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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Rita Catalina Aquino Caregnato
A QUESTÃO ÉTICO-MORAL NA FORMAÇÃO
DOS ENFERMEIROS E MÉDICOS:
efeitos de sentidos nos discursos docentes
Porto Alegre
2008
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Rita Catalina Aquino Caregnato
A QUESTÃO ÉTICO-MORAL NA FORMAÇÃO
DOS ENFERMEIROS E MÉDICOS:
efeitos de sentidos nos discursos docentes
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em Educação.
Orientadora:
Profa.
Dra. Rosa Maria Filipozzi Martini
Co-orientadora:
Profa.
Dra. Regina Maria Varini Mutti
Porto Alegre
2008
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Rita Catalina Aquino Caregnato
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
__________________________________________________________________________________
C271q Caregnato, Rita Catalina Aquino
A questão ético-moral na formação dos enfermeiros e médicos: efeitos de sentidos nos
discursos docentes [manuscrito] / Rita Catalina Aquino Caregnato; orientadora: Rosa Maria
Filipozzi Martini; Co-Orientadora: Regina Maria Varini Mutti. – Porto Alegre, 2008.
252 f. + Anexos.
Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de
Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2008, Porto Alegre, BR-RS.
1. Ética. 2. Moral. 3. Análise do discurso. 4. Enfermagem. 5. Medicina. 6. Habermas,
Jürgen. 7. Pêcheux, Michel. I. Martini, Rosa Maria Filipozzi. II. Mutti, Regina Maria
Varini. III. Título.
CDU316.257
__________________________________________________________________________________
Bibliotecária Neliana Schirmer Antunes Menezes – CRB 10/939
3
Rita Catalina Aquino Caregnato
A QUESTÃO ÉTICO-MORAL NA FORMAÇÃO
DOS ENFERMEIROS E MÉDICOS:
efeitos de sentidos nos discursos docentes
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Educação.
Aprovada em 20 de outubro 2008.
___________________________________________________________________________
Profa.
Dra. Rosa Maria Filipozzi Martini - Orientadora
___________________________________________________________________________
Profa.
Dra. Regina Maria Varini Mutti - Co-orientadora
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Becker (UFRGS)
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Margarete Axt (UFRGS)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. José Roberto Goldim (FAMED)
___________________________________________________________________________
Profa.
Dra. Lucilda Selli (UNISINOS)
4
Para meu eterno amor, Paulo Roberto Zucatti,
que sempre esteve ao meu lado apoiando e
incentivando meu aperfeiçoamento e crescimento.
Seu imensurável amor, companheirismo,
compreensão, dedicação, paciência e ajuda
possibilitaram que este trabalho acontecesse.
Aos meus pais, Maria e Francesco Caregnato,
grandes responsáveis pela minha formação
pessoal e profissional, sempre estiveram ao meu
lado apoiando e oportunizando acesso aos
estudos, mesmo que para isto fosse necessário
abdicar de realizações pessoais, mostraram que
as vitórias somente são alcançadas pela luta.
Também aos meus filhos, Fernando e Ricardo,
partes do meu ser e constante presença na minha
vida, mesmo nas imensas ausências, deixo para
vocês como herança meu exemplo de vida.
Ao concluir este trabalho, quero agradecer...
... inicialmente a Deus pela dádiva da existência, iluminação, fé e força, permitindo-me
transformar um sonho em realidade;
... ao meu marido que acreditou no meu sonho, apoiando-me e estimulando-me sempre;
... aos meus pais que respeitaram minha decisão de realizar um sonho e compreenderam
minha ausência, orgulhando-se com minhas realizações;
... a minha orientadora, Professora Dra. Rosa Maria Filipozzi Martini, por sua imensa bondade
e ternura, que confiou e acreditou em mim, acolhendo-me com muito carinho e conduzindo-
me nesta caminhada;
... a minha co-orientadora, Professora
Dra. Regina Maria Varini Mutti, que com sabedoria
auxiliou-me em todas as etapas desta pesquisa, guiando-me nos entremeios da Análise de
Discurso;
... aos mestres que muito admiro, Dr. Fernando Becker, Dr. José Roberto Goldim, Dra.
Lucilda Selli e Dra. Margarete Axt que aceitaram participar da banca contribuindo para meu
crescimento;
... às queridas colegas Flávia Beatriz Lange Hentschel, Maria Renita Burg e Luzia Fernandes
Millão, que estiveram presentes compreendendo e apoiando a realização do meu sonho;
... a minha filha de coração, Ana Paula Zucatti, que se faz presente nesta pesquisa ajudando-
me e mostrando sua forte tendência em seguir o mesmo caminho da busca do conhecimento;
... às bolsistas voluntárias de pesquisa, ex-alunas do curso de graduação em Enfermagem da
ULBRA, e atualmente colegas, Roberta Almeida, Camila Selao e Tatiane Ott, que ao fazerem
as transcrições das entrevistas mergulharam na pesquisa vivenciando momentos marcantes,
tanto nas suas vidas quanto na minha;
... a minha fiel assistente do lar, Micheli Dias da Silva, sempre presente, possibilitou meu
crescimento intelectual e profissional;
... a uma pessoa que considero muito especial, Nilsa Glapinski, que com habilidade e
competência conseguiu recuperar o arquivo original desta tese, permitindo a finalização deste
trabalho;
... aos colegas professores que entenderam a importância deste trabalho e gentilmente se
dispuseram a participar desta pesquisa.
Sou sobrevivente de um campo de concentração.
Meus olhos viram o que nenhum homem deveria
ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros
formados; crianças envenenadas por médicos
diplomados; recém-nascidos mortos por
enfermeiras treinadas; mulheres e bebês fuzilados
e queimados por graduados em colégios e
universidades. Assim, tenho minhas suspeitas
sobre a educação. Meu pedido é: ajudem seus
alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços
nunca deverão produzir monstros treinados,
psicopatas hábeis, “Eichmanns” educados.
Haim G. Ginott
O professor e a criança. Rio de Janeiro: Bloch, 1985.
RESUMO
CAREGNATO, Rita Catalina Aquino. A Questão Ético-Moral na Formação dos
Enfermeiros e Médicos: efeitos de sentidos nos discursos docentes. Porto Alegre: UFRGS,
2008. 252 f. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação.
Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
Esta pesquisa teve como objetivo compreender os efeitos de sentidos produzidos no
discurso dos sujeitos docentes de enfermagem e medicina sobre a questão ético-moral na
formação dos discentes, tendo em vista contribuir à reflexão sobre a formação dos
profissionais da saúde. O quadro epistemológico para sustentar teórica e metodologicamente
esta pesquisa foi a teoria da Análise de Discurso (AD) de Pêcheux em interface com a Teoria
da Ação Comunicativa e a Ética do Discurso de Habermas. O corpus para análise discursiva
resultou de entrevistas orais e transcritas, realizadas com dezesseis sujeitos-professores dos
cursos de graduação em enfermagem e medicina, de duas universidades do Rio Grande do
Sul, uma pública e outra privada. Na análise do corpus, considerei a posição de sujeito-
professor da referida área a partir das determinações sócio-históricas materializadas na
linguagem, bem como a vinculação entre os conceitos de memória e acontecimento na
produção de sentidos pelos sujeitos. Ao relacionar na análise do discurso dos docentes, o
funcionamento das marcas intradiscursivas (nível do fio do discurso) em relação ao
interdiscurso (memória do dizer), evidenciei os seguintes efeitos de sentidos: o esvaziamento
ético-moral social como transcendente à universidade; o resgate da ética humanística na
formação dos discentes da saúde; o docente como referência para a formação ético-moral dos
discentes; as determinações do sistema como justificação moral; e a ética dialógica para o
enfrentamento dos dilemas morais. Os efeitos de sentidos identificados apontam à posição do
sujeito-professor universitário da área como heterogênea, no enfoque da questão ético-moral;
destacam-se: a área da saúde constituída pelo sentido humanista, em conformidade com a
legislação brasileira vigente; o sentido de formação profissional universitária na área
fortemente marcado pelo domínio dos conhecimentos e práticas, mesmo sob a
desestabilização provocada pelas contradições presentes na realidade; a valorização das
atividades práticas, onde a postura profissional ética do docente, frente ao paciente, passa a
ser referência para a formação ético-moral do discente. Nos seus pronunciamentos sobre os
dilemas enfrentados em suas práticas pedagógicas na área, considera-se, a partir da Análise de
Discurso, que os docentes buscaram formular a sua interpretação, construir a sua posição
sobre a questão ético-moral no ensino universitário na área médica; os docentes apontam
também, por meio de seus relatos, que a memória discursiva do objeto ética no ensino na área
da saúde está ainda em processo de consolidação. Na interface entre as perspectivas
habermasiana e discursiva estudadas, ponderou-se a partir das análises dos dilemas
apresentados à dificuldade de consenso, à medida que docentes e discentes representam
posições diferentes no discurso pedagógico, que apareceram bem marcadas; contudo, guiados
por valores das áreas da saúde e da educação que extrapolam essa condição, abriu-se, para os
sujeitos, a possibilidade de produção de sentidos compartilhados em outro lugar de
enunciação.
Palavras-chave: 1. Ética. 2. Moral. 3. Análise do discurso. 4. Enfermagem. 5. Medicina. 6.
Habermas, Jürgen. 7. Pêcheux, Michel.
ABSTRACT
CAREGNATO, Rita Catalina Aquino. A Questão Ético-Moral na Formação dos
Enfermeiros e Médicos: efeitos de sentidos nos discursos docentes. Porto Alegre: UFRGS,
2008. 252 f. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação.
Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
This paper aimed at understanding the meaning effects in the discourse of medicine
and nursing professors about the ethical-moral issue on student formation, attempting to
contribute to the reflection on health professionals’ formation. The epistemoligical frame
which supports both theoretically and methodologically this theory was Pecheux’s Discourse
Analysis Theory interfacing with Habermas’ Communicative Action and Ethics in Discourse
Theory. The discursive analysis corpus resulted from oral and transcribed interviews
performed on sixteen subject-professors from the graduation courses of Nursing and
Medicine, from two diverse universities in Rio Grande do Sul, one public and the other
private. When analyzing the corpus, I considered the position of subject-teacher of the after
mentioned field from the socio-historical determinations materialized in the language, as well
as the link between the concepts of memory and happening on the meaning production of the
subjects. At relating, in the professors’ discourse analysis, the mechanics of intradiscursive
marks (discourse thread level) to the interdiscourse (speech memory), I noticed the following
meaning effects: the social ethical-moral emptying as transcending the university; the
recovering of the humanistic ethics when graduating students in the health field; the teacher as
a reference to the ethical-moral formation of the students; the systems’ determinations as a
moral justification and the dialogic ethics when facing moral dilemmas. The meaning effects
identified point towards the position of subject-professor as heterogeneous; there are some
highlights when focusing on the moral issue: the health field constituted by the humanist
feeling, according to the current Brazilian Law; the Professional formation meaning in this
field being strongly characterized by the control of knowledge and practice, even under the
unbalance created by the contradictions found in our reality; the valuing of practical actions,
where the professor’s professional ethical attitude towards the patient, becomes reference for
the ethical-moral formation of the student. In their statements about the dilemmas faced in
their pedagogical practices in the field, it is considered, from the Discourse Analysis point of
view, that the professors tried to formulate their interpretation, build their position on the
ethical-moral issue while teaching college-level medicine; the professors also point out,
through theirs statements, that the discursive memory of the object ethics in teaching the
health area is still in consolidation. In the interface between the habermasian and discursive
perspectives analyzed, the difficulty for a consensus from the analysis of the dilemmas
presented was weighed, for professors and students represent different and well-marked
positions in pedagogical discourse; however, guided by health and education values which
GO beyond this condition, a possibility was opened for the subjects to produce shared
meanings in another enunciation place.
Keywords: 1. Ethics. 2. Moral. 3. Discourse Analysis. 4. Nursing. 5. Medicine. 6.
Habermas, Jurgen. 7. Pêcheux, Michel.
SUMÁRIO
1. CONSTRUÇÃO DO TEMA DA PESQUISA.................................................................12
1.1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................12
1.2 PROBLEMA ................................................................................................................................19
1.3 OBJETIVOS................................................................................................................................. 21
1.3.1 Objetivo Geral .............................................................................................................21
1.3.2 Objetivos Específicos....................................................................................................21
1.4 QUESTÕES NORTEADORAS ................................................................................................ 21
1.5 OBJETO DE ESTUDO ...............................................................................................................21
1.5.1 Moral e Ética............................................................................................................................22
1.5.2 Educão, Universidade e Professor ...................................................................................25
1.5.3 Contexto Histórico-Social da Medicina e Efermagem ..................................................... 31
2. REVISÃO TEÓRICA .......................................................................................................38
2.1 PÊCHEUX: teoria da análise de discurso..........................................................................38
2.1.1 Língua, Ideologia e História .................................................................................................38
2.1.2 Sujeito........................................................................................................................................ 42
2.1.3 Discurso..................................................................................................................................... 44
2.1.4 Sentido e Memória ..................................................................................................................46
2.1.5 Acontecimento.......................................................................................................................... 48
2.1.6 Interpretação............................................................................................................................ 50
2.2 HABERMAS: teoria daão comunicativa e ética discursiva ................................................52
2.2.1 Teoria da Ação Comunicativa...............................................................................................52
2.2.2 Paradigma "Mundo da Vida e Sistema”............................................................................. 55
2.2.3 Virada Lingüístico-Pragmática.............................................................................................58
2.2.4 Reflexão Habermasiana sobre Moral e Ética.....................................................................59
2.2.5 Ética Discursiva ......................................................................................................................60
2.3 HABERMAS EM INTERFACE COM PÊCHEUX: a teoria da ação comunicativa
em relação à análise de discurso..............................................................................................63
3. METODOLOGIA DA PESQUISA .................................................................................75
3.1 DELINEAMENTO METODOLÓGICO ..................................................................................75
3.2 DELIMITAÇÃO DO CORPUS ................................................................................................. 76
3.3 DISPOSITIVO DE ANÁLISE ................................................................................................... 81
x
3.4 CAMINHO DA ANÁLISE ...............................................................................................84
3.5 DESCRIÇÃO DA TRAJERIA PARA DEFINIÇÃO DO CORPUS ................................ 85
3.6 OS SUJEITOS-PROFESSORES PARTICIPANTES ..............................................................86
3.7 ESTUDO PILOTO: UM ENSAIO DO ENFOQUE DISCURSIVO.......................................88
3.7.1 Funcionamento da Marca Lingüístico-Discursiva Não.............................................91
3.7.2 Funcionamento da Marca Lingüístico-Discursiva Tem Que ...................................99
3.7.3 Algumas Considerações sobre o Estudo Piloto .......................................................106
3.8 CONTINUIDADE DA ANÁLISE DO CORPUS...................................................................107
3.8.1 Outras Novas Marcas Lingüístico-Discursivas Identificadas ................................108
4. EFEITOS DE SENTIDOS SOBRE ÉTICA E MORAL NO DISCURSO DOS
DOCENTES .........................................................................................................................110
4.1 ESVAZIAMENTO ÉTICO-MORAL SOCIAL: transcende a universidade.........................111
4.1.1 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Ética(o).....................................111
4.1.2 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Não ...........................................113
4.1.3 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Tem que”....................................116
4.1.4 Recortes Discursivos com Associação das Marcas Linísticas Ética eNão......... 118
4.1.5 Recortes Discursivos com Associação das Marcas Lingüísticas Ética e Tem que.... 124
4.1.6 A Produção de Sentido na Interface entre Habermas e Pêcheux...........................125
4.2 RESGATE DA ÉTICA HUMANÍSTICA NA FORMAÇÃO DOS DISCENTES DA
SAÚDE..............................................................................................................................................128
4.2.1 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Ética(o).....................................129
4.2.2 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Não ...........................................134
4.2.3 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística "Tem Que”...................................145
4.2.4 Recortes Discursivos com Associação das Marcas Linísticas Ética eNão......... 150
4.2.5 Recortes Discursivos com Associação das Marcas Lingüísticas Ética e Tem Que... 154
4.2.6 A Produção de Sentido na Interface entre Habermas e Pêcheux...........................155
4.3 O DOCENTE: referência para a formação ético-moral dos discentes ...................................160
4.3.1 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Ética(o).....................................160
4.3.2 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Não ...........................................163
4.3.3 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística "Tem Que”...................................170
4.3.4 Recortes Discursivos com associão das Marcas Linísticas Ética eo.......... 174
4.3.5 Recortes Discursivos com associação das Marcas Lingüísticas Ética e Tem Que .... 178
4.3.6 A Produção de Sentido na Interface entre Habermas e Pêcheux...........................180
4.4 JUSTIFICAÇÃO MORAL: determinações pelo sistema .......................................................183
xi
4.4.1 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Ética(o).....................................184
4.4.2 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Não ...........................................186
4.4.3 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística "Tem Que”...................................192
4.4.4 Recortes Discursivos com associão das Marcas Linísticas Ética eo.......... 195
4.4.5 Recortes Discursivos com associação das Marcas Lingüísticas Ética e Tem Que .... 199
4.4.6 A Produção de Sentido na Interface entre Habermas e Pêcheux...........................202
4.5 A ÉTICA DIALÓGICA PARA O ENFRENTAMENTO DOS DILEMAS MORAIS.......205
4.5.1 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Moral........................................206
4.5.2 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “Não ...........................................208
4.5.3 Recortes Discursivos com a Marca Lingüística “tem que” .....................................219
4.5.4 Recortes Discursivos com associão das Marcas Linísticas Moral eNão ........ 221
4.5.5 A Produção de Sentido na Interface entre Habermas e Pêcheux...........................222
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................227
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................239
APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.........252
APÊNDICE B – FICHA INFORMATIVA .......................................................................253
APÊNDICE C – ROTEIRO PARA ENTREVISTA ........................................................254
ANEXO A - PORTARIA N
o
881, DE 19 DE JUNHO DE 2001 ......................................255
ANEXO B - CARTA DE APROVAÇÃO DO PROJETO PELO COMITÊ DE
ÉTICA EM PESQUISA......................................................................................................256
12
1. CONSTRUÇÃO DO TEMA DA PESQUISA
1.1 INTRODUÇÃO
A educação e a saúde são duas áreas intimamente imbricadas que podem ser utilizadas
como aferidoras do nível de desenvolvimento de uma nação. Em nosso país, infelizmente,
embora ressaltadas como importantes em todos os discursos políticos, estes fundamentais
pilares da construção de um desenvolvimento sustentável enfrentam sérias dificuldades, com
reflexos diretos no cotidiano da população.
Os meios de comunicação divulgam diariamente a insatisfação do povo brasileiro com
os sistemas públicos de saúde e educação. Um progressivo sucateamento das instituições e
órgãos públicos determina triste desfecho: necessidades básicas da população passam a ser
privilégio das elites, com grande massa de excluídos, mais uma vez, enfrentando precárias
condições de saúde e difícil acesso à educação pública.
Geovanini et al. (2002, p. 44) dizem que “a extrema dependência do setor público ao setor
privado, descomprometimento com as necessidades e interesses populares, deixa a população à
margem do sistema de saúde”. Na saúde, as queixas o se restringem à deficiência no
atendimento ou à carência de recursos e investimentos, mas também à auncia de humanização
no atendimento, bem como à perda do senso ético-moral e da responsabilidade de alguns
profissionais desta área, manifestadas por ões de desconsideração com as pessoas, de
negligência, imprudência e até mesmo imperícia, evidenciando uma decancia no sistema de
saúde. Fazendo uma analogia desta realidade apresentada com o pensamento de Habermas, poder-
se-ia dizer que, no contexto das práticas na saúde, a comunicação entre os seres humanos fica
bloqueada pela racionalidade sistêmica (sistema vigente) restringindo-se apenas à lógica
instrumental, ou seja, à racionalidade meio-fim do sistema econômico e do poder.
Tanto a educação como a saúde são áreas influenciadas diretamente pelo sistema
sócio-econômico-político vigente. Percebo o Brasil fortemente influenciado pelos modelos
cultural, político e econômico norte-americanos. Muitos destes são posteriormente adaptados
ao Brasil; é comum o brasileiro tomar como referência pesquisas e estudos realizados naquele
país, pois na medida em que as mudanças ocorrem naquela sociedade irão refletir, mais cedo
ou mais tarde, no cenário brasileiro. Este contexto permite afirmar que o “Relatório Flexner”
(FLEXNER, 1910), ao fazer uma profunda análise da educação médica nos Estados Unidos e
Canadá, estabeleceu inúmeras mudanças que repercutiram em todo mundo ocidental, trazendo
uma formação mais técnico-científica.
13
A partir de 1950, o Brasil sofreu amplas transformações no panorama econômico
determinadas pelo sistema capitalista ocidental, consolidando o processo de industrialização.
Como reflexo no campo da saúde, a indústria farmacêutica e a tecnologia hospitalar ocuparam
lugar de destaque, privilegiando a prática curativa e especializada, incorporando tecnologia
sofisticada e originando deletério paradigma: um sistema de saúde com foco central no
hospital. Esta situação reflete-se direta e automaticamente na educação, onde os currículos
dos cursos de formação dos profissionais da saúde privilegiaram o ensino especializado e a
assistência curativa (GEOVANINI et al., 2002).
Por longo período os cursos superiores na área de formação da saúde passaram a
valorizar o conhecimento técnico-científico, focando o indivíduo em partes, como portador de
patologia ou órgão doente, desconsiderando o ser humano como um todo. Este modelo
repercutiu diretamente no atendimento prestado à população, com profissionais altamente
especializados, porém com perda da humanização na assistência.
Chegou-se ao estágio de reconhecimento público da falta de humanização na
assistência prestada ao usuário do Sistema Único de Saúde quando, em 2001, o então Ministro
da Saúde José Serra criou “O Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar”
(PNHAH), dando estímulo às instituições hospitalares do país que aderissem ao programa. Na
Portaria n
o
881, de 19 de junho de 2001 (ANEXO A), o Ministro do Estado da Saúde, no uso
de suas atribuições, determina:
Considerando a necessidade da criação de uma nova cultura de atendimento aos
usuários das organizações de saúde, pautada pelo mais amplo respeito à vida
humana e pela observância dos princípios ético-morais na convivência entre
profissionais e pacientes, para a conquista da qualidade no atendimento à saúde;
Considerando que a busca pela maior qualidade na assistência hospitalar não se
limita ao aperfeiçoamento técnico-científico e gerencial dos recursos existentes, mas
depende, fundamentalmente, de novo padrão de convivência entre profissionais de
saúde e o cidadão que utiliza o serviço;
Considerando a necessidade de lançar ações que visem à mudança do padrão de
assistência ao usuário do Sistema Único de Saúde, melhorando a qualidade e a
eficácia do cuidado hoje prestado, resolve:
Art. 1
o
. Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de
Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) (BRASIL, 2001, p.1).
Na Introdução desta Portaria fica evidente que a formação dos profissionais da saúde,
direcionada exclusivamente ao desenvolvimento do conhecimento técnico-científico, teve
como reflexo na sociedade a perda de princípios ético-morais, os quais deveriam ser a
sustentação da assistência pautada pelo respeito à vida humana; isto é reforçado no parágrafo
único da Portaria que diz:
O PNHAH objetiva promover a humanização da assistência hospitalar a partir de
intervenções institucionais para a criação, o desenvolvimento e a sustentação de
14
iniciativas humanizadoras, induzidas progressiva e permanentemente, visando, em
seu conjunto, à construção de uma cultura de atendimento à saúde da população
pautada pelo respeito à vida humana (BRASIL, 2001, p.1).
A formação profissional de enfermeiros e médicos começa na academia, onde os
professores têm a responsabilidade de formar sujeitos preparados e comprometidos com o
papel social que vão desempenhar na sociedade. Portanto, os professores, profundamente
envolvidos neste processo, deverão interagir e dialogar com seus alunos proporcionando uma
formação completa, o somente cnico-científica, mas também permeada de valores,
permitindo engajamento do futuro profissional no processo social, executando sua função
técnica com natural pensamento humanitário, ético e moral, estimulando uma postura de
cidadania participativa, sem precisar de portarias ou regras para esse fim. Cabe aqui
acrescentar um comentário trazido pelo Professor Fernando Becker (2008), por ocasião de sua
participação na banca de defesa desta pesquisa, que considero de extrema relevância e
enriquecedor para a reflexão sobre a educação:
O professor poderá dispor-se ao diálogo, propô-lo, mas não poderá dialogar. Quem
pode dialogar é a dupla complementar professor-e-aluno. Do mesmo modo, o
professor não poderá interagir, mas, apenas, agir. Quem interagirá serão os alunos-e-
o-professor – o verbo interagir, tal como dialogar, aplica-se aos dois pólos da
relação ao mesmo tempo; jamais a um só. Se o professor se dispuser à interação e o
aluno não aceitar essa proposta, não haverá interação, por maior que seja a
dedicação do professor. O mesmo acontece com o diálogo. Interação e diálogo
existem com o envolvimento mútuo dos dois pólos da relação, ao mesmo tempo
opostos e complementares. É por isso que se fala de modelo relacional. Esse modelo
confronta o modelo convencional que atribui um poder excessivo ao professor um
dos pólos da relação pedagógica. Poder falso, pois o ato pedagógico, o ensino em
particular, não se consuma com uma boa aula e, por outro lado, não fica imune a
uma aula; no caso do ensino, consuma-se com seu lo complementar, a
aprendizagem. Se o aluno não legitimar o professor como autoridade do saber, não
se consumará a relação pedagógica que chamamos de interação ou de diálogo
(BECKER, 2008, p. 2).
Sgreccia (2002, p.111) comenta que a “humanização da medicina” pode ser entendida
de várias formas, pois este termo pode incluir diversos conceitos, os quais se completam entre
si; porém, o autor afirma que “o significado mais profundo dessa tendência [...] consiste no
reconhecimento da dignidade de pessoa em todo ser humano”.
Dilemas éticos e morais permeiam o cotidiano do trabalho dos profissionais da saúde.
Freqüentemente, orientando seus alunos, tanto na sala de aula como em campo de estágio, os
professores deparam-se com situações que requerem um posicionamento definido. A postura
assumida servirá como referência positiva ou negativa ao seu aluno. A ética e a consciência
moral não devem ser exclusivamente trabalhadas nas disciplinas que estudam e abordam estas
temáticas, mas devem permear a prática de todos os professores, perpassando por todas as
disciplinas durante a graduação. Os profissionais da educação devem agir eticamente.
15
[...] em todos os momentos de seu magistério e, muito mais ainda, no seu
relacionamento cotidiano com seus alunos [...]. Valores como honestidade,
transparência, justiça, liberdade, respeito e responsabilidade nas relações do trabalho
docente e não-docente podem e devem ser vivenciados e discutidos no diálogo
constante (SANTOS, 2004, p. 38).
A ética e a consciência moral estimuladas e demonstradas pelo professor
continuamente nas vivências diárias despertarão no aluno a importância da reflexão sobre a
ação educativa na saúde como prática social moral contínua.
A escolha do tema, ética na formação dos profissionais da saúde, para a realização
desta pesquisa foi motivada pela minha experiência como enfermeira, trabalhando mais de
duas décadas na área da saúde, e como professora universitária, na graduação e pós-graduação
da enfermagem, há mais de uma década. Trabalhei seis anos em um hospital universitário de
grande porte de referência em Porto Alegre; percebi muitos professores, tanto da enfermagem
quanto da medicina, preocupando-se essencialmente com o conhecimento técnico-científico,
deixando em segundo plano e até mesmo desconsiderando, com seu exemplo, a importância e
o estímulo da consciência moral no aluno. O acadêmico, na maioria das vezes, incorpora o
exemplo do docente, perpetuando-o na sua prática e passando a agir conforme ele.
Para Santos (2004):
O bom profissional da educação é aquele que, usando sua competência (autoridade
legal), se orienta não só pelos preceitos vigentes, mas também pelos princípios
morais e éticos para poder escolher bem suas decisões, seu comportamento e seu
próprio caminho (SANTOS, 2004, p. 38).
Ao estudar, na minha dissertação de mestrado, o estresse da equipe multiprofissional
na sala de cirurgia, cheguei a resultados semelhantes aos de pesquisas internacionais que
descrevem o relacionamento interpessoal entre os membros da equipe como o maior estressor
entre os profissionais da saúde (BIANCHI, SALZANO, 1991). Investigando os estressores
comuns e diferenciados entre a equipe multiprofissional, identifiquei o relacionamento
interpessoal como estressor comum mais freqüente e significativo para toda equipe, sendo o
paciente o menor gerador de estresse (CAREGNATO, 2002).
Os profissionais investigados (médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem) se
sentiam habilitados tecnicamente para atender o paciente, mas diziam que não foram
preparados, durante sua formação, para outros princípios envolvidos direta ou indiretamente
no relacionamento interpessoal. Como o contato do profissional da saúde com o paciente
limita-se, na maioria das vezes, ao atendimento técnico, e como esta formação os
profissionais obtiveram, isto dificilmente gera estresse; porém, quando se ampliam as relações
interpessoais entre profissionais da saúde, tanto de diferentes áreas do conhecimento quanto
16
entre a própria categoria profissional, exigindo manejos pautados em princípios éticos e
morais, isto passa a ser forte gerador de estresse nestes profissionais. Os resultados, na minha
dissertação, apresentaram o relacionamento interpessoal entre os profissionais da equipe como
gerador de estresse causado por fatores nitidamente éticos e morais, como conflitos diversos,
discussões, disputa de poder, despreparo de alguns profissionais que fazem parte da equipe,
desrespeito tanto com o paciente quanto entre a equipe, brincadeiras inoportunas, situações
forçadas, descaso, falta de comprometimento e cooperação de alguns profissionais e falta de
reconhecimento e reciprocidade (CAREGNATO, 2002).
Corroborando os resultados emergidos da minha pesquisa, Duarte (2004, p. 112), ao
estudar os conflitos e dilemas éticos vivenciados pelos enfermeiros que atuam em Centro
Cirúrgico, concluiu que estes profissionais vivenciam conflitos resultantes de “maus tratos,
desrespeito e violência entre profissionais onde os pacientes não conseguem ser sujeitos da
ação”.
Duarte (2004) coloca que os conflitos e dilemas vivenciados pelos profissionais
estudados impõem escolhas difíceis, gerando angústias, sendo suas ações muitas vezes
fundamentadas não pela moral e ética, mas sim pelo domínio técnico:
[...] cumplicidade e medo, aonde a responsabilidade vem ligada ao dever, e às questões
deontológicas. Questões estas que são [de] extrema relevância, mas não resolvem os
conflitos e dilemas éticos, pois os códigos deontológicos trazem o que deve ou não ser
feito, mas não como deve ser feito. E é no fazer que os enfermeiros encontram
dificuldades. Obstáculos comuns entre todos, independentemente de atuarem em
instituições públicas, filantrópicas ou privadas, e de sua formação acadêmica.
Acredita-se que muitas das deficiências argumentativas diárias ocorrem devido à falta
de discussões éticas, talvez porque esta seja uma disciplina que apesar de ser ensinada
na academia, é no fazer contextualizado que se aprende. É no fazer cotidiano que são
reconhecidos os deveres prima face que têm a solidariedade, justiça, respeito e a
benevolência como bases de sua construção (DUARTE, 2004, p. 113).
Nesta citação apresentada, acredito que a autora, ao dizer benevolência, entende “a
benevolência, [como] forma genérica da beneficência” (CLOTET, 2003, p. 60). Clotet (2003,
p. 59 e 62) diz que “a beneficência, conforme alguns autores representativos da filosofia
moral que usaram o termo é uma manifestação da benevolência. Benevolência tem sido,
porém, um conceito bem mais usado”; “[...] a beneficência, sob o nome de benevolência, é um
dos elementos exponenciais da filosofia moral britânica dos culos XVIII e XIX e de grande
repercussão na Bioética [...]”.
Os docentes da saúde devem preparar os futuros profissionais para o relacionamento
com seres humanos, orientando suas atividades profissionais tanto relativas aos pacientes
quanto à equipe por princípios éticos e morais. Concordo com Santos (2004, p. 80) quando
diz que “Idéias de honestidade, coragem, compromisso, responsabilidade e tantas outras
17
importantes na educação se passam no cotidiano da instituição escolar. E quanto mais o
professor é próximo do aluno, mais influência ele tem sobre seu comportamento”.
Perrenoud (2000) aponta em seu livro as atuais e importantes competências na
formação do professor, resumidas em quatro dimensões: técnica, política, estética e ética. A
formação atual de um professor, para ser um verdadeiro educador, deverá contemplar as
quatro dimensões destacadas por Perrenoud; porém, como saber se um professor universitário
da área da saúde está apto a desenvolvê-las na sua prática diária do ensino? Será que este
professor foi preparado para ser educador ou somente foi valorizada sua competência técnica
para estabelecer vínculo com o ensino superior? A discussão sobre conflitos morais e éticos
permeia todas as disciplinas de formação dos profissionais da saúde ou fica somente limitada
ao seu enfoque e estudo na disciplina específica para esse fim?
Concordo com Habermas (2003a, p. 166) quando diz “um tema surge em conexão
com interesses e objetivos da ação dos participantes [...] Os planos deão individuais
acentuam o tema e determinam a carência de entendimento mútuo actual que é preciso suprir
por meio de trabalho de interpretação”. A motivação ao tema proposto intensificou quando,
realizando consultas a várias bases de dados, como Bireme, Web of Science, Proquest Digital
Dissertations, The Philosopher Index, Periódicos Capes, Biblioteca Digital da UNICAMP e
USP, site do Ministério da Ciência e Tecnologia BDTD ibict e outras de reconhecida
referência científica, constatei não existir uma pesquisa que fizesse o entrelaçamento entre
ensino superior na enfermagem e medicina, moral e ética, a teoria do agir comunicativo de
Habermas e a Análise de Discurso de Pêcheux. A certeza da relevância do tema, ética e moral
na formação dos enfermeiros e médicos, confirmaram-se ao ler Rego (2003), que diz:
[...] temos poucos profissionais dedicados efetivamente a esse estudo [referindo-se a
ética]. Quando volto minha atenção especificamente ao campo da formação dos
médicos, buscando o que determina ou contribui para que estes pensem, ajam e
reajam de determinada maneira ou com determinado padrão de atitudes, os estudos
no Brasil mostram-se praticamente inexistentes (REGO, 2003, p. 17-8).
Parecer semelhante ao autor anterior tiveram La Taille, Souza e Vizioli (2004, p. 91),
ao realizarem uma revisão de literatura educacional “sobre a relação entre ética e educação”,
onde investigaram artigos, dissertações e teses, publicados de 1990 a 2003; os autores
constataram um aumento no número de publicações sobre o tema “ética e educação”, porém,
afirmaram que o quantitativo ainda permanece pequeno, existindo pouca pesquisa empírica,
sendo a maioria textos especulativos e críticos, inspirados em referenciais teóricos da
“filosofia, sociologia e psicologia moral”. Santiago e Palácios (2006, p. 9) encontraram
resultados parecidos em estudo bibliográfico sobre ética e bioética, em artigos publicados de
18
1970 a 2000, na Revista Brasileira de Enfermagem. As autoras encontraram um aumento
gradativo “nos últimos 30 anos, com maior concentração na década de 90, totalizando 44
artigos publicados. Até a início dos anos 80 as publicações tinham propósito de apresentar os
códigos de ética ou mesmo compará-los”.
Tive oportunidade de vivenciar grandes avanços na área da saúde desde minha
graduação em enfermagem em 1981. Iniciei a vida profissional atuando em Centro Cirúrgico
e lembro que naquela época queimávamos formol após as cirurgias infectadas, bem como se
entendia ser bom cirurgião aquele que fizesse a maior incisão cirúrgica, permitindo uma boa
visão do campo cirúrgico. A evolução científica mostrou ser a queima de formol mero mito e
rito, e a cirurgia evoluiu trazendo para o cenário atual cirurgias minimamente invasivas, como
as cirurgias por vídeo, junto ao avanço das cirurgias de grande porte, como os transplantes de
órgãos. Enquanto a tecnologia avançava em largos passos, percebia que a consciência moral
muitas vezes se perdia. O atendimento humanizado e valores morais foram sendo esquecidos,
passando-se a ver o sujeito como mero objeto de trabalho. Assim, acredito ser de extrema
relevância construir uma pesquisa teórico-analítica tecendo uma teia com estes fios
condutores, a fim de compreender contextos e fenômenos tão importantes atualmente, quando
vivenciamos uma crise de valores morais e éticos diretamente proporcional ao crescimento
tecnológico científico característico das últimas décadas.
Considero importante ressaltar a inexistência de uma “ética mundial”, esta não passa
de um projeto atualmente defendido por Hans Küng (KÜNG, 2007), assim sendo, não posso
considerar a existência de uma ética universal, onde o que é do bem não o é necessariamente
para todos, havendo várias éticas diferentes, culturalmente construídas. Portanto, adotarei
nesta pesquisa, o posicionamento sobre ética fundamentado por Habermas.
O corpus desta tese são os discursos de sujeitos-professores dos cursos de graduação
em enfermagem e medicina, tanto da universidade pública quanto privada, sobre a formação
ética e moral do discente. O quadro epistemológico escolhido para sustentar teórica e
metodologicamente esta pesquisa é a teoria da Análise de Discurso (AD) de Pêcheux
entrelaçada à Teoria da Ação Comunicativa e à Ética do Discurso de Habermas.
A Teoria da Ação Comunicativa desenvolve princípios filosóficos de uma teoria da
sociedade e evolução social, bem como de ética discursiva. A Teoria da Ação Comunicativa e
a Ética Discursiva estruturam o horizonte da possibilidade de experiências de formação do
profissional da saúde; articulada com a Análise de Discurso e sua teorização, contribuirá para
um alargamento teórico metodológico apto a detectar sentidos no discurso dos professores.
A AD de Pêcheux trabalha com a confluência de três campos do conhecimento, a
19
lingüística, a história e a ideologia, entendendo serem os sujeitos “[...] afetados pela língua e
pela história, em um complexo processo de constituição de sentidos. [...] Em um discurso,
deste modo, não se representam os interlocutores, mas também a relação que eles mantêm
com a formação ideológica” (GRANTHAM, 2005, p.139). Esta apreciação da AD sugere ser
ela uma disciplina teórica que neste trabalho busca um encontro interpretativo fundamentado
por uma visão filosófica, no caso, a Teoria da Ação Comunicativa e a Ética do Discurso de
Habermas (MARTINI, 2007).
Nesta pesquisa pretendo aproximar Pêcheux e Habermas, buscando pontos em comum
nas suas teorias, para assim fundamentar e compreender os sentidos que emergem nos
discursos dos professores universitários da enfermagem e medicina, apontando as posições
adotadas, muitas vezes arraigadas e assumidas pelos profissionais da saúde.
Em um processo de construção, esta pesquisa apresenta em capítulos uma rede de
conhecimentos, permitindo alcançar os objetivos e alicerçando a interpretação discursiva dos
professores universitários. O capítulo 1, denominado Construção do tema da pesquisa, além
de trazer a introdução, apresenta o problema condutor da investigação científica, objetivos,
questões norteadoras e o objeto de estudo, abordando ética e moral, educação, universidade,
professor e o contexto histórico social da medicina e enfermagem; o capítulo 2, Revisão
teórica, apresenta as fundamentações das teorias de Pêcheux e de Habermas, permitindo a
interface entre eles; o capítulo 3, denominado Metodologia da pesquisa, é reservado a
apresentação do percurso metodológico; o capítulo 4, Efeitos de sentidos sobre ética e
moral no discurso dos docentes, apresenta a interpretação e análise de discurso do sujeito-
professor; e finalizando, o capítulo 5, as Considerações finais.
1.2 PROBLEMA
Frente ao cenário traçado e questionamentos surgidos, considerando as exigências
fundamentais para elaboração de uma boa pergunta de partida e com apoio nos referenciais
teóricos, emergiu o problema de pesquisa que norteará este estudo: que efeitos de sentidos,
no discurso docente em enfermagem e medicina, apontam a problematização ético-
moral na formação do discente?
Na pergunta formulada não existe uma resposta preconcebida, permitindo a priori
várias respostas, emergidas das análises dos discursos dos docentes. Apoiada na Análise de
Discurso da linha pêcheuxtiana buscarei evidenciar efeitos de sentidos no discurso dos
professores de enfermagem e medicina, através da interpretação analítica, em torno da
20
temática estudada.
Morin (2003) afirma que muitos problemas de pesquisa invadem outras áreas,
havendo, muitas vezes, necessidade de romper fronteiras, agregando e aglutinando diferentes
disciplinas; essa desterritorialização do saber ocorreu nesta pesquisa, pois houve necessidade
da interlocução com diversas áreas do conhecimento, tais como filosofia, sociologia e
educação, para compreender a problemática emergente da área da saúde. Esta
interdisciplinaridade foi abordada por Habermas (2003a) quando afirmou que a filosofia faz
um elo com as outras ciências, colaborando para esclarecer os fenômenos estudados por meio
de procedimentos e argumentações indicadores de racionalidade. Habermas (2003a) descreve
“a filosofia como guardador de lugar e como intérprete”, explicando:
[...] um guardador de lugar para teorias empíricas com fortes pretensões
universalistas [...]. Isso vale, sobretudo, para as ciências que procedem
reconstrutivamente, partindo do saber pré-teórico de sujeitos que julgam, agem e
falam de maneira competente, bem como de sistemas epistêmicos da tradição
cultural, a fim de aclarar os fundamentos presumidamente universais da
racionalidade da experiência e do juízo, da ação e do entendimento mútuo
lingüístico (HABERMAS, 2003a, p. 17).
O filósofo lembra que, anteriormente, a filosofia sozinha se julgava capaz de explicar
os fenômenos; porém, agora é diferente, pois existe a inclusão da filosofia em várias ciências,
ocorrendo uma cooperação científica, permitindo:
[...] abrir caminho entre a epistemologia e a história da ciência, entre a teoria dos
atos de fala e diferentes abordagens da pragmática empírica da linguagem, entre as
teorias das argumentações informais e diferentes abordagens para a investigação das
argumentações naturais, entre éticas cognitivistas e uma psicologia do
desenvolvimento da consciência moral, entre teorias filosóficas da ação e a
investigação da ontogênese das competências de ão. [...] uma filosofia que se
esforça [...] por aclamar os fundamentos racionais do conhecer, do agir e do falar
conserva sempre uma relação temática com o todo (HABERMAS, 2003a, p. 31).
Martini (2005, p. 1) afirma que a ética trata de um tema de filosofia prática “que tem
ressonâncias na sociologia, na história, na psicologia, na antropologia e conseqüentemente na
educação”; por isto, atualmente a filosofia tem ficado ao lado das ciências humanas, ambas
interagindo e dialogando, no sentido de complementarem-se, contribuindo e ajudando-se a
compreender de forma mais ampla os fenômenos humanos, utilizando métodos
interpretativos, dialéticos e discursivos.
Habermas (1987) refere ser a razão o tema fundamental da filosofia; desde suas
origens a filosofia se esforça em explicar o mundo através da racionalidade. Portanto, a
racionalidade das opiniões e das ações tem sido debatida pela filosofia, através da reflexão
fundamentada no conhecimento, na fala e nas ações.
A questão da moral (idade) encontrou no representante da escola de Frankfurt, Jürgen
21
Habermas, nova teoria sociológica da moral, a Ética Discursiva, a qual procura reatar o elo
perdido com a filosofia moral de Kant através da Teoria da Ação Comunicativa (FREITAG,
1989). Habermas (2003a, p. 67) acredita que enquanto a filosofia tiver que “contribuir para o
aclaramento das intuições quotidianas adquiridas no curso da socialização, ela terá que partir,
pelo menos virtualmente, da atitude dos participantes da prática comunicativa quotidiana”.
Vázquez (2005, p. 26) considera [...] que as queses éticas constituíram sempre uma
parte do pensamento filosófico”. Concordo com o autor citado; por isto, optei em abordar o
problema levantado através da linha filofica. Direcionando a queso de estudo à
fundamentação teórica de Habermas e cheux, estabelecerei uma coneo entre os saberes
permitindo interpretar o discurso dos professores e responder ao problema de pesquisa trado.
1.3 OBJETIVOS
1.3.1 Objetivo geral
Compreender os efeitos de sentidos produzidos no discurso dos sujeitos docentes de
enfermagem e medicina sobre a questão ético-moral na formação dos discentes, tendo em
vista contribuir à reflexão sobre a formação dos profissionais da saúde.
1.3.2 Objetivos específicos
Aprofundar elementos da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas em interface
com a teoria da Análise de Discurso de Pêcheux.
Analisar efeitos de sentidos nos discursos dos professores universitários da área da
saúde sobre a questão ética e moral na formação dos discentes, relacionando marcas
intradiscursivas (nível do fio do discurso) e interdiscursivas (memória do dizer).
Interpretar, no discurso do sujeito-professor universitário, o processo argumentativo
que compreende a justificação moral relativa à formação ética do discente da área da saúde
enfocada.
1.4 QUESTÕES NORTEADORAS
Como guia para alcançar os objetivos traçados, esta pesquisa seguiu as seguintes
questões norteadoras:
Quais são os pontos convergentes entre a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas
e a Teoria da Análise de Discurso de Pêcheux?
22
Como as relações de sentido vão sendo tecidas, transformadas e apagadas nos
discursos dos docentes da enfermagem e medicina sobre a questão moral?
Como se a produção dos efeitos de sentidos vinculados aos discursos dos sujeitos
docentes, da enfermagem e medicina, quando se pronunciam sobre a moral(idade) e
ética(idade) na formação dos discentes?
Como o sujeito enunciador do referido discurso apresenta seu processo de
argumentação e justificação moral sobre a formação ética do discente da enfermagem e
medicina?
1.5 OBJETO DE ESTUDO
Com a intenção de constituir o objeto de estudo a ser investigado, apresento neste item
inicialmente teorizações que fazem a diferenciação entre ética e moral; a seguir discorro sobre
a educação, a universidade e o professor; e finalizo com o contexto histórico-social da
medicina e enfermagem.
1.5.1 Moral e Ética
Na literatura alguns autores apresentam os termos “ética” e “moral” como sinônimos e
outros apontam algumas diferenças, mas o importante, diz Goldim (2005, p.1), é “saber que
atualmente ambos têm significados e usos diferentes entre si”; Vázquez (2005, p. 22) afirma
que “não se podem confundir ética e a moral”; porém Cortina e Martínez (2005, p. 20)
colocam que atualmente o “uso dos termos ‘ética’ e ‘moral’ como sinônimos está tão
difundido que não vale a pena tentar impugná-lo”.
La Taille (2006, p. 26) ao referir-se aos conceitos de “ética” e “moralconsidera que
estes “podem ser legitimamente considerados sinônimos, logo, de emprego intercambiável”.
Cortina e Martínez (2005, p. 20) retomam as origens das palavras “ética” e “moral”
junto à história, fazendo uma reflexão muito interessante que justifica o uso destas como
sinônimos, conforme descrevem:
A palavra “ética” procede do grego ethos, que significava originalmente “morada”,
“lugar em que vivemos”, mas posteriormente passou a significar “o caráter”, o
“modo de ser” que uma pessoa ou um grupo vai adquirindo ao longo da vida. Por
sua vez, o termo “moral” procede do latim mos, moris, que originariamente significa
“costume”, mas em seguida passou a significar também “caráterou “modo de ser”.
Desse modo, ética” e “moral” confluem etimologicamente em um significado
quase idêntico: tudo aquilo que se refere ao modo de ser ou caráter adquirindo
como resultado de pôr em prática alguns costumes ou hábitos considerados bons.
Dadas essas coincidências etimológicas, não é de estranhar que os termos “moral” e
“ética” apareçam como intercambiáveis em muitos contextos cotidianos: fala-se, por
exemplo, de uma “atitude ética” para designar uma atitude “moralmente correta”
23
segundo determinado código moral; ou diz-se que um comportamento “foi pouco
ético” para significar que não se ajustou aos padrões habituais da moral vigente.
La Taille (2006, p. 26) afirma que “diferenças podem existir, e podem ser empregadas,
contanto que se as explicite claramente, e que se reconheça, como Paul Ricoeur (1990), que se
trata de convenções”. Considero importante, tanto pelo contexto acadêmico quanto para evitar
confusões nos leitores, anunciar o referencial teórico adotado, bem como denotar a distinção
entre “moral” e “ética”, pois se tratam “de dois níveis de reflexão diferentes, dois níveis de
pensamento e linguagem acerca da ação moral” (CORTINA, MARTÍNEZ, 2005, p. 20).
Kant diferenciou os dois termos, enfocando a ética como descrições antropológicas e
psicossociais através das quais as pessoas aderem aos costumes; cultura; coletivo; e a moral
como processo de raciocínio moral; reflexividade do pensamento; justificação que o sujeito é
capaz de fazer sobre a relação entre a sua máxima de conduta e o princípio moral (MARTINI,
2004). Concordo com Freitag que atribuiu a Hegel a inestimável contribuição para
diferenciação entre moral e ética. A autora diz:
A polaridade entre indivíduo e sociedade, consciência moral subjetiva e consciência
moral objetiva é retomada por Hegel na perspectiva dialética de Moralität e
Sittlichkeit [...].
Na Filosofia do direito, Hegel lembra que o conceito Moralität, de origem latina
(mos, moris = costume), em rigor não se diferencia do conceito Sittlichkeit, de
origem germânica (Sitte = costume). Hegel faz uso dos dois primeiros conceitos,
atribuindo-lhes um significado lógico distinto, denotando diferenças importantes na
elaboração da questão da moralidade [...]. Hegel dispensa o termo ética na
construção de sua teoria da dialética de Moralität e Sittlichkeit. Se Moralität pode
ser traduzido por moralidade, Sittlichkeit poderia ser traduzido por eticidade [...].
A Moralität hegeliana é uma figura do espírito que inclui a consciência moral
subjetiva, não sendo redutível a ela. A Sittlichkeit é uma figura do espírito que leva
em conta a moralidade coletiva, objetivada em instituições sociais, sem esgotar-se
nela. Hegel, com efeito, insere na concepção da Moralität a idéia de consciência
moral subjetiva [...] Sittlichkeit, como moralidade institucionalizada nas formas
sociais da família, da sociedade civil e do Estado [...] Com isso Hegel deixa claro
que o ponto de vista moral do sujeito, com sua ação e seu julgamento, não faz
sentido fora de um corpo social (FREITAG, 1992, p. 57-8).
Em todo o capítulo VI, Hegel (2002) faz uma profunda reflexão diferenciando a
moralidade da eticidade. O filósofo define a moral a partir da subjetividade da consciência do
ser e a ética a partir das determinações objetivas; para ele, a ética é o dever e a moral a
consciência singular, ou seja, o pensamento.
Hegel introduz uma precisão conceitual: reserva o “conceito Moralität para o ator
individual que pela ação adquiriu a consciência moral dos seus equívocos e acertos”; e
reserva o “conceito de Sittlichkeit para a ação moral praticada no coletivo, conscientizada por
cada ator individual” (FREITAG, 1992, p. 70).
Piaget também contribuiu ao estudar a educação moral na criança, diferenciando a
24
moral da ética, concluindo que o julgamento moral da criança é o respeito pela ética; ele diz
que “[...] o sentimento do respeito, cuja importância excepcional na formação ou no exercício
da consciência moral foi ressaltada por todos os moralistas” (PIAGET, 1978, p. 64). Segundo
ele, nem a consciência moral nem a intelectual são conferidas prontas na criança, elas se
elaboram “em estreita conexão com o meio social” (PIAGET, 1978, p. 65).
A mesma linha de pensamento de Hegel se perpetua atualmente, encontrando eco em
outros autores que estudam o tema. zquez (2005, p. 29) diz ser a moral de aspecto subjetivo,
interno, psíquico, constituído de motivos, impulsos, atividade da consciência [...] a atividade
moral é sempre vivida interna ou intimamente pelo sujeito em um processo subjetivo [...]”. Para
Vázquez (2005, p. 23) a ética é a “[...] teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em
sociedade. Ou seja, é a ciência de uma forma específica de comportamento humano. [...] a ética
deve aspirar à racionalidade e objetividade”; assim:
[...] a ética parte do fato da existência da história da moral, isto é, toma como ponto
de partida a diversidade de morais e tempo, com seus respectivos valores, princípios
e normas. Como teoria, não se identifica com os princípios e normas de nenhuma
moral em particular [...] (VÁZQUEZ, 2005, p. 22).
De forma diferente ao sentido adotado nesta pesquisa, Cortina e Martínez (2005) e La
Taille (2006) manifestam seus posicionamentos em relação à diferenciação entre “moral” e
“ética”. Creio, porém, ser importante trazer a forma destes autores fazerem esta diferenciação,
pois ocupam na atualidade posição de destaque nos estudos sobre o tema.
Cortina e Martínez (2005, p. 20) chamam de “moral” o conjunto de princípios e
valores transmitidos de uma geração para outra, deixando “um bom legado de orientações
sobre o modo de se comportar para viver uma vida boa e justa”, e consideram a “ética” como
a disciplina filosófica que faz a reflexão sobre os problemas morais. La Taille (2006, p. 26-7)
concorda com os autores citados anteriormente ao dizer “a esse trabalho de reflexão filosófica
e científica costuma-se dar o nome de ética”, bem como a “ética como reflexão sobre a
moral”. La Taille (2006, p. 26) acredita existirem várias convenções de diferenciações;
porém, afirma que a “convenção mais adotada para diferenciar o sentido de moral do de ética
é reservar o primeiro conceito para o fenômeno social, e o segundo para reflexão filosófica ou
científica sobre ele”.
Cortina e Martínez (2005, p. 20) trazem como pergunta básica da “moral”: “O que
devemos fazer?”, ao passo que a questão central da “ética” seria antes: “Por que devemos?”,
ou seja, “Que argumentos corroboram e sustentam o código moral que estamos aceitando
como guia de conduta?”.
La Taille (2006, p. 11-2) coloca a pergunta da moral: “como devo agir?”, e da ética:
25
“que vida eu quero viver?”. Logo, a ética remete à “vida boa”, à felicidade, ao sentido da
vida. Enquanto moral é deontológica; a ética é teleológica. Falta dizer que, para merecerem o
nome de “éticas”, as respostas a respeito da ‘vida boa’ devem necessariamente incluir outrem,
portanto serem pesadas do ponto de vista da articulação do individual e do coletivo.
Borges, Agnol e Dutra (2002) consideram a ética uma disciplina que se propõe a
compreender os critérios e valores que norteiam o julgamento da ação humana, procurando
esclarecer se a conduta adotada é moralmente correta ou errada; porém, esta avaliação para
esclarecimento da ação dependerá da escola filosófica seguida.
Os autores citados anteriormente dividem a ética normativa em duas: 1) ética
teleológica e 2) ética deontológica; a primeira estabelece o que é correto segundo a finalidade
a atingir e a segunda busca o que é correto segundo o dever das normas e regras que
fundamentam a ação. Habermas (1991a) acredita que todas as éticas clássicas tratam das
questões do bem viver.
Na ética teleológica encontra-se Aristóteles com a ética das virtudes, defendida como
“excelência moral ou retidão”, enfatizando o caráter virtuoso do ser humano; a finalidade do
homem era a busca da felicidade, e alcançar o bem-estar duradouro e seu desenvolvimento
seria possível através da virtude, que é a excelência do ser humano (BORGES, AGNOL,
DUTRA, 2002, p. 11).
Deontologia tem origem grega que significa deon modo de ser (COUTINHO, 2006).
A ética deontológica é seguida por todas as profissões da saúde, como a enfermagem e
medicina; todas elas têm seu código de deontologia específico, onde estão relacionadas as
regras e deveres éticos que cada profissão deve seguir para agir corretamente.
Na ética deontológica encontram-se várias correntes. Porém, considero as mais
importantes para fundamentar este trabalho a ética do dever iniciada por Kant e a ética do
discurso elaborada por Apel e Habermas (BORGES, AGNOL, DUTRA, 2002); estas são
discutidas no capítulo 2, que apresenta o pensamento de Habermas, mais especificamente no
item 2.2.4, onde faço uma reflexão com olhar habermasiano sobre a moral e ética.
o tenho a pretensão nesta pesquisa de entrar no embate filosófico sobre as diferenças
entre moral e ética, pois percebo não existir consenso entre os filósofos e os estudiosos da
tetica. Declaro apenas minha posição frente à corrente filosófica adotada nesta pesquisa;
portanto, filio-me à posição de Habermas, que segue a mesma linha de Hegel e Kant.
1.5.2 Educação, Universidade e Professor
Existe uma interligação e um elo indissolúvel histórico-social-ideológico entre
26
educação, universidade e professor, que os tornam responsáveis pela formação de recursos
humanos não somente com habilitação técnico-científico, mas também com princípios ético-
morais, para atuarem como seres humanos preparados para assumirem seu papel social.
Na AD, o objeto de estudo caracteriza-se pela movência, ruptura e deslocamento,
havendo necessidade de entender a história porque esta “se apresenta como uma prática e um
discurso, e a relação de ambos se mostra sob a forma de uma produção, isto porque o discurso
está sempre ligado a operações e difundido por funcionamentos” (FERNANDES, CABRAL
DOS SANTOS, 2007, p.7).
“A educação é naturalmente, contextualizada historicamente: não existe um homem
‘atemporal’ [...]” (LA TAILLE, 1999, p.134). Desde o pensamento platônico existe uma
relação de proximidade entre a ética e a educação, porque a filosofia estabeleceu fins da
educação que foram fins éticos; além disto, se pressupõe educar para o bem, dentro de uma
comunidade com princípios éticos e morais, os quais se tornam presentes na ação pedagógica
(HERMANN, 2001). Embora Kant não tenha sido um educador que tenha se debruçado em
questões atinentes à pedagogia, ele “ministrou aulas de Pedagogia na Universidade de
Koenisberg nos anos de 1777, 1780, 1784 e 1787, formulou algumas idéias que foram em
seguida reunidas em um texto intitulado Tratado de Pedagogia” (LA TAILLE, 1999, p.133);
neste o filósofo dizia que uma educação completa reunia, ao mesmo tempo, instrução e
formação moral (KANT, 1996).
Semelhante a Kant, Piaget (1978) acreditava que o aspecto intelectual era:
[...] inseparável do conjunto dos relacionamentos afetivos, sociais e morais que
constituem a vida da escola [...]. Na realidade a educação constitui um todo
indissociável, e não se pode formar personalidades autônomas no domínio moral se
por outro lado o indivíduo é submetido a um constrangimento intelectual de tal
ordem que tenha de se limitar a aprender por imposição sem descobrir por si mesmo
a verdade: se é passivo intelectualmente, não conseguiria ser livre moralmente.
Reciprocamente, porém, se a sua moral consiste exclusivamente em uma submissão
à autoridade adulta, e se os únicos relacionamentos sociais que constituem a vida da
classe são os que ligam cada aluno individualmente a um mestre que detém todos os
poderes, ele também não conseguiria ser ativo intelectualmente (PIAGET, 1978, p.
61).
Ao abordar a crise existente na educação e na racionalidade, Habermas aponta como
motivo a razão técnico-instrumental dominando a sociedade contemporânea. Nesta sociedade,
a ciência e a tecnologia impulsionam o fazer humano, influenciando o processo cultural e o
modo de vida dos sujeitos; ambas são assumidas como forma de legitimação ideológica do
poder político na sociedade capitalista (COLMENARES, 2002). Colmenares (2002) ainda
afirma que o progresso técnico-científico trouxe repercussões negativas, como a crise de
valores e a ausência de convicções éticas, resultando um ser humano contemporâneo,
27
desumanizado, individualista e alienado. “Nos termos habermasianos, a educação sofre os
impactos da desintegração do mundo da vida” (PRESTES, 1996, p. 292).
Martini (1993), no transcorrer de sua tese, desencadeia uma reflexão histórico-
filosófica sobre a educação, vislumbrando uma alternativa:
Embora atualmente a educação não aposte mais no equilíbrio virtuoso de
capacidades e habilidades de um ser humano racional e político capaz de participar
da polis ideal (paidéia grega); se não recebe de um Deus criador as orientações
para reconduzir sua criatura à regeneração (educação medieval); se não encontra na
espontaneidade da natureza e na racionalidade do pacto social sua possibilidade de
realização individual e social (educação iluminista); se não aposta mais na realização
demiúrgica de um ser humano e de sua experiência social, recriados pelas
possibilidades da ciência e da técnica (educação cientificista); se não espera mais
conduzir o homem do reino da necessidade, pela desalienação do trabalho ao reino
da liberdade (educação socialista); resta, entretanto ainda hoje, o esforço racional da
construção de um sentido que possa ser partilhado responsavelmente por todos os
homens (MARTINI, 1993, p. 193).
Os modelos educacionais, na sociedade contemporânea, centram-se no
desenvolvimento tecnológico e instrumental para a formação dos recursos humanos que não
necessitem pensar e que garantam a reprodução e a manutenção do sistema (COLMENARES,
2002). “A educação e a instrução não devem ser puramente mecânicas, devem apoiar-se em
princípios” (KANT, 1996, p. 29).
Para Kant (1996, p. 36), que influenciou Habermas no seu pensamento, a educação se
dividia em física e prática; a primeira se referia aos cuidados corporais e a segunda à moral,
ou seja, àquela “que diz respeito à construção (cultural) do homem, para que possa viver
como um ser livre. Esta última é a educação que tem em vista a personalidade, educação de
um ser livre, o qual pode bastar-se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si
mesmo um valor intrínseco”.
Piaget (1978) afirmava que para desenvolver plenamente a personalidade humana a
educação deveria:
[...] formar indivíduos capazes de autonomia intelectual e moral e respeitadores
dessa autonomia em outrem [...]. O direito à educação, [...], não é apenas o direito de
freqüentar escolas: é também, na medida em que vise a educação ao pleno
desenvolvimento da personalidade, o direito de encontrar nessas escolas tudo aquilo
que seja necessário à construção de um raciocínio pronto e de uma consciência
moral desperta (PIAGET, 1978, p. 53).
Prestes (1997) reconhece no pensamento de Habermas uma contribuição para a
educação, a partir da idéia de práxis comunicativa como ação fundamental para a interação
entre professor e aluno que compartilham um mundo vivido em comum.
Conforme enfoque apresentado da educação, concordo com Streck et al. (1999, p. 10)
quando afirmam que “o ato de educar é sempre um ato ético”. Como se tornou problemático
28
para a educação atual alcançar “o amadurecimento do homem para desenvolver sua
individualidade e consciência ética” (PRESTES, 1996, p. 292), talvez a teoria de Habermas
possa dar um impulso nas condições do agir pedagógico, mesmo que vários críticos
considerem ser inviável o consenso, “no plano do mundo prático, a educação não tem
alternativas para legitimação, além de consensos sempre provisórios [...]” (HERMANN,
2003, p. 107).
Deve-se estar ciente que a internacionalização da educação é um fato real existente na
atualidade. Panizzi (2006) afirma:
Vivemos em um tempo em que a universidade e a educação superior tornaram-se,
elas próprias, objeto de interesse da chamada globalização. [...] Estudiosos,
pesquisadores, especialistas, representantes de governos, de organismos
internacionais, de movimentos sociais, além de políticos e cidadãos, discutem os
sistemas de ensino, a educação superior e a universidade (PANIZZI, 2006, p. 28).
Morin (2003) afirma que a universidade é conservadora, regeneradora e geradora, pois
conserva a herança cultural de saberes e valores, regenera essa herança ao transmiti-la e gera
saberes, idéias e valores, os quais são incorporados na herança.
O termo conservação pode ter dois sentidos: vital ou estéril. Como vital o autor remete à
hisria que preserva, enquanto estéril tem o sentido de dogmática, rígida e cristalizada. A
universidade tornou-se o espaço da problematização, pois introduziu as ciências modernas,
existindo duas culturas: a cultura humanista e a científica, sem intercomunicação; esta disjunção
gera uma divisão entre as ciências, com graves conseências para ambas (MORIN, 2003).
Martini (1993) enfoca a educação de forma semelhante:
A educação enquanto prática social [...] tem a tarefa de preservar, interpretar e
renovar o legado de seus predecessores. Entretanto, na medida em que insere esta
prática num processo auto-reflexivo que indaga pelo sentido e verdade de um saber
educar integra-se no bojo da filosofia. Isto porque a Filosofia [...], ainda não abdicou
de sua tarefa de educadora da humanidade (MARTINI, 1993, p. 190).
Acredito como Morin (2003, p. 82) que a universidade tenha dupla função: a de
“adaptar-se à modernidade científica e integrá-la; responder às necessidades fundamentais de
formação, mas também, sobretudo, fornecer um ensino metaprofissional, metatécnico, isto é,
uma cultura”; portanto, reformar o pensamento exige reforma na universidade.
Habermas (1971) ao abordar este tema em um capítulo intitulado The University in a
Democracy”, afirma que a universidade deve qualificar novas gerações para enfrentar a
sociedade industrial, tratar de expandir e reproduzir a educação e não somente transmitir e
explorar conhecimentos técnicos, como também produzi-los. O filósofo diz que através do
ensino e da pesquisa a universidade está conectada ao processo econômico. Habermas (1971)
29
ainda aponta três responsabilidades que a universidade deve assumir: 1) assegurar que os
graduados tenham um mínimo de qualificação na área e habilidades extrafuncionais referentes
a todos os atributos e atitudes relevantes para o profissional; 2) ser o local adequado para
transmitir, interpretar e desenvolver a tradição cultural da sociedade; 3) estimular uma
consciência política nos estudantes.
Habermas (1971) também enfatiza a importância de desenvolver, dentro do processo
educativo, a refleo associada a uma consciência filosófica nos estudantes; para que isto ocorra é
necesrio que todos os níveis de ensino desenvolvam a interdisciplinaridade, em oposição ao
fracionamento que ainda vigora de forma tão habitual, não na universidade como nos veis
secundários” (PIAGET, 1978, p. 13). O docente, mostrando em todas as disciplinas casos entre a
teoria e a prática, estimulará a auto-reflexão do discente, alcançando a conscientização através da
reflexão; somente assim have possibilidade de substituir a tradicional ética profissional por uma
relação reflexiva dos graduados para suas práticas profissionais.
Ambos os autores, ao escreverem no século passado, “The University in a Democracy
(HABERMAS, 1971) e “Para onde vai a educação?(PIAGET, 1978), refletiram a visão da
universidade européia daquela época; porém, constato que vários aspectos abordados pelos
filósofos são universais e ainda vigentes em pleno século XXI. Ao ler o livro “Universidade
para quê?”, de Panizzi (2006), a autora faz uma reflexão da universidade no mundo atual
trazendo aspectos discutidos por Habermas e Piaget; como a relação existente entre
universidade/sociedade, a responsabilidade da universidade na “formação dos recursos
humanos, técnica e cientificamente competentes e com capacidade para o exercício da
cidadania. [...] garantir a produção de conhecimento inovador e crítico [...]” (PANIZZI, 2006,
p. 9 e 60) e a visão marcadamente fracionada dos seus conteúdos, com reflexos que dificultam
não a sua implementação, como também o alcance efetivo dos seus objetivos e funções.
Assim, os mesmos: são herméticos; carecem de uma maior flexibilidade e de uma maior
interação entre as diversas áreas do conhecimento.
A autora citada também aborda a universidade como expressão de poder, também
discutido por Bourdieu e Foucault. Embora a universidade ao longo da sua história tenha
passado por profundas modificações (VOLPI, 1996), atualmente vive uma crise e um período
de definição e redefinição da sua natureza e do seu papel (PANIZZI, 2006).
Ribeiro (1999) faz uma interessante reflexão quando discorre sobre a “Universidade
Brasileira Pós-Moderna: democratização x competência”. A autora buscou respostas às suas
indagações em alguns autores, trazendo contribuições importantes para a compreensão da
universidade. Em sua fundamentação teórica, a autora também traz Bourdieu e Foucault para
30
explicar a questão do poder permeando as instituições universitárias. Ribeiro (1999, p. 46) diz
que “Bourdieu e Foucault iluminavam o objeto que me propunha analisar: a universidade
atravessada por relações de poder que se refletiam na formação dos
profissionais/trabalhadores [...]”. Considero de extrema relevância a questão do poder na
universidade, pois concordo com Ribeiro (1999, p.40) quando diz que o poder está
relacionado “à produção de saberes instituídos como verdades. [...] [ele] é uma prática social
construída historicamente”; portanto, irá permear a história, a ideologia e a linguagem do
sujeito-professor universitário.
A universidade apresenta aspectos questionáveis, porém, deve-se reconhecer,
conforme Morin (2003), ela defende a autonomia da consciência, a ética, a verdade, os
valores, a problematização e o conhecimento. Torna-se, portanto, necessário adotar uma
pedagogia relacional com a aprendizagem voltada à construção e à tomada de consciência
para conduzir as ações (BECKER, 2001); essa aprendizagem ao qual o autor se refere, num
sentido mais amplo, é entendida por Piaget (1974, p. 40) como “[...] um processo adaptativo
se desenvolvendo no tempo, em função das respostas dadas pelo sujeito a um conjunto de
estímulos anteriores e atuais”.
É consenso entre todos os autores pesquisados, estudiosos da educação e
conseqüentemente do educador, que a ética é inseparável da prática educativa. Portanto, a
ética é uma condição sine qua non para o professor; ele deverá ensinar e dar exemplo com sua
conduta ética. Freire (1996, p. 14, 22 e 34), na sua pequena, mas grande obra “Pedagogia da
Autonomia: saberes necessários à prática educativa”, reforça que formar é muito mais do
que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas” e “ensinar não é transmitir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”; ainda, o
autor afirma: “o professor que realmente ensina” corporifica as palavras pelo exemplo.
Perrenoud, sociólogo e um dos educadores mais conhecidos da atualidade, por
vivenciar a crise da sociedade atual permeada de desigualdades, violência, brutalidades,
individualismo, preconceitos, discriminações e medos, faz uma reflexão em um dos capítulos,
intitulado “Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão”, do seu livro “10 Novas
Competências para Ensinar”, onde reforça a dimensão educativa do trabalho do professor,
mas reconhece a dificuldade de exercê-la dentro de “uma sociedade em crise e que tem
vergonha de si mesma”, e afirma que “a educação é um exercício de equilibrista
(PERRENOUD, 2000, p. 142).
Outro grande problema vivenciado pelos professores na atualidade é a questão da crise
de identidade, iniciada no final do século XX, gerada por um conjunto de fatores decorrentes
31
da realidade social cada vez mais deteriorada e das exigências crescentes do mundo atual
(BATISTA, CODO, 1999).
Panizzi (2006) afirma ser a globalização hoje um fato inegável, afetando a vida
individual e coletiva das pessoas. Os efeitos da globalização afetaram também a educação; as
mudanças ocorridas na sociedade repercutiram diretamente na educação, ultrapassando as
fronteiras nacionais. Esteves (1999) aponta o mal-estar docente, não como um problema
exclusivamente do sistema educacional espanhol, mas sim, como um fenômeno internacional.
Segundo o autor, esse mal-estar é gerado nos professores por fatores principais, tais como:
recursos materiais e condições de trabalho, violência nas instituições, esgotamento e acúmulo
de exigências; e por fatores secundários relacionados ao contexto social (ESTEVES, 1999).
Outro grande problema detectado por Becker (1993, p. 331) é que a epistemologia
subjacente ao trabalho docente é a empirista”. Tenho observado esta concepção
epistemológica durante minha trajetória como professora do ensino superior; este é o
paradigma vigente no ensino, na maioria dos cursos superiores técnicos, tais como a
enfermagem e medicina, onde o professor é o centro do processo restando aos alunos a
finalidade de repetir e reproduzir (BECKER, 1993; MASETTO, 2005).
Masetto (2005) explica que o professor ao entrar na sala de aula, transmite
informações e experiências, esperando que seus alunos absorvam os conteúdos transmitidos,
reproduzindo-os nas provas de avaliação. Segundo o mesmo autor, este fato se deve: à
organização curricular que privilegia disciplinas técnicas e conteudísticas; ao corpo docente
que embora capacitado profissionalmente não tem competência pedagógica; e à adoção de
uma metodologia que segue o programa para alcançar o conteúdo programado, em um tempo
determinado, para toda turma. Este complexo cenário atual que envolve a educação, a
universidade e o professor, será importante para compreender os efeitos de sentidos
produzidos nos discursos dos professores da enfermagem e medicina sobre a formação moral
e ética do futuro profissional da saúde.
Cabe ao professor, como interpretante e produtor de sentidos, propiciar que os alunos
historicizem os discursos com os quais se deparam no curso, os questionem, estranhem,
interroguem, para produzir os seus próprios sentidos. Interessa então a condição de
interpretante dos sujeitos (MUTTI, 2007).
1.5.3 Contexto histórico-social da Medicina e Enfermagem
“A história e a memória são inevitavelmente evocadas para se pensar as inscrições
discursivas dos sujeitos” (FERNANDES, CABRAL DOS SANTOS, 2007, p.7); por isto, para
32
compreender o discurso do docente no momento social em que está sendo produzido,
enfocarei as profissões de enfermagem e medicina, dentro de um contexto histórico-social que
as legitimam, apresentando as condições de criação e sustentação, e suas práticas
relacionadas.
A essência da profissão de enfermagem é o cuidado; sendo assim, a história da
enfermagem é tão antiga quanto o próprio homem. Desde os primórdios o cuidado de forma
empírica era realizado por pessoas leigas, principalmente pelas mulheres que tinham o dom
natural de cuidar em forma de arte, desde o nascimento dos filhos até o cuidado dos idosos e
moribundos. O instinto de sobrevivência é a maior das forças de origem biológica do ser
humano; conseqüentemente, o cuidado surgiu com o homem a milhares de anos, e, desta
forma, a enfermagem surge no contexto histórico de forma lenta e gradual (PEDROSO,
CAREGNATO, 2004).
A organização da enfermagem como profissão ocorreu apenas na Idade
Contemporânea quando Florence Nightingale, após retornar da guerra da Criméia com sua
experiência de mais de 14 anos trabalhados em hospitais e a vivência com doentes na guerra
por quase 1 ano, “lançou as bases da enfermagem como profissão, para todo o mundo”
escrevendo e publicando, em dezembro de 1859, o livro Notes on Nursing definia:
O que é e que não é enfermagem, mostrando a possibilidade e a necessidade de uma
preparação formal e sistemática para a aquisição de um conhecimento de natureza
distinta daquele buscado pelos médicos, e cujos fundamentos permitiriam manter o
organismo em condições de não adoecer ou de se recuperar de doenças [...]. A
importância essencial por ela atribuída à capacidade da enfermeira de observar com
profundidade e descrever com propriedade confere um novo caráter, intelectual e
científico à enfermagem [...] (CASTRO, 1989, p. 4-5).
Ao escrever este livro, que se tornou best-seller, Florence Nightingale não tinha ainda
completado 40 anos e era uma heroína reconhecida por toda sociedade inglesa devido ao
trabalho desenvolvido tanto na guerra quanto em Londres (CASTRO, 1989). Notes on
Nursing explica historicamente o motivo que leva a enfermagem, em muitos lugares, ser
submissa e não ter conquistado ainda status na área da saúde, isto porque, embora seja ainda
considerado um livro atual, ele traz o perfil de como a enfermeira deveria ser naquela época.
Florence escreveu:
[...] toda enfermeira deve ser uma pessoa com quem se pode contar, isto é, capaz de
ser uma enfermeira “de confiança”. Ela não sabe a hora em que pode encontrar-se
em tal ou qual situação; não faz mexericos, não conversa sobre futilidades; não
responde perguntas sobre seu doente exceto àqueles que têm o direito de fazê-las.
Deve não necessidade de enfatizar ser estritamente sóbria, honesta e, mais do
que isso, ser uma mulher religiosa e devotada. Deve respeitar sua própria vocação,
porque o precioso dom da vida agraciado por Deus muitas vezes está literalmente
colocado em suas mãos. Deve ser uma observadora segura, direta e rápida, e ser uma
33
mulher de sentimentos delicados e modestos (NIGHTINGALE, 1989, p. 138).
Em 1860, após seis meses da publicação do livro, Florence fundou a primeira Escola
de Enfermagem em Londres, marco histórico da profissionalização da enfermagem, sendo que
o modelo implantado disseminou-se para vários países de todos os continentes, chegando ao
Brasil em 1923 (CASTRO, 1989; GEOVANINI et al., 2002).
Em todos os períodos históricos as práticas de saúde foram influenciadas diretamente
pelo sistema sócio-econômico-político vigente; a institucionalização da enfermagem não foi
diferente, sofrendo influência direta do sistema econômico em vigor na Europa. “Florence
Nightingale realizou sua obra na segunda metade do século XIX, na Inglaterra vitoriana,
rainha dos mares, moralista e industrial, imperialista e progressiva” (CASTRO, 1989, p. 3). A
revolução industrial dinamizou a ordem capitalista e trouxe a fragmentação do trabalho, a
partir de 1800, revolucionando a indústria. Naquele momento histórico o pensamento
dominante da sociedade era a supremacia do pensar sobre o fazer; assim, ocorreu a divisão do
trabalho, cabendo ao proletariado o trabalho manual e à burguesia o trabalho intelectual
(PEDROSO, CAREGNATO, 2004). A primeira Escola de Enfermagem surgiu, então,
atendendo ao modelo do cenário da revolução industrial, ou seja, organizada em duas
categorias profissionais: as ladies, mulheres provenientes de classes sociais mais elevadas, às
quais cabia o pensar, e as nurses, pertencentes a níveis sociais mais baixos, a quem cabia o
fazer. Considerado superior o trabalho intelectual, exigia preparo mais longo e aprofundado,
capacitava a profissional para as atividades administrativas, de direção, supervisão e controle
de serviços de enfermagem; de outra forma, o trabalho manual não exigia uma formação tão
longa, preparando mão-de-obra para atendimento direto aos pacientes nos hospitais. Assim
institucionalizou-se a enfermagem, numa dicotomia entre pensar e fazer (GEOVANINI et al.,
2002). Esse modelo nightingaleano perpetua-se até a atualidade, onde as antigas ladies, hoje
denominadas enfermeiras, cursam graduação em enfermagem, com no mínimo 4 anos de
formação superior e ocupam cargos de chefia e supervisão, enquanto as antigas nurses,
atualmente técnicas de enfermagem, fazem curso técnico com duração média de 2 anos.
Porém, não foram todos os países do mundo que adotaram este modelo e, em pleno século
XXI, ainda existem países onde a enfermagem é apenas reconhecida em nível técnico.
Portanto, a enfermagem é uma profissão nova e, por isto, ainda não conquistou seu espaço em
todo o mundo.
De forma diferente surgiu a medicina; esta é uma profissão histórica e tradicional que
surgiu com Hipócrates (460 a.C.) na Idade Antiga. Filósofos da época, como Sócrates,
influenciaram a doutrina hipocrática que propôs uma nova concepção em saúde, dissociando
34
as doenças das superstições e misticismos e enfatizando as condições climáticas, geográficas e
hábitos alimentares como geradores de doenças. Hipócrates inaugura uma nova fase nas
práticas de saúde, antes mística e, a partir de então, baseada na experiência, observação e
raciocínio gico, enfatizando os sintomas como parte das doenças e a forma de atacá-las,
deixando em vários manuscritos a importância do diagnóstico, prognóstico e terapêutica
(GEOVANINI et al., 2002; PEDROSO, CAREGNATO, 2004).
Na Antiguidade, embora tenha surgido Hipócrates, as doenças eram relacionadas à
possessão de espíritos do mal; as práticas de saúde estavam relacionadas ao misticismo, as
pessoas acreditavam que bruxos e feiticeiros tinham o poder de tratar as doenças. Portanto,
nessa época, o poder da cura era permeado de superstições e obscurantismo; existiam poucos
médicos gregos, e os cuidados de enfermagem eram práticas domésticas executadas por
mulheres (devido ao instinto materno do cuidado) em forma de arte (PEDROSO,
CAREGNATO, 2004).
Na Idade Média, a Igreja Católica tinha o monopólio da autoridade moral, intelectual e
financeira; assim, o conhecimento e o poder da saúde estavam restritos ao clero. Por cerca de
um milênio, naquela época, as práticas de saúde manuais eram realizadas pelas religiosas, que
por amor ao próximo, religiosidade e subalternidade, cuidavam dos doentes (PEDROSO,
CAREGNATO, 2004).
Na Idade Moderna, com a decadência da Igreja Católica e a reforma protestante, as
religiosas são perseguidas e expulsas dos hospitais. Os nobres eram cuidados nos seus
domicílios por médicos de boa formação e os pobres acabavam morrendo nos hospitais,
atendidos por prostitutas, mendigos e curandeiros, os quais prestavam serviços em troca de
comida e moradia (PEDROSO, CAREGNATO, 2004).
Na Idade Contemporânea ocorre a reorganização da Igreja, as religiosas retornam aos
hospitais e também instituições femininas começam a prestar cuidados aos enfermos.
Enquanto a enfermagem se organiza como profissão apenas a partir do século XIX, a
medicina avança e cresce a partir do século XVII, e com o passar do tempo passa a ter
hegemonia do poder sobre a saúde e doença, por um longo período.
Portanto, percebo forte influência sócio-econômico-política na saúde em toda a
história social do mundo ocidental, com a enfermagem oscilando entre o sagrado e o profano.
Acredito que este fato tenha marcado a memória do dizer da população, pois na atualidade,
por vezes, emerge a profissão de forma transformada e estereotipada em revistas
pornográficas.
O Brasil seguiu nas práticas de saúde e na organização das profissões de medicina e
35
enfermagem rumos semelhantes aos da história mundial. O primeiro hospital fundado no
Brasil, em 1543, foi a Santa Casa de Misericórdia em Santos, São Paulo; ali os pobres eram
atendidos pelas religiosas enquanto a burguesia recebia assistência a domicílio de médicos
vindos de Portugal (PEDROSO, CAREGNATO, 2004). A medicina organizou-se quase um
século antes da enfermagem, fundando a primeira escola em 1808, em Salvador na Bahia
(ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA, 2006), pertencente atualmente à Universidade
Federal da Bahia.
Apenas em 1890 surgiu a primeira Escola de Enfermagem, junto ao Hospício Nacional
dos Alienados, no Rio de Janeiro, atualmente chamada de Escola Alfredo Pinto e pertencente
à Universidade do RJ (GEOVANINI et al., 2002; OGUISSO, 2005). Uma necessidade social,
identificada pela Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, que
percebeu o atendimento bárbaro prestado aos doentes mentais internados no hospício,
impulsionou o surgimento desta primeira Escola de Enfermagem, marco da organização da
enfermagem brasileira como profissão (GEOVANINI et al., 2002; PEDROSO,
CAREGNATO, 2004; MOREIRA, 2005), mesmo formando profissionais de nível técnico.
Existem divergências na bibliografia nacional quanto à implantação do modelo
nightingaleano nas Escolas de Enfermagem brasileiras. Uma corrente diz que este modelo foi
introduzido por enfermeiras inglesas, em 1896, na Escola de Enfermeiras do Hospital
Samaritano (OGUISSO, 2005); outra corrente afirma que Carlos Chagas, então diretor do
Departamento Nacional de Saúde Pública, com apoio financeiro da Fundação Rockfeller
trouxe algumas enfermeiras americanas, formadas pelo modelo nightingaleano, para organizar
o Serviço de Enfermagem de Saúde Pública e, em 1923, fundou a Escola de Enfermagem Ana
Nery com o modelo anglo-americano (GEOVANINI et al., 2002). A partir da introdução do
modelo anglo-americano na formação de enfermeiras houve o redimensionamento da
enfermagem no Brasil, criando oportunidade de formar profissionais de nível superior, uma
vez que se delineou a divisão social do trabalho em enfermagem.
No início do século XX, os Estados Unidos e o Canadá enfrentavam inúmeros
problemas no ensino médico; então, a Fundação Carnegie contratou o educador e professor
Abraham Flexner para realizar um estudo sobre as escolas médicas da América do Norte
(NASSIF, 2006). Nassif (2006) relata que durante quatro anos o professor e pesquisador
visitou e coletou dados das 160 escolas de medicina existentes nos dois países, elaborando um
minucioso relatório denominado relatório Flexner, publicado em 1910, gerando profundas
modificações na educação médica, como fechamento de 94 escolas médicas nos países
pesquisados, e estipulando novas normas de funcionamento para as que permaneceram
36
abertas. Este relatório influenciou o ensino dico de outros países do mundo ocidental,
inclusive o Brasil, direcionando para uma formação médica mais técnico-científica.
A partir da metade do culo XX, o Brasil iniciou um processo de avanço industrial,
com deslocamento da força de trabalho do meio rural para o setor industrial; a saúde passa a
ser direcionada ao modelo hospitalocêntrico, abandonando-se a medicina preventiva e
privilegiando-se a medicina curativa (GEOVANINI et al., 2002).
O crescente avanço da medicina, associado aos padrões sofisticados da alta tecnologia
hospitalar, estimulou o aperfeiçoamento da enfermagem; além do aumento das Escolas de
graduação em Enfermagem em todo o Brasil (até 1974 eram 41; em 1986 havia 93), cursos
de pós-graduação receberam importante impulso (GEOVANINI et al., 2002).
A partir da década de 80 as políticas públicas:
[...] através da estratégia de integração programática, entre instituições de veis
federal, estadual e municipal, objetivava a melhoria da qualidade da assistência,
tendo como linhas principais a universalização, descentralização e hierarquização
dos serviços [...]. Essas diretrizes institucionais racionalizadoras pactuam com a
ideologia e com as práticas do movimento de Reforma Sanitária e do Sistema Único
de Saúde incorporado à nova Constituição (GEOVANINI et al., 2002, p. 41).
A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, é considerada muito
importante por ter promovido uma ampla discussão democrática, com representação político-
social, sobre a reforma no sistema de saúde brasileiro em prol da universalização e igualdade
do direito à saúde, gerando o Sistema Único de Saúde (SUS) (GEOVANINI et al., 2002). As
propostas surgidas nesta Conferência sofreram desdobramentos e modificações, as quais
terminaram beneficiando o sistema empresarial, sendo incorporadas na Constituição de 1988,
garantindo a implantação do SUS e redefinindo o sistema de saúde (GEOVANINI et al.,
2002). Embora a nova Constituição tenha garantido a implantação do SUS, com grande
avanço para a sociedade brasileira, o sucateamento da rede pública na década de 90 abriu
espaço para crescimento da rede privada de saúde, passando esta a responder por 80% dos
serviços de saúde, antagonicamente aos preceitos constitucionais (GEOVANINI et al., 2002).
