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pequeno, onde apenas se percebiam, num fundo lascado, os tons avermelhados de
cobre de um bojo de caçarola e os rosados desbotados de um molho de rabanetes!
Defronte, na outra parede, era o retrato de seu pai: estava vestido à moda de 1830,
tinha a fisionomia redonda, o olho luzidio, o beiço sensual; e sobre a sua casaca
abotoada reluzia a comenda de Nossa Senhora da Conceição. Fora um antigo
empregado do Ministério da Fazenda, muito divertido, grande tocador de flauta.
Nunca o conhecera, mas a mamã afirmava-lhe que o retrato só lhe faltava falar.
Vivera sempre naquela casa com sua mãe. Chamava-se Isaura: era uma senhora
alta, de nariz afilado, muito apreensiva; bebia ao jantar água quente; e ao voltar um
dia do lausperene da Graça, morrera de repente, sem um ai!
Fisicamente Jorge nunca se parecera com ela. Fora sempre robusto, de
hábitos viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus ombros fortes.
De sua mãe herdara a placidez, o gênio manso. Quando era estudante na
Politécnica, às oito horas recolhia-se, acendia o seu candeeiro de latão, abria os
seus compêndios. Não freqüentava botequins, nem fazia noitadas. Só duas vezes
por semana, regularmente, ia ver uma rapariguita costureira, a Eufrásia, que vivia ao
Borratem, e nos dias em que o Brasileiro, o seu homem, ia jogar o bóston ao clube,
recebia Jorge com grandes cautelas e palavras muito exaltadas; era enjeitada, e no
seu corpinho fino e magro havia sempre o cheiro relentado de uma pontinha de
febre. Jorge achava-a romanesca, e censurava-lho. Ele nunca fora sentimental; os
seus condiscípulos, que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam ter amado
Margarida Gautier,
chamavam-lhe proseirão
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, burguês; Jorge ria; não lhe faltava um
botão nas camisas; era muito escarolado; admirava Luís Figuier, Bastiat e Castilho,
tinha horror a dívidas, e sentia-se feliz.
Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só: era no inverno, e
o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia as
rajadas do vento na sua prolongação uivada e triste; sobretudo à noite, quando
estava debruçado sobre o compêndio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias
lânguidas; estirava os braços, com o peito cheio de um desejo; quereria enlaçar uma
cinta fina e doce, ouvir na casa o frufru de um vestido! Decidiu casar. Conheceu
Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela
sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno
seguinte foi despachado, e casou. Sebastião, o seu íntimo, o bom Sebastião, o
Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscilação grave da cabeça, esfregando
vagarosamente as mãos:
— Casou no ar! Casou um bocado no ar!
Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito
simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um
passarinha amiga do ninho e das carícias do macho; e aquele serzinho louro e
meigo veio dar à sua casa um encanto sério.
— É um anjinho cheio de dignidade! — dizia então Sebastião, o bom
Sebastião, com a sua voz profunda de basso.
Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele próprio
melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E recordando aquela existência
fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma dilatada, sentindo-
se tão bem na vida como no seu jaquetão de flanela!