie. The Fleischer story. New York: DaCapo, 1988, p.32.
108
mesmo quando não familiarizados com a canção exibida. Os cinemas eram,
naquele tempo, aparelhados com instrumentos musicais, usualmente pianos ou
órgãos, com os quais os músicos seguiam com atenção o ritmo da bolinha, o que
nem sempre era uma tarefa fácil, pois qualquer erro na pauta, ou uma
qualidade de impressão, por exemplo, poderiam atrapalhar o acompanhamento.
Fig. 057 – Max e Dave Fleischer : o mecanismo do Bouncig Ball.
Após algum tempo, descobriu-se um novo mecanismo que oferecia
melhores resultados e no qual a bolinha não precisava ser animada. Um disco
branco ou uma bolinha de ping-pong presa na ponta de uma haste preta era
movimentado manualmente, recriando os movimentos que antes eram animados.
As letras da canção eram desenhadas em branco sobre papel cartão preto, fixado
sobre um tambor de uma velha máquina de lavar. A cada duas linhas da música
se girava o tambor para revelar as novas linhas, com cuidado para evitar as
vibrações do tambor devidas ao atrito. A ação era então filmada, exigindo
bastante concentração pois, uma vez iniciada, não se podia parar no meio e eram
109
necessárias atenção e precisão para se evitar que as letras fossem cortadas pela
máscara que tampava o restante da letra da canção
107
.
O sucesso obtido desde o primeiro Song Car Tunes Oh, Mabel”, música
de Gus Kahn e Ted Fiorito incentivou os irmãos Fleischer a produzirem novos
Car Tunes. A maioria dos filmes lançados na série era baseada em canções livres
de direito autoral. Predominavam títulos como Ta-ra-ra Boom de Ay”, In the
Shade of the Old Apple Tree e My Darling Nellie Gray”. Contudo, essa boa
receptividade não era inesperada.
Fig. 058 – Fleischer Studio – Preparação para gravação de um episódio de bouncing ball - da
direita para esquerda: Chas Sheltar, Louis Fleischer e Max Fleischer. FONTE: FLEISCHER, 2005.
Os Song Car Tunes foram um notável aprimoramento das estáticas placas
coloridas à o que eram usadas muito tempo nas salas de exibição
americanas com a mesma finalidade de permitir que canções populares fossem
cantadas pelo público. Cabarga afirma que Max, Dave e Dick Huemer, animador-
chefe do estúdio nessa época, foram assistir à primeira apresentação,
entusiasmando-se com a resposta vibrante do público que, acompanhando com a
107
CABARGA, p. 32.
110
voz e com palmas a canção, obrigou o gerente do Dr. Riesenfeld´s Rialto Theatre
a repetir a sessão.
Fig. 059 – Fleischer: Rudy Valle Melodie (EUA, 1932).
A grande importância da série Song Car Tunes foi ter propiciado uma
experimentação mais elaborada com o som, ou, mais exatamente, com a
necessidade de se alcançar o sincronismo entre o que era mostrado na tela e a
música cantada pelo público. Conforme Cabarga,
A seqüência animada da canção requereu talvez pela primeira vez na
história dos cartoons que o animador considerasse o tempo [de
duração de um evento] de modo mais complexo. Winsor McCay usou
um cronômetro para analisar algumas das ações que ele queria
desenhar. Mas antes de o som ser usado, e serem acrescentados
música e diálogos aos cartoons, não teria existido nada para se
cronometrar! Os Song Car-Tunes sem dúvida ajudaram os animadores
dos [estúdios] Fleischer a se preparem para a experiência na qual eles
tomaram parte em 1925
108
.
108
CABARGA, p. 34. No original, The animated song sequence required – perhaps for the first time in the
history of the cartoons - that animators consider timing in a more complex way. Winsor McCay used a stop
watched to analyze some of the actions he wanted to draw. But before sound came into use, and music and
dialogues were added to cartoons, there would have been nothing to time! The Song Car-Tunes undoubted
helped prepare the Fleischer animators for the experiment in which they were to take part in 1925.”
111
Cabarga refere-se aqui ao desenvolvimento dos Song Car-Tunes com o
som na própria película. Hugo Riesenfeld, suporte financeiro dos Fleischer, era
também patrocinador do Dr. Lee DeForest, um cientista de reputação
estabelecida, que, entre grandes realizações, foi também o responsável pelo
desenvolvimento do som no cinema
109
. Assim,
Com o interesse dos Fleischer nas mais recentes realizações
científicas, naturalmente eles se reuniriam com DeForest para produzir
o primeiro cartoon sonoro. “My Old Kentucky Home”, um song Kar-
Tune, que foi planejado para incluir uma trilha sonora fornecida por
DeForest. É interessante observar as primeiras tentativas dos Fleischer
para animar o som. Um personagem cachorro (mistura da companheira
de Ko-ko, “Fits” e "Bimbo" que se tornou um personagem principal no
início dos anos trinta) entra em um quarto, toca um trombone e,
desajeitado, mas distintamente, declama as palavras, "agora, todos
sigam a bolinha pulando e cantem juntos."
110
Foram feitos ainda muitos outros Song Car-Tunes, que aparentavam
apenas terem sido “mapeados” e acrescidos com um complemento musical.
Em 1923, quando mudaram para uma sede maior, na qual ficaram até
1938, o estúdio Fleischer tinha por volta de 16 animadores, dentre estes, alguns
dos grandes nomes da indústria da animação: Burt Gillette, Dick Huemer, Manny
Davies, Ben Sharpstein e Doc Crandall. Durante a década de 1920, a série Out
the Inkwell tornou-se um grande sucesso, sendo vencida em popularidade apenas
por “Felix The Cat”, de Pat Sullivan, criado e animado por Otto Messmer.
109
CABARGA, p. 34. No processo sonoro do Dr. Lee Deforest, ondas sonoras eram transformadas em
eletricidade e através de uma válvula produzia luz, que variava em intensidade com as ondas sonoras. A luz
da válvula era usada para expor o padrão do som na lateral do filme [suporte], entre os furos da roda dentada
e a imagem do filme. DeForest recebeu sua patente em 1919, oito anos antes que a indústria do filme se
interessasse pelo som. Durante esse tempo ele produziu mais de 100 “DeForest Phonofilms” que incluem
gravações de Eddie Cantor, Weber and Field, os discursos políticos de Calvin Coolidge e a música de Elbie
Blake e Noble Sissle.
110
CABARGA, p.34. No original, “With the Fleischer interest in the latest scientific achievement, it was
only natural that they should get together with DeForest to produce the first sound cartoons. “My Old
Kentucky Home”, a song Kar-Tune, was planned to include a soundtrack provided by DeForest. It’s
interesting to watch the Fleischer primitive attempts to animate to sound. A dog character (a cross between
Ko-ko´s playmate, “Fits” and “Bimbo” who became a major character in the early 1930s) walks into a
room, play a trombone and clumsily, yet distinctly, mouth the words, ‘now let’s all follow the bouncing ball
and sing along.’”
112
O maior fenômeno de popularidade do cinema de animação silencioso
conheceu o verdadeiro nome de seu criador e animador tardiamente. Charles
Solomon atribui ao historiador de cinema de animação John Canemaker esse
reconhecimento, já em meados da década de 1970, após ter investigado as
histórias de velhos animadores
111
. Até hoje usufruindo a fama conquistada em um
passado glorioso, o gato Félix é o pide uma das mais intrigantes associações
entre dois homens talentosos.
Atualmente, não existe dúvida da autoria e do gênio que deu vida ao
gato Félix. É imprescindível, no entanto, dar os devidos créditos também ao
homem que tornou possível esse sucesso. Pat Sullivan nasceu na Austrália, mas
foi apenas no EUA que encontrou o sucesso. Conforme resume Charles
Solomon,
Nascido em Sydney, Austrália, em 1887, Pat Sullivan tinha sido cartunista
de jornal, artista de music-hall, marinheiro, expositor de filmes e pugilista
de peso leve antes que ele achasse um emprego no New York World,
auxiliando William Marriner em sua história em quadrinhos "Sammy
Johnsin". Em 1914, Marriner morreu e Sullivan foi trabalhar para Raoul
Barré. Tendo aprendido cnicas de animação com Barré, Sullivan abriu
o próprio estúdio em 1915 para produzir filmes de bônus de guerra. No
ano seguinte, ele contratou Otto Messmer para trabalhar em ries
baseadas na tirinha de "Sammy Johnsin" e nos filmes de Charlie
Chaplin.
112
Otto Messmer, como desenhista e ilustrador, já havia sido reconhecido, por
volta de 1910, após ter feito alguns cartuns para a Life e outros periódicos. Tendo
estudado arte e ilustração de moda, foi através de show de vaudeville que
Messmer se encantou pelo cinema de animação: uma performance de Winsor
McCay, com Gertie the Dinosaur”, arrebatou-o em uma das mais criativas
trajetórias do cartoon animado da era silenciosa. Ele assinou contrato com a
111
SOLOMON, p.33.
112
SOLOMON, p. 33. No original,
Born in Sydney, Australia, in 1887, Pat Sullivan had been a newspaper
cartoonist, a music-hall performer, a sailor, a motion picture exhibitor and a lightweight boxer before he found
a job at the New York World assisting William Marriner on his "Sammy Johnsin" comic strip. In 1914, Marriner
died and Sullivan went to work for Raoul Barré. Having learned animation techniques from Barré, Sullivan opened
his own studio in 1915 to produce War Bond pictures. The next year, he hired Otto Messmer to work on a series
based on the "Sammy Johnsin" strip and on the films of Charlie Chaplin.”
113
Universal e fez um filme teste de um minuto, Motors Matt and His Fliv
113
.
Satisfeitos com o trabalho de Messmer, os executivos da Universal colocaram-no
em contato com o cartunista Hy Mayer, famoso internacionalmente. Juntos,
eles colaboraram na série Travels of Teddy, na qual apresentavam uma paródia
do presidente Teddy Roosevelt. A série durou até 1916. Após seu encerramento,
Messmer foi trabalhar para Pat Sullivan
114
.
Contratado por Pat Sullivan para trabalhar para a Paramount, Messmer
criou uma versão animada de Carlitos. Até hoje, não se sabe como Sullivan
conseguiu persuadir Chaplin a autorizar essa versão de seu famoso
personagem. O importante é que, ao estudar os seus filmes, quadro-a-quadro,
Messmer teve a oportunidade de apreender as minúcias dos gestos e expressões
da pantomima do famoso personagem. Esse conhecimento viria a se mostrar de
enorme valor para o desenvolvimento de Félix. A carreira de animador de Otto
Messmer foi interrompida pela I Guerra Mundial, mas, ao término do conflito,
Messmer voltou a trabalhar para o estúdio de Sullivan, ao lado de Earl Hurd,
Frank Moser e outros artistas, em cartoons de quatro minutos realizados para a
Paramount’s Screen Magazine
115
. Messmer relembra que
“O estúdio estando ocupado, Sullivan me pediu para fazer algo em meu
tempo livre, em casa. Eu fiz rapidamente um [cartoon] mostrando um
gato preto que é tapeado por um rato. Eu usei bastante gags visuais. A
Paramount gostou e me contratou para a sua PARAMOUNT SCREEN
MAGAZINE. O filme fez sucesso com o público. Eu o escrevi e o animei
apenas com os assistentes de estúdio. Ele cresceu em popularidade, e
como a demanda ficou mais urgente, Sullivan empregou mais
animadores, várias vezes, para ajudar”.
116
O filme Feline Follies (EUA, 1919), que lançou o personagem, ainda sem
nome, fez sucesso o bastante junto ao público para a Paramount encomendar
113
SOLOMON, p. 33.
114
SOLOMON, p. 33.
115
SOLOMON, p. 33.
116
MALTIN, p. 23. No original, The studio being busy, Sullivan asked me do one my spare time, at home. I
did a quick one showing a black cat being outwitted by a mouse. I used plenty of pictures gags. Paramount
liked it and signed it up their PARAMOUNT SCREEN MAGAZINE. It made a hit with the public. I wrote and
animated it alone with studio assistants. It grew in popularity, and as the demand became more urgent,
Sullivan took on more animators, at various times, to help”.
114
outro filme, Musical Mews (EUA, 1919). Após esse novo êxito, o produtor John
King deu-lhe o nome de Félix, baseado nas palavras latinas para gato (felis) e
sorte, felicidade (felix) por admirar o contraste entre o significado destas palavras
e a tradicional superstição sobre gatos pretos
117
. Entretanto, o fato de lix ser
um gato preto deve-se apenas a necessidades técnicas, pois, desse modo,
evitava-se desenhar muitas linhas. Ainda, Messmer acreditava que massas
sólidas se moviam melhor nas telas. O desenho original do personagem era mais
angular, mais parecido com um cão do que com um gato, com uma cabeça
maciça, com pernas angulosas e pés retangulares.
Em 1922, Bill Nolan ajudou Messmer a redesenhar Félix, consagrando-lhe
a atraente e familiar forma arredondada
118
. O que diferenciava Félix dos mais
prosaicos personagens de seu tempo era o seu uso da animação.
"Eu o tinha brilhando o tempo todo", Messmer disse para Canemaker
em 1976. "A maioria dos cartoons [dos outros estúdios] eram como
fantoches, somente saltando Eu usei uma porção extrema de
movimentos de olhos, mexendo os olhos e virando os bigodes, e parecia
ser isso que atingia o blico — expressões!"
119
Essa percepção, que estava latente desde as primeiras animações, foi
notada e desenvolvida com sofisticação por Messmer. Foi o início do
desenvolvimento psicológico de um personagem de cartoon. Antes de Félix,
predominava o movimento, resumido na frase de abertura de Little Nemo, de
McCay: “Vejam-me mover”. Essa característica, ainda incipiente, está presente
nos primeiros filmes de Koko, o famoso palhaço dos Fleischer, que, ao reproduzir
muitas das ações originais do circo, acabou por captar o elo que liga personagem
e espectador. Ou ainda do próprio McCay, a cumplicidade despertada pelo lado
criança emergindo do personagem, como quando Gertie chora desesperada ao
ser repreendida pelo seu criador. É notável que o filme que levou Messmer ao
cinema de animação foi também o primeiro cartoon a iniciar o desenvolvimento de
117
MALTIN, p. 23. SOLOMON. p.34.
118
SOLOMON, p. 34.
119
SOLOMON, p. 34. No original,
I had him sparkling all the time," Messmer told Cane-maker in 1976.
"Most of the cartoons [by other studios] were like a dummy, just jumping—so I used an extreme amount of eye
motion, wriggling the eyes and turning his whiskers, and this seemed to be what hit the public—expressions!”.
115
uma personalidade nos atores animados. Félix, no entanto, não nasceu pronto,
com sua personalidade e com seus traços psicológicos já desenvolvidos. Foi
sendo construído aos poucos, através da percepção que Messmer tinha da
empatia do personagem com o seu público. É interessante perceber que, do
mesmo modo que a aparência de lix mudou com o tempo, a sua personalidade
foi sendo desenvolvida e aprimorada para ajustá-lo à sociedade, ou seja, em um
processo semelhante ao próprio desenvolvimento humano. Conforme Solomon,
Algo mais sutil do que expressões faciais contribuíram para a atração
de Félix: um estilo único de movimento que expressava sua
personalidade. Usando princípios explorados por McCay e Chaplin,
Messmer deu a Félix um modo de mover tão reconhecível quanto o de
qualquer outro cômico do cinema silencioso. Os curtas de Félix contêm a
animação de personagens mais sofisticada feita antes do inovador filme
de Disney, "Os Três Porquinhos" (1933)
120
.
O sucesso de Félix, no entanto, não pode ser creditado apenas ao
primoroso desenvolvimento artístico e expressivo alcançado por Otto Messmer.
Havia um homem-chave por trás do gato, ou melhor, à frente do personagem. Pat
Sullivan, cuja personalidade eclipsou o verdadeiro criador daquela que, em
meados da década de 1920, era uma das mais famosas e reconhecidas
celebridades do cinema mundial.
Sullivan tomou todo o crédito e falou sobre o trabalho investido em
Félix, a responsabilidade de sua fama, de como o personagem havia
sido inspirado por "The Cat That Walked by Himself”, de Kipling, e pelo
hábito de sua esposa em levar para casa gatos de rua. Em 1926, foi
instituída com sucesso uma linha de brinquedos, bonecos e
mercadorias. Naquele mesmo ano, uma canção popular tomou o seu
título de um dos cartoons, "Felix Kept Walking."
121
120
SOLOMON, p. 34. No original “Something subtler than facial expressions contributed to Felix's appeal:
a unique style of movement that expressed his personality. Using principles explored by McCay and Chaplin,
Messmer gave Felix a way of moving as recognizable as any silent comic's. The Felix shorts contain the most
sophisticated character animation done before Disney's breakthrough film, "Three Little Pigs" (1933).
121
SOLOMON, p. 34. No original, Sullivan took all the credit and spoke of the work he invested in Felix,
of the burden of his fame, of how the character had been inspired by Kipling's "The Cat That Walked by
116
Essa visão pragmática do filme relaciona-se intimamente com seu sucesso.
O merchandising não é apenas mais um modo de aumentar os lucros de uma
empresa ele é também responsável pela maior distribuição e melhor fixação da
marca. Pat Sullivan foi o primeiro nome da indústria de animação a perceber e a
desejar esses benefícios que foram desvalorizados, por exemplo, por Max
Fleischer, tendo se transformado, em Disney, numa fonte importantíssima de
financiamento para o cinema de animação.
Fig. 060 – Sullivan Studio: O gato Félix, de 1919 ao início dos anos 1930.
Himself and by his wife's predilection for bringing home stray cats. A successful line of toys, dolls and
merchandise was instituted in 1926. That same year, a popular song took its title from one of the cartoons,
‘Felix Kept Walking.’”
117
3
DISNEY: AS PRIMEIRAS NOTAS DE UMA SINFONIA
SILENCIOSA
A primeira impressão, ao se ler ou ouvir falar em Disney, é a de uma
tranqüilizante familiaridade. Seu nome soa como o de um velho conhecido, de
quem não é preciso falar muito, pois freqüentou os nossos lares desde a mais
tenra infância. Mais que isso, o nome de Disney, para muitos, emerge como
sinônimo de desenho animado. Essa familiaridade consiste, entretanto, no maior
obstáculo ao estudo de sua obra e, quando transposto, o que se descortina é um
panorama demasiado amplo para ser abarcado.
Uma certeza, entretanto, tem-se em relação a Walt Disney – este é o nome
mais importante da história da indústria do cinema de animação e, por
conseqüência, também uma das mais importantes influências da arte da
animação do século XX.
Os livros que tratam da vida e obra de Disney, buscam em grande parte
explicar suas ações e opções, baseando-se em sua biografia, nos fatos que se
tornaram relevantes, pelo menos para permitir aos biógrafos explicarem sua
trajetória tão rica quanto controversa
1
. Não sendo a principal vertente deste
trabalho, apenas alguns pontos da biografia de Disney serão aqui abordados, a
fim de esclarecer ou apresentar uma versão provável às ações que influíram em
certas decisões do realizador.
A trajetória fílmica e técnica que levou Walt Disney a elaborar o desenho
animado clássico dando aos personagens, criados com traços e tintas e
transformados em luz e sombra, o poder de despertar os mais profundos
sentimentos humanos – é o que será abordado a partir deste capítulo.
1
Alguns biógrafos sugerem que o pai de Walt, Elias Disney era um homem rígido e severo, e que, quando
criança, Walt se dedicava ao desenho como uma forma de fugir de sua infância difícil. Cf: Solomon, p. 37.
118
Walter Elias Disney nasceu em 5 de dezembro de 1901, em Chicago
(EUA). Em 1906, sua família mudou-se para uma pequena
2
propriedade rural em
Marceline, Missouri. Transferindo-se novamente, em 1910, para Kansas City,
também no Missouri, onde seu pai comprou um negócio de entrega de jornais.
Walt Disney trabalhava na entrega dos jornais. Manifestando interesse pelo
desenho desde cedo, freqüentou aulas no Kansas City Art Institute, nas manhãs
de sábado. Ao retornar com a família para Chicago, Walt Disney trabalhou como
cartunista e como fotógrafo para a revista de sua nova escola, o Art Institute of
Chicago. Em 1918, Disney deixou a escola, após ter convencido sua mãe e
falsificado a idade para engajar-se nas forças armadas, indo para a Europa ao
final da I Guerra Mundial, onde serviu como motorista no Corpo de Ambulâncias
da Cruz Vermelha. Roy Disney, seu irmão mais velho, servia na Marinha dos
EUA. Walt não chegou, contudo, a lutar na guerra, pois o armistício foi assinado
antes mesmo que ele chegasse à França
3
.
Em 1919, Walt Disney voltou aos EUA, indo para Kansas City, onde se
empregou como aprendiz no Pesmen-Rubin Commercial Art Studio. Nesse
estúdio, Disney fazia esboços e cartuns para publicidade impressa. Foi ali
também que conheceu um jovem artista de talento, descendente de holandeses,
Ubbe Ert Iwerks, de quem se tornou amigo. Mais tarde, Ub Iwerks seria uma
presença constante na vida e na carreira de Walt, figurando, ao seu lado, como
um dos grandes nomes da animação. Em fins de 1919, os dois amigos abriram
um negócio próprio o estúdio Iwerks-Disney Commercial Artists. O
empreendimento durou apenas um mês, pois, em janeiro de 1920, Walt Disney
conseguiu um emprego na Kansas City Slide Company
4
, empresa que, algum
tempo depois, mudaria sua denominação para Kansas City Film Ad. Por sugestão
de Disney, após dois meses essa empresa contratou também Ub Iwerks
5
.
2
A propriedade tinha 48 acres ou 19,42 hectares.
3
FINCH, Christopher. The art of Walt Disney: from Mickey Mouse to the Magic Kingdoms. New York:
Harry N. Abrams
. Concise Ed. 1999, p. 10-12.
4
SOLOMON, p. 37. Conforme Solomon, a firma durou apenas um mês, mas o autor não explica o motivo da
efêmera atuação.
5
SOLOMON, p. 37.
119
Fig. 061 Equipe da Kansas City Ad Service, Disney está sentado sobre o corrimão de tijolos, à
direita. Ub Iwerks é o sétimo a partir da direita. À direita, Disney no estúdio de Kansas City.
FONTE – FINCH, p. 13.
A Kansas City Film Ad. produzia filmes de um minuto para serem exibidos
nos cinemas locais, apresentando algumas animações simples. Em grande parte,
a animação produzida ali consistia em animar bonecos (de recortes) com juntas,
feitos a partir de fotografias montadas sobre cartão, uma técnica que impedia uma
animação mais realista, ou naturalista. De qualquer modo, esse foi o treinamento
básico que permitiu ao jovem Disney iniciar-se no mundo da animação. Essa
animação limitada não o satisfazia, que Disney pretendia igualar-se à produção
dos estúdios mais sofisticados, como os cartoons da série Out of the Inkwell,
realizada pelos irmãos Fleischer. Solomon informa que, conforme o biógrafo Bob
Thomas, Disney e Iwerks aprenderam animação essencialmente estudando o
livro de técnicas básicas de Carl Lutz
6
e as fotografias de movimentos humanos e
de animais de Muybridge
7
. Durante a noite, usando uma câmera emprestada, os
dois amigos começaram a experimentar os seus próprios e mais ambiciosos
filmes animados. Disney convenceu Frank Newman, o proprietário de uma rede
de cinemas em Kansas City, a comprar uma série de filmes de um minuto,
apresentando gags baseadas em fatos correntes e cotidianos. Os filmes eram
exibidos nas salas de exibição de Newman, com a denominação de Newman-
Laugh-O-grams.
Em 1922, Disney começou a expandir o seu trabalho de animação,
inicialmente com uma equipe formada por artistas estudantes, que trabalhavam
6
O livro referido é Animated cartoons: how they are made, their origin and development, de 1920.
7
SOLOMON, p. 37.
120
em troca de lições de desenhos de cartuns. Desse modo, conseguiu produzir um
filme mais longo, Little Red Riding Hood”. Satisfeito com o resultado, Disney
deixou seu emprego na Kansas City Ad Company e procurou convencer
investidores locais a aplicarem quinze mil dólares na estruturação da Laugh-O-
grams
8
, a sua primeira companhia de animação
9
.
Na Laugh-O-grams, Disney começou a desenvolver duas das principais
características que o ajudaram a conquistar seu público: a elaboração de versões
criativas e atualizadas de histórias populares e a capacidade de reunir em torno
de si profissionais competentes, de quem obtinha dedicação e superação. Foi
ainda em Kansas City que ele começou a formar uma equipe de grandes talentos,
somando-se ao próprio Disney e a Ub Iwerks nomes como Rudolf Ising, Hugh e
Walker Harman e Carmen “Max” Maxwell
10
.
Fig. 062 – Disney - Título, letreiros iniciais e personagens de The Four Musicians of Bremen (EUA,
1922).
O estúdio produziu seis cartoons baseados em histórias populares e contos
de fada. O primeiro deles, The Four Musicians of Bremen (EUA, 1922), baseou-se
8
SOLOMON, p. 37.
9
FINCH, p. 14. Para o autor, foi a partir do sucesso da série para Newman e após conseguir bastante capital
para deixarem o emprego, que Disney e Iwerks saíram para criar a Laugh-O-grams.
10
Além de outras importantes contribuições, Rudolf Ising, Hugh Harman, e Carmen “Max” Maxwell
ajudaram a fundar o estúdio de animação da Warner Bros. e Red Lyon.
121
na história “Os Músicos de Bremen”, dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Logo no
subtítulo, Disney apresenta a proposta do filme, muito semelhante àquela de
Paul Terry, para a sua versão atualizada das fábulas: “Uma versão modernizada
daquele velho conto de fadas – Os Quatro Músicos de Bremen, do cartunista Walt
Disney”
11
. Outro letreiro faz a introdução da história, informando que os músicos
iam de cidade em cidade se apresentando, mas que não estavam se saindo bem.
A animação propriamente dita começa com uma cena dos personagens
correndo de vários objetos, atirados pelo público dos músicos. Em seguida, os
personagens estão à beira de um lago, e o gato é atormentado por um balão onde
aparece a animação de um diabinho com seu tridente que literalmente o espeta.
Um letreiro informa que o “pontadas de fome”
12
. A animação é bastante
simples, e o gato anda preocupado (à maneira do gato Félix, mas sem a clareza e
qualidade da animação de Messmer). O gato pega um porrete, esconde-se atrás
de uma pedra e os outros sicos começam a tocar seus instrumentos. A notas
musicais chegam até os peixes, e um deles se aproxima, dançando fora d’água,
onde é atacado a porretadas pelo gato que não acerta nenhuma, deixando o
peixinho pular de novo no lago. A cena repete-se e novamente o peixinho
mergulha no lago, mas, desta vez, é perseguido pelo gato. Logo as coisas se
invertem, e o gato passa a ser caçado por um peixe-espada, que continua a
perseguir o gato e os seus companheiros, até mesmo em terra, e todos acabam
se escondendo dentro de uma árvore oca, onde a ação da luta ocorre, e de onde
os personagens são atirados para fora. Distorções do tronco e efeitos visuais
caracterizam a luta não mostrada. Os músicos correm para fora da árvore,
novamente perseguidos pelo peixe, outra vez se protegendo, agora em cima de
uma árvore. Sentido-se seguros e alegres, começam a rir. O peixe, entretanto,
tem uma idéia (aparece o balão com a palavra “IDEA”) e começa a serrar a
árvore, que está à beira de um penhasco. Os músicos caem pela chaminé, dentro
de uma casa. Um grande número de soldados sai correndo da casa, entrando em
uma minúscula casinha de cachorro, da qual eles saem novamente, cada um
trazendo um pequeno canhão. Os soldados começam a atacar a casa, que, no
início, parece resistir como se feita de borracha, encolhendo-se e até mesmo
11
Conforme título original do filme: A modernized version of that old fairy tale ~ The Four Musicians of
Bremen by cartoonist Walt Disney”.
12
No original, “Pangs of Hunger”.
122
desviando-se das balas, em ações que são repetidas pelos personagens dentro
da casa. O gato sobe em cima da casa, e, arrancando o próprio rabo, utiliza-o
como um bastão de beisebol, rebatendo as bolas de canhão. Atingido por uma
bala, que o carrega por entre árvores, postes e construções, o gato continua
voando sobre a bola de canhão
13
, e mudando de direção após transformar a sua
cauda em um leme, volta ao campo dos inimigos que tentam alcançá-lo e são, um
a um, derrubados pelo gato. Os amigos então comemoram, ajudando a aparar a
queda do gato, que pula de sua bola-aeronave. A rede se rompe, e os gatinhos
que representam as nove vidas do gato começam a fugir, mas o último gato-vida
é agarrado pelo rabo e o gato protagonista surge do buraco. Logo, aparece o
letreiro final que informa: “E os quatro músicos viveram felizes para sempre”
14
.
A influência do filme é marcadamente a do gato lix, de Sullivan e
Messmer; contudo, sem alcançar a qualidade dos filmes do estúdio de Nova York.
Alguns dos recursos usados pelo filme de Disney são os mesmos usados por
Messmer, como por exemplo, em Felix Saves the Day (EUA, 1922), as cenas de
perseguição, o uso dos balões para as falas e onomatopéias, principalmente o
“empréstimo” da utilização criativa da cauda do gato, marca de Félix desde seu
primeiro filme, Feline Follies (EUA, 1919). A qualidade da animação e a
criatividade do roteiro, bem como a utilização de animações sobre fotografias,
tomadas em live-action, além dos cenários mais bem desenhados, fazem do filme
nova-iorquino um marco ainda a ser alcançado pelo estúdio de Kansas City. o
uso inteligente dos sinais gráficos pelo personagem, como parte da ação: para
visitar o seu amigo que está preso, Félix usa os pontos de interrogação como uma
escada para alcançar a janela da cela, no alto da prisão. E o desfecho criativo do
filme: no jogo de beisebol, Félix rebate uma bola de maneira a acertar Júpiter
Pluvius que, para se vingar, envia uma chuva, provocando a suspensão do jogo,
como o gato havia planejado. Félix então vai para a cela comemorar com o
13
Referência às histórias do Barão de Munchausen. O alemão Karl Friedrich Hieronymus, o Barão de
Munchausen, lutou como oficial ao lado dos russos contra os turcos. Quando voltou, exagerou tanto nas
histórias que dois impressionados amigos contaram em livros na Inglaterra, em 1785. Conforme O barão
mentiroso < http://jornalhoje.globo.com/JHoje/0,19125,VJS0-3076-20060607-171536,00.html>, acesso em
30 dez 2006.
14
No original, do letreiro Laugh-o-Grams, “And the four musicians lived happily ever after”.
123
amigo
15
. Félix planeja, executa a ação, torce para alcançar seus objetivos. Por
outro lado, o gato de Bremen, ou de Disney, age como um autômato que anda,
corre e realiza várias ações, sem convencer o espectador de que se encontra em
apuros, sem conseguir o envolvimento emocional do público, que não tem como
se identificar com o seu problema e nem com o personagem.
The Four Musicians of Bremen, ainda bastante rústico se comparado aos
trabalhos dos melhores estúdios de Nova York, mal aponta para a animação que
irá caracterizar o trabalho de Disney e de Iwerks. O filme comprova que os
animadores do Kansas procuravam não apenas se aproximar da produção dos
principais estúdios da costa leste como também esforçavam-se para analisar com
mais cuidado estes filmes. A tentativa de imitação era, entretanto, limitada pelo
domínio incompleto sobre a técnica de animação. Destaca-se, primeiro, que
sendo o filme sobre os quatro músicos de Bremen, a história concentra-se apenas
em um dos personagens. É razoável aceitar que um dos motivos para isso
certamente seria o custo, pois é mais fácil, rápido e barato reunir os esforços da
animação em um número menor de personagens. Coincidentemente, o gato foi
escolhido.
Fig. 063 – Disney Laugh-O-Grams – The Four Musicians of Bremen (EUA, 1922)
Na segunda seqüência do filme, buscando uma solução para abrandar a
fome da trupe (que a atividade de músicos ainda não permitia), o gato pensa, à
maneira de Félix, andando de um lado para o outro, preocupado.
A seqüência do gato andando preocupado apresenta alguns problemas
decorrentes da inexperiência. O primeiro é que o gato, que tem a maior parte do
15
O quadro final mostra Félix saindo de um bico de pena e lutando pela tinta que escrevia os créditos para
formar a sua cauda que estava faltando, que antes forma o letreiro identificando o filme como um cartoon de
Pat Sullivan, em uma evidente referência à marca registrada do estúdio Fleischer.
124
corpo preto, passa em frente a uma grande massa
16
, também muito escura, que é
a sombra da pedra, fazendo com que durante uma boa parte do percurso o corpo
se confunda com a sombra da pedra (Fig.063).
Existem ainda muitos elementos que dividem a atenção do espectador.
Além da pedra mencionada, aparecem outros personagens no mesmo campo
visual, em uma posição que incomoda e compete com a ação principal. Outro
problema é que o gato anda em profundidade, o que torna difícil perceber que ele
está preocupado. O principal obstáculo à ação do gato de Bremen é que a
animação não consegue demonstrar a preocupação do personagem, ou seja, o
acting não funciona. Conforme Céu D’Elia:
O acting é a capacidade de fazer os elementos de uma animação terem
dimensão psíquica. Isto é, fazer crer ao público, por exemplo, não
que a imagem de um coelho se move e está viva, mas também que tem
emoções internas e mesmo uma motivação básica de personalidade. É
a parte do cinema de animação que relaciona o personagem a uma
narrativa qualquer e faz crer que os fatos do roteiro têm real importância
para os personagens envolvidos.
17
E o gato não consegue passar com intensidade essa preocupação.
Quando isso ocorre, é por um mecanismo racional: o personagem anda de um
lado para outro, logo, está preocupado. No Félix analisado, o espectador sente a
preocupação do gato, pois foi apresentado ao problema, ou melhor, acompanhou
o problema. No filme de Disney, a apresentação do problema se dá através de um
balão gráfico que informa ao espectador que a preocupação dele é com a fome. O
espectador deve juntar os fatos: estão com fome porque não estão se saindo bem
como músicos. Desse modo, Disney tenta contornar a deficiência do acting de
seu personagem. O acting, que começou a ser bem explorado por Winsor McCay,
estava bastante presente nos filmes do palhaço Koko, dos Fleischer e
principalmente nos filmes com lix, o primeiro personagem a desenvolver com
melhores soluções esta capacidade, que é um dos fundamentos que permitem a
16
MASSA: Aquilo que nossos sentidos apreendem como um todo: as massas de luz e sombra de um
quadro.Conforme, Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
17
D’ELIA, Céu. Animação, técnica e Expressão, in: Bruzzo, 1996, p. 167.
125
identificação do público com o personagem, e que é um dos elementos vitais ao
estilo de desenho animado que será desenvolvido por Disney.
Em Felix Saves the Day, quando Félix anda, o fundo é claro, concentrando
a atenção em sua ação, que é simples, vista de perfil, facilitando a visualização da
posição das mãos do gato, preta sobre o seu corpo preto
18
.
Fig. 064 – Sullivan e Messmer – Felix Saves the Day (EUA, 1922).
O cenário é limpo, bem definido graficamente, e em nenhum momento
compete ou se confunde com o corpo do protagonista. A presença das grades
mostra que ele está diante da prisão, remetendo ao problema dele seu amigo,
que é um importante jogador de seu time de beisebol, está detido. Félix anda
cabisbaixo, com as os para trás. O acting reforça a concentração de seus
pensamentos.
Fig. 065 – IFS – Animador Leon Searl: Krazy Kat and Ignatz Mouse at the circus (EUA, 1916) –
Criação de George Herriman.
Na ilustração (Fig.065), extraída de Krazy Kat and Ignatz Mouse at the
Circus (EUA, 1916), o desenho dos outros personagens diferenciava-se do de
Krazy Kat por apresentar um maior número de linhas e detalhes para a sua
18
Maior sucesso do cartoon animado silencioso, lix não foi o primeiro gato, nem o primeiro gato preto do
cartoon animado. Antes disso, Krazy Kat, o personagem dos quadrinhos criados por George Herriman, havia
sido animado por Leon Searl para a Internacional Film Service, Inc., de Hearst.
126
realização. Esses desenhos, um pouco mais elaborados, eram compensados
pelas cenas curtas em que apareciam, e pela animação mínima e mais simples.
Outra opção seria utilizar-se de figuras simplificadas, como a de Ignatz Mouse,
que remetem ao cinema de Emile Cohl. A cena é bem clara, e, em vários
aspectos, melhor animada do que o filme de Disney, apesar de ter sido realizada
alguns anos antes, em um tempo em que a indústria do cinema de animação
ainda buscava estabelecer e desenvolver as técnicas básicas da animação.
O que distinguia Félix dos demais personagens animados não eram
apenas suas características físicas, e sim o conjunto de elementos que foram
sendo acrescentados e aprimorados no personagem, permitindo que ele se
tornasse capaz de transmitir sentimentos e motivações ao público, ou seja,
Messmer foi um dos primeiros artistas da indústria a aprimorar o acting de um
personagem. E também foi um dos mais copiados, tendo influenciado grande
parte dos animadores da era silenciosa.
Os filmes feitos por Disney no Kansas comprovam que, apesar de estar
afastado de Nova York, e de ter como recursos para aprender animação apenas a
análise dos filmes e a leitura dos manuais sicos, as animações que eles
realizaram mostravam-se comparáveis àquelas produzidas por grande parte dos
estúdios de Nova York, o principal centro produtor de filmes animados naquela
época. Ainda não se equiparavam aos resultados obtidos pelos estúdios de
Fleischer e de Pat Sullivan, os quais também se destacavam da produção
corrente de Nova York. Solomon afirma que, não sendo comparáveis aos filmes
desses destacados realizadores, os filmes de Disney não interessaram a nenhum
dos grandes distribuidores
19
. Certamente, os filmes ainda não se destacavam
frente aos melhores estúdios. Entretanto, no competitivo e intricado negócio dos
filmes de entretenimento, especificamente dos desenhos animados, parece mais
razoável acreditar que outros motivos pesaram tanto ou mais no desinteresse dos
distribuidores – a distância do estúdio de Disney da cidade de Nova York
20
parece
ser mais plausível como impedimento do que a qualidade técnica que, ao que
parece, se equiparava com a maior parte dos outros realizadores de Nova York,
não se diferenciando muito, por exemplo, de grande parte da produção de Bray,
19
SOLOMON, p. 38.
20
A distância entre Kansas City até New York City é de aproximadamente 1230 milhas (1979,07km).
127
ou dos filmes de Paul Terry, da série Aesop's Fables (Van Beuren Studios), como
por exemplo, The Barnyard Olympics (EUA,1924).
Fig. 066 – Disney trabalhando no estúdio Laugh-O-Grams, 1922. FONTE – FINCH, p. 15.
Independentemente dos reais motivos que não permitiram a Disney
conseguir um bom distribuidor, a insistência dele em realizar Alice’s Wonderland
(EUA, 1923) levou-o à falência, pois o capital terminou antes de o filme ser
vendido. Forçado a fechar o estúdio, Disney mudou-se para Los Angeles. Nova
York seria o lugar mais provável para um animador ir naquela época, mas a
opção de Walt Disney foi estar perto de seu irmão Roy (que estava internado em
um hospital de veteranos, recuperando-se de uma tuberculose). Em Hollywood,
ele imediatamente transformou a garagem de seu tio em um estúdio de animação
improvisado.
Apresentando, como amostra de seu trabalho, o filme Alice’s Wonderland,
Walt Disney conseguiu despertar o interesse de Margaret Winkler
21
, uma
distribuidora e produtora com reputação estabelecida e que havia, entre outros,
21
Algumas fontes dizem que Margaret Winkler, a primeira mulher a se tornar distribuidora de filmes
animados, iniciou com os direitos de distribuição (the states-rights distribution) de Mutt and Jeff para a
região de Nova York e Nova Jersey. Para outras, o início da carreira foi em 1922, com a distribuição da série
do gato Félix para o estúdio de Pat Sullivan. Richard Fleischer informa que, em 1921, Winkler financiou o
início da série Out of the Inkwell (Fleischer: 32).