Geovanini et al. (2002) afirmam que a prática da medicina de grupo tem determinado,
progressivamente, a decadência e a proletarização da medicina no Brasil, com a perda cada
vez maior de sua autonomia, tornando-se dependente de várias formas de seguro-saúde
privado e das práticas de medicina de grupo, influenciando o sistema de saúde brasileiro. A
deterioração deste sistema também refletiu na enfermagem, cada dia mais insatisfeita com um
cenário precário de trabalho para sua atuação, pelos baixos salários e a falta de
reconhecimento social da profissão (GEOVANINI et al., 2002).
37
O processo de globalização é uma realidade também na organização das profissões da
saúde; a decadência da medicina não é um fenômeno que ocorre apenas no Brasil. Zuger
(2004) diz que inúmeras pesquisas realizadas nos Estados Unidos revelam crescente
descontentamento da classe médica. Os motivos são variados, tais como: limitações para o
exercício liberal da profissão; exigências concomitantes do paciente, plano de saúde, hospital
e governo; o custo cada vez maior relacionado às demandas judiciais, determinando a
medicina defensiva; a frustração das expectativas; e falta de tempo. Muitos destes
assemelham-se aos problemas vivenciados pelos médicos no Brasil.
Moreira (2005) considera necessário, para compreender as transformações históricas,
conhecer o papel dos atores externos, pois estes têm interesses específicos no campo da saúde:
Hoje, talvez mais do que nunca, a saúde tornou-se um objeto de decisão do
segmento econômico, político e social. O hospital, ou talvez o sistema de
atendimento à saúde, tornou-se um espaço privilegiado que reflete com nitidez as
próprias mudanças operadas nas sociedades modernas [...].
Além disso, representa cada vez mais o local de trabalho de grupos
socioprofissionais muito particulares, diretamente afetos ao processo de prestação de
cuidados assistenciais, tais como médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e de
terapêutica. Tem um sistema de poder e de autoridade diferente de outras
organizações [...] (MOREIRA, 2005, p. 115).
O contexto histórico-social da enfermagem e medicina apresentado é muito importante
para fundamentar os achados desta pesquisa. Os discursos dos sujeitos-professores são
determinados pela história e ideologias de suas profissões, bem como do momento social em
que estão vivendo. As tradições da área da saúde fazem parte da memória discursiva dos
sujeitos representantes da área no curso de formação os profissionais específicos e os
professores, que englobam este saber fazer e o saber como ensinar. Esses saberes estão
presentes atualizando-se, em suas diversas práticas profissionais. A memória discursiva não
significa que os saberes estejam num lugar fixo à disposição para serem acessados e que
possam ser transmitidos simplesmente; a memória está sempre sendo atualizada/dinamizada
pelos sujeitos (MUTTI, 2007), que se valem dos saberes construídos coletivamente para dar
sentido às novas situações que protagonizam.
38
2. REVISÃO TEÓRICA
Neste capítulo faço uma revisão teórica tanto da Análise de Discurso de Pêcheux,
quanto da Teoria da Ação Comunicativa e Ética Discursiva de Habermas, isto porque, esta
pesquisa circulará na área da saúde e muitos as desconhecem; esta revisão permitirá
fundamentar a interface entre as teorias de Habermas e de Pêcheux, apresentada no final deste
capítulo.
2.1 PÊCHEUX: teoria da análise de discurso
O Brasil é considerado um centro de referência na linha de AD pêcheuxtiana, sendo
crescente o número de pesquisadores não-lingüistas que se vinculam a ela (MAZIÈRE, 2007),
porém, na área da saúde estes são poucos. A Teoria da Análise de Discurso fundada por
Pêcheux viabiliza a articulação entre os pressupostos teóricos e a prática da AD, sendo a base
de sustentação para a interpretação e análise dos discursos docentes.
Cabe salientar que o pensamento de Pêcheux foi trazido para o Brasil por Eni Orlandi,
considerada pesquisadora de suma importância, reconhecida por professores e membros do
Laboratório de História das Teorias Lingüísticas da Universidade de Paris 13, como a
professora de lingüística Mazière que diz: “nos trabalhos dirigidos por Eni Orlandi, [...] As
equipes têm [...], um excelente conhecimento dos textos fundamentais da AD (tudo foi
traduzido) e uma dupla prática da AD, pela crítica e pela verificação em corpora
diversificados” (MAZIÈRE, 2007, p. 65).
A fundamentação teórica da Análise de Discurso de Pêcheux apresentada, será
complementada com Orlandi e outros autores que trabalham com AD, em seis subcapítulos
denominados: língua, ideologia e história; sujeito; discurso; sentido e memória;
acontecimento; e interpretação.
2.1.1 Língua, Ideologia e História
Pêcheux (19
__
) entende que na Análise de Discurso (AD) “a língua e a história
encontram-se presas mutuamente”, ou seja, de um lado encontra-se a teoria lingüística e do
outro o campo político-histórico, sendo ambos indissociáveis na reflexão crítica. “Presa entre
o real da língua e o real da história, a análise do discurso não pode ceder nem a um nem ao
outro, sem correr o risco de cair na pior das complacências narcísicas” (Pêcheux, 19
__
, p. 5).
A questão fundamental da AD é o sentido, constituindo-se “no espaço em que a
Lingüística tem a ver com a Filosofia e com as Ciências Sociais. Em outras palavras, na
39
perspectiva discursiva, a linguagem é linguagem porque faz sentido. E a linguagem faz
sentido porque se inscreve na história” (ORLANDI, 2005a, p. 25). A mesma autora reforça
que a AD foi influenciada por três domínios disciplinares: lingüística, marxismo e psicanálise.
A AD pêcheuxtiana permite que se entenda o discurso do sujeito além do texto,
representando posições, pois a língua é considerada uma forma de materialização do discurso;
é importante lembrar que Pêcheux não trabalha com o conceito abstrato da língua como
sistema, abordado por Saussure, mas sim como manifestação simbólica do sentido, sempre
relacionado ao contexto sócio-histórico. A linguagem traz pistas do sentido que o sujeito
manifesta; estes sentidos são pré-construídos, ecos que circulam na memória do dizer,
resultantes do inconsciente e de fatores sócio-históricos. Portanto, a AD trabalha com o
sentido e não com o conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido pelo
sujeito, relacionando ideologia, história e linguagem (MUTTI, 2004).
Pêcheux (1993b) discordou de Saussure que definia a língua como um objeto
homogêneo, sendo considerada pela lingüística como: transparente, autônoma e imanente.
Ferreira (2005) afirma que Pêcheux leu atentamente Saussure, posicionando-se de forma
divergente a este, e definindo a língua como opaca, passível de equívoco e com a marca da
história inscrita nela. Na concepção de Pêcheux, a língua é heterogênea, opaca, capaz de
equívocos, falhas e deslizes, tendo uma relação direta com a ideologia e sendo compreendida
como ordem significante, uma vez que permite a materialização regulando os sentidos dentro
de um contexto histórico (MELO, 2005).
Em relação à língua, Ferreira (2005, p. 18) explica que “o fato lingüístico do equívoco
não é algo casual, fortuito, acidental, mas é constitutivo da língua, é inerente ao sistema. Isto
significa que a língua é um sistema passível de falhas e por essas falhas, por essas brechas, os
sentidos se permitem deslizar, ficar à deriva”.
Maldidier (2003, p. 15) afirma: “o discurso me parece, em Michel Pêcheux, um
verdadeiro . [...] É o lugar teórico em que se intricam literalmente todas suas grandes
questões sobre a língua, a história, o sujeito”.
A AD de Pêcheux considera a relação entre linguagem e ideologia indissociável; ao
afirmar ser o sujeito interpelado pela ideologia, ou seja, que o sujeito é assujeitado, esta se
diferencia assumindo uma condição de isolamento das demais análises de discurso existentes
(FERREIRA, 2005).
Orlandi (2005a) ao partir:
[...] da idéia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a
materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discurso-
40
ideologia. Essa relação se complementa com o fato de que, como diz M. Pêcheux
(1975), não discurso sem sujeito e não sujeito sem ideologia: o indivíduo é
interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido (ORLANDI,
2005a, p. 17).
Orlandi (2005a, p. 38) reforça que na AD “todo dizer é ideologicamente marcado”,
sendo que a ideologia se materializa nas palavras enunciadas pelos sujeitos. A ideologia na
AD é entendida como “uma concepção de mundo de determinado grupo social em uma
circunstância histórica. Linguagem e ideologia são vinculadas, esta materializa-se naquela.”
(FERNANDES, 2005, p. 29).
Para Ferreira (2001) a ideologia é o:
[...] elemento determinante do sentido que está presente no interior do discurso e
que, ao mesmo tempo, se reflete na exterioridade, a ideologia não é algo exterior ao
discurso, mas sim constitutiva da prática discursiva. Entendida como efeito da
relação entre sujeito e linguagem, a ideologia não é consciente, mas está presente em
toda manifestação do sujeito, permitindo sua identificação com a formação
discursiva que o domina. Tanto a crença do sujeito de que possui domínio de seu
discurso, quanto a ilusão de que o sentido existe como tal, são efeitos ideológicos
(FERREIRA, 2001, p.17).
Na AD uma mesma palavra ou expressão ou proposição pode receber sentidos
diferentes, pois não existe um sentido “próprio” ligado à literalidade da palavra (PÊCHEUX,
1997). O sentido será constituído na formação discursiva na qual foi produzido (PÊCHEUX,
1997; MALDIDIER, 2003), sendo, portanto, determinado pelas condições de produção
(história, ideologia e sujeito).
Pêcheux (1997, p. 160) afirma “é a ideologia que fornece as evidências pelas quais
‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, [...] evidências que fazem com que uma
palavra ou um enunciado ‘queira dizer o que realmente dizem’[...]”. O autor acredita que a
ideologia “através do ‘hábito’ e do ‘uso’, está designando, ao mesmo tempo, o que é e o que
deve ser [...]”.
Pêcheux partiu da tese central de Althusser que diz “A ideologia interpela os
indivíduos em sujeitos (PÊCHEUX, 1997, p. 148, p.155; MALDIDIER, 2003, p. 39),
introduzindo a noção de interpelação, afirmando “[...] que os indivíduos são ‘interpelados’ em
sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam
‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhe são correspondentes” (PÊCHEUX, 1997,
p.161); entendendo que a ideologia interpela o indivíduo em sujeito, tornando-se assim sujeito
ideológico (PÊCHEUX, 1997, p.155 e 162):
[...] a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela
identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual
ele é constituído como sujeito): essa identificação [...] apóia-se no fato de que os
elementos do interdiscurso ([...] enquanto ‘pré-construído’ e ‘processo de
41
sustentação’) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o
determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito (PÊCHEUX, 1997, p.163).
O sujeito tem a ilusão de autonomia sobre seu dizer; porém, ele se assujeita à
formação discursiva dominante em que representa, e seu imaginário não permite reconhecer
seu assujeitamento ao outro, impondo-se sob a aparência de autonomia (PÊCHEUX, 1997,
p.163-4).
Pêcheux (1997) explica que o:
[...] “pré-construído” corresponde ao “sempre-já-aí” da interpelação ideológica que
fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalidade (o
“mundo das coisas”), ao passo que a “articulação” constitui o sujeito em sua relação
com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a
dominação da forma-sujeito (PÊCHEUX, 1997, p.164).
Toda formação discursiva é formada pelo interdiscurso e o intradiscurso; o
interdiscurso refere-se ao pré-construído e o intradiscurso é o “fio do discurso”, ou seja, “o
funcionamento do discurso com relação a si mesmo” (PÊCHEUX, 1997, p.166).
Na AD a ideologia manifesta-se no posicionamento do sujeito quando se filia a um
discurso, sendo o processo de constituição do imaginário, que está no próprio inconsciente,
isto é, o sistema de idéias constitui a representação. A história representa o contexto sócio
histórico e a linguagem é a materialidade do texto, gerando “pistas” do sentido, que o sujeito
evidencia assumindo posição no discurso (MUTTI, 2004).
Bolognini (2003, p. 188), ao fazer um breve histórico do termo ideologia, parte da
primeira vez, 1796, quando foi utilizado como forma de “analisar as sensações e as idéias, ou seja,
sua fundamentação seria dada a partir da experiência, da prática”. Dentro desta perspectiva
histórica, aparecem rias redefinões do termo, conforme o passar do tempo, ressaltando a
posição central do conceito de ideologia dentro do marxismo e destacando o “fato de Marx ter
relacionado ideologia com fatores sociais e históricos”. Neste relato, a autora chega a cheux,
vinculando à ideologia a constituão do sentido e do sujeito. Pêcheux (apud BOLOGNINI, 2003,
p. 188) diz que é a coletividade, como entidade preexistente, que impõe sua marca ideológica em
cada sujeito, sob a forma de uma ‘socialização’ do indivíduo em ‘relações sociais’ concebidas
como relações intersubjetivas”. Devido ao comprometimento dos sujeitos com a ideologia, estes
acreditam serem as palavras enunciadas transparentes, tendo apenas um sentido; porém, o
analista precisa saber que ao analisar o discurso deve buscar a relação entre ideologia,
constituição do sentido e do sujeito (ORLANDI apud BOLOGNINI, 2003).
Apresentando várias definições referentes à terminologia utilizada na AD, Fernandes
(2005, p. 29) define ideologia como “uma concepção de mundo de determinado grupo social
em uma circunstância histórica. Linguagem e ideologia são vinculadas, esta materializa-se
42
naquela”; o que marca as diferentes posições dos sujeitos é a ideologia, sendo esta
imprescindível e inerente ao discurso (FERNANDES, 2005). Quando se verificam
divergências nas posições dos discursos, notam-se diferentes inscrições ideológicas dos
sujeitos; o autor explica:
Se na exterioridade do lingüístico, no social, posições divergentes que se
contrastam, nota-se a coexistência de diferentes discursos concomitantes, isto
implica diferenças quanto à inscrição ideológica dos sujeitos e grupos sociais em
uma mesma sociedade, daí os conflitos, as contradições, pois o sujeito, ao mostrar-
se, inscreve-se em um espaço socioideológico e não em outros, enuncia a partir de
sua inscrição ideológica; de sua voz, emanam discursos, cujas existências
encontram-se na exterioridade das estruturas lingüísticas enunciadas. Porém, o social
e o ideológico que possibilitam falar em discursos, assim como o discurso, têm
existência na História (FERNANDES, 2005, p. 25).
Orlandi (2005a) enfatiza na sua obra o fato de ser o sujeito um produto histórico e
reflete sobre a forma-sujeito histórica na condição atual enfrentada por ele, ao mesmo tempo
livre e submisso; esta dicotomia é explicada pela liberdade sem limites de poder dizer tudo o
que pensa e, ao mesmo tempo, precisar submeter-se ao conhecimento da língua para poder
expressar-se. A este fenômeno Orlandi (2005a) denomina assujeitamento.
Ao recorrer à história, a AD tem como finalidade compreender os “sentidos
produzidos no discurso, de acordo com as condições de produção histórico-sociais peculiares
à existência dos sujeitos” (FERNANDES, 2005, p. 59).
Portanto, a Análise de Discurso é herdeira de três áreas do conhecimento: Lingüística,
Psicanálise e Marxismo (ORLANDI, 2005a, p.20). A autora citada explica essa ligação
dizendo que a AD interroga a lingüística pela historicidade, questiona o materialismo
perguntando pelo simbólico e, por último, se demarca da psicanálise pelo modo que trabalha a
ideologia relacionada com o inconsciente.
Diante do exposto, concluo que um enunciado poderá ter vários sentidos diferentes se
for produzido em momentos históricos e ideológicos diferentes, podendo desta forma o
enunciado tornar-se outro.
Neste item transito pela teoria de Michel Pêcheux, abordando aspectos importantes
que entrecruzam a língua, a ideologia e a história na constituição da Análise de Discurso. Ao
optar pela AD de matriz francesa, deve-se romper com a “visão estritamente lingüística e
compreender as inter-relações da linguagem com a História e com a Psicanálise”
(FERNANDES, 2005, p. 14).
2.1.2 Sujeito
Na AD a noção de sujeito não é focalizada em um ser humano individualizado, no
43
indivíduo homogêneo falante, com uma existência particular no mundo, mas sim no sujeito
que se encontra inserido em um contexto social, histórico e ideologicamente marcado
(FERNANDES, 2005). O autor diz que este sujeito discursivo é um ser social, apreendido em
um espaço coletivo, plural, atravessado pela pluralidade de vozes sociais, constituído por
diversos discursos, marcado pela heterogeneidade, conflitos e polifonia, por isto, inscreve-se
em diferentes formações discursivas. A presença de diversas vozes no discurso do sujeito,
oriundas de diferentes discursos e diversos espaços sociais, é entendida pela AD como
polifonia (poli = muitas + fonia = vozes). Foi Bakhtin o introdutor do termo polifonia na AD
para denominar a pluralidade de vozes que constituem a linguagem do sujeito (CORACINI,
2003; FERNANDES, 2005).
Coracini (2003, p.147-8), quando discute a noção de sujeito da AD, ressalta que
“contrariamente ao sujeito cartesiano, logocêntrico, uno, homogêneo, igual a si mesmo, é
cindido, clivado, heterogêneo, perpassado pelo inconsciente”. A autora explica tratar-se de um
sujeito psicanalítico atravessado pelo inconsciente, que internaliza o outro na sua própria
identidade e subjetividade, materializando o inconsciente via simbólico através da língua;
embora o sujeito busque sua individualidade, ele é atravessado e habitado pelos outros que, de
alguma maneira, participaram da sua formação, através de atitudes, textos ou memória
discursiva. Para Orlandi (2005a, p. 19-20) a contribuição da Psicanálise para a AD ocorre
“com o deslocamento da noção de homem para a de sujeito. Este, por sua vez, se constitui na
relação com simbólico, na história”; portanto, conclui a autora, “o sujeito discursivo funciona
pelo inconsciente e pela ideologia”. Orlandi (2004, p.26) diz que na AD “a noção de sujeito
reaparece sob duas formas o sujeito empírico e o sujeito psicológico”. Ferreira (2005)
concorda que o sujeito da AD não implica somente o inconsciente, mas também a ideologia,
ambos materializados pela linguagem.
Orlandi (1999) afirma que o sujeito se constitui ao ser interpelado pela ideologia,
portanto afetado pelo simbólico. A mesma autora explica que ocorre assujeitamento quando o
sujeito se submete tanto à língua quanto ao simbólico.
Para Ferreira (2001, p. 12), assujeitamento é o “movimento de interpelação dos
indivíduos por uma ideologia, condição necessária para que o indivíduo torne-se sujeito do
seu discurso ao, livremente, submeter-se às condições de produção impostas pela ordem
superior estabelecida, embora tenha ilusão de autonomia”.
Mutti (2004) explica ainda que o assujeitamento ocorre inconscientemente quando o
sujeito interioriza o conhecimento da construção coletiva, filiando-se e sendo porta-voz
daquele discurso. É neste significado que Pêcheux preconizou as “ilusões” do sujeito,
44
explicadas por ele como um duplo esquecimento. Pêcheux (1997), inspirado na interpretação
freudiana da oposição entre o “‘sistema pré-consciente-consciente’ e o ‘sistema
inconsciente’”, diferenciou dois tipos de “esquecimentos”, que funcionam no e pelo sujeito do
discurso, assim denominados: esquecimento n
o
1 como o esquecimento inconsciente”,
portanto inacessível ao sujeito-falante, onde o efeito de sentido se constitui pela interpelação
ideológica (processo exterior), quando esse se filia a uma posição ideológica; e o
esquecimento n
o
2”, o qual se apóia na liberdade do sujeito-falante, ou seja, este
seleciona na formação discursiva que o domina aquilo que vai enunciar, colocando
fronteiras entre o “dito” e o “rejeitado”, o “não dito” (PÊCHEUX, 1997, p. 173-175;
MALDIDIER, 2003, p. 42); portanto, o efeito de sentido se constitui pela interpelação
discursiva.
Ferreira (2005) relata que a AD foi buscar um sujeito até então descartado,
encontrando-o, em parte, na psicanálise como:
[...] um sujeito descentrado, afetado pela ferida narcísica, distante do sujeito
consciente, que se pensa livre e dono de si. A outra parte desse sujeito desejante,
sujeito do inconsciente, a AD vai encontrar no materialismo histórico, na ideologia
althusseriana, o sujeito assujeitado, materialmente constituído pela linguagem e
devidamente interpelado pela ideologia (FERRREIRA, 2005, p. 14).
Então o sujeito do discurso coloca-se entre o sujeito da ideologia (assujeitado) e da
psicanálise (inconsciente), ambos constituídos materialmente pela linguagem. Portanto, na
AD o sujeito não é apenas ideológico ou apenas sujeito do inconsciente, nem mera adição
destas partes; a grande diferença desse sujeito é a materialidade lingüística e histórica que a
AD acrescenta (FERREIRA, 2005), fazendo com que o sujeito produza sentidos,
interpretando, e sendo capaz de mudanças.
2.1.3 Discurso
Desde a década de 80 existe uma proliferação do termo “discurso”; porém, nem todas
as utilizações seguem a mesma noção teórica, como mostra o “Dicionário de Análise do
Discurso”, publicado por Charaudeau e Maingueneau (2004), onde se encontram vários
enfoques, muitas vezes entrando em oposição. A noção de discurso em AD “nada tem a ver
com a noção de parole/fala referida por Saussure” (FERREIRA, 2001, p.14).
Fernandes (2005, p. 75) diz existir um modismo relacionado à Análise de Discurso; o
autor relata que tem encontrado “o uso de discurso referido como o objeto de estudo de outras
subáreas da Lingüística. Discurso, desprovido de um cuidado teórico, é considerado por vezes
como equivalente a texto, outras vezes a fala, etc.” Ao buscar-se no dicionário uma palavra,
45
parece que o significado esteja posto nela; a AD nega esta imanência de significados
“colados” nas palavras, pois ela busca os sentidos produzidos decorrentes da inscrição
socioideológica e histórica dos sujeitos envolvidos (FERNANDES, 2005). O mesmo autor
ainda diz que a Análise de Discurso promoveu uma ruptura de paradigmas, acreditando que o
discurso não se apresenta estático, mas em constante movimento com movências de sentidos.
Como o próprio nome indica, a Análise de Discurso tem como objeto de estudo o
discurso e não a ngua e a gramática, embora essas também o interessem (ORLANDI,
2005a). Orlandi (2005a, p. 15) coloca que etimologicamente a palavra discurso tem a idéia de
curso, de movimento, e o “discurso é assim palavra em movimento”. Orlandi (2005a, p. 21),
com base em Pêcheux (Análise Automática do Discurso AAD69), define o discurso como
“efeito de sentidos entre locutores” e considera “o discurso como um objeto social”,
manifestando sua materialidade através da língua (ORLANDI, 2004, p.27).
Courtine (1999) reforça que a AD não trata da ngua, mas sim do discurso.
Conseqüentemente, difere do sentido atribuído pelos lingüistas à materialidade da língua; o
autor afirma:
[...] não na ordem do gramatical, mas na ordem do enunciável, a ordem que
constitui o sujeito falante em sujeito de seu discurso e ao qual ele se assujeita em
contrapartida. [...] pensar o assujeitamento do sujeito falante na ordem do discurso é
necessariamente dissociar e articular dois níveis de descrição: 1) o nível da
enunciação por um sujeito enunciador em uma situação de enunciação dada (o ‘eu’,
o ‘aqui’ e o ‘agora’ dos discursos); 2) o nível do enunciado, no qual verá, num
espaço vertical, estratificado e desnivelado dos discursos, que eu chamaria
interdiscurso [...] (Courtine, 1999, p. 16-18).
Na AD, portanto, o discurso proferido pelo sujeito está permeado pela voz da
coletividade, compartilhando aspectos ideológicos e socioculturais comuns; os diferentes
discursos materializados por enunciados semelhantes “têm sua unidade pelos efeitos de
sentido decorrentes da inscrição ideológica desses enunciados” (FERNANDES, 2005, p.57).
Este entrecruzamento de diferentes discursos e formações ideológicas constitui a
formação discursiva (FD) que refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época
e espaço social [...]” (FERNANDES, 2005, p. 60).
Toda FD é heterogênea, composta pelo intradiscurso e o interdiscurso. O
interdiscurso é constituído pelos “saberes”, “enunciados interdiscursivos”, construções
coletivas que fazem parte da “memória do dizer”, os sentidos do que é dizível, do que circula
na sociedade, sendo pré-construído e existindo antes do sujeito; o intradiscurso é
considerado o fio do discurso, “seqüência discursiva” (SD) concreta, palavras usadas, a
linearização do discurso, a formulação da materialidade do texto (MUTTI, 2004;
46
FERNANDES, 2005).
Permeada de aspectos ideológicos e políticos, a enunciação pressupõe a relação entre
intra e interdiscurso. É o processo de tomada das palavras que ocorre em uma situação
empírica, tendo em vista a produção de sentidos do sujeito; abrange interlocução, uso da
língua e condições empíricas da situação (MUTTI, 2004).
Orlandi (2005a, p.15-6) concebe o discurso na AD como mediador necessário entre o
sujeito e a realidade natural e social; não trabalha com “a língua enquanto um sistema
abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando,
considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas [...]”.
Ferreira (2005, p. 19) traz a metáfora da rede ao referir-se ao discurso; a autora diz ser
comum atualmente referir-se ao “tecido ‘discursivo’ ou ‘tessitura’ para falar-se de discurso”.
É constante também se referirem aos nós, aos fios que se cruzam, se rompem, abrem furos.
O discurso é, portanto, o “objeto teórico da AD (objeto histórico-ideológico),
produzido socialmente através de sua materialidade específica (a língua)” (FERREIRA, 2001,
p.14). Pelo exposto, fica evidente que na AD a formulação teórica do discurso não trata da
língua, mas engloba de forma indissociável o sujeito, a história e a ideologia.
2.1.4 Sentido e Memória
Para produzir sentidos, na perspectiva da AD, deverá ser considerado o contexto
histórico-social onde se produziu o discurso, a inscrição ideológica da enunciação e as
posições dos sujeitos que o enunciaram; embora os sentidos pareçam estar sempre no
discurso, eles não estão soltos e precisam ser interpretados (ORLANDI, 2005a).
Lembrando que a AD considera o discurso heterogêneo e em constante movimento,
conseqüentemente, o sentido não pode ser prévio ao discurso. O sujeito tem a ilusão de
controlar o sentido do seu dizer, porém a produção de sentidos ocorre fora do alcance do
sujeito (FERNANDES, 2005).
A variança dos sentidos, segundo Pêcheux (2002, p. 22) deve-se ao fato de que a
materialidade discursiva propicia um “jogo metafórico em torno do enunciado”, que
sobredetermina “o acontecimento, sublinhando sua equivocidade”. Pêcheux (1993b, p. 96),
denomina de efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma substituição
contextual para lembrar que esse ‘deslizamento de sentido’ [...] é constitutivo do ‘sentido’”;
portanto o efeito metafórico é considerado por Pêcheux um fenômeno semântico; o
“deslizamento de sentido” também faz parte do sentido, pois este sentido não se encontra
preso na palavra.
47
Orlandi (2005a, p. 20) lembra que “as palavras simples do nosso cotidiano chegam
até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que no entanto
significam em nós e para nós”.
É importante ressaltar que, na AD, tanto o sujeito quanto o sentido não podem ser
tratados a priori, eles se constituem no discurso (MELO, 2005), e somente através do gesto de
interpretação ocorrerá a produção de efeitos de sentidos no enunciado, considerados o
interdiscurso e as condições de produção.
A noção de sentidos é “dependente da inscrição ideológica da enunciação, do lugar
histórico-social de onde se enuncia; logo, envolve os sujeitos em interlocução. De acordo com
as posições dos sujeitos envolvidos, a enunciação tem um sentido e não outro(s) [...]”
(FERNANDES, 2005, p. 27).
Para Pêcheux (1997):
Um efeito de sentido não preexiste à formação discursiva na qual ele se constitui. A
produção de sentido é parte integrante da interpelação do indivíduo em sujeito, na
medida em que, entre outras determinações, o sujeito é “produzido como causa de
si” na forma-sujeito do discurso, sob o efeito do interdiscurso (PÊCHEUX, 1997, p.
261).
Como as condições do contexto sócio-histórico e ideológico influenciam diretamente
na produção do discurso, conseqüentemente no sentido, na AD, a memória do dizer se fará
presente no discurso do sujeito. Ao se referir à memória na perspectiva da AD, Pêcheux
(1999, p. 50) explica que a “memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente
psicologista da memória individual, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da
memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador”.
Orlandi (2004) explica que “memória do dizer” é o interdiscurso; o sujeito toma como
suas as palavras do seu discurso, porém, ao materializar o enunciado, ele se remete a um outro
discurso, o qual através da ideologia:
[...] produz o efeito de evidência, e da unidade, sustentando sobre o já dito os sentidos
institucionalizados, admitidos como ‘naturais’. [...] A ideologia, por sua vez, é
interpretão de sentido em certa direção, dirão determinada pela relação da
linguagem com a história em seus mecanismos imaginários (ORLANDI, 2004, p. 31).
Pêcheux (1999, p. 56) não entende a memória como “memória individual”, mas sim
como memória social construída pela história; ele entende que a memória “[...] é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de
retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas
e contra-discursos”. A memória necessita de novas enunciações e dos sentidos
estabilizados; por isto, penso que na memória do dizer do sujeito-professor serão expressas as
48
regras sociais estabelecidas, as quais regulamentam a vida social, construídas discursivamente
pelos sujeitos, atribuindo significados nas diferentes práticas que eles participam, podendo ser
captadas através do procedimento analítico da AD nos discursos dos professores.
Achard (1999, p.11) considera que “a estruturação do discursivo vai constituir a
materialidade de uma certa memória social”. Esta memória discursiva não se refere às
lembranças do passado, mas sim a um “espaço de memória como condição do funcionamento
discursivo constitui um corpo-sócio-histórico-cultural. Os discursos exprimem uma memória
coletiva na qual os sujeitos estão inscritos” (FERNANDES, 2005, p.60).
Cabral dos Santos (2004, p. 109) diz que um “trabalho acadêmico com o discurso não
pode existir sem que se aborde a natureza de significação dos sentidos”. Por concordar com o
autor anteriormente citado e perceber a importância dos sentidos nos discursos dos sujeitos,
defini como objetivo desta pesquisa compreender os efeitos de sentidos produzidos no
discurso dos sujeitos docentes, da enfermagem e medicina, sobre a moral(idade) e ética(idade)
na formação dos discentes. Embora o objetivo desta pesquisa seja direcionado à compreensão
dos sentidos, para ser alcançado observei a necessidade de enfocar também a memória,
porque percebo “a memória do dizer” muito presente nos discursos dos sujeitos da área da
saúde; esses dois aspectos serão mais enfocados na análise desta pesquisa.
Concordo com Pêcheux (1993a) quando enfatizou como a principal característica da
AD a junção entre fundamentos teóricos e a prática da análise; sendo assim, achei relevante
abordar a fundamentação teórica sobre sentido e memória, para posteriormente na prática
enfatizar mais estes dois aspectos na interpretação dos discursos dos professores.
2.1.5 Acontecimento
Na interpretação e análise desta pesquisa buscarei apreender o acontecimento
absorvido na memória social, a fim de compreender os efeitos de sentidos emergidos no
discurso do sujeito-professor.
É importante destacar que Pêcheux (1999, p.52) liga a memória ao acontecimento; ele
“a questão da memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, [...]
[onde] a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento
a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’”, ou seja, os pré-construídos, discursos transversos e
outros que se encontram na memória do dizer coletivo. Para Pêcheux (1999), a questão crucial
é saber onde encontrar os implícitos no discurso analisado; ele se une ao pensamento de
Pierre Achard (1999) no debate a respeito da memória, acreditando nunca poder encontrar
explicitamente o implícito no discurso do sujeito. No entanto, a repetição causa o efeito
49
“regularização” (denominação atribuída por Achard) onde residem os implícitos; assim sendo,
o que se repete no discurso estaria estabilizado na memória. Pêcheux (1999, p. 52) concorda
com Achard quando acredita que a regularização discursiva é “suscetível de ruir sob o peso do
acontecimento discursivo novo”, perturbando a memória; esta, ao absorver o acontecimento,
“desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior”.
Pêcheux (1999, p. 50) acredita existir “uma tensão contraditória no processo de
inscrição do acontecimento no espaço da memória”, podendo o acontecimento escapar, não
ficando registrado na memória, ou também ser “absorvido na memória, como se não tivesse
ocorrido”.
Para Pêcheux (1999, p. 51), há uma negociação entre o “acontecimento histórico
singular e o dispositivo complexo de uma memória”, onde o sujeito, de memória social, ao
passar o visível ao nomeado efetua sua leitura.
Assim, existirá sempre [...] um jogo de força na memória, sob o choque do
acontecimento: um jogo de força que visa manter uma regularização pré-existente
com os implícitos que ela veicula, [...], estabilização parafrástica negociando a
integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo; mas
também, ao contrário, o jogo de força de uma desregulação” que vem perturbar a
rede dos “implícitos” (PÊCHEUX, 1999, p. 53).
Ao fazer uma leitura do pensamento de Pêcheux, Mutti (2007) afirma que a memória é
mobilizada:
[...] pelo acontecimento, numa tensão entre regulação e a desregulação [...]. Na
atividade de reconstituição do acontecimento pela memória, o sujeito mobiliza
implícitos, sentidos pré-construídos que tendem a reforçar a regularização, pois
surtem o efeito de já-lá; no entanto, se desestabilizam pelo sujeito que os resgata na
sua enunciação, sempre única (MUTTI, 2007, p. 265).
Pêcheux (2002, p. 51 e 53) ainda considera “o fato lingüístico do equívoco”, “a
equivocidade, a ‘heterogeneidade constitutiva(a expreso é de J. Authier) dangua”; para ele,
todo enunciado es exposto “ao equívoco da língua [...] [e] intrinsecamente suscetível de
tornar-se outro, diferente de si mesmo”, portanto, “toda seqüência de enunciados [...] [permite]
pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação”. Deste modo cheux (2002)
afirma:
[...] ninguém pode estar seguro de “saber do que se fala”, porque esses objetos estão
inscritos em uma filiação e não são o produto de uma aprendizagem [...]. O fantasma
da ciência régia é justamente o que vem, em todos os veis, negar esse equívoco,
dando a ilusão que sempre se pode saber do que se fala, isto é, se me compreendem
bem, negando o ato de interpretação no próprio momento em que ele aparece
(PÊCHEUX, 2002, p. 55).
Mutti (2007, p. 265) lembra que a memória, heterogênea e dinâmica, encontra-se
imbricada ao conceito de discurso, estando “na dependência da implicação dos conceitos de
50
estrutura e acontecimento que estão na origem dos enunciados”.
Pêcheux (2002, p. 56) finaliza sua reflexão sobre a discursividade como estrutura ou
como acontecimento alertando que o gesto de incorporar um discurso dado a um “corpus”
“corre sempre o risco de absorver o acontecimento desse discurso na estrutura da série, na
medida em que esta tende a funcionar como transcendental histórico, grade de leitura ou
memória antecipadora do discurso em questão”.
2.1.6 Interpretação
Considero importante, inicialmente, fazer uma pequena reflexão sobre a diferença
entre Análise de Conteúdo (AC) e Análise de Discurso (AD), porque na área da saúde a AC é
muito utilizada e, algumas vezes, elas são confundidas (CAREGNATO, MUTTI, 2006). O
próprio Pêcheux (1993b) preocupou-se em diferenciar a AC da AD, destacando como
diferença o modo de acesso ao objeto, conforme as orientações conceituais de cada tipo de
análise. Enquanto a interpretação da AC centra-se no texto, a AD busca compreender os
sentidos manifestos no discurso (CAREGNATO, MUTTI, 2006). Orlandi (2004) reforça a
diferença existente entre AC e AD, quando diz que na AC se parte da exterioridade para o
texto, enquanto na AD procura-se conhecer a exterioridade pela forma como os sentidos são
trabalhados no texto a partir da sua discursividade. A mesma autora afirma ser a AC o método
clássico para interpretar a linguagem, preocupando-se com os conteúdos; já a AD não vai
trabalhar com a forma e o conteúdo, mas irá buscar os efeitos de sentidos que se pode
apreender
mediante interpretação. Portanto, ela trabalhará com os processos de constituição da
linguagem e da ideologia e não com os conteúdos.
Na análise de discurso pêcheuxtiana “é impossível analisar um discurso como um
texto, isto é, como uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma, mas que é necessário
referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de
produção” (PÊCHEUX, 1993b, p. 79). Portanto, a Análise de Discurso deve considerar a
interpretação como um “gesto”, uma forma de abordagem, um ato no nível simbólico, sempre
passível de equívoco porque os sentidos não estão soltos nem se encontram fechados e
evidentes como parecem (ORLANDI, 2004).
Para Orlandi (2005a, p. 60-1), a interpretação ocorre em duas ocasiões da análise: 1)
“o sujeito que fala interpreta e o analista deve procurar descrever esse gesto de interpretação
do sujeito que constitui o sentido submetido à análise”; 2) o analista envolve-se na
interpretação, sendo “necessário introduzir-se um dispositivo teórico que possa intervir na
relação do analista com os objetivos simbólicos que analisa, produzindo um deslocamento em
51
sua relação de sujeito com a interpretação”.
Orlandi (2005a, p. 83) afirma que o não dito e o silenciado também constituem
sentidos significando; portanto, torna-se necessário dar visibilidade ao não-dizer através da
análise. Segundo a autora, existem diferentes formas de silêncio; ela distingue duas: 1)
silêncio fundador; e 2) silenciamento ou política do silêncio (ORLANDI, 2005a, 2005b). A
autora diz:
1. Silêncio Fundador, aquele que é necessário aos sentidos: sem silêncio não
sentido [...]. É o silêncio que existe nas palavras, que as atravessa, que significa o
não-dito e que um espaço de recuo significante, produzindo as condições para
significar. O silêncio como horizonte, como iminência do sentido, é a respiração da
significação para que o sentido faça sentido. 2. Política do Silêncio. Neste caso
temos 2.1. Silêncio Constitutivo, que nos indica que para dizer é preciso não dizer,
em outras palavras, todo dizer apaga necessariamente outras palavras produzindo um
silêncio sobre os outros sentidos e 2.2. Silêncio Local, ou Censura, que remete
propriamente à interdição: apagamento de sentidos possíveis mas proibidos, aquilo
que é proibido dizer em uma certa conjuntura. As duas formas de silêncio
acompanham qualquer discurso, qualquer processo de produção de sentidos. Mas
elas funcionam de maneira diferente (ORLANDI, 2005b, p. 128).
Bolognini (2003, p. 189) acredita que o silenciamento é uma tentativa “de apagar uma
história, uma ideologia, que possa servir de ameaça às relações de poder de um determinado
grupo social”. Ao fundamentar-se em Foucault, com embasamento em Pêcheux e no trabalho
de Orlandi sobre as formas de silêncio, Bolognini (2003, p. 189) concluiu: “o silenciamento é
uma certeza de que a história, a ideologia desejada por aqueles que detêm o poder entrem em
cena na cadeia discursiva”.
Orlandi (2003, p.11; 2004, p.21) tem afirmado freqüentemente que na AD “não
sentido sem interpretação”, portanto deverá sempre existir uma interpretação para dar
visibilidade ao sentido que o sujeito pretendeu produzir no seu discurso. Cabral dos Santos
(2004, p. 111) a interpretação da AD como “uma operação hermenêutica que possibilita ao
analista se colocar na posição de ‘sujeito desejante’ para instituir formas e disposições na
busca pelos efeitos de sentido em conjunturas enunciativas”. Orlandi (2005a, p. 61) diz
“que o analista de discurso, à diferença do hermeneuta, não interpreta, ele trabalha (n)os
limites da interpretação. Ele se coloca em uma posição deslocada que lhe permite contemplar
o processo de produção de sentidos em suas condições”.
A interpretação do discurso, na perspectiva do analista, deverá ser feita sempre entre o
interdiscurso e o intradiscurso, chegando às posições representadas pelos sujeitos através da
indicação de efeitos de sentidos, vinculadas às marcas lingüísticas; portanto, a interpretação
caberá tanto ao analista do discurso quanto a todo cientista que produz sentidos (MUTTI,
2005).
52
2.2 HABERMAS: teoria da ação comunicativa e ética discursiva
Habermas oferece um material rico na sua obra para problematizar a prática educativa,
pois se preocupou com a educação em vários momentos, “desde sua tese sobre Estudantes e
Política(1966) e artigos sobre o papel da universidade na democracia (1970), como na sua
obra principal Teoria da Ação Comunicativa (1984) [...]” (MARTINI, 1996, p. 11). Martini
(1996, p.3) afirma “que os professores do terceiro grau parecem ter mais dificuldade em discutir
a sua prática do que os professores dos outros níveis de ensino”; a autora reforça a importância
de desenvolver reflexões filosóficas sobre a educação e sua ptica (MARTINI, 1993).
Portanto, tentarei compreender os efeitos de sentidos produzidos no discurso dos
sujeitos docentes, de cursos de enfermagem e medicina, sobre a questão ético-moral na
formação dos discentes, fundamentada no pensamento de Habermas sobre moral e ética e:
[...] na perspectiva do paradigma habermasiano mundo da vida e sistema [...] pelo
questionamento da racionalidade da ação educativa, atualmente defrontada com as
perplexidades da ruptura da tradição e com o relativismo e heterogeneidade das alternativas
culturais da pós-modernidade (MARTINI, 1993 apud MARTINI, 1996, p. 7).
Este item aborda a teoria da racionalidade de Habermas e sua ética discursiva,
permitindo, posteriormente, articular estes com alguns elementos teóricos da Análise de
Discurso de Pêcheux.
Como o objetivo maior de uma pesquisa é a produção e divulgação de conhecimento,
acredito que esta pesquisa a posteriori circulará entre profissionais da área da saúde; por isto,
considero importante aos leitores desta área apropriar-se de alguns conceitos filosóficos
chaves para compreensão da pesquisa qualitativa, da discussão filosófica e crítica social; neste
item vou trazer alguns conceitos que podem parecer primários aos teóricos da filosofia,
porém, são esclarecedores e foram indispensáveis para meu embasamento quando decidi
mergulhar nesta área do conhecimento.
Inicialmente, apresentarei alguns elementos da Teoria da Ação Comunicativa;
seguindo, explico o paradigma habermasiano mundo da vida e sistema”; após, alguns
aspectos da chamada virada lingüística; posteriormente, o olhar de Habermas sobre moral e
ética; e, por último, a ética discursiva.
2.2.1 Teoria da Ação Comunicativa
Habermas (1987), ao criar sua teoria da ação comunicativa, elaborada na década de
setenta e publicada em 1981, uniu a teoria da racionalidade à teoria da sociedade, tentando
criar uma teoria que abordasse de forma adequada a problemática da racionalidade
53
comunicativa social (HABERMAS, 1991b).
Por “ação comunicativa”, Habermas (1991b) entende a ação social realizada por meio
da linguagem, na qual os agentes que estão em interação no “mundo da vida” percebem e
expressam na fala a perspectiva em que o mundo sociocultural da vida se reproduz. O filósofo
acredita que os diferentes sujeitos ficam subordinados entre eles através das ações de
linguagem, onde os falantes pretendem inteligibilidade para o que dizem, retidão para suas
ações de fala em relação ao contexto normativo vigente e verdade para o conteúdo do que
dizem nos seus atos de linguagem como expressão do que pensam.
Na teoria da ação comunicativa, Habermas (1987) parte do princípio do qual, ao se
utilizar a comunicação, empregando a linguagem através do ato de fala, é necessária uma
racionalidade comunicativa orientada ao entendimento; essa prática comunicativa entre
diversos participantes remete a diversas formas de argumentação, as quais, ao gerar a
possibilidade de consenso por meio da racionalidade social, superam a subjetividade de seus
pontos de vista, assegurando à comunidade a unidade do mundo objetivo e a
intersubjetividade do contexto em que se desenvolvem suas vidas. Deste modo, no discurso
prático, quando os sujeitos argumentam, partem do princípio de que todos os sujeitos são
livres e iguais buscando verdade e validade, interessando apenas a força do melhor argumento
para o entendimento (HABERMAS, 1991a), adotando uma posição performativa de
participante no discurso.
Argumentação, para Habermas (1987), implica no tipo de fala em que os participantes
tematizam aspectos do seu mundo da vida com razões, tendo as pretensões de validade como
critério, tentando aceitá-las ou recusá-las por meio de argumentos. O filósofo afirma que a
força de uma argumentação se mede, em um contexto, pela pertinência das razões expostas,
isto é, se a argumentação é capaz de convencer os participantes, de motivá-los a aceitar as
pretensões de validade. A auto-reflexão acerca das condições de validade “[...] permanece no
âmbito da autocompreensão lingüística e de sua articulação publicamente válida; em suma:
ela conduz ao a priori do argumentar e do seu logos, que não pode ser transcendido pelo
destino do ser” (APEL, 1989, p. 75).
Apel se mantém mais fiel à tradição transcendental, enquanto a priori do
entendimento universal, e Habermas busca no próprio processo discursivo as condições quase
que transcendentais para a racionalidade e universalização de perspectivas recíprocas
(MARTINI, 2007).
A teoria criada pelo filósofo é considerada um processo que se caracteriza como uma
teoria da racionalidade e uma teoria da sociedade, em busca do entendimento entre os sujeitos
54
que partilham o mesmo mundo da vida. Para Habermas, entendimento significa obter acordo
entre os participantes através da comunicação e interação, problematizando aspectos do
mundo da vida com exigência de inteligibilidade e pretensões de validade (MARTINI, 2005).
Tais pretensões fazem referência ao mundo da vida dos participantes nas suas
dimensões relativas aos enunciados sobre fatos no mundo (pretensões de verdade),
pretensões sobre regulamentação de normas de ação (pretensões de validade
normativa) e expressões relativas a vivências do mundo subjetivo, de caráter
estético-expressivo (pretensões de veracidade) (MARTINI, 2005, p.4).
Segundo Martini (2005), Habermas tentou:
Elaborar uma teoria de evolução social associada a uma teoria da racionalidade que
integra teoria e prática e articula o processo de racionalização da modernidade com a
diversidade de contextos sociais e culturais do mundo da vida histórico (MARTINI,
2005, p.683).
Freitag (1989, p. 22) considera a base da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas o
dado pragmático da linguagem, fundamentando todo o processo interativo que envolve “as
práticas comunicativas dos três mundos: dos objetos, das regras, do sujeito”. A autora explica:
Em sua Teoria da ação comunicativa (1981-1983) Jürgen Habermas faz o esforço de
pensar, em uma nova totalidade, os três mundos (dos objetos, das normas e das
vivências subjetivas) desmembradas pelas críticas da razão pura de Kant. [...]
Habermas propõe uma mudança de paradigma: da filosofia da consciência para a
teoria da interação, da razão reflexiva para a ação comunicativa. [...] A razão
comunicativa proposta por Habermas é essencialmente dialógica. [...] A verdade
produzida nesse novo contexto é processual e depende dos membros integrantes do
grupo. Nesta nova concepção de razão comunicativa a linguagem torna-se elemento
constitutivo (FREITAG, 1989, p. 22).
Habermas (2002, p. 70) utiliza o termo “agir social” ou “interação” como “agir” e
“falar”, onde as interações são mediadas pela linguagem, sendo que esses dois tipos de ação
encontram-se ligados um ao outro”. O filósofo cita dois tipos de interação conforme
mecanismo de coordenação da ação: o agir comunicativo e o agir estratégico. Para o autor,
agir comunicativo é a linguagem usada como fonte de integração social, enquanto o agir
estratégico é a linguagem utilizada somente como meio de transmissão de informações e do
sucesso na consecução da relação meio-fim.
Habermas (2003a) considera as interações comunicativas quando as pessoas
envolvidas colocam-se em acordo para o entendimento mútuo, utilizando o ato da fala com
pretensões de verdade quando se referem ao mundo objetivo, validade normativa ao referir-se
ao mundo social ou como veracidade quando se refere à autêntica expressão da subjetividade.
“Enquanto que no agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação desejada
de uma interação, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma
ação de adesão” (HABERMAS, 2003a, p. 79).
55
Fica evidente que os sujeitos, ao agirem de forma comunicativa, orientam-se por
pretensões de validez assertóricas e normativas; portanto, toda a vida sócio-cultural está
orientada ao agir comunicativo com meios argumentativos, sendo que as argumentações é que
se dão a conhecer como forma de reflexão do agir orientado para o entendimento mútuo”
(HABERMAS, 2003a, p. 123).
2.2.2 Paradigma "mundo da vida e sistema”
Neste item faço um breve histórico do conceito “mundo vivido”, para entender de
onde Habermas partiu ao elaborar sua Teoria da Ação Comunicativa e introduzir o conceito
“mundo da vida e sistema”.
Embora Kant tenha empregado o conceito de mundo como totalidade ao referir-se à
razão, foi somente Husserl que utilizou pela primeira vez, em 1924, o termo “mundo vivido”
(STEIN, 2004; MARTINI, 2005).
Husserl, matemático e filósofo, criou a fenomenologia como forma de investigação
sistemática da consciência e seus objetos, e teve uma grande influência na filosofia
contemporânea, principalmente na Alemanha (MARCONDES, 1996).
Segundo Stein (2004), no final do século XIX:
Avenarius e [M] Nach
1
exigiram um retorno à experiência pré-científica, imediata e
pura; sua explicação deveria levar, através de um caminho de descrição sem
preconceito [...] ao que eles chamavam de mundo natural [...] que [...] deveria estar
na base de todas as teorias filosóficas e científicas desenvolvidas até hoje e, ao
mesmo tempo, deveria estar na base da distinção entre o que se chama a
interioridade psíquica (o eu, a alma) e a exterioridade física (o mundo e a natureza).
O conceito de mundo natural deveria, portanto, estar na base desses dois mundos
(STEIN, 2004, p. 81).
Para o filósofo Avenarius, o equilíbrio entre indivíduo e seu contexto formava uma
unidade de caráter previamente dado, representando dois aspectos diferentes do ser, podendo
ser pesquisado do ponto de vista empírico-natural-objetivo (STEIN, 2004).
Desta idéia e acreditando que o mundo exterior era originalmente dado, partiu Husserl,
acreditando que a fenomenologia deveria retornar à experiência pura e originária, expressando
“tanto o elemento intencional-objetivo da experiência do eu (enquanto ligado ao sujeito),
como o elemento do mundo (do mundo exterior, se quisermos)” (STEIN, 2004, p. 81-2).
Para Stein (2004), ao desenvolver este processo, Husserl pretendia superar a postura
positivista-objetivista, valorizando o mundo da experiência de:
1
Na citação direta está escrito Nach (STEIN, 2004, p. 81); porém, acreditamos que tenha ocorrido erro de digitação, pois o
autor está se referindo a Ernst Mach, físico e filósofo inspirador do positivismo lógico (MARCONDES, 1996).
56
[...] caráter unitário frente ao universo psíquico-subjetivo e ao universo exterior-
objetivo; [...] numa espécie de relação paralela com [...] o pólo subjetivo do
conhecimento e o pólo objetivo do objeto [...] [ou seja] da existência exterior, do
mundo como tal, [...], na medida em que a própria relação sujeito-objeto seria
pensada, não como um sujeito (de um lado) e um objeto como pólos de uma
interioridade psíquica [...] (STEIN, 2004, p. 81).
Portanto, “mundo vivido” aparece em Husserl pela primeira vez em 1924, e
posteriormente a 1930 seu conceito se fixa na terminologia; o filósofo o foi muito feliz ao
desenvolver o conceito de mundo vivido, pois o ligou:
[...] à consciência, à subjetividade transcendental, quando, justamente o mundo
vivido deveria ligar-se a uma outra concepção de filosofia, a outro paradigma
filosófico, ao qual poderíamos chamar, de uma maneira geral, de paradigma do
mundo prático, que descrevesse o mundo vivido como característica do homem
como ser-no-mundo, e que de uma maneira prática [...] disso que [M]Nach
2
e
Avenarius estavam buscando [...] (STEIN, 2004, p. 84).
A partir de Husserl, vários outros filósofos reconstruíram conceitos de “mundo
vivido”, na tentativa de explicar melhor o conceito por ele criado; Stein (2004) faz uma
consideração muito interessante dizendo:
[...] se ele tivesse sido um conceito cuja resolução tivesse sido dada de uma vez para
sempre [...], ele teria sido abandonado como algo resolvido. Foi justamente pela não-
resolução, pela impossibilidade de incorporar o conceito no sistema de filosofia de
Husserl ou no paradigma husserliano, é que ele continuou um conceito produtivo
(STEIN, 2004, p. 85).
Observa-se uma multiplicação e transformação no conceito “mundo vivido”,
constatando-se sua inserção em todas tendências filosóficas contemporâneas (STEIN, 2004).
Habermas introduziu em sua Teoria da Ação Comunicativa o construto “mundo da
vida”, fazendo uma ligação entre o conceito de origem fenomenológica e as teorias da
comunicação e ação social (MARTINI, 2005), gerando um novo paradigma epistemológico,
principalmente para as ciências sociais, sem deixar a tradição filosófica de lado (MARTINI,
1995). Para elaborar seu paradigma interacionista “mundo da vida e sistema”, Habermas tanto
buscou inspiração quanto criticou Kant; em busca de entendimento, integrou as questões
intersubjetivas e da linguagem ao construto “mundo da vida”, transformando a filosofia
transcendental monológica de Kant em dialógica (MARTINI, 1995).
O “mundo da vida” seria o pano de fundo de um mundo social de interações guiadas
por fatos e normas, passíveis de tematização (HABERMAS, 2003a), onde acontece a
comunicação entre sujeitos em busca de entendimento; ele se constitui num a priori da
comunicação e da criação de sentidos, ou seja, sem mundo não existe comunicação, portanto,
2
Na citação direta está escrito Nach (STEIN, 2004, p. 81); porém, acreditamos que tenha ocorrido erro de digitação, pois o
autor está se referindo a Ernst Mach, físico e filósofo inspirador do positivismo lógico (MARCONDES, 1996).
57
os sujeitos que atuam no mundo como condição antropológica fundamental encontram na
comunicação “o ato compartilhado com o outro de dar significado ao mundo” (MARTINI,
1995, p. 690) e se mantém eticamente responsáveis por esse entendimento.
Para Habermas (1991b), o “mundo da vida” são os mundos socioculturais da vida da
antropologia cultural. Porém, ele não se reduz apenas à cultura e linguagem, pois o filósofo
entende que o sujeito ao mesmo tempo é fonte e produto do agir comunicativo, ou seja, ao
mesmo tempo em que o sujeito é fonte dos seus atos, ele também é produto das tradições do
contexto em que vive, dos grupos aos quais pertence e dos processos de socialização e
aprendizagem dos quais participou (MARTINI, 1995).
Martini (1995, p. 706) entende que Habermas “[...] liga as estruturas do mundo da vida
ao espaço e tempo, como formas da sensibilidade e a um agir prático no sentido da autonomia
ligado à idéia de personalidade [...] numa ação que se dá no mundo com o outro [...]”.
O conceito de “mundo da vida” cotidiano se refere à prática comunicativa cotidiana de
pessoas que se encontram na atitude participante, fazendo narrações do que acontece no seu
“mundo da vida”, o qual fica localizado no espaço social e datado historicamente. A prática
narrativa preenche as necessidades triviais de entendimento para coordenação da cooperação e
também para a autocompreensão.
Portanto, Habermas (2003a) liga seu construto “mundo da vida” a três teorias: à
sociológica, às da comunicação e à da ação social, valorizando os mundos objetivo, subjetivo
e social, utilizando a linguagem e cultura como recursos para interpretação e definição da
ação.
Para Martini (1995) Habermas transformou:
[...] a intersubjetividade e a linguagem em ação comunicativa e discussão
argumentativa, ao mesmo tempo teórica, prática e vivencial. Desta forma, a ação
comunicativa é antropologicamente radical, na medida em que um falante, ao buscar
o entendimento com um ouvinte, o faz na pressuposição de um mundo da vida
compartilhado e de regras do discurso também pressupostas de forma compartilhada.
Desta forma, não é possível r o mundo às nossas costas ou examinar tais regras
como se estivéssemos fora delas (MARTINI, 1995, p. 695-6).
Na teoria da ação comunicativa, Habermas (1987) propõe uma integração entre mundo
da vida e sistema. Os sistemas são estruturas simbólicas sociais, originadas do “mundo da
vida”, que atuam independentemente, de forma abstrata, sem necessidade de comunicação,
interferindo diretamente no mundo social. Não são suscetíveis de serem observados
diretamente, porém, são percebidos mediante a racionalidade instrumental; como exemplo,
Habermas cita “o sistema do mercado (dinheiro) e os que regem os sistemas burocrático-
administrativos (poder)” (MARTINI, 1995, p. 710).
58
2.2.3 Virada lingüístico-pragmática
A guinada lingüístico-pragmática refere-se a um importante movimento filosófico que
iniciou na segunda metade do século XIX e segue influente até a atualidade (ZASLAVSKY,
2002). Trata-se de um afastamento tanto do fundamento metafísico fundacional como do
pensamento situado no sujeito pensante, concentrando-se na busca de compreensão da
linguagem e no diálogo entre sujeitos, considerando a fala como ato, como ação lingüística
(MARTINI, 2007).
O dicionário de filosofia define pragmática como “uma das divisões tradicionais das
ciências da linguagem, dizendo respeito aos signos em relação a seu uso concreto pelos
falantes de uma língua” (MARCONDES, 1996, p. 218).
Zaslavsky (2002, p. 28-9), ao comentar a questão da verdade no pragmatismo, afirma
que “o sentido cognitivo dependente do prático, pois saber o que algo é, é poder bem utilizá-
lo”. Considera importante diferenciar a pragmática empírica da pragmática formal ou não
empírica, explicando que a pragmática empírica é o “conhecimento da realidade empírica em
geral”; a pragmática formal ou não empírica são “as condições de possibilidade do
conhecimento, o que significa, pela guinada lingüística, conhecer os pressupostos necessários
quanto ao uso da linguagem”. Para Habermas (2004, p. 13), “a pragmática formal surgiu da
necessidade de uma teoria sociológica da ação”; segundo ele, cabe à pragmática formal:
[...] explicar as forças de determinação, favoráveis à integração social, inerentes aos
atos de fala pelos quais os falantes levantam pretensões de validade criticáveis e
levam seus ouvintes a tomadas de posição racionalmente motivadas. Por isso, na
análise da função representativa, ela apresenta um grau de explicação
comparativamente pequeno. Mas, em comparação com as teorias da significação
derivadas da semântica [...], ela dispõe de uma perspectiva de pesquisa mais ampla.
Ela tem a vantagem de considerar igualmente todas as funções da linguagem e de
dar o verdadeiro relevo ao papel crítico que desenpenham as segundas pessoas ao
tomar posição ante pretensões de validade reciprocamente levantadas
(HABERMAS, 2004, p. 14).
A guinada lingüístico-pragmática influenciou a filosofia habermasiana, marcando até
os dias atuais, pois a filosofia do século XX voltou-se totalmente ao estudo da linguagem
como constituinte da realidade, com a finalidade de conhecer o mundo (ZASLAVSKY,
2002). Habermas (2004, p. 8) reconhece esta influência dizendo: “a pragmática lingüística
serviu à formulação de uma teoria do agir comunicativo e da racionalidade. Ela constitui o
fundamento de uma teoria crítica da sociedade e abriu caminho para uma concepção da moral,
do direito e da democracia ancorada na teoria do discurso”. Na opinião do filósofo e
59
sociólogo, a filosofia lingüística “se manteve fixa à ordem tradicional de explicação”.
2.2.4 Reflexão habermasiana sobre moral e ética
Concordo com Freitag (1989, p. 23) quando diz que “a questão da moralidade em
Habermas insere-se, pois, no corpo de sua teoria da ação comunicativa”; como Habermas
(1991a) reformulou a teoria kantiana da moral na teoria da ação comunicativa, creio que seja
interessante mostrar essa relação.
Kant, na ética do dever, utilizava o “imperativo categórico” para discriminar o certo do
errado, considerando ação moral na medida em que expressa uma regra universal (BORGES,
AGNOL, DUTRA, 2002); essa ética enfoca apenas os problemas de ações corretas e justas
(HABERMAS, 1991a). O imperativo categórico significa a livre adesão à lei moral. A
liberdade, enquanto fato intuído pela razão, adota lei universal que implica no respeito à lei e
à não-instrumentalização do outro (MARTINI, 2007).
Habermas (2003a) reconstruiu o imperativo categórico kantiano com a aplicação
discursiva da universalização das máximas, deslocando a decisão da universalização do
sujeito formal moral para o reconhecimento coletivo como norma universal. Habermas
(1991a), juntamente com Apel, tentou reconstruir a teoria kantiana da moral por meio da ética
discursiva, estabelecendo que o certo e errado se definem através de regras estabelecidas por
uma comunidade ideal de comunicação. Habermas, ao referir-se a uma “comunidade ideal de
comunicação”, entende que todos os membros de um grupo social, enquanto fazendo parte do
todo da humanidade, através da prática comunicativa quotidiana, falam uns com os outros e
cooperam com a possibilidade de “entendimento mútuo orientado por pretensões de validez”
(HABERMAS, 2003a, p. 33-4).
Em relação à moral e ética, Habermas (1993) toma partido em favor de Kant, fazendo
diferença entre uma e outra; para ele a moral é o julgamento e a ética são as regras. Ele diz:
A ética do discurso (Diskursethik) que se e como tarefa salientar o conteúdo
normativo de um uso lingüístico orientado para a compreensão, não é a referida
síntese. Ao tentar demonstrar, com os meios da análise da linguagem, que o ponto de
vista do julgamento imparcial de questões prático-morais o ponto de vista moral
surge em geral dos pressupostos pragmáticos inevitáveis da argumentação, ela se
filia à tradição fundada pela Crítica da razão prática (HABERMAS, 1993, p. 288).
Habermas (2003a, p. 63) diz que “os fenômenos morais descobrem-se [...], [na]
investigação formal pragmática do agir comunicativo, no qual os atores se orientam por
pretensões de validez”. Habermas (1991a) afirma que os indivíduos só se particularizam por
ação da socialização; portanto, ao defender direitos, o sujeito obriga-se a defender de forma
60
igual o bem-estar da comunidade à qual pertence.
Para Habermas a fala sempre será pragmática discursiva no momento em que o sujeito
busca razões para argumentação com pretensões de validade. No discurso pragmático (uso
lingüístico), o filósofo diferencia três níveis de argumentação moral: pragmático, ético e
moral. O pragmático é entendido como os meios disponíveis para alcançar um fim; ético é o
dever determinado pelo meio, as regras e normas; e a moral se situa no nível do julgamento
respondendo à pergunta como devo agir (HABERMAS, 1993).
Habermas (1993, p. 289) traz à discussão a pergunta clássica que todo o indivíduo faz
quando se encontra frente a um problema prático: “como devo comportar-me, que devo
fazer?” Frente a esta questão, Habermas coloca que a razão prática do sujeito, a fim de
encontrar uma solução adequada, boa e justa, alterna-se entre a “razão e vontade nos discursos
pragmáticos, éticos e morais”.
2.2.5 Ética Discursiva
Cortina e Martinez (2005) dizem que Apel e Habermas começaram a traçar a ética do
discurso a partir dos anos 1970, transformando o princípio formal kantiano dialogicamente.
Habermas desenvolveu a ética discursiva a partir da sua “Teoria da Ação
Comunicativa”. Segundo Freitag (1989, p.23), Habermas, em 1983, ao escrever o livro
“Consciência moral e ão comunicativa”, incluiu o ensaio “Ética discursiva notas para um
programa de fundamentação”, sintetizando os traços principais da ética discursiva; porém,
somente em 1986, Habermas reflete com maior aprofundamento sobre o tema, quando
escreveu Moralidade e ética.
Freitag (1989) acredita que Habermas, para melhor fundamentar a ética discursiva,
buscou inspiração em Kant, apropriou-se do estruturalismo genético de Piaget e Kohlberg e
recorreu à abordagem sociológica de Durkheim; a autora explica:
[...] a “ética discursiva” se define no contraste com a teoria da moralidade de Kant,
Durkheim e Piaget, ela pode, por outro lado, ser interpretada como um esforço de
síntese dessas três teorias: é kantiana ao aceitar a autonomia e a dignidade do
homem como télos da moralidade, é durkheimiana quando reconhece a importância
social e é piagetiana quando admite que os princípios que orientam a ação moral não
são inatos mas objeto de uma construção psicogenética (FREITAG, 1989, p. 28).
Esta autora fez uma reflexão profunda, tecendo uma rede de interligações que
justificam sua conclusão; para melhor compreensão da citação acima, apresento alguns
recortes do texto que ela produziu. Freitag (1989) diz:
Em sua essência, o estruturalismo genético afirma [...] que a linguagem é a
“expressão de estruturas mentais”; como Habermas ao fundamentar dois
61
pressupostos da ética discursiva, competência lingüística e situação dialógica, não
esgotou suas possibilidades, buscou então fazer “uma analogia entre os processos
evolutivos das sociedades históricas e a psicogênese [...] [permitindo] interpretar os
processos societários como processos de ‘aprendizagem’ coletiva (FREITAG, 1989,
p. 26).
Freitag (1989, p. 28) afirma que a “condição da possibilidade da ‘ética discursiva’ é a
intersubjetividade [e] a interação mediatizada pela linguagem”; Habermas transformou a
moralidade monológica de Kant em dialógica, colocando-a no contexto do mundo vivido “em
oposição à heteronomia imposta pelo sistema social de Durkheim, [...] [fazendo] uma
interação comunicativa que visa a autonomia da espécie, complementando a moralidade
piagetiana, em que a autonomia resulta da psicogênese”. A autora finaliza dizendo: “se Kant
enfatizou o sujeito, Durkheim enfatizou a sociedade. Sem o sujeito, a moralidade não existe;
sem a sociedade, ela não é necessária”.
Na apresentação de um dos seus livros, Habermas (1991a, p. 9) diz que a expressão
“Ética do Discurso” deveria ser substituída por “Teoria do Discurso Moral”; porém, o filósofo
se manteve fiel à primeira denominação.
Sintetizando os principais traços da ética discursiva, substituiu o imperativo categórico
da moral kantiana pelo método da argumentação moral; enquanto o refletir moral kantiano
parte da autonomia do indivíduo e da razão monológica como um teste de universalização,
Habermas propõe uma ética cognitivista, formalista e universalista, onde a reflexão moral é
coletiva e a universalização decorre da argumentação e da participação dos concernidos no
discurso, tendo a atitude performativa como condição para a ação comunicativa orientada para
o entendimento. Deste modo, a universalização é alcançada através da intersubjetividade
(ZASLAVSKY, 2002; HABERMAS, 2003a). Sobre a atitude performativa Habermas explica:
A atitude performativa permite uma orientação mútua por pretensões de validade
(verdade, correção normativa, sinceridade) que o falante ergue na expectativa de
uma tomada de posição por sim/não da parte do ouvinte. [...] Ao se entenderem
mutuamente na atitude performativa, o falante e o ouvinte estão envolvidos, ao
mesmo tempo, naquelas funções que as ações comunicativas realizam para a
reprodução do mundo da vida comum (HABERMAS, 2003a, p. 42).
Desta forma os sujeitos se tornam responsáveis por sua ação no discurso e respondem
pelas razões que apresentam pelas suas pretensões de validade, respeitando igualmente a
posição de falante, ouvinte e participante reflexivo (MARTINI, 2007).
Freitag (1989) afirma que, na ética discursiva de Habermas, não se encontra mais
aquele sujeito moral kantiano que define seu dever monologicamente e o segue,
considerando-o generalizável, mas sim um grupo que compartilha de um discurso prático e,
de forma dialógica, elabora um princípio universal para o grupo envolvido a partir do
62
argumento mais justo, correto e racional.
Habermas acredita na ética discursiva, isto é, utilizar a linguagem para argumentar e
adotar uma decisão moral, respeitando três aspectos: imparcialidade, reciprocidade e
universalização (MARTINI, 2004); para ele, esta é “a forma de abordagem mais promissora
na atualidade” (HABERMAS, 2003a, p. 62).
Na ética discursiva os sujeitos buscam “argumentações [que] são destinadas antes de
mais nada a produzir argumentos concludentes, capazes de convencer com base em
propriedades intrínsecas e com os quais se podem resgatar ou rejeitar pretensões de validez”
(HABERMAS, 2003a, p. 110).
A ética do Discurso propõe que o sujeito ao participar de uma argumentação admite
“implicitamente pressupostos pragmáticos gerais de teor normativo; é, então, possível abstrair
o princípio moral a partir do teor destes pressupostos argumentativos, desde que se saiba o
que significa justificar uma norma de conduta” (HABERMAS, 1991a, p. 16). Nesse
procedimento argumentativo, respeitam-se todos os argumentos, porém, prevalece o melhor
argumento, ou seja, o de maior coerência, justeza e adequação; uma norma ou um princípio
moral somente será considerado de caráter universal quando não expressar “meramente a
intuição moral de uma cultura ou época específica, mas sim um conteúdo que possa ter
validade geral” (FREITAG, 1989, p. 23).
Portanto, Freitag (1989, p. 24) explica que Habermas articula a ética discursiva com os
dois princípios básicos da questão moral: justiça e solidariedade; os integrantes do discurso
prático, ao desenvolverem os processos argumentativos, alcançam a justiça buscando a norma
que defenda a integridade e invulnerabilidade da pessoa e alcançam a solidariedade
assegurando o bem estar de todos.
Habermas (1991a) chama de moral point of view o ponto de vista moral que faz uma
avaliação imparcial das questões morais, ou seja, uma avaliação afastada de si mesmo, de seu
interesse pessoal.
Na ética do Discurso, Habermas (2003a), como universalista pragmático, acredita que
uma norma é considerada válida quando todos os participantes de um discurso prático chegam
a um consenso de entendimento quanto à validade da norma; para que isto ocorra, são
necessários dois princípios: 1) princípio ético-discursivo “Dque significa direito e dever de
todos em participar do discurso; e 2) princípio da universalização “U”, quando os concernidos
alcançam um consenso baseado em critérios universalistas, ou seja, o que é bom para mim
deverá ser para todos (HABERMAS, 1991a, 2003a). Por conseguinte, a teoria discursiva da
ética “[...] defende teses universalistas, logo, teses muito fortes [...]” (HABERMAS, 2003a, p.
63
143), como, por exemplo, não matar.
Habermas (1981) apud Habermas (2003a, p.88) explica que na ética discursiva:
Ao invés de prescrever a todos os demais como válida uma máxima que eu quero
que seja uma lei universal, tenho que apresentar minha xima a todos os demais
para o exame discursivo de sua pretensão de universalidade. O peso desloca-se [...]
para aquilo que todos querem de comum acordo reconhecer como norma universal
(HABERMAS, 2003a, p. 88).
Logo, a norma universal definida pelo consenso do grupo não é dada a priori, mas sim
resultado de um longo processo argumentativo, viabilizado pelo discurso prático, onde todas
as vontades subjetivas dos integrantes do discurso “são expressas, todas críticas e ponderações
são consideradas, todas as conseqüências práticas são antecipadas e todos os efeitos colaterais
de uma possível ação, pesados”; no momento em que o novo princípio regulador é aceito,
passa a ser a máxima moral de cada um e também da sociedade (FREITAG, 1989, p. 24).
A ética discursiva de Habermas pressupõe pelo menos três dados, ainda não
suficientemente explicitados: “a competência comunicativa dos integrantes do grupo;
situações dialógicas ideais, livres de coerção e violência; e, finalmente, um sistema lingüístico
elaborado que permita pôr em prática o discurso (teórico e prático)” (FREITAG, 1989, p. 24).
A autora conclui que a ética discursiva de Habermas não é uma teoria puramente
formal, pois, embora Habermas tenha ressaltado o caráter processual dialógico e
argumentativo da teoria, acreditando na integridade e dignidade da pessoa, enfatiza a extrema
vulnerabilidade do sujeito.
2.3 HABERMAS EM INTERFACE COM PÊCHEUX: a teoria da ação comunicativa em
relação à análise de discurso
Um dos objetivos desta pesquisa é aprofundar a teoria de Habermas em interface com
a teoria de Pêcheux, criando subsídios para análise do corpus que busca compreender os
efeitos de sentidos produzidos pelos sujeitos-professores universitários, dos cursos de
enfermagem e medicina, sobre a formação ética e moral dos discentes. Atendendo ao objetivo
proposto neste item darei enfoque a alguns elementos da Teoria da Ação Comunicativa de
Habermas, cotejando esta teorização com conceitos da Teoria do Discurso de Pêcheux.
A motivação em aproximar os dois filósofos surgiu quando identifiquei que ambos
valorizam a linguagem como principal elemento, não a limitando à pragmática, pois
preconizam que o discurso vai além da linguagem; ambos acreditam que o sentido não se
encontra preso à materialidade da língua, mas é influenciado pelo social e pela história, e
64
movimentado pelos sujeitos.
Aproximando a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas à teoria da Análise de
Discurso de Pêcheux, alguns pontos foram identificados como comuns. Ambas as teorias se
constituem a partir da linguagem; acreditam que o discurso manifesta construções simbólicas;
valorizam as construções coletivas; utilizam a interpretação para compreender o sentido
manifesto no discurso; e o discurso manifestando as três dimensões do mundo da vida (social,
cultural e do sujeito).
Tanto Habermas quanto Pêcheux divergiram da perspectiva lógica abstrata, na qual se
concebe o ato da fala apenas como princípio formal da linguagem, sem valorizar a história
que permeia os discursos. Os dois filósofos estão em um diapasão semelhante, pois ambos
acreditam que o sujeito se faz na linguagem, portanto, esta constitui o sujeito e o sentido; esta
é o modo de ser no mundo; não é transparente; e não é um meio neutro. Acredito que a
guinada lingüístico-pragmática tenha influenciado tanto a filosofia habermasiana quanto a
pêcheuxtiana.
Habermas (1993?) critica o objetivismo na filosofia da linguagem e afirma que a
linguagem entra na ação comunicativa enquanto conteúdo da tradição cultural, pois somente
as significações intersubjetivas válidas e constantes, obtidas da tradição e submetidos ao crivo
da crítica, irão orientar com reciprocidade o comportamento; assim, a interação dependerá das
comunicações lingüísticas que se tornarem familiares.
Habermas (2003a, p.44) afirma que “compreender o que é dito exige participação e
não a mera observação”.
Pêcheux (1997, p. 153) também critica os lingüistas ao dizer que “[...] todos aqueles
que recorrem à lingüística com diferentes fins tropeçam freqüentemente em dificuldades que
decorrem do desconhecimento do jogo dos efeitos ideológicos em todos os discursos [...]”.
Pêcheux (1997, p. 91) afirma que discursividade não é a fala (parole)” e aponta a
“articulação da Lingüística com a teoria histórica dos processos ideológicos e científicos, que
por sua vez, é parte da ciência das formações sociais”.
Pêcheux (1997, p. 154) direciona todo seu trabalho na “determinação pela qual a
questão da constituição do sentido junta-se à da constituição do sujeito”. Portanto, a Análise
de Discurso entende que a linguagem é atravessada por condições sociais e históricas, sendo
constitutivamente histórica e uma forma de interação, um modo de ação social e não somente
uma forma de comunicação ou transmissão de informação ou manifestação do pensamento
(BATISTOTE, 2005).
A língua “[...] significa na sua ordem simbólica, incluindo a história e a ideologia. Na
65
fronteira da ordem da língua com a ordem da história, intervém o sujeito. Essa é a marca da
subjetivação, o traço da relação da língua com a exterioridade” (MELO, 2005, p. 192).
Na Análise de Discurso a linguagem não é concebida fora do mundo da vida dos
sujeitos, tem a ver com a existência onde se estabelecem relações concretas.
Habermas (2003a) acredita que para entender o significado de uma frase falada é
necessário participar de ações comunicativas de tal modo que o mesmo seja inteligível para
falantes e ouvintes; portanto, o uso lingüístico efetiva suas condições de comunicação
somente quando:
[...] a gente diz algo para outrem, de tal modo que ele compreenda o que é dito. [...]
compreender o que é dito a alguém exige a participação no agir comunicativo. Tem
que haver uma situação de fala [...] na qual um falante, ao comunicar-se com um
ouvinte sobre algo, dá expressão àquilo que ele tem em mente (HABERMAS,
2003a, p. 40).
O “agir comunicativo” tem a ver com a injunção a significar, a praticar a interlocução
na existência, a constituir-se como sujeito sempre em relação ao outro. A Análise de Discurso
entende que o sentido irá depender da inscrição de ambos os interlocutores numa dada
formação discursiva, compartilhada. Quanto ao sentido de um enunciado, Pêcheux (1997) diz
que este:
[...] não existe ‘em si mesmo’ [...], mas, ao contrário, é determinado pelas posições
ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras,
expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). [...] as palavras,
expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas
por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido [...]
em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem
(PÊCHEUX, 1997, p. 160).
Pêcheux (1993b, p. 82) supõe que “os interlocutores se colocam no lugar do outro, ou
seja, na posição imaginária; assim, nunca ocorrerá uma transmissão exata de sentidos entre
sujeitos”. A interação se entre Formações Discursivas e não entre indivíduos; portanto, os
efeitos de sentidos dependerão de formações imaginárias entre A e B. Fica destacado, na
perspectiva do autor, que o sentido transcende a situação empírica da fala, buscando atingir a
produção de sentidos pelos sujeitos na dimensão sócio-histórica, representada nas
interlocuções. Habermas (1988) também valoriza a compreensão das manifestações
simbólicas; o filósofo faz diferença dos planos entre a realidade perceptível e o sentido
susceptível de compreensão de um produto simbólico.
Para Habermas, o mundo da vida e as regras do discurso são compartilhados entre os
sujeitos; o fato de existirem regras compartilhadas pressupostas pelos protagonistas da
linguagem aproxima-se das “relações imaginárias”, postas por Pêcheux, que atuam na
66
produção de efeitos de sentidos.
Na teoria da ação comunicativa, Habermas (1987) afirma existir interligação entre o
mundo da vida e as estruturas simbólicas sociais (sistemas sociais) que interferem de forma
abstrata no mundo social, sem necessidade de comunicação. Para Pêcheux (1997), os sujeitos
sofrem ação da ideologia sem se dar conta; esta “interfere no mundo social”, direcionando os
sentidos. É importante lembrar que, para a Análise de Discurso, os sistemas não são
totalmente fechados: os sujeitos podem questionar no uso da linguagem os sentidos “prontos”
que não condizem com a realidade que está sendo significada.
Ao afirmar que Pêcheux e Habermas valorizam as construções coletivas, entendo que
estes filósofos encontraram a fundamentação das suas teorias na sociedade, pois ambos
ressaltam a importância de buscar o sentido na relação social. A Análise de Discurso, ao fazer
a ruptura com o ser humano individualizado e homogêneo, criando a noção de sujeito inserido
em um contexto social, porém com uma existência particular no mundo, assemelha-se à
transformação realizada por Habermas na filosofia transcendental monológica de Kant, ao
centrar sua Teoria da Ação Comunicativa no consenso da racionalidade social dialógica.
Percebo que tanto Pêcheux quanto Habermas dão valor ao sentido para a compreensão
e entendimento dos discursos. Habermas considera o discurso como reconstrução e produção
de sentido no qual estão presentes o trabalho da crítica da ideologia e a compreensão dos
sentidos. Para Pêcheux, o sentido está ligado à memória, cujo trajeto supõe o sujeito na sua
existência concreta, bem como segundo Habermas, ao “mundo da vida”, considerado espaço
social, historicamente datado, onde o sujeito compartilha a prática comunicativa com o outro.
Habermas (1988) se refere às questões de uma metodologia da compreensão, que das
ciências sociais são remetidas a uma teoria de ação orientada ao entendimento; dentro desta
visão, o procedimento de reconstrução racional do saber, através de interpretação, explica o
significado do conteúdo manifesto, chegando-se assim ao entendimento:
[…] la comprensión reconstructiva, em cambio se endereza a la explicación del
significado de estructuras que subyacen a la generación de tales contenidos, es decir,
al análisis de estructuras profundas. En los objetos simbólicos podemos distinguir
entre estructuras superficiales y estructuras profundas [...] los dos niveles de realidad
con que nos topamos en el mundo de la vida y que distinguí valiéndome de los
modos de experiencia que son la observación y la comprensión del sentido. […]
(HABERMAS, 1988, p. 496-7).
Para Pêcheux (2002, p. 44), é necessário “entender a presença de não-ditos no interior
do que é dito”, uma vez que o discurso do sujeito manifesta-se carregado de sentidos que
devem ser percebidos pelo analista; portanto, o entendimento na Análise de Discurso poderá
ocorrer dentro de uma mesma formação discursiva (FD), visto que o discurso está ligado ao
67
contexto social que pertence a uma conjuntura dada que regula “o que pode e deve ser dito”.
Habermas (1991a) acredita que as regras devem ser estabelecidas por uma
“comunidade ideal de comunicação”, esta entendida como um grupo social onde todos os
membros, através da prática comunicativa quotidiana, falam uns com os outros e cooperam
com a possibilidade de “entendimento mútuo orientado por pretensões de validez”
(HABERMAS, 2003a, p. 33-4). Neste ponto Habermas e Pêcheux diferem, pois para a
Análise de Discurso a “comunidade ideal de comunicação” seria uma ilusão, pois o sujeito
“esquece” que não é a fonte do seu dizer, embora pareça. Daí Pêcheux referiu-se a uma
“teoria não-subjetiva do sujeito”.
O “mundo da vida”, ao qual Habermas se refere, está para a Análise de Discurso nas
“condições de produção do discurso”, conceito que remete à experiência, à existência
histórica do sujeito que sempre demanda ser significada por ele por meio da linguagem. Essas
condições de produção determinarão o sentido do seu discurso, deixando marcas nos
enunciados.
Pêcheux (2002, p. 53) vê todo enunciado como opaco, permitindo um jogo metafórico
com equivocidade, “intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se
deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para outro”. Partindo desta
fundamentação de Pêcheux, Fernandes (2004, p. 53) afirma que “uma palavra pode apresentar
diferentes sentidos de acordo com a formação discursiva a que se inscreve, [...] produzindo,
obviamente, diferentes sentidos em conformidade com as formações ideológicas em que se
inscrevem”. A teoria da Análise de Discurso preconiza a não transparência da língua e a
movência de sentidos.
A formação discursiva é entendida por Pêcheux (1997, p.160-1) como todo enunciado
“que pode e deve ser dito” a partir de uma posição dada; portanto, os enunciados, “palavras,
expressões, proposições, etc, recebem seu sentido da formação discursiva na qual são
produzidas”. Para Pêcheux (1997, p. 162), “toda formação discursiva dissimula, pela
transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao ‘todo
complexo com dominante’ [denominado interdiscurso] das formações discursivas, intrincado
no complexo das formações ideológicas [...]”.
Pêcheux (1997) conclui dizendo:
[...] o funcionamento da Ideologia em geral como interpelação dos indivíduos em
sujeitos (e, especificamente, em sujeitos de seu discurso) se realiza através do
complexo das formações ideológicas (e, especificamente, através do interdiscurso
intrincado nesse complexo) e fornece “a cada sujeito” sua “realidade”, enquanto
sistema de evidências e significações percebidas aceitas experimentadas
(PÊCHEUX, 1997, p. 162).
68
Habermas, ao falar sobre a pretensão de racionalidade, refere-se ao discurso
argumentativo, e diz que a formação discursiva é sempre pragtica no nível de argumentação
(MARTINI, 2007). É via enunciados formulados pelo sujeito que se pode ter acesso à posição
que defende. O sujeito assume posição discursiva, ao desenvolver seus argumentos. Os
discursos se manifestam sob a condição de serem enunciados pelos sujeitos em situações
concretas de uso da língua, ou seja, históricas. Neste aspecto é possível uma aproximação
teórica, pois na AD é enfatizada a língua no seu uso pelos sujeitos na vida social.
Martini (1995) afirma:
Habermas ao elaborar sua idéia de ação comunicativa, a partir do construto ‘mundo
da vida’, como base no entendimento lingüístico, adverte para os perigos de uma
compreensão reducionista de ação comunicativa, via semanticismo da filosofia da
linguagem. Embora pretenda compreender a ação comunicativa como síntese de
aspectos semânticos e pragmáticos, reconhece [...] a relativa independência entre
sentido e objeto e o próprio plano contextual em que se o ato de fala (MARTINI,
1995, p. 693).
Isto significa que, para Habermas, sempre podem emergir novos sentidos por meio do
discurso, como também acredita Pêcheux. Habermas, da mesma forma que Pêcheux, valoriza
muito o aspecto do sentido, pois acredita que toda linguagem é carregada de elementos
simbólicos relacionados ao mundo da vida, os quais devem ser interpretados pelos sujeitos
que atribuem sentidos.
Para Habermas (1988):
La diferencia de plano entre realidad perceptible y realidad simbólicamente
preestructurada se refleja en el gradiente que se da entre un acceso directo por
observación de la realidad y un acceso comunicativamente mediado por
comprensión de una manifestación acerca de la realidad. [...] Los enunciados
asertóricos guardam una relación externa con el mundo. [...] Em cambio, em el
mundo a que se refiere el intérprete com sus enunciados interpretativos, tienen que
poder presentarse también como estados de cosas enunciados, o dicho com más
exactitud: manifestaciones linguísticas y en general plexos de sentido
simbólicamente materializados (HABERMAS, 1988, p. 498).
Tanto Habermas quanto Pêcheux consideram que as “realidades” não são absolutas,
mas constituídas pelos sujeitos, representando pontos de vista, sendo estes relativos.
Habermas (2003a, p. 82) entende o mundo da vida como o contexto no qual o sujeito
está inserido e lhe fornece recursos tanto sociais quanto históricos; portanto, o indivíduo é um
produto do contexto sócio-histórico no qual ele está inserido. O filósofo também reconhece
que “[...] entre a linguagem e o mundo social, [existe] uma dependência recíproca [...]”. O
filósofo diz:
O ator é as duas coisas ao mesmo tempo: ele é o iniciador, que domina as situações
por meio de ações imputáveis; ao mesmo tempo, ele é também o produto das
tradições nas quais se encontra, dos grupos solidários aos quais pertence e dos
69
processos de socialização nos quais se cria. Enquanto que o [...] mundo da vida se
impinge ao agente [...] ele se sustentado [...] por um mundo da vida, que não
somente forma o contexto para os processos de entendimento mútuo, mas também
fornece os recursos para isso. O mundo da vida [...] oferece [...] obviedades culturais
donde os participantes da comunicação tiram seus esforços de interpretação [...]
