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O caixeiro predileto de Manuel fechou à chave a cancela de madeira polida,
que separava a varanda do corredor, e, depois de olhar em torno, seguiu para o
quarto de Raimundo, faiscando, nem ele sabia bem o quê. Pôs-se a esquadrinhar o
que lá havia, não com a curiosidade amorosa da primitiva bisbilhoteira, porém frio,
calculado, com a prudência de quem sabe que está cometendo uma baixeza. E
abria gavetas, lia os manuscritos que encontrava, revistava as algibeiras da roupa
estendida no cabide, folheava os livros, examinando tudo, todos os cantinhos. Em
Uma das malas encontrou um folheto de capa verde, guardou-o logo, depois de lhe
ter lido o frontispício, e afinal, quando já nada mais tinha para dar fé, retirou-se sem
deixar o menor vestígio do que fez. Daí seguiu para o aposento de Ana Rosa, mas
teve logo uma contrariedade: a porta estava fechada; rebuscou a chave na varanda,
pelos cantos, não a encontrou, e subiu então rapidamente ao segundo andar, donde
trouxe um pedaço de cera, com que modelou a fechadura. Em seguida atirou-se
para o quarto de Maria Bárbara, experimentou a porta; estava também fechada. Mas
havia um postigo Dias espremeu-se por esse e conseguiu entrar.
O aposento da velha conduzia com a dona. Sobre uma cômoda antiga, de
pau-santo, com puxadores de metal e coberta por um oleado já puído e gasto,
equilibrava-se um oratório de madeira, caprichosamente trabalhado e cheio de uma
porção variadíssima de santos, havia entre eles, feitos de casca de cajá, de gesso,
de terra vermelha e de porcelana. O Santo Antônio de Lisboa, vindo de encomenda,
com o pequeno ao colo, lá estava, muito rubicundo e lustroso; a Santa Ana,
ensinando a filha a ler: um São José de cores cruas, detestavelmente pintado; um
São Benedito, vestido de frade, pretinho, de beiços encarnados e olhos de vidro: um
São Pedro, cujas proporções o faziam criança ao lado dos outros, uma miuçalha de
santinhos, pequenitos e caricatos, que a gente não podia ver sem rir e que se
escondam na peanha dos grandes; e, finalmente, um grande São Raimundo Nonato,
calvíssimo, barbado, feio, e com um cálice na mão direita. Ao fundo do oratório
litografias de carregação representavam Santa Filomena, a fugida de São José com
a família, Cristo crucificado e outros assuntos religiosos. O grupo dos santos
ressentia-se de uma falta, a de João Batista, que havia desertado para a quinta.
Havia ainda sobre a cômoda dois castiçais de latão, guarnecidos de papel rendado,
com as velas de cera meio gastas; um grupo de biscuit representando a Mater
dolorosa e um menino Jesus, fechado numa manga de vidro, por causa das moscas.
Encostada a parede, uma palma de pindoba benta a qual, segundo a voz do povo,
tinha a virtuosa propriedade de apaziguar os elementos em dias de tempestade,
duas outras palmas casquilhas, enfeitadas de pano e malacacheta, guarneciam os
lados do oratório. Viam-se ainda, por toda a parte, quadrinhos de gravuras e cromos,
onde se liam orações milagrosas, a do Monte Serrate, a do Parto, a da Virgem, e
outras, sem desenho, com que os tipógrafos espertos da província exploravam a
carolice das beatas.
Contrastando com tudo isto, destacava-se, dependurada na parede, uma
formidáveis palmatória de dar bolos, negra, terrível e muito lustrosa de uso.
Defronte do oratório simetrizavam duas molduras envidraçadas, expondo
cada qual uma talagarça cheia de amostras dos diversos bordados de lã, que as
meninas aprendem no colégio. “Panos de tapete” como se diz no Maranhão. Em
uma delas liam-se no centro as iniciais M. R. S. e “Colégio da Trindade em l838”, e
na outra, que estava em melhor estado de conservação “A. R. S. S.” e Uma data
muito mais recente. A julgar por estas letras, os dois quadros tinham sido bordados
por Mariana e Ana Rosa, mãe e filha. Tudo isso foi minuciosamente esmerilhado
pelo Dias; leu as Horas Marianas, apalpou as roupas de Maria Barbara, provou a