128
sido responsável pela distribuição da série Out of the Inkwell, dos irmãos
Fleischer
22
e dos filmes de Pat Sullivan e Otto Messmer. Em outubro de 1923,
Disney assinou um contrato de um ano com M.J. Winkler para realizar um filme
por mês, seis filmes por US$ 1.500,00 cada, e mais seis filmes no valor de US$
1.800,00 a unidade. Roy ajudou Walt Disney a aumentar o capital para realizar o
primeiro filme dessa série – Alice’s Day at Sea (EUA, 1923) e também a pagar por
um escritório, de uma sala, para o Disney Bros. Studio
23
.
Fig. 067 – Disney – Virginia Daves, em Alice’s Day at Sea (EUA, 1923)
A combinação de personagem animado e live-action nasceu junto com os
filmes animados. Em pouco tempo, tornou-se bastante comum os personagens
animados invadirem o mundo real. O principal e melhor exemplo dessa interação
são os filmes do palhaço KoKo, de Max Fleischer.
22
Ela deixou de ser a distribuidora dos Fleischer quando eles decidiram criar sua própria distribuidora, a Red
Seal Pictures, que não conseguiu se estabelecer no mercado.
23
SOLOMON, p. 38.
129
O diferencial de Alice’s Wonderland, e o que certamente ajudou a
convencer Winkler a firmar o contrato, era o fato de Alice ser um personagem live-
action em um mundo de desenho animado. O potencial de identificação do
público, principalmente o infantil, com a atriz que interpretava Alice era evidente:
Virginia Daves era a atriz mirim de Alices Wonderland, e Disney a conhecera
ainda em Kansas City, quando ela fazia filmes publicitários para a Kansas City
Film Ad. Tanto Disney quanto M.J. Winkler queriam que a menina continuasse
com o papel, convencendo os pais dela a se mudarem para a Califórnia.
Fig. 068 – A equipe de Disney com a atriz Margie Gay, que interpretava Alice.
FONTE – FINCH, p. 16.
Os primeiros seis filmes da série Alice Comedy
24
foram animados por Walt
Disney, tendo como assistente Rollin “Ham” Hamilton. Após um início instável, a
série alcançou algum sucesso e, em maio de 1924, Disney convenceu Ub Iwerks
24
A série também é conhecida como Alice in Cartoonland.
130
a juntar-se a ele na Califórnia. Em pouco tempo, Iwerks estava fazendo a maior
parte das animações
25
. No final de 1924, juntaram-se ao grupo Hugh Harman e
Rudolf Ising. Realizaram-se cinqüenta e seis episódios, com quatro atrizes mirins
interpretando Alice: o último filme de Virginia Davis, que fez quatorze filmes para a
série, foi Alice in the Jungle (EUA, 1925)
26
. Logo após, ela foi substituída
brevemente por Dawn O’Day
27
, que atuou em apenas um filme da série, Alice's
Egg Plant (EUA,1925). Depois, Margie Gay continuou no papel na maior parte da
série (31 filmes), tendo sido finalmente substituída por Lois Hardwick
28
(10 filmes).
Os filmes da rie apresentavam grande variação no resultado das
histórias, mas a qualidade da animação de Ub Iwerks garantiu boas seqüências
em alguns filmes. Os resultados ainda não destacavam o estúdio que, no entanto,
crescia, permitindo que Disney organizasse o seu futuro
29
. Em 6 de julho de 1925,
foi feito um depósito de US$ 4.000,00 para a compra de um terreno na Hyperion
Avenue, 2719. Nesse terreno, foi construído um edifício de apenas um andar, no
qual se formou o primeiro núcleo que serviria como base da companhia pelos
próximos quinze anos
30
.
Em 1926, a série Alice Comedies estava se esgotando e o formato de
personagem live-action em um mundo de cartoon parecia não oferecer tanta
liberdade de criação quanto a opção inversa, consagrada pelos Fleischer, que era
uma das principais influências do estúdio da Califórnia.
Em Alice Chops the Suey (EUA, 1925), não apenas o personagem do gato
Julius surge de dentro de um tinteiro – a própria Alice emerge de dentro do tinteiro
como uma grande forma preta que, aos poucos, toma o aspecto de uma pessoa
que, sacudindo a tinta, revela a menina, interpretada por Margie Gay. O gato
Julius, antes coadjuvante, havia ganhado maior participação nos filmes da série.
Mesmo quando a atriz aparecia, era geralmente transformada em cartoon,
permitindo maiores possibilidades e facilidades.
25
SOLOMON, p. 38.
26
Conforme Donald Markstein, em www.toonopedia.com/alicecom.htm, acesso em 25 jan. 2006.
27
Dawn Evelyn Paris (1918 1993), mudou seu nome artístico de Dawn O'Day para Anne Shirley após ter
interpretado o personagem principal, de mesmo nome, no filme Anne of Green Gables (EUA, 1934).
Conforme, www.imdb.com/name/nm0794297/bio, acesso – 25 fev 2006.
28
Conforme: www.disney.go.com/vault/archives/characters/alice/alice.html, acesso 25 jan 2006.
29
Em julho de 1925, Walt Disney casou-se com Lillian Bounds, uma garota de Idaho que era uma de suas
funcionárias.
30
FINCH, p. 17.
131
Fig. 069 – Disney – Margie Gay em Alice the Fire Fighter (EUA, 1926).
Em Alice’s Day at Sea, na cena de Alice fugindo do peixe, a atriz live-action
é substituída por um cartoon que a representa (Fig. 067); em Alice the Fire Fighter
(EUA, 1926), quando Alice tenta aparar a queda de Julius, ela também é
substituída por sua versão em cartoon (Fig. 069, terceiro e quarto quadros); em
Alice Chops the Suey, em que tanto na cena inicial, já descrita, quanto nas
seqüências em que ela é colocada dentro de um saco, eliminando-se a
necessidade de combinar a animação com o live-action, o objetivo era conseguir
maior liberdade para os animadores.
Disney já havia, por essa época, reduzido muito a participação da atriz live-
action na série Alice Comedies, explorando cada vez mais o desenho animado,
sendo que Alice aparecia mais como um elemento de composição ou justificativa
para o nome da série. E o gato Julius assumia o papel de um proto-herói, não
eleito, mas de grande importância como antecessor do coelho Oswald, e mesmo
de Mickey – personagens que seriam desenvolvidos mais tarde por Disney.
132
Estimulado por Charles Mintz, e provavelmente por Carl Laemmle
31
, da
Universal, Disney e Iwerks desenvolveram um novo personagem, Oswald
32
, o
coelho sortudo (Oswald the Lucky Rabbit). É provável que Oswald tenha sido uma
criação de Iwerks, que, por volta 1926, Disney havia se distanciado da
execução dos desenhos, dedicando-se cada vez mais à produção e à
organização da empresa
33
.
Entretanto, não foi a partir da criação do personagem que as histórias e a
animação deram um salto de qualidade. O primeiro filme de Oswald, Poor Papa
(EUA, 1927), não tinha sido bem recebido pela Universal, sob a alegação de que
o personagem era inexpressivo. Disney e Iwerks então aprimoraram o
personagem, redefinindo-o e redesenhando-o. No segundo filme
34
, Trolley
Troubles (EUA, 1927), o coelho ainda não apresenta individualidade, mas o ritmo
da história é contagiante, como nas comédias slapstick
35
, demonstrando um
bom domínio do timing. Conforme define Céu D’Elia:
O timing é o estudo detalhado do tempo, pilar fundamental do
cinema de animão de qualquer estilo. O número de imagens
utilizado em um movimento determina quanto tempo a ação terá
durante a projeção. É não só a qualidade pstica de uma imagem
que determina seu valor no cinema de animão, mas principalmente
sua velocidade. A aceleração, a desaceleração e mesmo o estático
podem mudar radicalmente a percepção de peso (um elefante que
31
SOLOMON, p. 30.
32
No Brasil, o nome do personagem é normalmente grafado como Oswaldo e como Osvaldo. Neste trabalho,
optou-se por manter o nome original.
33
SOLOMON, p. 39. Ainda conforme o autor, o afastamento de Disney do trabalho de animação, e o fato de
que, devido a isso, ele nunca soube desenhar o Mickey muito bem, criaram o rumor de que ele não podia
desenhar.
34
Estreando em 15 julho de 1927.
35
Slapstick comedy - O tipo de comédia cinematográfica de maior sucesso popular na fase do cinema
mudo, desenvolvido nos Estados Unidos até meados da década de 1930, e ao qual estiveram ligados os
grandes cômicos do cinema do século XX: Max Linder, Charlie Chaplin, Mack Sennet, Buster Keaton ou
Harold Lloyd. A slapstick fundiu brilhantemente as tradições circenses da mímica e da acrobacia, o teatro
burlesco ou farsesco e os espetáculos de vaudeville e de music hall, adaptando-os para o mundo urbano,
cosmopolita, e imprimindo um ritmo cênico bastante rápido na construção e na seqüência de gags (gague).
A paródia, a ambigüidade das situações (qüiproquós), brigas, tombos e perseguições, a transformação dos
sentidos sugeridos inicialmente, mas que se modificam de uma cena para outra, e até mesmo uma crítica
tragicômica às condições de vida e tecnologias da época industrial foram elementos extensamente utilizados
pelos autores, a grande maioria ainda responsável pela criação dos próprios personagens, enredos ou
roteiros. A denominação foi dada pelo uso de duas tábuas em forma de bastão (stick), também chamadas
"espátulas de Arlequim", e com as quais, no circo ou no teatro, os palhaços ou comediantes simulam os
tapas ou pancadas que trocam entre si”. Conforme, www.videotexto.info/slapstick_comedy.html, acesso 1
mar 2006.
133
se desloca lento no ar parece leve), dinâmica (um personagem em
pose de ação que permanece estico por um longo tempo parece
que está congelado) e intenção (Fulano dando tapinhas amistosos nas
costas de Beltrano em velocidade pida parece que o está
agredindo). O timing relaciona a animão diretamente à música,
pois é o responvel pelo ritmo e pela métrica do movimento.
36
Ao mesmo tempo, durante o desenvolvimento da série de Oswald, o talento
de Walt Disney como contador de histórias começa a se, destacar, como observa
Solomon,
Talvez ninguém na história do filme tinha tido uma compreensão tão
completa da estrutura da história e de ritmo quanto Walt Disney.
Enquanto ele ainda não usava roteiros ou storyboards, ele mantinha um
olhar atento sobre cada filme e prontamente os resultados eram
aparentes. Uma cuidadosa estruturação, combinada com os toques
visuais de Iwerks tal como ao fazer Oswald se partir em algumas
pequenas imagens, dele mesmo, em "Bright Lights" (1928)
fortaleciam o apelo dos cartoons Disney.
37
O terceiro filme de Oswald, Oh, Teacher (EUA, 1927), ainda apresenta
forte influência de Félix. Nesse filme, Oswald tem como antagonista uma versão
mais vigorosa do gato Julius, e os dois personagens fazem uso dos sinais
gráficos e das palavras, que o usados à maneira de Otto Messmer, dando
versatilidade e humor às gags. Oswald é um coelho apaixonado, cuja namorada
possibilita o aparecimento de um rival, criando possibilidades de identificação com
o público de várias idades. Outra característica que liga Oswald a Félix é o seu
relacionamento com sua pata, do modo semelhante ao de Félix com sua cauda.
Em alguns momentos, Oswald destaca sua pata de seu próprio corpo, beijando e
transformando-a em um amuleto de sorte. Essa característica é talvez uma das
36
D’ELIA, Céu. Animação, técnica e Expressão. In: Bruzzo, 1996, p. 163.
37
SOLOMON, p. 39. No original,Perhaps no one in the history of film has had as thorough an
understanding of story structure and pacing as Walt Disney. While he did not use scripts or storyboards
yet, he kept a watchful eye on each film and the results were readily apparent. Careful structuring,
combined with Iwerks's visual touches such as having Oswald shatter into a dozen tiny images of himself
in ‘Bright Lights’ (1928) — strengthened the appeal of the Disney cartoons."
134
mais curiosas e importantes que Mickey não poderá herdar uma gag apropriada
apenas para o coelho sortudo.
Em The Mechanical Cow (EUA, 1927), o quinto filme da série do coelho
Oswald, a definição da personalidade de Oswald, que despontava em seu
segundo filme (Trolley Troubles), está bastante elaborada. Uma melhora
significativa na animação dos personagens, principalmente do coelho
protagonista, pode ser percebida: Oswald tem movimentos rápidos e
expressivos, que remetem a um coelho de verdade seus gestos, atitudes e
ações compõem uma personalidade forte e marcante, com uma vivacidade que
antecipa o charme do Mickey dos primeiros filmes. A história é bem contada e
apresenta uma cena de perseguição que brinca com os populares filmes de
cowboy e de gângster. Na cena, Oswald, montado em sua vaca mecânica, tenta
resgatar sua namorada, seqüestrada por bandidos. O acting é muito funcional, e
as gags são criativas e muito divertidas.
Fig. 070 – Disney – Seqüência de Alice Chops the Suey (EUA, 1925).
A animação certamente coloca agora o estúdio à altura dos melhores da
época, demonstrando a qualidade alcançada por Walt Disney e sua equipe e
iniciando uma diferenciação em relação à animação bastante semelhante entre a
maioria dos estúdios da época. Isso foi construído através do aprimoramento
técnico e artístico. Pode-se perceber esse desenvolvimento comparando a
apresentação da mesma gag, em dois filmes diferentes, em séries e tempos
distintos.
135
Em Alice Chops the Suey, após Alice (Margie Gay) ter sido seqüestrada
por vilões chineses, em Chinatown, Julius se encontra em frente ao esconderijo
dos bandidos, que atiram sobre ele um enorme cofre. Atingido e esmagado pelo
cofre, Julius “se parte” em quatro gatinhos (Fig. 070). Três anos depois, a mesma
gag foi aperfeiçoada para o coelho Oswald, em Bright Lights (EUA, 1928): sem
nenhum tostão para pagar a entrada, Oswald tenta assistir ao show de Mlle. Zulu,
sendo impedido pelo porteiro. Ao tentar entrar novamente, é atingido pelo
porteiro, “partindo-se” em vários coelhinhos que, em um movimento inverso,
voltam a se agregar, formando novamente o coelho em seu tamanho normal (Fig.
071).
Fig. 071 – Disney – Detalhe de cena de Bright Lights (EUA, 1928).
O aprimoramento da gag reflete a qualidade alcançada pelo estúdio. Até os
filmes de Oswald, as tentativas de Disney em utilizar o segundo plano, buscando
criar profundidade
38
não haviam sido bem-sucedidas. Assim, a maior parte das
ações tinha apenas duas dimensões para serem encenadas. Esse é um dos
motivos pelo qual a gag do filme de Alice, tão semelhante, não teve o mesmo
poder visual que a piada adquiriu no filme Bright Lights. Mas o principal motivo é a
construção da cena e a qualidade do timing o que tornou a gag mais bem
38
Sugestão de um espaço em três dimensões numa representação em perspectiva: a profundidade de um
baixo-relevo, de um quadro. [Sin. ger.: profundez, profundeza, profundura.]. Conforme: Novo Dicionário
Eletrônico Aurélio versão 5.0.
136
elaborada. O personagem não apenas se parte em pequenas pias de si
mesmo, como elas também voltam a se unir em um movimento que visualmente
valoriza a gag, facilitando a sua percepção e entendimento. No filme de Alice ela
pode nem mesmo ser notada, pois não existe antecipação nem um tempo
suficiente para a fruição da gag. No filme de Oswald, a construção da gag
também reforça a teimosia e a determinação do coelho em passar pelo porteiro,
como se reunisse novamente as suas energias para novas tentativas. O filme
mostra Oswald bem desenvolvido, amadurecido, com personalidade bem
determinada, refletindo a qualidade da animação alcançada pelos profissionais do
estúdio de Disney.
Essa maturidade do personagem Oswald, seu sucesso com o público e a
qualidade da equipe despertavam interesses sobre o trabalho do estúdio, o que,
em parte, explica os problemas enfrentados por Disney na renovação do contrato
de distribuição de seus filmes. Esses mesmos motivos davam a Disney a certeza
de que eles estavam no caminho correto e que, com um pouco mais de
investimento, ele poderia incrementar ainda mais a qualidade de seus filmes. Para
isso, seria necessário um reajuste nos valores que o distribuidor pagava pelos
filmes, já que os custos do estúdio haviam aumentado e que os filmes de Oswald
davam maior retorno do que os filmes da série Alice Comedies.
39
.
Disney havia assinado um contrato de um ano com Charles Mintz e, ao
final do contrato que estava vigorando, Disney viajou até Nova York com a
intenção de renovar o contrato e obter um aumento no valor pago por seus
desenhos. Quando Disney assinou o contrato para a série Alice, em outubro de
1923, sua distribuidora era Margaret Winkler, que agora havia se casado com
Charles Mintz. Com isso, ela decidiu se afastar, deixando que Mintz assumisse a
direção do negócio de distribuição. Com um estilo mais agressivo de negociação,
que levou a uma situação inesperada para Disney, Mintz não apenas recusou a
proposta de Disney de aumentar o valor das películas, para algo entre US$
2,250.00 e US$ 2,500.00, como ele também a contrapôs com a manutenção do
valor em US$ 1,800.00 ou mesmo com a redução dos valores pagos. Já contando
com a possibilidade da recusa de Disney, Mintz havia negociado e contratado a
39
Oswald foi o primeiro personagem da Disney a gerar merchandise: uma barra de doce (candy bar), um
conjunto de gabaritos (stencil set) e botom (pin back button), conforme site Disney Online,
www.disney.go.com/vault/archives/characters/oswald/oswald.html, acesso em 28 fev 2006.
137
equipe completa de animadores do estúdio. Todos, exceto Iwerks e Roy Disney,
concordaram em deixar Disney para trabalhar para o distribuidor, que usou o
direito de propriedade sobre o personagem Oswald como fator determinante para
continuarem a produzir a série, que havia conseguido se estabelecer, obtendo
boa receptividade de crítica e de público
40
. Solomon descreve assim o impacto
desse momento histórico:
Essa negociação desleal mudou o curso da animação e a cultura
popular Americana. Mintz produziu Oswald por um ano, então a
Universal cedeu Oswald para Walter Lantz. Disney criou Mickey Mouse,
o mais bem sucedido entre todos os personagens animados
41
.
Esse episódio seguramente foi uma das mais importantes lições
aprendidas por Walt Disney, como realizador e como negociante, e foi
determinante para a sua vida profissional. O encontro do qual Disney esperava
apoio e recursos para melhorar a qualidade de seu trabalho, reverteu-se em um
desastre que dilapidou a sua equipe, levando-lhe ainda um personagem de
sucesso, tornando-se o primeiro ponto de cisão da carreira de Disney e marcando
o fim de uma era em que o objetivo do realizador era conseguir se igualar aos
principais estúdios de animação de seu tempo.
40
Cf. FINCH, p.18; SOLOMON, p. 39; BENDAZZI, p. 62.
41
SOLOMON, p. 39. No original, This underhanded deal changed the course of animation and American
popular culture. Mintz produced Oswald cartoons for a year, then universal gave Oswald to Walter Lantz.
Disney went on to create Mickey Mouse, the most successful of all animated characters.”
138
O sucesso de Mickey Mouse foi, e continua sendo, considerado por muitos
como resultante muito mais da sorte do que das habilidades de cineasta
42
e
empreendedor já desenvolvidas por Disney. E certamente a atmosfera de mistério
e lenda que envolve a criação do personagem apenas serve para estimular essa
visão que, senão totalmente incorreta, desmerece o impacto causado pela
experiência anterior do realizador.
Disney e Iwerks, por volta de 1927 e 1928, já haviam atingido a maturidade
profissional que os colocava lado a lado com os seus pares. Disney, depois do
caso Oswald, decidiu assumir para si os riscos do negócio, não mais permitindo
que pessoas ou situações fora do estúdio controlassem ou tentassem controlar os
rumos que ele acreditava serem os melhores para os seus filmes animados.
Iwerks tornara-se um dos mais hábeis animadores no estilo predominante da
época. O estilo rubber hose (mangueira de borracha), criado por Nolan, oferecia
possibilidades criativas que haviam sido muito bem exploradas por animadores
como o próprio Nolan, Paul Terry, Dave Fleischer e Otto Messmer, dentre outros.
E Iwerks, mantendo-se dentro desse estilo, se destacava pelas características
que dava aos seus personagens:
A animação de Iwerks era de borracha, membros soltos e leves,
pontuada com gestos e expressões exageradas. Ele infundia seus
personagens com uma vitalidade selvagem que se evidencia hoje.
Igualmente importante no ambiente do estúdio, Iwerks era
extraordinariamente rápido. Enquanto trabalhava em Plane Crazyem
1928, ele fez setecentos desenhos em um único dia. Ele tinha ficado
sabendo que Bill Nolan havia feito uma vez quinhentos ou seiscentos
para um curta de Félix e decidiu quebrar esse recorde
43
.
Esse estilo permitia possibilidades quase ilimitadas de criação de gags,
como em Ko-Ko´s Earth Control (EUA, 1928), do estúdio Fleischer, no qual Fitz, o
cãozinho do palhaço Koko, se esticava todo para acionar o controle que leva a
42
Conforme dicionário Aurélio: Cineasta : “Pessoa que exerce atividade criadora e técnica relacionada com o
cinema (1); cinegrafista.”
43
SOLOMON, p. 39. No original, Iwerks’s animation was rubbery, loose-limbed and weightless,
punctuated with exaggerated gestures and expressions. He infused his characters with rambunctious vitality
that remains evident today. Equally important in a studio setting, Iwerks was extraordinarily fast. While
working on “Plane Crazy” in 1928, he did seven hundred drawings in a single day. He had heard Bill Nolan
had once done five or six hundred for a Felix Short and decided to break that Record.
139
Terra ao colapso, em uma das mais vivas seqüências do cinema animado
silencioso. O rubber hose, que passou a ser uma das marcas características do
cartoon animado da era silenciosa, não apenas permitia a manobra do
inconseqüente Fitz, como dava à mesma uma naturalidade própria daquele
universo que permitia expansões impossíveis dentro dos limites físicos do mundo
real. Com o aprimoramento de Oswald, tanto Disney quanto Iwerks iniciaram um
maior desenvolvimento de características próprias que os diferenciaria: Disney
aprimorando seu talento de saber contar histórias, e Iwerks suas qualidades como
animador, reconhecidamente um dos melhores naquele estilo desenvolvido na
década de 1920.
A criação de Mickey, envolvida por todas as lendas, foi feita por Iwerks, que
o desenhou e animou, e por Disney, que lhe deu a personalidade e cedeu-lhe a
própria voz por muitos anos. A versão mais conhecida para o nascimento de
Mickey, e que era divulgada pelo próprio Walt Disney, é que ele teve a idéia do
personagem já no retorno de sua viagem a Nova York, após o malsucedido
encontro com Charles Mintz. Conforme observa Christopher Finch:
Não existe razão para supor que isso não é essencialmente verdade,
mas com os anos a história tornou-se tão aprimorada pela repetição que
começou a perder o seu senso de realidade, adquirindo um caráter de
folclore. Uma outra dimensão foi acrescida à lenda pelo fato de que
Disney tinha supostamente domesticado um rato em seu velho estúdio
de Kansas City. Um rato que ele chamava de Mortimer. Esse mesmo
nome é mencionado como tendo sido a primeira escolha para seu novo
personagem, mas foi logo trocado para Mickey, supostamente porque
Lillian Disney achava Mortimer muito pomposo para um animal de
cartoon.
44
A filha de Disney, Diane Disney Miller, escreveu que seu pai insistia que
essa história era verdadeira
45
. O fato é que, logo após ter rompido com Charles
44
FINCH, p.21. No original, There is no reason to suppose that this is not essentially true, but over the years
the story became so polished by repetition that it began to lose its sense of reality and take on the character of
folklore. A further dimension was added to the legend by the fact that Disney had supposedly managed to tame a
mouse in his old Kansas City studio, a mouse he called Mortimer. That name is reported to have been his first
choice for his new character, but it was soon switched to Mickey, supposedly because Lillian Disney thought
Mortimer too pompous for a cartoon animal.
45
SOLOMON, p. 39.
140
Mintz, e mesmo antes de conseguir um novo distribuidor, Disney e Ub Iwerks
começaram a trabalhar no desenvolvimento de Mickey e em seu primeiro filme.
Assim como o Félix de Pat Sullivan e Otto Messmer não foi o primeiro gato
do cinema animado, Mickey também não foi o primeiro rato. Antes dele, o rato de
maior destaque no desenho animado talvez tenha sido Ignatz, o companheiro de
Krazy Kat, personagens de George Herriman, animados pela IFS
46
. Outros ratos
coadjuvantes povoaram as séries animadas, com destaque para os filmes de Paul
Terry e os de Otto Messmer. O próprio Disney havia empregado alguns ratos em
seus filmes, mesmo no filme que se tornou o piloto da série Alice Comedies,
Alice’s Wonderland, feito ainda em Kansas City, aparecia um ratinho tão
atrevido quanto o Mickey (Fig. 072). Em Alice Mysterious Mystery (EUA, 1926) e
em Alice Rattled by Rats (EUA, 1926), os ratos participam ativamente da ação,
dando mais charme e humor à trama. Certamente Mickey tem um pouco de todos
os seus antecessores, tenham sido eles ratos ou não. No entanto, o personagem
mais próximo de Mickey, no tempo e na influência direta, tanto em desenho
quanto em personalidade, é Oswald. Esse personagem em alguns momentos
antecipa algumas das características desenvolvidas pelo camundongo, que,
mesmo não sendo o primeiro personagem, foi certamente o mais importante
protagonista do cinema de animação de Disney, por tudo que possibilitou ao seu
estúdio e, por extensão, à indústria do cinema de animação.
Fig. 072 – Disney – Detalhe de cena de Alice’s Wonderland (EUA, 1922).
Não foi apenas o desenho ou a animação de Iwerks, entretanto, que
levaram Mickey ao apogeu dos personagens animados. Se, com Steamboat Willie
46
Cf. Neste capítulo, p. 126-127.
141
(EUA, 1928), Mickey Mouse apareceu para o mundo e para o sucesso
estrondoso, este não foi o primeiro filme de Mickey a ser realizado, e nem a ser
exibido. A primeira apresentação do personagem não causou a sensação que
marcou a história de Mickey, de Disney e do cinema de animação. Plane Crazy
(EUA, 1928) foi concluído e exibido sem causar interesse especial. Nessa
exibição, que aconteceu ao menos para os distribuidores, o personagem teria sido
rejeitado por se assemelhar muito a Oswald. Isso parece improvável, numa época
em que não havia muitas restrições em se ter uma versão própria de um
personagem de sucesso. Como exemplo, o consagrado gato Félix de Messmer,
do qual tanto Oswald quanto Mickey guardam muitas características. O motivo
mais provável das dificuldades para o lançamento de Mickey seriam as cláusulas
e preços exigidos por Disney, que estava empenhado em melhorar as condições
de realização de seus filmes, investindo na qualidade do estúdio. E isso parece
bastante natural, pois, se Disney havia perdido Oswald para Mintz exatamente
pela qualidade de sua animação e de suas histórias, e que o seu principal
animador, Ub Iwerks, ainda fazia parte da equipe, seria incoerente que Mickey
não oferecesse atrativos. É claro que as versões conhecidas de Plane Crazy e de
The Gallopin’ Gaucho (EUA, 1928), os primeiros filmes de Mickey e nos quais
Disney estava trabalhando, foram modificadas para receber o som, mas é
provável que a história e as gags tenham sido mantidas, senão inteiramente,
muito próximas da versão silenciosa.
Se Mickey havia sido exibido e não despertado cobiça, a explicação não
estava no personagem, ou na história, muito menos na qualidade da animação.
Por essa época, os filmes animados deveriam ser feitos rapidamente e ao menor
custo possível e, certamente, Disney o estava disposto a aceitar passivamente
essa regra determinante do mercado e das relações entre estúdios e
distribuidores, após ter alcançado um nível que ele sabia poder ultrapassar, se
tivesse os recursos para isso
47
.
Plane Crazy mantém, no mínimo, a mesma qualidade atingida por
Oswald tanto no ritmo do filme quanto no enredo e nas gags. Talvez, uma das
47
SOLOMON, p. 39-40. Conforme o autor, Disney, que teria aceitado pelos filmes de Oswald um reajuste de
U$ 2,250.00 para U$ 2,500.00, mas pelos quais Mintz só aceitava pagar U$ 1,800.00, pedia agora U$
3,000.00 por filme. Desse modo, Disney demonstrava, antes do Steamboat Willie, que tinha certeza da
qualidade que seus filmes haviam alcançado.
142
seqüências mais interessantes do filme seja a seqüência do beijo (Fig. 073), na
qual Mickey tenta obrigar Minnie a beijá-lo e para alcançar o seu intento tenta
assustá-la, obrigando a ratinha a pular em pleno vôo.
Fig. 073 – Disney – Detalhes de seqüência de Plane Crazy (EUA, 1928).
As seqüências de vôo rasante, que fluem em um ritmo frenético, através de
desenhos simples e leves, são herdeiras diretas dos filmes de Oswald, inclusive
na reutilização de gags, mas principalmente no emprego da profundidade, em
uma ampliação do espaço da tela que Disney sempre buscou, mas que começou
a ter resultados mais interessantes apenas a partir da série de Oswald. a partir
de Trolley Troubles, o segundo filme de Oswald, surgiram boas e movimentadas
seqüências que se destacam por uma utilização criativa da perspectiva e do
timing.
Em Plane Crazy, Disney volta a utilizar seqüências semelhantes, mas com
um melhor domínio tanto da qualidade do desenho quanto do ritmo da história e
da concatenação das gags, em um bom exemplo do desenvolvimento de ambos,
Disney e Ub Iwerks, em um espaço de aproximadamente um ano decorrido entre
o filme de Oswald e o primeiro filme de Mickey.
143
Fig. 074 – Disney – Detalhes de seqüências de Trolley Troubles (EUA, 1927).
Plane Crazy apresenta os personagens melhor animados, com os
desenhos mais elaborados e a animação transmitindo as qualidades daquele
universo rubber hose, onde não há lei da gravidade e onde os corpos seguem leis
físicas improváveis, porém sempre baseadas na experiência cotidiana.
Fig. 075 – Disney – Detalhes de seqüências de Plane Crazy (EUA, 1928).
Nesse universo animado por Iwerks, levam-se ao extremo as qualidades de
borracha dos personagens e dos objetos, como o o bassê que vira o elástico
que aciona o primeiro avião de Mickey (Fig. 075, primeiro quadro) e o próprio
avião que se comporta como sendo flexível, até o momento em que se choca
contra uma árvore e se quebra como se fosse rígido. Assim, naquele mundo de
borracha, a lei que predomina é a lei da gag, que muda até mesmo as suas leis
144
predominantes para criar desfechos inesperados e divertidos. Plane Crazy foi
todo animado por Ub Iwerks em apenas duas semanas
48
.
O segundo filme de Mickey foi The Gallopin’ Gaucho
49
. Nesse filme, Mickey
é um bandido procurado, mas que não hesita nem um segundo em salvar a sua
mocinha, Minnie, dançarina de uma cantina argentina, que foi seqüestrada por um
bandido. É um autêntico capa e espada, gênero bastante popular naquela época,
e que já fazia parte do repertório de Oswald, já que Disney começava a se
despertar para o “papel de mocinho” de seus personagens, dando a eles alguns
dos atributos extraídos dos principais artistas e personagens dos filmes em live-
action.
Em Oh, What a Knight (EUA, 1928), o coelho Oswald salva sua amada,
que está aprisionada em um castelo, em uma trama que remete aos filmes live-
action do gênero, criando gags e situações que parodiam o gênero.
Fig. 076 – Disney – Oh, What a Knight (EUA, 1928).
O segundo filme de Mickey, a exemplo de Plane Crazy, apresenta alguns
avanços em relação aos filmes de Oswald. Aqui, os personagens ganham um
tempo maior de apresentação. De modo similar ao que ocorre com os atores
“reais”, o personagem de cartoon vive papéis que, mesmo conhecidos pelos
espectadores, necessitam de algum tempo para criar a identificação entre o
espectador e o personagem animado. Em The Gallopin’ Gaucho esse tempo
funciona melhor do que em Oh, What a Knight. Mickey é apresentado como um
48
SOLOMON, p. 40.
49
SOLOMON, p. 40.
Conforme o autor, o filme também foi exibido e recusado pelos potenciais distribuidores.
145
gaúcho, caracterizado pelo ponche, pelo chapéu e pelo uso de uma ema como
montaria (seria uma avestruz?). Entra na cantina pela janela, na qual pára e de
onde observa, e ironiza com um ar de superioridade característico dos confiantes
heróis (mesmo quando são bandidos). Ao se melhorar a apresentação dos
personagens, também se avançou na apresentação do enredo. No filme do
coelho Oswald, não se sabe com certeza se a princesa está presa até que ela é
mostrada acorrentada.
Fig. 077 – Disney – The Gallopin’ Gaucho (EUA, 1928).
Em The Gallopin’ Gaucho, após Minnie ter sido apresentada, inicia-se a
seqüência do personagem sendo raptado (Fig. 077, sexto e sétimo quadros).
Várias pequenas gags são usadas para aumentar o tempo de apresentação do
personagem principal, mostrando que a vida do herói não é fácil; por exemplo,
como a sua montaria bebeu em demasia, ficando bêbada, o personagem tem
dificuldades em iniciar a perseguição. Tanto o filme de Oswald quanto o de
Mickey m como ápice a luta de espadas entre o herói e o bandido. Se, no filme
de Oswald, as gags da luta são muito criativas Oswald namora a princesa,
enquanto sua sombra luta contra o bandido (Fig. 076, sexto quadro) no filme de
Mickey, a luta é mais bem apresentada. Como no filme de Oswald, Mickey
146
também espeta o bumbum do bandido (Fig. 077, último quadro), mas nesta cena
a reação de dor de seu oponente é mais bem definida do que na cena semelhante
do filme de Oswald, (Fig. 076, penúltimo quadro).
Pode-se afirmar que Disney e Iwerks assumem a identidade entre Oswald
e Mickey, não apenas pela semelhança do desenho e da animação, pois afinal
ambos foram criados pelos mesmos artistas, mas vão à frente no
desenvolvimento do personagem, mostrando nesses dois primeiros filmes o
potencial do novo ator animado. Talvez como uma resposta irônica à acusação de
semelhança entre os personagens Oswald e Mickey, que se seguiram à primeira
apresentação de Plane Crazy, a última cena de The Gallopin’ Gaucho mostra as
orelhas do casal de ratinhos se espichando, como as de um certo coelhinho
(Fig.078).
Essa foi também a última seqüência de uma sinfonia que foi escrita dentro
dos limites do cinema silencioso. A música, gráfica ou tematicamente,
acompanhou Disney desde seus primeiros filmes em Kansas City. Em The Four
Musicians of Bremen, os personagens tocam instrumentos, assobiam, dançam,
sempre ao ritmo de imagens povoadas de notas musicais, que lembram sempre
aos espectadores que a música está lá, mesmo que tenha que ser imaginada ou
relembrada.
Fig. 078 – Disney – Detalhes de cena final de The Gallopin’ Gaucho (EUA, 1928).
147
Fig. 079 – Warner – Première do filme The Jazz Singer (EUA, 1927).
O lançamento em Nova York, em 6 de outubro de 1927, de The Jazz
Singer (EUA, 1927)
50
, dirigido por Alan Crosland, desestruturou também a
indústria do desenho animado. Filme inaugural da era sonora, The Jazz Singer
revolucionou a história do cinema. Com uma velocidade devastadora, a indústria
cinematográfica da era silenciosa tornou-se quase totalmente obsoleta, jogando
por terra todos seus avanços estéticos e técnicos, atirando no limbo todos os
profissionais que não conseguiram se adaptar aos novos tempos. Nesse
momento dramático, não bastava ter talento: ser genial no cinema silencioso não
implicava sequer ser um sobrevivente no cinema sonoro.
Steamboat Willie estreou no Colony Theatre, em Nova York, em 18 de
Novembro de 1928. Essa data, histórica para o cinema, comprova que a
tecnologia do som no cinema não teve o impacto imediato nos filmes de Disney.
Grande parte dos autores que abordam o tema passa a impressão errônea de
que Disney teria reagido quase que imediatamente ao filme sonoro.
50
Esse não foi o primeiro filme sonoro: Eugene Lauste fez filmes sonoros entre 1910-1914; Edson fez filmes
no kinetophone, em 1913; Western Electric exibiu The Audion” na Universidade de Yale, em 27 de outubro
de 1922, e fez “Hawthorne”, em 1924. A Warner fez o curta [da] Vitaphone “The Volga Boatman”, em 24 de
maio de 1926, e lançou Don Juan”, em 6 agosto de 1926. A Fox iniciou o lançamento de cinejornais
sonoros, em 21 de janeiro de 1927. Jazz Singercomeça com o jovem Jakie Rabinowitz, o filho de um
cantor judeu. Jack foge de casa e se torna o cantor de jazz Jack Robin, interpretado por Al Jolson. Conforme,
http://history.sandiego.edu/gen/filmnotes/jazzsingernotes.html, acesso 09 mar 2006.
148
Fig. 080 – Disney – Detalhe de Steamboat Willie (EUA, 1928).
FONTE – BENDAZZI, p. 63.
O tempo de lançamento do filme, mesmo considerando-se que estavam
desenvolvendo uma nova abordagem para o filme animado, demonstra que o seu
planejamento foi bastante demorado para os padrões da indústria do cartoon, ou
que se iniciou muito após o lançamento do filme de Alan Crosland. Do mesmo
modo que os outros realizadores, Disney precisou de algum tempo para
compreender a potencialidade inerente à nova tecnologia. É provável que o
contato mantido com outras produções sonoras precursoras, como a série Song
Car-tunes, dos Fleischer, e que alguns filmes experimentais europeus com o
som
51
tenham ajudado Disney a compreender o filme animado sonoro. Segundo
Solomon, Disney assistiu ao filme de Paul Terry, Dinner Time (EUA, 1928),
primeiro desenho animado com trilha sonora, lançado poucas semanas antes de
Steamboat Willie
52
. Sem se impressionar, Disney o teria considerado “terrível”
53
.
Após o tempo de se certificar de que o som o seria apenas um modismo
passageiro, a preocupação em se adaptar a tecnologia, e, principalmente, buscar
meios que permitissem ultrapassar os experimentos sonoros predecessores,
Disney estava pronto para inovar em sua área. A produção de Steamboat Willie
51
BENDAZZI, pp. 25-47. O autor traça um panorama (Chapter 3 European Individualists), da animação
européia na primeira metade do século XX, destacando os experimentos de artistas e realizadores da
vanguarda européia que fizeram experimentos com o som, como Rudolf Pfenniger, Hans Richter, Walter
Ruttman e Viking Eggeling.
52
BENDAZZI, p. 63. Conforme nota do autor, o filme de Paul Terry antecedeu o de Disney em dois meses.
53
SOLOMON, p.40. No original, “Disney previewed ‘Dinner Time’ and pronounced it ‘terrible’”.
149
começou em julho de 1928
54
. Um dos animadores do filme, importante por sua
participação no desenvolvimento da técnica de sincronização, Wilfred Jackson,
havia sido contratado em abril do mesmo ano
55
. Conforme Finch,
Ninguém no estúdio tinha sólido conhecimento de teoria musical, mas
um jovem animador chamado Wilfred Jackson tocava harmônica e,
desde que sua mãe era uma professora de música, ele estava
familiarizado com o metrônomo. Desse modo, ele sugeriu, se poderia
prover um meio de combinar a batida musical com a seqüência de
quadros do filme.
56
Finch continua com a descrição de como o sistema trabalhava, dada por Les
Clark
57
, na época um jovem animador:
“Podíamos dividir o efeito sonoro para que a cada oito frames
tivéssemos um acento... ou a cada doze frames. E nesse décimo
segundo quadro, por exemplo, podíamos acentuar o que estivesse
acontecendo – uma pancada na cabeça ou um passo ou o que quer que
fosse, sincronizando o efeito sonoro ou a música.”
58
Disney contava que eles teriam exibido Steamboat Willie para as esposas e
namoradas, como um teste de público. O filme, ainda sem som, foi acompanhado
por harmônica (gaita), tábua de lavar roupas e apitos deslizantes (de pistão).