(HABERMAS, 2003a, p. 166).
Habermas afirma que o mundo da vida é uma realidade lingüisticizada e
intersubjetiva, constantemente interpretada e criticada na ação comunicativa dos participantes.
Pêcheux (2002, p. 54) também acredita que os indivíduos se inscrevem em filiações
históricas, que “[...] um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção
dadas [...]” (PÊCHEUX, 1993b, p. 77). Em um simples enunciado que mostra uma condição
pragmática de linguagem está representado o contexto sócio-histórico ao qual o sujeito se
constitui e manifesta seu discurso.
cheux (1993b, p. 75) reforça a necessidade de considerar a ligação entre as
circunstâncias em que foi produzido o discurso, denominadas pelo autor como condões de
produção, ou seja, o contextocio-histórico mais amplo e também a própria situação para poder
compreender os sentidos dos discursos.
Habermas considera a determinada pelas três dimensões do mundo da vida, formadas
pela personalidade do sujeito, cultura e sociedade (MARTINI, 2004). Para Pêcheux, estas
dimensões estariam contempladas no conceito de “condições de produção do discurso”, pois
este inclui a situação e os próprios sujeitos. Para entender a enunciação do sujeito, segundo
Pêcheux, o analista deverá analisar o intradiscurso, manifestação da materialidade discursiva
em sua relação com o interdiscurso, constituição dos saberes mais amplos da vida social,
manifesto pelo que não é “concreto”, pois faz parte da memória do dizer, mas tem existência,
definindo posições discursivas na vida (MUTTI, 2004).
Para Habermas, o critério último da moralidade se radica no processo argumentativo
por meio do discurso; a ética discursiva entende que somente as normas com aceitação de
todos os sujeitos participantes do discurso poderão aspirar validade (FREITAG, 1989).
Na teoria da AD, a formação de um “grupo” de discussão que estabelece posições
como válidas ou não corresponde ao modo como as memórias sociais vão se constituindo
dinamicamente na sociedade (MUTTI, 2007). Habermas afirma que na comunicação do
quotidiano estão embutidas as pretensões de validade. Tais pretensões, na medida em que são
problematizadas, podem constituir um discurso prático; os sujeitos envolvidos buscam, por
meio dos melhores argumentos, testar a validade de regras sociais, normas e princípios éticos.
Para Habermas, a ação comunicativa ocorre pela problematização discursiva em termos de
pretensões de validade extraída das exigências do mundo da vida.
70
A relação evidenciada na AD de indissolubilidade entre a linguagem, ideologia e
sujeito, aparece de forma semelhante também no pensamento de Habermas (2003a), ao dizer:
Os atos de fala não servem apenas para a representação (ou pressuposição) de
estados e acontecimentos, quando o falante se refere a algo no mundo objetivo. Eles
servem ao mesmo tempo para a produção (ou renovação) de relações interpessoais,
quando o falante se refere a algo no mundo social das interações legitimamente
reguladas, bem como para a manifestação de vivências, isto é, para a auto-
representação, quando o falante se refere a algo do mundo subjetivo a que tem um
acesso privilegiado. Os participantes da comunicação baseiam os seus esforços de
entendimento mútuo num sistema de referências composto de exatamente três
mundos (HABERMAS, 2003a, p. 167).
Na teoria da ação comunicativa, Habermas diz que o sujeito expressa, através das
práticas comunicativas, os três mundos: do objeto, das regras e da subjetividade do próprio
sujeito. Pêcheux coloca que o discurso do sujeito é permeado pela sua história, a ideologia e a
língua. Portanto, tanto a Análise de Discurso quanto a Teoria da Ação Comunicativa
permitem entender o discurso do sujeito além do texto; a linguagem permite a materialidade
do dizer carregada de sentido que o sujeito pretende dar. Para Mutti (2004), estes sentidos na
AD são o que Pêcheux denominou de “pré-construídos”, ecos que circulam na memória do
dizer, resultantes do inconsciente e de fatores sócio-históricos; portanto, o sentido não é
traduzido, mas produzido pela ideologia, história e lingüística, movimentado pelo sujeito a
cada enunciação. Para Martini (1995), Habermas entende que:
[...] o homem está no mundo operando numa síntese teoria-prática e num atuar do
sujeito sem a separação sujeito-objeto [...] tratando o problema da imaginação
transcendental [...] dirigido a uma intuição sintética dos aspectos semânticos e
pragmáticos. Portanto, para Habermas a imaginação transcendental é intuição finita
ligada ao sentido interno, enquanto temporalidade e historicidade, e discursiva,
ligada ao mundo e ao outro na produção de um contexto de significados, ao mesmo
tempo, interativo e performativo em que no próprio atuar nos colocamos de
imediato, imaginariamente, no papel de falante, ouvinte e participante reflexivo. Isso
não se como representação imaginativa do discurso, mas como ação discursiva
que, desde o imaginar, traz implícito um sistema de regras [...]. A imaginação
transcendental torna-se discursiva e pragmática (MARTINI, 1995, p. 695).
Para Pêcheux (1993b, p. 82), o discurso não se trata de uma transmissão de
informação, mas sim um “efeito de sentidos” entre A e B; complementando o autor diz:
[...] um discurso não apresenta, na sua materialidade textual, uma unidade orgânica
em um só nível que se poderia colocar em evidência a partir do próprio discurso, mas
que toda forma discursiva particular remete necessariamente à série de formas
possíveis, e que essas remissões da superfície de cada discurso às superfícies
possíveis que lhe são (em parte) justapostas na operação de análise, constituem
justamente os sintomas pertinentes do processo de produção dominante que rege o
discurso submetido à análise (PÊCHEUX, 1993b, p.104).
Neste enfoque abordado por Pêcheux, todo enunciado pode tornar-se outro(s); então,
ao fazer uma análise de discurso, apenas será possível apreender uma parte, pois este se
71
caracteriza pela incompletude (FERNANDES, 2005).
Semelhante a Pêcheux, Habermas (2002, p. 71) acredita que exista diferença entre a
linguagem “utilizada apenas como meio para transmissão de informações” daquela usada para
integração social; o primeiro caso é denominado pelo filósofo de agir estratégico e o segundo
de agir comunicativo. Habermas (2002, p. 96) interessa-se pelo agir comunicativo porque
acredita que o discurso vai além da informação; ele afirma: “a rede da prática comunicativa
cotidiana espalha-se sobre o campo semântico dos conteúdos simbólicos, sobre dimensões do
espaço social e sobre o tempo histórico, constituindo o meio através do qual se forma e se
reproduz a cultura, a sociedade e as estruturas da personalidade”. Para Habermas (1991b), o
“discurso” do falante da ação comunicativa ocorre em um plano reflexivo, é o dizer efetivo
por meio de argumentos com pretensões de verdade e retidão. Uma ação comunicativa entre
sujeitos só é tal quando transforma a comunicação espontânea em discurso, no qual se
expressam diferentes pretensões de validade: cognitiva, normativa, expressiva (MARTINI,
2007).
O discurso prático ou discurso pragmático é entendido por Habermas (1991a) como
uma forma exigente da formação argumentativa da vontade, ou seja, uso do enunciado para
justificar. Para Habermas existe discurso quando ocorre problematização e, a partir da
interação entre os sujeitos utilizando-se a linguagem como meio, se trazem as razões para as
posições assumidas; desta forma, exercitar o discurso é problematizar o mundo da vida
trazendo razões com pretensões de validade.
Habermas (1988, p. 496), ao dizer que na [...] reconstrucción nos topamos com um
complejo concepto de mundo que pertence al repertorio precientífico de la accíon orientada
al entendimento [...]”, parece reconhecer que o mundo da vida, com sua constituição
sociocultural e ideológica complexa, irá interferir no sentido dos enunciados manifestos pelo
sujeito e ao intérprete caberá estar consciente desta complexidade para poder compreender o
sentido do discurso.
Pêcheux entende que o discurso do sujeito constitui-se na relação entre o intradiscurso
e o interdiscurso. Lembrando, o intradiscurso é o fio do discurso, “seqüência discursiva” (SD)
concreta, linearização do discurso, palavras usadas na fala; interdiscurso são os “saberes”
enunciados pela linguagem, construções coletivas que fazem parte da “memória do dizer”
(MUTTI, 2004), mas que são atualizadas quando o sujeito enuncia para dar sentido à
realidade de sua existência que demanda significação. Neste processo, ele se posiciona, mas
não quer dizer que a posição seja sempre “consciente”. A língua se apresenta como “a base
comum de processos discursivos diferenciados”, portanto “a discursividade não é a fala
72
(parole)” (PÊCHEUX, 1997, p.91); o discurso é manifestado pela língua (inserida no sistema
lingüístico), porém, determinado pela ideologia e inconsciente.
Para uma melhor elaboração do conceito de ação comunicativa, Habermas (1987)
aproximou-se tanto da lingüística quanto da filosofia da linguagem de origem anglo-saxônica,
procurando articular uma teoria semântica do significado, a sintaxe como teoria das regras da
estruturação de uma língua e a pragmática como teoria do uso da linguagem. Essa
reconstrução visou realizar uma crítica do objetivismo e formalismo dessas teorias no sentido
de identificar e reconstruir condições universais de possibilidade de entendimento entre os
participantes de um mesmo mundo da vida (HABERMAS, 1987). Tais condições se referem à
inteligibilidade do ato da fala, emitido por um falante a um ouvinte, acrescentando-se ainda as
condições veritativas, as normativas e as expressivas no sentido da busca do entendimento por
meio de razões (MARTINI, 2007).
Pêcheux também articulou sua teoria com base na re-significação de conceitos
provenientes de outras áreas do conhecimento, conhecida como tríplice aliança teórica: da
lingüística de Saussure, do marxismo de Althusser e da psicanálise de Lacan (PIRES, 2000).
A teoria do discurso pêcheuxtiana abandona o sujeito empírico e trabalha com um sujeito
dividido, preenchido por diferentes posições-sujeito circunscritas pelas formações discursivas
que o afetam; portanto, o sujeito ao mesmo tempo em que “é afetado pela formação discursiva
onde se inscreve, também a afeta e a determina em seu dizer” (FERREIRA, 2005, p. 19).
O sujeito habermasiano também tem a personalidade formada pelo contexto,
alcançando “a perspectiva imparcial, universal, moral” somente através da intersubjetividade
do discurso problematizador, sendo sua argumentação favorável ao universalismo dialógico e
não monológico como em Kant (ZASLAVSKY, 2002, p. 30).
No contexto epistemológico da AD, o sujeito não é dado a priori, mas se constituindo
de uma estrutura complexa existente em um espaço discursivo formado entre o eu” e o
“outro”; portanto, sua identidade não é fixa, mas está sempre em produção, resultante de
inscrições ideológicas, entrecruzadas por discursos de outros sujeitos, histórico-socialmente
constituídos (FERNANDES, 2005).
Para Habermas o sujeito pode ser compreendido como social, epistemológico e
subjetivo (personalidade), aberto ao mundo, disposto a desenvolver problematização entre
sujeitos (intersubjetividade) num contexto dialógico (MARTINI, 2007).
Identifiquei também semelhanças entre Habermas e Pêcheux quanto à interpretação do
discurso: ambos acreditam que o analista não deve deter-se somente no enunciado, mas sim
analisar a relação com o contexto onde está sendo produzido o discurso. Sua análise também é
73
interpretação, produção de sentido pelo sujeito-analista; resulta desta análise a indicação de
“efeitos de sentidos”, que não são uma única verdade.
Para Habermas (1988):
Interpretar significa ante todo <entender a partir do contexto>, pues el intérprete
indaga los contenidos semânticos que ponen em relación la manifestación no
inteligible con los productos simbólicos familiares de su entorno (de él). Así, puede
explicar el significado de expresiones linguísticas parafraséandolas en el mismo
lenguaje o por traducción a otro lenguaje; [...] Entonces el intérprete aparta la mirada
de la superficie del producto simbólico [...]; ya no mira <intentione recta> a través
de la manifestación y su contenido proposicional a algo perteneciente al mundo, sino
que trata, <intentione obliqua> de horadar la superficie del producto simbólico y de
mirar dentro de él para reconstruir las reglas conforme a las cuales los sujetos
capaces de lenguaje y de acción pueden producirlo y entenderlo. La explicación del
significado ya no se endereza al contenido del acto de habla [...] sino a la conciencia
de regla (Regelbewusstein), en virtud de la cual, los sujetos capaces de lenguaje y de
acción pueden producir en general tales manifestaciones (HABERMAS, 1988, p.
501).
A AD reconhece que, para realizar a interpretação a partir do corpus, existem muitas
maneiras de significar (ORLANDI, 2005a); por isto, todos os enunciados são lingüisticamente
descritíveis “como uma série [...] de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à
interpretação” (PÊCHEUX, 2002, p. 53). Cabe ao analista relacionar marcas lingüísticas,
presentes no enunciado em análise, com o enunciável, que é da ordem do interdiscurso,
considerando a heterogeneidade do sujeito e do discurso.
Habermas (1988) diz que a postura do intérprete deve considerar os componentes e
estruturas do mundo da vida e conhecer o contexto em que foi produzida a comunicação; para
realizar uma interpretação, deverá compreender a produção de formas simbólicas. Portanto, o
intérprete tem a tarefa de “[…] comprensión reconstructiva, es decir, de uma explicación del
significado en el sentido de una reconstrucción racional de las reglas generativas que
subyacen a la producción de las formas simbólicas” (HABERMAS, 1988, p. 502).
Na interpretação da AD devem aparecer os aspectos sociais referentes à existência do
sujeito, bem como os aspectos ideológicos e lingüísticos que produziram o discurso do sujeito
(FERNANDES, 2004). Interpretar não é “encontrar” ou “descobrir” o sentido: na
interpretação o analista pretende mostrar como o discurso funciona, fazendo uma re-leitura,
que também é produção de sentidos (MUTTI, 2005).
Para Habermas (1988):
Las interpretaciones sirvem para salvar dificultades de entendimiento; aseguran la
intersubjetividad del entendimiento entre los miembros de um mundo de la vida.
Una interpretación explica el significado de elementos o estructuras de un mundo de
la vida que pueden ser estraños al intérprete en virtud de una gran distancia cultural
o temporal, pero que no pueden serle del todo externos. Antes bien, el intérprete ha
de suponer que pertenece, a lo menos virtualmente, al mundo de la vida en que se
presenta el interpretandum, porque su interpretación solo puede tener buen suceso en
74
la medida en que supera la sima entre el mundo de la vida del intérprete y el mundo
de la vida de su interpretandum (HABERMAS, 1988, p. 505).
Habermas (2003a) considera importante que os intérpretes averigúem as razões que
levam o sujeito a proferir seus argumentos para poder compreender o sentido do discurso.
Habermas (2003a, p.47) diz que “os intérpretes não podem compreender o conteúdo
semântico de um texto se não tornarem claras para si próprios as razões que o autor teria
podido citar [...] na situação original”. Por isto, os intérpretes devem recorrer a padrões de
racionalidade, desenvolvendo um saber teórico buscando validez.
Cabe ressaltar que ao analisar o fenômeno da ideologia e linguagem em Habermas,
este adota uma outra perspectiva em termos do seu paradigma de trabalho teórico do mundo
da vida e sistema, evitando o avanço da racionalidade sistêmica que produz a ação
instrumental em relação a fins, própria da racionalidade técnico-científica e cujo avanço pode
provocar uma opacificação da comunicação. Habermas propõe na sua Teoria da Ação
Comunicativa que os sujeitos em interação com o problema tirem os temas de seu mundo da
vida, podendo interpretar e criticar as ideologias e esclarecer os aspectos opacificados da
comunicação, chegando a processos de entendimento que conduzem a saídas emancipatórias
(HABERMAS, 1987).
Penso que esta aproximação entre Habermas e Pêcheux seja bem profícua, sendo uma
alternativa viável para esta pesquisa, pois optei em analisar o discurso fazendo uma
interpretação discursiva utilizando os princípios da AD, buscando os sentidos que são
produzidos nos discursos pela ideologia, história e ação lingüística do sujeito. Minha
experiência teórico-prática em uma interface com Habermas e cheux oportunizou afastar-
me de uma atitude objetivante, colocando-me como participante de uma problematização das
práticas do mundo da vida da enfermagem e medicina, interpretando e analisando efeitos de
sentidos produzidos pelos sujeitos a partir da minha posição de intérprete.
75
3. METODOLOGIA DA PESQUISA
3.1 DELINEAMENTO METODOLÓGICO
Bauer e Gaskell (2002) afirmam que qualquer pesquisador enfrenta o problema de
escolher o método mais apropriado para abordagem de sua pesquisa, preocupando-se em
justificar o delineamento proposto, a escolha dos dados e os procedimentos de análise.
No enfoque de Habermas (2003b, p. 51), hay diferentes tipos de teorias, [que]
utilizan métodos diferentes y disfrutan de diferentes ventajas y desventajas. Em consecuencia,
la elección de uno de estos tipos no implica necesariamente el desprecio por los otros”. Fica
evidente existirem várias formas de abordar o tema desta investigação; é necessário, então,
construir um percurso metodológico condutor desta pesquisa.
Esta pesquisa qualitativa aponta para a direção metodológica da teoria da Análise de
Discurso (AD) da linha francesa, introduzida por Michel Pêcheux, estabelecendo uma
interlocução teórico-metodológica com a teoria de Habermas. A articulação do discurso dos
docentes universitários à teoria do agir comunicativo de Habermas e à ética do discurso serviu
como pano de fundo para fundamentar a interpretação da argumentação moral e ética dos
professores da saúde, no contexto das práticas cotidianas do mundo da vida, permitindo
compreender o grupo profissional estudado, o qual tem tantas responsabilidades na formação
dos futuros enfermeiros e médicos. Estes devem ser preparados para enfrentar um sistema de
saúde em crise, sem permitir que esta conjuntura interfira na sua prática diária, mantendo a
consciência moral e ética, condições indispensáveis para o atendimento do ser humano.
Concordo com Fernandes (2005, p. 12) quando diz que “todo campo do saber edifica-
se pautado em rigor teórico a partir da definição de aspectos metodológicos”, focando em um
objeto específico que, no caso da Análise de Discurso, é o discurso.No campo teórico da
Análise de Discurso, penso como Fernandes (2005) ao dizer que:
[...] os procedimentos metodológicos para análise visualizam uma inter-relação entre
teoria e metodologia que julgamos oportuno reiterar. Essa inter-relação deve-se à
natureza epistemológica da Análise do Discurso, uma vez que, dada a recorrência à
história, o objeto tomado para análise implica uma volta à teoria, justamente para
buscar a perspectiva socioideológica dos sentidos e a historicidade dos processos de
significação. [...] opera-se a análise por meio de recortes das seqüências discursivas,
busca-se apreender a heterogeneidade, a polifonia etc. [...] um constante
movimento de ir e vir da materialidade lingüística, objeto aos nossos olhos, à sua
exterioridade histórica, social e ideológica, espaço de produção e movências dos
discursos e dos sentidos (FERNANDES, 2005, p. 95).
A AD é considerada uma “disciplina de interpretação” (PÊCHEUX, 2002, p. 55);
76
Orlandi (2004, p. 23 e 25-6) atribui à AD a condição de uma disciplina de “entremeio”,
porque ela trabalha “o entremeio, fazendo uma ligação, mostrando que não separação
estanque entre a linguagem e sua exterioridade constitutiva”. A mesma autora não aceita falar
em interdisciplinaridade na AD, pois, segundo ela, a AD não se formou entre disciplinas, mas
sim a partir de suas contradições, sendo esta sua grande particularidade. Portanto, aceitar uma
interdisciplinaridade “seria negar a existência de uma forma de conhecimento específico [...]
ao trabalhar nesse entremeio de disciplinas, a AD coloca uma relação crítica intrínseca, por
trabalhar justamente a sua contradição”.
Amaral (2007, p. 19) considera a AD uma disciplina que investe na elaboração e na
sustentação de um corpo teórico-metodológico para interpretar a realidade, permitindo
“atribuir-se e reconhecer-se como um campo específico do conhecimento cientificamente
constituído e, por isso, requer um posicionamento teórico na compreensão do seu objeto de
análise – o discurso”.
Embora a AD “seja mais relevante para as ciências da linguagem, ela está presente no
exercício das ciências humanas, em particular, e de qualquer ciência, em geral” (ORLANDI,
2004, p. 9). Vários alunos do Pós-Graduação stricto sensu de áreas diversas de conhecimento,
tais como “lingüística, serviço social, administração, psicologia, educação, saúde, jornalismo,
comunicação”, buscam no campo do saber da AD caminhos que possam contribuir para a
interpretação da realidade social (AMARAL, 2007, p. 10).
Defino o delineamento metodológico desta pesquisa como pesquisa qualitativa
fundamentada pela teoria da Análise de Discurso (AD) de Pêcheux articulada à Teoria da
Ação Comunicativa e Ética do Discurso de Habermas, com foco no discurso dos professores
universitários da enfermagem e medicina sobre a questão ético-moral na formação discente; a
consistência desta articulação determina o desenho metodológico da pesquisa.
7.2 DELIMITAÇÃO DO CORPUS
Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 137), em Análise de Discurso (AD)
“[...] corpus designa uma extensa e, por vezes, exaustiva coletânea de documentos ou de
dados [...]”. Os mesmos autores dizem que na AD o termo corpus é utilizado para descrever
os fenômenos discursivos e que seu plural em latim é corpora, sendo esse termo usado
quando existe um grande conjunto de textos a serem analisados.
Em AD, no entanto, como em outras ciências sociais, geralmente é o corpus que de
fato define o objeto de pesquisa, pois ele não lhe preexiste. Mais precisamente, é o ponto de
77
vista que constrói um corpus, que não é um conjunto pronto para ser transcrito
(CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2004, p.138).
Pêcheux considera dois modos de corpus: de arquivo, relacionado aos documentos já
existentes, como: legislação, jornal, livro, entre outros; e empírico: aquele construído
especialmente para a pesquisa, como no caso deste estudo (CHARAUDEAU,
MAINGUENEAU, 2004); embora a definição seja a mesma, Orlandi (2005a, p. 62) menciona
corpus de arquivo e experimental.
Charaudeau e Maingueneau (2004) afirmam que em Análise de Discurso o modo de
constituir o corpus não é:
[...] um simples gesto técnico que responde às exigências ordinárias da
epistemologia das ciências sociais: é problemática na medida em que coloca em jogo
a própria concepção da discursividade, sua relação com as instituições e o papel da
análise do discurso. [...] A legítima perspectiva heurística, que implica construir um
ponto de vista sobre dados discursivos, começa sua realização primeira e crucial na
construção do corpus, que delimita e constrói, em um mesmo movimento, dados e
teoria do discurso em suas relações com um exterior do discurso (CHARAUDEAU,
MAINGUENEAU, 2004, p. 139).
Orlandi (2005a) afirma que o próprio analista constrói o corpus que deseja trabalhar
seguindo critérios teóricos. O corpus desta pesquisa foi construído com material lingüístico
produzido pelas práticas discursivas resultantes das entrevistas com 16 professores
universitários dos cursos de graduação em enfermagem e medicina, sendo 8 professores de
universidade pública (4 da enfermagem e 4 da medicina) e 8 professores de universidade
privada (4 da enfermagem e 4 da medicina). A constituição do corpus com professores
pertencentes a duas instituições de ensino superior, teve como finalidade garantir a
representatividade, bem como verificar diferenças entre os discursos de professores da
universidade pública e da privada. Cabe aqui esclarecer que inicialmente projetou-se
investigar 8 docentes de cada curso; portanto, dos 4 cursos pesquisados seriam ao total 32
sujeitos pesquisados. Porém, a saturação dos dados e a quantidade de material lingüístico
coletado determinaram o encerramento das entrevistas e a definição do corpus com 16
sujeitos-professores.
Concordo com Bauer e Gaskell (2002, p. 39-40) quando consideram amostragem e
“construção de corpusprocedimentos de seleção diversos, pois os autores entendem que o
termo amostragem refere-se à amostragem estatística aleatória, enquanto a “‘construção de
corpussignifica a escolha sistemática de algum racional alternativo”; os autores acreditam
que “a construção de um corpus e a amostragem representativa são funcionalmente
equivalentes, embora sejam estruturalmente diferentes”.
78
Existem quatro regras para escolher os sujeitos que participam de uma pesquisa
qualitativa: 1) selecionar indivíduos conforme critérios externos, tais como funções, estratos
sociais e categorias conhecidas; 2) a variedade de estratos e função deverá preceder a
variedade de representações; 3) “a caracterização da variedade de representações tem
prioridade sobre sua ancoragem nas categorias existentes de pessoas; 4) maximizar a
variedade de representações, ampliando o espectro de estratos/funções em consideração”
(BAUER, GASKELL, 2002, p. 58). A construção do corpus irá ajudar a tipificar as
representações desconhecidas.
Cabe aqui, antes de apresentar, esclarecer os motivos que conduziram à elaboração dos
critérios de escolha dos sujeitos-professores. Inicialmente é importante ressaltar que a Análise
de Discurso não se preocupa com o quantitativo, pois se trata de uma análise vertical
aprofundada e não horizontal. Ao definir que a pesquisa seria realizada em duas universidades
da Grande Porto Alegre, as quais oferecem graduação em enfermagem e medicina, decidi
entrevistar quatro sujeitos-professores de cada curso, sendo o(a) diretor(a), o(a) vice-diretor(a)
e dois professores do quadro docente; todos os diretores e vices dos cursos pesquisados, junto
ao cargo administrativo que ocupam, atuam também em sala de aula e(ou) estágios. Os
diretores e seus vices indicaram vários nomes de professores que poderiam ser contatados
para convite de participação da pesquisa; portanto, a seleção realizada foi por conveniência
denominada “bola de neve”. Este tipo de seleção é utilizado por pesquisadores qualitativos
quando solicitam “[...] aos primeiros informantes que indiquem outros participantes para o
estudo” (POLIT, BECK, HUNGLER, 2004, p. 236) que atendam aos critérios de inclusão
estabelecidos na pesquisa.
A seleção dos sujeitos-professores ocorreu em um processo cíclico, seguindo os seguintes
critérios: diretores e vice-diretores dos cursos de graduação pesquisados; professores dos cursos
de graduação com seleção por conveniência do tipo “bola de neve”; professores universitários
com mais de 9 anos de atuação na vida acadêmica; 8 professores da graduação em enfermagem (4
da universidade blica e 4 da privada) e 8 da medicina (4 da universidade pública e 4 da
privada); titulação mínima de especialista; aceitação em participar da pesquisa.
Os professores escolhidos pertenciam aos cursos de enfermagem e de medicina, e
foram separados em quatro grupos; dois grupos formados por professores de universidade
pública (um grupo do curso de enfermagem e outro da medicina) e outros dois grupos com
professores da universidade privada na mesma composição.
Segundo Fernandes (2004):
79
Os sujeitos entrevistados, ao enunciar, irão retroagir no tempo e no espaço,
percorrendo, em retrospectiva, o caminho de sua constituição como o sujeito do
momento presente da entrevista: um sujeito situado em um tempo e em um espaço
histórico-sociais específicos. O tempo e o espaço serão elementos não exteriores ao
discurso, mas partes integrantes do discurso (FERNANDES, 2004, p.56).
O cenário da investigação envolveu duas universidades, uma pública e outra privada,
ambas com Faculdades de Enfermagem e Medicina, localizadas na região da Grande Porto
Alegre, Rio Grande do Sul; cabe justificar que o motivo que levou à escolha das duas
universidades para realizar o estudo foi a possibilidade de evidenciar a heterogeneidade do
discurso dos docentes trabalhando em instituições, presumidamente, com filosofias e normas
diferentes.
Para construção do corpus nesta pesquisa utilizei uma ficha informativa e roteiro de
entrevista e, além destes instrumentos, foi elaborado o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE).
O TCLE (APÊNDICE A) seguiu a Resolução 196/96 (BRASIL, 2008), fornecido ao
sujeito-professor antes da realização da entrevista, sendo preenchido e assinado em duas vias,
uma para o pesquisador e outra para o sujeito.
A ficha informativa (APÊNDICE B), entregue após assinatura do TCLE, foi
preenchida pelo sujeito-professor, fornecendo dados de identificação, informações
profissionais e religiosidade, servindo para traçar o perfil dos participantes da pesquisa.
A entrevista, como instrumento de coleta de dados, é amplamente empregada na
pesquisa qualitativa, principalmente nas ciências sociais (GASKELL, 2002), pois “trata de
apreender sistemas de valores, de normas, de representações de determinado grupo social”
(MINAYO, 1992, p. 121). Existem vários tipos de entrevistas e, entre eles, optei pela
entrevista semi-estruturada por consistir na enumeração de questões a serem abordadas a
partir dos pressupostos advindos da definição do objeto de investigação. A entrevista semi-
estruturada é indicada quando o pesquisador tem alguns tópicos que pretende explorar e, para
garantir que todas as áreas sejam abordadas, elabora um guia de tópicos (perguntas) que serve
como roteiro para encorajar os pesquisados a falar livremente, direcionando suas respostas ao
tema em estudo (POLIT, BECK, HUNGLER, 2004).
O roteiro de entrevista (APÊNDICE C), elaborado com 13 perguntas fundamentadas
no marco teórico desenhado para a construção do objeto, funcionou como eixos, demarcando
os objetivos propostos na tese. Castilho (2005, p. 140) diz que “esses eixos demarcadores se
configuram com ênfase tanto no momento da seleção do material lingüístico como no próprio
percurso da análise”. As perguntas foram incluídas em três grandes tópicos, os quais
80
direcionaram a entrevista: 1) questão da ética na educação superior - sobre a influência da
academia na formação ética dos acadêmicos; 2) conflitos morais na educação superior -
conflitos vivenciados pelo professor; e 3) Portaria n
o
881, de 19/6/2001, sobre o Programa de
Humanização da Assistência Hospitalar posicionamento do professor frente a esta portaria.
Ainda, no final da entrevista, foi perguntado ao entrevistado se teria mais alguma contribuição
para dar em relação ao tema estudado.
Quanto ao caminho percorrido, inicialmente, antes da qualificação do projeto de tese,
realizei estudo piloto (3.7) com objetivo de avaliar as questões formuladas na entrevista
utilizada para constituir o corpus da tese, bem como experienciar a análise fazendo um ensaio
de análise de discurso, para ser apresentado e avaliado pela banca na defesa do projeto. A
qualificação do projeto ocorreu no dia 25 de maio de 2007 e, posteriormente, encaminhei-o ao
Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo sido
avaliado e aprovado em dezembro de 2007
3
.
Para realização das entrevistas, primeiramente marquei encontro individual com os
diretores dos cursos de graduação estudados, onde apresentei o projeto, solicitei autorização
para realizar a pesquisa, indicação de professores para participarem da mesma (atendendo aos
critérios de inclusão) e realizei a entrevista de forma dialógica. As outras entrevistas foram
agendadas através do contato telefônico, pessoal ou por e-mail, no local e hora de melhor
conveniência aos demais professores. Ao chegar ao local e na hora marcados, apresentava o
projeto, objetivos da pesquisa, fornecia o TCLE e, após sua assinatura, entregava ficha
informativa para seu preenchimento; finalizando, realizava a entrevista com gravador de voz,
seguindo as perguntas conforme instrumento de pesquisa. O item que solicitava leitura do
preâmbulo da Portaria do PNHAH oferecia duas alternativas: eu realizava a leitura ou ele
próprio o fazia, conforme preferência individual de cada sujeito-professor. As entrevistas
iniciaram em 25 de abril de 2006 e finalizaram em 30 de novembro de 2007, sendo transcritas
por três bolsistas voluntárias estudantes do último semestre da graduação de enfermagem e
uma de psicologia do sétimo semestre. A formatação e digitação da tese seguiram as
orientações da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e da Associação Brasileira de Normas Técnicas
4
.
3
Esta não é prática comum e obrigatória na Educação (UFRGS), porém como esta pesquisa irá circular nas áreas
da Educação e Saúde, optei em enviar o projeto para avaliação do Comitê de Ética e Pesquisa da UFRGS. Carta
de aprovação do COEP encontra-se no ANEXO 2 desta pesquisa.
4
Orientações para elaboração de trabalhos acadêmicos: dissertações, teses, TCC de Pedagogia, TCC de
Especialização; org. de Neliana Schirmer Antunes Menezes, Denise Selbach Machado. Porto Alegre:
UFRGS/FACED/BSE, 2008. ABNT, NBR 6023:2002, Informação e documentação – Referências – Elaboração.
81
7.3 DISPOSITIVO DE ANÁLISE
Para justificar o título atribuído a este item segui Orlandi (2004, 2005a), quando
afirma o “dispositivo aqui tem a ver com o reconhecimento da materialidade dos fatos. No
caso, da materialidade da linguagem, da sua não transparência, e da necessidade,
conseqüentemente, de um dispositivo para ter acesso a ela, para trabalhar sua espessura
lingüística e histórica: sua discursividade” (ORLANDI, 2004, p. 79).
Orlandi (2005a), explicando que a construção do corpus está intimamente ligada à
análise, diz:
[...] decidir o que faz parte do corpus é decidir acerca de propriedades discursivas.
Atualmente, considera-se que a melhor maneira de atender à questão da constituição
do corpus é construir montagens discursivas que obedeçam critérios que decorrem
de princípios teóricos da análise de discurso, face aos objetivos da análise, e que
permitam chegar à compreensão. Esses objetivos, em consonância com o método e
os procedimentos, não visa a demonstração mas a mostrar como o discurso funciona
produzindo (efeitos de) sentidos [...]. A análise é um processo que começa pelo
próprio estabelecimento do corpus e que se organiza face à natureza do material e à
pergunta (ponto de vista) que o organiza. Daí a necessidade de que a teoria
intervenha a todo momento [...] (ORLANDI, 2005a, p. 63-4).
O ponto de partida na AD é compreender como um objeto simbólico produz
sentidos”; para alcançar esta compreensão, inicialmente preciso transformar a materialidade
lingüística em objeto discursivo, configurar o corpus, selecionar “recortes discursivos”
5
e
retomar “conceitos e noções, pois a Análise de Discurso tem um procedimento que demanda
um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise. Esse procedimento dá-se ao
longo de todo o trabalho” (ORLANDI, 2005a, p. 67).
A AD trabalha “com recortes de fragmentos do discurso, nos quais os elementos pré-
selecionados se encontram empregados”; a noção de recortes foi introduzida por Orlandi
como “unidade discursiva”, ou seja, linguagem e situação (FERNANDES, 2004, p. 55). O
motivo que induziu a escolha do recorte sócio-histórico deve ser explicado, pois este faz parte
das “condições” de produção do discurso, representadas no corpus em análise, bem como a
necessidade de ilustrar as condições da constituição do corpus (PÊCHEUX, 1993b). Cabe
informar também o enfoque analítico que é dado à pesquisa.
Não existe percurso padrão a ser seguido pelos analistas para a interpretação na AD,
pois cada corpus suscita uma análise própria; destaco que estas características não permitem
traçar um caminho único a seguir ou uma trajetória fechada para realizar AD. Atendendo as
5
Cabe salientar que Eni Orlandi criou o conceito de “recorte discursivo”, introduzindo-o na AD, permitindo assim tomar
fragmentos de “linguagem e situação” para trabalhá-los como discurso (ORLANDI, Eni. Segmentar ou recortar? In:
GUIMARÃES, Eduardo (org.) Lingüística: questões e controvérsias. Série Estudos,
número 10, Uberaba, Fiube, 1984).
82
exigências metodológicas, descrevo o percurso analítico realizado nesta pesquisa: a) definição
do problema de pesquisa a ser investigado; b) elaboração dos objetivos da pesquisa; c)
estabelecimento do corpus discursivo; d) realização das entrevistas e posteriormente a
transcrição do material linguageiro; e) conferência das transcrições para validação; f)
realização de rias leituras e releituras do material lingüístico produzido nas entrevistas; g)
identificação dos eixos temáticos pertinentes ao discurso, a partir dos objetivos da pesquisa;
h) definição das marcas lingüísticas, partindo do estranhamento e da constatação do
aparecimento repetitivo das mesmas nas formulações discursivas; i) realização dos recortes
discursivos (RD) para a análise, guiados pelas marcas lingüísticas e posições discursivas
identificadas; j) associação dos RD com as condições de produção e relação com o
acontecimento; k) articulação dos RD às redes de significações; l) evidenciação dos efeitos de
sentidos que caracterizaram a posição do sujeito-docente; m) reflexão dos efeitos de sentidos
à luz do referencial teórico com interface entre Pêcheux e Habermas. Percorri o mesmo
percurso tanto no estudo piloto quanto no corpus total. Durante toda trajetória da
interpretação e análise realizei o movimento de vai e vem entre o intradiscurso e o
interdiscurso, tomando as marcas lingüístico-discursivas como pistas, para descrever o
funcionamento do discurso e buscar os sentidos possíveis.
Na AD os objetivos da pesquisa situam o discurso que se vai analisar e os aspectos
delimitados, e o analista faz recortes discursivos com base nas marcas lingüísticas buscando
efeitos de sentidos; em síntese, a AD segue o seguinte caminho: o analista constrói seu
dispositivo analítico a partir da questão de pesquisa e faz a análise do corpus, conforme seu
domínio científico, com a finalidade de compreender. “Com esse dispositivo, ele está em
medida de praticar sua análise, e é a partir desse dispositivo que ele interpretará os resultados
a que ele chegar pela análise do discurso que ele empreendeu” (ORLANDI, 2005a, p. 62).
Conforme apresentado, é importante ressaltar que durante toda a análise deve-se
contemplar continuamente a mediação teórica da AD, “[...] trabalhando a intermitência entre
descrição e interpretação que constituem, ambas, o processo de compreensão do analista. É
assim que o analista de discurso ‘encara’ a linguagem” (ORLANDI, 2005a, p. 62).
A AD valoriza o gesto de interpretação do analista; ele não pretende descobrir nada de
novo, mas faz uma interpretação, dando visibilidade e evidenciando um sentido que o
discurso pode ter (MUTTI, 2004). Ao analisar o discurso, o analista pretende compreender a
língua como acontecimento e não somente como estrutura (ORLANDI, 2005a).
Qualquer elemento pode ser estudado enquanto marca lingüística, ou “marca de
discurso”, podendo ser selecionadas poucas marcas lingüísticas para análise. Deste modo,
83
várias leituras do texto fazem com que se estranhe aquela(s) palavra(s) ou formas sintáticas
que marca(m) o discurso e se repete(m), visualizando assim as marcas lingüísticas no material
linguageiro (ORLANDI, 2005a).
O corpus desta pesquisa, constituído pelo material lingüístico coletado em entrevistas
com 16 professores da graduação, representou o discurso analisado; o estudo piloto investigou
a entrevista de um professor fazendo uma análise individual, seguindo-se a mesma sistemática
posteriormente para a análise das outras entrevistas. A interpretação e análise se desenvolvem
a partir de recortes discursivos extraídos desse corpus, trabalhando:
[...] com a materialidade da linguagem, considerando-a em seu duplo aspecto: o
lingüístico e o histórico, enquanto indissociáveis no processo de produção do sujeito
do discurso e dos sentidos que (o) significam. O que me permite dizer que o sujeito é
um lugar de significação historicamente constituído. [...] a análise de discurso
adquire seu sentido pleno, concebendo, por outro lado, a própria língua no processo
histórico-social, e colocando o sujeito e o sentido como partes desse processo. [...]
os dados são os discursos. [...] para a análise de discurso, não existem dados
enquanto tal, uma vez que eles resultam de uma construção, de um gesto teórico.
[...] A questão da interpretação, por sua vez, leva à questão do real e da exterioridade
(ORLANDI, 2004, p. 37-8).
O recorte é uma construção própria do analista; no estudo do recorte se busca
caracterizar as regularidades na “formação discursiva”, no confronto com sentidos
heterogêneos (MUTTI, 2005). As regularidades das marcas lingüísticas que aparecem no
discurso fazem parte da identidade do discurso acessado pelo sujeito, trazendo sentidos pré-
construídos que figuram na memória do dizer da sociedade (MUTTI, 2005).
Na interpretação e análise desta pesquisa, tanto no estudo piloto quanto no corpus, o
sujeito-professor foi situado via memória e acontecimento, seguindo a perspectiva teórica de
Pêcheux (1993a), pois segundo ele a memória é mobilizada pelo acontecimento. Portanto, é
necessário considerar três pontos fundamentais na AD: o conjunto sócio-histórico e material
dos traços discursivos manifestos no interdiscurso; uma análise lingüística discursiva do
processo de interpretação dos sentidos; e a língua. Pêcheux (2002, p.19-20) ainda diz que um
acontecimento “remete a um conteúdo cio-político ao mesmo tempo perfeitamente
transparente [...] e profundamente opaco”. Orlandi (2004, p. 36) complementa afirmando ser
fundamental no estudo da linguagem o deslocamento que “permite passar do dado para o fato.
Este deslocamento, por sua vez, nos coloca no campo do acontecimento lingüístico e do
funcionamento discursivo”.
Mutti (2005) afirma não existir um caminho pré-determinado para realizar a análise,
porém, não se deve abrir mão do rigor necessário; a trajetória seguida nesta pesquisa consiste
num modo de sistematizar a análise, dentre outros.
Produzi uma interpretação que não se esgota e não deve ser considerada absoluta e
84
única, pois no discurso se inscrevem múltiplas possibilidades de leituras e não fechamento
do sentido (ORLANDI, 2005a). Cabe ainda destacar que, ao atuar como analista do discurso,
relacionei “a linguagem à sua exterioridade” conforme indica Orlandi (2005a, p.16), fazendo
uma leitura interpretativa e discursiva, produzindo sentidos.
3.4 CAMINHO DA ANÁLISE
Para iniciar a análise, o qual busca compreender os sentidos emergidos dos discursos
do sujeito-professor sobre a questão ética na formação discente dos graduandos de
enfermagem e medicina, considero importante trazer a contribuição da psicanálise para a
Análise de Discurso, com a teoria da heterogeneidade da palavra” articulada à “teoria do
descentramento do sujeito
elaborada por Jacqueline Authier-Revuz (2004).
A autora explica que, ao referir-se ao “outro”, a Análise de Discurso considera o ponto
de vista da psicanálise, pois:
[...] sob nossas palavras, “outras palavras” sempre são ditas; que atrás da linearidade
“da emissão por uma única voz”, se faz ouvir uma “polifonia”; que “todo discurso
parece se alinhar sobre várias pautas de uma partitura” e que o discurso é
constitutivamente atravessado pelo “discurso do Outro”. [...] [Portanto] para um
sujeito dividido, “clivado” (e não “desdobrado”), não há centro, de onde emanariam,
particularmente, o sentido e a fala, fora da ilusão do fantasma; mas manter esta
ilusão de um centro é a função necessária e normal do eu para o sujeito [...]
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 69).
Todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos “outros discursos” e pelo
“discurso Outro”. O outro não é um objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição
(constitutiva, para que se fale) do discurso de um sujeito falante que não é fonte-primeira
desse discurso
(AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 69).
Isto significa que “os discursos repetem-se porque os sujeitos retomam já-ditos em
seus discursos, mas não literalmente. A volta do mesmo, em outro lugar e em outro momento,
institui o diferente” (PIRES, 2000, p. 91).
Nesta análise do corpus realizei um estudo vertical de aprofundamento, evidenciando
efeitos de sentidos manifestos na materialidade da linguagem do sujeito-professor, os quais
apontam processos discursivos de interesse deste estudo. Após efetuar recortes, busquei a
relação entre os enunciados do intradiscurso e o efeito de interdiscurso, tentando assim
compreender a produção de sentidos. Para analisar o corpus, considerei a posição do sujeito-
professor a partir das influências ideológica e histórica determinantes da materialização da
linguagem, bem como a memória e acontecimento.
Guilhaumou (2007, p. 201), ao refletir sobre a co-produção no trabalho do
85
pesquisador, destaca a responsabilidade compartilhada entre o entrevistador e o entrevistado
na co-construção discursiva, pois “o entrevistador é, [...] ao mesmo tempo, co-autor e co-ator
dos argumentos da narração que ele registra”.
Ciente de que existem várias formas de interpretar um discurso, reforço ser a análise
realizada apenas uma forma de muitas outras que poderiam ter sido realizadas. Devido à
heterogeneidade do discurso, não se tem certeza do que o autor quis dizer. O sentido escapa
sempre, pois as palavras não trazem em si o sentido “colado” nelas; o equívoco, os deslizes e
a falha são constitutivos do discurso (MUTTI, 2005).
Atendendo a um dos objetivos propostos nesta tese, ao analisar o processo
argumentativo dos sujeitos docentes através da análise do discurso, agrego conceitos da
Teoria da Ação Comunicativa de Habermas à análise e interpretação dos pronunciamentos
dos docentes, possibilitando a interface entre Pêcheux a Habermas. Mutti (2005) acredita que
uma teoria pode servir como ferramenta para produzir novos conhecimentos, abordando
questões do mundo da vida, dando-lhe sentido e transformando-o.
3.5 DESCRIÇÃO DA TRAJETÓRIA PARA DEFINIÇÃO DO CORPUS
A construção do corpus desta pesquisa constitui-se do material lingüístico resultante
de entrevistas realizadas com dezesseis professores universitários dos cursos de graduação em
enfermagem e medicina; a primeira entrevista foi utilizada para realizar o estudo piloto,
apresentado no item 3.7, e as demais entrevistas são analisadas posteriormente.
Os contatos com os professores para convite e agendamento das entrevistas foram
realizados pessoalmente, por telefone ou e-mail. Dezessete professores dos cursos de
enfermagem e medicina de duas universidades da Grande Porto Alegre, uma pública e outra
privada, aceitaram o convite e submeteram-se às entrevistas; porém, uma destas não pode ser
aproveitada para a pesquisa, devido a falhas na gravação impossibilitando a transcrição da
mesma. Dois professores pertencentes à universidade privada recusaram o convite para
participar da pesquisa, alegando falta de tempo devido ao acúmulo das atividades docentes e
demais compromissos.
As entrevistas iniciaram em abril de 2006 (do estudo piloto) e a última ocorreu em
novembro de 2007. O longo tempo que demandou a realização de todas as entrevistas
justifica-se pela dificuldade em localizar alguns professores e problemas para conciliar o
horário da entrevista com as atividades dos professores.
O local para realização da entrevista foi de livre escolha do professor, conforme sua
86
disponibilidade de tempo. A maioria escolheu a universidade; porém, dois optaram pelo
hospital e dois preferiram a própria residência.
Ao deslocar-me para o local previamente agendado, antes de iniciar a entrevista,
apresentei os objetivos da pesquisa e forneci Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) (APÊNDICE A), sendo todos assinados em duas vias (1 cópia do sujeito e 1 para a
pesquisa). Após a assinatura do TCLE forneci ao sujeito uma ficha informativa (APÊNDICE
B) com dados de identificação, para ser preenchida antes de iniciar a entrevista. Avisei que a
entrevista seria gravada seguindo um roteiro semi-estruturado (APÊNDICE C), dividido em
três grandes tópicos: ética na educação superior; conflitos morais na educação superior; e a
Portaria sobre Programa de Humanização da Assistência Hospitalar. O tempo de cada
entrevista variou entre 24 e 58 minutos, conforme interesse e experiências do sujeito
entrevistado; três tiveram a duração de 58 minutos, cinco levaram entre 40 e 50 minutos, seis
entre 30 e 36 minutos e as outras duas, uma com 24 e outra com 29 minutos.
Todas as entrevistas foram transcritas por quatro bolsistas voluntárias, sendo três
acadêmicas do último semestre de enfermagem da ULBRA e uma acadêmica de psicologia da
UFRGS do sétimo semestre. Realizei a validação através da conferência das transcrições, com
auxílio do meu marido e de uma enfermeira que no semestre anterior havia trabalhado na
pesquisa como bolsista voluntária; a fita gravada da entrevista foi novamente ouvida no
gravador de voz, simultaneamente à conferência do material lingüístico transcrito.
Após transcrição das entrevistas na íntegra, realizei várias leituras e releituras, sempre
retomando o problema de pesquisa, os objetivos e as questões norteadoras. Identifiquei os
acontecimentos discursivos apresentados nos enunciados (marcavam a posição discursiva do
sujeito-professor) e as marcas lingüístico-discursivas (guiavam o fio do discurso) e defini os
recortes a serem realizados, permitindo interpretar e analisar os efeitos de sentidos
produzidos. Os recortes discursivos são apresentados na margem total da página, com fonte
11 e espaço simples
6
.
3.6 OS SUJEITOS-PROFESSORES PARTICIPANTES
Atendendo aos critérios de inclusão, apresento inicialmente, de forma descritiva
condensada, a constituição dos sujeitos-professores participantes desta pesquisa e
6
Adotei este procedimento para diferenciá-los das citações bibliográficas diretas, seguindo orientações para
elaboração de trabalhos acadêmicos: dissertações, teses, TCC de Pedagogia, TCC de Especialização; org. de
Neliana Schirmer Antunes Menezes, Denise Selbach Machado. Porto Alegre: UFRGS/FACED/BSE, 2008.
87
posteriormente o quadro 1, permitindo melhor visualização.
Oito dos dezesseis professores entrevistados são do sexo feminino; seis destas
pertencem aos cursos de graduação em enfermagem e duas aos cursos de medicina.
A idade dos docentes variou entre 41 e 66 anos; o tempo de graduação entre 13 e 35
anos nos professores enfermeiros e 17 e 40 anos nos professores médicos.
O tempo de atuação destes professores no ensino superior variou entre 9 e 35 anos,
assim distribuídos: um professor com 9 anos; seis entre 10 e 19 anos; cinco entre 20 e 29
anos; e quatro entre 30 e 35 anos. Trabalham nas universidades escolhidas entre 6 e 35 anos;
portanto, todos têm boa vivência tanto na profissão quanto no ensino superior, trabalhando
nas universidades pesquisadas o tempo suficiente para conhecerem a estrutura destas. Oito
professores trabalham em regime de dedicação exclusiva no ensino superior das instituições
pesquisadas, sete têm outros locais de trabalhos e apenas um não forneceu esta informação.
Quanto à titulação máxima dos professores, seis têm doutorado, seis mestrado, um
mestrado incompleto e três têm especialização. Embora oito professores ocupem cargos
administrativos, de chefia ou direção, todos atuam nos cursos de graduação ministrando
disciplinas teórico-práticas em diversas especialidades: clínica, cirurgia, patologia, pediatria,
promoção e proteção da saúde da mulher, saúde coletiva, administração, pesquisa e outras.
Dos quatro cursos pesquisados, apenas o curso de enfermagem da universidade
pública não tem na sua grade curricular alguma disciplina específica com enfoque na ética,
pois fizeram modificações incluindo a discussão desta temática em todas as disciplinas,
seguindo as novas tendências.
A última questão da ficha informativa perguntava se o professor freqüentava alguma
religião: dois professores responderam não; dois informaram ter fé, porém não freqüentam
nenhuma religião; os demais responderam freqüentar alguma religião regularmente ou
raramente. Esta questão pretendia fazer uma relação entre a religiosidade e os princípios
morais e éticos manifestos nos discursos.
Para manter o anonimato do professor entrevistado, optei em identificar o sujeito-
professor pela sigla SP, seguido da letra E ou M representando o curso ao qual o mesmo
pertence, enfermagem (E) ou medicina (M), e o número correspondente à ordem seqüencial
da realização das entrevistas. O professor do estudo piloto foi denominado SPE1, embora não
tenha aparecido esta nomenclatura no estudo piloto, pois se tratava da apresentação do
discurso de apenas um sujeito-professor.
O quadro 1 apresenta dados informativos referentes às entrevistas realizadas e ao perfil
dos sujeitos-professores participantes, omitindo alguns dados que poderiam permitir a
88
identificação do sujeito, através da associação das informações tais como: instituição e
disciplina(s) que leciona(m), titulação, outros locais de trabalho e religiosidade.
Quadro 1. Dados das entrevistas e dos sujeitos-professores entrevistados que constituíram o
corpus desta pesquisa, entre abr 2006 e dez 2007.
Denominação
do Sujeito-
Professor
Data da
Entrevista
Duração da
Entrevista
Formação
Sexo Idade
(anos)
Tempo de Trabalho
na Profissão
(anos)
Tempo de Docência
Superior
(anos)
SPE1 25/04/06 40 min Enfermagem F 51 28 22
SPE2 26/04/06 36 min Enfermagem F 57 35 30
SPE3 02/05/06 31 min Enfermagem F 56 28 19
SPM4 03/05/06 30 min Medicina M 44 20 14
SPM5 15/05/06 35 min Medicina M 58 31 30
SPM6 16/05/06 50 min Medicina M 59 35 25
SPE7 17/05/06 58 min Enfermagem F 47 13 13
SPE8 17/05/06 43 min Enfermagem F 53 30 18
SPM9 22/05/06 58 min Medicina M 52 26 17
SPM10 23/05/06 32 min Medicina M 51 27 24
SPM11 14/06/06 29 min Medicina M 66 40 35
SPE12 13/09/07 35 min Enfermagem M 54 32 10
SPE13 18/09/07 58 min Enfermagem M 54 34 33
SPE14 18/09/07 49 min Enfermagem F 51 28 24
SPM15 22/11/07 45 min Medicina F 56 32 29
SPM16 30/11/07 24 min Medicina F 41 17 09
3.7 ESTUDO PILOTO: UM ENSAIO DO ENFOQUE DISCURSIVO
7
Este estudo piloto foi realizado antes da defesa do projeto de doutorado, ocorrida em
25 de maio de 2007, com a finalidade de ser avaliado pela banca de qualificação.
Concordo com Polit, Beck e Hungler (2004, p. 54) quando dizem que o estudo piloto é
um “ensaio em pequena escala do estudo para obter informações visando a melhoria do
7
Cabe registrar que este ensaio foi apresentado, discutido e analisado em seminário no final de 2006, com a
orientadora, co-orientadora e demais participantes, permitindo aprofundar as relações teóricas e analíticas,
oportunizando uma experiência singular na FACED/UFRGS. Este estudo piloto encontra-se no projeto de tese
apresentado na qualificação dia 25 de maio de 2007.
89
projeto ou para investigar a sua viabilidade”; por isto, decidi fazê-lo e incluí-lo no projeto de
tese, permitindo que fosse analisado e avaliado pela banca, possibilitando assim realizar
alterações na análise, caso fosse necessário.
O estudo piloto desta pesquisa teve como objetivos: 1) testar o instrumento de
pesquisa; 2) verificar se as questões elaboradas abarcavam a profundidade do tema; e 3) fazer
um ensaio de análise de discurso.
O corpus do estudo piloto constitui-se do discurso de um professor universitário, de
um curso de graduação em enfermagem do Rio Grande do Sul, escolhido intencionalmente
devido a sua característica de ter experiência significativa no magistério de nível superior. O
sujeito trabalhava como enfermeiro 28 anos e 22 como professor no ensino superior.
Para manter o anonimato, este professor foi identificado como SPE1, que significa: sujeito-
professor, enfermeiro, primeiro a ser entrevistado nesta pesquisa.
A entrevista foi previamente agendada através de contato pessoal, sendo realizada na
hora marcada do dia 25 de abril de 2006, em uma sala da universidade. Antes de iniciar a
mesma, foi esclarecido o objetivo da pesquisa e informado que se tratava de um estudo piloto;
portanto, no final da entrevista, o sujeito poderia fornecer sugestões para melhorar o
instrumento. Forneci o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE A), que foi
assinado em duas vias, ficando uma cópia para o sujeito participante e outra comigo. Antes de
iniciar a entrevista o sujeito preencheu uma ficha informativa (APÊNDICE B) com dados de
identificação, utilizados para traçar o perfil do sujeito, mas sigiloso quanto a sua identidade,
atendendo aos princípios da ética na pesquisa. Realizei a entrevista conforme roteiro semi-
estruturado (APÊNDICE C), sendo gravada em fita de áudio com duração de 40 minutos.
Após a realização da entrevista, os passos percorridos para a análise do estudo piloto
foram: transcrição da entrevista na íntegra; retomado o problema, os objetivos e as questões
norteadoras; leitura e releitura da entrevista; estranhamento dos enunciados e definição das
marcas lingüístico-discursivas “não” e “tem que”, visando estudar o funcionamento discursivo
do sujeito-professor entrevistado; identificação dos acontecimentos discursivos apresentados
nos enunciados conforme as questões norteadoras e os objetivos do trabalho, com a
preocupação de atender à pergunta de pesquisa; realizados recortes da formação discursiva
usando como guia as marcas lingüísticas definidas, as quais nortearam o fio do discurso dos
enunciados analisados; interpretação e análise dos recortes discursivos buscando os efeitos de
sentidos à luz dos referenciais teóricos.
As marcas lingüístico-discursivas escolhidas no estudo piloto não serviram como
dados e sim como pistas do discurso, servindo como “processo de internalização de
90
enunciados diversos, os quais foram produzidos em outros discursos” (CASTILHO, 2005, p.
141), ou seja, encontram-se no interdiscurso permanecendo na memória do dizer; estas
marcas permitem trazer várias possibilidades de sentidos que o discurso analisado pode ter,
sendo analisadas como estas funcionam no fio discursivo.
Cabe aqui justificar o motivo que conduziu a escolha das marcas lingüísticas definidas
no estudo piloto. Parti do pressuposto de que o objetivo do estudo era fazer uma iniciação à
análise de um discurso pedagógico. Para fundamentar a análise, busquei referências de
trabalhos analisados da área. Ao encontrar o artigo de Castilho (2005), constatei que a
produção de conhecimento emergido da sua dissertação encontrou ressonância nesta pesquisa,
isto porque, ao estudar os sentidos sobre a profissão professora, utilizou a marca lingüística
tem que para conduzir o fio do discurso do sujeito-professor, concluindo que esta se encontra
muito relacionada com o discurso dos professores. A autora diz:
O tem que funciona no discurso sobre as profissões de uma maneira muito estreita
relacionada ao o que saber, ao como fazer, ao por que fazer, ao por que saber de
cada campo profissional determinado. E se insere essa marca lingüística no ser
professora, no ser médico, no ser ator, no ser pintor, entre outros. O que isto
significa? Significa que elas assumem uma identidade como profissionais, sobre o
seu saber-fazer! (CASTILHOS, 2005, p. 173).
Com base nesta reflexão, constatei recorrência nas marcas lingüísticas tem que bem
como não no discurso do sujeito-professor a ser analisado no estudo piloto, confirmando o
achado de Castilho (2005). Juntamente a este aspecto evidenciado, somei o pensamento de
Habermas (1993), pois ao escrever “Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática”, o
filósofo faz uma profunda reflexão sobre o tem que”, entendendo o enunciar desta marca
lingüística pelo sujeito como tentativa de mostrar, através da linguagem, o sentido de “dever”;
portanto, o enunciado está impregnado de senso ético e moral. O uso do “tem que” é visto por
Habermas (1993) como “pragmático normativo”, para acentuar o uso que o falante faz da
linguagem para expressar seus argumentos com relação a questões prático-morais. Trata-se da
capacidade de argumentação moral do participante do discurso no sentido de expressar seu
ponto de vista moral (MARTINI, 2007).
Habermas (1991a) afirma, na teoria da ação comunicativa, que o indivíduo desenvolve
a argumentação no seu discurso sob sua própria perspectiva e, mesmo estando inserido em um
contexto universal, não quebra o laço social do sentimento ao qual pertence.
Na interpretação e análise, fundamentada por Pêcheux, que enfatizou o acontecimento
e a memória como indispensáveis para o processo de interpretação do discurso, tentei
compreender os sentidos produzidos no discurso deste sujeito através da memória do dizer,
captando os aspectos sociais e históricos e das condições de produção, guiada pelo referencial
91
da AD; lembrando que o sentido não está fixado a priori na palavra, pois a linguagem não é
transparente e o sentido pode ser sempre outro.
3.7.1 Funcionamento da marca lingüístico-discursiva não
Escolhi a marca lingüística não como norteadora para a análise do discurso,
entendendo que o sujeito-professor, ao usar esta marca nos enunciados, assume uma posição
discursiva de negação frente a valores que deveriam permear a questão da moral(idade) e
ética(idade), porém encontram-se relegados.
Indursky (1997, p. 244 e 213) afirma que a negação “permite acessar o discurso-outro
ao mesmo tempo que determina o discurso do sujeito”, isto porque “a negação é um dos
processos de internalização de enunciados oriundos de outros discursos”, permitindo
“investigar a presença do preconstruído como vestígio”.
Ao estudar o funcionamento discursivo da negação, Indursky (1997, p. 243-4) analisou
e interpretou os dados “sem cair no que Culioli designa de ilusão”, ou seja, “à ilusão de seu
funcionamento lógico”, pois “[...] a negação é, a um tempo, a rejeição, a ausência, a
alteridade, o vazio, o absurdo, o impossível [...]” (CULIOLI, 1990, p.84 apud INDURRSKY,
1997, p.243).
No olhar de Habermas, o não evidencia a falta de um espaço para justificação;
portanto, o sujeito ficará no plano pragmático se não ocorrer a discussão da norma existente.
O objetivo que norteou a busca das formulações discursivas com a marca lingüística
não foi: explorar, descrever e interpretar a posição discursiva dos professores sobre a moral
(idade) e a ética(idade).
Os recortes da formação discursiva em análise serão representados por RD (Recorte
Discursivo).
1
o
Recorte: Efeitos de sentidos sobre a questão da moral(idade) e ética(idade).
Os efeitos de sentidos analisados neste primeiro recorte dos efeitos de sentidos sobre a
questão da moral(idade) e ética(idade) foram: efeito de desinteresse; efeito de atendimento à
saúde fragmentado e desumanizado; e efeito de pouco comprometimento da universidade.
Efeito de desinteresse: “[...] não (se) tem este interesse”.
Ao ser questionado sobre como o sujeito-professor entrevistado percebe a formação
ética dos acadêmicos da enfermagem, na formulação discursiva do professor entrevistado
emerge o sentido de desinteresse dos alunos em abordar discussões mais aprofundadas, as
92
quais possam levar à reflexão sobre a ética e a moral, valorizando mais o ensino técnico. Este
sentido emergido vem ao encontro da afirmação realizada por Selli (2005, p. 13), quando diz:
“a formação profissional de enfermagem, tanto de nível médio como de superior, é guiada por
parâmetros tecnicistas, sem uma discussão mais ampla da dimensão humanista de nossa
atividade [...]”. Apresentarei, a seguir, o excerto da entrevista que ilustra o foco em questão:
RD(1) [...] na enfermagem eu acho que a gente discute um pouco esta questão, mas não aprofunda [...]
então se o professor ele não está atento a isso, isto se perde. Porque... Porque ele se centra na
técnica [...] porque o aluno também não tem este interesse; ele quer, tu convida o aluno pra assistir
uma passagem de intracath, uma coisa... Todo mundo, todo grupo quer ir, tu não precisa nem..., agora
quando tu entra nessas discussões (ahm) mais aprofundadas assim, nas implicações nas ações de
enfermagem, o aluno também não se interessa muito [...] se tu não, não, não provoca este assunto ele
não aparece, ele não; daí eu acho que ele passa batido ele não é abordado pela..., nem pelo professor,
nem pelo..., pelo aluno. Apesar de que hoje está muito na moda falar ética e coisa, mais acho que a
moda ela acontece mais assim em ambiente informais, nos cafezinho, mas como conteúdo trabalhado
durante o curso eu não sei... Não sei se ele é né?
Como na Análise de Discurso o sujeito é historicamente determinado e os sentidos são
produzidos através das suas condições de produção, é importante descrever as filiações
históricas formadoras da memória da enfermagem brasileira. Em 1949 ocorreu uma grande
reforma curricular na enfermagem no Brasil, passando-se a contemplar e valorizar um ensino
tecnicista, direcionado ao modelo de saúde hospitalocêntrico. Geovanini et al. (2002, p. 40 e
41) relatam que até a década de 70 tanto os currículos de graduação de enfermagem quanto os
de pós-graduação eram “centrados na assistência curativa” e somente a partir da década de 80
iniciou-se uma nova perspectiva de mudança, através da integração ao setor público; em 1982
surgiu o programa de Ações Integradas de Saúde com a proposta institucional do Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e, logo após, o movimento
da Reforma Sanitária com a proposta de “um sistema único de saúde, público, socializado,
universal, integrado e planejado de acordo com as demandas existentes”. Para acompanhar a
nova proposta de saúde, o ensino precisou adequar-se com várias mudanças curriculares;
porém, permanece na memória dos profissionais da enfermagem a supervalorização das
técnicas e tecnologia, em detrimento de outros aspectos importantes.
Freire (1996) questiona a respeito:
[...] transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o
que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador.
Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se
alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. Divinizar ou
diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de
pensar errado. [...] Pensar certo, pelo contrio, demanda profundidade e não
superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos (FREIRE, 1996, p. 33).
Rego (2003, p. 129 e 14), ao estudar a formação ética dos médicos, encontrou alguns
93
estudantes que “acreditam que as respostas aos dilemas morais podem ou devem ser
encontrados através do conhecimento técnico”. O autor observa, como decorrência da
medicina ser tomada como modelo de outras profissões da saúde, muitos “erros cometidos no
ensino médico também se reproduziram na formação de outros profissionais”.
Efeito de atendimento à saúde fragmentado e desumanizado
Ao ser questionado sobre os conflitos morais vivenciados na educação do ensino
superior, o jogo discursivo do sujeito entrevistado aparece permeado pela memória do dizer
de outros discursos, produzindo o efeito de sentido de vivenciar conflitos ao perceber o
atendimento à saúde fragmentado e desumanizado. As relações de sentido vão sendo tecidas à
medida que aparece esse atendimento como reflexo histórico e ideológico do sistema de
ensino e de saúde, implantado a partir de 1949 e totalmente aceito até a década de 70,
direcionado à saúde curativa, ao modelo hospitalocêntrico, valorizando a tecnologia e as
técnicas e fragmentando o ser humano em partes de diversas especializações.
Nos recortes apresentados a seguir, observei que o sujeito-professor se vale de um
saber da sua prática de enfermagem para produzir efeito de sentido sobre a falta de ética, que
se reflete no atendimento à saúde, fragmentado e desumanizado.
Sentido fragmentado:
RD(2) Mas, o que, que é cuidar de um sujeito integral? É o cuidar do sujeito e não da doença dele
(né?). [...] Às vezes tu não pode estar descolado do sujeito, porque é um sujeito que ele adoeceu, por
alguma contingência da vida dele [...] não adianta eu chegar e, é agora eu vou te fazer este cuidado
aqui e tu vai ficar bom, e tchau, não [...] não é uma enfermagem [...] atendimento de balcão, que a
pessoa vem ali (ahm) e eu tô com dor de dente, então toma aspirina, tchau, não, [...] eu tenho todo um
discurso (né?) sobre integralidade eu vou lá para uma unidade eu não sei se isso acontece lá, e o aluno
ele aquilo ali da forma como é que está acontecendo, né? [...] A assistência à saúde ela não se
esgota dentro do, dentro do hospital [...] cuidar da sua saúde [...], prevê o trabalho interdisciplinar
(né?) onde um profissional só, ele não da conta, porque o ser, o ser humano, as situações elas são
complexas (né?) muitas vezes a gente precisa da intervenção de outros profissionais [...].
Sentido desumanizado:
RD(3) [...] tu só pode fazer um cuidado humanizado quando tu consegue ver o individuo nesta
perspectiva, que não é o enfermeiro, que ele vai dar conta, do cuidado à saúde, não é o médico, mas
sim quando os profissionais, eles trabalharem juntos e tratarem o ser humano na, na complexidade do
ser humano. [...] Eu acho que o ser humano está caminhando por um caminho onde ele, ele está se
tornando muito individualista e egoísta (né?) muito, muito e isso fez com que ele perdesse a
perspectiva do que é a vida, do que é o humano [...] cuidar para não se perder, que é a perspectiva do
lucro, da mais valia, da economia e assim que a gente caminha (né?) (ham) o paciente dentro do
hospital, ele quanto menos tempo ele ficar internado, porque são as próprias diretrizes do Sistema
Único de Saúde não é? [...] como é que é: amigdalectomia é um dia de internação, apendicectomia são
dois e assim vai... mas não... independe se o cara tem 50 anos ou é recém-nascido, se ele é gordo, se
94
ele é magro, se ele é homem ou mulher. [...] Os profissionais de saúde, eles começam não, se esse
curativo, ele pode ser duas listras de esparadrapo, então vai ter duas listras de esparadrapo, não
interessa se o individuo tem 200 quilos (né?) Por quê? Porque se não o SUS não paga um curativo
maior, porque ele paga para este tipo de pro... de curativo e com isso conseguiu se perder esta
perspectiva do humano [...] Mas não é isso, isso é um reflexo [...] do caminho que nós seres
humanos estamos adotando [...] humanidade não sei como é que a gente chamaria. [...] a gente
perdendo esta individualidade, estamos entrando assim num sistema (né?) robotizado, onde estão
sendo criado padrões, e estes padrões, eles também são criados dentro da saúde. Então hoje a gente
não trata mais o indivíduo, a gente trata a patologia porque o sistema único, ele paga a patologia.
O movimento dos enunciados, apresentados no discurso do sujeito, organiza as cenas
dos acontecimentos, estabelecendo seus sentidos. Para analisar a formação discursiva é
importante remeter às relações de sentidos nas quais foram produzidas, determinando as
condições de existência e estabelecendo suas correlações com os outros enunciados aos quais
se ligam e se articulam em redes de significantes. O modelo político neoliberal instalado em
1990, com o discurso de construção de um Brasil moderno, levou o país à deterioração das
condições de vida e saúde da população, ocorrendo o sucateamento da rede pública de saúde,
onde “a iniciativa privada passou a responder por mais de 80% da prestação de serviços de
saúde no país” (GEOVANINI et al., 2002, p. 43).
A bioética surge na área da saúde como um dos principais objetivos de “desenvolver
uma concepção do ser humano como um ser integral e não limitá-lo, como é comum na área
de saúde, à condição de ‘paciente’” (SELLI, 2005, p. 14), isto porque “o ser humano está
sendo considerado um produto, um objeto” (CLOTET, 2003, p. 197).
Freire (1996), no seu livro “Pedagogia da Autonomia”, adverte para a necessidade do
professor manter uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização.
Efeito de pouco comprometimento da universidade com a ética
Quando o sujeito-professor foi questionado sobre como a prática na universidade está
contribuindo para formar profissionais da saúde partícipes da construção de uma cultura de
atendimento à saúde da população pautada pelo respeito à vida humana, o discurso produz
efeito de sentido que reflete valores circulantes em nossa sociedade e evidencia aspectos de
pouco comprometimento da universidade no compromisso da formação ética e moral do
profissional.
Rego (2003), ao pesquisar a formação ética dos médicos, fez uma denúncia:
[...] não tenho a menor dúvida em afirmar que a maioria das faculdades de Medicina,
[...] é incompetente. [...] Se no campo do desenvolvimento das habilidades técnicas
ou da competência técnica existem várias escolas no mundo que têm uma atuação
satisfatória, no desenvolvimento das competências, digamos relacionais, como as de
comunicação e éticas, elas deixam muito a desejar (REGO, 2003, p. 13).
95
A universidade, na formação holística dos profissionais, deveria estimular a eticidade
dos sujeitos; do RD do sujeito emergem sentidos de crítica ao pouco comprometimento desta,
reforçando a denúncia feita anteriormente por Rego.
RD(4) [...] tem coisas que hoje nós conseguimos ainda fazer dentro da universidade se o aluno ele
não fizer isso enquanto ele for um aluno universitário, ele não vai conseguir fazer isso em nível de
trabalho, primeiro porque ele não vai ter for... ele não vai ter de repente lugar para fazer isso, uma
oportunidade e segundo porque ele não formado para isso (né?). Então a universidade ela é o local,
resta saber se nós estamos utilizando este local, eu acho que (ahm) algumas iniciativas de espaço, elas
são feitas tá, mas ainda... [...] não é um movimento forte consolidado isso ai, ainda não é (né?),
porque existe [...] todo um apelo (né?) para que isto aconteça dentro da universidade [...] as
universidades elas se preocupam mais em fazer programas que atendam essas, esses chamados por
causa da verba do que pelo conteúdo em si e depois claro elas são obrigadas a desenvolver aquilo,
então aos poucos ela vão incorporando (né?), mas o inverso ainda não é verdadeiro, ainda não existe
assim, uma vontade dentro da universidade que seja consolidada para que isso aconteça. [...] Acho que
ainda não chegamos neste ponto [...] repensar nossa forma de agir, mas isso requer um esforço, requer
tempo, requer dedicação (né?), requer incertezas (né?), porque a gente tá apostando mas quando você
vê pode não dar certo (né?) e tem pessoas que não querem sair do seu espaço, estão ali bem
acomodados (né?) então isso requer investir em muitas coisas.
Para Pêcheux um discurso sempre remete a outros discursos, pois na AD a linguagem
é determinada pelo processo sócio-histórico que realiza a produção do discurso; na AD, este
processo não é entendido como evolução histórica, mas sim os sentidos que variam conforme
os momentos histórico-sociais diferentes.
Santos (2003, p. 187), em um dos capítulos do seu livro, faz uma análise da
universidade, trazendo a complexa situação em que esta se encontra e os desafios que lhe são
postos, afirmando: “a universidade não parece preparada para defrontar os desafios, [...] na
medida em que a perenidade da instituição universitária, sobretudo no mundo ocidental, está
associada à rigidez funcional e organizacional [...], à aversão à mudança”.
Segundo Morin (2003) a universidade é conservadora ao manter a herança cultural de
saberes e valores; regeneradora dessa herança e geradora ao transmiti-la e gerar novos
saberes, idéias e valores incorporados à herança, podendo ser, quanto à conservação, vital ou
estéril. Parece ser este último enfoque, o de conservação estéril, com entendimento de
cristalização, o sentido produzido pelo sujeito ao enunciar tem pessoas que não querem sair
do seu espaço, estão ali bem acomodados, né?”.
2
o
Recorte: Efeitos de sentidos sobre conflitos morais vivenciados
Nas seqüências discursivas descritas a seguir evidencio efeitos de sentidos
produzidos, na articulação entre a relação prática do enfermeiro e o ensino de enfermagem,
sobre conflitos morais vivenciados: dicotomia teórica-prática e manejo dos conflitos morais.
96
Efeito dicotomia teórico-prática
Na formação discursiva do sujeito-professor evidencio uma complexa posição
discursiva em conseqüência de uma diversidade de saberes e de fontes ideológicas que o
integram. O saber da área de enfermagem e o saber pedagógico aparecem entrelaçados; de
cada um destes saberes específicos emerge o saber científico versus o saber prático, os quais
ao se unirem originam uma teia de vários efeitos de sentidos, caracterizando a complexidade
da posição discursiva do sujeito-professor analisado. O recorte da seqüência discursiva
apresentada a seguir aponta vários conflitos morais vivenciados na profissão, determinados
por aspectos sociais, os quais interferem nas práticas de ensino e denunciam a falta de
articulação entre a teoria e a prática, produzindo assim um efeito de sentido de dicotomia
teórico-prática, pois “em algumas situações [...] é difícil trabalhar”, na prática, de acordo com
o saber científico:
RD(5) Dentro desta perspectiva da integralidade (né?) (ham) que é uma coisa meio complicada de
fazer (né?), por vezes a gente identifica, algumas situações em que é difícil trabalhar (né?) (ham). Eu
me lembro uma paciente, que nós tivemos já (ahm) hipertensa (né) e por ser hipertensa um dos
cuidados da saúde dela era não colocar, ela diminuiu o uso do sal; e ela era dona de casa, é ela que
cozinhava e se ela não botasse sal na comida ela apanhava do marido (né?) então são situações (ham)
deste tipo elas são complicadas (né?) [...] outro problema também era falta de dinheiro que quando
não tinha dinheiro a primeira coisa que eles cortavam era os medicamentos dela [...] ela não
trabalhava fora, ela dependia do dinheiro do marido é ele que definia o que, que era importante
comprar, [...] ela fazia a alimentação pro marido dela e não para ela e tinha problema na medicação
porque quando apertava era a medicação dela que não era comprada e em função disto ela estava
internando hipertensa [...] nos propusemos a falar com a família e ela não queria porque ela tinha
medo do marido [...].
Algumas palavras reforçam a negação: é uma coisa meio complicada de fazer“é
difícil”. O sujeito-professor ao enunciar Dentro desta perspectiva da integralidade (né?)
(ham) que é uma coisa meio complicada de fazer [...] produz um efeito de negação da
possibilidade de pôr em prática a teoria ensinada, devido às condições sociais existentes.
Considerando que os sentidos do discurso são influenciados pelas condições de produção nas
quais foi produzido, percebo neste recorte discursivo que a questão enfocada não é de ensino,
mas da prática da profissão influenciada pela rede social que permeia a área da saúde. A
posição-sujeito-professor revela, através da seleção de enunciados presentes nesse corpus,
efeito de sentido onde o saber científico choca-se com o saber prático determinado pela
condição social vivenciada da paciente.
As formações discursivas são transformadas e atualizadas, retornando sob forma de
novo discurso em diferentes situações sócio-histórico-ideológicas, trazendo vestígios de
discursos pré-construídos e não extintos. Para a análise deste efeito de sentido produzido pelo
97
RD cabe relembrar que a universidade, desde o século XIX, é o local por excelência de
produção do conhecimento científico, buscando sempre a verdade através da investigação.
Santos (2003) diz que:
Aliás, a investigação foi sempre considerada o fundamento e a justificação da
educação de ‘nível universitário’ e a ‘atmosfera de investigação’, o contexto ideal
para o florescimento dos valores morais essenciais à formação do carácter. A marca
ideológica do desinteresse e da autonomia na busca da verdade fez com que o
prestígio se concentrasse na investigação pura [...]. Daí a dicotomia entre teoria e
prática e a prioridade absoluta da primeira (SANTOS, 2003, p. 199).
Santos (2003) afirma que no período pós-guerra e nos anos 60 a ideologia universitária
entrou em crise, confrontando-se com problemas econômicos e sociais, pondo assim em
questão a dicotomia entre a teoria e a prática e as tensões daí decorrentes. O autor compara a
universidade daquele momento histórico com uma “torre de marfim insensível aos problemas
do mundo contemporâneo” (SANTOS, 2003, p. 200). Frente à relevância econômica, política
e social, a universidade manteve sua centralidade sem comprometer sua identidade
tradicional. Tentou atender os apelos às práticas decorrentes de “interesses muito distintos e
até antagônicos, sustentados por grupos ou classes sociais com desigual poder social, [...], sem
deixar de privilegiar os interesses e os grupos sociais dominantes, [...] aos interesses e aos
grupos sociais dominados” (SANTOS, 2003, p. 200).
Em outro recorte, apresentado a seguir, observo no RD uma forma velada de dizer a
presença do não dito fazendo sentido nas entrelinhas do que foi dito; o sujeito, quando diz
muito complicada”, manifesta o sentido de que não é feita de modo adequado.
RD(6) Bom, em campo de estágio isto é uma coisa muito, muito complicada, porque nós estamos
sempre na casa dos outros (né?) [...] ele não é, (né) ele tem os atores (né?) os enfermeiros que
trabalham ali dentro, a equipe de enfermagem que é daquele setor e de repente nós aparecemos (né?)
donos do saber [...] nós passamos por várias situações, que nem sempre o que a gente trabalha aqui
dentro da Escola de Enfermagem é feito na, na prática (né?) então confli... então por isso que eu
digo, conflitos acontecem muito (né?).
Os cursos de graduação em enfermagem e medicina são eminentemente técnicos e
práticos. Desde os primeiros semestres várias disciplinas teórico-práticas, ministradas por
professores da faculdade, ocorrem nos hospitais e postos de saúde, onde os acadêmicos têm
oportunidade de entrar em contato com a equipe multiprofissional e com pacientes,
vivenciando assim a realidade existente no sistema de saúde. O sujeito-professor, ao enunciar
em campo de estágio isto é uma coisa muito, muito complicada, porque nós estamos sempre
na casa dos outros (né?) [...]” refere-se ao professor estar ministrando sua disciplina não
dentro de sala de aula na universidade, mas em ambiente hospitalar ou na saúde pública, onde
98
existe uma equipe atuante, como o professor expressa “[...] os atores (né?) os enfermeiros que
trabalham ali dentro, a equipe de enfermagem que é daquele setor [...]” e, neste contexto, o
professor precisa desenvolver o conteúdo teórico programado na disciplina, aplicando-o na
prática; por isto, o sujeito diz: “[...] e de repente nós aparecemos (né?) donos do saber [...]
nós passamos por várias situações, que nem sempre o que a gente trabalha aqui dentro da
Escola de Enfermagem é feito lá na, na prática [...]”. Verifico que o enunciado “nem sempre
tem o significado de negação, pois nem é igual à não. Segundo o sujeito-professor, esta
situação de ensino choca-se com a realidade da prática, gerando conflitos.
Rego (2003) afirma que em várias disciplinas do curso médico a teoria enfatiza a
relação médico-paciente, considerando ambos os sujeitos do mesmo processo, porém:
[...] o dia-a-dia da prática, nas enfermarias, nos ambulatórios, nas maternidades e
emergências são ricos em exemplos de que o paciente é considerado um mero objeto
de trabalho, um não-sujeito. Não o reconhecendo como sujeito, não o incluindo em
suas preocupações sobre as conseqüências de seus atos, mas apenas como ‘o caso do
leito 10 ou ‘a tuberculose fantástica que internou’, será difícil que os estudantes
reconheçam como dilemas as questões éticas relacionadas aos seus pacientes quando
elas se apresentarem e, uma vez as reconhecendo, será muito difícil tomar uma
decisão, que não estão acostumados e não são estimulados a pensar os problemas
em sua dimensão moral (REGO, 2003, p. 107).
Castilho (2005) também identificou na sua pesquisa efeitos de sentidos sobre a
articulação teoria-prática, evidenciando no discurso das professoras a prática diferente da
teoria.
Efeito manejo dos conflitos morais
Neste processo de produção significante, os sentidos não estão presos às palavras; a
compreensão requer um gesto interpretativo que se movimenta da unidade de análise ao
interdiscurso. Frente aos conflitos entre a teoria e a prática, a forma dialógica é escolhida para
o manejo das situações conflitantes.
RD(7) [...] nós combinamos então uma estratégia de fazer uma aproximação com a família (né?) os
alunos e eu convidamos (né?) um dia o, o marido pra vir visitá-la que nós queríamos falar com ele, se
ela se importava daí ela disse que não teria problema, [...] para tentar ensinar pra ele qual era a
patologia da mulher (né?) e os riscos também de não, da não observância daqueles cuidados (né?) e os
riscos que se empunham para ele, para ele ter uma noção assim que ela em umas dessas ela poderia
ficar com uma seqüela grave e daí não ele não teria a dona de casa, como ele também teria que
cuidar de uma pessoa, que interferia no trabalho dele (né?) [...] aparentemente houve uma aceitação
dele, ele gostou que nós falamos com ele e a gente procurou (né?) não usar nenhum tom assim de
acusação, nada [...] de cobrança, tal: qual é a tua não estar comprando remédio para tua mulher (né?),
mas no sentido assim, das perdas que ele poderia ter com este comportamento dele [...].
Nesta seqüência discursiva evidencio o conflito entre o tratamento indicado e a
efetivação deste pelo paciente. O sujeito-professor, ao identificar com seu aluno o conflito
99
existente na prática, produziu um efeito de informar, esclarecer, ensinar, trazendo para o
ensino o que faz parte da prática da área.
Freire (1996) destaca a responsabilidade ética do professor no exercício de sua tarefa
docente e reforça a necessidade da eticidade na prática educativa enquanto prática formadora;
o autor diz não ser a tarefa docente apenas ensinar conteúdos, mas também a pensar certo.
Para que o educador consiga inteligibilidade é necessário fundamentar-se na dialogicidade;
portanto, afirma o autor: “o pensar certo por isso é dialógico” (FREIRE, 1996, p.38).
RD8 [...] quando acontecem estas situações divergentes e elas são freqüentes (né?) eu gosto de
conversar (né?) e eu começo conversando integrando também as enfermeiras e os técnicos [...] A não
ser quando seja assim, erro, por exemplo, quando é erro daí eu intervenho com minha autoridade de
enfermeira (né) [...] porque de repente eles têm argumentos por tudo que eles fazem daquela forma
não é [...].
A seqüência discursiva recortada apresenta uma posição-sujeito-professor
heterogênea, uma vez que enfatiza o diálogo, porém parte do argumento de que o saber
científico da área da saúde é o parâmetro adequado.
Fernandes e Freitas (2006, p.163) afirmam que “as questões referentes aos aspectos
éticos, morais e legais que envolvem a autonomia e os direitos dos pacientes são as que mais
têm levantado polêmicas no cotidiano dos profissionais da saúde”. As autoras apontam como
solução para resolver estas questões a comunicação realizada mediante diálogo, tendo como
princípio o respeito à autonomia.
Para Clotet (2003, p. 185) “a ética não pode ficar presa aos conteúdos do Código
Deontológico ou Código de Ética Médica”, porque o conflito e o pluralismo moral são
inerentes atualmente às ciências biomédicas e, por isto, tornam-se importantes à formação e
educação fundamentadas no respeito e no bem comum.
3.7.2 Funcionamento da marca lingüístico-discursiva tem que
Para a interpretação da marca discursiva tem que, neste estudo, além da AD considerei
também o posicionamento de Habermas.
Para o filósofo, o discurso pragmático é o uso lingüístico afirmativo, normativo;
quando o sujeito, frente a uma situação da vida prática, “tem de” decidir o que fazer, ele busca
“fundamentos para uma decisão racional entre diferentes possibilidades de ação frente a uma
tarefa que ‘temos de’(müssen) solucionar, se quisermos alcançar uma meta determinada
(HABERMAS, 1993, p. 289).
Habermas (1993) diz:
100
[...] aquilo que se deve (soll) fazer de uma maneira racional é determinado, em parte,
por aquilo que se quer: trata-se de uma escolha racional dos meios a partir das metas
dadas ou de uma ponderação racional das metas a partir das preferências existentes.
Nossa vontade está estabelecida faticamente por desejos e valores [...]
(HABERMAS, 1993, p. 289-90).
O filósofo afirma, conforme o problema que se apresenta:
[...] a questão ‘Que devo fazer?ganha um significado pragmático, ético ou moral.
Em todos os casos se trata da fundamentação de decisões entre possibilidades
alternativas de ação; as tarefas pragmáticas, porém, exigem um tipo de ação
diferente das éticas e morais, as questões que lhe são correspondentes exigem um
tipo de resposta diferente das respostas éticas e morais (HABERMAS, 1993, p.