Desse modo teriam provido, ao vivo, os efeitos e a trilha sonora sincronizada,
aproximando-se do que queriam para o filme. A reação favorável de todos trouxe
a certeza de que estavam no caminho certo, mesmo antes do filme ser finalizado.
54
MERRITT, Russell; KAUFMAN, J.B. Walt in Wonderland - The Silent Films of Walt Disney. Baltimore:
The Jonhs Hopkins University Press, 1993. p. 159 - conforme POLSSON, Ken em Chronology of the Walt
Disney Company - www.islandnet.com/~kpolsson/disnehis, acesso em 13 mar. 2006.
55
Idem, p. 153.
56
FINCH, p. 21. No original, No one at the studio had any solid knowledge of musical theory, but a young
animator named Wilfred Jackson played the harmonica and, because his mother was a music teacher, was
familiar with the metronome. This, he suggested, might provide a way of matching a musical beat to the
sequence of film frames.
57
Les Clark tornou-se um dos grandes animadores denominados de "Nine Old Men" por Walt Disney.
58
FINCH, p. 21. No original,"We could break down the sound effects so that every eight frames we'd have
an accent... or every twelve frames. And on that twelfth drawing, say, we'd accent whatever was happening -
a hit on the head or a footstep or whatever it would be, to synchronize to the sound effect or the music."
150
Walt Disney havia compreendido que o som tinha de ser parte do filme,
adquirindo uma função tão importante para a narrativa quanto eram as imagens.
De outro modo, se estaria apenas passando para o filme o acompanhamento
musical e sonoro
59
que eram feitos durante as apresentações dos filmes nos
cinemas. Assim, se o cartoon animado era, basicamente, uma história contada
com o auxílio de gags visuais, o primeiro desafio do som foi o de criar gags
sonoras, e uma trilha sonora que valorizasse a trama. Steamboat Willie não é
uma boa história, pois não repete as tramas mais elaboradas que Disney havia
feito, tanto para Oswald como para os dois primeiros filmes de Mickey. Como
analisa Bendazzi
A trama de Steamboat Willie é negligente: Mickey, o piloto de um barco
fluvial, tem um relacionamento difícil com o ‘cara mau’, João Bafo de
Onça, tanto quanto com Minnie. A história é apenas uma desculpa para
se utilizar os efeitos de sincronização sonora. Os personagens, e
mesmo o barco, dançam perfeitamente ao ritmo da música, e mesmo as
gags são orientadas pelo som; por exemplo, Mickey força uma vaca a
abrir a boca e, deste modo, ele toca o xilofone em seus dentes. Um
filme-bailado brilhante, cômico e ousado ao mesmo tempo, o filme é
centrado no gosto do público americano pelo teatro de variedades.
Curiosamente, ele estreou exatamente ao mesmo tempo em que outro
musical, ambientado em um rio, triunfava na Broadway: Show Boat, de
Jerome Kern e Oscar Hammerstein.
60
Essa “negligência” é inteiramente normal e aceitável. O motivo para o filme
foi o som sincronizado e, assim, era natural que se quisesse destacá-lo, evitando-
59
Algumas salas de exibição criavam efeitos sonoros durante as projeções: Órgão elétrico - Efeitos sonoros
e musicais - Em instrumentos anteriores, nunca se associou nenhum tipo de percussão aos instrumentos. Mas
com a ação elétrica, instrumentos como pianos, baterias, cymbals, xilofones, marimbas, sinos, carrilhões,
castanholas, blocos de madeira, e até mesmo sinos de trenó com escala podiam ser tocados pelo organista
diretamente nos teclados. Efeitos sonoros, como apitos de navio e trem, buzinas de carro, sirenes, assobios
de pássaros e efeitos de onda do mar poderiam ser usados para propiciar mais realidade aos filmes mudos”.
Conforme, www.brasounds.hpg.ig.com.br/teatro.html, acesso em 9 mar 2006.
60
BENDAZZI, p. 63, no original The plot of Steamboat Willie is negligible: Mickey, the pilot of a riverboat,
has a difficult relationship with the 'bad guy', Peg-Leg Pete, as well as with Minnie. The story is just an excuse to
utilize the effects of sound synchronization. The characters, and even the boat, dance perfectly in time with the
music, and even the gags are sound-oriented; for instance, Mickey forces a cow to open her mouth so that he can
play the xylophone on her teeth. A brilliant film-ballet, comic and daring at the same time, the movie centred on the
music-hall tastes of the American public. Curiously, it was released exactly at the same time in which another
musical show set on a river triumphed on Broadway: Jerome Kern and Oscar Hammerstein's Show Boat.
151
se uma trama que dividisse as atenções e as expectativas do público. Disney
percebia a necessidade de não permitir que outros elementos dispersassem a
atenção ao som do filme, e à sua completa sincronização com as ações dos
personagens.
Em Steamboat Willie, Disney deixa de lado algumas características
desenvolvidas para Oswald, e transmitidas para Mickey em seus dois primeiros
filmes, para se concentrar na aplicação do som sincronizado, que é, na verdade, o
grande astro do filme. Desse modo, as cenas de perseguição ou de velocidade,
nas quais Ub Iwerks mantinha o domínio artístico de uma perspectiva livre e
envolvente e um timing muitas vezes arrebatador, são substituídas pelas
seqüências mais estáticas, em que as cenas são mostradas em ambientes
internos, onde apenas o fundo se movia
61
. A única seqüência que a
oportunidade de uso da perspectiva é aquela em que Minnie tenta alcançar o
barco a vapor, mas sem o ritmo e sem as mudanças de planos que se
destacavam nos filmes de Oswald, e nos dois primeiros filmes de Mickey. Outra
característica não explorada em Steamboat Willie é o caráter de herói do
personagem. Todos os elementos e possibilidades estão reunidos para isso, mas,
certamente por opção de Disney, não são utilizados na trama que, como visto,
é apenas um subterfúgio para mostrar a qualidade do som sincronizado.
Steamboat Willie obrigou a uma busca por novas soluções e
procedimentos que permitissem ao cinema animado ganhar a dinâmica exigida
pelo som. A primeira coisa que mudou foi a necessidade de um planejamento
mais apurado. Antes, o ritmo da história era construído de modo mais livre, tendo
a predominância das gags visuais sobre a trama. Agora, essas teriam que dividir
espaço com gags orientadas para o som, ou criando-se novas piadas, ao mesmo
tempo sonoras e visuais, ou seja, dependentes de ambos os recursos para
funcionarem. De certo modo, Steamboat Willie traz essa noção, mas que se
mais bem desenvolvida a partir daí
62
.
61
A seqüência inicial, em que Mickey está pilotando o barco e assobiando, por exemplo, se vê apenas o
fundo se movendo, remetendo a filmes como O Grande Roubo do Trem (EUA, 1903), de Edwin S. Porter
62
Um exemplo de maestria nesse tipo de gag pode ser vista em Duck Amuck (EUA, 1953), Warner Bros.
152
Fig. 081 – Disney – Folha de continuidade de Steamboat Willie (EUA, 1928).
FONTE – FINCH, p. 22.
As imagens agora tinham uma relação intrínseca com o tempo e com o
ritmo, ditada pela música e pelos efeitos sonoros. Isso levou a algumas alterações
na folha de continuidade dos filmes, que começaram a incluir cada vez mais
detalhes de planejamento.
Na primeira folha do roteiro de continuidade de Steamboat Willie, que
Disney mantinha em seu escritório como lembrança de seu primeiro grande
153
avanço
63
, se pode observar a importância dada em relacionar as imagens à
trilha sonora (Fig.081):
- Titulo principal -
A orquestra inicia tocando os versos de abertura de ‘Steamboat Bill’
assim que o título aparece. A orquestração pode ser arranjada de tal
modo que podem ser incluídas muitas variações antes do título
desaparecer.
Seria melhor se a música fosse arranjada de modo que o fim de um
verso terminasse ao fim do título...... e um novo verso começasse com o
início da primeira cena.
Cena # 1
Efeito de abertura de folhagem preta que passa em frente da câmera
que gradualmente vai se rareando até que a cena completa é revelada.
Ação...... O velho barco a vapor de rodas rema suavemente rio abaixo.
As duas chaminés sobem e descem alternadamente.... Atirando
pedaços negros de fumaça que sobem rapidamente.... A fumaça faz a
chaminé se abaular como se fosse aumentar e sair. (ciclo de 16
desenhos) 12 pés. Da abertura, os três apitos em cima da cabine se
agacham antes de assobiarem a melodia ‘TA--DA-DE-DA-DA---DA-DA-
’.… 2 pés de ação depois do apito e corte.
Cena # 2
Close-up de Mickey na cabine da casa do leme, mantendo o compasso
com os dois últimos versos de “Steamboat Bill’. Com gestos ele começa
assobiando o refrão em compasso perfeito com a música.... Seu corpo
acompanha o ritmo com batidas alternadas enquanto seus ombros e
pés acompanham cada batida. Ao final de cada dois compassos, ele
gira o leme que faz um som de dentes de engrenagem quando girada.
Ele toma fôlego no tempo próprio de acordo com a música. Quando
63
FINCH, p. 22.
154
termina o último acorde, ele alcança e puxa o cordão do apito acima de
sua cabeça. (Usar PÍFANO para imitar o apito dele).”
64
Nesse primeiro filme, Disney praticamente usa a terminologia musical para
marcar os tempos e definir a ação fílmica.
Fig. 082 – Disney – Folha de continuidade de The Carnival Boy (EUA, 1929).
FONTE – FINCH, p. 24.
64
FINCH, p.22. Texto retirado da ilustração da folha de continuidade. No original se lê: “– Main Title
//Orchestra starts playing opening verse of ‘Steamboat Bill’ as soon as title flashes on./ The orchestration
can be so arrainged (sic) that many variations may be included before the title fades out./It would be best if
the music was arrainged (sic) so that the end of a verse would end at the end of the title…… and a new verse
start at beginning of the first scene./ Scene # 1./ Opening effect of black foliage passing by in front of camera
gradually getting thinner until full scene is revealed./Action…… old side’ wheel river steamboat paddleing
(sic) down stream. The two smock stacks work up and down alternately…. Shooting black chunks of smoke
out as they shoot up…. Smoke makes stacks bulge out as it goes us and out. (16 drawing cycle) 12 Ft. from
opening, the Three whistles on top of cabin squat down before they whistle tune TA--DA-DE-DA-DA---DA-
DA-’.… 2Ft. of action after whistle and cut. /Scene # 2./ Close up of Mickey in cabin of wheel’ house,
keeping time to last two measure of verse of “steamboat Bill’. With gesture he starts whistleing (sic) the
chorus in perfect time to music…. His body keeping time with every other beat while his shoulders and foot
keep time with each beat. At the end of every two measures he twirls wheel which makes a ratchet sound as it
spins. He takes in breath at proper time according to music. When he finishes last measure he reaches up
and pull on whistle cord above his head. (Use FIFE to imitate his whistle).
155
Analisando os roteiros de continuidade anteriores, e até alguns posteriores,
que utilizavam apenas as imagens para traduzir para o animador as ações que
seriam desenvolvidas por este, e comparando com o roteiro de Steamboat Willie,
pode-se verificar a complexidade que o som sincronizado trouxe para o filme
animado. Essa foi a primeira das muitas mudanças que seriam engendradas pelo
estúdio Disney. Ao contrário do que se possa conceber, Disney não abandonou
as técnicas do cinema silencioso. Elas foram sendo aprimoradas, e, quando
possível, eram utilizadas como na era do cinema silencioso, como pode ser visto
na folha de continuidade (Fig.082) de The Carnival Boy (EUA, 1929).
A experiência de sincronização dos primeiros filmes, incluindo Steamboat
Willie, Plane Crazy e The Gallopin’ Gaucho mostrou-se mais difícil do que era
esperado. Desse modo, Disney logo inverteu o processo, com a trilha sonora
sendo produzida primeiro. Somente após a história e a trilha sonora estarem
definidas é que se iniciava a animação, permitindo aos animadores trabalharem-
na com maior precisão, valorizando as ênfases da trilha sonora. Era a primeira
tentativa de Disney de organizar com maior rigor o trabalho de animação,
favorecendo a qualidade e o ritmo das histórias.
A importância que a trilha sonora havia adquirido para os novos cartoons
levou Disney a contratar Carl Stalling para ser o responsável pelo
desenvolvimento da parte musical dos filmes. Músico experiente, que muitos
anos acompanhava os filmes silenciosos exibidos nos cinemas, e a quem Disney
conhecia desde Kansas City, Stalling era também um homem de personalidade
forte, que tinha opiniões divergentes das de Walt Disney sobre o papel da música
nos filmes animados e que o temia expô-las e defendê-las. Como forma de
solucionar as divergências entre o músico e o realizador, ficou acertado que o
estúdio iria produzir duas séries. Os filmes de Mickey continuariam sendo
baseados nas histórias e nas gags, com a trilha sonora sendo usada como fundo
e para destacar as ações. Uma outra série seria desenvolvida a partir dos
conceitos defendidos por Stalling, tendo a música como elemento principal, sendo
que a trama e as animações seriam quase que ilustração para a trilha sonora. A
nova ria recebeu o nome de Silly Symphonies: Sinfonias Tolas ou Sinfonias
Ingênuas (esta última é a opção da tradução oficial dos filmes para o Brasil). A
156
nova série apresentava um conceito inteiramente novo dentro do contexto do
cinema de animação industrial norte-americano.
O primeiro filme da nova série foi The Skeleton Dance (EUA, 1929). O filme
foi quase inteiramente animado por Ub Iwerks, com a trilha sonora de Stalling,
baseada na música “March of the Dwarfs”, de Edvard Grieg. Esse filme
geralmente é aceito por alguns estudiosos como tendo sido o responsável pelo
primeiro atrito sério entre Walt Disney e Ub Iwerks. Durante sua realização, por
Disney acreditar que o tempo de Iwerks era muito valioso para ser gasto com as
tarefas rotineiras da animação, criou-se alguma divergência, que Iwerks insistia
em acumular quase todo o trabalho do filme, ou seja, animando cada quadro de
seus filmes e dispensando assistentes.
O quarto filme de Mickey, The Barn Dance (EUA, 1929) foi, desse modo, o
primeiro filme a permitir a utilização equilibrada do som, com uma história bem
contada e que recebia um tratamento adequado. Como em algumas tramas
anteriores dos filmes de Disney, desde a série Alice Comedies até The Gallopin’
Gaucho, passando pelos filmes de Oswald, o filme mostra Mickey tendo que
disputar Minnie com um rival
65
que, nesse caso, mostra-se melhor dançarino do
que o desajeitado protagonista. Essa falta de habilidade é enfatizada pelo
exagero das proporções dos pés de Mickey e pelo esmagamento das pernas de
Minnie. No filme, que tem um final surpreendente para quem conhece apenas o
Mickey com a já definida personalidade e a reputação de bom moço, o rival
possui até mais características de “mocinho” do que o próprio Mickey: é Mickey
quem se mostra invejoso quando Minnie (que, deve-se notar, ainda não era
exatamente sua namorada) prefere o carro do rival à sua charrete. E é Mickey
que, se mostrando desajeitado para a dança, usa de subterfúgios para ludibriar
Minnie e continuar dançando com ela. Ao final, sua tática é descoberta pelo rival,
que o desmascara, e ele acaba chorando.
65
Esse personagem parece ser uma versão inicial do João Bafo de Onça (Pet-Leg Pete), mas que ainda não
apresenta os traços de maldade que o caracterizariam.
157
Fig. 083 – Disney – The Barn Dance (EUA, 1928).
Esse é um bom exemplo de como, nos primeiros filmes de Mickey, ainda
se buscavam caractesticas que o definissem. Assim, flertava-se com seu lado
“mau” em composições mais complexas e ambíguas, dando um caráter mais
humanizado ao ratinho.
A personalidade final, ou mais definida, de Mickey foi se estabelecendo
rapidamente, e em grande parte, mais por determinação do público e de sua
enorme popularidade, do que por vontade de seus criadores. Essas
características acabaram por limitar as possibilidades do personagem. Solomon
resume assim a mudança de personalidade de Mickey e sua relação com o
público, quando pego em algum mau comportamento:
Uma vez famoso, este tipo de comportamento foi proibido. Sempre
que Mickey fazia qualquer coisa que poderia ser interpretada como
indelicadeza ou -criação, o estúdio era inundado com cartas dos pais
preocupados e/ou indignados.
66
Solomon continua:
66
SOLOMON, p. 45. No original, “Once he became famous, this sort of behavior was forbidden. Whenever
Mickey did anything that could be construed as unkind or naughty, the studio would be deluged with
letters from concerned and/or indignant parents.
158
A personalidade original de Mickey era bastante amórfica: Walt a
descrevia como simplesmente uma pequena personalidade com o
propósito determinado do riso” (com exceção do sempre-diligente
Félix, poucos se algum, personagens do cartoon silencioso tinham
personalidades identificáveis. Eles simplesmente reagiam a qualquer
situação que os animadores inventavam para eles.) Como notaram
muitos observadores, havia um bom pedaço do Pequeno Vagabundo
de Chaplin em Mickey; ele era geralmente uma vítima irreprimível
67
que veio de baixo para vencer. Ele também tinha muito das
características de Disney, e muito se tem escrito sobre sua atuação
como um tipo de alter ego de Walt.
68
As características iniciais do personagem apontavam para uma construção
mais complexa, mas a necessidade que Disney sentiu de atender ao seu público,
ou pelo menos à parte mais conservadora, deram a Mickey a irremediável fama
de Sr. Bom-moço (Mr. Niceguy), papel que lhe foi sendo atribuído durante a
década de 1930
69
. Isso não seria um (grave) defeito se não criasse um grande
dilema para a elaboração das histórias e para os animadores. Um personagem
tão “certinho” acaba também por ser muito previsível e pouco engraçado.
Bendazzi observa que o mais relevante era a falta de ação de Mickey como
protagonista, que começou no início dos anos 1930
70
. O historiador cita as
palavras de Ted Sears, diretor do departamento de roteiro, observando aos seus
colaboradores que
“Mickey não é um palhaço. Não é tolo nem bobo. Sua comédia depende
inteiramente da situação na qual ele é colocado. Mickey é mais divertido
67
No original, se faz um trocadilho com o termo Underdog- algo como vítima - e Undermouse”. Vide
nota 67.
68
SOLOMON, p. 45, no original Mickey's original personality was rather amorphous: Walt described
him as "simply a little personality assigned to the purpose of laughter." (Except for the ever-resourceful
Felix, few—if any—silent cartoon characters had identifiable personalities; they simply reacted to
whatever situation the animators devised for them.) As many observers noted, there was a good bit of
Chaplin's Little Tramp in Mickey; he was usually the irrepressible underdog (undermouse?) who came from
behind to win. He also had many of Disney's characteristics, and much has been written about him acting as a
sort of alter ego for Walt.
69
SOLOMON, p. 46.
70
BENDAZZI, p. 64.
159
quando está em uma situação crítica tentando atingir algum propósito
sob dificuldades ou contra o tempo”.
71
Bem-comportado e elegante, como observa Bendazzi, Mickey não poderia
incluir comicidade entre suas qualidades. Portanto, “foi necessário cercá-lo de co-
estrelas menos respeitáveis, capazes de prover o riso”
72
. Ou, como observa
Solomon, “freqüentemente atuando como ator-escada para três novos
personagens cada vez mais populares: Pluto, Pateta e Pato Donald”
73
. Minnie,
sua companheira de primeira hora, sempre foi capaz de trazer algumas situações
potenciais com a participação do mocinho Mickey, mas estas passaram a ser
exploradas com cuidado, evitando-se que as gags criassem passagens
embaraçosas para o estúdio.
A maioria dos espectadores, quando pensa em Mickey, tem em mente um
personagem gentil, um pouco tímido, quase sempre se esmerando por ser
correto. Se o nascimento de Mickey está intrinsecamente vinculado a Disney e a
Ub Iwerks, esse Mickey que predomina na lembrança da maior parte do público,
contudo, foi sendo construído pouco a pouco, com a participação dos animadores
e artistas do estúdio, e, de certo modo, pelo seu público, que “ditava” como ele
deveria se comportar.
O desenvolvimento de Mickey como personagem continuou ao longo de
toda a década de 1930, com o seu desenho mantendo estreita relação com a sua
personalidade. Inicialmente, Mickey era mais anguloso e sua atitude era mais
agressiva. Em Mickey, o Maestro (The Band Concert, EUA, 1935), Mickey já é um
personagem mais calmo, mesmo tendo que aturar as perturbações de um Pato
Donald muito inconveniente. A comparação entre esse filme e os primeiros do
personagem, permite uma visão bastante clara de como a personalidade de
Mickey se transformou, tendo adquirido uma atitude mais tranqüila, quase
71
BENDAZZI, p. 64. No original, Mickey is not a clown,”(..) “He is neither silly nor dumb. His comedy
depends entirely upon the situation he is placed in. Mickey is most amusing when in a serious predicament trying
to accomplish some purpose under difficulties or against time.
72
BENDAZZI, p. 64. No original, It was soon clear that such a well-behaved and groomed mouse could not
include comicality among his qualities. It was necessary to surround him with less respectable co-stars, capable of
providing laughter.
73
SOLOMON, P.46. Often playing straight man to three increasingly popular new characters: Pluto, Goofy
and Donald Duck”. Straight man foi traduzido por ator-escada, ou seja, aquele que tem como principal função
preparar a deixa para a piada de outro ator. Ou seja, um artista no caso, um personagem que atua como
vítima de ridículo ou brincadeira para um comediante – ou outros personagens.
160
bonachona. Tão importante quanto a sua idiossincrasia, a atitude de Mickey
perante os contratempos, no caso a interferência de Donald seguido por um
furacão, demonstram a atitude de um homem maduro frente às adversidades da
vida. De fato, Mickey, tão logo foi lançado, passou a ser tratado como um rapaz,
uma pessoa e não como um rato ou um personagem de animação. Bendazzi diz
que “de acordo com Fred Moore, supervisor de animação, Mickey era um rapaz
típico, limpo, feliz, polido e tão esperto quanto necessário. De fato, Mickey,
nascido um rato, tornou-se uma “pessoa” em seu sétimo ou oitavo filme, The Plow
Boy”. Bendazzi explica o motivo, citando Don Graham, o blico estava querendo
aceitar Mickey, um pseudo-rato, como um rapaz, e Pateta, um pseudo-cão, como
um homem”
74
. E o personagem passou a refletir isso em seus filmes. As pessoas
se referiam a ele como se referiam a atores ou pessoas reais. E certamente por
isso, cobravam dele atitudes coerentes com a sua posição, do mesmo modo
como exigiriam de outras personalidades públicas.
Essa aceitação de Mickey como um rapaz, assumida pelo estúdio no título do
filme, nasceu com o personagem. Como outros personagens antropomórficos, de
Disney e de outros realizadores, Mickey, Minnie e outros agiam como pessoas,
raramente apelando para a sua “natureza animal”. When the Cat's Away (EUA,
1929) é uma dessas exceções (Fig. 084). Nesse filme, tanto Mickey quanto Minnie
o mostrados em tamanhos próximos aos dos roedores da realidade. Na maior
parte das vezes, e principalmente a partir de final de 1930, o personagem assumiu
por completo a sua natureza e dimensões “humanas”.
As transformações de Mickey não se restringiram à sua personalidade.
Acompanhando o desenvolvimento técnico do estúdio, o seu desenho e a sua
animação também se tornaram mais flexíveis, possibilitando aos animadores
darem a ele a vitalidade que foi retirada por seus novos contornos de
personalidade. Desse modo, Mickey ganhou características que lhe permitiam
demonstrar, pela animação, uma ambigüidade indicativa de uma atitude
controlada, porém não domada.
74
BENDAZZI, p.65. No original, “According to Fred Moore, supervising animator, Mickey was the typical boy,
clean, happy, polite and as smart as necessary. In fact, Mickey, born an mouse, became a person in his seventh or
eighth short film, The Plow Boy, because 'the public was willing to accept Mickey, a pseudo-mouse, as a boy, and
Goofy, a pseudo-dog, as a man'. Conforme nota do autor, “Don Graham, 'The Art of Animation' TS, 20 July,
1955. Property of Walt Disney Productions (courtesy John Canemaker). From 1932 to 1941, Graham was
the director and the eminence grise of the art school founded by Disney inside the company.”
161
Fig. 084 – Disney – When the Cat's Away (EUA, 1929).
Essa vitalidade está intimamente ligada às características desenvolvidas a
partir do princípio Squash and Stretch, que foi incrementado a partir das
experiências de Fred Moore, e se tornou quase imediatamente uma das mais
importantes características do estúdio, e também uma das que mais fortemente
influenciaram o cartoon animado norte-americano. Antes da influência de Moore
na animação e no desenho dos personagens do estúdio, Mickey era desenhado a
partir de círculos rígidos. Um bom exemplo dessa nova flexibilidade, introduzida
principalmente a partir de 1933, pode ser visto analisando alguns quadros (Fig.
085) do animador Dick Lundy para o filme de Mickey, Do Outro Lado do Espelho
(Thru the Mirror, EUA, 1936).
As inovações técnicas de Moore tornaram os personagens do estúdio
(muito) mais flexíveis, e acabaram dando a Mickey, e também aos animadores,
um fôlego maior para respirar e competir no disputado negócio da animação.
A flexibilidade desenvolvida, principalmente, a partir do princípio Squash
and Stretch foi uma das inovações iniciadas através da rie Silly Symphony
75
.
75
Tema do próximo capítulo, no qual esse e outros princípios fundamentais serão analisados em detalhes.
162
Walt Disney tinha muito cuidado e carinho com seu principal personagem, sempre
lembrando que tudo havia começado com um rato.
Fig. 085 – Disney – Do Outro Lado do Espelho (EUA, 1936).
FONTE – FINCH, p. 37.
Muitas pessoas que o conheciam acreditavam ser Mickey o alter ego de
Walt Disney. Assim, Disney evitava realizar qualquer tipo de experiência que
colocasse em risco esse personagem que, em meados dos anos de 1930, sofria
com a concorrência até mesmo dos outros personagens do estúdio: Pluto, Pateta
e Pato Donald. Ao mesmo tempo, o estúdio também soube transformar a
concorrência interna em aliados. Cada novo personagem que surgia logo se
transformava em companheiro e amigo de Mickey: Pluto fez sua estréia como um
coadjuvante num filme de Mickey, The Chain Gang (EUA, 1930). No mesmo ano,
apareceu no filme The Picnic (EUA, 1930) como Rover, o cachorro da Minnie. No
ano seguinte, aparece como cachorro do Mickey, em The Moose Hunt (EUA,
1931). No filme Mickey's Revue (EUA, 1932), surgiu um personagem,
originalmente chamado de Dippy Dawg, sendo posteriormente batizado como
Pateta (Goofy), no filme Orphan's Benefit (EUA, 1934). Mas apenas a partir de
uma participação num filme de Mickey, Dia de Mudança (Moving Day, EUA,
1936), é que Pateta começa a adquirir a sua consagrada personalidade. O Pato
Donald estreou em um Silly Symphony, A Galinha Esperta (The Wise Little Hen,
163
EUA,1934), também como coadjuvante. Sua segunda aparição é em Orphan's
Benefit, onde, ao lado de Mickey e de Pateta, iniciou uma consagrada parceria.
O cuidado com Mickey está intimamente ligado ao seu valor simbólico para
Disney e para o estúdio. Mickey, que nasceu com a vitalidade e uma certa
inconseqüência jovial, logo foi obrigado a se tornar um bom, mas comedido,
mocinho. Dessa forma, os seus amigos, que nunca tiveram essa obrigação,
tinham e desenvolveram características muito mais interessantes para
personagens de cartoons.
O primeiro filme colorido de Mickey a ser lançado comercialmente foi
Mickey, o Maestro (The Band Concert, EUA, 1935). No entanto, em 1932, ele
havia feito sua primeira aparição em cores, em um filme produzido para a
cerimônia de apresentação dos indicados ao Oscar: Desfile dos indicados
(Parade of the Award Nominees, EUA, 1932), onde ele aparece liderando o
desfile, à frente de caricaturas dos demais indicados e de outros personagens.
Como esse filme não foi destinado à exibição pública, não costuma nem ser
lembrado e nem mencionado como o primeiro filme colorido do Mickey. O que
levou o estúdio a adiar por tanto tempo a realização da série colorida de Mickey
não parece muito claro ou convincente. O motivo mais alegado é que Disney não
submetia o personagem a riscos. Entretanto, após Flores e Árvores, todos os Silly
Symphonies foram produzidos em cores, o que certamente era uma garantia, não
apenas do sucesso da série, mas também da importância dos filmes coloridos.
164
4
SILLY SYMPHONIES:
NASCE A NARRATIVA CLÁSSICA DE WALT DISNEY
O desenvolvimento e a adaptação da narrativa clássica para o cinema de
animação deu-se quase completamente em uma década, tendo sido conduzido,
em grande parte, pelos esforços dos artistas e colaboradores dos estúdios
Disney, através do investimento no progresso técnico e artístico empreendido por
Walt Disney para propiciar o estabelecimento de uma nova abordagem do filme
de animação, instituindo os fundamentos da narrativa clássica do filme animado,
dentro da indústria do cinema norte-americano.
O cinema de animação, representado pelo cartoon animado, havia
conquistado grande popularidade a partir da segunda metade dos anos de 1910 e
durante a década de 1920, consolidando-se através do estabelecimento de vários
estúdios, principalmente em Nova York, e através da sistematização da linha de
produção, fato essencial para a redução dos custos e atendimento à grande
demanda. Nos primeiros anos, a maior parte dos personagens veio das histórias
de quadrinhos, publicadas nos jornais semanais, sem, no entanto, conseguirem
se adaptar bem ao novo meio, não repetindo o sucesso que alcançavam na mídia
impressa. Isso não abalava a indústria nascente, que se contentava com o
sucesso obtido e com o atendimento da demanda.
Os personagens criados pela e para a própria indústria da animação foram
também aqueles que obtiveram maior popularidade e longevidade nesses
primeiros anos, destacando-se o Farmer Alfalfa, de Paul Terry, o palhaço Koko,
dos irmãos Fleischer, além do gato Félix, o mais popular personagem do cinema
de animação antes do triunfal nascimento de Mickey Mouse.
Logo em seus primeiros filmes, Mickey iniciou sua meteórica trajetória para
se tornar não o mais popular, como também o poderoso símbolo da indústria
de cinema de animação norte-americana, consolidando a importância alcançada
165
pelo estúdio Disney que, acompanhado pelos outros estúdios norte-americanos,
partiu para uma avassaladora invasão e domínio do mercado internacional de
cinema animado. A partir dos anos de 1930, em qualquer lugar do mundo ao qual
chegasse o cinema, e com ele o filme norte-americano, o filme de Walt Disney
seria o mais provável desenho animado a alcançar as telas.
A série Silly Symphonies é certamente uma das mais notáveis experiências
realizadas por um estúdio de animação. No intervalo de dez anos, entre 1929 e
1939, foram realizados setenta e cinco curtas-metragens, que se tornaram a mais
importante contribuição para o desenvolvimento do desenho animado dos
estúdios Disney, fundamentando-se como o alicerce que permitiu a construção e
o desenvolvimento de experimentos e aprimoramentos técnicos, artísticos e de
linguagem, que propiciaram aos longas-metragens do estúdio, levando à
consolidação da narrativa clássica do cinema de animação.
A idéia da série Silly Symphonies é atribuída ao maestro Carl Stalling e à
sua perspectiva diferenciada sobre o papel da música nos filmes animados. Tão
importante quanto a origem da idéia é o reconhecimento e a confiança que Disney
depositava no músico. Sem isso, é pouco provável que Disney tivesse criado
duas linhas tão distintas de animação em um período de tempo tão curto:
passaram-se apenas nove meses entre o lançamento oficial de Steamboat Willie,
em 18 de novembro de 1928, e o lançamento do primeiro Silly Symphony, A
Dança dos Esqueletos (The Skeleton Dance, EUA, 1929), em 22 de agosto de
1929.
O nome de Carl Stalling, associado fundamentalmente ao nascimento da
série Silly Symphonies, é também importante por sua participação nos curtas do
Mickey. Entre os primeiros filmes do ratinho de Disney, apenas Steamboat Willie
não teve a contribuição de Stalling, que foi o responsável pela pós-sincronização
do som de Plane Crazy e de The Gallopin’ Gaucho. Após a difícil e complicada
experiência de criar uma trilha sonora para Steamboat Willie, Walt Disney
compreendeu que precisava de alguém com conhecimento mais aprofundado em
música, para que se tornasse o responsável técnico pela parte sonora e musical,
traço essencial de seus filmes.
Carl Stalling nasceu em 10 de novembro de 1891, em Lexington, no
Missouri. O primeiro trabalho de Stalling como músico foi em Kansas City, no
166
Newman Theatre, onde acompanhava os filmes como organista da casa. Stalling
conheceu Walt Disney enquanto esse produzia os filmes da série Newman Laugh-
O-Grams, para a mesma rede de cinemas. Trabalhando com Disney, Carl Stalling
influenciou diretamente no desenvolvimento da técnica de animação e nos rumos
do estúdio. Sua primeira contribuição, para solucionar a maior parte dos
problemas que ocorriam na pós-sincronização do som, foi propor que a
composição da trilha sonora precedesse a animação. Tendo sido aceita, foi
desenvolvida por ele e pelos demais artistas da equipe de Walt Disney. Apesar do
pouco tempo que trabalhou diretamente com Disney aproximadamente um ano,
do final de 1928 até o início de 1930 Carl Stalling tornou-se um dos nomes
mais importantes na trajetória do estúdio
1
.
Fig. 086 – Disney – Cartaz publicitário para A Dança dos Esqueletos (EUA, 1929).
A Dança dos Esqueletos surgiu a partir de uma idéia de Carl Stalling,
tendo como base a composição “March of Dwarfs”, de Edvard Grieg
2
. Uma
análise mais cuidadosa da estrutura sonora e da concepção temática e visual
1
Carl Stalling continuou colaborando, como freelancer, tanto para Disney quanto para outros estúdios, até
ser contratado, em 1936, por Leon Schlesinger para ser compositor, em tempo integral e exclusivo, para os
cartoons da Warner Bros.
2
Edvard Grieg (1843-1907) nasceu em Berger, Noruega. March of the Dwarfs foi composta em 1891,
fazendo parte das peças para piano, Book 4, Op. 54, orquestrada como Lyric Suite, No 5. Conforme "The
Classical Music Archives”, no endereço: www.classicalarchives.com/bios/codm/grieg.html. Acesso em 5 abr.
2006.
167
desse filme aponta para outras influências, tão importantes quanto a obra de
Grieg. Essas outras influências, ou fontes de inspiração, são o primeiro sinal de
uma nova abordagem que se tornaria uma das mais importantes características
do estúdio. A primeira percepção que se tem ao assistir a The Skeleton Dance é
que se trata da representação de uma dança macabra. O dicionário Aurélio
relaciona a origem do adjetivo macabro
3
às danças alegóricas da Idade Média, na
qual a morte era representada.
O primeiro Silly Symphony resgata um dos temas mais duradouros e
instigantes da cultura e do imaginário popular europeu e, através da herança
cultural, também americano. As danças macabras, ou danças da morte, têm
séculos de tradição, nascidas provavelmente na Idade Média, mas com raízes
bem mais distantes. Aproveitando o clima e a curiosidade que o tema sempre
despertou em pessoas de todas a idades, e de modo semelhante à proposta de
releitura das primeiras fábulas de Disney, o desafio desse filme, ambientado em
um cemitério, seria criar um desenho animado interessante e divertido mesmo em
uma atmosfera peculiar e assustadora.
A experiência musical de Carl Stalling e a sua vivência com o
acompanhamento musical nos cinemas foram certamente os fundamentos de The
Skeleton Dance. Todos os principais elementos que deram origem à concepção
do filme estão ligados ao repertório cultural do músico, direta ou indiretamente.
Não se descarta que também fizessem parte do repertório dos outros integrantes
do estúdio, devido à ascendência européia comum a grande parte deles como
no caso de Ub Iwerks, de descendência holandesa mas também por ser um
tema de gosto popular e bastante difundido nos Estados Unidos daquela época.
O impacto causado pela rie Silly Symphonies se deve principalmente ao
aprofundamento e à ampliação das bases em que os filmes animados passaram a
ser construídos. A 1929, grande parte da produção dos cartoons norte-
americanos partia de uma idéia ou uma piada (gag) básica. Desse modo, criava-
se um filme, quase sempre sem um roteiro pré-definido, no qual cenas e
seqüências podiam ter pouca ou nenhuma relação entre si, desde que o fluxo
narrativo permitisse a compreensão da história. Quase sempre era esse o único
3
Macabro: “Do fr. macabre [fr. danse macabré, ‘dança da morte’, de or. controversa.] /Adjetivo. 1.Diz-se de
uma dança alegórica da Idade Média, na qual se representava a Morte, arrastando consigo pessoas de todas as
idades e condições. 2.Respeitante a essa dança, ou que a faz lembrar”. Conf.: Dicionário Aurélio Eletr..
168
objetivo dos realizadores: contar uma história, se possível, com algumas
passagens divertidas e interessantes, mas de cil assimilação pelo público. O
primeiro Silly Symphony apresentava uma abordagem inusitada um filme que
não contava uma história.
Tendo sido de Stalling a idéia original, a escolha deste para tornar-se a
base, e a principal influência do filme, foi a música sinfônica
4
. Nesse caso
específico, um gênero de composição conhecido como poema sinfônico.
Conforme o dicionário Aurélio, poema sinfônico é uma peça orquestral em um só
movimento, de caráter descritivo e de forma muito livre”. Em outras palavras, o
poema sinfônico busca descrever idéias ou imagens que a natureza imaterial da
música não permite. Essa característica descritiva, baseada principalmente em
seus aspectos de mimese, embora sempre presente no universo musical, se
desenvolveu na música sinfônica apenas a partir do século XIX. Filipe Salles
afirma que
A música sempre procurou 'mimetizar' (no sentido aristotélico) aspectos
da natureza compatíveis com sua própria natureza. Uma vez que o som
é 'imaterial', sua perspectiva de mimese mais proeminente sempre foi a
representação de sentimentos, estados de espírito, climas e sensações,
que compartilham deste estado de 'imaterialidade'.
5
Salles continua, afirmando que
Toda a música assim constituída, cuja mimese era imaterial e se voltava
para a própria música, foi chamada música 'absoluta' (Hanslick,1988). A
música sempre possuiu dimensão sensível predominante, mas que
sofreu diversas tentativas de ser 'materializada', tal qual uma imagem
dinâmica. Claro, sem deixar seus princípios de construção, sem os
quais não poderia mais ser chamada música, ela encontrou
4
A música já havia sido explorada nas primeiras experiências sonoras dos Fleischer com a animação que, no
entanto, haviam quase que se restringido às canções populares e àquelas de domínio público. O próprio
sucesso de Mickey se deu a partir da adaptação de duas canções nesses moldes, Steamboat Bill e Turkey in
The Straw.
5
SALLES, Filipe. Imagens musicais ou música visual: um estudo sobre as afinidades entre o som e a
imagem, baseado no filme 'Fantasia' (1940) de Walt Disney. 2002. Dissertação (mestrado em Comunicação e
Semiótica da PUC/SP). Pontifícia Universidade Católica, o Paulo. Disponível em
www.mnemocine.com.br/filipe/tesemestrado/tesecap2_1.htm, acesso 01 mai 2006.
169
possibilidade de desenvolvimento com intenções descritivas após a
evolução formal-conceitual de Beethoven.
A partir de Beethoven, iniciou-se uma busca no sentido de tornar a música
sinfônica mais abrangente, expandindo seu alcance entre as classes sociais e
permitindo que a música fosse mais bem recebida pelo público não erudito. Salles
acrescenta: “Com as portas do romantismo abertas, foi possível, primeiramente a
Hector Berlioz (1809-1869), criar um gênero puramente descritivo, chamado por
ele, muito a propósito, de 'sinfonia descritiva', cujo primeiro exemplo é a Sinfonia
Fantástica (1830)”. Salles continua:
Dentro desta concepção de relacionamento música/imagem, tais
manifestações desenvolveram-se e novas possibilidades formais para
conter conceitos narrativos foram criadas: diversos compositores se
utilizaram do gênero Abertura sinfônica para expressar argumentos
extra-musicais (p.e. Schumann em Manfredo, ou Mendelssohn em As
Hébridas), e, tendo chegado a um grande patamar de desenvolvimento,
a forma programática desembocou naquilo que Franz Liszt (1811-1886)
concebeu como Poema Sinfônico, gênero descritivo especificamente
destinado a sugerir imagens extra-musicais.
Foi nesse gênero, o poema sinfônico, que Carl Stalling buscou a inspiração
para A Dança dos Esqueletos. De modo geral, é reconhecido o uso, citado, da
composição March of Dwarfs”, de Edvard Grieg. Giannalberto Bendazzi afirma
que “a música de A Dança dos Esqueletos não tem nada da Danse Macabre, de
Camille Saint-Saënz, como alguns livros relatam. É uma composição que usou
elementos da March of Dwarfs, de Grieg”
6
. Entretanto, a música de Grieg por si
mesma não é capaz de explicar nem o tema nem a atmosfera sombria do filme.
Por outro lado, esse clima e mesmo a abordagem lúdica do tema estavam
presentes na composição de Saint-Saënz que, por sua vez, havia se inspirado em
um poema de Jean Lahor, pseudônimo de Henri Cazalis.
6
BENDAZZI, p. 63. No original, The music for The Skeleton Dance has nothing to do with Camille Saint-
Saens Danse Macabre as some books report; it is a composition which used elements of Grieg's March of the
Dwarfs.” (Conforme nota 2, rodapé).
170
Fig. 087 Salomon van Rusting –The king is dead; Long live the king (Alemanha, 1736).
No poema de Cazalis, baseado em uma antiga crença francesa, é descrita
a cena em que a Morte, disfarçada, sai à meia-noite para tocar o seu violino,
chamando os mortos para dançar. O tema macabro, mas sensual, no poema de
171
Henry Cazalis, assume o tom divertido e leve do poema sinfônico “Danse
Macabre”, de Saint-Saëns, tornando-se a base do filme.
Fig. 088 – Disney – A Dança dos Esqueletos (EUA, 1929).
O tema da Dança Macabra, como inspiração ao filme de Disney, pode ser
comprovado, comparando-se as inúmeras representações sobre a dança da
morte, como por exemplo, o trabalho do artista alemão Salomon van Rusting (Fig.
087), The king is dead; Long live the king (Alemanha, 1736) com um frame
retirado do filme A dança dos Esqueletos (Fig. 088). As semelhanças indicam a
possibilidade de que o artista alemão (ou alguma outra referência imagética
semelhante) e o poeta francês fossem conhecidos pelos artistas do estúdio.
Quanto a Camille Saint-Saëns e a sua composição “Danse Macabre”,
indubitavelmente faziam parte do repertório do músico Carl Stalling, devido à sua
origem européia ou aos seus conhecimentos profissionais. Deve-se observar
ainda que esse tema é intrínseco à cultura européia, principalmente na França e
Alemanha, conforme observa Marcia Collins:
O tema da Dança da Morte parece ter tido seu aparecimento inicial nas
pinturas das paredes de igrejas onde também foram representados
como um drama litúrgico para ilustrar sermões. Enquanto exemplos têm
172
sido descobertos em outros países, o uso da Dança como um motivo
decorativo para o ambiente eclesiástico parece ter predominado na
França e na Alemanha. Nessas versões iniciais os participantes da
Dança eram os eclesiásticos e os leigos membros da sociedade
medieval.
7
No filme de Stalling, Iwerks e Disney, pode-se constatar que muitos dos
elementos e das imagens criadas por Ub Iwerks estavam presentes no poema
de Henry Cazalis, como demonstram os versos que inspiraram o poema sinfônico
Dança Macabra:
Zig e zig e zag, a morte em cadência
Alcança uma tumba com o seu salto
A morte à meia-noite toca com um ar de dança
Zig e zig e zag, em seu violino.
O vento de inverno sopra, a noite é escura
Gemidos saem das tílias
Os esqueletos brancos vagam pelas sombras
Correndo e saltando sobre suas grandes mortalhas,
Zig e zig e zag, todos se agitam,
Ouve-se bater os ossos dos dançarinos
Um par lascivo senta-se sobre os musgos
esperando gozar dos antigos prazeres.
Zig e zig e zag, a morte continua
A arranhar sem fim seu rude instrumento
Um véu caiu! A dançarina está nua!
Seu dançarino lhe aperta amorosamente
7
COLLINS, Marcia R. The Dance of Death in Book Illustration. Ellis Library, University of Missouri
Columbia, Missouri, 1978. No original: The theme of the Dance of Death seems to have had its initial
appearance in wall-paintings in churches where it was also performed as a liturgical drama to illustrate
sermons. While examples have been discovered in other countries, the use of the Dance as a decorative motif
for ecclesiastical settings seems to have predominated in France and Germany. In these early versions the
participants in the Dance were the ecclesiastical and lay members of medieval society”. Conforme site -
www.istrianet.org/istria/visual_arts/history/collins_macabre.htm
, acesso 01 mai 2006.
173
A dama é, diz-se, marquesa ou baronesa
E o jovem galante um pobre peão
8
Horror! E aqui ela se abandona
Como se o camponês fosse um barão!
Zig e zig e zag, que sarabanda!
Que círculos de morte dando-se a mão!
Zig e zig e zag, se vê dentro do bando
O rei saltar perto do vilão!
Mas psiu! De repente abandona-se a ronda,
Compelindo-se, fogem, o galo cantou
Oh! A bela noite para o pobre mundo!
E viva a morte e a igualdade!
9
Percebe-se no poema o ambiente imagético criado para o primeiro Silly
Symphony, tendo sido retiradas as passagens mais sensuais. A atmosfera sonora
é dada pela leitura musical relativa ao poema sinfônico de Saint-Saëns, no qual a
cada instrumento é atribuído um som e que tem também sons adicionais, não
oriundos de instrumentos musicais, fazendo parte da composição. Assim, a
música composta para violino e orquestra tem como pressuposto definir para
cada personagem um instrumento correspondente. Desse modo, à morte é dado
o som do violino. Os sons dos ossos dos esqueletos são produzidos pelo xilofone.
O canto do galo anunciando a aurora, e que sinaliza o final da dança, é dado pelo
solo de oboé. Construção semelhante é desenvolvida no filme: Carl Stalling busca
elementos das composições de Grieg e de Saint-Saënz, absorvendo deste a
principal influência – sua atmosfera e o tom de humor macabro. Outros elementos
8
No original, “charron”, significa carpinteiro de carroças. Na tradução, preferiu-se “peão” por ter conotação
semelhante em português do Brasil.
9
No original - Danse Macabre ; "Zig et zig et zag, la mort en cadence/Frappant une tombe avec son
talon,/La mort à minuit joue un air de danse,/Zig et zig et zag, sur son violon. § Le vent d'hiver souffle, et la
nuit est sombre,/Des gémissements sortent des tilleuls;/Les squelettes blancs vont à travers l'ombre/Courant
et sautant sous leurs grands linceuls, § Zig et zig et zag, chacun se trémousse,/On entend claquer les os des
danseurs,/Un couple lascif s'asseoit sur la mousse/Comme pour goûter d'anciennes douceurs. § Zig et zig et
zag, la mort continue/De racler sans fin son aigre instrument./Un voile est tombé! La danseuse est nue!/Son
danseur la serre amoureusement. § La dame est, dit-on, marquise ou baronne./Et le vert galant un pauvre
charron -/Horreur! Et voilà qu'elle s'abandonne/Comme si le rustre était un baron! § Zig et zig et zig, quelle
sarabande!/Quels cercles de morts se donnant la main!/Zig et zig et zag, on voit dans la bande/Le roi
gambader auprès du vilain! § Mais psit! tout à coup on quitte la ronde,/On se pousse, on fuit, le coq a
chanté/Oh! La belle nuit pour le pauvre monde!/Et vive la mort et l'égalité!
”.
174
relacionados às histórias e às lendas da noite ajudam a criar a atmosfera do filme
de Disney: os animais e as aves noturnas com os seus uivos, miados e pios e
os sons do vento soprando por entre folhas e ramagens. Todos esses elementos
se somam àqueles próprios do humor de Ub Iwerks, mas certamente inspirados
na cultura popular norte-americana, nos populares e exóticos freak shows de suas
feiras e parques e nos números de vaudeville (Fig. 089).
O filme é geralmente caracterizado como mood piece
10
, ou seja, uma obra
em que o predomínio não é da ação ou da história e sim da atmosfera criada,
sendo por meio deste clima que o filme seduz o espectador, ressaltando assim a
semelhança do filme com o gênero do poema sinfônico.
Fig. 089 Disney The Skeleton Dance (EUA, 1929).
É notável a importância desse ponto na história de Disney e do cinema de
animação norte-americano. A Dança dos Esqueletos não é um ponto de cisão,
visto que não levou ao abandono da linha tradicional de animação de cartoon,
mas claramente estabeleceu um novo nível na experiência do cinema de
animação dentro da indústria norte-americana. O filme cria, dentro do sistema de
10
SOLOMON, p. 43.
175
produção industrial, uma possibilidade de cinema que o privilegia a história
contada e sim a maneira de narrar ou de expressar uma idéia ou sentimento.
Desse modo, o cinema de animação de Walt Disney e, extensivamente, a
indústria do cinema de animação norte-americana, aproxima-se novamente do
filme de animação como forma de arte completa, idealizada por Winsor McCay.
Essa aproximação, consciente ou não, é também evocada pelo uso do
esticamento dos personagens (Fig. 090), de maneira semelhante ao utilizado por
Winsor McCay em seu primeiro filme, Little Nemo (EUA, 1910).
Fig. 090 Acima, Winsor McCayLittle Nemo (1910) e abaixo, Disney The Skeleton Dance
(EUA, 1929).
Também a seqüência em que a caveira salta em direção ao espectador
(Fig. 089, quarto quadro) remete ao repertório imagético de McCay – no filme Bug
Vaudeville (EUA, 1921), da série Dreams of a Rarebit Friend, uma aranha se
projeta em direção ao espectador e devora o “espectador” da primeira fila (no
primeiro plano do filme) Inspiração em McCay assumidamente dos espetáculos
e brinquedos circenses, como a “casa do horror”
11
. Algumas cenas de A Dança
11
Winsor McCay reproduzia com maestria as distorções das casas de espelhos e tinha como fonte de
inspiração os ambientes dos circos e dos “freak shows”.
176
dos Esqueletos lembram também os números de teatro de marionetes, sendo que
muitos de seus movimentos são idênticos àqueles realizados pelos bonecos
articulados, principalmente as cenas de dança.
A série Silly Symphonies foi o espaço para experimentar com maior
liberdade as possibilidades da animação, mesmo mantendo-se dentro da
proposta do estúdio. O animador inglês Richard Williams definiu o cinema de
animação como uma forma de arte industrial.
12
Especificamente em Disney, ao
longo do desenvolvimento da rie Silly Symphonies, isso se refletiu através da
elaboração de uma narrativa mais complexa que aproximou seus filmes das artes
que privilegiam o desenvolvimento da narrativa como base de sua atividade,
como grande parte das obras literárias, teatrais, musicais e de outras, mas que
diferentemente destas, o resultado final era o produto de uma verdadeira linha de
montagem, onde artistas de criação, animadores e outros tantos profissionais
davam a sua importante contribuição para a completa realização do filme. A
concepção original e predominante do filme era certamente de um realizador, e se
o cinema pode ser a obra de um realizador, Walt Disney é um dos nomes que
pode melhor ser caracterizado como autor de seus filmes.
Walt Disney, certamente, não havia previsto a revolução que a série Silly
Symphonies proporcionaria aos seus futuros filmes. Quando realizou A Dança dos
Esqueletos, Disney ainda não tinha nem absorvido o sucesso e a popularidade de
Mickey. Até aquele momento, sua preocupação consistia em melhorar a
qualidade técnica de seus filmes. A sua aposta no filme proposto por Stalling
estava intrinsecamente ligada a essa busca pela qualidade técnica, mesmo
considerando sua precoce tendência de uso da música, ainda que graficamente.
Disney foi agradavelmente surpreendido pela boa repercussão do filme.
Em A Dança dos Esqueletos, o principal elemento fílmico é a atmosfera, e
para esta ser alcançada, a animação trabalha em função da música, trazendo em
imagens a complementação necessária para a fruição completa do poema
sinfônico que, em sua forma original, era complementado pelo pré-conhecimento
12
D’ELIA, Céu. p. 145. Conforme o autor, para o animador inglês, o cinema de animação é uma arte
industrial e, como tal, se desenvolve apenas em países industrializados e seu desenvolvimento é proporcional
ao desenvolvimento industrial de cada país.
177
da história, por folhetos, por declamação
13
ou pelo canto. A atmosfera, ou clima, é
um dos principais elementos para a criação de qualquer obra narrativa, em
qualquer área, e foi bastante desenvolvida pela música através do gênero de
sinfonias de programa. No caso específico da animação, a atmosfera está
intrinsecamente relacionada ao staging, que é um dos doze princípios
fundamentais da animação, identificados e desenvolvidos pelos artistas da
Disney. Frank Thomas e Ollie Johnston definem que
"Staging" é o mais geral dos princípios porque ele cobre muitas áreas e
remonta ao teatro. Seu significado, contudo, é muito preciso: é a
apresentação de qualquer idéia que é completa e inequivocamente
clara. Uma ação é encenada de tal modo que ela é compreendida, uma
personalidade que é reconhecível, uma expressão que pode ser vista,
uma atmosfera que afetará o público. Cada uma comunicando com a
mais completa amplitude para o espectador, quando está corretamente
encenada.
14
A partir de Steamboat Willie, a música tornou-se parte integrante do filme,
enriquecendo a ação através da pontuação das gags e da contribuição para seu
desenvolvimento rítmico e dramático. Na série Silly Symphonies, a música tornou-
se responsável não somente por esses atributos, mas, sobretudo, pelo clima do
filme. De maneira mais abrangente, a prioridade dada ao Staging (encenação)
conduziu ao desenvolvimento da própria técnica de animação, a partir de uma
nova abordagem que deixava de ter como foco a história a ser contada e assumia
a necessidade de buscar a melhor forma de contar a história.
O desenvolvimento milenar da estrutura musical deu aos artistas de Disney
algumas das condições básicas para expandir o entendimento do que era e do
que poderia ser o cinema de animação, refletindo-se no desenvolvimento dos
processos de animação, de tal modo que esta pudesse corresponder à qualidade
13
Na apresentação de Dance Macabre, de Saint-Saëns, o poema de Henry Cazalis foi declamado como
parte do programa.
14
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie.
p. 53. No original, ‘Staging’ is the most general of the principles
because it covers so many areas and goes back so far in the theater. Its meaning, however, is very precise: it is
the presentation of any idea so that it is completely and unmistakably clear. An action is staged so that it is
understood, a personality so that it is recognizable, an expression so that it can be seen, a mood so that it will
affect the audience. Each is communicating to the fullest extent with the viewers when it is properly staged.”
178
técnica e expressiva da sica, não se transformando apenas em uma ilustração
animada das sensações imateriais expressas pela trilha sonora.
Fig. 091 Disney – Sessão de gravação musical do estúdio Disney.
Para tanto, esses artistas desenvolveram vários meios e técnicas, a partir
de percepções, observação e análise do movimento “real”, sintetizados por eles
como os “doze princípios fundamentais da animação
15
. Base do cinema de
animação, esses princípios são, em alguns aspectos, percebidos intuitivamente
pelos animadores e receberam dos artistas e especialistas de Disney um
tratamento de pesquisa de produtos, tendo sido elaborados e testados em
diversas situações, bem como transmitidos para os novos artistas que chegavam
ao estúdio. Disney encontrou o equilíbrio perfeito e o uso exato dentro do estilo de
animação desenvolvido por seus artistas, estilo este que passou a ser conhecido
como animação clássica, animação no estilo Disney, ou animação Disneyana. Os
15
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie.
Cf. p. 47-69.
179
artistas do estúdio sempre conseguiram conciliar e valorizar as rotinas
desenvolvidas nas duas primeiras décadas da indústria do cinema de animação,
mantendo-as como parte do seu repertório e, utilizando-as, aperfeiçoadas, na
série Silly Symphonies e em outros curtas-metragens. Contudo, foi a identificação,
a elaboração e o uso dos doze princípios
16
fundamentais da animação que
permitiram a Walt Disney desenvolver o seu estilo e, através deste, realizar o
desenvolvimento pleno da adaptação da narrativa clássica para o cinema de
animação. São esses os doze princípios:
1- Squash and Stretch (achatamento e esticamento)
2- Anticipation (Antecipação)
3- Staging (Encenão)
4- Straight Ahead Action and Pose to Pose (
animação direta e posição chave)
5- Follow Through and Overlapping Action
(continuidade e sobreposição da ação)
6- Slow In and Slow Out (aceleração e desaceleração)
7- Arcs (movimento em arcos)
8- Secondary Action (Ação Secundária)
9- Timing (ritmo)
10- Exaggeration (exagero)
11- Solid Drawing (desenho sólido ou volumétrico)
12- Appeal (atração ou apelo)
(Fonte: THOMAS & JOHNSON)
Esse conjunto é o elemento gerador da animação clássica. O
conhecimento e a aplicação dos princípios da animação pode ser visualizado
como um dodecaedro
17
(Fig. 092), onde os doze princípios são as doze faces
desse sólido perfeito e a animação clássica é o resultado, consistente e preciso,
da justaposição destas doze faces, que atingem a sua perfeição quando em
ajuste e equilíbrio exatos.
16
Aqui, preferencialmente, será mantida a grafia em inglês por se tratar de termos técnicos.
17
O dodecaedro foi o ultimo sólido perfeito a ser descoberto, e por isso foi associado aos deuses pelos
pitagóricos. Platão chamou de "o mais nobre corpo entre todos os outros". Está ligado “A Razão Áurea e tem
sido motivo de estudo desde os mais remotos tempos. Representa, segundo os estudiosos, a mais agradável
proporção entre dois segmentos ou duas medidas. Há muito se identificou essa proporção como sendo
equivalente a 1,618:1, e convencionou-se identificá-la por Phi. É sabido que, na Grécia antiga, acreditava-se
que todo o mundo e todo o cosmo era composto de apenas quatro elementos: ar, água, terra e fogo”.
Conforme, www.expoente.com.br/professores/kalinke/projeto/aurea.htm, acesso 30 mai 2006.
180
Fig. 092 – Dodecaedro e os Doze Princípios Fundamentais da Animação.
É importante considerar que nem todo os animadores e nem todas as
técnicas ou gêneros de animação necessitam seguir fielmente esses princípios.
Eles se aplicam, principalmente, ao estilo de animação clássica, ou seja, aquele
estilo que busca dar veracidade à relação espaço-temporal da interação entre os
personagens e o ambiente físico e dramático representado no filme, conforme o
modelo aristotélico.
O animador inglês Richard Williams relata sua experiência com o cinema
de animação, e o seu caminho entre a autoconfiança de sentir-se um animador
revolucionário e a constatação do desconhecimento das técnicas e princípios
desenvolvidos pelos artistas de Hollywood, principalmente da Disney. Ele reflete:
181
Enquanto eu estava fazendo The Little Island eu havia assistido ao
relançamento de Bambi, mas desde que eu me considerava um
revolucionário no campo da animação, havia rejeitado o filme como
convencional. Mas quando finalizei meu filme, assisti a Bambi
novamente, eu quase rastejei, sobre minhas mãos e joelhos, para fora do
cinema. ‘Como eles fizeram isso?’ Eu já tinha aprendido o bastante para
perceber que eu realmente não sabia nada!
18
O artista relata que levou o animador da Disney, Ken Harris, para a
Inglaterra com a finalidade de auxiliá-lo a desenvolver a sua técnica de animação,
e a de outros animadores ingleses, tendo também entrado em contato com vários
artistas da Disney, ainda com o intuito de conhecer a experiência do estúdio no
desenvolvimento do cinema de animação. Conforme Williams, o animador da
Disney, Milt Kahl, sintetizou assim a proposta de animação do estúdio “Nossa
animação difere de qualquer outra porque ela é crível. As coisas têm peso e os
personagens têm músculos e lhes damos a ilusão de realidade.”
19
É em relação a essa proposta de dar credibilidade ao mundo da animação
que as experiências desenvolvidas na série Silly Symphonies ganham
importância. Foi nessa série que os artistas da Disney desenvolveram as técnicas
que permitiram uma verdadeira revolução no meio. O grande mérito de A Dança
dos Esqueletos é exatamente o fato de não existir nem uma história para ser
contada e nem um personagem principal para ser representado. Com isso o
animador, no caso Ub Iwerks, ganhou espaço para criar com liberdade. Ou seja,
não existia a pré-determinação de que deveria ser feito isto ou aquilo, ou que o
personagem especialmente no caso do Mickey não poderia fazer isso ou
deveria fazer aquilo.
Em A Dança dos Esqueletos aparece o primeiro grande atributo da rie
Silly Symphonies: o desenvolvimento do princípio do staging. E isso está
18
WILLIAMS, Richard. The Animator's Survival Kit: a manual of methods, principles, and formulas for
classical, computer, games, stop motion, and internet animators. London: Faber & Faber, 2001. p.1. No
original, “While I was making The Little Island I had seen a re-release of Bambi, but since I'd considered myself
a revolutionary in the field of animation, I'd rejected the film as conventional. But when I finished my film, I saw
Bambi again, and almost crawled out of the theatre on my hands and knees. 'How did they ever do that?' I'd
learned just enough to realise that I really didn't know anything!
19
WILLIAMS. p. 5. No original, One of the most important things Milt said was: 'Our animation differs
from anyone else's because it is believable. Things have weight and the characters have muscles and we're giving
the
illusion of reality.'”
182
diretamente vinculado ao fato de ter sido escolhida a música como cerne para a
série. A obra musical, que, por si mesma, leva o ouvinte a experimentar os
sentimentos e paixões, notadamente dentro do gênero da sica programática
pois foi desenvolvido com esse objetivo , será no filme disneyano o aglutinador
dos elementos expressivos, adquirindo ela mesma uma função cinematográfica
tão importante quanto o enredo e a animação. A música em Disney deixa de ser
um mero elemento de composição e torna-se o elo capaz de ligar o universo
sonoro ao imagético, potencializando a fruição estética do filme e levando,
principalmente com os longas-metragens, o espectador ao êxtase.
Evidentemente, no primeiro Silly Symphony isso ainda é incipiente, mas a série
atingirá várias vezes o ápice dessa proposta, dando ao cinema de animação
algumas das suas obras-primas, e inúmeras seqüências inesquecíveis.
O segundo filme da série, El Terrible Toreador (EUA, 1929), o foi tão
impactante quanto o primeiro, apresentando problemas graves, mesmo para a
época, sendo considerado por alguns como um dos mais fracos filmes da Disney.
Entretanto, deve-se considerar que essa rie foi criada, também, para as
experimentações. Além disso, o estúdio nunca deixou de atender à expectativa do
público. Conforme nota Richard Williams:
O brilhante animador Ward Kimball, que animou o Grilo Falante em
Pinóquio e os corvos em Dumbo, uma vez me disse, ‘Você não tem
idéia do impacto que tinha sobre o público, naquele tempo, aqueles
desenhos repentinamente falando e fazendo ruídos. As pessoas
enlouqueciam com aquilo’.
20
No início do cinema sonoro, o mais importante, ao menos para o público,
era que o filme mostrasse as canções de modo interessante e convincente, ou
seja, persuadindo que os personagens quer fossem animais, plantas, ou outros
dançavam e cantavam e/ou tocavam as músicas. Foi com esse espírito que os
primeiros filmes foram desenvolvidos. Isso, porém, não satisfazia a ânsia por
20
WILLIAMS, p. 18. No original, The brilliant Ward Kimball, who animated Jiminy Cricket in Pinocchio
and the crows in Dumbo, once told me, 'You can have no idea of the impact that having these drawings
suddenly speak and make noises had on audiences at that time. People went crazy over it.'”
183
desenvolvimento técnico que havia se acentuado em Walt Disney desde a série
Oswald, mas principalmente a partir do sucesso de Mickey.
Fig. 093 Disney Springtime (EUA, 1929).
O terceiro filme da série, Springtime (EUA, 1929), introduz um dos temas
preferidos de Disney a celebração da natureza. Nesse filme, animais e plantas
dançam acompanhando a batida da música, enquanto a natureza ou a cadeia
alimentar segue o seu próprio ritmo. Como exemplo, uma gag, muitas vezes
repetida e aperfeiçoada nos curtas-metragens da série, mostra uma ave caçando
uma lagarta que tem seu corpo dividido, como se cada seguimento composto por
um corpo e um par de pernas fosse um ente autônomo, sendo a gag construída a
partir desta premissa (Fig.093). Lançado em outubro de 1929, Springtime foi o
primeiro filme a compor a série das quatro estações da Silly Symphonies. Em
Janeiro de 1930, chegou aos cinemas o sexto Silly Symphony e o segundo com o
tema das estações, Summer (EUA, 1930), seguido por Autumn (EUA, 1930),
lançado em fevereiro, e que foi o último Silly Symphony a ser dirigido por Ub
Iwerks. O oitavo filme da série, Cannibal Capers (EUA, 1930), apresentou nos
créditos o diretor Bert Gillett. Arctic Antics (EUA, 1930), lançado em junho, foi o
último Silly Symphony a apresentar, nos créditos, Ub Iwerks como diretor. Winter
(EUA, 1930) foi o décimo quarto Silly Symphony e o último com o tema das quatro
estações. Lançado em outubro de 1930, também foi dirigido por Gillett.
O início de 1930 é um dos mais importantes momentos da história de Walt
Disney e de seu estúdio. Contratado por Pat Powers e alegando divergências
artísticas, Ub Iwerks optou por deixar Disney para iniciar a sua própria rie. Walt
Disney se viu, repentinamente, sem dois dos seus principais homens, pois a saída
184
de Iwerks foi logo acompanhada pela de Carl Stalling
21
. Essa fase foi a principal
prova da capacidade de Walt Disney de gerenciar graves crises, pois na primeira
delas quando perdeu o personagem Oswald para Mintz, Disney ainda contava
com o seu principal animador e amigo, Ub Iwerks que, desde a série Alice, havia
se tornado o homem chave da animação do estúdio. Agora, ele contava apenas
com a sua experiência, com o seu irmão Roy e com jovens animadores. Walt
Disney não se deixou abater. Assinou um novo contrato de distribuição com a
Columbia Pictures, e, ao final de 1930, o estúdio já comemorava o sucesso
internacional de Mickey.
Após a saída de Iwerks, em 1930, o estúdio rapidamente teve de se
reestruturar, em novas bases. Os artistas e animadores que ficaram, e os que
foram contratados depois, tiveram que assumir novas e amplas
responsabilidades. Na falta de Iwerks, os artistas passaram a exercer parte das
funções que ele realizava, dentro de suas possibilidades, sendo encaminhados
por Disney para as áreas para as quais demonstravam maior habilidade e
aptidão. Disney, durante os anos de 1930, levou ao extremo a divisão de tarefas
iniciada pelos estúdios Barré-Nolan e por Bray.
O aprimoramento e a especialização de sua equipe relacionava-se
diretamente ao aperfeiçoamento das técnicas narrativas lapidadas na série
musical. O desenvolvimento e a animação dos personagens é sempre um dos
pontos mais estudados e comentados nos filmes de Walt Disney e é realmente
uma das características fundamentais de seus filmes. Uma das mais importantes
contribuições do estúdio Disney para o cinema de animação foi a utilização efetiva
do ambiente da ação, ou melhor dizendo, do uso do cenário como recurso
expressivo. É claro que, de uma maneira ou de outra, esse recurso sempre foi
utilizado. Em A Dança dos Esqueletos, Ub Iwerks criou um cenário que espelhava
e amplificava a atmosfera criada pela música de Carl Stalling: o background
deixou de ser visto apenas como o segundo plano, no qual a ação se desenrola, e
passou a ser pensado e trabalhado como um dos principais elementos
expressivos do filme. A boa e intuitiva recepção do público mostrou a importância
daquela descoberta.
21
Carl Stalling saiu uma semana após a saída de Iwerks. Para seu lugar foram contrados dois músicos
formados pela escola de música da UCLA: Leigh Harline e Frank Churchill. Conforme:
www.disneyshorts.toonzone.net/years/1930/index.html
185
Os Pássaros e suas Plumas (Birds of a Feather, EUA,1931), com suas
cenas e seqüência ricas e variadas, é um dos melhores exemplos de como os
artistas de Disney superaram a saída de Ub Iwerks e de Carl Stalling, no espaço
de apenas um ano, alcançaram e, em alguns aspectos, ultrapassaram o patamar
deixado por Iwerks. A proposta de interação entre a música e o desenho animado
foi vista por Eisenstein, que examinou a cena do pavão, em um de seus artigos,
nos quais analisou a “nova questão” da relação entre imagem e música nos
filmes. Ao analisar a música “Barcarola” (tema do filme de Disney) e as imagens
invocadas por ela, Eisenstein sugere que se retire (das cenas da música que
sugerem Veneza) “apenas os movimentos de aproximação e afastamento das
águas”. Deste modo, para ele, nos afastamos imediatamente da rie de
fragmentos de ilustração “e nos aproximamos de uma resposta para o movimento
interno de uma barcarola sentido interiormente
22
.
O número de imagens pessoais que surgem a partir deste
movimento interno é ilimitado. E todas irão refletir este movimento
interno, porque todas se baseao na mesma sensação. Isto inclui até
a ilustração engenhosa da "Barcarola" de Offenbach pelas mãos de
Walt Disney,
6
onde a solução visual é um pavão cuja cauda reverbera
"musicalmente", e que olha para o lago para encontrar os contornos
idênticos das penas opalescentes de sua cauda, reverberando de
cabeça para baixo.
23
O cineasta russo, como se vê, concentra a sua análise sobre as nuances
da animação da cauda do pavão. E continua:
Todas as aproximações, retrocessos, ondulações, reflexos e
opalescências que vieram à mente como uma essência adequada a ser
retirada das cenas venezianas foram preservadas por Disney de acordo
com o movimento da música: a cauda aberta e seu reflexo se
aproximam e se afastam de acordo com a proximidade, do lago, da
22
Grifos do autor.
23
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2002, p. 109.
186
cauda aberta em leque as penas tremulam e reverberam e assim
por diante.
24
Afirmando a solução encontrada pelos artistas da Disney, Eisenstein conclui:
O importante neste caso é que a imagem de modo algum contradiz o
"tema do amor" da "Barcarola". Apenas neste caso uma substituição
dos "supostos" amantes por um traço característico dos amantes
uma opalescência sempre em mutação de aproximação e afastamento
um do outro. Em vez de um retrato literal, este traço tornou possível
uma base de composição tanto para o estilo de desenho de Disney
nesta seqüência, quanto para o movimento da música.
25
Essa breve e interessante análise denota a importância estabelecida pelo
trabalho de Walt Disney e de seus colaboradores no meio cinematográfico, no
início dos anos de 1930, e esse olhar especial, lançado sobre Os Pássaros e suas
Plumas, por Eisenstein, reitera a necessidade de se compreender com
profundidade este filme, e por extensão, a obra de Disney.
O filme inicia com um traveling tão suave quanto o deslizar dos cisnes que
aparecem no lago, em completa sintonia com a música que ao espectador a
sensação de contemplação da cena intensamente bucólica. Outro plano, e agora
vê-se um pavão que, ao ritmo da mesma música, caminha com o seu ar soberbo,
literalmente se pavoneando, enquanto se admira através do reflexo de sua
imagem no lago plácido. Um patinho aparece, observa o desfile e faz uma careta
que abala o ego da ave vaidosa. Outro plano, e um casal de pássaros-liras
reveza-se para tocar as liras de suas caudas. O som de suas liras marca a
mudança de ritmo e do plano horizontal – a partir dessa cena, um compasso mais
rápido e mais alegre vai descobrindo através de um traveling vertical vários
pássaros e outros animais que vivem em uma árvore.
Os sons diferentes dos diferentes pássaros passam a ser o som mais
importante e mais vivo da trilha sonora, ressaltando a diversidade dos pássaros
mostrados, e dando uma leveza às gags, mesmo quando um pica-pau devora
24
EISENSTEIN, 2002, p. 109.
25
EISENSTEIN, 2002, p.109.
187
uma lagarta que se divide em várias partes enquanto inutilmente tenta fugir (Fig.
094, quinto quadro
26
).
Fig. 094 – Disney – Os Pássaros e suas Penas (Birds of a Feather, EUA,1931).
O filme segue nesse ritmo pastoril, com as imagens comentando a música,
ou vice-versa. Em seguida, surgem corujas cantando à maneira dos trios de jazz,
um corvo roubando uma minhoca, que seria o alimento dos filhotes de um outro
pássaro, e a minhoca escapando de tornar-se o alimento dos filhotes do corvo e
sendo perseguida por uma galinha e seus pintinhos, com a música assumindo um
ritmo de música folclórica americana
27
. A seqüência da galinha, uma das mais
divertidas, apresenta um interessante close-up da galinha que se aproxima do
primeiro plano em uma instigante animação em profundidade. A próxima
seqüência marca a quebra do ritmo bucólico. A sombra ameaçadora de uma
águia (ou gavião) persegue um pintinho que não conseguiu acompanhar a
ninhada, sendo agarrado por uma da ave de rapina. O inusitado então acontece:
o corvo, que nas cenas anteriores parecia ser um dos “vilões”, reúne os seus
companheiros, dando início a um fascinante ataque contra a águia, com direito a
26
Cf. A gag em Os Pássaros e suas Plumas e em Springtime (Fig.093).
27
A cena remete ao filme Hen Hop, de Norman McLaren / National Film Board (Canadá, 1942)
188
formações ticas e coreografias bem planejadas, em belas cenas de vôo e de
ataque aéreo, com o uso magistral da perspectiva e do timing, culminando com o
salvamento do pintinho seqüestrado.
O filme apresenta uma seqüência que pode ter sido uma das inspirações
que levaram Disney a realizar O Patinho Feio (The Ugly Duckling, EUA,1931): o
pintinho, vendo sua família em prantos, por supor que ele havia morrido, ajoelha-
se à moda dos grandes dramas do cinema da época e chama por sua mãe
(Fig.094, penúltimo e ultimo quadro). O filme termina com o reencontro da família
e com a volta do ritmo alegre e caipira. O Patinho Feio, lançado em dezembro de
1931, é considerado um dos primeiros filmes animados a se destacar, com
sucesso, na tentativa de criar empatia entre um personagem animado e o público,
e a seqüência final de Os Pássaros e suas Penas, filme lançado em fevereiro de
1931, deve ter dado a Walt Disney a certeza dessa possibilidade.
O estilo Disney, muitas vezes identificado apenas pelas características
físicas dos personagens, é um complexo entrelaçamento entre a aparência do
personagem e a sua individualidade, sempre vinculada à criação de um universo
próprio, que abriga a vida inventada pelos artistas.
Para compreender com mais profundidade esse estilo, é essencial
determinar a origem, em Disney, do desejo de ultrapassar o nível de identificação
por simpatia
28
, entre o personagem e o espectador, estabelecendo um vínculo por
empatia
29
. Essa mudança marca os primeiros passos do estúdio em direção à
narratividade clássica, estabelecendo a necessidade do pathos
30
, o único
caminho para alcançar a purificação através da catarse
31
, base da narrativa
clássica (tragédia grega) e do cinema clássico desenvolvido a partir desse
28
Conforme Dicionário Aurélio Eletrônico: 3.Sentimento caloroso e espontâneo que alguém experimenta em
relação a outrem. Esse nível havia sido alcançado por alguns personagens, sendo que o gato Félix e o
Mickey Mouse foram os que obtiveram maior êxito, respectivamente no cinema silencioso e no sonoro.
29
1.Psicol. Tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas
por outra pessoa. Conforme Dicionário Aurélio Eletrônico.
30
Conforme Dicionário Aurélio Eletrônico: patos1- [Do gr. páthos.] - Substantivo masculino de dois
números. 1.O patético expresso na fala, em escritos, acontecimentos, etc.: o patos das tragédias gregas.
31
Conforme Dicionário Aurélio Eletrônico - catarse: (ss) [Do gr. kátharsis.] Substantivo feminino.
1.Purgação, purificação, limpeza. 3.Psicol. Efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança
fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida. 4.Teatr. O efeito moral e purificador da
tragédia clássica, conceituado por Aristóteles (v. aristotelismo), cujas situações dramáticas, de extrema
intensidade e violência, trazem à tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores, proporcionando-
lhes o alívio, ou purgação, desses sentimentos: “tragédia [o Hamlet, de Shakespeare] sem catarse que, ao
lento cair do pano, só nos deixa, como objeto de meditação e fruto amargo, uma interminável fila de
interrogações...” (Augusto Meyer, A Chave e a Máscara, p. 11).
189
conceito. A disparidade entre o personagem do cartoon animado e o ator
dramático real, do teatro ou do cinema, dá a noção dos obstáculos que os artistas
do estúdio tiveram que superar para tornar realidade o cinema de animação
proposto por Walt Disney.
O Patinho Feio foi, nesse sentido, o filme mais importante feito durante o
contrato de distribuição com a Columbia Pictures, entre 1929 e 1932. Solomon
observa que esse período é geralmente esquecido e ignorado pela crítica e pelos
historiadores, muito mais pela qualidade e visualidade dos filmes do período
seguinte do que por qualquer problema real relativo aos filmes dessa fase
32
. O
filme é baseado no conto O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen, que teve
também outra versão realizada em 1939 pelo estúdio, sendo o único desenho
animado de Disney que recebeu uma segunda versão. A comparação entre as
duas versões é interessante não apenas como comprovação do desenvolvimento
técnico e estilístico do estúdio, mas também como confirmação da qualidade que
os artistas do estúdio haviam alcançado no início da década de 1930, sendo
aquele filme um dos melhores cartoons do período.
Fig. 095 – Disney – O Patinho Feio (The Ugly Duckling, EUA,1931).
32
SOLOMON, p.44.
190
A primeira versão de O Patinho Feio foi um dos primeiros e fundamentais
passos que levaram Disney ao desenvolvimento de personagens mais complexos
a partir, principalmente, de Os Três Porquinhos (Three Little Pigs, EUA, 1933). A
primeira diferença entre as duas versões é que, na primeira versão, o patinho é
mesmo um patinho e não um pequeno e desgarrado cisne. A mãe do patinho é
uma galinha, e claro, seus irmãos são pintinhos. Na segunda versão, mais fiel à
obra de Andersen, os outros membros da família são patos.
No primeiro filme, quando o patinho nasce, a rejeição é imediata mas o
patinho começa a se cuidar, demonstrando grande independência, ao contrário
dos pintinhos que estão sempre sob as asas da mãe, ou então se aproveitando
da maior habilidade do patinho em achar alimentos. A galinha e os pintinhos são
os personagens que realmente rejeitam o patinho que, em nenhum momento
demonstra ter consciência de que é diferente. Os outros personagens que
aparecem a vaca, o cachorro e o sapo assustam o patinho, sem terem esta
intenção: a vaca apenas muge; o cão rosna porque está roendo um osso e por
instinto, o defende (Fig. 095, segundo quadro); e o sapo foge, quando se assusta.
Logo depois, o patinho se aproxima da beira do lago, chorando. Em nenhum
momento fica claro que ele tenha se achado diferente. O patinho faz uma careta
para a sua imagem no lago, mas nessa seqüência nem o timing e nem o acting
funcionam adequadamente. A informação de que ele se sente feio é anterior ao
filme e à seqüência que deveria representar essa descoberta, pois essa está
contida no pré-conhecimento da história de Andersen e, é claro, no próprio título
da história. Nessa seqüência, verifica-se ainda uma grande deficiência do
princípio do staging: a animação não conseguiu encenar com eficácia a ação.
Contudo, o espectador sabe que o personagem se sente rejeitado e se comove
quando ele começa a chorar, desolado. Principalmente, devido ao eficiente uso
da música, bastante dramática e melancólica, que consegue complementar o
staging pouco eficiente, com seu tom comovente, atingindo o pretendido apelo
patético
33
.