295).
Para Habermas (1993), pragmática universal implica em dar razões para a fala
praticando as justificações que têm em vista a possibilidade de entendimento universalizado.
No contexto da argumentação moral, expressa em termos de uma pragmática universal,
Habermas utiliza dois sentidos de pragmático: um se refere ao uso da linguagem na
argumentação moral; outro, o pragmático, no sentido do uso dos meios que disponho para
alcançar determinados fins.
O sentido imperativo que expressam pode ser entendido como um “dever” (Sollen)
relativo. As indicações para a ação dizem o que “se deve” (soll) fazer ou que “se tem” (muss)
de fazer em vista de um problema determinado, se se quer realizar determinados valores ou
fins. Decerto, se os próprios valores se tornam problemáticos, a pergunta “Que devo fazer?”
aponta além do horizonte da racionalidade de fins (HABERMAS, 1993, p. 290).
Portanto, tentarei interpretar os sentidos que a marca lingüística tem que pode
manifestar, complementando com o olhar de Habermas.
Nesta análise, os objetivos que nortearam a busca das formulações discursivas com a
marca lingüística tem que foram: explorar e descrever a posição dos professores sobre a
moralidade e a eticidade; e interpretar, com base no discurso, o processo argumentativo dos
sujeitos-professores universitários participantes da pesquisa, buscando reconstruir a
justificação moral relativa à formação ética do discente.
1
o
Recorte: Efeitos de sentidos sobre a formação ético-moral do discente
No primeiro recorte referente à formação ético-moral do discente os efeitos de
sentidos evidenciados são: efeito de intencionalidade de forjar a necessidade do enfoque
ético-moral e efeito de formação para o atendimento humanizado e integral.
Efeito de intencionalidade de forjar a necessidade do enfoque ético-moral
101
Na Análise de Discurso os sentidos são relacionados a uma memória, atualizando-se
no fio discursivo e mantendo uma relação com outros sentidos, constituindo sua
interdiscursividade. Ao manifestar discursivamente os efeitos de sentidos sobre a formação
ético-moral do discente, o sujeito-professor materializa um efeito de intencionalidade de
forjar as condições para estudo.
RD9 [...] porque estas questões dificilmente... E até o aluno, que eu trabalho com aluno no 5
o
semestre
e apro aluno pra tu conseguir abordar isto, tu tem que ter a intenção [...] então tu tem que ficar
puxando, então por isso que eu digo ela, ele tem que ser intencional [...] acho que a gente tem que
discutir, tem que discutir, abordar estas questões aí e discuti-las.
Percebo o sentido imperativo de dever presente no RD apresentado, com o sujeito-
professor utilizando-se da razão prática ao enunciar o RD, usando sua racionalidade para
justificar a necessidade do enfoque ético-moral na educação.
Habermas (1993) explica que a razão prática é a:
[...] capacidade (Vermögen) de fundamentar imperativos onde se modifique,
conforme a referência à ação ou tipo de decisões a serem tomadas, não apenas o
sentido ilocutório do ‘ter de’ (müssen) ou do dever’ (Sollen), mas também o
conceito de vontade, que deve poder ser determinada a cada momento por
imperativos fundamentados racionalmente (HABERMAS, 1993, p. 296).
Freire (1996, p. 42), enfatizando a importância do professor na formação do aluno,
diz: “mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto
do professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora
ou como contribuição à do educando por si mesmo”. O efeito manifesto no discurso de
intencionalidade na formação ético-moral do discente é fundamental na prática educativa,
proporcionando condições ético-morais capazes de contribuir com a formação profissional.
Freire (1996, p. 16) defende uma ética inseparável da prática educativa” e explica que “a
melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos
educandos em nossas relações com eles. [...] O preparo científico do professor ou da
professora deve coincidir com sua retidão ética”.
Rego (2003) coloca que para discutir a bioética não é necessário ser um especialista,
pois discutir os aspectos morais da prática em saúde deve ser uma necessidade para todos os
profissionais envolvidos. O mesmo autor estimula debates intencionais entre os alunos das
escolas médicas sobre valores, incentivando assim o desenvolvimento da capacidade
cognitiva dos acadêmicos de usar a razão para discutir moral.
Selli (2005, p. 59) reforça que a consciência ética do profissional “é influenciada por
uma multiplicidade de valores próprios da profissão, adquiridos mediante a formação, a
102
reflexão e a práxis”.
Efeito de formação para o atendimento humanizado e integral
A marca discursiva tem que aparece no discurso do sujeito-professor apontando
algumas faltas, identificadas na prática vivenciada, e remetendo à necessidade de mudança na
educação para formação de profissionais prestadores de um atendimento humanizado e
integral à saúde.
RD10 [...] tu tem que fazer a atenção à saúde dele naquele momento que ele está hospitalizado [...] ele
está naquele momento ali no hospital, e quando eu falo em cuidado humanizado, ele tem que ser
cuidado naquela, naquele momento de situação critica de saúde também, mas ele também tem que sair
de dentro de um hospital [...] ele tem que sair ali de dentro também, com alguma noção também do
que é o cuidado dele, para que ele continue se cuidando e por isso que eu te digo assim, que o cuidado
tem que ser um cuidado dentro da integralidade, [...] ele tem que sair com uma noção (né?) do que,
que é a saúde dele, do que, que é o adoecimento, o que, que gerou este adoecimento, ele tem que ter...
Ele tem que aprender, a pessoa tem que aprender alguma coisa sobre sua saúde, o cuidado desta saúde
para prevenir uma..., Um adoecimento desnecessário (né?). E para fazer isto, tu tem que, tu tem que
entrar dentro do..., dentro da vida do sujeito (né?) para saber como é que ele se movimenta dentro do
mundo dele, quais são (ahm) as possibilidades que ele tem, quais são os acessos que ele tem, como é
que é a vida, estrutura familiar [...] eu gosto de trabalhar nesta perspectiva da integralidade porque a
integralidade é que vai dar a autonomia pra pessoa, a pessoa, ela tem que conhecer a sua situação de
saúde, a situação de adoecimento, ela tem que ter acesso ao sistema de saúde, ela tem que ter... Mas
para isso ela tem que ser orientada, tu tem que instrumentalizar esta pessoa também (né?), e é esta
dinamicidade que eu procuro despertar nos alunos [...] porque daí tu tem que trabalhar com esta coisa
[...] então sempre a gente tem que ter muito tato nestas... (ahm) nestas questões ai (né?) [...] tu tem que
dar autonomia pro sujeito (né?) ele ter o conhecimento (né?) e cuidar da sua saúde [...] nossa profissão
tem uma relação muito estreita (né?) entre os seres humanos porque nós somos os enfermeiros, eles
são, vão trabalhar com seus pares vão trabalhar na equipe, vão trabalhar com o paciente que é o sujeito
(né?) então é imprescindível que existam relações (né?) e estas relações, elas tem que ser permeadas
(né?) por respeito, por valores (né?).
No recorte realizado constatei que o tem que, por vezes, tem sentido de moral, quando
expressa “eu devo”, e ético, quando se subentende “o que se deve fazer”.
Segundo Habermas (1993, p. 296) “um discurso prático-moral correspondente é uma
compreensão sobre a solução justa de um conflito no âmbito do agir regulado por normas”.
Penso que o RD em análise apresente características de um discurso prático-moral, porque o
professor apresenta como solução formar profissionais enfermeiros para prestar um
atendimento humanizado e integral, mesmo tendo que enfrentar as dificuldades do sistema de
saúde. Ainda sobre o discurso prático-moral, Habermas (1993) diz que:
[...] representa a ampliação ideal de nossa comunidade de comunicação, a partir da
perspectiva interior. Diante desse fórum, podem encontrar assentimento
fundamentado aquelas sugestões de norma que expressam um interesse comum de
todos os envolvidos (HABERMAS, 1993, p. 299).
103
Embora as precárias condições do sistema blico de saúde brasileiro, consegue-se
vislumbrar uma possibilidade de êxito para a enfermagem, trabalhando atualmente na área da
saúde coletiva, onde o enfermeiro es assumindo seu papel e tendo como foco principal a
educão em saúde com ênfase no autocuidado. [...] Essa nova postura da enfermagem, que
incentiva a inter e a multidisciplinaridade, tem como objetivo a manutenção da saúde do homem
visto como ser integral no seu ecossistema e vence a abordagem biologista-tecnológica
(GEOVANINI et al, 2002, p. 44). Os autores afirmam existirem ilhas onde alguns profissionais da
saúde vencem barreiras institucionais atras de seus esforços pessoais em favor do atendimento
ao usrio; porém, modificar qualquer processo histórico demanda muito tempo.
O sujeito-professor, ao enunciar “é esta dinamicidade que eu procuro despertar nos
alunos [...] porque daí tu tem que trabalhar com esta coisa”, evoca sentidos do dever de
ensinar e estimular o aluno a prestar um atendimento humanizado e integral.
Sgreccia (2002, p.151) acredita que a filosofia moral contemporânea é mais sensível
em relação ao sujeito e à pessoa, porque concebe “a vida ética como um apelo à realização
dos valores, mais do que como um conjunto de normas, de leis e de fins”. Segundo o mesmo
autor, o rosto moral de uma cultura ou de um grupo caracteriza-se pelos valores que são
incorporados e orientam a vida.
2
o
Recorte: Efeito de justificação moral
Neste segundo recorte da justificação moral analiso os efeitos de sentidos sobre:
influência do sistema econômico-político vigente e demanda de trabalho pela frente.
Efeito da influência do sistema econômico-político vigente
Em relação ao eixo da justificação moral que aparece no discurso do sujeito, evidencio
o assujeitamento ao sistema sócio-econômico vigente, tanto no macro quanto no micro
sistema. No fio do seu discurso, aparece como justificação moral o sistema sócio-econômico
como responsável pelos problemas existentes na área da saúde.
Orlandi (2001) diz que sentido e sujeito se constituem ao mesmo tempo; portanto,
quando se fala em sentidos, necessariamente está se falando no sujeito, constituído no
discurso. Apresento um recorte do discurso onde o sujeito reconhece o lugar sócio-ideológico,
produzindo sentidos nas atitudes manifestas pelos profissionais da saúde:
RD11 [...] eu tenho que cuidar com as palavras... [...] E nós aqui no Brasil [...] nós estamos dentro,
caminhando dentro desta mesma perspectiva que a gente tem que se cuidar para não se perder, que é a
perspectiva do lucro, da mais valia, da economia [...] uma apendicectomia vale 100 reais, uma, isso
104
vale X reais e dentro desta lógica que o sistema está estruturado porque por um lado o Ministério foi
forçado a fazer isto para tentar desvi... (ahm) diminuir o rombo e o desvio de verbas (né?) então [...] o
hospital por outro lado, obedece isso ali porque ele tem que se, ele tem que se manter dentro daquilo
ali, e dentro destes quadradinhos todos [...] à medida que tu ta neste mundo agindo de uma forma
acrítica, tu reforçando este sistema, não tem dúvida nenhuma, então tu é um participante se a coisa
tá indo ruim tu tem que ter condição que eu tô participando deste sistema.
Neste RD o tenho que ganha um significado em nível pragmático no sentido do
prático-técnico relação meio-fim, ou seja, o professor cita os meios disponíveis por ele
(professor) para atingir o fim; os níveis ético e moral são silenciados pelo sistema econômico-
político vigente, não permitindo discutir em níveis mais aprofundados, pois a instituição
hospitalar exige que o profissional fique no vel pragmático. Habermas (1993) considera
uma decisão pragmática quando:
A ponderação das metas orientada para valores e a ponderação dos meios
disponíveis mediante a racionalidade de fins servem à decisão racional sobre como
temos de intervir no mundo objetivo para provocar um estado desejado. Neste caso,
trata-se essencialmente da elucidação de questões empíricas e de questões de escolha
racional. O terminus ad quem de um discurso pragmático correspondente é a
recomendação de uma tecnologia adequada ou de um programa exeqüível
(HABERMASS, 1993, p. 295).
Sgreccia (2002) reconhece o impacto das ideologias presentes na sociedade no sistema
de saúde oferecido, e diz que a dinâmica econômica se instaura dentro dos gastos com a
saúde, confluindo para a vertente ética, pois a ética atinge de maneira direta sua referência aos
valores humanos. Afirma ainda “a sociedade influencia o exercício da medicina e condiciona
a profissão médica também sob um outro aspecto, o dos financiamentos. O contraste entre
ética e a economia na saúde torna-se cada vez mais agudo”. (SGRECCIA, 2002, p. 194).
O tem que empregado pelo sujeito-professor na sua argumentação questiona o sistema
imposto pelo Ministério da Saúde, trazendo alguns sentidos evidenciados no decorrer desta
análise. O sujeito aparenta saber os motivos determinadores dos problemas éticos e morais
que ocorrem no atendimento à saúde, porém mostra-se relutante em fazer a denúncia quando
diz: eu tenho que cuidar com as palavras...”; mesmo com receio, continua seu discurso
apontando a saúde e a educação determinadas pelo sistema sócio-político-econômico, e alerta:
a gente tem que se cuidar para não se perder, que é a perspectiva do lucro, da mais valia,
da economia”.
A Portaria n
o
881, publicada pelo Ministério da Saúde para instituir o Programa
Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), veio para racionalizar e
abranger o nível ético articulado com o nível pragmático. Porém, como o nível moral é
individual, não será atingido pela portaria; se a norma for implantada por exigência, sem ser
105
discutida, ela ficará subsumida no nível pragmático (MARTINI, 2007).
Na interpretação do RD apresentada, importa também analisar aspectos em ‘rede’,
valorizados pela Análise de Discurso: a ideologia e a história. Santos (2003) aponta
problemas complexos e difíceis de resolver enfrentados pelas sociedades contemporâneas e
pelo sistema. No nível da racionalidade moral-prática, o autor reconhece os dilemas e o
colapso das formas éticas como um dos mais sérios problemas enfrentados atualmente. Santos
(2003) reconhece a existência da ética individualista, ou seja, de uma micro-ética que nos
impede de assumir responsabilidades por acontecimentos globais, onde ninguém
individualmente é responsabilizado pelo que ocorre.
Este impasse ético reside em que se, por um lado, a microética liberal é inadequada
para responder adequadamente às exigências éticas da nova situação em que nos
encontramos, por outro lado, não foi ainda substituída por uma macroética capaz de
conceber a responsabilidade da humanidade pelas conseqüências das acções
colectivas [...] (SANTOS, 2003, p.91).
O sujeito-professor, ao dizer obedece isso ali porque ele tem que se, ele tem que se
manter dentro daquilo ali, e dentro destes quadradinhos todos à medida que tu neste
mundo agindo de uma forma acrítica, tu reforçando este sistema, não tem dúvida
nenhuma, então tu é um participante se a coisa indo ruim tu tem que ter condição que eu
participando deste sistema”, parece ao mesmo tempo denunciar e reconhecer que estamos
atrelados ao sistema, evidenciando o sentido da não aceitação e do reconhecimento da co-
responsabilidade, uma vez que o sujeito retro-alimenta o sistema ao se acomodar, não
questionar e não modificar.
Efeito de demanda de trabalho pela frente
A expressão tem que, no RD apresentado a seguir, remete ao sentido de movimento
manifestado pela necessidade de pensar, rever conceitos e mudar.
RD12 a gente tem que pensar que o ser humano, ele é um ser bastante comodista (né?), [...] estamos
caminhando num caminho que foi nos embrutecendo (né?), agora a gente tá se dando conta que nós
temos que rever algumas coisas, decisões, comportamentos que a gente foi adotando (né?) [...] e tem
pessoas que não querem sair do seu espaço, estão ali bem acomodados (né?)
A acomodação referida pelo sujeito-professor pode ser entendida também como
apatia, como refere Clotet (2003, p. 19) quando diz: “é uma constatação, em nível mundial,
que a nossa época se caracteriza pela apatia e fragmentação moral, em grande parte devido ao
caráter pluralista de nossa sociedade”.
Nas rias seqüências discursivas recortadas, o processo argumentativo do professor
106
aponta vários problemas práticos que interferem na formação ética do discente; a partir da
reflexão prática realizada no discurso do sujeito, a marca lingüística tem que foi interpretada
entre os modos pragmático, ético e moral, segundo o pensamento de Habermas.
Habermas (1993, p. 293) diz: “minha identidade também é marcada pelas identidades
coletivas, e a minha história de vida está inserida em contexto de histórias de vida que se
entremeiam”. Acredito que as valorações materializadas pela linguagem no discurso do
sujeito-professor manifestaram-se através da memória do dizer.
3.7.3 Algumas considerações sobre o estudo piloto
O estudo piloto realizado alcançou os objetivos traçados, pois conseguiu avaliar as
questões formuladas na entrevista, permitindo realizar a análise dos efeitos de sentidos que
emergiram da materialidade da linguagem de um sujeito-professor. Verifiquei que as
perguntas elaboradas na entrevista possibilitaram problematizar a relação ético-moral na
formação do discente do curso de enfermagem. A avaliação da banca e a aprovação do ensaio
da análise de discurso feito no estudo piloto, apresentado no projeto de tese, mostrou não
haver necessidade de modificações no instrumento de pesquisa e na análise do estudo piloto.
Desta forma, mantive-os sem alterações para realizar as demais entrevistas com os professores
universitários, inclusive a interpretação e análise do corpus geral seguiram o mesmo modelo.
Em relação à marca lingüística não efetuei dois recortes: 1) questão da moral(idade) e
ética(idade); e 2) conflitos morais vivenciados. Na questão da moral(idade) e ética(idade)
evidenciei sentidos de desinteresse dos alunos e professores sobre o tema, atendimento à
saúde fragmentado e desumanizado e pouco comprometimento da universidade. O
entrevistado manifestou receio de manifestar sua posição e se expor, quando diz: eu tenho
que cuidar com as palavras...”; porém, prossegue seu discurso demonstrando indignação
frente ao atendimento à saúde fragmentado e desumanizado. O sujeito acredita que a
universidade como instituição está contribuindo pouco na formação ética do discente.
Em relação ao segundo recorte sobre conflitos morais vivenciados, o sujeito percebe a
dicotomia existente entre a teoria e a prática, levando o professor a enfrentar conflitos junto
aos seus alunos quando saem da universidade e vão vivenciar a prática no hospital. Reconhece
os conflitos e tenta o seu manejo através da comunicação e diálogo.
Em relação à marca lingüística tem que, realizei também dois recortes: 1) formação
ético-moral do discente; e 2) justificação moral.
Quanto à formação ético-moral do discente, a marca tem que reforça a
intencionalidade que o professor deve ter ao abordar discussões mais aprofundadas, as quais
107
levem à reflexão sobre a ética e a moral, pois ainda muitos docentes e discentes valorizam
mais o ensino técnico. Também a posição do sujeito-professor reforça a importância de
educar direcionando ao atendimento humanizado e integral.
No segundo recorte de justificação moral emerge o sentido de acomodação dos
profissionais ao sistema econômico-político vigente, determinante dos problemas existentes
na saúde e educação.
Na posição de analista, tentei compreender os efeitos de sentidos produzidos no
discurso do sujeito docente da enfermagem sobre a moral(idade) e ética(idade) na formação
dos discentes. No processo argumentativo sobre a moral(idade) e ética(idade), evidenciei que
o professor participante do estudo piloto não utilizou um saber especializado e teorizado para
enunciar sobre a temática pesquisada. O sujeito não aprofundou a dimensão filosófica,
referindo-se à ética do saber prático corroborando com o senso comum; parece que lhe faltou
um saber teórico fundamentando seu dizer. Evidencei, portanto, que este tema não se encontra
internalizado na memória do dizer da área onde se situa a formação discursiva na qual se
inscreve o sujeito-professor.
3.8 CONTINUIDADE DA ANÁLISE DO CORPUS
Coracini (2007, p.21) diz que “a escolha dos fenômenos lingüísticos analisados se
justifica pelo fato de serem normalmente vistos como ‘sinais’ [...], na medida em que
relacionam a linguagem com dados situacionais”.
As marcas lingüístico-discursivas escolhidas no intradiscurso do sujeito-professor
permitiram buscar a pluralidade de vozes vindas do interdiscurso; elas não foram
consideradas dados, mas pistas permitindo descrever o funcionamento discursivo e
compreender os sentidos. Considero importante justificar os principais motivos que
determinaram a escolha das marcas lingüístico-discursivas: o estranhamento e o modo
repetido como se apresentavam no texto.
O estudo piloto realizado foi um elemento importante para a familiarização da análise,
tendo sido guiado pelas marcas lingüísticas nãoe tem que”. Resgatando resumidamente a
motivação condutora da escolha destas marcas, a primeira ocorreu pela posição discursiva de
negação, a qual permitiu investigar o pré-construído, pois esta internaliza enunciados oriundos
de outros discursos (INDURSKY, 1997); e a segunda, considerando o posicionamento de
Habermas (1993), que nesta marca a forma de manifestar um “dever”, como também de
Castilho (2005, p. 173), que identificou esta marca no discurso dos profissionais estreitamente
108
relacionada ao “saber-fazer”
8
. Na interpretação e análise do corpus, como um todo, percebi a
recorrência das mesmas marcas escolhidas no estudo piloto; por isto, foram mantidas,
somando-se a elas outras marcas identificadas, apresentadas no item a seguir.
3.8.1 Outras novas marcas lingüístico-discursivas identificadas
Para dar continuidade à análise do corpus, a manifestação da palavra ética foi
considerada como uma marca lingüística, apesar da surpresa inicial, nas inúmeras leituras
realizadas do material linguageiro coletado: embora o tema ética estivesse sendo pesquisado,
esta palavra era silenciada por alguns sujeitos-professores. O funcionamento discursivo deste
silenciamento tornou-se instigante quanto a suas possíveis significações no discurso dos
profissionais. Portanto, ficando sem sentido. Posteriormente, também percebi no intradiscurso
do sujeito-professor que, por vezes, o enunciado “ética” era substituído por “moral”,
“educação” e “humanização” como se fossem sinônimos, evidenciando o desejo de reformar o
sentido da palavra ao usar enunciado diferente; estas mudanças lexicais denominam-se
elemento de designação
9
na AD. Como esta pesquisa buscou compreender os efeitos de
sentidos emergidos sobre a questão ético-moral, destaquei em negrito os signos ética e moral
nos recortes discursivos apresentados. Tomei esta decisão, durante as entrevistas, ao perceber
que os professores não abordaram a ética e moral através de um discurso filosófico, não
fazendo diferenciação e usando-as como sinônimo. (Re)lembro as palavras de Cortina e
Martinez (2005, p. 20): o “uso dos termos ‘ética’ e ‘moral’ como sinônimos está tão difundido
que não vale a pena tentar impugná-lo”. Reitero, como analista, que me encontro filiada ao
discurso filosófico de Habermas; portanto, distingo a ética da moral, conforme apresentei no
item 1.5.
Para interpretar os efeitos de sentidos emergidos dos recortes discursivos, também
defini como marcas lingüísticas todo(a)(s)”, eu”, nós”, ele(s)”, você”, acrescidos de a
gente”. O pronome indefinido todo(a)(s)” foi escolhido por ser um elemento de natureza
heterogênea, indicando inteireza ou totalidade; os pronomes pessoais definidos eu, nós, eles,
você”, por indicarem as pessoas e darem pistas sobre suas posições; e o do sintagma nominal
a gente”, que na linguagem coloquial esta é utilizada como nós”, referindo-se “à primeira
pessoa do plural” (NEVES, 2000, p. 469). O uso dos pronomes, no jogo feito pelos sujeitos,
sugere efeitos de sentidos.
O modalizador “eu acho (que) p”, foi identificado freqüentemente no intradiscurso
8
Vide citação direta completa de Castilho (2005, p. 173) sobre o “tem que” na página 89 desta pesquisa.
9
Entendo designação como sendo da ordem do discurso, representando deslocamento de sentido das palavras.
109
dos sujeitos e, por ser considerado uma “marca que explica no intradiscurso a presença do eu
como autor de seu dizer e contraditoriamente denuncia as vozes que falam por ele”, também
foi definido como marca lingüística cujo funcionamento mereceu ser investigado
(BARBISAN et al., 1995, p. 73).
Os critérios utilizados que determinaram os recortes a serem realizados foram: a
presença das marcas lingüísticas referidas que apontam a efeitos de sentidos relacionados ao
seu funcionamento no discurso, em função dos objetivos traçados na pesquisa.
110
4. EFEITOS DE SENTIDOS SOBRE ÉTICA E MORAL NO DISCURSO DOS
DOCENTES
Os efeitos de sentidos emergiram da análise do corpus, articulados ao processo de
produção de sentidos discursivos pelos sujeitos-professores profissionais da saúde
10
.
Conforme a AD empreendida, os referidos efeitos de sentidos são interpretados, considerando
a materialidade da língua, na qual história e ideologia deixam pistas. A análise de discurso
“supõe [...] que, através das descrições regulares de montagens discursivas, se possa detectar
os momentos de interpretações enquanto atos que surgem como tomadas de posição [...],
como efeitos de identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 2002, p. 57).
Considerando esta afirmação importante, para compreender os processos de significações,
segui o percurso analítico a partir dos recortes discursivos, evidenciando nos discursos dos
sujeitos-docentes da área da saúde a produção de cinco efeitos de sentidos: a) esvaziamento
ético-moral social: transcende a universidade; b) resgate da ética humanística na formação dos
discentes da saúde; c) o docente: referência para a formação ético-moral dos discentes; d)
justificação moral: determinações pelo sistema; e) a ética dialógica para o enfrentamento dos
dilemas morais. Apresento cada efeito de sentido e sua análise em itens separados,
considerando o funcionamento discursivo das marcas lingüísticas indicadas.
Padronizei a forma de apresentação dos efeitos de sentidos. Em cada item,
inicialmente apresento separadamente os recortes discursivos com as marcas lingüísticas:
ética”, não e tem que”. Após, apresento recortes com associação entre as marcas
lingüísticas ética + não e ética + tem que”. As outras marcas lingüísticas também
definidas: pronomes pessoais “eu, nós, eles, você”; pronome indefinido “todo(a)(s)”; sintagma
nominal a gente”; e o modalizador “eu acho (que) p”; são analisados em seus
funcionamentos junto às marcas lingüísticas ética”, não” e tem que” nas respectivas
formulações recortadas. Destaco em negrito as marcas ética”, não e tem que”, por
considerá-las as principais na produção dos efeitos de sentidos; as demais marcas, que
complementam o sentido, são sublinhadas em todos os recortes discursivos apresentados. A
análise dos pronomes, sintagma nominal e do modalizador, não se repetem quando percebo
sentidos semelhantes aos já analisados anteriormente. No último item de cada efeito de
10
Alguns efeitos de sentidos apontados no discurso dos sujeitos-professores universitários da Enfermagem e
Medicina desta pesquisa mostraram-se ressonantes aos indicados por Castilho (2005), na análise do discurso das
professoras egressas do curso de Pedagogia, na pesquisa de Mestrado no PPGEDU/UFRGS, orientada pela
Professora Regina M.V. Mutti. Esses efeitos de sentidos de ressonância parecem configurar o lugar de professor
no discurso pedagógico, mesmo em áreas e contextos diversos. Busquei assinalar essas analogias em minha
análise.
111
sentido, relaciono a análise ao pensamento de Habermas em interface com Pêcheux, conforme
objetivo traçado.
Enfatizo que a interpretação não é isenta de posições do sujeito. Pêcheux (2002, p. 57)
afirma que “face às interpretações sem margens nas quais o intérprete se coloca como um
ponto absoluto, sem outro nem real, trata-se aí, para mim, de uma questão de ética e política:
uma questão de responsabilidade”. Portanto, na Análise de Discurso, a análise se caracteriza
como produção de sentido pelo sujeito analista, devendo ser entendida como interpretação
nossa” (MUTTI, AXT, 2008, p. 353).
Seguem os efeitos de sentidos e respectivos recortes discursivos selecionados, os quais
materializam as posições enunciativas dos professores, fazendo a correlação entre os
enunciados e as condições de produção do discurso, articulando-os às redes de significações.
Tive o cuidado de sempre apresentar tanto um Recorte Discursivo (RD) do sujeito-professor
enfermeiro quanto um RD do médico, permitindo realizar uma análise de discurso dos
professores da saúde, no enfoque de ambas as áreas.
4.1 ESVAZIAMENTO ÉTICO-MORAL SOCIAL: TRANSCENDE A UNIVERSIDADE
O efeito de sentido “esvaziamento ético-moral social: transcende a universidade”
emergiu na interpretação realizada nas formulações discursivas dos sujeitos-professores
quando questionados sobre a questão ética na educação superior. Apresento a seguir recortes
discursivos, guiados pelas marcas lingüísticas, as quais produziram este efeito de sentido.
4.1.1 Recortes Discursivos com a marca lingüística “ética(o)
RD13 - SPE8 [...] a gente sabe que os alunos ingressam dezessete, dezoito anos, mas nessa faixa de
idade eles vêm com os seus princípios, com os seus valores, estruturados pela sua formação,
dentro da família. Porque eu acho que a família tem uma variável muito importante na formação ética,
da personalidade do nosso aluno, acredito muito que o ensino fundamental tem um diferencial muito
grande nessa formação e nessa construção do comportamento ético [...].
RD14 - SPM9 [...] eu acho que um grande dilema que a gente tem, é uma certa crise ética que
vivemos todos como sociedade, né, e isso se transpõe pra... pra formação também. [...] a sociedade
hoje, de certa forma, está carecendo exatamente desses modelos [éticos].
RD15 - SPM11 [...] a gente mostra postura, agora os grandes valores morais eles trazem de casa, com
a família que vem a formação de caráter, morais e a gente só mostra a postura.
RD16 - SPM16 Muitas vezes a gente nota que uma deficiência nesse... nesse ponto né? [...] falta
noções né? ... da prática dentro da ética e da moral; isso às vezes eu noto, né? [...] eu sinto que falta
um pouco mais né? De... destes... das formações né? ... Na graduação. Muitas vezes a gente que é
uma coisa que veio de família assim, né? é uma coisa assim que ultrapassa ali a... os limites da
universidade né? Muitas vezes a gente
nota que eles vêm com muitos princípios éticos, né?
formados, né? Mas assim, na grande maioria das vezes é, eu sinto que isso poderia ser mais
112
trabalhado.
Percebo no funcionamento da marca lingüística ética(o)o emprego como adjetivo;
os sujeitos-professores referem-se à formação ética, comportamento ético”, modelos
éticos, valores moraise à prática [...] da ética e da moral”. Percebo que na tentativa de
posicionar-se sobre “ética”, as formulações não trazem o processo de definição de ética nem a
abordam como substantivo.
Parece que os sujeitos-professores aderem a um saber circulante, freqüentemente no
discurso pedagógico, quando compartilham da opinião de que todo o processo de formação
ético-moral inicia-se na família, com continuidade nas escolas fundamentais. Nesse sentido, é
a família que deveria ter a responsabilidade da formação moral do sujeito, porém, atualmente
constata-se importante desestruturação e ausência familiar na formação dos filhos. Estas
transformações sociais, resultantes dos processos históricos, trouxeram como conseqüência
um jovem desajustado, com problemas gerados no meio familiar, chegando à universidade
muito cedo, praticamente adolescente, reproduzindo um comportamento individual resultante
de uma formação sem limites, com falta de educação e carência de valores e princípios ético-
morais. O discurso das professoras, analisado por Castilho, evidenciou o efeito de sentido de
“justificar-se frente a cobranças [referentes a dificuldades no trabalho pedagógico], atribuindo
culpa aos outros”, como aos pais, à falta de apoio da família e às características dos alunos de
hoje, evocando as dificuldades de hoje em ser professora, em função das mudanças sociais”
(CASTILHO, 2005, p. 153).
A crise ética mencionada pelo SPM9 é reconhecida consensualmente e citada por
Xavier (1997), quando afirma que a sociedade contemporânea passa por um mal-estar ético; a
autora caracteriza este mal-estar por:
[...] ausência moral que em outras épocas foi chamada “o destino”, “a vontade
divina”, “a natureza” ou mesmo “a razão” -, reconhecida consensualmente, que
represente a última palavra e diante da qual nenhuma contestação tenha cabimento.
Este vazio de autoridade última é uma característica peculiar da nossa época, e
talvez seja um dos mais importantes condicionantes do mal-estar ético-político na
área da saúde (XAVIER, 1997, p. 2).
Esta crise vivenciada pela sociedade, ao ser abordada pelos sujeitos, produz um efeito
de sentido de vazio ético-moral social que ultrapassa a universidade.
A ética e o dever moral pressupõem forma de vida comum, compartilhada, que inclua
acordos, valoração, condutas decorrentes do consenso, base da relação social; este fato induz
ao questionamento sobre a sociedade atual, indagando até que ponto as manifestações são
individuais ou coletivas, resultantes das características sociais (XAVIER, 1997).
Nos pronunciamentos em questão, predomina o emprego de a gente”, o que parece
113
condizer com um saber comum compartilhado de caráter genérico. Neves (2000, p. 469)
afirma que o sintagma nominal a gente”, além de ser usado como primeira pessoa do plural
(nós), significa uma “referência genérica, incluindo todas as pessoas do discurso”. O uso do
pronome pessoal euaparece nos RD apresentados nas expressões eu achoe eu sinto
com sentido equivalente, representando uma apreciação.
Barbisan et al. (1995, p. 73 e 81), ao realizarem uma pesquisa buscando “compreender
o funcionamento discursivo do modalizador eu acho (que) p”, encontraram várias formas de
funcionamento que se diferenciam pela relação estabelecida “internamente com o Outro
(cultura e ideologia) e externamente com as outras formações discursivas”.
Em dois recortes apresentados evidenciei a utilização de eu acho (que) pconforme
segue: RD13 Porque eu acho que a família tem uma variável muito importante na formação
ética(SPE8); e RD14 eu acho que um grande dilema que a gente tem, é uma certa crise
ética que vivemos todos como sociedade” (SPM9). Barbisan et al. (1995), analisando o
funcionamento do “eu acho (que) p”, diz que o sujeito-professor:
[...] silencia a voz do Outro, impondo um sentido que ele tem como seu, mas que
nada mais é do que a repetição da voz silenciada. [...] não se pode dizer que haja
integração entre a FD do sujeito e outra FD. Assumindo a voz do Outro como sua, o
sujeito fala de um lugar pouco crítico, assumindo posição ingênua [...] (BARBISAN
et al., 1995, p. 81-3).
4.1.2 Recortes Discursivos com a marca lingüística “não
RD 17 - SPE2 [...] é uma falta muito séria que começa na família porque aluno não vai adquirir esta
falha na universidade, nós fazemos apenas uma parte da informação, da educação, da cultura do aluno;
isto vem de berço, pelas condutas dos pais [...] Eu não... eu não sei se a academia já... Talvez eu seja
um pouquinho pessimista em relação a isto.
RD18 - SPM4 E a educação tu não, tu não adquire dentro da universidade né? [...] Porque eles não
conseguem se comportar, né? Dentro de uma sala, no sentido de, não que sejam todos, mas a maioria
infelizmente é assim. [...] eu acho que é uma falta de maturidade, né? E, e por serem imaturos, por não
trazerem esta carga de educação de casa [...] Eu acho que as pessoas dão aquilo que recebem, né? A
maioria, pelo menos. Se tu recebeu carinho, se tu recebe esse esforço de uma pessoa que tivesse limite,
uma pessoa que os pais priorizaram a questão educação, né, tu vai levar isso ai como bagagem na tua
vida. Mas hoje a maioria não tem isso ai, né?
RD19 - SPE8 [...] todos os alunos vêm com o mesmo comportamento, justamente pelo que eu lhe coloquei
antes, porque se o traz esses princípios, esses valores de casa, eu digo de casa, na sua formação, hã... Na
universidade é meio complicado mudar por completo. Mas, a universidade contribui para construir uma
mudança no que tange ao comportamento profissional, o muito pessoal.
RD20 - SPM15 [...] Porque uma coisa que nós observamos, os docentes têm comentado muito entre
os outros, é que as escolas fundamentais e as escolas de ensino médio, elas
não tem essa
preocupação... Não é... Diferente talvez do que tenha sido muitos anos atrás em que a escola
continuava sendo o formador da pessoa, e não o instrutor da pessoa, mas nós não temos mais
114
observado isso: as escolas, parece, não têm mais essa preocupação. Isso talvez seja um dos motivos
porque muitos alunos cheguem até a escola médica com alguns princípios éticos e morais não tão
fortes, né?
Percebo que os RDs apresentados com a marca lingüística nãoreforçam o sentido
produzido nos RD com a marca discursiva ética”. Os sujeitos pautam-se pelo princípio da
formação dos valores ético-morais e da educação, com base na família e continuidade nas
escolas de ensino fundamental e médio; usando a marca discursiva de negação, os professores
reforçam a posição discursiva de falta de valores éticos e educação dos discentes ao
ingressarem na universidade. As grandes transformações ocorridas na sociedade
contemporânea, as quais atingiram diretamente a família e a escola, são constatadas na
materialidade da linguagem dos sujeitos: SPE2 é uma falta muito séria que começa na
família porque aluno não vai adquirir esta falha na universidade”; SPM4 a educação tu
não, tu não adquire dentro da universidade né?”; SPE8 se não traz esses princípios, esses
valores de casa, eu digo de casa, na sua formação, hã... na universidade é meio complicado
mudar por completo”. Percebe-se assim que o uso do “não” marca uma carência dos discentes
e, por vezes, é enfatizada por meio da repetição: SPM4 E a educação tu [aluno] não, tu não
adquire dentro da universidade, né?”.
Os SPM4 e SPE8, ao utilizarem o pronome indefinido todos”, se referem aos alunos;
porém, o primeiro nega esse comportamento em todos os alunos dizendo não que sejam
todos, mas a maioria infelizmente é assim” e o outro afirma que todos os alunos vêm com o
mesmo comportamento”. A referida carência é atribuída à totalidade dos alunos, embora esta
seja relativizada.
Constato em alguns RDs, como dos SPM4 e SPM10, a educação e a ética confundidas
como se fossem iguais. Frente a isto, questiono como esses sujeitos entendem a ética e a
educação: como dois sistemas de valores independentes ou como complementares ou um
englobando o outro? No olhar da AD, temos aqui uma questão de silêncio do tema da ética e
moral no discurso educacional da universidade; isto implica no apelo do sujeito-professor ao
senso comum, reforçando o enunciado interdiscursivo no qual a ética se vincula à educação
recebida na família. Estende este sentido ao social mais amplo, referindo-se à ética dos
políticos. O sujeito, não conseguindo tematizar a ética, produziu um deslocamento, criando
uma associação genérica entre a ética e a educação. O SPM10 responde à pergunta: como o
senhor acha que a universidade contribui na formação ética e moral do acadêmico?
RD21 - SPM10 As bases sem dúvida vêm da educação familiar, o que nós conseguimos é aprimorá-
las em alguns momentos, né?... Ou solidificá-las, ou acho que num pequeno grupo nós não
115
conseguimos modificá-las se elas não existem. Eu, infelizmente tenho que reconhecer que nem sempre
nós conseguimos criá-las, se elas não vêm com uma boa base familiar. [...] Eu quero deixar bem claro,
infelizmente, nem todos nós conseguimos fazer isso [...] Eu percebo que ela é muito influenciada pela
cultura de onde eles vêm ou ... Pela cultura que eles trazem consigo, e pela cultura com o povo
como um todo, e cada vez mais se nota que o povo se beneficia de algum modo, os deputados se
beneficiam, e tu te diz: por que eu não vou me beneficiar dessa situação? Por que eu vou ser o único
prejudicado em fazer as coisas corretas?
A pergunta da entrevista foi direcionada à questão da ética e o sujeito direciona sua
resposta à educação; porém, seguindo a seqüência discursiva, o sujeito exemplifica
enunciando os deputados”, fazendo com que o sentido da ética fosse velado. Para o
entendimento do sentido atribuído ao exemplo torna-se necessário retomar o contexto
histórico-social em que foi produzido o discurso. Uma representação corrente dos políticos,
nas formações imaginárias da sociedade brasileira, é de que são pessoas sem princípios ético-
morais; com esse exemplo, percebi que o sujeito-professor encobriu por meio da palavra
educação o sentido de ética.
Freire (1996, p. 50) enfatiza a importância do professor ter “consciência do
inacabamento” do ser humano. Os sujeitos-professores percebem que o discente ao chegar à
universidade não está pronto e acabado; entretanto, de maneira incoerente, tentam transformar
a situação. Diz o SPE8: a universidade contribui para construir uma mudança no que tange
ao comportamento profissional, não muito pessoal”, como se fosse possível, ao formar um
profissional, desvincular o comportamento profissional do pessoal. Perceber a incompletude
do sujeito é fundamental, pois “essa interpretação de seu corpo como falta, incompletude,
inacabamento, é precisamente o que move o sujeito a construir algo que lhe permite superar
essa situação” (BECKER, 2003, p. 63); para isso, o professor deve ter consciência da
incompletude e, por meio de processos formadores, auxiliar na construção do sujeito.
No próximo RD22 evidencio um estranhamento na forma incongruente como o SPM5
refere-se à formação ética dos acadêmicos; ele também concorda que o aluno carece um
poucode valores éticos, porém, segundo ele, ocorre na universidade essa aprendizagem de
valores “à força, mas aprendem!”.
RD22 - SPM5 [...] carece um pouco. E ao longo do curso eles vão aprendendo; à força, mas
aprendem! Com a convivência [...] e com... as chamadas de atenção que eles vão recebendo das
pessoas nossas, da direção, não é... Porque muitas vezes eles cometem... ... equívocos de
comportamento [...] porque eles não estão muito ligados nessa coisa. Então, por exemplo, [...] não é...
da maneira de falar com o paciente, não respeitando certas coisas que a gente é obrigado a respeitar na
profissão. Até cuidados com o ponto de vista do paciente, cuidados com a intimidade do paciente, que
às vezes eles
não consideram.
RD23 - SPE7 [...] nosso aluno tem dezessete, dezoito anos, a grande maioria né? [...] a personalidade
116
vai se formando [...] na sua família, né? [...] a grande maioria, que a gente percebe, que eles não vêm
com essa base. [...] ontem, por exemplo, [...] um guri que vai fazer dezoito anos agora [...] o aluno é
classe alta A, né? [...] o comportamento dele é de um menino de doze anos, ou oito anos, talvez, né?
Porque não teve limites na vida dele, né? Filho único, talvez, lá do interior, né? Paparicado [...].
O SPM5 nega o saber do aluno e reforça o quanto eles não sabem e têm que aprender
à forçaos comportamentos éticos com o professor. Na primeira marca lingüística nãoo
sujeito reforça a falta de valores existentes nos alunos, dizendo que eles não conseguem fazer
coisas simples como falar e cuidar da intimidade do paciente. Ao negar este conhecimento do
aluno, ele afirma que a ética diz respeito à maneira de falar com o paciente”, respeitar [...]
o ponto de vista do paciente, cuidados com a intimidade do paciente. O SPM5 ao usar o
pronome pessoal elesestá se referindo aos alunos; ao dizer “eles cometem... hã... equívocos
de comportamento” parece que somente os alunos cometem falhas e os médicos não.
Além de reforçar o sentido de falta de compromisso da família com a formação ético-
moral do filho, soma-se a este o fato de os alunos chegarem à universidade adolescentes,
reproduzindo o comportamento sem limites, e sem educação, resultante da formação
reproduzida pela sociedade atual. Ao fazer uma reflexão no campo da psicologia moral, La
Taille (2002, p. 24) afirma que “expressões como ‘os alunos não têm limites’ [...] remetem à
ordem da obrigação, da proibição, da restrição de liberdade. Em termos morais, remetem à
questão do dever”.
La Taille (2002) constata na sociedade atual a crescente queixa da família e dos
professores, em relação à “falta de limites” das novas gerações, sendo indispensável:
[...] ter clareza de que questões de ordem social devem ser evocadas para explicar a
referida queixa a respeito da falta de limites dos educandos. Sem espaço, aqui, para
analisar essas questões, limitamo-nos a arrolar algumas: falta de limites nos próprios
adultos, que têm seus filhos e alunos como reflexo de seus próprios valores e
comportamentos, crise geral de valores, individualismo entendido como o
sentimento de isolamento decorrente do clima social de “cada um por si e ninguém
por todos”, fragilização das relações sociais, despotencialização da família, o medo
de ser autoritário (LA TAILLE, 2002, p. 26).
É consenso no discurso dos sujeitos entrevistados, conforme recortes analisados, que a
universidade pouco tem a fazer ao receber esse aluno que chega com problemas de educação e
de formação ético-moral, independente da instituição, pública ou privada.
4.1.3 Recortes Discursivos com a marca lingüística “tem que”
RD24 - SPM4 [...] eu acho que a contribuição [...] o meu entendimento é mais do que individual, né?
Porque, cada professor, dentro da sua fala, deve comentar, sobre, como deve
ser as normas para reger
um bom funcionamento profissional. [...] eu acho que está havendo muito pouco de parte das
instituições sobre esse tema [referindo-se à ética].[...] tu não, tu não ouve falar nisso aí, tu ouve falar,
olha: o que tu tem que passar, o que eu o tenho que passar, como é que eu vou cobrar, o quão
117
rígido devo ser. [...] tu não ouve falar [referindo-se à ética].[...] Não, eu não acho, eu tenho certeza. Por
que quem é a universidade? A universidade são os professores. Então a culpa é nossa né? [...] se nós
não nos dermos conta que isso aqui não esta sendo comentado, não esta sendo feito, né? E a partir daí,
então tentar cada um fazer um pouco. Ajudaria né?
RD25 - SPE7 Eu acho que a universidade tem essa visão, essa preocupação, o que eu ainda, não vejo,
que todos os professores estejam engajados nisso, né? Porque quem faz a universidade são os
professores, né? A universidade tem essa premissa, né? Ela busca isso. Agora para ela chegar lá, nós
temos que caminhar junto com ela, né? E eu acho que nós da saúde podíamos avançar muito mais,
trabalhando a interdisciplinaridade, né? [...] a gente trabalha muito ainda a multidisciplinaridade, não a
interdisciplinaridade, né? A, eu acho que a gente tem que avançar muito nisso ainda, né?
Lembrando que nesta pesquisa, desde o estudo piloto, o tem que está sendo
analisado como efeito de sentido de dever, no RD do SPM4 destaquei também deve e devo,
por estarem relacionados com o sentido da marca definida. Embora a marca lingüística que
norteou a seleção destes recortes discursivos tenha sido tem que”, constato a presença
marcante do “não”, produzindo o sentido de negação do dever cumprido.
Ao dizerem “a universidade são os professores(SPM4) e quem faz a universidade
são os professores, né?(SPE7), percebo apropriação de um saber pré-construído que circula
na memória do dizer; os professores, no decorrer do discurso, produzem um efeito de sentido
de “falta” de comprometimento com o tema da ética, porém divergem ao apontarem quem é
responsável por essa “falta”.
O SPM4 acredita que a universidade como instituição não se envolve na formação
ético-moral dos discentes, passando esta a ser umaão individual e intencional do professor;
portanto, se não ocorre, a culpa é do grupo de professores e, por fazer parte desse grupo, o
SPM4 assume a responsabilidade. Ele diz: acho que está havendo muito pouco de parte das
instituições sobre esse tema [...] tu não, tu não ouve falar nisso ai, tu ouve falar, olha, o que
tu tem que passar, o que eu não tenho que passar, como é que eu vou cobrar, o quão gido
devo ser. [...] tu não ouve falar [referindo-se à ética]. [...] Não, eu não acho, eu tenho certeza.
Por que quem é a universidade? A universidade são os professores. Então a culpa é nossa
”.
A
o enunciar o pronome pessoal da primeira pessoa do plural nossa
”, o SPM4
assume a
responsabilidade por pertencer ao grupo. As iniciativas dos docentes médicos em desenvolver
uma formação global nos discentes, segundo Costa (2007, p. 28), vêm, em geral, de
indivíduos isolados ou de pequenas equipes, e só em casos muito raros a instituição se
interessa por elas”; esta afirmação coincide com a impressão expressa pelo SPM4.
De forma diferente, o SPE7 se exclui do grupo de professores que não está engajado
para este fim e acredita que a universidade se preocupa com a formação ético-moral; ele diz:
Eu
acho que a universidade tem essa visão, essa preocupação, o que eu ainda, não vejo, que
118
todos os professores estejam engajados nisso, né? [...] A universidade tem essa premissa, né?
Ela busca isso”. Como para elequem faz a universidade são os professores e alguns
professores não assumem esse compromisso, ocorre a “falta”.
Até aqui os efeitos de sentidos evidenciaram o problema de carência ético-moral no
aluno, na família, na sociedade e na universidade. Os professores se posicionam assumindo a
responsabilidade na formação ético-moral dos discentes, porém fica implícito que a
instituição, muitas vezes, atribui esta responsabilidade ao professor, esquecendo que o fazer
do docente é guiado pela política institucional da universidade, manifestada nos currículos a
serem seguidos. Como eles assumem a responsabilidade pela formação ético-moral se velam
o sentido da ética.
Em RDs anteriores evidenciei a presença do eu acho (que) p”, mas não os analisei
por funcionarem da mesma forma explicada na marca discursiva ética”, nos primeiros RD
evidenciados; porém, no RD24 identifiquei “eu não acho, eu tenho certeza”. Segundo
Barbisan et al (1995), quando:
[...] eu acho vem acompanhado pela negação [...] o sujeito integra ao seu discurso
não só a contradição inerente à sua constituição, mas também uma contradição
estabelecida a partir de um exterior que não faz parte de sua FD. Ao estabelecer uma
relação de antagonismo com outra FD, o sujeito reafirma categoricamente sua
posição, assumindo o poder. [...] forte tensão entre os saberes da FD do sujeito e
outras FDs (BARBISAN et al., 1995, p. 82).
4.1.4 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “não
RD26 - SPM5 [...] muitas pessoas acham que a ética vem de berço, se aprende ao longo de toda a
vida, o que não deixa de ser verdade. [...] Eu acho que eles iniciam como qualquer jovem, não é, na
idade deles, sem grandes conhecimentos [...] Pela visão da ética mais ampla, eu acho que ao longo do
curso eles vão se educando pra isso também, porque quando eles entram... hã... eu acho que a nossa
juventude hoje... hã... ela não tem... ou, ou... carece de uma educação que pode se confundir com...
não deixa de ser uma ética, pra isso, pra esses cuidados com a pessoa humana que estão exercendo,
para com os próprios colegas, para com a instituição que os acolhe.
RD27 - SPE12 [...] acho que o acadêmico deveria ter alguns conhecimentos éticos da família, ali
seria reforçado dentro da academia, só o que está acontecendo que a família está transferindo todo esse
cuidado, da família, para dentro da academia, e [...] aqueles que têm uma boa formação familiar,
eles entendem e compreendem essa ética e trazem essa ética consigo, fica mais fácil [...] agora tem
muitos que não têm uma boa formação familiar, então dentro principalmente das universidades, e é
uma outra questão [...].
RD28 - SPM15 [...] a formação ética ela não começa na academia. Os princípios da ética e da moral
vêm do berço vêm da família, então o que a academia faz é uma adaptação da idéia que as
pessoas têm, da vivência que elas têm sobre a ética e a moral aplicáveis à profissão que elas estão se
qualificando. Na verdade não se ensina a ética, não se ensina a moral, nós
fazemos... a academia
faz é uma, como eu disse, uma adaptação, de como é que a ética e moral são aplicáveis à relação do
médico com o seu paciente, né? [...] Eu não trabalho com um mero grande de alunos, né? [...]
para observar que eles mudam a postura; às vezes mudam a postura até levando e sendo chamada a
119
atenção, [...] todo esse trabalho que é feito com eles tem resultado positivo: eles saem com uma boa
noção da ética e da moral. Claro que existem exceções, mas a gente observa também que esses são
aqueles alunos que já vieram com noções éticas e morais um pouco distorcidas, né [...] que já vêm da
família, das instituições anteriores por onde eles passaram.
Analisando os RDs acima expostos, percebo que a marca lingüística não” associada à
marca éticareforça ainda mais os efeitos de sentidos anteriormente comentados, ou seja, a
responsabilidade da família na formação de valores nos filhos e a imaturidade e a suposta
carência de ética na maioria dos alunos que ingressam no ensino superior. Evidencio no
SPM5 que o entrevistado assume a mesma posição discursiva dos seus colegas da área da
saúde, porém parece ficar confuso entre a ética e a educação e, após vacilar, se posiciona
definindo-as como sinônimos: Pela visão da ética mais ampla, eu acho que ao longo do
curso eles vão se educando pra isso também, porque quando eles entram... hã... eu acho que
a nossa juventude hoje... hã... ela não tem... ou, ou... carece de uma educação que pode se
confundir com... não deixa de ser uma ética...”.
No contexto histórico social, a universidade acolhe este jovem que entra na
expectativa de “adquirir conhecimentos” e transformar-se em um profissional competitivo
para o mercado; porém, os professores acreditam que pouco se tem a fazer quando o discente
chega sem essa formação de base, suporte da personalidade individual. Castilho (2005, p.
155), no recorte sobre “o trabalho pedagógico”, evidenciou o efeito de sentido de que
“professor não faz milagre”, em sua busca de “justificar-se, se os resultados de sua prática
forem insatisfatórios”.
Na marca lingüística “não”, comentei o intradiscurso do SPM5 ao dizer que os
discentes aprendiam os comportamentos éticos à força”; encontro semelhança com o RD do
SPM15, ao enunciar: “ para observar que eles mudam a postura; às vezes mudam a
postura até levando e sendo chamada a atenção”. Percebo nestes enunciados um efeito de
sentido de imposição de limites. Castilho (2005, p. 164) ao fazer o recorte dos “efeitos de
sentido sobre a formação e o exercício profissional” das professoras, evidenciou também o
“efeito de garantia da autoridade” da professora. Ao fazer o movimento de vai e vem,
relembro que a imaturidade dos discentes e o problema da falta de limites emergiram nos RD
anteriores, sendo discutidos.
La Taille (2002, p. 25), ao fazer uma interpretação psicológica dos “limites” do
domínio moral, afirma: “[...] os limites, no seu sentido restritivo, indicam fronteiras que não
devem ser ultrapassadas, ações que não podem ser realizadas, logo, os limites remetem à
restrição de liberdade que, em termos morais, chamamos de dever”. Portanto, durante a
120
formação universitária os discentes vão aprendendo os deveres profissionais e, se ingressaram
muito cedo na universidade, imaturos e sem limites, é compreensível que, nessa instituição,
limites sejam colocados e deveres exigidos. La Taille ([200-]
11
, p. 9) diz que “expressões
como ausência de limites, indisciplina e incivilidade, remetem, direta ou indiretamente, ao
tema da violência”, porém faz uma reflexão importante ao salientar:
[...] tudo leva a crer que violência e incivilidade são dois fenômenos totalmente
distintos. Mas aceitar esta dissociação levaria a não perceber um elemento moral
importante em comum: o desrespeito para com outrem. Ora, é justamente no plano
da avaliação moral que se pode afirmar que a incivilidade é uma forma de violência.
[...] se quisermos relacionar violência com moral. Falta pensar numa dimensão
essencial: o benefício ou o prejuízo que pode ter a pessoa constrangida pela força
(LA TAILLE, [200-], p. 10-11).
Partindo dessa reflexão, La Taille [200-] como exemplo a mãe que obriga seu filho
a comer frutas; faço uma analogia ao relacionar ao caso do professor que impõe limites à
força(SPM5), para que o discente tenha um comportamento ético-moral profissionalmente.
Transponho a análise feita pelo autor, em seu exemplo, para o caso analisado nesta pesquisa,
devido à similaridade encontrada: o professor, ao impor limites, estará privando o aluno da
sua liberdade; portanto, trata-se de um ato violento, porém, fica evidente que:
[...] a ‘vítima’ será a primeira a beneficiar-se, do ponto de vista [profissional] [...], da
coação a que é submetida. Vê-se de imediato a importância deste ponto para o juízo
moral: é ato moralmente condenável a humilhação, mas não o é o ato coercitivo com
clara finalidade educacional
12
. Logo, da perspectiva moral, [...] importante]
discutir a legitimidade, ou não, da ação violenta (LA TAILLE, [200-], p. 11).
Percebo que a marca lingüística todoaparece tanto no RD do SPE12 quanto no RD
do SPM15, porém com sentidos diferentes. O SPE12 diz: o que está acontecendo que a
família está transferindo todo esse cuidado, da família, para dentro da academia”; este
todo passa um sentido de totalidade e inteireza, parecendo que a família transfere à
universidade total e inteira responsabilidade pela formação ético-moral do seu filho. O
SPM15 diz: todo esse trabalho que é feito com eles tem resultado positivo: eles saem com
uma boa noção da ética e da moral”; já este todo produz sentido de intensificação e
completude, maximizando o trabalho realizado pelo professor para a formação do discente.
Apresentarei, a seguir, mais recortes discursivos que irão complementar a análise da
associação realizada entre as marcas lingüísticas “ética” e “não”.
11
A NBR 6023 (2002, p. 17), publicada pela ABNT em ago. 2002, referente à Informação e documentação-
Referências Elaboração, recomenda apresentar entre colchetes década certa, com hífém no último espaço do
algarismo que indicaria o ano, quando nenhuma data for encontrada na publicação consultada, ex:[200-].
12
“De certa maneira, pode-se dizer que o ato educacional, aquele que civiliza, é ‘violento’ porque não raramente
começa por contrariar desejos dos educandos” (LA TAILLE, [200-], p. 11, em nota de rodapé).
121
RD29 - SPE2 [...] existe uma lacuna muito grande de um modo geral, penso que não está sendo dada
a importância à ética de um modo geral a partir até do que nós observamos em relação à conduta das
pessoas. [...] Pelo exemplo que se tem, então a ética está realmente em uma posição, está em segundo
plano; será que não menos ainda? Talvez, em um plano mais inferior, pois as pessoas não estão
valorizando devidamente a ética.
RD30 - SPE3 [...] a gente vendo, hã, ventilado pela mídia, né, na formação de qualquer área,
políticos, engenheiros, outros profissionais, de qualquer área. Em relação aos acadêmicos de
enfermagem, na formação ética, eu na minha visão, também acho que deixa a desejar. Eu acho que a
formação ética que nós estamos, hoje, fazendo com o nosso aluno não é a esperada, pelo menos, hã,
socialmente. Eu não vou dizer que eles não saiam com um aparato ético, né! Uma boa, hãm, hãm, um
aparato ético de conhecimento. Mas, não vou dizer que eles estejam preparados eticamente daquilo
que se confere como ética. Como a ciência ética, que eles deveriam né, atuar fora. [...] os nossos
padrões éticos-morais estão prejudicados, pelas nossas condições de vida. Sejam elas, culturais,
econômicas, de formação, então, isso começou aparecer nos serviços. Acho que na própria formação,
no próprio tipo de vida que a gente está levando. [...] A gente sabe, e a gente quer, mas a gente não
está fazendo isso, porque está relegada a uma segunda categoria. Onde tem outras coisas mais
importantes. Nós temos a questão financeira que é muito importante, é uma, mas temos outras coisas
importantes. Nós temos que conhecer muito de tecnologia. Nós temos outros meios, de comunicação,
não dando importância pra isso aqui. Nós temos uma política que não é voltada pra isso aqui [...].
RD31 - SPM10 Então se torna cada vez mais difícil nós conseguirmos fazer este aprimoramento que
não existe na cultura da sociedade a valorização adequada da ética. Então eu vejo que assim a
formação está sendo prejudicada nesse momento não porque a faculdade não forneça condições ou
conteúdos ou exemplos, mas porque a sociedade não valorizando de modo adequado. Então tu sai
de uma base errada, tu vens de uma sociedade que não valoriza, isso que ela valoriza o poder,
valoriza o ganho financeiro e com isso não valoriza o retorno do ponto de vista ético e moral.
Surgiu no discurso de alguns sujeitos-professores a profunda crise ético-moral na qual
vive a sociedade, relegando a ética a um plano inferior, como dizem: SPE2 a ética está
realmente [...] em segundo plano; será que não menos ainda? Talvez, em um plano mais
inferior, pois as pessoas não estão valorizando devidamente a ética”; SPE3 “os nossos
padrões ético-morais estão prejudicados, pelas nossas condições de vida. [...] Acho que na
própria formação, no próprio tipo de vida que a gente está levando. [...] A gente sabe, e a
gente quer, mas a gente não está fazendo isso, porque esta relegada a uma segunda
categoria. Onde tem outras coisas mais importantes. Nós temos a questão financeira que é
muito importante, é uma, mas temos outras coisas importantes”; SPM9 eu acho que um
grande dilema que a gente tem, é uma certa crise ética que vivemos todos como sociedade”; e
o SPM10 “se torna cada vez mais difícil nós conseguirmos fazer este aprimoramento que não
existe na cultura da sociedade a valorização adequada da ética. Então [...] a formação está
sendo prejudicada nesse momento não porque a faculdade não forneça condições ou
conteúdos ou exemplos, mas porque a sociedade não valorizando de modo adequado.
Então tu sai de uma base errada, tu vens de uma sociedade que não valoriza, isso que ela
valoriza o poder, valoriza o ganho financeiro e com isso não valoriza o retorno do ponto de
122
vista ético e moral”. Os sujeitos-professores percebem a importância dos princípios ético-
morais na formação do seu discente, porém atribuem ao sistema social-econômico-político
vigente a desvalorização da ética, limitando e dificultando a contribuição da universidade.
Relembrando que a crise ético-moral, denominada por Xavier (1997) de mal-estar ético, foi
anteriormente analisada
13
.
Evidenciei em recortes discursivos de alguns professores, apresentados a seguir, a falta
de compromisso da universidade na formação ético-moral do discente.
RD32 - SPE3 Eu acredito que apesar da ética e a moral né, serem tópicos que deveriam perpassar
toda a formação do acadêmico de qualquer área, na minha percepção ela ainda é pouco, hã,
aprofundada. Eu acho que, a formação não está privilegiando né, essa temática como deveria ser; visto
os profissionais que saem da academia e as coisas que se ouvem mesmo [...].
RD33 – SPE12 [...] nós temos que, muitas vezes, brigar para conseguir fazer um modelo ético
adequado pros alunos, o que não está acontecendo, a gente não conseguindo, né?
14
[...] ou pelas
condições que a universidade nos né, [...] que tem umas questões que a gente acaba assim dizendo,
eu não vou fazer mais nada.
RD34 SPE14 [...] formação ética. Eu acho que existem poucos momentos de discussão, né? [...] têm
algumas, hã... áreas, poucas...; acredito que até existem espaço de discussão mais teórica, assim de
formação, de embasamento mais teórico [...] eu vejo, eu transitei por um, dois, três universidades e eu
vejo que não se tem a preocupação assim de discussão de momento, de acompanhamento, durante, o
longo, processo ao longo do curso para o aluno, isso eu não vejo; vejo alguns momentos né, [...] não
temos um espaço teórico pra isso, não temos!
Percebo nos recortes dos SPE3, SPE12 e SPE14, apresentados acima, o efeito de
sentido de omissão da universidade na formação ética do discente. Nos recortes anteriores a
responsabilidade da falta de ética do aluno foi transferida à família e agora o sujeito transfere
para a universidade; o SPE12 ao dizer a gente não conseguindo, [...] ou pelas
condições que a universidade nos né, [...] que tem umas questões que a gente acaba assim
dizendo, eu não vou fazer mais nada”, o sujeito transmite o sentido de omissão, pois ao
responsabilizar a universidade por não proporcionar condições, descompromete-se em investir
na formação ética do aluno. A universidade encontra-se inserida no contexto social e, ao ser
influenciada e colaborar diretamente com o poder político-econômico, retroalimenta o sistema
nutrindo a sociedade capitalista e consumista. O sujeito-professor marca a posição de grupo
ao enunciar repetidamente a gente”, sugerindo que sua opinião se identifique à dos seus
colegas professores.
Constato posicionamentos dicotômicos a partir dos efeitos de sentidos, pois, estes
13
Veja p. 111 desta pesquisa, Xavier (1997).
14
“né” também é “não”: não é = né, seria uma heterogeneidade interlocutiva; quando diz “né” supõe que o
interlocutor possa discordar e então, põe em jogo a concordância.
123
giram em torno da negação da formação ética a cargo da universidade, e também da
afirmação de que esta formação ocorre de fato, conforme foi apresentado anteriormente:
RD27 do SPM5 ao longo do curso eles vão se educando pra isso tambéme no RD29 do
SPM15 todo esse trabalho que é feito com eles tem resultados positivo: eles saem com uma
boa noção da ética e da moral”.
Chamou minha atenção quando o sujeito-professor, ao ser questionado sobre como a
universidade estaria contribuindo para formar profissionais como princípios ético-morais,
respondeu:
RD35 - SPM6 [...] eu acho que a universidade contribuindo da maneira como ela sempre fez.
Deixando ao livre arbítrio das pessoas que trabalham a capacidade de executar sem o mínimo tipo de
gerência, que é uma coisa boa e outra ruim, mas assim, deixando as coisas acontecerem, mas, mas na
medida que acontece esse tipo de procedimento, parece que ao lavar as mãos em direção a esse
compromisso institucional e as coisas tendem a se manterem como estão.
Este RD vem reforçar o efeito de sentido de indefinição de uma ação voltada para o
enfoque direto da questão ética. A universidade “lava as mãos”, ao omitir-se, ausentar-se, ao
não ter regras institucionais e posicionamentos firmes, nos quais se imponham limites que
priorizem a formação ético-moral; encontro uma justificativa para esse fenômeno em
Habermas. O filósofo define as funções do mundo da vida como “reprodução cultural,
socialização e integração social”, permanecendo estas “entrelaçadas entre si”; a universidade
seria um subsistema autônomo especializado “em apenas uma função, em apenas um tipo de
realização”, portanto, não entrelaça em si todas as funções do mundo da vida (HABERMAS,
2005, p. 95).
Considerando que o material lingüístico foi coletado através de entrevistas, ao analisar
os pronomes pessoais, nos recortes discursivos selecionados com as marcas lingüísticas
ética e não”, percebi que a maioria dos sujeitos introduzia sua fala usando a primeira
pessoa do singular “eu” e, durante a interlocução com a interlocutora/entrevistadora, referia-se
aos discentes utilizando o pronome pessoal na terceira pessoa do plural eles e, no
transcorrer do discurso, passava a usar pronomes na primeira pessoa do plural “nós e
nosso”, instituindo o efeito de sentido no qual sua fala era representativa de todo o grupo de
professores ao qual ele se identifica, incluindo a entrevistadora/professora. O sintagma
nominal a gente apareceu, fazendo referência genérica a todos os profissionais, todos os
cidadãos com os quais se irmana; como exemplo cito o RD30 onde o SPE3 usa o pronome
definido “euao manifestar sua opinião pessoal e eles” referindo-se aos discentes, porém, no
fim do RD, passa a utilizar de forma repetida a marca discursiva “a gente”: “os padrões ético-
124
morais estão prejudicados, pelas nossas condições de vida. [...] que a gente está levando. [...]
A gente sabe, e a gente quer, mas a gente não está fazendo isso, porque esta relegada a uma
segunda categoria”.
4.1.5 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “tem que
RD36 SPE2 [...] Eu acho que tem muito que tem que ser feito ainda, e outra coisa, [...] a academia é
formada por pessoas, ela tem valores, pesos diferentes de uma área para outra. [...] se nós vamos
observar um pouquinho o convívio destes profissionais, nós vamos ver que já como acadêmico [...] da
área da saúde mas de cursos diferentes, existe uma competição muito grande. Isto é lamentável, né?
[...] a ética, ela está em um plano distinto àquele que nós necessitamos que ela esteja.
RD37 - SPM4 Então, tem que haver sempre a questão ética neste ponto, e a instituição, a mim, pelo
menos, não me, não me colocam para que eu venha desenvolver esse tema, né? Eu parto da discussão
que eu acho que seja interessante para os meus alunos, né? [...] é um pouco complicado porque, a
gente que precisando. Principalmente, a base de tudo, né? Para que haja uma ética, um princípio
tem que haver educação, né? [...] Tu traz é de casa, né? E se há pouca educação, tu imagina ética, né?
Infelizmente eu vejo assim oh: que eles, a questão ética pra eles é muito pequena. [...] se espera muito
pouco no sentido de ética né? Eu vejo o futuro muito ruim. Como está acontecendo ai, né? Tu pega
todos os dias os jornais, e é um horror o que ocorre [...] a educação infelizmente deixaram de lado,
educação, limite, né? E aí, como é que tu quer, que uma pessoa tenha esse tratamento, é vamos dizer
assim, humanitário, se ela não recebeu de repente dos pais, porque um tava trabalhando aqui, outro
tava trabalhando ali, porque tem que pagar as contas, tem que fazer isso, fazer aquilo, né?
RD38 - SPE8 [...] e a graduação ela reforça, ela tem que trabalhar muito no sentido de reforçar e
buscar esses princípios que muitas vezes pela própria adolescência eles são esquecidos, e o trabalho da
universidade é, é, é... resgatar esses princípios morais, éticos, esse valores e trabalhar fortemente eles,
porque hoje nós precisamos sem dúvida nenhuma, de bons cidadãos que entendam o papel, em
primeiro lugar, antes de seu papel profissional, o meu papel como cidadão, na sociedade.
RD39 - SPE12 [...] tem que vir educado de casa, digamos assim né? Então essa transferência, eu
pensei que era com crianças, mas é com os adultos também, os adultos estão trazendo a educação
pra dentro da universidade, eu pago eu quero ser educado, é bem assim que eu vejo, então a ética
deveria vir com alguma formação de fora, tu acaba contribuindo mas, às vezes, a contribuição é muito
pouca [...] eu acho que a academia, também teria que ver algumas posturas, né? [...] tem que dar
algumas posturas nesse sentido, que às vezes é bem diferenciada esta questão de ética né? A gente vai
trabalhar a ética, quando na verdade dentro da academia, por exemplo, vou pegar o hospital, hospital
então tu vai pegar uma aluna e vai pra dentro do hospital da universidade e ocorre uma coisa bem
diferente [...], mas lá é assim, então é uma coisa meio dúbia, hum hã, é bem assim.
O que está ligado à ética nestes RDs é: “tratamento humanitário”, “bons cidadãos”,
“educação” que não seja “pouca”, “educado de casa” e “academia: dar algumas posturas”. Ao
associar as marcas lingüísticas éticae tem quee ao fazer a junção dos RD dos sujeitos
diferentes, são produzidos alguns efeitos de sentidos emergidos e analisados anteriormente e
outros novos, tais como: dever de fazer, carência: tem muito que tem que ser feito ainda, [...]
a ética, ela
está em um plano distinto àquele que nós necessitamos que ela esteja(SPE2);
dever de manter viva a questão ética, ética e educação se confundem, falta de valores éticos e
125
educação, falta de compromisso da família com a formação ético-moral do filho: Então, tem
que haver sempre a questão ética [...] Para que haja uma ética, um princípio, tem que haver
educação [...] e se pouca educação, tu imagina ética [...] a questão ética pra eles é muito
pequena. [...] se espera muito pouco no sentido de ética [...] não recebeu de repente dos pais,
porque um tava trabalhando aqui, outro tava trabalhando ali, porque tem que pagar as
contas, tem que fazer isso, fazer aquilo(SPM4); dever da universidade em resgatar a ética:
a graduação ela reforça, ela tem que trabalhar muito no sentido de reforçar e buscar esses
princípios [...] e o trabalho da universidade é, é, é... resgatar esses princípios morais, éticos
(SPE8); dever da família na formação ético-moral, tem que vir educado de casa [...] então a
ética deveria vir com alguma formação de fora [...] a academia [...] tem que dar algumas
posturas nesse sentido, [...] questão de ética” (SPE12).
Na análise dos recortes apresentados com as marcas lingüístico-discursivas ética”,
nãoe tem queconstatei formulações que se reforçam e se complementam, produzindo o
efeito de sentido “esvaziamento ético-moral social: transcende a universidade”.
4.1.6 A produção de sentido na interface entre Habermas e Pêcheux
Considero oportuno complementar a análise da produção de sentidos com o olhar de
Habermas (2004, p. 24), quando ele afirma “os sujeitos enredados em suas práticas referem-
se, a partir do horizonte de seu mundo da vida, a alguma coisa no mundo objetivo, que eles,
não importa se na comunicação ou na intervenção, supõem como um mundo de existência
independente e idêntico para todos”. Parafraseando Habermas, vejo os sujeitos-professores
“enredados em suas práticas” docentes e a partir do horizonte de seu mundo da vida”, ao
materializarem na linguagem a questão ético-moral dos discentes, produzem o efeito de
sentido esvaziamento ético-moral social: transcende a universidade”. De certa forma,
responsabilizam o sistema pela falta de ética. Não a assumem, nem problematizam a questão
da responsabilidade docente na ética.
Pêcheux (1997, p. 168) entende a identificação do sujeito consigo mesmo como uma
identificação com o outro, ou seja, os sujeitos, ao se filiarem a uma formação discursiva, se
reconhecem “entre si como espelhos uns dos outros”; ao incorporarem no seu intradiscurso os
elementos do interdiscurso (pré-construído), passam a se confundir, “de modo a não haver
mais demarcação entre o que é dito e aquilo a propósito do que isso é dito”. Fazendo a
interface de Habermas com Pêcheux, parece que ambos os filósofos percebem a ilusão da
homogeneidade entre os sujeitos, o primeiro ao dizer “os sujeitos [...] supõem como um
mundo de existência independente e idêntico para todos”; e o segundo afirma “os sujeitos ao
126
se filiarem a uma formação discursiva se reconhecem entre si como espelhos uns dos outros”.
O intradiscurso do sujeito-professor se confunde com a memória do dizer produzindo a ilusão
de homogeneidade, como se o mundo prático fosse idêntico para todos. Ao enunciarem
repetidamente a gente”, o sujeito-professor marca a posição de grupo, como se sua opinião
fosse a mesma dos seus colegas professores, parecendo condizer com um saber comum
compartilhado de caráter genérico.
Uma tese importante da Análise de Discurso, para Pêcheux (1997):
É a de que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se realiza pela
identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina, identificação na
qual o sentido é produzido como evidência pelo sujeito e, simultaneamente, o sujeito
é “produzido como causa de si” (PÊCHEUX, 1997, p. 261).
Os sujeitos-professores parecem filiados à formação discursiva pedagógica que
destaca a atribuição da formação dos valores ético-morais e educação às famílias, com
continuidade nas escolas de ensino fundamental e médio. Os docentes percebem nos
discentes, quando estes ingressam na universidade, carência de valores éticos e educação,
resultante do processo histórico que conduziu a sociedade à crise ética; esse jovem imaturo,
sem limites, mal educado e carente de princípios ético-morais, reflete a desestruturação
familiar/social e produz efeito de vazio ético-moral social que ultrapassa a universidade.
Constatei em alguns sujeitos o deslocamento entre a ética e a educação, criando uma
associação genérica, permitindo vincular a educação recebida na família à ética.
Habermas (1999, p. 4) acredita que o impacto da globalização econômica gerou
relações complexas de vida, repercutindo na sociedade e modificando a história; para ele
“esse ‘rompimento de fronteiras’ da economia, da sociedade e da cultura, num processo de
ampla progressão, afeta as condições de existência do sistema”. Habermas [1993?, p. 73] não
tem dúvida de que “os interesses sociais continuam a determinar a direção, as funções e a
velocidade do progresso técnico. Mas tais interesses definem de tal modo o sistema social
como um todo, que coincidem com o interesse pela manutenção do sistema”.
No século XX, Pêcheux (2002, p. 48-9) percebeu na história, na sociologia e na
lingüística o interesse e preocupação “de se colocar em posição de entender esse discurso, a
maior parte das vezes silencioso”; por isto, o filósofo considerou importante aproximar-se
dessas áreas, com finalidade de compreender o discurso “através de suas relações com o
cotidiano, com o ordinário do sentido”, por meio da materialidade discursiva. Pêcheux (2002,
p. 51, 53, 55) considera a materialidade discursiva: atravessada por “manipulação de
significações estabilizadas” e por “transformações do sentido”; presente o discurso-outro,
marcado pelo “espaço social e da memória histórica, logo como o próprio princípio do real
127
sócio-histórico”; e impregnada pelo acontecimento ou estrutura. Portanto, o sujeito discursivo
“será sempre ele mais o outro, apresenta-se fragmentado, uma vez que se encontra em
interação em diferentes segmentos sociais. Logo, o discurso, ao mesmo tempo em que
constitui o sujeito, é constituído pela interação social, histórica e ideologicamente marcada;
deste modo, o sujeito passa a ser um “eu” social plural, caracterizando-se pela
heterogeneidade (FERNANDES, 2004, p. 47).
Evidenciei posicionamentos contraditórios nos sujeitos-professores: no decorrer do fio
discursivo tanto emerge a valorização dos princípios ético-morais na formação do discente
quanto a “falta de comprometimento com o tema da ética”; esta “falta” é atribuída pelo sujeito
ao outro”, sendo este outroconsiderado a profunda crise ético-moral social, a família e a
escola, transpondo para a universidade. No discurso constatei que a responsabilidade da
formação ético-moral do discente passa da família para a universidade e esta, por sua vez,
repassa aos professores que por meio de ação individual e intencional tentam suprir esta
deficiência na formação dos discentes. Jean-Marie Aupy (1996, p. 2 e 4), então professor
emérito e reitor honorário da Universidade de Bordeaux I, ao escrever sobre “o Estado e a
Profissão Médica”, já reconheciam as mudanças ocorridas na profissão médica pela inevitável
intervenção do Estado, embora afirme que em certos países houve a “tendência ao
desenvolvimento da comercialização no domínio médico”, gerando uma profunda
transformação das relações, pois “a moral médica fixada em seus elementos tradicionais
continuou sendo aplicada. Entretanto, sua autoridade permaneceu limitada, apoiada, como na
maior parte das morais, sobre a consciência individual ou sobre as reações da opinião
pública”. Da mesma forma que o autor citado, os sujeitos pesquisados acreditam que a
formação ético-moral do discente não seja institucionalizada pela universidade e sim uma
ação da “consciência individual” de cada professor.
Percebo, na análise discursiva realizada, os professores divididos e ambíguos; eles
reconhecem que o discente encontra-se em construção ao entrar na universidade, necessitando
criar um comportamento ético e, contraditoriamente, afirmam não conseguir modificar e fazer
muita coisa quando o aluno não traz consigo princípios e valores ético-morais resultantes da
formação familiar. O “efeito de que o contexto pedagógico articula-se a outros contextos” foi
ressaltado por Castilho (2005, p.165-6) no discurso das professoras; nesta pesquisa, os
sujeitos-professores também se inscrevem nesta “formação discursiva em que a relação entre
o contexto pedagógico e o contexto sócio-histórico-político é fundamental”, este sendo
determinante daquele.
Habermas ([1993?], p. 96) na historicidade do mundo cultural e institucional a
128
explicação para a ruptura dos sistemas de valores que orientavam a sociedade à ação; para ele
a “autocompreensão dos grupos sociais e a imagem do mundo articulada pela linguagem
quotidiana são hoje mediadas por uma apropriação hermenêutica das tradições enquanto
tradições”.
Na análise das formulações com a marca lingüística todo(s)”, percebi que os sujeitos-
professores se referem aos alunos e constatei posicionamentos diferentes: ora produzem
sentido de intensificação e completude, maximizando o trabalho realizado pelo professor para
a formação do discente, ora com sentido de totalidade e inteireza, parecendo que a família
transfere à universidade total responsabilidade pela formação ético-moral do seu filho. O
pronome pessoal “eu” aparece nas expressões eu acho” e “eu sinto”, com sentido equivalente
representando uma apreciação. Constatei no uso de eu não acho que”, conforme Barbisan et
al. (1995) não só uma contradição inerente à constituição do discurso como também uma forte
tensão entre os saberes da FD do sujeito e outras FDs.
Nesta análise realizada, a reflexão ética parece não estar assumida como tarefa comum
a professores e alunos. Percebi que tanto Pêcheux quanto Habermas valorizam a história na
constituição do sujeito e evidenciei a materialidade discursiva do sujeito-professor marcada
pela história e pelas modificações sociais, levando a produzir o efeito de sentido aqui
analisado.
A análise do corpus, na questão ético-moral na formação discente, produziu efeito de
sentido semelhante ao emergido no estudo piloto, evidenciando efeitos de sentidos parecidos
ao esvaziamento ético-moral”, tais como: desinteresse dos alunos e professores sobre o
tema ética; a intenção do professor de provocar discussões mais aprofundadas, as quais
remetam à reflexão sobre a ética e a moral, pois ainda muitos docentes e discentes valorizam
mais o ensino técnico; pouco comprometimento da universidade; pouca contribuição da
universidade na formação ética do discente.
4.2 RESGATE DA ÉTICA HUMANÍSTICA NA FORMÃO DOS DISCENTES DA SAÚDE
Na análise dos recortes discursivos apresentados no transcorrer deste item, emergiu o
efeito de sentido “resgate da ética humanística na formação dos discentes da saúde”
quando os sujeitos-professores foram questionados sobre a formação ética dos acadêmicos do
curso onde lecionavam e, posteriormente, quando estimulados a manifestarem seus
posicionamentos frente à leitura do preâmbulo da Portaria do PNHAH, o qual aponta à
necessidade de criar “uma nova cultura de atendimento aos usuários nas organizações em
129
saúde, pautada pelo mais amplo respeito à vida humana, pela observância dos princípios
ético-morais na convivência entre profissionais e usuários” (BRASIL, 2001, p. 1).
Vejamos os recortes discursivos e suas análises, apresentados separadamente
conforme marcas discursivas: 1) ética”; 2) não”; 3) tem que”; 4) associação de éticae
não”; e 5) associação de “ética” e “tem que”.
9.2.1 Recortes Discursivos com a marca lingüística “ética(o)
RD40 - SPE2 [...] em relação ao curso de enfermagem [...] existe uma preocupação de todos os
docentes do curso [...] em permear no seu dia-a-dia, nos seus conteúdos, nos seus exemplos, na sua
prática, em campo de estágio, em prática supervisionada, em aula teórica, em seminário, em qualquer
tipo de convívio na academia, o exemplo da importância da ética, então eu penso que nós de certa
forma somos uma exceção do grupo, de um modo geral, [...] nós nos preocupamos com a forma que o
aluno tem de se comunicar, mesmo numa sala de espera, num local de lazer, num local de refeições, a
forma de vestir-se, de apresentar-se, de comunicar-se, enfim... nós temos esta preocupação e [...] tudo
está investindo na ética.
RD41 - SPE7 [...] Nosso curso tem essa preocupação muito forte [...] eu acho que nós, nós da
enfermagem, nós temos essa preocupação em todos os momentos [...] discussão em sala de aula, [...]
no campo de estágio [...] entre nós, o tempo inteiro, [...] entre o nosso grupo, essa questões éticas [...].
RD42 - SPM 11 [...] na medicina a gente tem uma disciplina sobre ética, mas na realidade a gente
sabe que o ensino da ética permeia todos os dias e todos os anos, quer dizer, é no dia-a-dia que o aluno
como o procedimento do professor, o interesse pelo paciente, familiares, isso é o real ensino de
ética. [...] a formação em ética do nosso aluno é muito boa. [...] Ela permeia assim como a própria
ética, quer dizer, ela esta embutida na postura do dia-a-dia, porque essencialmente a medicina é um
curso de ensino prático, então o aluno fica muito tempo em contato com professor, paciente e
familiares.
RD43 SPE14 [...] acho que especialmente na nossa área isso se mais na prática, porque acho que
as questões éticas estão mais no dia-a-dia, principalmente na prática.[...] a gente acaba discutindo a
ética [...] na prática, a gente enfrenta dilemas éticos no dia-a-dia. [...] esse espaços que se dá na prática
e cada professora acaba priorizando isso ou não, têm coisas que vão ficar mais evidentes dependendo
de onde a gente faz, de onde a gente está, com a área que a gente trabalha. Mas, eu entendo que
qualquer espaço de prática, em qualquer espaço é possível se discutir e [...] acredito que se em
todos os momentos [...].
Percebo nos RDs dos SPE2, SPE7 e SPE14 o sentido da ética “dentro” do fazer da
enfermagem, isto é, intrínseca na constituição desta profissão. Os sujeitos-professores
enfatizam a ética e, ao utilizarem o pronome indefinido todos”, produzem sentido de
totalidade e inteireza, com efeito de homogeneidade e estabilidade, reforçando que “o fazer”
no dia-a-dia é o mais importante, quando dizem: SPE2 preocupação de todos os docentes do
curso”; SPE7preocupação em todos os momentos”; SPM 11permeia todos os dias e todos
os anos”. O SPE14 na sua fala não utiliza o pronome todos”, porém acentua a importância
da vivência prática com os discentes para abordar as questões éticas ao dizer: as questões
éticas estão mais no dia-a-dia, principalmente na prática”.
130
Cabe aqui destacar que o Ministério de Educação e Cultura (MEC) publica as
Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação, as quais devem nortear a
elaboração dos projetos pedagógicos de cada curso superior. As últimas “Diretrizes
Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem e Medicina”, aprovadas em
2001, determinam que tanto o enfermeiro quanto o médico tenham “formação generalista,
humanista, crítica e reflexiva. [...] pautado em princípios éticos” (BRASIL, 2001, p. 4 e 10).
O projeto pedagógico escrito com base nessas Diretrizes, embora não “lido” pela maioria dos
professores, acaba sendo assimilado por eles através de outras práticas discursivas que
configuram as exigências feitas aos professores atuantes na instituição. Deste modo, funciona
como peça fundamental que norteia o fazer do professor e determina a construção da memória
coletiva dos professores. Os sujeitos-professores se apropriam das palavras e das
determinações expressas nas Diretrizes Curriculares, reproduzindo-as no seu processo
discursivo; evidencio que eles encontram-se filiados ao discurso político-pedagógico de
valorização da formação ética e, assim, produzindo ecos da memória do dizer. Isso parece
explicar o fato de emergir, nas formulações dos professores, as mesmas palavras constantes
nessas Diretrizes.