A partir desse ponto a adaptação disneyana do conto de Andersen se
afasta completamente do original. O personagem percebe a chegada de um
33
Conforme Dicionário Aurélio: [Do gr. pathetikós, pelo lat. tard. patheticu.] Adjetivo. 1.Que comove a
alma, despertando um sentimento de piedade ou tristeza; confrangedor, tocante: 2. Que revela forte emoção;
apaixonado: apelo patético; gesto patético.
191
ciclone e corre para avisar a sua família. Nessa seqüência acontecem várias gags
originadas pela ação do ciclone, como uma vaca que é, literalmente, enrolada e
um cachorro que tem a metade dos seus pelos aparados pelo ciclone (Fig. 095,
quarto e quinto quadros, respectivamente).
O patinho consegue avisar a sua família, que se protege, mas o deixam de
fora da casinha que acaba sendo levada pelo ciclone. A galinha é atirada para
fora da casinha. A galinha e o patinho seguem o ciclone, desesperados. A
galinha, ao chegar às margens do rio pára, mas o patinho se atira na água para
alcançar os pintinhos que continuam na casinha, atirada ao rio pelo ciclone. Em
uma seqüência digna do cinema griffithiano
34
, na qual o tempo está subordinado à
ação, se a casinha descendo perigosamente em direção à cascata, a galinha
desesperada, o patinho nadando contra o tempo, contra os obstáculos e contra a
correnteza para salvar os seus irmãos em uma cena com gags bem divertidas,
mas sem perder o ritmo da ação. No final, a recompensa o patinho é abraçado
pela galinha que, finalmente, o aceita.
O Patinho Feio é um exemplo significativo da evolução dos artistas do
estúdio e da correta opção de Disney em privilegiar o desenvolvimento do
princípio do staging. Walt Disney era reconhecido por ser um bom contador de
histórias, e, certamente por isso, logo compreendeu que filmes como Os Pássaros
e suas Plumas e Os Castores Trabalhadores (The Busy Beavers, EUA, 1931),
fundamentados na trilha sonora e na sica, não seriam capazes de promover o
desenvolvimento das técnicas narrativas para a animação.
Mesmo apresentando alguma carga dramática, com várias gags pontuando
as histórias, quase a totalidade da ação era apenas pretexto para a apresentação
de números musicais e outras atividades suportadas pelo som sincronizado, ou
seja, eram apenas um aproveitamento mais elaborado da novidade apresentada
por Steamboat Willie, sem desconsiderar a importância que a música assumiu
nesta série a partir de A Dança dos Esqueletos.
Em Os Castores Trabalhadores, a trilha sonora em conjunto com os gritos
e sons que os castores emitem enquanto trabalham marcam o ritmo da ação, que
é desenvolvida como um musical. Na segunda parte, uma tempestade ameaça
34
A seqüência da correnteza remete à antológica cena de Griffith, também de salvamento, de Way Down East
(EUA, 1920), na qual David Bartlett (Richard Barthelmess) corre através do gelo do rio que se fragmenta
para salvar a mocinha Anna Moore (Lillian Gish).
192
romper o dique, obrigando um dos castores a tentar conter a água com o seu
dedo, o que não é suficiente
35
. A força da água consegue romper a barragem
rústica. Uma grande árvore, cortada pelo castor, caindo sobre o leito do rio cria
um novo dique. A música torna-se mais dramática com o início da chuva e a
tentativa do castor de salvar o dique, mas em nenhum momento o espectador é
convencido de que o castor está preocupado ou temendo por sua vida. As gags
são interessantes e as situações bem construídas, mas a encenação não
funciona, denunciando a deficiência do staging. O ritmo e a tensão conseguidos
através das seqüências de ação, principalmente aquela do rio, levam o
espectador a se identificar apenas parcialmente com o personagem. Não foi
criado um vínculo sensível entre o espectador e o personagem, pois este o
consegue passar ao espectador, através da atuação (acting), nem suas
expectativas nem os seus temores. O filme é interessante, mas não consegue
envolver e, menos ainda, comover o espectador
36
.
Em Os Pássaros e suas Plumas, a trilha sonora também é o motivo do
filme, mas as cenas de ação, como o seqüestro do pintinho, a batalha aérea, o
salvamento heróico e o final melodramático apresentam uma construção mais
clássica e uma seqüência narrativa que enriquece as possibilidades surgidas a
partir de A Dança dos Esqueletos. Ainda não existe um herói ou um protagonista
propriamente identificados, mas existem as situações características de heroísmo
a partir da segunda parte do filme, que certamente trazem os elementos
indispensáveis para a identificação do público com os personagens. Nesse filme,
a situação está mais bem definida, o personagem o está lutando contra as
forças da natureza e sim contra um “vilão” identificado, a vítima é salva por outros
pássaros, que, desse modo, atuam como “heróis” e restabelecem a ordem.
O Patinho Feio se diferencia a partir da seqüência inicial dos Silly
Symphonies precedentes, nos quais a música era o principal elemento do filme. A
partir do título, está claro que existe um personagem principal. A própria opção
35
Ao contrário daquela história do menino holandês que conseguiu evitar o rompimento de um dique
enfiando o dedo no buraco do dique: Qualquer criança na Holanda morre de medo de pensar num
vazamento dos diques. Peter compreendeu o perigo imediatamente. Se a água passasse por um buraco
qualquer, de pequeno ele logo se tornaria grande, e todo o país seria inundado. O menino prontamente
percebeu o que deveria fazer. Jogou fora as flores, desceu a encosta lateral do dique e enfiou o dedo no
furo”. Conforme www.linkdobebe.com.br/Contos/o%20pequeno%20heroi%20da%20holanda.htm
36
Note-se que a deficiência de acting percebe-se apenas quando comparada aos filmes realizadores a partir
do maior desenvolvimento deste princípio da animação, incrementado a partir desse filme (O Patinho Feio).
193
de se basear em uma história conhecida estabelece um elo entre o
personagem e seu público. Disney ainda não tem o domínio dos elementos que
levam o espectador a se comover, do qual ele será o grande desenvolvedor e um
dos maiores mestres. O Patinho Feio segue a estrutura da narrativa clássica, com
a apresentação do personagem, um acontecimento que traz uma reviravolta e um
desfecho emocionante. Ao contrário do teatro, da literatura ou do cinema de
Griffith, a animação ainda não tinha o domínio de todos os elementos que
permitissem a identificação do espectador com o protagonista. Desse modo,
Disney utiliza os elementos ao seu alcance para buscar uma cumplicidade,
estabelecendo um pacto com o blico, que irá compreender as ações, mesmo
quando estas não estão bem representadas, de modo semelhante ao teatro que
os filhos representam na escola. Assim, o personagem principal, usando um
recurso do teatro, e que havia sido introduzido na animação desde Winsor
McCay, olha diretamente para o espectador, buscando sua participação. Nesse
filme, a proposta de Disney avança: ele não quer apenas a participação e atenção
do espectador, ele precisa que o espectador se identifique e se comova com a
sorte do personagem. O Patinho Feio atingiu seu objetivo com louvor,
considerando-se as técnicas e os recursos que estavam ao alcance dos artistas,
naquele período. Para ultrapassar esse patamar, seria necessário desenvolver
novas pesquisas que aprimorassem a técnica narrativa, notadamente em relação
à animação e ao visual das histórias, principalmente as técnicas e os princípios,
tais como a atuação (acting), a encenação (staging), o ritmo (timing) e o apelo
(appeal).
O segundo Silly Symphony a ser lançado pela United Artists, Só
Cachorros
37
(Just Dogs, EUA, 1932) apresentou um considerável
distanciamento do estilo rubber hose. Nesse curta, estrelado por Pluto, aparecem
vários cachorros de várias raças diferentes, que apresentam um bom avanço na
individualização das personalidades, principalmente considerando-se a grande
quantidade de cachorros, com pequenas participações, e o fato de que esta
individualização não se dá apenas em relação aos aspectos físicos, mas também
ao comportamento, ou acting: os diversos cachorros são tão diferentes que
37
Esse filme é um dos três únicos Silly Symphonies em que aparece algum dos personagens principais de
Disney. Os outros foram A Galinha Sábia (The Wise Little Hen, EUA, 1934), o filme de estréia do Pato
Donald, e Mamãe Pluto (Mother Pluto, EUA, 1936).
194
revelam muito de suas personalidades. Pluto é apresentado como um cachorro
tranqüilo e prudente. O seu companheiro, que, na realidade, é o protagonista da
ação, é um cãozinho preto e branco cheio de energia e muito esperto. É esse
cãozinho que liberta Pluto e todos os outros es do canil, e é ele quem sustenta
a história, criando a maior parte das gags e situações de conflito. Outro
personagem que deve ser destacado é o cãozinho que Pluto e seu
companheiro apreciando um enorme osso e avisa aos demais cachorros,
iniciando uma perseguição e a disputa pelo osso. A animação desse personagem
conseguiu capturar não apenas o andar característico dessa raça, um pequinês,
como também um pouco de seu temperamento, reconhecidamente irritadiço e
impertinente.
Fig. 096 – Disney – Só Cachorros ( Just Dogs, EUA,1932).
195
Uma análise mais cuidadosa de Cachorros comprova que este foi um
importante filme de transição entre o estilo de animação rubber hose e o estilo
em desenvolvimento no estúdio, mais tarde conhecido como o estilo Disney de
animação. Alguns dos princípios fundamentais da animação desenvolvidos pelo
estúdio ainda não estão presentes neste filme, passando ao espectador moderno,
acostumado a um personagem tão conhecido como o Pluto, um certo
estranhamento, por sua dureza e rusticidade. Não fosse por sua aparência,
dificilmente se reconheceria ali o mesmo personagem de filmes como Playful
Pluto (EUA, 1936), Mamãe Pluto e O Elefante do Mickey (Mickey´s Elephant,
EUA, 1936) que, de acordo com grande parte dos críticos e historiadores de
cinema de animação, contém algumas das mais brilhantes e mais bem animadas
seqüências da história do desenho animado, por terem apresentado
características e soluções que fizeram avançar esta arte.
Fig. 097 – Walter Lantz – The King of Jazz ( EUA,1930).
O grande acontecimento de 1932 foi certamente o lançamento do filme
Flores e Árvores (Flowers and Trees, EUA, 1932), o primeiro curta-metragem
colorido da Disney e o primeiro filme comercial a utilizar o processo de três cores
da Technicolor Three-Strip Technicolor system
38
. Antes de Disney, alguns
38
EBERT, Carlos. Cor e Cinematografia.A cor esteve presente no cinema desde suas origens. Os primeiros
processos consistiam em colorir à mão - um a um, os fotogramas no positivo preto-e-branco. Os filmes
realizados desta forma são chamados de "colorizados", em contraposição aos "coloridos", onde as cores são
captadas pelo processo fotográfico. Edison experimentou colorizar seus filmes, mas logo abandonou o
196
estúdios utilizaram outros filmes coloridos, mas apenas em processos duas cores:
Os irmãos Fleischer haviam usado o two-strip Cinecolor process em algumas
experiências e Walter Lantz havia realizado um segmento de cartoon animado
inserido no filme The King of Jazz (EUA, 1930, Dir. John Murray), estrelado por
Paul Whiteman. Esse segmento animado mostra uma versão em cartoon do
cantor caçando na África e, após uma gag em que a bala acerta o leão, tocando
seus ossos e seus dentes como se fosse um xilofone, ele é perseguido pelo leão.
A seqüência contém ainda outras gags e situações interessantes (como uma em
que o leão pula em direção ao primeiro plano e outra em que o coelho Oswald
aparece dançando ao lado de uma cobra). A animação é atribuída a Walter Lantz.
Walt Disney continuava investindo em melhoria técnica e artística, e isso se
refletia em um aumento considerável dos custos de produção:
No final de 1931, a demanda de Disney por melhoria constante tinha
levado os custos de um simples cartoon de oito minutos para mais de
$13,000 uma quantia fenomenal para aquele período. (Outros
estúdios poderiam gastar $2,500 em um filme semelhante). Apesar de
seu sucesso com o público, o estúdio estava simplesmente quase
quebrando, e em 1932, outra inovação elevou ainda mais os custos.
Nesse ano, Disney lançou um Silly Symphony chamado Flowers and
processo por este utilizar muita mão de obra e render pouco./Ainda no início do século passado a Pathé
francesa colorizava os filmes com a aplicação manual no negativo, quadro-a-quadro, de stencils [sic]
coloridos que dotavam as pias de áreas coloridas. Todos os processos de colorização tinham em comum o
fato de serem artesanais, lentos e muito dispendiosos, além de apresentarem cores inteiramente
artificiais./Kinemacolor, Chronochrome, UFAcolor, Prizma, Multicolor, Magnicolor, Cinecolor, Sennett
Color. Muitos foram os processos de cinematografia a cores [sic] patenteados na Europa e nos EUA. As
tentativas mais bem sucedidas de registrar a cor natural durante a fotografia do filme foram desenvolvidas a
partir de 1915 nos EUA pela Technicolor. / Primeiramente registrando apenas o verde e o vermelho em duas
películas preto e branco pancromáticas, para depois copiá-las num processo de transferência de pigmentos
(dye transfer), estes primeiros processos também não conseguiam reproduzir com exatidão as cores naturais.
Embora a pele tivesse uma reprodução cromática satisfatória, o céu e o mar eram reproduzidos em tons de
cinza ao invés de azul”. Conforme Associação Brasileira de Cinematografia. Disponível em
http://publique.abcine.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5&infoid=215, acesso 2 jan 2007. II. BREVE
HISTÓRICO E DEFINIÇÕES: “O processo recebeu esse nome porque precisava de três tiras de filme para
produzir uma escala cromática completa. Em 1928, a Technicolor Company comercializou pela primeira vez
a mistura subtrativa de cores, também conhecida como imbibition printing, ainda como um processo de duas
cores. O processo Technicolor de três cores foi lançado em 1932. Os corantes usados nesses processos são
notáveis porque têm que passar por processos químicos e mecânicos de revelação relativamente suaves.
Como resultado, a companhia foi feliz - de um ponto de vista arquivístico - ao escolher corantes de um grupo
com boa estabilidade quando em condições de arquivamento no escuro”. Conforme
<www.cinemateca.com.br/download/capitulo2.doc>, acesso 2 jan 2007.
197
Trees, que causou uma sensação na indústria por causa de suas cores
completas.
39
O novo processo colorido da Technicolor permitia a Disney a reprodução
de uma paleta de cores muito mais rica do que aquela alcançada por qualquer
outro processo de duas cores. Além disso, Disney já havia compreendido o
enriquecimento expressivo que as cores dariam ao desenho animado. Como
observa Lucena Jr.:
Para atingir o que ambicionava com a animão, a cor era
imprescindível. Instruíra seus técnicos para pesquisas com nitrato e
outras soluções, mas foi a Technicolor que chegou ao sistema de
combinação das cores primárias em três tiras de negativo. O processo
veio a estar pronto para filmes de ação ao vivo em 1935 - The Black
Pirate, de 1926, com o astro Douglas Fairbank [sic], utilizou um processo
baseado apenas em duas cores.
40
O pioneirismo de Disney na utilização dessa tecnologia deve-se também ao
fato de que, em 1932, esse processo encontrava-se em estágio experimental e,
devido a questões técnicas, não estava disponível para o cinema live-action. O
principal problema era que o processo exigia três câmeras, e o nível de ruídos
dos motores interferia no processo de gravação do som. Entretanto, como o
processo de animação filmava um quadro por vez e o som era adicionado
posteriormente, o problema do ruído não existia. Na filmagem se poderia também
utilizar uma única câmera filmando alternadamente o vermelho, o verde e o azul,
compondo-as mecanicamente depois
41
.
O fato de não existir o problema de ruídos durante as filmagens não
significa que a adaptação para as cores tenha sido fácil e principalmente sem
custos para o estúdio. Disney resolveu refazer Flores e Árvores, que estava em
39
FINCH, p. 28. No original, By the end of 1931, Disney's demand for constant improvement had driven
the cost of a single eight-minute cartoon to more than $13,000 - a phenomenal amount for the period. (Other
studios might spend $2,500 on a comparable picture.) Despite its success with the public, the studio was
barely breaking even, and in 1932, another innovation drove costs still higher. In that year, Disney released
a Silly Symphony called Flowers and Trees, which caused a sensation in the industry because it was in full
color.
40
BARBOSA JUNIOR. p.108. Arte da animação: técnica e estética através da história. São Paulo. Senac,
2002, citando Bob Thomas, Disney's Art of Animation: from Mickey Mouse to Hercules, cit, p. 45.
41
Conforme www.toonzone.net/disneyshorts/years/1932/flowersandtrees.html, acesso em 14 maio 2006.
198
produção, transformando-o no primeiro filme colorido do estúdio. Roy Disney ficou
desesperado, pois metade do filme já havia sido filmada, e ele sabia que o
processo de três cores aumentaria consideravelmente os custos sem trazer algum
aumento nos adiantamentos. Disney insistiu, argumentando que o apelo adicional
das cores poderia aumentar o período de exibição dos filmes, o que
eventualmente resultaria em rendimentos mais altos
42
. Roy Disney negociou a
exclusividade, por dois anos, para uso do processo em animação, tendo como
argumento o considerável aumento dos custos de produção
43
.
Fig. 098 – Disney – Cartaz de Flores e Árvores (EUA,1932).
O desafio de adaptação para as cores não se relacionava apenas ao
aumento dos custos e, no caso de Flores e Árvores, existia ainda a necessidade
da refilmagem em novo suporte. O processo de animação para o filme em branco-
e-preto permitia, após lavagem, a reutilização das folhas de acetato por mais duas
ou três vezes, antes de elas se danificarem. As novas tintas, que foram
formuladas para aderir à superfície lisa do acetato, manchavam o acetato, não
42
SOLOMON, p.49. No original, He decided to make "Flowers and Trees," a short that was already in
production, the first color release. Roy was horrified. Half the film had already been shot, and he knew that
color would add considerably to expenses without bringing any increase in advances. Walt went ahead,
insisting that the added appeal of color would produce longer play dates for the films, which Would
result in higher revenues—eventually.
43
Conforme www.toonzone.net/disneyshorts/years/1932/flowersandtrees.html, acesso em 14 maio 2006.
199
permitindo mais sua reutilização, o que, é claro, aumentou os custos. Além disso,
os backgrounds teriam de ser repintados em cores
44
.
O uso das cores não implicava apenas em alteração de custos. Walt
Disney e os artistas do estúdio estavam conscientes de que o uso das cores
poderia oferecer um ganho estético, propiciando uma significativa evolução no
desenvolvimento narrativo do cinema de animação. O pesquisador Alberto
Lucena Júnior analisa o impacto da cores no desenho animado:
O acréscimo desse elemento visual implicava, notadamente para o
desenho animado, em novas considerações de design e abordagem de
animação. Se as cores abriam novas dimensões para o desenho
animado, também traziam problemas. Antes era simples destacar um
personagem contra um fundo. as cores estabelecem relações
complexas que exigem muita atenção, afe
tando a configuração
espacial, o clima psicológico, a legibilidade e a caracterizão dos
personagens - que devem ser considerados sempre em função do
movimento, das variações de cenário e encenação
45
.
Trabalhar com cores não é mais complexo do que trabalhar com o preto-e-
branco e os tons de cinza relacionados. Tecnicamente, na composição e na
extensão da paleta de cores, poderia se pensar desse modo. Entretanto, o uso
estético e artístico de um e de outro necessita do entendimento de suas
possibilidades, vantagens e desvantagens. O desafio das cores não está na
afirmação de que as relações entre cores são mais complexas. O desafio para o
cinema de animação, e para o cinema de modo geral, era trazer as possibilidades
expressivas que o uso das cores ofereciam e que, de certo modo, haviam sido
explorados com sucesso pelas artes pictórica e gráfica.
O que Disney esperava das cores era comparável ao que a trilha sonora
havia proporcionado ao seu cinema de animação: as cores teriam o papel de, ao
lado do som, ser o elemento capaz de redimensionar a qualidade narrativa e
expressiva dos filmes animados. Em relação aos temas ou à maneira como são
trabalhados não houve mudança significativa os mesmos elementos narrativos,
e mesmo alguns personagens, estavam presentes em filmes anteriores, como
44
SOLOMON, p. 49.
45
BARBOSA JUNIOR. p.109.
200
exemplo, as flores que brincam e dançam, que apareciam em Springtime (Fig.
093). A presença da cor marcou a história da Disney e fez com que os filmes
contemporâneos a Flores e Árvores, mesmo do próprio estúdio, parecessem mais
velhos do que realmente eram. É o caso de Só Cachorros.
A história de Flores e Árvores inicia com o amanhecer em um bosque.
Algumas árvores iluminadas pela luz amarela e quente dos primeiros raios da
manhã podem ser vistas logo na primeira cena. Um passarinho preto desperta,
saltando de seu ninho e espreguiçando-se, no que é logo seguido pelas árvores,
que repetem o gesto. A melodia que acompanha a seqüência inicial enfatiza a
suavidade do despertar das plantas e complementa a sensação de tranqüilidade,
pontuando o bucolismo desse filme, ao mesmo tempo cativante e extravagante.
Os primeiros raios da manhã são valorizados tanto pela luz mais forte em um dos
lados dos corpos, quanto por suas sombras e pelas sombras projetadas. Destaca-
se nessa seqüência inicial, o cuidado com que foi tratada pelos artistas e pelos
animadores, tendo recebido um tratamento diferenciado com o propósito de
captar os tons e o ritmo de uma manhã ensolarada. Não se deve desconsiderar
que esse foi o primeiro filme colorido do estúdio, sendo a primeira prova para a
sensibilidade dos artistas para o uso das cores em um filme. Por falta de tempo,
ou mesmo de atenção, o filme contém algumas falhas que o o comprometem,
mas que devem ser notadas, como por exemplo, quando árvore “mocinho”
aparece pela primeira vez, sua sombra está desenhada no background, não
sendo animada. Desse modo, quando ela se movimenta a sombra continua
estática. Talvez isso nem tenha chamado a atenção do espectador,
principalmente o da época, fascinado pela beleza das imagens e com as cores
tão vívidas e vibrantes, e até mesmo pelo fato de se tratar de uma cena
curtíssima, em que a ação se concentra na parte superior do quadro. Na cena
seguinte, onde é apresentado o tronco cinzento, o vilão da história, a sombra
deste é animada. Nas outras seqüências, ora não aparecem sombras como
naquela das flores se exercitando, ora aparecem e são animadas, como aquela
dos cogumelos se exercitando. Quando a árvore “mocinha da história” aparece
se maquiando, ela não tem sombra, mas tem o seu reflexo na água animado.
Essas cenas destacam alguns dos fatos que levaram o estúdio a empregar
artistas cada vez mais especializados em trabalhos e efeitos especiais, como
201
animação de sombras, ventos, águas e outros. Desse modo, o filme se destaca
também pela animação das plantas flores, árvores e cogumelos que recebem
as características antropomórficas próprias do cinema de Disney. Deve-se
ressaltar que a aplicação das sombras projetadas está diretamente ligada a um
dos fundamentos do cinema de animação, ou seja, o aprimoramento da
representação e do uso do espaço narrativo para alcançar a realidade daquele
ambiente e dos seres que o habitam, fundamentos vinculados ao princípio do
staging.
A especialização do estúdio torna-se a cada dia mais aprimorada. Disney
buscou contratar os melhores animadores e artistas, investiu na formação de
novos artistas e principalmente, procurou dar a cada um deles um lugar onde ele
pudesse contribuir habilidades nas quais tivessem melhor domínio. A atuação de
Disney para atrair os artistas de seu interesse é assim resumida por Solomon:
No início da década de 1930, Disney continuou a contratar os melhores
artistas e animadores que podia encontrar. Existiam ainda poucos
animadores treinados, e sempre que Disney via alguma animação que o
impressionava, ele tentava contratar o artista. Ele atraiu para Hollywood
proeminentes animadores de Nova York como Grim Natwick, Bill Tytla e
Shamus Culhane, com ofertas de salários generosos. Apenas Otto
Messmer manteve-se impenetrável às propostas de Disney; ele se
recusava a deixar a costa leste
46
.
Uma das características mais importantes de Disney era a capacidade que
ele tinha de descobrir talentos específicos dentro de sua própria equipe e
remanejá-los, permitindo que trabalhassem próximos ao limite de sua capacidade
técnica e criativa.
Uma coisa que contribuiu para a sua inventividade foi a adição à equipe
do artista suíço Albert Hurter. Hurter estava imerso nas tradições do
folclore europeu e contos de fada do estilo gótico. Desde o momento de
46
SOLOMON, p. 30. No original Throughout the early 1930s, Disney had continued to hire the best artists
and animators he could find. There were still relatively few trained animators, and whenever Disney saw a
piece of animation that impressed him, he would try to hire the artist. He lured prominent New York
animators like Grim Natwick, Bill Tytla and Shamus Culhane to Hollywood with offers of generous salaries.
Only Otto Messmer remained impervious to Disney's overtures; he refused to leave the East Coast.”
202
sua chegada no estúdio, Disney percebeu que Hurter tinha um talento
especial e o nomeou para produzir o que ficou conhecido como
“desenhos de inspiração” ou “arte conceito”. Isto equivale a dizer que
ele passava seu tempo desenvolvendo idéias visuais para futuros
projetos e improvisando em temas que poderiam ativar a imaginação
dos criadores de história e ou animadores. Como o estúdio continuava
progredindo para projetos mais ambiciosos, a presença de Hurter era
sentida mais fortemente, e, em 1933, ele projetou os cenários e os
personagens principais para aquele que se tornou o maior sucesso de
Disney daqueles tempos, o famoso Os Três Porquinhos.
47
Os Três Porquinhos (Three Little Pigs, EUA, 1933) foi importante não
apenas por ter sido um dos maiores sucessos de público da história do desenho
animado. O filme é um marco no desenvolvimento do estilo que irá se sagrar e se
tornar conhecido como o estilo do estúdio. A valiosa contribuição das idéias
visuais de Hurter e o sucesso da (impregnante) canção de Frank Churchill, “Quem
Tem Medo do Lobo Mau?” (Who’s afraid of the Big Bad Wolf?), somaram-se ao
trabalho de um novo animador Fred Moore para criar esse filme inesquecível.
Fred Moore chegou em 1930. Ali, desenvolveu um estilo próprio de animação,
que se imporia dentro da equipe, e que o tornaria um dos mais importantes
animadores da história da Disney. Conforme a versão mais conhecida, Moore se
apresentou ao estúdio, aos 19 anos, levando um portfólio com desenhos feitos,
apressadamente, sobre velhas folhas de papelão. Foi contratado imediatamente.
Apesar de pouco treino artístico, Moore foi o responsável por algumas das
principais inovações no design dos personagens da Disney, dando-lhe sua
principal característica, desenvolvida ao longo da década de 1930: a aparência
agradável e inocente. Segundo Kimball, Fred Moore foi o primeiro animador a
abandonar o círculo rígido para desenhar a cabeça do Mickey, dando-lhe
47
FINCH, p. 28. No original One thing that contributed to their inventiveness was the 1932 addition to the
staff of the Swiss-born artist Albert Hurter. Hurter was steeped in the traditions of European folklore and
gothic fairy tales. From the moment of his arrival at the studio, Disney realized that Hurter had a special
talent and assigned him to produce what became known as "inspiration drawings" or "concept art." This is
to say that he spent his time developing visual ideas for future projects and improvising on themes that might
trigger the imaginations of story men or animators. As the studio continued to develop toward more
ambitious projects, Hurter's presence was felt more and more strongly, and in 1933 he designed the settings
and main characters for what turned out to be Disney's greatest hit up to that time, the famous Three Little
Pigs.
203
bochechas flexíveis, que se moviam quando mastigava ou falava
48
. Conforme
Ollie Johnston, Fred Moore se libertou da escola de desenho do estilo rubber
hose e da forma circular, colocando muito mais squash e stretch em seus
desenhos do que qualquer um antes dele. Johnston acrescenta que a maior
contribuição de Fred Moore “foi o tremendo apelo e charme que ele deu a seus
personagens. Sob a sua influência, o estilo dos desenhos da Disney mudou,
marcadamente, para melhor”
49
.
Em Os Três Porquinhos, não se percebem as formas rígidas, que na
realidade vinham sendo eliminadas aos poucos desde 1930. Mais importante,
porém, é que os personagens reagem à ação de seus movimentos no espaço, ou
seja, a ação de andar ou mesmo falar causa reações físicas no corpo do
personagem.
O avanço na caracterização ou individualização dos personagens pode ser
percebido melhor comparando-se, por exemplo, Os Três Porquinhos com
Crianças no Bosque (Babes in the Wood, EUA, 1932). Lançado em novembro do
ano anterior, Crianças no Bosque é uma adaptação da história de “Joãozinho e
Maria” (Hansel and Gretel), dos irmãos Grimm. É interessante perceber que
Joãozinho e Maria são representados com trajes típicos da Holanda, que reforça
o apelo às lendas européias. O título do filme provém do poema Babes in the
Wood
50
, que foi popularizado como uma das Histórias da Mamãe Ganso, sendo
48
SOLOMON, p. 50. No original, In 1930, nineteen-year-old Fred Moore came to Disney with a portfolio
of sketches hastily done on old shirt cardboards; he was immediately hired. Although he had little artistic
training, Moore quickly became one of the most influential artists at the studio. He was at his best working
with any cute or childlike character, such as the Three Little Pigs or Mickey. Kimball recalled that Moore
was the first to stop using a hard circle for Mickey's head, giving him flexible cheeks that moved when he
chewed or talked”.
49
SOLOMON, p. 50. No original, He broke away from the rubber hose and round circle school of
drawing and put more squash and stretch in his drawings than others did," () “But his biggest
contribution was the tremendous appeal and charm that he gave his characters. Under his influence the style
of Disney drawing changed markedly for the better.”
50
The Babes in the Wood // My dear do you know,/How a long time ago,/Two poor little children,/Whose
names I don't know,/Were stolen away/On a fine summers day,/And left in a wood,/As I've heard people
say,/Poor babes in the wood! poor babes in the wood!/Oh! don't you remember the babes in the wood?// And
when it was night,/So sad was their plight,/The sun it went down,And the moon gave no light!/They sobbed
and they sighed,/And they bitterly cried,/And the poor little things,/They lay down and died.//Poor babes in
the wood! poor babes in the wood!/Oh! don't you remember the babes in the wood?/And when they were
dead,/The robins so red,/Brought strawberry leaves,/And over them spread;And all the day long,/The
branches among,/They mournfully whistled,/And this was their song;/Poor babes in the wood! poor babes in
the wood!/Oh! don't you remember the babes in the wood?
( conforme: www.heatheranne.freeservers.com/rhymes/babesinwood.htm, acesso 18 mai 2006)
204
baseado em uma velha lenda inglesa
51
. A primeira coisa que se evidencia no filme
é a exuberância dos cenários que retratam o bosque, propositadamente levando
os personagens principais a ficarem pequeninos no meio da floresta. Os
personagens são desenhados e animados em um estilo de transição entre o
rubber hose e o estilo clássico da Disney. O filme apresenta um evidente ganho
na qualidade dos cenários e em seu uso expressivo: a floresta, muito maior que
as crianças visa, criar a sensação de opressão; a entrada para a vila dos anões
mostra uma nova e alegre atmosfera, construída através do trabalho e da música.
Finalmente, o lado externo da casa da bruxa, nas cores alegres dos doces
contrasta com o lado interno, sombrio e lúgubre. Os anões salvam a todos e
ajudam a castigar a bruxa. A trilha sonora, que iniciou com uma canção contando
a história das crianças perdidas na floresta, volta ao final do filme para ressaltar
como a bruxa foi transformada na Rocha da Bruxa (The Witch Rock), a imagem
que inicia e finaliza o filme. Este Silly Symphony evidencia o domínio de Disney
sobre a ação de vários personagens são muitos os anões, os animais que
aparecem em várias seqüências e os que estão presos na casa da bruxa. Essa
profusão de personagens na tela atendia ao gosto do público da época e
certamente criou alguns desafios técnicos que o estúdio soube superar com êxito.
Inovando em relação à prática e ao gosto geral da época, Disney lançou
Os Três Porquinhos, um filme com apenas quatro personagens. Contrariando,
desse modo, a tendência de cenários retratando a natureza e lugares
exuberantes, repletos de seres de todos os tipos, que sempre agiam em suas
atividades rotineiras, em excelente utilização de animação em ciclos.
A história dos três porquinhos é certamente um dos contos infantis mais
conhecidos
52
. Existem várias versões da história, e um conto similar dos irmãos
Grimm, no qual o lobo tenta devorar sete cabritinhos e não os três porquinhos. A
versão de Walt Disney ajudou a popularizar ainda mais a história, ou pelo menos
a sua versão.
O filme foi lançado em maio de 1933 e, de algum modo, o público da época
percebeu que estava diante de um filme diferenciado. Em um período em que os
filmes, principalmente os cartoons animados, costumavam ficar poucos dias em
51
Conforme - www.en.wikipedia.org/wiki/Babes_in_the_Wood - acesso 18 mai 2006.
52
ASHLIMAN, D. L. University of Pittsburgh. Three Little Pigs and other folktales of Aarne-Thompson type
12. Conforme www.pitt.edu/~dash/type0124.html, acesso em 18 mai 2006.
205
cartaz e, quando agradavam, ficavam no máximo por algumas semanas, Os Três
Porquinhos ficou por vários meses nos cinemas. Solomon cita as palavras do
animador Chuck Jones ao relatar a sua impressão sobre o filme:
“Eu não estou certo se eu assisti a ‘Os Três Porquinhos’
imediatamente”, comenta Chuck Jones, diretor de cartoons da Warner.
“Mas quando eu o assisti, percebi que ali estava acontecendo alguma
coisa que não tinha acontecido antes. Durante os anos vinte, tudo o que
você precisava em animação era ação, e um bom personagem tinha
de parecer bonito. ‘Os Três Porquinhos’ mudou isso provando que não
era como um personagem parecia mas como ele se movia que
determinava sua personalidade. Todos nós, animadores, estávamos
falando depois sobre como ‘Os Três Porquinhos’ estavam atuando.”
53
Novamente, comparando-se com os filmes anteriores, percebe-se essa
mudança. No filme, o Lobo Mau foi animado por Norm Ferguson, que também
animava o Pluto, e os Três Porquinhos foram animados por Fred Moore. Moore
deu aos seus personagens uma vivacidade que até então ninguém tinha
conseguido criar, justamente quebrando uma regra que aparentemente era a mais
correta de todas: quando o objetivo era manter a aparência de um personagem,
parecia correto que seu desenho sofresse apenas alterações mínimas, exceto em
situações extremas, como as gags de esticamento ou aquelas envolvendo o
aumento de volume, como um “estouro” do personagem. Entretanto, o excesso de
deformação não parecia ser adequado para ações simples, como andar, dançar
ou mastigar. Analisando a animação de Os três porquinhos”, quadro-a-quadro,
percebe-se a grande variação de forma da cabeça e do corpo, que mudam o
tempo todo. Essa alteração no desenho animado é a aplicação do Squash and
Stretch, que é um dos princípios fundamentais da técnica desenvolvida pelo
estúdio. Frank Thomas e Ollie Johnston afirmam:
53
SOLOMON. p. 52. No original, “‘I'm not sure I saw Three Little Pigs' right away,comments Warners
cartoon director Chuck Jones. But when I did see it, I realized something was happening there that
hadn't happened before. During the twenties, all you needed in animation was action, and a good character
just had to look pretty. 'Three Pigs' changed that by proving it wasn't how a character looked but how he
moved that determined his personality. All we animators were dealing with after ‘Three Pigs' was acting’.”
206
De longe, a mais importante descoberta foi aquela que nós chamamos
de Squash and Stretch. Quando uma forma estável é movida sobre um
papel, de um desenho para o próximo, uma marcada rigidez que é
enfatizada pelo movimento. Na vida real, isso ocorre apenas com as
formas mais rígidas, como cadeiras e pratos e panelas. Qualquer coisa
composta de carne viva, não importa quão óssea, mostrará um
movimento considerável em sua forma evoluindo através de uma ação.
Um bom exemplo disso é o braço dobrado, com o bíceps aumentado e
esticado, no qual apenas os longos tendões estão aparentes. A figura
curvada está obviamente contraída sobre si mesma, em contraste com
a figura em um esticamento extremo ou um salto. A face, se
mastigando, sorrindo, falando, ou mostrando uma mudança de
expressão, é repleta de alterações de forma nas bochechas, lábios,
olhos – apenas a figura de cera no museu é rígida.
54
A afirmação de que o Squash and Stretch é de longe o mais importante dos
princípios fundamentais da animação clássica, o estilo desenvolvido pelo estúdio
Disney, relaciona-se diretamente ao fato de que esta descoberta é a transposição
gráfica, no caso, filmográfica, de algumas das mais importantes leis da física do
mundo real para o mundo construído do cinema de animação. Desse modo, a
afirmação de Frank Thomas e Ollie Johnston ressalta que esse princípio está para
o mundo do desenho animado clássico e tradicional como a descoberta das leis
do movimento, por Sir Isaac Newton, estão para a física do mundo real. Na
realidade, o Squash and Stretch é uma das aplicações dessas leis à dinâmica do
mundo do desenho animado. Analisando a importância das três leis do
movimento de Newton para o cinema de animação, John Halas e Roger Manvell
observam que
54
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie.
p. 47-48. No Original, By far the most important discovery was
what we call Squash and Stretch. When a fixed shape is moved about on the paper from one drawing to the
next, there is a marked rigidity that is emphasized by the movement. In real life, this occurs only with the most
rigid shapes, such as chairs and dishes and pans. Anything composed of living flesh, no matter how bony,
will show considerable movement within its shape in progressing through an action. A good example of this
is the bent arm with swelling bicep straightened out so that only the long sinews are apparent. The figure
crouched is obviously contracted into itself, in contrast to the figure in an extreme stretch or leap. The
face, whether chewing, smiling, talking, or just showing a change of expression, is alive with changing
shapes in the cheeks, the lips, the eyes—only the wax figure in the museum is rigid.
207
Estas três leis, que parecem as mais simples e mais óbvias, são na
realidade as mais importantes na animação. São elas que inspiram a
arte do animador, os exageros e as distorções que ele deve introduzir
mas que, de fato, derivam do comportamento normal.
55
Os autores continuam, afirmando que
Na verdade, a palavra "achatamento" ou "squash" — tornou-se termo
cnico na arte da animação: indica o alto grau de resiliência
56
, sob
pressão, das figuras do animador, que as desenha de forma a sugerir
essa resiliência. As suas figuras o fantasticamente imóveis ou
fantasticamente veis, comportam-se sempre conforme um ou outro
caso.
57
Dentro dos doze princípios fundamentais da animação, pode-se afirmar
que apenas dois deles estão menos diretamente ligados às leis físicas
58
e mais a
aspectos psicológicos o Staging e o Appeal. Deve-se ressaltar que o
conhecimento e o controle dos outros princípios são essenciais para se alcançar o
domínio desses dois fundamentos que, na realidade, asseguram em grande parte
o modo e a qualidade com que o espectador percebe a animação dentro do
contexto do filme.
Frank Thomas e Ollie Johnston afirmam que o
Appeal foi muito importante desde o início. A palavra é freqüentemente
mal interpretada para sugerir coelhinhos acariciáveis e gatinhos macios.
Para nós, significava qualquer coisa que uma pessoa gosta de ver, uma
qualidade de charme, desenho agradável, simplicidade, comunicação, e
magnetismo. Seu olho é atraído à figura que tem appeal, e, uma vez lá,
é mantido enquanto você aprecia o que você está vendo. Uma
surpreendente figura heróica pode ter atração. Uma vilã, mesmo
55
HALAS, John; MANVELL, Roger. p.34. As três leis são: (i) Um corpo em repouso tende a permanecer em
repouso. Da mesma forma, um corpo em movimento tende a permanecer em movimento. // (ii) O estado de
repouso ou de movimento de um corpo só pode ser alterado pela ação de uma força externa. O corpo move-se
em linha reta, seguindo a direção da força aplicada, até que outra força atue para mudar a sua direção. // (iii)
Toda ação causa uma reação igual e oposta.
56
Fís. Propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a
tensão causadora duma deformação elástica. Conforme Dicionário Aurélio Eletrônico.
57
HALAS, John; MANVELL, Roger. p.60.
58
Entretanto, por serem características naturais, sempre existe o elo com a sua natureza física.
208
assustadora e dramática, deveria ter atração; caso contrário, você não
desejará assistir ao que ela está fazendo. O feio e repulsivo pode
capturar seu olhar, mas não haverá nem a construção da
personalidade, nem a identificação com a situação serão precisas.
Existe valor de impacto, mas nenhuma força de história.
59
Para o cinema de animação de Disney, a estética
60
da animação é tão
fundamental quanto a cnica de animação, e é preciso dar ao vilão, ou a
qualquer outra personalização do mal, um poder de atração appeal tão forte
quanto aquele dado aos heróis, ou a qualquer outra forma de personificação do
bem.
A preocupação em promover o appeal, como observam os autores, foi
sempre um motivo de inquietação dos principais animadores. Antes dos
animadores da Disney, outros artistas tinham investido no desenvolvimento do
appeal de seus personagens, notadamente os irmãos Fleischer com o palhaço
Koko e Otto Messmer com o gato Félix. Nesse sentido, ambos os personagens
assumiram formas mais arredondadas por volta da metade dos anos 1920. No
cinema de Disney, o coelho Oswald também sofreu alteração significativa do
desenho e da animação, de sua criação até os últimos trabalhos realizados por
Ub Iwerks. Sempre como resultado de avanços intuitivos, ou fortuitos. E, em
grande parte, como uma adaptação dos personagens a características que
demonstraram ter mais poder de atração sobre o espectador. O gato Félix,
redesenhado por Nolan e Messmer, foi o grande inspirador, durante a década de
1920, das características de appeal para os demais artistas e estúdios. Nos anos
59
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p. 68. No original, Appeal was very important from the start. The
word is often misinterpreted to suggest cuddly bunnies and soft kittens. To us, it meant anything that a person
likes to see, a quality of charm, pleasing design, simplicity, communication, and magnetism. Your eye is
drawn to the figure that has appeal, and, once there, it is held while you appreciate what you are seeing. A
striking, heroic figure can have appeal. A villainess, even though chilling and dramatic, should have appeal;
otherwise, you will not want to watch what she is doing. The ugly and repulsive may capture your gaze, but
there will be neither the building of character nor identification with the situation that will be needed. There
is shock value, but no story strength.
60
1.Filos. Estudo das condições e dos efeitos da criação artística. // 2.Filos. Tradicionalmente, estudo
racional do belo, quer quanto à possibilidade da sua conceituação, quer quanto à diversidade de emoções e
sentimentos que ele suscita no homem. //3.Caráter estético; beleza: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio
versão 5.0
209
de 1930, um grande gerador de appeal para os outros personagens
61
, inclusive da
própria Disney, passou a ser Mickey, principalmente sob os traços característicos
do animador Fred Moore, o grande responsável pelo desenho consagrado e
definitivo do personagem. De certo modo, é a busca pelo appeal que sustenta
grande parte das ações de Disney, como exemplo, a escolha de atrizes mirins
capazes de despertar no espectador a identificação nas situações criadas nos
filme da série Alice Comedies, que o appeal assume o papel de originar e
manter grande parte da capacidade de identificação que os personagens
despertam no espectador.
A mudança de estilo (evolução) de imagens mais rígidas e ríspidas para as
imagens suaves e atraentes dos personagens como Oswald, o coelho sortudo, ou
mesmo Mickey Mouse, que passou a ser símbolo desse estilo de desenho,
baseiam-se no fato de que se aos personagens bons características inerentes
às crianças e aos filhotes de animais, e aos personagens maus características
identificadas com o universo do adulto. No estilo Disney, essa identificação do
vilão com características identificadas como erradas ou maléficas não implica na
perda do apelo estético.
Fig. 099 – Disney – Desenho de produção: A Tartaruga e a Lebre (EUA,1934).
61
Os anos trinta se destacam pela qualidade dos novos personagens. Dentre esses, como visto no capítulo
anterior, destaca-se Betty Boop, que por seu (excesso de) appeal foi uma das mais intrigantes vítimas da
censura norte-americana: o famigerado Código Hayes.
210
O domínio sobre o princípio do appeal está, no estilo Disney, diretamente
ligado à qualidade plástica do desenho. Conforme Frank Thomas e Ollie
Johnston,
Falta appeal a um desenho fraco. Um desenho que é complicado ou
difícil de ler falta appeal. Desenho pobre, formas desajeitadas,
movimentos confusos, tudo isso reduz o appeal. Os espectadores
gostam de assistir algo que é atraente para eles, seja uma expressão,
um personagem, um movimento, ou a situação completa da história.
Enquanto o ator vivo tem carisma, o desenho animado tem appeal.
62
Ao longo dos anos, os artistas do estúdio foram selecionando as estruturas
que satisfaziam as qualidades desejadas para uma estética que propiciasse o
appeal. Logo eles perceberam que o estilo rubber hose, bastante apropriado às
histórias e ao humor característico dos anos de 1920, não conseguia sustentar a
qualidade técnica e estética que Disney vislumbrava para os seus filmes, mas que
se tornavam muito mais viáveis através de um desenho que tivesse
características que remetessem aos animais e a pessoas reais, sem no entanto
reproduzi-las com fidelidade (Fig.099).
O grande passo para esse objetivo foi dado com o lançamento e o sucesso
alcançado por Os Três Porquinhos. Esse avanço fundamentou-se em uma
animação que repetia a qualidade original dos desenhos, mais livres e
expressivos, do animador Fred Moore. Como observou Chuck Jones, o
movimento de cada um dos porquinhos é que lhes dava as principais
características de individualização.
Uma análise da animação, ou do movimento dos porquinhos auxilia a
compreender como isso foi alcançado. Os dois primeiros personagens que
aparecem são os porquinhos Cícero (Fifer Pig) e Heitor (Fiddler Pig). Eles
também têm personalidades semelhantes e, portanto, são animados de maneira
semelhante: eles estão quase todo o tempo agitados e se movimentam com
agilidade. Quando andam, dançam e correm, fazem-no praticamente na ponta
62
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p. 68. No original, “A weak drawing lacks appeal. A drawing that is
complicated or hard to read lacks appeal. Poor design, clumsy shapes, awkward moves, all are low on appeal.
Spectators enjoy watching something that is appealing to them, whether an expression, a character, a
movement, or a whole story situation. While the live actor has charisma, the animated drawing has appeal.”
211
dos pés o que passa ao espectador a sensação de leveza e ainda ajuda a
caracterizar a alegria e a vivacidade desses personagens. Ao mesmo tempo,
esses movimentos também diminuem o contato de seus pés com o chão,
remetendo ao pouco contato dos personagens com a realidade, ou seja, com o
mundo dos adultos e da responsabilidade, representado por Prático (Practical
Pig), o terceiro porquinho. O confronto com o vilão, o Lobo Mau (The Big Bad
Wolf), que representa os perigos e as dificuldades da vida
63
, obrigam Cícero e
Heitor a apoiar os pés no chão, com firmeza, para resistir à força de seu
adversário. Tão logo o perigo passa, ou eles m essa impressão, os dois voltam
a ter a agilidade proporcionada pelo pouco contato dos pés com o solo. A
animação do Prático o diferencia dos seus irmãos, representando a oposição
precisa à leveza dos dois primeiros: seus movimentos são firmes e diretos, e
durante o trabalho ele não dispersa sua atenção. Assegurando que isso seja
percebido pelo espectador, a primeira cena em que Prático aparece, nem mesmo
mostra os seus pés, que estão atrás de uma sólida base de tijolos. A seqüência
inicial, ao mostrar Prático entrincheirado atrás dos tijolos, fortalece a solidez de
sua posição, contrapondo-a a leveza e a instabilidade da posição de Cícero e de
Heitor (Fig.100). Desse modo, a animação de Prático compõe imageticamente um
amálgama entre a estabilidade da casa de tijolos e a energia e firmeza de seus
movimentos.
Fig. 100 – Disney – Os Três Porquinhos (EUA, 1933)
63
O filme foi lançado em plena recessão dos EUA. Na época, a população encontrava-se totalmente
desestimulada pela crise, atingida pelo desemprego e por todos os problemas decorrentes de uma economia
estagnada. Assim, preferia gastar o pouco dinheiro disponível em diversões, após ter perdido suas economias
e a confiança no mercado financeiro. O filme foi recebido como uma lição de otimismo e de superação das
dificuldades, através do trabalho, do planejamento e da persistência.
212
Essa diferença imagética reflete as personalidades distintas dos
porquinhos, que também é dada pela narrativa, e ainda reforçada pela canção
que os personagens cantam:
“Quem tem medo do Lobo Mau”:
(Cícero)
Com palha eu faço a casa
Pra não me esforçar
Na minha casinha
Eu toco a flautinha
Eu gosto é de brincar!
(Heitor)
De vara é minha casa
É onde eu vou morar
Mas eu não me amofino
Vou tocando violino
O que eu gosto é de dançar!
(Prático)
Eu faço a minha casa
Com pedra e com tijolo
Pra trabalhar não sei dançar
Pois não sou nenhum tolo
(Cícero e Heitor)
Ele não sabe brincar, nem cantar, nem dançar
Só o que sabe é trabalhar
(Prático)
Podem rir, dançar e brincar
Que não vou me aborrecer
Mas não vai ser brincadeira
Quando o lobo aparecer
(Cícero e Heitor)
Quem tem medo do Lobo mau, Lobo mau, Lobo mau (Bis)
Dou um soco no nariz
Eu dou-lhe um bofetão
Eu dou-lhe um pontapé
Derrubo ele no chão
213
Quem tem medo do Lobo mau, Lobo mau, Lobo mau (Bis)
64
A concentração da história em apenas quatro personagens, a semelhança
entre os três porquinhos e a opção por cenários mais simples apontam para uma
proposta diferenciada dentro dos Silly Symphonies. E essa diferenciação se deu
também na animação dos três porquinhos, com o uso do Squash and Stretch, que
foi usado por Fred Moore de maneira mais ampla, não apenas em cenas onde
seriam indicadas. O uso do Squash and Stretch, mesmo em algumas cenas onde
a animação distorce bastante o desenho, é percebido pelo espectador como uma
animação mais fluida e agradável, e, como ao final do achatamento e do
esticamento a animação deve sempre voltar ao desenho/forma original, ou
normal, o espectador não registra a deformação como algo feio ou repugnante e
inaceitável.
Desse modo, esse fundamento e todos os outros, estão sempre de acordo
com o fundamento do appeal: a animação deve ter a capacidade de atrair e
manter o olhar do espectador que é seduzido por apreciar a harmonia e “qualquer
coisa que uma pessoa gosta de ver com qualidades de charme, desenho
agradável, simplicidade, comunicação e magnetismo”
65
. O desenvolvimento do
Squash and Stretch não apenas está de acordo com o princípio do appeal, como
é uma das bases dentro do estilo Disney, a partir do momento que libera o
animador para o uso criativo e mais livre das qualidades da arte do desenho e
levando a uma aplicação expressiva das leis físicas do movimento. Essa
aplicação se estende a todos os outros princípios fundamentais da animação
identificados, criados e aprimorados pelos artistas do estúdio Disney e que estão,
64
Música: Frank Churchill, letra: Frank Churchill e Ann Ronell. A letra original: "Who's Afraid of the Big
Bad Wolf?// (Fifer Pig)/I built my house of straw/I built my house of hay/I toot my flute/I don't give a
hoot/And play around all day// (Fiddler Pig) I built my house of sticks/ I built my house of twigs/ With a hey-
diddle-diddle/ I play on the fiddle/ And dance all kinds of jigs// (Practical Pig)/I built my house of stone/ I
built my house of bricks/ I have no chance/ To sing and dance/For work and play don't mix// (Fifer and
Fiddler Pigs)/ He don't take no time to play/ Time to play/ Time to play/ All he does is work all day//
(Practical Pig)/You can play and laugh and fiddle/ Don't you think you'll make me sore/ I'll be safe and you'll
be sorry/ When the wolf comes to your door// (Fifer and Fiddler Pigs)/ Who's afraid of the big bad wolf/Big
bad wolf/ Big bad wolf/ Who's afraid of the big bad wolf// Who's afraid of the big bad wolf/ Big bad wolf/ Big
bad wolf/ Who's afraid of the big bad wolf// I'll punch him in the nose/ I'll tie him in a knot/ I'll kick him in the
shin/ We'll put him on the spot/ Who's afraid of the big bad wolf/ Big bad wolf/ Big bad wolf/ Who's afraid of
the big bad wolf
65
Cf. p.208.
214
diretamente ou indiretamente, vinculados às leis da física, principalmente às leis
do movimento.
Fig. 101 – Disney - Desenhos de produção: The Moose Hunt (EUA, 1931) - Mickey's Pal Pluto
(EUA, 1933) - Pluto's Quin-Puplets (EUA, 1937) - Society Dog Show (EUA, 1939)
A adaptação dessas leis para o cinema de animação implica a
compreensão de que o mundo do desenho animado é um mundo próprio, onde as
leis se parecem com as leis do mundo real, mas existe diferença de grandezas e
uma lei maior que determina todas as outras: a expressividade. E a
expressividade almejada por Disney não era, aparentemente, expressa por ele
em palavras, talvez como forma de não inibir a capacidade criativa de seus
artistas. Disney resumia muitas de suas sugestões em poucas palavras. E em
poucas, porém incisivas, afirmativas. Muitos artistas do estúdio demonstraram
que trabalhar com Walt Disney, não apenas devido à sua autoridade, não era uma
atividade muito simples. Ele acreditava que seus filmes deveriam ter realismo,
mas ele não percebia o realismo na concepção geral do termo. Frank Thomas e
Ollie Johnston esclarecem que
Havia um pouco de confusão entre os animadores quando Walt primeiro
pedia por mais realismo e depois criticava o resultado porque não
215
estava bastante exagerado. Na mente de Walt, provavelmente não
existia diferença. Ele acreditava em alcançar o coração de algo e
desenvolver a essência do que encontrava. Se um personagem deve
estar triste, o faça mais triste; alegre, o faça mais alegre; se
preocupado, mais preocupado; se selvagem, o faça mais selvagem.
Alguns dos artistas tinham sentido que exagero” significava desenhos
mais distorcidos, ou uma ação tão violenta que lhes perturbava. Eles
achavam que não tinham entendido o essencial. Quando Walt pedia
realismo, ele queria uma caricatura do realismo.
66
Essa “caricatura” à qual os autores se referem é a chave que elucida a
adaptação das leis da física ao mundo do desenho animado. Na pessoa ou no
ator do mundo real, o exagero levará a um estranhamento ou à comicidade. No
desenho animado, mais especificamente no cartoon animado, o exagero é a
correção da escala de expressões que atraem o olhar do espectador. Sem essa
correção, as expressões ou gestos podem passar despercebidos ou não
receberem a atenção necessária para a sua percepção e fruição. Na seqüência,
os autores informam que
Um artista analisou isto corretamente quando disse, “eu não penso que
ele queria dizer ‘realismo’. Eu penso que ele queria dizer que algo era
mais convincente, que isso estabelecia um contato maior com as
pessoas, e ele dizia ‘realismo’ porque as coisas ‘reais’ fazem.... De
vez em quando [na animação] o personagem fazia alguma coisa não
convincente, ou para mostrar quão talentoso o animador era, e isto não
parecia real, parecia falso. Walt não aceitaria nada que destruísse a
credibilidade, mas ele raramente pedia a um animador que suavizasse
uma ação se a idéia fosse certa para a cena.
67
66
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p. 65. No original, There was some confusion among the
animators when Walt first asked for more realism and then criticized the result because it was not
exaggerated enough. In Walt's mind, there was probably no difference. He believed in going to the heart of
anything and developing the essence of what he found. If a character was to be sad, make him sadder; bright,
make him brighter; worried, more worried; wild, make him wilder. Some of the artists had felt that
"exaggeration" meant a more distorted drawing, or an action so violent it was disturbing. They found they
had missed the point. When Walt asked for realism, he wanted a caricature of realism.
67
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p. 66. No original, One artist analyzed it correctly when he said,
"I don't think he meant 'realism.' I think he meant something that was more convincing, that made a bigger
contact with people, and he just said 'realism' because 'real' things do. . . . Every so often [in the animation] the
216
O princípio acima descrito, exaggeration, está ligado também às cnicas e
às necessidades do teatro, do mesmo modo que o princípio anticipation, que foi
um dos primeiros a ser desenvolvido por Disney, e, à semelhança, com a
necessidade do exagero, precisava ser bem compreendido, para que fizesse bem
a sua função de preparar o espectador para a ão seguinte, no caso de ser uma
ação que narrativamente não pudesse passar despercebida (Fig.102).
Fig. 102– DisneyAntecipação que indica que Oswaldo tira um sanduíche de seu bolso.
FONTE – THOMAS & JOHNSTON, 1995, p. 52.
Ou para passar a impressão de realidade que Walt Disney exigia para os seus
filmes (Fig.103). Isso implica que alguns dos princípios fundamentais da animação
somente foram desenvolvidos a partir da necessidade de Disney de criar a
impressão de realidade para o universo do desenho animado.
Fig. 103 – Disney – Antecipação: Pato Donald. FONTE – THOMAS & JOHNSTON, 1995, p. 52.
character would do something unconvincing, or to show how clever the animator was, and it wasn't real, it
was phony."
4
[
4
Nota do original: John Herch] Walt would not accept anything that destroyed believability,
but he seldom asked an animator to tame down an action if the idea was right for the scene.”
217
Outros princípios foram aprimorados, realizando não apenas suas funções
primordiais, como também ganhando novos atributos que lhe permitissem
contribuir para o cinema imaginado por Walt Disney. No primeiro caso, podemos
destacar os fundamentos de Squash and Stretch, Solid Drawing, Follow Through
and Overlapping Action, Arcs, Secondary Action. E no segundo caso, Anticipation,
Staging, Straight Ahead Action and Pose to Pose, Slow In and Slow Out, Timing,
Exaggeration e Appeal. Estes, tendo sido utilizados por outros realizadores,
ganharam um olhar mais apurado através das novas necessidades de Disney
para o desenho animado. Se antes eram bem conhecidos e dominados,
principalmente quando utilizados no estilo rubber hose, agora eles ganhavam
novas funções que se somaram às anteriores. A aplicação desses princípios foi
aprimorada e estudada com profundidade pelos artistas de Disney, aumentando
seus recursos. Isso implicou na necessidade de aperfeiçoamento dos artistas que
os utilizavam e também na qualidade dos personagens que seriam animados.
Os Três Porquinhos foi o primeiro filme a apresentar em conjunto alguns
dos conhecidos e também alguns dos novos fundamentos. E esse conjunto
produziu um filme que não passou despercebido, conquistando os espectadores e
fascinando os artistas e animadores dos outros estúdios. Além do incremento do
uso do Squash and Stretch, um dos fundamentos desenvolvidos por Fred Moore
que também se destaca na animação dos três porquinhos é a qualidade técnica
de seu desenho, um dos seus grandes atributos. A partir do momento que a
animação objetivava criar a impressão de realidade, passou também a exigir um
desenho com a capacidade de exprimir naturalidade. Novamente, deve-se notar
que essa naturalidade está intimamente ligada ao universo do desenho animado,
e é para esse universo que as qualidades de um desenho mais realístico foram
adaptados pelos artistas do estúdio através do desenvolvimento do princípio
conhecido como Solid Drawing. Solid Drawing é o desenho consistente, capaz de
passar para a animação, e para o espectador, a impressão de que os
personagens existem naquele universo, sendo dotado de massa e volume - e
mais do que isso, de ossos, músculos e pele - que reagem ao ambiente do
desenho animado de modo semelhante ao modo que os seres vivos reagem ao
mundo real. Mesmo considerando a qualidade dos artistas que trabalhavam para
os outros estúdios, a diferença e a originalidade da abordagem dos artistas da
218
Disney em relação ao desenho e à animação se evidenciavam quando eram
contratados para trabalhar para o estúdio. Conforme Frank Thomas e Ollie
Johnston,
Um animador de fora do estúdio ficou “admirado que alguém pudesse
estar interessado na mecânica do movimento,” mas esta abordagem
original era o verdadeiro coração de nosso trabalho. Marc Davis
resumiu, “A animação da Disney é realmente muito diferente. Ninguém,
não importa quem seja, pode vir de fora e desenhar um personagem da
Disney sem uma compreensão completa de tudo que isso envolve.”
68
Uma das inovações introduzidas a partir do filme Os Três Porquinhos não
aparece no filme, mas certamente é uma das mais importantes contribuições para
a qualidade da história, principalmente para a crescente complexidade narrativa
envolvendo cada vez mais os cenários, a animação e a sica como elementos
expressivos e harmônicos, que tinham funções definidas e independentes, mas
que apenas atingem o máximo de sua capacidade quando desenvolvidos em
consonância. Conforme Solomon:
De acordo com Diane Disney Miller, Os Três Porquinhos” foi também o
primeiro cartoon a ter um storyboard completo. Originalmente planejado
por Win Smith, antigo assistente de Iwerks, o storyboard consistia de
uma série de pequenos desenhos e legendas fixados a um painel de
cortiça o qual exibia a ação do filme. Esboços preliminares e planos
semelhantes a revistas em quadrinhos tinham sido usados em muitos
filmes anteriores. Fixar os desenhos em uma parede permitia ao artista
acrescentar, remover ou trocar os esboços e ver facilmente como várias
seqüências se relacionavam umas com as outras dentro do filme.
69
68
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p. 62. No original, One animator from outside the studio was
"amazed that anyone would be that interested in the mechanics of motion," but this unique approach was
the very heart of our work. Marc Davis
2
summed it up, ‘Disney animation is just very different. Nobody, I
don't care who he is, can come from the outside and draw a Disney character without a full understanding of
what it's all about."
69
SOLOMON, p.53. No original, According to Diane Disney Miller, ‘Three Little Pigs’ was also the first
cartoon to have a complete storyboard. Originally devised by Win Smith, Iwerks's former assistant, the
storyboard consisted of a series of small drawings and captions pinned to a corkboard wall that showed the
action of the film. Preliminary sketches and comic book-like plans had been used on many earlier films.
219
Deve-se notar que o storyboard (Fig.104) é o aprimoramento de técnicas
conhecidas e aplicadas, não apenas pelo estúdio de Disney, mas também por
outros estúdios, como a folha de continuidade
70
.
Fig. 104 – DisneyReunião da equipe em frente a um storyboard.
Entretanto, esse aprimoramento, aparentemente simples, foi capaz de dar
maior agilidade, versatilidade e funcionalidade ao desenvolvimento do eixo
narrativo das histórias. Outras técnicas e fundamentos também foram
aprimorados, levando a uma crescente especialização a todas as áreas ligadas
ao cinema de animação do estúdio.
Em novembro de 1934 estreou nos cinemas norte-americanos A Deusa da
Primavera (The Goddess of Spring, EUA, 1934). Esse interessante Silly
Symphony baseia-se no mito de Perséfone e, continuando a tradição de
adaptação e modernização criada por Walt Disney desde Kansas City, o filme se
mantém bastante fiel à linha geral do mito, mas tem como toque modernizador a
apresentação da história interpretada como se fosse uma ópera. Esse filme foi
certamente o primeiro teste para a animação de figuras humanas, indispensáveis
Pinning the drawings to a wall enabled the artists to add, remove or change sketches and to see easily how
various sequences within the film related to each other.
70
Cf. Fig. 081 – Disney – Folha de continuidade de Steamboat Willie, Capítulo 3, p. 153.
220
para a realização de Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the
Seven Dwarfs, EUA, 1937). Walt Disney havia se decido a realizar o projeto de
longa-metragem na primavera de 1934
71
. Diane Disney Miller afirma que essa
decisão foi tomada apenas em 1935
72
.
Fig. 105 – Disney – A Deusa da Primavera (EUA, 1934)
71
Conforme Making off de Branca de Neve e os Sete Anões. Edição Brasileira. Disney Dvd – Videolar.
72
SOLOMON, p. 57. Conforme a biografia de Diane Disney Miller, filha de Walt Disney.
221
O grande mérito, reconhecido, de A Deusa da Primavera é ter sido o marco
inicial de um dos maiores e o mais difícil desafio proposto pelo estúdio Disney: a
animação com impressão de realidade para a figura humana.
O filme apresenta uma profusão dos tradicionais personagens dos Silly
Symphonies, como pequenos animais, anõezinhos e florezinhas dançarinas. Os
protagonistas desse filme são os deuses gregos Perséfone e Hades. Perséfone
(ou Koré)
73
, era filha de Zeus e Deméter. Hades, deus do submundo, era irmão de
Zeus, de quem conseguiu a permissão para desposar Perséfone, sem consultar
Demeter. Impaciente, Hades rapta Perséfone, levando-a para o submundo. É a
partir desse ponto da história que Disney passa a apresentar o mito da deusa da
primavera o mito grego que explica a mudança das estações. Sentada em seu
trono, ladeado por duas cornucópias que representam a fertilidade da terra, a
jovem deusa observa os animais e as florzinhas dançarinas, quando Hades
emerge da terra, cercado por diabinhos, levando a deusa para o seu reino.
A especialização dos artistas da Disney apresenta resultados muito
atraentes e expressivos nesse filme: os efeitos especiais, como a animação de
folhas levadas ao vento e as chamas haviam se tornado muito mais ricas, e em
conseqüência do controle que se tinha sobre esses recursos, passaram a
contribuir de modo significativo no clima dos filmes.
No submundo
74
, quando a deusa é coroada por Hades, os diabinhos
comemoram dançando, iluminados pelas chamas coloridas do inferno, em uma
seqüência de belas imagens e grandes efeitos especiais. Enquanto isso, na
superfície, o inverno
75
traz a tristeza a seus habitantes, que sofrem com a falta de
sua deusa. Hades, tendo feito tudo para alegrar Perséfone, concorda em deixar
que ela passe uma parte do ano na superfície, com a promessa de que ela
retorne para o seu lado após esse período. A deusa então retorna para a
superfície e com ela voltam a alegria e as cores da primavera.
73
Cf. ESTEVES,Solange Ramos. Perséfone: o mito. Disponível em
www.mariamaria.com.br/revistamariamaria/edicao04/persefoneomito.php, acesso 4 jun 2006.
74
Apesar dessa leitura de Disney, o submundo do mito não é o inferno e nem Hades o demônio do
cristianismo.
75
Como Deméter não se conformou com o destino de sua filha, ela deixou de cuidar das colheitas. Sem
frutos para oferecer, os mortais não mais faziam sacrifícios aos deuses. Por essa razão Zeus obrigou Hades a
devolver a Perséfone para a superfície.
222
Deve-se destacar a qualidade de animação das roupas dos personagens
principais. A túnica da deusa, desenhada com simplicidade, foi animada de tal
forma que na cena inicial, na qual seu véu é sustentado por dois passarinhos, a
sensação de leveza alcançada assegura a estética dos movimentos passando
grande naturalidade ao espectador. Também a capa de Hades apresenta
movimentos simples e naturais, aumentando a verossimilhança de suas ações e
de seus movimentos. O desenho e a animação da deusa são bem feitos e
bonitos, apresentam Appeal, dando ao filme uma qualidade notável. Quando a
deusa está dançando, os seus braços ondulam denotando a inexistência de ossos
e músculos, mesmo não sendo essa uma animação no estilo rubber hose. As
imagens e a animação não incomodam e são bastante interessantes, dando uma
certa leveza e magia aos movimentos da deusa adolescente. Entretanto, Walt
Disney desejava algo mais os movimentos estilizados da deusa, apesar de sua
elegância e leveza, estavam muito afastados da aparência de realidade que ele
buscava. Seu rosto não conseguia exprimir com clareza e força a dramaticidade
exigida por suas cenas e pela história original. Além disso, a animação de Hades
ficou ainda mais afastada das pretensões de Disney, apresentando soluções para
Hades, que estavam muito próximas da caricatura, tanto por suas expressões
fisionômicas quanto por seus movimentos.
Por volta de 1935, com a intenção de melhorar a animação de suas
personagens representando figuras humanas, notadamente as femininas, Roy e
Walt Disney contrataram o animador Myron “Grim” Natwick, reconhecido, entre
outras coisas, por ter sido o criador e o animador de Betty Boop para os estúdios
Fleischer. Em maio daquele ano, o estúdio lançou A Feira dos Biscoitos (The
Cookie Carnival, EUA, 1935), o primeiro filme no qual o artista trabalhou para
Disney após ter deixado o estúdio de UB Iwerks. Natwick animou a Garota
Biscoito, que é transformada pelo Garoto Biscoito na Rainha dos Doces (Fig.106).
A transformação é fascinante e de certo modo, ilustra também aquela ocorrida na
animação das personagens femininas, entre os filmes A Deusa da Primavera e A
Feira dos Biscoitos. A Garota Biscoito, em formas e animação que remetem ao
filme anterior, torna-se a Rainha dos Doces e passa a ter formas e movimentos
mais realísticos e mais femininos. Natwick disse que, quando foi procurado por
Roy Disney, esse afirmou que o estúdio precisava dele, que ele era um dos
223
dois únicos artistas que sabiam como realizar a animação de figuras femininas
76
.
O outro era Hamilton “Ham” Luske, o animador de A Deusa da Primavera, que
havia sido contratado pelo estúdio em 1931, e iniciou seu trabalho para o estúdio
animando animais em um filme de Mickey, The Animal Broadcast (EUA, 1931).
Ham Luske tornou-se um dos principais animadores do estúdio, tendo ajudado
Disney a ganhar mais um Oscar com o filme A Tartaruga e a Lebre (The Tortoise
and the Hare, EUA, 1935), animando o personagem Max Hare.
Fig. 106 – Disney – A Feira dos Biscoitos (EUA, 1935)
No filme Quem matou Cock Robin? (Who Killed Cock Robin?, EUA, 1935),
Ham Luske animou a personagem feminina, Jenny Wren, uma criativa caricatura
da atriz Mae West, representada como uma pequena e sedutora ave (Fig.107),
76
JOHNSON, David. An Interview with Grim Natwick. Conforme
www.animationartist.com/InsideAnimation/DavidJohnson/InterviewNatwick.html, acesso em 25 mai 2006.
224
namorada do personagem do título Cock Robin
77
. Esse é um filme que
comprova a afirmação de Chuck Jones, sobre a animação dos personagens, de
que é através do modo como as figuras se movem, e não por sua aparência, que
o animador lhes identidade. Jenny Wren torna-se incrivelmente feminina
através da animação de Ham Luske. Os outros personagens, todos
caracterizados como pássaros, são também ricamente expressivos e garantem a
uniformidade na qualidade da animação.
Fig. 107 – Disney – Mae West e Jenny Wren: Quem Matou Cock Robin? (EUA, 1935)
Para Walt Disney realizar o longa-metragem Branca de Neve e os Sete
Anões, foi necessário cercar-se dos melhores profissionais existentes na indústria
da animação, recrutando e treinando novos artistas, e oferecendo a todos,
novatos e experientes, condições para continuarem seu desenvolvimento cnico
e artístico, como indivíduos e como grupo de trabalho.
A série Silly Symphonies continuava sendo o grande campo de
experimentações e inovações para Disney atingir seus objetivos, em uma busca
por soluções para os aprimoramentos identificados como necessários à
realização do projeto. Contudo, em nenhum momento Disney se descuidou da
qualidade de suas histórias, que, exatamente por isso, continuaram a fascinar o
público e a crítica. A série venceu seis Oscar no período compreendido entre o
seu início e o lançamento de Branca de Neve e os Sete Anões
78
: Flores e Árvores
77
A atriz teria enviado uma carta elogiando o trabalho dos artistas de Disney. Conforme,
www.legends.disney.go.com/legends/detail?key=Ham+Luske, acesso em 25 de maio de 2006.
78
BRUZZO, p. 180. Branca de Neve e os Sete Anões Este é o primeiro filme de longa duração dos
Estúdios Disney. Levou três anos para ser produzido e sua estréia, em 21 de dezembro de 1937, deu início a
uma carreira de grande sucesso. Em 1939, Disney recebeu o Oscar pelo desenho - reconhecido como
225
(1932), Os Três Porquinhos (1933), A Tartaruga e a Lebre (1934), Os Três
Gatinhos Órfãos (Three Orphan Kittens, EUA, 1935), O Primo Caipira (The
Country Cousin, EUA, 1936) e O Velho Moinho (The Old Mill , 1937). E mais um
Oscar, após o lançamento de Branca de Neve O Patinho Feio (1939). Deve-se
considerar que todos os filmes realizados entre 1929 e 1939 estavam ligados às
experiências e técnicas desenvolvidas nesse período, apesar de nem todos os
vencedores do Oscar e os indicados terem sido produzidos como Silly
Symphonies. Entre os vencedores nesse período apenas o filme Ferdinando, o
Touro (Ferdinand the Bull, EUA, 1938) não era um Silly Symphony, pois foi
produzido como um Walt Disney Special. Entre os demais indicados ao Oscar,
que não venceram, os filmes das séries dos principais personagens aparecem
com freqüência maior. Os Silly Symphonies indicados o Quem Matou Cock
Robin? (1935) e Mamãe Gansa vai para Hollywood (Mother Goose Goes
Hollywood, EUA, 1938). Da série do Pato Donald foi Bons Escoteiros (Good
Scouts, EUA, 1938) e pela série do Mickey Mouse foram: Os Órfãos de Mickey
(Mickey's Orphans ,1932), O Pequeno Alfaiate Valente (Brave Little Tailor , EUA,
1938), Building a Building (EUA, 1933) e O Dedo Duro
79
(The Pointer, EUA,
1939).
Um filme da Disney, que poderia ser um Silly Symphony ou um filme dos
personagens principais, poderia ser o primeiro a dar destaque a um determinado
avanço técnico ou a uma abordagem mais eficiente. Contudo, a construção de
cada técnica e de cada descoberta parece ter sido muito mais uma atividade em
equipe do que o esforço de apenas alguns especialistas técnicos ou alguns
experts em animação. A contribuição desses foi o fundamento de todas essas
descobertas, mas as atividades eram efervescentes naquele período e os artistas
trabalhavam próximos uns aos outros, estando em contato constante, dividindo e
compartilhando as experiências e opiniões sobre os resultados obtidos.
Um filme que destacou, ainda mais, a qualidade dos animadores da Disney
foi o Silly Symphony O Primo Caipira, de 1936. Esse filme apresenta seqüências
significativa inovação cinematográfica - e sete réplicas da estatueta em tamanho pequeno. Além das
inovações no aspecto da animação, o filme foi um marco também por iniciar uma linha de longas-metragens
que resolveu a crise dos desenhos animados de curta duração, cujos custos de realização aumentavam mais
do que os lucros provenientes desta forma de produção.
79
A tradução do título do filme para o português não está correta: The Pointer, no caso, se refere ao sabujo,
ou perdigueiro, ou seja, ao cão de caça “interpretado” por Pluto.
226
que o colocam como um dos melhores cartoons de Disney, e a exata
dimensão de como os seus artistas conseguiam fazer os seus personagens
atuarem, um domínio preciso do acting e de todos os princípios envolvidos na arte
da animação. Não podia mais haver dúvidas da qualidade e da supremacia do
estúdio na animação de personagens de cartoon. Isso apenas comprova a
capacidade de Disney de antever o futuro do cinema de animação: não faria
sentido investir mais tempo somente no que estava plenamente dominado. Um
grande e fundamental desenvolvimento técnico estava nos planos de Walt Disney
para alcançar a impressão de realidade pretendida, dando mais um toque original
ao seu primeiro longa-metragem de animação.
A arte do cinema de animação fundamenta-se na capacidade de dar vida a
imagens inanimadas. A arte do cinema fotográfico, ou live-action, está em sua
capacidade de apreender, da realidade, imagens expressivas. Talvez a diferença
mais significativa entre essas duas possibilidades de cinema seja ao mesmo
tempo a grande força e o grande obstáculo de cada uma. No cinema live-action, a
imagem fotográfica está impregnada da sensação de realidade. O desafio de seus
realizadores está na capacidade de trabalharem-na em direção da expressividade
e da arte, usando-as como os elementos componentes e fundamentais de sua
obra. Por outro lado, o cinema de animação, seja o desenho animado ou qualquer
outra técnica, parte do pressuposto de que o imagens destituídas de vida e a
arte do animador é que lhes dá o alento fundamental.
Desde o início do cinema de animação, os artistas sentiram a
necessidade de fazer com que a câmera se aproximasse do desenho imóvel para,
através de uma fusão, levar o espectador a essa nova realidade, a esse mundo
paralelo que se abria novamente para a sua fruição, mas agora dotado de uma
nova anima
80
: poder-se-ia afirmar que esse novo alento, dado à arte através do
cinema de animação, foi a possibilidade de dar o sopro da vida a imagens
inanimadas.
O Velho Moinho é um dos mais importantes filmes da história do cinema de
animação, não apenas por sua importância no desenvolvimento da câmera
multiplano, mas também por ter conseguido dar ao espectador a sensação de
80
Anima: do latim, ‘sopro’, ‘alento’ ou ‘alma’ - Aqui, neste sentido. Aurélio.
227
compartilhar, com intensidade até então impensada, as sensações de um
personagem de desenho animado.
A câmera multiplano foi um dispositivo desenvolvido dentro do estúdio da
Disney com o objetivo de permitir a impressão de movimento em profundidade, ou
seja, permitindo que o espectador invadisse o mundo do desenho animado,
descobrindo o ambiente que sustenta os seus personagens. Como já visto, desde
o início do desenho animado, a câmera buscava se aproximar do plano do
desenho animado para alcançar aquele universo. A partir do ponto, por motivos
técnicos, em que a câmera não mais poderia se aproximar, a impressão de
profundidade somente podia ser alcançada através do uso de técnicas de
desenho e de animação em perspectiva. Isso exigia artistas com excelentes
recursos técnicos, e, além disso, esses recursos estavam longe de provocar uma
ilusão de profundidade que atendesse a busca por ilusão de realidade na qual
Disney estava empenhado. No mundo real, a percepção da imagem se pelo
trabalho do sistema óptico ocular
81
, que faz com que os objetos mais próximos
pareçam se aproximar em maior velocidade. Ao se filmar um desenho (ou
diversos desenhos colocados em camadas diferentes, mas praticamente no
mesmo plano, como é o sistema tradicional de acetatos), todas as imagens
estarão se aproximando em direção ao espectador na mesma velocidade, o que
eliminaria a sensação de profundidade, devido à ausência do efeito de paralaxe.
Alberto Lucena Junior explica o funcionamento da câmera multiplano:
Em resumo, o equipamento funcionava da seguinte maneira: cada plano
da animação ficava situado numa distância diferente da câmara e
iluminado independentemente. Para conseguir um zoom realista, cada
plano era movido em direção à câmara, numa velocidade inversamente
proporcional à sua distância do observador imagirio. Os
81
O Sistema Óptico Ocular é formado por um complexo esquema fisiológico o qual permite interpretar não
somente a sensação de cor, mas também a profundidade, textura, movimento etc. O qual é formado
basicamente pelos globos oculares (olhos), nervos ópticos, corpos geniculares laterais e as áreas de visões.
Uma das características deste Sistema é a sua duplicidade, por exemplo, que permite Exibições Estéreo-
dinâmicas possibilitando a insinuação de profundidade esteroscópica constituída pelas diferenças relativas ou
disparidades entre as partes das imagens disponíveis nos dois olhos. Conforme
www.parconsult.com.br/uff/visao.htm acesso em 3 jun 2006.
228
coeficientes diferenciais dessas razões determinavam a posição
aparente de cada camada de desenho no espaço.
82
Em outras palavras, a câmera multiplano (Fig.108) foi o equipamento
desenvolvido por Walt Disney e seus especialistas, notadamente Willian Garity e
Roger Broggie
83
, para simular no desenho animado tomadas de planos
semelhantes às que se obteria através de uma filmagem do mundo real.
Fig. 108 – Disney – Câmera Multiplano em uso nos estúdios.
FONTE – MALTIN, 1987, p. 52.
Disney patenteou o invento que, entretanto, não teve seu uso difundido
devido principalmente aos custos e à complexidade operacional. Solomon informa
que uma seqüência de menos de um minuto para o longa-metragem Pinóquio
(Pinocchio, EUA, 1940) teria custado US$45,000,00
84
e a própria câmera levou
82
BARBOSA JUNIOR. p. 112.