RD44 - SPE13 [...] na maioria dos cursos que eu tenho conhecimento da nossa universidade, já desde
o primeiro semestre, [...] se nota a obrigatoriedade no primeiro semestre [...] seja dado a ênfase,
academicamente do assunto, ética. [...] pelos professores e os alunos começando a interar do assunto
de ética, desde o inicio do curso. [...] o assunto ética sendo um subproduto de vários conteúdos [...]
colocar para o aluno as questões conceituais de ética, moral e [...] o que vão encontrar na profissão, os
conflitos, então não é uma disciplina de ética é a ética dentro da disciplina, [...] o aluno [...] traz dessa
vida sociável, desta vida particular e das questões éticas [...] eles vêm com aquela coisa, como eu
também vim na minha época, confundindo o que é moral, o que é ético e o que é legal, então ele vem
com assunto na cabeça, algumas confusões conceituais, e dentro do primeiro semestre como um dos
conteúdos da disciplina, então, tu vai formalizando com calma os primeiros conceitos, a ética o que
significa isso, e [...] trazendo para eles exemplos profissionais, as questões de sigilo, as questões de
comentários com o nome do paciente, questões dentro da própria turma, como se trabalha a ética entre
colegas da turma, a ética em relação entre professor e aluno, aluno e professor. [...] ética na mulher, a
parte feminina do ser humano é mais preocupada com as questões éticas e acho que é por isso que a
profissão vem vindo com aspectos religiosos importantes, isso nós abordamos tamm, a ética é isso
que eu vejo na enfermagem [...] desde da minha formação na graduação me ensinaram.
RD45 - SPM15 [...] se trabalha muito isso durante todo o percurso do aluno, desde os primeiros
semestres, [...] ele chega, ele já recebe uma noção: “olha, nessa escola se trabalha a ética e a moral,
vocês inclusive como alunos terão o código de ética” [...] a gente trabalha muito o relacionamento dos
alunos com os familiares dos pacientes, que é onde entram as coisas da ética, da moral. [...] nessa
atividade prática eles se relacionam diretamente com os funcionários do hospital, com os seus colegas,
com os pacientes e com os familiares e nós aproveitamos esses momentos para trabalhar essas
questões do relacionamento e da ética [...].
É importante salientar que os SPE13 e SPM15 lecionam na mesma instituição de
131
ensino superior, mas em cursos diferentes. Percebo que ambos abordam a ética na formação
profissional; porém, o SPE13 expande sua discussão sobre a ética, ao dizer: “[...] trazendo
para eles exemplos profissionais, as questões de sigilo, as questões de comentários com o
nome do paciente, questões dentro da própria turma, como se trabalha a ética entre colegas
da turma, a ética em relação entre professor e aluno, aluno e professor. [...] ética na mulher,
a parte feminina do ser humano é mais preocupada com as questões éticas e acho que é por
isso que a profissão vem vindo com aspectos religiosos importantes, isso nós abordamos
também, a ética é isso que eu vejo na enfermagem”. Ao dizer sigilo”, o sujeito produz o
efeito da ética prática da enfermagem, aprendida durante a formação profissional; ao enunciar
a ética entre colegas da turma, a ética em relação entre professor e aluno, aluno e
professor”, refere-se à ética de formação no grupo dentro da universidade, correspondendo
aos relacionamentos humanos. Ao falar a ética na mulher, a parte feminina do ser humano é
mais preocupada com as questões éticas e acho que é por isso, que a profissão vem vindo
com aspectos religiosos importantes, isso nós abordamos também, a ética é isso que eu vejo
na enfermagem”, o professor se reporta ao contexto histórico, significando que a enfermagem
“é mais preocupada com as questões éticas” por ser uma profissão predominantemente
feminina. A história da enfermagem mostra desde os primórdios a mulher com mais aptidão
ao “cuidado humano”; as religiosas cuidaram dos doentes e, ao se profissionalizar “o
cuidado”, a primeira Escola de Enfermagem aceitava somente mulheres.
O jogo discursivo destes professores mostra as mesmas formações discursivas e
mesmas posições; ao assumirem a posição na qual a ética encontra-se presente desde o
primeiro semestre”, mostram-se filiados ao discurso da universidade onde atuam, dizendo:
SPE13 “[...] na maioria dos cursos que eu tenho conhecimento da nossa universidade,
desde do primeiro semestre [...] se nota a obrigatoriedade no primeiro semestre”; SPM15
“[...] se trabalha muito isso durante todo o percurso do aluno, desde os primeiros semestres”.
Percebo, na linearidade do fio discursivo dos sujeitos-professores,
uma forma explícita de
manifestar o outro no seu discurso; ao materializarem na linguagem as mesmas palavras
desde o primeiro semestre”, manifestam-se como “porta-vozes” do discurso instituído pela
universidade, como se realmente na prática a ética estivesse presente, da mesma maneira, em
todos os semestres, em todas as disciplinas e em todos os professores. Desta maneira, os
docentes reforçam a posição institucional no sentido de que a ética se manifesta em todas as
disciplinas e não necessariamente em uma disciplina específica:
RD46 - SPE8 [...] a ética é fundamental! [...] o enfermeiro é o espelho da equipe! Se ele tem uma
132
postura ética, se ele é organizado, se ele tem um comportamento, se ele sabe se apresentar, se ele sabe
interagir, se ele tem humanização na assistência a equipe é igual. [...]. É fundamental o comportamento
é fundamental a postura ética [...] eu aprovo tudo que essa portaria está trabalhando, o que nós temos
que mudar esse conceito [...] é uma mudança cultural, essa mudança cultural só vai conseguir ao longo
tempo, [...] é mudança de atitude ou comportamento [...].
RD47 - SPM 9 [...] o primeiro requisito importante é na construção ética da própria instituição, das
suas hierarquias, das suas regras, formas de evoluir, formas de refletir. Então, quanto mais clara a
visão da instituição sobre esses princípios, melhor é a formação das pessoas. Isso que talvez seja o
grande diferencial das instituições universitárias [...] o grande componente humanístico, de respeito às
pessoas, e assim por diante, então essa tarefa de institucionalizar a postura ela é talvez o grande legado
que as instituições podem oferecer. [...] Os princípios básicos [...] que são fundamentalmente de
relações humanas [...] temos um ser humano com o qual estamos interagindo. E isso é um aspecto
importante hoje da formação. [...] na formação médica se a gente tiver um ensino centrado nas
pessoas, com uma visão humanística e científica da questão, nós acabaremos fazendo ética com muita
transparência [...] eu faço questão que os alunos tenham contato com primeiras consultas, no
ambulatório que é especializado.
RD48 SPE14 [...] o que eu penso é que existem vários entendimentos sobre a humanização [...]
Essas interpretações de humanização, esses, digamos assim, vários discursos de humanização, eles
estão presentes nas nossas práticas. A portaria ela aposta nisso, na verdade. O programa, todo o
Ministério, está apostando no novo, na nova cultura de atendimento que passa por uma, hã... por
princípios éticos, e eu acho que ela se pauta basicamente na relação profissional e usuário.
Percebo a posição discursiva do sujeito-professor da enfermagem e medicina, nesses
recortes, filiada a uma formação discursiva tradicional humanística; no movimento discursivo
dos sujeitos a posição sobre a humanização na saúde se repete, ao mesmo tempo em que se
modifica no intradiscurso de cada professor. Observo que o SPM9, ao ser questionado sobre a
ética na educação superior da medicina, relaciona a ética à formação humanista, enunciando:
“[...] grande componente humanístico, de respeito às pessoas [...] são fundamentalmente de
relações humanas.[...] temos um ser humano com o qual estamos interagindo.[...] ensino
centrado nas pessoas, com uma visão humanística e científica da questão, nós acabaremos
fazendo ética com muita transparência”. A Associação Médica Brasileira (2004, p. 3)
reconhece que o médico tem um “importante papel social educativo, para o qual deve se
preparar para lidar com a diversidade cultural da população a que assiste”; contudo, afirmam
que as disciplinas humanísticas foram esquecidas nos últimos anos, e apontam à necessidade
do resgate, visto que o “médico deve, em verdade, também se tornar um humanista”.
Habermas (1991a, p. 22) acredita que o sujeito, durante uma argumentação, encontra-
se “posicionado na sua própria perspectiva, embora continue inserido num contexto
universal”, pois “no discurso, não se quebra o laço social do sentimento de pertença”.
(Re)lembro que as Diretrizes Curriculares deixam explícito que a formação do enfermeiro e
do médico deve ser “humanista [...] pautado em princípios éticos” (BRASIL, 2001, p. 4 e 10);
portanto, o recorte discursivo de SPM9 resulta de um já-dito, do qual se apropria.
133
Ristow (2007, p. 13), ao estudar a formação humanística do médico na sociedade do
século XXI, traz como primeira questão a necessidade de “definir o que é humanística e
humanismo”, afirmando “distante de uma ótica meramente humanitária, pejorativamente
focada como caritativa, a humanística na formação médica apresenta um sentido maior: a
visão integral do homem”. Por concordar com Ristow (2007), busquei em Abbagnano (2003,
p. 518) a definição para “humanismo” e encontrei que este pode indicar “qualquer movimento
filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do
homem”, ou ter significado histórico, referindo-se ao movimento literário e filosófico nascido
na Itália, na segunda metade do século XIV, fundamentado no reconhecimento do homem em:
1) sua totalidade (alma e corpo); 2) sua historicidade; 3) seu valor das letras clássicas
(humanitas significava a educação do homem como tal); e 4) sua naturalidade (ser natural)
(ABBAGNANO, 2003). Destaco o significado histórico de “humanismo” pela sua relevância
para a Análise de Discurso. Minayo (2006, p. 23) complementa, informando que “a palavra
‘humanismo’ deriva do latim humanus”, e a pessoa que confere importância à vida e aos
valores humanos é considerada humanista.
Parece inadequado falar em humanização das relações e dos cuidados na enfermagem
e medicina; no entanto, se faz necessário conhecer as condições históricas que fundamentam a
produção deste discurso para compreender o surgimento do PNHAH e a necessidade de
colocar nas diretrizes curriculares a palavra “humanista”.
Minayo (2006, p. 23) fez uma retrospectiva histórica filosófica retomando “as raízes e
as transformações do conceito de humanismo, de onde deriva o termo ‘humanização’”, que
subsidiou a compreensão do efeito de sentido produzido de “resgate da ética humanística na
formação dos discentes da saúde”. A autora acredita que o humanismo, como doutrina
filosófica, tenha surgido na Grécia com Sócrates e, posteriormente, tenha sido reforçado pelo
estoicismo, pois ambos centravam o pensamento nos seres humanos e não nos deuses. Minayo
(2006, p. 25) entende que a filosofia humanista ficou na obscuridade na Idade Média,
ressurgiu no Renascimento e fortificou-se no Iluminismo, com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, período áureo do capitalismo industrial, onde a Revolução Francesa
“consagrou os direitos dos indivíduos e dos cidadãos e erigiu a liberdade, a fraternidade e a
igualdade como ideais e metas da civilização”. A Modernidade trouxe novas questões para o
sentido histórico do conceito de humanismo devido a várias transformações ocorridas, tais
como: “o primado da razão; a educação das massas; o progresso cultural e tecnológico; o
banimento da associação entre Igreja e Estado; e a inviolabilidade dos indivíduos, a liberdade
de expressão, a justiça, a filantropia e a tolerância”. Na fase pós-industrial, crescimento
134
acelerado de todas as áreas do conhecimento e avanço tecnológico, mudanças no modo de
viver e pensar, passando a não colocar mais o ser humano no centro de tudo, como também
não supervalorizar a razão (MINAYO, 2006). Finalizando a autora constata:
Numa autocrítica da modernidade, os pensadores de hoje mostram que a
radicalização dos conceitos iluministas levou ao antropocentrismo, ao absolutismo
da ciência e da técnica e ao menosprezo da subjetividade e emoções. Portanto,
diferente das etapas históricas anteriores, o humanismo que se deseja para o século
XXI é o que restitui o ser humano ao seu lugar solidário com a natureza e que
retome como relevâncias da vida a harmonia entre a razão e os sentimentos. É
preciso humanizar e responsabilizar o poder cada vez maior da ciência e da técnica
(MINAYO, 2006, p. 26).
O relato histórico da humanização em um contraponto filosófico trouxe
fundamentação para interpretar e analisar os recortes discursivos apresentados, identificando
um discurso marcado pela presença de múltiplas vozes manifestas pelo interdiscurso. Cabe
destacar que “os aspectos ideológicos, e políticos, no discurso apresentam-se semanticamente
relevantes, pois refletem, na interação entre os sujeitos, o lugar histórico-social de onde o
discurso é produzido” (FERNANDES, SANTOS, 2004, p. 51).
4.2.2 Recortes Discursivos com a marca lingüística “não
RD49 - SPM4 [...] não adianta tu ter conhecimento cientifico, técnico, se tu não, não conseguir passar
isso para o teu paciente, e enxergar nele como uma pessoa angustiada, uma pessoa que está precisando
de ajuda, né? [...] Todo mundo quer resolver as suas coisas e o atendimento é cada vez mais rápido.
Chega ser o absurdo, das pessoas chegarem no meu consultório, e dizer: olha, o doutor praticamente
nem, nem me olhou. [...] sempre estar te policiando, te acordando, para que tu não entre nesse meio
comum aí que é a indiferença.
RD50 - SPM6 [...] está havendo um distanciamento, realmente da atenção do profissional, e eu não
vou entrar aqui se é da área médica, ou se é da saúde como um todo, em relação ao paciente, né? Isso
[Referindo-se ao PNHAH][...] não garante nada, nada, que isso aqui vai ser cumprido. [...] aqui [na
Portaria], está falando claramente, olha, a relação não legal, ? [...] talvez seja o caminho melhor,
para tu tentar obter alguma mudança; se dá para dizer que pode se fazer mudança, né? [...] Será que as
coisas mudam?
RD51 - SPM 9 [...] em todas as áreas da saúde, o hegemônico não deveria ser nem o professor nem o
aluno, mas sim o indivíduo, [...] Não estou criticando, não é isso. [...] esse é um dos papéis dessa
portaria, que gerou ações, por exemplo, na prática da enfermagem, na prática médica, não da área
assistencial, então, nesse sentido é super positivo, porque ela reflete um fato existente, ela tenta
institucionalizar algumas ações, que é uma coisa boa, [...] Eu acho que é uma coisa saudável, isso
independe do profissional de saúde, não é necessariamente médico, enfermeira, qualquer pessoa que
interage com o doente [...].
RD52 - SPE 12 [...] a gente tem trabalhado muito o respeito ao próximo, pensar que se dói em mim
deve doer nele, [...] não sei se é coisa da enfermagem, mas as pessoas são muito tecnicistas, eles
querem fazer e aprender a passar sonda, eles querem fazer tal coisa, mas esquecem que ali existe uma
pessoa que tem sentimentos, que precisa ser ouvida, tocada adequadamente, uma palavrinha, um
sorriso, muitas vezes as pessoas não dão um sorriso, vão direto para passar a sonda, [...] sair desse
modelo tecnicista, técnica, técnica, técnica, o, antes usavam sentidos [...] posso trabalhar a
135
questão humanizada buscando uma técnica mais adequada; então, antes de fazer um procedimento,
conversar [...] deixar a pessoa bem à vontade, me apresento [...] a pessoa vai ganhando confiança, a
pessoa é educada, com licença a gente não mais as pessoas dizendo boa tarde, bom dia, [...] eu
chego de manhã e dou bom dia para todo mundo [...] acho que é importante dar bom dia para todo
mundo.
Nestas formulações, os sujeitos-professores, ao tematizar a formação ética e o
PNHAH, evidenciam problemas existentes na área da saúde; surge o efeito de sentido de
distanciamento entre o profissional da saúde e o paciente e, ao usar o pronome impessoal
todo”, produzem sentido de generalização. SPM4 diz Todo mundo quer resolver as suas
coisas e o atendimento é cada vez mais rápido”; neste caso, a expressão “todo mundoparece
referir-se à classe médica ou a todas as profissões que trabalham na saúde. O SPM6 enuncia:
está havendo um distanciamento, e eu não vou entrar aqui se é da área médica, ou se é da
saúde como um todo”, reconhecendo o distanciamento, porém se nega a discutir onde o
problema ocorre, se exclusivo da medicina ou também das outras profissões da saúde. SPM 9
diz: em todas as áreas da saúde, o hegemônico não deveria ser nem o professor nem o
aluno, mas sim o indivíduo”, entendendo que o problema existe em todas as áreas de
formação de profissionais da saúde, ao relegarem o paciente/indivíduo a último plano,
reproduzindo o individualismo existente. O SPE14 também produz o sentido de generalização
e continuidade ao afirmar que a universidade promove reflexão e discussão sobre a
humanização da assistência “todo o tempo [...], o tempo todo”.
O SPE 12 enuncia: “[...] a gente tem trabalhado muito o respeito ao próximo, pensar
que se dói em mim deve doer nele, [...] não sei se é coisa da enfermagem, mas as pessoas são
muito tecnicistas, eles querem fazer e aprender a passar sonda, eles querem fazer tal coisa,
mas esquecem que ali existe uma pessoa que tem sentimentos”; o sujeito, ao dizer a gente”,
passa o sentido do grupo de professores ao qual pertence, afirmando trabalhar a humanização.
Porém, no seu fio discursivo, manifesta sentido diferente, enunciando: as pessoas são muito
tecnicistas”; estas pessoas às quais o professor se refere parece serem os alunos, pois continua
dizendo: eles querem fazer e aprender a passar sonda, eles querem fazer tal coisa”. Quem
está na universidade desejando aprender é o aluno; noto uma dicotomia, uma vez que o
professor afirma anteriormente estar trabalhando a conscientização dos discentes em relação
ao respeito do próximo e à humanização, mas os alunos querem aprender a técnica.
Os problemas enfrentados na área da saúde e evidenciados nos recortes discursivos
não são novos nem exclusivamente brasileiros:
[...] suas nuances marcam, entretanto, a historicidade não só dos argumentos e
sentidos envolvidos, das tradições teóricas, mas das relações hierárquicas, estruturas
136
e modelos de comportamento em que se inserem os personagens mais
constantemente invocados neste campo: profissionais e pacientes (DESLANDES,
2006, p. 33).
As mudanças sócio-econômico-políticas ocorridas a partir da metade do século XX
refletiram-se diretamente na área da saúde; este fato despertou o interesse da sociologia, que
tem desenvolvido pesquisas na tentativa de contribuir na explicação dos problemas emergidos
na saúde (MARTINS, 2003; DESLANDES, 2006). Deslandes (2006) assegura ser a
sociologia norte-americana referência histórica no estudo da (des)humanização do cuidado em
saúde, por ter iniciado os estudos nesta área desde meados do século XX, e atribui como
marco de referência o simpósio Humanizing Health Care, realizado em 1972 nos EUA, onde
foram discutidos vários fatores envolvidos na ocorrência da (des)humanização do cuidado,
“relacionando-os: à relação médico/paciente; à formação médica; à comunicação e acesso à
informação no processo terapêutico; às relações hierárquicas e de poder na produção do
cuidado e na tomada de decisões; aos fatores psicológicos e subjetivos envolvidos” (GEIGER,
1975; HOWARD, 1975; LEVENTHAL, 1975; HOWARD, TYLER, 1975, apud
DESLANDES, 2006, p. 35).
Martins (2003, p. 123 e 134) resumiu o percurso seguido pela medicina nas últimas
décadas como a “sistematização de um conhecimento hermético e utilitário, cada vez mais
distante das suas origens hipocráticas”. O sociólogo afirma que estas mudanças foram
impulsionadas por uma série de eventos ocorridos na segunda metade do século XX, tais
como: a guerra, que estimulou a expansão do capitalismo globalizado e a emancipação da
medicina mercantil mundial; mudanças sócio-culturais importantes: liberação sexual, novas
drogas, cultura informacional, movimentos feministas, enfim, um conjunto de contracultura e
novos movimentos sociais marcando “a passagem da era da ordem para a da desordem/ordem
(caos)” na medicina tradicional.
Para Martins (2003), na passagem de uma era de certezas para outra de incertezas:
[...] a sociedade em vias de mundialização abre mão de sua principal crença, o
progresso racionalista, para acolher um contexto simbólico de relatividades [...], o
qual libera três lógicas distintas na organização da sociedade: a lógica do mercado,
que estimula a competição tecnológica e econômica, a lógica político-
regulamentatória, que induz as reformas do Estado e das políticas nacionais e
mundiais e, enfim, a lógica do dom, que favorece a recriação dos vínculos sociais e
interpessoais num contexto de trocas simbólicas que escapam ao argumento
racionalista (MARTINS, 2003, p. 133-4).
Partindo do exposto, constato que os fatos historicizados transformaram-se em
acontecimentos, passando a significar no discurso dos sujeitos-professores.
Sustentados na memória do pré-construído, da necessidade de mudar a formação
137
acadêmica para atender às diretrizes curriculares e formar um profissional humanista, os
recortes discursivos seguintes instauram planos enunciativos que remetem ao efeito de resgate
da ética humanística:
RD53 - SPE3 [...] Como que o aluno vai abordar esse indivíduo... carregado de toda essa história, essa
trajetória de vida dele? Então, eu acho que nós estamos tentando [...] tem-se pontuado muito na prática
a questão do respeito ao indivíduo. [...] ênfase, sobre a figura do indivíduo. [...] Ele [referindo-se ao
paciente] traz com ele uma história, ele não está ali só de corpo, ele tem uma história atrás dele. E nós
temos conseguido, assim, principalmente depois que a gente deu uma reformulada nos conteúdos,
inserindo assuntos pertinentes ao ser humano, assim: quem é esse ser que está no hospital, e que está
doente? [...] Não nos interessa saber como ele adquiriu, qual é o tipo de sexualidade que ele exerce,
para nós não interessa; interessa é o cuidado que ele vai prestar nesse ser, que agora é portador de
HIV. [...] eu acho que não tinha que ter portaria nenhuma. Para mim isso aqui está... é inerente ao, ao
ser humano que convive com outro; em qualquer lugar, em qualquer profissão. Eu acho que não, não,
não precisaríamos de uma portaria, pra nos dizer que nós precisamos ter padrão de convivência entre
profissionais de saúde e cidadão. Que nós ainda temos que pautar no mais amplo respeito à vida
humana e pelos princípios ético-morais de convivência. Não, eu acho que... esse novo padrão de
convivência entre profissionais de saúde e o cidadão, é que não conseguiu, não, não está conseguindo
tocar, não, não, não está mais aparecendo. Se perdeu, se perdeu. Se perdeu. Não tem isso [...].
RD54 - SPM5 [...] a gente, através dos nossos professores, a gente estimula muito a empatia do
médico com o paciente. Estimula todo o tempo, em todas as disciplinas, ao longo de todo o currículo,
esse relacionamento... hã... diferenciado, do médico, [...] não tratar a doença... nós não queremos
tratar o fígado do doente, o pulmão do paciente... nós queremos tratar o paciente como um todo. E
nem sempre se consegue, né, porque a gente é muito tradicionalista, a gente está ainda apegado a
ensinamentos, como eu tinha na minha época, quando se referia ao paciente, “o paciente aquele do
oitavo andar, aquele da apendicite, aquele paciente da tireóide, aquele paciente do esôfago...” e nem o
nome do paciente o sujeito sabe. E não vou dizer que mudou muito. [...] Mas mudou, e eu tenho
certeza disso, hã... chama atenção, a maneira, a abordagem, que os nossos alunos têm com os
pacientes. [...] me elogiam, assim, não a mim, mas elogiam o procedimento dos nossos alunos por essa
ênfase que se no relacionamento com os doentes. [...] eu não falo pela universidade, eu falo pela...
pelo curso de medicina. O curso de medicina está fazendo a parte dele. [...] É claro que [...] pode ser
que 4 ou 5 professores não tenham se engajado completamente, não é, que às vezes são de disciplinas
mais hã... específicas..., sei eu... que não tenham total engajamento; mas a grande maioria está
voltada, preocupada com isso. E eu acho que nós estamos fazendo a nossa parte, eu acho que nós
estamos formando médicos melhores que os que se formavam antigamente. Melhor que eu me formei,
incomparavelmente.
RD55 - SPE7 [...] que tipo de profissionais nós precisamos? Não meramente técnico. [...] precisamos
alguém mais complexo, que atenda a necessidade daquele usuário. [...] se a gente não tiver mais
voltado a criar um vínculo com ele, que ele possa confiar em nós e nós nele. [...] essa política de
humanização, a enfermagem já tinha essa preocupação, mas têm muitos cursos da saúde, que não têm
essa preocupação.
Eles querem formar muito bons profissionais técnico-científicos, complexos.[...]
Você não olha o contexto onde ela está, onde é que ela vive. E olha, ela holisticamente. E é esse tipo
de profissional que nós precisamos. Que ele não seja só, preocupado, naquela questão que ele foi
procurar, e sim no contexto geral do paciente. E a humanização procura isso.
RD56 - SPM 10 [...] a minha primeira aula [...] não é sobre doença [...] antes deles terem qualquer
conteúdo sobre doenças eles vão aprender a lidar com esses pacientes, como é que eles chegam, como
é que eles
conversam, como é que eles conseguem tirar os dados que são importantes, como é que eles
conseguem tranqüilizar com respeito à relação risco benefício de procedimento anestésico cirúrgico,
como é que eles conseguem explicar numa linguagem leiga que é compreensível [...] Depois, em cada
aula na parte prática eu considero a parte mais importante não o conteúdo que eu dou, mas o momento
138
que eles sentam na frente do paciente [...] então em cada paciente sem dúvida ele cresce muito [...]
Então, eles tão trabalhando todos os dias com respeito à postura deles em relação ao paciente [...].
RD57 - SPE 14 [...] Isso é humanizar, prestar atenção no que o outro fala. No momento que a gente
escuta, a gente pode estar ajudando nessa infecção, fazendo com que não nasça um [recém-nascido] a
termo, fazendo com que a criança não fique internada muito tempo, não tendo todas as conseqüências
que tem. Então, a gente apostando nisso. A gente pensa que a humanização é importante, porque a
gente acredita nisso, mas a gente tem a clareza que não é só o decreto que vai dar isso, é muito
mais.[...] Eu acho que, sinceramente, essas coisas que são importantes acabam ficando, hã... como que
perdidas ao longo do currículo [...] eu acho que tem que ter espaço, mais formais assim, de discussão,
ao longo da formação desses alunos, de pensar nisso como atividade mesmo de formação [...] eu
sempre procuro discutir e mostrar.
Percebo, nos recortes discursivos apresentados, um sujeito dividido produzindo
deslocamentos no seu posicionamento, ficando os sentidos do discurso desestabilizados pelas
contradições da realidade vivenciada no dia-a-dia, geradoras da ênfase à negação que se
mostra no discurso.
Constato o movimento do sentido manifestado no discurso dos sujeitos ao se
posicionarem sobre a PNHAH, como enuncia o SPE3: “eu acho que não tinha que ter
portaria nenhuma. [...] Eu acho que não, não, não precisaríamos de uma portaria, [...] Não,
eu acho que... esse novo padrão de convivência [...] entre profissionais de saúde e o cidadão,
é que não conseguiu, não, não está conseguindo tocar, não, não, não está mais aparecendo.
Se perdeu, se perdeu. Se perdeu. Não tem isso.” Nesta formulação, eu acho que não tinha
que ter portaria nenhuma. [...] Eu acho que não, não, não precisaríamos de uma portaria”;
encontro marcado intradiscursivamente, por duas vezes, o terceiro funcionamento do “eu acho
(que) não-p”; Barbisan et al. (1995) explicam que nesse caso:
[...] a negação, ao se deslocar, ao se afastar dos elementos tematizados eu acho..., no
nível da formulação, provoca um não-envolvimento do sujeito, pelo menos de forma
categórica. O sujeito não assume explicitamente o seu dizer, não se coloca
explicitamente numa posição de tomada de poder. Abre uma brecha de negociação,
o que não ocorre no funcionamento eu não acho (que) p, onde se encontra
profundamente marcada no intradiscurso a discordância do sujeito (BARBISAN et
al. 1995, p. 82).
Na formulação do SPE3 constato a repetição de negativas; segundo Mutti (2001, p.
176-7), em uma situação de entrevista, este fato significa que o sujeito a si mesmo um
tempo para avaliar a pergunta, suas condições de resposta e até a situação de interlocução”. A
mesma autora, no estudo que realizou, destacou que o sujeito, ao repetir o não antes de
responder, parece recusar-se a “assumir uma posição, fato que envolve confessar o que acha
certo, sem conhecimento de causa”.
No enunciado do SPM5 a marca lingüística todo produz efeito de totalidade,
reforçando que todas as disciplinas do currículo da medicina tentam resgatar a ética
139
humanística na formação dos discentes da saúde; vale destacar: Estimula todo o tempo, em
todas as disciplinas, ao longo de todo o currículo, esse relacionamento... hã... diferenciado,
do médico”. Neste caso, porém, o intradiscurso continua assim: não vou dizer que mudou
muito [...] Mas mudou, e eu tenho certeza disso [...] O curso de medicina está fazendo a parte
dele. [...] pode ser que 4 ou 5 professores não tenham se engajado completamente, [...] que
não tenham total engajamento; mas a grande maioria está voltada, preocupada com isso. E
eu acho que nós estamos fazendo a nossa parte, eu acho que nós estamos formando médicos
melhores que os que se formavam antigamente”; ao justificar sua afirmação, o sujeito nega a
inteireza anteriormente afirmada.
No RD do SPE14 percebo um movimento contraditório, pois o sujeito produz o
sentido de envolvimento do grupo de professores na formação para a humanização quando
enuncia a gente apostando nisso”, porém, seguindo o intradiscurso, aponta a necessidade
de existir espaços formais para discussão da temática, afirmando que a discussão ocorre, ao
dizer: “eu sempre procuro discutir e mostrar”.
Os sujeitos produzem efeito de sentido de resgate da formação ética humanística nos
discentes na sua atuação diária, tanto da enfermagem quanto da medicina; porém, ao
evocarem a memória coletiva, historicamente constituída, manifestando o senso comum que
ocorre independente do desejo dos sujeitos.
Martins (2003, p, 211) acredita que estamos vivendo em um “estado nascente” e
simbólico de uma nova medicina humanista, que ainda não possui contornos claros,
semelhante a “[...] uma figura anfíbia, ela está impregnada de elementos novos e velhos, de
discursos que muitas vezes se contradizem, passando mesmo a impressão de modismo ou
charlatanismo”.
Percebo a importância atribuída pela área da sociologia ao estudo das práticas
médicas, na maioria das pesquisas é a área médica que é contemplada, dificilmente
encontram-se estudos de cunho sociológico na enfermagem ou em outras profissões da saúde;
para melhor compreensão do contexto histórico e construir um elo de ligação entre medicina e
enfermagem, sugiro revisitar o item 1.7 desta pesquisa, onde apresento o contexto histórico-
social da medicina e enfermagem. Embora profissões como enfermagem, nutrição,
fisioterapia, psicologia e outras, tenham conquistado espaço importante na área da saúde nas
últimas décadas, (re)lembro que a medicina é uma profissão secular e ainda detêm o poder
hegemônico entre as demais profissões da saúde, produzindo um elo intersubjetivo entre
todas, justificando a mesma filiação do SPE7 no RD55 quando questiona: “que tipo de
profissionais nós
precisamos? Não meramente técnico. [...] precisamos alguém mais
140
complexo, que atenda a necessidade daquele usuário. [...] se a gente não tiver mais voltado a
criar um vínculo com ele, que ele possa confiar em nós e nós nele”.
Apesar da sociologia e outras áreas do conhecimento privilegiarem a medicina com
status e reconhecimento social, ainda ignorando as demais profissões da saúde, constato que a
política nacional de educação superior percebeu a interligação entre elas. A Câmara de
Educação Superior juntamente com o Conselho Nacional de Educação, ao analisarem “as
propostas de Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação da área de Saúde”
(BRASIL, 2001, p. 1), publicaram no mesmo parecer CNE/CES 1.133/2001 as “Diretrizes
Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição”
(BRASIL, 2001, p. 1). Ao contemplarem o mesmo documento para os três cursos de
graduação, apresentando-os em ordem alfabética, com relatório introdutório (descreve
histórico, mérito e princípios das Diretrizes Curriculares) comum a todos e conteúdos
semelhantes, atribuíram efeito de sentido de igualdade no status das três profissões da saúde.
O segundo item abordado pelas Diretrizes, tanto para a enfermagem quanto para a medicina,
trata das competências e habilidades, sendo que ao comparar as competências gerais exigidas
do enfermeiro e do médico, constatei que são as mesmas para ambos os profissionais:
“atenção à saúde”, “tomada de decisões”, “comunicação”, “liderança”, “administração e
gerenciamento” e “educação permanente” (BRASIL, 2001, p. 4-5-10).
O primeiro item das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
Enfermagem trata do perfil do formando egresso/profissional de enfermagem. Trago o perfil
do enfermeiro, com intenção de apresentar o discurso que circula na memória do dizer dos
sujeitos-professores.
Enfermeiro, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Profissional
qualificado para o exercício de Enfermagem, com base no rigor científico e
intelectual e pautado em princípios éticos. Capaz de conhecer e intervir sobre os
problemas/situações de saúde-doença mais prevalentes no perfil epidemiológico
nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões bio-
psico-sociais dos seus determinantes. Capacitado a atuar, com senso de
responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde
integral do ser humano (BRASIL, 2001, p. 1).
Nas próximas formulações outros sujeitos-professores trazem suas vivências
produzindo o mesmo efeito de sentido de resgate da formação ética humanística, tanto pela
universidade quanto pela maioria dos docentes.
RD58 - SPE8 [...] a [universidade] está contribuindo, [...] todo quadro docente, e só não faz o
professor que não é humano, e que sempre tem no meio. [...] Nosso curso [...] dá a visão da
humanização da assistência [...] este olhar da humanização. [...] Quando eu
recebi a proposta da
disciplina, [...] estava o tema, para ser trabalhado dentro da disciplina, que era a humanização da
141
assistência e não existia portaria, [...] não existia esta portaria [...] a gente tem sempre este olhar, do
cuidado, do enxergar o nosso paciente como um cliente que em primeiro lugar é um ser humano.
RD59 - SPM 9 [...] como a gente coloca o aluno precocemente em contato com a doença, com o
sofrimento social, com a desintegração familiar, e tal, ele pode entender essa dinâmica maior, do que
significa assistir uma pessoa, entender as suas coisas e tal. [...] ele não vai aprender aquela doença
especializada, ele vai entender o contexto de doença, de primeira vez. É comum ele dizer que veio
do interior, jamais teve em Porto Alegre, ele nem sabe nem voltar para casa e vem humildemente no
hospital, aquele gigantesco templo de saber e a gente nessa situação, nesse papel é muito... e o papel
dele é fantástico, porque ele é o aluno que entende essa postura.
RD60 - SPM 10 [...] a gente vem buscando no curso de medicina, trabalhar para que o aluno valorize
não a doença, mais o paciente e a família como um todo. [...] não no ponto de vista técnico-
científico, mas fazer com que ele compreenda o que está acontecendo [...] mas exige tempo, exige
dedicação, e se envolvendo com o paciente para que ele se sinta valorizado. [...] a medicina foi
assim, e nós perdemos isso em algum momento e estamos renovando. [...] o aluno entra no curso, ele
recebe um cadáver, ele aprende a respeitar o cadáver, e ele começa a trabalhar com um cadáver; se
criou uma disciplina chama-se o ciclo da vida, na qual o aluno ele começa com uma família que na
qual o bebê vai nascer ou recém nasceu, e ele se preocupa com essa família [...]. Então, ele começa
não ver no cadáver, mas, ele começa a ver a vida nascer, e com isso sem dúvida ele se torna mais
humano.[...] [outro] aspecto importante, é que o curso de medicina sempre valorizou a prevenção, e
quando tu valoriza a prevenção tu está valorizando realmente a humanização da medicina. [...]. Então
eu acredito que a gente consegue, através da prevenção e do ciclo da vida fazer com que o estudante
tenha uma visão diferente, e os professores recebem continuamente orientação sobre a preocupação
com a humanização, o médico ser mais humano, a formação humanística do profissional, medicina de
família e comunidade [...] me chama a atenção que quando se tem as palestras, os professores, esse
tema é um dos temas que sempre surge.
RD61 - SPM11 [...] então a gente passa pra ele [aluno] procurar informação e buscar informação, para
que eles possam ajudar o máximo possível o paciente. Se não, fica aquele papel frio joga o paciente de
volta no sistema, e aí?[...] Eles sabem as informações que eles buscam [...] tudo isso não pertence
àquela letra fria do sistema, então, esse é o lado humano. [...] Eu acho que esse termo novo é
totalmente infeliz, a medicina nunca perdeu isso! [...] Mas a formação médica não é nada de novo a
dedicação ao paciente, a humanização, quando não puder fazer nada pelo menos uma palavra de
consolo. Isso é [...] milenar dentro da medicina. [...] a gente passa para eles, no sentido de enxergar
não o paciente doente. Quer dizer, é aquela velha história, o importante não é a doença do homem e
sim o homem doente, isso é feito no dia-a-dia, nos ambulatórios, nas enfermarias, no bloco cirúrgico.
[...] eu acho que a [nossa universidade]
15
não é uma formadora de técnicos, sinceramente é uma
formadora de cidadãos, [...] ela graças a Deus ela não caiu naquela formação de técnico barato para
repor produção econômica. Eles têm uma formação de dia-a-dia humanizado, principalmente nas áreas
de ambulatório. Agora, tem certas áreas, [...] que aí vão ter equipamentos sofisticados [...].
RD62 - SPE14 [...] muitas vezes existem algumas dificuldades, né? Já tive situações de o aluno ir na
casa e chegar no posto e dizer assim: “eu não sei porque que eu tenho que fazer isso, porque eu não
sou obrigado a ver pobreza, eu não sou obrigado a sentir cheiro de pobre, [...] não sou obrigado a ver
isso”; daí eu discuto com os alunos porque é que eles têm essa reação, além do encaminhamento da
questão da técnica, [...] ver esta situação como eles entendem aquele momento, né? Porque eu acho
que faz parte do aprendizado e procurar com ele discutir, por que essa reação, [...], enfim, por que isso
acontece, né? Eu acho bom quando ele consegue verbalizar essas coisas, né? Por que isso, né? Então, o
que aconteceu para que essa situação tivesse ocorrido e, a partir daí, eu discuto, a gente analisa aquela
visita e depois a gente registra isso, sempre faço, né? [...] não vamos parar, vamos pensar e vamos
discutir. [...] Por que isto fica assim? Por que isso te incomoda? Por que tu achas que não tem que ter
15
Sujeito citou o nome da universidade onde trabalha, porém foi substituída por [nossa universidade] para evitar
identificação do sujeito e da instituição.
142
esse tipo de paciente? Por que? Por que? Né? [...] então eu procuro fazer isso. Procuro fazer com que o
aluno faça uma reflexão, que ele busque, né? A nossa população é pobre por uma situação
demográfica, por condições de vida, social, por carência, por tudo!
As formulações apresentadas reforçam o efeito de sentido emergido anteriormente, de
resgate da humanização na formação do discente da enfermagem e medicina.
Os dizeres do RD58 do SPE8 complementam os sentidos evidenciados até o momento,
analisados nos recortes com a marca discursiva ética”; o professor encontra-se filiado ao
discurso institucional, acreditando que a universidade e os docentes contribuam para formar
profissionais conforme determina a PNHAH e as diretrizes curriculares, embora reconheça
que nem todos os professores colaborem, apontando à posição oposta: “está contribuindo, [...]
todo quadro docente, e só não faz o professor que não é humano, e que sempre tem no meio”.
Identifico no fio discursivo dos professores o sintagma a gentee o pronome pessoal
eleassumindo posições diferentes conforme o discurso do sujeito. Para o SPM9 a gente
significa o grupo de professores e para o SPE14 significa o grupo formado pelo docente e
seus discentes; enquanto o pronome pessoal ele para o SPM9 inicialmente representa o
aluno e posteriormente o paciente, para o SPE14 são apenas os discentes. Neves (2000, p.
457) afirma ser utilizada a terceira pessoa do pronome pessoal para representar aquela pessoa
“sobre a qual é o discurso”. Na entrevista, o SPM9 ao ser questionado como fazia para
desenvolver a formação ético-moral do discente respondeu: ele pode entender essa dinâmica
maior, do que significa assistir uma pessoa, entender as suas coisas e tal. [...] ele não vai
aprender aquela doença especializada, ele vai entender o contexto de doença, de primeira
vez. É comum ele dizer que veio do interior, jamais teve em Porto Alegre, ele nem sabe
nem voltar para casa e vem humildemente no hospital, aquele gigantesco templo de saber”;
no início, o professor se refere ao aluno e após, usando o mesmo pronome, passa a significar
o paciente; ao existir estreita relação entre aluno e paciente, o pronome pessoal na terceira
pessoa passa a significar aluno/paciente, ou seja, “ele = aluno/paciente”. Conforme
determinam as Diretrizes Curriculares da Enfermagem e da Medicina, os cursos devem
estimular a vivência prática do discente no futuro campo de atuação; esta determinação
encontra-se atravessada no discurso do SPM9 e SPE14, produzindo o efeito de
desenvolvimento da formação ético-moral do discente na vivência prática.
Orlandi (2005a, p. 27) insiste que “a língua se inscreve na história”; portanto, para
significar é necessário realizar um movimento contínuo entre a materialidade da língua e da
143
história. Constato que tanto a PNHAH
16
quanto as Diretrizes Curriculares Nacionais dos
Cursos de Graduação em Enfermagem e Medicina foram publicadas no mesmo ano, a
primeira em junho e a segunda em agosto de 2001, com recomendações semelhantes de
formar profissionais da saúde humanistas, pautados em princípios ético-morais. Fatos
históricos foram determinantes deste imenso descompasso entre a proposta profissional e a
realidade vivenciada no mundo da vida; desta forma, o Estado interveio por meio da
legislação, tentando resgatar uma prática que se perdeu, conforme enunciou o SPM10 ao
posicionar-se sobre a PNHAH: a medicina foi assim, e nós perdemos isso em algum
momento e estamos renovando”; embora alguns profissionais ainda neguem esta realidade,
como o SPM11: Eu acho que esse termo novo é totalmente infeliz, a medicina nunca perdeu
isso! [...] Mas a formação médica não é nada de novo a dedicação ao paciente, a
humanização, quando não puder fazer nada pelo menos uma palavra de consolo. Isso é
[...] milenar dentro da medicina”.
Em 1975, a socióloga Jan Howard fez uma ampla revisão bibliográfica da produção
científica existente dos anos 60 até o início dos anos 70, apresentando um modelo explicativo
sobre a desumanização do sistema médico e identificando 11 práticas produtoras de
desumanização dos cuidados, conforme descreve Deslandes (2006, p. 37-9):
1) “‘tratar pessoas como coisas’ (thinging)
17
significando a destituição do poder do
doente e não reconhecimento dos seus sentimentos;
2) “‘desumanização pela tecnologia’” – significando o cuidado realizado por máquinas,
com eventual interação entre doente e cuidador;
3) “‘desumanização pela experimentação’” significando a realização de pesquisas
experimentais em seres humanos de formas antiéticas;
4) “‘pessoa como problema’” significando a desconsideração do paciente como todo,
prevalecendo o modelo biomédico centrado na patologia;
5) “‘tratar certas pessoas como ‘pessoas de menor valor’” significando a atribuição
de hierarquia e status aos indivíduos dentro do sistema social, onde determinados
grupos são considerados inferiores ou sem valor;
6) “‘pessoas isoladas’” significando a prática da alienação, ou seja, a
despersonalização e não reciprocidade entre doente e cuidadores do sistema de saúde;
16
PNHAH na íntegra encontra-se no ANEXO A.
17
Negrito nosso.
144
7) “‘pessoas como recipientes de cuidados subpadronizados’” significando
prestação de “um cuidado de menor qualidade quanto ao conhecimento ou tecnologia
disponível para cuidar de determinado agravo de saúde”;
8) “‘pessoas sem escolha’” significando a impossibilidade de escolher os profissionais
num modelo de assistência;
9) “‘pessoas interagindo com icebergs’” significando a neutralidade e a objetividade
do modelo biomédico, com interações frias e distanciadas com os pacientes;
10) “‘pessoas em ambientes estáticos e estéreis’” significando a desconsideração com
o ambiente de trabalho médico, aproximando o ambiente hospitalar “ao mundo real e
as demandas dos pacientes”, ajudando no seu restabelecimento (por exemplo: salas de
recreação, decoração acolhedora, jardins, entre outros);
11) negar o direito à vida “polêmicas sobre a eutanásia, aborto e o desligamento de
tecnologias de suporte de vida”, com grandes controvérsias entre os autores, pois
alguns consideram “antiético e desumanizador manter a vida sob certas
circunstâncias” (DESLANDES, 2006, p. 39).
Concordo plenamente com a análise realizada pela socióloga Deslandes (2006, p. 39-
40) sobre as práticas geradoras da desumanização apontadas no estudo de Howard; a autora
considera:
[...] ‘tratar as pessoas como coisas’, vê-las ‘como problemas’ e ‘tratá-las de forma
objetiva e distanciada’ são conseqüências evidentes de uma racionalidade científica
específica, manifesta no modo como a Medicina constrói seu objeto e sua identidade
como prática social [...]. As formas de valoração social, manifestas nas maneiras
tratar as pessoas como se tivessem menor valor e prover cuidados abaixo do padrão
parecem faces de um mesmo processo de hierarquização e discriminação social,
presente nos sistemas de saúde, evidenciando o paradoxo de um ethos ligado à
missão de salvar e valorizar a vida humana e as formas de seleção, discriminação e
exclusão numa ordem de cuidado (DESLANDES, 2006, p. 39).
O SPE14 entende que a relação humanizada entre o profissional da saúde e o usuário
do sistema de saúde não é priorizado:
RD63 - SPE14 [...] o é inerente. O modelo que pauta a relação é o modelo biomédico; o modelo
biomédico não prioriza a relação, ele prioriza o procedimento [...]. s somos profissionais que somos
formados dentro de um modelo que prioriza a queso do modelo biomédico e existe uma cultura
profissional centrada no procedimento em si, na tecnologia, não existe um modelo de formação centrado
nessa relão, e eu entendo que sinceramente, que a questão da humanizão, também é a relação, mas
também o é isso; existem questões estruturais, condições de trabalho, é mais do que
relacionamento, também é o relacionamento, [...] tem coisas que o pra acontecer, a gente
tem
discutido muito, [...] a gente está apostando nisso [...] melhorar essa relação [...] profissional e usuário [...].
145
Analisando, sob a ótica habermasiana, o contexto histórico condutor à desumanização
dos profissionais da saúde, creio que a prática da saúde tenha sucumbido à razão instrumental,
por estar inserida no cenário social e reproduzir as transformações sócio-econômico-políticas
ocorridas na Modernidade.
4.2.3 Recortes Discursivos com a marca lingüística “tem que”
RD64 - SPE 12 [...] a gente tem que rever, [...] essa questão da humanização. [...] A universidade tem
obrigação, um compromisso de cada vez mais trabalhar a questão humana [...].
RD65 - SPE14 [...] esse programa, né? ... precisou ser criado, porque essas coisas não estavam
acontecendo, contempladas e atendidas, isso é tranqüilo [...] eu penso que não adianta decreto, não
adianta dizer que a lei diz isso e isso, e a gente tem que contemplar isso; como a gente vai
contemplar? Porque vem do Ministério dizendo: olha, criou-se a luz, faça-se a luz! Daí eu não
tenho interruptor, eu não tenho rede elétrica, complicado, né? O que a academia tem feito eu acho
que ela faz é reflexão, discussão, é mostrar modelos que são possíveis, né? Hã... a todo o tempo tem se
discutido isso, o tempo todo. [...] Para nós está claro, não adianta o decreto.
Os sujeitos-professores mostram-se filiados ao discurso humanístico, e com base nesse
indicam que necessidade de rever a questão da humanização”, atribuindo à universidade
o compromisso de trabalhar a questão humana(SPE12). O
SPE14, ao enunciar a lei diz
isso e isso, e a gente tem que contemplar isso; como a gente vai contemplar?”, manifesta um
jogo entre "tem que" atender a lei, porém ironizando a obrigatoriedade de ter que atingir algo
de grandioso, muito acima das possibilidades ("a luz"). A dupla repetição de "não tenho x",
não tenho y", cumulativamente, destaca o sentido de impossibilidade de pôr em prática a lei.
Percebo que o sujeito reforça a metáfora empregada, por meio da marca discursiva não”,
produzindo efeito de poder, como se o Ministério fosse “Deus”, ao dizer: vem do
Ministério dizendo: olha, criou-se a luz, faça-se a luz. Daí eu não tenho interruptor, eu não
tenho rede elétrica, complicado, né?”. Sugere as carências que o impedem de alcançar o que
a lei preconiza.
Nos próximos RD, emerge do imaginário dos docentes como "tem que" ser o
profissional humanista e como eles gostariam que fosse na realidade. Na pesquisa de Castilho
(2005, p. 169-70), emergiu do discurso das professoras sobre o trabalho pedagógico o “efeito
de idealização da professora para este século”, apontando a necessidade do “resgate de certos
valores, que [...] se desvincularam da ação docente, como exemplo, [...] principalmente ética,
vai ter que ter muita ética”.
RD66 - SPM4 [...] Então a gente tem que ter esse conhecimento [...] essa proximidade médico-
paciente, essa confiança, que tu tem que, passar isso pro paciente, e isso ai tu conquista, né? Isso tu
não ganha, isso tu conquista né? [...] deveria ser natural, isso tem que partir de ti, tem que partir de
146
dentro de ti. Tu tem que enxergar isso ai, né? Tu tem que escutar, tu tem que conversar, tu tem que
ter paciência. [...] Não é só os pacientes que têm que ter paciência, nós temos que ter até muito mais,
paciência do que eles, né? [...] E aí tu tem que entender que isso aí tá incomodando, tem que entender
que isso é importante para ele, e tentar ajudar, né? E não te livrar.[...] sempre [...] eu friso essa questão
humanística da coisa, essa questão de ter paciência, da questão de pensar realmente o que querem
porque, vão lidar com sofrimento e isso é difícil. Né? Isso torna a gente até um pouco frio, quanto ao
sentimento dos outros, mas tu tem que estar sempre acordado, entendeu?
RD67 - SPE14 [...] a gente também aposta nisso, melhorar essa relação do profissional, hã...
profissional e usuário, [...] mas pra isso acontecer muitas coisas têm que acontecer, por exemplo: os
usuários têm que saber seus direitos, eles não conhecem seus direitos. Os usuário, além de
conhecerem seus direitos, eles têm que fazer um enfrentamento nesses espaços que são os hospitais e
as unidades básicas, em relação aos seus direitos, e isso é complicado! Por que assim? Por exemplo:
agora estamos com a Lei do acompanhante pro parto, né? Aí, eles têm aqui com a ampliação no
hospital escola, mas mesmo assim existem resistências dos profissionais, apesar de ter toda a
discussão, não foi fácil dos pais entrarem, teve a entrada dos pais lá, porque nós professores
estamos nos espaços, pressionamos com a legislação que foi um apoio, mas independente se a gente
não tivesse feito nenhum movimento como formadora, que naquele espaço que também é de ensino,
isso não teria acontecido.
O SPM4 acrescenta características que o profissional humanista deve ter ao enunciar
tem que: passar confiança para o paciente, ser natural, enxergar, escutar, conversar, ter
paciência, entender, valorizar, não se tornar frio quanto ao sentimento dos outros e estar
sempre acordado. Encontro muitas das características apontadas pelo SPM4 nas 8 práticas
consideradas humanizadoras apontadas por Howard, em 1975, no mesmo estudo de revisão
bibliográfica onde descreveu as 11 práticas produtoras de desumanização dos cuidados e
conceituou a humanização (DESLANDES, 2006). Para conceituar humanização, partiu do
pressuposto básico que o ser humano tem necessidades fisiológicas, psicológicas e
socioculturais; portanto, definiu como cuidado humanizado àquele que se preocupa em
atender todas as necessidades do sujeito. Encontro analogia à teoria das necessidades básicas
de Maslow no conceito e modelo de humanização criado por Howard. Quanto ao modelo de
humanização, Howard apontou 8 condições básicas filiadas a 3 dimensões, conforme descreve
Deslandes (2006):
1) dimensão ideológica – valor, insubstituibilidade e integralidade;
2) estrutura de interações paciente e cuidador – liberdade de ação, status de
igualdade e compartilhar decisões;
3) dimensão psicológica – empatia e afeto.
Deslandes (2006) ressalta que, desde a época do trabalho de Howard, o conceito de
humanização encontra-se associado à integralidade do cuidado, e que as práticas
humanizadoras já haviam sido identificadas anteriormente em outros estudos envolvendo
147
pacientes e médicos.
O SPE14 lembra que não basta somente a academia se empenhar em trabalhar a
questão da humanização; são necessárias outras mudanças para que a política de humanização
seja consolidada nas práticas da saúde.
Apresento a seguir mais recortes discursivos com a marca “tem que”.
RD68 - SPM11 [...] nosso maior interesse se chama paciente. Lógico que nós temos que obedecer leis
e regulamentos, mais o que mais importa para nós é o paciente. [...] nós estamos fazendo é aquele
ensino sobre o problema, [...] revisa o paciente junto com eles colocando sempre aquela visão de um
doente que faz parte de uma família, que faz parte de um contexto. Eles têm que aprender a pensar em
tudo antes de tomar a decisão [...] Nos ambientes que a gente lida sinceramente eu vejo a maioria dos
médicos procedendo de forma mais humana no que o regulamento do que as portarias determinam.
Evidente que deve haver exceções, como há em qualquer profissão, não é? Agora, tem que ter
problema, porque assim, o treinamento na nossa faculdade são hospitais universitários que são
hospitais de referência com alta tecnologia, e sim o equipamento afasta o médico do paciente e da
família, então isso é uma das coisas que a gente se bate.
RD69 - SPE14 [...] têm duas questões que eu acho que o importantes em qualquer momento, [...]
que a enfermagem ela passa por duas questões que são essenciais, eu acho que a primeira é
comunicação e a segunda questão a do conhecimento técnico, da habilidade, [...] então desde o
começo, abordo aquela família de quando a gente vai na casa, pedir licença antes de entrar, ter
cuidado, isso é cuidar, né, quanto a forma que a gente fala com as pessoas, que é o espaço delas, a
gente pede licença, enfim, a forma como se lida com as essas questões que são de respeito ao outro
[...] eu vou para uma visita domiciliar o que eu busco saber? Quem é a família que a gente vai visitar?
Discutir com o aluno que fato está acontecendo para a gente fazer a visita? [...] enfim, eu sempre
procuro ter alguma informações para junto com o aluno, a gente poder se programar para ir até aquela
casa, visitar. Depois que a gente vai lá, o aluno participa dessa visita, desse programa, para isso a gente
discute como vai ser, o que tem que ser feito aí! [...] eu digo pro aluno, “bom, nós fomos lá, nós
fizemos uma visita”, às vezes a pedido da equipe, às vezes a gente identifica na consulta de
enfermagem [...], “a gente tem que dar o retorno, tem que registrar isso e dar o retorno para aquela
equipe” [...], para que a própria equipe saiba que aquela família foi visitada, [...] o que aconteceu, o
que a gente fez, que encaminhamento a gente deu, então, porque eu acho que a gente pode estar dando
de retorno para poder ajudar, para o próprio aluno crescer, para saber que é importante a observação
deles, a ação que ele fez, né? Então é assim que eu faço. [...] eu fico pensando: meu Deus, por que será
que isso esta acontecendo? [...] é complicado [...] eu penso de um jeito diferente, né? Necessariamente
essa pessoa não tem que pensar até, tem que considerar que ele é um aluno ou aluna, que ela vive
num mundo diferente desse usuário, família [...].
Os dois RDs acima remetem ao efeito de sentido de resgate da ética humanística na
formação dos discentes da saúde; enquanto o SPM11 enfatiza o maior interesse do ensino-
aprendizado sobre o paciente, o SPE14 demonstra como se deve agir na prática. Ambos
encontram-se filiados à formação discursiva de humanização; porém, percebo no SPM11 a
alteridade, dualidade e ambigüidade ao expressar um intradiscurso contraditório, quando diz:
nosso maior interesse se chama paciente [...] colocando sempre aquela visão de um doente
que faz parte de uma família, que faz parte de um contexto. [...] eu
vejo a maioria dos
médicos procedendo de forma mais humana no que o regulamento do que as portarias
148
determinam. Evidente que deve haver exceções [...] Agora, tem que ter problema, porque
assim, o treinamento na nossa faculdade são hospitais universitários que são hospitais de
referência com alta tecnologia, e sim o equipamento afasta o médico do paciente e da
família, então isso é uma das coisas que a gente se bate”. Inicialmente, o sujeito nega e apaga
o problema existente, produzindo o efeito de resgate humanista, tanto na formação do discente
quanto na prática diária; entretanto, posteriormente mostra-se dividido, pois ao se movimentar
no intradiscurso, re-significando, denuncia o contexto tecnologizado dos hospitais como
responsável pelo apagamento do aprendizado humanizado dos discentes. Pessini (2002, p. 51)
afirma que “o hospital reflete [...] o que [...] acontece na nossa sociedade desumanizada e
desumanizante. A humanização desta instituição passa, obrigatoriamente, também pela
humanização deste universo maior condicionante da sociedade”.
O SPM11, ao dizer eles têm que aprender a pensar em tudo antes de tomar a
decisão”, manifesta o outro do discurso e remete às Diretrizes Curriculares da Graduação em
Medicina como fonte de sentido dos propósitos que ele relata (AUTHIER-REVUZ, 2004).
Destaco, na citação abaixo, o “perfil do formando egresso/profissional” de medicina constante
no primeiro item das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina
(BRASIL, 2001):
Médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a
atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes
níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à
saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade
social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser
humano (BRASIL, 2001, p. 10).
O segundo item das Diretrizes traz as competências e habilidades; são competências
gerais esperadas do médico: “atenção à saúde”, “tomada de decisões”, “comunicação”,
“liderança”, administração e gerenciamento” e “educação permanente” (BRASIL, 2001, p.
10). Ainda a seguir, apresento mais três RD selecionados com a marca lingüística “tem que”.
RD70 - SPE3 Então, o aluno aprende exame físico no computador. Nele, a gente oferece imagens pra
ele, de partes de corpo, e ele tem que montar, idealizar um paciente. [...] Então, ele tem que trazer
desse paciente: um nome como cidadão, o endereço fictício, ele cria. De onde ele vem, quem é ele, que
religião ele tem, onde é que ele trabalha. [...] Então o aluno tem essa preocupação de ao inventar esse
paciente, construir uma história. E quando ele vem, e traz, nós discutimos no “chat”.
RD71 - SPE8 [...] quando o aluno chega para fazer o estágio final, [...] o aluno deve ter a visão do
todo, ele tem que saber enxergar a equipe, os recursos materiais necessários, o cliente [...] ele tem que
saber chegar junto o cliente, ele tem que saber enxergar o paciente no seu todo, a unidade toda
familiar, [...] enfermeiro tem que ter conhecimento técnico e cinqüenta por cento administrativo e
gerencial. [...] tem que associar esses dois conhecimentos [...] tem um grande papel de supervisor de
educador para saúde [...] ele
educa a equipe, ele educa o cliente, ele educa a família do cliente, então
149
ele é o eterno educador. Então, ele tem que ter habilidade para isso. [...] ele tem que deter de
conhecimentos [...] ele tem que ter fundamentação, por outro lado ele tem que deter esse
conhecimento administrativo e gerencial para associar as duas coisas.
RD72 - SPM 9 [...] Eu costumo dizer o seguinte: às vezes não precisa pedir exame de laboratório, tem
que repetir a história de vida do paciente. Eu fico maravilhado, [...] o cara veio assim com uma
suspeita clínica, não sei o que lá... a gente coloca um aluno [...]. E a gente vai vendo que é
aquele princípio básico do contato humano, e do aluno com o paciente e a família, que é valorizado
[...] é muito importante que haja uma portaria, que a gente valorize isso.
[...]
a gente tem que ter
cuidado para não desvalorizar o que existe, de trabalho relacionado a isso.
No RD71 o SPE8 ao enunciar ele tem que saber enxergar o paciente no seu todo
aqui o tem queassinala as capacidades que o educando precisa demonstrar no curso de uma
disciplina de sua formação, e ao dizer ele tem que deter de conhecimentos [...] ele tem que
ter fundamentação, por outro lado ele tem que deter esse conhecimento administrativo e
gerencial para associar as duas coisas”, nestes casos o tem queaponta às habilidades a
serem desenvolvidas pelo aluno na prática. No RD72 o SPM9 ao dizer, é muito importante
que haja uma portaria, que a gente valorize isso”, produz um outro sentido para a gente”,
significando professores, alunos e a sociedade toda.
Por meio da descrição das formas desenvolvidas para o aprendizado na prática, as
formulações discursivas dos SPE3 e SPM9 significam a tentativa de resgate da formação
humanística na formação dos discentes da saúde; apreendo nas palavras inscritas no fio do
discurso com a marca discursiva tem que este efeito de sentido: SPE3 o aluno aprende
exame físico no computador. Nele, a gente oferece imagens pra ele, de partes de corpo, e ele
tem que montar, idealizar um paciente. [...] Então, ele tem que trazer desse paciente: um
nome como cidadão, o endereço fictício, ele cria”; SPM9 às vezes não precisa pedir exame
de laboratório, tem que repetir a história de vida do paciente. [...] a gente vai vendo que é
aquele princípio básico do contato humano, e do aluno com o paciente e a família, que é
valorizado”. Observa-se menção ao aproveitamento, pelo docente, das novas tecnologias
(computador) no ensino da área, numa perspectiva humanística de criação, com esforço para
melhorar o ensino.
No próximo RD o SPE14 valoriza a formação dos profissionais da saúde para alcançar
o objetivo proposto pelo PNHAH, de criar uma nova cultura de atendimento “respeitando à
vida humana, pela observância dos princípios ético-morais na convivência entre profissionais
e usuários” (BRASIL, 2001, p. 1); o sujeito enuncia:
RD73 - SPE14 [...] eu acho que é um pouco dessa formação, passa um pouco pela formação, eu acho
que a portaria aposta nisso, é para se criar essa nova cultura, mas essa cultura para ser criada, ela tem
que ter um momento para que se pense a respeito, para que se discuta, para que se simule lá no dia-a-
150
dia algumas condutas, porque senão não adianta criar o papel, eu vi o papel dizendo o que tem que
ser. Como é que as pessoas vão fazer diferente se elas fazem isso a vida inteira [...] O humaniza SUS,
ele procura, ele aposta nessa cultura, né? Dessa relação, que isso para mudar não é dado por papel,
não se humaniza por decreto, se humaniza por se discutir aquilo que a gente sabe. Então não adianta
passar o papel, acho que o que vai ajudar é que muitos participem, tem que participar disso, pensar na
prática, tem que se dispor a ouvir, a escutar, e a se dispor a mudar essa prática, se não, não vai mudar!
[...] Eu acho que a universidade, a gente tem ainda um espaço que é privilegiado, eu digo que, a gente
faz essa discussão o tempo todo [...].
O SPE14 enfatiza a necessidade de envolvimento dos sujeitos que fazem parte do
processo de formação para humanizar o atendimento; o sujeito a Universidade como um
espaço privilegiado” para refletir, discutir e produzir essa mudança.
4.2.4 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “não
RD74 - SPM6 [...] E aí entra a questão da ética, porque, da relaação médico-paciente. [...] para juntar
as duas coisas e saber, de acordo com aquela peculiaridade daquele paciente, qual o tipo de conduta
que vai fazer para ele, entendeu. Não adianta saber que a evidência de determinada conduta é essa, se
eu sei que existe todo um contexto envolvendo aquilo que não me permite utilizar aquele tipo de
conduta. [...] a gente sabe que é importante [...] trabalho científico que tem consistência, mas eu acho
que a gente deve associar as duas coisas.
RD75 - SPE13 [...] eles começam [...] desde o primeiro semestre [...] disciplinas ao longo do curso,
formal ou informalmente destacam a formação ética. Mas isso, não é uma constância, né? Porque
nem todas as disciplinas constam a palavra ética obrigatoriamente [...] Eu considero que o aluno está
tendo ética e ele parece que, cada vez mais, está forçando aos professores [...] a ter que falar [...],
mesmo quando não faça parte obrigatória daquela grade curricular. [...] naquele estágio final, onde
não tem mais o professor [...] ao lado [...] nós percebemos na supervisão [...] o comportamento dele,
[...] já quase profissional que sai enfrentando aqueles conflitos, [...] como exemplo, [...] questão de
superlotação nas emergências, questão de relação de poder entre profissional na área da saúde, os
conflitos internos [...] princípios éticos envolvidos. [...] a capacidade técnica científica ela continua
sendo sempre uma importância fundamental, ninguém cuida com ética sem conhecimento científico,
certo?
RD76 - SPM15 [...] nossa área é uma área onde as coisas bioéticas são muito fortes, né?... elas
interferem muito no dia-a-dia [...] em algumas áreas de atendimento, essas situações são mais
dificilmente trabalhadas. Por exemplo: em áreas ambulatoriais [...] numa área de UTI, [...] Então, não
é no sentido de que nessas áreas a gente tenha que ser mais ético ou discutir mais os aspectos bioéticos
e em outras não. É porque as oportunidades aparecem mais ali para que as coisas sejam discutidas.
Como os alunos ali também passam todo o dia, nós também temos mais facilidades de não deixar uma
pergunta não respondida, uma ansiedade não respondida. Então eu tenho a impressão que é... não
porque a equipe seja melhor, mas porque as oportunidades aparecem mais ali de discutir este tema. [...]
Eu acredito que se junte as duas coisas: como existe a predisposição do professor em estar aberto para
isso [...] e como existe oportunidade nós conseguimos juntar as duas coisas, e ter essa noção da
bioética, da ética, como tão importante como as outras coisas clínicas. [...] nós trabalhamos bastante,
sobre a humanização.
Ao enunciaros alunos ali também passam todo o dia, nós também temos mais
facilidades de não deixar uma pergunta não respondida, uma ansiedade não respondida”, o
SPM15 faz alusão à ética no ensino, em respeito ao aprendiz, ser ético para com o aluno.
151
As formulações discursivas apresentadas, com a associação entre as marcas
discursivas ética e não”, reforçam o sentido de resgate da ética humanística na
formação dos discentes da saúde, produzindo efeito que a formação ética será alcançada
quando se unir conhecimento técnico-científico e humanização. SPM6 diz: a questão da
ética [...] juntar as duas coisas [...] Não adianta saber que a evidência de determinada
conduta é essa, se eu sei que existe todo um contexto envolvendo aquilo que não me permite
utilizar aquele tipo de conduta”; e SPE13 enuncia: “a capacidade técnica científica ela
continua sendo sempre uma importância fundamental, ninguém cuida com ética sem
conhecimento científico, certo?”. Ristow (2007) também destaca a necessidade da formação
médica associar o aspecto humanístico ao conhecimento especial; concluindo seu estudo
sobre a formação humanística do médico na sociedade do século XXI, aponta a necessidade:
[...] do médico-humano, do médico-sábio e do médico-tecnotrônico. Técnica e
humanística se justapõem, potencializando o saber em Saúde, ou seja, humanismo e
tecnicismo não operam em lados opostos, ao contrário, se colocam lado a lado na
abrangência da acepção bio-psico-social, que visa a atenção médica sob a visão
integral do homem (RISTOW, 2007, p. 145).
Deslandes (2006, p. 16) afirma que um conjunto de ações “já mobiliza milhares de
profissionais comprometidos com a necessária utopia de prover serviços capazes de produzir
cuidados dignos, atentos a intersubjetividade de seus partícipes e comprometidos com a vida”.
Esta afirmação encontra eco no dizer do SPM15: Eu acredito que se junte as duas coisas:
como existe a predisposição do professor em estar aberto para isso [...] e como existe
oportunidade nós conseguimos juntar as duas coisas, e ter essa noção da bioética, da ética,
como tão importante como as outras coisas clínicas. [...] [...] nós trabalhamos bastante, sobre
a humanização”. Porém, este mesmo sujeito, na continuidade do seu intradiscurso, evidencia
a necessidade primordial da mudança do docente quando diz:
RD77 - SPM15 [...] se os professores novos se não forem trabalhados, eles vão ficar iguais aos
antigos, daqui a pouco vão ser tecnicistas. Os nossos novos professores eles estão fazendo [...] um
doutorado, que é uma coisa extremamente louvável, mas a gente pergunta: sobre o que que tu vai
fazer? Ah, é uma técnica nova que foi implantada
não sei aonde; claro, isso é extremamente sedutor,
isso muito
ibope
. Ser ético, ter uma moral e ser humanista não
ibope
nenhum, não tem charme
nenhum. O que tem charme é salvar uma vida, usar o aparelho do último tipo. Mas para fazer as
duas coisas: ali na UTI, nós trabalhamos a moral, nós trabalhamos a ética, nós trabalhamos a
humanização e nós temos equipamento de último tipo e nós saímos para fazer curso fora sobre o
último respirador lançado,
? Uma coisa não exclui a outra!
N
a formulação discursiva do SPM15, percebo estar ocorrendo a inserção da
humanística na formação dos discentes, porém constato uma forte tendência dos docentes da
medicina em perpetuar o tipo de formação fundamentada no modelo flexneriano, revelando
152
cumplicidade às tradições ao desejar perpetuar esse modelo, quando diz: os professores
novos se não forem trabalhados, eles vão ficar iguais os antigos, daqui a pouco vão ser
tecnicistas; os nossos novos professores eles estão fazendo [...] um doutorado [...] a gente
pergunta: sobre o que que tu vai fazer? Ah, é uma técnica nova que foi implantada não sei
aonde; claro, isso é extremamente sedutor, isso muito Ibope”. Para Costa (2007, p. 27-8),
referindo-se à necessidade de os docentes médicos se atualizarem fazendo sua formação
continuada diz: “a docência médica deve ser vista em um continuum que cessa ao final da
vida profissional, e seria desejável que todos os professores [...] juntassem forças para o
desenvolvimento permanente da docência médica”.
No próximo RD percebo inicialmente o a gente”, representando generalização do
grupo de professores em relação ao comprometimento de proporcionar um ambiente de
trabalho mais humanizado possível”; porém, continuando o fio do discurso no final o sujeito
usa “a gente”, para não dizer eu!
RD78 - SPM16 [...] diversas coisas que a gente está trabalhando agora para que fique um ambiente de
trabalho mais humanizado possível [...] A gente sabe que muitas vezes não existe este cuidado, porque
é uma questão moral e ética da pessoa, a gente que lida com várias pessoas, a gente vê, tem pessoas e
pessoas, então o trabalho mais humanizado, antes de baixar uma portaria, ia por conta daquela pessoa
que tinha esta preocupação, acho que desse modo é um jeito de cobrar todas as pessoas que
provavelmente não se preocupam com isto [...] existe esta preocupação desde o primeiro semestre; [...]
acho que estão se formando médicos mais preocupados com essa questão, também de se preocupar
com as pessoas, às vezes a gente nota isso [...].
Ao enunciar a gente sabe que muitas vezes não existe este cuidado, porque é uma
questão moral e ética da pessoa, a gente que lida com várias pessoas, a gente vê, tem pessoas
e pessoas”, o sujeito-professor passa a reconhecer as diferenças individuais e produz o efeito
que nem todos os docentes estão comprometidos com a humanização, valorizando a portaria
como uma forma de cobrança e conscientização dos profissionais. Percebo, entretanto, que a
opinião sobre a portaria encontra-se dividida e ambígua entre os sujeitos-professores. No
recorte abaixo, o enunciado inicia referindo-se a portaria e, a partir dela, faz uma ligação com
uma “prática pedagógica” desenvolvida na universidade, onde o sujeito-professor trabalha.
RD79 - SPM 9 Às vezes não criar normas, que aparentemente são viáveis, e tal, mas às vezes elas não
são centradas na prática. [...] eu não estou criticando a portaria, pelo contrário, eu sou absolutamente
identificado com ela. Essa questão do uso dos princípios ético-morais da relação assistencial, da
equipe assistencial, isso é um negócio muito legal [...] Agora, às vezes a gente não pode exagerar na
portaria. [...] Escreve-se muitas vezes e não se pratica o que se escreve [...] aqui na universidade
existem [...] umas regras que não adianta o cara ser amigo que não vai passar. E isso é uma prática
pedagógica muito forte. Porque não acaba indo adiante. “Ah, sou filho do...”, não adianta, não vai
adiante. Quer dizer, aquela coisa de poder não vai adiante. Isso é uma tradição pesada que acho que
é
uma coisa legal, do ponto-de-vista de ensino, da tradição ética do negócio. Se a gente levantar mais do
153
passado, tipo década de 60, 70, um dos problemas que existiam era esse: coisas que podem para um e
não podem para outro.
É interessante o sentido que o SPM9 deu a Portaria destacando a relação com o aluno
que deve ser isenta de clientelismo. O sujeito produz efeito de que a teoria é diferente da
prática e, ao mesmo tempo, mostrando-se favorável à portaria: “não estou criticando a
portaria, pelo contrário, eu sou absolutamente identificado com ela. Essa questão do uso dos
princípios ético-morais da relação assistencial, da equipe assistencial, isso é um negócio
muito legal [...]. Agora, às vezes, a gente não pode exagerar na portaria. [...] Escreve-se
muitas vezes e o se pratica o que se escreve”. Aqui o a genteexcluí o eu desse coletivo.
Seguindo o fio discursivo, o sujeito deixa implícito que as mudanças na universidade em
relação aos princípios ético-morais estavam ocorrendo antes da publicação da portaria, em
2001; portanto, seria desnecessária a portaria, ao dizer “[...] aqui na universidade existem [...]
umas regras que não adianta o cara ser amigo que não vai passar. E isso é uma prática
pedagógica muito forte [...]. Se a gente levantar mais do passado, tipo década de 60, 70, um
dos problemas que existiam era esse: coisas que podem para um e não podem para outro”.
Na pesquisa de Castilho (2005, p. 155-6), nos “efeitos vinculados à relação teoria e prática”,
também apareceu a denúncia: “a ausência da articulação da teoria e prática nas ações
docentes”.
Outros sujeitos-professores aderem ao saber que considera teoria como diferente da
prática, conforme recorte a seguir:
RD80 - SPM 11 [...] não adianta o discurso se ele não assistir a prática da ética no dia-a-dia,
infelizmente temos que reconhecer que às vezes essas coisas são arranhadas. A academia uma
formação muito boa no contexto, [...] na postura do dia-a-dia [...] temos como linha na faculdade a
humanização da medicina para compensar essa alta tecnologia que a gente tem no hospital [...] no final
do curso, eles saem com uma boa idéia de humanização [...]. Todas as vezes que a gente diz nenhum
ou todos a gente arrisca. Mas pelo menos a maioria sim, a maioria do corpo docente está com essa
filosofia e a gente vê depois, os nossos egressos e gosto sabe? [...] de vez em quando a gente tem a
infelicidade alguns nossos fazendo alguma coisa que não deve. Mas, realmente é muito raro, a maioria
se porta com manda, na moral e ética.
Embora o cenário social atual, não favoreça a humanização, se reconhece que:
[...] alguns profissionais da saúde, apesar de tudo e de todos, das dificuldades
financeiras e estruturais, do pouco tempo e do muito trabalho, cultivam uma ética do
cuidado pleno e [...] encaram e encarnam seu trabalho como vocação. Estes
admiráveis servidores (médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, atendentes,
entre outros) são o gérmen e a semente dos pensamentos, sentimentos e ações
portadores das transformações desejadas pelo Ministério da Saúde (MINAYO, 2006,
p. 29).
154
4.2.5 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “tem que
RD81 - SPE14 Os alunos acabam entrando em contato com este sistema [...], no campo com o sistema
de saúde, quando a gente entra em contato com o sistema de saúde, quando eles vão para uma prática,
eles acabam tendo que desenvolver com questões éticas e aí, hã... tanto no hospital quanto na rede, a
gente tem questões bem sérias, assim, ? [...] a gente tem que [...] sair deste contexto [...] entrar em
contato com os outros contextos [...] menos favorecidos economicamente, então ele se depara com
situação que ele começa a pensar o direito desse usuário, hã... como ele vai acessar o sistema? Como
ele vai usar essa informação que ele tem? [...] a gente sente que o aluno se coloca na posição do
usuário, aí a gente passa a ter discussões [...] Daí vem toda essa discussão ética; é ético fazer
determinado procedimento, quanto é? [...] então a gente passa por todas as discussões de ética, moral,
de direito, todas juntas, não separa moralmente, assim, eticamente assim, a gente faz essa discussão lá
no dia-a-dia.
Percebo, mais uma vez, o sujeito-professor produzindo o efeito de valorização da
vivência prática; ao associar as marcas linguísticas tem que e ética no intradiscurso, o
SPE14 evidencia o “deverdo aluno entrar em contato com o mundo da vida e as questões
éticas, desenvolvendo sua formação através da discussão das situações vivenciadas.
Os sujeitos-professores, ao serem questionados sobre a Portaria do Programa de
Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), assim se posicionaram:
RD82 - SPE2 [...] o ideal seria que ela não existisse e que os profissionais tivessem uma competência
dentro do seio da formação e ser natural esta passagem de comportamento ético para o aluno, eu penso
que o ideal seria que não precisasse existir, né?... mas, infelizmente a prática e o exemplo do dia-a-dia
mostra que alguma coisa tem que ser feita.
RD83 - SPM6 [...] faz a gente pensar que talvez o grande caminho, o grande retorno, tem que ser
feito nesse sentido; de resgatar através da ética, através do bom relacionamento com o paciente, do
bom relacionamento com os colegas, o bom relacionamento com a equipe toda [...] Fazer com [...] que
através do resgate do humanismo consiga se recuperar um pouco esse aspecto que vai no fim
representar um modelo de atuação profissional, né? Então, é assim, tem que ser por aí. [...] eu acho
que todos estão no mesmo barco, todos têm que saber como é que anda as coisas né?
Embora constate divergências entre professores em relação ao posicionamento
representado na criação da portaria, eles reconhecem, conforme diz o SPE2, que alguma
coisa tem que ser feita”; e o SPM6 reforça: o grande retorno, tem que ser feito nesse
sentido; de resgatar através da ética [...] tem que ser por ai. [...] eu acho que todos estão no
mesmo barco, todos têm que saber como é que anda as coisas né?”. Castilho (2005, p. 160)
ao fazer a análise enfocando os efeitos de sentido sobre os dispositivos legais, evidenciou o
efeito “das reformas educacionais na prática”, onde a autora “remete à necessidade de
mudanças na educação, posição que é constatada e reforçada”.
Esse resgate insere-se na história da medicina, que tinha uma visão humanística
holística centrada no homem e na natureza (influenciada pelo renascentismo e escolástica).
155
Contudo, transformações societárias evidenciadas na Modernidade criaram uma nova
concepção de mundo, levando a medicina ao distanciamento da visão holística do homem,
passando a uma medicina “compartimentalizada, segmentada, centrada na doença e não no
indivíduo” (RISTOW, 2007, p. 13). O efeito de sentido produzido pelos recortes discursivos
de “resgate da ética humanística” deverá ocorrer a partir de mudanças, conforme RD
abaixo:
RD84 - SPE7 [...] nós temos que mudar coisas nossas. E isso é muito complicado, né? Mudar hábitos
meus, é bem complicado, isso também é para o aluno, [...] a gente tem que inclusive, entre o nosso
grupo, essas questões éticas [...] Nós temos que nos preocupar em formar profissionais que dêem
conta daquela clientela que está lá esperando nossos cuidados, dê conta bem, que consiga criar
vínculo, e que consiga atender as necessidades deles [...] esse é papel da universidade. É formar cada
vez mais profissionais ao encontro das necessidades dos nossos clientes. [...] temos que cada vez ter
mais profissionais com princípios éticos. E trabalhando holisticamente. Sendo que a humanização
deve estar dentro dessa nova cultura, deve estar incorporada nessa nova cultura.
RD85 - SPE13 [...] Ética não tem como tu errar até se dar conta do que nós temos que transformar
[...] e entender que a ética tem que cada vez mais favorecer a muitos, quanto mais tu abranger fazer
bem, mais a ética se alia à questão da moralidade, da legalidade, uma coisa puxando a outra [...] tem
que desde o início tratar as questões que possam ser conflitos morais, para que não virem conflitos
éticos.
Existe consciência entre os sujeitos-professores que deverão ocorrer mudanças para o
resgate da humanização e ética nos profissionais da saúde, conforme se constata: SPE7 nós
temos que mudar”; SPE13 “nós temos que transformar”; percebo que o “nós” nestes recortes,
significam professores, universidade e também, mais amplamente, a sociedade.
RD86 - SPM15 [...] o professor da medicina, ele tem que ter noções de ética, moral e humanização
diferente daquele professor de matemática, ele vai dar uma aula, ele tem que ser ético com os alunos,
ele tem que manter uma certa moral, não pode vir dar aula nu, mas as relações são diferentes.
Na formulação discursiva apresentada, constato no imaginário do SPM15 o sentido de
que cabe aos professores de medicina, mais do que os professores de outras graduações, o
compromisso com a ética; como professor-médico, sua responsabilidade seria singular e
indiscutível; assim, com sentido irônico, refere-se que sentidos éticos óbvios a qualquer
docente, como: não pode vir dar aula nu”. Esse efeito de sentido aponta a certa resistência a
acatar placidamente os dispositivos que preconizam maior humanização e valorização da
ética.
4.2.6 A produção de sentido na interface entre Habermas e Pêcheux
O efeito de sentido resgate da ética humanística na formação dos discentes da
saúde” emergiu do discurso dos sujeitos-professores, evidenciando seu apego a sentidos
constituídos desde as relações sociais ideológicas da humanização na saúde, surgida a partir
156
da metade do século XX, os quais emergem em seus posicionamentos, elaborados com base
nos sentidos que dão às situações de seu cotidiano, referidas.
O tecnicismo é apontado em algumas formulações dos docentes como um problema na
área da saúde por estar enraizado nas práticas, ser muito valorizado pelos alunos e alguns
professores e por distanciar os profissionais da saúde do paciente, gerando um atendimento
desumanizado. Os problemas evidenciados entre profissionais da saúde e o doente não são
novos nem exclusivamente brasileiros; eles iniciaram no século passado, como resultado da
dominação tecnológica que se expandiu invadindo todas as esferas, inclusive a área da saúde.
Conforme Pêcheux, essa ocorrência que enfatiza a reprodução do mesmo sentido se deve ao
efeito ideológico. Habermas ([1993?], p. 49) acredita que a dominação tecnológica
proporciona “a grande racionalização da falta de liberdade do homem e demonstra a
impossibilidade ‘técnica’ de ser autônomo, de determinar pessoalmente a sua vida. Com
efeito, esta falta de liberdade não surge nem irracional nem como política, mas antes como
sujeição ao aparelho técnico que amplia a comodidade da vida e intensifica a produtividade
do trabalho”. Tanto para Habermas quanto para Pêcheux o sujeito não determina sua forma de
ser no mundo mas sim é determinado por ele; portanto, os profissionais da saúde tecnicistas e
desumanizados sofrem determinação do sistema, ainda que o assujeitamento não seja total,
existindo espaço para outros novos sentidos. Agora os sujeitos-professores se questionam
sobre o tipo de profissional que a universidade precisa formar para atender as necessidades da
sociedade, e evocam, na memória coletiva historicamente constituída, a necessidade de
mudança da formação acadêmica tecnicista, manifestando o desejo de rever a questão da
humanização e da ética na formação, pois racionalmente estão conscientes de que não
precisam profissionais meramente técnicos, mas sim com visão humanística aliada à
capacidade técnica científica, atendendo às diretrizes curriculares.
Para Habermas ([1993?], p. 99), antigamente a formação possibilitava converter a
teoria num poder prático. Porém, atualmente, as teorias podem se transformar em poder
técnico; ele diz: “sem dúvidas, as ciências proporcionam agora um poder específico: mas o
poder de disposição que elas ensinam não equivale à capacidade de viver e de agir, que
outrora se esperava do homem cientificamente formado”. O filósofo ainda lembra que antes a
formação universitária era universal, orientando o homem para a ação, permitindo transformar
experiências científicas em capacidades práticas; contudo, atualmente as experiências
científicas não são capazes de transformar-se em prática, e a ciência dispensa a tarefa de
orientar para a ação. Para ele, a ciência consentiu que o poder da técnica sobre a natureza
fosse estendido para todo o sistema e sociedade; entretanto, deve-se considerar que a
157
tecnologia não dispensou o homem do agir.
Para Pêcheux (1997):
[...] a interpelação dos indivíduos em sujeitos [...] se efetua em nome do Sujeito
universal da Ideologia: o Sujeito “se faz lembrar” aos sujeitos, [...], e os determina a
ser o que são, a agir como agem (e, em particular, a falar como falam). Em outros
termos, o Sujeito universal da Ideologia representa para os sujeitos “a causa que os
determina” e lhes representa essa causa na esfera sem margens da forma-sujeito
(PÊCHEUX, 1997, p. 272-3).
Percebi os sujeito-professores
divididos, com sentidos desestabilizados pela
contradição e negação da realidade vivenciada no dia-a-dia, caindo no senso comum que
ocorre independente do desejo dos sujeitos. No social, existem posições que divergem; assim
é possível encontrar a “coexistência de diferentes discursos, isto implica diferenças quanto à
inscrição ideológica dos sujeitos e grupos sociais em uma mesma sociedade, daí os conflitos,
as contradições, pois o sujeito, ao mostrar-se, inscreve-se em um espaço socioideológico”.
Conseqüentemente, o sujeito não será uno e sim polifônico, marcando seu discurso pela
heterogeneidade própria das interações sociais (FERNANDES, 2004, p. 46). Embora
contraditórios e por vezes negando a realidade, os sujeitos mostram-se
filiados ao discurso
institucional, acreditando que a universidade e os docentes contribuam para formar
profissionais conforme determina a PNHAH e as diretrizes curriculares, apesar de
reconhecerem que nem todos os professores colaborem.
Nos recortes discursivos com a marca lingüística ética(o)”, evidenciei a presença do
outro no discurso, considerando o outro as Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação
em Enfermagem e Medicina. Os professores ao enunciarem o já-dito, expressam como ecos
da memória do dizer as Diretrizes Curriculares determinando a formação humanista do
enfermeiro e médico, mostrando-se filiados à formação discursiva tradicional humanística,
valorizando e preocupando-se com a formação ética dos discentes. Segundo o sujeito-
professor manifesta em seu discurso, é importante institucionalizar uma postura humanística
de respeito às pessoas na universidade, para contribuir na construção da ética na formação
discente.
Os recortes discursivos com a marca lingüística “não” foram muitos; os sujeitos
usaram esta marca reforçando os problemas existentes, apontados pelo PNHAH, de
desumanização e distanciamento dos profissionais da saúde em relação ao paciente. Embora
os sujeitos manifestem-se de forma contraditória ao opinar sobre o surgimento da portaria,
acreditam que ela seja o reflexo de uma realidade existente no mundo da vida e, de forma
implícita, concordam com ela ao enfatizarem que não adianta formar profissionais somente
158
com conhecimento técnico-científico.
Os recortes discursivos guiados pela marca lingüística tem que” reafirmaram o
discurso de humanização na saúde e o desejo de resgatar a ética humanística, produzindo o
significado de dever em várias posições: a) de rever a realidade vivenciada da formação do
discente; b) de seguir as Diretrizes e PNHAH; c) de a universidade trabalhar a questão
humana; e d) de formar enfermeiros e médicos conforme as competências gerais estabelecidas
pelas Diretrizes. Os professores desejam formar profissionais humanistas e com conhecimento
científico, porém acreditam que muito depende da formação moral de cada sujeito.
Na associação das marcas lingüísticas ética e não”, emergiu o significado que a
formação ética será alcançada unindo-se o conhecimento técnico-científico à humanização.
Mais uma vez, nos RD com estas marcas, evidencio sentidos heterogêneos sobre a portaria,
produzindo efeito de que a teoria é diferente da prática; esta constatação também foi feita por
Habermas [1993?] no sistema universitário alemão, ao identificar o equívoco constituído em
torno da relação entre a teoria e a prática. Nos procedimentos em específicos da área de saúde
é fácil encontrar o não cumprimento, de disposições, na prática. Creio que a afirmação de
Habermas ([1993?], p. 97) sirva também para esta pesquisa, quando diz:
[...] permanecemos [...] agarrados à ficção de que as ciências desenvolvem a sua força
orientadora da acção através do processo formativo no interior da história vital de cada
estudante. Eu gostaria de mostrar que a intenção, que Fichte designara como a
<transformação do saber em obras> hoje já o se pode resolver na esfera privada da
formão, mas no campo politicamente relevante da tradução do saber tecnicamente
utilizável no contexto do nosso mundo vital (HABERMAS, [1993?], p. 97).
O filósofo retoma a história para justificar sua afirmação, relatando que na virada do
século XVIII para o XIX a reforma da universidade alemã não rompeu com a tradição;
entretanto, afirma ter sido a última vez que defendeu a idéia clássica:
[...] das relações entre teoria e a prática. [...] A idéia da formação individual na
universidade não assumiu em si mais nenhuma relação da teoria com a prática;
mesmo quando Schelling tenta dar à prática da medicina uma base científica por
meio da filosofia da natureza [...] todos sabem que a cientificação da medicina é
possível na medida em que os preceitos pragmáticos do ofício médico se podem
transformar num poder de disposição sobre determinados processos naturais,
controlados em termos de ciência experimental. Isto vale igualmente para outros
domínios do trabalho social; [...] a correspondente prática profissional deve adquirir
sempre a forma de uma disposição técnica sobre os processos objetivados
(HABERMAS, [1993?], p. 98).
Martini (1993, p. 198) acredita que “a questão do teórico e do prático se coloca [...], a
partir da totalidade das relações práticas do mundo da vida”; por isto, a autora acredita que “a
educação como uma prática [...], precisa testar a racionalidade de seus procedimentos, como
consciência metodológica dessa totalidade dinâmica de conhecer, de agir e de expressar que
159
articula teoria e prática no contexto do próprio mundo vivido”.
A última associação entre as marcas lingüísticas éticae tem queevidenciou nos
RD que algo tem que ser feito para mudar e transformar a teoria em prática. Surgiu o
sentido de que, para formar um profissional humanista, seja fundamental um ensino centrado
nas pessoas, e para isso são necessárias mudanças de atitude, de comportamento e mudança
cultural, o que demanda um longo tempo. Alguns professores já iniciaram as mudanças
inserindo a humanística na formação dos discentes, conforme relatam: ensinam pontuando na
prática a questão do respeito ao próximo; trabalham para que o aluno valorize não a doença,
mas o paciente e a família como um todo; enfocam a ética, durante todo o percurso do aluno,
desde os primeiros semestres até o final; enfatizam a formação dos princípios básicos das
relações humanas; interagem constantemente com os acadêmicos tentando conscientizá-los da
importância da humanização; e constatam a realização de um trabalho mais humanizado com
inserção da humanística na formação dos discentes. Destacou-se o sentido de que a maioria
dos docentes têm preocupação com a ética, estando voltados o tempo inteiro ao resgate desta;
vêem a ética embutida no cotidiano do aluno, pois tanto a medicina quanto a enfermagem são
cursos essencialmente de ensino prático, fazendo com que o aluno permaneça muito tempo
em contato com professor, pacientes, familiares e mundo da vida.
Pontes, Rego e Silva Júnior (2006, p. 74) afirmam que “as transformações no ensino
somente ocorrerão se os professores ampliarem sua consciência a respeito dos contextos
históricos, sociais, culturais, organizacionais de sua própria prática educativa, tanto a da sala
de aula quanto num sentido mais amplo”.
A marca todos”, significando totalidade e inteireza, apareceu nas formulações
discursivas com ética(o) produzindo a ilusão de homogeneidade, estabilidade e
generalização de que a ética permeia o dia-a-dia do aluno, sendo contemplada durante toda a
formação, em todas as disciplinas e por todos os docentes.
Como os cursos da saúde são eminentemente práticos, os professores relatam que os
alunos precocemente ficam frente a frente com o paciente.
No discurso dos sujeitos-professores, buscando generalizar, ficou destacado que a
universidade contribui para a formação ética através do seu quadro docente, embora alguns
professores não se encontrem mobilizados; reforçam o compromisso da universidade em cada
vez mais trabalhar a questão humana. Os sujeitos afirmam que estão fazendo a parte que lhes
corresponde, formando médicos melhores que os formados antigamente. Para eles, o grande
retorno deverá ocorrer, resgatando através da ética a humanização. Cabe aqui finalizar com as
palavras de Minayo (2006):
160
A humanização necessita do aporte indiscutível da ciência e da tecnologia,
pressupões investimentos financeiros, mas, acima de tudo, precisa contar com uma
persistente proposta de sensibilização das pessoas. A sensibilização da
intersubjetividade na relação é um desafio sofisticado, pois não pode ser contida em
normas [...] uma vez que, em última instância, ela se dá no encontro singular de duas
pessoas [...] (MINAYO, 2006, p. 29).
O estudo piloto desta pesquisa evidenciou efeitos de sentidos semelhantes aos
encontrados nesta análise, como: “atendimento à saúde fragmentado e desumanizado” e
“importância de educar direcionando ao atendimento humanizado e integral”.
4.3 O DOCENTE: REFERÊNCIA PARA A FORMAÇÃO ÉTICO-MORAL DOS DISCENTES
Da análise dos recortes discursivos emergiu o efeito de sentido “o docente: referência
para a formação ético-moral dos discentes”.
Os RD apresentados a seguir são resultantes das respostas dos sujeitos-professores às
várias perguntas feitas sobre a formação ética e moral do acadêmico de enfermagem e
medicina.
4.3.1 Recortes Discursivos com a marca lingüística “ética(o)
RD87 - SPE7 E, nós, professores, qual é o nosso papel? É, ah... continuar ou inovar, tu nunca sabe
como é que eles estão vindo, né? Ah, que, que preceitos éticos, [...]. Então, se você vem com uma base
boa, [...] se você conseguiu formar sua personalidade na família certa, que te deu essa base, de ética
[...] até dezessete, dezoito anos, quando você entra na tua profissionalização, é muito rápida para nós
professores continuarmos, né? [...] eles vão ter uma atitude tão boa familiar, que vai ser muito
rápido pra nós. Só que a grande maioria que a gente percebe, que eles não vêm com essa base.
RD88 - SPE8 [...] nós temos uma variável do nosso curso muito importante [...] que é a conduta e a
postura ética da direção do curso. A direção do curso, hã, a gente é privilegiado de ter uma diretora
que tem uma postura ética, que tem os princípios éticos, que tem valores éticos, então começa por ali.
Porque isso norteia a ação e pulveriza esse exemplo tão forte que dá, para todo o corpo docente, todo o
corpo docente! [...] o curso [...] ele tem esse grande diferencial.
RD89 - SPM15 [...] Nós contamos muito com o exemplo que os professores dão, porque na nossa
faculdade existe uma estreita relação entre professor e aluno [...] Nos estágios todos têm uma
proximidade muito grande do professor com o aluno [...] nós esperamos que tenham a mesma postura
ética do professor. Então existe muito o espelho com o docente com o representante do docente.
Nos RDs apresentados, os sujeitos produzem efeito de “espelho com o docente”; isto
é, o modelo de referência ao qual a pessoa se identifica é determinante para sua postura ética.
O jovem de início se identifica com a família e depois com os professores e estes, por sua vez,
identificam-se com o diretor do curso de graduação; portanto, a postura ética produz efeito de
“espelho”, significando: diretor da graduação exemplo para
docente exemplo para
161
discente.
O SPE7 condiciona o papel do professor na formação ética do discente ao preparo
recebido pelo jovem na sua família, quando diz: nós, professores, qual é o nosso papel? É,
ah... continuar ou inovar, tu nunca sabe como é que eles estão vindo, né?E ao afirmar a
grande maioria [...] eles não vêm com essa base”, produz efeito de sentido de que o professor
deverá inovar, pois a maioria dos alunos chega à universidade sem ter recebido da família
formação ética, assim dificultando a continuação da formação ética direcionada à
profissionalização. Rego (2003, p. 131), ao investigar estudantes de medicina, constatou em
alguns deles a importância atribuída à formação ética construída na família, trazendo como
exemplo a resposta de um estudante de 21 anos, o qual diz: os principais conceitos de ética e
respeito com os outros estão na nossa cabeça desde a infância e no convívio familiar”,
reforçando o que manifestou o SPE7 ao dizer: preceitos éticos, [...] se você vem com uma
base boa, [...] conseguiu formar sua personalidade na família certa, que te deu essa base, de
ética [...] quando você entra na tua profissionalização, é muito rápida para nós professores
continuarmos, né? [...] eles vão ter uma atitude tão boa familiar, que vai ser muito rápido
pra nós”. Santos e Barbosa (2007) apontam a família como base da socialização do sujeito,
onde a criança aprende as regras, os valores, e a se colocar no lugar do outro, inaugurando sua
noção de alteridade, a qual irá nortear o convívio das interações sociais.
Percebo que os sujeitos-professores alternam o uso de pronomes, e isso surte efeitos de
sentidos diversos. Os SPE7 e SPE8 utilizam o pronome pessoal na primeira pessoa do plural
nós e o sintagma nominal a gente”, assinalando seu pertencimento ao grupo de
professores. O pronome na terceira pessoa eles e vocêindica para o SPE7 os alunos, e o
SPE8 usa elepara se referir ao curso de graduação no qual atua. Os sujeitos, ao usarem
“nós”, não estão se referindo apenas a ele, mas sim envolvem “um não-eu” (NEVES, 2000, p.
459). O SPE7 e o SPE8, ao enunciarem de forma coloquial a gente”, produzem efeito do
conjunto de professores, parecendo incluir a pesquisadora-professora a quem concedem a
entrevista. No enunciado do SPE7, o pronome você”, “embora seja forma de pessoa
envolvida no discurso (segunda pessoa)”, indica uma referência genérica com indeterminação,
muito forte, da pessoa ao qual se refere (NEVES, 2000, p. 463), pois pode referir-se ao aluno,
como foi dito, mas também à interlocutora e inclusive ao enunciador que faz a
exemplificação.
O pronome indefinido “todo(s)”, utilizado pelos SPE8 e SPM15, reforçam o sentido de
totalidade e inteireza do conjunto de sujeitos aos quais remete; SPE8 diz todo
o corpo
docente, todo o corpo docente, produzindo sentido de generalização sobre a postura (ética)
162
da diretora, norteadora de todos os docentes que pertencem àquele grupo; e ao usar todo(s)
como posposto a “estágios”, no plural (“nos estágios todos”) o SPM15 generaliza que durante
todos os estágios realizados no curso de medicina o discente conta com a postura ética do
professor servindo de exemplo.
A seguir, apresento mais dois RD com a marca discursiva ética.
RD90 - SPE12 [...] esse trabalho [referindo-se a esta pesquisa], ao apresentar, talvez, abale as pessoas,
e muitas pessoas questionem e, talvez, estejam trabalhando a questão, trabalhando a ética, trabalhar a
ética é uma coisa, mostrar a ética é outra [...].
RD91 - SPM16 [...] Tenho me preocupado [...] tentar passar algumas coisas também de moral e ética,
de como atender o paciente, como se comportar, então algumas coisas a gente na prática, até na
ocasião das provas, o fato de manter uma responsabilidade [...] eu acho que a gente consegue passar
uma coisa assim boa nesse sentido. [...] A gente vai assim, na verdade na postura do grupo, de como
está se relacionando com [...] o paciente, como vai desenvolvendo a entrevista [...] então a gente avalia
isso também, a parte prática a gente tem como avaliar a postura do aluno [...] a gente cobra [...] a gente
vai atendendo junto com eles, eles vão também absorvendo esse tipo de postura que a gente quer que
eles tenham com as pessoas, então, é mais também demonstrando para eles, como é que a gente
gostaria que fosse. Primeiro a gente faz [...].
Nos recortes discursivos dos SPE12 e SPM16 evidencio a importância atribuída à
questão da prática, isto é, o pensar do professor deve condizer com seu fazer. “Quem pensa
certo está cansado de saber que as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou
quase nada valem. Pensar certo é fazer certo. [...] Não pensar certo fora de uma prática
testemunhal que re-diz em lugar de desdizê-lo” (FREIRE, 1996, p. 34). O SPE12, ao dizer
trabalhando a ética, trabalhar a ética é uma coisa, mostrar a ética é outra”, deixa implícito
que para alguns docentes a teoria é uma coisa e a prática outra, ou seja, o discurso fica
distante do que realmente acontece na prática. O SPM16 também valoriza a prática para a
formação ética do discente, quando diz: a gente vai atendendo junto com eles, eles vão
também absorvendo esse tipo de postura que a gente quer que eles tenham com as pessoas,
então, é mais também demonstrando para eles, como é que a gente gostaria que fosse.
Primeiro a gente faz...”, deixando implícito que as posturas dos professores servem de modelo
ético-moral aos alunos, reforçando o efeito que o docente é o exemplo para o discente.
Júnior (2002, p. 55) confirma a importância atribuída pelos sujeitos-professores ao
docente, afirmando que “o aprendizado das condutas médicas se dá por imitação, que provém
da identificação do aluno com o professor ao longo do trabalho conjunto e da convivência em
comum”. O mesmo autor, ao abordar a “Ética do professor de Medicina”, afirma que a
conduta do professor de medicina é mais influente no processo e no resultado do que qualquer
outra atividade pedagógica; justifica sua afirmação com a constatação do psiquiatra José Luís
Pio Abreu (Professor Associado da Fundação de Medicina de Coimbra) de que
163
“provavelmente o professor de medicina ensina com o exemplo e seu aluno aprende copiando
o modelo que ele lhe oferece de sua técnica, de seu desempenho pessoal e de sua conduta
social” (SÁ JÚNIOR, 2002, p. 53). A medicina e a enfermagem são cursos semelhantes neste
aspecto, pois exigem que o aluno aprenda a fazer semelhante ao professor; por isso, o docente
faz primeiro, passando a ser o modelo para o discente.
As Diretrizes Curriculares da Graduação em Medicina (BRASIL, 2001, p. 14)
determinam que a estrutura do curso privilegie a participação ativa do aluno, propiciando o
desenvolvimento das dimensões éticas e humanísticas, inserindo:
[...] o aluno precocemente em atividades práticas relevantes para sua futura vida
profissional, [...] [propiciando] a interação ativa do aluno com usuários e
profissionais de saúde desde o início de sua formação, proporcionando ao aluno lidar
com problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes como agente
prestador de cuidados e atenção [...] (BRASIL, 2001, p. 14).
As Diretrizes Curriculares da Graduação em Enfermagem, semelhantes às Diretrizes
da Medicina, determinam que a estrutura do curso deverá assegurar articulação entre a teoria e
prática, propiciando desenvolvimento do aluno nas dimensões ética e humanística, garantindo
“um ensino crítico, reflexivo e criativo [...] [com] atividades teóricas e práticas presentes
desde o início do curso, permeando toda a formação do Enfermeiro, de forma integrada e
interdisciplinar” (BRASIL, 2001, p. 9). Embora as Diretrizes dos Cursos de Enfermagem e
Medicina determinem articular a teoria com a prática, no discurso aparece que a teoria é
diferente da prática”; segundo Habermas este enunciado teria uma visão positivista, pois o
filósofo afirma que no mundo da vida, não separação entre teoria e prática porque tudo
emerge de uma consideração reflexiva do mundo prático (HABERMAS, 1993).
Conhecer é deliberar sobre o bem do paciente; na interação professor-aluno, parece
faltar integração do conhecimento à atitude ética, ou seja, os sujeitos-professores não
articulam o prático-técnico com o prático-ético, produzindo o efeito de aplicação da teoria no
plano prático-técnico, sem se dar conta da dimensão ética.
4.3.2 Recortes Discursivos com a marca lingüística “não
RD92 - SPE3 [...] as nossas reações, emoções, ela pode intervir. E eu acho que o docente, ele tem um
compromisso muito sério, e, e, e em se manter né? Adequadamente, com a postura adequada, frente
aos seus alunos. Ele não pode se deixar levar pelas emoções e reações momentâneas.
RD93 - SPM5 [...] eu estou me referindo à ética profissional, depois... eles não têm grandes
conhecimentos disso e vão adquirindo ao longo do curso ou pela experiência que eles vêem dos
professores, com a convivência com os professores. [...] é nossa obrigação, orientá-los pra que eles
, né,
possam, depois, não ter problemas dessa ordem.
RD94 - SPE7 [...] eles não podem ficar, né? Muito distante desse eixo que o aluno está. Por exemplo:
164
se eu permitir pro aluno, que ele me faça uma cópia de um trabalho da Internet, me entregue, e eu vejo
que é cópia, e eu não me incomodar com isso, e eu dar a nota pra ele, ou eu não ler o trabalho que ele
produziu, eu não tô orientando ele eticamente, ser um profissional no futuro, né? [...] nós conseguimos
passar pra eles, as coisas boas que nós acreditamos e que nós dizemos.[...] seguindo sempre essa linha
mestra, nas coisas que eu acredito como ser humano [...] a gente nunca é duas [...] Tu não consegue
ser uma num momento e outra em outra. A gente não fica em caixinha.
RD95 - SPE8 [...] e outra coisa, sou uma professora que trabalho [...] às vezes o professor pede um
trabalho e não lê [...] eu sou uma professora que leio os trabalhos e ponto e grifo onde for copiado [...]
se não você está sendo desonesto contigo mesmo [...] tu não pode ter uma falha, um outro
comportamento então isso, eu falo muito do professor como enfermeiro, com uma fala e um
comportamento completamente diferente, [...] não, não tem credibilidade e um profissional que não
tem credibilidade, seja o espaço que ele ocupa ele não vai ficar, o espaço dele é limitado. [...] é
preferível você passar mais um semestre na universidade e sair com um reforço maior, então eu não
tenho receio de reprovar um aluno [...].
RD96 - SPE 13 Eles [...] no primeiro e segundo semestre acreditam piamente no que eu estou
dizendo, que se a Escola de Enfermagem tem como coluna dorsal o cuidado humanizado e a nossa
escola ela tem como coluna dorsal o cuidar humanizado [...] então, nós falamos muito sobre isso [...]
nós somos como cuidadores ou como educadores o que somos aí fora, né? Muitas vezes nós queremos
ser diferentes [...] a gente brinca muito, que [há um] tempo se dizia, que ao chegar no hospital [...]
marquei o cartão ponto e a vida lá fora não tem nada que ver com tua vida aqui dentro; se és triste
fora, fica sorrindo aqui dentro, se tu é desconfiado, seja um cara confiante, hã... [...] não se consegue
por muito tempo conviver com essa, não digo dupla personalidade, mas confunde, faz mal, ninguém
consegue, nós não somos artistas profissionais, nós somos da área de enfermagem, aqui não é pra
fazer isso, não é pra representar uma coisa que não somos, né? [...] isso tem aparecido, os alunos hoje
falam isso dos professores que não conseguem cumprir na prática com a palavra [...] meus filhos me
ensinaram a ter mais tranqüilidade [...], porque ele tem uma faixa etária que muitos se aproximam das
faixas etárias que eu estou dando aula [...].
RD97 - SPM16 [...] a gente, o nosso grupo na verdade, não é individual, praticar essa esse tipo de
conduta, [...] postura perante a prova, [...] respeito com os professores, com os colegas, de fazer a sua
prova e não colar, não copiar a prova do aluno. Então isso a gente preza bastante [...]. A gente sempre
trabalha o grupo [...] a gente não faz nada sem perguntar para outro colega. São cinco ou seis
professores, [...] tem uma conduta que é zelada por todo o grupo e todo mundo age da mesma forma.
[...] disciplinas que trabalham direto com a comunidade, pessoas mais necessitadas e ao longo do
curso, os professores que estão trabalhando, estão repassando estas coisas para os alunos.
Os RDs mostram certas atitudes consideradas não éticas aos professores, como: não
podem se deixar levar pelas emoções e reações momentâneas”, não ler o trabalho”, não
pode ter uma falha, um outro comportamento”, não representar uma coisa que não somos”.
Outras negações são dirigidas aos alunos, como: não têm grandes conhecimentos disso”, ao
negar o conhecimento do discente sobre a ética; ou não colar, não copiar”, para ter uma
conduta ética.
Os recortes guiados pela marca discursiva não”, reforçam o efeito evidenciado nos
recortes com a marca discursiva “ética” sobre a importância do “modelo professor” como
referência para a formação ético-moral do aluno.
Sá Júnior (2002, p. 53) afirma que depende da conduta adotada pelo professor para um
165
modelo ser positivo ou negativo; “positivos (quando induzem o aluno a fazer igual) ou
negativos (quando o modo de proceder do professor induz conduta oposta no alunado)”. Esta
afirmação encontra ressonância no depoimento de um acadêmico de medicina, de 22 anos,
pesquisado por Rego (2003, p. 131), quando diz: “[...] até mesmo os professores que deveriam
passar noções de ética, não as têm como ponto de orientação [...]”; neste caso, o aluno
produz efeito de sentido de modelo negativo do professor, confirmando o que foi identificado
por alguns sujeitos-professores nesta pesquisa, ao denunciarem que alguns professores não
apresentam uma postura ética, evidenciando que a teoria é diferente da prática, como diz o
SPE13: os alunos hoje falam isso dos professores que não conseguem cumprir na prática
com a palavra”. Freire (1996, p. 39) considera fundamental os professores fazerem,
permanentemente, reflexão crítica sobre a prática, de maneira que o “próprio discurso teórico,
necessário à reflexão crítica, [...] [seja] de tal modo concreto que quase se confunda com a
prática”. O conhecimento se estrutura na ação; a ação envolve deliberação e prudência.
O SPM16 ao enunciar “a gente sempre trabalha o grupo [...] a gente não faz nada sem
perguntar para outro colegae todo o grupo e todo mundo age da mesma forma”, produz
efeito de homogeneidade referente ao grupo de professores ao qual pertence. Pêcheux (2002)
diz que:
[...] esta homogeneidade lógica, que condiciona o logicamente representável como
conjunto de proposições suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas, é atravessado
por uma série de equívocos, [...] cada um de nós [...] tem por si mesmo uma
imperiosa necessidade de homogeneidade gica: isto se marca pela existência dessa
multiplicidade de pequenos sistemas lógicos portáteis que vão da gestão cotidiana da
existência [...] até as “grandes decisões” da vida social e afetiva [...] passando por
todo o contexto sócio-técnico [...]. Nesse espaço de necessidade equívoca,
misturando coisas e pessoas, processos técnicos e decisões morais, [...] toda
conversa [...] é suscetível de colocar em jogo uma bipolarização gica das
proposições enunciáveis [...] (PÊCHEUX, 2002, p. 32-3).
Portanto, para Pêcheux uma interação entre a lógica do conhecimento e a lógica da
ação. Os recortes abaixo mostram como os sujeitos-professores agem para ser modelo
positivo aos seus alunos; contudo, o SPM9 reconhece que “não é fácil, isso aí não é fácil”: ao
repetir por duas vezes o enunciado, o professor produz ênfase no sentido da dificuldade em
viabilizar na prática a teoria.
RD98 - SPM9 [...] Entender um pouco melhor e manipular a realidade, porque a gente vai construir
uma situação melhor. Agora, isso não é fácil, isso não é fácil. Reconheço que não é simples. [...] a
gente procura fazer com que os alunos conheçam as pessoas pelo nome, chamem as pessoas pelo
nome, entendam as suas variáveis sociais [...] eu procuro me identificar, certo, procuro mostrar para os
alunos que a gente
pode ser empático, [...] fico impressionado uma vez que a gente vai e em cinco
minutos interage com toda a família e resolve uma confusão de reclamações que tava acontecendo [...]
eu fiz uma coisa muito básica. Fui lá, apertei a mão, perguntei o nome do cara, quantos anos ele tinha,
166
perguntei sobre a história da mãe dele, perguntei, então, eu fiz uma série de entrevistas centradas no
que? Na pessoa. Não fui lá, passei tal exame, receita uma.. Eu prefiro passar para os alunos esse
estilo, eu vou na internação, [...] Eu acho que é menos aula. Eu procuro trazer para os alunos, pelo
menos. [...] nisso daí eu interfiro, porque aí eu procuro colocar para os alunos, em sala de aula mesmo,
dessa situação. Quando tem pacientes problemas, por exemplo, de difícil manejo, na internação eu
procuro sempre ver esses pacientes com os alunos.
Ao dizer “não é fácil [...] não é simples”, afirma que construir uma situação melhor
não é fato garantido, é algo que cada um tenta, conforme os exemplos dados. Freire (1996)
concorda com a dificuldade percebida pelo SPM9 explicando:
[...] ensinar não é transmitir conhecimento é fundamentalmente pensar certo é uma
postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e
com os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, entre outras
coisas, pela vigilância constante que temos de exercer sobre nós próprios para evitar os
simplismos, as facilidades, as incoerências grosseiras (FREIRE, 1996, p. 49).
A essência do ato ético é a presença do outro e as exigências mútuas que fazemos uns
para os outros.
RD99 - SPE12 [...] eu tenho feito e tem dado certo é colocar eles frente aos desafios e desaparecer;
desaparecer entre aspas, deixar o problema com vocês, vocês é que vão ter que resolver, [...] vocês
resolvam o problema, claro que eu sempre estou perto naquele apoio, não vão ficar desamparados,
claro que muitos devem se chocar com isto, e tem parado de, muitas vezes, reclamar. Olha a situação
aqui, a pessoa está quase morrendo, mas sorrindo, e vocês estão se queixando que têm prova
amanhã, não sei o que, não sei o que não tem diferença? “Ah, tá professor, vou parar de reclamar!
O sujeito-professor nega o sentido de supremacia do compromisso, como aluno
comum (provas), em detrimento da responsabilidade maior que cabe ao profissional da saúde:
o estado do paciente. O professor, na sua posição, pode favorecer ou dificultar o gesto de
interpretação do aluno, que faz a sua formação em um campo do conhecimento.
RD100 - SPM15 [...] Internato é aquela última fase onde não tem mais aulas teóricas, é treinamento
em serviço [...] o treinamento deles é praticamente 100% prático. [...] como então existe essa relação
próxima, [...] poucos alunos pra cada professor, nós acompanhamos diretamente o trabalho do aluno e
vamos chamando a atenção: olha, tal atitude não está bem, teu conhecimento tu tens que ler mais; nós
vamos fazendo uma avaliação praticamente no dia-a-dia e fazendo correções no meio do percurso e aí,
quando chega ao final, nós não temos [...] não tem uma avaliação final. Nós vamos fazendo isso
gradativamente. [...] aquele aluno que se espelha, porque se identifica com o professor tecnicista, ele
vai ser tecnicista, e por mais que a instituição trabalhe humanização, humanização, o espelho dele: eu
quero ser igual ao professor fulano.
O efeito de sentido produzido ao enunciar “nós não temos [...] não tem uma avaliação
final”, representa endosso, pelo sujeito, de um modo específico de avaliar, que concerne à
formação na área médica que consiste na estreita ligação com a prática. Ao enunciar
acompanhamos diretamente o trabalho do aluno e vamos chamando a atenção: olha, tal
atitude não está bem, teu conhecimento tu tens que ler mais”, o professor está buscando que o
167
aluno assuma sua posição frente as práticas da área médica. Esse sentido condiz com a
posição pedagógica que o professor manifesta, a qual pode favorecer ou dificultar o gesto de
interpretação do aluno que faz a sua formação em um campo do conhecimento.
Constato em alguns recortes discursivos a palavra treinamento; esse termo, no
discurso do professor da área médica, está dando ênfase à prática; não significa, portanto, uma
formação livresca, como enuncia o SPM15: Internato é aquela última fase onde não tem
mais aulas teóricas, é treinamento em serviço [...] o treinamento deles é praticamente 100%
prático”. Como a AD não analisa o sentido literal da palavra, no discurso o signo treinamento
não tem sentido de adestramento, mas sim, de uma formação em contato com a realidade e
proximidade com os pacientes, como aparece também em outros recortes: “eu transformaria o
curso de medicina num grande internato. Pra mim, seria treinamento em serviço desde o
início” (SPM6); ela [aluna] estava escalada para atividades aqui, que significavam
compromisso de plantões, treinamento(SPM9); e o treinamento na nossa faculdade são
[realizados em] hospitais universitários” (SPM11).
Comparo os RD dos SPM9 e SPM15 com a concepção contemporânea do professor de
medicina, apresentada por Sá Júnior (2002):
[...] deve ser um educador de profissionais solidários, de médicos cidadãos
destinados a ser, naturalmente, líderes políticos ativos e modelos sociais em suas
comunidades; além de pessoas capazes de servir solidariamente aos seus
semelhantes, inspirando-lhes confiança e respeito. [...] o professor de Medicina atua
como avaliador credenciado pela sociedade para julgar com conhecimento, a
capacidade e a habilidade técnica e ética dos estudantes ao fim de cada momento do
processo educativo. E, com isso, determinar, com a maior justiça possível, quem está
pronto para ser habilitado para atuar na assistência aos enfermos e nos serviços de
saúde da comunidade. Deve-se mencionar ainda que, na avaliação da conduta
médica e do desempenho pedagógico do professor de Medicina, [...], não se deve
separar os aspectos técnicos dos éticos, nem os pessoais dos profissionais (SÁ
JÚNIOR, 2002, p. 51).
Evidencio, mais uma vez, os sujeitos-professores da medicina e da enfermagem,
juntamente ao autor citado, filiados às Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação de
Enfermagem e Medicina, reproduzindo no seu intradiscurso, enunciados que apontam às
posições manifestadas nesse documento.
Retomando a história, lembro que as últimas Diretrizes Curriculares dos Cursos de
Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição foram publicadas no mesmo parecer em
2001 (BRASIL, 2001); a parte introdutória é comum aos três cursos e indica o objeto e o
objetivo das Diretrizes Curriculares, assim apresentados:
Objeto das Diretrizes Curriculares: permitir que os currículos propostos possam
construir perfil acadêmico e profissional com competências, habilidades e
conteúdos, dentro de perspectivas e abordagens contemporâneas de formação
168
pertinentes e compatíveis com referenciais nacionais e internacionais, capazes de
atuar com qualidade, eficiência e resolutividade, no sistema Único de Saúde (SUS),
considerando o processo da Reforma Sanitária Brasileira.
Objetivo das Diretrizes Curriculares: levar os alunos dos cursos de graduação em
saúde a aprender a aprender que engloba aprender a ser, aprender a fazer,
aprender a viver juntos e aprender a conhecer, garantindo a capacitação de
profissionais com autonomia e discernimento para assegurar a integralidade da
atenção e a qualidade e humanização do atendimento prestado aos indivíduos,
famílias e comunidades (BRASIL, 2001, p. 4).
Essas Diretrizes Curriculares representam uma sistematização do discurso da saúde
que circula nos meios acadêmicos atuais, resultante das reflexões dos grupos de pesquisa e
das práticas. Pêcheux (1997) diz:
[...] que o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão
entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-
construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se
constitui como “sujeito falante”, com a formação discursiva que o assujeita. Nesse
sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto “fio do discurso” do
sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma “interioridade”
inteiramente determinada como tal “do exterior” (PÊCHEUX, 1997, p. 167).
Percebo, na concepção contemporânea do professor de medicina apresentada por Sá
Júnior (2002), o perfil acadêmico e profissional traçado pelas Diretrizes Curriculares. O
SPE12, ao enunciar eu tenho feito e tem dado certo é colocar eles frente aos desafios e
desaparece; desaparecer entre aspas, deixar o problema com vocês, vocês é que vão ter que
resolver, [...] vocês resolvam o problema, claro que eu sempre estou perto naquele apoio, não
vão ficar desamparados”, desenvolve sua prática pedagógica conforme determinam as
Diretrizes do Curso de Graduação em Enfermagem, direcionada ao processo de ensino-
aprendizagem centrado no aluno e apoiado no professor, como facilitador e mediador,
estimulando a reflexão do aluno “sobre a realidade social”, aprendendo a aprender (BRASIL,
2001, p. 9).
A aprendizagem deve ser interpretada como um caminho que possibilita ao sujeito
social transformar-se e transformar o contexto. Ela deve ser orientada pelo princípio
metodológico geral, que pode ser traduzido pela ação-reflexão-ação e que aponta à
resolução de situações-problema como uma das estratégias didáticas (BRASIL,
2001, p. 8).
O próximo RD reforça o modelo do professor para o aluno.
RD101 - SPE7 [...] a gente faz atividade de campo, o aluno começa a vivenciar esse trabalho muito o
sistema de saúde, eles [...] vêem que eles não têm problema de estrutura familiar, que eles achavam
que tinham, porque os problemas daquelas pessoas , são inúmeras vezes maiores [...] recebo aluno
que não gosta de trabalho em grupo, eu nunca deixo eles saírem da disciplina sem terem resolvido
estas questões, porque não é possível um adulto trabalhar sozinho.[...] quero ajudar vocês, porque eu
quero que vocês
saiam melhor, do que vocês entraram aqui nesta disciplina [...] nós, professores,
sabemos o que é o melhor pra vocês. Talvez hoje vocês não consigam ter essa dimensão, mas nós
temos alguns quilômetros rodados, nós temos essa noção. [...] se eu não imponho limites, pra eles
na formação, eu não garanto pra eles serem isso depois de formados. Porque, se eu fecho o olho, e
169
deixo passar mesmo me incomodando, passo a mãozinha porque quero ser boazinha, eu não estou
colaborando com esse aluno [...] Todos são nossos alunos. Todos têm as mesmas chances [...] Em
alguns momentos a gente fracassa, mas toda vez que eu me dou conta, eu vou atrás da pessoa, e digo
olha: me desculpa, que eu pisei na bola, não era essa minha intenção, mas enfim. [...] Porque se eu
não seguir isso, eu não vou poder dar, ter uma conduta séria com a paciente que eu vou cuidar. E
principalmente com esse aluno que eu estou ensinando a cuidar desse pacientes [...] muitas vezes, não
precisa nem falar, ele vendo o que tu for fazer, ele já sabe qual é a melhor.[...] nós temos tanto aluno
com problema [...] vocês não imaginam. E a gente ouve confidências e conselhos, né? [...] Tem
problemas familiares seriíssimos. Tem família que não pode interferir, né? [...] Que a gente ouve as
mães de nossos alunos, né? Preocupada com os filhos. Os filhos envolvidos com drogas muitas vezes,
envolvidos com pessoas que não são de boa índole, e aí? [...] Então a gente divide muito assim, muita
angustia que a gente divide, porque, este, eles já têm como confidente muitas vezes, como alguém, que
eles podem confiar, e sabem que podem confiar [...] nós professores, nós líderes de pessoas, a gente é
líder, somos hoje lideres, de um grupo de pessoas, independente a posição deles, nossos alunos,
queiram ou não queiram, se espelham em nossas atitudes.
O SPE7 enuncia a gente faz atividade de campo, o aluno começa a vivenciar esse
trabalho muito o sistema de saúde, eles [...] vêem que eles não têm problema [...], porque os
problemas daquelas pessoas lá, são inúmeras vezes maiores”; neste recorte surge o efeito de
que o professor assume outros papéis também, na formação do aluno. O mesmo professor ao
dizer: recebo aluno que não gosta de trabalho em grupo, eu nunca deixo eles saírem da
disciplina sem terem resolvido estas questões, porque não é possível um adulto trabalhar
sozinho [...] quero ajudar vocês, porque eu quero que vocês saiam melhor, do que vocês
entraram aqui nesta disciplina [...] nós, professores, sabemos o que é o melhor pra vocês.
Talvez hoje vocês não consigam ter essa dimensão, mas nós já temos alguns quilômetros
rodados, nós já temos essa noção”, produz efeito de sentido paternalista.
Ainda o SPE7, ao referir-se à formação ética, aborda de forma implícita o problema da
falta de limites nos jovens na atualidade; ele diz: se eu não imponho limites, pra eles na
formação, eu não garanto pra eles serem isso depois de formados. Porque, se eu fecho o
olho, e deixo passar mesmo me incomodando, passo a mãozinha porque quero ser boazinha,
eu não estou colaborando com esse aluno”. Percebo uma significação semelhante entre o
enunciado do SPE7 e a reflexão realizada por Santos e Barbosa (2007, p. 29) sobre a falta de
limites nos sujeitos contemporâneos na interação eu-outro; as autoras relacionam a ausência
de limites à falta de respeito mútuo, considerando que “o respeito mútuo e ação moral são
fundamentais” na relação entre limites e alteridade, pois “sem relação com um outro, não
necessidade moral”. Acredito que o SPE7, ao expressar se eu não imponho limites, pra eles
na formação, eu não garanto [...] depois de formados”, significou impor respeito na interação
eu-outro e, assim, colaborar com a formação ético-moral do discente, visto que a educação
moral permite examinar que o respeito mútuo é fundamental para uma boa convivência social
170
e para a alteridade. No entanto, a falta de limites anula o outro” (SANTOS, BARBOSA, 2007,
p. 32).
Ao iniciar a análise dos recortes discursivos com a marca lingüístico-discursiva “não”,
evidenciei a importância atribuída pelos sujeitos ao “modelo professor” como referência para
a formação ético-moral do aluno; para finalizar esta análise, apresento a seguir um recorte
selecionado mostrando a vivência prática do SPM9, reforçando o discurso.
RD102 - SPM9 [...] a postura da gente é muito importante; [...], por exemplo, [...] um senhor que foi
[...] depois de mais de 30 anos de trabalho acabou cego, amputado das duas pernas por causa da
diabetes, mas estava lúcido e assim por diante, o que aconteceu? As pessoas não limpavam as fezes
dele, a urina, então quando a gente ia ver ele tava sempre reclamando, tinha hipoglicemia porque não
trouxeram o café, mas não, não colocaram próximo da cama. [...]. E a equipe acabava cada vez
ficando mais braba com ele, “como é que o senhor não avisou, fez todas as suas necessidades aqui na
cama!”. foi lá, “o velhinho, aquele velhinho chato do seiscentos e pouco”. O terceiro dia que eu
estava vendo essa situação eu chamei todos, “vamos conversar com ele”. [...] Daí eu falei: “olha, o
senhor tem alguma coisa a dizer?” E aí, ele estava enraivecido, e eu fui conversando com ele. E o
pessoal foi se dando conta da inadequação da equipe assistencial toda em relação à necessidade
daquele pobre sujeito ali [...] não alcançar o café da manhã, se ele molhou a cama é porque ninguém ia
atender, porque ele não tinha como sair da cama. Essa situação acabou causando um choro geral,
inclusive saiu todo mundo de lá chorando de pena do cara, porque caracterizou uma postura totalmente
inadequada, que era resultado de uma seqüência de falhas, exatamente da satisfação na visão do
indivíduo como um todo, quer dizer, ele chamava a atendente, “ah, eu vou depois”. O aluno que
tava lá vendo o paciente todo dia chegava lá com o cara reclamando, o residente chegava lá com o cara
com hipoglicemia, pensava “nada funciona nesse negócio, é o fim da picada, não quero mais atender o
paciente”. [...] uma situação inesquecível para alunos, esse grupo de alunos lá jamais esquece disso. Eu
encontro, e eles assim “bah, aprendi!”.
A marca discursiva não”, no recorte discursivo apresentado, funciona negando o
atendimento adequado e produzindo o efeito de dificuldades relacionadas ao atendimento do
paciente: não o atendiam bem, ou seja, falta de atendimento adequado.
4.3.3 Recortes Discursivos com a marca lingüística “tem que”
RD103 - SPE7 [...] você tem que aprender a se avaliar, você tem que aprender tem que responder
pelas coisas que vocês fazem. A mesma coisa que um aluno chega e diz, professora amanhã eu, não
posso ir no estágio, [...] tu diga pra ele: você deve saber o que é mais importante pra ti, que tu não
podes estar aqui e podes estar lá. Então, se tu não lá, tu tem que sofrer as conseqüências de não
estar lá, de estar aqui. A gente tem que aprender a perder [...]. Então se você tem que faltar o estágio,
tu tem que arcar com as conseqüências [...] você tem que começar a fazer escolhas. [...] e arque com
as conseqüências [...]. Vocês têm que aprender, vocês são muito adultos. E tem que aprender a
perder em cima de um ganho que tu tem com outra coisa. [...] tem que pensar. [...] hoje, é muito
difícil, eu me angustiar com qualquer situação, sou extremamente calma. [...] você tem que ter
paciência pra ouvir. E muitas vezes a gente ajuda os alunos, sem eles saberem, que os pais nos
procuraram. E a gente faz isso [...] tu tem que seguir uma linha, nós somos humanos, [...] acho que a
gente tem que passar por essa vida deixando coisas boas.[...] Então, cada vez mais, a gente tem que
amadurecer, tem que crescer, como pessoa, como gente, pra tentar passar mais essas coisas
humanísticas pra eles
. [...] você tem que deixar coisas boas, para os alunos para que eles não passem
simplesmente aqui na vida. Que esses anos que estão conosco, sirvam pra algo, que possa marcar eles
171
de construção. E que talvez, a questão ética seja uma das mais importantes premissas nossas, que a
gente possa passar pra eles.
RD104 - SPM9 [...] a gente como docente tem que ter uma visão de aproveitar esses momentos de
fragilidade, às vezes, o indivíduo que agride a gente, eu costumo dizer para os alunos que a gente não
deve ter o mesmo mecanismo de defesa do paciente, porque a gente tem um pouco mais de formação
pessoal sobre a questão da saúde, até das relações humanas, pelo menos a gente não se arranharia com
o mesmo mecanismo de defesa do paciente.
RD105 - SPM 11 [...] Tem alunos que não se adaptam em atender crianças, então os estágios de
pediatria pra eles é um horror! Se eles puderem fugir do estágio, fogem. Então tem que dar um jeito
de arrumar um encanto na pediatria para que ele continue [...] ele atende junto com outro, ou junto
com a gente, se incentiva a ele fazer diagnóstico, e quando ele acerta alguma coisa a gente elogia e
ele vai [...] a gente fica muito com eles!
RD106 - SPE 12 [...] Estou mostrando esses casos reais que eles não vêem, nem imaginam, tipo
levantar o tapete, estão começando a enxergar a coisa real, [...] vocês têm que entender isso, vocês
têm que entender essa realidade, bota realidade! [...] tem que começar por vocês.
Nos RDs apresentados, percebo que a marca lingüístico-discursiva tem que”,
conforme o movimento no jogo discursivo marca distintas posições, ora do professor ora do
aluno. Evidencio no recorte discursivo do SPE7, sentido de obrigação do aluno para que este
assuma os seus compromissos em relação à formação profissional ao dizer: você tem que
aprender a se avaliar, você tem que aprender tem que responder pelas coisas que vocês
fazem. [...] tem que sofrer as conseqüências [...] se você tem que faltar o estágio, tu tem que
arcar com as conseqüências [...] você tem que começar a fazer escolhas. [...] Vocês têm que
aprender, vocês são muito adultos. E tem que aprender a perder [...] tem que pensar”.
Continuando o fio discursivo aponta para deveres dos professores com nuanças variadas, ao
enunciar: “você tem que ter paciência pra ouvir”, enfatiza o sentido de que não pode
simplesmente prescrever, mas estabelecer negociação buscando compreender anseios dos
alunos; tu tem que seguir uma linha, nós somos humanos, [...] acho que a gente tem que
passar por essa vida deixando coisas boas, [...] cada vez mais, a gente tem que amadurecer,
tem que crescer, como pessoa, como gente. [...] você tem que deixar coisas boas, para os
alunos”, produz o efeito de missão. Ainda, no mesmo RD, as formas de referência pessoal se
misturam ao usar o pronome pessoal no singular vocêe o sintagma nominal a gente”: ora
refere-se ao professor, “você tem que deixar coisas boas, para os alunose a gente tem que
amadurecer, tem que crescer, como pessoa, como gente, pra tentar passar mais essas coisas
humanísticas pra eles”; e ora ao aluno, se você tem que faltar o estágio, tu tem que arcar
com as conseqüências” e “a gente tem que aprender a perder”.
O “tem que” e “a gente” empregados nas argumentações dos sujeitos-professores
SPM9 e SPM11 referem-se aos docentes; SPM9 ao enunciar o indivíduo que agride a gente
,
172
eu costumo dizer para os alunos que a gente não deve ter o mesmo mecanismo de defesa do
paciente”, produz efeito de missão e grandeza; e o SPM11 ao dizer tem que dar um jeito de
arrumar um encanto”, o efeito é do professor estrategista, para aproximar o aluno do paciente
criando um vínculo.
A posição do discente é marcada pelos pronomes pessoais ele(s)” tanto para o
SPM11 quanto para SPE12; este último também alterna ele(s)com vocêse ao enunciar,
vocês têm que entender essa realidade”, significa efeito de “cair a ficha”, conforme o
docente supõe a posição do aluno.
As formulações apresentadas com tem que remetem à participação ativa do
professor na prática com o aluno, posição constatada e reforçada, anteriormente, do
professor como modelo para a formação ético-moral do aluno. Os professores se posicionam
utilizando fatos reais, ocorridos no dia-a-dia, para desenvolverem a educação ético-moral,
endossando os saberes que fazem parte das Diretrizes Curriculares. As Diretrizes da
Graduação em Medicina, entre outras, recomendam: “utilizar diferentes cenários de ensino-
aprendizagem permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações variadas de vida, da
organização da prática e do trabalho em equipe multiprofissional” (BRASIL, 2001, p. 14);
entre várias recomendações nas Diretrizes da Graduação em Enfermagem está a articulação
do “saber; o saber fazer e o saber conviver, visando desenvolver o aprender a aprender, o
aprender a ser, o aprender a fazer, o aprender a viver juntos e o aprender a conhecer que
constitui atributos indispensáveis à formação do Enfermeiro” (BRASIL, 2001, p. 9).
Seguem mais dois recortes discursivos selecionados com a marca lingüístico-
discursiva “tem que”.
RD107 - SPE8 [...] Na minha disciplina [...] interajo demais com as alunas e eu vim com esta
interação [...] gosto muito de trabalhar em grupo porque é nos trabalhos em grupo que começam a
treinar as diferenças, [...] saber quando eu tenho que falar, quando eu tenho que calar, quando o meu
colega fala, [...] e todos os meus trabalhos são na forma de seminários, apresentação tem que vir na
frente tem que apresentar tem que preparar, então tudo isso porque eles vão se preparar para o
mercado de trabalho é neste sentido; [...] às vezes todo um texto copiado do livro, então no mínimo
tem que botar o autor para você ser honesto [...] tem que [...] trabalhar com o principio ético [...] tem
tantas oportunidades [...] então todos os momentos que tem [...] do local do estágio [...] a gente
trabalha no grupo [...] faço o aluno dizer, que tipo de atitude você teria se fosse no lugar de um
enfermeiro ou vice versa [...] eu complemento [...] com o meu olhar, a minha experiência e a minha
visão [...] eu participo da formação do profissional, e esse profissional tem que ser o melhor possível,
porque tem um pedaço meu e esse pedaço tem que ser muito bem construído e eu cobro isso muito
bem, e cobro mesmo. [...] professor tem que impor limite e dar testemunho [...] você tem que ser
autêntico, como professor na sala de aula, fora da sala de aula, ou tua postura, o teu comportamento
ele tem que ser único [...] sou um professor que reprova, mas o aluno que é reprovado comigo ele está
sabendo o porquê ele
está sendo reprovado [...] porque todos os momentos eu mostro as suas
deficiências e quanto ele tem que avançar e evoluir [...].
173
No RD acima a marca “tem que”, produziu efeito de comportamento ético do aluno, ao
colocar os autores nas citações dos trabalhos acadêmicos, e do professor, no cumprimento da
responsabilidade como professor-enfermeiro.
O SPE8 age na sua prática docente conforme
indica Freire (1996, p. 26), reforçando “a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua
insubmissão. [...] nas condições de verdadeira aprendizagem, os educandos vão se
transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado
do educador, igualmente sujeito do processo”.
O RD do SPE8 produz efeito de comprometimento do professor com a formação do
aluno e futuro profissional, demonstrado por atitudes e comportamentos da sua vivência
prática com o aluno, ao dizer: eu participo da formação do profissional, e esse profissional
tem que ser o melhor possível, porque tem um pedaço meu e esse pedaço tem que ser muito
bem construído [...] professor tem que impor limite e dar testemunho [...] você tem que ser
autêntico, como professor na sala de aula, fora da sala de aula, ou tua postura, o teu
comportamento ele tem que ser único todos os momentos eu mostro [...] quanto ele tem que
avançar e evoluir”. Freire (1996) afirma que ensinar exige comprometimento, pois:
[...] não é possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse
conosco. [...] Não posso ser professor sem me r diante dos alunos, sem revelar
com facilidade ou relutância minha maneira de ser, de pensar politicamente. Não
posso escapar à apreciação dos alunos. [...] Daí, então, que uma de minhas
preocupações centrais deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o
que digo e o que faço, entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo [...]
(FREIRE, 1996, p. 96 e 98).
Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de
decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de o falhar à verdade.
Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho.
A seguir, destaco outro recorte com a marca “tem que”:
RD108 - SPM15 [...] tem que ser uma coisa trabalhada desde que o professor é escolhido para ser
professor. [...] No momento em que se formarem as bancas, para exames de escolha de docente, tem
que ser tratado o perfil do docente: qual é o docente que eu quero para essa instituição e dentro do
perfil do docente, o que eu quero desse docente: que ele tenha uma boa didática, que ele tenha
competência técnica e que ele [...] consiga ensinar estes aspectos da ética e moral e humanização.
talvez um dia... [...] se nós conseguimos ter uma certa massa crítica, o resto vai ser obrigado a correr
igual, porque a gente sabe que é impossível chegar num ponto em que eu finco o que eu vou ser
diferente dos outros, eu não vou ser cobrado por isso, mas neste momento muito aquém do ideal
talvez por causa disso. Porque a gente ainda não tem uma boa massa de docente que tenha essa visão.
O SPM15, de forma implícita, culpa a universidade por não ter selecionado
professores com perfil humanista e tecnicamente capacitados, ao afirmar: neste momento
muito aquém do ideal talvez por causa disso. Porque a gente
ainda não tem uma boa massa
174
de docente que tenha essa visão”; para ele, a universidade deverá ter a responsabilidade de
selecionar professores que atendam às necessidades sociais. A opinião do SPM15 é reforçada
por Costa (2007), ao afirmar a necessidade de mudanças na prática docente da educação
médica, dizendo:
[...] se mudanças efetivas no papel do professor de Medicina são desejadas, deve-se
pensar com a clareza que oportunize a geração de propostas concretas, que passam
obrigatoriamente pela incorporação institucional do desenvolvimenteo pedagógico
permanente dos docentes da área da saúde (COSTA, 2007, p. 28).
Gorini (1999, p. 71) considera um grande desafio, não somente para os professores da
área da saúde mas para todos, “refletir sobre as razões que levam os indivíduos a destituírem-
se dos valores que fazem parte da essência humana” e acredita que a sociedade deva se
preocupar em “preparar bem os educadores em todos os níveis”.
Pessini (2002, p. 56) assegura que, ainda na atualidade, as escolas médicas “em geral,
têm a graduação baseada no famoso relatório Flexner, datado de 1912, que fundamenta o
ensino da Medicina com uma visão biocêntrica/tecnocêntrica. [...] Tal modelo resulta numa
visão reducionista da pessoa como um todo”. Costa (2007) reconhece a necessidade de
mudanças na docência no ensino médico e, através de uma extensa revisão bibliográfica,
identificou fatores que dificultam as mudanças na prática. A autora afirma:
[...] a prática docente tem-se mostrado resistente a modificações [...] [devido] a
desvalorização das atividades de ensino e a supremacia da pesquisa, a falta de
identidade profissional docente, a deficiência na formação pedagógica do professor
de Medicina, a resistência docente a mudanças e o individualismo dos professores
universitários (COSTA, 2007, p. 22).
Percebo nas formulações apresentadas que os sujeitos reforçam a importância do
professor na formação ético-moral do discente. Jr. (2002, p. 49) coloca que “o educador
médico mantém compromissos pessoais, morais e sociais que lhe geram responsabilidades
técnicas e éticas. Aqui sublinha-se o caráter essencialmente altruísta, de solidariedade, de
ajuda e de proteção que deve estar presente em toda relação pedagógica e em toda conduta”.
Embora o autor tenha direcionado seu enfoque ao educador do curso de medicina, considero
este perfil também válido para o professor do curso de enfermagem.
4.3.4 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “não
RD109 - SPE2 [...] para o professor não pode passar despercebido em relação à oportunidade que ele
tem de formar o aluno. Um formar em relação ao conhecimento e formar em relação à ética [...] é da
postura do profissional, é da relação entre os profissionais da equipe, da equipe de trabalho, o respeito
para com todos
, do... ascensorista [...] da equipe toda que [...], quer dizer é a postura deste profissional,
deste aluno, do professor, enfim de todos, em qualquer local, este é o aspecto, [...] é todo um... é um
manancial de oportunidades que o professor tem de, dentro deste conhecimento, inserir aspectos
175
éticos. [...] Pela nossa postura, pelo nosso exemplo, pela nossa conduta, pelo nosso trabalho, somos
todas Enfermeiras [...].
RD110 - SPM9 [...] a gente vai acabar respeitando as pessoas, ou seja, não precisa ter uma aula sobre
os princípios, sabe, é muito mais, que vem o papel do professor, tutor ou facilitador, criando uma
metodologia ativa, e o essencial é respeitar as pessoas, então, como é que ensina ética, assim, eu acho
que está centrado exatamente nisso. [...] A postura do professor sem dúvida disso. [...] grande parte do
nosso curso não é de aulas teóricas, [...] meu objetivo ali? É levar os alunos a aprender desde a
entrevista, até o contato com o doente. E nesse sentido o que a gente mais ensina é exatamente a
postura, a empatia, e assim por diante.
As formulações acima reforçam o efeito de sentido o docente: referência para a
formação ético-moral dos discentes”, ao valorizar a ética em todo o processo de ensino-
aprendizagem entre o docente e o discente. Ao enunciar: “o professor não pode passar
despercebido em relação à oportunidade que ele tem de formar o aluno. Um formar em
relação ao conhecimento e formar em relação à ética [...] é todo um... é um manancial de
oportunidades que o professor tem de, dentro deste conhecimento, inserir aspectos éticos”; o
SPE2 utiliza a negação para reforçar a afirmação implícita da importância do professor na
formação do aluno em todos os aspectos, tanto em relação ao conhecimento [quanto] à
ética”, aproveitando todas as “oportunidades [...] [para] inserir aspectos éticos”.
A posição do SPM9 ao dizer: é levar os alunos a aprender desde a entrevista, até o
contato com o doente”, indica o efeito de sentido de que a ética passa pela presença efetiva
em todas as etapas do ensino médico, portanto a ética não se ensina teoricamente, mas sim por
meio da postura e empatia. Ao negar a necessidade de aulas teóricas e específicas para o
ensino ético, o professor valoriza a prática, por meio da qual o professor, através de sua
postura profissional ética frente ao paciente, passa a ser referência, tornando-se o “espelho”,
para seu aluno.
RD111 - SPE7 [...] Nós deixamos de lado as questões que não são éticas, as futilidades, nós seguimos
esse ideal nosso, que é de passar para o aluno, essa visão boa de curso. [...] tu não sabe mais se aquilo
é ético ou não é. [...] eu não sei mais se o que eu estou falando pra mim, é a verdade ou é mentira. E,
nós temos um compromisso ético com os alunos de mostrar pra eles isso. [...] não posso assinar em
baixo, por algo que eu acredito e tenho convicção que não é correto, que não é ético. [...] se eu
permitir que o aluno cole em sala de aula, e eu estou vendo e não me incomodo com isso, eu não
estou no lugar certo, tenho obrigação de orientá-los e mostrar para eles, porque se não ele acaba
acreditando que aquilo que ele está fazendo não é problema. E é um problema, ético [...].
RD112 - SPM15 [...] A nossa escola não tem uma disciplina de ética, mas ela tem vários conteúdos
de ética durante todo o processo da formação, [...] existe uma disciplina [...] ética deontologia [...]
essa disciplina trata mais [...] da medicina legal. Não é uma disciplina de ética e deontologia. É a
disciplina é de medicina legal, mas que, hã... mas, que contempla também que hã... tem conteúdos
mais, hã... específicos, né? ... mais pontuais, sobre a ética do relacionamento médico com os seus
pacientes, com os seus pares. Neste hospital especificamente esse é um assunto bastante importante, é
considerado bastante importante. [...] fica muito claro para o aluno o que se espera que seja atingido no
176
final daquele estágio [...] o aluno chega, se diz: [...] eu espero que tu consigas atingir ao final do teu
estágio são estes itens aqui, que tu saibas fazer essas habilidades, que tu tenha esse conhecimento, e
que tu tenha essa atitude. [...] nós temos uma relação muito próxima.
A posição do SPE7 indica a ética da honestidade nas provas: não colar, para se formar
“sabendo” os conteúdos. A formação profissional acadêmica passa por mostrar que tem
conhecimento. O SPM15 aponta que a ética está também no professor “abrir o jogo” ao aluno,
comunicando-lhe o que se espera dele.
Os professores destacam a importância da vivência prática entre professor-aluno, pois
esta permite que ambos fiquem juntos frente aos acontecimentos do mundo da vida,
oportunizando, através da interação, não somente o ensino-aprendizado do conhecimento
técnico-científico como também a formação ético-moral, tendo como pano de fundo sempre o
exemplo do professor. Júnior (2002, p. 60) reforça a importância do professor, tanto para
ensinar ao aluno como desempenhar seu papel na sociedade, quanto para ensinar o
procedimento técnico que possibilitará a construção da autonomia pessoal deste aluno.
Segundo os sujeitos-professores, tanto na enfermagem quanto na medicina, devido às
características destes cursos, os alunos aprendem na prática o conteúdo teórico, nos mais
diversos cenários, oportunizando ao professor desenvolver uma metodologia ativa com
inserção de aspectos éticos, estimulando a formação ético-moral juntamente com a formação
técnica. Júnior (2002), ao refletir especificamente sobre a ética do professor de medicina,
enfatiza a importância da relação professor-aluno para o processo ensino-aprendizagem;
considero suas afirmações também válidas para o professor de enfermagem. Vejam o que diz
o autor:
A interação professor-aluno desenvolve-se com numerosos aspectos cognitivos e
afetivos, técnicos e éticos, econômicos, culturais e políticos tão imbricados, que sua
separação, [...] pode se mostrar impossível (além de indesejável). Trata-se de uma
interação tecno-profissional e intersubjetiva [...] [que] não se resume ao ensino e à
aprendizagem de alguns procedimentos técnicos envolvidos na tarefa de ensinar e
aprender. Em geral, a relação professor-aluno se desenvolve com significação
afetiva mais ou menos intensa [...] (SÁ JÚNIOR, 2002, p. 52).
Selecionei dois recortes discursivos onde os professores descrevem suas vivências,
mostrando como estimulam na prática os discentes a refletirem sobre condutas éticas.
RD113 - SPE7 [...] tive quatro trabalhos quase idênticos [...] aproveitei a situação e fui educativa
pra eles. Ético né? E eu disse, [...] vocês não estão sendo éticos, nem com o colega, nem com vocês, e
nem comigo. E não vão ser bons profissionais, não é essa pessoa que nós da saúde precisamos. [...]
imagino, que consegui, avançar um pouquinho talvez, na questão ética com eles né? Aah... há
professoras, muitas que pegam o trabalho e nem lêem, né?[...] E aí nós
, que exemplo nós estamos
dando como professores, né? Então, às vezes são pequenas coisas que considero super importante pra
você, ajudar a formar os alunos, a ser diferente, ser mais ético quando ele se formar, né? [...] no
177
momento que esses colegas não valorizam isso, e nós não nos incomodarmos com isso, né? Aah, eu
acho que a gente não tá sendo ética, né? [...] são tudo adolescente [...] não dei nota para eles [...] que a
gente consiga cada vez, passar pra eles as questões éticas, que são fundamentais, que se eles não
seguem essa linha mestre, pra chegarem nas coisas, o pisando em cima dos outros, não conseguindo
conquistas com o fracasso do outro, eles não vão conseguir ser pessoas felizes, porque, eu vejo, que a
enfermagem, ela é uma roda que gira o tempo todo.
RD114 - SPE 13 [...] eles sempre perguntam, qual seria o conceito de ética para nunca esquecerem ao
longo do curso e qual é o autor? Eu digo: não sei qual é o autor que deu essa frase, mas quando
perguntaram para mim se eu não queria esquecer do assunto ética, não pra decorar, mas para o
princípio de vida e trabalho, é que ética é fazer bem, se ele se lembrasse e se, em algumas vezes,
confundisse o que estava fazendo se era ético ou não, se eles perguntassem: aquilo é fazer bem? Se a
resposta era sim é uma questão ética, se a resposta é não, então não era ético [...] eu aprendi que
ficava melhor para desenvolver este assunto, provocando, muitas vezes, então [...] chego na aula e faço
uma simulação com eles [...] um exemplo bem dramático, digamos assim, que mexe com os costumes
das pessoas: [...] eu coloco na situação do Brasil, [...] uma colega chega pra outra colega muito amiga,
puxa pra um canto, e diz que veio do interior, está no primeiro semestre de enfermagem, recém se
acostumando com a cidade e não tem muitas condições financeiras e este detalhe, está grávida; como a
colega trabalha no hospital, como técnica de enfermagem, ela tem acesso a alguns comprimidos
importantes abortivos, que ela poderia ajudar a conseguir esses comprimidos para provocar o aborto,
pois ela não tem condições. eu pergunto para ela: o que ela acharia? Eu não deixo ela responder,
para não constrangê-la, mas digo que naquela turma, nesta situação, provavelmente teriam pessoas
que ajudariam a pessoa a fazer o aborto, porque acreditam que a mulher tem essa independência, [...]
como também tem aquelas pessoas, que por aspecto religiosos, culturais que nunca ajudariam, mas
que não importava nenhuma idéia, aí, nem eu daria, porém no Brasil isto é proibido, isso é ilegal,
portanto não é ético, porque a legalidade também se atua junto com a questão ética [...].
O SPE13, ao dizer: no Brasil isto é proibido, isso é ilegal, portanto não é ético,
porque a legalidade também se atua junto com a questão ética”, adere ao sentido, que deve
ser do conhecimento de todos, de que a ética passa pelo cumprimento da legislação mais
ampla da área da saúde; esse conhecimento faz parte da formação do profissional e até do
cidadão. O nãoé uma marca que assinala o que não é ético”, não se pode fazer, sob pena
de se estar em desacordo com a lei, como é afirmado em: porque a legalidade também atua
junto com a questão ética”, em síntese.
Os professores, fazendo estas simples reflexões em sala de aula, estão preparando os
alicerces para os alunos enfrentarem dilemas éticos maiores, os quais serão vivenciados na
prática profissional diária. Essas reflexões ajudam a formar profissionais da saúde com perfil
crítico, reflexivo e pautado em princípios éticos, estimulando:
[...] o abandono das concepções antigas e herméticas das grades (prisões) curriculares,
de atuarem, muitas vezes, como meros instrumentos de transmissão de conhecimento e
informação, e garantir uma sólida formação básica, preparando o futuro graduado para
enfrentar os desafios das rápidas transformações da sociedade, do mercado de trabalho
e das condições de exercício profissional (BRASIL, 2001, p. 2).
178
4.3.5 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “tem que
RD115 - SPE7 Então, nós temos que mostrar pra eles, alguns preceitos éticos, pra que eles saiam,
aah, melhores do que entraram conosco. [...] ele percebe isso e nós conseguimos passar para eles, com
muita tranqüilidade, com muita seriedade, essas questões éticas.[...] Então assim, qual é o meu papel?
É de uma mãe; é de uma mãe que mostra limites. Mas então, dentro desses limites, estão, creio eu,
entender, hã, muitas questões éticas, né? Aah, e nós temos que mostrar pro aluno que ele tem que
seguir um norte, né? Que norte é esse? É o norte da ética, né? [...] Então tem que seguir essa linha,
essa premissa que eu acho. E aí, as questões éticas tão muito gritantes nessa minha linha ética. [...]
não adianta ser teórico, muito está na prática, você tem que ser eu mesma no discurso e o mesmo na
atuação. Eu acho que a gente até ensina muito mais no dia-a-dia, na situação que acontece lá no campo
de estágio, nas situações que acontecem e que nos pegam de surpresa, e como reagir com isso?[...] Eu
sou a mesma que eu saio de casa, deixo meu filho no colégio, e sou a mesma que busco no colégio e
volto à chefia, e tentar mostrar que a gente tem fraquezas, que a gente está, não está bem naquele dia e
um tem que respeitar isso no outro.
Neste recorte discursivo a ética aparece no sentido de ser autêntico, honesto, humano,
confiante de que as boas intenções serão compreendidas no trabalho e na vida. O aluno tem
que seguir um norte”, ou seja, ser ético é ser “correto”, dentro desses limites na sua atuação.
O SPE7, ao usar o pronome pessoal na primeira pessoa do plural nós”, produz efeito
de que sua fala está representando o pensamento de todo o grupo de professores ao qual
pertence (Neves, 2001), significando que todos têm responsabilidade de formar profissionais
com princípios éticos. A professora, ao assumir o papel de “mãe”, mostra outra identidade,
atravessada por múltiplas vozes e heterogênea, revelando a alteridade constitutiva do sujeito
(CORACINI, 2003). Adoto o entendimento de Coracini (2003, p. 198) sobre identidade, “no
sentido de processo identitário, [...] processo complexo e heterogêneo, do qual é possível
capturar momentos de identificação”. Percebo que o SPE7 passa a assumir uma posição que
não deveria ser sua; contudo, a professora, ao perceber que o discente chega à universidade
sem um referencial de valores e regras, assume o “papel de mãe” pela necessidade premente
de impor limites, necessária para a formação psíquica do sujeito e para sua convivência com o
outro (SANTOS, BARBOSA, 2007). Segundo Santos e Barbosa (2007, p. 32), os jovens
encontram-se atualmente sem limites porque “os pais enfrentam o dilema de até que ponto dar
liberdade aos filhos, até que ponto limitá-los; em que medida ser permissivo num mundo em
que se valoriza o relativismo, a flexibilidade, a expansão cada vez maior de possibilidades”. O
SPE7, ao dizer nós temos que mostrar pro aluno que ele tem que seguir um norte, né? Que
norte é esse? É o norte da ética, né? [...] Então tem que seguir essa linha, essa premissa que
eu acho”, enfatiza a direção que o aluno deve seguir para se tornar um profissional com
formação compatível. Observei neste recorte o mesmo fenômeno identificado por Coracini
(2003, p. 245) ao estudar a identidade do professor de português; a autora constatou, entre
várias imagens idealizadas pelo professor, a de “herói, batalhador, sempre disposto a salvar o
179
aluno [...] atribuindo-se a função de modificador de destinos”. Ao finalizar a fala, o SPE7 diz:
essa premissa que eu acho”; identifiquei, da mesma forma que Coracini (2003, p. 246), que
ao usar a primeira pessoa do singular o professor denuncia, identificando-se “com a figura
heróica e, ao mesmo tempo, humana, que enfrenta dificuldades, sem, no entanto, abandonar
os seus ideais”. O “efeito de ser profissional polivalente” foi apontado no discurso das
professoras pesquisadas por Castilho (2005, p. 145), as quais enfatizam a multiplicidade de
papéis que ser professor requer.
Reforçando a significação produzida em outras formulações discursivas analisadas
anteriormente, onde os sujeitos mostram-se conscientizados quanto à importância da prática
refletir a teoria, o SPE7 enuncia: não adianta ser teórico, muito está na prática, você tem
que ser eu mesma no discurso, e o mesmo na atuação. [...] Eu sou a mesma que eu saio de
casa, deixo meu filho no colégio, e sou a mesma que busco no colégio e volto à chefia”.
Percebo o dizer do sujeito-professor atravessado por inúmeros fios discursivos, onde ecoam o
pensamento de Freire (1996, p. 48), ao afirmar: “o meu discurso sobre a Teoria deve ser o
exemplo concreto, prático, da teoria”.
Finalizo a apresentação dos recortes com a associação entre as marcas lingüístico-
discursivas “ética” e tem que” com uma formulação onde um sujeito-professor relata que, na
universidade onde trabalha, o acadêmico recebe um “manual” ao entrar no curso de medicina,
denominado “código do estudante”, elaborado com base nas experiências de outras
universidades que têm graduação em medicina, apresentando princípios éticos que o estudante
de medicina deve seguir; vejam o recorte:
RD116 - SPM15 [...] a partir do momento da entrada do acadêmico [...] recebe informações a
respeito da ética de estudante de medicina. Existe um código [...] de ética do estudante de medicina;
foi feito baseado em experiência de outras academias, né? e o aluno [...] deve seguir princípios éticos,
como estudantes, que são muito parecidos com aqueles que ele vai cumprir, depois: do sigilo, do
respeito, da relação com os colegas. Essa... esse é o primeiro contato.
Acredito que fornecer manual de princípios éticos ao estudante, na chegada à
universidade, seja um diferencial deste curso de medicina onde o sujeito-professor trabalha.
Destaco: chamar a atenção e despertar o interesse do acadêmico sobre a ética desde o início
do curso é importante, porém reitero nada adiantar a teoria se a prática for diferente, como os
próprios sujeitos desta pesquisa enfatizaram; portanto, considero essencial a referência do
professor para a formação ético-moral dos discentes.
180
4.3.6 A produção de sentido na interface entre Habermas e Pêcheux
Revisando a interpretação e análise dos recortes discursivos, constatei uma rede de
significados entrelaçados que produziram o efeito de sentido o docente: referência para a
formação ético-moral dos discentes”. Buscando sempre relacionar o intradiscurso ao
interdiscurso, constatei vozes do discurso da saúde que circula nos meios acadêmicos atuais,
textualizado nas Diretrizes Curriculares, ecoando no discurso do sujeito-professor com um
aparente sentido de unicidade e homogeneidade; este tipo de efeito é denominado por
Indursky (1997, p. 242) de monologismo. A autora explica que este efeito surge quando
diversos discursos, afetados pela mesma formação discursiva, reduzem os discursos a um
“único, fictício, que é dado como consensual para simular uma homogeinidade e uma
unicidade inexistente”; a homogeneidade pretendida é ilusória, pois a voz do sujeito do
discurso sempre ocultará vozes que vem do interdiscurso.
A submissão acrítica dos profissionais da área da saúde ao discurso instituído na
saúde, aparecendo como monologismo, deve se considerar a questão da colonização do
mundo da vida pelo sistema com sua racionalidade instrumental meio-fim que é neutra
eticamente. Os sujeitos-professores ao se referirem aos alunos como eles a quem devem
treinar, ensinar, advertir eticamente, produzem o efeito de fora para dentro, no estilo educação
bancária e não como uma comunidade moral de mestres e alunos que devem minorar o
sofrimento do paciente.
Eckert-Hoff (2003a, p. 271) lembra muito bem: a pós-modernidade ou pós-
estruturalismo abandonou a visão cartesiana e logocêntrica do sujeito “racional, centrado,
controlador de seus discursos e do discurso do outro” em busca de uma verdade absoluta e da
totalização, passando a:
[...] um sujeito descentrado, que se constitui de pequenos fragmentos, fragmentos
esses que formam um aparente tecido homogêneo que, na verdade, é constituído de
pequenas unidades fraturadas, esfaceladas, fragmentadas, o que evidencia a
heterogeneidade que o constitui. E, por ser heterogêneo, a autonomia do sujeito é
uma ilusão, pois ele não é dono absoluto de seu dizer, [...] já que as palavras são
sempre, [...] as palavras do outro (ECKERT-HORR, 2003a, p. 271).
Pêcheux (2002, p. 44) posiciona-se em relação ao “estruturalismo”, considerando-o
um movimento intelectual surgido na França nos anos 60 “em torno da lingüística, da
antropologia, da filosofia, da política e da psicanálise [...] como tentativa anti-positivista
visando levar em conta este tipo de real, sobre o qual o pensamento vem dar, no
entrecruzamento da linguagem e da história”.
Considerei este sujeito-professor descentrado, dividido, atravessado pelo inconsciente
181
e inserido em uma conjuntura sócio-histórica-ideológica cuja voz é constituída de um
conjunto de vozes sociais, tentando compreender sua constituição heterogênea e seu discurso
imerso no emaranhado de vozes que se entrecruzam e se confundem.
No gesto de interpretação realizado, constatei na sua voz um “dizer” e “fazer”
fortemente marcado pelas Diretrizes Curriculares. Percebi comprometimento do sujeito na
formação ético-moral do discente, embora os deslizes mostrem que este comprometimento
não é de todo o corpo docente. Em alguns recortes discursivos, emergiram da memória do
dizer dos professores os fatores que dificultam a formação ético-moral do discente, como a
ausência da família na formação de valores dos filhos, a imaturidade e a falta de limites dos
jovens ao ingressam na universidade. Também emergiu o sentido de que as profissões, em
estudo, demandam compromissos com os pacientes para além das técnicas: uma prática
humanitária.
Ecoa fortemente no discurso a importância do professor como espelho na formação
ético-moral do aluno, produzindo o sentido onde o docente deverá ser a referência dos
discentes. Vejo este efeito de sentido emergido extremamente importante, uma vez que
Habermas (204, p. 320) considera que “as estruturas da personalidade, [...], nascem de
processos de socialização que equipam as jovens gerações com a faculdade de orientar-se de
maneira autônoma num mundo tão complexo” como é a sociedade contemporânea.
Um processo de socialização muito valorizado pelos sujeitos-professores foi o ensino-
aprendizagem desenvolvido na prática, pois permite uma aproximação maior entre professor-
aluno, propiciando ao aluno sua identificação com o exemplo do professor, a partir de sua
postura de atuação, no “falar”, no “fazer” e no “ser”. Os professores transformam as vivências
do mundo da vida, tanto em sala de aula quanto no estágio, em oportunidades para despertar e
estimular a reflexão dos alunos sobre aspectos éticos; situações vivenciadas entre professor-
alunos, tais como cola, plágio, trabalho em grupo, entrevista com paciente, contato com o
sistema de saúde e outros, além de desenvolverem a capacidade intelectual do discente,
estimulam seu pensar, o conduzem à realidade e também atendem as determinações das
Diretrizes Curriculares.
A análise dos recortes discursivos guiados pela marca discursiva tem queevidenciou
o dever, tanto do docente quanto do discente, conforme o movimento do jogo discursivo;
vejam os recortes dos deveres do docente e do discente, apontados pelos sujeitos:
a) do docente: tem que ter paciência para ouvir, tem que seguir uma linha, tem
que deixar coisas boas, tem que amadurecer, tem que crescer como pessoa,
tem que ter uma visão de aproveitar os momentos, tem que dar um jeito de
182
arrumar um encanto, a formação do profissional tem que ser o melhor possível,
porque tem um pedaço meu e esse pedaço tem que ser muito bem construído, tem
que impor limite e dar testemunho”, tem que ser autêntico, “postura e
comportamento tem que ser único, tem que avançar e evoluir, tem que ser uma
coisa trabalhada desde que o professor é escolhido para ser professor, temos que
mostrar para eles [alunos] alguns preceitos éticos, temos que mostrar para o
aluno que ele tem que seguir um norte, tem que seguir essa linha, tem que ser
eu mesma no discurso e na atuação” e tem que respeitar o outro”;
b) do discente: tem que aprender”, tem que responder pelas coisas que faz, tem
que aprender a perder, tem que começar a fazer escolhas, tem que pensar,
tem que entender a realidade”, tem que começar”, tem que falar, tem que
calar quando o colega fala, tem que vir na frente tem que apresentar tem que
preparar, tem que botar o autor para ser honestoe tem que trabalhar com o
principio ético”.
Muitos professores dos cursos de graduação de enfermagem e medicina ingressaram
na docência pela sua capacidade técnico-científica reconhecida; porém, a maioria não tem
formação pedagógica específica. Por isto, creio que muitos deles não tiveram a oportunidade
de ler “Pedagogia da Autonomia”, um dos livros mais vendidos de Paulo Freire (1996), onde
o autor apresenta um conjunto de saberes necessários à prática educativa do cotidiano, em sala
de aula e fora dela, do professor desde a educação fundamental até a pós-graduação. Isto
posto, concordo com Freire: 1) “não docência sem discência”; 2) “ensinar não é transferir
conhecimento”; e 3) o “ensinar é uma especificidade humana” (FREIRE, 1996, p. 7-8). Para o
exercício desta proposta pedagógica, “fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria
autonomia do educando”, é necessário que o sujeito-professor se assuma como sujeito sócio-
histórico-cultural e, sem abrir mão do rigor de sua competência técnico-científica, conheça os
“elementos constitutivos da compreensão da prática docente enquanto dimensão social da
formação humana” (OLIVEIRA, 1996, p. 10-11).
Freire (1996) aponta os elementos necessários para o professor promover uma
formação profissional ética e humana; ao fazer a análise do discurso emergido, percebi alguns
elementos apontados por Freire também presentes no discurso dos sujeitos-professores desta
pesquisa. A seguir, apresento os elementos indicados por Freire (1996) e, ao mesmo tempo,
destaco em negrito aqueles que apareceram no discurso analisado.
Partindo do primeiro pressuposto “não há docência sem discência”, Freire (1996, p. 7)
afirma que ensinar exige: a) rigorosidade metódica”; b) “pesquisa”; c) respeito aos
183
saberes dos educandos”; d) “criticidade”; e) “estética e ética”; f) “corporeificação das
palavras pelo exemplo”; g) “risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação”; h) reflexão crítica sobre a prática”; e i) “reconhecimento e a assunção da
identidade cultural”.
Ao afirmar que “ensinar não é transferir conhecimento”, Freire (1996, p. 7-8) explica
que ensinar exige: a) “consciência do inacabado”; b) “reconhecimento de ser condicionado”;
c) “respeito à autonomia do ser do educando”; d) “bom senso”; e) “humildade, tolerância e
luta em defesa dos direitos dos educadores”; f) apreensão da realidade”; g) “alegria e
esperança”; h) “convicção que a mudança é possível”; e i) “curiosidade”.
E ao explanar “ensinar é uma especificidade humana”, Freire (1996, p. 8) diz que
ensinar exige: a) segurança e competência profissional e generosidade”; b)
comprometimento”; c) compreender que a educação é uma forma de intervenção no
mundo”; d) liberdade e autoridade”; e) tomada consciente de decisões”; f) “saber
escutar”; g) “reconhecer que a educação é ideológica”; h) disponibilidade de diálogo”; e i)
querer bem os educandos”.
Evidencio nesta análise que, embora os sujeitos-professores pesquisados não tivessem
formação pedagógica, vários elementos surgiram e somados produziram o efeito de sentido “o
docente: referência para a formação ético-moral dos discentes”. Gorini (1999, p. 70),
refletindo sobre a educação e ética na área da saúde, pressupõe “que os profissionais da área
da saúde, independente da formação profissional, tenham na trajetória de sua vida uma boa
formação de caráter moral, para que possam desenvolver um comportamento ético livre e
consciente”. Costa (2007, p. 27) afirma que para a educação “um dos itens considerados
básicos é a formação dos professores, visto que precisam de uma visão global da profissão
docente e não apenas de sua especialidade”.
Este efeito de sentido, produzido na análise do corpus, não emergiu no estudo piloto,
nem mesmo com significado similar. Cabe destacar que os sujeitos-professores reconhecem a
falta de compromisso com a formação ético-moral por parte de alguns colegas professores.
Finalizo trazendo um aspecto reconhecido por Freire (1996), o qual considero muito
importante, e que emergiu nesta análise quando o SPM9 afirmou: o professor ser um modelo
positivo para seus alunos “não é fácil, isso aí não é fácil”!
4.4 JUSTIFICAÇÃO MORAL: DETERMINAÇÕES PELO SISTEMA
O processo argumentativo do sujeito-professor buscou a justificação moral relativa aos
184
problemas de formação ética do discente através do efeito de sentido “determinações pelo
sistema”, os quais influenciam a formação universitária na área da saúde, onde o sistema ecoa
como um conjunto de interesses econômicos, políticos e sociais.
Durante a entrevista ao sujeito-professor, a pergunta realizada sobre o Programa
Nacional da Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) permitiu levantar vários
aspectos importantes na formação moral e ética do discente da área da saúde, produzindo o
efeito de sentido apresentado e comentado no decorrer deste item.
Parti do mesmo pressuposto que Eckert-Hoff (2003b, p. 291) na sua pesquisa,
acreditando que o sujeito-professor, ao enunciar, “tece discursos e, para tanto, mobiliza a
memória discursiva, produzindo uma mexida, um deslocamento na rede de filiações sócio-
históricas e ideológicas de identificação [...], e o faz, ainda que inconscientemente, com
palavras já-ditas”.
A seguir apresento recortes de seqüências discursivas selecionadas, conforme marcas
lingüísticas definidas, onde o sistema político-econômico-social aparece, de forma implícita,
influenciando e modificando o sujeito durante a formação e determinando sua postura
profissional.
4.4.1 Recortes Discursivos com a marca lingüística “ética(o)
RD117 - SPM9 [...] Eu acho que a portaria nesse sentido é necessária, em algumas áreas da assistência
à saúde, ela é até mais necessária. O que eu acho que se a gente for avaliar, por exemplo, essa questão
das relações humanas e éticas na área da saúde, a gente vai encontrar em algumas áreas mais
problemas do que em outras, exatamente onde a medicina e a saúde são mais técnicas, precisam menos
das relações humanas. [...] o pessoal passa batido [...] desde a visão ética da instituição, até a ação,
propriamente dita, a construção dos próprios sistemas, e a atenção docente e discente, [...] isso tem
uma distribuição diferente. Eu acho que nós temos problemas especialmente mais nessas áreas onde se
exige menos das relações humanas, assim. É onde mais freqüentemente acontecem os conflitos.[...]
Anestesias, CTI, quando está trocando o plantão, aí tu vê “bah, aquele cara do 1002 continua ali, hein?
continua reclamando de dor”. Mas o cara não tem nome? [...] então, isso aí, é a realidade.
RD118 - SPE12 [...] acho que a universidade também em função de várias questões, porque é privada,
o número de alunos já esta extrapolando a capacidade, [...] acho esta questão humanizado, humanizada
ainda e juntar a questão da ética ela está faltando [...] ética a questão humanizada, então está faltando
um pouco.
RD119 - SPE13 [...] existem muitas questões e princípios éticos envolvidos na relação de poder, na
relação do trabalho, nas relações conceituais [...].
Na percepção do SPM9, em algumas áreas da saúde onde predomina a tecnologia
existem mais problemas de relações humanas e ética, e para o SPE13 existem muitas
questões e princípios éticos envolvidos na relação de poder, na relação do trabalho, nas
relações conceituais
; estas percepções têm explicações sócio-históricas que passo a expor.
185
Martins (2003), ao fazer uma crítica sociológica das práticas médicas modernas, discutiu os
vários modelos médicos existentes e, de forma muito interessante, enfocou a ambigüidade
existente no modelo médico adotado; diz o autor:
Cada modelo médico integra, em princípio, todos os elementos paradoxais da ação
social (espontaneidade x obrigação e interesse x desinteresse), misturando a dádiva a
informações socioprofissionais. Cada um desses elementos do paradoxo, tomado
individualmente, tende a exercer, porém, uma pressão específica no movimento de
institucionalização sócio-histórica. Assim, se o valor dominante é o interesse,
certamente o sistema de cura recebe clara influência do mercado de bens e serviços,
influindo no modelo dico, como é o caso atual do capitalismo biotécnico. [...]
[Entre os] modelos médicos modernos, [...] aparece [...] o sistema de cura
bioorgânico como sendo legitimador de modelos médicos que se inspiram seja na
Ciência, seja no mercado, seja no Estado (MARTINS, 2003, p. 97).
Para o mesmo autor, os avanços tecnológicos decorrentes da pesquisa científica e
acadêmica influenciaram a medicina a partir da segunda metade do século XIX, beneficiando
o sistema de cura biomédico cartesiano e fazendo que:
[...] a clínica biocartesiana, apoiada num dispositivo disciplinar bastante sólido
(legislação específica, estruturas hospitalares, universidades, recursos públicos etc.),
fund[asse] uma ideologia da eficiência médica e científica nesses dois séculos,
responsável pela enunciação da aparente superioridade do sistema de cura
bioorgânico sobre os demais sistemas de cura. Essa superioridade seria justificada
por se apoiar numa razão instrumental e tecnológica [...] (MARTINS, 2003, p. 116).
A clínica médica passou a ser valorizada como instrumento de interesse público e,
impulsionada pelas inovações técnicas e dos medicamentos, oficializou a Medicina Moderna
como “difusora de um conhecimento estritamente técnico da doença” (MARTINS, 2003, p.
100). O século XX consagra o modelo de gestão da saúde da sociedade medicalizada, e a
partir da segunda metade do século a medicina entra no capitalismo médico especulativo”,
reforçando o desenvolvimento da tecnociência e redirecionando as instituições médicas em
favor dos interesses econômicos privados, provocando “uma crise importante do campo
médico como um todo, o qual se abriu em duas direções opostas: uma atraída pela
tecnificação e, a outra, pela reumanização das práticas médicas” (MARTINS, 2003, p. 117).
Portanto, o contexto histórico propiciou que algumas áreas e alguns profissionais, como por
exemplo a pediatria e a saúde comunitária, fossem modificadas, passando a adotar uma
postura mais humanizada no atendimento aos pacientes e seus familiares.
O enunciado do SPE12, “acho que a universidade também em função de várias
questões, [...] esta questão [...] ética a questão humanizada, [...] está faltando um pouco”, é
confirmado por Rego e Koifman (2007, p. 202); ao refletirem sobre o desafio da educação
médica para o século XXI, afirmam que as universidades ainda estão presas aos currículos do
início do século XX, formando profissionais que repetem as formas inadequadas,
186
apresentando “pouca capacidade de cuidar de pessoas e coletivos”.
4.4.2 Recortes Discursivos com a marca lingüística “não
RD120 - SPM5 [...] as pessoas ficam muito frias ao longo da profissão [...] e, eu vejo, com freqüência,
médicos que não dão a mínima, não médicos, pessoal da área da saúde, que não se sensibiliza com
o sofrimento do outro que está ali. Eles tratam aquilo ali como se fosse um...qualquer coisa. E não tem
a sensibilidade pra ver que são pessoas.
RD121 - SPE7 [...] E quando eles [referindo-se aos alunos] começam a ver valores, e começam ver a
discussão, eles se dão conta disso, porque até então eles não pararam, eles não são atentos. [...] sobre a
saúde, então, quando começo a falar para esses novinhos lá, [...] quem é que leu aquela manchete. Ah
eu não li. [...]. Mas como que tu não leu, se vocês o da saúde, [...] nem lêem, outros nem abrem o
jornal. [...] eles ficam na frente daquelas bobageira de televisão, é o orkut da vida, é nisso que eles
perdem o tempo, e não conseguem avançar. Quando, eu mostrei erros de português que fizeram na
prova [...], eles ficaram apavorados. [...] eles não sabem escrever uma palavra corretamente, é porque
eles não lêem. E aí, amanhã você está na ponta, você vai discutir no round, uma situação de um
paciente, você não vai poder discutir, porque você não tem argumento. Não tem leitura, tu não tem
preparo para isso.[...] porque não vai poder discutir, porque eles não têm base anterior. A preocupação
deles foi passar no mínimo [...] independente de eu ir tirando seis ou dez, ele passa.
O SPM5 utiliza o pronome “eles” para referir-se aos profissionais da área da saúde, e o
SPE7, com o mesmo pronome, marca a posição dos discentes. A marca discursiva não
produz efeito de discordância do sujeito-professor em relação à posição de frieza dos
profissionais da saúde para com o sofrimento do outro, no enunciado: médicos que não dão
a mínima, nãomédicos, pessoal da área da saúde, que não se sensibiliza com o sofrimento
do outro [...] E não tem a sensibilidade pra ver que são pessoas” (SPM5); e também efeito de
despreparo dos alunos, ao dizer: nem lêem, outros nem abrem o jornal. [...] não sabem
escrever uma palavra corretamente, é porque eles não lêem”. Nos RD a seguir, aparece a
influência do sistema modificando os acadêmicos e os profissionais da saúde, conforme
enunciam o SPM6 e o SPE14.
RD122 - SPM6 [...] eu acho que o aluno entra com um tipo de perspectiva mais humanística, e no
final do curso a gente que o tecnicismo, a alta tecnologia, o aparato, quem sabe devido ao cenário
ao qual ele atua, então um cenário mais complexo com alta tecnologia, que põem né? Ah... faz com
que ele perca um pouco isso [...] os alunos do oitavo semestre são alunos que [...] já, foram totalmente
quase absorvidos pelo sistema [...] na primeira disciplina [...] os alunos estão ingressando no curso,
[...] eles têm uma vivência em outros cenários. Então basicamente postos de saúde, [...] que tenham o
programa saúde família [...] constitui o primeiro passo [...]. Então este aluno que vai para estes postos,
[...] eles demonstram, pelo relatório, que eles têm um sentimento mais de entendimento, do que é [...]
ser médico. os alunos do oitavo semestre, com estágio [no hospital] [...] eles estão muito centrados
mais no conteúdo e não na forma [...].
RD123 - SPE14 [...] o que acontece depois que eles se formam, acho que muito poucos conseguem
ser críticos, eu acho que
acabam se adequando ao que tem, é assim que eu vejo. Poucos que ainda
conseguem se propor a alguma coisa nova. [...] Eu acho que é mais fácil eles se acomodarem, cair no
sistema [...] Não digo que se arriscarem, porque têm alguns que ficam ali, resistindo, querendo fazer a
187
diferença, mas é muito mais fácil caírem no sistema. Porque assim, [...] acaba fazendo que é
valorizado do sistema, então, se está na unidade o que se prioriza na unidade, o que o sistema
prioriza é atender aquela demanda [...].
Nos dois recortes apresentados, a marca discursiva nãoproduz efeitos do sistema
vigente determinando o comportamento do acadêmico e dos profissionais da área da saúde. O
SPM5 ao dizer: o aluno entra com um tipo de perspectiva mais humanística, e no final do
curso a gente vê que o tecnicismo, a alta tecnologia, o aparato, quem sabe devido ao cenário
ao qual ele atua, [...] faz com que ele perca um pouco isso [...] os alunos do oitavo semestre,
[...] estão muito centrados mais no conteúdo e não na forma”, produz o efeito de mudança do
acadêmico, o qual pode perder a perspectiva humanística ao avançar no curso e defrontar-se
com práticas de cunho mecanicista: o cenário ao qual ele atua, então um cenário mais
complexo com alta tecnologia, [...] faz com que ele perca um pouco isso”. O SPE14 manifesta
o sentido de ser mais fácil se acomodar ao sistema do que opor-se ao mesmo, dizendo que os
profissionais da saúde acabam se adequando ao que tem [...] Poucos que ainda conseguem
se propor a alguma coisa nova. [...] é mais fácil eles se acomodarem, cair no sistema [...]
Não digo que se arriscarem, [...] mas é muito mais fácil caírem no sistema”.
Percebo que as atuais condições sociais e políticas, caracterizadas pela égide do capital
financeiro e a revolução tecnológica (XAVIER, 1997), produzem o efeito de sentido de poder
do sistema influenciando o discente e o profissional a adotar postura despersonalizada e fria.
Para compreender este efeito de sentido é necessário lançar novamente o olhar nos aspectos
históricos e sócio-ideológicos como pano de fundo da produção do material lingüístico.
No item 1.7 desta pesquisa, apresentei de forma breve o contexto histórico social da
medicina, complementando agora com outros fatos históricos relevantes para esta
compreensão. Embora a medicina tenha surgido com Hipócrates, esta passou a ser associada
ao hospital somente milênios após, vinculando o poder econômico-político-social como
determinante dos rumos da saúde. Foucault (1979) afirma que o hospital foi medicalizado e a
medicina seguiu o modelo hospitalar apenas a partir do século XVIII; ele diz:
Se os hospitais militares e marítimos tornaram-se o modelo, o ponto de partida da
reorganização hospitalar, é porque as regulamentações econômicas tornaram-se mais
rigorosas no mercantilismo, como também porque o preço dos homens tornou-se
cada vez mais elevado. É nessa época que a formação do indivíduo, sua capacidade,
suas aptidões passam a ter um preço para a sociedade (FOUCAULT, 1979, p. 104).
O Brasil, no século XX, implementou o modelo de ensino médico fundamentado pelos
princípios resultantes da publicação do Relatório Flexner, o qual provocou transformações no
ensino da medicina nos EUA, tornando-o mais rígido e privilegiando a formação científica de
188
alto nível, com o estudo do corpo humano segundo órgãos e sistemas e estimulando as
especializações profissionais, acreditando ser possível o entendimento do homem pelo estudo
das partes (REGO, 2003). Influenciado pelo modelo Flexner e avanço industrial, o Brasil
direcionou a saúde da população, a partir de 1950, ao modelo hospitalocêntrico, tornando a
medicina mais técnico-científica e centrada no tratamento curativo hospitalar, com perda
gradativa do atendimento humanizado. Este aspecto histórico internalizado circula na
memória do dizer dos profissionais da saúde, repercutindo até a atualidade, conforme RD
abaixo, quando o SPM10 justifica a criação da PNHAH.
RD124 - SPM10 [...] nós não conseguimos atingir tão bem os objetivos [da formação] como
gostaríamos, mais não por um erro interno [da universidade], mais sim pelo meio em que se vive.[...]
Se a gente olhar a história da medicina, eu acho que no final da década de oitenta e a década de
noventa, foram os anos os quais mais se valorizou a especialização, o aprimoramento técnico, que a
medicina mais cresceu nesse aspecto. No final da cada de noventa começou a haver um
reconhecimento, não somente no Brasil, mas em todo o mundo de que esse não era o único caminho,
que este caminho era extremamente importante, mais que se não fosse feito com humanização da
medicina, isso não ia ter um final feliz. [...] A enfermagem está com isso [...], com muita força nesta
década e no final da década de noventa. Eu creio que essa portaria [...] ela que vem de acordo com o
desejo de uma, dos funcionários da área da saúde que notaram que não tavam num caminho certo, se
aprimorando só no aspecto técnico e começou a ser desviada.
Nesta formulação o funcionamento do não marca a posição de incapacidade de
alcançar os objetivos da formação designada como humanística na saúde devido ao sistema
vigente. Fernandes (2005, p. 58), reforça a importância de inscrever a posição dos sujeitos no
momento histórico-social onde foi produzido o discurso, isto porque, “as alterações político-
ideológicas nos discursos decorrem da mudança de sujeitos em cena, ou da transformação dos
sujeitos na linha do tempo, o que implica mudanças no espaço social”. Atualmente, tanto a
medicina como atividade profissional quanto a docência médica encontram-se em franca
decomposição institucional, resultante do:
[...] desequilíbrio decorrente do presente enfraquecimento político-ideológico das
forças laborais frente aos interesses do capital. Simultaneamente, enfraquece-se o
componente hipocrático da relação interpessoal de ajuda baseada na amizade e na
solidariedade, que resulta do individualismo utilitarista e imediatista que absorve a
cultura ocidental e influi em todas as condutas. O que sucede primariamente na
clínica, mas se reflete no ensino da Medicina. A supervalorização dos aspectos
técnicos e econômicos da atividade médica é uma conseqüência natural dessa
situação (SÁ JÚNIOR, 2002, p. 50).
Santana et al. (2005, p. 8) reconhecem que, em pleno século XXI, a formação dos
profissionais da saúde continua priorizando o conhecimento técnico em detrimento do
conhecimento sociovalorativo, acompanhando a lógica capitalista do mundo ocidental; o
homem transformou-se em uma coisa”, onde seu verdadeiro valor passou a ser o produto de
189
seu trabalho. Por isto, quando não produz mais lucro, torna-se descartável como uma
máquina; assim sendo, a educação vigente acaba refletindo este processo. Ainda as mesmas
autoras afirmam que tanto os processos de formação quanto as práticas profissionais em saúde
estão comprometidos “com muitos tipos de interesse, exceto os dos usuários”. O cenário
desenhado pelas autoras citadas emergiu nas seqüências discursivas dos sujeitos-professores a
seguir, ao serem perguntados sobre a PNHAH.
RD125 - SPE8 [...] os profissionais da saúde, [...] são muito tecnicista, muito tecnicista [...] hoje
qualquer coisa tem um equipamento que vai dar uma resposta [...] é muito tecnicista [...] o cliente é um
objeto de trabalho, é simples um objeto de trabalho e se ele não se comporta do jeito que tu [quer][...]
a gente não faz mais nada [...]
.
RD126 - SPE12 [...] questão da técnica, cada vez mais técnica, esquece a questão da pessoa dentro de
si, precisa de coisas humanas, [...] porque é um país capitalista e tudo envolve dinheiro, [...] os
hospitais públicos são deficientes e sobre as regras profissionais muitas vezes abandonam essa questão
de humanização com os pacientes [...] muitas pessoas não se envolvem no trabalho; trabalha e acabou
ali, terminou o plantão foi embora e acabou [...] acho que faz parte da cultura, porque a cultura é
uma cultura curativa. [...] a gente não sabe trabalhar com pessoa sadia, a gente sabe trabalhar com
pessoa doente e quanto mais doente para nós, melhor, porque a gente explora, mexe tudo, e
esquece que é uma pessoa [...] esqueceram dessa questão que é um ser humano, não é só um doente é
um ser humano que precisa, além da medicina científica outras questões [...] questão de humanização
também de respeitar o cidadão, as pessoas [...] todo sistema que está posto que é um sistema de
tecnicista [...].
Ritow (2007, p. 13), ao estudar a formação do médico no século XXI, fundamentada
nas concepções habermasianas sob a ótica do mundo sistêmico, destaca a Modernidade como
grande marco das transformações societárias e avanços científico-tecnológicos
“proporcionados pela ciência, sob a égide da razão instrumental voltados ao desenvolvimento,
evocados pelo capitalismo”, influenciando diretamente a formação médica com tendências
tecnicistas. O sistema capitalista passa a valorizar o mercado como grande força que rege o
mundo; perderam-se os grandes ideais unificadores, tais como Deus, a natureza, a razão, que
davam sentido à história e à ação humana, e prioriza-se o poder econômico (XAVIER, 1997).
No mundo globalizado, porém desigual, verifica-se o abismo econômico e cultural existente
entre as classes e as nações.
As escolas médicas ainda mostram-se mais interessadas em ensinar técnicas do que
ética (BRAIBANT, 1996); se o tecnicismo ainda é sentido fortemente no sistema de saúde,
torna-se necessário olhar a formação dos profissionais da saúde; o SPM15 ao falar sobre a
PNHAH aborda esse tema.
RD127 - SPM15 [...] essa portaria, obrigando, entre muitas aspas, obrigando as instituições a fornecer
[...] uma assistência mais humanizada, numa certa forma ela também está trazendo o assunto
190
humanização para os professores, porque se um professor começa
a docência
com essa idéia, ele vai
com esta idéia até o fim, mas infelizmente, nós temos na nossa
instituição muitos professores que são
tecnicistas. Eles são antigos, eu não estou dizendo que não sou, eu estou dizendo que o nosso corpo
docente é antigo [...] Houve uma época na medicina em que a tecnologia começou a resolver
problemas. Então nessa época começaram as especializações, as
superespecializações
e a tecnologia.
Então nós temos professores que... eles podem ser criticados, mas não 100% criticados: eles se
formaram nessa cultura, que não adianta tu ser um bom médico, humano, humanista,
humanicista,
se tu
não consegue resolver o problema de saúde do paciente.
A dupla negação eu não estou dizendo que não sou funciona como afirmação; o
sujeito-professor se inclui no grupo de professores docentes antigos. A hesitação do sujeito
mostra seu processo de reflexão; ele parece não concordar com as teorizações que classificam
o trabalho dos profissionais da saúde ou como tecnicista ou como humanicista”, apontando à
necessidade de combinar os dois aspectos.
É interessante lembrar que o tecido do dizer do sujeito-professor está constituído por
uma imbricação de vozes provenientes do exterior (ECKERT-HOFF, 2003b). Acredito que o
SPM15 tenha evocado um dos motivos determinantes da formação tecnicista dos profissionais
da saúde.
RD128 - SPM11 [...] a gente sabe que o sistema de saúde hoje está complicado [...] o grande problema
que nós estamos numa situação de mundo altamente consumista e econômico.[...] mais você sabe o
que move alavanca do mundo é lucro, esse eu acho um grande perigo [...]. O que aconteceu é assim: a
tecnologia, o impulso da fabricação de medicamentos e de equipamentos seduzindo a medicina,
ciência talvez tenha ocupado um espaço maior do que devia, em relação à medicina arte. [...] talvez no
contexto não sei, do atendimento global, o pessoal chegou à conclusão que estava faltando o aspecto
humano, então criaram uma portaria, mas realmente se a gente for ver, a finalidade de exercer
medicina não precisa de portaria nenhuma, precisa a essência do exercício profissional. Mas alguma
coisa deve ter acontecido, talvez não propriamente nos ambientes com que a gente lida, mas no
contexto geral, nacional, não sei, ? [...] isso é uma situação do mundo ocidental, esse afastamento,
seduzido pela tecnologia, agora... quem assume o exercício da medicina não entra nessa.
Provavelmente aconteceu isso. Eu não vejo, sinceramente, uma portaria que manda humanizar o
atendimento de hospital, pelo que eu saiba, ele sempre foi humano!
RD129 - SPE 12 [...] as pessoas estão contra isso que acham que é uma invasão do seu espaço é
aquela relação de poder, eu sei mais do que tu que é paciente fica quieto, [...] a pessoa continua
seguindo regras, talvez para se respaldar se garantir, porque hoje vai fazer processo qualquer coisinha
serve ou talvez dificuldade que não vê, [...], por exemplo, [...] quero que venha meu pai de santo aqui
[...] aqui dentro do hospital não, porque não pode, porque é hospital católico e não sei o que![...] tem
horário, não sei o que, [...] e não foi, foi proibido, é uma coisa a se pensar. pode entrar o padre,
[...] as irmãs, o resto não pode, não pode entrar [...].
No RD do SPM11 percebo o sujeito dividido, manifestando uma opinião conflitante e
contraditória; ao mesmo tempo em que reconhece o sistema econômico dominante, a
existência de problemas no sistema de saúde e o crescente avanço tecnológico substituindo a
medicina arte, o sujeito nega que essa realidade tenha afetado a medicina e o atendimento
191
hospitalar no local onde trabalha. Contrariamente, afirma a necessidade da criação do
PNHAH e nega a desumanização na assistência hospitalar, quando diz: o atendimento de
hospital, [...] sempre foi humano!”. Afirma isso com base na sua experiência, que lhe permitiu
encontrar profissionais que assumem o exercício da medicina; então, saliente: eu não vejo”,
pelo que eu saiba”, ressaltando sua indignação com a portaria.
Entre o dito e o não-dito, o SPE12 produz o efeito de relação de poder entre o pessoal
da área da saúde e o paciente, significando a opressão e o silenciamento do paciente ao
enunciar, reproduzindo falas de um suposto diálogo entre o profissional da saúde e o paciente:
eu sei mais do que tu que é paciente fica quieto [...] quero que venha meu pai de santo aqui
[...] aqui dentro do hospital não, porque não pode, porque é hospital católico e não sei o que!
[...] tem horário, não sei o que, [...] e não foi, foi proibido”. O professor tenta justificar a
relação de opressão estabelecida entre o pessoal da saúde e o paciente com o medo de
processos contra os profissionais da saúde, pois o sistema criou um negócio lucrativo: se o
paciente se sente prejudicado por qualquer motivo, denuncia e abre processo, solicitando
indenização.
RD130 - SPE13
[...]
quando se iniciam algumas mudanças políticas, [...] não tiveram preâmbulos
na área da saúde, tiveram preâmbulos na área da educação, tiveram preâmbulos na área da informação
[...] Nós, na área da enfermagem nunca tivemos tão perto do poder das políticas como agora, [...]
tendo uma enfermeira candidata a Presidente da República [...] de alguma forma em seus discursos
foram colocando no senado, em alguma legislação, e tu vai ler os projetos e participar na área da
saúde, no Ministério da Saúde nas políticas de saúde nunca tiveram tantos conceitos entre a questão
ética, a questão da humanização [...]. Então, política e educação e política de saúde com pessoas que
alguns momentos não estiveram neste poder, mas começaram paulatinamente [...] e hoje essas pessoas
no poder, elas passaram algumas dessas falas no que acreditavam para um discurso de documento que
tem esse preâmbulo. [...] expressam o que por muito tempo, muitas pessoas tinham vontade, mas não
estavam no poder para poder executá-las. [...] a universidade pública nãopor obrigação e por tutela
governamental, parece que discursa mais sobre esse assunto [...] publicamente as universidades na área
de saúde independente da vontade de alguns ou dos professores, isso já faz parte dos preâmbulos do
SUS [...].
RD131 - SPM15 [...] o atendimento na área de saúde foi piorando. Certamente é uma soma de muita
coisa, é uma soma de pressa das pessoas, do profissional, o profissional é mal remunerado, então ele
sai da escola médica com a idéia de fazer uma coisa e depois ele se deturpa: “não, sou mal
remunerado eu preciso ter cinco empregos e eu não posso sentar, conversar e ser cortês com cada um
dos pacientes, porque se não eu não vou dar conta da minha agenda”. Essa é uma coisa. Acho que tem
a contrapartida, também. Assim... a qualidade do serviço que é oferecido pela instituição, pelo SUS,
pelo gestor, seja pra quem for, também foi se reduzindo, os locais de trabalho foram ficando ruins, a
resolutividade das situações foram ficando piores, assim... da maneira como as coisas foram se
conduzindo, em primeiro atendimento do médico com o paciente, ele está num local que às vezes ele
não consegue resolver o problema do paciente. E aí, o que acontece, ele encaminha para adiante.
Então criou-se o encaminhamento do um para o dois, o dois para o três e cada um rapidamente; eu
acho que não pode ser culpado a academia, não pode ser culpado o médico e nem culpado o gestor
individualmente. É uma conjunção de coisas. [...] essa portaria não vai resolver; não vai tornar o
atendimento mais humanizado [...] a portaria, acho que tem um papel importante, mas sozinho ela não
192
vai resolver nada.
De acordo com o RD130 em análise, o SPE13 faz referência às condições de produção
e circulação do discurso sobre a humanização e a ética na saúde, asseverando que essas
eram praticadas, surgindo agora oficialmente, como discurso legal. Mostra-se ciente do modo
como se processa a autoria do documento legal, na instância oficial ampla, aludindo a pessoas
que agora estão tendo a oportunidade de manifestar suas posições, participando da elaboração
do documento, como uma ação política. Os comportamentos de mudança, atribuídos à ação
dos dispositivos legais, reafirmam o efeito de sentido de que o poder político permeia todas as
áreas do conhecimento, como é dito: não tiveram preâmbulos na área da saúde, tiveram
preâmbulos na área da educação, tiveram preâmbulos na área da informação”. Fica
implícito que não é na saúde a interferência proposta, e que sabe muito bem em que
consiste um documento assim, como funciona, qual o seu alcance no contexto sobre o qual
pretende incidir. O sujeito mostra-se de acordo com o lançamento da proposta legal, que não o
surpreende, que vem ao encontro das necessidades da maioria da população. Ressalta que a
universidade pública é diretamente ligada ao poder público, e por isso mais facilmente
capturadas pelo discurso político vigente. Ao dizer parece que discursa mais sobre esse
assunto”, enfatiza que esse assunto” – ética, humanização - é hoje em dia mais presente, mas
não é novidade. Com isso, se situa como profissional experiente na área e suas políticas.
O SPM15, de forma implícita na sua enunciação, justifica os problemas existentes na
área da saúde pelo contexto histórico social econômico-político determinante das mudanças
na medicina,comentadas anteriormente, eximindo culpados pela situação, pois segundo ele
os problemas ocorrem devido a uma conjunção de coisas”. Encerra sua fala, negando que
essa política resolver algo: ela não vai resolver nada”. Castilho (2005, p.146) identificou
no discurso das professoras o “efeito de atribuir culpa ao outro”, quando estas culparam o
sistema, as políticas educacionais, a sociedade, diante de problemas apontados que são da
ordem da formação e do exercício profissional do professor; similar ao efeito produzido pelo
sujeito-professor ao atribuir a uma conjunção de coisas os problemas existentes na
educação dos profissionais da saúde e no sistema de saúde.
4.4.3 Recortes Discursivos com a marca lingüística “tem que”
RD132 - SPE3 [...] tem o programa do acolhimento, se tem o programa de reorientação curricular,
que diz que o acadêmico tem que perto da pessoa, do usuário, e aprender a tratar um bom
atendimento. Então, eu acho que isso [...] está vindo na academia de cima pra baixo, está vindo de
maneira, assim, bom a academia pra formar bons profissionais deve ter nos seus conteúdos isto, isto,
isto, isto, isto. Isto não está sendo um processo de reflexão interna dos docentes, de quem está ali. Eu
acho que está vindo [...]. Quer dizer, tem uma lei, está vindo uma coisa de cima para baixo, dizendo
193
que a mulher na hora do parto tem que ter alguém junto. Então, eu vejo que a formação desses
profissionais, parte desse material acadêmico, vamos dizer, está sendo em texto, porque a própria
academia não consegue formar, visualizar esse produto, como é que ele está... fazer a reflexão.
Reflexão pessoal, o pessoal que eu digo, são os detentores legais, vamos dizer assim, de saber, né? Tão
dizendo, como é que tem que ser a formação. Por que nós, não temos conseguido imprimir. Mas ainda
temos professores na crítica, que, dizem que o profissional vai ser melhor formado ou o, pelo
número de procedimentos que ele faz. [...] E, e, e onde é que está, a, onde é que, cadê a reflexão desse
grupo interno? Muito sério!
RD133 - SPM15 Então em primeiro lugar eu tenho que poder tirar ele [paciente] dessa doença. [...]
Claro que o professor que está sendo professor vinte anos assim, é muito difícil chegar pra ele e
dizer: “não, agora o senhor vai ter que fazer diferente, o senhor vai ter que fazer um atendimento
menos tecnicista e mais humano”. É difícil mexer nisso aí.
O SPE3, ao manifestar sua opinião sobre o PNHAH, aponta o sistema político e social
como responsável em determinar o tipo de formação dos profissionais da saúde, justificando a
criação deste programa pela incapacidade espontânea dos formadores de realização da
transformação social necessária, exigindo um posicionamento político e a criação da portaria,
obrigando os docentes e as instituições a sua adequação. O SPE3 argumenta ser a criação da
portaria decorrente da falta de questionamento e de reflexão dos docentes e da universidade,
encontrando reforço, e complementando, no RD do SPM15; este, ao constatar que muitos
professores do corpo docente tiveram uma formação tecnicista e por isto agem desta forma,
pode estar assinalando um dos motivos pelos quais mesmo com formação tecnicista (e este é o
caso da maioria dos entrevistados, que atuam profissionalmente mais tempo do que a
data de vigência da portaria) essa dominância deixa brechas, não é total, “anda junto” com
outras práticas que poderiam ser designadas como não-tecnicistas.
Nos recortes discursivos apresentados a seguir, as marcas discursivas não e tem
que encontram-se interligadas produzindo sentido, pois os sujeitos, ao relatarem que algo
não” está sendo feito, reforçam a importância de “tem que” ser realizado; vejam os RD:
RD134 - SPE7 [...] não dependente onde nós vamos atender o nosso usuário, se é na rede hospitalar
ou, nível secundário, ou no primário [...] se você não atende bem o paciente na básica, obviamente ele
vem para o nível mais complexo que é o nível terciário. Então, isso é uma rede, é uma rede
organizada, e que tem que funcionar, e onde não funciona mais, porque o há um interesse em
nossos governantes que isso funcione mais. Por incrível que pareça.
RD135 - SPE12 [...] a cultura da técnica está muito forte na universidade, muito, muito forte mesmo,
acho que [...] tem que andar junto, e essa visão não está bem equilibrada; ainda acho que é muito bom
se trabalhar a questão da técnica, mas acho ainda que essa questão da humanização acho que está
faltando dentro da universidade.
Os sujeitos, ao utilizarem a marca lingüística tem que nos enunciados, transmitem o
sentido de dever; o SPE7, ao entender o sistema de saúde como uma rede organizada, e que
194
tem que funcionar, e onde não funciona mais, porque não há um interesse em nossos
governantes que isso funcione mais”, transfere a responsabilidade ao poder público,
reforçando o envolvimento político com a saúde da sociedade; o SPE12, em seu discurso,
denuncia que a cultura da técnica está muito forte na universidade, muito, muito forte
mesmo”, para marcar a sua posição como contrária à posição denunciada, qual seja: a técnica
e a humanização
tem que andar junto, e essa visão não está bem equilibrada”. Assim,
reforça o pensamento de muitos autores, trazidos nesta pesquisa, os quais apontam como o
melhor caminho a ser seguido para a formação dos profissionais da saúde a união da formação
técnica à humanística. Ristow (2007, p. 144) afirma que o “o grande impasse é o
estabelecimento de um ponto de equilíbrio entre a exacerbação do poder, da economia, da
técnica e da ciência em detrimento do humano”.
No RD do SP7, o enunciador exprime sua posição de indignação frente ao despreparo
dos jovens discentes e futuros profissionais da saúde que, pela total alienação dos problemas
sociais, acabam contribuindo e reforçando o sistema, também responsável por envolver os
profissionais da saúde no atendimento do dia-a-dia, conforme enunciam o SPE8 e SPE12 nos
recortes a seguir
RD136 - SPE8 [...] a gente ouve dos próprios funcionários de enfermagem, enfermeiros [...] SUS, eles
têm que agradecer que conseguiram um leito e uma internação [...] e eu pergunto, mas porque ele
tem esse tipo de olhar e esse tipo de colocação, [...] ela vai chegar naquele leito, tem uma pessoa
igual a ele, um ser humano igual a ela, que tem todas as necessidades, todas dificuldades está rodeada,
está, num ambiente estranho com doença, não sabe se vai viver ou morrer, rodeada de pessoas
estranhas [...] o que tu espera desta assistência, então o que me entristece disso aqui é que [...] um
Ministério [...] tem que ter manifesto [dizendo que] tem que enxergar o cliente como um ser humano,
isso é o que mais me dói, porque isso na formação de um profissional da saúde, tem que ser os
valores, muitos princípios e não uma portaria que me diga que tenho que enxergar um ser humano
igual a mim como ser humano [...] eu acredito que a portaria, [...] ela veio justamente para quebrar este
paradigma do tecnicismo e dizer: epa, atrás desse objeto de trabalho esta uma questão [...] porque
cliente, cliente tem direito, [...] este cliente é uma pessoa igual à gente, então eu fico triste porque não
precisaria da portaria se todo o profissional da saúde tivesse esta consciência, mas como não tem, que
seja por uma portaria [...].
RD137 - SPE 12 [...] mas a gente impõe, a gente impõe horário, horário de banho, horário de tudo,
tudo, tudo, mas esquecem que tem que tomar banho em tal horário é essa, esse mecanicismo, [...],
continuam achando que o corpo é uma máquina que tem que ter horário [...].
Os dois professores mostram que os profissionais de enfermagem estão assujeitados
pelo sistema. O SPE8 ao enunciar, não uma portaria que me diga que tenho que enxergar
um ser humano igual a mim como ser humano”,
assume uma posição contrária à portaria
imposta, marcada pelo não; continuando o fio do discurso o sujeito diz: a gente ouve dos
próprios funcionários de enfermagem, enfermeiros [...] SUS, eles têm que agradecer que
195
conseguiram um leito e uma internação”, ao enunciar “eles têm que”, o SPE8 está se
referindo “aos pacientes”, e ao dizer agradecer que conseguiram um leito e uma
internação”, produz o efeito que deveriam agradecer ao sistema por conseguirem se internar
no hospital “sem pagar”. Rapoport (1997, p. 1) discute a escassez dos recursos nos hospitais
afirmando que, mesmo com dificuldades e escassez de recursos, o princípio ético da atuação
dos profissionais deve ser preservado. O autor estimula a valorização dos pacientes, técnicos e
afirma: “bom atendimento e respeito mútuo devem conviver com investimentos planejados,
os quais, em sua concepção, devem respeitar a individualidade do ser humano”.
O SPE12, ao enunciar tem que tomar banho em tal horário”, está se referindo à
equipe de enfermagem, a qual impõe horário para o paciente tomar banho e, ao dizer
continuam achando que o corpo é uma máquina que tem que ter horário”, explica a atitude
dos profissionais com o fato de enxergarem o paciente como uma máquina”. A
sistematização de rotinas é uma tecnologia. Ambos os sujeitos-professores, entre o dito e o
não-dito, encontram na justificação moral as determinações do sistema influenciando o pensar
e o agir dos profissionais de enfermagem.
Historicamente, a utilização de pobres em hospitais de ensino como objeto de
aprendizagem prática é justificada pela troca por uma assistência supostamente de alta
qualidade (REGO, 2003), com todos os recursos necessários e atendimento de profissionais
altamente qualificados. O intradiscurso do SPE8 encontra eco na afirmação de Rego (2003, p.
35), quando diz existirem ainda hoje estudantes de Medicina [...] médicos e estudantes [...]
tentam justificar o fato de desconsiderarem o conforto e a vontade do paciente em nome de
um suposto privilégio que os pacientes estariam tendo em serem por eles atendidos”.
4.4.4 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “não
RD138 - SPM4 [...] está por abrir, inclusive abriu, né? Inclusive os professores, os médicos da
universidade se colocaram contra a abertura de mais um curso [de medicina], né? E aí, esse curso é
aberto dentro da cidade deles, no qual os professores eram os médicos; como é que vai chegar isso aí?
Segundo a ética, tem mais faculdades de medicina no Brasil, do que nos Estados Unidos. [...] mais um
curso, uma formação de pessoas, talvez, alguns competentes e outros não, né? É complicado.
Nesta formula discursiva, o SPM4 questiona a questão ética ao referir-se ao
acontecimento recente da abertura de uma escola de medicina em uma cidade do interior do
Rio Grande do Sul. Percebo, por meio desse enunciado os conflitos políticos econômicos
entrelaçados aos fatores históricos e ideológicos, geradores de um grave problema existente
no Brasil atualmente, onde “a formação de médicos virou business, virou negócio. Por isso
temos essa multiplicação desenfreada de escolas privadas” (BRENTANI, 2007, p.2). O SPM4
196
afirma que o Brasil ultrapassou os EUA em quantitativo de escolas médicas. A história
confirma este dado, tendo registrado 159 escolas médicas no Brasil no início do século XXI,
enquanto países como os EUA tinham 125, a China 150 e a Índia 140; este aumento de
escolas médicas iniciou a partir de 1965; porém, no “início de novo século, lastreado por uma
política inconseqüente do MEC esse número alcançou o topo do ranking mundial” (NASSIF,
2006, p. 1). No RD a marca nãoaparece de modo a negar a competência de alguns cursos
de medicina brasileiros.
Adib Jatene (2007, p. 1) afirma que “as universidades têm autonomia científica,
didática, administrativa”, por isso criam os cursos que querem, muitas vezes sem condições
estruturais e técnicas, repercutindo na formação dos alunos, os quais acabam saindo destas
escolas deficientes sem condições de atender. Segundo Brentani (2007, p. 1), o Ministério de
Educação e Cultura (MEC) autoriza a abertura e o funcionamento de cursos de medicina de
qualidade duvidosa e não fiscaliza adequadamente; em contrapartida, “com ou sem qualidade,
os estudantes pagam, porque querem ser médicos de qualquer jeito”.
Atualmente existe no país um movimento liderado “por entidades como o Conselho
Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Regional
de Medicina de São Paulo (Cremesp)” contra a abertura indiscriminada de cursos de medicina
liberados pelo Ministério de Educação (BRENTANI, 2007, p. 1). Em março de 2007, o Prof.
Dr. Antonio Celso Nunes Nassif, professor da Universidade Federal do Paraná e ex-presidente
da AMB, alertou: naquele momento havia 168 escolas médicas no Brasil, fazendo uma
estimativa de 350 mil médicos no país para o ano de 2.010 (NASSIF, 2007).
O crescimento das escolas médicas no Brasil tem sido desordenado, “decorrente de
pressões políticas locais e/ou interesses particulares, em detrimento de um planejamento
educacional racional” (REGO, 2003, p. 29). Desde a fundação da Escola de Medicina na
Bahia, em 1808 (REGO, 2003; ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA, 2006), inúmeras
escolas foram criadas, principalmente a partir da década de 60, quando, por intensa pressão
política da classe média para expansão das vagas no ensino superior, a legislação foi
flexibilizada, facilitando sua expansão (REGO, 2003). Em 1960 o país já tinha 29 escolas, em
1971 cresceu para 73, em 1992 chegou a 80 e em 2006 totalizavam 168 (NASSIF, 2007).
Somando-se ao “festival de escolas médicas” (NASSIF, 2007, p. 1), muitas aumentaram o
número de vagas nos vestibulares; porém, o mesmo não ocorreu com o número de vagas para
a residência médica que, pela oferta reduzida de vagas, permite acesso a apenas um terço dos
médicos brasileiros, sendo que o restante exerce “a profissão sem ter feito residência”
(BRENTANI, 2007, p. 2).
197
Nassif (2006) desenha o problema da educação médica no cenário atual brasileiro:
[...] faculdades de Medicina criadas de afogadilho, sob critérios políticos
satisfazendo “status” municipais; professores numericamente insuficientes, muitos
deles despreparados didaticamente para atender a essa demanda de ensino, outros,
sequer residindo nas cidades onde se localizam as escolas, criando assim a figura do
professor itinerante e faculdades de fim de semana. A qualidade do ensino caiu
vertiginosamente. As conseqüências foram trágicas e os reflexos todos nós
assistimos nos dias de hoje (NASSIF, 2006, p. 1-2).
Este fenômeno de proliferação das escolas de nível superior foi impulsionado, na
década de 90, pela “política de liberação dos critérios e condições para criação de escolas
médicas no Brasil” (REGO, 2003, p. 29), somada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) Lei 9.394/96, a qual reforçou, no seu artigo 53, a autonomia das universidades,
assegurando a estas a possibilidade de “criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e
programas de educação superior [...]” (BRASIL, 2004, p. 44). Este “surto” de crescimento
quantitativo das escolas de graduação em medicina é semelhante ao que ocorreu também na
enfermagem e em outras áreas do conhecimento.
No RD apresentado a seguir, o SPE13 entende que muitas questões éticas estão
envolvidas na formação profissional, resultantes da relação de poder.
RD139 - SPE13 [...] a questão ética não é de agora, não é assunto de momento, ela vem vindo desde
que o homem foi criado né, as questões de respeito, cultura, de costumes né, com a enfermagem
também, [...] ao longo da história se mostrou muito que esta profissão teve questões éticas envolvidas
no cuidado, envolvidas no poder.
A complexa relação político-econômico-social existente nas políticas públicas no
sistema de saúde brasileiro gera, muitas vezes, problemas éticos na educação e dilemas entre
os professores e profissionais da saúde, abordados nos RD a seguir, onde o SPM9 traz um
conflito circulante na memória do dizer, levantado por Xavier (1997), ao fazer diversos
questionamentos éticos da área da saúde, os quais ficam sem respostas, como: “o que fazer
diante de tendências como a do aumento dos custos das descobertas diagnósticas e
terapêuticas, em relação ao poder aquisitivo dos indivíduos e à capacidade de financiamento
dos estados? Esta pergunta transforma-se em conflito ético pelo SPM9 quando se depara
com uma situação de atuação profissional e de ensino, conforme descreve o RD que segue:
RD140 - SPM9 [...] não é muito simples [...] o próprio sistema de saúde, assim por diante né. Eu diria
assim, por exemplo, a questão da ética do financiamento à saúde, por exemplo, né... é um problema
que nós, profissionais da saúde, acabamos responsáveis por uma diretriz que foi governamental [...]
Então é aquela coisa assim: “ah, mas isso o SUS não remunera” [...] também não é o SUS,
convênios, né? [...]. Esses dias eu
fui dar uma aula [...] no interior, sugeri um fluxograma e tal, e
um colega disse “olha, mas aqui a gente não tem condições de fazer [...], não... o Ministério da Saúde
não paga esse exame, e os convênios daqui também não pagam” [...]. E onde está a ética desse
198
negócio, do médico que não pede o exame tal que tem, porque o sistema não paga, nem o convênio,
nem ninguém, e a gente como profissional que educa, qual é o meu papel ali, é criticar o sistema?
Mas o que eu posso fazer pra ele? Então, isso é importante ver também. [...] por um conjunto de
problemas da prática relacionados exatamente com o que nós estamos discutindo, que é a verdadeira
desumanização da assistência a saúde. Não é assistência médica, é assistência à saúde porque é no
geral.
O SPM9 assume posição de denúncia
18
à falta de ética no funcionamento à saúde;
mostra como funciona, nas práticas institucionais, a relação com os custos dos exames e
procedimentos, pois o sistema não paga”. O dilema ético, sobre o não pagamento de certos
exames pelo Ministério da Saúde e convênios, encontra explicação histórica na intervenção da
medicina pelo Estado que, por razões econômicas e demográficas, passou a se preocupar com
o custo crescente dos encargos de saúde, passando a produzir políticas restritivas e
estabelecendo limitações qualitativas e quantitativas sobre as prescrições e procedimentos
médicos, repercutindo diretamente na atuação médica e acarretando:
[...] violações crescentes ao direito à saúde [...]. Regulamentos éticos, mesmo
freqüentemente dissimulados sob a aparência de regras profissionais, vieram
introduzir várias limitações à liberdade terapêutica do médico. Essas violações ao
direito à saúde são menores nos países desenvolvidos. Ao contrário, os países onde o
desenvolvimento sanitário é limitado, tiveram que aceitar que o direito à saúde se
restrinja somente a um serviço mínimo. Sabe-se, por exemplo, que a Conferência de
Alma Ata aceitou, por necessidade, a idéia de uma medicina econômica, adaptada ao
poder econômico do Estado. [...] pode-se esperar, no futuro, a manutenção ou
mesmo o reforço desta política-traduzida por um controle crescente exercido pelo
Estado sobre a atividade médica (AUPY, 1996, p. 3).
Passaram 12 anos da citação de Aupy e confirmaram-se suas previsões, conforme
apresentado no RD do SPM9, quando diz: “E onde está a ética desse negócio, do médico que
não pede o exame tal que tem, porque o sistema não paga, nem o convênio, nem ninguém, e
a gente como profissional que educa, qual é o meu papel ali, é criticar o sistema?
Infelizmente, esse dilema ético ainda não encontrou resposta, perpetuando-se ao longo da
história e emergindo nos discursos, constituídos por um conjunto de vozes sociais.
A Associação Médica Brasileira (2004, p. 3) também alerta sobre a “complexidade das
relações entre fontes pagadoras e o gerenciamento público e privado na área da saúde”.
Outro aspecto levantado pelo SPE12, quando comenta a PNHAH e aborda a questão
ética na formação universitária, é a descontinuidade e a fragmentação do discente ao se tornar
profissional da saúde e ser absorvido pelo sistema político-econômico-social vigente. O
sujeito-professor diz:
RD141 - SPE12 [...] porque eles [discentes] saem dali [da universidade], tu não acompanha mais,
pouco tu acompanha, e a gente
que muitos que se formam [...], a gente sabe o que acontece fora
18
Frente aos dispositivos legais, Castilho (2005, p. 159) evidenciou, no discurso das professoras, denúncias
frente a certas imposições das legislações.
199
que não são nada éticos e foge daquilo que tu disse, é bem aquele ditado, dentro diz uma coisa e lá
fora fazem outra, então é bem complicado esta questão da ética [...] eu acho que o Ministério esta
tentando rever essa postura curativa. Tentando voltar para uma cultura mais preventiva, de mais
proximidade, esse programa do PSF, [...] também é difícil, porque as pessoas querem estar dentro do
PSF, mas não querem fazer a política do PSF, querem ganhar dinheiro, mas [...] não querem atender
pobre, como eles dizem: “eu quero ficar no meu consultório, eu faço aqui, acabo, dou a receitinha e
vou embora”. Quer, mas não quer, querem dinheiro [...] a gente vivencia bem de perto esse conflito,
[...] a gente faz [...] visitas [as famílias do PSF] sobre a ordem da (universidade) e o pessoal das
unidades não faz. [...] tem PSF e eles não vão, [...] assim, assim, assado, mas também é um erro do
sistema [...] que terceirizou utilizando os funcionários do PSF para cobrir as vagas do pessoal das
Unidades Básicas de Saúde, [...] isso é complicado para quem está no meio da saúde, que poderia tanta
coisa resolver, fora da unidade.
O SPE12, ao dizer assim, assim, assado”, transmite que os profissionais da saúde
contratados para atuar no Programa de Saúde da Família (PSF) justificam vários motivos para
não fazerem as visitas domiciliares às famílias carentes, determinadas pelo PSF; o sujeito-
professor continua o enunciado não culpando os profissionais que trabalham no PSF mas
também o sistema político-econômico por criar este tipo de situação, ao dizer: “mas também é
um erro do sistema [...] que terceirizou utilizando os funcionários do PSF para cobrir as vagas
do pessoal das Unidades Básicas de Saúde”. Portanto, percebo nesta formação discursiva o
sentido do poder do sistema determinando a atuação dos profissionais da saúde. A posição
manifestada reforça a dificuldade de o profissional ser ético se o sistema não suporte.
Separação entre o que a faculdade ensina a ser ético e a realidade, que empurra os ex-
alunos à não-ética.
RD142 - SPM15 [...] se os professores novos não forem trabalhados, eles vão ficar iguais aos antigos,
daqui a pouco vão ser tecnicista; os nossos novos professores eles estão fazendo [...] um doutorado,
que é uma coisa extremamente louvável, mas a gente pergunta: “sobre o que que tu vai fazer?” “Ah, é
uma técnica nova que foi implantada
não sei aonde”. Claro, isso é extremamente sedutor, isso
muito
ibope
. Ser ético, ter uma moral e ser humanista não
ibope
nenhum, não tem charme nenhum.
O que tem charme é salvar uma vida, usar o aparelho do último tipo. SPM15
4.4.5 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “ética” e “tem que
O SPE13, ao ser perguntado sobre a PNHAH, respondeu:
RD143 - SPE13 ela veio [...] de uma hora pra outra eu tinha que ir em reuniões, tem que tentar nesta
questão de humanização,
né?
E nas emergências
super
lotadas,
onde o dilema de conflitos éticos
diários e tem que se humanizar... humanizar era pintar a parede com novas cores, botar novas cadeiras
e uma televisão para os familiares, [...] quando recebi e li, isso é bonito, isso é filosófico, mas foi feito
por pessoas que não conhecem as situações.
Neste recorte de seqüência discursiva acima, o SPE13, discute a questão do PNHAH
questionando o poder político e o tipo de humanização, assumindo posição de dificuldade em
200
pôr na prática um dispositivo legal que não leva em conta a rudeza da realidade. Na visão do
enunciador, a portaria foi imposta aos profissionais da área da saúde e planejada por pessoas
que ignoraram a realidade do sistema de saúde; ao dizer “nas emergências superlotadas, onde
o dilema de conflitos éticos diários e tem que se humanizar... humanizar era pintar a
parede com novas cores, botar novas cadeiras e uma televisão para os familiares”, percebo
que o sentido de humanização escapa, negando os problemas existentes e encontrando uma
maneira de atender a portaria. Para o SPE13, o poder do sistema não ocorre somente na saúde,
mas também em outras áreas, como diz: não tiveram preâmbulos na área da saúde,
tiveram preâmbulos na área da educação, tiveram preâmbulos na área da informação”,
produzindo sentido de poder do sistema ao determinar as normas profissionais em várias áreas
do conhecimento. O sujeito-professor acredita que a criação da PNHAH é a materialização do
desejo de alguns profissionais da área da saúde que alcançaram o poder político, entretanto
afirma que a portaria foi feita “por pessoas que não conhecem as situações”.
RD144 - SPM15 [...] esta portaria é o resultado de uma coisa lastimável. A portaria é uma coisa
lastimável: é impressionante que se precise fazer uma portaria pra dizer que um atendimento tem que
ser qualificado do ponto de vista técnico, de relações
humanas e ética
e moral, é um absurdo. Eu não
sei como é que nós chegamos neste ponto; então, a única coisa que eu posso dizer, é lastimável. Não
deveria existir esta portaria; por que todas essas coisas têm que estar explícitas? [...] está caindo de
maduro, [...] é mesma coisa que dizer... que... as pessoas têm que ser honestas, porque está na lei, tá,
mas nem deveria existir essa lei,
né? E
ntão eu só tenho que lastimar que tenha sido necessário que uma
portaria dessa tenha sido emitida. [...] atendimento mais humanizado, porque é uma coisa que tem que
ser trabalhado da base, talvez nessas três esferas. Vamos melhorar a situação do sistema de saúde,
vamos melhorar a situação nas instituições de saúde, vamos melhorar a situação na academia,
ensinando que as coisas têm que ser assim,
né?
O SPM15, ao materializar na linguagem sua opinião sobre o PNHAH, utiliza-se da
marca lingüística tem que para transmitir o sentido de como deveria ser o atendimento à
saúde e às pessoas; partindo desse ponto, desencadeia uma reflexão sobre a situação
problemática do contexto sócio-político e econômico em que está inserido o sistema de saúde,
justificando a criação da portaria.
Os sujeitos-professores, ao se posicionarem sobre a PNHAH, parecem indignados,
descontentes e inconformados, pela disposição legal emanada do Ministério da Saúde, na
tentativa de provocar mudanças nos profissionais da saúde; conforme enuncia o SPM15: A
portaria é uma coisa lastimável: é impressionante que se precise fazer uma portaria pra dizer
que um atendimento tem que ser qualificado do ponto de vista técnico, de relações humanas e
ética e moral, é um absurdo [...]. Eu
não sei como é que nós chegamos neste ponto; então, a
única coisa que eu posso dizer, é lastimável. Não deveria existir esta portaria; por que todas
201
essas coisas têm que estar explícitas? [...] está caindo de maduro, [...] é mesma coisa que
dizer... que... as pessoas têm que ser honestas, porque está na lei, tá, mas nem deveria existir
essa lei, né? De forma semelhante, o SPE13 mostra-se indignado, afirmando que a PNHAH
veio [...] de uma hora pra outra [...] tem que tentar nesta questão de humanização, né? E
nas emergências superlotadas, onde o dilema de conflitos éticos diários e tem que se
humanizar... [...] quando recebi e li, isso é bonito, isso é filosófico, mas foi feito por pessoas
que não conhecem as situações”. Essa última formulação alude ao sentido de que as leis não
condizem com as realidades, não têm respaldo na prática, mas que a ela se impõe.
Do discurso das professoras pesquisadas por Castilho (2005, p. 144), também surtiu o
efeito de indignação quanto à imposição da lei, de modo semelhante ao que o sujeito-
professor desta pesquisa produz em relação à PNHAH.
Encontrei em Anísio Teixeira (1962) a explicação histórica que me ajudou a
compreender a criação da PNHAH distanciada da realidade prática vivenciada. Teixeira
(1962, p. 62) vislumbrou a distância existente entre os valores proclamados e os valores reais
na tradição brasileira; ele diz que o brasileiro, ao não conseguir alcançar um sistema de
valores almejado, num esforço compensatório declara, “por ato oficial ou legal, a situação
existente como idêntica à ambicionada”. O autor faz uma reconstrução histórica, explicando
por que o Brasil é uma nação de “dupla personalidade, a oficial e a real”, com o “real”
caracterizado por suas peculiaridades e o “oficial” por padrões inexistentes.
Teixeira (1962, p. 59) afirma que os europeus, ao descobrirem a América, anunciaram
que seu propósito era expandir o cristianismo, contudo a realidade era explorar e fazer
fortuna; deste modo, marcada pela duplicidade, “fé e império” e religião e ouro”, os
propósitos reais nunca foram declarados, revestindo as proclamações oficiais com o falso
espírito de cruzada cristã. “Nascemos, assim, divididos entre propósitos reais e propósitos
proclamados. A essa duplicidade dos conquistadores seguiu-se a duplicidade da própria
sociedade [...] dividida entre senhores e escravos, dando assim ao contexto social [...] o
caráter de um anacronismo” (TEIXEIRA, 1962, p. 59).
A independência não nos curou, porém, do velho vício. [...] A lei e o governo não
consistiam em esforços da sociedade para disciplinar uma realidade concreta e que
lentamente se iria modificar. A lei era algo de mágico, capaz de subitamente mudar
a face das coisas. Na realidade, cada uma de nossas leis representava um plano ideal
de perfeição à maneira da utopia platônica. Chegamos, neste ponto, a extremos
inacreditáveis. Leis perfeitas, formulações e definições ideais das instituições, e,
como ponto entre a realidade, por vezes, mesquinha e abjeta, e essas definições
ideais da lei, os atos oficiais declaratórios, revestidos do poder mágico de transfundir
aquela realidade concreta em uma realidade oficial similar à prevista na lei. Tudo
podia metamorfosear por atos do governo! Não havendo correspondência entre o
"oficial" e o "real", podíamos transformar toda a vida por atos oficiais. Como
202
acentuei, tudo isto era possível, graças, primeiro, ao dualismo de colônia e
metrópole e, depois, ao dualismo de "elite" e povo, aquela diminuta e aristocrática,
este numeroso, analfabeto e mudo. Reproduzíamos com esse dualismo nacional a
situação colonial, mantendo a nação no mesmo estado de duplicidade institucional.
(TEIXEIRA, 1962, p. 62-3).
4.4.6 A produção de sentido na interface entre Habermas e Pêcheux
Da interpretação e análise dos recortes discursivos apresentados, constatei o efeito de
sentido de justificação moral: determinações pelo sistema”, relativo aos problemas de
formação ética do discente. Como o sentido não é inerente às palavras e o sujeito ao enunciar
coloca em cena a história e a ideologia, busquei compreender o sentido resgatando fragmentos
históricos e ideológicos do sistema de saúde e da formação dos profissionais da área.
Identifiquei, na materialidade da linguagem das formulações discursivas, a alternância entre o
poder do sistema político, econômico e social influenciando diretamente a formação
universitária e a questão ética.
Acredito que os efeitos de sentidos que emergiram desta pesquisa tecem uma rede sem
fim, explicando vários fenômenos ocorridos na atualidade. O efeito de sentido emergido e
discutido neste item propiciou a discussão de vários aspectos históricos e ideológicos que
complementam os capítulos anteriores e reforçam vários aspectos já discutidos.
No transcorrer da análise constatei que a educação e a atuação dos profissionais da
saúde foram determinadas pelo aspecto histórico evolutivo da medicina, associadas aos
interesses econômicos e políticos de cada época. No discurso dos sujeitos-professores, o
tecnicismo é apontado como um dos grandes responsáveis pelos problemas existentes,
produzindo relações desumanizadas e crise ética; somados a este, se encontram os fortes
interesses econômicos de uma sociedade capitalista, que corrompe o estudante e o profissional
ao se deparar com a realidade do mundo da vida. Habermas ([1993?], p. 49, 69 e 72) explica a
percepção dos sujeitos desta pesquisa a partir de uma reflexão filosófica, sociológica e
histórica, dizendo que “a racionalidade da ciência e da técnica é na sua imanência uma
racionalidade do dispor, uma racionalidade da dominação”; este fenômeno é atual, pois até o
final do século XIX não existia “uma interdependência de ciências e cnica”. Contudo, a
partir deste momento, se impõe “a outra tendência evolutiva que caracteriza o capitalismo
tardio: a cientificação da técnica. [...] Com a investigação industrial de grande estilo, a
ciência, a técnica e a revalorização do capital confluem num único sistema”.
Tanto Pêcheux quanto Habermas reconhecem o assujeitamento do sujeito ao contexto
sócio-histórico ideológico; entretanto, Habermas (2003a, p. 129) uma espécie de restrição,
ao dizer: “Discursos práticos estão sempre sujeitos, que o poder da história se faz valer em
203
face das pretensões e interesses transcendentes da razão”. Para Pêcheux, as contradições da
existência, fazendo parte das condições de produção do discurso, determinam as posições
assumidas pelos sujeitos; entretanto, constitui-se também como uma mola propulsora da
mudança, em cada situação, significada pelo sujeito, está presente um sentido que resulta do
confronto entre o dado e o sentido produzido na enunciação nova. O referencial discursivo
aponta à possibilidade de novo sentido mediante a realização do “gesto de interpretação” pelo
sujeito, que em se filiando ao discurso, o confronta e re-significa, assumindo posição. O
desafio de dizer não ocorre quando a identificação é assumida pelo sujeito. Desse modo ele
não é mero transportador de sentidos alheios, mas produtor de seus próprios sentidos.
Evidenciei que os sujeitos-professores se apropriaram dos sentidos existentes na
memória do dizer, transformando-os no seu intradiscurso, conforme suas condições de
produção. No fio discursivo dos docentes, os jovens discentes aparecem como sujeitos
alienados e carentes de entendimento da realidade, produto de uma sociedade individualista
caracterizada pela égide do capital financeiro. É importante lembrar que no interdiscurso se
entrecruzam vozes provenientes de outros discursos, resultando “um embricamento de outros
textos e discursos, de modo que à multiplicidade de um soma-se a multiplicidade de outros,
num enredar-se sem começo e sem fim” (CORACINI, 2003, p. 18).
Habermas (2004, p. 320) aponta diferenças em vários domínios nos “mundos da vida
modernos”; na cultura, que se articula às “esferas da ciência e da técnica, do direito e da
moral, da arte e da crítica a arte”; e na sociedade, que desenvolve “uma vida própria por
meios de comunicação próprios (dinheiro e poder administrativo)”.
Habermas ([1993?], p. 73) diz que o progresso da ciência e da técnica parece ocorrer
de forma autônoma; porém, afirma serem essas dependentes da “variável mais importante do
sistema, a saber, o crescimento econômico. Cria-se assim uma perspectiva na qual a evolução
do sistema social parece estar determinada pela lógica do progresso técnico-científico”.
No intradiscurso, os sujeitos-professores manifestam preocupações compartilhadas
pelo filósofo e sociólogo Habermas, o qual mostrou, em toda a sua obra, empenho “no sentido
de reforçar a racionalidade do mundo da vida para enfrentar a racionalização burocrática
provocada pelos mecanismos do poder e dinheiro, numa sociedade pós-industrial, em que o
político é assimilado ao econômico”, produzindo fragmentação dos subsistemas funcionais,
provocando perda de sentido e tornando “o mundo da vida intransparente, ameaçado pela
racionalidade meio-fim e vulnerável à dominação ideológica” (MARTINI, 1996, p. 11-12).
Os sujeitos-professores desta pesquisa também apontaram à responsabilidade das
204
universidades, as quais, por meio do seu corpo docente, formado por muitos professores
antigos que tiveram formação tecnicista, ainda priorizam o conhecimento técnico.
Selecionei um recorte do pensamento de Habermas [1993?] com a finalidade de
associar a esta questão emergida, quando ele coloca:
[...] se a técnica brota da ciência, e refiro-me aqui à técnica da influenciação do
comportamento humano [...], então a introdução desta técnica no mundo prático da
vida, a retroacção da disposição técnica de âmbitos particulares na comunicação
entre os sujeitos agentes, exige antes de mais uma reflexão científica. [...] Sem
dúvida, a formação já não se deixa então restringir à dimensão ética da atitude
pessoal; na dimensão política, [...] a iniciação teórica à acção deve resultar de uma
compreensão do mundo explicitada cientificamente (HABERMAS, [1993?], p. 100).
Neste recorte apresentado, Habermas parece reconhecer a importância da técnica como
conseqüência do avanço da ciência, recomendando sua introdução no mundo prático
associado à comunicação e à reflexão científica; para ele, a formação deve proporcionar uma
iniciação teórica direcionada à ação, partindo da compreensão de todas as dimensões do
mundo da vida explicitadas cientificamente. Transpondo o pensamento do filósofo para a área
da saúde, os sujeitos-professores não desconsideram a formação técnica e reconhecem seu
valor para o avanço da ciência, porém acreditam que a formação não deva se restringir a esta.
Conforme a memória do dizer, manifestado no intradiscurso do sujeito-professor, valores
importantes foram perdidos com o passar do tempo, resultantes de múltiplos fatores, piorando
o atendimento à saúde; segundo os sujeitos, torna-se importante associar ao conhecimento
técnico a humanização e a ética.
A marca discursiva tem que”, mais uma vez neste, registrou o forte sentido de dever,
desta vez direcionado ao sistema político como responsável pelo funcionamento dos sistemas
de saúde e educação, os quais muitas vezes não funcionam de forma adequada. Também foi
reforçado o compromisso da universidade em mudar o tipo de formação dos discentes da
saúde, aliando tecnologia, humanização e ética. O discurso mostra os interesses políticos-
econômicos sempre prevalecendo quando aponta o crescimento e proliferação das escolas de
nível superior privadas (impulsionadas pela LDB 96), o falho funcionamento do sistema de
saúde e a fragmentação do discente que, ao se tornar profissional, é absorvido pelo sistema,
que rege toda a sociedade. A teoria de sistemas, elaborada por Habermas (2005, p. 94),
“supõe que todos os domínios da ação social o mantidos coesos através de mecanismos de
controle neutros [...] tais como o dinheiro e o poder administrativo, por conseguinte, num
nível situado abaixo do plano das orientações normativas”, explicando o fenômeno apontado
da proliferação das escolas de nível superior privadas.
Orlandi (2005b, p. 129) reconhece a relação existente entre a textualização das
205
palavras no discurso e o político, pois em “todo dizer confronto do simbólico com o
político: todo dizer tem uma direção significativa determinada pela articulação material dos
signos com as relações de poder”.
Acredito que este efeito de sentido analisado tenha enfatizado o que Pêcheux (1997, p.
143) denomina de “condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de
produção”, relacionando “a teoria das ideologias, a prática de produção dos conhecimentos e
a prática política”. O autor afirma:
Ao falar de “reprodução/transformação”, estamos designando o caráter
intrinsecamente contraditório de todo modo de produção que se baseia numa divisão
em classes, isto é, cujo “princípio é a luta de classes. [...] o que, na área de
ideologia, significa que a luta de classes “passa por” aquilo que L. Althusser chamou
os aparelhos ideológicos de Estado [...] ([evoca] que as ideologias não são feitas de
“idéias” mas de práticas) [...]. Esse verdadeiro ponto de partida, se sabe, não é o
homem, o sujeito, a atividade humana, etc., mas, ainda uma vez as condições
ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção (PÊCHEUX,
1997, 143-144-180).
Cabe aqui destacar: no gesto de interpretação que realizei, para efetivar a análise do
discurso dos sujeitos-professores percebi, por vezes, um certo “rechaço” à criação da
PNHAH, por ter sido esta uma iniciativa do Estado; Habermas (1999, p. 4) reconhece que
“sempre surgem déficits quando o círculo daqueles que tomam parte nas decisões
democráticas não coincide com o círculo daqueles que são afetados por essas decisões”.
Evidenciei a heteronomia e não autonomia coletiva, atribuindo ao sistema uma
responsabilidade pelas omissões e ausência de sensibilidade para o sofrimento do outro;
justificando dessa forma, os sujeitos protegem, a si próprios, da reflexão ético-moral,
mantendo uma neutralidade de posição.
Finalizo trazendo, mais uma vez, a constatação de que a “justificação moral:
determinações pelo sistema” também emergiu no estudo piloto, porém como efeito de sentido
de acomodação dos profissionais ao sistema econômico-político vigente, determinante dos
problemas existentes na saúde e educação.
4.5 A ÉTICA DIALÓGICA PARA O ENFRENTAMENTO DOS DILEMAS MORAIS
A primeira reação manifestada pela maioria dos sujeitos-professores, ao serem
solicitados a indicar algum dilema moral enfrentado com seus acadêmicos, me gerou
estranhamento. Inicialmente a maioria respondeu não me lembro”; insistia novamente na
pergunta, permitindo que o entrevistado refletisse sobre a questão antes de relatá-la. Enfatizo
que todos, após longos ou curtos períodos de silêncio, lembraram de uma ou várias situações,
206
trazendo à discussão nítidos dilemas morais vivenciados. Para Orlandi (2005b, p. 129), “o
silêncio não fala, ele significa. [...] mesmo se o silêncio não fala, enquanto forma significante,
ele tem sua materialidade, sua forma material específica”. Creio que a demora tenha ocorrido
devido ao fato de que, antes de dar um exemplo de dilema moral, foi preciso comparar as
experiências lembradas com o sentido de ética e moral que estava em processo de definição.
A pergunta da entrevista estimulava o relato de um dilema moral, porém percebi que
os sujeitos, nas suas respostas, manifestaram várias formas de silenciamento: o silêncio,
propriamente dito ou o não-dizer; o apagamento da palavra ética; e a palavra moral, pouco
citada no discurso. Ao constatar este fato, decidi substituir a marca lingüístico-discursiva
ética por moral”, para usar como guia dos recortes discursivos a serem analisados. Cabe
relembrar: nesta pesquisa, a maioria dos professores referiu-se à moral e à ética como
sinônimos; contudo, em poucos discursos evidenciei uma sutil diferença que não pretendo
discutir, pois nem mesmo os filósofos chegaram a um consenso.
4.5.1 Recortes Discursivos com a marca lingüística “moral
RD145 - SPE2 [...] o dilema moral, já constituído é o aborto. [...] nós temos que planejar a
reprodução delas [...] já que nós estamos neste assunto, dilema moral e eu falei da ação do evento do
aborto [...] lembro de um TCC [...] páginas e páginas e páginas copiadas exatamente, ? Escritas,
igual a um trabalho anteriormente [...] foi reprovada e foi chamada, foi comunicada da situação, ela
mesmo reconheceu, ela viu que ela cometeu esta falha grave, chorou muito, pediu desculpas [...] e
repetiu a disciplina [...] Ela era formanda [...] eu tenho medo de cometer falhas [...] peço que Deus me
ilumine sempre, para que eu tenha a melhor conduta, a melhor atitude, a melhor palavra [...] fui buscar
a informação mais corretamente possível para que eu não cometesse o erro da, da injustiça [...]
constatei, eu vi que era totalmente seguro tomar aquela atitude porque os dados que eu busquei e que
eu encontrei foram pertinentes e suficientes. Eu cuido muito. Apesar de saber, de saber que ele, [...]
havia cometido esta falha (ahm) eu acho que o ser humano, ele é cometedor de falhas, então com
maior respeito, com segurança, [...] com delicadeza, com respeito até porque comunicar uma situação
dessas mexe completamente com a vida da pessoa, então eu acho que é muito mais educativo chamar
atenção sem abrir mão da decisão é com respeito e dignidade, do que com..., usando outro tipo de
atitudes que não são nada educativas.
RD146 - SPM 10 [...] Então, foi outro momento difícil do ponto de vista moral de tu conversar, essa
questão moral aparece muito da atividade prática, na atividade teórica eu acho que muito ela aparece
na prova. E na prova, nós temos tido o primeiro momento [...] chamar a atenção de explicar [...]
segundo momento, [...] tirar a prova [...] não sei se eu totalmente certo, às vezes eu acho que eu
tinha que tirar a prova na primeira vez, [...] questão da cola do aluno realmente [...].
Ao buscar recortes com as marcas lingüístico-discursivas moral e ética nos
enfrentamentos com dilemas morais, evidenciei o silenciamento das palavras ética e
moral”.
Nos RDs dos sujeitos, percebo na marca lingüístico-discursiva nãoo efeito de “não
errar” ou “evitar o erro” na tomada de decisão, produzindo o sentido de incerteza quando
207
dizem: SPE2 fui buscar a informação mais corretamente possível para que eu não
cometesse o erro da, da injustiça”; SPM 10 não sei se eu totalmente certo”. Do discurso
pesquisado por Castilho (2005, p. 144), no recorte dos “efeitos de sentido sobre formação e o
exercício profissional” das professoras, surgiu, como nesta pesquisa, o “efeito de cautela,
medo de errar”.
Nos dois RDs apresentados anteriormente, evidencio tanto o professor da enfermagem
quanto o da medicina percebendo como dilemas éticos a não-autoria das atividades
acadêmicas pelos discentes; ambos dialogam com o aluno, mostrando o erro e tentando
conscientizá-los, e conforme a gravidade da situação, impõem limites através da punição
(reprovação ou retirar a prova) e ambos mostram-se receosos em estar tomando a atitude
adequada. Santos e Barbosa (2007, p. 32) reforçam a necessidade de educar, orientar e impor
limites nos jovens, e dizem: “diante do paradoxo da necessidade de limites num mundo sem
limites, o caminho apontado é o diálogo e a negociação”; percebo os sujeitos-professores
direcionados a este horizonte.
O SPE2 traz dois dilemas morais que trazem para discussão questões legais no RD: o
aborto e o plágio. O sujeito-professor, ao apontar o “aborto” como dilema moral, tanto nas
pacientes quanto nas alunas, traz para discussão um problema que se insere na área de saúde,
uma questão de preservação da vida. Surge o efeito de sentido de obrigação dos docentes em
abordar o tema do planejamento reprodutivo humano: nós temos que planejar a reprodução
delas
19
”; ao usar a primeira pessoa do plural nósacompanhado da marca temos que”, o
sujeito produz o efeito de abranger o grupo de professores que ministram a mesma disciplina.
O mesmo professor, em referência ao plágio, lembra o Trabalho de Conclusão de Curso de
uma aluna, dizendo: lembro de um TCC [...] páginas e páginas e páginas copiadas
exatamente, né? Escritas, igual a um trabalho anteriormente [...] foi reprovada”; nenhuma
vez o professor menciona a palavra “plágio”, pois esta prática é proibida na prática
acadêmica, e ao ser silenciada remete propriamente à interdição: apagamento de sentidos
possíveis mas proibidos, aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura” (ORLANDI,
2005b, p. 128). Talvez o sujeito, em sua reflexão, tenha considerado “plágio” uma palavra
pesada, indicadora de um crime ocorrido na instituição, e portanto fora do alcance de uma
solução interna, significando um grande dilema com o qual professor e direção se depararam.
O efeito de sentido do dilema moral apontado pelo SPM10 é punir ou não o aluno que
cola; percebo que dilemas provocam uma dualidade entre o “sim” e o “não”, ou seja, “punir”
19
Delas” referindo-se as pacientes e as alunas.
208
ou “não punir”. Reprovar a aluna por ter copiado o trabalho final de curso, e fazê-la atrasar a
formatura, reprovando-a por ter colado, são dilemas próprios da posição do professor no
discurso pedagógico.
Evidenciei de forma acentuada o modalizador eu acho que em ambos os recortes
discursivos apresentados; SPE2 diz: eu acho que o ser humano, ele é cometedor de falhas
[...] então eu acho que é muito mais educativo chamar atenção sem abrir mão da decisão é
com respeito e dignidade”; e o SPM 10 enuncia: “essa questão moral aparece [...] na
atividade teórica eu acho que muito ela aparece na prova. [...] às vezes eu acho que eu tinha
que tirar a prova na primeira vez”. O sujeito-professor pune o aluno que cola, seguindo um
princípio tradicional da escolarização: para passar, é preciso saber e provar o conhecimento.
Mas ter que punir não é fácil, é sofrido. Aplicar punição também é um dilema para o
professor; ser permissivo seria talvez um caminho mais fácil; não quer ser carrasco, por isso,
se apega ao respeito e dignidadepara si, ao decidir punir o aluno, significando esse fato
como “educativo”. Acredito que o modalizador “eu acho que” poderia, conforme pensa
Coracini (2003, p. 206), ser substituído pelo “modalizador ‘talvez’ e o introdutor de opinião
‘eu creio’, que reduzem a responsabilidade do enunciador com relação ao que é dito”. Para
Barbisan et al (1995, p. 81), o caso eu acho quetrata-se do primeiro funcionamento dessa
locução, onde “o sujeito silencia a voz do Outro, impondo um sentido que ele tem como seu,
mas que nada mais é do que a repetição da voz silenciada”.
4.5.2 Recortes Discursivos com a marca lingüística “não
RD147 - SPE2 - SILÊNCIO
[...] não cabe a nós julgarmos as pessoas, tá? Nós somos a favor do
planejamento reprodutivo [...] fazer uma boa anticoncepção e evitarmos uma gravidez de uma jovem
que não está preparada para isso por n motivos. [...] Então não cabe a mim, como profissional julgar
esta pessoa, [...] não é baseado, nestes tipos, neste tipo de comportamento é... moralista. Então, ah... eu
ser moralista frente um, uma, um procedimento de uma adolescente que buscou o aborto como uma
solução, é, seria totalmente inadequado, o que eu devo ser é uma educadora, e planejar que a vida dela
seja muito melhor a partir do momento que eu faço parte desta vida, como acadêmico, como
professora, como orientadora, como amigo, como amiga e não como, né?... uma moralista [...] que nós
vamos obter um resultado melhor, o que ela precisa é um comportamento educativo da minha parte e
este adolescente, muitas vezes, é nosso aluno, porque o nosso aluno é um adolescente que engravida,
que aborta, que reproduz e, até está nas duas situações, ele é acadêmico e um aluno, e na comunidade
nós temos todo esta oportunidade de viver de novo isto aí, né?... com pessoas de nível cio
econômico baixo, médio, alto e todos têm um comportamento semelhante, cada um busca o recurso
que lhe parece mais adequado.
RD148 - SPE3 SILÊNCIO
[...]
me lembrei agora de uma situação. [...] Bastante trágica. Mas que eu
tive que tomar uma postura. Uma das alunas daquela, aquele dia não tinha ido na sala de aula. E eu
recebi o comunicado que ela
tinha sido assassinada naquele dia. E o motivo do assassinato, ela foi
assassinada naquele dia pelo amante. E como ninguém sabia dessa situação, houve uma turbulência
dentro da sala de aula. A preocupão foi: como que ela tinha um amante? E como que aconteceu isso?
209
[...] a preocupação dos alunos: ah, ela nunca disse! E como que, que, que uuuuu, amante matou essa
aluna na frente da filha dela [...]? E , a coisa se gerou uma, uma turbulência muito grande. E eu me
lembro que eu tive que pedir, pros alunos, hã..., ficarem quietos, que nós iríamos, conversar sobre o que
tinha acontecido. Não interessava pra nós, o tipo de vida que aquela aluna tava levando, ela era nossa
colega, ela tava conosco, ela tinha perdido a vida numa situação dramática, ela era uma mãe de família.
? Então, que, eu lembro [...] nós interrompemos a aula, conversamos sobre a situão assim, de uma,
uma, dramática para a família. [...] E que nós, não, nós não poderíamos julgar, assim, a condão dela de
ter ou não ter alguém né? [...] nessa situão, mas que tem uma vida que foi ali interrompida [...]. Eu me
lembro, que a gente conversou muito sobre isso. Algumas colegas, algumas colegas começaram a chorar.
s interrompemos a aula e vimos quem gostaria, eno de acompanhar, de ir pra, [...] capela, que a
gente iria como colega pra fazer, para prestar solidariedade à família [...].
O nãomarca o dilema, funcionando discursivamente para assinalar o confronto de
posições diferentes. Percebo nos recortes discursivos acima marcados pela negação, a
incompletude constitutiva do sujeito-professor que, ao enfrentar situações humanas
problemáticas socialmente condenadas, posicionam-se pelo não-julgamento das pessoas pelas
suas condutas: SPE2 não cabe a nós julgarmos as pessoas, tá? [...] não cabe a mim, como
profissional julgar esta pessoa”; e SPE3
nós, não, nós não poderíamos julgar, assim, a
condição dela de ter ou não ter alguém né?... nessa situação, mas que tem uma vida que foi
ali interrompida”. Diante dos dilemas, a posição representada pelos sujeitos é a não
moralista, ou seja, a educativa. Negam a posição moralista que condena o “aborto” e o
“amante”. Freire (1996) afirma que o professor deve se abrir para a realidade dos alunos com
os quais partilha sua atividade pedagógica, pois ao abrir-se ao mundo e aos outros estabelece
um gesto de relação dialógica. O autor acredita que o docente deve viver em abertura
respeitosa aos outros, aproveitando as oportunidades da realidade concreta para ser referência
pedagógica, juntando o saber teórico ao prático, desenvolvendo reflexão crítica e a razão
ética. Por sermos seres histórico-sociais, nos fazemos seres éticos ao comparar, valorar,
intervir, escolher e decidir. Será uma transgressão se ficarmos longe da ética ou fora dela; por
isso, a prática educativa deve ser um rigoroso testemunho de decência e ética (FREIRE,
1996). Percebo nos recortes discursivos dos SPE2 e SPE3 uma prática educativa totalmente
harmoniosa com o que foi recomendado por Paulo Freire.
Seguem outros relatos de dilemas morais enfrentados pelos professores produzindo o
efeito da ética dialógica:
RD149 - SPE3 [...] ter alunos portadores de HIV, e serem rechaçados, né? Em sala de aula. [...] Um
deles [...] adoeceu, muito grave. Ele era um formando. E gerou nos colegas [...], uma ambivalência de
sentimentos muito grande. Alguns, muito revoltados com ele, porque ele poderia transtornar a
formatura, tá? E outros muito penalizados porque... hã... solidários com a situação dele, se colocar no
lugar. E eu
tava no meio, assim, sentindo que eu tinha que dar a resposta para ambos, né? [...]. No dia
da formatura, antes do ato de formatura, esse menino foi até o local para se formar, e não conseguiria
subir no palco para fazer a, a solenidade; nós nos reunimos, eu e um pastor, tá? Eu pedi ajuda para
210
um pastor, nós nos reunimos com os acadêmicos, e a gente teve um momento de reflexão sobre a
situação onde alguém tava passando por um, por um momento extremamente difícil, [...] tava,
dificultando um momento de felicidade dos outros. E nós tivemos que, com todos, dialogar e, e
colocar ali que ninguém gostaria de estar no lugar dele, ao contrário, ele gostaria de estar no nosso
lugar. Então nós trabalhamos nesse sentido. Nenhum de nós, vamos dizer, nenhum de nós ali, em
consciência se poria no lugar dele naquele momento, porque fugia da nossa realidade. Pelo contrário,
ele e a família dele, queriam demais passar por um momento de cada um deles, né? Lembrança muito,
marcante, assim, porque precisamos de um auxílio desse pastor pra gente poder ter esse, essa, essa
conversa, né?
O SPE3 ao enunciar eu tinha que dar resposta para ambos [...] e não conseguiria
subir lá no palco para fazer a, a solenidade; [...] a gente teve um momento de reflexão sobre
a situação”, aponta para a posição de “rechaçar o colega aidético” ou “não rechaçá-lo”
criando-se um dilema; a posição oposta “não rechaçá-lo”, foi considerada pelo professor
porque era mais humana e educativa.
RD150 - SPE7 [...] não faço mais nada no atropelo, a vida me ensinou isso. Tudo que tu faz na hora
da raiva, não dá certo. Eu vou, eu penso [...]. Penso que, que eu vou fazer, de preferência não naquele
dia. [...] conversando, procuro mostrar para essa pessoa, que eu estou nesse papel aqui, como docente
pra ajudá-los. Ou alguém com mais experiência na área, com uma bagagem de vida maior [...]
falando que a gente se entende, eu ajo como mediadora, quando eu vejo que é muito complicado, eu
peço ajudo, [...] precisei de ajuda, de conflitos de grupos maiores, que eu não me senti preparada [...]
chamei a psicóloga [...] aprendi um monte, como ela conduziu, nós conseguimos o que nós queríamos.
[...] se nós não tivessemos conseguido naquele momento cortar o fio, aquilo teria dado um volume, até
seria desagradável no dia da formatura. Porque foram coisas bem, que não tinham mais limites, sabe?
E envolvia todo o grupo [...] A gente ficou com a psicóloga duas horas. E resolvemos todos os
problemas. Fiquei aquele dia muito aliviada, porque eu vi que tinha feito um bem muito grande, [...]
acho, que cada caso é um caso. Você nunca pode generalizar. [...] eu escuto, aconselho, digo, querido,
vamos enfrentar, tem problemas muito mais difíceis que esse. É difícil pra ti, mas tu tem coisas muito
maiores que vão te acontecer. Porque a gente sabe nosso mercado de trabalho como é competitivo,
como é difícil [...].
Evidencio nos RDs acima a marca não produzindo o efeito de incapacidade de
resolver certas situações conflitantes, as quais geram dilemas morais, conforme dizem: SPE3
não conseguiria subir no palco para fazer a, a solenidade; nós nos reunimos, eu e um
pastor, tá? Eu pedi ajuda para um pastor, nós nos reunimos com os acadêmicos”; e SPE7
Tudo que tu faz na hora da raiva, não certo. [...] Penso que, que eu vou fazer, de
preferência não naquele dia. [...] eu não me senti preparada [...] chamei a psicóloga [...] ela
conduziu [...] foram coisas bem, que não tinham mais limites, sabe?”. Os professores
mostraram sentir-se incapazes de conduzir sozinhos a situação apresentada e, por isto,
buscaram auxílio de outras pessoas como suporte para ajudá-los. Tanto o SPE3 quanto o
SPE7 tiveram maturidade e sensibilidade para perceber e avaliar o problema e com humildade
pediram ajuda para enfrentar a situação, criando uma situação de aprendizado, não de forma
211
intencional, colaborando com a formação ético-moral dos discentes. A seguir, apresento três
formulações que mostram a disponibilidade do sujeito-professor em estabelecer uma relação
de diálogo com os seus alunos, quando identificam a existência de problemas (dilemas).
RD151 - SPE8 [...] quase todas as minhas provas, não foi nem uma e nem duas nesta vivência, hã...
capto o aluno colando, é contra a minha conduta, [...] vou te citar um caso de uma aluna, [...] estava
colando, [...] eu pedi para ela passar a cola, e ela teve uma resistência para me passar a cola, [...] me
passou a cola, [...] peguei a cola e eu dei uma olhada e eu inutilizei a questões que, que ela tinha
respondido, mas não retirei a cola [...] eu inutilizei o que ela tinha respondido [...] deixei responder
fazendo a prova [...] nunca mais sentou atrás, senta na frente e veio dizer que foi a melhor lição da
vida dela uma, se talvez se eu tivesse dado zero ela não teria tido a postura que ela teve, mas como eu
anulei as questões que ela assinalou, que estava respondido e dei a chance dela recuperar [...].
RD152 - SPM 10 [...] um aluno, numa entrevista psiquiátrica com uma paciente, ele sugeriu para ela,
que eles poderiam ter um encontro melhor fora dali. E até que nós conseguíssemos que ele
reconhecesse aquilo, que no final ele reconheceu, foi um processo muito duro de conversares explicar
o que estava acontecendo, a gravidade que estava acontecendo, tanto é que mudou toda a formação, e
a partir desse momento os alunos não entram mais sozinhos numa entrevista com adolescente;
aparentemente era uma adolescente bonita e em algum momento o rapaz se perdeu. [...] no momento
da parte prática o aluno que não atuar com uma postura adequada. [...]. Conversando com ele, dando
chance de ele se explicar, e depois dele se explicar tentando com que ele visualize o outro ponto de
vista oposto de quem foi prejudicado, [...] tentando fazer com que ele reconheça o erro. Se ele não
reconhecer o erro, você pode até puni-lo [...].
RD153 - SPM11 [...] a gente pega os alunos que não vão bem e qual o tipo de problema. [...] a
gente que freqüentemente que o pessoal não está totalmente certo se queria ou não medicina, [...]
temos alunos que sofrem impacto, e começam a abandonar o curso as notas começam decair, então
a gente chama, [...] a gente nota mais o dilema deles, [...] a gente lida com eles no dia-a-dia. [...] eu
estou te falando mais pessoalmente, assim, não fazer aquele conceito final, tipo assim! Eu te reprovei
[...] eles ficam conosco na prática do dia-a-dia [...] então a interatividade é muito grande, então quando
não vai. Agora, outros continuam, aí chega no fim, paciência!
O dilema aponta sempre a um não”, representando outra alternativa possível, mais
adequada. Nos três RD apresentados a marca discursiva não”, os sujeitos-professores
produziram o efeito de oportunizar chance de recuperação aos alunos apresentando desvio de
conduta através do diálogo e da tentativa de conscientização destes alunos: SPE8 não foi
nem uma e nem duas nesta vivência, hã... capto o aluno colando, é contra a minha conduta
[...] eu dei uma olhada e [...] eu inutilizei o que ela tinha respondido [...] mas não retirei a
cola [...] nunca mais sentou atrás [...] se eu tivesse dado zero ela não teria tido a postura que
ela teve”; SPM 10 um aluno, numa entrevista psiquiátrica com uma paciente, ele sugeriu
para ela, que eles poderiam ter um encontro melhor fora dali. E até que s conseguíssemos
que ele reconhecesse aquilo, [...] foi um processo muito duro de conversares explicar [...] e a
partir desse momento os alunos não entram mais sozinhos numa entrevista com adolescente;
[...] no momento da parte prática o aluno que não atuar com uma postura adequada. [...].
212
Conversando com ele, dando chance de ele se explicar”; e SPM11 a gente pega os alunos
que não vão bem [...], a gente diz: o que contigo? Tu não me chega atrasado! [...] Tu não
tá me fazendo anamnese e exame físico direito! Sabe? Alguns, claro, não gostam, mas
assumem uma postura, e a gente dá graças a Deus quando eles assumem”.
Os sujeitos abordam tanto dilemas ético-morais dos professores quanto dilemas
enfrentados por alunos, frente a vários problemas que ocorrem no dia-a-dia do mundo da vida;
abordam a cola, o assédio sexual e os conflitos inerentes aos jovens quanto à escolha
profissional e, em todos eles, se posicionam frente ao aluno com diálogo, mostrando o melhor
caminho a seguir e, se necessário, impondo limites para a formação profissional.
Percebo que os professores tentam inicialmente resolver os problemas com diálogo;
porém, de forma implícita, reconhecem que às vezes não conseguem alcançar seus objetivos,
e nesses casos admitem punições ou abandono da situação, como dizem: SPM 10:
Conversando com ele, dando chance de ele se explicar, e depois dele se explicar tentando
com que ele visualize o outro ponto de vista oposto de quem foi prejudicado, [...] tentando
fazer com que ele reconheça o erro. Se ele não reconhecer o erro, você pode até puni-lo”;
SPM11: Alguns, claro, não gostam, mas assumem uma postura, e a gente graças a Deus
quando eles assumem. Agora, outros continuam, aí chega no fim, paciência!”.
Os recortes discursivos a seguir mostram os professores mantendo a posição dialógica
com seus alunos ao enfrentar o dilema do preconceito.
RD154 - SPM4 [...] o pessoal tenta copiar, aquilo que eu falo, né? [...] E aí, essa aluna, ela queria
acompanhar os demais, e não conseguia acompanhar, porque ela tinha dificuldade na questão da
escrita, né? Então ela pedia: professor, por favor, o senhor pode repetir, [...] e isso foi incomodando os
outros, né? Porque eu tinha que interromper, eu estava no meio de um raciocínio e tinha que
interromper, e aí, começaram alguns tititi, e piadinhas, [...] E a guria, coitada, já sentava bem na minha
frente [...] E um dia ela se sentiu, né, constrangida por estar me perguntando, pelos outros estarem
repreendendo, né? Aí, levantou bruscamente da sala e saiu. E eu vi que ela saiu, assim, [...] bem
vermelhinha, e pelo meu entendimento, quase chorando, né? Bateu a porta e eu vi que ela começou a
chorar. [...] na hora do intervalo, tive que procurar, [...] ela reapareceu, né? Disse que não ia mais
na aula, que queria trancar e tal [...]. E aí, eu conversei com ela, né? Ela sentou numa mesa
separadinha, eu conversei que as coisas poderiam melhorar, que não tinha problema, que os colegas
estavam fazendo aquilo ali, mas por infantilidade, e porque ela tinha uma, uma forma de entender e
eles outra forma de entender. Mas que ela ia conseguir vencer, né? , resumindo: ela retornou pra
aula e conseguiu ser aprovada, inclusive por média, né? E aí, antes de ela retornar, eu falei com os
colegas dela, pedi que tivessem compreensão, né? Que ela tinha um ritmo diferente, mas que todo
mundo era igual, todo mundo tem o mesmo direito ali.[...] E aí, então, o troço funcionou. Até foi bem
gratificante, né?
RD155 - SPM10 [...] tínhamos uma aluna que era filha de um colega meu, [...] uma pessoa da raça
negra estava fazendo estágio comigo, num determinado momento, e ela
optou por desobedecer uma
norma do hospital. E quando um guarda questionou para ela que ela não podia fazer aquilo, ela se
usou do fato de que ela era uma pessoa de cor, e que ele estava fazendo isso porque ela era uma pessoa
de cor negra. Nós conhecíamos o guarda, era um guarda que tempo trabalha no hospital, todos os
213
alunos se davam muito bem com ele, a direção não tinha nenhuma queixa contra ele. E ela realmente
fez um auê muito grande em cima dele [...] ela entrou com um processo contra o guarda na delegacia,
o guarda contra ela, porque ela acabou batendo nele e tudo, é uma situação difícil porque tu entras no
conflito de racismo, entra a questão que tinha questões de amizade com a família dela, entra na
questão de que o médico entre aspas é superior ao guarda que tava lá para nós tomarmos a decisão do
que tinha sido feito, conversamos muito com os dois lados várias vezes, tentando fazer com que os
dois lados conversassem entre si. [...] ela teve que repetir aquele estágio, porque ela foi reprovada,
teve que mudar de local, e foi uma decisão moralmente difícil [...] Demoraram-se dois anos até que eu
consegui que ela conversasse novamente comigo, ela acabou reconhecendo que a conduta que ela
tinha tomado não era a melhor naquela época, mudou de postura depois daquele momento. Eu senti
que de algum modo eu consegui com que ela visualizasse o outro lado, mas foi talvez um momento
muito difícil, porque envolvia muitos fatores.
RD156 - SPE14 [...] tive uma vivência com uma aluna [...] tive que chamar a atenção para [...] que ela
desse espaço para os colegas quando tivesse uma atividade de grupo, né? [...] todos têm que participar
[...] e tinha um colega dela que tinha dificuldades, era gago né? Então tinha dificuldades de falar, ela
não quis que ele falasse porque ele é gago, né? tentei mostrar para ela, para o grupo, primeiro
conversando com ela: “olha, o teu colega tem o direito de falar”; então, se ele é gago, ela tem que
reconhecer que ele é gago e que isso é uma dificuldade para ele, talvez ele tenha que buscar ajuda, mas
ela, impedindo ele de falar não vai ajudar. [...] eu faço pra tentar discutir, por que isto esta
acontecendo, por que isto está te incomodando tanto, por que o aluno teve aquela reação, isto é o que
sempre faço! [...] discutir as experiências conversando em grupo, [...] sobre o que significa.
Os RDs denunciam discriminações geradas pelos discentes, desencadeando dilemas
ético-morais no sujeito-professor e exigindo posicionamento, conforme mostram os relatos.
Evidencio formas diferentes de discriminação; os casos descritos pelos SPM4 e SPE14 são
semelhantes, pois ocorreu a discriminação de um colega considerado “diferente” do grupo. O
caso relatado pelo SPM10 evidencia a discriminação racial e de poder. Freire (1996, p. 36)
rejeita qualquer tipo de discriminação e afirma que o professor estará pensando certo ao
rejeitar qualquer “prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero”, pois segundo o autor
“ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia”.
Tanto o SPM4 quanto o SPE14, ao perceberem o preconceito em relação a um aluno
com dificuldades, posicionaram-se eticamente respeitando a autonomia e a dignidade de cada
um e, de forma dialógica, aproveitando a oportunidade, desencadearam uma reflexão. O
docente deve sempre ter consciência do inacabamento do ser e de suas limitações e tem a
tarefa de “desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica”, para produzir sua
compreensão (FREIRE, 1996, p. 38).
Embora os recortes apresentados tenham sido guiados pela marca discursiva não”, no
RD do SPM10 decidi não separar o recorte que apresenta a marca tem que”, permitindo uma
melhor compreensão do contexto. O SPM10 vivenciou uma situação difícil porque tu entras
no conflito de racismo, entra a questão que tinha questões de amizade com a família dela
entra, na questão de que o médico entre aspas é superior ao guarda”.
214
Passando a relacionar o agir dos dois professores do curso de medicina com o
pensamento de Freire, evidencio o “pensar” e “fazer” certo, pois ambos rejeitaram a
discriminação e agiram por meio do diálogo, produzindo nos alunos uma reflexão geradora de
conscientização, contribuindo assim para a formação ético-moral dos discentes.
Os próximos recortes ainda mostram dilemas morais dos professores frente ao
preconceito dos alunos em relação aos pacientes.
RD157 - SPE12 As pessoas, às vezes, não sei, se afastam, principalmente numa zona onde a
população é pobre, carente, [...] no estágio eu vejo [...] um certo distanciamento, [...] estágio é uma
coisa, a teoria é outra [...] um rapaz assim muito chique, cheio de coisa, um dia nós fomos à casa de
uma paciente que era paraplégica, com incontinência urinária, fecal, desnutrida; chegamos lá:
- Olha lá, vamos adequar essa paciente, vamos fazer café e dar banho [Professor].
- Não, não, não, não vou fazer isso! [Aluno].
- Tu vai fazer sim, ela está precisando de ti e tá precisando agora [Professor].
Ele então, pegou e levou [...] e fez; depois ele me agradeceu e falou que ficou até meio brabo [...] eu
consegui quebrar todo aquele sentimento de nojo que ele estava sentindo pelo cheiro das fezes, pelo
cheiro da casa, mas consegui quebrar isso. [...] Tratamento de choque, e ele conseguiu, [...] Não
precisa ter tudo do teu lado [...] faz o teu melhor. [...] Isso é tratamento de choque e acho que está
funcionando. Sair dessa, desse mundinho que a universidade, a academia é um mundo, bem à parte, é
um mundo [...] deslumbrado, mas quando tu vai para dentro da realidade, quanta gente fala a um
mundo diferente da teoria, mas quando vão para a realidade empaca [...].
RD158 - SPE12 Uma acadêmica disse assim:
- Eu não estou aqui para lidar com pobre, porque quero fazer faculdade e não quero lidar com pobre,
eu quero lidar com pessoal dentro de uma clínica de estética [Aluna].
Aí eu ouvi aquilo [...] e chamei ela:
- Quero conversar contigo: não pode ficar assim, tu estás numa universidade, tudo bem, concordo,
mas aqui é um campo de estágio e pessoas, embora pobres, [...] são pessoas iguais, [...] são iguais e
aqui agora vou te controlar, se as pessoas relatarem que não se sentiram bem atendidas por ti, aí vou te
levar à punição e vou te rodar [Professor].
[...] me pareceu assim que mudou. Não sei depois, mas naquele momento [...] atendeu muito bem as
pessoas, podia estar simplesmente fingindo, [...]. Depois conversando ela disse:
- Olha, professor, realmente eu estava errado, agradeço [Aluna].
[...] pessoas querem trabalhar com estética, mas na Faculdade de Enfermagem que prega o cuidado, o
cuidado não tem raça, cor ou credo, você paga para fazer [...] e vai fazer [...] posso estar abalado, mas
não mostro [...] tento puxar o aluno para a realidade que ele devia estar [...] daí eu digo que ela agiu
errado é por isso, e por isso [...] Tento conversar [...] com o aluno sempre, se tu não resolver naquele
momento que surgiu, [...] vamos conversar, se deixar para conversar depois [...] não resolve, [...]
às vezes a gente não entende o conhecimento deles [...].
RD159 - SPE14 [...] vou te relatar uma situação que eu vivi do meu dilema. Era uma paciente, [...]
que era soro positiva, [...] moravam num barraco no meio da vila, ela tinha três filhos, desses três
filhos dois eram soro positivos e um não e seis netos, três soros positivos [...] ela tinha, DBPOC
20
[...]
era uma das chefes, ela traficava, ela tinha um cargo importante ali, ela tinha saído da prisão, ela vivia
vindo e voltando da prisão, ela dizia para os médicos do posto que ela usava medicação e naquele dia
ela tinha dito pra mim e pra aluna que ela então ia dizer a verdade, que ela não usava a medicação, que
ela vendia medicação, que ela não queria usar a medicação, e ela estava com toda a complicação,
hipertensão, sentindo falta de ar, porque ela não seguia nada do que se dizia. E eu discuti com [...] a
paciente naquele dia; por que ela
continuava fazendo aquilo? [...] ela tinha que pensar sobre o que ela
20
DBPOC – Doença Bronco-Pulmonar Obstrutiva Crônica..
215
estava fazendo, [...] naqueles últimos três anos ela nunca tinha tomado a medicação para soro-positivo
da Aids. Num espaço pequeno, num barraquinho, essa mulher estava de sute com uma roupinha,
tipo uma saia, um pano e, estava um calor, era abafado e estava ela naquela pecinha, num quarto tipo
uma cama, mal cabia, um monte de roupa suja ao lado de roupa limpa e de baixo e ela se abanando né!
E aí quando voltamos para o posto a aluna me disse que não era obrigada a sentir cheiro de pobre, que
ela não queria trabalhar com pobre, [...] que ela achava um absurdo aquele tipo de gente, ainda a gente
tem que cuidar daquele tipo de gente [...] uma mulher tinha sido presidiária, traficava, transgredia, a
própria conduta, transgredia tudo! [...] ela achava inconcebível que a gente tivesse se envolvendo e
cuidando desse tipo de gente, e que ela acha que não deveria passar por aquilo e que ela não queria se
formar para cuidar desse tipo de gente. Ela queria se formar para trabalhar no Moinhos de Vento. [...]
É uma coisa que me fez pensar muito, né? [...] daí a gente fez essa discussão sobre que aluno que a
gente forma? Pra onde vai nosso aluno? Quem são esses usuários que estão naquele contexto, né?
[...] que tem um ambiente que é diferente, que a gente têm coisas que a gente não consegue informar,
mas, que lá no espaço dele, né? Tem que fazer aquela visita, né? Então é assim que funciona [...].
RD160 - SPM16 [...] me recordo de um aluno [...] que ele [...] ele tinha rechaço [...] a gente percebeu,
porque ele não atendia [...] chamou atenção porque todos os alunos atendiam e ele não atendia. Aí,
através de conversa com os próprios colegas que veio esse rechaço, que ele sentia nojo de atender os
pacientes pobres [...]. Foi visto com o grupo, nosso grupo de professores, e aí o regente é que
conversou com ele: chamou atenção, e aí ele, na obrigação, ele foi e atendeu.
Em todas as formulações acima, os sujeitos usam a marca não significando a
negação de alguns alunos em atenderem pacientes pobres e sem condições. Apresentei dois
RD do SP12 porque os considerei casos muito ilustrativos e significativos das práticas
vivenciadas, nos cursos de graduação de enfermagem e medicina. As disciplinas que
envolvem a saúde comunitária oferecem práticas de saúde em comunidades carentes, e os
alunos, juntamente com seus professores, precisam conviver com uma realidade que não é
comum a eles, como reconhece o próprio professor, ao relatar sua vivência: sair dessa, desse
mundinho que a universidade, a academia é um mundo, bem à parte, é um mundo [...]
deslumbrado, mas quando tu vai para dentro da realidade, quanta gente fala a um mundo
diferente da teoria
21
. O professor refere-se à universidade como um mundo à parte”,
significando para os acadêmicos como um mundo deslumbradoe, ao entrarem em contato
com o mundo da vida, os alunos manifestam as mais diversas reações. Cabe ressaltar que o
mundo da vida está presente também na universidade, que mais equilibrado ou ameaçado
pela racionalidade sistêmica; em outras realidades sociais o mundo da vida aparece como
marginal ao sistema, quase que fora da racionalidade. Habermas (2005, p. 81) afirma: “se
quisermos injetar nova vida na idéia de universidade, temos que nos situar extra muros! No
intuito de colocar em relevo o nexo entre universidade e o mundo da vida”.
Em todas as situações apresentadas, percebo o efeito de “rechaço” do aluno em relação
ao paciente pobre e a reação dialógica do professor, tentando conscientizar o aluno sobre
21
Castilho (2005, p. 148), na sua pesquisa com professoras, evidenciou o efeito de sentido de que a formação na
universidade precisa ser conciliável com a prática, teoria e prática não são isoladas.
216
valores morais e éticos, exigidos pela profissão escolhida. Júnior (2002, p. 60) acredita ser
a prática pedagógica um instrumento do professor que possibilita ensinar ao aluno “aprender
algo, a proceder bem”, a desenvolver e aperfeiçoar o plano técnico e, principalmente, a ajudar
“no plano ético, no plano humano, ou no plano social o resultado de sua atividade”.
RD161 - SPM5 [...]
Muitos...muitos, por exemplo, assédio sexual; mais de um [...] semelhantes. Ah,
um deles: um aluno assediava outras estudantes da universidade. Esse menino tinha problemas
psicológicos graves, faz tratamento psiquiátrico, e ele
[...] ele ia no bar e ficava se tocando, ele mesmo,
se mostrando pras meninas ali. eu chamei, hã...conversei com ele, disse que estava encaminhando
hã... a... o afastamento dele, tal... aí conversamos, tudo, e ele pediu mais um prazo, que ia se corrigir. E
até eu fiquei em observação, ele tinha que ir toda semana na minha sala, pra conversar, pra saber
alguma coisa. E posteriormente, eu não me lembro exatamente quanto tempo depois, ele teve recaídas,
que eu imaginava que ele fosse ter. E ele foi afastado, né, eu chamei os pais dele, afastei, eles
vieram com advogado tentando reintegrar o rapaz, mas não reintegramos, de jeito nenhum.
RD162 - SPE13 [...] uma aluna mostrava–se com muita dificuldade de compreender a profissão, e
queria largar o curso [...] então, ela veio no hospital conversar sobre o estágio, depois das aulas do
hospital [...] e depois de dez a doze dias [...] quando eu fui com uma outra aluna, que embora não
parecesse tão duvidosa no curso, mas se mostrou verbalmente duvidosa [...] levei-a para conhecer [...]
o hospital, [...] as coisas se misturaram, as coisas estão se confundindo né? [...] tive uma conversa
muito séria, a aluna tinha se atrapalhado, não era mais o professor [...] que ela via na minha ótica,
mas que retomou e teve uma compreensão muito boa [...] meu papel de professor, que eu continuaria
investindo sempre assim, alunos que eu notasse que eu poderia ajudar para conhecer o hospital, que eu
não tinha preferência por nenhum dos alunos, [...] mas que soubesse sempre o limite [...].
Relembro que a AD parte do pressuposto no qual o enunciado sempre pode ser outro;
nas duas enunciações anteriores, ambos os professores abordaram o dilema ético-moral, entre o
dito e o não-dito, do assédio sexual. Enquanto a maioria dos sujeitos-professores silenciava -
provavelmente por cautela - as a pergunta sobre vincias com alunos que geraram dilemas, o
SPM5 imediatamente respondeu: muitos... muitos, por exemplo, assédio sexual; mais de um
[...] semelhantes”. Evidencio o SPM5 falando explicitamente o problema ocorrido entre alunos,
enquanto o SPE13 refere-se ao mesmo tema, contudo, de forma implícita, talvez porque tenha
envolvido sua pessoa, conforme relata: quando eu fui com uma outra aluna, que embora não
parecesse tão duvidosa no curso, mas se mostrou verbalmente duvidosa [...] levei-a para
conhecer [...] o hospital [...] as coisas se misturaram, as coisas eso se confundindo, né?
[...]
tive uma conversa muito ria, a aluna tinha se atrapalhado, não era mais o professor [...]
que ela via”. Identifico neste caso, conforme as formas de silêncio definidas por Orlandi
(2005a), o silenciamento, onde o sujeito apaga o sentido proibido do dizer na conjuntura
docente e discente (assédio sexual), definindo o que pode ser dito e evitando o não-desevel e o
interditado naquele contexto. Tanto o SPM5 quanto o SPE13 remetem suas condutas à ética
dialógica. Apresento a seguir mais dois recortes de formulações discursivas onde a ética
217
dialógica não resolveu o problema, sendo necessária a punição.
RD163 - SPM5 [...]
Tivemos um outro caso, [...] de um rapaz que fazia a mesma coisa, que era
uma moça que ele assediava, cuja moça era noiva. O noivo teve aqui conversando comigo, eu também
chamei os pais desse rapaz, e ele acabou sendo afastado também. E tem um outro caso que eu me
lembro que era um aluno nosso, que ele era de uma cidade do interior, e ele, nos finais de semana, [...]
ele ficava no hospital ajudando. [...] os médicos, enfim, deixavam ele atender, e ele começou a desviar
remédios controlados, não é, não sei se pra uso dele, ou ele vendia esses remédios... falsificava
receitas, inclusive ele tinha acesso aos receituários, tinha carimbos ali, então ele carimbava, assinava
pelos médicos, comprava... E esse rapaz também, foi feito um levantamento de tudo isso e ele foi
expulso da universidade. [...] Eu chamo os pais... Eu me lembro dos dois primeiros, um dos pais, esse
parece que não veio com o pai, veio com advogado, e falei com o advogado, e nesse ponto a
universidade ela é muito... austera... então... ela afasta, e depois ele que procure os direitos dele, que
chame a... que entre na justiça, que faça o que quiser. Mas o afastamento é sumário. [...] esse rapaz
com o diploma na mão... isso é uma arma pra ele, pra abuso sexual, pra todo tipo de coisa. [...] houve
muita insistência... depois veio com uma solicitação pra que ele assistisse aula acompanhado de
um... um monitor... psicológico... não sei exatamente o termo que usaram. Ele ia ter que ter um... anjo
da guarda com ele todo tempo. Um tutor. Mas nós não aceitamos igual. E aí... ele foi embora, eu até
achei que ia entrar na justiça, mas até agora não voltou, e isso aí já faz uns três, quatro anos.
RD164 - SPM9 [...] tinha uma sobrinha de um professor que foi fazer um estágio na Europa, a gente
permite aqui dois meses de estágio em qualquer lugar do mundo, desde que a pessoa preencha
requisitos [...]. Aí essa pessoa quis fazer mais dois meses de estágio lá, não era o programado, não era
o legal, e ela estava escalada para atividades aqui, que significavam compromisso de plantões,
treinamento, coisa e tal, onde ela não estando presente, ia ter que se refazer toda uma escala, ia
prejudicar os outros, e ela não tinha contribuído nada para isso. Qual era a regra para isso aí? Era não
conceder. escrito, ela assinou um documento anterior. O professor recorreu ao conselho, comissão
de graduação, recorreu ao conselho da unidade. Era professor titular, reconhecido no ambiente gaúcho
e nacional [...]. Ele perdeu a votação no conselho da unidade, o voto dele foi favorável, todos
votaram contra. Não só os alunos, mas todos votaram contra. [...] porque pode para ela, pode para todo
mundo. E ele tentou ir adiante, ainda na Pró-Reitoria de Graduação [...] ele não deveria ter votado,
porque eticamente ele tava envolvido. Então disse: “só queria que o senhor refletisse que não deveria
ter votado, então essa votação pra mim foi unânime. O senhor pode apedir, é um direito que lhe
cabe, agora eu quero lhe dizer assim ó, a chance de isso progredir é quase zero. Não vou ser eu que
vou dizer não peça”. E isso eu achei muito legal. Porque nesse contexto que os alunos tavam se
formando, a menina voltou da Europa, fez plantão, ficou braba com todo mundo durante um tempo, e
depois teve que reconstruir as suas relações pessoais no grupo, pedir desculpa pros outros, até, por
ter feito aquele pedido, porque no fundo ela tentou dar um carteiraço, e por uma razão sentimental:
ela arrumou um namorado na Europa e queria ficar mais tempo. E não era nem por razões acadêmicas,
que depois ficaram claras. Então ela alegou uma série de questões científicas que não eram
verdadeiras, né? E agora? Um ano depois quando eles se formaram, né? [...] eu sou um cara
absolutamente resolvido... e esse professor ficou muito chateado comigo [...]. Passou um tempo sem
me cumprimentar, também, depois voltou atrás, né? Hoje até tá aposentado, [...] esse grupo essa ação
foi importante, talvez tenha sido a mais importante do curso inteiro [...].
Os dois RDs produzem o efeito de “falta”; o SPM5 aponta à falta de honestidade do
aluno e o SPM9 a falta para com os compromissos do curso, iguais para todos.
Nos dilemas ético-morais relatados até agora, todos os professores conduziram-se de
forma semelhante, identificando o problema ético e conversando com os alunos envolvidos
posteriormente; por isto, os recortes discursivos analisados produziram o efeito de sentido a
ética dialógica para o enfrentamento dos dilemas morais”. O diálogo não é isolado da
218
prática, a prática dialógica faz parte da posição discursiva pedagógica assumida, que pode
compreender também a punição, justificada na interlocução que a antecede. O SPM5 e o
SPM9, frente às posições de resistência dos alunos em modificar o comportamento ético-
moral inadequado, tomaram a decisão de impor limites por meio da punição. Santos e
Barbosa (2007, p. 27) fizeram uma reflexão sobre a falta de limites e as implicações
psicossociológicas no âmbito social tematizando a alteridade; as autoras discutem as relações
sociais na contemporaneidade, num mundo onde tudo é possível, constatando a crescente
dificuldade que os indivíduos têm “com os limites em suas interações com os outros de seu
convívio”. La Taille (2002, p. 23) também aborda a questão dos limites, com enfoque
psicológico de domínio moral, estabelecendo duas dimensões: 1) “os limites no sentido de
restrição de liberdade, que correspondem aos deveres morais”; e 2) “os limites no sentido da
superação, que correspondem aos ideais, ao auto-aperfeiçoamento, às virtudes”; após uma
discussão e análise psicológica e moral, o autor conclui serem ambas indissociáveis.
La Taille (2002), Santos e Barbosa (2007) e os sujeitos-professores desta pesquisa
crêem que a base dos valores morais e deveres vêm da família; contudo, foi visto
anteriormente o dilema dos pais contemporâneos, os quais por medo de se imporem,
silenciam seus próprios valores.
La Taille (2002) explica que geralmente o enfoque moral, atribuído aos limites tem
sentido restritivo de proibição, de ações que devem ou não ser realizadas, correspondendo aos
deveres morais. O autor lembra que a expressão “superar limites” é muito usada no cotidiano
com o sentido de superação, vitória e esforço, referindo-se às proezas; entretanto, raramente
esta palavra é associada à dimensão moral. Após contextualizar os limites dentro da moral,
fazendo uma excelente análise filosófica e psicológica das virtudes, La Taille (2002, p. 35-36)
aponta três pontos, dois de dimensão filosófica e um de dimensão psicológica, de relação
entre a moral e limites a serem superados:
a) virtudepela definição significa característica boa, ou, até, admirável do caráter.
Logo virtude remete à idéia de excelência [...], a crescimento, de auto-
aperfeiçoamento”; em termos desta análise, virtude remete à superação de limites em
relação a disposições de caráter;
b) virtudes na moral busca da felicidade; ter virtudes e exercitá-las são condições
para alcançar a felicidade; “a superação de si, a superação dos próprios limites, é
indissociável da moral”;
c) desenvolvimento moral “depende de um trabalho sobre si mesmo”; expansão ou
superação da razão e dos afetos.
219
na parte afetiva da dimensão psicológica, o autor observa “a cada virtude,
corresponde um ou vários sentimentos, e que tal correspondência significa superação”; vejam
os exemplos trazidos por La Taille (2002):
[...] coragem é superação do medo [...] generosidade é superação do egoísmo [...]
humildade é superação da vaidade ou do orgulho [...]. Nos três exemplos [...] a
superação de limites está relacionada ao erguer-se acima de si para não ser
dominado por afetos que, se não trabalhados, levariam a ações negativas. Mas
podemos também pensar a superação de limites como expansão e aprimoramento de
sentimentos positivos: a generosidade pode ser decorrência da expansão da
compaixão, da simpatia e do amor (LA TAILLE, 2002, p. 36).
Evidencio, no caso relatado pelo SPM9, a postura inadequada da acadêmica reforçada
pela família, na figura do seu tio; os sentimentos negativos de egoísmo da acadêmica,
vaidade, orgulho e arrogância do seu tio professor, que tentou interceder por ela, levaram a
atitudes de abuso de poder e mentira, as quais precisavam ser superadas para alcançar uma
conduta ético-moral, de acordo com a posição aceita na Universidade. Como a superação dos
limites não ocorreu por uma ação individual, foi necessário o sujeito-professor impor o limite
restritivo. Ao posicionar-se sobre o dilema pedagógico de impor limites, após a extensa
reflexão, La Taille (2002) conclui:
[...] é preferível colocar o limite restritivo sobre a ação (não pode bater) e trabalhar o
afeto que motivou a ação violenta por meio da superação. [...] os limites no sentido
restritivo dependem daqueles que são superados. [...] Mesmo [ficando] [...] com a
“justiça” como única virtude genuinamente moral [...] ela implica essencialmente
restrição de liberdade derivada do respeito pelos direitos alheios [...] As virtudes a
superação dos limites podem tanto permitir que os deveres os limites restritivos
sejam de fato obedecidos, como fazer com que não sejam interpretados de forma
dogmática (LA TAILLE, 2002, p. 36-7).
No caso analisado do SPM9, o limite restritivo resolveu a situação, conduzindo a uma
posterior superação, conforme relato do professor quando afirmou: “a menina voltou da
Europa, fez plantão, ficou braba com todo mundo durante um tempo, e depois teve que
reconstruir as suas relações pessoais no grupo, pedir desculpa pros outros, até, por ter
feito aquele pedido”. A Universidade espera, de seus professores e alunos, que manifestem
discurso e prática condizentes com o regimento institucional; cabe principalmente aos
docentes fazer cumprir o que diz esse instrumento regulador das práticas que mantém a
instituição formadora.
4.5.3 Recortes Discursivos com a marca lingüística “tem que”
RD165 - SPM4 [...] é essa turma que tu tem que te preocupar mais. Não é com o bom; o bom, ele
deslancha. Agora quem tem dificuldade, tu tem que se esmerar mais, né? Que é o que te mais
trabalho.
220
RD166 - SPM6 [...] mudanças de conduta feita, através de colegas e professores, por exemplo, em
relação a procedimentos indicado por um, [...] tem que ter um certo grau de cuidado, porque, na
medida que essa mudança tem que ser permeada por um diálogo. [...] e não simplesmente mudar a
conduta, sem tentar fazer essa ultrapassagem. Eu acho que isso é uma coisa que tem que ficar bem
claro, quando alunos e profissionais começaram a se debater com alguns conflitos, desse tipo, não
problema algum de modificar as posturas e condutas, mas desde que elas sejam motivo de um diálogo,
conversação, acordo que evite, exatamente constrangimento.
RD167 - SPE8 [...] quando se trabalha com o ser humano, todo ser humano tem direito a uma
recuperação, [...] e nós temos que dar esta oportunidade, como é que você vai saber se uma pessoa vai
se recuperar ou não se você não dá essa oportunidade? Então, [...] até hoje ela me abraça, dizendo que
nunca mais colou.
RD168 – SPM11 [...] a gente entra em conflito é quando tu chega à conclusão que tu tem que
reprovar um aluno. É a mesma coisa que castigar um filho, às vezes quem reprova e quem castiga
sofre mais [...] reprovar um aluno, interromper um curso, às vezes é complicado, esse sim é um
dilema, mas daí paciência [...].
RD169 - SPE12 Tento conversar [...] com o aluno [...] tem que resolver naquele momento [...]
também tem que entender ele, eles tambémm de uma outra vivência que é diferente da nossa [...] o
que está passando pela cabeça deles, deve ser um baque para eles, mas tem que dar uma paradinha,
para não pensar e apagar tudo e começar de novo.
Nesta pesquisa, evidenciei as formulações discursivas com a marca lingüístico-
discursiva tem que”, a qual enfatizou o significado de dever. Os recortes acima produzem o
efeito de dever do educador, com enfoques múltiplos, como: ter maior preocupação e
dedicação com alunos problemáticos; ter cuidado com as mudanças; conversar com o aluno
imediatamente quando surge um problema; ter diálogo aberto e franco frente aos conflitos;
dar oportunidade à pessoa que errou; reprovar o aluno quando for necessário; ter consciência
de que os alunos têm vivências diferentes das nossas; parar frente a um problema e começar
novamente.
As formulações a seguir também trazem recortes apontando o dever do professor, de
intervir em situações de dilemas ético-morais surgidos entre professores e acadêmicos, que
implicam o encaminhamento para instituições fora do contexto universitário.
RD170 - SPM11 [...] tivemos um problema de um acadêmico que levou um aparelho, e aí, nós
tivemos que chamá-lo. Furto, a gente sabia que era e tal e chamamos e ele negou. Daí, nós tivemos
que apresentar provas, uma situação muito cons-tran-ge-do-ra, mas felizmente ele aceitou, devolveu o
material, mas, sabe tipo da coisa constrangedora. [...] é muito constrangedor. Me senti até um pouco
mal. Porque ficaria bem mais fácil se o aluno concordasse. Ele meio que se negou e se ofendeu. Daí a
gente teve que apresentar provas, e tal. ficou um ambiente, assim, [...] a gente montou uma
comissão de três professores e chamamos o aluno e a gente apresentou a situação pra ele. [...] teria
que encaminhá-lo para a Polícia Federal [...]. Se ele devolvesse o aparelho ficava tudo bem. [...] Ele
saiu daqui dizendo que no dia seguinte traria o aparelho e que realmente trouxe! Porque a gente
disse pra ele
: ou ele fazia as coisas por bem na nossa frente, ficava aqui! Ou a gente encaminharia para
a Policia Federal. [...] Então, ele refletiu e devolveu. Mas isso é complicado! [...] O que para nós não
interessa prejudicar um aluno, o que interessava era o aparelho. Só que ele sabe confiança se foi, então
221
todas as monitorias que ele ocupava, perdeu tudo! [...] a gente esta aqui para ver eles crescerem,
agora...! Sempre que eu digo, a história de quem às vezes quem castiga, fica pior! Se bem que não foi
castigo, mas não era um aparelho muito barato, né? Mas daí não era mais conosco. E a Policia Federal
certamente não seria tão gentil como nós fomos! Ele já devolveu e aí a coisa não saiu daqui [...].
RD171 - SPM15 Nós temos que nos prevenir, que isso vai acontecer de novo. [...] a pessoa tem que
ter oportunidade de se tratar [alcoolismo] e voltar, [...] esta resposta tivemos [...] do departamento
jurídico [...].
Os dois casos relatados mostram dilemas morais vivenciados pelos sujeitos-
professores com acadêmicos de medicina; o SPM11 frente ao roubo de um aparelho e o
SPM15 com alcoolismo. Percebo, em ambos os casos, os sujeitos-professores oportunizando
uma nova chance ao aluno e, com diálogo, resolvendo momentaneamente o problema. Porém,
os recortes produzem efeito de dúvida dos professores sobre a transformação do aluno:
SPM11 ele sabe confiança se foi, então todas as monitorias que ele ocupava, perdeu tudo!
[...] a gente está aqui para ver eles crescerem, agora...!e SPM15 temos que nos prevenir,
que isso vai acontecer de novo [...] a pessoa tem que ter oportunidade de se tratar e voltar”.
4.5.4 Recortes Discursivos com associação das marcas lingüísticas “moral” e “não
RD172 - SPM15 [...]
dilema moral, felizmente, eu acho
que nunca tive que enfrentar. Em aspecto moral
não, não. [...] eu não lembro, é possível que tenha acontecido, mas eu não estou recordando [...] eu
me lembrei que nós tivemos um aluno que era
alcoolista
. [...]
ele vinha
alcoolizado, ele não apresentava
sinais de alcoolismo, mas ele tinha um hálito de alcoolismo, de vez em quando ele se perdia, assim em
algum pensamento, não era uma coisa muito chamativa, mas [...] quando ele atendia no ambulatório,
não queriam ser atendidos por ele, porque eles percebiam que ele estava alcoolizado. Isto criou um
problema para nós [...] Então nós chamamos o aluno, tentamos colocar isso pra ele [...] realmente isso
é um dilema moral, nós não temos como professor condições de avaliar o aluno, [...] Por outro lado,
nós não podemos, por maior dilema moral, é que nós não podemos obrigar uma família a ser atendido
por este aluno, porque ela está no seu direito, na sua autonomia de dizer que não. Nessa situação o que
nós fizemos foi conversar com o aluno, explicar isso pra ele; nós pedimos pra ele... se ele estivesse
precisando de ajuda psiquiátrica nós providenciaríamos para ele e pedimos que ele se afastasse,
né?
Um afastamento legal, para tratar da saúde, que depois nós faríamos uma recuperação. Neste caso, foi
o que aconteceu, ele acabou se afastando. Ele
voltou...
pelo menos aparentemente sóbrio, [...] ele
conseguiu terminar as tarefas que ele precisava fazer e que ele acabou sendo aprovado no semestre
com uma nota mínima, mas ele conseguiu ser aprovado. Foi uma situação muito conflitante mesmo,
[...] um dilema moral. [...] nós não podemos passar pelos dilemas e dizer: bom, passou; faz de conta
que não vi.
Na heterogeneidade do discurso o SPM15 ao continuar seu intradiscurso diz que
existem dilemas sem soluções, como aponta:
RD173 - SPM15 [...] Vou te confessar que não conseguimos nenhuma resposta, [...] porque parece
que têm coisas que não têm resposta. Não se pode afastar um aluno por doença, e alcoolismo é
doença. Tu não tens capacidade, porque tu é
alcoolista,
porque a gente sabe que tem pessoas que usam
drogas, mesmo professores, também não são afastados por causa disso; [...] o aluno deveria ter chance
de tratamento, mas ele não pode ser afastado; por outro lado é uma circunstância muito perigosa,
222
porque não é possível estar com os alunos 100% do tempo, mas o professor é responsável 100% das
vezes, por tudo que o aluno faz. Então essa é uma... é um conflito e é uma angústia para a qual a gente
não tem resposta completa.
Esses recortes são interessantes também porque não apresentam o sujeito-professor
como totalmente bem sucedido na orientação dada a um dilema. O sujeito não está totalmente
no controle de todos os problemas e produz efeito de sentido: situações em que não se
dispõe de base legal para definir o que de melhor poderia ser feito diante de um dilema.
Percebo no início do RD do SPM15 as marcas discursivas moral e não”,
funcionam negando a existência de dilemas morais vivenciados; porém, logo após, emerge
um dilema moral muito significativo. Quando o sujeito relatou o dilema enfrentado dizendo
o que nós fizemos foi conversar com o aluno, explicar isso pra ele; nós pedimos pra ele... se
ele estivesse precisando de ajuda psiquiátrica nós providenciaríamos para ele e pedimos que
ele se afastasse”, novamente evidencio no diálogo professor-aluno o manejo momentâneo
para resolução do problema, oferecendo uma oportunidade para recuperação, e, ao continuar o
fio intradiscursivo foi o que aconteceu, ele acabou se afastando. Ele voltou... pelo menos
aparentemente sóbrio”, o efeito de vida do professor em relação à transformação do aluno
quando diz aparentemente sóbrio”. Ainda na linha do intradiscurso, constato a contradição e
a negação do apagamento manifestadas por ele no início da fala, ao dizer um dilema moral
[...] nós não podemos passar pelos dilemas e dizer: bom, passou; faz de conta que não vi”,
pois inicialmente havia dito dilema moral, felizmente, eu acho que nunca tive que enfrentar.
Em aspecto moral não, não. [...] eu não lembro, é possível que tenha acontecido, mas eu não
estou recordando”; infiro que estas tenham ocorrido pela ausência das respostas que desejava,
ao buscar orientações no departamento jurídico da universidade quanto aos casos de
alcoolismo e drogadição, tanto em alunos quanto em professores, ao dizer “porque parece que
têm coisas que não têm resposta. [...]
é um conflito e é uma angústia para a qual a gente não
tem resposta completa”.
Neste item não apresento a associação entre as marcas morale “tem queporque na
busca dos recortes discursivos constatei que não ocorreu associação entre elas.
4.5.5 A produção de sentido na interface entre Habermas e Pêcheux
Fazendo um resgate da análise apresentada neste item, a qual produziu o efeito de
sentido “a ética dialógica para o enfrentamento dos dilemas morais”, constatei, na maioria
dos sujeitos-professores entrevistados, o apagamento da memória do dizer e o esquecimento
quando, ao serem questionados sobre as vivências dos dilemas morais enfrentados com os
223
acadêmicos, enunciaram não me lembroseguido de silêncio. Para Barbisan et al (1995, p.
81), o silêncio “tem um sentido; é um não-dito ligado à história e à ideologia. Pelo
silenciamento, apagamos sentidos possíveis, mas indesejáveis. O silêncio é a possibilidade
que o sujeito tem de trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa na relação do Um
com o Não-Um”. Um e não-um são conceitos que apontam ao conceito de heterogeneidade
constitutiva do sujeito, de fundo psicanalítico e ideológico (AUTHIER-REVUZ, 2004).
Orlandi (2005b, p. 129) tem constantemente afirmado que a “memória e esquecimento
são inseparáveis, ligando no processo discursivo o dizer e o não-dito, o dito e o já-dito, como
efeitos materiais”. Para Pêcheux (1999, p. 56), a memória não pode “ser concebida como uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido
homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório”.
Ao relatar seus dilemas os sujeitos-professores se apoiaram no discurso coletivo sobre
ética e cidadão ético, legitimado socialmente, para considerar se era um dilema ou não.
Constatei o discurso permeado de dilemas ético-morais referentes às vivências práticas dos
docentes com os discentes: o aborto de acadêmicas e pacientes, a cola nas provas, o plágio de
trabalhos científicos, acadêmica assassinada pelo amante, falta de limites do grupo de
acadêmicos, roubo realizado por acadêmico, acadêmico alcoólatra, desvio de remédios
controlados e falsificação de receitas por acadêmico, incertezas e desestímulo dos acadêmicos
pelo curso escolhido, abuso de poder, vários tipos de assédio sexual (entre acadêmico-
acadêmicas, acadêmica-professor e acadêmico-paciente) e de discriminação e preconceito
manifestado pelos acadêmicos (acadêmico com AIDS, racismo, colega com dificuldade no
aprendizado, rechaço a pacientes pobres). Percebi todos os dilemas ético-morais enfrentados
exigindo um posicionamento do professor, a fim de conduzir a uma ação. Habermas [1993?,
p. 100] entende que os conflitos devem ser resolvidos mediante ações de negociações ligadas
à linguagem cotidiana; contudo, considera que “estas questões práticas são hoje, em grande
medida, determinadas pelo sistema das nossas realizações técnicas”.
Concordo com Habermas (1993, p. 289) quando afirma que tanto a ética clássica
quanto a moderna têm a mesma preocupação de orientar o sujeito quando ele se questiona:
“como devo comportar-me, que devo fazer?”. Habermas (1993, p. 290) acredita que nos
“casos complexos, ‘têm-se’ (müssen) até desenvolver estratégias para tomar decisões – e
então a razão assegura-se de sua própria conduta e torna-se reflexiva”. Quando o sujeito se
questiona: “que devo fazer?”, referindo-se aos problemas surgidos na vivência prática,
Habermas (1993) recomenda observar e investigar, comparar e ponderar e, apoiado em
informações empíricas, decidir com auxílio de outras regras decisórias, caso seja pertinente. O
224
filósofo e sociólogo afirma que as decisões triviais ou fracas não precisam de fundamentação,
contudo as decisões:
[...] “fortes” aquelas valorações que não concernem apenas às disposições e
inclinações contingentes, mas também à compreensão de si (Selbstverständnis) de
uma pessoa, ao tipo de vida que tem, ao caráter, tais valorações estão entrelaçadas
com a identidade de cada um. Essa circunstância não empresta apenas um peso às
decisões existenciais, mas também um contexto no qual elas são tanto carentes
quanto capazes de fundamentação [...]. A razão prática, que neste sentido tem como
objetivo não apenas o possível e o que é adequado a fins, mas também o bom, move-
se então, se seguimos o uso clássico da linguagem, no âmbito da ética
(HABERMAS, 1993, p. 291).
As valorações fortes são inseridas por Habermas (1993, p. 291) no contexto da
compreensão de si, ou seja, quando a identidade do sujeito é constituída, pela “apropriação da
história da própria vida como também das tradições dos contextos de vida que determinam o
processo de formação próprio”. Da mesma forma, Pêcheux (1997, p. 130) acredita que o
“processo não-subjetivo na qual o sujeito se constitui” ocorre pela história e pelo social; a
noção ideológica de sujeito parte do “sujeito individual ‘concreto’, ao mesmo tempo
elemento de um conjunto (comunidade, povo, etc.) e fonte da metáfora constituída pela
personificação desse conjunto, o qual funciona ‘como um único homem’”. Pêcheux (1997, p.
129) retoma a expressão de Althusser e afirma as ideologias como idéias e não como forças
materiais”, mas também pelas suas práticas, nas quais se materializam as ideologias,
constituem os indivíduos em sujeitos”.
Habermas (2003b) propõe a “ética do discurso” como opção para o sujeito (e a
sociedade) fundamentar sua compreensão da razão sobre novas bases; a ética discursiva,
como uma das grandes teorias atuais, poderá contribuir para esta mudança, pois tem a
ambição de esclarecer as condições da compreensão intersubjetiva e racional das normas por
meio da linguagem. Para Habermas (2004, p. 320), “o mundo da vida constitui o horizonte de
uma práxis do entendimento mútuo, em que os sujeitos que agem comunicativamente
procuram, em conjunto, chegar a bom termos com seus problemas cotidianos”. Habermas
(1993, p. 289) lembra que vários “problemas práticos impõem-se-nos em diferentes situações.
Eles ‘têm’ (müssen) de ser contornados, pois do contrário surgem conseqüências que são
importunas mesmo nos casos mais simples”.
Percebo que os sujeitos-professores, frente aos dilemas ético-morais surgidos no
cotidiano do mundo da vida, contornaram rapidamente a situação, evitando conseqüências
piores, priorizando o diálogo na busca de entendimento mútuo para resolução do problema.
Cabe aqui fazer alguns questionamentos, relacionando a ética discursiva aos dilemas
enfrentados pelos professores. Foi possível ao professor se despir da sua posição de poder,
225
inerente à profissão? Poderia ocorrer uma ética discursiva quando existe uma relação de poder
entre professor-aluno? Poderia ser interpretado que intuitivamente foi estabelecido algum
princípio da ética discursiva, ou seja, colocar o problema em discussão apenas com razões,
sem exercício de poder? A troca de papéis e verificação se a atitude seria universalizável a
qualquer ser humano, foram realizadas? Diante do problema todos os envolvidos participaram
com razões, ou seja, pensando de uma forma mais abstrata, na medida em que qualquer ser
humano, estando naquela situação, como agiria? Embora essas questões fiquem sem respostas
definitivas, percebi que, mesmo na relação assimétrica entre professor e aluno, existiu a
possibilidade de entendimento consensual; guiados por valores que extrapolam aquela
condição, os parceiros criaram outra esfera de entendimento compartilhado em nome desse
outro lugar em que se posicionaram, com outra possibilidade de produzirem-se sentidos.
Relembrando, a ética do Discurso proposta por Habermas prevê dois princípios: 1)
“D”, que significa direito e dever de todos em participar do discurso; e 2) “U”, que significa
universalização, ou seja, o que serve para um deverá servir para todos (HABERMAS, 1991a,
2003a). Conseqüentemente, a ética discursiva estabelece princípios abstratos e difíceis de
colocá-los em prática nos momentos que exigem posições e decisões rápidas. As situações
enfrentadas pelos sujeitos-professores mostraram o quanto é dificultoso colocar em prática a
ética discursiva, a qual demanda operar toda essa abstração, trocando de papéis e não
permitindo a interferência do poder. Os docentes, frente aos dilemas que relataram, tentaram
exercer uma reflexão, examinando as razões e fazendo um exercício dialógico, considerando
as posições discursivas e estabelecendo um processo deliberativo com peso na racionalidade,
tomando como parâmetro sentidos sociais e educacionais vigentes que representam valores
amplos. Não se pode separar o discurso e a prática, as práticas contêm discursos e os
discursos se constituem por meio das práticas, assim sendo, as tomadas de posições pelos
sujeitos significaram práticas discursivas.
Segundo Habermas (1993, p. 292), a questão “que devo fazer?”, muda de sentido
quando as ações afetam interesses dos outros, levando a conflitos que devem ser regulados
de modo imparcial, portanto, sob pontos de vista morais”. Nos dilemas enfrentados pelos
sujeitos, quando não foi possível resolver o problema, os professores, com apoio da
universidade, impuseram limites com diferentes formas de castigo. O encaminhamento dos
dilemas atendeu ao pensamento de Habermas (2005, p. 72): “a universidade deve incorporar
institucionalmente e ancorar nos motivos uma forma de vida exemplar, compartilhada
intersubjetivamente por seus membros”.
Habermas (1990, p. 13) acredita que “na dimensão da convicção moral, do saber
226
prático, do agir comunicativo e da regulamentação consensual dos conflitos de ação, têm
lugar processos de aprendizagem que se traduzem em formas cada vez mais maduras de
integração social”; pelo olhar de Habermas, evidencio um processo de aprendizagem
desenvolvido entre docente e discente no enfrentamento dos dilemas ético-morais.
No estudo piloto na análise realizada sobre os conflitos morais vivenciados, constatei
também a existência da dicotomia entre a teoria e a prática, levando o professor a enfrentar
conflitos junto aos seus alunos ao saírem da universidade e vivenciarem a prática no hospital,
e o reconhecimento dos conflitos pelo professor, manejando-os por meio da comunicação e
diálogo. Evidencio, na análise total do corpus, o reforço dos efeitos de sentidos produzidos no
estudo piloto pelo discurso do sujeito-professor frente aos dilemas ético-morais enfrentados
entre docente e discente.
227
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considero impossível demarcar um ponto final na discussão de um tema tão amplo e
com tantas configurações, entretanto é necessário retomar alguns tópicos discutidos com a
finalidade de tecer algumas considerações finais relacionando os efeitos de sentidos
encontrados nesta pesquisa com os objetivos traçados. Cabe ressaltar que, como a AD
considera a heterogeneidade e a contradição constitutiva do sujeito, a análise realizada visou a
identificar efeitos de sentidos que concernem ao sujeito-professor da área da saúde,
especificamente dos Cursos de Graduações em Enfermagem e Medicina de instituições rio-
grandenses.
Ao me colocar na posição de analista tentei “compreender como o texto produz[iu]
sentidos, através de seus mecanismos de funcionamento”, buscando “distinguir que gestos de
interpretação” constituíram “os sentidos (e os sujeitos, em suas posições)” (ORLANDI, 2004,
p. 88). Reconheço a impossibilidade de me despir da minha história como enfermeira-
professora, atravessada pelo discurso outro e interpelada pela memória do dizer,
consequentemente a interpretação produzida, caracterizou-se como o meu gesto de
interpretação. Penso que cada sujeito-leitor, poderá produzir novos sentidos conforme suas
vivências e filiações, pois estas marcam sua compreensão. Reitero ainda que as análises
consistem, conforme o referencial da Análise de Discurso empregado, na interpretação desta
analista, constituída como sujeito-docente e pesquisadora dessa referida área do
conhecimento. Enfocando os dizeres textualizados, a análise buscou evidenciar os sentidos
diversos que coexistem no discurso, os quais são apreensíveis na relação entre o intra e o
interdiscurso, que os procedimentos analíticos ensejam.
Ao estudar a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e a Teoria da Análise de
Discurso de Pêcheux, encontrei alguns pontos convergentes, que permitiram realizar a
interface entre Habermas e Pêcheux, numa pesquisa teórico-analítica que buscou ouvir os
professores sobre as suas práticas. O fato de ambos entenderem que o discurso, movimentado
pelo sujeito, vai além da linguagem, portanto o sentido não se encontra preso à materialidade
da língua, sendo determinado pela história e pelo social, foi o principal elemento que me
impulsionou a aproximá-los. A interface evidenciou que ambas as teorias se constituem a
partir da linguagem; postulam que o discurso manifesta construções simbólicas; valorizam as
construções coletivas; consideram a interpretação relacionada ao uso da linguagem; e o
discurso como manifestação das três dimensões do mundo da vida (social, cultural e do
sujeito). Preciso confessar que fazer uma interface entre Habermas e Pêcheux foi um grande
228
desafio, porque além de não existir em outros trabalhos neste enfoque, precisei mergulhar nas
águas profundas, para mim desconhecidas, da filosofia e da lingüística. Certamente esta
aproximação entre os dois filósofos europeus, mesmo que muito ligados no aprofundamento
das questões da linguagem, causará estranhamento para alguns leitores, isto porque,
Habermas liga-se mais aos lingüistas da corrente anglo-saxônica, enquanto Pêcheux aos
lingüistas da corrente francesa. Embora Pêcheux e Habermas sejam da mesma época, um fato
que considero muito relevante é que o primeiro morreu muito cedo, enquanto o outro se
encontra vivo e atuante na esfera pública; nos escritos de ambos os filósofos, constatei que os
autores, por sua própria iniciativa, no decorrer dos anos, produziram mudanças evidenciando
amadurecimento; creio que se Pêcheux ainda estivesse vivo, o tempo poderia ter aproximado
ambos, como ocorreu no início do século XXI com Habermas e Derrida. Como a história não
proporcionou a mesma oportunidade entre Habermas e Pêcheux, ousei nesta pesquisa fazer
uma aproximação, sem reduzir uma teoria à outra, pois cada uma tem suas especificidades e
têm pontos de tensão.
Frente ao objeto simbólico pesquisado, tentei significar os efeitos de sentidos
conforme sua relação com as condições de produção do discurso e encontrar um ponto
comum que permitisse fazer a interface entre os filósofos estudados. No percurso da análise, o
estranhamento e o modo repetido pelo qual apareciam as marcas intradiscursivas não”, tem
quee ética” nos discursos dos sujeitos-professores, determinaram minha escolha para que
estas guiassem os recortes discursivos analisados; defini complementar a análise com as
marcas discursivas todo(a)(s)”, eu”, nós”, ele(s)”, você”, a gentee “eu acho (que) p”,
permitindo ampliar as relações para configurar a posição do sujeito-professor da saúde no
discurso.
Percebi que independente da instituição de ensino superior ser pública ou privada, o
discurso dos docentes da enfermagem e medicina apresentam importantes semelhanças,
porque situam a mesma problemática, vivenciam situações do mundo da vida semelhantes e
enfrentam dilemas morais de mesma dimensão. Isso se deve à forte vinculação à área da
saúde, como médicos e enfermeiros, sobretudo, professores universitários; suas práticas, seus
dizeres apontam do modo como essa posição, nessa área, é significada hoje.
Com relação à marca discursiva ética” evidenciei, muitas vezes, seu funcionamento
como adjetivo após alguns substantivos, tais como: formação, princípios, postura, questão,
modelos, valores, comportamento, prática, aparato, ciência, padrões, compromisso, visão,
preceitos, tradição, construção, disciplina, crise, dilemas e conflitos. Desta forma o sentido de
ética, pela função adjetiva que assume, fica diluída entre todas essas outras esferas que
229
apontam ao mundo da vida, surtindo o efeito de sentido de que a ética está em tudo.
Nas formulações discursivas onde ética apareceu como substantivo, foram
produzidos sentidos contraditórios, como: valorização, “a ética é fundamental” (SPE8),
versus desvalorização, “não existe na cultura da sociedade a valorização adequada da ética
(SPM10); interesse, “tentar passar algumas coisas também de moral e ética, de como
atender o paciente, como se comportar, então algumas coisas a gente na prática(SPM16)
versus desinteresse, “a questão ética pra eles é muito pequena. [...] se espera muito pouco no
sentido de ética né? Eu vejo o futuro muito ruim(SPM4); resgate, o grande retorno, tem
que ser feito nesse sentido; de resgatar através da ética (SPM6),
versus crise, não está
sendo dada a importância à ética de um modo geral(SPE2); presença da ética no ensino,
o ensino da ética permeia todos os dias e todos os anos, quer dizer, é no dia-a-dia que o
aluno vê como o procedimento do professor” (SPM11), versus pouca ética no ensino,
apesar da ética e a moral né, serem tópicos que deveriam perpassar toda a formação do
acadêmico de qualquer área, na minha percepção ela ainda é pouco, hã, aprofundada
(SPE3); e esforço, nós temos que mostrar pro aluno que ele tem que seguir um norte, né?
Que norte é esse? É o norte da ética, né? (SPE7), versus indignação, onde está a ética desse
negócio, do médico que não pede o exame tal que tem, porque o sistema não paga?” (SPM9).
Em alguns recortes discursivos, percebi o deslocamento entre ética, educação e
humanização, criando uma associação genérica, vinculando a ética com a educação e a
humanização, como o SPM5 enunciou aos referir-se aos discentes: carece de uma educação
que pode se confundir com... não deixa de ser uma ética”.
Também, constatei no discurso, a não diferenciação entre ética e moral, aparecendo
como sinônimos, conforme enuncia o SPE14: vem toda essa discussão ética; é ético fazer
determinado procedimento, quanto é? [...] então a gente passa por todas as discussões de
ética, moral, de direito, todas juntas, não separa moralmente, assim, eticamente assim, a
gente faz essa discussão lá no dia-a-dia [...] a gente acaba discutindo a ética”.
A marca lingüística não foi muito encontrada, gerando estranhamento por
representar uma posição discursiva de negação frente ao tema estudado e produzindo uma
multiplicidade de recortes discursivos e de efeitos de sentidos. Quanto ao seu funcionamento,
encontrei no discurso significados definidos por Culioli (apud INDURRSKY, 1997, p.243) de
rejeição, ausência, alteridade, vazio, absurdo e impossibilidade; ainda identifiquei efeitos de
sentidos de carência, falta, incapacidade e rechaço. Também considerei a ótica de Habermas
que evidencia no não a falta de espaço para justificação, mantendo o sujeito no plano
empírico-pragmático quando não discute a norma existente.
230
O nãoproduziu no discurso efeitos de sentidos de carência ética: nos discentes, na
família, na sociedade, na universidade, no sistema de saúde e nos profissionais da saúde. Nos
discentes, produziu efeito de falta de valores éticos, falta de educação, falta de limites, falta de
amadurecimento e “rechaço” do aluno em relação ao paciente pobre. Outros efeitos
produzidos com a marca não”: falta de compromisso da família na formação ético-moral do
filho; profunda crise ético-moral na qual vive a sociedade; ausência da universidade na
formação ética; poder do pessoal da saúde sobre o paciente; distanciamento do profissional da
saúde do paciente; falta de humanização na saúde; falta de pagamento de certos exames pelo
Ministério da Saúde e convênios.
A marca nãoligada aos docentes produziu efeito de sentido: de negação de certas
atitudes e da supremacia do compromisso; incapacidade de resolver certas situações
conflitantes geradoras de dilemas morais.
A marca “não” associada à ética” reforçou os efeitos de sentidos de: responsabilidade
da família na formação de valores nos filhos; imaturidade e suposta carência ética na maioria
dos alunos que ingressam no ensino superior; formação ética será alcançada ao se unir
conhecimento técnico-científico e humanização. A marca discursiva moral ao se unir ao
não”, produziu efeito de apagamento da memória dos dilemas morais vivenciados pelos
sujeitos-professores; na ordem da AD, a relação entre o “não e o dilema apontou duas
posições que poderiam ser seguidas, indicando o dilema.
Na análise do funcionamento da marca discursiva tem que”, considerei o
posicionamento de Habermas em relação à razão prática; ele diz que o sujeito ao se questionar
“o que devo fazer” frente a um problema que envolve valores ou fins, as indicações para a
ação dizem o que “se deve” (soll) fazer ou o que “se tem” (muss) de fazer, podendo ser
entendido com sentido de “dever” (Sollen), apontando além do horizonte da racionalidade de
fins (HABERMAS, 1993, p. 290). Na perspectiva da AD, o uso de tem quemostra que o
sujeito está inserido na formação discursiva do profissional da área, cuja memória se constitui
de enunciados que se referem ao que ele tem que saber fazer, deve ou não deve fazer. Assim,
conforme o movimento do jogo discursivo, a análise dos recortes discursivos guiados pela
marca discursiva tem queapontam a diversos efeitos de sentidos de deveres do docente, do
discente e da universidade, para desenvolver a questão ética e dos princípios morais; além
disso, aparecem efeitos de: necessidade de mudança, transformação e avanço; necessidade de
resgate da ética; e de dicotomia da legislação.
No discurso emergiu como o docente tem queser para servir como exemplo ético-
moral para seus discentes: ético e humano, dotado de conhecimento, paciência, disponível
231
para a proximidade do paciente e aluno, voltado a compreender aluno e paciente, a preocupar-
se com a formação do aluno, a dar oportunidades, a impor limites aos alunos, a dar
testemunho, a ser autêntico e único, a amadurecer, crescer e obedecer leis.
Quanto ao
discente, o discurso relacionou-se a efeitos de sentidos com a marca
tem que”, indicando que
o aluno deve: ser criativo, aprender, avaliar-se, responder pelas coisas que faz, aprender a
perder, arcar com as conseqüências dos seus atos, fazer escolhas, pensar, enxergar, respeitar o
outro, saber atender o paciente, ter conhecimentos específicos e habilidades, associar
conhecimentos, entender a realidade, falar, calar quando necessário, apresentar, preparar
trabalhos, trabalhar com o principio ético-moral, avançar, evoluir, tomar decisões, ser
educado, desenvolver aspectos éticos, dar retorno e registrar. Quanto à universidade, o
discurso mostrou o efeito de sentido de que esta deve enfocar a questão ética, trabalhar
reforçando e buscando princípios ético-morais, unir conhecimentos técnicos aos princípios
éticos, definir e escolher docentes com princípios éticos.
O efeito de sentido de mudança, transformação e avanço, direciona-se: aos docentes,
aos usuários do serviço de saúde, à necessidade de humanização e ética.
O efeito de sentido de
resgatar a ética emerge nos recortes: eu acho que tem muito que tem que ser feito ainda
[...]
infelizmente a prática e o exemplo do dia-a-dia mostra que alguma coisa tem que ser feita
(SPE2); e talvez o grande caminho, o grande retorno, tem que ser feito nesse sentido; de
resgatar através da ética [...] tem que ser por (SPM6). O efeito de sentido de desconforto
com a legislação, apareceu na referência feita ao: Programa do Acolhimento, Programa de
Reorientação Curricular, normatização do Sistema Único de Saúde (SUS) e a Portaria
Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar.
Ainda outros efeitos foram identificados com a marca discursiva tem que”, como:
ausência dos pais na formação ética do jovem por necessidade de estar trabalhando, porque
tem que pagar as contas, tem que fazer isso, fazer aquilo, né? (SPM4); desinteresse do
governo pelo funcionamento do sistema de saúde ao dizer: isso é uma rede, é uma rede
organizada, e que tem que funcionar, e onde não funciona mais, porque não um interesse
em nossos governantes que isso funcione mais (SPE7); sistema de saúde mecanicista, ao
dizer: “tem que tomar banho em tal horário é essa, esse mecanicismo, [...], continuam
achando que o corpo é uma máquina que tem que ter horário [...] tem que resolver naquele
momento (SPE12); e conflito do professor frente a um dilema com o aluno, ao enunciar: nós
tivemos que chamá-lo. Furto, a gente sabia que era e tal e chamamos e ele negou. Daí, nós
tivemos que apresentar provas, [...] a gente teve que apresentar provas e tal. [...] teria que
encaminhá-lo para a Polícia Federal. [...] isso é complicado! [...] a gente entra em conflito é
232
quando tu chega à conclusão que tu tem que reprovar um aluno” (SPM11).
As outras marcas discursivas definidas produziram efeitos diversos conforme o
movimento discursivo; evidenciou-se a alternância do uso de pronomes no discurso, eu”,
nós”, ele(s)”, você”, nós conforme o contexto, o pronome na terceira pessoa eles
significava alunos ou pacientes; elese referia ao aluno ou ao curso de graduação no qual
atuava; o pronome você”, indicou uma referência genérica com indeterminação, podendo
referir-se ao aluno, mas também à interlocutora e inclusive ao enunciador que faz a
exemplificação. O pronome indefinido todo(s)”, reforçou o sentido de totalidade e inteireza
do conjunto de sujeitos aos quais se remetia, produzindo sentido de generalização; e o
sintagma nominal a gente”, assinalou seu pertencimento ao grupo de professores produzindo
o efeito do conjunto de professores, por vezes, parecendo incluir a pesquisadora-professora a
quem concediam a entrevista. Lembrando que o sujeito ao enunciar o modalizador “eu acho
(que) p”, no mesmo movimento ele silencia e revela seu “assujeitamento a à voz do Outro, à
ideologia, à cultura” apontando à divisão do sujeito e “indicando a existência imaginária do
Um” desencadeando uma ilusão do imaginário discursivo (BARBISAN, 1995, p. 81). No
discurso analisado evidenciei três tipos de funcionamentos, dos cinco descritos por Barbisan
et al (1995, p. 83); o primeiro funcionamento eu acho que p”, onde não existe integração
entre a Formação Discursiva (FD) do sujeito e outra FD, fazendo que o sujeito assuma a voz
do Outro como sua, assumindo uma posição ingênua pouco crítica em relação às ideologias
circulantes no discurso, foi o mais encontrado; o segundo, eu não acho que p”, e o terceiro,
eu acho que não p”, funcionamentos, que assumem posições de confronto com outras FD,
implicando uma posição de enfrentamento atenuada, foram pouco encontrados. As autoras
interpretam o primeiro funcionamento, como uma posição de sujeito reprodutor que toma
como verdade o discurso sedimentado pela tradição, legitimado historicamente. Ressalto,
entretanto, que não construí a minha análise de modo idêntico a essa pesquisa; não obstante,
também reconheci a diversidade de funcionamentos discursivos ligados à marca eu acho
que”.
O processo argumentativo dos sujeitos-professores sobre justificação moral relativa à
formação ética do discente da enfermagem e medicina, o jogo discursivo, os recortes
analisados com as marcas lingüísticas ética”, “não e tem que”, juntamente ao uso de
pronomes, permitiram sugerir cinco efeitos de sentidos, fortemente marcados no discurso dos
sujeitos-professores, denominados: esvaziamento ético-moral social: transcende a
universidade; resgate da ética humanística na formação dos discentes da saúde; o docente:
referência para a formação ético-moral dos discentes; justificação moral: determinações pelo
233
sistema; e a ética dialógica para o enfrentamento dos dilemas morais.
A materialidade do discurso do sujeito-professor sobre a questão ético-moral dos
discentes produziu o efeito de sentido esvaziamento ético-moral social: transcende a
universidade partindo da análise dos recortes discursivos com as marcas lingüísticas ética”,
nãoe tem que”. Os recortes com ética(o)evidenciaram efeitos de sentidos de crise ética
vivenciada pela sociedade, omissão da família e da escola no processo de formação ético-
moral e educação do jovem, chegando a universidade um jovem sem limites e carente de
princípios ético-morais. Os sujeitos aderiram a um saber freqüentemente circulante no
discurso pedagógico, onde a família deveria ser a responsável pela formação moral e
educação do sujeito, confundindo, por vezes, ética e educação. A análise dos recortes com a
marca não reforça o sentido da falta de valores éticos e educação dos discentes, a
universidade, que pouco tem a fazer, e o deslocamento do tema ética para educação. A marca
tem que” foi reforçada pela marca “não” nos recortes, produzindo efeito de negação do dever
cumprido. No discurso emergiram posições opostas, tanto de valorização dos princípios ético-
morais na formação do discente quanto “falta de comprometimento com o tema da ética”.
Esta “falta” é atribuída ao outro”, à crise ético-moral social, à família e à escola, transpondo
a universidade. Dessa forma, nessa posição, os docentes não assumiriam a responsabilidade,
nem problematizariam a questão da ética. No discurso constatei que a responsabilidade da
formação ético-moral do discente passa da família para a universidade e esta, por sua vez,
repassa aos professores que, por meio de ação individual e intencional, tentam suprir esta
deficiência na formação dos discentes. No discurso emergiu ao institucionalização da
formação ético-moral do discente pela universidade, passando a ser esta responsabilidade de
cada professor. Como alguns professores não se filiam, discursivamente, a esse sentido, o
discurso reforça a necessidade de institucionalizar posturas que desenvolvam a consciência
coletiva do corpo docente. Nos termos da AD, seria adequado dizer que necessidade de
“criar” memória específica sobre a ética, que não está de todo presente no discurso dos
professores, mas conforme apontam está em construção o que é atestado pelos diferentes
exemplos trazidos de suas experiências. Ao analisar este efeito de sentido, tentando fazer uma
interligação entre Habermas e Pêcheux, percebi que ambos crêem nas três dimensões do
mundo da vida (social, cultural e do sujeito) manifestando-se no discurso, bem como
valorizam a história na constituição do sujeito, tal como foi evidenciado: um sujeito-professor
marcado pela história e pelas modificações sociais, atravessado pela memória do dizer e do
discurso “outro”.
O efeito de sentido resgate da ética humanística na formação dos discentes da
234
saúde emergiu após a análise dos recortes conforme as marcas discursivas analisadas. A
marca ética(o)representa uma sistematização do discurso da saúde que circula nos meios
acadêmicos atuais e foram adotados pelas Diretrizes Curriculares que determina uma
formação tradicional humanística, valorizando e preocupando-se com a formação ética dos
discentes. Minha vivência me faz inferir que a maioria dos sujeitos-professores da área da
saúde não leu as Diretrizes Curriculares do curso de graduação onde leciona, contudo elas
perpassam todo o discurso. Os recortes discursivos com a marca lingüística “não reforçaram
os problemas existentes, apontados pelo PNHAH, de desumanização e distanciamento dos
profissionais da saúde do paciente. O discurso mostra uma dicotomia em relação à portaria,
contudo concordância que ela seja o reflexo de uma realidade existente no mundo da vida.
A marca lingüística “tem que” reafirmou o discurso humanístico e desejo de resgate,
produzindo o significado de dever em várias posições: de rever a realidade vivenciada da
formação do discente; de seguir as Diretrizes e PNHAH; de a universidade trabalhar a questão
humana; e de formar enfermeiros e médicos conforme as competências gerais estabelecidas
pelas Diretrizes. Na associação das marcas lingüísticas éticae nãoemergiu o significado
que a formação ética será alcançada, unindo-se o conhecimento técnico-científico à
humanização; e a associação entre ética e tem que evidenciou que algo tem que ser
feito” para mudar e transformar a teoria em prática. Percebi no discurso os efeitos de:
preocupação em relação à ética e de direcionamento ao seu resgate; contribuição da
universidade para a formação ética do discente através do seu quadro docente; e necessidade
de comprometer a universidade em trabalhar a questão humana. No discurso, o tecnicismo foi
apontado como um dos motivos da desumanização na área da saúde; a sujeição ao aparelho
técnico é reconhecida por Habermas, afirmando que a ciência e a técnica perpassam todas as
instituições na contemporaneidade; conforme Pêcheux, essa ocorrência que enfatiza a
reprodução do mesmo sentido se deve ao efeito ideológico. Tanto para Habermas quanto para
Pêcheux o sujeito não determina sua forma de ser no mundo, mas é determinado por ele;
embora o assujeitamento não seja total, e os sentidos “prontos” possam ser questionados pelo
sujeito ao significar, muitas vezes o sujeito se torna mero reprodutor desses sentidos,
contribuindo, com suas ações, para perpetuá-los; os profissionais da saúde que se tornam
tecnicistas e desumanizados sofreram as determinações do sistema.
O docente: referência para a formação ético-moral dos discentes, surgiu no
discurso na análise dos recortes selecionados. A marca discursiva ética(o)” produziu o efeito
de “espelho”, isto é, o modelo de referência ao qual a pessoa se identifica é determinante para
sua postura ética; assim sendo, a criança se identifica com os pais e o discente com o docente,
235
por isso, o discurso enfatiza a importância do professor pensar e fazer de forma condizente,
pois sua postura servirá de modelo ético-moral aos alunos. Mais uma vez, a marca lingüística
não reforçou o efeito evidenciado com a marca ética sobre a importância do “modelo
professor” como referência para a formação ético-moral do aluno; o discurso aponta a
dificuldade de viabilizar na prática a teoria. Nas formulações apresentadas com tem que
aparece a participação ativa do professor na prática com o aluno e o esforço dos sujeitos-
professores em aplicar na prática a teoria, destacando os deveres tanto do professor quanto do
aluno. Os recortes com associações das marcas discursivas reforçaram a significação
produzida anteriormente e a importância da vivência prática entre professor-aluno, permitindo
que ambos fiquem juntos frente aos mais diversos cenários, oportunizando ao professor
desenvolver uma metodologia ativa com inserção de aspectos éticos, estimulando a formação
ético-moral juntamente com a formação técnica. Ao perceber, no discurso dos sujeitos-
professores, as vozes das Diretrizes Curriculares, produzindo o efeito de unicidade e
homogeneidade, relacionei o efeito de “monologismo”, ou seja, quando diversos discursos são
afetados pela mesma formação discursiva, reproduzindo um único discurso com uma
homogeneidade ilusória; Habermas e Pêcheux, vale destacar, consideram a ilusão da
homogeneidade do discurso e na interlocução entre os sujeitos, conforme constatado.
O efeito de sentido justificação moral: determinações pelo sistema emergiu da
análise dos recortes, guiados pelas marcas discursivas analisadas: ética(o)apontou à
junção dos problemas de relações humanas aos problemas éticos; não”, marcou o poder do
sistema econômico dominante, o poder político permeando todas as áreas do conhecimento, o
crescente avanço tecnológico e o tecnicismo produzindo relações desumanizadas na saúde e
crise ética; e tem quesignificou que é dever do sistema político a saúde e a educação. A
associação das marcas ética(o) e não permitiu: entrelaçar os interesses econômicos e
históricos, apontando o problema atual de proliferação desordenada das escolas de nível
superior, em especial as escolas médicas; denunciar a complexa relação político-econômico-
social existente nas políticas públicas no sistema de saúde brasileiro, gerando problemas
éticos na educação e dilemas entre professores e profissionais da saúde; e a fragmentação do
discente que, ao se tornar profissional, é absorvido pelo sistema, que rege toda a sociedade. A
associação entre “ética(o)” e “tem que” indicou o sentido de como deveria ser o atendimento à
saúde, aliando conhecimento técnico à humanização e à ética, desencadeando uma reflexão
sobre a situação do sistema de saúde no contexto sócio-político-econômico brasileiro e
conseqüentemente sobre o PNHAH. Para Habermas (2005) a essência da teoria de sistemas
supõe que todas as esferas de ação social são controladas pelo dinheiro e por uma
236
administração estatal regulada por relações de poder; de forma semelhante, Pêcheux (1997, p.
143) acredita que a ideologia não seja “o único elemento dentro do qual se efetuaria a
reprodução/transformação das relações de produção de uma formação social; isso seria
ignorar as determinações econômicas que condicionam ‘em última instância’ essa
reprodução/transformação, no próprio interior da produção econômica”.
O efeito de sentido a ética dialógica para o enfrentamento dos dilemas morais,
emergiu da análise das formulações discursivas resultantes de relatos dos sujeitos-professores
sobre dilemas morais vivenciados com seus alunos. Estes dilemas foram constituídos pelos
sujeitos caracterizando sua inserção na área da saúde e ainda na área do ensino da saúde. Os
sujeitos-professores ao serem perguntados sobre os dilemas morais enfrentados com os
discentes, apresentaram diversas reações, tais como: silêncio propriamente dito ou o não-
dizer; o apagamento da palavra ética; e a palavra moral pouco enunciada no discurso. A
marca nãomarcou o dilema, confrontando posições diferentes possíveis; no jogo entre o
dito e o silenciado produziu efeitos de: incerteza do docente frente à tomada de decisão; não-
julgamento das pessoas pelas suas condutas; incapacidade de resolver sozinho certas situações
conflitantes geradoras de dilemas morais; rechaço do aluno em atender pacientes pobres e sem
condições; e oportunizar chance de recuperação aos alunos com desvio de conduta através do
diálogo e tentativa de conscientização. A marca “tem que” produziu o efeito de como deve ser
o educador e o efeito de dúvida dos professores sobre a transformação do aluno. A única
associação possível foi entre as marcas discursivas moral e não”, produzindo efeito de
reflexão sobre os dilemas morais vivenciados, contudo, após um período de silêncio, surgiu
na memória um dilema muito significativo. Em todas as situações de dilemas, o
enfrentamento ocorreu por meio do diálogo entre professor e aluno, com indicação da conduta
ética a ser seguida, como forma de enfrentamento para resolução dos dilemas, logo, a
interface entre Habermas e Pêcheux apontou ao uso da linguagem entre os sujeitos, visando à
significação da realidade. As posições de professor e de aluno são distintas, mas
compreendem a inserção no discurso da instituição social, que é a universidade. É nessa
condição que se estabelece a interlocução. A prática discursiva adotada pelo professor,
investido do papel educativo que lhe concerne na academia, incluiu sempre a prática da
conversa oral com o aluno, antes da sanção. Cabe salientar a diversidade de dilemas,
relacionados à área da saúde e ensino profissional universitário desta, emergidos no discurso,
resultantes das vivências dos docentes da enfermagem e medicina com seus discentes,
reforçando a importância do tema em estudo.
Concluindo, a análise do discurso do sujeito-professor universitário permitiu
237
evidenciar que a responsabilidade pela formação ético-moral do discente é atribuída à família,
no entanto, as transformações sociais trouxeram mudanças na formação do jovem, que chega
à universidade com carências quanto a limites e à definição de valores ético-morais. A
justificação moral dos problemas existentes na área da educação e da saúde recai no sistema
econômico-político-social e, ao responsabilizarem o sistema pela crise ética, os sujeitos-
professores fazem um exercício de reflexão para significar o que seja ética para eles próprios
a partir de suas experiências práticas que vão relatando e sobre as quais vão se pronunciando,
procurando dar um sentido próprio para a ética. O discurso apontou o diálogo entre o
professor-aluno, como forma de enfrentar os conflitos morais vivenciados pelos sujeitos-
professores. Mesmo na relação assimétrica entre professor e aluno, evidenciei a possibilidade
de entendimento consensual guiados por valores maiores.
A análise aprofundada do corpus, constituído pelas quinze entrevistas, permitiu
encontrar semelhanças nos efeitos de sentidos evidenciados no ensaio do estudo piloto, cujo
corpus se restringiu a apenas uma entrevista; destaco que na AD, em especial nesta pesquisa,
o enfoque analítico vertical é preponderante.
No processo argumentativo sobre a moral(idade) e ética(idade) evidenciei que, tanto o
professor que participou do estudo piloto quanto os demais, não utilizaram um saber
especializado e teorizado para enunciar sobre a temática pesquisada, não havendo
aprofundamento da dimensão filosófica, referindo-se à ética e à moral do saber prático, como
sinônimos, corroborando o senso comum; desse modo, parece que este tema não se encontra
internalizado na memória do dizer da área onde se situa a formação discursiva e onde se
inscreve o sujeito-professor.
Um aspecto que não poderia deixar de comentar, foram as semelhanças que encontrei
neste estudo ao compará-la a pesquisa de Castilho (2005, p. 139), que analisou “o sujeito-
professor, graduado em Pedagogia, licenciado para exercer a profissão, no sistema de ensino,
na especificidade dessa graduação”. Além de ambas as pesquisas enfocarem o funcionamento
das marcas lingüísticas nãoe tem que”, vários efeitos de sentidos emergiram do discurso
dos sujeitos-professores universitários da enfermagem e medicina, semelhantes aos efeitos
produzidos pelas pedagogas-professoras que atuam na educação infantil e nos primeiros anos
do ensino fundamental. Esses efeitos de sentidos de ressonância parecem configurar o lugar
de professor no discurso pedagógico, mesmo em áreas e contextos diversos. Essas
semelhanças, no que tange à universidade como instância de produção de sentidos, encontram
explicações no pensamento de Habermas (2005), quando diz:
238
[...] os processos de aprendizagem, no âmbito da universidade, não mantêm apenas
uma relação de troca com a economia e a administração, pois preservam uma
ligação interna com as funções de reprodução do mundo da vida. Pelo fato de
exercitarem o modo de pensar científico, isto é, ao ensinarem o enfoque hipotético
em relação a fatos e normas, elas não se limitam à preparação de uma profissão
acadêmica, uma vez que contribuem para processos gerais de socialização; [...] e
mediante as teorias da ciência, da moral, da arte e da literatura, elas fornecem uma
contribuição para o auto-entendimento das ciências na totalidade da cultura. E, por
intermédio do preenchimento simultâneo dessas diferentes funções, a forma
universitária dos processos de aprendizagem científicos enraíza as disciplinas
especializadas diferenciadas no mundo da vida.
[...] os processos de aprendizagem universitários, por mais variados que sejam suas
funções, são mantidos coesos, em última instância, pelas formas comunicativas da
argumentação científica. [...] seus processos de aprendizagem estão inseridos numa
comunidade pública de comunicação [...] Mesmo fora da universidade, certos
processos de aprendizagem revelam elementos cuja origem é universitária. Todos
eles vivem da força estimuladora e produtiva de uma disputa discursiva [...]
(HABERMAS, 2005, p. 97, 98, 99, 100).
Habermas (2005, p. 101) termina esta reflexão, dizendo que as formas de
argumentação, provenientes da comunidade de comunicação acadêmica, expressa
inicialmente “as normas do empreendimento das ciências, não a sociedade em sua totalidade.
Mesmo assim, elas tomam parte, de modo eminente, na racionalidade comunicativa, em cujas
formas as sociedades modernas [...] são obrigadas a se entender sobre si mesmas”.
Finalizando, creio que esta pesquisa tenha contribuído para a discussão e a reflexão
sobre a formação dos profissionais da saúde. Após estudar como as relações de sentido foram
sendo tecidas, transformadas e apagadas, entre dito e não dito, penso que a AD me permitiu
compreender os efeitos de sentidos produzidos no discurso dos sujeitos-professores sobre a
questão ético-moral na formação dos discentes de enfermagem e medicina.
239
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252
APÊNDICE A
22
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
A pesquisa intitulada A QUESTÃO ÉTICO-MORAL NA FORMAÇÃO DOS
ENFERMEIROS E MÉDICOS: efeitos de sentidos nos discursos docentes”, tem por tema a
moral(idade) e ética(idade) na formação discente do médico e enfermeiro, e como objetivo
geral “compreender os efeitos de sentidos produzidos no discurso dos sujeitos docentes, da
Enfermagem e Medicina, sobre a questão ético-moral na formação dos discentes”. Trata-se de
uma tese como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, no Programa de Pós-
Graduação em Educação – PPGEDU, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS. A coleta de informações será realizada no decorrer do ano de 2006 e 2007.
A pesquisa, que privilegiará a abordagem qualitativa, será efetuada através de
entrevistas com os professores universitários dos cursos de graduação em Enfermagem e
Medicina, de duas universidades, uma pública e outra privada. Os sujeitos da pesquisa serão
convidados a fornecer informações a respeito do tema e do objetivo acima propostos.
Ressalta-se que as entrevistas serão gravadas.
O material coletado será de uso exclusivo da pesquisadora, sendo utilizado com a
única finalidade de fornecer elementos para a realização da tese e dos artigos e comunicações
que dela resultem.
Durante o processo em curso, e mesmo na escrita da tese será assegurada a
confidencialidade dos dados e das informações que possibilitem a identificação do
participante da pesquisa.
Esta pesquisa não fornece nenhum dano ou desconforto aos participantes, no entanto
se, no decorrer do procedimento o/a participante vier a manifestar sua vontade de que a
entrevista seja interrompida e/ou seu conteúdo não utilizado na pesquisa, o pesquisador
atenderá a sua vontade. O material coletado também não poderá ser objeto de comercialização
e/ou divulgação que possa prejudicar os(as) entrevistados(as).
É compromisso de esta pesquisadora manter os(as) participantes informados(as) sobre
o andamento da pesquisa e, ao final de sua realização, comunicar-lhe(s) os resultados e/ou
devolver-lhe(s), de alguma forma, o produto alcançado.
Eu ................................................................................................................., telefones
para contato número(s): ................................................................................................ concordo
em participar voluntariamente desta pesquisa.
_________________________________ ____________________________________
Assinatura da pesquisadora Assinatura do(a) entrevistado(a)
Telefones: 33342042 ou 99421001
22
Segundo Resolução 196/96. Modelo adaptado do Termo de Consentimento Informado fornecido na disciplina
“METODOLOGIA DA PESQUISA APLICADA À EDUCAÇÃO: uma abordagem qualitativa”, ministrada pela
Profa. Marlene Ribeiro, no PPGEDU, no segundo semestre de 2005.
253
APÊNDICE B – FICHA INFORMATIVA
DATA: TEMPO DA ENTREVISTA:
1. Dados de Identificação:
Nome:........................................................................................................................................................
Idade:...................................................... Sexo:.........................................................................................
2. Informações Profissionais:
Profissão:....................................................................................................................................................
Formação:...................................................................................................................................................
Pós-Graduação: ( ) Sim ( ) Não
Caso positivo na resposta anterior, cite sua maior titulação: ....................................................................
Tempo que trabalha na profissão:..............................................................................................................
Tempo que trabalha no ensino superior:....................................................................................................
Tempo que trabalha nesta instituição:........................................................................................................
Outro(s) local(is) de trabalho(s) atualmente: ............................................................................................
Ocupa cargo(s) de chefia ou direção em algum do(s) local(is) de trabalho? ............................................
Leciona alguma disciplina na graduação? ( ) Sim ( ) Não
Caso positivo na resposta anterior, cite as disciplinas que leciona e o semestre em que elas ocorrem na
grade curricular. ........................................................................................................................................
....................................................................................................................................................................
Existe a disciplina de Ética na grade curricular do curso que você leciona? ( ) Sim ( ) Não
3. Religiosidade:
Você freqüenta alguma religião: ( ) não; ( ) sim, raramente; ( ) sim, eventualmente;
( ) sim, regularmente; ( ) tenho fé, porém não freqüento nenhuma religião
254
APÊNDICE C – ROTEIRO PARA ENTREVISTA
Q
UESTÃO DA
É
TICA NA
E
DUCAÇÃO
S
UPERIOR
Como você acha que a academia contribui na formação ética e moral do acadêmico?
Diga como você percebe a formação ética dos acadêmicos de Enfermagem/Medicina.
O que acha mais importante em relação a sua disciplina?
Como você faz para alcançar os objetivos propostos em sua disciplina? Exemplifique.
C
ONFLITOS
M
ORAIS NA
E
DUCAÇÃO
S
UPERIOR
Você já enfrentou algum dilema moral na educação dos seus acadêmicos?
Caso afirmativo relate qual foi sua vivência.
Quando você está diante de uma situação moralmente conflitante com o acadêmico como
você reage?
P
ORTARIA N
O
881
DE
19/6/2001
SOBRE
PNHAH
Você ouviu falar na Portaria n
o
881 de 19 de junho de 2001 sobre o Programa Nacional
de Humanização da Assistência Hospitalar?
O preâmbulo desta Portaria propõe a
Criação de uma nova cultura de atendimento [...], pautada no mais amplo respeito à
vida humana e pela observância dos princípios éticos-morais na convivência entre
profissionais e paciente [...] e considera que a qualidade da assistência não se limita
ao aperfeiçoamento técnico-científico [...], mas depende [...], de um novo padrão de
convivência entre profissionais de saúde e o cidadão (BRASIL, 2001).
Qual é sua posição referente ao enunciado da portaria (mostrar preâmbulo escrito).
Por que você acha que foi necessário criar uma Portaria com esse teor normativo?
Como você acha que a prática na universidade está contribuindo para formar profissionais
da saúde que atendam o apelo desta portaria na construção de uma cultura de atendimento
a saúde da população, pautada pelo respeito à vida humana?
Gostaria de dar mais alguma contribuição para esta pesquisa?
255
ANEXO A
MINISTÉRIO DA SAÚDE
GABINETE DO MINISTRO
PORTARIA Nº 881, DE 19 DE JUNHO DE 2001.
DO 119-E, de 21/6/01
O Ministério de Estado da Saúde, no uso de suas atribuições,
Considerando a necessidade da criação de uma nova cultura de atendimento
aos usuários nas organizações em saúde, pautada pelo mais amplo respeito à vida humana,
pela observância dos princípios ético-morais na convivência entre profissionais e usuários,
para a conquista da qualidade no atendimento à saúde;
Considerando que a busca pela maior qualidade na assistência hospitalar não se
limita ao aperfeiçoamento técnico, científico e gerencial dos recursos existentes, mas
depende, fundamentalmente, de um novo padrão de convivência entre o profissional de saúde
e o cidadão usuário, e
Considerando a necessidade de implantar ações que visem à mudança do
padrão de assistência ao usuário do Sistema Único de Saúde, melhorando a qualidade e
eficácia da assistência hoje prestada, resolve:
Art. Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional
de Humanização da Assistência Hospitalar – PNHAH.
Parágrafo Único. O Programa Nacional de Humanização da Assistência
Hospitalar objetiva promover a humanização da assistência hospitalar, a partir de intervenções
institucionais para a criação, desenvolvimento e sustentação de iniciativas humanizadoras,
introduzidas progressiva e permanentemente, visando, em seu conjunto, a construção de uma
nova cultura de atendimento à saúde da população, pautada no respeito à saúde da população,
pautada no respeito à vida humana.
Art. Estabelecer que poderão participar do Programa Nacional de
Humanização da Assistência Hospitalar PNHAH todos os hospitais integrantes do Sistema
Único de Saúde.
Art. Definir que da fase de implantação do Programa de Humanização da
Assistência Hospitalar PNHAH deverão participar os hospitais que fazem parte do projeto
piloto de humanização; os hospitais do Programa de Centros Colaboradores para a Qualidade
da Gestão e Assistência Hospitalar e os hospitais que receberam o Prêmio Galba de Araújo,
em 1999 e 2000.
Art. 4º Determinar que a Secretaria de Assistência à Saúde/SAS/MS adote
todas as medidas necessárias à normatização do Programa de Humanização da Assistência
Hospitalar
Art. Esta Portaria entrará em vigor na data de sua publicação, revogada as
disposições em contrário.
JOSÉ SERRA
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