83
Conforme www.web.mit.edu/invent/iow/disney.html, acesso 30 mai 2006.
84
SOLOMON, p.59.
229
alguns anos para ser desenvolvida, com um custo superior a US$ 70,000,00
85
. O
Velho Moinho custou, em grande parte devido ao uso da câmera multiplano, cerca
de 60% acima da média dos Silly Symphonies. Além dos custos, a câmera exigia
cálculos complexos para determinar a velocidade dos planos, implicando na
presença constante de um engenheiro durante sua operação. Além da
contribuição fundamental dada aos filmes da Disney, Mark Levoy, citado por
Lucena Junior, afirma que a maior contribuição da câmera multiplano foi ter
fornecido o conceito para o desenvolvimento do algoritmo para os atuais sistemas
de animação e composição digital 2D/3D, desenvolvidos a partir dos anos 1970
86
.
Em sua primeira cena, O Velho Moinho apresenta uma aranha passeando
sobre sua teia, que brilha tremeluzente, iluminada pela luz do dia. Ao fundo se
o velho moinho, levemente enevoado contra um céu crepuscular róseo. A imagem
aproxima-se da teia e passa por ela em um suave traveling
87
que, aos poucos, vai
desvendando uma família de patos que nadam tranqüilamente em um lago, em
direção à margem. Nas ondas leves do lago, tremula a imagem espelhada do
moinho. Prenunciando o anoitecer, os animais procuram abrigo e algumas vacas
passam por trás do moinho. Um pássaro pousa próximo à abertura do moinho,
antes de entrar, levando o alimento para a companheira que está em seu ninho,
feito sobre uma das endentações da engrenagem do moinho. O pequeno pássaro
levanta-se para arrumar o ninho, revelando seus preciosos ovos. Outro traveling,
vertical, continua a desvendar a vida que se abriga na rústica construção. Alguns
roedores, um casal de pombinhos, uma coruja que desperta, denunciando a
invasão daquele espaço ao olhar diretamente em direção ao espectador. O
traveling continua, ascendente, e logo surgem alguns olhos, brilhando contra o
fundo escuro. Nesta cena, através do clareamento (fade-in), é como se o olhar do
85
BARBOSA JUNIOR. p. 113.
86
LEVOY, Mark. A Color Animation System Based on the Multiplane Technique. Siggraph 77, em
ComputerGraphics, 11 (2), Nova York, julho de 1977, pp. 65-71. Apud BARBOSA JUNIOR, p.113.
87
CANTO E CASTRO, Inácio. Existem dois tipos de travelling: o óptico e o mecânico. O óptico consegue-
se variando a zoom e no mecânico é a própria câmara que se desloca. Tal como o nome indica, o movimento
de travelling pressupõe uma "viagem", ou seja: a câmara é colocada sobre um suporte e "viaja" em cima
dele. Quanto aos movimentos os travelling podem ser: para a frente, para trás, lateral e de
acompanhamento. Para a frente - a focal não muda e a câmara avança de um plano geral até a um plano
mais aproximado. Para trás - a câmara recua de um plano aproximado aa um plano mais geral. Lateral -
a câmara desloca-se paralelamente a um assunto. Acompanhamento - a câmara acompanha o personagem
ou o objecto em qualquer uma destas direções. Conforme: CLIP - Inovação em Vídeos 8, CONSTRUÇÃO
DE VIDEOGRAMAS, V - A OPERAÇÃO DE CÂMARA. Disponível em
<www.dgidc.min-edu.pt/inovbasic/edicoes/clip/clip8/clip8-videog.htm>, acesso 4 jun 2006.
230
espectador se acostumasse com a escuridão e começasse a distinguir os animais
no meio da penumbra, de onde vão surgindo os morcegos que despertam e
partem para a ronda notívaga. O traveling recua, acompanhando a saída dos
morcegos. Outra seqüência inicia, mostrando a sonoridade da vida que se agita
no lago. Os sapos coaxam em diferentes vozes e diferentes ritmos, e logo o
acompanhados pelo cricrilar dos grilos.
A trilha sonora é unicamente a base para os sons que ecoam a vida do
lago, compondo uma sinfonia de tranqüilidade. Novamente se o moinho, agora
rodeado por vaga-lumes que brilham acompanhando o ritmo da noite. Aos
poucos, a tranqüilidade noturna cede lugar ao som dos ventos, que prenunciam
uma tempestade. No lago, o vento agita as taboas
88
e, intensificando-se, empurra
as pás do velho moinho que, travadas por uma velha corda, ainda resistem à sua
força. De repente, dentro do moinho, as imagens descortinam um drama: os
dentes da engrenagem do engenho, ainda presos pela corda, estão prestes a
romper os seus últimos, carcomidos fios. O espectador percebe a tensão que
assaltou o passarinho, ameaçado pelo movimento da roda. Um plano externo
mostra a ação do vento. A seqüência que antecede o trágico momento, adiado
pelas últimas fibras da corda, parece interminável. Novamente o plano externo
mostra os ventos forçando as s. O passarinho, assustado e indefeso, sai do
ninho. A corda, finalmente se rompe e a roda inicia a sua trajetória. O pássaro, em
desespero, salta sobre o seu ninho, ainda procurando proteger os ovos,
abaixando-se sob as próprias asas. A curtíssima seqüência é totalmente
griffithiana, com um crescendo dramático, intercalado por cenas paralelas, como
os planos externos e as cenas mostrando outros animais. Inesperadamente, em
poucos quadros, se resolve o drama a vida do passarinho e de seus futuros
filhotes é poupada pela ausência de um dos dentes da roda dentada
89
.
88
TABOA (var) = TABUA: [De or. obscura.] Subst. fem. .Bras. Bot. Grande erva (até 3m) da família das
tifáceas (Typha domingensis), que vive em águas paradas e rasas, pois radica-se no fundo lamacento por
meio de um rizoma, que é comestível. Tem folhas ensiformes, pontudas e resistentes, flores unissexuais e
inconspícuas arrumadas em espigas grossas e compactas, de sexos separados, e espigas frutíferas com pêlos
que parecem paina. As folhas servem para tecer esteiras e cestos, e podem dar celulose para papel. [Var.:
taboa e tabu. Sin.: partasana e (lus.) bunho. Cf. tábua, s. f., e Tábua, top.]. Conforme Novo Dicionário
Eletrônico Aurélio versão 5.0. Nos EUA é conhecida como Cattail (Rabo de Gato).
89
Pode-se dizer que nessa seqüência houve uma certa “liberdade artística”. Na realidade, hoje se remete a
essa cena como contendo um “erro de continuidade” que no plano anterior o dente da engrenagem existia,
desaparecendo apenas após o início do movimento da roda.
231
Fig. 109 – DisneyO Velho Moinho (EUA, 1937).
232
O espectador, como o pássaro, não consegue ainda sentir alívio, pois a
seqüência se torna mais intensa e frenética, acompanhando a força imposta pela
tempestade, que castiga incessantemente as pás do velho moinho. O brilho dos
relâmpagos ilumina a noite, invadindo o ambiente dramático em que se
encontram os habitantes da velha morada. A roda da engrenagem continua sua
corrida. As pás do moinho giram na noite. A coruja tenta se equilibrar na roda,
sem sucesso, em um instante fugaz de humor dentro do drama. O vento e a
chuva continuam a invadir e a fustigar a antiga construção, seus moradores, o
lago e a vegetação da natureza circundante. As seqüências mecânicas, as pás do
moinho no vento noturno, a roda da engrenagem da que ameaça a vida do
pássaro, as tábuas das cercas, telhas e janelas, que estalam tentando resistir ao
poder do vento e da chuva. O moinho resiste até que cede, atingido por um raio
no clímax da tempestade, inclinando-se para o lado. Em seu interior, os animais
acompanham a inclinação do edifício, deslizando e se equilibrando. A imagem
mostra o moinho inclinado, mas estável. A tempestade se abranda. No meio da
escuridão, entre a neblina, aparece o velho moinho, para o qual a tênue luz da
aurora ilumina os morcegos retornando para o descanso e o abrigo. Novamente a
coruja tenta dormir, sentindo-se perturbada pelo espectador que insiste na
invasão da decadente residência, comprovando a continuidade da existência de
seus habitantes, e saudando a renovação da vida, com o nascimento dos filhotes
dos passarinhos, que retornam juntos, trazendo alimentos para a ninhada. Após a
tempestade, tudo retorna ao seu ritmo normal, o espectador é conduzido pelo
traveling que se afasta do moinho. As vacas voltam em direção ao pasto, os
patinhos retornam ao lago. Na última cena se vê o moinho enevoado, através do
tênue brilho da teia de aranha, parcialmente desfeita pela tempestade.
O Velho Moinho é um dos mais fascinantes Silly Symphonies, e é
certamente o mais importante descendente de A Dança dos Esqueletos o filme
é um autêntico mood piece, privilegiando a construção de cenas e seqüências
que buscam levar o espectador ao êxtase, prendendo-o na cadência da trilha
sonora, composta Leigh Harline
90
, e de uma excepcional seqüência de animação
90
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p. 286. Mais conhecido por sua composição para Branca de Neve e
os Sete Anões , “When You Wish Upon a Star”, Harline foi um dos grandes compositores da Disney, tendo
233
de personagens e de efeitos visuais. Tendo como personagens pequenos
animais, sem as características predominantes de Disney até aquele momento, o
antropomorfismo, o filme atinge a excelência em todos os critérios, sendo o mais
forte prenúncio do que Disney estava preparando para o seu público com a
produção do longa-metragem da Branca de Neve.
O filme deu ao estúdio dois prêmios da Academia: o Oscar de melhor
curta-metragem animado e o Oscar pela invenção e uso da câmera multiplano
(por avanço científico ou técnico), que possibilitou ao desenho animado a mais
perfeita ilusão de profundidade alcançada por qualquer cartoon animado até
aquele momento. Esses dois prêmios resumem a abrangência e a importância
desse filme: o estúdio de Walt Disney conseguia conciliar qualidade técnica e
excelência artística, através do esforço conjunto de incontáveis profissionais. O
Velho Moinho foi o último Silly Symphony feito antes de Branca de Neve e os Sete
Anões. Depois dele, foram lançados apenas outros sete curtas-metragens da
série, sendo cinco em 1938 e mais dois em 1939. Com o sucesso das produções
em longa metragem, Disney decidiu descontinuar a série, que foi compensada
com o lançamento, esporádico, de filmes conhecidos como Walt Disney Special,
que nunca foram produzidos como parte de uma série, as quais ficaram
destinadas apenas aos personagens do estúdio.
A qualidade pictórica do filme é o primeiro elemento a se destacar, desde a
primeira cena. A ilusão de profundidade é conseguida através da perspectiva
91
,
com o auxilio da teia de aranha que tremula no primeiro plano. Quando o
movimento em profundidade se inicia e se prolonga, estendendo-se além da
aranha e sua teia, ultrapassa a aproximação possível até então, chegando ao
lago e alcançando o moinho, em suave traveling e em suaves transições (fusão).
A importância do artista de background ganhou ainda maior relevância,
como observa Frank Thomas e Ollie Johnston:
composto também a trilha sonora para O Gafanhoto e as Formigas (The Grasshopper and the Ants, EUA,
1934).
91
AUMONT, Jacques. p. 63. Imagem, Papirus Editora, São Paulo, 1993. Conforme o autor, A perspectiva é
o método que permite a representação de objectos tridimensionais em superfícies bidimensionais, através de
determinadas regras geométricas de projecção. As imagens possibilitam a percepção de uma realidade
tridimensional se para tal se obedecer ao conjunto de prescrições que da Vinci expôs em Tratado da Pintura
(pelo que são freqüentemente conhecidas por "regras de Leonardo").
234
Estes pintores não são iguais aos pintores de cavalete, embora
compartilhem muitos dos mesmos talentos. O pintor de background
deve conhecer cor muito bem, possuir um bom senso de desenho,
saber como compor um quadro, e estar habilitado a controlar seu meio
extremamente bem. Ele pode até mesmo ter alguma reputação como
pintor de paisagens ou abstrações, mas aqui no estúdio ele tem uma
tarefa muito especial. Ele deve apresentar o personagem e dar suporte
à ação. Isso vem antes de qualquer outra coisa. Seu trabalho pode ser
dramático, surpreendente, poderoso, ou emocionante, mas ele ainda
deve ser apenas um fundo para a ação.
92
Isso significa que o background deve fazer parte do filme, contribuindo para
a encenação, apoiando o personagem para exprimir o clima da seqüência, mas
não deve competir com o personagem, desviando a atenção do espectador. O
estilo de cinema desenvolvido por Walt Disney, principalmente durante os anos de
1930, é exatamente a busca de um equilíbrio entre todos os elementos envolvidos
na realização e materialização do desenho animado, objetivando a excelência da
narrativa cinematográfica. O Velho Moinho é um filme que encontrou o ponto
exato de equilíbrio: se a velha construção não fosse habitada, o existiria a
possibilidade do drama, e nem despertaria o interesse de um contador de
histórias chamado Walt Disney.
O último filme da série Silly Symphonies foi a versão mais conhecida de O
Patinho Feio, de 1939. Esse filme, de certo modo, ilustra a mudança do estilo de
animação empreendido pelos artistas do estúdio, principalmente durante a
década de 1930. Talvez tenha sido escolhido por Disney para finalizar a série Silly
Symphonies por representar a trajetória e a qualidade do estilo próprio
desenvolvido pelo estúdio, reiterando uma das primeiras e mais significativas
atitudes de Walt Disney, como artista e como realizador: estar sempre revendo e
aprimorando seqüências e idéias, desde as mais simples até as mais complexas.
A versão de 1939 não é melhor do que a primeira, de 1931. São diferentes e,
92
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p. 248. No original, These painters are not the same as easel
painters, even though they share many of the same talents. The background painter must know color very
well, possess a good sense of design, know how to pull a picture together, and be able to handle his
medium extremely well. He may even have some reputation as a painter of landscapes or abstractions, but
here at the studio he has a very special assignment. He must stage the character and support the action. That
comes before anything else. His work may be dramatic, startling, powerful, or thrilling, but it must still be only
a background for the action.
235
ambas, importantes para o seu próprio tempo e para a história do estúdio. A
primeira versão, por ser aquela que apontou novos caminhos e possibilidades. A
versão do final da década, por ser o marco escolhido por Disney para finalizar a
série que ajudou o estúdio a encontrar-se como um dos maiores e mais influentes
estúdios de animação da história do cinema.
Fig. 110 – Disney – O Patinho Feio (EUA, 1939).
236
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final dos anos de 1910 e ao início da década de 1920, o cinema de
animação demonstrava uma força vital impossível de ser contida,
materializando-se através do trabalho de nomes como Nolan e Barré, John
Randolph Bray, Earl Hurd, Paul Terry, Gregory La Cava, Max e Dave Fleischer,
Pat Sullivan e Otto Messmer, Charles Bowers e Walter Lantz, para citar alguns
dos mais importantes entre centenas de profissionais que existiram e que
trabalharam no nascimento e no desenvolvimento dessa expressão
cinematográfica tipicamente norte-americana: a arte industrial do desenho
animado.
Ao contrário do que afirma grande parte dos estudiosos da vida e do
cinema de Walt Disney, não foi ele quem transformou o cinema de animação em
arte. O cinema de animação tem a arte como sua base natural e antes de Disney,
não apenas nos EUA, mas também na Europa, a possibilidade do cinema de
animação como arte e também como espetáculo havia se manifestado com
sucesso. É correto afirmar que Walt Disney possibilitou o maior e certamente o
mais importante incremento de recursos técnicos e narrativos na área do cinema
de animação, dando a este uma capacidade expressiva capaz de contribuir não
apenas com as áreas de abrangência estética e artística, mas também com
qualquer outra que envolva a necessidade e a capacidade de comunicar e de
expressar idéias através de imagens em movimento e de personagens e
ambientes sintéticos.
Uma das principais características observadas na trajetória cinematográfica
de Walt Disney é a sua incessante busca pelo conhecimento e pelo
desenvolvimento da arte da animação. Para ele mesmo, como artista e como
realizador, e para os seus artistas e colaboradores. Isso pode ser comprovado em
muito dos textos de artistas que conviveram com Disney, como Frank Thomas e
Ollie Johnston, ou através dos textos daqueles que conviveram ou aprenderam
com os artistas formados pelo estúdio e outros incontáveis depoimentos em
237
diversas mídias e por diversas abordagens. Certamente, o melhor modo de
compreender essa trajetória é pela análise de sua extensa e rica obra
cinematográfica. O livro The Illusion of Life: Disney Animation, de Frank Thomas e
Ollie Johnston, recebe constantemente entre os animadores a denominação de
“Bíblia da Animação”. Certamente, considerando o termo como uma referência a
um livro que se tornou indispensável a todos que buscam conhecer os princípios
do cinema de animação, esse termo não é superlativo. E, para aqueles que
buscam compreender especificamente o cinema de Walt Disney, esse livro torna-
se o pré-requisito, fundamentando com maior profundidade as análises dos filmes
produzidos pelo estúdio, pois condensa parte do conhecimento artístico e da
percepção estética desenvolvida por Walt Disney, por seus artistas e
colaboradores.
Por sua estrutura dramática, o cinema clássico de Walt Disney liga-se a
D.W. Griffith e, por sua opção pela fantasia, fincou suas raízes no cinema de
Georges Méliès, que dominava o aparelho cinematográfico para transformar a
realidade em ilusão e fantasia. Tanto Méliès quanto Disney optaram por um
cinema que desse ao espectador a possibilidade de se deslumbrar e de se
encantar com a construção de um universo só possível de ser exibido pela
capacidade ilimitada do cinema. Méliès e Disney compartilharam a opção pela
ilusão e pelo espetáculo. O primeiro, manipulando a realidade para alcançar a
ilusão. Disney, criando a ilusão para alcançar a realidade. Ambos dedicaram-se ao
cinema que deve ser construído muito antes de ser filmado. O cinema planejado
detalhadamente, trabalhado com disciplina e dedicação integral, para proporcionar
o êxtase da surpresa, do encantamento e do riso, de forma a realizar todos os
desejos do espectador pela arte mágica da luz e das sombras. A obra de Georges
Méliès, fundamentada na arte e na história, renasce sempre que se permite ao
cinema manipular a realidade para alcançar a magia.
O cinema de Disney, também
marcado na história, sobrevive ainda em seu estúdio e em cada filme animado,
tornando-se uma das mais fortes influências cinematográficas do século XX.
238
Walt Disney objetivava dar a seus personagens e ao mundo que habitavam
a impressão de realidade, ou seja, “aquilo que existe efetivamente. Real.”
1
. Walt
Disney deu vida ao mundo existente na imaginação. Aqui, impressão de
realidade implica a busca em dar forma real visível e audível, e também capaz
de permitir ao espectador suprir outros sentidos, não possíveis de expressão
fílmica, como tato, olfato e paladar, pela representação dos personagens e do
ambiente, e da interação entre esses elementos. O cinema de animação de Walt
Disney se distingue pela opção pelo realismo ou, mais exatamente, pela
impressão de realidade que, ao contrário do cinema live-action, não obedece a
uma naturalidade à qual a fotografia parece favorecer. É necessário esclarecer
que a impressão de realidade procurada por Walt Disney foi uma opção de criação
artística e estética, e não temática, visto que o cinema clássico de animação por
ele desenvolvido nunca almejou diretamente a realidade, optando pelas fábulas e
pelas histórias de mundos e personagens mágicos e encantados.
A série Silly Symphonies foi a primeira e a mais importante abertura para as
experiências na construção do cinema de animação de Disney, tanto por sua
duração e produção, quanto por sua ampla receptividade para as novas idéias.
Em um processo de constante intercâmbio de influências com as séries dos
personagens, que se complementaram, permitindo aos artistas da Disney
desenvolver características que apenas personagens inéditos possibilitavam e
outras que eram características próprias dos personagens das séries.
O processo de intercâmbio não se limitou ao ambiente interno do estúdio. O
estúdio Disney foi um eficiente laboratório de reaproveitamento e reciclagem de
técnicas e idéias. Muitas dessas, vieram naturalmente sem uma percepção
consciente, pois eram, de certo modo, de senso comum, pairando sobre o
ambiente artístico e natural dos artistas. Um dos diferenciais da Disney foi o tino
investigativo e (quase) científico que foi dado a essas pesquisas temáticas e
técnicas. Nunca, até então, um estúdio havia investido tanto tempo e recursos no
trabalho de base: planejamento, treinamento, testes, estudos, pesquisa e ensino
são termos que se tornaram essenciais ao cinema de animação. Como visto, em
1
Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
239
grande parte, esses fundamentos sempre existiram na arte e na indústria da
animação o diferencial de Disney foi a sistematização e continuidade de sua
aplicação, como um conjunto eficiente de ferramentas, técnicas e estratégias,
direcionados a objetivos bem definidos, com a finalidade de atender a uma
demanda e a um público bem conhecido, que ansiava, sempre, ser surpreendido e
extasiado pelos desenhos animados criados pelos artistas do estúdio.
Um dos mais notáveis processos de trocas de experiência acontecia com
os outros estúdios e realizadores. A política agressiva de contratação de mão-de-
obra empreendida pelo estúdio Disney, principalmente durante a década de 1930,
levou muitos artistas formados em outras escolas e estúdios a imprimir a sua
marca no estilo disneyano. É certo que isso significou um grande ajuste dos
próprios estilos desses ao estilo do estúdio.
A troca de experiência e o ambiente competitivo entre diversos estúdios são
sempre mencionados pelos vários artistas e realizadores da época, bem como
pelos estudiosos que se dedicaram ao cinema de animação. A rivalidade
construtiva entre o estúdio Disney e estúdio Fleischer, com algumas passagens
significativas, oferece alguns exemplos de ação e reação entre as forças que
animavam o cartoon cinematográfico. A criação de Fitz, o cãozinho do palhaço Ko-
Ko, foi uma resposta dos Fleischer ao aparecimento de Mickey, que tirou do
personagem nova-iorquino o centro do palco”. Também, a maior de todas as
criações do estúdio, Betty Boop, foi identificada por Richard Fleischer como uma
busca de reação ao crescimento do fenômeno Disney
2
. Popeye somou-se a Betty
Boop que, até 1933, era a única concorrente do estúdio ao apelo de Mickey e,
conforme Richard Fleischer, tornou-se até mesmo mais popular do que o
camundongo de Disney
3
. Richard Fleischer revela:
Quase desde o princípio, Walt Disney foi uma pedrinha chata no sapato
de meu pai, uma pedrinha que, eventualmente, se transformou em uma
rocha. Max nunca falou muito sobre isto, mas os constantes triunfos de
Disney nos prêmios, pela beleza e a animação graciosa de seus
2
FLEISCHER, Richard. Out of the inkwell: Max Fleischer and the animation revolution. Lexington:
University Press of Kentucky: 2005. p.50.
3
FLEISCHER. p.55. No original, “Eventually, Popeye became more popular than even the mouse”.
240
cartoons, irritavam. Era bem conhecido na indústria que, devido a
qualidade de vencedores de prêmios dos cartuns de Disney, eles eram
muito caros, e a Companhia de Disney estava, freqüentemente, perto de
ficar sem dinheiro. Uma vez perguntei para meu pai se ele havia
invejado a habilidade de Disney em atrair tantos louvores. A resposta
dele foi direta e reveladora. "Sempre se lembre de uma coisa", ele disse.
"Você não pode comer medalhas."
4
A resposta de Max Fleischer não esconde a importância desses prêmios,
não apenas pelo reconhecimento dos filmes, mas também por reforçarem a
posição da nova potência da indústria do cinema de animação. E muitas das
ações dos estúdios competidores foram reações às estratégias do estúdio de
Disney.
A relação de trocas, e de ação e reação, entre o estúdio de Disney e os
demais estúdios e realizadores foi tão intensa e tão rica que, por si mesma,
merece um estudo específico e aprofundado. Mesmo se escolhido para isso
apenas um estúdio, seja o próprio estúdio Fleischer, a Warner Bros. ou outro, este
estudo por certo ajudaria a compreender com maior profundidade o
estabelecimento e desenvolvimento da expressão cinematográfica da indústria do
cinema de animação.
A série Silly Symphonies foi também um motivo de estímulo competitivo
para o estúdio Fleischer. Segundo Richard Fleischer, seu pai estava tentando
tempos produzir filmes coloridos, mas deparava-se com “um sério caso de timidez
por parte da Paramount”. Foi o lançamento da série Silly Symphonies, em
“glorioso Technicolor”, que levou Adolph Zukor, o homem-forte da Paramount
Pictures “a acender a luz verde” para o Fleischer Studios realizar uma série
colorida. Richard Fleischer complementa:
4
FLEISCHER, p. 73. No original, “Almost from the very beginning Walt Disney was an annoying pebble in
my father's shoe, a pebble that eventually grew into a rock. Max never talked about it much, but Disney's
constant winning of awards, for the beauty and graceful animation of his cartoons, rankled. It was well
known in the industry that, because of the award-winning quality of Disney's cartoons, they were too
expensive, and the Disney Company was frequently close to going broke. I once asked my father if he ever
envied Disney's ability to cop so many accolades. His answer was straightforward and telling. "Just
remember one thing," he said. "You can't eat medals."”
241
Essa nova série, Color Classics, começou com três pontos de
desvantagem. Em primeiro lugar, não foi a primeira série de cartum
animado a ser produzida a cores. Segundo, Disney tinha amarrado o
processo de três-cores da Technicolor com um contrato exclusivo para
produção de cartum, assim Max não poderia usá-lo. Ele teve que se
conformar, ao invés, com o processo de duas cores da Cinecolor. Em
terceiro, comparado com o encantador título da série de Disney, Silly
Symphonies, Color Classics era evidentemente fraco
5
.
Foi também como estratégia de enfrentamento a Disney que Max Fleischer
decidiu produzir um filme, em dois rolos, com a maior estrela feminina da
Cartoonlândia”, também utilizando seu próprio e inovador processo
estereoscópico
6
. Branca de Neve e os Sete Anões também levou a uma nova
reação do estúdio, motivada por Adolph Zukor, e Max Fleischer “foi informado de
que a Paramount queria um desenho animado de longa-metragem colorido”
7
.
Desse modo, As Viagens de Gulliver (Gulliver’s Travels, EUA, 1939) teve sua
première em 18 de dezembro de 1939, em Miami Beach, no Sheridan Theatre, e
em uma apresentação simultânea, em um segundo cinema, o Colony, pois apenas
uma sala não foi capaz de atender a grande procura
8
.
Esses importantes momentos demonstram como as ações de Walt Disney
mobilizavam a indústria do desenho animado. Do mesmo modo que os Fleischer e
a Paramount, os outros estúdios também elaboraram estratégias para se
posicionarem frente ao avanço do estúdio Disney. Algumas resultaram em
respostas o ricas e importantes que precisam ser tão estudadas e
compreendidas como a própria trajetória da Disney. Outros fizeram o bastante
para sobreviver no disputado campo do desenho animado.
5
FLEISCHER. p. 83. No original, This new series, Color Classics, started out with three strikes against it.
First of all, it wasn't the first animated cartoon series to be produced in color. Second, Disney had
Technicolor's three-color process tied up with an exclusive contract for cartoon production, so Max couldn't
use it. He had to settle instead for the two-strip Cinecolor process. And third, compared to the charming
Disney series title Silly Symphonies, Color Classics was just plain dull.”
6
FLEISCHER, p. 84.
7
FLEISCHER, p. 94.
8
FLEISCHER, p. 102.
242
O conhecimento da trajetória do cinema de animação, visto pelos aspectos
técnico, artístico e estético, é essencial aos realizadores contemporâneos, pois
ajudam a perceber e a compreender nuances dos vários fatores envolvidos no
desenvolvimento do desenho animado. algum tempo, as técnicas de animação
deixaram de ser importantes apenas para a indústria do cinema, assumindo
posição de destaque na indústria dos jogos eletrônicos, que, a cada dia, exige
melhores e mais sofisticadas animações. Isso é válido também nas indústrias e
áreas de pesquisa que envolvem a percepção de movimento e de ações
humanas, de animais e outras, bem como em qualquer área que se faça
necessário compreender como se desenvolvem as linguagens, os meios de
expressão e os digos, principalmente os que dizem respeito à comunicação
visual. E também todas as necessidades de simulação audiovisual de seres
animados e ambientes, inserindo-se por sua especificidade, em quase todas as
áreas do conhecimento.
O cinema de animação se fundamenta na construção de movimentos a
partir do controle de uma matriz unitária o quadro (frame). Contudo, essa
construção tem dois requisitos básicos: a animação jamais deve passar a
impressão de ser difícil, ou seja, deve se apresentar como bailarinos que, ao
dançarem, fazem de seus corpos instrumentos que exprimem sensações precisas
sem denotar o esforço exigido. E o movimento não pode ser apenas mecânico,
tem de possuir a fagulha (energia) da expressividade. Essa fagulha, ou sopro, é o
que transmuta movimentos mecânicos em arte, retirando-os do mundo real e
alçando-os à esfera da criação. A boa animação traz a mesma qualidade do
trabalho do dançarino, construída através do desenvolvimento técnico e artístico
do animador que, se não tiver um completo domínio sobre sua cnica, acabará
por transmitir ao seu trabalho as deficiências de uma animação inexpressiva ou
confusa. A intensidade e força daquela fagulha dão vida e alma ao cinema de
animação. É pela presença do ignescente elemento expressivo que a arte se
manifesta no cinema de animação. Em outras palavras, é pela presença do toque
humano que existe a arte. A arte que fundamenta o cinema de animação é a
mesma arte que fundamenta o ser humano.
243
O cinema de animação desenvolvido por Walt Disney reafirma algumas das
estratégias do cinema clássico, particularmente, de sua estrutura dramática. Jorge
Furtado sintetiza algumas das características do cinema clássico:
Se a estrutura dramática do cinema "clássico" pode ter algo de natural e
orgânico, seus procedimentos narrativos o apenas convenções
eficientes: personagens que desconhecem a presença da câmera,
atuam e falam segundo o que se convencionou chamar de naturalismo;
cenas que mostram aquilo que serve ao desenvolvimento da fábula;
cenários, figurinos e situações que simulam uma realidade possível;
nada de dúvidas ou ações sem justificativa. A linguagem deve
permanecer escondida, de modo que o espectador em nenhum
momento lembre-se de estar no cinema. O padrão é a ficção, onde a
"suspensão da descrença" permite usufruir com segurança o prazer do
jogo dramático.
9
Essa descrição ajusta-se ao cinema clássico de Walt Disney, mesmo
considerando de antemão que os personagens de desenho animado não são os
mais apropriados ao naturalismo fotográfico, o que torna muito maior o desafio de
Disney. Paradoxalmente, o cinema de Walt Disney investe na simulação desse
naturalismo, aproximando-o da poesia, no conceito platônico
10
. Ao mesmo tempo
em que perde em similaridade com o real, o desenho animado traz em si a força
do índice
11
e o poder da síntese. Deve-se ressaltar que o cartoon de Disney
mantinha-se como elemento indispensável não apenas para os seus
empreendimentos, mas também como parte essencial do desenvolvimento técnico
e estilístico.
Em alguns filmes, notadamente dentro do cartoon, faz parte do humor
estabelecer “contato visual” entre o personagem e o espectador, aumentando o
9
FURTADO, Jorge. O sujeito extraordinário e a mimesis camuflada: a representação da realidade no
cinema. Conforme www.casacinepoa.com.br/port/conexoes/sujeito.htm, acesso em 20 jun 2006.
10
O que acaba por aproximá-lo da definição platônica poesia e de mimesis, ou de simulacro do simulacro: “O
poeta faz simulacro com simulacros, assim afastado do vero a enorme distância”. Cf. Platão, A República.
Livro X.
11
2.Semiol. Tipo de signo que, em oposição simultânea ao ícone e ao símbolo, mantém relação natural causal,
ou de contigüidade física com o referente (p. ex.: uma nuvem negra no céu indicando chuva; uma pegada
indicando a passagem de alguém). Conforme Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0
244
vínculo entre os dois. Em outros casos, o olhar do personagem para o espectador
busca simular a participação deste pela presença da câmera, denunciando a ação
de um invasor do espaço-ambiente dos personagens. No primeiro modo, o
objetivo é a cumplicidade e/ou o humor. Como exemplo, quando o patinho feio, de
1932, olha em direção ao espectador, ele busca sua cumplicidade, compartilhando
sua desolação. No segundo caso, o objetivo é fazer com que o espectador sinta-
se presente no ambiente: se ele pode ser visto é porque está presente, ou seja,
ele “participa” do drama, como na seqüência de O Velho Moinho, na qual os
animais olham em direção ao espectador, demonstrando curiosidade ou
incômodo, mas sempre denunciando a presença daquele que assiste ao
espetáculo. O conceito de ação dramática se aplica aqui ao espectador, que, por
sua ação, provoca a re-ação dos personagens e se percebe interagindo com os
mesmos.
Para Aristóteles, a tragédia diferenciava-se da epopéia pela ação
dramática: na tragédia a ação era conduzida pelo próprio personagem, com o
propósito de provocar a catarse do espectador, enquanto na epopéia a ação é
conduzida pelo narrador e não buscava a catarse
12
. Assim, o cinema de Disney,
ao recriar a realidade, também forja a presença ativa do espectador naquele
universo. Desse modo, no cinema de Disney encontram-se incorporados tanto os
traços essenciais da dramaturgia clássica (tragédia) como os principais
fundamentos epopéicos.
A importância do trabalho desenvolvido na década de 1930 e no início dos
anos de 1940 ultrapassa a contribuição técnica ao atingir o cerne criativo da
composição de personagens dramáticos, tocando essencialmente o entendimento
desse conceito aristotélico. O cinema clássico de Walt Disney deu aos
personagens do universo do desenho animado um papel semelhante ao dos
atores da dramaturgia clássica ou do cinema clássico. Deve-se recordar que a
entrada de Disney no cinema de animação se deu através da adaptação de
fábulas e histórias infantis populares, recontados e modernizados conforme
anunciava o realizador. Portanto, alguns fundamentos da arte dramática clássica
12
ARISTÓTELES. Arte poética. Capitulo V.
245
aparecem com certa naturalidade no cinema de Disney, principalmente a partir da
necessidade do desenvolvimento da técnica de animação que permitisse a
impressão de realidade e de uma estrutura narrativa que desse ao filme,
principalmente ao longa-metragem, a capacidade de apreender a atenção e a
emoção do espectador.
Os elementos que compõem o cinema de Disney já estavam, em sua
maioria, presentes nas encenações da tragédia grega. Pode-se perceber a grande
semelhança entre esses. Voilquin e Capelle afirmam que:
A tragédia, pela imitação dos caracteres e das paixões, valendo-se do
concurso da música, do canto, da dança e do espetáculo, pretende
provocar um prazer que lhe é próprio, incutindo no ânimo do espectador
o temor e a compaixão. Aristóteles investiga as condições em que este
resultado é mais seguramente obtido; como técnico, estuda a feitura das
obras que melhor asseguram esse prazer
13
.
Os objetivos do cinema clássico de Walt Disney são semelhantes: provocar
o temor e a compaixão para se alcançar a purificação pela catarse. Entretanto, ao
contrário do herói trágico, o herói – ou protagonista – de Disney tem redenção. Ele
se salva ao final e Disney, sempre que pode, irá negar a morte, ou mais
especificamente, não a mostrará, seguindo o roteiro do cinema clássico norte-
americano, permitindo que ela exista apenas implícita através dos
acontecimentos.
Para o cinema de animação, e para toda a arte ou indústria que envolva as
possibilidade e necessidades ali encontradas, o domínio do desenho e do
pensamento imagético fundamentado na arte é de extrema importância. E adquiriu
interesse muito maior para o cinema de Disney a partir do momento em que o
estúdio empreendeu o desafio da impressão de realidade.
No processo do estúdio Disney, as histórias não eram contadas de maneira
habitual. Conforme observam Frank Thomas e Ollie Johnston, as histórias eram
desenhadas porque
13
ARISTOTELES. Arte retórica e arte poética. trad. Antonio Pinto Carvalho; introdução e notas Jean
VOILQUIN e Jean CAPELLE; Rio de Janeiro : Ediouro, [199-].
246
algumas imagens estimulantes podiam sugerir muito mais sobre o
potencial de entretenimento em um episódio do que qualquer página de
palavras. Mais do que isso, nossas histórias eram mantidas flexíveis até
muito depois da primeira animação ter sido feita
14
.
Isso pode ser constatado através do valor atribuído pelo estúdio aos
desenhos, conceitos ou esboços de inspiração, ao storyboard e, especificamente
na animação, à opção pelo desenho mais expressivo e de estilo livre (rough
drawings and free style) que davam mais vivacidade à animação
15
.
Uma das imagens mais emblemáticas para a animação de personagens de
Disney é aquela que mostra Norm Ferguson examinando o seu reflexo através de
um espelho, em busca de sua própria expressão, que é dada a Pluto (Fig.111). A
força dessa imagem deve-se principalmente ao seu valor como um símbolo capaz
de sintetizar a busca dos artistas de Disney pelos índices de vida real que davam
aos seus personagens a impressão de realidade e de vida. Essa imagem reafirma
o pensamento de Walt Disney: “Eu definitivamente sinto que não podemos fazer
as coisas fantásticas baseadas na realidade, a não ser que primeiro nós
conheçamos a realidade”
16
.
14
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Olie. p.27. No original, But it also came from new ways of looking at
stories. Ours were not written down in the usual way; they were drawn, because a few stimulating pictures
could suggest far more about the potential entertainment in an episode than any page of words. More than
that, our stories were kept flexible until long after the first animation had been done”.
15
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Olie. Cf.: p.39-41.
16
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p.71 (epígrafe). No original, “I definitely feel that we cannot do the
fantastic things based in real, unless we first know the real”.
247
Fig. 111 – Disney – Norm Ferguson: estudo de expressões para Pluto.
Essa imagem também remete a um fato da história do estúdio e do cinema de
animação, que é destacado por Frank Thomas e Ollie Johnston:
É claro, o potencial de ter um personagem que realmente parecesse
pensar sempre tinha estado lá, nas rotinas que Walt tinha imaginado,
mas ninguém sabia como obter tal efeito. Nem mesmo era percebido o
quanto tal adição poderia incrementar a apreciação do público e o
envolvimento nos filmes. Isso tudo mudou em um dia quando foi
animada uma cena de um cachorro que olhou para a câmera e bufou.
Milagrosamente, ele tinha ganhado vida! Walt rapidamente apreciou a
diferença e logo foi o público. O ano era 1930 e o animador, Norm
Ferguson
17
.
17
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p.74. No original, “Of course, the potential for having a character
really appear to think had always been there in the routines that Walt had envisioned, but no one knew how to
accomplish such an effect. It was not even realized how much such an addition would increase the audience's
enjoyment and involvement in the pictures. That all changed in one day when a scene was animated of a dog
who looked into the camera and snorted. Miraculously, he had come to life! Walt was quick to appreciate the
difference and so was the audience. The year was 1930 and the animator Norm Ferguson”.
248
É notável a importância de fazer o personagem parecer pensar. Não basta
o personagem se mover dentro do espaço criado para ele. É preciso torná-lo
consciente desse espaço e dar cumprimento à máxima de Descartes “Penso,
logo existo.”. Esse aspecto torna-se um elemento essencial para a criação do
novo universo. O personagem deve ter (ou aparentar ter) consciência do seu
mundo e dos seus próprios atos. O personagem passa a ser o fundamento
daquele mundo: a imagem criada para habitar e conduzir a ação dramática
daquele mundo. De certo modo, pode-se afirmar que o personagem é a medida
de todas as coisas”
18
, no mundo da animação. Por isso, pretende-se afirmar que o
mundo animado será tão expressivo quanto a qualidade de seus personagens, ou
seja, o personagem torna-se o sujeito da ação dramática, e é a sua capacidade (e
do animador) em convencer o espectador de que ele age por si mesmo,
consciente, que permite ao público se identificar em suas ações.
Os autores também assinalam que, antes de 1930, nenhum personagem
parecia ter um processo real de pensamento e apenas reagiam a algo
acontecendo, “enxergando” uma possível solução
19
. Esse tempo pré-pensamento
no universo da animação impossibilitava o desenvolvimento de personalidades
mais complexas para os indivíduos animados, levando os artistas a criar
diferenciações físicas para suporte do caráter dos personagens. Ressalte-se que,
na tragédia grega, as máscaras foram introduzidas também como forma de realçar
o caráter dos personagens, dando a esse a origem etimológica e seu significado
original. Persona era palavra latina para designar a máscara utilizada no teatro
romano, que foi antecedida pelo grego prospora. A máscara tinha duas funções,
ambas direcionadas a atenuar as dificuldades causadas pela distância entre o
espectador e o ator: amplificar a voz dos atores e demonstrar o caracter (papel) do
ator. Ana Maria Schultze afirma que,
18
Protágoras de Abdera (Abdera, 480 a.C. - Sicília, 410 a.C.). A frase original é “o Homem é a medida de
todas as coisas”.
19
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p.74. Como analisado no Capítulo 2, essa capacidade de parecer
pensar foi um dos fundamentos e um dos principais atributos dados por Otto Messmer ao gato Fèlix, que o
elevaram a grandeza de primeiro grande astro do desenho animado, transformando-o na grande influência
para artistas de seu tempo. Certamente, os conceituados artistas da Disney referem-se ao grande incremento
técnico, artístico e estético que, a partir da década de 1930, deu ao cinema de animação muito mais recursos
para aprimoramento desse atributo e de sua expressividade.
249
Assim, uma máscara pode ter várias finalidades, inclusive mortuária,
como afirma o próprio Lévi-Strauss. Entre outras, máscaras eram
usadas na antiga Grécia e Roma para festivais e teatros. Cada máscara
no teatro grego representava um personagem. Com o fim de tais
civilizações, as máscaras caíram em desuso. A palavra grega para
designar máscara é persona, mesmo conceito utilizado por Jung [v] para
definir uma máscara psicológica, isto é, modos diferentes dos quais nos
valemos em situações variadas em nossa vida. Persona é também a raiz
da palavra personalidade, que comumente associamos ao conjunto de
características de uma pessoa, melhor dizendo, sua alma. E bem diz o
ditado popular: "Os olhos de uma pessoa são o espelho de (ou porta de
entrada para) sua alma".
20
A personalidade pode ser definida como “o elemento estável da conduta de
uma pessoa; sua maneira habitual de ser; aquilo que a distingue de outra”
21
.
Sendo assim, dar personalidade ao ator animado equivale a lhe dar a capacidade
de se tornar um “ser” distinto de outros seres, sejam estes da realidade ou sejam
da ficção. Dar personalidade é dar algo de humano a alma humana ao ator
criado pela arte. Assim, neste caso, animar é dar personalidade a seres
inanimados.
Afirmamos que a animação clássica, através do desenvolvimento dos
princípios fundamentais da animação, foi a adaptação de Walt Disney das leis da
física para o universo da animação. Deve-se notar que o domínio das leis da física
de nada vale se não existe a compreensão das características gestuais e
psicológicas, intimamente ligadas às questões da personalidade-alma. Deve-se
lembrar que, dentro dos doze princípios fundamentais, os que representam e
aplicam essas características são o Stagging e o Appeal e que todos os princípios
estão inter-relacionados. A animação nasce da síntese desses fundamentos,
interrelacionados, e não a partir da soma de suas partes isoladas.
20
SCHULTZE, Ana Maria. As máscaras da morte. Em, www.studium.iar.unicamp.br/sete/5.html?=2.html,
acesso 25 jun 2006. A nota referida no texto é [v] Persona: "... máscara ou face que uma pessoa põe para
confrontar o mundo."
21
Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
250
Se o estilo rubber hose deu à animação do cartum americano a liberdade e
a flexibilidade de criação ao tornar fluidos os membros dos personagens, o estilo
disneyano expandiu aquela liberdade ao dotar não apenas os membros e sim o
corpo todo com esta flexibilidade da forma. Desse modo, se poderia compreender
o estilo de Disney, fortemente baseado no squash and stretch, como sendo a uma
adaptação e expansão da liberdade e energia originarias do estilo rubber hose.
Os filmes de Disney podem comportar o papel do narrador
22
e o diálogo,
mas são basicamente filmes construídos e narrados imageticamente. Daí a grande
importância do storyboard para o cinema de animação, sobretudo, para a
animação disneyana. O storyboard criou a possibilidade da pré-edição, não-linear,
e deu aos criadores da história uma grande versatilidade para manejar as cenas e
seqüências dentro da estrutura narrativa clássica ou de forma mais livre, na
estrutura do cartoon.
Um elemento tão estimulante quanto esse é o fato de que as soluções
encontradas pelo estúdio foram construídas sobre o alicerce da educação
23
e do
ensino de arte empreendido pelo próprio estúdio aos seus artistas. Donald W.
Graham tornou-se, desse modo, um dos nomes mais importantes no
desenvolvimento da arte da animação. Contratado pelo estúdio em 1932, ele
continuou a trabalhar no estúdio até 1941. Don Graham ensinava desenho de
linha, composição, e análise de ação. Seu estilo no ensino de arte consistia não
em criticar o desenho dos alunos, e sim em fazer com que o artista analisasse
porque ele desenhava daquele jeito, permitindo que o artista desenvolvesse o
pensamento crítico de sua arte
24
.
Hoje, é recorrente encontrar em livros e fóruns de debates sobre cinema
animado, a observação de que para realizar (bons) filmes na modalidade é
necessário o bom domínio das técnicas e princípios da animação convencional.
22
O aparecimento do narrador como interlocutor dos personagens (Disney) aparece, sobretudo, após a II
Guerra Mundial.
23
EDUCAÇÃO: 2. Processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser
humano em geral, visando à sua melhor integração individual e social./ 6. Aperfeiçoamento integral de todas
as faculdades humanas. In: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
24
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. p.538. Donald W. Graham, se interessou pela arte enquanto
estudava engenharia na Standford University, lecionando no Chouinard´s Art Institute, de Los Angeles, que
foi absorvido pelo California Institute of the Arts, fundado por Disney. Após 1941, ele continuou como
consultor do estúdio até 1976, data de sua morte.
251
Deve-se perguntar, inicialmente, se existiria outra maneira de realizar esses
filmes. Por mais automação e recursos que os modernos programas da área
possam prover aos animadores, eles de pouco ou nada valem se esse profissional
não tiver uma base consistente de educação em arte e, especificamente em
cinema e cinema de animação.
O mais importante a considerar é que o cinema de animação, como arte e
como indústria, encontra-se constantemente em expansão. E o único modo de
usufruir todas as suas possibilidades é a formação de profissionais, artistas e
técnicos, preparados para os todos os desafios. O exemplo de Disney é conhecido
de todos, mas muito poucos países e profissionais o apreenderam. E a boa
compreensão do cinema de Disney, bem como dos outros estúdios e realizadores,
é parte essencial da formação de profissionais qualificados para atuar, não apenas
como artistas ou animadores, mas em todas as atividades relacionadas. Com isso,
não se determina a necessidade de seguir o estilo disneyano e sim a importância
de se construir o próprio, a partir de escolhas conscientes e maduras, baseadas
em conhecimento e opção e não em desconhecimento e idéias pré-concebidas.
Percebe-se que os maiores impulsos para o desenvolvimento técnico e
estético do cinema de animação foram alcançados pelos artistas que se lançaram
nessa arte e pelos técnicos que trabalharam ao lado desses artistas, tendo um
entendimento completo dos objetivos, possibilidades e desafios que deveriam
vencer. De modo semelhante ao cinema live-action, o desenho animado
desenvolvido pela indústria cinematográfica gerou obras-primas da animação e
inúmeros filmes, cuja qualidade exemplar deve ser destacada para e por todos
aqueles que pretendem se aprofundar do domínio e no conhecimento da arte da
animação.
Em 1994, no prefácio de seu livro – Cartoons: one hundred years of cinema
animation –, o historiador Giannalberto Bendazzi considerou que a história da
animação estava entrando em uma fase completamente nova, e que muitos anos
ainda transcorreriam antes que fosse possível descrever a sua real forma bem
como analisar seus eventos. Mesmo que muitos dos homens e mulheres que o
252
construíram estejam ainda vivos e ativos, completa, o cinema de animação pode e
deve ser analisado. Bendazzi afirma:
“Além disso, o estudo sobre animação é bastante recente. Os primeiros
trabalhos sérios não têm mais do que vinte anos. Eles tiveram que
defrontar um grande número de equívocos, que continuam a enfrentar,
de muitos espectadores, críticos, historiadores de cinema live-action”
25
.
O autor italiano constata que “infelizmente, a literatura histórica e crítica em
animação é comparativamente uma das mais escassas no campo de cinema”.
Bendazzi conclui, referindo-se ao seu livro: Os capítulos seguintes têm como
objetivo demonstrar que, pelo contrário, a animação merece ser estudada e que
este rico e eclético campo inclui alguns dos mais valiosos trabalhos de nosso
tempo”.
Essa breve e incisiva análise de Giannalberto Bendazzi, endossada pela
sólida reputação de seu autor
26
, apontam para a importância desse campo de
estudo, de sua complexidade e suas inúmeras possibilidades. Nota-se que as
considerações partem de um pesquisador europeu, com acesso às facilidades
naturais de um país e um continente economicamente forte e culturalmente mais
bem assistido, com maiores preocupações e mais recursos para investimentos em
áreas de formação, não apenas técnicas, mas também artísticas. O que pensar
quando se comparam essas condições com aquelas encontradas na América
Latina e, principalmente, no Brasil?
A situação brasileira confirma o início de uma nova era do cinema de
animação. Nunca antes em nossa história esse tema despertou tão amplos e
profundos interesses. São vários os fatores que motivam esse interesse, em
25
Bendazzi, (Prefácio: xvi). No original, The history of animation is thus entering a completely new stage,
and it will be years before it will be possible to describe its real shape and analyse its events. This means that
the first century of animation's life is a completed era, which we can and should analyse like all things
belonging to the past, even though many of its men and women are alive and active at the time of writing.
Besides, studies on animation are rather young. The first serious historical works go back no more than
twenty years. They have had to face a large number of misunderstandings which still endure among many
filmgoers, critics, historians of live action cinema”.
26
Cf: Curriculum Vitae – Bendazzi. Disponível em <www.lapisvillage.net/static/cur_bendazzi.htm>. acesso
em 5 jan. 2007.
253
grande parte ligado aos avanços tecnológicos que aumentam a possibilidade de
acesso aos filmes, aos jogos, e a todos os produtos que agregam as
características produzidas a partir das técnicas do filme animado, além da maior
facilidade de acesso aos meios de produção e distribuição patrocinados pelas
novas tecnologias e pelas novas mídias. Então, porque não se verificou no Brasil
um aumento tão significativo dos filmes de animação, que refletissem o aumento
expressivo da qualidade e do acesso às novas tecnologias? Qual o motivo de,
decorridos dez anos do lançamento de Cassiopéia (Brasil, 1996), um dos longas-
metragens pioneiros no Brasil e no mundo na tecnologia digital de animação, não
ter aparecido ainda um movimento ou um grande filme brasileiro de animação?
Certamente a análise da trajetória histórica e técnica do cinema animado
apontam para algumas respostas. Em grande parte, os nomes que foram e são
importantes nessa trajetória tiveram alguma formação artística: dos pioneiros até
os profissionais altamente especializados dos anos dourados da animação.
Quando necessário, essa formação foi, muitas vezes, complementada pelos
estúdios, através do ensino de artes.
No Brasil existem, com relativo êxito, duas correntes no cinema de
animação: a primeira, mais forte e grande geradora de empregos e prêmios, o
cinema de animação publicitário. A segunda, de menor importância econômica,
mas de grande valor sócio-cultural, apresenta de tempos em tempos algum nome
de interesse, que rapidamente é absorvido pela primeira corrente ou que luta
bravamente, numa atitude heróica, para permanecer na atividade (isso, quando
não abandona totalmente o cinema de animação e mesmo o campo das artes).
O interesse despertado pelo cinema de animação se verifica pela crescente
oferta de cursos, desde oficinas de iniciação, passando pela graduação em curso
superior tecnológico
27
ou graduação plena, até as pós-graduações. Decerto a
27
Os Cursos de Educação Profissional Tecnológica de Graduação são de graduação, de vel superior,
abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente, abrangendo os diversos setores
da economia. Os graduados nos Cursos Superiores de Tecnologia denominam-se tecnólogos e são
profissionais de nível superior, especializados em segmentos de uma ou mais áreas profissionais com
predominância de uma delas. Atualmente os Cursos são classificados em uma das 20 áreas profissionais
definidas na legislação, a saber: Agropecuária, Artes, Comércio, Comunicação, Construção Civil, Design,
Geomática, Gestão, Imagem Pessoal, Indústria, Informática, Lazer e Desenvolvimento Social, Meio
254
produção se ampliará, devendo ser acompanhada por um aumento da qualidade,
em maior ou menor proporção. Nesse caso, considerando-se que também fora
existem todos os benefícios originados pelos avanços tecnológicos, o que nos
diferencia dos outros países, principalmente os desenvolvidos?
Em sua maior parte, os países desenvolvidos consideram o cinema de
animação como uma área de importância vital e estratégica, tanto em termos
econômicos quanto culturais. Atualmente, quando pensam em cinema de
animação, não trabalham apenas com a criação e o patrocínio de festivais e de
leis de incentivo. O foco desses países é a ampliação e/ou a implantação de uma
indústria de cinema de animação, forte, expressiva e dinâmica.
No Brasil, país onde ainda predominam conceitos que vêem o ensino de
arte como supérfluo, em sua maior parte, os alunos que chegam aos cursos
superiores de arte e de cinema tiveram um acesso bastante limitado ao ensino e à
educação em arte. Portanto, devemos ainda trabalhar com a quase inexistência de
um número significativo de profissionais realmente habilitados para preencher as
várias especialidades profissionais, que se fundamentam nas técnicas e no
conhecimento específico das artes. Isso coloca o Brasil bastante afastado da
possibilidade efetiva de criação e implementação de uma indústria do cinema de
animação. Sem formação em arte, o desenvolvimento de qualquer área que tenha
nas artes audiovisuais a sua fundamentação torna-se difícil. E, sem essas áreas, o
país se distancia ainda mais dos países que lutam para ocupar e proteger os
mercados, internos e externos.
A abrangência do cinema de animação, bem como do cinema live-action,
deve ser ampliada. Não bastam as ações dirigidas às formações técnica e artística
de profissionais. Os profissionais de outras áreas de conhecimento também têm
de ser incluídos em um processo amplo de educação, que ao cinema e às
artes audiovisuais um lugar que reflita a sua importância para a apreciação crítica
de sua produção.
Ambiente, Mineração, Química, recursos Pesqueiros, Saúde, Telecomunicações, Turismo e Hospitalidade e
Transportes”. Conforme Universidade Santa Úrsula, em www.usu.br/gma/oquee.htm, acesso em 6 jan 2007.
255
A história do cinema de animação comprova que os investimentos nessa
arte oferecem retornos significativos. Qualquer investimento nessa arte e nessa
indústria não desaponta e não demora a apresentar bons resultados, com retornos
tanto financeiros quanto na qualidade da produção. Uma indústria de animação
estabelecida consolida bases perenes para a produção artística e experimental,
não apenas para o cinema de animação, como também para todas as artes e
áreas que tenham vínculos ou necessidade de criação e produção de imagem em
movimento.
Atualmente, o cinema de animação japonês oferece ao mundo inteiro algo
da cultura e do modo de vida nipônicos, do mesmo modo que, durante muitas
décadas, os Estados Unidos fizeram, únicos e soberanos, impor o seu modo de
vida e os seus produtos. Não devemos nos enganar: o cinema de animação é uma
área economicamente importante, mas o seu maior valor é representado pela
perenidade que atribui à cultura que o produz – não sendo um produto comercial e
cultural voltado exclusivamente a audiências infantis, tem na criança o seu maior
público, em uma importante fase (idade) de sua formação, na qual todos os
valores e conhecimentos estão sendo absorvidos intensamente
28
.
No Brasil, com a sua peculiar posição no mercado televisivo e as
possibilidades de expansão das novas mídias a partir da incipiente revolução
digital, apresenta-se um panorama ainda rico de oportunidades. De modo geral, a
descontinuidade dos investimentos é o que inviabiliza a consolidação de uma
tradição em cinema de animação neste país e não o montante investido. E os
investimentos devem ser considerados integralmente educação, ensino, cultura
e condições (qualidade) de vida visando a conscientização crítica e a ampliação
da visão de mundo.
A percepção do panorama histórico, artístico e estético do cinema de
animação permite afirmar que arte, ensino e educação sempre estiveram
vinculadas ao desenvolvimento do cinema de animação. O cinema de animação
foi, desde o seu início, um ambiente contínuo e efervescente de idéias, trocas e
experiências criativas e significativas. O acesso ao acervo filmográfico e
28
E possivelmente, todos os produtos relacionados a esses produtos seo percebidos com a mesma disposição.
256
bibliográfico universal é essencial e imperativo, constituindo-se como elemento
estratégico de preservação e ampliação da educação e da cultura própria de cada
povo.
O cinema de animação, com sua especificidade técnica, estética e artística
é um bem cultural da humanidade e como tal deve ser visto, estudado e
produzido. Aqui, não cabe o juízo de valor que desqualifica a arte pelo predomínio
comercial de sua aplicação. Mesmo esse uso está carregado de significados e de
intenções, que não podem ser desconsiderados por aqueles que realizam filmes,
nem por aqueles que se identificam com a formação de opinião e de
conhecimento.
A arte do cinema de animação é vigorosa e nasce mesmo em ambientes
inóspitos. Um país que se orgulha de sua pluralidade de manifestações culturais
deve promover o acesso a essa diversidade também pela via desta forma de
expressão que tem o poder de conciliar a arte e o entretenimento. Deve-se
permitir, a um público de amplo espectro, a sua apreciação crítica, bem como a
capacidade de sua produção e distribuição. É através desse direito que toda a
nossa diversidade poderá se apresentar.
É essencial viabilizar, também pela arte da animação, as palavras de
Tolstoi:
“Se queres ser universal, fala de tua aldeia”
Nossas aldeias são várias. E várias devem ser as suas representações.
257
257
BIBLIOGRAFIA
ASHLIMAN, D. L. Three Little Pigs and other folktales of Aarne-Thompson type 12.
University of Pittsburgh. Disponível em <www.pitt.edu/~dash/type0124.html>.
AMARAL, Aracy. Arte para quê? a preocupação social na arte brasileira: 1930-1970. São
Paulo: Nobel, 1984.
ANDRADE, Ana Lúcia. O filme dentro do filme: a metalinguagem no cinema. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999.
_____.
Entretenimento inteligente: o cinema de Billy Wilder.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
_____. Arte retórica e arte poética. trad. Antonio Pinto Carvalho; introdução e notas Jean
VOILQUIN e Jean CAPELLE; Rio de Janeiro : Ediouro, [199-].
ARNHEIM, Rudolf. A arte do cinema. Lisboa: Edições 70, 1989.
_____. Arte e percepção visual:uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 1986.
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário Teórico e crítico de cinema. Campinas:
Papirus, 2003.
AUMONT, Jacques. A imagem, Campinas: Papiro, 1995.
_____. As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus, 2004.
_____. A estética do filme. Campinas: Papirus, 2006.
_____. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
BALÁZS, Béla. Estética do filme. Rio de Janeiro: Verbum, s/d.
BARBOSA JUNIOR, Alberto Lucena. A arte da animação: técnica e estética através da
história. São Paulo: Senac, 2002.
BARRIER, Michael. Hollywood cartoons: American animation in its golden age. Oxford:
Oxford University Press, 2003.
BARTHES, Roland et. al. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971.
_____. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1973.
_____. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENDAZZI, Giannalberto. Cartoons: one hundred years of cinema animation. Indianapolis:
Indiana University Press, 1994.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo:
Abril Cultural, 1978 (Os pensadores).
BERENGUER, Xavier. Pioneros de la animación. Institut Universitari de L'audiovisual (IUA).
Disponível em: <http://www.iua.upf.es/~berenguer/textos/pioners/principal_cas.html>.
258
258
BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: The University of Wisconsin
Press, 1985.
BRUZZO,
Cristina (Coord.).
Coletânea lições com cinema: animação
. São Paulo: FDE. 1996.
CABARGA, Leslie. The Fleischer story. New York: DaCapo, 1988.
CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill D; FLOWERS, Betty Sue. O poder do mito. São Paulo:
Palas Athena, 1990.
CANEMAKER, John. Winsor McCay and the art of animation.
In. Winsor McCay: the master
edition. 1 DVD (110 min.). Preto & Branco e colorido à mão. Música (composição e execução): Gabriel
Thibaudeau. New Jersey: Milestone Film & Video and the Cinémathèque Québecoise, 2004.
Disponível
em : <www.milestonefilms.com/pdf/WinsorMcCayPK.pdf>
CANTO E CASTRO, Inácio. CLIP - Inovação em Vídeos nº 8, Construção de videogramas, V -
A Operação de Câmara.
Disponível em <www.dgidc.min-edu.pt/inovbasic/edicoes/clip/clip8/clip8-videog.htm>
CAPUZZO, Heitor. Alfred Hitchcock: o cinema em construção. Vitória: Fundação Ceciliano
Abel de Almeida, 1993.
_____.
Lágrimas de luz: o drama romântico no cinema
. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
CARRIÈRE, Jean-claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006.
CARRINGER, Robert L. Cidadão Kane: o making of. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1997.
CHIPP, Herschel B. Teoria da arte moderna. São Paulo; Martins Fontes, 1999.
COLLINS, Marcia. The Dance of Death in Book Illustration. Columbia: Ellis Library,
University of Missouri, 1978.
Disponível em <www.istrianet.org/istria/visual_arts/history/collins_macabre.htm>
COURTET-COHL, Pierre. Emile Cohl. In: L’association Les Indépendants du 1
er
Siècle
(biographies). Disponível em <www.lips.org/bio_Cohl.asp>.
CRAFTON, Donald. Before Mickey: the animated film, 1898-1928. Chicago: The University of
Chicago Press. 1993
CRAFTON, Donald. Tricks and animation. In: NOWELL- SMITH, Geoffrey (Ed). Oxford
History of World Cinema: The definitive history of cinema worldwide. Oxford: Oxford
University Press, 1997.
259
259
D´ELIA, Celso. Animação, técnica e expressão, In: BRUZZO, Cristina (Coord.). Coletânea
lições com cinema: animação. São Paulo, FDE. 1996.
DENEROFF, Harvey. Max Fleischer: the thin black line. In: Sight and Sound. London: BFI,
October 1993.
Disponível em: http://www.bfi.org.uk/sightandsound/archive/innovators/fleischer.html
DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. São
Paulo: Scipione, 1994.
EBERT, Carlos. Cor e Cinematografia. In: Associação Brasileira de Cinematografia.
Disponível em <http://publique.abcine.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5&infoid=215>
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2004.
_____. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1988.
_____. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
_____. A definição da arte. São Paulo: Martins fontes, 1986.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
_____. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
EISNER, Lotte. A tela demoníaca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ESTEVES, Solange Ramos. Perséfone: o mito.
Disponível em www.mariamaria.com.br/revistamariamaria/edicao04/persefoneomito.php,
FINCH, Christopher. The art of Walt Disney: from Mickey Mouse to the Magic Kingdoms.
Concise ed. New York: Harry N. Abrams. 1999.
FLEISCHER, Richard. Out of the inkwell: Max Fleischer and the animation revolution.
Lexington: The University Press of Kentuck, 2005.
FRIEIRO, Eduardo. Basileu. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
GOMBRICH, E.H. (Ernst Hans). Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação
pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
GRAÇA, Marina Estela. Entre o olhar e o gesto: elementos para uma poética da imagem
animada. São Paulo: Editora Senac, 2006.
HALAS, John; MANVELL, Roger. A técnica da animação cinematográfica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1979.
HALAS, John. et al. Visual scripting. New York: Hasting House, 1976.
JONES, Chuck. Chuck Jones: master of animation.
Disponível em: <www.chuckjones.com/bio.php>
260
260
JOHNSON, David. An Interview with Grim Natwick.
Disponível em <www.animationartist.com/InsideAnimation/DavidJohnson/InterviewNatwick.html>
KAEL, Pauline. Criando kane. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000.
LEONE, Eduardo.
Reflexões sobre a montagem cinematográfica. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2005.
LEVOY, Mark. A Color Animation System Based on the Multiplane Technique. Siggraph 77,
em ComputerGraphics, 11 (2), Nova York, julho de 1977, pp. 65-71.
LO DUCA, Giuseppe Maria. Le dessin animé: histoire, esthétique, technique. Introduction de
Walt Disney. Paris : Editions d'Aujourd'hui, 1982.
MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. São Paulo: Brasiliense, 1998.
_____. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas:Papirus, 1997
_____. SINOPSE: REVISTA DE CINEMA. As três geraçôes do vídeo brasileiro. São Paulo:
Ed. Unesp. N° 7, ano III,. Ago./ 2001, p 22-33.
MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema. São Paulo:
Senac, 2003.
MALTIN, Leonard. Of mice and magic: a history of American animated cartoons. New York:
Plume Books, 1987.
MARKSTEIN, Donald. Terrytoons. In: Don Marstein´s Toonopedia.
Disponível em: <www.toonopedia.com/terrytoo.htm
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990.
MERRITT, Russell; KAUFMAN, J.B. Walt in Wonderland - The Silent Films of Walt Disney.
Baltimore: The Jonhs Hopkins University Press, 1993.
MORENO, Antônio. A experiência brasileira no cinema de animação. Rio de Janeiro: Arte
Nova, 1978.
METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980.
_____. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MOYA, Álvaro de. História da historia em quadrinhos. Porto Alegre: L&PM, 1986.
NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1999.
_____. O expressionismo e o cinema. In: ____ . O expressionismo. São Paulo: Perspectiva,
2002.
_____. O expressionismo e os meios de comunicação. In: ____ . O expressionismo. São Paulo:
Perspectiva, 2002.
261
261
NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras,1995.
NOWELL- SMITH, Geoffrey (Ed.). Oxford history of world cinema: the definitive history of
cinema worldwide. Oxford: Oxford University Press, 1997
OHANIAN, Thomas A. Digital nonlinear editing: editing film and video on the desktop.
Boston: Focal Press, 1998.
PIETZSCHKE, Fritz (Orient.). Novo Michaelis: dicionário ilustrado. Volume I. Inglês-
Português. 6 ed.rev. e aum. São Paulo: Melhoramentos, 1966. p. 982.
PONCET, Marie-Therese. L'esthétique du Dessin Animé. Paris: Nizet, 1952.
PUDOVKIN, Vsevolod. Argumento e realização. Lisboa: Arcádia, 1961.
RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e
filosofia analítica. Volume I. São Paulo: Ed. Senac, 2005.
_____. Teoria contemporânea do cinema: documentário e narratividade ficcional. Volume II.
São Paulo: Ed. Senac, 2005.
RENSIE, Paulo. Histórias em imagens. Disponível em
<www.teorletal.oi.com.br/Pages/historias2.html>.
RODRIGUES, Luiz Oswaldo (LOR). Quadrinhos: história e análise (curso). Belo Horizonte:
Coordenadoria de Cultura do Estado de Minas Gerais, 1979.
SALLES, Filipe. Imagens musicais ou música visual: um estudo sobre as afinidades entre o
som e a imagem, baseado no filme 'Fantasia' (1940) de Walt Disney. 2002. Dissertação
(mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP). Pontifícia Universidade Católica, São
Paulo.
Disponível em www.mnemocine.com.br/filipe/tesemestrado/tesecap2_1.htm,
SANT’ANNA, Afonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo, 1995.
SAVERNINI, Érika. Índices de um cinema de poesia: Píer Paolo Pasolini, Luis Buñuel e
Krzystof Kieślowski. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
SOLOMON, Charles. Enchanted drawings: the history of animation. New York: Wings Book,
1994.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.
TASSARA, Marcelo. Das pinturas rupestres ao computador: uma mini-história do cinema de
animação. In: BRUZZO, Cristina (Coord.). Coletânea lições com cinema: animação. São
Paulo, FDE. 1996.
TARKOVISKI. Esculpir o tempo. Sao Paulo: Martins Fontes, 1998.
262
262
THOMAS, Frank; JOHNSTON, Ollie. The Illusion of life: Disney animation. New York:
Disney Editions. Rev. ed. 1995.
VANOYE
, Francis; Goliot- Lété.
Ensaio sobre a análise fílmica
. Capinas: Papirus,1994.
WIEDEMANN, Julius (Ed.). Animation Now !. Taschen do Brasil, 2004.
WILJEANCOLAS, Jean-Pierre. Nascimento e desenvolvimento da sala de cinema. In: Revista
Eletrônica O Olho da História. 2004.
Disponível em <www.ufba.br/~revistao/artigos/salasdecinema.pdf>
WILLIAMS, Richard. The animator's survival kit: a manual of methods, principles, and
formulas for classical, computer, games, stop motion, and internet animators. London: Faber &
Faber, 2001.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico; a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977.
_____.
A experiência do cinema: antologia
. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.
FILMOGRAFIA
Capítulo 1
A INVENÇÃO DO CINEMA DE ANIMAÇÃO
Peinture à l’envers (Inglaterra, 1898, Birt Acres).
Le Voyage Voyage Dans La Lune (França, 1902, Georges Méliès).
Humorous Phases of Funny Faces (EUA, 1906, James Stuart Blackton).
The Enchanted Drawing (EUA, 1900, James Stuart Blackton).
O Hotel Elétrico (El Hotel Eléctrico, Espanha, 1905, Segundo de Chomón).
The Haunted House (EUA, 1907, James Stuart Blackton).
Le Théâtre de Petit Bob (França, 1909, Segundo de Chomón).
Sculpteur Moderne (França, 1908, Segundo de Chomón).
Matches an Appeal (Inglaterra, 1899, Arthur Melbourne Cooper).
Dolly’s Toys (Inglaterra,1901, Arthur Melbourne Cooper).
The Enchanted Toymaker (Inglaterra,1904, Arthur Melbourne Cooper),
The Fairy Godmother (Inglaterra,1906, Arthur Melbourne Cooper).
Tale of the Ark (Inglaterra,1909, Arthur Melbourne Cooper).
The Hand of the Artist (Inglaterra,1906, R. W. Paul).
Comedy Cartoons (Reino Unido, 1907, Walter R. Booth).
The Sorcerer’s Scissors (Reino Unido, 1907, Walter R. Booth).
The Whole Dam and the Dam Dog (EUA, 1904, Edwin S. Porter).
The “Teddy” Bears (EUA, 1907, Edwin S. Porter).
The Dreams of the Rarebit Fiend (EUA, 1906, Edwin S. Porter).
Fantasmagoria (Fantasmagorie, França, 1908, Emile Cohl).
Le Tout Petit Faust (França, 1910, Emile Cohl).
Le Peintre néo-impressionniste (França, 1910, Emile Cohl).
Le Cauchemar de Fantoche (França, 1908, Emile Cohl).
Campbell Soups (EUA, 1912, Emile Cohl).
La Bataille d’Austerlitz, ( França,1910, Emile Cohl).
Les aventures des Pieds Nickelés (França, 1917, Emile Cohl).
O Homem na Lua (Clair de Lune Espagnol, 1909, Emile Cohl).
The Sneeze (EUA,1899, Edison).
Little Nemo in Slumberland (EUA, 1911, Winsor Zenis McCay).
Gertie the dinosaur (EUA, 1914, Winsor Zenis McCay).
Como um Mosquito Opera (How a Mosquito Operates, EUA, 1912, Winsor McCay).
The Newlyweds and their Baby (EUA, 1914, Emile Cohl).
O Naufrágio do Lusitânia (The Sinking of the Lusitania, EUA, 1918, Winsor McCay).
The Centaurs (EUA, c. 1918-21, Winsor McCay).
Flip´s Circus (EUA, c. 1918-21, Winsor McCay).
Gertie on Tour (EUA, c. 1918-21, Winsor McCay).
Capítulo 2
O NASCIMENTO DA INDÚSTRIA DO DESENHO ANIMADO
Animated Grouch Chasers (EUA, 1915, Raoul Barré).
The Phable of de Phat Woman (EUA, 1916, Raoul Barré).
Bobby Bumps starts a lodge (EUA, 1916, Earl Hurd).
Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, EUA, 1937, Disney).
Flores e Árvores (Flowers and Trees, EUA, 1932, Disney).
Little Herman (EUA,1915, Paul Terry).
Farmer Al Falfa (EUA, 1916, Paul Terry).
Dinner Time (EUA, 1916, Paul Terry).
Steamboat Willie (EUA, 1932, Disney).
Experiment N
o
1 (EUA, 1915, Max e Dave Fleischer).
Out of the inkwell (EUA, 1919, Max e Dave Fleischer).
Dreamy Dud Has a Laugh on the Boss (EUA, 1916, Earl Hurd).
Spider and the Fly (EUA, 1917, Bill Nolan).
The Old Man of the Mountain (EUA, 1933, Max e Dave Fleischer).
As Viagens de Gulliver (Gulliver´s Travels, EUA, 1939, Max e Dave Fleischer).
The Cave Man (EUA, 1934, Ub Iwerks).
The King’s Tailor (EUA,1934, Ub Iwerks).
The Headless Horseman (EUA, 1934, Ub Iwerks).
Felix Saves the Day (EUA, 1922, Pat Sullivan e Otto Messmer).
Bedtime (EUA, 1923, Max e Dave Fleischer).
The Story of a Mosquito (Ver: Como um Mosquito Opera).
The Pet (EUA, 1921, Winsor McCay).
Poor Cinderella (EUA, 1934, Max e Dave Fleischer).
The Gentleman From Arizona, (EUA, 1939, Earl Haley).
Little Swee'Pea (EUA, 1936, Max e Dave Fleischer).
Einstein´s Theory of Relativity (EUA, 1923, Max e Dave Fleischer).
Evolution (EUA, 1923, Max e Dave Fleischer).
My Old Kentucky Home (EUA, 1926, Max e Dave Fleischer).
Motors Matt and His Fliv (EUA, 1914, Otto Messmer).
Travels of Teddy [série] (EUA, 1915-16, Otto Messmer e Henry "Hy" Mayer).
Feline Follies (EUA, 1919, Pat Sullivan e Otto Messmer)
Musical Mews (EUA, 1919, Pat Sullivan e Otto Messmer).
Os Três Porquinhos (The Three Little Pigs, EUA, 1933, Disney).
Capítulo 3
DISNEY: AS PRIMEIRAS NOTAS DE UMA SINFONIA SILENCIOSA
Little Red Riding Hood ( EUA, 1922, Disney).
The Four Musicians of Bremen (EUA, 1922, Disney).
Krazy Kat and Ignatz Mouse at the circus (EUA, 1916, Animador Leon Searl, Criação de
George Herriman).
The Barnyard Olympics (EUA,1924, Paul Terry).
Alice’s Wonderland (EUA, 1922, Disney).
Alice’s Day at Sea (EUA, 1923, Disney).
Alice in the Jungle (EUA, 1925, Disney).
Alice's Egg Plant (EUA,1925, Disney).
Alice Chops the Suey (EUA, 1925, Disney).
Anne of Green Gables (EUA, 1934, Dir. George Nichols Jr).
Alice the Fire Fighter (EUA, 1926, Disney).
Bright Lights"( EUA,1928, Disney).
Oh, Teacher (EUA, 1927, Disney).
The Mechanical Cow (EUA, 1927, Disney).
Trolley Troubles (EUA, 1927, Disney).
Plane Crazy (EUA, 1928, Disney).
Ko-Ko´s Earth Control (EUA, 1928, Disney).
Alice Mysterious Mystery (EUA, 1926, Disney).
Alice Rattled by Rats (EUA, 1926, Disney).
The Gallopin’ Gaucho (EUA, 1928, Disney).
Oh, What a Knight (EUA, 1928, Disney).
O Cantor de Jazz (The Jazz Singer , EUA, 1927, Dir. Alan Crosland).
The Volga Boatman (EUA, 1926, Dir. Cecil B. DeMille).
Don Juan (EUA, 1926, Dir. Dir. Alan Crosland).
O Grande Roubo do Trem (EUA, 1903, Edwin S. Porter).
Duck Amuck (EUA, 1953, Warner Bros).
The Carnival Boy (EUA, 1929, Disney).
A Dança dos Esqueletos (The Skeleton Dance, EUA, 1929, Disney).
The Barn Dance (EUA, 1929, Disney).
Mickey, o Maestro (The Band Concert, EUA, 1935, Disney).
The Plow Boy (EUA, 1929, Disney).
When the Cat's Away (EUA, 1929).
Do Outro Lado do Espelho (Thru the Mirror, EUA, 1936).
The Chain Gang (EUA, 1930, Disney).
The Picnic (EUA, 1930, Disney)
The Moose Hunt (EUA, 1931, Disney).
Mickey's Revue (EUA, 1932, Disney).
Orphan's Benefit (EUA, 1934, Disney).
Dia de Mudança (Moving Day, EUA, 1936, Disney)
A Galinha Esperta (The Wise Little Hen, EUA, 1934, Disney).
Desfile dos indicados (Parade of the Award Nominees, EUA, 1932).
Capítulo 4
SILLY SYMPHONIES:NASCE A NARRATIVA CSSICA DE WALT DISNEY
Bug Vaudeville (EUA, 1921, Winsor McCay).
The Little Island (EUA, 1958, Richard Williams).
Bambi (EUA, 1942, Disney).
El Terrible Toreador (EUA, 1929).
Pinóquio (Pinocchio , EUA, 1940, Disney).
Dumbo (EUA, 1941, Disney).
Springtime (EUA, 1929, Disney).
Summer (EUA, 1930, Disney).
Autumn (EUA, 1930, Disney).
Cannibal Capers (EUA, 1930, Disney).
Arctic Antics (EUA, 1930, Disney).
Winter (EUA, 1930, Disney).
Os Pássaros e suas Plumas (Birds of a Feather, EUA,1931, Disney).
Hen Hop (Canadá, 1942, Norman McLaren)
O Patinho Feio (The Ugly Duckling, EUA,1931, Disney).
Os Castores Trabalhadores (The Busy Beavers, EUA, 1931, Disney).
Só Cachorros (Just Dogs, EUA, 1932, Disney).
A Galinha Sábia (The Wise Little Hen, EUA, 1934, Disney)
Mamãe Pluto (Mother Pluto, EUA, 1936, Disney).
Playful Pluto (EUA, 1936, Disney)
O Elefante do Mickey (Mickey´s Elephant, EUA, 1936, Disney).
Flores e Árvores (Flowers and Trees, EUA, 1932, Disney).
The King of Jazz ( EUA,1930, Dir. John Murray, Animação: Walter Lantz).
The Black Pirate (EUA, 1926, Dir. Albert Parker).
Crianças no Bosque (Babes in the Wood, EUA, 1932, Disney).
A Tartaruga e a Lebre (The Tortoise and the Hare, EUA,1934, Disney).
The Moose Hunt (EUA, 1931, Disney)
Mickey's Pal Pluto (EUA, 1933, Disney)
Pluto's Quin-Puplets (EUA, 1937, Disney)
Society Dog Show (EUA, 1939, Disney)
A Deusa da Primavera (The Goddess of Spring, EUA, 1934).
A Feira dos Biscoitos (The Cookie Carnival, EUA, 1935),
The Animal Broadcast (EUA, 1931).
Quem matou Cock Robin? (Who Killed Cock Robin?, EUA, 1935).
Os Três Gatinhos Órfãos (Three Orphan Kittens, EUA, 1935)
O Primo Caipira (The Country Cousin, EUA, 1936)
O Velho Moinho (The Old Mill , 1937).
O Patinho Feio (The Ugly Duckling, 1939).
Ferdinando, o Touro (Ferdinand the Bull, EUA, 1938)
Mamãe Gansa vai para Hollywood (Mother Goose Goes Hollywood, EUA, 1938).
Bons Escoteiros (Good Scouts, EUA, 1938)
Os Órfãos de Mickey (Mickey's Orphans ,1932)
O Pequeno Alfaiate Valente (Brave Little Tailor , EUA, 1938).
Building a Building (EUA, 1933).
O Dedo Duro (The Pointer, EUA, 1939).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Viagens de Gulliver (Gulliver’s Travels, EUA, 1939)
Cassiopéia (Brasil, 1996).
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo