Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Frederico Duarte Bartz
O Horizonte Vermelho:
O impacto da revolução russa no movimento operário
do Rio Grande do Sul, 1917-1920
PORTO ALEGRE
MAIO DE 2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Frederico Duarte Bartz
O Horizonte Vermelho:
O impacto da revolução russa no movimento operário
do Rio Grande do Sul, 1917-1920
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em História.
Orientadora: Prof. Dr. Sílvia Regina Ferraz
Petersen
Porto Alegre
Maio de 2008
2
ads:
RESUMO
Esta dissertação tratará do impacto da revolução russa no movimento operário do Rio
Grande do Sul entre 1917 e 1920. A revolução russa foi um dos processos históricos mais
importantes do século XX, sendo a primeira revolução operária que sobreviveu por um
longo tempo e conseguiu criar instituições duradouras.
Durante os primeiros anos da revolução russa no Rio Grande do Sul se vivia um
momento de grande agitação entre os trabalhadores, com a deflagração de greves, a criação
de novos sindicatos e o surgimento de muitos jornais de classe. Neste contexto, aparecem
as primeiras associações de trabalhadores que se diziam identificados com as idéias da
revolução russa, também surgem declarações de apoio à revolução e desejo de seguir o
caminho da Rússia dos Soviets entre os militantes operários.
Por esta recepção e o período de mobilização, acredito ser necessário estudar como a
revolução russa influenciou as idéias e as formas de ação do movimento operário do Rio
Grande do Sul, considerando a ideologia dos militantes, suas origens étnicas e culturais,
suas formas de associação e de luta contra o estado e a burguesia.
Palavras-chave: movimento operário, revolução russa, primeira república.
3
RESUMÉE
Cette étude traitera de l'impact de la révolution russe en mouvement ouvrier de Rio
Grande do Sul. La révolution russa a été un des plus importants processus historiques du
siècle XX, en étant la première révolution ouvrière qui a survécu pour un long temps et est
parvenue à élever des instituiciones durables.
Pendant les premières années de la révolution russe dans le Rio Grande do Sul on
vivait un moment de grand agitation entre les travailleurs avec la déflagration de grèves, la
creatión de nouveaux syndicats et le surgissement de periodiques de classe. Dans ce
contexte apparaissent les premières associations qui sont identifiées avec les idées de
révolutionne russe, aussi apparaissent déclarations d'appui à la revolution et desir de suivre
le chemin de la Russie des Soviets entre les militants ouvriers .
Par cette réception et la période de mobilisation, je crée être nécessaire d'étudier
comme la révolution russe a influencé les idées et les manières d'action du movimento
ouvrier durant ces années, considérant l'idéologie des militants, ses origines éthniques et
culturelles, leurs formes d'association et de combattre contre l'état et la bourgeoisie.
Paroles-clés: mouvement ouvrier, revolution russe, premiere republique en Bresil.
4
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, como é de praxe, agradeço ao Programa de Pós-Gradução em História
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao CNPq, por me financiarem uma bolsa
integral, sem a qual não teria conseguido me dedicar a esta dissertação como me dediquei.
Agradeço ao Professor Marcelo Badaró Mattos, ao Professor Benito Schimidt e à
Professora Beatriz Loner, por terem aceitado participar da minha banca. Agradeço de forma
especial à Professora Carla Rodeghero, que participou da minha banca de qualificação e
com quem tive, no mestrado, uma das melhores cadeiras que já cursei nesta Universidade,
apesar desta, sobre historiografia da Ditadura Militar, nada ter a ver com meu tema de meu
trabalho. E sou também igualmente grato aos colegas que entraram junto comigo neste
curso, como o Ricardo Oliveira, o Diego Vivian, o Tiago Leitão, a Carla Menegat, o Fábio
Chang e o Cleber Carls, que fizeram daquelas tardes algo muito mais interessante que
simples encontros acadêmicos.
Agradeço aos professores que ajudaram em minhas pesquisas e me ajudaram a pensar
meu tema de trabalho. Novamente ao Professor Benito Schimidt, com quem pude
estabelecer uma fecunda troca de idéias e que, de um outro ponto de vista, pôde enriquecer
meu trabalho com novas referências. Ao Professor Adhemar Lourenço da Silva Junior e
mais uma vez à Professora Beatriz Loner, por terem me dispensado paciência e terem me
cedido seus materiais de pesquisa enquanto eu fazia minhas incursões aos arquivos do
movimento operário do sul do estado. Também agradeço ao Mário San Segundo, que me
hospedou na sua casa em Pelotas e conseguiu para mim hospedagem em Rio Grande, sendo
meu guia naquelas duas cidades. Agradeço ao Artur Peixoto, que me cedeu um
esclarecedor documento sobre Abílio de Nequete e ao Tiago Bernardon, com quem
estabeleci não só uma frutífera relação de troca de documentos, mas também um vínculo de
amizade.
Mas agradeço, sobretudo, a minha orientadora Sílvia Petersen. Ela foi sempre
atenciosa, me tratou com respeito e foi me incentivando a desenvolver um trabalho cada
5
vez melhor. Também devo a ela a noção de que meus escritos não deveriam ser somente
meus, pois quando fazemos uma pesquisa devemos ter em mente que muitos outros além
do orientador e do orientando poderão lê-los, o que dá ao estudo um caráter muito mais
público e coletivo do que um solitário exercício intelectual. Posso dizer, sem sombra de
dúvida, que sem o seu conhecimento do tema e sua experiência no estudo do movimento
operário, minha dissertação teria ficado muito aquém do que foi aqui desenvolvido.
Agradeço aos amigos dos tempos da graduação em história na UFRGS, com quem
mantive contato durante o mestrado. Destaco antes de tudo à Joana D’Ávila e o Gabriel
Aladrén, meus primeiros amigos de verdade no curso, com quem aprendi muitas coisas e
não somente no campo das idéias, mas também das ações na realidade. Agradeço ao
Gabriel Berute e a Fabiane Mancilha, que foram amigos preciosos. Alguns destes amigos
estão longe agora, mas não os esqueci e espero que em breve possa encontrá-los, para
contar da sensação de acabar este árduo trabalho. Também agradeço ao Guinter, ao
Fernando e ao Nauber, os dois últimos que, como eu, também escolheram ser “militantes”
da história da classe operária. Guardo também um agradecimento especial à Thais e ao
Gabriel Focking, este último que me ajudou inúmeras vezes durante estes dois anos, sendo
para mim um exemplo de abnegação e companheirismo.
Agradeço aos novos amigos que encontrei e cujas marcas também podem ser
encontradas neste trabalho. Agradeço à Cássia e ao Marcus, que não só foram grandes
colegas, como também ajudaram a me tornar professor de um curso pré-vestibular popular,
o Alternativa Cidadã, o que tem sido motivo de grande alegria para mim. À Mariana, à
Fernanda, ao Tiago e à Isabela, colegas de outros cursos, de outras barras, com quem nunca
tinha convivido antes, mas que hoje parecem ser meus amigos há muito tempo. Também
agradeço à Alanna, que conheci não faz muito, mas que já se tornou uma pessoa muito
importante para mim. A companhia de vocês fez deste período final do curso algo muito
mais alegre do que a rotina mecânica de aprimorar ortografia e observar as normas da
ABNT. Vou lembrar nossas conversas absurdas nos bares da Cidade Baixa, em que tudo ia
contra o senso comum, em que não parecíamos fazer parte deste lugar, mas parecíamos ser
imigrantes ou refugiados de um país perfeito que nunca aconteceu.
6
Os últimos e principais agradecimentos são dedicados à minha família. À minha irmã,
Débora Bartz, que tem sido sempre a minha melhor amiga e ao meu pai e minha mãe. É a
Frederico Bartz Netto e a Diná Duarte Bartz a quem realmente dedico este trabalho. Eles
foram camponeses que vieram para cidade ser engolidos pela sociedade urbano-industrial.
Talvez fosse demagógico dedicar este estudo à classe trabalhadora do Rio Grande do Sul,
nesta impossibilidade, dedico a meus pais, mas não somente por serem parte dela, mas
também por terem me formado com a carga de suas experiências pessoais; tudo eu devo a
eles e quando escrevia este trabalho, não pensava apenas naquelas pessoas que encontrava
em relatos perdidos e velhos papéis, eu também pensava neles.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................10
1. “O CÍRCULO QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE”: a revolução russa e seus
impactos internacionais.........................................................................................................33
1.1.A revolução russa................................................................................................33
1.2.A revolução mundial...........................................................................................39
2. “HOSANNA, HOSANNA, FILHA DA JUSTIÇA QUE VENS PARA NÓS EM NOME DA
LIBERDADE”: a experiência operária no Rio Grande do Sul e as primeiras interpretações
da revolução russa pelos trabalhadores organizados do estado.............................................45
2.1.A trajetória do movimento operário no Rio Grande do Sul e suas características
nos primeiros anos da revolução russa..................................................................................45
2.2. As condições sociais de apropriação dos impactos iniciais da revolução russa
entre os operários gaúchos....................................................................................................61
3. “A HUMANIDADE É UM TURBILHÃO E O MUNDO UM CREPITAR DE CHAMAS”:
as transformações nas formas de interpretar a revolução russa no ano das grandes greves;
novas experiências, novas leituras........................................................................................73
3.1. A revolução como um processo universal.........................................................75
3.2. A Rússia como concretização das esperanças operárias....................................83
3.3. A luta contra as interpretações burguesas da revolução russa; O Syndicalista
versus Correio do Povo em Porto Alegre e a polêmica em torno do militarismo no Rebate,
de Pelotas..............................................................................................................................90
3.4.O esforço analítico dos militantes sobre a revolução russa................................96
4. “PARECERÁ ABSURDO QUE UM LIBERTÁRIO QUE TEM POR TEMA A PAZ E A
CONCORDIA EXCLAME: SALVE A REVOLUÇÃO!” a identificação dos militantes com a
revolução e as aproximações contraditórias com o sonho revolucionário..........................105
8
4.1. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: algumas formas possíveis de
identificação com os ideais da revolução............................................................................106
4.2. Trajetórias de vida, identidades étnicas e escolhas políticas na aproximação com
a revolução russa.................................................................................................................111
a) Friedrich Kniestedt e Zenon de Almeida: duas formas distintas dos anarquistas se
relacionarem com a revolução russa.......................................................................111
b) Abílio de Nequete: a revolução russa por uma perspectiva étnica e religiosa........122
c) Carlos Cavaco: a escolha pela revolução de fevereiro............................................130
5. “A VOSSA DIVISÃO É A VOSSA FRAQUEZA- UNI-VOS POIS!, E, NÃO HAVERÁ
FORÇA ALGUMA QUE POSSA VOS ENFRENTAR”: associações comunistas do Rio
Grande do Sul e suas relações com grupos similares do centro do país.............................134
5.1. O surgimento das associações comunistas e maximalistas no Rio Grande do
Sul.......................................................................................................................................135
5.2. Relação com os grupos comunistas de São Paulo e Rio de Janeiro.................155
5.3. Participação do movimento operário gaúcho na insurreição maximalista de
1919.....................................................................................................................................162
6. “NÃO SE CONSEGUE DESCREVER O QUE SE PASSOU NA CABEÇA DE BOA
PARTE DE NOSSOS VELHOS AMIGOS- NUM PISCAR DE OLHOS TORNARAM-SE
NOSSOS INIMIGOS: balanços e perspectivas do movimento operário gaúcho em relação
ao futuro da revolução russa”............................................................................................170
6.1. A revolução russa como motivo de discórdia: novas e velhas atitudes
anarquistas...........................................................................................................................172
6.2. O peso da reação: a campanha contra o maximalismo e a perseguição aos
militantes do movimento operário.......................................................................................182
6.3. Rumo à década de 20: o sonho da revolução desfeito entre disputas internas e
ataques da classe dominante................................................................................................197
CONCLUSÕES.......................................................................................................210
FONTES..................................................................................................................220
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................223
9
INTRODUÇÃO
noventa anos foi iniciado um processo que marcou profundamente a história do
século XX: a revolução russa. Pode-se dizer, sem muito exagero, que esta revolução
ocorrida em um império distante, de misteriosas vastidões, e seus desdobramentos
mudaram o mundo e ainda mais, mudaram a maneira de pensar o futuro da humanidade
naquele curto século XX. Hoje isto tudo parece muito distante, principalmente porque
depois de 1989 houve não só esforço enorme para apagar o significado deste
acontecimento, como apagar o próprio significado da palavra revolução.
A história não parou e muita coisa aconteceu depois da queda do muro de Berlim
em 1989 e da dissolução, em 1991, da União Soviética, a “herdeira” da revolução russa.
Hoje alguns dos velhos temas do século XX voltam a ser discutidos: a ação imperialista
americana e a luta contra a ocupação estrangeira, no caso do Iraque ou do Afeganistão; a
capacidade da mobilização popular diante da pressão dos governos ou dos empresários para
destruir conquistas sociais, como nas recentes greves ocorridas nas capitais da Europa ou a
possibilidade de mudanças sociais radicais, acenadas em países latino-americanos como
Venezuela, Bolívia e Equador, em que a palavra revolução voltou a ter atualidade.
Talvez esta seja a hora para retomar velhos temas que pareciam estar esquecidos.
Não há mais no ar o peso da guerra fria, que daria a este trabalho o ar polêmico e partidário
que outrora poderia ter, mas também, creio eu, não estamos mais sob o peso do alarmado
fim das ideologias, que faria deste estudo apenas um ato de visitar relicários do passado.
Acredito que esta pesquisa, como disse acima, se insere em um esforço por rever velhos
temas, refazer velhos caminhos, que podem com este esforço voltar a ser objeto de
interesse. Talvez esse desejo esteja mesmo no título O Horizonte Vermelho, inspirado no
livro 1917. O Ano Vermelho, escrito pelo intelectual baiano Luis Alberto Moniz Bandeira,
que fala das conseqüências da revolução russa para o movimento operário brasileiro. Sigo,
entretanto, um caminho diferente do livro de 1967; para mim a revolução russa não marcou
aqueles anos com sua marca rubra, mas abriu largos horizontes que podiam ser, em
diferentes momentos, auroras ou crepúsculos. E afinal de contas, quem sabe também não
10
voltamos a acalentar velhas esperanças observando a ação destes trabalhadores que, mesmo
por algum tempo, acreditaram com todas as suas forças estarem vislumbrando e
participando do nascimento de um novo mundo?
Vamos a eles.
A revolução russa foi deflagrada em fevereiro de 1917. Desde a primeira hora o
movimento com forte participação operária impressionou o mundo, em parte pelo atraso e
repressão que sempre caracterizaram o gigante russo, em parte pela radicalidade das
propostas e ações dos diversos revolucionários que agiam no país naquele momento.
A partir de outubro quando o Partido Bolchevique, grupo político operário por
excelência, tomou o poder e transferiu o centro decisório do Governo Provisório para um
Conselho (Soviet) de Operários, Soldados e Marinheiros, o impacto foi ainda maior. Em
diversas partes do mundo, revolucionários que desejavam mudanças profundas na sociedade
se identificaram com aquele movimento, logo pensando em reproduzir em seus países o que
os russos haviam conseguido com sucesso em sua terra. Alguns desses movimentos foram de
extrema importância e prenhes de conseqüências para seus respectivos países, principalmente
na Europa. Assim, a revolução alemã de 1918, a revolução húngara de 1919 e a multiplicação
de Conselhos Operários na Itália podem exemplificar quanto foi profundo o impacto da
revolução russa no continente europeu.
Este período coincidiu com o fim da Grande Guerra, que havia jogado muitos países
em uma crise profunda, com resultados nefastos para os operários e deslegitimando os
governos que mais haviam sofrido com o conflito. A revolução russa foi assim uma das
conseqüências desse período conturbado e umas das causas da ascensão das lutas nos
diversos países onde o quadro se repetia.
A revolução russa também repercutiu no Brasil. Na época, em nosso país não havia
partidos políticos operários, senão efêmeros e sem importância. Se quisermos analisar a
importância da revolução russa no movimento operário brasileiro, seu uso, suas
interpretações, deve-se procurá-la especialmente entre os militantes e associações ligadas à
luta sindical, onde se destacava a ação dos anarquistas. Devemos ter isso em mente ao
11
analisar as tentativas de explicar os modelos que nasciam da Rússia Soviética e as ações
inspiradas nestas interpretações.
No Rio Grande do Sul, destacavam-se as ações dos anarquistas e dos socialistas, estes
em parte ligados à tradição da social-democracia alemã, em parte ligados a velhos líderes
sindicais como Francisco Xavier da Costa. Os anos de 1917-1920 são de intensa
movimentação entre os operários: greves, violenta repressão, jornais que surgiam para logo
desaparecer, surgimento de novas associações. É neste ambiente que as notícias da revolução
russa chegaram até aqui.
Muito cedo já aparecem referências à revolução no nosso meio operário. Em março, um
mês apenas depois da revolução de fevereiro, a Rússia já é mencionada em uma importante
greve de calceteiros. Em julho, no maior comício da grande greve de 1917, João Batista
Moll, militante anarquista, entusiasma-se com os exemplos da Rússia Revolucionária. Nestes
primeiros momentos, invariavelmente, as referências à revolução se ligam aos anarquistas
que, no período de 1917 e 1918, estavam em franca ofensiva dentro do movimento operário,
já que resultados da greve de 1917 os fizeram perder espaço dentro da Federação Operária do
Rio Grande do Sul (FORGS). Um dos pontos importantes desta ofensiva é, por exemplo, a
refundação do jornal A Luta, em fevereiro 1918, que tinha como uma de seus objetivos
principais a defesa da revolução russa. João Batista Marçal, em seu artigo 1917 Novembro.
As conseqüências da revolução russa no Rio Grande do Sul, reproduz um exemplo desta
defesa, publicado na edição de 1º de maio do referido jornal:
Que a revolução russa é um acontecimento grandioso na história dos povos para nós é
incontestável. E se nada soubéssemos sobre a mesma, quanto á seus fins, uma coisa nos
bastaria para que o nosso dever, dever dos trabalhadores, fosse defendê-la: é o fato e ter
contra si toda a burguesia do mundo. Porque a burguesia não faria tanto escarcéu se algo de
grave a revolução não anunciasse.
1
Mas estas não eram as únicas visões que os militantes ligados ao movimento
operário tinham. Outras interpretações também circulavam: Carlos Cavaco, líder socialista
e tribuno popular que tinha grande influência entre os trabalhadores, foi muito crítico à
revolução soviética de outubro. Outro operário, o barbeiro libanês Abílio de Nequete,
apoiou a revolução russa, mas teve uma interpretação própria dela, com referências étnicas
1
MARÇAL, João Batista. 1917 novembro. As conseqüências da revolução russa no Rio Grande do Sul.
Revista O Sul: Porto Alegre. n. 18, 1987.
12
e religiosas que se afastavam muito da visão dos anarquistas. Isto mostra como, mesmo
entre os que atuavam no meio operário, as maneiras de ver a revolução podiam seguir
rumos diferentes, até dispares.
No ano de 1918 surgiram as primeiras associações comunistas no Rio Grande do Sul.
Em novembro deste ano apareceu uma das mais destacadas entre elas: a União Maximalista
2
fundada em Porto Alegre por Abílio de Nequete, que em 1922 será o primeiro secretário-
geral do Partido Comunista do Brasil. Esta associação atuava na capital e teve participação
importante nas greves de 1919, especialmente junto à União Metalúrgica, na qual logrou
conquistar adeptos. No ano de 1918 também surgiu a Liga Comunista de Livramento, que
atuou na greve dos frigoríficos Armour em 1919. Centros similares aparecem também em
cidades de Passo Fundo, Rio Grande e em Pelotas.
Aparentemente, não existiam diferenças marcantes entre anarquistas e maximalistas
(ou comunistas), que teriam atuado juntos até o ano de 1919, o que parece não ocorrer mais
em 1920. Esta impressão é reforçada por Friedrich Kniestedt, imigrante alemão e líder
anarquista, em suas Memórias de um imigrante anarquista
3
. Neste ano foi realizado o 2°
Congresso Operário do Rio Grande do Sul, evento muito importante para o movimento
operário do estado. Os Congressos Operários marcavam o momento em que os
representantes das diversas associações se reuniam para discutirem sua atuação e
deliberarem sobre os projetos futuros. Neste Congresso houve uma disputa acirrada entre
Friedrich Kniestedt e Abílio de Nequete, líder da União Maximalista, pois este tentara filiar
a FORGS à Internacional de Moscou. O Congresso terminou com a vitória da posição
defendida pelos anarquistas e com a filiação da FORGS à Internacional Apolítica de
Berlim.
Pela exposição até aqui realizada pode-se observar, mesmo que brevemente, alguns
dos impactos que a revolução russa teve sobre o meio operário nos anos imediatos à sua
eclosão. Isto me permite agora enunciar o objetivo central da minha pesquisa: analisar que
transformações ou conseqüências importantes o impacto e as interpretações sobre a
revolução russa teriam trazido para o movimento operário do Rio Grande do Sul entre 1917
e 1920.
2
Seria a tradução portuguesa de Bolchevik
3
KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um Imigrante anarquista. Tradução, introdução, epílogo e notas de
rodapé: GERTZ, René E. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, 1989.
13
Neste período inicial (1917-1920) em que a Rússia dos Soviets estava se construindo
e sua estrutura de poder não estava cristalizada, a grande novidade da revolução operária
mexeu com conceitos, despertou paixões e rancores e acabou se transformando em
referência tanto para os seus entusiastas quanto para os seus críticos. Tendo em vista que a
revolução mexeu com os referenciais do movimento, estudar seu impacto talvez possa
ajudar a esclarecer algumas questões atinentes ao desenvolvimento das lutas operárias.
Quanto ao Rio Grande do Sul, esta questão se reveste de importância por algumas
características peculiares do nosso movimento operário em relação aos demais estados,
como a existência de rivalidades entre anarquistas e socialistas ou o papel dos governantes
do Partido Republicano Riograndense em relação aos trabalhadores, com o seu discurso
positivista de incorporação do proletariado à sociedade, que ideologicamente diferia da
política das outras unidades da federação.
Embora se trate de um tema que se situa cronologicamente em um período muito
estudado (talvez o período mais estudado da história operária do Brasil) e seja um tema
ligado à história das instituições e das idéias políticas dentro do movimento operário,
campo que foi durante muito tempo privilegiado na investigação histórica, a questão que
proponho investigar é muito pouco trabalhada na historiografia. Portanto creio ser
importante este estudo porque, além de pesquisar o impacto que a revolução russa teve
entre nossos operários, ele abre a possibilidade de esclarecer alguns aspectos quanto à
reação dos diversos grupos a fatos e idéias novas, à capacidade de renovação ou
conservação das diversas tendências que lutavam para liderar o movimento e até examinar
a competência de seus discursos em promoverem ou não práticas políticas.
Quanto ao recorte espacial, foi delimitado o estado do Rio Grande do Sul como um
todo porque, pelas fontes que consultei, a revolução russa provocou reações no movimento
operário de diversas cidades do estado, foi um fenômeno bastante generalizado, não se
restringindo somente aos principais centros de militância como Porto Alegre, Pelotas e Rio
Grande. Além disso, em períodos de grande mobilização ativavam-se redes de
solidariedade e de troca de informações que não poderia acompanhar, nos limites de uma
dissertação, se estendesse meu campo de estudo para além das fronteiras estaduais e que,
por outro lado, seriam insuficientes como materiais de análise caso me restringisse ao que
aconteceu somente em um município. Apesar desta delimitação, meu trabalho não é
14
propriamente uma história regional ou um estudo de caso, já que tem uma abertura para
processos históricos nacionais e mundiais, o que, aliás, é típico da história operária. Nas
palavras de Sílvia Petersen.[...] em vários aspectos parece não ser possível conceber a
história operária como uma “história regional”, pois há processos e acontecimentos que,
circunscritos à dimensão regional, não conseguem receber significado pelos
pesquisadores.”
4
Mesmo tendo esta perspectiva de uma história regional que se abre para o mundo,
por razões materiais e de tempo a maior parte das fontes pesquisadas são oriundas da
capital, embora também tenha consultado fontes de outras cidades como Pelotas, Rio
Grande e Bagé, além de materiais do Rio de Janeiro e São Paulo. De qualquer modo não
creio que este predomínio de materiais da capital seja um limitador, porque eles dão conta
não só do que ocorria em Porto Alegre, como informavam o que acontecia em outras
cidades e davam voz aos militantes do interior, o que se observa mais claramente nos
jornais e informes da Federação Operária estadual (FORGS). Além do mais, deve-se levar
em conta que os operários circulavam pelo estado e suas associações tinham a Federação
estadual como referência. O 2° Congresso Operário, por exemplo, embora realizado em
Porto Alegre, contou com representantes de vários municípios. Também não se deve
esquecer que, tratando do Rio Grande do Sul, pode-se tocar na questão da sua proximidade
com o Prata, que sempre foi uma porta de entrada para novas idéias e influências.
A dissertação que estou apresentando pode não parecer inovadora, pois trabalhos
similares a este já foram produzidos em outros contextos como: O ocidente diante da
revolução russa de Marc Ferro
5
, La gran revolución de octubre y América Latina
6
de Boris
Koval e para o Brasil temos o clássico O ano vermelho
7
organizado por Moniz Bandeira,
em que o Rio Grande do Sul aparece de forma esporádica e marginal. Além dos livros que
tratam do impacto da revolução como um tema específico, a euforia pela revolução russa
tem lugar de destaque em livros produzidos por militantes que participaram das
mobilizações operárias ocorridas no final da década de 10. Everardo Dias, na sua História
4
PETERSEN, S. R. F. Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira. In:
ARAÚJO, Angela Maria Carneiro. (Org.). Trabalho, cultura e cidadania. São Paulo: Scritta, 1997. p. 89.
5
FERRO, Marc. O ocidente diante da revolução soviética: a história e seus mitos. São Paulo: Brasiliense,
1984.
6
KOVAL, Boris. La gran revolucion de octubre y América latina. Moscou: Progresso,1978.
7
BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:
Expressão Popular, 2004.
15
das lutas sociais no Brasil
8
, por exemplo, valoriza as insurreições operárias inspiradas no
exemplo em russo, tentadas em 1918 e 1919. Astrogildo Pereira, na sua Formação do PCB,
destaca a importância da influência da revolução russa para uma inflexão ideológica do
anarquismo ao comunismo no início dos anos 20 que daria origem ao PCB, do qual foi um
dos fundadores, em 1922
9
. Já a formação de um primeiro Partido Comunista do Brasil
10
pelos libertários, em 1919, é abordada em um capítulo do livro de Edgar Rodrigues,
Nacionalismo e cultura social
11
. Para este, a formação de um partido e mesmo o apoio
dado à revolução não passou de um engano, de uma grande confusão política, não
influenciando o anarquismo, que se manteve posteriormente. Algumas obras de relevância
para a história do movimento operário brasileiro, como Trabalho urbano e conflito social
12
,
de Boris Fausto, dão grande importância ao impacto da revolução russa no contexto das
lutas dos trabalhadores. Neste livro especificamente, os acontecimentos na Europa são
considerados elementos fundamentais para alavancar o ímpeto das mobilizações operárias
no período das grandes greves.
De qualquer forma estes estudos centram-se excessivamente nos fatos ocorridos no
Rio de Janeiro e São Paulo, aparecendo o Rio Grande do Sul sempre de forma ocasional.
Para o caso gaúcho não há nenhum trabalho aprofundado e sistemático e, nesse sentido, a
contribuição da dissertação é provavelmente original.
Para o Rio Grande do Sul um trabalho afim com o tema é o de Adriano Belmudez
Antunes - A repercussão da revolução russa nos jornais diários da república velha
13
, em
que este descreve como o Correio do Sul de Bagé, O Diário Popular e O Rebate de Pelotas
narraram os acontecimentos relacionados à revolução russa no ano de 1917. Um trabalho
como este pode ajudar a observar como os jornais, que eram os principais canais de notícias
do que se passava no exterior, difundiam as informações sobre a revolução no nosso estado,
8
DIAS, Everardo. História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Edaglit. 1962.
9
PEREIRA, Astrogildo. Ensaios históricos e políticos. Alfa-Ômega: São Paulo, 1979.
10
O grupo comunista do Rio de Janeiro, capitaneado por Astrojildo Pereira e José Oiticica, fundou um Partido
Comunista, mas também se definia como anarquista. Este é um momento de transição no movimento operário
e por enquanto indico-os assim, pois seu jornal era o promotor do partido que esse grupo fundou. Não abordo
as discussões relacionadas à sua definição de imediato porque elas estão na raíz de um problema que será
desenvolvido mais adiante.
11
RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemert, 1972.
12
FAUSTO, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. São Paulo: DIFEL, 1977.
13
ANTUNES, Adriano B. A repercussão da revolução russa nos jornais diários da república velha. História
em Revista : Pelotas. n.6, dez. 2000.
16
mas dificilmente serviria para ajudar a entrever como os militantes operários tratavam a
questão. Há também um brevíssimo artigo, já mencionado, escrito por João Batista Marçal
na revista O Sul, com o título de 1917 Novembro. As conseqüências da Revolução Russa no
Rio Grande do Sul
14
, em que o autor relata algumas reações à revolução de 1917, abrindo
também o campo de análise para as reações à revolução de 1905 e avançando pela década
de 1920, com a atuação dos comunistas gaúchos. O problema aqui é que se trata de um
texto de uma página, mais jornalístico que historiográfico, trazendo poucas questões de
fundo para a discussão.
Autores que trabalham o movimento operário no Rio Grande do Sul também as
vezes tratam do tema, mas de forma breve e tangencial aos temas centrais de suas obras.
Silvia Petersen e Maria Elizabeth Lucas na sua Antologia do movimento operário gaúcho
15
dedicam um subcapítulo ao Impacto da Revolução Russa no movimento operário gaúcho;
neste as autoras observam que não houve uma mudança de orientação no movimento
operário, pois os anarquistas, que eram predominantes na época, acreditaram em um
primeiro momento ser a revolução uma vitória da anarquia. Isto também é abordado no
estudo de Adhemar Lourenço da Silva Júnior, Povo! Trabalhadores! Nessa dissertação, ao
analisar pormenorizadamente a greve de 1917, dá exemplos da defesa da revolução por
anarquistas, mas afirma que a revolução “não deve ser avaliada como um fenômeno que se
espraia pelo mundo, mas como uma imagem que condiciona a ação dos militantes
operários
16
”.
Para além da defesa da revolução pelos anarquistas, Sílvia Petersen no livro Que a
união operária seja nossa pátria aponta para o papel de Abílio de Nequete como um dos
primeiros operários a se interessar pela revolução comunista como caminho alternativo ao
anarquismo, sendo um dos pioneiros na propagação dos seus princípios:“Assim, enquanto o
movimento operário em Porto Alegre enfrentava as tendências desagregadoras do pós-
14
MARÇAL, João Batista. Op. Cit.
15
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. e LUCAS, Maria Elisabeth da Silva. Antologia do movimento operário
gaúcho (1870-1937). Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992.
16
SILVA JR. Adhemar L. Povo!Trabalhadores!: tumultos e movimento operário (estudo centrado em Porto
Alegre, 1917). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 1994. (dissertação de mestrado) p. 381.
17
greves [de 1919], os efeitos da revolução russa iam chegando ao Rio Grande do Sul, sendo
Nequete o timoneiro destas idéias
17
Sobre Abílio de Nequete, que, pelo papel de fundador da União Maximalista de Porto
Alegre e do Partido Comunista do Brasil em 1922, sempre tem seu nome destacado quando
se escreve sobre a revolução russa entre os operários gaúchos, o principal trabalho existente é
o texto inédito de Irene Haas Rosito O pensamento político de Abílio de Nequete
18
. Neste
texto a adesão ao bolchevismo é vista como parte da evolução do seu pensamento. O texto
ajuda a compreender alguns passos iniciais da repercussão da revolução em Porto Alegre,
como na fundação da União Maximalista e na ação desta nas greves de 1919; além de relatar
algumas características peculiares das noções políticas de Nequete.
Desta forma, a análise que me proponho fazer deve se centrar em algo que teve
grande importância para o movimento operário, mas que sempre foi tratado de forma lateral
nos estudos sobre a história dos trabalhadores organizados de nosso estado. Muitas vezes
porque o papel dos comunistas havia sido supervalorizado em um período inicial da
produção historiográfica sobre o movimento operário ou porque esta influência aparecia
como algo difícil de provar, não suscitando maiores discussões. No entanto, houve nos
últimos anos a descoberta de novas fontes que podem contribuir para ratificar ou corrigir
interpretações cristalizadas sobre o papel de militantes e associações naqueles anos
conturbados.
Tendo em vista o que foi exposto até agora, meu estudo tem os seguintes objetivos:
contribuir para o avanço da historiografia sobre o movimento operário no que se refere ao
impacto da revolução russa no Rio Grande do Sul; estudar as diversas interpretações que se
fizeram da revolução russa no movimento operário, especialmente em relação às famílias
políticas que nele atuavam; observar a atuação das associações operárias gaúchas que se
diziam comunistas ou maximalistas, tentando ligar suas ações às formas de pensar a
revolução russa e analisar, por fim, que conseqüências as interpretações e os usos da
revolução russa teriam trazido para o movimento operário do Rio Grande do Sul entre 1917
e 1920.
17
PETERSEN, Silvia R. F. Que a união operária seja nossa pátria. Histórias das lutas dos operários
gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS 2001 p.371.
18
ROSITO, Renata I. H. O pensamento político de Abílio de Nequete. Porto Alegre: PUCRS, 1972.
(Monografia para a Cadeira de Política do Curso de Bacharelado em Ciências Sociais)
18
Quanto ao procedimento da análise, o tema será abordado considerando a
intersecção de duas referências principais, que se articulam de forma muito próxima:
Uma se refere à circulação das idéias vinculadas à revolução russa; a outra se
refere à recepção dessas idéias e suas relações com as práticas do movimento operário.
Articulando estes dois âmbitos, estão as experiências associativas e de luta da classe, suas
tradições culturais e étnicas e as próprias relações (ou tensões) que diferentes segmentos da
classe estabelecem entre si.
Quanto à primeira referência de análise, é importante examinar como as idéias e
informações sobre a revolução russa eram propagadas entre os militantes operários do Rio
Grande do Sul. Acredito que a melhor forma de trabalhar com esta questão é a partir da
noção de circulação de idéias. Como bem coloca Eduardo Devés Valdés:
Categorias como “influência” ou “difusão” tem operado do interior do centro de difusão à
periferia, ainda que possam servir também para estudar o movimento das idéias no âmbito
periférico. Entretanto, a noção de influência induz em grande medida à passividade do receptor,
ao passo que a noção de “circulação” tolera melhor questões como os modos de recepção e
reelaboração.
19
Tratando-se, pois, da circulação das idéias, é necessário considerar os canais pelos
quais as informações sobre a revolução chegavam até aqui, o que significa, sobretudo, falar
na imprensa periódica. Tanto os jornais de grande circulação quanto os jornais operários
divulgavam notícias sobre a Rússia e é na imprensa que se encontra uma das principais
fontes deste trabalho. Por isso é importante levar em conta as diferentes perspectivas que
orientavam os jornais operários e os da grande imprensa. A imprensa operária se colocava a
tarefa de educar e conscientizar o operariado, de combater a burguesia e de propagar as
doutrinas revolucionárias
20
. Por parte da grande imprensa há uma atitude crítica aos abalos
19
Categorias como “influencia” o “difusión” han operado al interior del centro hacia la periferia, aunque
pueden servir también para estudiar el movimiento de las ideas en el ambito periférico. Sin embargo, la
noción de influência conlleva en gran medida a la pasividad del receptor en tanto que la noción de
“circulación” tolera mejor cuestiones como los modos de recepción e reelaboración. VALDES, Eduardo
Devés. El transpaso del pensamiento de América latina à África a través de los intelectuales caribeños.
História UNISINOS: São Leopoldo. Vol. 4, n. 2, jul./dez. 2000. p. 190-191.
20
Sobre uma boa caracterização da imprensa operária em relação à outras imprensas ver CRUZ, Heloísa de
Faria. São Paulo em papel e tinta. Periodismo e vida urbana 1890-1915. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2000.
Cap 6 .
19
sociais, ligando-se aos interesses conservadores, interesses que muitas vezes não são
explicitados.
Cláudio Pereira Elmir aponta para outras questões que também são relevantes no
trabalho com a fonte jornalística em seu texto As armadilhas do jornal. Ele mostra como a
leitura que fazemos do jornal deve levar em conta as condições em que ele foi escrito e que
muitas vezes a mensagem transmitida não esteve de acordo com o desejo de quem a
transmitiu (ou produziu), sendo que os jornais podem mudar de opinião conforme as
circunstâncias (e aqui, por exemplo, podemos pensar nas lutas pelo poder dentro do
movimento operário). O autor também aponta dois perigos pertinentes: atribuir peso
político a opiniões por vezes casuais e investigar algum fenômeno já tendo em mente o
resultado que se busca. “O problema maior que eu vejo é a atitude de quem se propõe a
pesquisar determinada questão cuja solução prescinde de investigação. Quer dizer, o
resultado da pesquisa está definido pelos preconceitos de quem a faz.”
21
Particularmente
para o caso desta pesquisa, tal cuidado significa não ver em tudo a “marca” da revolução.
Com referência ao processo de recepção de idéias, Carlos Fico, em sua obra
Reinventando o otimismo, ao se referir à propaganda com fins políticos e sua recepção,
aponta que: “Pode haver uma distância considerável entre delineamentos teóricos
aparentemente eficazes e sua realização nas pesquisas concretas. É muito difícil detectar
as recepções sociais da propaganda. As dificuldades são especialmente de ordem
heurística. Que fontes poderiam indicar diferenças de recepção?”
22
Quem eram os leitores desses jornais? Onde circulavam? Tendo em conta a
reconhecida dificuldade para analisar processos de recepção, procurei fazer outras
aproximações a esta questão.
Assim, seguindo a sugestão de Roger Chartier em A beira da falésia, textos e imagens
não são colocados de forma permanente quando produzidos, pois os leitores também criam
quando lêem e reinterpretam a mensagem. A recepção da cultura e das idéias não é passiva
como tradicionalmente se pensava, mas é uma outra produção, pois [...] ler, olhar , escutar
são, de fato, atitudes intelectuais que longe de submeter o consumidor à onipotência da
21
ELMIR, Cláudio P. As armadilhas do jornal. Cadernos do PPG em História da UFRGS: Porto Alegre. n.
13, dez. 1985.
22
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: ed da FGV, 1997. p. 29.
20
mensagem ideológica e/ ou estética que supostamente a modela, autorizam, na verdade,
reapropriação, desvio, desconfiança ou resistência”.
23
Isto faz pensar que as leituras que se
fizeram da revolução não eram necessariamente erros, mas foram interpretações próprias ao
nosso movimento operário, merecendo atenção por representarem as possibilidades de um
determinado momento e de um particular leitor e não um “desvio” de um modelo original.
Esta observação de Chartier, como se pode concluir, é muito difícil concretizar em
uma pesquisa com as características desta, pois uma pergunta que sempre se coloca é como
estabelecer a recepção das idéias por parte de leitores dos jornais operários, no caso uma
fonte fundamental. Assim, a questão da recepção não-passiva será tomada mais como uma
advertência, um cuidado para a análise do que como um objeto de pesquisa que,
antecipadamente, sabe-se da impossibilidade.
Tratando-se da recepção, também é importante, para os objetivos desta dissertação,
recorrer ao conceito associado de representação. De fato, parte considerável deste trabalho
baseia-se no exame de como os nossos operários representaram aquela distante revolução,
entendendo por representação, também com Chartier, “as classificações, divisões e
delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de
percepção e de apreciação do real”
24
.
Entretanto, devo deixar claro que não pretendo pesquisar somente as diversas
representações que nossos operários fizeram, como uma espécie de “inventário” dos seus
enunciados sobre a revolução russa, mas também serão referências indispensáveis da
pesquisa as tradições, experiências e práticas que consistiam diferentes filtros ou lentes para a
recepção e para as representações. Assim, identificar as representações não teria maior
significado sem que elas fossem colocadas em diálogo com as experiências e ações dos
militantes, e, no sentido inverso, também as representações incidem no comportamento dos
indivíduos e grupos.
Cito aqui o feliz entendimento que Rodrigo P. de Sá Motta tem desta questão em sua
obra Em guarda contra o perigo vermelho:
23
CHARTIER, Roger. A beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2002. p. 53
24
CHARTIER, Roger. História cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil,
1990. p. 17.
21
Representações e ações não podem ser entendidas num viés dicotômico, ao contrário, são
interdependentes: representações são construídas em um processo ativo que envolve militância,
divulgação e propaganda, e ademais, freqüentemente, tem correspondência com interesses
sociais [...]; e as ações e práticas sofrem influência (não passiva) das representações, que muitas
vezes moldam o comportamento dos grupos sociais.
25
.
É fundamental salientar, entretanto, que as representações e a circulação das idéias
sobre a revolução não cairam em um vazio de tradições culturais, étnicas e experiências de
luta de classes. Pensar a possibilidade de uma nova sociedade estimulada pela revolução,
acalentar esperanças, estender horizontes até o infinito, como muitos militantes fizeram,
não se deveu apenas à força de um exemplo grandioso, mas necessita também para ser
explicado, a dinâmica da luta da classe operária contra a classe dominante; é ela que dá
sentido às interpretações e ações dos que se inspiraram na revolução russa.
As conhecidas palavras de Edward Palmer Thompson resumem este processo quando
afirma que as pessoas:
[...] experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e
interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e
sua cultura [...] das mais complexas maneiras [...] e em seguida (muitas vezes, mais nem sempre,
através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada.
26
Seria insuficiente analisar o impacto da revolução russa sem levar em conta esta
experiência de classe. Os discursos embebidos de esperança revolucionária, o surgimento
de associações que se identificavam com o maximalismo ou mesmo o sonho acalentado de
insurgência não podem ser explicado somente por um desejo de imitação ou por uma
apropriação mecânica daquilo que circulava no mundo sobre a revolução russa. Estes
militantes trataram estas questões a partir de seus referenciais de luta e muito de sua
identificação com o país dos Soviets só vai ter sentido a partir de suas experiências nas
lutas dos trabalhadores.
25
SÁ MOTTA, Rodrigo P. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964).
São Paulo: Perspectiva, 2002. Introdução p. XXV.
26
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento
de Althusser. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 187.
22
Mas ainda com relação à experiência, ela refere-se não apenas à luta entre classes; ela
é também uma experiência interna à classe operária. Para o caso específico que estou
tratando, que é a compreensão das representações que os operários do Rio Grande do Sul
fizeram da revolução e das ações que levaram a cabo inspirados nela, isto é muito
importante. Os laços intra-classe que ligam (ou tensionam) os operários são complexos,
multifacetados, variados já que [...] as ligações e oposições contidas no processo de
produção são a base da classe; mas a relação entre pessoas que ocupam posições
semelhantes nas relações de produção não é dada diretamente pelo processo de produção
e apropriação”
27
. É também nestas relações, muitas vezes de amor, ódio, indiferença ou
perplexidade que as interpretações sobre a revolução russa poderão ser entendidas. Assim,
por exemplo, a revolução podia ser interpretada não apenas como o momento luminoso da
luta entre as classes, mas também como uma via através da qual se construíam alianças,
solidariedades, cisões ou rivalidades dentro da classe.
Nesta Introdução, também é preciso esclarecer preliminarmente o leitor que o período
a que se refere este estudo foi marcado por uma expansão da industrialização e pelo aumento
da presença operária nas principais cidades do Rio Grande do Sul, acelerando um processo
que vinha se desenvolvendo desde o segundo quartel do século XIX. Ao longo deste período,
a convivência na fábrica, a necessidade de fortalecimento mútuo e a luta por melhores
condições de trabalho levaram estes operários a criar associações, sindicatos, partidos, que se
tornaram o núcleo do movimento operário. No final dos anos 10, especialmente a partir de
1917, o movimento operário tornou-se mais ativo, pois ocorre uma ascensão das lutas dos
trabalhadores organizados, com muitas greves e sérios enfrentamentos. Aliado à aguda
carestia de vida e à crise econômica, eclodem uma série de graves conflitos sociais no Brasil
e no mundo, entre os quais a revolução russa, como será visto adiante, acabou se destacando
e serviu de fermento para as agitações operárias.
Esta caracterização, embora brevíssima, é necessária para introduzir alguns
comentários sobre a produção historiográfica que em alguma medida serviu de referência
para a dissertação.
27
WOOD, Ellen Meiksin .Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.
23
Uma importante parcela desta produção associou esta época específica com o
amadurecimento da classe operária brasileira, como se fosse um último suspiro das idéias e
práticas ligadas ao trabalho artesanal e a tomada de uma consciência realmente de classe; e a
revolução russa seria uma das pedras angulares desta mudança. Moniz Bandeira, na obra
mais extensa que até hoje já estudou os reflexos da revolução russa no nosso país, sintetiza
bem esta posição: “O surto industrial do Brasil e a revolução russa, criando um fato novo,
superaram o movimento anarquista. O marxismo ‘a expressão consciente de uma vontade
inconsciente’ ganhou as massas brasileiras.”
28
Muitas vezes o valor atribuído à revolução russa se deu pela perspectiva da
importância da fundação do PCB comunista em 1922, o que se torna mais evidente nas
diversas “Histórias do Partido Comunista”. Esta perspectiva está presente em trabalhos como
a já citada A Formação do PCB, de Astrogildo Pereira, uma das obras inaugurais da
historiografia do movimento operário brasileiro. Nestas análises, a verdadeira consciência de
classe só seria alcançada com a fundação do partido, o que inauguraria uma nova etapa da
luta de classes no Brasil
29
.
Um grande problema deste tipo de interpretação é que, em alguns casos, o impacto da
revolução russa não tem importância pelo que possa ter trazido para lutas dos sujeitos
históricos, mas tem valor porque mostrou uma ideologia e um método de ação mais
adequado para o proletariado brasileiro, em um processo que fatalmente resultaria na
fundação do partido em 1922. Ou seja, serviu para uma grande conscientização da
militância, pois o anarquismo havia fracassado nas lutas que propunha levar adiante.
Este tipo de interpretação adotada por Astrogildo Pereira acabou se tornando obsoleta,
entre outros motivos porque a pesquisa acadêmica mostrou que não houve uma substituição
imediata do anarquismo pelo comunismo no início dos anos 20. Mas exatamente porque não
houve esta “conscientização”, alguns historiadores acabaram por minimizar a importância da
revolução russa para as ações do movimento operário brasileiro, já que a aparente adesão ao
bolchevismo por parte dos anarquistas, nos primeiros anos da revolução russa, seria na
28
BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. Op. Cit. pp. 274-275.
29
Estas são algumas características de uma produção que Cláudio Batalha chama de “militante”, ligando-se
no mais das vezes às concepções do PCB. Ver BATALHA, Cláudio. A historiografia da classe operária no
Brasil: trajetórias e tendências. In: FREITAS, Marcos C. Historiografia brasileira em perspectiva. São
Paulo: Contexto, 1998.
24
verdade fruto de um grande engano. É o caso do livro de Carlos Augusto Addor, A
insurreição anarquista no Rio de Janeiro
30
, em que a influência da revolução de outubro
nesse levante acaba sendo pouco considerada, pois mesmo que o exemplo russo servisse de
incentivo para os libertários, estes não tinham bem claro quais eram os reais princípios do
bolchevismo. Na verdade, a idéia do engano anarquista pode ser encontrada também nas
produções de militantes, tanto anarquistas quanto comunistas, como se pode perceber pelo
tratamento dado por Astrogildo Pereira e por Edgar Rodrigues ao episódio da formação do
primeiro Partido Comunista em 1919. Os dois historiadores consideram a formação deste
partido um erro: para o primeiro, por ter sido influenciado por idéias anarquistas; para o
segundo, por ter sido inspirado em um modelo comunista.
Tanto uma quanto a outra maneira de ver o impacto da revolução russa apresentam
problemas, pois sua importância para o movimento operário brasileiro se encontra ou em
outro tempo, ou em outro lugar. No caso da análise ter em vista a aquisição de uma nova
consciência de classe, que necessariamente redundaria na formação do PCB, o valor desta
influência estaria em outro tempo, em 1922, ou no período subseqüente, quando o
anarquismo seria substituído pelo comunismo como corrente ideológica predominante. No
caso deste impacto ser avaliado pela não-correspondência das crenças dos militantes
brasileiros em relação às dos reais protagonistas da revolução soviética, as ações inspiradas
neste exemplo não seriam válidas porque, ao fim e ao cabo, não corresponderiam ao que
estava ocorrendo em outro lugar, ou seja, na Rússia dos Soviets, podendo ser tratada como
uma confusão que não deixaria marcas na trajetória dos militantes.
Pelos motivos aqui expostos, não pretendo analisar os impactos da revolução russa
como se fossem desvios, enganos ou sob a perspectiva de mudanças futuras; mas explicá-las
a partir das tradições que estes militantes tinham e das lutas que travavam no momento.
Como esclarece E. P. Thompson ao estudar as primeiras formas de resistência da classe
operária inglesa:
[...] seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo
industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser fantasiosos. Suas
conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda
30
ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Achiame: Rio de Janeiro, 2002.
25
perturbação social e nós não. Suas afirmações eram válidas nos termos da sua própria experiência;
se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser, condenados em vida, vítimas acidentais.
31
Desta forma, é tentando compreender as interpretações da revolução russa e as ações
inspiradas nela como válidas
nos termos das experiências dos militantes operários que
pretendo conduzir este trabalho.
Referi-me ao longo da Introdução à experiência de classe e ações do movimento
operário, mas é importante ressalvar que aqui não se está assimilando acriticamente “classe”
ao “movimento operário”. Ressalva sempre importante de fazer, visto que “a história
operária tendeu [...] a identificar-se com a história dos movimentos operários, senão até com
a história das ideologias destes movimentos”
32
. Se escolho as organizações e instituições
que são o resultado da ação coletiva dos trabalhadores como objeto de meu estudo, é porque
estas se tornaram o campo privilegiado e mais visível da ação política da classe operária na
sociedade. Mesmo assim, isto não significa excluir a análise do que a revolução significou
para alguns sujeitos específicos. Embora um material mais difícil de obter, um capítulo será
dedicado a esta análise, pois considero que focalizando a trajetória de alguns militantes, será
possível enriquecer o repertório das visões sobre a revolução.
Desta forma, não entendo o movimento operário como sinônimo de associações e
sindicatos, mas pelo tipo de documentação localizada, através deles pode-se obter maior
visibilidade deste movimento e de seus sujeitos.
Para uma contextualização da problemática do impacto da revolução russa no
movimento operário do Rio Grande do Sul e do próprio processo revolucionário, realizei uma
ampla pesquisa bibliográfica cujas fontes vão sendo mencionadas no desenvolvimento dos
capítulos e que de um modo geral, já foi mencionada nas páginas e pés de página anteriores.
Mas além das fontes bibliográficas, o trabalho contou com muitas fontes primárias.
Estas não são fontes fáceis de conseguir, pois muitas associações não legaram material
nenhum para a “posteridade” e muitas vezes quando legaram, estes se perderam na euforia
das mobilizações ou sob o peso da repressão policial. Por este motivo deve-se ter em mente
31
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. A árvore da liberdade. V.1. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 13.
32
HOBSBAWM, Eric. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 18.
26
que nunca haverá um mapeamento completo das opiniões e das práticas das organizações
operárias. Outro agravante em relação as fontes que trabalhei são os 90 anos que separam
de hoje os fatos transcorridos, e quanto mais tempo passa, mais o material se desgasta.
Decorre disso que alguns anos estão menos representados que outros e algumas
cidades mais presentes que outras. Sobre 1917 há muito menos material que sobre 1919, e
em Porto Alegre há impressos em quantidade muito mais abundante que em Bagé ou Santa
Maria. É claro que isso acarreta alguns problemas. Por exemplo, a inexistência de um jornal
como A Época
33
entre o material pesquisado não permitiu fazer um estudo mais detalhado
da relação da revolução russa com as práticas da Liga de Defesa Popular (LDP), associação
surgida para coordenar a greve de 1917, relação sobre a qual só pode-se fazer conjecturas.
Mesmo assim creio que foi possível fazer um estudo do impacto da revolução russa no
movimento operário do Rio Grande do Sul; apenas faço estas ressalvas para mostrar que as
fontes trazem limitações que se deve tentar contornar e impõem a humildade de saber que
não são todos os recantos das práticas e discursos operários que estão acessíveis à pesquisa.
Como do repertório de fontes se destacam os jornais operários, é necessário mais
alguns comentários sobre a imprensa como fonte de pesquisa. O jornal, como, aliás,
qualquer outra fonte histórica, emite uma imagem da realidade visível sob um filtro dado
pela subjetividade, pelos interesses e pelos objetivos do articulista ou da associação que o
órgão representa. No caso do jornalismo operário, esse filtro é explicito, já que neste caso a
imprensa é um veículo com o objetivo de esclarecer a classe através do conhecimento
crítico da realidade, abrindo caminho para sua emancipação.
Quando analisei as notícias, não estive somente preocupado com a informação
veiculada, mas também com o contexto específico em que ela seria lida. A postura
agressiva do jornal A Luta, editado em 1918 pelos anarquistas da União Operária
Internacional (UOI), por exemplo, se coaduna muito bem com o objetivo desse grupo:
reconquistar a influência dentro da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS).
Claro, não quero reduzir algumas apropriações criativas apenas aos objetivos políticos
33
A Época foi um jornal que circulou em Porto Alegre durante três meses depois da greve de agosto de 1917.
Este jornal era o porta-voz oficial da Liga de Defesa Popular e seu redator era Abílio de Nequete, que, como
veremos adiante terá detaque nessa dissertação.
27
imediatos. Entretanto é necessário estabelecer uma relação de duas mãos entre a notícia ou
o artigo do jornal e o respectivo momento que vivia a classe operária e suas organizações.
Além destas observações, há um ponto que se refere tanto ao jornal quanto ao
panfleto e que é de fundamental importância: estes não são apenas veículos de informação
ou mesmo de propaganda: são também oportunidades abertas aos militantes de tornar
públicas suas elaborações teóricas, suas criações intelectuais diante de um mundo que eles
desejam transformar, o que, além de aproximar do momento imediato da vida dos
militantes, também permite vislumbrar seu olhar para o futuro.
Quanto aos panfletos, propriamente, a maior parte deles é do ano de 1919 e foram
encontrados em um processo crime, movido pela polícia contra alguns operários por
ocasião da greve geral daquele ano em Porto Alegre
34
. Estes panfletos tiveram uma dupla
utilidade na pesquisa: de um lado, estabelecer os objetivos e as posições das associações em
relação à revolução russa e seus desdobramentos e de outro, oferecer uma amostra do tipo
de material circulava por aqui. Nem todos os materiais apreendidos são oriundos do estado
do Rio Grande do Sul e apesar de não poder analisar com eles a atuação dos grupos
maximalistas gaúchos, pude saber que documentos do recém organizado Partido Comunista
do Brasil (PCB) do Rio de Janeiro estiveram à disposição dos operários daqui. Desta forma
é possível observar um campo de circulação de idéias sobre a revolução que não se
restringe somente à nossa região e perceber que os grupos operários da região não estavam
desinformados sobre o que ocorria no restante do país.
Seguindo essa mesma lógica pode-se apontar a utilização de um material de fora do
estado para mostrar como um nascente grupo comunista entrava em contato com o
movimento operário do Rio Grande do Sul. O jornal Spartacus, do grupo comunista do Rio
de Janeiro
35
, menciona militantes e associações de nosso estado. É possível saber assim
quem daqui havia encomendado pacotes desta publicação, a propaganda de impressos
operários do Rio Grande do Sul na Capital Federal e mesmo assinaturas de líderes operários
gaúchos em apoio a um manifesto lançado pelos cariocas.
34
Processo Crime nº 1016, rolo 66. Encontra-se no Arquivo Público Estadual do Rio Grande do Sul.
35
Trata-se do Partido Comunista de 1919.
28
Outro tipo de fonte são os escritos particulares, memorialísticos ou não. Neste rol de
textos entram autobiografias como as Memórias de um Imigrante Anarquista de Friedrich
Kniestedt, as passagens dos cadernos de memórias de Abílio de Nequete que se encontram
dispersas nos trabalhos históricos de quem os consultou (Sílvia Petersen e Renata Irene
Haas Rosito) ou os depoimentos contidos em processos crime em que estivessem
envolvidos operários. Estes documentos são úteis porque expõe opiniões ou fatos que no
momento em que ocorreram não se tornaram conhecidos, que jornais e panfletos não
tornaram explícitos. Eles expõem rupturas, discordâncias, disputas que era necessário
esconder da arena pública e são, por isso, um contraponto importante ao escrito jornalístico.
Mas não é porque se trata de um documento em que o operário escreve de si ou para si,
algumas vezes sem os objetivos da luta imediata, que ele estará isento de outras influencias.
Talvez aí mesmo exista um outro filtro: o da memória e da reconstrução dos
acontecimentos aos olhos de quem escreve depois. Mesmo assim o imediatismo não é
garantia de objetividade. Os depoimentos contidos nos processos, apesar de não sofrerem
defasagem temporal, não escapam de outros filtros. Nesse caso pode-se imaginar o quanto
não tinham de auto-censura já que foram obtidos perante a polícia.
Os processos crimes podem ser aproveitados de várias formas para a pesquisa
histórica. O processo movido contra os operários por ocasião da greve de 1919 é útil, pois a
polícia borgista, junto com o processo em si, anexou um generoso lote de documentos
produzidos pela militância. Mas o inquérito, ou a maneira como ele é tratado, é uma
passagem para se chegar à lógica da repressão, fator muito presente naqueles anos. Isto me
faz lembrar e mencionar fontes não operárias, como A Federação, jornal do Partido
Republicano Riograndense ou o Correio do Povo, jornal de maior circulação no estado.
Estas publicações expressam, por exemplo, a perplexidade dos dominantes com a difusão
do maximalismo, o que pode ser considerado um dos desencadeantes dos dispositivos
repressivos. Não se coloca aqui, para o uso das fontes periódicas, o argumento de que “a
grande imprensa não serviria por ser tendenciosa”, e sim considera-se que a diversidade da
origem das informações nos permite ter uma visão mais ampla da realidade. A imprensa é
um lugar especial para a expressão dos conflitos políticos (o que vale também para a
imprensa operária), ou como, nas palavras de Francisco Alves, “Nos jornais [...] estes
29
conflitos encontram seu espaço de propagação, chegando o jornalismo a servir como elo
de ligação ou agente de combate entre diferentes tendências político-ideológicas.”
36
Para concluir esta Introdução, cabe explicar ao leitor como a dissertação está
estruturada e resumir o conteúdo dos seus capítulos, com o que espero oferecer uma visão
preliminar do trabalho.
Esta dissertação está dividida em seis capítulos. O primeiro deles é “O CÍRCULO
QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE”: a revolução russa e seus impactos
internacionais. Como indica o título, neste capítulo apresento um histórico do
desenvolvimento do processo revolucionário na Rússia e a difusão de sua influência pela
Europa, América Latina e Brasil. É um capítulo propositadamente descritivo e detalhado,
que pareceu importante para que ficasse caracterizado para o leitor o processo da revolução
russa e quando ela fosse tematizada nos seguintes capítulos, não se transformasse em uma
abstração com a qual o restante da dissertação iria dialogar. Este capítulo não tratará dos
impactos da revolução, o que será objeto dos capítulos seguintes.
O segundo capítulo, “‘HOSANNA, HOSANNA, FILHA DA JUSTIÇA QUE VENS
PARA NÓS EM NOME DA LIBERDADE’: a experiência operária no Rio Grande do Sul e
as primeiras interpretações da revolução russa pelos trabalhadores organizados do
estado”, descrevo a trajetória das principais correntes teóricas do movimento operário
gaúcho, a formação das associações dos trabalhadores organizados nos principais centros
industriais do estado até os momentos iniciais em que as informações sobre a revolução
foram recebidas por estes trabalhadores. Partindo destas tradições e das condições nas quais
se encontrava a classe operária naquele momento, analisa-se como circularam as primeiras
idéias relacionadas à revolução russa, seus usos e reelaborações.
No terceiro capítulo, “A HUMANIDADE É UM TURBILHÃO E UM MUNDO UM
CREPITAR DE CHAMAS: as transformações nas formas de interpretar a revolução russa
no ano das grandes greves; novas experiências, novas leituras” examino como as idéias
relacionadas à revolução passaram a circular em um ambiente de crescente radicalização,
onde os jornais operários têm um notável florescer, havendo uma circulação muito mais
36
ALVES, Francisco N. Imprensa e Política: Algumas reflexões acerca da investigação histórica. História em
Revista: Pelotas. n. 7, dez. 2001.
30
rica de informações e um começo de elaboração crítica, pelos militantes, das novas idéias
russas.
No quarto capítulo, com o título “PARECERÁ ABSURDO QUE UM LIBERTÁRIO
QUE TEM POR TEMA A PAZ EXCLAME: SALVE A REVOLUÇÃO!: a identificação dos
militantes com a revolução e as aproximações contraditórias com o sonho revolucionário”
pretendo, a partir das representações e interpretações que foram identificadas nos capítulos
anteriores, analisar as aproximações e identificações dos militantes com a revolução russa,
expressas tanto em atitudes de adesão apaixonada quanto de repulsa ou estranhamento.
Procura-se examinar este processo tanto no que respeita às matrizes do pensamento militante,
como às apropriações individuais informadas e mediadas por tradições e experiências
políticas, identidades étnicas ou crenças religiosas. Como observei antes, as representações e
interpretações sobre a revolução russa também estão filtradas pelas tradições, experiências e
práticas dos militantes. Nunca se trata, portanto, de uma repercussão mecânica ou de uma
apropriação voluntarista.
Percebendo que a revolução russa atraiu atenção dos militantes, fazendo com que
estes interpretassem os acontecimentos de diversas formas e até se identificassem com ele,
tento analisar se isto também influiu nos processos organizativos e nas ações coletivas dos
militantes. Por isso, no quinto capítulo, “A VOSSA DIVISÃO É A VOSSA FRAQUEZA-
UNI-VOS POIS!, E, NÃO HAVERÁ FORÇA ALGUMA QUE POSSA VOS ENFRENTAR:
associações comunistas do Rio Grande do Sul e suas relações com grupos similares do
centro do país”, analiso a atuação dos grupos comunistas e maximalistas que se formaram
no Rio Grande do Sul, como se inseriram nas lutas operárias e suas relações com outros
grupos de trabalhadores organizados. Além disso, procurei estudar as diversas formas de
relação do movimento operário gaúcho com as associações comunistas do centro do país
como a troca de materiais de informação, a tentativa de formação de um Partido Comunista
e a participação em uma insurreição nacional.
No sexto e último capítulo, “NÃO SE CONSEGUE DESCREVER O QUE SE
PASSOU NA CABEÇA DE BOA PARTE DE NOSSOS VELHOS AMIGOS- NUM PISCAR
DE OLHOS TORNARAM-SE NOSSOS INIMIGOS: balanços e perspectivas do movimento
operário gaúcho em relação ao futuro da revolução russa”, procuro explicar as precoces
divisões e disputas em torno do maximalismo que surgiram no Rio Grande do Sul no início
31
dos anos 20, considerando a mudança das condições em atuava o movimento operário,
então sob uma repressão cada vez mais aguda e reversões de expectativas que produziram
um ambiente de cizânia e disputas internas.
32
1. O CÍRCULO QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE”
37
: a revolução russa e
seus impactos internacionais
Apesar desta dissertação tratar do impacto da revolução russa no movimento operário
do Rio Grande do Sul, neste primeiro capítulo deixarei por enquanto o movimento operário
de fora, tratando da revolução na Rússia, na Europa e sua difusão pelas Américas e pelo
Brasil.
A apresentação é necessária não apenas para estabelecer um contexto, mas como um
prólogo onde se expõem os fatos que deram origem a um movimento catalisador de desejos
de libertação e ânsia por um novo mundo, cujos impactos no movimento operário gaúcho
serão apresentados nos próximos capítulos. Esta rápida exposição de fatos não tem como
objetivo mostrar a versão do que “realmente aconteceu” em face das versões ou
interpretações criadas pelos militantes no extremo sul do Brasil, mas serve como um guia
para acompanhar uma série de acontecimentos que serão constantemente referidos ao longo
deste trabalho.
1.1. A revolução russa
A expansão imperialista européia promoveu alianças e acirrou conflitos entre os
países que a promoveram, fazendo surgir dois grupos antagônicos de nações: de um lado
um bloco liderado pela Alemanha, Áustria-Hungria e Império Otomano; do outro lado, um
bloco em que se destacavam França e Inglaterra, no qual a Rússia se inseria. Quando
irromperam as hostilidades em 1914, o Império Russo entrou na luta para retomar o
impulso expansionista que se esgotara com a guerra russo-japonesa de 1905. Este
engajamento também deveria funcionar como poderoso ingrediente de coesão social,
fazendo esquecer a vergonhosa derrota na guerra de 1905 e o levantamento revolucionário
que esta incentivou.
O exército russo, apesar de seu enorme contingente, era mal preparado, sendo o que
mais sofreu perdas na Guerra Mundial. Os soldados eram basicamente camponeses
37
Título de um artigo publicado de Affonso Frederico Schimidt, publicado no A Dor Humana de 11 de
outubro de 1919.
33
armados e a mão que empunhava o rifle fazia falta à agricultura. A produção de gêneros
diminuiu, provocando a alta dos preços. Este quadro foi piorado pela situação da indústria,
reconvertida para servir às necessidades do exército
38
. Em meados de 1917, a situação
política do Império Russo se degradava rapidamente. A Assembléia, ou a Duma Imperial,
onde atuavam os políticos ligados à burguesia e aos nobres liberais, agrupados no Partido
Constitucional Democrata (Kadete), pressionava por medidas de liberalização do regime,
mas o Czar Nicolau II aferrara-se ao absolutismo, se negando a ceder aos menores pedidos
dos deputados. Paralelamente a isto, o movimento grevista nas fábricas crescia desde 1915,
chegando a 575 mil operários de braços cruzados no começo de 1917. Os soldados
desertavam de seus postos, os aquartelados acompanhavam a agitação nas cidades e
levavam ao campo o germe da revolta. Os camponeses fardados faziam eco às exigências
de seu grupo social e começaram a exigir também o direito às terras em que trabalhavam,
formando assim os pilares das reivindicações que marcariam a revolução: paz, pão e terra.
A degradação econômica e social chegou a um ponto insuportável nos primeiros
meses do ano de 1917. Em 23 de fevereiro, uma manifestação em comemoração ao dia das
mulheres na capital Petrogrado deu origem a uma conclamação de greve geral na cidade.
Os agentes da repressão ficaram sem ação, já que o movimento se ampliava rapidamente,
passando de 90 mil grevistas a 240 mil em dois dias. Domingo, dia 26, os operários foram
para o centro da capital imperial protestar
39
; na segunda-feira eles não foram trabalhar. A
polícia não podia contar com o apoio do exército para reprimir os manifestantes, pois uma a
um os regimentos aderiram à rebelião, que se espalhava pelo país. O czar não soube o que
fazer, abdicando no dia 1º de março, exemplo seguido pelo seu irmão e sucessor no dia 3
40
.
Neste ambiente revolucionário os operários retomaram uma experiência tentada na
revolução de 1905, formando um Conselho (Soviet) de operários e soldados, com
delegados de cada fábrica e de cada regimento
41
. Imediatamente tratou-se de estender a
organização ao restante do exército, incitando cada regimento a eleger comitês de soldados
38
REIS FILHO, Daniel Aarão. Rússia (1917-1921): anos vermelhos. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 39.
39
Nesta época, Moscou ainda não havia se transformado em capital da Rússia, ainda estando esta sediada na
cidade de Petrogrado, atual São Peterburgo.
40
TROTSKY, Leon. História da revolução russa. 1º volume-a queda do tzarismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 1977. pp. 102-129.
41
Sobre a revolução de 1905 ver: TROTSKY, Leon. Balanços e perspectivas. Lisboa: Antídoto. 1979. Este
livro foi originalmente escrito em 1906, tendo reflexões do líder revolucionário sobre a experiência desta
revolução.
34
e enviar representantes ao conselho, sendo o modelo repetido em outras cidades. O Soviet
era o local de representação popular, onde os trabalhadores das fábricas e os militares de
baixa patente teriam um órgão para defender seus interesses perante as classes dominantes.
O Conselho também era o lugar onde todos os partidos de orientação socialista estavam
representados: o Partido Socialista Revolucionário, ou simplesmente SR, surgido dos
populistas russos, que defendiam um caminho próprio para o socialismo baseando-se nas
forças do campesinato; o Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), marxista,
dividido entre os bolchevistas, que defendiam que o operariado deveria ter uma direção
política própria, havendo a necessidade de esta classe assumir as tarefas da revolução
burguesa na Rússia, já que a burguesia seria incompetente para fazê-la, e no menchevistas,
que priorizavam a defesa de uma revolução burguesa e o apoio à burguesia, que chegaria ao
poder e faria as reformas necessárias para se chegar à democracia. Também atuavam nos
Soviets os anarquistas, que não estavam organizados em partido, mas que faziam valer sua
representação entre os operários industriais.
Em meio à agitação popular a Duma Imperial elegeu um Governo Provisório para
tomar as rédeas da situação, com um ministério majoritariamente kadete, deixando o
governo a cargo do príncipe Lvov, um nobre liberal. O Governo Provisório hesitou em
proclamar uma nova forma de governo, postergando a decisão pela república ou a
monarquia constitucional para uma assembléia constituinte. A hesitação, a propósito, seria
a marca deste governo pelos próximos nove meses.
Neste primeiro momento os principais nomes da revolução do lado dos grupos
populares eram menchevistas como Martov, Tseretelli, Dan e Cheidze; ou socialistas
revolucionários como Kerensky e Chernov. Os bolchevistas só vão ganhar força com a
chegada de seu principal líder do exílio, Lênin, em abril. Com isto o grupo mudou sua
atitude de colaboração com os outros partidos e passou a lutar pela tomada do poder pelo
Soviet, o que menchevistas e socialistas revolucionários eram contra pois temiam a
desestabilização do Governo Provisório.
Este Governo passou por diversas crises no período de sua curta existência, pois não
podia responder aos anseios da população, que exigia da revolução uma resposta sobre a
falta de pão, a divisão da terra e a assinatura da paz. Os kadetes, representantes da
burguesia, não podiam sair da guerra, pois esta estava envolvida demais com os interesses
35
do capital internacional. Os socialistas revolucionários e os menchevistas apegavam-se à
idéia de revolução burguesa, temendo perder o apoio dos kadetes na organização do novo
poder. Os bolchevistas, ao contrário, pregavam a entrega do poder aos Soviets e foram
contra o apoio à burguesia, além do mais, estes apoiaram a assinatura de um tratado de paz
com a Alemanha e a distribuição da terra aos camponeses
42
.
A primeira destas crises, em abril, fez com que os menchevistas e os socialistas
revolucionários entrassem no Governo Provisório em coligação com os kadetes. Na
segunda grande crise, em julho, os bolchevistas foram postos na ilegalidade e o principal
nome dos socialistas revolucionários, Alexandre Kerensky, assumiu o governo com plenos
poderes. Em agosto Kerensky quase foi derrubado por um golpe conservador, mas pelo
boicote das tropas e dos operários, coordenado em parte pelos bolchevistas, este
empreendimento fracassou. Com esta crise a situação se torna mais grave; Kerensky se
proclamou Comandante-Supremo e o Soviet de Petrogrado deu uma guinada para a
esquerda, elegendo Leon Trotsky, militante do Partido Operário Social Democrata Russo,
para sua presidência, aderindo este logo após sua eleição ao grupo dos bolchevistas. No
campo, os socialistas revolucionários de esquerda se fortaleciam, desbancando seus
companheiros de partido mais conservadores.
Em outubro, o Soviet de Petrogrado formou o Comitê Militar Revolucionário para
coordenar as tropas aquarteladas na capital. Alexandre Kerensky, sentindo que lhe tiravam
o chão sob os pés, tomou então medidas contra o poder soviético, mas foi inútil. O Soviet
ordenou no dia 24 de outubro a dissolução do Governo Provisório, que caiu quase sem
resistência, deixando apenas quinze mortos nos confrontos que se seguiram. O II Congresso
dos Soviets, reunindo delegados de toda a Rússia, foi aberto no dia 25. De início
menchevistas e socialistas revolucionários de direita protestaram contra a decisão de acabar
com o governo provisório e se retiraram, ficando na reunião os socialistas revolucionários
de esquerda que tinham como expoente a militante Spiridonova, além dos anarquistas. Na
segunda sessão do Congresso, dia 26, os bolchevistas conseguiram aprovar por
unanimidade um decreto sobre a paz, aprovando também um decreto pela qual a terra era
42
Para a caracterização dos grupos políticos da Rússia e sua história ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Op.
Cit. Capítulo “Revolta contra o czarismo”. p. 22-36.
36
socializada sem indenização, constituindo-se, por fim, como governo até a eleição da
Constituinte
43
.
O novo poder foi organizado no Congresso Pan-Russo dos Soviets, com a fusão dos
Soviets de Operários e Soldados com os Soviets de Camponeses. A estrutura soviética era
piramidal: na sua base estavam os Soviets distritais, eleitos por representação de atividades
produtivas, que iam enviando delegados aos Soviets superiores, até o Congresso Pan-
Russo, última instância de poder. No intervalo dos congressos o poder seria exercido pelo
Comitê Executivo Central (VTsiK) presidido a partir de outubro por Lênin. A forma de
governo soviética, por conselhos, provocou grande atração mesmo entre correntes políticas
não bolchevistas, como os anarquistas, que de modo geral eram avessos a qualquer coerção
estatal. A maioria deles inclusive apoiou os bolchevistas e alguns até aderiram ao partido
44
.
Logo os bolchevistas alçados ao poder tiveram problemas a resolver. A guerra civil
começou e a assinatura da paz com os alemães tornou-se urgente. A proclamação de Lênin
aos povos do mundo por uma paz sem compensações não foi atendida pelos alemães, que
avançaram fundo no território russo. Para responder aos ataques alemães, o governo
soviético transformou as guardas vermelhas de operários armados e as tropas que
continuavam fiéis ao novo governo no exército vermelho, que teria Leon Trotsky como seu
organizador e comandante a partir daí. A perda de território agravava a situação criada pela
dissolução da Assembléia Constituinte, eleita em fins de 1917, que devido à sua
composição, majoritariamente de socialistas revolucionários de direita, entrou em conflito
com o poder do Soviet que a extinguiu em janeiro de 1918. Estas atitudes deixaram por um
fio a aliança com os socialistas revolucionários de esquerda. Iniciou-se também o conflito
com os anarquistas, devido à tentativa de desarmar a sua guarda negra em Petrogrado e pela
repressão ao movimento guerrilheiro de Nestor Makhno na Ucrânia.
A guerra civil estava se desenvolvendo em larga escala. Na frente externa os
alemães, uma vez dentro do território russo, apoiaram os generais fiéis ao antigo regime,
incentivando-os a atacar o exército vermelho. Ao mesmo tempo Inglaterra e França, aliadas
de guerra, invadiram o território russo para apoiar “governos constitucionais” formados por
43
TROTSKY, Leon. História da revolução russa. 3º volume-o triunfo dos Soviets. Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 1977. pp. 947-989.
44
BROUÉ, Pierre, União Soviética. Da revolução ao colapso. Porto Alegre: Síntese Universitária/Editora da
UFRGS. 1996. Ver “O estado dos Soviets” pp. 22-27.
37
menchevistas e socialistas revolucionários de direita. Japoneses e americanos ocuparam a
Sibéria. Em julho de 1918 a invasão se torna massiva, a ponto de, no início de 1919, a
Rússia Soviética estar reduzida a apenas 10% do território da Rússia Imperial. O exército
dos conservadores, o branco, só não obteve maior vantagem sobre o exército vermelho por
que usava de enorme violência sobre a população russa e porque os soldados estrangeiros
começaram a sentir uma perigosa simpatia pelos bolchevistas, tendo que ser rapidamente
evacuados.
Para tentar recuperar níveis de consumo anteriores à guerra, o governo bolchevista
adotou uma série de medidas, como a militarização do trabalho, a nacionalização das
empresas e a modificação do sistema de circulação, com a criação de cooperativas de
consumo para distribuição de ração alimentar. Neste sentido, um dos pontos vulneráveis da
revolução era a produção agrícola. Depois de tentativas frustradas de formar fazendas
estatais e de recorrer aos camponeses pobres para ajudar nas requisições, o estado formou
milícias urbanas para trazer os grãos que faltavam às cidades. Outro problema,
especialmente grave pelo caráter do partido que controlava o poder soviético, era a pressão
sobre os operários para que eles produzissem mais para servir à guerra civil. Ocorreram
discussões acaloradas sobre a liberdade do trabalhador, se os sindicatos deveriam servir
para os operários reivindicarem seus direitos ou se deveriam servir à produção
45
.
Depois de imensos sacrifícios o exército vermelho venceu seus inimigos. As últimas
tropas brancas foram batidas em 1920, no sul da Ucrânia. Depois disso, os russos ainda
tiveram que enfrentar os poloneses, que tentavam invadir a Ucrânia e a Bielo-Rússia. As
tropas vermelhas expulsaram-nos do seu território, tentando avançar sobre a Polônia, para
provocar uma revolução que se espalharia pela Europa. O plano fracassou e os russos
tiveram de se voltar para dentro do seu país. Apesar de frustrada, a esperança em uma
revolução na Europa permaneceria viva até 1923.
O governo bolchevista tentou continuar com o comunismo de guerra, mas a
população começou a se revoltar. Lênin propôs então um novo modelo econômico, a Nova
Política Econômica (NEP), reintroduzindo alguns elementos do capitalismo de mercado. A
guerra civil, entretanto, não havia passado em vão. À medida que as estruturas econômicas
45
RIBEIRO, Luís Dario Teixeira. A ruptura revolucionária na Rússia. In: VIZENTINI, Paulo Giberto
Fagundes. (Org.). A Revolução soviética/1905-45: o socialismo num só país. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1989. pp. 52-57.
38
eram reorganizadas e o exército era reestruturado, muitos antigos burocratas e antigos
oficiais do império czarista eram chamados, ou obrigados, a ajudar no esforço de guerra. Os
membros do Partido Bolchevista, agora rebatizado de Partido Comunista, foram
incorporados à burocracia e os burocratas aderiram massivamente ao partido. As
necessidades técnicas de suprir batalhões, de enfrentar inimigos, de restabelecer o consumo
iam vencendo a democracia soviética que levara os bolchevistas ao poder. A burocratização
correspondeu a um processo paralelo de perda de força do Soviet como representação da
classe operária, que ia, aliás, desaparecendo rapidamente das cidades russas. Parte
considerável morreu no campo de batalha e outra parte foi incorporada à estrutura estatal
que era necessária recompor das cinzas da guerra civil. Foi assim que os russos se
propuseram a iniciar a construção do socialismo.
1.2. A revolução mundial
Apesar de não ter se realizado o sonho da República dos Soviets pela revolução
mundial, o processo que desestabilizara o czarismo na Rússia deixou marcas bem fortes
fora do seu país de origem. Enquanto na Rússia a guerra civil opunha vermelhos e brancos,
estes aliados às forças estrangeiras, nestas terras estrangeiras começava um período de
estremecimento social. Em 1914, havia otimismo quanto à possibilidade de uma guerra
rápida na Europa, mas em 1917, o continente estava cansado e com as feridas expostas. Os
tradicionais partidos de esquerda como o Partido Socialista da França e o Partido Social-
Democrata da Alemanha apoiaram a guerra. O correr dos acontecimentos deu força aos
grupos políticos mais radicais. A revolução de outubro, nas palavras de Hobsbawm, fez
com que os desejos de paz e revolução social se fundissem num só:
Que uma revolução na Rússia teria repercussão internacional, sempre foi claro desde que a
primeira revolução, de 1905-1906, abalara os antigos impérios sobreviventes da época, da
Áustria-Hungria até a China, passando por Turquia e Pérsia. Em 1917 toda a Europa se
tornaria um monte de explosivos prontos para ignição.
46
46
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
2002. p. 66.
39
Em janeiro de 1918, uma onda de manifestações e greves políticas abalaram os
Impérios Centrais. Começando por Viena, o descontentamento passou para a Boêmia e
para a Dalmácia, onde os marinheiros se levantaram. À medida que a derrota ficava mais
evidente, os exércitos se desmantelavam, voltando-se contra seus próprios governantes,
como ocorreu com a Bulgária em setembro, onde uma república de curta duração foi
proclamada. Em outubro o Imperador Francisco José da Áustria abdicou e em novembro
Guilherme da Alemanha seguiu o caminho do seu “colega”. Nestes dois países seriam
proclamadas repúblicas, mas na Alemanha a questão não se limitou à troca de regime.
Formou-se, por pressão popular, um governo encabeçado por Ebert e Scheidemann,
líderes do Partido Social Democrata (SPD). Tal governo continuou recebendo pressões da
população e dos grupos mais à esquerda do espectro político, como o dos espartaquistas,
mas não cedeu ao aprofundamento da revolução. Em janeiro de 1919, quando os operários
tomaram Berlin, o governo socialdemocrata reprimiu duramente os socialistas radicais,
agora organizados em um Partido Comunista, assassinando seus mais proeminentes líderes:
Rosa Luxemburgo e Karl Liebknicht
47
. Nesta reação também foi assassinado o presidente
da República Socialista da Baviera, que havia sido proclamada em novembro, Kurt Eisner.
Em março levantou-se a Hungria, que proclamou uma república soviética sob
comando de Bela Kuhn. No esforço por liberar seu território das tropas romenas e tchecas,
os húngaros ajudaram a proclamar a República Socialista da Eslováquia. Este
levantamento incentivou os bávaros a fazerem uma nova revolução, bem mais radical que a
primeira. Tanto uma tentativa quanto a outra redundariam em massacres dos socialistas, na
Hungria inclusive inaugurando-se a longa ditadura do marechal Horty de Nagebanya.
As maiores comoções revolucinárias ocorreram na Europa Centro-Oriental, mas a
porção ocidental do continente não passou incólume, pois aí também ocorreram grandes
mobilizações operárias. Na Alsácia-Lorena, coração da Europa Ocidental, foi proclamada
uma república soviética de curta duração em novembro de 1918. A França e a Inglaterra
foram agitadas por grandes greves, na Itália os trabalhadores tomaram o poder em várias
indústrias do norte através dos Comitês de Fábrica.
48
Na Espanha houve uma
47
ALMEIDA, Ângela Mendes de. A República de Weimar e a ascensão do fascismo. São Paulo: Brasiliense,
1999. pp. 25-30.
48
DROZ, Bernard e ROWLEY, Anthony. História do século XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.
pp. 190-191.
40
movimentação tão intensa que os anos de 1918-19 foram chamados de “biênio
bolchevique”.
Acreditando na possibilidade de uma revolução duradoura que se espalhasse pelo
continente, os bolchevistas russos decidiram refundar a Internacional Socialista, já que esta
estava dominada por tendências moderadas. A Internacional Comunista nasceu em
Moscou, em 1919, para se tornar o estado maior da revolução mundial, coordenando os
principais grupos revolucionários da Europa.
Apesar dos russos olharem esperançosamente para o continente europeu, o processo
revolucionário também serviu de fonte de inspiração em outras partes do mundo, como na
América Latina, onde o movimento operário sofria influência do socialismo e do
anarquismo. Na Argentina, no Chile e no Uruguai a revolução russa provocou cisões nos
Partidos Socialistas locais, de onde se formaram, no começo dos anos 20, os primeiros
Partidos Comunistas da região. Na Argentina, a revolução de outubro e o bolchevismo
empolgaram a principal central sindical anarquista do país, a Federación Obrera de la
República Aregentina, mas este entusiasmo também foi motivo de sérias dissidências a
partir de 1920
49
. No México, ainda sob o clima político da revolução mexicana, várias
tendências de esquerda se agruparam em um partido comunista, em 1919, sob influência de
um militante nacionalista indiano, Manabendra Nath Roy
50
. Em Cuba, os trabalhadores das
plantações de tabaco, sob influência de anarquistas como Alfredo Lopez, se reuniram em
Soviets, chegando a ser organizado em Havana, um Congresso dos Soviets da República de
Cuba.
A revolução russa ia sendo recebida de forma diferente em cada país. No Brasil ela
também causou impacto, mas como aqui os partidos socialistas eram de modo geral
efêmeros ou pequenos demais, suas conseqüências foram mais claras no movimento
operário, que no período era controlado principalmente pelos anarquistas. No ano de 1917
uma onda de greves e manifestações operárias sacudiu o país, mas sob o peso da repressão
ou do apelo nacionalista com a entrada do Brasil na Primeira Guerra, o movimento
arrefeceu. No fim do ano de 1918 o movimento seria retomado com mais força. No Rio de
Janeiro a Aliança Anarquista, associação que coordenava os grupos libertários da Capital
49
ALBA,Víctor. Historia del movimiento obrero en América Latina. México: Libreros Mexicanos Unidos,
1964. pp.350-352.
50
GÓDIO, Júlio. História del movimiento obrero. México: Nueva Imagen. 1983, 2 v. pp.91-102.
41
Federal, onde militavam importantes figuras como Astrojildo Pereira e José Oiticica,
decidiu preparar uma insurreição para derrubar o governo e instalar no Brasil uma
República Soviética de Operários. O plano era deflagrar uma greve revolucionária, invadir
o Palácio Presidencial e tomar a Intendência de Guerra, para armar os trabalhadores e
controlar o Rio de Janeiro. O plano foi descoberto por traição do tenente Elias Ajus. Em 18
de novembro a revolta degringolou em batalhas campais nos bairros operários do Rio, os
operários foram reprimidos e inúmeros anarquistas acabaram presos
51
.
Além desta tentativa de revolta, surgiram da militância operária várias associações
que se identificavam com a Rússia Soviética. No Rio Grande do Sul apareceram em 1918 a
União Maximalista de Porto Alegre, a Liga Comunista de Santana do Livramento e o
Centro Comunista de Passo Fundo. Em Cruzeiro, município paulista entre o Rio de Janeiro
e São Paulo, Hermogêneo Silva fundou a União Operária 1º de Maio em 1917, organização
que se tornaria um dos núcleos formadores do PCB em 1922. Em Alagoas apareceu a
Congregação Libertadora da Terra e do Homem em 1918. Em Recife organizou-se um
Círculo de Estudos Marxistas e a Universidade Popular surgiu em 1919. Além das
associações operárias, são formados também no período alguns partidos socialistas: em
1917 jovens intelectuais fundam o Partido Socialista Brasileiro no Rio de Janeiro, em 1918
é fundado o Partido Socialista do Ceará e em 1920 é fundado o Partido Socialista da Bahia.
Estes não vão necessariamente se identificar com a revolução russa: o Partido Socialista
Brasileiro, por exemplo, seguia a linha do Partido Socialista Francês e da social
democracia alemã, sendo crítico do bolchevismo, defendendo a idéia que ele fracassaria no
Brasil.
Um Partido Comunista seria organizado, em março de 1919, na Capital Federal pela
Aliança Anarquista, a associação responsável pela insurreição de novembro do ano
anterior. Subseqüentemente foi formada a Liga Comunista Feminina e surgem diversos
núcleos do partido nos bairros suburbanos do Rio. Este grupo de militantes lançou também
o jornal Spartacus, com uma tiragem inicial de 4000 números, passando depois para 6000.
Em São Paulo os anarquistas que tinham como expressão principal o jornal A Plebe
51
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O ano vermelho. A revolução russa e seus reflexos no Brasil. São
Paulo: Expressão Popular, 2004. pp.157-200.
42
formaram uma Liga Comunista, que se transformou em um Partido Comunista, à
semelhança do que fora feito na Capital.
Como existissem núcleos comunistas suficientes em diversas partes do país, foi
convocada uma Conferência Comunista a ser realizada nos dias 21, 22 e 23 de junho no
Rio de Janeiro, para fundar o Partido Comunista do Brasil (a última reunião teve de ser
transferida para Niterói, pois a polícia dissolveu o congresso). Participaram 22 delegados
de Alagoas, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo, Estado do Rio de Janeiro, Rio Grande
do Sul e Distrito Federal.
Aprovou-se uma base de acordo simples, em sete pontos, declarando-se o partido
aberto aos socialistas, anarquistas e a todos que aceitassem o comunismo social. Como
tentativa de explanação das idéias que os organizadores do PCB consideravam comunistas,
Antônio Nazianzeno Candeias Duarte e Edgar Leuenroth escreveram O que é maximismo
ou bolchevismo - o programa comunista. Este era um esboço constitucional inspirado em
alguns pontos estabelecidos pelo III Congresso dos Soviets de janeiro de 1918 para uma
república comunal, organizada em conselhos e gerida pelos trabalhadores. Nos termos de
Moniz Bandeira “Era todo um princípio de organização, em que se entrelaçavam idéias
libertárias e inovações da ditadura do proletariado na Rússia”
52
.
O ano de 1919 marcou o ápice das mobilizações operárias no Brasil. Manifestações e
paralisações violentas ocorreram em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul,
tendo como resultado o fechamento de associações, prisões arbitrárias e deportações de
líderes operários para fora do país. Uma nova tentativa de insurreição em São Paulo foi
sufocada e em 20 de outubro se iniciam choques violentos entre grevistas e a força pública:
ocorrem espancamentos e a redação d’A Plebe é destruída por estudantes e policiais. O
quadro se repetiria em outros estados.
Em 1920 importantes greves ainda são deflagradas, principalmente na Bahia e em
Pernambuco, mas já se sente um declínio das mobilizações. Para Moniz Bandeira se
iniciam aí as divergências entre comunistas e anarquistas, que dividiriam o movimento
operário posteriormente, com A Plebe de São Paulo, por exemplo, já tecendo duras críticas
ao bolchevismo em dezembro daquele ano. Para o autor estavam se conformando
tendências que se cristalizariam na formação do PCB de 1922.
52
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Op. Cit. pp. 229-230.
43
E quanto ao Rio Grande do Sul? O que estava acontecendo aqui, enquanto tudo isso
se passava no Brasil, na Rússia e no mundo? O que vou fazer agora é examinar como no
Rio Grande do Sul estas referências serviam aos operários organizados. Caberá também
verificar se a revolução ou as informações que dela chegaram até aqui, serviram para
promover formas diferentes de agir e de pensar do movimento operário, qual relação havia
entre os grupos que defendiam os princípios da revolução russa e sua atuação dentro do
movimento operário. Para isso se faz necessário penetrar os liames das lutas operárias,
enfeixar os acontecimentos, ver na perspectiva das relações internas da classe e sua postura
diante dos grupos dominantes o que a “grande revolução” significou para estes homens e
mulheres.
44
2. “HOSANNA, HOSANNA FILHA DA JUSTIÇA QUE VENS PARA NÓS EM NOME
DA LIBERDADE”
53
: a experiência operária no Rio Grande do Sul e as primeiras
interpretações da revolução russa pelos trabalhadores organizados do estado
Neste capítulo pretendo analisar os primeiros impactos da revolução russa no Rio
Grande do Sul, mas para que eles sejam mais bem compreendidos, inicialmente farei um
breve histórico das experiências organizativas dos operários do estado, as características
das disputas ideológicas que foram se conformando entre estes grupos e as diferenças entre
o desenvolvimento do movimento operário nas principais cidades industriais do estado.
Este histórico não é apenas um exercício de rememoração ou a necessidade de
estabelecer um contexto, como adverti no capítulo anterior; mas se torna importante para
esclarecer as tradições de militância que haviam se formado no Rio Grande do Sul no final
do século XIX e no início do século XX. Compreendendo-se melhor estas tradições, que
eram referências para os trabalhadores organizados, pode-se chegar mais perto das lógicas
que guiavam as interpretações que aqueles militantes deram aos acontecimentos da Rússia
revolucionária.
Desta forma, como já observei na Introdução, as idéias da revolução russa vão
circular em um ambiente informado por estas tradições de militância, o que permite ver as
imagens e as esperanças dos militantes em uma nova sociedade como interpretações
possíveis e não como uma “iluminação” oriunda de idéias novas ou de enganos em relação
a um ideário original.
2.1. A trajetória do movimento operário e suas características nos primeiros anos da
revolução russa.
No período em que as notícias sobre a revolução russa começaram a chegar ao Rio
Grande do Sul o movimento operário era predominantemente influenciado pelos
anarquistas, mas a maior federação sindical do estado, a Federação Operária do Rio Grande
do Sul, não se encontrava atuante. Em outros lugares também havia uma letargia entre as
53
Trecho do artigo Rússia, publicado no A Luta, de 28 de março de 1918.
45
organizações operárias, até que uma série de acontecimentos no ano de 1917 mudaria
radicalmente este panorama, levando os militantes a uma intensa movimentação. Tanto
para compreender a formação das tradições militantes, quanto para se compreender este
momento em que as notícias da revolução chegam até aqui, é necessário fazer uma
digressão no tempo a fim de estabelecer que jogo de forças havia entre as associações e que
linhas políticas elas seguiam.
No fim do século XIX uma tendência política era dominante entre as associações de
operários organizados, o socialismo. O socialismo no Rio Grande do Sul se inspirava na
social-democracia alemã, se destacando entre suas lideranças operários como Francisco
Xavier da Costa em Porto Alegre e Antônio Guedes Coutinho na cidade do Rio Grande. Os
primeiros anos da República são marcados pelo esforço dos socialistas para criar
associações operárias, seguindo o modelo europeu de organização. Surgiram assim na
década de 1890, em Porto Alegre, a Allgemeiner Arbeiter Verein dos operários alemães e a
Liga Operária Internacional, enquanto em Rio Grande apareciam a Liga Operária e a União
Operária. Partidos Socialistas também foram fundados em Porto Alegre e Rio Grande. Este
último, a propósito, chegou a participar do pleito para conselheiro municipal em 1897, onde
a eleição deu a vitória ao seu candidato (com um número pequeno de votos), mas esta
eleição acabou sendo impugnada pelo poder republicano
54
.
Até o início do século XX, como se pode ver, haverá uma predominância da
influência socialista no movimento operário, sendo que os anarquistas aparecem de forma
mais tímida, marcadamente na fundação da União Operária Internacional de Porto Alegre
em 1902. Este quadro começa a mudar a partir da conjuntura de 1906. Neste ano aconteceu
o 1º Congresso Operário Brasileiro (COB) em abril, que foi o responsável por uma maior
difusão das idéias anarquistas no país. Em Porto Alegre, os operários anarquistas fundaram
o Jornal A Luta, que seria a partir deste momento o principal veículo propagador destas
idéias, fazendo polêmica com o jornal A Democracia, editado pelos socialistas. Além do
jornal, fundado em 13 de setembro, os operários anarquistas também abriram nesse ano um
54
Este fato é descrito em PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz e LUCAS, Maria Elizabeth. Antologia do
movimento operário do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992. pp. 96-103.
46
curso noturno, a Escola Eliseu Reclus. Neste período, entre os libertários, destacavam-se os
militantes Jesus Rey Gil, Stephan Michalsky e Polidoro Santos
55
.
Os principais pontos de diferença entre os anarquistas e os socialistas se
relacionavam com o estado e com a organização dos trabalhadores: os socialistas insistiam
na importância da formação de partidos para a luta política dos operários, o que não
excluiria uma eventual aliança com o governo, além de dar importância em seus programas
para a regulamentação das relações de trabalho e a difusão do ensino básico e
profissionalizante; os anarquistas, por seu turno, não aceitavam nenhum tipo de aliança com
o poder constituído, dando ênfase à luta econômica e à ação direta, sendo que na educação
tentaram fundar escolas que fossem organizadas pelos próprios trabalhadores
56
.
Apesar desta distinção ser importante, deve-se fazer algumas ressalvas quando se fala
do caráter anarquista ou socialista desta ou daquela associação e de seus membros. Quando
o pensamento social europeu foi se difundindo no Rio Grande do Sul, no final do século
XIX, essas idéias sofreram uma série de adaptações e apropriações; mesmo que algumas
lideranças tivessem em mente uma divisão clara e até nutrissem certo repúdio por uma
tendência adversária, isto muitas vezes não era claro para todos os militantes. Como coloca
Isabel Bilhão no seu livro Rivalidades e solidariedades no movimento Operário:
É importante salientar que, apesar de largamente difundidas na historiografia rio-grandense,
a divisão dos primeiros grupos operários em anarquistas e em socialistas não pode ser feita
sem algumas reservas pois, em geral, o conjunto dos trabalhadores que participam da
organização operária porto-alegrense não tem suas fronteiras de atuação tão claramente
demarcadas.
57
Além disso, as organizações anarquistas e socialistas convergiam em muitos pontos,
como a defesa do recurso à greve como meio de luta e as críticas contra a burguesia
industrial e a oligarquia em geral. Um outro ponto que torna mais complicado delimitar o
campo de atuação destas tendências é o local onde elas atuavam, que eram os sindicatos.
55
Ver PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos
operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001. pp. 188-193.
56
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Op. Cit. pp. 210-216.
57
BILHÃO, Isabel. Rivalidades e solidariedades no movimento operário. (Porto Alegre 1906-1911). Porto
Alegre: Edipucrs. p. 22.
47
Apesar das efêmeras aparições de partidos operários, era nas organizações sindicais que
estes grupos disputavam a hegemonia do movimento.
As relações das associações operárias com os grupos de orientação política- fossem
anarquistas ou socialistas- eram informais: não são os sindicatos que subscrevem programas
de grupos políticos, mas as lideranças desses sindicatos. Esse seria o meio de tentar
resguardar a neutralidade política das associações operárias.
58
Pelos motivos expostos, observa-se que nestes primeiros momentos existia certa
dificuldade para demarcar os pesos das diferentes correntes políticas no movimento
operário e muitas vezes elas se entrecruzavam. Talvez por isso a dinâmica das associações
que se declaravam anarquistas ou socialistas seguiu caminhos particulares conforme os
diferentes centros de militância operária. Em Porto Alegre, um marco fundamental para
esta dinâmica foi a greve de 1906, em que por iniciativa de líderes socialistas como Carlos
Cavaco e Xavier da Costa, foi fundada a Federação Operária do Rio Grande do Sul,
reunindo as principais entidades da capital
59
. Esta greve marcou também os primeiros
desentendimentos entre socialistas e anarquistas, que se agravariam em 1907, com o embate
entre José Rey Gil e Xavier da Costa pelas páginas d’A Luta e d’A Democracia
respectivamente.
Outro ponto de discordância foi a aproximação dos socialistas do governo estadual
dominado pelo Partido Republicano Riograndense, como aconteceu nas negociações da
Intendência com a FORGS para a construção o Atheneu Operário. Para os anarquistas isso
era “chafurdar na lama da política”. A pressão dos libertários dentro do movimento
operário resultou na eleição de Luiz Derivi para Secretário-Geral da entidade e este, apesar
de não se contrapor em um primeiro momento à influência de Costa, vai permitir a entrada
de anarquistas para a direção da Federação. À medida que os anarquistas iam galgando
postos, os socialistas foram se afastando da associação. Em 1911 os jornais da capital
noticiavam a criação de uma nova entidade operária, a Confederação Geral dos
Trabalhadores, formada por entidades desligadas da FORGS e que recebiam influência dos
58
SILVA JR. Adhemar Lourenço. A bipolaridade política rio-grandense e o movimento operário (188?-1925).
Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v.22, n.2, dez.1996. p.12-13.
59
Para as informações sobre a greve ver: SCHMIDT, Benito B. De mármore e de flores. A primeira greve
geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2005; BILHÃO, Isabel. Rivalidades e
solidariedades no movimento operário. (Porto Alegre 1906-1911). Porto Alegre: Edipucrs, 1999. pp. 42-66, e
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Op. Cit. pp. 193-216.
48
socialistas. Esta CGT durou pouco tempo, não influenciando no desenvolvimento posterior
do movimento.
Com o controle da FORGS pelos anarquistas, os socialistas perderam um espaço
valioso de atuação e a partir daí sua influência diminuiu consideravelmente. Francisco
Xavier da Costa completou sua aproximação com a política republicana sendo eleito, em
1912, Conselheiro Municipal pelo Partido Republicano Riograndense. Mesmo assim não se
pode considerar a perda de força dos socialistas ou a cooptação do seu principal líder pelos
republicanos, como o fim da sua influência no movimento operário, como se houvesse uma
superação desta corrente pela anarquista
60
.
O período que segue a esta extensão de influência anarquista à Federação Operária é
marcado por uma dinamização das atividades, incluindo a promoção de manifestações
antibélicas por ocasião da deflagração da Guerra Mundial em 1914. Incentivou-se a criação
de escolas operárias e a promoção de atividades culturais, mantendo-se um contato maior
com as entidades do interior do estado e de outras partes do país. O relatório enviado à
Confederação Operária do Brasil (COB) em 1913, por ocasião de seu congresso no Rio de
Janeiro, informa que na Federação Operária do Rio Grande do Sul atuavam 20 entidades,
da capital e de cinco cidades do interior; também listavam as organizações com quem a
Federação mantinha relações de amizade: 50 associações oriundas de 26 localidades
61
.
Esta trajetória do movimento operário de Porto Alegre, marcada pela rivalidade entre
anarquistas e socialistas, pela aproximação do maior líder destes ao partido dominante e
pela proeminência de uma entidade aglutinadora como a FORGS, não resumia o que
acontecia no estado. Outras cidades também tinham importantes tradições de luta tão ou
mais antigas que as da capital. Entre estes centros seria importante destacar duas cidades da
zona sul do estado: Rio Grande e Pelotas
62
.
Em Pelotas o movimento operário remonta aos anos finais da monarquia e ao início
da república, tendo sido marcada esta época pela fundação da Liga Operária em 1890. A
associação era constituída por operários e patrões, sendo hegemonizada por políticos do
60
BILHÃO, Isabel. Op. Cit. p. 78.
61
Relatório da Federação Operária do Rio Grande do Sul ao Congresso Operário do Rio de Janeiro. Porto
Alegre, 30 ago. 1913. APUD: PETERSEN, Sílvia e Lucas. LUCAS, Maria Elizabeth da Silva. Antologia do
movimento operário gaúcho: (1870-1937). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1992. pp.164-172.
62
As informações sobre a história do movimento operário de Pelotas e Rio Grande foram retiradas de
LONER, Beatriz Ana. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). Pelotas:
UFPel, 2001.
49
Partido Republicano. Esta forma de organização provocou sérios conflitos internos com os
socialistas que atuavam na Liga, sendo estes expulsos ou tendo se afastado ao longo do
tempo. Este quadro só começou a ser revertido a partir de 1905, com a fundação de uma
União Operária em que se tentava delimitar um caráter claramente classista para a admissão
de seus membros, afastando-se da Liga, que se tornava cada vez mais burguesa. A União
não tinha uma posição ideológica claramente definida, apesar de acenar para um programa
socialista. Para sua fundação concorreram, além dos socialistas, imigrantes, militantes
negros e anarquistas. A importância desta associação está no caráter classista que teve
desde o início, demarcando um território para a atuação de diversas categorias de
trabalhadores, desvinculando-os da influência dos patrões, que estavam proibidos de
ingressar na nova associação.
Foi exatamente a União Operária que organizou as principais mobilizações operárias
no início da década de 10, como a luta pelas oito horas de trabalho ou a campanha contra
carestia. Nestes anos o movimento tornou-se mais ativo, e um dos motivos para que isso
acontecesse foi uma reorientação ideológica interna à Liga Operária. A partir de 1911 a
Liga passou a sofrer uma série de crises que culminaram pela aceitação do sindicalismo
revolucionário como meio de luta, em 1913-1914, quando a entidade estabeleceu
definitivamente seu caráter de associação de ofícios vários. O mais provável é que esta
guinada tenha sido fruto da necessidade que a nova conjuntura apresentava, de uma posição
mais radical em relação à colaboração de classes. Além do mais, houve um afluxo de
militantes vindos de fora da cidade como Alberto Lauro, Zenon de Almeida e Anastácio
Gago Filho, expulsos de seus locais de origem e que encontraram em Pelotas um campo
mais livre para seu trabalho.
Apesar da orientação anarquista que os militantes deram à Liga a partir de 1913 e da
orientação socialista de alguns dirigentes da União, estas entidades trabalharam juntas nas
grandes mobilizações de classe, o que difere do acontecido em Porto Alegre, onde
militantes destas duas correntes promoveram uma intensa disputa de poder. Pode-se até
pensar no papel dos republicanos na organização operária nas primeiras décadas em
Pelotas, o que pode ter criado um adversário mais forte a ser batido fora das fileiras
operárias. O relacionamento com os grandes partidos havia se construído de forma
diferente de Porto Alegre, o que deve ser um dos elementos para explicar outra
50
particularidade deste centro: o papel que um jornal popular como O Rebate, editado pelo
federalista Frediano Trebbi, teve como porta- voz dos militantes da Liga. Isto mostra que a
relação entre as associações operárias e destas com os grupos políticos dominantes não
seguiam um só padrão para todo o estado.
Enquanto Pelotas teve na Liga e na União entidades marcantes, em Rio Grande
destacou-se uma associação muito mais ampla e que permaneceria ativa por toda a
República Velha: a Sociedade União Operária (SUO), fundada em 1893. Havia na cidade
também um grupo socialista cuja principal figura era o militante Antônio Guedes
Coutinho
63
. Estes militantes tinham uma posição mais resoluta em relação aos conflitos
sociais que os dirigentes da SUO, mas isto não impediu que estes socialistas, em certas
ocasiões, mostrassem simpatias à política partidária, como em algumas eleições onde
apoiaram candidatos federalistas.
Este apoio não deve ser estranhado partindo dos socialistas, pois se deve ter em mente
que estes militantes, tanto os de Rio Grande quanto os de Pelotas e Porto Alegre, bebiam de
uma fonte teórica muito variada, típica da II Internacional. O grupo socialista de Pelotas era
mais fechado e mais agressivo, enquanto o grupo de Rio Grande apontava para
interpretações mais amplas, nutrindo certas simpatias por membros da burguesia. Os
socialistas de Rio Grande, além disto, também recebiam uma forte influência do socialismo
positivista de Enrico Ferri e Benoit Malon, o que já indica a importância do porto como via
de entrada das idéias em voga na Europa e na região do Prata
64
.
Mas o papel do porto na cidade de Rio Grande não se restringiu apenas ao de difusor
de idéias. As condições particularmente difíceis de trabalho e sua facilidade de
comunicação com outros portos fizeram dos portuários uma das linhas de frente da
mobilização operária na cidade. Estes trabalhadores começaram a se organizar na primeira
década do século XX. Sua mais importante associação surgiu em 1906, foi a União dos
Trabalhadores da Estiva, que estava sob influência anarquista. A Sociedade União
Operária, contrariamente, ia se tornando cada vez mais burocratizada, apesar de ter
63
Sobre este militante ver SCHIMIDT, Benito Bisso. Um socialista no Rio Grande do Sul. Antônio Guedes
Coutinho. (1868-1945). Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS. 2000.
64
Um exemplo interessante do socialismo vigente no sul do estado e sua heterogeneidade pode ser visto nas
concepções de Guedes Coutinho que se dizia influenciado por Tolstoi, Turatti, Paul Lafargue, Max Nordau,
Eliseu Reclus, Achile Lória, Karl Marx, Lombroso, Lassalle, Proudhon entre outros. Ibidem. p.75.
51
avançado na compra de sua sede própria e ter participado de mobilizações populares, como
a feita pela abertura da Barra do Rio Grande. A organização burocrática e a tendência a
colaboração com os poderes constituídos refrearam o dinamismo desta associação, fazendo
com que fossem barrados projetos para mudar sua orientação.
Esta tendência da Sociedade União Operária foi aprofundando-se ao longo do tempo.
Como ela era uma entidade operária de tradição na vida da cidade, muitos militantes de
outras associações participavam dela, o que era uma fonte de conflito permanente. A União
Operária quase sempre optava pelo caminho legal e pacífico, isso fez com que ela não
sofresse qualquer retaliação por parte dos poderes locais. A forma de tratamento era bem
diferente no caso da União dos Trabalhadores da Estiva. Esta teve sua sede fechada e
depredada em 1913, no final da greve dos estivadores, só podendo reorganizar-se um ano
depois. A União dos Trabalhadores da Estiva era filiada à FORGS e à Confederação
Operária Brasileira (COB), mantendo o jornal A Voz da Estiva. A sua capacidade de
mobilização extrapolava sua categoria e ela aparecereu em diversas greves conjuntas a
outras associações portuárias. Pode-se acreditar que esta tenha sido a mais importante
entidade defensora de um sindicalismo revolucionário até que os libertários organizassem,
em 1916, a Confederação Operária de Rio Grande, que seria a principal central anarquista
de ofícios vários até o aparecimento da União Geral dos Trabalhadores (UGT), em 1919
65
.
Apresentei até agora as características das principais correntes políticas do
movimento operário do Rio Grande do Sul. Também dediquei algumas páginas para contar
um pouco da história do movimento operário dos três principais centros de militância do
estado. Acredito que este breve exercício de recapitulação será útil para entender o período
que pretendo abordar agora, propriamente a fase em que o movimento operário recebe o
impacto da revolução russa, a partir de 1917. Mas quais eram as condições vividas por este
movimento operário, de longa tradição e diversificada experiência, neste momento
histórico?
Este período que se inicia em 1917 e vai até o início dos anos 20, em que a revolução
russa eclode e sua influência se espraia para outros países, é considerado também o
momento de mais intensa mobilização por parte das organizações operárias na República
65
LONER, Beatriz Ana. Op. Cit. pp.175-183 e 200-210.
52
Velha. As grandes greves e a intensificação de lutas por bandeiras históricas, como as 8
horas de trabalho, ou por novos objetivos, como a formação de um Partido Comunista,
fizeram com que o movimento operário alcançasse uma posição de destaque na vida
política dos principais centros urbanos do país, assustando os industrialistas e os
fazendeiros que governavam a nossa república oligárquica.
Para se compreender melhor este período, deve-se voltar um pouco no tempo para
observar como evoluíram as condições de vida da classe operária brasileira e as condições
nas quais atuaram os trabalhadores organizados. O movimento operário em algumas partes
do Brasil, entre elas o Rio Grande do Sul, havia experimentado uma ascensão no início da
década de 10. Aqui, como foi mostrado, isto correspondeu à tomada da FORGS pelos
anarquistas, à reativação da Liga Operária de Pelotas e a intensificação da propaganda
libertária contra a carestia de vida e contra a Grande Guerra; mas este momento ascensional
foi interrompido pela própria guerra, que teve um efeito muito perverso sobre as condições
de vida da classe operária.
O preço dos produtos de exportação caiu, estancaram-se as entradas de investimentos
estrangeiros, obras públicas foram paralisadas; este cenário de recessão trouxe para as
classes populares uma diminuição no número de empregos, a redução dos salários e a perda
das parcas conquistas adquiridas no período anterior. Sob estas condições, a atividade
sindical se retraiu e se desorganizou, perdendo as associações operárias a força de
mobilização que antes haviam conseguido manter
66
.
No ano de 1916 haviam sido registradas várias greves parciais no Rio Grande do
Sul, mas foi em 1917 que se abriu efetivamente uma nova conjuntura no movimento
operário, com um fôlego de mobilização que duraria muito tempo. As causas desta
movimentação podem ser encontradas em vários fatores. Um dos principais foi o
agravamento das condições de vida dos trabalhadores durante a Guerra, o que pode ser
percebido nas próprias palavras de ordem dos participantes das mobilizações de 1917, que
tinham como principal objetivo a luta contra carestia de vida. A exportação de produtos
básicos como trigo, arroz, feijão, café, banha e carne congelada para os países beligerantes,
tornavam os alimentos mais raros no mercado interno, provocando uma alta de preços. A
66
Para o período que antecedeu ao cliclo de grandes greves ver: FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito
social. São Paulo: DIFEL, 1977. p.157 e BATALHA. Cláudio Henrique de Moraes. O movimento operário na
primeira república. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 48-49.
53
crise econômica e a dificuldade de importar produtos da Europa também ajudavam a elevar
os preços dos alimentos e a inflação corroia os salários, que não eram repostos, já que o
movimento operário se via paralisado.
Mesmo havendo uma queda no padrão de vida da população, a atividade industrial
vinha experimentando uma recuperação. As importações do Velho Continente não podiam
ser mantidas no mesmo nível de antes da guerra, já que a indústria européia sofria com a
reconversão de seu parque industrial para fins militares e com a necessidade de atender os
exércitos em atividade; assim, a burguesia brasileira viu-se na necessidade dela mesma
suprir o mercado interno, tendo início uma fase de substituição de importações
67
.
Muitos produtos que eram comprados na Europa com o lucro das exportações
agrícolas passaram a ser produzidos no Brasil; no caso do Rio Grande do Sul, chegaram
mesmo a ser fundadas novas indústrias, como a dos frigoríficos, para abastecer o mercado
externo. Por conseqüência, o emprego industrial voltou a crescer, crescendo também as
concentrações de operários nas principais cidades. Apesar desta expansão, os salários dos
trabalhadores não retornaram aos patamares anteriores à guerra, possibilitando grandes
lucros aos empresários industriais, enquanto os trabalhadores continuavam em condições
extremamente difíceis. Esta combinação explosiva, de um operariado cada vez mais
numeroso, enfrentando condições de vida cada vez mais precárias, preparou o terreno para
a grande mobilização dos anos vindouros.
Não obstante a isso, as condições da economia por si só não são suficientes para
explicar o grau de mobilização no Rio Grande do Sul e no Brasil entre 1917 e 1920. Não
foi apenas este movimento de expansão-retração que ditou as características das lutas da
classe operária naquele período histórico; se a grande movimentação respondesse somente
a esta dinâmica, poder-se-ia dizer que o operário é uma continuação da máquina, possuindo
um dispositivo que ora acende, ora apaga, conforme o ritmo mais propício da atividade
industrial para o despertar da consciência de classe. Tomando de emprestado a resposta que
Marx deu ao editor do periódico russo Otiechéstvennie Zapiski, sobre as características do
67
Simonsen afirma que apesar de ser incorreto dizer que a indústria no Brasil se origina na guerra, ela teve
pronunciada influência no seu desenvolvimento posterior, por ter provocado uma intensa diversificação na
fabricação de produtos. A impossibilidade de contar com os fornecedores europeus estimulou o nascimento de
uma multiplicidade de pequenas indústrias, que se desenvolveram principalmente em São Paulo.
SIMONSEN. Roberto C. Evolução industrial do Brasil e outros ensaios. São Paulo: Ed. Nacional/Ed. da
USP. 1973. p. 20.
54
desenvolvimento social russo em relação ao modelo europeu, podemos dizer que:
[...]acontecimentos notavelmente análogos, mas que ocorrem em meios históricos
diferentes, conduzem a resultados totalmente distintos. Estudando por separado cada uma
destas formas de evolução e comparando-as em seguida, pode-se encontrar facilmente a
chave deste fenômeno, mas nunca se chegará a ele mediante o passaporte universal de uma
teoria histórico-filosófica cuja suprema virtude consiste em ser supra-histórica.
68
Os fenômenos estruturais que se verificam no fim dos anos 10 são muito propícios
aos levantamentos operários, assim como aconteceram episódios similares de carestia e
expansão de mão-de-obra em outros momentos da história; acredito, entretanto, que a
explicação das especificidades daquele período só podem ser encontradas aguçando os
olhos para os fatores excepcionais que não mais se repetiram nos anos seguintes.
Em território rio-grandense, as mobilizações começaram em março de 1917, com a
greve dos calceteiros de Porto Alegre, que teve um fim trágico e foi violentamente
reprimida. Na capital, entretanto, o movimento mais intenso e mais organizado aconteceu
na metade do ano. Os anarquistas que estavam afastados da FORGS reativaram a União
Operária Internacional e prepararam uma mobilização contra a carestia de vida. Este havia
sido o principal motivo das greves deflagradas em Curitiba e São Paulo. Na capital paulista
formou-se um Comitê de Defesa Proletária para organizar a greve, dirigido principalmente
por anarquistas. A paralisação mobilizou de 25000 a 45000 pessoas e o referido Comitê
tentou unificar os trabalhadores em torno de reivindicações comuns
69
.
Em Porto Alegre a ação anarquista resultou em algo parecido, na fundação de uma
Liga de Defesa Popular, fora do âmbito da Federação Operária do Rio Grande do Sul. Este
68
sucesos notablemente análogos pero que tienen lugar en medios históricos diferentes conducen a resultados
totalmente distintos. Estudiando por separado cada una de estas formas de evolución y comparándolas luego,
se puede encontrar fácilmente la clave de este fenómeno, pero nunca se llegará a ello mediante el pasaporte
universal de una teoría histórico-filosófica general cuya suprema virtud consiste en ser suprahistórica.
(Extrato retirado do site
http://www.marxists.org/espanol/m-e/cartas/m1877.htm.) Arquivo consultado em 5
de maio de 2007.
69
Sobre esta greve ver: LOPREATO, Christina Roquette. O espírito de Revolta: a greve geral anarquista de
1917. São Paulo: Anablume, 2000, além de FAUSTO, Boris. Op. Cit. p. 198 e BATALHA, Claudio Henrique
de Morais. Op. Cit. pp. 50-52.
55
foi o comitê que comandou as movimentações resultantes da greve
70
. É muito provável que
tenha havido influência direta dos anarquistas paranaenses e paulistas para levar a cabo esta
ação, já que estavam presentes delegados destes estados quando da fundação do organismo.
A paralisação durou de 31 de julho a 4 de agosto; neste período boa parte da produção da
cidade foi interrompida e os operários chegaram a impedir a circulação de carros,
permitindo que apenas aqueles sob salvo-conduto da LDP trafegassem. A greve teve fim
pela desmobilização de uma parte dos operários, depois que algumas reivindicações foram
atendidas por Borges de Medeiros e pelo Intendente José Montaury.
Depois da greve, a Liga de Defesa Popular não foi dissolvida. Ao contrário, muitos
membros da Federação Operária passaram a atuar nela, mas os anarquistas que haviam
organizado a greve não conseguiram estabelecer sua liderança dentro do movimento
operário. Líderes moderados, influenciados por socialistas, tiveram um papel mais
relevante e suplantaram os libertários na FORGS e na Liga. Temas como a construção de
um Ateneu Operário e de um Tiro de Guerra, sob patrocínio da Intendência Municipal,
passaram a ser discutidos sob os auspícios do conselheiro republicano Xavier da Costa, que
outrora havia sido membro do Partido Socialista e que ainda tinha dentro do movimento
operário considerável influência
71
. Tudo isso desgastou as relações entre os anarquistas que
se agrupavam na União Operária Internacional e a FORGS, tendo a União se desligado da
Federação em inícios de 1918; além do mais, os dirigentes da Federação moveram uma
campanha de difamação contra a União Operária Internacional e seus líderes, tendo como
motivo a aceitação de um emprego público por um dos membros desta associação. Neste
ambiente de cizânia e ataques mútuos é que reapareceu o jornal A Luta, em março daquele
ano, para ser porta voz dos anarquistas contra os socialistas moderados e os dirigentes da
FORGS. No mês de maio estes mesmos libertários formariam a União Geral dos
Trabalhadores, para abrigar as associações sob sua influência que desejavam se desligar da
FORGS.
70
Sobre a greve, entre outros, ver: PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa
pátria": história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2001. pp.328-326.
71
Xavier da Costa era muito próximo de alguns líderes da LDP, como Vigo Collin, que inclusive era seu
alfaiate e o tomava como modelo. SCHIMIDT, Benito Bisso. Em busca da Terra da Promissão. A história de
dois líderes socialistas. Porto Alegre, Palmarinca, 2004.
56
Em Pelotas, do dia 9 ao dia 17 de agosto, também ocorreu uma greve geral. Esta foi
organizada conjuntamente pela Liga Operária e pela União Operário, tendo como modelo a
greve de Porto Alegre. Nesta cidade formou-se uma Comissão de Defesa Popular, com
representantes das principais categorias de trabalhadores, tendo sido entregue aos patrões e
posteriormente ao prefeito um memorando que pedia um aumento de 25% nos salários dos
operários e a regulamentação da jornada de 8 horas de trabalho. Visando atender a
população em geral, pedia-se também o tabelamento de gêneros e a proibição do
açambarcamento. A greve alastrou-se rapidamente, ultrapassando o círculo dos
trabalhadores organizados. No fim do dia em que o movimento foi deflagrado, a cidade se
encontrava agitada e a situação era incerta.
Neste clima tenso deu-se o confronto entre os policiais e os grevistas, estes últimos
reunidos na Liga Operária, tendo como resultado a morte de um apoiador da Comissão de
Defesa Popular, além de muitas pessoas feridas. Depois do incidente o governo do estado
apressou-se em contornar a situação e enviou o Chefe de Polícia estadual para mediar a
greve. A FORGS também enviou um representante para apoiar os membros da Comissão.
Apesar da violência, a greve terminou com um saldo positivo para os operários, com a
maior parte das exigências atendidas
72
.
Em Rio Grande, onde o movimento se encontrava menos organizado, não houve
greves de vulto neste período; mas foi registrada em Bagé, cidade da campanha gaúcha, a
mobilização de operários, reunidos sob a Liga Operária local, em um comício para redigir
um memorial ao intendente protestando contra a carestia
73
. Não existem muitas
informações sobre o contexto em que se deu este apelo, mas pode-se ligá-lo aos
movimentos reivindicatórios de Porto Alegre e Pelotas, que também adotaram a fórmula de
reunir os operários para dirigir-se aos poderes municipais em busca de soluções para o
problema do custo de vida.
Outra greve importante e que por motivos de organização da produção atingiu várias
cidades gaúchas, foi a dos ferroviários. Ela iniciou-se no mesmo período que a greve de
Porto Alegre, mas teve seu recrudescimento em outubro. Suas reivindicações eram de
pagamento de salários atrasados, aumento salarial e a demissão de Mr. Cartwright,
72
LONER, Beatriz Ana. Op. Cit. pp. 308-312.
73
A Plebe. São Paulo, p.3, 13, ago, 1917.
57
administrador da ferrovia, que era controlada pela empresa belga Compagnie Auxiliare. A
greve teve o apoio da opinião pública, que não considerava eficiente os serviços da
Compagnie Auxiliar; do comércio, a quem interessava um transporte eficiente e do próprio
governo Borges de Medeiros. Aconteceram confrontos entre o exército e os grevistas e
locomotivas foram depredadas em Santa Maria, principal entroncamento ferroviário do
estado. O fim desta greve só ocorreu quando o Brasil declarou guerra ao Império Alemão e
neste contexto a ferrovia pôde ser encampada. Nesta greve Borges de Medeiros também se
reuniu com os representantes dos grevistas e na reunião decidiu-se que os operários teriam
aumento de salário, jornada de 8 horas de trabalho e uma política de assistência. Cartwright
acabou demitindo-se, o que era uma das principais exigências dos ferroviários para voltar
ao trabalho
74
.
Nesta primeira onda de greves as associações operárias de Porto Alegre e Pelotas
formaram organismos de defesa dos trabalhadores para resolver os problemas dos baixos
salários e da excessiva carga de trabalho, mas principalmente da carestia de vida. Estas
Ligas paralisaram a vida das cidades, obtendo legitimidade para negociar com o governo do
estado. Foi esta uma das primeiras tentativas, depois de anos de apatia, para estabelecer
uma ação por parte dos militantes dentro da classe operária e das classes populares; mas em
um caso como o de Porto Alegre este processo culminou, contraditoriamente, com o
estabelecimento de uma influência mais direta por parte do governo e de sindicalistas
moderados no movimento operário.
Miguel Bodea apresenta as ações de Borges de Medeiros como um exemplo de “pré-
populismo”, um primeiro experimento de tentar legitimar um governo elitista com o apoio
popular. Esta ação a favor dos trabalhadores de Porto Alegre, Pelotas e da Viação Férrea
viria ao encontro dos seus objetivos eleitorais naquele ano, além de ter sido feita a expensas
dos grandes fazendeiros organizados no Partido Federalista, favorecidos pelo
açambarcamento de gêneros alimentícios
75
. Tendo ou não fim imediatamente político, a
ação governamental serviu como refrator de uma tendência de radicalização representada
pela Liga de Defesa Popular, onde os aliados de Xavier da Costa obtiveram o controle da
74
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Op. Cit. pp.336-340.
75
Sobre o contexto de rivalidade política regional e a ação do Partido Republicano nesta greve ver: BODEA,
Miguel. A greve de 1917. As origens do trabalhismo gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1979.
58
associação. Pode-se fazer até um paralelo com o caso de São Paulo, onde o Comitê de
Defesa Proletária negociou com o governo de Altino Arantes, para depois ser traído e
desacreditado, refreando o ímpeto mobilizador do movimento.
O que permanece como fato importante é a constatação do papel que teve o governo
republicano para mediar os conflitos sociais; servindo isto de legitimação do borgismo
tanto para as eleições que haveria naquele ano, quanto para fora do seu domínio eleitoral,
como prova da superioridade do seu governo calcado pelo positivismo em face dos outros
estados membros da federação. Para os operários mais radicais, principalmente os ligados a
União Operária Internacional de Porto Alegre, sobreviria uma dura lição quanto às
conseqüências das negociações com membros da elite política estadual. Aquele ano de
1917 se fixaria como fundamental para a experiência dos operários rio-grandenses, tanto
como um momento de reorganização, quanto de decepção. Os acontecimentos do ano
seguinte, 1918, especialmente a atitude do governo republicano diante da “questão social”,
levaria a luta destes operários organizados a um outro patamar, se traduzindo, entre outras
coisas, na busca de inspiração em modelos mais radicais para a sua ação.
Em 18 de julho de 1918, os operários organizados de Porto Alegre, sob a União Geral
dos Trabalhadores, a Federação Operária do Rio Grande do Sul e a União Metalúrgica,
convocaram uma reunião para tratar da carestia de vida, que ainda era uma das principais
reclamações dos trabalhadores. Decidiu-se pela greve e as direções dos organismos
demitiram-se coletivamente, o que parece apontar para divergências entre as associações ou
entre diferentes grupos de operários. Desta vez Borges de Medeiros não respondeu aos
pedidos de negociação e a greve foi duramente reprimida. A resposta do poder estadual à
greve foi o fechamento da Federação, a prisão de líderes e a ocupação militar dos locais de
trabalho. Estes acontecimentos deram razão á postura dos anarquistas, que assumiram o
controle da FORGS, fundindo-a com a União Geral dos Trabalhadores, radicalizando ainda
mais as reivindicações e posições dos operários.
Na cidade de Rio Grande, as greves que aconteceram entre o fim de 1917 e o início de
1918, principalmente as ocorridas no Frigorífico Swift, resultaram na criação da União
Geral dos Trabalhadores, fundada com o apoio anarquista e que logo ajudaria a organizar a
greve geral de outubro daquele ano. Esta parede começou com os trabalhadores da
59
Companhia Francesa do porto e no seu segundo dia já mobilizava em torno de 1100
operários. A intendência inicialmente mostrou-se favorável à negociação, mas quando o
intendente contatou o governo estadual, aquele mudou de atitude, respondendo com a
repressão.
A União Geral dos Trabalhadores foi fechada e dois líderes grevistas foram presos.
Diante das críticas que incidiram sobre o governo municipal, este apresentou a desculpa de
que o discurso de um representante da Liga de Pelotas durante uma reunião na sede da
UGT era francamente subversivo. Zenon de Almeida, que era este representante, defendeu-
se negando a subversão, mas afirmando que os operários não deveriam respeitar as leis que
os oprimiam e que poderiam defender a sede da sua associação com tiros e dinamites, pois
que “aqui, sob a ditadura férrea de um satrápico filósofo cercado de esbirros, a única lei
era a força”
76
. Deve ser lembrado que Pelotas era a cidade em que se formara o Comissão
de Defesa Popular, onde o governo estadual intervira para defender os operários e onde se
firmara um acordo favorável a estes nas negociações em que participou o Chefe de Polícia
enviado por Borges de Medeiros. O quanto não se está aqui distante de 1917!
Muita coisa havia mudado desde então, não só para os trabalhadores gaúchos, mas
para os operários organizados de todo o mundo. Na Rússia a revolução avançava: o czar já
havia sido derrubado e depois deste, o ditador Alexandre Kerensky. As monarquias
austríaca e alemã também haviam caído e o “espectro do comunismo” rondava a Europa.
Enquanto no Rio Grande do Sul os militantes bradavam contra o “satrápico filósofo”
Borges de Medeiros, as notícias da instalação de um governo proletário circulavam com
cada vez mais força. O que significava a revolução russa para estes operários e estas
operárias, em meio a mobilizações massivas e desafios às autoridades? O que era aquela
revolução no oriente, que se alastrava para a Europa Central, que era discutida nos quatro
cantos do planeta? O que isto significava para o movimento operário e para os militantes
daqui?
Para Boris Fausto, esta conjuntura revolucionária internacional seria uma das chaves
para explicar as peculiaridades daquela época. Ou seja, a radicalização e a ascensão das
lutas no Brasil deviam-se, também, às possibilidades abertas pela revolução russa e pelas
suas conseqüências.
76
LONER, Beatriz Ana. Op. Cit. p.317.
60
“À semelhança do que ocorreria vários anos depois, no fim da Segunda Guerra Mundial, a
sobredeterminação da política internacional incide diretamente sobre a conjuntura. Como é
sabido, estes são anos de um grande ascenso revolucionário na Europa, que põe em risco a
ordem capitalista. A partir de outubro de 1917 os conflitos sociais internos recebem alento e
passam a ser vistos sob nova ótica. De um extremo a outro do espectro de classes e grupos
tem-se a noção de viver um momento decisivo. O fato de que a imensa maioria das
reivindicações operárias não diga respeito à demandas revolucionárias poderia prestar-se a
enganos. A luta pela cidadania social importa, nas condições da época, em um direto choque
contra o estado. Subjacente à ela, em cada pequena batalha ou grande mobilização, estão
presentes os lances de um cenário maior: a Revolução de Outubro, a revolta espartaquista, a
comuna húngara, os conselhos italianos, que o comício do 1º de maio [de 1919] sintetiza,
com seus cartazes em defesa da Hungria livre e da Bavária emancipada, os vivas à Lênin e à
União Soviética.”
77
Se de fato a revolução russa foi um daqueles fatores excepcionais que marcaram este
período da história do movimento operário brasileiro, imprimindo uma marca de
radicalização na ação dos militantes, como se deu efetivamente este processo entre os
trabalhadores gaúchos?
2.2. As condições sociais de apropriação dos impactos iniciais da revolução russa entre
os operários gaúchos
Voltemos então ao que foi exposto no Capítulo I: o levantamento dos operários em
Petrogrado iniciou em fevereiro. A Rússia era uma peça importante na guerra, por isso o
acontecimento mereceu destaque nos jornais de grande circulação do estado. Caía a dinastia
dos Romanoff e com ela a centenária monarquia dos czares, o que despertava interesse do
público em geral, mas pelo caráter da revolução, chamou atenção aos militantes do
movimento operário em particular. Provavelmente a primeira referência à revolução russa
ligada à mobilizações operárias no Rio Grande do Sul se deu durante a greve dos
calceteiros, em março de 1917, apenas ums depois do início daquela na Europa. Em
Porto Alegre o Correio do Povo do dia 20 daquele mês anunciava que “um comício que
seguiu a publicização da greve fez referência à vitoriosa revolução russa”
78
. A greve dos
calceteiros foi violenta e teve como protagonista os operários anarquistas da Associação
dos Calceteiros.
77
FAUSTO, Boris. Op. Cit. p.170-172.
78
SILVA JR, Adhemar Lourenco. "Povo! Trabalhadores!": tumultos e movimento operário (estudo centrado
em Porto Alegre 1917). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 1994. (dissertação de mestrado). p. 91.
61
Outra declaração de um operário referindo-se à Rússia foi registrada em agosto, mas
em uma conjuntura bem mais explosiva, a da greve geral. No dia 31 de julho, em um dos
maiores comícios já realizados em Porto Alegre até aquela data, que reuniu entre 4000 e
5000 pessoas na Praça Senador Florêncio (atual Praça da Alfândega), João Batista Moll, da
diretoria da Liga de Defesa Popular, declarou que “O povo da Rússia, dos cossacos, de
Tolstói, Górky e Kropotkine, depois de uma escravidão quase infinita, conseguiu por si um
regime de liberdade”
79
.
Esta declaração revela algumas coisas. A revolução russa era um exemplo de
libertação e era um exemplo de libertação anarquista. Para Batista Moll a Rússia libertada
não é a de Lênin ou Trotsky, sequer a de Alexandre Kerensky ou dos socialistas
revolucionários, mas uma Rússia que era marcada por modelos de rebeldia como os
cossacos ou figuras ligadas ao anarquismo, como Kropotkin. Ou seja, em um primeiro
momento os libertários do Rio Grande do Sul acreditaram que uma revolução operária só
teria sentido sob a liderança anarquista. Outro fato a ressaltar é que a declaração foi feita
em meio a um comício, o que já havia acontecido com os calceteiros, mostrando que esse
poderia ser um exemplo mobilizador. A ligação da revolução russa com o anarquismo vai
se modificar ao longo do tempo, mas a sua evocação em momentos de mobilização será
uma característica que permanecerá, se tornando cada vez mais recorrente nos próximos
anos.
Um dos fatores que mais dificultaram a apreensão destes primeiros impactos da
revolução russa no movimento operário gaúcho foi o pequeno número de jornais operários
disponíveis para este período inicial de 1917 e 1918; o que muda de figura quanto mais se
avança pelo ano de 1919, quando há um grande florescimento da imprensa operária. Um
dos periódicos que poderia ajudar na compreensão destas primeiras impressões sobre a
revolução russa seria A Épocha, órgão da Liga de Defesa Popular, mas não consegui
localizar nenhum número deste. O que se tem de mais concreto para este momento, além
dos vestígios indiciários na grande imprensa, é um panfleto intitulado Ao Povo Rio
Grandense, lançado em dezembro de 1917, justamente pelo editor d’A Épocha, o barbeiro
79
BODEA, Miguel. Op. Cit. p. 36.
62
Abílio de Nequete. O folheto, no entanto, não vinha assinado por ele, mas por um suposto
Grupo de Operários e Soldados Brasileiros.
Abílio de Nequete era um barbeiro sírio-libanês, autodidata e livre-pensador, que
iniciou sua participação no movimento operário na greve de agosto daquele ano, assumindo
o cargo de editor do jornal da LDP. Em dezembro, quatro meses depois da greve, ele
resolveu distribuir entre os soldados este panfleto assinado pelo Grupo de Operários e
Soldados Brasileiros. O texto discorria, por exemplo, sobre a necessidade de corresponder
ao apelo do Presidente da República para o chamado da guerra; também chamava atenção
para o fato de que os operários e os soldados eram os esteios da sociedade, sendo chamados
a defendê-la na hora do perigo. Além do mais, o que devia tocar especialmente Nequete, se
referia à necessidade de que todos os brasileiros e estrangeiros residentes há mais de dois
anos no país contribuíssem para o esforço de guerra, não podendo ser indiferentes à sorte
do país.
Apesar deste discurso patriótico, as considerações e conclusões apontavam para
algumas coisas que haviam sido temas da greve de agosto: a carestia de vida e a questão
dos aluguéis operários.
Considerando que procuramos equilibrar o nosso salário com o aumento crescente dos preços
dos gêneros de primeira necessidade, determinada por várias causas decorrentes do estado de
guerra; e considerando mais não ser justo que nos campos de batalha e nas oficinas nos
sacrificamos pela defesa do solo pátrio, sejamos onerados pelo aluguel da casa plantada nesse
solo amado, o que além de injusto seria incoerente e absurdo.
O grupo de operários e soldados brasileiros, que fazemos a pátria o sacrifício de nosso sangue,
do nosso trabalho, das nossas energias e das nossas afeições; acreditando que o espírito de (?)
atinja igual grau entre os proprietários e os inquilinos das casas.
Resolve.
A partir de 1º de janeiro de 1918 ficam todos os inquilinos isentos de pagar aluguéis, enquanto
durar o estado de guerra a que somos arrastados para defender a integridade de nosso solo e a as
conquistas de nossa raça;
Da quantia economizada cada inquilino concorrerá com 5% para a Cruz Vermelha Brasileira, e
igual quantia para a aviação militar, sendo o restante aplicado para auxiliar a manutenção das
respectivas famílias e a refazer as energias que serão aplicadas para o bem de nossa pátria.
O grupo espera que todos os operários e soldados brasileiro cumpram fielmente a presente
resolução; entregando as respectivas comissões a quantias com que devem concorrer para a Cruz
Vermelha e a aviação militar, provando assim o seu espírito de disciplina e nunca desmentido
patriotismo.
63
Viva o Brasil! Dezembro de 1917. Grupo de Operários e Soldados Brasileiros
80
.
A polícia do Exército, apesar do caráter nacionalista do panfleto, teve medo que tais
idéias pudessem causar algum tipo de confusão e prendeu Nequete por alguns dias. Há
motivos bastante fortes para crer que esta tentativa de unir operários e soldados, apesar da
retórica nacionalista, foi inspirada no exemplo dos Conselhos Soviéticos, tendo sido uma
das primeiras formas de ação influenciada pela revolução russa no movimento operário
gaúcho. Por enquanto é necessário reter a importância da guerra como tema, pois o assunto
estava na ordem do dia e se repete nos escritos dos militantes anarquistas divulgados no
jornal A Luta. As particularidades deste folheto e sua relação com as perspectiva anarquista
serão tratadas mais adiante, quando for examinada especificamente a trajetória de Abílio de
Nequete.
Como mostrei antes neste capítulo, a greve de agosto teve graves conseqüências para
o movimento operário de Porto Alegre, acirrando as disputas internas que havia entre
sindicalistas moderados e anarquistas. Neste contexto surgiu o jornal A Luta, porta voz dos
anarquistas, e foi pelas páginas dele que a revolução russa começou a ter grande destaque.
Isto pode ser observado pelo seu “editorial” de apresentação, no qual são destacados os
acontecimentos internacionais mais importantes daquele momento: a guerra e a revolução
russa.
O ideal acariciado por tantos mártires da liberdade de que a humanidade chegará um dia a um
estádio de civilização mais elevado não se desmentiu com o desencadear da tempestade
sangrenta que assistimos, antes pelo contrário. O sangue derramado pela loucura burguesa
saneou o berço aonde nasceu para a humanidade a nova aurora redentora.
É da Rússia que vem o vendaval destruindo tronos e privilégios para estabelecer sobre a terra o
reinado da justiça pelo qual há tantos séculos aspiram os corações generosos e ao qual tantas
vidas tem sido sacrificadas.
81
Em seu primeiro número, de março de 1918, são dedicadas duas meias páginas à
situação da Rússia. Ressalta-se a preocupação em fazer justiça aos maximalistas russos,
pois o jornal se contrapunha à tese da “traição russa” aos aliados, ao mesmo tempo em que
80
Ao povo rio grandense. Grupo de Operários e Soldados Brasileiros. Inquérito Policial Militar 1432. Foro
Federal. Porto Alegre, 1917.
81
A Luta, Porto Alegre, p.1, 28, mar, 1918.
64
acusa a grande imprensa de ser “fraldiquera”
82
e caluniosa. Para os anarquistas, o que a
Rússia realmente estava fazendo era aniquilar os verdadeiros inimigos da classe operária:
A Rússia ascendeu o archote que deve esparzir pelo mundo a luz da liberdade e da igualdade
de fato. Rússia é o Prometeu libertado pelo rompimento dos grilhões que o acorrentavam ao
Cáucaso: capitalismo. Rússia é o Hércules do Século XX que veio cortar as cabeças da
Hidra moderna: Clero, Capital, Militarismo.
83
Há um linguajar poético para descrever a revolução e o uso de uma metáfora
associada à luz que é muito recorrente. Este uso da luz, de archotes e do fogo para se referir
à revolução é mostrado por Cláudio Batalha como sendo comum para os anarquistas,
ligando-se à noção de uma grande revolução universal, o que remontaria às tradições da
revolução francesa
84
. Uma associação mais explícita com o 14 de julho francês pode ser
encontrada em alguns trechos como este:
Tenhamos esperança que apesar dos pesares assim como a revolução francesa foi invencível,
assim é invencível a revolução russa, todas as forças do mundo poderão abafá-la aparentemente,
mas não a vencerão jamais, não deterão a sua marcha; ela é a revolução social e vencerá
fatalmente, irrevogavelmente. Essa é a nossa fé...
85
A Rússia também era a continuadora da obra da França revolucionária e como esta,
ela também tinha todos os reacionários do mundo contra si. Tal como na França, nada
poderia parar a grande revolução social.
O mesmo articulista, como foi mostrado logo acima, chegava a afirmar que “essa é a
nossa fé”. Em alguns momentos, de fato, o tom parecia religioso: “o operariado consciente
de todo mundo recebeu-a aos gritos de Hosanna, Hosanna filha da justiça, que vens para
82
Que comete fraude, termo usado na época.
83
A Luta, Porto Alegre, p.3, 28, mar, 1918.
84
BATALHA, Cláudio Henrique de Morais. ‘Nós, filhos da Revolução Francesa’, a imagem da revolução no
movimento operário brasileiro no início do século XX”. Revista Brasileira de História: São Paulo. vol. 10, n°
20, 1990.
85
A Luta, Porto Alegre, p.3, 28, Mar, 1918.
65
nós em nome da liberdade! E todo o mundo proletário repetiu esse belo Hosanna à
revolução messias”
86
.
A revolução russa poderia ser igualmente o contraponto à guerra, que tanto ódio
causava aos anarquistas. A paz proposta pela Rússia era o grande anátema para o
nacionalismo e a grande glória para o internacionalismo proletário. Ao tema foi dedicado
inclusive um artigo no jornal: O Momento Perante a História e o Internacionalismo
87
. Foi
também o ataque ao patriotismo e a esperança em uma nova fraternidade entre os povos
que fez com que Abílio de Nequete, sob o pseudônimo de Máximo Evidente, escrevesse:
hoje felizmente surgiu do lodo e da fumaça da guerra uma nova pátria, de verdade e
justiça, de amor e fraternidade, onde o homem gozará dos frutos do seu trabalho
88
.” Esta
era a Rússia de Lenin, Trotsky e Krylenko, a quem ele apelidou de “magos do oriente”.
No dia de maio Zenon (provavelmente Zenon de Almeida), em um texto intitulado
“Rússia”, descrevia o nascimento da revolução como se fosse o surgimento de um grande
luz, que em vão alguns morcegos (burguesia) tentariam atacar: “Mas ai! destes morcegos
que querem apagar o sol da nascente liberdade, perderão as asas e morrerão nas
chamas”. No final deste texto, ele depositava toda sua confiança naquele acontecimento e
hipotecava o seu apoio de forma incondicional.
Que a Revolução Russa é um acontecimento grandioso na história dos povos, para nós, é um
fato indiscutível.
E se nada soubéssemos sobre a mesma, quanto a seu fim, uma coisa nos bastava para que o
nosso dever, dever dos trabalhadores, fosse defendê-la a outranse: é o fato de ter contra si
toda a burguesia do mundo. Porque a burguesia não faria o escarcéu que faz se alguma coisa
de grave a revolução não anunciasse
89
.
Esta atitude pode ser justificada porque a revolução não era mais considerada
somente russa. Nequete, na edição de outubro do A Luta, propõe que não se chame mais de
revolução russa, “mas sim revolução maximalista, para que se compreenda como
revolução da humanidade, não circunscrita apenas à raça russa ou eslava”. Ou seja, a
86
Idem.
87
Idem.
88
Idem.
89
A Luta, Porto Alegre, p.2, 1º de maio de 1918.
66
revolução era também deles, dos operários do Rio Grande do Sul, porque era dos operários
do mundo. Ela passava por cima das nacionalidades, fundava uma irmandade maior, de que
em breve participariam todas as pessoas do mundo: “Cremos que, mesmo que a burguesia
possa deturpar, será impotente para retardar a marcha já acelerada, que breve implantará
a liberdade no mundo. E do alto dessas colunas brado: operários, soldados e camponeses,
o seu dia se aproxima.!
90
Percebe-se, pelos extratos d’A Luta, que esta revolução correspondia à realização das
esperanças libertárias. Muitos nomes citados, como Koprotkin ou Tolstoi, não pertenciam
ao grupo de personalidades atuantes no processo revolucionário, mas eram figuras
exponenciais do anarquismo russo. Isto mostra que em um primeiro momento não há uma
análise mais profunda sobre os fatos ocorridos, nem um destaque sobre as particularidades
do bolchevismo ou de suas principais lideranças.
O que se escrevia sobre a Rússia não representava uma ruptura em relação a um
paradigma anterior. Destacavam-se nos escritos o antimilitarismo, o antinacionalismo, a
solidariedade dos trabalhadores; que eram, na verdade, bandeiras históricas dos libertários.
Ao menos nesses primeiros momentos, esta é a revolução social que eles acreditavam estar
defendendo.
Além das idéias específicas do anarquismo, observa-se nesta exposição de esperanças
sobre a revolução russa toda a mobilização de um imaginário social que articulava
representações de um mundo melhor, onde não haveria a burguesia. Muitas destas imagens
são comuns a outros lugares e a outras correntes de pensamento. Como já foi dito, a luz e os
archotes podem retroceder a episódios bem distantes, como o 14 de julho de 1789. O texto
de Zenon de Almeida, sobre os patrões que são como morcegos queimados pela luz do sol,
lembra muito a imagem do “patrão vampiro” evocada por Michelle Perrot e que era comum
na França do final do século XIX e começo do XX. De fato, a atividade sugadora do
burguês, que vive da exploração do trabalho do operário fabril, leva a uma correlação com
o vampiro ou o morcego, seres que se alimentam exatamente do sangue alheio
91
. Mesmo a
religião, um anátema para a maioria dos anarquistas e sindicalistas que atuavam no Rio
90
A Luta, Porto Alegre. p.4, 10, out, 1918.
91
PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992. p. 85-87.
67
Grande do Sul, serviu de alguma forma de modelo para algumas representações destes
mesmos, como fica evidente no Hosanna à revolução messias.
Não se pode desconsiderar isto ou tratar estas imagens como algo apenas pitoresco.
Os imaginários sociais são parte importante das luta sociais e estas figuras não são fruto
somente das idéias políticas ou de condições sociais específicas. Aqui me reporto a
Bronislaw Baczko, que estudou estes sistemas simbólicos e sua utilização pelos grupos
sociais:
Todo campo de experiências sociais está rodeado de um horizonte de expectativas e
recordações, de temores e de esperanças. O dispositivo imaginário assegura a um grupo
social um esquema coletivo de interpretações das experiências individuais tão complexas
como variadas, a codificação de expectativas e esperanças, assim como a fissão, no crisol da
memória coletiva, das recordações e das representações do passado próximo ou distante. A
potência unificadora dos imaginários sociais está assegurada pela fusão entre verdade e
normatividade, informações e valores, que se operam por e no simbolismo. Ao tratar-se de
um esquema de interpretações, mas também de valoração, o dispositivo imaginário
intervém eficazmente em um processo de sua interiorização por seus indivíduos em uma
ação comum.
92
As revoluções são tempos “quentes” para a formação de um imaginário
revolucionário, como mostra o próprio Bronislaw Baczko em relação à revolução francesa,
onde símbolos novos são criados e contrapostos aos da velha ordem
93
. Talvez isso explique
a profusão de imagens significativas utilizadas neste primeiro momento, algumas até
tomadas dos “inimigos” pertencentes à velha ordem, como na analogia feita entre o messias
e a revolução.
Esta relação com os inimigos da classe pautou a maneira como a revolução russa foi
interpretada. Falar da revolução era uma forma de afrontar a burguesia, mostrando que a
sua derrubada era viável. Além disso, era uma forma de enfrentar diretamente a “imprensa
burguesa”, que criticava o novo regime russo por este ter abandonado o lado da Entente na
Primeira Guerra Mundial. Rodrigo Patto de Sá Motta no seu Em guarda contra o "perigo
92
Todo campo de experiencias sociales está rodeado de un horizonte de expectativas y recuerdos, de temores
y esperanzas. El dispositivo imaginario asegura a un grupo social un esquema colectivo de interpretaciones de
las experiencias individuales tan complejas como variadas, la codificación de expectativas y esperanzas, así
como la fisión, en el crisol de la memoria colectiva, de los recuerdos y de las representaciones del pasado
cercano o lejano. La potencia unificadora de los imaginarios sociales está asegurada por la fusión entre verdad
y normatividad , informaciones y valores, que se operan por y en el simbolismo. Al tratarse de un esquema de
interpretaciones, pero también de valoración, el dispositivo imaginario interviene eficazmente en el proceso
de su interiorización por sus individuos en una acción común. BACZKO, Bronislaw. Los imaginários
sociales. Buenos Aires: Nueva Visión. 1979. p. 30.
93
Ibidem. pp.39-46.
68
vermelho": o anticomunismo no Brasil (1917-1964)
94
mostra como um dos primeiros
motes de propaganda anticomunista foi a tese de que Lênin era um agente a soldo do Kaiser
e que por isso havia desistido de lutar contra o Império Alemão. Basta lembrar que o Brasil
estava do lado anglo-francês, portanto, do lado russo. As acusações sobre o regime
revolucionário eram bastante graves e para os nacionalistas parecia uma loucura abandonar
a guerra; claro, como já afirmei antes, este abandono se encaixava perfeitamente na
tradição anarquista de antimilitarismo e antipatriotismo.
Defender a Rússia era ao mesmo tempo defender a causa operária contra a burguesia
e seu infame jornalismo, daí a importância de esclarecer o operariado sobre os fatos
ocorridos, apresentando a versão dos militantes. Com efeito, o primeiro parágrafo da seção
intitulada Rússia, do primeiro número do A Luta, dizia o seguinte:
Neste momento que o clou
95
de todas as palestras é a questão russa, também chamada por
alguns imbecis de loucura russa, traição russa, defecção russa, etc., nós que estudamos as
questões sociais, não podemos e não devemos calar; precisamos esclarecer a imprensa
fraldiqueira, desmentindo as suas calúnias, esclarecendo os trabalhadores e fazendo justiça
aos maximalistas.
96
Desde o primeiro momento da vitória bolchevista os jornais de grande circulação
criticaram a proposta de paz, a divisão a terra e a fundação de uma república socialista. Será
visto no próximo capítulo como as notícias sobre as revoluções na Europa deram ensejo a
uma verdadeira luta de jornais operários contra as interpretações conservadoras veiculadas
pela grande imprensa, o que se encaixa no propósito de engajamento em uma radical luta
anti-burguesa, tanto nas ações, quanto nas opiniões.
A revolução era uma forma de luta radical que não faria concessões às classes
opressoras, os morcegos que morreriam de asas queimadas ao atacarem o fogo
revolucionário, como escreveu Zenon de Almeida. A política tradicional também não
entraria aqui neste novo mundo apontado pelos anarquistas, e coincidentemente, o
94
SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. Em guarda contra o "perigo vermelho": o anticomunismo no Brasil (1917-
1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.
95
Aqui, acredito que signifique destaque, ou tema de todas as palestras. Foi uma gíria da época que não
consegui traduzir.
96
A Luta, Porto Alegre, p.2, 28, mar, 1918.
69
momento em que os anarquistas de Porto Alegre viviam era de repúdio total a influência
deste tipo de política nos meios operários.
O ataque a uma FORGS sob influência de sindicalistas moderados, ligados a um
conselheiro do Partido Republicano, Francisco Xavier da Costa, conjugava-se bem com a
idéia de uma revolução operária que destruiria a colaboração de classe. Acredito que um
“eco” desta disputa sindical local, através de uma notícia sobre as disputas entre os
socialistas europeus, pode ser “ouvido” no artigo O Socialismo Russo e o Socialismo
Alemão, que apareceu no 2º número do jornal A Luta, em 1º de maio de 1918.
Este artigo faz uma explanação sobre os dois tipos de socialismo existentes. O
primeiro é o socialismo alemão, que foi o que sempre serviu de “pára-choque” às
reivindicações operárias e que no momento do Kaiser declarar guerra, lhe prestou seu
apoio. É um socialismo “burguês e politiqueiro”, apegando-se à essa corrente política
”todos os pescadores de águas turvas que desejam entrar nas altas regiões da política e
todos os governos apóiam esses partidos socialistas por serem excelentes auxiliares na arte
de governar”. Já o segundo, o socialismo russo, seria o contrário. Implantado depois da
queda do czar e de Kerensky, seria o verdadeiro regime dos trabalhadores: “Surgiu então
em solo moscovita, o verdadeiro socialismo operário, surgido na justiça e no trabalho e do
qual a burguesia é natural e fidagal inimiga, por verem abolidos os seus privilégios de
exploração”
97
.
“Socialismo alemão, social democracia, socialismo político e de estado:-socialismo burguês.
Socialismo russo: maximalismo, anarquismo, sindicalismo:-socialismo operário
O primeiro é um novo rótulo para o regime burguês; o segundo é a negação desse regime, e
a proclamação dos sagrados direitos humanos do trabalhador.
98
Esta analogia pode parecer exagerada à primeira vista, mas não é tanto quando se
observa que os dois primeiros números do A Luta dedicavam-se substancialmente a atacar a
postura da Federação Operária e dos “politiqueiros” que a influenciavam, ao mesmo tempo
em que participavam da “política burguesa”. O conselheiro Xavier da Costa havia sido líder
97
A Luta, Porto Alegre, p.2, 1º de maio de 1918.
98
Idem.
70
do Partido Socialista do Rio Grande do Sul, partido de orientação “alemã”, e naquele
momento era filiado a um partido “burguês”, o Partido Republicano Rio Grandense; neste
caso a comparação podia ser bem apropriada. Com isto não estou afirmando que Xavier da
Costa tivesse todo esse poder sobre a Federação, mas era assim que os anarquistas o
mostravam, desqualificando-o e aos dirigentes daquela associação.
Desta forma, a interpretação idealizada pelos libertários aparecia mediada também
pelas lutas “atuais” daquele período, como no caso de servir de modelo para o confronto de
dois tipos do socialismo que se chocavam na arena das lutas operárias de Porto Alegre. A
radicalidade dos anarquistas, a sua posição de “ataque” e “crítica” na luta sindical do
momento, o repúdio a qualquer ligação com a política partidária, favorecia a que eles se
espelhassem na revolução russa mostrando-a como o verdadeiro caminho do futuro.
Evidentemente, havia formas de interpretar a revolução muito diversa dos anarquistas.
Seguindo um rumo completamente diferente, Carlos Cavaco, tribuno popular que teve
grande influência no movimento operário nos anos 10 e que era ligado aos socialistas, via a
revolução de outubro como um verdadeiro crime. Na sua revista O Echo Americano, a
verdadeira revolução era a de fevereiro, já que o Governo Provisório havia mantido a
Rússia na guerra, não maculando os compromissos patrióticos do país. Embora possa ter
influenciado esta interpretação o caráter radical e antinacionalista dos apoiadores da
revolução de outubro naquele momento em Porto Alegre
99
. Mas, apesar da enorme
diferença entre elas, tanto a interpretação dos anarquistas quanto à de Carlos Cavaco têm
algo em comum: são devedoras das tradições ideológicas da militância operária no Rio
Grande do Sul.
No momento em que as idéias ou notícias da revolução russa começaram a circular
entre os meios operários do estado, foram estas tradições militantes, como o anarquismo
dos que escreviam no A Luta, que deram sentido a estas informações. Mas a análise do A
Luta permite observar que a forma como a revolução russa era lida e mostrada pelos
militantes não se devia somente a uma tradição que os informava, mas também a condições
sociais e políticas de apropriação muito específicas. A revolução tanto era uma inspiração
para os militantes, que tinham uma postura cada vez mais agressiva contra a burguesia e o
99
O Echo Americano. p.3, Porto Alegre, 18, mar, 1918.
71
estado, como fornecia um bom argumento para seu combate contra a influência de
operários mais moderados, aliados do governo, em que era interessante enxergar o
socialismo desacreditado da II Internacional.
Claro, estas visões da revolução eram também devedoras das informações que
chegavam até aqui. As notícias sobre a Rússia eram basicamente mediadas pelo jornalismo
de grande circulação do estado. Não havia ainda uma difusão de notícias mais extensa,
como acontecerá depois; desta forma, as hipóteses tinham de ser construídas sobre as
expectativas e as crenças destes indivíduos. Além disso, outra coisa deve ser lembrada:
apesar do descontentamento geral na Europa pelo prolongamento da guerra, ainda não
havia sido aceso o estopim da revolução fora da Rússia, o que aconteceria a partir de
outubro e novembro, quando os alicerces dos Impérios Centrais seriam definitivamente
abalados pelas manifestações operárias. A Rússia mantinha-se isolada em uma guerra
defensiva. A terra das vastas estepes, da taiga e da tundra gelada, dos altos Urais e dos
lagos salgados, podia bem se encaixar neste lugar utópico. Um repositório de sonhos e
esperanças, o qual não se sabia bem o que era, mas parecia ser algo novo e acalentador.
Curiosamente, este mundo utópico que representava uma realização de esperanças de
mudança em relação ao mundo vivido pelos operários, convivia lado a lado com a Europa
sangrada e destruída, onde os trabalhadores estavam fadados a sacrificar seus companheiros
de classe de outras nacionalidades. No final de 1918 a revolução extravasou as fronteiras
russas, os levantamentos se repetiram em muitos países do mundo, inclusive no Brasil, a
linguagem dos jornais e dos panfletos se tornou mais agressiva, a imagem da revolução
estava cada vez mais presente. Isto seria apenas devido a uma quantidade maior de idéias e
notícias sobre a Rússia que circulavam no movimento operário? Acredito que não.
À medida que o tempo passava, não só as informações que circulavam sofriam uma
mudança quantitativa, como as condições sociais de apropriação destas também se
modificavam. Nos meses finais de 1918, e durante todo o ano de 1919, o número de
trabalhadores mobilizados cresceu muito, abrindo-se horizontes de possibilidade cada vez
mais largos para as associações de operários organizados. Nestas condições, a própria
tradição anarquista passou a se inspirar em uma série de práticas e idéias oriundas da
Rússia revolucionária, cuja influência parecia estar se espalhando irresistivelmente pelo
mundo.
72
3. “A HUMANIDADE É UM TURBILHÃO E O MUNDO UM CREPITAR DE
CHAMAS”
100
: as transformações nas formas de interpretar a revolução russa no ano
das grandes greves; novas experiências, novas leituras
As greves ocorridas na metade de 1918 tiveram por conseqüência a reorganização das
forças em ação no movimento operário. Na capital, a direção da FORGS, antagonizada
pelos anarquistas, demitira-se em julho. A Federação fundiu-se com a União Geral dos
Trabalhadores de Porto Alegre, em que se reuniram os anarquistas da União Operária
Internacional, após terem saído da Federação. A FORGS então voltou a estar nas mãos dos
anarquistas.
Em Rio Grande um processo similar de reorganização entre os militantes, em 1918,
preparou o terreno para os grandes choques que ocorreriam em 1919, o que também
aconteceu com os operários dos frigoríficos de Santana do Livramento. Neste ano de 1919
se registrou o maior número de greves no estado, a ponto de Zenon de Almeida afirmar que
o Rio Grande do Sul se transformara no líder em número de paralisações em todo o país
101
.
O ano de 1919 pode ser considerado o do ápice da atividade das associações operárias
no estado. Juntamente com as mobilizações, novas associações foram fundadas, novos
jornais surgiram, a articulação com grupos do centro do país tornou-se mais intensa, um
maior volume de informações circulavam entre as cidades. Neste contexto, as greves foram
os pontos de condensação destes processos, onde as exigências por melhores condições de
vida e os horizontes de possibilidades estendiam-se para cada vez mais longe.
Na cidade de Santana do Livramento, uma greve com ativa participação da Liga
Comunista local, paralisou os frigoríficos Armour, mobilizando 2000 trabalhadores, tendo
como resultado a fundação de um Centro de Resistência de Ofícios Vários. Em Porto
Alegre aconteceu a maior greve generalizada do período, entre 25 de agosto a 11 de
setembro, com a participação de cerca de 9000 trabalhadores. Desta vez nem o governo
nem os patrões cederam às exigências de aumento de salário e de regulamentação de horas
trabalhadas; a mobilização sofreu um duro golpe no dia 7 de setembro, quando a Brigada
Militar dispersou violentamente um comício em frente à Intendência, o que resultou na
100
Trecho artigo Tremei! Senhores, de Spartacus do Sul (Zenon de Almeida), n’O Nosso Verbo, de 9 de maio
de 1919.
101
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 3, set, 1919.
73
morte de um operário, no fechamento da FORGS e na prisão de líderes importantes como
Friedrich Kniestedt e Abílio de Nequete
102
. Na cidade de Rio Grande, a greve de maio de
1919, ocorrida entre o dia 8 e 20 daquele mês, foi mais traumática. Uma paralisação dos
trabalhadores no Porto Novo catalisou os ânimos de outros operários, que foram aderindo,
mas à medida que o movimento aumentava, a repressão também se fazia presente. Um
destroyer chegou a ser acionado, mas os próprios marinheiros alinharam-se às
reivindicações operárias. Uma multidão de 3000 grevistas foi atacada pela polícia, um
jovem apareceu morto nos cômoros, a União Geral dos Trabalhadores foi proibida de
funcionar. Fustigado pela violência, o movimento dissipou-se e foi encerrado
103
.
Neste capítulo pretendo analisar como a revolução russa foi apresentada e
interpretada pelos operários neste momento de profunda comoção social. O contingente de
greves e os enfrentamentos cada vez mais constantes criaram um clima propício para que
houvesse uma identificação entre a situação russa e a situação dos operários no estado.
Além disso, neste ano de 1919 surgiram importantes jornais de classe, o que permite que se
trabalhe com uma gama muito maior de informações.
As fontes utilizadas para desenvolver este capítulo são principalmente estes jornais
onde os militantes escreviam, destacando-se entre eles: O Syndicalista de Porto Alegre, A
Dor Humana de Bagé, O Nosso Verbo de Rio Grande e O Rebate de Pelotas. Destes, o mais
utilizado foi O Syndicalista, não só porque era o órgão de informações oficial da FORGS,
mas porque atesta bem a inflexão de postura ocorrida no movimento operário frente à
revolução russa. Fazendo um paralelo com o A Luta, que também se propunha a defender a
revolução russa, O Syndicalista mostra notícias mais detalhadas, inclusive divulga
documentos e declarações de importantes figuras revolucionárias como Lênin e Bela Kuhn.
Apesar de ter feito uma reflexão sobre a imprensa como fonte de pesquisa na
Introdução, cabe aqui apontar mais algumas peculiaridades deste jornalismo militante. A
expansão deste tipo de imprensa, aliado ao momento de crescente mobilização, dava novo
significado às informações que vinham da Rússia; isto porque estes periódicos não eram
somente divulgadores de notícias, mas eram veículos pelos quais os militantes estabeleciam
102
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos
operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.p. 361-371.
103
LONER, Beatriz Ana. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). Pelotas:
UFPel, 2001. p.317-322.
74
ligações entre si e também através deles estabeleciam uma ligação com o movimento
operário internacional. Como mostra Jorge Jardim Pastorisa, era esta imprensa que
contribuía “para união, comunicação e intercâmbio entre diversas regiões e experiências
desenvolvidas pelos trabalhadores. A redação de um jornal operário funcionava como
centro irradiador de política operária e de experiências locais e receptoras das idéias
exteriores”
104
.
Por intermédio destes periódicos pode-se notar não só uma proliferação de notícias,
mas uma mudança de atitude em relação à revolução, que vai se conformando a par da
própria dinâmica do movimento operário. Uma das mudanças que mais se ressalta é quanto
ao caráter da revolução. Como já havia sido apontada por Abílio de Nequete pelas páginas
do A Luta, a revolução deixa definitivamente de ser russa e passa a ser universal.
3.1. A revolução como um processo universal
No texto de apresentação d’O Syndicalista de Porto Alegre, em 1º de abril de 1919,
esta inflexão de postura é muito evidente, pois o jornal se posicionava como instrumento
para a instrução do operáriado no importante momento pelo qual o mundo estava passando.
Qual era esse momento? Era o da revolução mundial:
...na hora crepuscular em que o desabamento do mundo velho nos enche de esperança na
expectativa de vermos surgir um novo mundo dos escombros crepitantes onde há de ficar
sepultada a história da escravidão moderna; nesta hora, em que os trabalhadores de todos os
países se agitam para restabelecer o equilíbrio social necessário à vida humana, não é lícito que
nós, partícula mínima da grande massa trabalhadora do planeta, nos equietemos [sic] na cômoda
posição de espectadores mudos e inconscientes do grande drama que se desenrola aos nossos
olhos.”
105
Diante deste mundo que mudava, da revolução que avançava, as lideranças da
FORGS tentavam se colocar como parte ativa daquele grande acontecimento. Aí está uma
das diferenças marcantes entre a posição destes jornais surgidos em 1919 e as posturas dos
104
JARDIM, Jorge Luís Pastorisa. Comunicação e militância. A imprensa operária no Rio Grande do Sul
(1892-1923). Curso de Pós-Graduação em História da PUCRS: Porto Alegre, 1990. p.168. (dissertação de
mestrado).
105
O Syndicalista. Porto Alegre. p.1, 1º abr, 1919.
75
militantes em 1918, quando era editada A Luta. Não se tratava mais de um grupo de
operários no sul do Brasil que apoiavam e miravam esperançosamente o grande sonho
anarquista que acontecia em um país distante; tratava-se agora de juntar-se à um
movimento que deixava de ser somente russo e tornara-se mundial. Deixava de ser uma
esperança e tornara-se uma necessidade atual, a necessidade de construir uma nova
civilização:
Podemos e queremos prestar o nosso contingente à grande obra de libertação que as classes
trabalhadoras vêm realizando por todos os países, estendendo os braços por cima das fronteiras,
estreitando o mundo num largo abraço de solidariedade, derruindo privilégios para estabelecer
por todos os cantos do globo o domínio pleno, fecundo e exuberante dos sagrados direitos
humanos baseados na liberdade e bem estar de todos.
106
A visão sobre a revolução agora busca mais que somente a Rússia: tenta descobrir
todo um mundo que se modificava.
Este panorama mundial da revolução também é um aspecto muito destacado nos
panfletos da União Maximalista, associação inspirada pela revolução bolchevista que foi
fundada pelo já citado Abílio de Nequete, em novembro de 1918. No manifesto em que
apresenta o programa do maximalismo russo, em janeiro de 1919, esta mundialização das
revoltas é tratada como algo claro e certo:
As últimas notícias que se tem da Alemanha deixavam compreender que o maximalismo está em
vias de completo triunfo. Talvez, que ao circular este nosso boletim, já estará tremulando em toda
a Alemanha a bandeira vermelha. Daí será transportada para a França, a Itália, a Inglaterra, em
suma para o resto do mundo...
107
Quando de um levantamento na Bulgária, um outro boletim lançado pela União
Maximalista afirmava que Esse povo! Acaba de quebrar todos os jugos impostos pela
106
O Syndicalista. Porto Alegre. p. 1. 1º abr, 1919.
107
Ao Povo. O programa maximalista. Porto Alegre, jan. 1919. Processo Crime 1016. Júri-Sumários. Porto
Alegre, 1919.
76
Europa, enfileirando-se ao lado dos camaradas russos, húngaros, bávaros, ucranianos,
tchecoslovacos e afeganistanianos
108
.
Mas não era somente em Porto Alegre que se dava destaque a um cenário mundial de
atuação operária. De forma similar, Zenon de Almeida, sob o pseudônimo de “Spartacus do
Sul”, apresentava a mesma situação de forma bastante dramática n’O Nosso Verbo de Rio
Grande.
Toda a República Argentina e o Rio de Janeiro estão em greve revolucionária.
França, Inglaterra, Itália, Espanha e mais países estão convulsionados pelo incêndio
da revolução.
A humanidade é um turbilhão e o mundo um crepitar de chamas
109
.
Seguindo este espírito, A Dor Humana de Bagé, publicou a 11 de outubro um texto
do jornalista paulista Affonso Frederico Schimidt intitulado: O círculo que se alarga
indefinidamente. Neste artigo a revolução era tratada como um movimento irresistível que
partia de um centro na Rússia e se alargava sobre o mundo todo: “O movimento iniciado na
Rússia vem se alastrando pelo mundo inteiro com uma rapidez de incêndio. A marcha da
idéia se registra em círculos concêntricos que partindo de Moscou se alargam pela
superfície da Terra, atingindo seus mais afastados recantos”
110
. A mesma A Dor Humana
já tinha noticiado, a 4 de outubro, que “A Europa dentro de seis meses estará em mãos dos
socialistas”
111
.
Isto mostra que, no processo de estender os olhos sobre este horizonte de revoltas,
outros movimentos revolucionários são percebidos além da revolução soviética russa. O
levantamento dos soldados búlgaros, que proclamaram uma república relâmpago em seu
país, sendo logo depois derrubada pelas tropas da Entente, foi entusiasticamente saudado
pelo panfleto da União Maximalista que citei logo acima: “Esse povo! que vem mantendo
uma revolução de quatro séculos pela sua emancipação. Esse povo! Do qual disse um
108
Ao Povo sedento de liberdade...Mais um que se emancipa... Porto Alegre, 1919. Processo Crime 1016.
Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
109
O Nosso Verbo. Rio Grande, p 1, 9, mai, 1919.
110
A Dor Humana. Bagé, p. 4, 11, out, 1919.
111
A Dor Humana. Bagé, p. 4, 4, out, 1919.
77
oficial do Império russo no princípio do século passado: “O povo balcânico é perigoso
para os tronos...”. Outra revolução destacada foi a húngara, mas somente depois da queda
de Bela Kuhn
112
. À 3 de setembro, n’O Syndicalista, apareceu uma proclamação ditada
pelo Soviet de Budapeste aos operários do mundo, extraída de uma notícia da agência
Havas, criticando a posição dos países da Entente contra o seu governo. Na mesma página
há um artigo, O Fim do Maximalismo na Hungria, em que se destacava a brutalidade das
tropas romenas que atacaram a Hungria e os massacres promovidos contra os
revolucionários comunistas. Diante de tais fatos o autor do artigo faz uma ressalva “Para
desassossego da burguesia, porém, com a queda de Bela Kuhn não caiu o comunismo e
nem a revolução social deixará de seguir sua evolução”
113
.
Mais destaque que estes levantamentos na Hungria e na Bulgária teve a revolução
alemã, que foi o processo que mais chamou atenção dos militantes gaúchos depois da
revolução russa. Em parte porque era na Alemanha que muitos socialistas punham
esperanças de uma revolução em grande escala que subvertesse a Europa, mas também pela
existência de uma enorme colônia alemã no sul do Brasil e o envolvimento de muitos
militantes desta nacionalidade com o movimento operário. Na edição de 2 de agosto d’O
Syndicalista, por exemplo, a revolução alemã teve grande destaque, publicando-se uma
mensagem do governo russo ao povo alemão e uma biografia de Rosa Luxemburgo e Karl
Liebkniecht, com uma foto de cada um dos revolucionários ilustrando os textos.
De Karl Liebknicht destacava-se sua permanência em uma posição contrária ao Kaiser
Guilherme no começo da guerra, diferente de seus companheiros do Partido Social
Democrata. Elogiava-se o apego aos ideais socialistas e a sua atitude diante da queda da
monarquia, momento em que os socialdemocratas assumiram o poder: “Liebkniecht, ao ver
que com a queda do trono se derrubavam também os ideais operários de emancipação não
exitou e criando o grupo Spartacus, se dispôs a luta pelo bem estar da família operária
com a mesma firmeza e convicção com que enfrentara o Kaiserismo”. Sua morte é
comparada a de Jean Jaurés, líder socialista assassinado antes da Primeira Guerra Mundial.
Mesmo mortosm estes líderes seriam como “pontos luminosos pelos quais se reconhece
112
Bela Khun Foi o principal líder comunista na revolução húngara de 1919.
113
O Syndicalista. Porto Alegre. 3, set, 1919. p.3.
78
ainda que a humanidade tem um ideal de beleza e perfeição cuja afirmação nos dissipa da
tristeza de sermos homens...”
À Rosa Luxemburgo foi dedicada uma biografia maior, na qual se ressalta a oposição
à guerra, que teria lhe valido a prisão, e a diferença em relação aos socialdemocratas que
governavam a Alemanha naquele momento. Durante o conflito, segundo o autor da
pequena biografia, seus ideais teriam evoluído na direção do anarquismo. Quando rebentou
a revolução, ela lutou ao lado dos espartaquistas e “caiu vítima da sanha feroz que se
apossou dos pseudosocialistas que governam a Alemanha, se esforçando para reviver o
militarismo como base de exploração capitalista”. O artigo ressaltava, além de sua
trajetória, a multidão que acompanhou seu funeral e as homenagens do governo húngaro,
russo e de delegações comunistas de diversas partes do mundo, terminando com a
valorização do papel das mulheres que estavam lutando pela revolução: “Rosa
Luxemburgo, Luiza Michel, Maria Speridowa, o talento, a bondade, o heroísmo, a
sinceridade feminina iluminando os caminhos da revolução social jamais serão esquecidas
pelas gerações do porvir que elas sonharam...”
114
.
Na edição de 3 de setembro, outra personalidade alemã é biografada, Emil Eichorn
115
.
Havia sido nomeado chefe de polícia quando rebentou a revolução, mas tornara-se um dos
principais nomes do grupo dirigido por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknicht. Registrava-se,
inclusive, que ele “apareceu na frente dos espartacistas como dirigente principal (general)
do movimento revolucionário contra Scheideman e Ebert.” Após a morte dos líderes, seria
a principal figura dos revolucionários alemães. Sua biografia, entretanto, é diferente da de
Karl Liebknicht e Rosa Luxemburgo, pois se atém apenas ao período revolucionário. No
final do texto o autor escreve que “Enganava-se redondamente outra vez a canalha
burguesa quando mandou fuzilar Liebkniecht e com a morte desse herói iria desaparecer o
comunismo da Alemanha”
116
.
114
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 2, ago, 1919.
115
Emil Eichorn, figura bem menos conhecida que Luxemburgo e Liebknicht, era um membro da Partido
Social Democrata Independente (USPD). Foi designado Chefe de Polícia de Berlim no início da revolução,
sua demissão esteve na raíz do conflito entre espartaquistas e social-democratas em janeiro de 1919. Sobre a
revolução alemã ver: ALMEIDA, Ângela Mendes de. A República de Weimar e a ascensão do fascismo. São
Paulo: Brasiliense, 1999.
116
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 2, ago, 1919.
79
Observando esta última frase, percebe-se que as figuras de Liebkniecht e
Luxemburgo não só eram qualitativamente diferentes de Emil Eichorn, mas eram também
de Lênin e Trotsky, as duas personagens principais do comunismo russo, ou de Bela Khun,
líder da República dos Conselhos da Hungria. Não localizei nenhuma biografia ou
apresentação destas três figuras n'O Syndicalista, talvez por serem já bastante conhecidas
pelos jornais de grande circulação; mas parece haver, além disso, um outro motivo: as duas
biografias, ou melhor, os dois necrológios surgem aqui como a construção da trajetória de
dois heróis da revolução internacional. Desta forma, a revolução alemã produziu duas
figuras, um homem e uma mulher, que foram imediatamente apropriados pelos militantes
mais radicais que editavam O Syndicalista. Sua história de luta e de lealdade às posições
mais revolucionárias entre os socialistas, além do assassinato a mando de socialistas
moderados (socialdemocratas) que se apoiavam em forças da burguesia para formar seu
governo, era um exemplo de coragem que servia ao movimento operário do Rio Grande do
Sul tanto como ao europeu.
A Primeira Grande Guerra havia acabado pouco tempo e a guerra é uma das
ocasiões mais propícias para se criar mitos de heroísmo
117
. À guerra imperialista entre
grandes estados, comandadas por suas respectivas elites, sobreveio o período das
revoluções, em alguns momentos chamada de “guerra social”. Esta guerra de classes
também produziria seus heróis: apesar da perspectiva destes militantes apontar para a
construção do novo mundo, estes personagens mortos, mesmo já pertencendo ao passado,
seriam “pontos luminosos pelos quais se reconhece ainda que a humanidade tem um ideal
de beleza e perfeição cuja afirmação nos dissipa da tristeza de sermos homens” ou seriam
o talento, a bondade, o heroísmo, a sinceridade feminina iluminando os caminhos da
revolução social”
118
. O que significa que eles ajudariam, como exemplos de vida, a
fornecer modelos para a construção do futuro.
Rosa Luxemburgo também apareceu, nesta edição de 2 de agosto d’O Syndicalista,
como personagem principal de uma crônica na seção Folhetim do Syndicalista chamada
Uma cena no céu. Tratava-se do destino que a militante teve depois da morte: ela teria
117
SILVA Jr., Adhemar Lourenço da. O herói no movimento operário. In: FELIX, Loiva Otero e ELMIR,
Cláudio Pereira (Org.). Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: Ed. da Universidade-
UFRGS, 1998.
118
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 2, ago, 1919.
80
chegado ao paraíso passando por um portão guardado por São Pedro, entrando de sopetão
no escritório de Deus, cuspindo no chão e batendo na mesa do Todo-Poderoso para lhe
chamar atenção. Rosa neste conto é uma mulher que ri de um Deus que se esforçava por
manter a pompa. Deus a cita, como juiz de um tribunal, para ser mandada à casa de
correção. Ela debocha e se senta em cima dos autos cantarolando “A Internacional”. No
fim do pequeno conto, Deus ainda ouve do inferno Karl Liebkniecht entoando hinos sobre a
revolução na Alemanha. “Quem canta assim?- pergunta Deus Padre.-É o Liebknecht que
se diverte no inferno.-Que vagabundo! -Exclama Deus Padre e continua a ditar...”
119
As revoluções e as agitações operárias são referências porque oferecem uma reflexão
sobre novos modelos de organização, como o Soviet ou os novos partidos operários, mas
são também eventos importantes para buscar exemplos de abnegação ou heróis inspiradores
como os espartaquistas assassinados pela reação.
Tenho deixado explicito até agora que estas reflexões ligam-se na maior parte das
vezes a objetivos ditados pela luta do momento, pela radicalização dos confrontos com a
classe dominante do Rio Grande do Sul. Mas esta luta não enfeixa o pensamento destes
militantes apenas nos objetivos imediatos, ao contrário: o momento da luta é também o de
reflexão. No caso do folhetim, por exemplo, a inspiração dos acontecimentos
revolucionários na Alemanha foi a pedra de toque para a feitura de um texto muito criativo
e divertido em que o autor, o “Capitão Satanás” (Friedrich Kniestedt), ridiculariza a religião
e o autoritarismo em um momento de subversão da ordem: se a revolução estava
acontecendo em tantas partes da terra, porque não estaria também no céu?
Como mostram as biografias e o pequeno conto, o olhar não estende-se a outros
países, mas para características específicas dos processos revolucionários, como a trajetória
individual dos “heróis” que haviam lutado contra os reacionários. Existe assim uma
ampliação do repertório de temas, indo além dos levantes ou da derrubada de governos,
incentivados pelo modelo russo. Um exemplo desta ampliação se encontra na seção Pelo
Mundo
120
d’O Syndicalista, de 1º de maio de 1919, que apresenta uma série de notas sobre
119
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 2, ago, 1919.
120
A seção “Pelo Mundo” não é uma exclusividade deste período, sendo encontrada em jornais operários de
várias épocas, para informar sobre as notícias do movimento dos trabalhadores organizados fora das fronteiras
do país. A novidade aqui consiste não na existência da seção, mas no temas tratados e no enfoque dado a estes
temas.
81
o movimento operário em diversos países. Destas notas o espaço italiano é um dos mais
interessantes, sendo todo dedicado à reestruturação dos grupos políticos que atuavam no
movimento operário. O tema enfocado era um acordo que seria firmado entre a
Confederazione del Lavoro e a Unione Syndacale, duas federações sindicais, sobre a
possibilidade de aprovar-se um “programa máximo” do Partido Socialista Italiano “o qual
tem como objetivo instituir a república socialista e instaurar a ditadura do
proletariado...”, chegando assim à socialização dos bens de produção e de permuta, à
distribuição destes por intermédio de cooperativas, acabando com a conscrição militar e as
guerras “...como conseqüência da união de todas as repúblicas proletárias internacionais
socialistas”. Também entrava nesta pauta a municipalização das habitações e do serviço
hospitalar, além do fim da burocracia pela gestão direta dos empregados.
Esta última nota mostra que a questão das notícias sobre a revolução russa e sobre as
outras revoluções européias é um tanto mais complexa do que poderia parecer. Além da
multiplicação das revoltas e das manifestações de força operárias, começa a haver uma
preocupação maior com os temas sobre organização. No caso dos socialistas italianos, não
se trata somente de uma expansão do sindicalismo radical ou das conseqüências da
extensão de suas práticas, como a multiplicação de greves, mas de um tipo diferente de
organização partidária que era inspirada pela revolução russa. Não se pode esquecer que
neste momento os sindicalistas brasileiros também tentavam fundar um Partido Comunista,
mas estes partidos novos não eram como os tradicionais, ou como explica a seção de
notícias sobre a Itália: “desnecessário será acrescentar que esse programa nada tem de
comum com nossos inefáveis partidos socialistas”.
A reorganização dos Partidos Socialistas, que poderia ser uma forma de organização
antes repudiada, neste momento era vista com um interesse especial, porque todos estes
fatos amarravam-se neste grande acontecimento que era, para os militantes, a destruição do
sistema capitalista. A análise da situação do movimento operário argentino, junto com as
informações sobre os destinos dos partidos socialistas daquele país, é outro exemplo disso:
Cada vez se acentuam os sintomas de que o operariado argentino vai acompanhando com
muito interesse os acontecimentos mundiais, em que se discutem os interesses que lhe dizem
respeito como parte desse todo universal que proclama seu direito ao progresso e ao bem estar.
Fala-se aqui com insistência que os dois partidos socialistas, o Argentino e o Internacional, que
82
haviam se desligado do Partido Socialista por questões de ordem interna, voltarão a se unificar
no partido de que nasceram, a fim de co-participar das vantagens futuras, decorrentes das
grandes lutas que se prevê próximas entre o proletariado e a burguesia.
121
Estes são alguns exemplos deste processo de tentativa de compreensão do que estava
ocorrendo no resto mundo: derrubada de governos pela ação dos trabalhadores, greves
insurrecionais, reorientação dos partidos socialistas para um caminho cada vez mais radical.
Eram muitos processos que mereciam atenção, muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo
e todos pareciam estar apontando o caminho da revolução. Mesmo assim, a Rússia
continuava ocupando o foco principal das atenções dos operários organizados, tanto por
que lá o governo revolucionário estava mais consolidado, quanto por que as medidas de
mudança social já pareciam dar seus primeiros frutos.
3.2. A Rússia como concretização das esperanças operárias
Uma das principais preocupações dos operários que escreviam nos periódicos
operários era informar corretamente sobre o que ocorria dentro da Rússia, devido às
notícias desencontradas que se tinha do país e a maneira que os “jornais burgueses”
apresentavam o que estava acontecendo no território controlado pelos bolchevistas.
Tratando da intervenção da Entente, na edição de 11 de julho d’O Syndicalista, saiu uma
reportagem muito crítica à invasão das potências estrangeiras intitulada Sobre a
intervenção da Entente. Esta fora copiada da revista Mundo Sulamericano, ao qual os
editores do jornal elogiaram a imparcialidade “que não estamos acostumados a ver”. O que
mais se destaca deste texto é uma carta de um oficial francês, Jacques Sadoul
122
, que por
ocasião do aniversário da queda da Bastilha (14 de julho), repudiava a atitude do exército
francês de ajudar na invasão da Rússia. Este oficial tenta desmentir o que se dizia sobre os
russos, demonstrando admiração pela atuação do exército vermelho. Ele exime os líderes
russos pela culpa da intervenção, pois teriam tentado a cooperação com o ocidente:
121
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 1º de maio, 1919.
122
Jacques Sadoul foi um militar francês que aderiu ao comunismo.
83
Também sei que, depois de Brest, Trotsky e Lenin multiplicaram seus esforços para levar as
potências da entente a uma [ilegível] e leal colaboração, visando a reorganização econômica e
militar da Rússia, sei também que contra estes apelos, desesperados, os aliados contra os seus
mais evidentes interesses opuseram desdenhoso non possumus...
123
Na continuação ele prometia fazer públicas várias notas que tinha enviado a Jean
Longuet, a Albert Thomas e a Ernest Laffont
124
falando sobre a Rússia.
Os militantes que reproduziram esta última notícia não estavam preocupados apenas
em invalidar os ataques à revolução russa, veiculados nos grandes jornais; mas a
reprodução destas informações, por ser o depoimento de um oficial do exército francês, que
escreveu notas em Petrogrado, dava um caráter de prova factual ao que os militantes
afirmavam sobre a revolução.
A guerra que os bolchevistas moviam contra os exércitos brancos também chamava
muita atenção. A invasão dos exércitos da Entente e dos Impérios Centrais ao mesmo
tempo conferia à luta do exército vermelho um significado diferente de uma guerra comum.
Em alguns momentos parecia a luta do mundo capitalista, consubstanciada nas tropas
invasoras, contra o mundo operário, representado pelas tropas soviéticas.
Em Coisas da Rússia dos Soviets, no A Dor Humana de 2 de novembro de 1919,
Manoel Ribeiro explica como funciona o exército vermelho; este era a antítese dos
exércitos “burgueses”:
Na Rússia há disciplina severa, mas consciente e oficial distingui-se apenas de soldado por
exercer missão diferente, um cargo de comando, um cargo de direção. O oficial come e dorme
onde come e dorme o soldado. O oficial não tem galões nem usa dragonas. Numa simples
braçadeira está escrito o nome do posto, sem nenhum outro distintivo. Também o soldado não é
obrigado o cumprimento servil da continência fora do serviço, a não ser que o oficial o
interpele.
125
Conforme este articulista, os soldados bolchevistas “não são bandos indisciplinados,
nem autômatos vivos, mas revolucionários disciplinados com consciência do que fazem”.
123
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 11, jul, 1919.
124
Jean Longuet, Albert Thomas e Ernest Laffont eram líderes socialistas franceses.
125
A Dor Humana. Bagé, p.2, 2, nov. 1919.
84
Estes relatos destacavam mais os aspectos militares, mas não faziam muitas
referências aos aspectos cotidianos ou civis da vida no país. Neste sentido, um outro artigo
chama muito mais atenção: A revolução social na Rússia e a calúnia burguesa
126
,
publicada n’O Syndicalista, em 2 de agosto de 1919. Ele começa com a crítica recorrente
de que a burguesia do mundo inteiro tinha interesse apenas em pintar com cores sombrias o
que ocorria na Rússia: “Compreende-se esse assanhamento dos primitivos burgueses, pois,
um regime que proclama a utilidade de todas as forças válidas da coletividade, não é
possível que se tolere vagabundos vivendo parasitariamente do suor alheio.” Mas estas
“calúnias” podiam agora ser dirimidas, pois começavam a chegar informações da vida na
Rússia, e não somente de revolucionários ou pessoas simpáticas aquela causa, mas de uma
série de “pessoas insuspeitas”, como representantes da cruz vermelha norte americana ou
delegados que para lá foram investigar a situação do país. Tentando se apoiar neste espírito
de imparcialidade, O Syndicalista reproduziu as informações passadas pelo líder do Partido
Socialista Francês, Jean Longuet, recolhidas de “uma distinta personalidade da Entente,
chegada de Petrogrado há poucos dias, de regresso de uma missão oficial que o
encarregara o seu governo.”
A identidade da “distinta personalidade” não foi revelada, mas bem poderia ser o
citado Capitão Jacques Sadoul, que disse se corresponder com Jean Longuet no artigo
reproduzido n’O Syndicalista de 2 de agosto; de qualquer maneira, esta reportagem parece
ter uma ligação com a anterior, pois ela aprofunda a divulgação dos aspectos internos do
país da revolução. O informante inicia o relato com um elogio à capital russa: “Interrogado
a respeito do aspecto da cidade, o personagem declarou ‘Não há na Europa, uma só
capital onde a ordem seja tão perfeita e a segurança tão completa como em Petrogrado’ ”.
Neste depoimento, Petrogrado aparece como uma cidade tranqüila, com os serviços
funcionando muito bem, com vida cultural agitada: “O telefone funciona otimamente bem,
melhor que em Paris; a eletricidade igualmente; as ruas coalhadas de gente, carruagens e
automóveis. Os 14 teatros funcionam todas as noites. Na ópera vi cantar Chaliapin Boris
Godunov e a sala regorgitava de espectadores.” As mercearias haviam sido substituídas
por “armazens dos Soviets”, mas existiam lojas de objetos de artes. Quanto à socialização
das mulheres, o depoente apresentou um quadro contrário... “As prostitutas desapareceram
126
O Syndicalista. Porto Alegre. pp.1-2, 2, ago, 1919.
85
das ruas de Petrogrado, afirmaram-me que essa chaga hedionda do regime capitalista
havia sido quase suprimida.”
Destacam-se nesta reportagem três aspectos da vida soviética: o abastecimento, a
organização escolar e a constituição do exército vermelho. Quanto ao primeiro tópico, o
autor do depoimento reconhece dificuldades, mas diz que o sistema funciona:
O bloqueio dos aliados tem causado certamente cruéis sofrimentos a milhões de inocentes, de
não beligerantes, mas vi que a excelente atuação dos Soviets e das cooperativas já em grande
parte remediou esta penosa situação. No mercado e nos armazéns cooperativos eu e meus
amigos pudemos conseguir alguns gêneros. Nos 40 restaurantes de Soviets come-se por 3 e ½
rublos, (cerca de um franco) uma refeição composta de sopa de couves, um peixe frito, pão
escuro, mas sofrível. No restaurante Constan, outrora freqüentado pela aristocracia, hoje
socializado, serviram-me sobre alvas toalhas alimentos bons. Mediante atestado médico obtém-
se comida melhor e abundante.
127
Outro ponto que é destacado são as escolas:
O que mais me impressionou na obra reorganizadora dos comunistas são os esforços em prol do
ensino infantil, dirigidos por Leutcharski [sic] e que são surpreendentes. Só a seu encargo tem o
Soviet em Petrogrado 60 mil crianças, que foram instaladas nos suntuosos palácios dos
emigrados, grão-duques e outros. È lhes dada uma alimentação o mais substancial possível. [...]
Os pequenos são admitidos nos estabelecimentos de ensino dos Soviets a pedido dos pais e após
inspeção médica. Visitei algumas escolas. Aquelas crianças apresentavam o mais consolador
aspecto de saúde e alegria. [...] A esposa do Sr Zinoviev, Sra. Zinoviev Lenina é quem dirige
este magnífico esforço de educação da infância proletária.
128
Sobre o exército, enfatiza-se que Petrogrado estaria mais protegida que nunca, já que
o exército vermelho contaria com 60 a 80 mil homens, de bom espírito e bem equipados por
armas fabricadas pelo Soviet. No que se refere à sua composição:
Os quadros do exército russo são formados em grande parte de oficiais russos do antigo regime
que ofereceram seus serviços aos Soviets. Como na vossa revolução francesa os chefes são
sempre acompanhados por comissários do povo. Servem também como oficiais militantes
revolucionários de todos os países, franceses, ingleses, alemães, húngaros, e os rapazes que
saem das escolas militares fundadas por Trostky. Só aí em Petrogrado contam com 600 alunos.
Chineses é que não vi nenhum. Conversei com soldados vermelhos, alguns deles não
127
O Syndicalista. Porto Alegre, pp.1-2, 2, ago, 1919.
128
Idem.
86
comunistas. Todos eles diziam que se comia pior do que antes, “mas -acrescentavam eles- agora
somos homens livres.
129
Os três aspectos são muito importantes para a tradição do movimento operário do Rio
Grande do Sul: a questão da subsistência, que devia ter um significado especial para os
militantes naquele momento, devido ao problema da carestia de vida, uma das bandeiras de
protesto desde as greves 1917; a educação, já que havia uma forte tradição ligada ao
fomento do ensino e à fundação de escolas operárias no estado; além disso, a vida militar,
pois se estava a apenas um ano do fim da Primeira Guerra e os militantes operários haviam
sido um dos principais opositores da propaganda militarista no Rio Grande do Sul. Os
aspectos do cotidiano em Petrogrado, de certa maneira, respondiam aos anseios dos
trabalhadores organizados.
Mesmo que a reportagem tenha sido bastante complacente com as dificuldades
enfrentadas pelo governo bolchevista na implantação de um novo modelo de sociedade,
omitindo as dificuldades que a população passava na guerra civil, aquelas informações
devem ter tido um impacto significativo nos militantes e mesmo nos operários não ligados
aos sindicatos que porventura tivessem acesso aquele jornal. Cooperativas e restaurantes
baratos estavam a serviço dos operários, ao invés da falta de alimentos e dos gêneros de
alto preço com que a população se deparava diariamente nos mercados do Rio Grande do
Sul; as escolas abrigavam os filhos dos trabalhadores e davam atenção a estes, ao contrário
da trajetória comum para as crianças pobres no Rio Grande do Sul, de serem remetidas ao
trabalho sem passar pelos bancos escolares; no exército um comissário do povo vigiava um
oficial e um soldado se dizia um homem livre, contrastado com o autoritarismo militar e
policial que aqui sempre se voltavam contra os menos favorecidos. Este quadro remete não
só a um novo tempo projetado em teoria ou imaginado em linhas gerais pelos militantes,
mas a um novo cotidiano que podia ter lugar na realidade, a uma nova vida que existia e
podia ser realizada.
A Rússia revolucionária, a Hungria revolucionária, a Alemanha revolucionária
permitiam mostrar, ou melhor, afrontar os inimigos com a existência de algo que tornava a
retórica militante verossímil. Este tipo de “afronta” foi usada por Zenon de Almeida, n’O
129
O Syndicalista. Porto Alegre, pp.2, 2, ago, 1919.
87
Nosso Verbo, quando respondeu a pergunta O que é o maximalismo?, a “um padre canalha”
que havia escrito em um jornal críticas aos revolucionários russos
130
Replicando as
acusações contra o socialismo com imprecações contra a igreja, o militante concluía que sob
o maximalismo não haveria a miséria e a ignorância que a burguesia e o clero ajudavam a
fomentar: “não se veria mais a miséria espantosa que se vê hoje, não se veriam mais, mães
de peito seco e crianças definhando como flores ao sol; não se veria mais os pequeninos,
andrajosos, a se amontoarem nos portões das fábricas nas frias manhãs de inverno...”
131
Não “não se veria”, como coloca Zenon, não só poderia haver, como a utopia
anarquista tentava afirmar, mas existia algum lugar em que o oficial comia junto ao
soldado, em que a educação podia ser gratuita e despida de canonismo, onde o operário era
quem produzia e governava. Isso é um argumento mais forte e defendê-lo é defender a
própria classe. Mostrar sua existência é atacar a burguesia e todo o aparato de poder que
circula em torno dela, mas é também tentar convencer o operário da possibilidade concreta
de sua emancipação.
Além destes relatos sobre a vida na Rússia, alguns documentos produzidos por
revolucionários russos começaram a ser publicados. O mais significativo destes textos foi a
Mensagem de Máximo Gorky aos trabalhadores do mundo, que apareceu n’O Syndicalista
do 1º de maio. Este texto, longo e emocional, começa com um repúdio ao imperialismo das
potencias do ocidente, inclusive do presidente Wilson dos Estados Unidos, que
proclamavam a autodeterminação dos povos, mas moviam uma guerra contra o governo
soviético. Gorky, mesmo se identificando como um homem que havia sido um duro crítico
do governo dos Soviets, o apoiava pela obra que estava realizando: “afirmo que o seu
complexo é tal e representa uma tal base para a civilização mundial, que quantos aspiram
ao renovamento do mundo devem ajudar o povo soviético na sua reconstrução da vida
civil”
132
.
Máximo Gorky se inspirava na tese marxista do esgotamento do sistema capitalista,
de um modo de produção que não mais representava um impulso de criação para o gênero
humano, mas que se tornara um entrave para o desenvolvimento social: “Está já bem
130
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.2, 1º de out, 1919.
131
Idem.
132
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 1º de maio, 1919.
88
difundida a convicção que o capitalismo deixou de possuir toda a capacidade criadora e
não é outra coisa que um resto do passado, que um obstáculo à civilização e ao
desenvolvimento do mundo.” O único serviço do capitalismo aos trabalhadores seria ter
aberto a possibilidade da revolução: “Um só serviço criou o capitalismo aos trabalhadores
do mundo: nós, que somos um povo sem tradições e por isso mais audaz, mais rebelde e
menos ligado às inspirações do passado, fomos os primeiros a tomar iniciativa e abrir
caminho para a aniquilação das sobreviventes condições do regime capitalista”
133
.
Este é um dos textos que mais traz reflexões relacionadas aos fundamentos sociais do
processo revolucionário, referindo-se à incapacidade do capitalismo de manter-se como
força de desenvolvimento. Todos os textos trazem explícitas as esperanças na revolução
mundial, mas em Gorky se levantava esta particularidade do desenvolvimento russo, de ter
sido palco de uma revolução socialista mesmo com um povo “sem tradições” e “menos
ligado às aspirações do passado” e talvez por isso mesmo “mais audaz, mais rebelde”
para abrir o mesmo caminho aos outros povos.
Obviamente, se está aqui muito distante da teoria do desenvolvimento desigual e
combinado da sociedade ou das polêmicas sobre o caráter da revolução soviética; apenas
ressalto estes trechos para mostrar que as palavras de Gorky captam alguns pontos de
discussões mais profundas que se travavam sobre as características do levantamento russo,
mas que estas formulações não foram para cá trazidas com a mesma profundidade que
tinham na Europa, apenas aparece de forma esporádica.
O que chega através da imprensa operária são as notícias da invasão da Entente, o
desmentido dos horrores que haveria no regime soviético e as mudanças na organização da
vida do povo russo. Nesta reorganização estão aspectos cotidianos, como o abastecimento e
questões de estado, como a universalização da educação ou a tentativa de reprimir os
desmandos no exército. Tomando-se estas notícias e a lógica da sua publicação, percebe-se
que elas têm um significado forte para os operários daqui: não se informa por informar; o
que é noticiado pode ensejar uma reflexão em quem lê. Talvez não fosse interessante
abordar as disputas intelectuais entre várias interpretações do marxismo ou especular sobre
a trajetória intelectual de Lênin. Para me fazer mais claro, estou retornando ao tema da luta
133
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 1º de maio, 1919.
89
que aqueles homens e mulheres realizavam no momento como fio condutor da montagem
do jornal. Se isto não provocou de imediato uma profunda virada teórica nas suas
concepções políticas, ao menos fê-los lutar com as mãos e com os tipos de chumbo por uma
grande utopia.
3.3. A luta contra as interpretações burguesas da revolução russa; O Syndicalista
versus Correio do Povo em Porto Alegre e a polêmica em torno do militarismo no
Rebate de Pelotas
Esta luta através da imprensa implicava enfrentar diretamente os jornais que
difamavam a revolução russa e foi isso que os editores d’O Syndicalista se propuseram em
1919. Não se tratava apenas de lançar um apelo para boicotar determinado jornal (que seria
o Correio do Povo), mas houve a preocupação de enfrentar o jornalismo de grande
circulação lhe respondendo, e, de preferência, mostrando como eram falhas as suas
interpretações.
No primeiro número d’O Syndicalista, de 1º de abril, aparece um pequeno artigo,
Jornalistas de Fancaria
134
, que caracteriza o Correio do Povo como “um jornal incapaz de
dar uma opinião própria sobre qualquer assunto, principalmente sobre a momentosa
questão social. Mas é supinamente conservador e carrança...Uma fortaleza contra todas as
idéias que não estejam nos moldes da Santa Madre Igreja.” Depois o autor do texto
desautorizava o articulista Emílio Kemp, que escrevia no Correio: “Não entendendo nada
do que vai pelo mundo com o nome de maximalismo, bolchevismo, espartacismo, revolução
social, o Kemp apega-se à opinião mais que suspeita do clericalissimo Alfred Capus
135
e
infla de contentamento...pobre criatura...”
136
.
Um fato específico que provocou a ira dos anarquistas de Porto Alegre foi o boato
divulgado pela imprensa da “nacionalização das mulheres”. Os bolchevistas russos haviam
sido acusados de tornarem as mulheres um “bem público”, como a terra, as fábricas e os
134
“Fancaria” é o local onde se comercializam pedaços de panos, fancas. Com o tempo virou sinônimo de
coisa barata, o que os militantes da FORGS acusavam as notícias do Correio do Povo de serem.
135
Alfred Capus foi um jornalista e dramaturgo francês.
136
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 1º de abril, 1919.
90
outros meio de produção. Há uma boa dose de machismo e moralismo nesta interpretação,
principalmente contra as noções de amor livre que alguns socialistas e anarquistas
pregavam. Pelo que se depreende das acusações, o Correio do Povo teria publicado notícias
sobre este fato. O Syndicalista estampou então, em 1º de maio, uma carta que a União
Operária Internacional teria enviado ao Correio do Povo para protestar contra estas
notícias, mas que este jornal teria se negado a publicar.
Depois de iniciar reconhecendo o caráter de órgão das classes conservadoras” do
Correio do Povo e que combateria “quaisquer reformas sociais que afetem a essência
econômica da sociedade atual”, justificando a ausência de espírito crítico pelo “desejo de
conservação das classes abastadas”, a carta apontava que as calúnias divulgadas eram
inaceitáveis, pois mesmo com este “porém” “é simplesmente revoltante ao mais comezinho
espírito de justiça.”
Está neste caso a transcrição feita por esta folha [Correio do Povo] a 11 do corrente, da
descabelada “blague” do decreto da socialização das mulheres, feitas pelos maximalistas
russos.
É evidente que o forjicador daquela blague não teve outro intuito senão zombar da pouca
cultura da maioria do povo e nele incutir, senão a repulsa, ao menos espírito de ridicularia
contra os maximalistas.
137
Em seguida o autor da carta defendia a doutrina do “comunismo anarquista”, que
seria bem conhecida, citando livros de autores libertários, explanando que pensadores como
Tolstoi, Kropotkyn e José Oiticica defendiam a libertação da mulher e sua dignificação.
Este boato da “nacionalização das mulheres” fez com que os editores d'O Syndicalista
publicassem outro artigo, reproduzido da imprensa internacional, que relatava a experiência
de representantes da Conferência de Versalhes na Rússia. Ao perguntarem a Lênin sobre o
assunto, o líder soviético pensou se tratar de uma brincadeira. Os representantes da
Conferência teriam dito inclusive que as condições da Rússia “se aproximavam do
puritanismo na moral e na prática”
138
.
137
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 1º de maio, 1919.
138
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 27 de maio, 1919.
91
Seguindo esta lógica do confronto, O Syndicalista publicou, em 11 de julho, o artigo
Como se escreve a História, seguido de uma notícia sobre os desastres das tropas que
combatiam os bolchevistas russos, apenas para atingir a credibilidade do Correio. A
notícia, retirada de um jornal de São Paulo, tratava das derrotas das forças contra-
revolucionárias, mas o fato que chama atenção não é a nota em si, mas a crítica sobre a
imprensa local que a precede:
Diariamente lemos as notícias que o crivo da imbecilidade jornalística do róseo nos dá e o que
se passa no mundo com respeito ao avanço das idéias maximalistas, comunistas, espartacistas
ou operárias.
Essas notícias pelo que se vê são dosadas pelo critério vesgo da burguesia prestes a dar contas
as forças populares dos seus crimes inomináveis.
No final, depois da nota que descrevera a derrota das tropas brancas, o artigo termina
com uma interessante “conclusão”:
Compare-se este telegrama, que tomamos entre os muitos que aparecem diariamente nos
jornais de Rio e São Paulo, com os comunicados estonianos que o Correio do Povo publica
continuamente, dando vitórias sobre vitórias para os inimigos dos trabalhadores russos e
alardeando derrotas e mais derrotas dos maximalistas que a se tomar a sério estas notícias não
se teria na Rússia mais nenhum.
139
É interessante notar que a principal fonte de polêmica seja o Correio do Povo. Não
existe um antagonismo sistemático contra A Federação ou contra jornais menores de Porto
Alegre como O Independente ou O Inflexível, que tinham certo caráter popular. Talvez
porque ele pretenda ser “o róseo”: um jornal apartidário, acima de federalistas e
republicanos, uma folha de opinião, o que a caracterizaria mais que as outras como
representante da burguesia
140
.
139
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 11, jul, 1919.
140
Sobre o Correio do Povo ver RÜDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da
Universidade/Ufrgs, 1998. O nome róseo, seria dado pela cor das páginas de algumas edições em que o jornal
saiu, embora também poderia vir da fusão das duas cores que supostamente federalistas e republicanos
trariam em seus lenços, respectivamente vermelho e branco. As opiniões do Correio do Povo estariam acima
dos dois partidos, diferindo da tendência geral de uma imprensa partidária quando o jornal surgiu.
92
A revolução russa era o centro da polêmica que os anarquistas tinham com o Correio
do Povo. Mas os militantes que escreviam no órgão de informação da FORGS não se
limitaram a desmentir o Correio, eles tentaram mais: construíram uma série de argumentos
que deslegitimavam a opinião daqueles jornalistas sobre a revolução russa, e não somente
porque eram burgueses, mas porque apoiavam seus julgamentos em preconceitos religiosos,
em boatos infundados ou em fontes duvidosas. Daí o sentido da carta da União
Internacional, que mesmo levando em conta a posição de classe do jornal reputava como
absurda a publicação de mentiras como a da nacionalização das mulheres. Ou quando foi
mostrado que os jornais do Rio e de São Paulo publicavam notas que informavam das
vitórias bolchevistas, ao contrário dos jornalistas do Correio do Povo, cuja tendenciosidade
era tanta que levava a ocultação de informações por demais conhecidas.
Tratava-se de uma luta que contrapunha duas versões diferentes sobre a revolução.
Mas esta não é somente uma luta por duas representações distintas do mundo ou uma
polêmica jornalística sobre a versão verdadeira dos fatos. Se havia uma versão difamatória
sobre a revolução russa que estava sendo difundida pelo jornal de maior tiragem do Rio
Grande do Sul, era necessário respondê-la, porque esta trazia explícita a noção de que a luta
operária e a tomada do poder por esta classe tinham necessariamente um resultado trágico
para a sociedade. O jornal podia defender os interesses das classes dominantes, como os
anarquistas bem diziam, mas isto não o fazia ser lido apenas por esta parcela da população.
A carta da União Internacional mostrava esta preocupação ao dizer que “É evidente que o
forjicador daquela blague não teve outro intuito senão zombar da pouca cultura da
maioria do povo e nele incutir, senão a repulsa, ao menos espírito de ridicularia contra os
maximalistas”
141
.
A revolução russa poderia ser objeto de repulsa dos operários, caso eles lessem as
notícias veiculadas pelos “jornais burgueses”. Por isso era necessário debater, desmontar as
opiniões dos críticos, oferecer um contraponto ao que os trabalhadores poderiam ler. Neste
caso, existe a possibilidade de um confronto de opiniões feito pelos leitores, caso estes
tivessem acesso aos dois meios de comunicação. Fazendo uma comparação com este
141
O Syndicalista, Porto Alegre, p.3, 1º de maio, 1919.
93
confronto proposto pel’O Syndicalista, é interessante observar um outro confronto, mas
desta vez entre leitores, que teve lugar no Rebate de Pelotas.
O Rebate era um jornal popular, dirigido pelo federalista Frediano Trebbi, que abria
espaço para os críticos do Partido Republicano, mas que também franqueava espaços na sua
folha para representantes do movimento operário se expressarem. Havia mesmo em
algumas edições uma Coluna Operária. Pois foi por intermédio desta coluna, no dia 29 de
maio, que Marcos d’Oliveira escreveu o artigo O militarismo é a guerra viva contra a
paz
142
. Nele o autor apelava às mulheres, mães e irmãs, para que não colocassem as
crianças nas escolas tradicionais, pois estas apenas ensinavam a história das batalhas e dos
conflitos, incentivando a violência e uma mentalidade belicista. As mulheres deveriam
enviar seus filhos às escolas modernas, para acabar com o militarismo e outros valores
nocivos. No dia 31 de maio veio a resposta. Um leitor, com pseudônimo de Dreyfuss
Murbe, escreveu na coluna Rebatendo que Marcos d’Oliveira era como um Judas vendendo
a pátria. Além disso, acusava-o de ser maximalista e querer fazer propaganda da sua
doutrina:
Não é para admirar, quando, lendo um jornal em uma coluna um maximalista clamando
para que o povo “levante a sua soberania ultrajada!” O nosso globo hoje está infestado por este
mal que só pode ser subjugado pelas balas, pelas baionetas e pela vontade dos que desejam estar
cercados em seus lares, tendo suas jovens filhas com a honra intacta.
Hoje nos nossos dias quando deparar-se com um artigo, reclamando pelas reivindicações do
povo, pode-se afiançar: ou é maximalista ou é antipatriota.
143
A discussão pelas páginas dos jornais continuou por dias. Além de Dreyfuss, também
criticava o operário um leitor de nome Oliveira Júnior, mais por uma suposta ingenuidade
do pacifismo em relação ao mundo real, do que por uma concepção política particular. O
problema girava em torno da definição de patriotismo, mas Dreyfuss era o debatedor mais
agressivo, enveredando por um extremado “anti-maximalismo”. Assim, quando se discutia
a definição de pátria, este leitor elencou uma série de autores nacionalistas e mandou
142
O Rebate. Pelotas. p.1, 29 de maio, 1919.
143
O Rebate. Pelotas. 31, mai, 1919. p.1.
94
Marcos d’Oliveira “buscar outras definições na Alemanha de Liebknicht e na Rússia de
Lênin”
144
.
Saindo em defesa de Marcos d’Oliveira, outro operário, de pseudônimo Anlusi, na
edição de 7 de junho criticava Dreyfuss por este não conhecer “a doutrina anarquista de
Lenine” e afirmar que tal doutrina só seria feita de terrores. Ela só estaria sendo perseguida
porque havia surgido dentre os operários: “Basta ser uma idéia, uma conquista surgida das
massas trabalhadoras, para logo encontrar, não só balas e baionetas, mas patas de cavalo,
mas o tempo corre e as idéias sucedem-se e nada mais haverá que as detenha”
145
.
Na resposta dada por Dreyfuss, além deste atacar Marcos d’Oliveira, também sobrava
para Anlusi, que é chamado de intruso. No seu artigo, Anlusi havia criticado o termo
“Rússia Vermelha”, mas Dreyfuss, em resposta, justifica seu uso porque:
...lá, segundo os telegramas que nos chegam de diversos países, só existe o direito de morte;
assassinam todo dia milhares de não admiradores da purulenta doutrina; e as virgens são
devoradas e atiradas ao lodaçal da miséria após servirem de pasto às hostes carnívoras de
Lenine
146
.
A discussão acabou por parte de Marcos d’Oliveira quando este anunciou que sua
pátria era a terra e que ela não necessitaria de militarismo nem farda
147
. Anlusi, por sua vez,
escreveu no dia 17 que defenderia o anarquismo, pois foi onde ele havia encontrado
“igualdade, fraternidade e liberdade”
148
. Dreyfuss encerrou o longo debate com uma
resposta a Marcos d’Oliveira, no dia 18, novamente invocando sua suposta filiação aos
ditames da revolução russa para com isso atacar a tese de que a Terra seria sua pátria: “Não
me admirou, porque os anarquistas russos, estes, que andam por toda a parte espalhando
suas idéias torpes e canibalescas dizem a mesma coisa”
149
.
144
O Rebate. Pelotas. 5, jun, 1919. p.1.
145
O Rebate. Pelotas. 7, jun, 1919. p.1.
146
O Rebate. Pelotas, p.1, 9, jun, 1919.
147
O Rebate. Pelotas, p.1, 10, jun, 1919.
148
O Rebate. Pelotas, p.1, 17, jun, 1919.
149
O Rebate. Pelotas, p.1, 18, jun, 1919.
95
3.4. O esforço analítico dos militantes sobre a revolução russa
Além das notícias sobre o que acontecia na Rússia ou nos países revolucionários e dos
espaços dedicados à crítica dos grandes jornais, são importantes fontes sobre o que se
pensava sobre a revolução russa os textos que identifiquei como opiniões das lideranças
operárias. Aquele era um momento em que, para os militantes que pensavam o destino do
movimento operário, os fatos que vinham por telégrafo eram fenômenos novos que
precisavam ser analisados. Soviets, exércitos operários, partidos revolucionários, ditadura
do proletariado; alguns conceitos entravam em contradição com o tradicional pensamento
anarquista ou sindicalista; outras informações, como a tomada do poder pelos operários,
levavam a uma euforia desmedida.
Um exemplo desta necessidade de analisar a nova situação se encontra em um artigo
de J. Benício, publicado tanto no A Dor Humana de 1º de outubro quanto n’O Nosso Verbo
de 11 de outubro, em que transparece claramente a preocupação de entender
acontecimentos que iam contra princípios tradicionais, mas que se justificariam por um fim
maior:
Parecerá absurdo que um libertário que tem por tema a paz e a concórdia exclame: salve a
revolução. Entretanto antes da revolução e sem ela nada poderemos conseguir: Revolução
Social, que fará derruir todos os preconceitos deste século, que como os do século passado
ameaça exterminar-nos pela fome, que nos repudia e de nós zomba.
150
Estes textos “analíticos” normalmente ocupam a primeira página, tendo caráter mais
doutrinário e teórico do que propriamente informativo, mostrando a opinião do jornal. O
periódico operário, como se pôde ver até agora, não é somente um órgão de divulgação e
propaganda, mas é também o local onde os militantes fazem um esforço de compreensão
sobre a realidade. Conforme Jorge Jardim Pastorisa: “A informação no jornal operário não
tem o sentido apenas de divulgação de fatos e acontecimentos, mas antes de tudo de
interpretar estes fatos à luz da teoria à qual a publicação está filiada [...] Não seria
exagero afirmar que o jornal procura (ou as lideranças operárias através deste veículo)
150
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.1, 1° de out, 1919; A Dor Humana. Bagé, p.2, 11, out, 1919.
96
“pensar pelo leitor” ao transmitir-lhe a informação”
151
. A importância destes textos reside
neste caráter mesmo de reflexão e análise sobre os processos, em vez de defendê-los ou
usá-los como mote para criticar a burguesia local. Não que falte estas características à
outros textos, mas elas parecem estar mais presentes nestes “editoriais”.
Para estudar estas opiniões escolhi cinco textos publicados n’O Syndicalista: Luta de
classes, O caminho para a libertação do proletariado, O que nós comunistas queremos, A
revolução operária e Quem ri por ultimo.
Luta de Classes foi publicada na edição de 17 de junho d’O Syndicalista e tinha como
preocupação central explicar o sentido do sindicalismo. Neste texto, mesmo considerando
que alguns sindicatos só se preocupassem com a melhoria de aspectos parciais da vida do
trabalhador, o autor ponderava que o papel do sindicato não deveria ser apenas a luta
econômica imediata, mas sim fazer uma arregimentação revolucionária na classe
trabalhadora para destruir o capitalismo que a oprimia. Desta forma, seria o sindicato o
germe da sociedade futura, seria seu núcleo organizativo quando ruísse as bases da
sociedade capitalista, pois “Quando se tratar, após a derrubada de reerguer em novas
bases a sociedade, serão as organizações operárias que deverão dirigir a organização
necessária da produção e do consumo”
152
.
O tema é retomado em O Caminho para a libertação do proletariado: o trabalhador
explorado e que sofre era educado pelos princípios burgueses para manter o individualismo
egoísta. Um dia, premido pela necessidade, ele acordaria e colocaria em cheque a sociedade
capitalista. Quando isto acontecesse, ele iria procurar os seus companheiros para se
associarem a ele e o lugar propício para isto seria o sindicato. Por este motivo o sindicato
pode ser considerado a mais importante das associações operárias, pois só ele traça uma
linha divisória entre operários e patrões. Esta organização tem primazia sobre todas as
outras formas de associação na construção da nova sociedade: “O sindicato se propõe
preparar uma solidariedade crescente entre os operários, a fim de preparar a
expropriação dos capitalistas e da reivindicação da sua fortuna particular, medida essa
indispensável, como sendo o único ponto de partida para a reforma completa da
151
JARDIM, Jorge Luís Pastorisa. Op. Cit. pp. 244-245.
152
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 17, jun, 1919.
97
sociedade”
153
. Ou seja, repisa-se a função do sindicato como germe da sociedade futura, o
que já estava colocado no texto anterior.
Destaco estes dois textos pela relação que eles tem com um terceiro: O que nós
comunistas queremos. Esse texto não apareceu na primeira página, mas ocupou toda a
segunda página do sétimo número d'O Syndicalista. No início deste escrito se declara
explicitamente que a sociedade pela qual os militantes operários estavam lutando era a
“comunista anarquista”: “Lutamos por uma sociedade comunista anarquista, isto é, um
estado social que faculte o desenvolvimento social de cada homem”.
O meio para chegar aos fins almejados se nos depara na greve geral social, e que vem a ser a
recusa do proletariado de continuar a colaborar pela manutenção da sociedade atual. Esta recusa
geral do trabalho acharão os seus termos na transmissão dos meios de produção ao povo que
trabalha, o qual continuará a produzir em proveito de todos, segundo os princípios do
socialismo [...] No que diz respeito à organização, recomendamos a formação de grupos livres,
não limitados por qualquer espécie de centralização, autonomos em todos os sentidos, federados
conforme livre arbítrio e de conformidade com os fins especiais de propaganda que se têm em
vista.
154
Após esta primeira exposição de princípios, passa-se à caracterização da sociedade de
classes que, com sua divisão de riquezas e privilégios, havia chegado a um ponto
insuportável com o favorecimento da burguesia às expensas do proletariado. Depois de um
duro ataque ao Estado e a Igreja, o autor se dedicava a uma crítica que chama atenção por
não ser muito clara, atacando as “aspirações comunistas de outrora” e um “complicado
estado econômico” que não deveria vingar. Também há uma condenação aos partidos
operários burocratizados, pois as organizações que deveriam dar origem à nova sociedade
não poderiam ter estruturas “eclesiásticas”, com lideranças constituídas, o que explicaria a
denominação “comunismo-anarquista”:
O comunismo que constitui o nosso ideal é, portanto, um estado completamente livre, que não
conhece nem sobreposição, nem subordinação, não usa padrões fixos, é identificado com o
estado em que não existe nem amo nem servo, com a anarquia.
153
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 11, jul, 1919.
154
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 3, set, 1919.
98
Pretendendo pois todas as aspirações comunistas de outrora , a constituição de um complicado
estado econômico, é preciso, até na denominação que adotamos, constatar nossa opinião
divergente e por isso nos denominar comunistas-anarquistas.
155
Por fim, anunciava-se que a hora da revolução havia chegado, com um chamado ao
operário para formar sob o pavilhão rubro da anarquia e da revolução. “Vosso ponto de
reunião é debaixo de nossa bandeira, debaixo do emblema do comunismo e da anarquia,
debaixo do emblema da revolução social. Sob estes símbolos reuni-vos afim de combinar o
plano da campanha, para derrubar o existente, que sois chamados a substitir por uma
sociedade de homens livres e iguais”.
Estes três “editoriais” são de Friedrich Kniedestdt e marcavam as diretrizes básicas
do sindicalismo anarquista. Mesmo de forma não totalmente explicita, eles parecem
dialogar com a repercussão da revolução russa no Rio Grande do Sul. Se isto não é muito
claro nos dois primeiros textos, no terceiro o próprio título, O Que Nós Comunistas
Queremos, pressupõe uma reflexão sobre o bolchevismo na concepção do artigo. Mas o
corpo do mesmo, diferente do que possa sugerir o título, não fala da Rússia e sim ressalta a
importância de um comunismo sem fórmulas rígidas, o comunismo anarquista. Em nenhum
momento há uma crítica ao que acontecia no “país dos Soviets”, mas também não há
referências à Soviets ou ao bolchevismo, o que era muito comum em outros textos. Isto
porque a presença da revolução de outubro poderia estar implícita neste escrito, como um
interlocutor que devia ser interpelado por alguém como Kniestedt, que viera da Alemanha e
que, por sua vivência no movimento operário daquele país, conhecia os princípios do
marxismo e os métodos dos bolchevistas.
Era necessário defender a revolução baseada no comunismo libertário,
principalmente quando idéias que não eram anarquistas pareciam estar ganhando adeptos
rapidamente, idéias estas propagadas pela revolução russa.
Mas se Kniestedt parecia preocupar-se com a manutenção das idéias anarquistas,
outros líderes agiam de forma diferente, como se pode ver em outro texto “editorial”
importante, Quem ri por ultimo, escrito por Zenon de Almeida, este texto foi publicado no
mesmo número do O que nós comunistas queremos. Zenon faz um histórico do problema
155
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 3, set, 1919.
99
operário no Rio Grande do Sul, ironizando a tentativa de “incorporar o proletariado” feita
por Borges de Medeiros na greve de 1917. Compara este intento com sua atitude em 1918,
quando acossou os grevistas com a polícia e foi elogiado pela burguesia. O termo desta
acumulação de experiências e exercício de consciência histórica seria o ano de 1919, em
que o Rio Grande do Sul registrava o maior número de greves no país, apavorando a classe
dominante. O autor assinala o paradoxo de que, enquanto em outras partes do mundo (o que
certamente incluía a Rússia, a Alemanha e a Hungria no raciocínio) exigia-se e fazia-se
bem mais, no Rio Grande do Sul os operários pediam bem menos e em nada eram
atendidos. Zenon de Almeida resolve então o dilema do operariado apresentando o que
poderia ser o fim da seqüência histórica por ele esboçada: a revolução social. Diferente de
Kniestedt, nesta solução não há uma definição doutrinária, podendo ser o comunismo, o
Soviet, a anarquia. Não importava o nome que se desse, mas sim o bem estar do operário e
sua possibilidade de viver feliz.
A Revolução Social.
Único meio de acabar com as greves e a carestia de vida. A expropriação geral, o Soviet, o
comunismo enfim são o termo fatal e necessário desta evolução composta de greves gerais
incessantes, obstinadas e contínuas, em que o povo não consegue melhorar a situação em que
vive, não achando lenitivo para os males que o afligem, não conseguindo melhorar a situação
aflitiva em que vive, a não ser momentaneamente. [...]
É anarquismo, é maximalismo, é bolchevismo que se infiltrou entre o operariado? O que é não
importa como se chama.
É a sede de viver melhor, a ancia [sic] de viver melhor, de descansar mais os músculos
exaustos, é o anceio [sic] de ver realizado seu ideal de bem estar que a burguesia lhe usurpa, é o
que impelo o povo para frente, fazendo erguer bem alto o pendão rubro das suas reivindicações.
Viva a greve revolucionária.
156
O quinto texto analisado é A Revolução Operária, de Polidoro Santos, um dos mais
importantes militantes anarquistas do estado. O escrito apareceu na primeira página do d’O
Syndicalista de 1º de maio, propondo-se a explicar a origem das revoluções que estavam
ocorrendo na Europa. O capitalismo em seu desenvolvimento não foi capaz de resolver os
problemas sociais e os operários foram reduzidos à fome pela “lei de bronze da
156
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 3, set, 1919.
100
miséria”
157
. A guerra enriqueceu mais os burgueses e sacrificou os operários, o que não
ocorreria só na Europa, pois no Rio Grande do Sul muitos também haviam ganhado com os
negócios da guerra. Na verdade não era necessário ir a Europa para ver a asfixia operária,
pois no estado a exploração do trigo, da carne, do leite e das outras indústrias já
enriqueciam a burguesia, deixando o operário na miséria. Mas aí aparecia o exemplo
positivo do operariado da Inglaterra, que mesmo com leis de proteção social, tinham
escolhido o caminho da revolução (o que justificava o título do artigo). Estes convocaram
uma conferência para unificar suas agremiações e associarem-se a III Internacional, o que
Polidoro saúda como um grande exemplo:
“Os operários ingleses apesar do seu governo ter estabelecido uma série de reformas que
escandalizariam os nossos burgueses, compreenderam que isto não basta e francamente
arvoraram a bandeira da revolução na sua conferência anual, iniciada a 20 do corrente, e no qual
se fundiram todos os partidos e organizações operárias. Nesse importante congresso foram
aprovadas noções preconizando o regime dos Soviets para a Grã-Bretanha e a filiação dos
trabalhadores à Terceira Internacional estabelecida em Moscou.
Isto demonstra a disposição em que se encontram os trabalhadores em não aceitarem reformas
transitórias que deixam as coisas de pé para voltar tudo na mesma.
É a revolução operária que se assenta e em breve proclamará a paz e a liberdade entre os povos
da terra.
158
Comparando-se os textos de Friedrich Kniestedt, de Zenon de Almeida e de Polidoro
Santos pela ótica das diversas formas de interpretar a revolução, percebem-se algumas
diferenças muito importantes entre elas. Kniestedt mantém-se mais apegado a uma
interpretação sindicalista e anarquista da revolução operária, ressaltando que o sindicato
seria a “célula mater” da nova sociedade, porque a partir dele se faria a necessária para o
triunfo da revolução. Zenon de Almeida traça a história do movimento operário no estado
desde 1917, comparando a situação do operário europeu com o do Rio Grande do Sul. A
solução dos paradoxos sociais neste artigo é bem mais pragmática e menos teorizada que
em Kniestdt: é o Soviet, o comunismo, a anarquia, não importava qual nome se desse,
desde que trouxesse ao operário sua liberdade e lhe permitisse a fruição da vida. Polidoro
157
A expressão Lei de Bronze é de Ferdinand Lassale, pai da social democracia alemã, o que demonstra a
variedade das fontes teóricas nas quais os militantes bebiam. Originalmente se refere à “Lei de Bronze dos
Salários”.
158
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 1º de maio, 1919.
101
Santos, como os dois outros autores, também faz um pequeno histórico da exploração
operária e dos ganhos burgueses com a guerra, mas sua solução de radicalização contra este
estado de coisas tinha um exemplo concreto nos operários ingleses, que resolveram unificar
suas sociedades e aderir à Terceira Internacional, ou seja, mesmo com as leis de proteção
social, haviam escolhido o caminho da revolução.
Os três autores eram importantes anarquistas, militantes com experiência na luta
sindical e figuras das mais destacadas no pensamento libertário do Rio Grande do Sul. O
que significavam então estas diferenças? Seria Friedrich um anarquista “puro” arraigado a
concepções tradicionais, Zenon um “pragmático” aberto a quaisquer tendências que se
mostrassem funcionais e Polidoro um “convertido” pelas novas atitudes do operariado
internacional? Ou simplesmente as posturas distintas refletiriam distintas preocupações no
momento em que os textos foram escritos? Como este tipo de inferência só teria validade
com um cruzamento das palavras com as ações destes militantes naquele momento,
manterei por enquanto o juízo em suspenso, pois pretendo discutir isto nos próximos
capítulos; o que acho importante frisar, depois da análise destas interpretações, é que o
processo revolucionário desencadeado pelos russos se tornou algo sobre o que era premente
raciocinar à luz das teorias dos próprios militantes. Friedrich Kniestedt, por exemplo, deve
ter sentido a necessidade de pensar um novo tipo de revolução operária sob a sua visão
teórica particular, por isso ele também se chamou comunista, mas resguardando os
princípios do anarquismo.
Apesar desta tentativa de interpretação mais acurada feita pelos articulistas do
Syndicalista ao tentar entender os acontecimentos da Rússia, seria um erro dizer que uma
visão mais “idealista” não estivesse presente nos órgãos de comunicação do movimento
operário. No mesmo O Syndicalista, em seu primeiro número, um pequeno artigo intitulado
A Luz Redentora
159
, apresenta uma visão sobre a revolução bastante parecida com aqueles
textos que A Luta publicara em 1918. O título se relaciona com a idéia de que o movimento
revolucionário era como uma luz que iria redimir as misérias do mundo, e, além de
apresentar o maximalismo como luz redentora, o autor se refere a uma série de sábios que
teriam no passado previsto estes processos, estudiosos dos fenômenos sociais que teriam
159
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 1º, abril, 1919.
102
informado sobre aquilo que estava acontecendo. Naquele momento se viam confirmadas as
palavras daqueles que haviam falado sobre “a liberdade futura”, por isso era necessário
que os trabalhadores seguissem o que havia sido escrito por estes pensadores. O texto, que
está sob o pseudônimo de Zacharias, é muito diferente dos escritos pelos três líderes
anarquistas: Kniestedt, Zenon e Polidoro; mesmo assim convive lado a lado nas páginas do
mesmo jornal.
Isto mostra que concepções diferentes sobre a revolução podiam ser encontradas no
mesmo jornal, partindo de operários diferentes. Entretanto, o maximalismo não era
necessariamente admirado apenas pelos anarquistas, nem precisava ser lido apenas sobre a
ótica de um ideal político-social. Um bom exemplo são os artigos escritos por J. Max, no
Rebate, pois este ligava a onda revolucionária à instauração de uma nova ordem espiritual.
Este tema é desenvolvido em dois textos: A Idéia Moderna e a Libertação do Escravo.
No primeiro destes escritos, de 9 de maio, J. Max escreve sobre o socialismo, o
conflito mundial e as revoluções que eram deflagradas em diversas partes do mundo: “essa
guerra, onde rojaram cetros, onde os czares foram julgados como simples plebeus,
amparou os bons e criminou os culpados, também há de vir esse dia, que a justiça divina
impere, quando a humanidade reconheça e siga as sentenças de Jesus”. Além disso, as
revoluções eram algo que não só os cientistas sociais e os sábios haviam previsto, como
colocara Zacarias n’O Syndicalista, mas que os profetas também haviam antecipado: “O
que a humanidade contempla hoje já foi prognosticado desde o Apóstolo Paulo, até os
pequenos profetas dos nossos dias. O grande Tolstoi, o apóstolo da liberdade e da
igualdade, predisse o que vimos e vemos”
160
.
O tema da redenção dos oprimidos e da queda dos opressores foi retomado no artigo
A Libertação do Escravo, escrito em 14 de maio, dia posterior ao aniversário da abolição da
escravatura. O operário, que seria o escravo moderno, teria alcançado a liberdade por meio
da revolução maximalista: “O poder absoluto do Czar, enegrecido seu reinado pela
realeza russa, desapareceu no vórtice da revolução maximalista! Ah o escravo viu raiar o
arrebol da liberdade, rubro do sangue da vingança do oprimido contra o opressor”. Como
em seu outro artigo, esta vitória se completaria também com uma reforma na religião, que
160
O Rebate. Pelotas, p,1, 9, jun, 1919.
103
só aconteceria quando esta acompanhasse os verdadeiros ensinamentos de Cristo: “Só porá
termo a religião divina de Jesus quando ela [a religião] seguir o que ele pregou. A
redenção ensaia-se, e a igualdade virá dos povos, das raças, das religiões etc. O escravo -
proletário- espera sua redenção de liberdade e justiça”
161
.
J. Max possivelmente é um pseudônimo. Não consegui descobrir nada sobre este
articulista, apenas pode-se depreender que ele é um religioso e defende a causa operária.
Não é possível saber se ele era um militante socialista ou anarquista, sequer se é um
trabalhador. Acredito, no entanto, que estes textos mostram uma coisa importante: a
variedade de impressões existentes no período das grandes agitações operárias da
República Velha, embora se possa afirmar que as impressões que predominaram foram as
que ligaram a revolução às lutas políticas e econômicas dos trabalhadores organizados.
Destas interpretações apaixonadas surgem nomes e pseudônimos de vários militantes,
suas declarações podem ser lidas, algumas de suas concepções podem ser depreendidas de
suas palavras, mas pouco se pode saber sobre o processo de aproximação destes militantes
das idéias da revolução russa. O que fez com que determinados trabalhadores
identificassem seus próprios destinos com os da revolução e outros não? E de que forma o
fizeram?
A hipótese de que os anarquistas haviam apoiado a revolução porque acreditavam
que os revolucionários russos eram anarquistas, se mostrou bem pobre quando analisadas as
interpretações dos militantes sobre aquele acontecimento. Talvez este processo de
identificação tenha sido bem mais complexo do que parece a primeira vista e é sobre isto
que vou tratar em meu próximo capítulo.
161
O Rebate. Pelotas, p.1, 14, jun, 1919.
104
4. “PARECERÁ ABSURDO QUE UM LIBERTÁRIO QUE TEM POR TEMA A PAZ E
A CONCORDIA EXCLAME: SALVE A REVOLUÇÃO!
162
A identificação dos
militantes com a revolução e as aproximações contraditórias com o sonho
revolucionário
Em 1917 e 1918 a maior parte dos pronunciamentos feitos pelos operários quanto à
importância da revolução russa, como foi aqui mostrado, ou vinha de militantes
anarquistas, ou era referenciado pelo ideário anarquista. Estes anarquistas, antes da
revolução, já tinham uma série de expectativas sobre a possibilidade de uma grande
mudança social. Mas de repente, em meio às notas sobre os massacres da Grande Guerra,
surgem novidades sobre um movimento que derruba o odiado absolutismo czarista e mais,
tem como um dos seus principais atores a classe operária. Os operários russos estavam se
rebelando, enfrentando a burguesia e o Estado, tentando construir um novo tipo de
sociedade. A identificação entre os seguidores do anarquismo e a revolução russa foi quase
imediata, além do que a movimentação vitoriosa na Europa poderia inspirar uma vitória
operária aqui no Rio Grande do Sul, pois também se vivia aqui um clima de agitação.
Tudo isso já foi dito neste trabalho e mostrado através das declarações dadas pelo A
Luta. Este processo de identificação dos operários com a revolução, entretanto, pode ter
sido mais complexo do que parece. As notícias que vinham do “gigante do norte” podem
ter significado coisas diversas para militantes de diferentes orientações políticas ou
vivências pessoais. Mesmo entre os anarquistas, a revolução pode não ter sido
necessariamente um referencial para as mesmas aspirações. Este quadro torna-se mais
matizado ainda com o passar do tempo, quando se introduzem novas informações dos
acontecimentos europeus e as interpretações vão ficando mais ricas. Tentei mostrar no
capítulo anterior como permanências e quebras se verificaram em relação às primeiras
interpretações sobre a revolução russa, alguns identificando o maximalismo com o
“comunismo anárquico” e outros já revelando uma inclinação a considerar as idéias
revolucionárias russas como novas teorias sociais. Para tanto tive de analisar uma série de
textos publicados em panfletos e jornais operários do Rio Grande do Sul, mas não posso me
162
Trecho do artigo Salve a revolução, publicado por J. Benício no O Nosso Verbo, de 1º de outubro de 1919.
105
resignar a analisar somente isso, pois como expliquei na Introdução, as apropriações e
representações não são fenômenos mecânicos, mas mediados por tradições e experiências.
4.1. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: algumas formas possíveis de
identificação com os ideais da revolução
Quando escrevi que a revolução russa havia despertado interesse dos anarquistas do
Rio Grande do Sul, usei o termo de forma muito pouco rigorosa. Basicamente me remeti ao
que havia identificado no primeiro capítulo como grupo anarquista, em contraposição ao
grupo socialista, ou social-democrata, que se agregava principalmente em torno da figura
de Francisco Xavier da Costa. Mas no período que estou estudando, os socialistas haviam
perdido muito de sua força e alguns destes militantes talvez nem mais pudessem ser
chamados de socialistas. E quanto aos anarquistas? Estes estavam no auge de sua força e
neste momento suas palavras serviam de caixa de ressonância para a revolução soviética.
Mesmo estando correta esta afirmação, não é fácil apontar quem são estes libertários,
o que eles pensam e o que os motiva. Seus nomes estão nas listas de membros das
associações, em moções de protestos ou até como autores de textos em jornais; se dizem
anarquistas, socialistas ou maximalistas; querem derrubar com todas as forças o maldito
“edifício social”. Entretanto, sabe-se pouco às vezes para responder a uma pergunta que a
primeira vista parece simples: o que faz com que este militante tenha se identificado com a
revolução russa? Para se identificar com a revolução russa bastaria ao sujeito ser um
militante anarquista? Todos estes teriam se identificado da mesma forma, através de um
mesmo tipo de anarquismo?
Uma das coisas que permitiu uma identificação imediata de alguns anarquistas com a
revolução russa foi o termo “comunismo”. Muitos militantes que escrevem sobre a
revolução, como pode ser constatado pela carta da União Operária Internacional ao Correio
do Povo
163
; identificam as idéias dos comunistas russos com o anarco-comunismo, que
tinha entre seus principais elaboradores o russo Piotr Kropotkin e o italiano Errico
Malatesta, que defendiam o comunismo no campo econômico. Na verdade Kropotkin via a
anarquia como um estágio do progresso social. A sociedade futura seria alcançada primeiro
163
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 1º de maio, 1919.
106
com a derrubada do estado, formando-se comunas livres de produtores e federações
comunais, sendo esta uma fase coletivista. Depois se entraria no verdadeiro comunismo,
quando desapareceria definitivamente a propriedade privada. Mas a derrubada do estado
deveria ser fruto de um grande levantamento popular, fruto de um longo trabalho de
educação e conscientização:
“Para os anarcocomunistas a revolução anárquica corresponde à difusão das idéias libertárias
entre as camadas oprimidas feita através da propaganda e educação, pelos indivíduos mais
conscientes e aderentes ao anarquismo. A educação é suficiente para que a classe trabalhadora
chegue à insurreição popular espontaneamente, sem intermediações, pois basta firmeza e
vontade de todos os cidadãos para a revolução social.”
164
Para algum militante que conhecesse o comunismo anarquista, pareceria bem plausível
acreditar que os grandes levantamentos populares que derrubaram o Czar Nicolau e o
Ditador Kerensky fossem a confirmação destas idéias. Além do mais, Kropotkin era russo e
havia voltado ao seu país na época da revolução, o que reforçaria a idéias da influência do
seu pensamento neste processo. Mas se é verdade que algumas características poderiam ser
assimiladas como kropotkinianas, outras, como a manutenção do estado, não poderiam ser.
De qualquer forma, não acredito que seria muito útil considerar as idéias dos militantes
anarquistas do sul do Brasil como um corpo teórico monolítico. Os diversos editoriais d’O
Syndicalista mostram como, mesmo entre os anarquistas que trabalhavam em um mesmo
jornal, as opiniões sobre um mesmo acontecimento podiam ser muito diferentes. Desta
forma, não é uma tarefa tão simples estabelecer qual tipo de anarquismo os militantes
tinham em mente, nem estabelecer qual tipo de sindicalismo era a referência para eles.
Evangelia Aravanis, que estudou as idéias do grupo que editava o primeiro jornal A
Luta, em 1906, remete esta dificuldade à própria fluidez da doutrina anarquista:
“O anarquismo, desde seu surgimento, tem sido uma doutrina fluída, tem variado no tempo e no
espaço. Todos os anarquistas têm se julgado no direito de representar este ideário sem,
necessariamente, ter que se embasar nas reflexões de seus antecessores ou confirma-las, pois,
segundo eles, o anarquismo comporta dentro de si este componente de repensar.”
165
164
SFERRA, Giuseppina. Anarquismo e anarcossindicalismo. São Paulo: Ática. 1987. p.30.
165
ARAVANIS, Evangelia. Uma utopia anarquista: o projeto social dos anarquistas do periódico "A Luta" e
o seu desejo de mudar o rumo da história de Porto Alegre (1907-1907). Porto Alegre: PPG em História da
UFRGS, 1997. (dissertação de mestrado).
107
Levando isto em conta, Aravanis observou algumas características do discurso deste
grupo e baseando-se nas definições de Maitron, fez relações com algumas diretrizes básicas
do anarquismo, que seriam a crítica à autoridade existente na sociedade, a busca da
liberdade e a procura de métodos de luta para alcançar esta liberdade, ou seja, a anarquia. A
autora identificou no jornal a recorrência de um discurso que corresponderia a estas
características: a crítica à autoridade política e econômica, representada pelo estado, os
partidos e a burguesia, além da crítica aos valores que perpetuariam esta autoridade; a
busca da liberdade política e econômica, assim como o fomento a valores libertários; e a
defesa de métodos de ação que procurassem realizar estes objetivos, como a propagação
das suas idéias com a criação de escolas modernas, a difusão do antipatriotismo e do
antimilitarismo e a defesa do sindicalismo como modelo mais fecundo de organização de
classes. Apesar da pesquisa de Evangelia Aravanis recuar dez anos na história em relação
ao período aqui estudado, acredito ser importante marcar estas características, pois muitas
delas continuavam presentes na segunda fase d’A Luta, e mesmo em outros jornais como O
Syndicalista, A Dor Humana ou O Nosso Verbo, servindo de base para uma identificação
muito forte com o fenômeno revolucionário russo.
Assim, para quem exercia a crítica ao poder político e econômico tradicional, a queda
da aristocracia e da burguesia russa eram feitos admiráveis, tanto mais que na Rússia vivia-
se sob uma férrea tirania; a busca da liberdade política e econômica podia ser vista sob uma
forma totalmente nova, pela formação do Soviet, que permitia ao trabalhador intervir
diretamente na condução dos negócios públicos, permitindo também o controle da
produção pelo camponês e pelo operário; os defensores do antimilitarismo e do
antipatriotismo devem ter se impressionado com os clamores russos por uma paz sem
anexações nem concessões e com um exército onde os soldados lutavam pela própria
liberdade. Além do mais, para os defensores do sindicalismo, que viam na luta de classe o
antagonismo social básico, isto tudo isto deveria parecer, de fato, exultante.
Mas, se não se pode usar a palavra “anarquismo” de forma ingênua, também não se
pode falar em sindicalismo gratuitamente, como se fosse apenas uma extensão desta teoria.
Edilene Toledo, no seu livro Travessias revolucionárias, defendeu a existência de uma
corrente organizativa independente dentro do movimento operário brasileiro, chamada
sindicalismo revolucionário, que estaria fora do anarquismo. Historiando a origem desta
108
corrente no Partido Socialista Italiano e no sindicalismo francês, ela mostra como houve
desencontros entre os sindicalistas revolucionários e os anarquistas desde suas origens.
Desta forma, Errico Malatesta, por exemplo, um dos principais nomes do anarco-
comunismo, se colocou contra Pierre Monate, militante sindicalista, que defendia a idéia de
transformar o sindicato na principal base para a luta revolucionária dos trabalhadores.
Malatesta discordava porque, para ele, o sindicato poderia ser um ótimo meio de
divulgação para as idéias libertárias, para reunião da classe e exercício de solidariedade,
mas não poderia ser base da sociedade futura como queriam muitos sindicalistas, pois
tenderia a crescer e se institucionalizar, tornando-se conservador.
Toledo mostra que a relação entre sindicalismo e anarquismo não foi sempre
pacífica, havendo lugares, como São Paulo, onde o sindicalismo revolucionário chegou a se
conformar como corrente dominante durante a República Velha. No caso do Rio Grande do
Sul, Evangelia Aravanis não vê conflitos entre o sindicalismo e o anarquismo na concepção
dos militantes, mesmo porque no momento estudado por ela o sindicalismo revolucionário
estava recém se formando. No caso da documentação que trabalho, posterior em dez anos,
também não vi muitos conflitos entre estas tendências
166
. Interessante neste sentido é
observar a afirmação de Venâncio Pastorino Sobrinho, um dos líderes da União Geral dos
Trabalhadores de Bagé, sobre a difusão das idéias revolucionárias como “a nova doutrina
sindicalista”:
Aproxima-se o dia em que os privilégios se derruíram e as riquezas apodreceram por inúteis.
Como prova mais frisante acaba de rebentar em todos os pontos da terra revoluções contra essa
torpe opressão exercida contra uma classe pobre e sem meio de defesa iguais aos burguesas.
Uma prova disso oferece-nos o fato da rápida difusão da nova doutrina sindicalista entre as
classes trabalhadoras, sendo aceitas com alegria e cordialidade.
Esta doutrina apresenta um novo plano, colimando as dificuldades capitalistas tendo por lema-
do canhão ao arado, do arado à produção.
O socialismo pede que sejam propriedade pública todos os meios de produção e distribuição, ao
passo que o sindicalismo e mesmo o comunismo, mandam que os mesmos trabalhadores sejam
os donos e diretores em absoluto do sistema de produção industrial, dos transportes, das oficinas,
das fábricas, enfim de tudo.
166
Adhemar Lourenço, por exemplo, também não observa uma diferenciação entre anarquistas e sindicalistas
para este momento. Entretanto, faz uma outra divisão para diferenciar atitudes dos próprios anarquistas em
relação aos seus objetivos no movimento operário, como o associativismo pedagógico, com atitudes voltadas
à valores e um associativismo político, com atitudes voltadas a fins. SILVA JR, Adhemar Lourenco. "Povo!
Trabalhadores!": tumultos e movimento operário (estudo centrado em Porto Alegre 1917). Porto Alegre:
PPG em História da UFRGS, 1994. pp. 15-20. (dissertação de mestrado)
109
Os campeões deste sistema Emile Zola, V. Hugo, Emile Pouget, Hommom e outros
demonstraram os grandes acontecimentos sociais a se erguer em nova sociedade.
167
Este trecho é expressivo porque mostra como estas concepções podiam combinar-se
e mesmo buscar suas raízes em figuras alheias tanto ao anarquismo quanto ao sindicalismo,
como é o caso do escritor liberal francês Victor Hugo. Na verdade, se fosse me aprofundar
nas características da doutrina anarquista e na influência do sindicalismo revolucionário no
movimento operário do Rio Grande do Sul, teria de mergulhar de tal maneira nestes
conceitos, fazendo um cruzamento de fontes tão acurado, que excederia em muito os
limites deste trabalho. Por este motivo vou me ater ao que elenquei logo acima, na
identificação destas diretrizes básicas que puderam fazer uma ponte entre as idéias destes
operários e a revolução russa. Desta forma, tanto o sindicalismo quanto o anarquismo
permitiriam uma relação de admiração com a revolução pelo caráter operário e
anticapitalista que ela se revestiu desde o primeiro momento. Além do mais, a própria
fluidez do anarquismo permitiria a estes militantes aceitar novas teorias revolucionárias. Se
foi assim com o sindicalismo revolucionário e o anarquismo, em que algumas
características deles se fundiram sem muitos problemas para os operários do Rio Grande do
Sul, assim foi também com as novas idéias vindas da Rússia revolucionária.
Mas além do tema do sindicalismo revolucionário, há outra questão levantada pelo
estudo de Edilene Toledo que pode ajudar como ponto de reflexão para este trabalho: o
papel dos referenciais ou das tradições de luta herdadas pelos operários.
Toledo constrói sua argumentação através da análise das trajetórias de vida de três
militantes sindicalistas revolucionários e suas atuações tanto na Itália, onde haviam
nascido, quanto no Brasil, para onde haviam migrado. Deste modo ela observa a formação
de grupos políticos que buscam suas tradições para além do movimento operário brasileiro,
remontando a ligações e solidariedades que muitos operários imigrantes tinham desde seus
países de origem, o que uma análise centrada apenas no cenário nacional talvez não
conseguisse perceber. Isto impõe mais uma questão para ser respondida: além de ser
anarquista, ou sindicalista, o operário que simpatizasse com a revolução não poderia ter
uma tradição a que pudesse recorrer e que mediasse este interesse? Não poderiam haver
167
A Dor Humana. Bagé, p.3, 4, out, 1919.
110
tradições de luta que o fizessem perceber algo além de uma “revolução libertária” ou de um
“novo tipo de sindicalismo” nas estepes da Rússia?
Inspirado no trabalho de Edilene Toledo, mas em uma escala muito mais modesta,
seria interessante tomar a trajetória de dois anarquistas e observar em perspectiva como elas
influíram nas suas maneiras de ver a revolução russa. Vou iniciar este exercício com um
rápido percurso pela militância de dois dos ativistas libertários mais importantes do
período: Zenon de Almeida e Friedrich Kniested, a partir daí examinando como podem ter
se conformado dois comportamentos diferentes diante de um mesmo acontecimento.
4.2. Trajetórias de vida, identidades étnicas e escolhas políticas na aproximação com a
revolução russa
a) Friedrich Kniestedt e Zenon de Almeida: duas formas distintas dos anarquistas se
relacionarem com a revolução russa
Tomando por base sua autobiografia
168
, pode-se afirmar que Kniestedt iniciou seu
interesse pelo socialismo muito jovem, quando participou pela primeira vez, em 1888, de
um círculo racionalista na cidade onde nasceu, Kothen-Anhalt, na Alemanha. Ele era um
aprendiz escoveiro e na reunião que participou havia poucos trabalhadores. Foi por
intermédio de um outro rapaz que participava deste círculo, adepto do anarquismo, que ele
teve o primeiro contato com as idéias de Bakunin, Errico Malatesta, Piotr Kropotkin e
Proudhon. Tomando conhecimento destas idéias, Kniestedt começou a participar das
associações de trabalhadores dos lugares em que vivia. Sua profissão era escoveiro e em
parte pela dificuldade de encontrar trabalho, em parte pelas suas concepções políticas que o
faziam alvo preferencial da polícia e dos patrões, sua vida foi marcada por uma constante
transumância. Em todos os lugares para onde Friedrich Kniestedt ia, ele entrava em alguma
168
Este relato da trajetória de Friedrich Kniestedt foi recolhido da sua autobiografia, escrita nos anos 30 em
capítulos no jornal que ele editava, o Aktion, e que foram traduzidas e publicadas posteriormente por René
Gertz. KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um Imigrante Anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e
Notas de Rodapé: GERTZ, René Ernani. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade
Franciscana. 1989.
111
associação profissional e tentava formar algum grupo de instrução popular, além de fazer
palestras periódicas para tentar convencer os operários da sua miserável condição, pondo-se
a distribuir panfletos onde estivesse.
Na Alemanha havia uma lei contra as associações operárias e contra o Partido Social
Democrata, agremiação que seguia no período uma orientação baseada no pensamento de
Marx e de outros pensadores socialistas, como Ferdinand Lassalle. Quando esta proibição
foi levantada, em 1890, as reuniões dos socialdemocratas passaram a ser livres, crescendo
muito o número de operários filiados ao partido. Em 1893, na cidade de Goslar, Friedrich
Kniestedt se tornou membro de uma associação de educação social, entrando
simultaneamente, devido ao ingresso neste grupo, para o Partido Social Democrata Alemão.
Sua convivência com os membros deste grupo político lhe marcaria profundamente.
Até sua expulsão definitiva do partido, em 1905, a relação com este seria de idas e vindas,
em um processo em que ele elegeu os social-democratas como um dos principais inimigos a
combater, além do estado, da religião, do militarismo e do capitalismo. É difícil aquilatar
realmente até que ponto ia as convicções anarquistas de Kniestedt naquele momento da sua
vida, já que ele escreveu suas memórias a partir de 1934, mas percebe-se que o processo de
burocratização do Partido, que vinha moderando suas opiniões e que cada vez mais
priorizava a luta parlamentar, foi influenciando a formação militante de Friedrich
Kniestedt. Assim, ao relatar sua ida para a prisão em 1897, ocasião em que os dirigentes
partidários teriam boicotado sua defesa, ele comenta:
Internamente eu rompera com a social democracia. Na verdade nunca pertencera à ela, mas
necessitava de um campo de ação. E além disso havia todas essas pessoas, que tinham nascido
nesta miséria, como eu, criadas com amor e que de corpo e alma acorreriam a esta festividade,
acreditando que através da social democracia poderiam chegar ao socialismo e à liberdade. Este
foi o motivo porque não rompi aquela época com o partido social democrático. Devo confessar
que também a minha fé de que poderia revolucionar o partido social democrático de dentro para
fora ainda seria possível me mantinham ligado à ele. Uma ilusão diante da qual já sucumbiram
inúmeros batalhadores da causa.
169
Em 1905 ele se estabeleceu em Berlim, entrando em contato com todas as correntes
anarquistas que atuavam na capital do Império Alemão. Passou a trabalhar na associação
local de empregados do comércio, ajudando a organizar os sindicatos desta classe. Como na
Alemanha não havia um movimento libertário organizado, Friedrich e outros de seus
169
KNIESTEDT, Friedrich. Op. Cit. p.24.
112
companheiros organizaram, em 1907, o primeiro congresso anarquista alemão perto de
Offenbach. A polícia tentou fechar o Congresso, perseguindo os congressistas e marcando-
lhes os nomes. Depois disso, ele passou a ser mais perseguido pela polícia e teve de
abandonar a Alemanha, indo para Paris em 1908. Alí ele se relacionou com diversos grupos
anarquistas e sindicalistas em que estavam divididos os trabalhadores franceses. Na verdade
Kniedestedt, em sua autobiografia, se diz um anarquista comunista, mas não parece ligar
sua concepção política a algum grupo específico. Talvez por isso, para ele, as divisões entre
anarquistas e sindicalistas revolucionários não tivessem tanta importância. Na Alemanha os
anarquistas, pelo que ele próprio afirma, não tinham tanta força e o principal grupo a ser
batido entre as fileiras operárias eram os socialdemocratas. Na realidade, Friedrich
Kniedestedt diz ter criado uma concepção própria, que se remeteria a vários pensadores:
No decorrer do tempo eu criara uma ideologia, uma visão de mundo poderia dizer-se, para mim
mesmo. E por isso, em certo sentido, continuo a ser até hoje um solitário. Me alimento em
primeiro lugar daquilo que eu mesmo vivenciei e de que outros vivenciaram. Aprendo muito
com Bakunin, Koprotkin, Kasper Schmidt, Owen, bem como Nietzsch e Tucker, mas foi,
sobretudo Tolstoi que determina até hoje meu modo de pensar e de agir. Meus profundos
estudos da teoria de Marx e Engels – reconhecidos por todos os meus opositores – fizeram de
mim um adversário do marxismo, mas não me empurraram para a direita, mas para a
esquerda.
170
Em 1908, ele saiu da França, também por suas atividades no movimento operário,
vindo para o Brasil com sua família. Esta foi uma vinda em procura de uma colônia de
vegetarianos, nudistas e anarquistas chamada Zunkunft, perto do rio Ivaí, no estado do
Paraná. Nesta localidade encontrou apenas os restos deste assentamento, fixando-se no
meio do mato, livre, cultivando a terra com familiares e amigos, o que acreditava ser
possível apenas porque o fator corruptor da civilização lá não havia chegado.
Ele permaneceu pouco no interior do Paraná porque em 1909 voltou para a
Alemanha, onde se dedicou mais do que nunca a enfrentar o militarismo crescente do
estado alemão, que já se posicionava quase em um estado de guerra. A atividade repressora
e o controle sobre os seus passos se tornaram mais presentes. Friedrich Kniestedt se
dedicou então a participar as atividades do Partido Social Democrata, para contrapor suas
idéias nas discussões que eram promovidas. De certa feita teria arengado até com Leon
Trotsky, que estava na Alemanha a convite do partido para uma palestra.
170
KNIESTEDT, Friedrich. Op Cit. p.25.
113
Como a situação tivesse se tornado insustentável, nas vésperas da guerra ele veio
novamente para o Brasil. Permaneceu até 1917 no interior do Paraná, em colônias que
estariam tentando se organizar coletivamente. Mas a onde de greves neste ano seria o
ensejo para uma nova mudança de vida.
Como tinha o objetivo de voltar a atuar no movimento operário, ele se dirigiu até o
Rio Grande do Sul, primeiramente para Pelotas, em abril, e depois, em agosto, para Porto
Alegre. Chegando na capital do estado procurou integrar-se à Federação Operária, onde,
para sua surpresa, se discutia a instalação de um Tiro de Guerra patrocinado pela
Intendência Municipal em troca da construção de um Ateneu Operário. Provavelmente,
neste momento, Kniedestedt viu sob seus olhos reatualizadas muitas batalhas que ele
travara na Alemanha. O debate sobre o tiro de guerra tinha como um dos promotores o
Conselheiro Francisco Xavier da Costa, que proveniente do Partido Socialista, ingressara
no Partido Republicano. Aquilo podia muito bem ser identificado como uma prática de
colaboração com o governo próxima à dos socialdemocratas alemães. Não foi à toa que
Kniestedt tenha escrito em suas memórias que se escandalizou com o que viu
171
.
Este momento e a experiência de luta que havia acumulado na Alemanha, podem ser
considerados os responsáveis pelas concepções expressas por Kniestedt nos jornais. Um
dos primeiros textos que ele publicou n’A Luta, em 14 de outubro de 1918, é exatamente
uma crítica contra os socialdemocratas alemães, a quem acusa de terem sepultado a II
Internacional. No artigo Desmembramento da Internacional, ele ataca o papel destes
socialistas que teriam colaborado com o nacionalismo alemão e que nada haviam feito para
parar a guerra. Ao falar do socialismo francês, que também se alinhava com o
nacionalismo, ele faz um pequeno deboche contra os marxistas: “Socialismo,
solidariedade, trabalhadores de todos os países, até a ‘concepção materialista da história’,
são ainda apenas pedaços de papel”
172
. Além disso, Kniestedt é um dos únicos articulistas
que não se refere à revolução russa de forma explícita em seus artigos e editorias no A Luta
ou n’O Syndicalista. Este silêncio é tanto mais contundente quanto era comum seus
companheiros se referirem ao movimento revolucionário russo em seus escritos. Seria isto
171
KNIESTEDT, Friedrich. Op. Cit. p. 123-124.
172
A Luta. Porto Alegre, p.1, 14, out, 1918.
114
apenas um silêncio sobre um processo que não tinha condições de opinar? Acredito que
não.
Como indiquei no capítulo anterior, alguns escritos de Friedrich Kniestedt pareciam
dialogar com algo que estava acontecendo, mas este não era um diálogo explícito. Ele
parece defender os princípios do sindicalismo, algo situado entre o sindicalismo
revolucionário (pois ele chega a ver o sindicato como célula mater da nova sociedade), e o
anarco-comunismo, já que defende a liberdade do trabalhador e um futuro em que os
trabalhadores se organizariam em federações livres. O que não é estranho se retomarmos
suas Memórias, em que ele diz transitar entre estas correntes sem aderir a alguma em
especial. Sob este prisma, de um diálogo com uma presença não revelada, o texto que mais
chama atenção é O que nós communistas queremos.
Neste, o autor não só insiste no comunismo anarquista, como também alerta para um
“estado econômico” e formações partidárias de estrutura eclesiástica. O antagonismo que
estabelecera com os marxistas e a aversão à idéia de partido que sua experiência com o
Partido Social Democrata Alemão lhe incutiu, podiam tê-lo feito ver a influência comunista
como um perigo para a organização operária. Seus textos tentavam propagar o anarquismo
e o sindicalismo, incentivando o ímpeto revolucionário da população, mas ele também
parecia estar ciente de que os militantes começavam a refletir sobre a ação de homens como
Lênin e Trotsky e conceitos como “ditadura do proletariado”. Conceitos estes que Kniestedt
não conhecia somente pelos marxistas alemães, mas pelo próprio Trotsky, com quem havia
arengado pessoalmente, o que faz crer que ele tivesse algum conhecimento sobre as
particularidades dos grupos políticos russos.
Na verdade não é tão fácil compreender as atitudes de Kniestedt neste momento em
relação à revolução russa. Ao que parece, ele admirou a posição de mártir de Liebkniecht e
Luxemburgo, tanto que dedicou uma pequena crônica humorística a eles, mas o que mais
deve ter lhe chamado atenção foi a revolta contra a posição socialdemocrata dos dois
militantes e sua oposição à guerra. Ele chegou a dar uma palestra sobre a revolução russa e
a revolução alemã na Algemeiner Arbeitverein, em 1919, mas infelizmente o teor dela, que
seria muito elucidativo, é desconhecido
173
. Uma coisa parece ser clara: seu conhecimento
das correntes políticas entre os operários europeus, e mais, sua vivência particular da
173
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 1º de abril, 1919.
115
socialdemocracia e com os marxistas no Império Alemão o dispôs de forma mais crítica em
relação à revolução russa se comparado a outros anarquistas, o que parece ser o caso de
Zenon de Almeida
174
.
Zenon Budaszewski nasceu em Porto Alegre, no bairro Navegantes, no ano de 1892.
Seu pai, Ingnaci Budaszewski, era judeu e fora oficial sapateiro na cidade de Varsóvia. Em
Porto Alegre, Ingnasi continuou na sua profissão, especializando-se em sapatos femininos.
Zenon aprendeu o ofício com o seu pai, mas não foi somente isso que ele lhe passou.
Ingnasi era socialista, preocupando-se demais em instruir seu filho para que ele tivesse uma
boa base cultural. Conforme Marat, filho de Zenon:
“Se meu avô não conseguiu, pelo menos pretendeu que os filhos tivessem uma educação muito
boa. E o Zenon aprendeu, de berço, o íidiche e o polonês, mas como não havia aqui outras
escolas, ele foi matriculado numa escola alemã, então ele dominou bem o alemão, eu ouvi
muitas vezes ele falar alemão... E aprendeu também, entre outras coisas, música, canto, violão.
Adquiriu uma base cultural muito firme. Era um homem que tinha cultura matemática, ele tinha
tábua de logaritmos, tábua astronômica. Acredito que na escola alemã ele deve ter cursado até o
fim do primário...”
175
Aos 18 ou 19 anos, Zenon Budaszewski aproveitou a vinda de um grande veleiro à
Porto Alegre para engajar-se como homem de bordo. Na Europa, este navio trabalhava com
cabotagem, fazendo toda a rota dos portos do Báltico, do Atlântico e do Mediterrâneo.
Nesta viagem ele aumentou seus conhecimentos, formando uma boa biblioteca, aprendendo
os princípios da química industrial, tornando-se também um poliglota. Às línguas que já
falava, agregou o espanhol, o francês, o italiano e alguns conhecimentos de turco. Foi nesta
viagem, a propósito, que ele tomou contato com o anarquismo.
De volta à Porto Alegre, Zenon casou-se com Eulina Von Reichembah Martins, uma
mulher engajada, formada em um lar de fortes críticos da Igreja Católica. Foi na década de
10 que Zenon, depois de ter adotado por algum motivo desconhecido o sobrenome de
Almeida, passou a atuar no movimento operário. Assumiu o cargo de professor na Escola
Eliseu Réclus, que era mantida pelos anarquistas de Porto Alegre e escreveu a peça teatral
174
Muitos dos dados aqui recolhidos para analisar a vida de Zenon de Almeida foram retirados da entrevista
dada por seu filho à Isabel Bilhão, que foi publicada na revista Estudos Ibero-Americanos.
175
BILHÃO, Isabel. Família e movimento operário. A anarquia dentro de casa. Estudos Ibero-Americanos.
PUCRS: Porto Alegre. V. XXII, n.2, dez. 1996. p.198.
116
Amores em Cristo, encenada em 1914, e o folheto O Evangelho da Organização, em
1915
176
.
Em sua militância destacou-se uma preocupação com a elevação cultural da classe
operária, acreditando que o teatro era uma ótima forma de doutrinação política para os
libertários. Tornou-se um teatrólogo, um orador de massas, um jornalista, combatendo o
papel de instituições como a Igreja Católica que impediam o progresso de uma cultura laica
e racional. Esta característica, de voltar-se para a difusão da cultura como forma de
conscientizar os operários, é enfatizada pelo seu filho Marat:
O Zenon nunca foi um dirigente sindical, ele era o organizador, um agitador, mas nunca
participou da direção do sindicato ou da FORGS; ele falava na frente das fábricas fazia, como
hoje fazem, os piquetes. Agoro, o Polydoro [Santos] é que era considerado incontestavelmente
líder, todos os consideravam, suponho que inclusive ideologicamente ele teria um domínio
maior de conhecimento, sendo um homem mais velho...nunca formaram partido, e tiveram mais
autonomia...Os anarquistas eram partidários de escolas para trabalhadores, de universidades para
os trabalhadores...Eram partidários da ação concreta...
177
Quando foi deflagrada a revolução russa, Zenon de Almeida estava em Porto Alegre.
Participou nesta cidade ativamente da greve de agosto de 1917, agindo junto à Liga de
Defesa Popular, chegando a fabricar bombas que foram utilizadas em enfrentamentos
contra a Brigada Militar. Depois desta greve, teve ele de se retirar para Rio Grande e depois
para Pelotas. Mesmo assim, continuou contribuindo com os anarquistas da capital,
escrevendo para o jornal A Luta, da União Operária Internacional. Neste jornal, sob
pseudônimo de Spartacus do Sul, ele publicou o primeiro texto se referindo à revolução
russa. Era um artigo de 1º de maio de 1918, que se iniciava assim: “Rússia terra de bardos
tristonhos de amargos ritmos, a terra da dor, do sofrimento, da servidão, acordou em um
despertar terrível”.
Zenon comentava neste texto que na Rússia as idéias propagadas por Koprotkin,
Gogol, Bakunin, Turgueniev, Dostoievsky e Gorky haviam aberto sulcos e lançado
sementes de luz, que naquele momento, expostas “ao calor da guerra e à unidade do
176
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos
operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001. pp. 295-296.
177
BILHÃO, Isabel. Op. Cit. p.206.
117
sangue, brotou num infinito de sois radiosos, que ofuscaram os olhos dos vampiros do
mundo”:
E estes vampiros, lançam um clamor que uníssono que ameaça iluminar todos os recantos do
mundo, dissipando as trevas, a que estão habituados.
“Mas ai! destes morcegos que querem apagar o sol da nascente liberdade, perderão as asas e
morreram nas chamas”, sem conseguir esconder aos olhos do mundo a gigantesca silhueta do
russo libertado, que se destaca no alvor do astro da libertação.
178
É interessante observar esta relação da Rússia revolucionária com uma série de
imagens que evocam o fogo e a luz, ao contrário dos seus inimigos que são os “morcegos”
que se mantêm nas trevas. Como já foi mencionado, existe uma simbologia revolucionária,
que remonta à revolução francesa, que relaciona as trevas à ignorância e ao antigo regime,
enquanto a revolução é o triunfo da razão que liberta. Para Zenon de Almeida, de uma
longa militância cultural e crítico feroz do “obscurantismo” representado pela Igreja, esta
imagem era muito apropriada.
As referências aos personagens que haviam espalhado as sementes da libertação não
eram apenas de figuras revolucionárias. Ombreando com os libertários Koprotkyne e
Bakunin, além do menchevista Máximo Gorky, estavam os grandes nomes da literatura
daquele país: Turgueniev, autor de Pais e Filhos, Dostoievsky, que escreveu Os Irmãos
Karamazov e Gogol, de Almas Mortas. A revolução era também uma obra de libertação
cultural, de libertação da consciência e para que a terra dos “tristes bardos” produzisse
aquela explosão revolucionária, era necessário que as sementes lançadas pelos grandes
nomes da cultura tivessem germinando ao lado dos agitadores sociais.
Esta referência, partindo de Zenon de Almeida, é recorrente. Por exemplo, ele criticou
o “espiritualismo orientalizante” de Abílio de Nequete, conforme narra em seus Cadernos.
A crítica parece ser procedente, já que era dirigida contra um militante que tinha uma visão
dos processos sociais perpassadas pela religião. Um claro nexo entre revolução e libertação
da consciência é mostrado em um artigo que ele escreve para O Nosso Verbo de Rio
grande, em 1919, O Que é maximalismo; uma resposta contra “um padre canalha” que
havia criticado o que se passava na Rússia.
178
A Luta. Porto Alegre, p.3, 1º de maio, 1919.
118
Este artigo, de que falei no capítulo anterior, é um duro ataque ao clericalismo.
Zenon de Almeida estava respondendo às opiniões de um padre que escrevera contra o
socialismo, argumentando ele mesmo contra as práticas da Igreja Católica. Enfrentando o
clérigo, que mostrara o maximalismo como agente da dissolução das relações familiares e
do respeito entre os sexos, o líder operário afirmava que no regime maximalista a família
continuaria a mesma, mas a grande diferença seria “que não faltaria pão a boca dos
pequeninos e não se criariam ignorantinhos, pois a sociedade GARANTIRIA A
INSTRUÇÃO INTEGRAL CUSTEANDO-A IN TOTUM ATÉ OS DEZOITO ANOS”
179
.
Obviamente, este era um ponto que contrastava com o papel da Igreja Católica na
sociedade brasileira, como instituição que tinha interesse em manter privilégios como
agente de ensino. Mas, além disso, há algo mais significativo, pois se a sociedade garantisse
o ensino de todos, a cultura poderia difundir-se longe dos preconceitos religiosos, formando
assim pessoas conscientes e não os alienados que mantinham funcionando a sociedade
capitalista. Esta visão da revolução russa como promotora de uma força cultural libertadora
Zenon de Almeida manteria até o ano de 1920, quando colocou, em um jornal de Santa
Maria, a figura de Lênin como apogeu do racionalismo e da luta contra o pensamento
religioso
180
.
Como militante do movimento operário, é muito provável que o interesse despertado
em Zenon pela Rússia não tivesse apenas motivos culturais ou anti-religiosos. Mas sua
história de militância racionalista e os esforços pela elevação cultural dos operários
mostraram a ele as possibilidades de que a revolução não libertasse apenas da exploração
do capital, mas que promovesse uma libertação das mentes, estimulando a consciência
crítica nos trabalhadores.
Se de fato muitos militantes acreditavam que a Rússia era a terra da anarquia, nem
todos olharam para a Rússia para buscar os mesmo exemplos e os anarquistas podiam ver
muitas coisas pelas lentes das esperanças revolucionárias. Deve-se reter isto, pois, quando
as informações sobre a Rússia começaram a inundar os jornais sindicais e os sonhos a
fervilhar nas cabeças dos operários, a hipótese de que aqueles militantes tinham se
declarado bolchevistas apenas por crer que o poder soviético era anarquista torna-se cada
179
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.3, 1º de out, 1919.
180
Folha do Povo. Santa Maria, p.2, ago, 1920.
119
vez mais pobre e explica cada vez menos este processo de identificação. Escamoteiam-se
afeições eletivas, elaborações particulares que passam pelas histórias dos trabalhadores, de
suas associações, de tradições dos lugares onde viviam, ou seja, de suas experiências, e que
teriam sua prova de fogo nas lutas que estes homens e mulheres travavam em nome de sua
classe.
No caso de Zenon de Almeida, se como disse seu filho, ele procurava lutar pela
educação do proletariado e pela elevação cultural de seus companheiros, mas com
autonomia de ação, isto podia lhe facultar agir entre diferentes grupos, talvez até fora do
anarquismo. Isto não ocorria com Kniestedt, que havia formado seu anarquismo em
contraposição às práticas dos “marxistas” do Partido Social Democrata Alemão,
dificultando mesmo seu apoio a determinadas idéias que poderiam levar a adesão ao
marxismo.
Zenon não deve ter sentido a mesma coisa que Kniedestedt diante da revolução russa;
ele não carregava atrás de si esta experiência de luta contra o marxismo e a
socialdemocracia. Apesar de ser anarquista, sua formação cultural, dada pelo seu pai que
era socialista, talvez o fizessem ver o socialismo não anarquista até com certa simpatia.
Tanto o local de origem de seu pai, a Polônia, quanto o fato de ser judeu, remetiam a
importantes tradições socialistas no Império Russo, anteriores mesmo ao Partido Social
Democrata que daria origem ao menchevismo e ao bolchevismo. Enquanto o Partido
Operário Social Democrata Russo apareceu em 1898, o Partido Socialista da Polônia havia
surgido em 1892 e em 1893, uma fração marxista já fundava o Partido Social Democrata do
Reino da Polônia. Os judeus também formaram uma associação de trabalhadores no
Império Russo antes dos marxistas, o Bund de 1897, que pretendia representar os judeus da
Rússia, Polônia e Lituânia
181
.
Esta relação, mais que dispor Zenon de forma diferente diante do socialismo, poderia
tê-lo inclinado a determinadas posturas na sua militância. Não é demais lembrar o papel da
Igreja Católica na Polônia e o terror promovido contra os judeus no Império Russo, que
181
Sobre os partidos socialistas da Polônia e sobre o Bund, ver: GALISSOT, René. Nação e nacionalidade nos
debates do movimento operário. In HOBSBAWM, Eric (org.). História do marxismo, Vol. IV: o marxismo na
época da II Internacional. 3ª Parte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. pp.173-250, especificamente sobre o
socialismo e o marxismo na Polônia em fins do século XIX, ver: WALICKI, Andrej. O marxismo polonês
entre os séculos XIX e XX. In HOBSBAWM, Eric (org.). História do marxismo, Vol. III: o marxismo na
época da II Internacional. 2ª Parte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. pp.291-314.
120
normalmente tinham seus pontos altos nos “progroms”. Esta ênfase na necessidade de levar
ao povo uma cultura racional e anticlerical poderia ter um elo com suas tradições
familiares. Mas isto está aqui colocado apenas como uma suposição, já que esta ênfase
pode ser também atribuída ao tipo de anarquismo que ele tomou contato na Europa ou a
uma preferência pessoal.
A questão das identificações não se esgotam aqui, pois estes esboços de trajetória de
Zenon de Almeida e Friederich Kniestedt colocam um outro problema. Além das opções
políticas destes militantes operários ou como ao longo de sua vida estas opções políticas se
configuraram, está posto aqui a questão da origem étnica destes operários. Claro, o método
que Edilene Toledo usa remete à Itália, como as referências de Zenon de Almeida (ao
menos de sua família) e de Friedrich Kniestedt acabam se estendendo até a Polônia e a
Alemanha. Mas no caso do Rio Grande do Sul esta busca apresenta um complicador.
Se pensarmos nos centros urbanos do Rio Grande do Sul, eles tinham uma formação
diferente da capital paulista, pois sua população, especialmente sua classe operária, era
extremamente heterogênea. Em uma mesma fábrica, em um mesmo bairro, em um mesmo
sindicato, poderia haver representantes das grandes migrações européias: portugueses,
alemães, italianos ou poloneses, vindos diretamente da Europa para nossas cidades ou
nascidos nos núcleos coloniais do interior do estado. Operários de fala espanhola, tanto
ibéricos quanto platinos. Imigrantes ocasionais ou contingentes nacionais menores como
sírios, franceses, suecos, ingleses, russos, além dos judeus de diversas nacionalidades. A
população “nacional” como se dizia na época, não era menos diversificada: descendentes
dos primeiros povoadores açorianos; negros e mulatos filhos de escravos, libertos ou
homens livres; índios ou mestiços emigrados das estâncias e pequenas cidades da
campanha, missões e zona sul do estado, onde há um expressivo contingente destas
populações. Esta diversidade marcou a formação da classe operária do Rio Grande do Sul,
ainda mais porque destes grupos nenhum era massivamente expressivo como eram os
italianos em São Paulo
182
.
Isto torna mais complexa a tentativa de ver uma continuidade de correntes teóricas
européias em longo prazo, como ocorreu em São Paulo, embora algo parecido possa ser
182
Não é a toa que um articulista da Gazetinha, em 1896, tenha chamado a Liga Operária de Babel Operária.
BILHÃO, Isabel Aparecida. Identidade e trabalho. Análise da construção identitária dos operários porto-
alegrenses. (1896-1920). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS. 2005. (Tese de Doutorado) pp.103-106.
121
constatado em opções políticas, como é o caso da social-democracia entre alguns alemães e
o anarquismo entre alguns espanhóis. De qualquer forma, a constatação que a origem destes
operários pode ser muito diversa não invalida, creio eu, uma abordagem que tente observar
uma apropriação dos fatos da revolução russa por uma “lente étnico-cultural”, diferente das
interpretações puramente políticas.
Um dos problemas das abordagens que fazem referencias a estas identidades étnicas é
sua relação com o local de imigração. Existe o risco de dar demasiada atenção ao processo
de assimilação à nova sociedade ou de manutenção de características originais do
imigrante, fugindo de um processo que é de constante redefinição e reconstrução, onde nem
a identidade nacional pode ser vista como algo estanque, nem a sociedade que recebe estes
imigrantes pode ser vista como um bloco homogêneo. Como aponta Alexandre Fortes:
È necessário, portanto, enfocar as diferentes matrizes identitárias que perpassam a experiência
da classe trabalhadora como elementos de um processo de troca e construção simbólica em que
as mesmas disputam ou se articulam de modo complexo e dinâmico com outros aspectos da
existência social, assumindo peso e conotação variados de acordo com o contexto. Esse contexto
envolve não apenas as estruturas econômicas, políticas e a cronologia dos fluxos migratórios,
mas a configuração simbólica na qual os atributos identificados com as nacionalidades
particulares adquirem significado e os fatores que influem na sua modificação ao longo do
período.
183
Um exemplo que demonstra a complexidade da articulação entre estas identidades e o
sentimento de pertença à classe trabalhadora pode ser observado a seguir, a partir da
trajetória do barbeiro sírio libanês Abílio de Nequete
184
.
b) Abílio de Nequete: a revolução russa por uma perspectiva étnica e religiosa
Abílio de Nequete nasceu na aldeia de Fih, na região de El Koura, no norte do Líbano
em 15 de fevereiro de 1888 com o nome de Obdo Nakat. Perdeu a mãe muito cedo, aos dois
anos, e seu pai Miguel imigrou para o Brasil, ficando o jovem Obdo com uma irmã mais
183
FORTES, Alexandre. Nós do Quarto Distrito. A classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas.. 1.
ed. Caxias do Sul / Rio de Janeiro: EDUCS / Garamond, 2004. pp. 123-124.
184
Esta pequena biografia foi feita tendo como base as informações que Abílio de Nequete colocou em seus
Cadernos de Memórias, que foram escritas nos anos 40. Os originais estão perdidos, por isso uso o trabalho
feito por duas pesquisadoras sobre a mesma fonte: ROSITO, Renata Irene Haas. O Pensamento político de
Abílio de Nequete. Trabalho da Disciplina de Ciência Política do Bacharelado de Ciências Sociais da PUC:
Porto Alegre, datilografado, 1972 e também a partir das Anotações dos Cadernos de Abílio de Nequete, de
Sílvia Petersen.
122
velha que também imigraria mais tarde, mas para a Argentina. Apesar de pertencer a uma
família modesta, ele afirma que figuravam em seu tronco familiar alguns revolucionários.
Sua família era ortodoxa e várias vezes ela entrou em choque com os muçulmanos que
dominavam politicamente a Síria e o Líbano, naquela época parte do Império Otomano.
Aos 14 anos, em 1903, sem notícias do pai, ele decidiu viajar a fim de encontrá-lo no
Brasil, embarcando em um navio cargueiro para a cidade do Rio Grande.
Ao chegar ao Brasil, no mesmo ano, Obdo Nakat trocou seu nome para Abílio de
Nequete. Em Rio Grande ele tomou contato com a comunidade árabe do lugar, dirigindo-se
depois para São Feliciano
185
, distrito de Encruzilhada do Sul, onde encontrou seu pai e
tornou-se mascate junto com ele. Neste distrito ele conheceu o professor húngaro
Waldomiro Lorentz, que por ser poliglota conversou com ele e lhe deu uma Bíblia em
português, com a qual ele aprendeu o novo idioma por comparação com a Bíblia árabe que
ele havia trazido. Lorentz também introduziu Abílio de Nequete no espiritismo, o que
influenciaria sua forma de olhar a revolução russa mais tarde. Em termos políticos, apesar
de seu pai ser federalista, Abílio aderiu ao Partido Republicano Rio-Grandense.
Aos 17 ou 18 anos (1907 ou 1908, portanto), Abílio de Nequete veio para a cidade de
Porto Alegre, estabelecendo-se como barbeiro. Na capital, tornou-se autodidata em história,
sociologia e filosofia, estudando destas disciplinas os mais diversos temas. Aos 26 anos, em
1913, ele converteu-se definitivamente ao espiritismo. Também deve ter sido na capital que
Nequete entrou em contato pela primeira vez com os trabalhadores organizados. Pelo que
diz em suas memórias, sua entrada no movimento operário deu-se por ocasião dos
distúrbios provocados contra os alemães em abril de 1917, quando ele viu que o povo “era
somente dirigível”. Mas o primeiro papel relevante que ele teve foi na greve de agosto,
quando se tornou editor chefe do jornal da Liga de Defesa Popular, A Épocha, cuja redação
inclusive funcionava na sua casa, conforme o depoimento no inquérito movido contra ele
em dezembro daquele ano.
Foi neste contexto de mobilização que Abílio de Nequete passou a simpatizar com a
revolução russa, mas sua maneira de encará-la e as esperanças que depositava nela diferiam
de outros operários. Enquanto alguns anarquistas viam nela a realização de um sonho
185
Atual cidade de Dom Feliciano.
123
libertário, ele simpatizou com a causa russa por motivos diferentes. Durante a grande
guerra mundial Abílio sentira duramente as derrotas que a Rússia vinha sofrendo dos
Impérios Centrais. Como sua religião original era ortodoxa, ele nutria simpatia pelos povos
eslavos; sem contar que a Rússia tinha influência nas regiões de fé cristã do Oriente Médio
e a luta que se desenrolava contrapunha o Império Otomano, que controlava o Líbano, ao
Império Russo, que tinha interesse em estabelecer sua predominância naquela região.
Quando os bolchevistas venceram a revolução, Abílio se encheu de ânimo: para ele a
vitória de Lênin e a implantação do programa socialista permitiriam o surgimento de uma
nova espiritualidade, de um “espiritismo sem religiosidade nem charlatanismo[...]Estava
achado o campo de ação em que o espiritismo, degenerado em preces e consagrante a
propriedade individual, não me facultava...”
186
Dessa forma se uniam as simpatias étnicas
do barbeiro com as esperanças religiosas; a Rússia que era a grande nação para onde os
ortodoxos voltavam os olhos para pedir socorro contra a tirania muçulmana, se
transformara em uma pátria nova para onde os operários do mundo poderiam olhar para
alcançar a realização de um ideal espiritual e social mais alto.
Nequete também tentou estender sua militância para outro grupo social: os militares.
Em dezembro de 1917 ele distribui para os soldados de Porto Alegre um panfleto com o
chamado Ao Povo Rio Grandense
187
, assinado pelo “Grupo de Operários e Soldados
Brasileiros”. Este panfleto tinha um forte teor nacionalista, criticando as misérias da
população e sugerindo às autoridades a implantação de uma medida incomum: a suspensão
dos aluguéis pagos pelos operários e a instituição de uma contribuição de 5% sobre estes
para ajudar a Cruz Vermelha Brasileira na guerra, além de ser aplicado no melhoramento
da aviação. Nos “Cadernos”, Abílio de Nequete faz uma alusão aos panfletos, dizendo que
ficou doze dias na prisão por sua distribuição
188
.
Mais interessante do que o teor do boletim, que já foi abordado aqui no segundo
capítulo, foi o inquérito militar que se instaurou para saber qual era o seu alcance real entre
os praças do exército. No início do inquérito, Abílio de Nequete apresenta os motivos da
feitura daquele panfleto e porque tinha assinado por um suposto Grupo de Operários e
186
ROSITO, Renata Irene Haas. O Pensamento político de Abílio de Nequete. Trabalho da Disciplina de
Ciência Política do Bacharelado de Ciências Sociais da PUC: Porto Alegre, datilografado, 1972. p. 5.
187
Grupo de Operários e Soldados Brasileiros. Ao povo rio-grandense. Inquérito Policial Militar 1432. Foro
Federal. Porto Alegre, 1917.
188
ROSITO, Maria Irene Haas. Op. Cit. p. 6.
124
Soldados Brasileiros, respondendo que “sendo livre pensador, amigo do proletariado e do
militarismo, e compreendendo que a vida da caserna é, pelas classes operárias, mal-vista
por ser encarada por um falso prisma, pensou, assinando daquele modo o referido boletim,
congregar as duas classes”.
189
Abílio diz que não entrou em contato com nenhum soldado sobre o tema, mas que
tinha relações com militares pela sua profissão, ou seja, como ele mesmo diz, “de cliente
para oficial barbeiro”. Apesar de Nequete se dizer um patriota e de ter emitido o boletim
com a “melhor das intenções”, já que os operários gastavam muito de sua renda com os
aluguéis das casas, as autoridades militares ligaram a emissão do panfleto à uma
possibilidade de perturbação social, tanto mais delicada pelo estado de guerra. Uma das
perguntas, com efeito, era se Abílio de Nequete “não compreendia que a prática de tal
conselho vinha burlar a lei, estabelecer a anarquia, máxime no estado melindroso em que
se encontrava o Brasil?” Ele não entendia assim, mas é curioso ver como o capitão do
Exército que conduzia o inquérito promoveu um deslocamento em suas preocupações, do
melindroso estado de guerra para a perigosa revolução operária, o que se torna claro na
pergunta que segue a anterior:
Perguntado se ignorara ter sido esse o processo usado pelos Impérios Centrais para lançar a
Rússia no chãos de anarquia em que se debate; que se não compreende que os inimigos do Brasil
podiam explorar o fato em detrimento da ordem interna do país.
Respondeu quanto à primeira parte ignorar; quanto à segunda, não refletir a respeito.
190
Ao que tudo indica, a revolução em prosseguimento à guerra, não agira somente sobre
as preocupações do capitão, mas também sobre as de Nequete, que havia transferido suas
simpatias da Rússia Imperial para a Rússia Revolucionária. Este jogo de simpatias, até
mesmo de afetos, pode ser também observado em relação às pessoas com quem Abílio de
Nequete estava se relacionando neste momento. Mesmo que o Grupo de Operários e
Soldados Brasileiros virtualmente não existisse, o que é impossível de saber, pois com
certeza ele teria todo o interesse de ocultar o fato, o inquérito sumário que se seguiu à sua
prisão indicou que ele promovia reuniões com várias pessoas em sua casa. Os inquiridos, os
clientes da sua barbearia, disseram que Nequete tinha posições aliadófilas, ou seja, apoiava
189
Inquérito Policial Militar 1432. Foro Federal. Porto Alegre, 1917.
190
Idem.
125
a Entente na guerra, mas havia se tornado recentemente germanófilo, reunindo-se com
alemães em sua casa. Na verdade os inquiridos não apontaram apenas nomes alemães, mas
de pessoas de diversas origens: o dentista suíço Ernesto Otto Jaenichen, que fora comissário
da marinha mercante alemã; o médico alemão Júlio Theodoro Hoffmann e sua esposa; o
descendente de alemães Adolfo Rössler e o escultor espanhol Fábio Arjonas, ambos
empregados do alemão Aloys Friedrich, além do soldado de baixa patente Ernesto Cadaval.
Os suspeitos foram bastante evasivos, alguns disseram que palestravam na casa de
Abílio, como o escultor Arjonas, outros, que tinham relações amistosas com ele, mas que
não via fazia tempo, como o militar Cadaval. A maioria disse, no entanto, que o conhecia
somente da barbearia e que jamais havia freqüentado as tais palestras, chegando mesmo o
dentista Jaenichen a afirmar que as tais reuniões iam até altas horas, que eram realizadas a
portas fechadas e que ouvira dizer que Abílio de Nequete era um anarquista.
Além de muitos afirmarem que Nequete se transformara de aliadófilo em
germanófilo, foi indicado também que ele participara ativamente na greve de agosto
daquele ano. Uma das testemunhas, Domingos dos Santos, que sublocava uma casa do
acusado, afirmou que ele se dizia “defensor do proletariado, que manifesta admiração
exaltada pelo movimento revolucionário russo”; já Arjonas chega a declarar que ele se
dizia “amigo da Sérvia”.
Em um primeiro momento a visão de Nequete sobre os acontecimentos europeus e
suas simpatias políticas parece corresponder apenas a um sentimento: confusão! Aguçando
mais os olhos, entretanto, esta admiração pela Rússia e a Sérvia e o proselitismo entre
imigrantes alemães parece ter uma lógica: é possível que Nequete tenha “comprado” a tese
da “traição russa” e de sua mudança de lado na guerra, ou seja, que a paz de Brest Litowsky
fosse um sinal de que a Rússia estava apoiando a Alemanha. O fato de ser reputado como
“amigo da Sérvia”, uma das mais decisivas apoiadoras do pan-eslavismo russo e ortodoxo
nos Bálcãs, pode ser uma confirmação que a primeira aproximação de Nequete com a
revolução russa tenha um conteúdo mais de simpatia étnica que política.
Isto parece um pouco mais palpável se for recordado que Abílio ficou chocado com o
que houve com os alemães em abril na cidade de Porto Alegre, quando muitos deles foram
126
hostilizados pelos ataques a navios brasileiros pela marinha de guerra alemã
191
. Ou seja,
não é de todo impossível que ele tenha sofrido alguém tipo de discriminação também, pois
mesmo a contragosto, Abílio havia sido um súdito do Império Otomano, aliado do Império
Alemão.
Apesar de se definia como um livre pensador, o que não devia restringir seu
proselitismo apenas entre os trabalhadores, sua condição de barbeiro, a convivência com
outros trabalhadores no bairro Floresta, onde morava, seu contato com o movimento
operário naquelas condições de radicalização, deve tê-lo movido para uma atuação próxima
à dos libertários, pois como eles, Nequete também acreditava que a revolução era um sonho
de libertação possível. Neste movimento, mesmo não sendo anarquista, vai juntar-se a eles.
Em 1918 ele passou a escrever no jornal A Luta, dos anarquistas da União Operária
Internacional. Entre estes ele encontra dificuldades de relacionamento, pois se suas
simpatias étnicas vão se diluindo e Nequete vai pensar a revolução russa como universal,
como pode ser visto em seus artigos, seus princípios religiosos não serão abalados, o que
faz com que libertários como Zenon de Almeida não o vejam com bons olhos e critiquem
seu “espiritualismo orientalizante”. Provavelmente, em virtude destes atritos, Nequete
abandonou a União Operária Internacional, em novembro de 1918, para fundar a União
Maximalista, que seria uma associação pautada pelos princípios da revolução bolchevista.
Esta “lente” religiosa que fez Abílio de Nequete interpretar a revolução de forma
particular tem paralelos com outros casos. Havia alguns anarquistas, como os irmãos
Martins, e alguns socialistas, como Carlos Cavaco e Antônio Guedes Coutinho, que
combinavam o espiritismo kardecista com teorias sociais que apontavam para a superação
dos problemas da humanidade, entendido em uma perspectiva de progresso contínuo em
direção ao futuro
192
. Neste mesmo período em que Nequete atuava no movimento operário,
no jornal O Rebate de Pelotas, o articulista J. Max escrevia que a vaga revolucionária
européia era como um período de ressurreição que havia sido antecipado tanto nos
evangelhos quanto nas teorias sociais modernas. Esta visão religiosa parece estar, no
191
Sobre os quebra-quebras contra casas e estabelecimentos alemães ver: SILVA JR, Adhemar Lourenço. Op.
Cit. pp.169-200.
192
SCHIMIDT, Benito Bisso. O Deus progresso. Revista Brasileira de História: São Paulo, V.21. n.41. São
Paulo. 2001. pp. 118-120.
127
entanto, intimamente imbricada com outra, que é uma identidade marcada por tradições e
costumes de seu país de origem.
Apesar de ter abandonado a ortodoxia fazia poucos anos, me parece claro que sua
simpatia com a Rússia era mobilizada por sua identidade de cristão do Monte Líbano. Este
vínculo pode ser mais justificado se lembrarmos que uma geração antes do nascimento de
Nequete, havia ocorrido a trágica Guerra da Criméia, que se iniciou devido a um conflito
entre o Czar da Rússia e o Sultão Otomano, porque o primeiro se arrogava o direito de
proteger os Santos Lugares do Oriente. Os russos investiram contra os turcos, mas as
potências ocidentais os impediram, menos por duvidar da intenção do Czar de proteger a
cristandade oriental, do que pelo medo de que ele tomasse para si o controle do Estreito do
Bósforo e do Dardanelos. O que parece ter havido em Nequete, como coloquei acima, foi
um deslocamento ou uma ressignificação do papel da Rússia para a comunidade a que ele
pertencia. Os russos, que libertariam a cristandade oriental, acabaram sendo aqueles que
libertariam toda a humanidade. Houve não só uma mudança de sentido, mas também uma
mudança de escala, operada por alguém que vivia uma nova realidade social entre os
trabalhadores de Porto Alegre.
A questão é que, para um imigrante libanês cuja família estava envolvida na luta
contra os muçulmanos, identidades étnicas e religiosas possivelmente fossem algo
indissolúvel (o que possa talvez ser constatado ainda hoje em várias comunidades do
Oriente Médio). Sendo assim, a aproximação de Nequete com a revolução por um caminho
étnico, seria algo excepcional? Acho que não. Na realidade o próprio Nequete em suas
memórias afirma que a União Maximalista receberia alguns judeus, como Samuel Speisky,
por simpatias com a origem de Marx. Além destas específicidades da União Maximalista,
existe um outro caso de reelaboração de simpatias nacionais relacionadas com a União
Soviética, ocorrida nos anos trinta, que oferece um paralelo muito interessante com o caso
de Abílio de Nequete: a organização da “União e Luz Operária Russo Branca/Ucraniana”,
estudada por Alexandre Fortes, no seu livro Nós do Quarto Distrito
193
.
Esta associação surgiu no fim dos anos 20 e atuou até 1935, quando foi desmantelada
pela polícia na vaga repressiva que se seguiu à Intentona Comunista. A associação não
estava unida a grupos políticos comunistas, nem era ligada organicamente à União
193
FORTES, Alexandre. Op. Cit. pp.157-175.
128
Soviética, sendo suas atividades voltadas mais a uma atividade cultural que política,
ajudando a manter um espaço de sociabilidade para estes novos imigrantes, mesmo assim
havia muitos associados que tentavam orientá-la para posições pró-soviéticas. O
interessante é observar como se deu essa relação de simpatia. Estes membros eram oriundos
de uma imigração ucraniana e russo-branca (como eram chamados os bielo-russos na
época) relativamente recente no país. Vinham na maior parte da região ocidental de seus
países, zona esta marcada por uma profunda fissura social entre nobres e “marginais”,
conforme depoimento de um imigrante ucraniano a Alexandre Fortes. Tanto a Ucrânia
quanto a Bielo Rússia haviam proclamado independência após a Primeira Guerra Mundial,
para depois desaparecerem divididas entre os novos estados que surgiram. Esta região de
onde era oriunda a maior parte dos emigrados ficara com a Polônia e no período estudado
passava por um agressivo processo de assimilação por parte do governo polonês, em
contraste com os territórios que ficaram com a União Soviética e que acabaram por
tornarem-se repúblicas autônomas.
Criou-se uma identificação, onde uma população que sofria dura opressão dos
nobres, depois de passar por uma rápida independência, estava sofrendo um processo de
assimilação forçada pelo estado polonês. Distantes da sua terra, também sofrendo a
opressão de classe, as esperanças destes eslavos sem pátria voltavam-se para a União
Soviética, que apareceria como a libertadora destes povos e da classe operária. Este
complexo quebra-cabeça montado por Alexandre Fortes mostra que as identificações
mobilizadas por Abílio de Nequete podem não ter sido tão excepcionais. Tanto o barbeiro
sírio libanês quanto os membros da União e Luz Operária mobilizaram identificações que
os aproximavam da Rússia devido a seu pertencimento à classe trabalhadora; mas esta
aproximação podia também ter um significado muito mais particular e que influenciaria a
interpretar determinadas informações de forma diferente que outros trabalhadores.
Além da aproximação que o anarquismo promoveu e das possíveis simpatias étnicas,
um outro exemplo de uma atitude diante da revolução russa que precisa ser analisada é a
dos militantes socialistas do Rio Grande do Sul. Em um primeiro momento poderia se
supor que a adesão ao socialismo poderia predispor os sujeitos a um apoio imediato à
revolução de outubro, mas isto não aconteceu. Conforme foi visto nos outros casos, este
apoio vai ser mediado por uma série de experiências de luta. O fato de alguns militantes se
129
dizerem socialistas não significava um apoio imediato à revolução russa e um caso que
exemplifica isso é o de Carlos Cavaco
194
.
c) Carlos Cavaco: a escolha pela revolução de fevereiro
Muito diferente das simpatias de Nequete e dos libertários foram as atitudes deste
tribuno popular diante das notícias da revolução. Cavaco era uma das mais importantes
figuras entre os socialistas de Porto Alegre. Literato, advogado e grande orador, ele ajudou
a fundar a Federação Operária do Rio Grande do Sul, em 1906, juntamente com Francisco
Xavier da Costa. Também apareceu como presidente de um Partido Socialista em 1914, que
editava um jornal chamado A Vanguarda, mas quase nada se sabe tanto sobre o partido
quanto sobre o jornal
195
.
Este militante socialista tinha idéias bastante ecléticas, como era comum aos
socialistas no período da II Internacional. Entre estes referenciais encontravam-se escritores
como o russo Máximo Gorki e o português Guerra Junqueiro. Na verdade, conforme Benito
Schimidt, uma das motivações para a aproximação de Cavaco ao socialismo seria esta
mescla de literatura e política que o cenário daquele momento muitas vezes oferecia.
Cavaco afastou-se da militância entre os operários durante a década de dez, por
problemas envolvendo acusações de violação de uma jovem a ele dirigidas, que o levaram à
prisão entre 1913 e 1914. De qualquer forma, sua figura voltou a aparecer em 1917, nas
manifestações pela declaração de guerra à Alemanha. Não é de se estranhar esta postura da
parte de um socialista, pois muitos partidos importantes desta tendência política na Europa,
como o francês e o alemão, haviam apoiado os seus respectivos governos no esforço de
guerra. A presença em Porto Alegre de muitos alemães e seus descendentes tornou o
conflito entre aliadófilos e germanófilos bastante grave. A postura nacionalista de Carlos
Cavaco era outra marca importante do seu pensamento e o ataque aos navios brasileiros por
submarinos alemães naquela ocasião despertou nele o sentimento anti-germânico.
Toda esta formação influenciaria sua forma de encarar a revolução russa. Deste
modo, fazendo um contraponto à posição anarquista, Carlos Cavaco teceu comentários
194
Para montar a trajetória de Carlos Cavaco minha principal fonte foi SCHMIDT, Benito Bisso. Em busca
da terra da promissão: a história de dois líderes socialistas. Porto Alegre: Palmarinca, 2004.
195
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Op. Cit. pp.318-319.
130
bastante duros sobre a Rússia na sua revista O Echo Americano de março de 1918. Para
Cavaco, o levantamento de outubro dera início a uma barbárie sanguinária e a atitude de
Moscou em Brest Litovsk havia sido uma traição às tradições ocidentais. Em um artigo
escrito por ele, Kerensky é comparado a um herói e Lênin a um bandido usurpador. Cavaco
também publicou em sua revista um texto supostamente escrito pelo próprio Alexandre
Kerensky e traduzido por ele, no qual o antigo chefe de estado russo comentava sua atuação
no período democrático-burguês do processo revolucionário.
Isto tudo mostra que para cavaco a grande revolução, principalmente se comparada ao
regime de outubro, fora a de fevereiro. Como escreve no Echo Americano:
A revolução tem desses caprichos: fazem heróis e geram bandidos-Kerensky e Lenine. Não há
revolução sem sangue, não há sangue sem crime, para toldar o sol de Kerensky era preciso a
sombra de Lenine. Para Kerensky libertador, a idéia estava no cérebro e o amor no coração, para
Lenine o ideal estava na bolsa e a idéia no estômago.
196
Aqui pode se observar que Cavaco não repudia a revolução russa, mas escolhe, por
suas concepções políticas, uma das duas revoluções que ocorreram. Elegendo a revolução
democrática, Cavaco escolhia um regime e um herói diferente dos anarquistas que
escreviam no A Luta. O direito, a justiça, a integridade da nação e uma série de outros
valores que remontam à Revolução Francesa já haviam sido ultrajados pelo Imperador
Guilherme, inimigo da França e da Inglaterra. Agora havia um outro inimigo bárbaro e que
só podia estar aliado a este, que era a Rússia dos Soviets. Sob esta inspiração nacionalista,
Cavaco organizou uma Liga de Operários e Soldados em princípios de 1918, cuja
propaganda aparece no Echo Americano, e que pareceu ligar-se a uma tentativa de apoiar o
Brasil na guerra.
Dali em diante, Cavaco se transformou em um ardoroso anticomunista, o que pode
ser visto já em 1919, na greve dos frigoríficos de Santana do Livramento, em que critica
duramente o maximalismo em um discurso feito aos trabalhadores, falando que estes
poderiam vencer sem trazer a “máscara sangrenta do militarismo prussiano” encarnada por
Lênin. A idéia de revolução, entretanto, ainda se mantinha viva no seu pensamento, como
pode se depreender de obras poéticas como Rosas de Sangue, de 1920, em que se
196
O Echo Americano. Porto Alegre, p.3, 18, mar, 1918.
131
idealizavam as barricadas e as explosões revolucionárias. Na poesia Profissão de Fé,
Cavaco defende sua trajetória na luta pelo direito dos operários e exalta sua alma rebelde.
Imperturbavelmente! A minha vida
Segue na reta que eu determinei.
E embora ulule a turba presumida
Não me afasto da linha que tracei
Altivo e forte, e de viseira erguida
n’esta grande batalha que travei
dentro da sociedade corrompida
o meu santo ideal defenderei
Erguendo o fraco à altura do meu peito
Defenderei as causas do Direito
De pena erguida e de punhal na mão
E rebelde também nos sonhos e na arte,
Eu saberei levar por toda a parte
O facho rubro da revolução!
197
Ali está o ódio à sociedade corrompida, a luta pelo fraco e o facho rubro da revolução.
Mas estas imagens, apesar da aparência, nada tinham a ver com a Rússia dos Soviets. A
revolução russa de Cavaco havia sido outra.
Tanto Abílio como Cavaco são exemplos de que os militantes poderiam ter atitudes
muito diversas diante daquele grande acontecimento. Um socialista moderado e um
imigrante libanês espírita enxergaram a revolução com um olhar diferente dos libertários.
Tanto um quanto o outro levavam o peso de suas experiências para guiar suas escolhas e
isto também aconteceu aos anarquistas.
Tentei mostrar neste capítulo, observando a trajetória de quatro militantes, que a
aproximação com os ideais da revolução foi um processo diferente para diferentes sujeitos,
que tinham histórias e tradições diversas. Mas é necessário fazer aqui uma ressalva. Estas
tradições não agiram da mesma forma sobre todos os operários. Se no trabalho de Edilene
Toledo, por exemplo, a vida dos três militantes alí analisados serviu para identificar
algumas formas de atuação no movimento operário, no caso que analiso, tentar estender o
comportamento dos militantes para outros grupos seria arriscado. Dizer que a trajetória de
197
CAVACO, Carlos. Rosas de sangue. Lisboa, 1920.
132
Nequete, por exemplo, poderia ser encontrada no restante da comunidade de operários
libaneses seria uma temeridade, o que vale também para os outros casos.
Mesmo que neste capítulo tenha sido valorizado o papel das tradições de luta que
estes militantes traziam para as diferentes formas de interpretar a revolução, não pode se
dizer que suas formas de atuação se deviam apenas a isso. Se assim fosse, no episódio em
que Zenon de Almeida critica Abílio de Nequete pelo seu espiritualismo orientalizante, não
seria um militante judeu polonês criticando um militante libanês, mas alguma sorte de
fantasmagoria da opressão do Czar de Todas as Rússias de um lado e da opressão do Sultão
do Império Otomano do outro.
Para compreender como as idéias da revolução russa vão criando novas formas de
agir, novos posicionamentos, novas concepções políticas, enfim, novas maneiras dos
trabalhadores compreenderem a si mesmos e à sociedade, será necessário analisar como
estes militantes operários se relacionaram entre si. Para tanto, se faz necessário analisar
como surgiram as primeiras associações comunistas ou maximalistas, como os militantes
do Rio Grande do Sul entraram em contato com experiências semelhantes que se faziam no
restante do país e qual o sentido de algumas ações inspiradas na revolução soviética levadas
a cabo em um momento em que se tornava cada vez mais aguda a luta de classes, temas
estes que serão objeto do próximo capítulo.
133
5. “A VOSSA DIVISÃO É A VOSSA FRAQUEZA- UNI-VOS POIS!, E, NÃO HAVERÁ
FORÇA ALGUMA QUE POSSA VOS ENFRENTAR”
198
: associações comunistas do
Rio Grande do Sul e suas relações com grupos similares do centro do país
Até aqui tentei abordar o impacto da revolução russa através das diversas
interpretações dadas a este grande acontecimento pelos militantes operários do Rio Grande
do Sul. Muitas dessas análises ou moções de apoio pressupunham uma identificação ou
inspiração na revolução, processo este múltiplo, devedor das tradições ideológicas e
experiências individuais e coletivas que estes trabalhadores traziam consigo. Tendo-se
estabelecido como ponto pacífico a existência desta multiplicidade de experiências, que
afastaria a idéia de uma postura uniforme diante da revolução, impõem-se aqui outras
questões: Como a revolução russa influenciou a forma destes operários, de origens tão
diversas, a se organizar?
Na Introdução havia feito menção a uma série de associações que tinham seus
nomes claramente inspirados nos modelos revolucionários russos: União Maximalista de
Porto Alegre, Liga Comunista de Santana de Livramento, Centro Comunista de Passo
Fundo, Partido Comunista do Brasil. Algumas destas associações reapareceram em meio às
análises sobre as interpretações e identificações dos militantes com a revolução. O processo
de surgimento delas, entretanto, não pode ser negligenciado nem tratado superficialmente,
pois sua formação está ligada a um processo mais complexo de organização dos militantes
operários e às relações internas da própria classe.
As ações da classe operária não se dão apenas em relação à burguesia, na luta contra
seu opressor, também devem ser levadas em consideração suas relações internas, ou seja, a
relação entre diferentes trabalhadores e grupos de trabalhadores. Neste sentido, vale a
observação de Ellen Meiksin Wood:
A relação entre os membros de uma classe, ou entre esses membros e outras classes, é de
natureza diferente. Nem o processo de produção, nem o processo de extração da mais-valia
provocam a união entre eles. “Classe” não se refere apenas aos trabalhadores combinados numa
unidade de apropriação, ou contrários a um explorador comum numa unidade de expropriação.
198
Trecho do panfleto Do canhão à peste, da União Maximalista, lançado em 1º de novembro de 1918.
134
Classe implica uma ligação que se entende para além do processo imediato de produção e do
nexo imediato de extração, uma ligação que engloba todas as unidades particulares de produção
e apropriação. As ligações e oposições contidas no processo de produção são a base da classe;
mas a relação de produção não é dada diretamente pelo processo de produção e apropriação.
Os laços que ligam os membros de uma classe não são definidos pela afirmação simples de que
classe é determinada estruturalmente pelas relações de produção. Resta ainda explicar em que
sentido, e por que mediações, as relações de produção estabelecem as ligações entre as pessoas
que, mesmo ocupando posições semelhantes nas relações de produção, não estão na realidade
reunidas em um mesmo processo de produção e apropriação.
199
As formas como os trabalhadores são levados a se associarem e a cooperarem não são
ditadas somente pelo antagonismo de classe. Transpondo esta lógica para a formação dos
grupos comunistas, não bastaria dizer que estes surgiram da luta destes militantes operários
contra o Estado e a burguesia; mas é necessário analisar, além da formação destas
associações, qual sua forma de atuação, o que as diferenciava de outros grupos militantes e
como se relacionavam com outras associações de operários organizados.
Esta análise tem como objetivo não observar o que marcava as peculiaridades das
associações comunistas, mas também qual sua importância e sua inserção em meio aos
trabalhadores mobilizados. Além disso, também pretendo estudar o estabelecimento de
ligações com grupos comunistas do centro do país, já que grupos como estes não
floresceram somente no Rio Grande do Sul, o que pode esclarecer quanto à rede de difusão
de informações e à participação de militantes gaúchos em novas formas de organização,
como o Partido Comunista de 1919. Também pretendo abordar a participação dos
militantes do estado em um novo tipo de ação, a inserção na insurreição maximalista de
1919, um episódio muito pouco estudado da história do movimento operário brasileiro.
5.1. O surgimento das associações comunistas e maximalistas no Rio Grande do Sul
Como observei acima, o aspecto mais visível do impacto da revolução russa em
termos de organização foi o surgimento das associações que se identificavam como
comunistas ou maximalistas. Isto tem um peso especial no caso do Rio Grande do Sul, pois
199
WOOD, Ellen Meiksin. Democracia contra capitalismo. A renovação do materialismo histórico. São
Paulo: Editorial Boitempo, 2001. p. 89.
135
aqui estes grupos surgiram muito cedo e proliferaram rapidamente. As primeiras
associações operárias deste tipo apareceram no ano de 1918: a União Maximalista de Porto
Alegre, a Liga Comunista de Santana de Livramento e o Centro Comunista de Passo Fundo.
No ano de 1919 apareceria o Núcleo Comunista de Pelotas. Em 1920 surgiria o Sindicato
Gráfico Comunista de Porto Alegre e a União Comunista de Rio Grande. Também foi
registrada a fundação de uma Sociedade Carlos Marx na cidade de Porto Alegre, em 1919,
que poderia ser relacionada à influência do bolchevismo, mas quase nada se sabe sobre esta
associação
200
.
Consultando as fontes, ao que parece, a primeira experiência organizativa inspirada
pela revolução russa não foi nenhuma das associações anteriormente citadas, mas teria sido
um episódio frustrado. Foi o Grupo de Operários e Soldados Brasileiros, que Abílio de
Nequete tentou formar em dezembro de 1917, distribuindo panfletos entre militares de
baixa patente. O desejo de unir operários e soldados pode ser um forte indício de uma idéia
inspirada no modelo russo do Soviet de Petrogrado, que reunia delegados destas duas
categorias. Mas sua intenção de fazer o proselitismo de idéias que ligassem os dois grupos
não funcionou. O próprio Nequete admitiu que aquilo não passara de uma atividade pessoal
para aproximar os praças dos trabalhadores, pois aqueles eram mal-vistos por estes, embora
as simpatias de Abílio de Nequete em relação à Rússia Revolucionária deixem uma séria
suspeita que ele desejava aproximar estas classes como ocorrera na experiência dos Soviets.
Esta atividade entre os militares parece ter sido um caso isolado. Como mostrei no
capítulo anterior, Abílio de Nequete reunia-se na sua casa com um grupo de pessoas para
palestrar antes de lançar este panfleto. Acredito, entretanto, que dificilmente entre este
grupo de pessoas que reunia figuras como o dentista suíço Ernesto Otto Jaenichen, o
médico alemão Júlio Theodoro Hoffmann, o soldado brasileiro Ernesto Cadaval e o
escultor espanhol Fábio Arjonas, pudesse estar um embrião do Grupo de Operários e
Soldados Brasileiros. Quando muito Nequete poderia esperar montar este grupo através da
disposição de Fábio Arjonas e Ernesto Cadaval, que eram respectivamente um operário e
um soldado.
200
Existe apenas uma nota sobre esta associação que diz o seguinte: “Esta sociedade acaba de solicitar, tendo
resposta favorável, sua junção à Federação Operária. A Federação Operária vai pedir para que esta
associação nomeie seu delegado junto à Comissão Central, para que possa tomar parte nas suas decisões.”
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 11, jul, 1919.
136
Mesmo que a formação do Grupo de Operários e Soldados Brasileiros fosse
antecedida de algum plano, ela parece ter pouco ou nenhum efeito posterior, tanto sobre os
operários, quanto entre os soldados.
Uma outra associação, com um nome muito parecido, mas com uma orientação
completamente diferente, surgiu alguns meses depois na capital. Foi o Comitê de Operários
e Soldados, cuja propaganda de organização apareceu no Echo Americano de 1º de abril de
1918: “Está quase assentada a organização em Porto Alegre do Comitê de Operários e
Soldados para a defesa da pátria. Carlos Cavaco foi convidado para presidí-lo”
201
.
Adhemar Lourenço da Silva Junior indica este grupo como um exemplo de associação
nacionalista que teria buscado um modelo no movimento operário para se organizar
202
.
Além desta inspiração no movimento operário, esta associação de defesa da pátria poderia
ter buscado seu modelo também na revolução russa, por mais surpreendente que isso possa
parecer. Na mesma revista, Cavaco já havia mostrado toda a sua admiração pela revolução
de fevereiro e por Alexandre Kerensky. Isto poderia indicar que este “Comitê”, apesar do
nome, não fosse um órgão inspirado no Soviet que tomou o poder em outubro, e sim na
experiência de fevereiro, que serviu para mobilizar a classe operária e conviveu com um
Governo Provisório que mantinha a Rússia na guerra e que não pretendia romper com a
ordem burguesa. Ou seja, um Comitê de Operários e Soldados que tinha mais um sentido
de mobilização nacionalista que socialista.
Não somente estas duas incipientes tentativas de organização tinham sentidos
diferentes, mas teriam também destinos diferentes ao longo do tempo. Quanto ao Comitê de
Operários e Soldados, presidido por Carlos Cavaco, apesar de não se saber nada sobre o seu
destino, é provável que tenha perdido o motivo de existência, em parte porque estas
mobilizações enfraqueceram com o fim da Primeira Guerra Mundial e também porque
Carlos Cavaco se engajaria em outro projeto, a fundação do Partido Operário em 1919
203
.
Já as simpatias de Nequete pela revolução russa o levariam a outra ação, meses mais tarde,
que resultaria na fundação da União Maximalista de Porto Alegre, um dos principais
201
O Echo Americano. Porto Alegre, p.4, 1º de abril, 1918.
202
SILVA JR, Adhemar Lourenço. "Povo! Trabalhadores!": tumultos e movimento operário (estudo centrado
em Porto Alegre 1917). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 1994. pp. 206-207.
203
Ver PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos
operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001. p.357.
137
núcleos comunistas deste período no Rio Grande do Sul
204
. Antes disso, Abílio de Nequete
havia participado da União Operária Internacional, tendo acompanhado a radicalização do
movimento operário em Porto Alegre, o avanço da revolução na Rússia e os primeiros
estremecimentos revolucionários em outros países da Europa. Como está exposto no
segundo capítulo, ele avaliou pelas páginas do jornal A Luta a mudança de caráter da
revolução como deixando de ser russa e passando a pertencer a toda a humanidade
205
.
Se foi durante sua militância na UOI que Abílio de Nequete orientou alguma de suas
concepções na direção do anarquismo, como o internacionalismo, é também entre os
anarquistas que Abílio de Nequete se sentiu diferente, enfrentando o preconceito contra
suas crenças religiosas. Nas palavras de Irene Haas Rosito: “Assim, suas convicções
espíritas motivaram as primeiras rivalidades com os anarquistas, companheiros de greve e
no jornal, que se declaravam ateus”
206
. Aí pode ter surgido a idéia da União Maximalista.
Em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, em novembro de 1918, um grupo de
três companheiros tomou a si o encargo de lançar um manifesto aos trabalhadores, dando causa
da pandemia, então chamada espanhola, a organização ultra criminosa do capitalismo, e incitava
a massa a que se apoderassem de tudo, porque tudo era criado ao seu esforço. Este manifesto
levava em seu cabeço o seguinte:
MANIFESTO DA UNIÃO MAXIMALISTA AOS TRABALHADORES. E desde então o
referido grupo considerou-se uma entidade revolucionária que, embora falhas em conhecimentos
teóricos, apoiava em todos os momentos os feitos da gloriosa revolução russa. Uma das causas
principais do grupo usar o nome UNIÃO MAXIMALISTA, foi a hostilidade que já começavam
a desenvolver os anarquistas da UNIÃO OPERÁRIA INTERNACIONAL, a qual pertenciam os
três membros fundadores da UNIÃO MAXIMALISTA.
207
204
Um dos problemas desta análise é que sua principal fonte de informação são as memórias de Abílio de
Nequete. Não que suas memórias sejam menos, ou mais, qualificadas que a de outros militantes, mas por
intermédio destes escritos, sua liderança na União Maximalista acaba eclipsando a ação de outros membros
desta associação, razão pela qual é difícil avaliar o papel dos outros militantes do grupo. Até porque, não se
pode descartar que no momento da escrita dos seus Cadernos, Nequete acreditasse que a União Maximalista
funcionasse apenas em função dele, mesmo que isto possa não ser verdade.
205
O nome deste artigo é “O nosso dia se aproxima”. A Luta. Porto Alegre, p.3-4, 14, out, 1918.
206
ROSITO, Renata Irene Haas- O pensamento político de Abílio de Nequete. Porto Alegre: PUCRS 1972.(
Trabalho para a disciplina de política, do Curso de Bacharelado em Ciências Sociais ). p.5.
207
Carta de Abílio de Nequete ao Comitê Executivo da Internacional Comunista. Montevidéu, 1º de fevereiro
de 1921. Esta carta encontra-se no RGASPI – Rossiiskii Gosudarstvennii Arkhiv Sotsialnoi i Politicheskoi
Issledovanii (Arquivo do Estado Russo de História Social e Política). Uma cópia eletrônica dela me foi cedida
pelo pesquisador Arthur Duarte Peixoto.
138
É interessante observar nesta carta que Abílio já percebe uma hostilidade por parte dos
anarquistas da União Operária Internacional em 1918. Seria em relação à revolução russa?
Isto não parece se confirmar pelas páginas do jornal A Luta. Talvez ela seja muito mais
dirigida contra as concepções particulares de Abílio do que propriamente contra a
revolução de outubro. A explicação dada para a adoção do nome “União”, mas
“Maximalista” em vez de “Internacional”, pode ser um sinal de que esta experiência na
União Operária Internacional tenha dado à Abílio um modelo de organização, mas sua
convivência neste grupo o tenha afastado dos anarquistas. Os três membros da associação,
além dele próprio, eram Francisco Merino e Otávio Hengist. O manifesto que marcava a
fundação da União Maximalista se chamava Do Canhão à Peste- Até que os operários
tenham consciência de si próprios...
A União lançou durante os anos de 1918 e 1919 uma série de panfletos que podem
ajudar na sua caracterização. No primeiro manifesto, “Do canhão à peste”, percebe-se um
repúdio aos operários que apóiam a política partidária ou os políticos que buscavam apoio
entre os operários, ou seja, “aqueles que de suas fileiras desertaram” e “aqueles que do
alto descerem
208
. Há uma grande preocupação em denunciar as condições de vida que
permitiam à gripe espanhola se espalhar, como a miséria e a guerra. Mas estas mesmas
condições, apesar de deteriorarem a vida do operariado, também haviam feito surgir a
revolução russa, que seria responsável pela futura libertação da classe operária. Em suas
linhas gerais o “Do Canhão à Peste” não propugnou nenhum modo de atuação novo onde
se identificasse a influência da revolução russa. As críticas à política burguesa, às
condições sanitárias, e mesmo a esperança na revolução seguiam a tradição anarquista dos
que escreviam no A Luta.
Apenas em janeiro de 1919 a União lançou um manifesto em que expunha o “programa
maximalista”
209
, identificado como sendo o programa dos comunistas russos. Este
compunha-se de 7 pontos: 1; socialização da produção 2; expropriação dos bens 3;
abolição das castas privilegiadas 4; nacionalização do fisco 5; revolução como único meio
de luta 6; Soviet como organizador da vida social e 7;; necessidade da correspondência
208
Do canhão à Peste- Até que os operários tenham consciência de sí próprios, Porto Alegre, 1º nov, 1918.
Processo Crime 1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
209
Ao Povo. O programa maximalista-Impresso da União Maximalista. Porto Alegre 1919. Processo Crime
1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
139
ativa entre os Soviets para suprimento e defesatua. Neste manifesto já está claramente
explícito que o Soviet é a forma de organização da sociedade futura. Aqui não é um
genérico governo dos produtores, mas é uma nova forma de poder com atribuições
específicas, como o confisco e administração do sistema bancário, a requisição da produção
social para distribuição e a necessidade de comunicação e defesa mútua.
Em outro manifesto a União Maximalista repudiava a intervenção da polícia do Rio
de Janeiro contra o Congresso do Partido Comunista do Brasil, que teria ramificações por
todo o país e ao qual a União se declarava associada
210
. Ou seja, a União Maximalista já em
1919 havia estabelecido um programa, que remetia aos bolchevistas russos, e fazia parte de
um agrupamento maior de sociedades operárias, que estariam sob a bandeira do Partido
Comunista com sede na Capital Federal.
Esta quantidade de panfletos publicados por uma associação muito jovem é um
indício de uma preocupação com a difusão de informações, que era também uma
característica de outros grupos organizados neste momento. Neste sentido, a União
Maximalista também fundou uma biblioteca, cuja propaganda apareceu n’O Syndicalista de
agosto de 1919, em que se pediam livros para serem doados na sede da União que
funcionava na casa de Nequete
211
. Isto mostra que os maximalistas seguiam outra prática
comum na época entre as associações operárias, que era a formação de bibliotecas para a
educação da classe trabalhadora.
Além de examinar o conteúdo dos seus panfletos ou das formas de difusão de
informações, para melhor caracterizar a União Maximalista é necessário observar também
sua forma de atuação entre os operários nas ações coletivas, como as greves, pois é devido
a estas ações que ela aumentou o número dos seus membros.
A União Maximalista participou ativamente do ciclo de greves do ano de 1919, que
culminou, em Porto Alegre, com a paralisação generalizada de 25 de agosto a 11 de
setembro. Abílio de Nequete afirma em suas memórias que naquela ocasião tomou a
direção da greve dos metalúrgicos que reivindicavam às 8 horas de trabalho porque a
210
Boletim de Protesto da União Maximalista (contra a intervenção no congresso comunista brasileiro)
Processo Crime 1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
211
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 2, ago, 1919.
140
FORGS não quis assumir a direção do movimento
212
. Esta greve durou dois meses e pelo
protagonismo da União Maximalista nesta, a associação ganhou novos membros como
Milton Loff e Carlos Toffolo, este último, presidente da União Metalúrgica. Nequete afirma
ter participado também da greve dos carpinteiros e marceneiros, orientando suas
reivindicações, que seria o estabelecimento de 7000 reis fixos de salário e um aumento de
25 % sobre o que ganhavam. A vitória foi conseguida em uma semana e a União
Maximalista conseguiu mais um aderente, provavelmente Narciso Mirandola
213
.
Outra via importante para compreender as ações da União Maximalista é a análise da
sua relação com os outros grupos de operários organizados. Apesar deste período marcar
uma ação coletiva de massas contra o estado e a burguesia, as relações entre as associações
não eram sempre pacíficas ou de total acordo, conforme mostra este trecho do seu Caderno
de Memórias:
As greves parciais funcionam em três sedes diferentes.
Tecelões: Avenida Germânia.
Chapeleiros, curnileiros (?) e cigarreiros: FORGS, Rua Comendador Azevedo.
Força e Luz: Azenha.
Não foi possível reuni-los; os anarquistas da FORGS rivalizavam com os da Azenha. Araújo e
Silva era o líder do grupo da Azenha e pediu a aliança de Abílio para dar um golpe na FORGS.
Em princípios de setembro começam a trafegar os bondes: Araújo, desesperado, pede que Abílio
lance os tecelões na frente dos bondes e ele se nega; diz que a greve não está perdida. Fazem
assim um boletim, mas não distribuem.
214
Isto mostra que havia divisões entre os anarquistas, ou seja, nem mesmo estes eram
homogêneos. Na realidade este pequeno trecho extraído dos seus “Cadernos” mostra uma
relação complexa entre as diversas associações dos trabalhadores. Abílio de Nequete
participara da União Operária Internacional, escrevendo no A Luta, mas ele afirma escrever
também em um jornal chamado A Arena, do sapateiro Orlando de Araújo e Silva. Nequete
213
Sobre estas greves, Friedrich Kniestedt fornece um relato bem diverso do que aconteceu. Quanto aos
marceneiros, Kniestedt afirma ter sido ele um dos principais organizadores, tendo inclusive ganho o apelido
de “professor greve”. Quanto aos metalúrgicos, o militante alemão afirma que sua greve só havia vencido
graças “à nossa intervenção” (dos marceneiros). KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um Imigrante
Anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e Notas de Rodapé: René E GERTZ. Porto Alegre: Escola
Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989. pp.127-128.
214
PETERSEN, Sílvia Regina de Ferraz. Anotações dos Cadernos de Abílio de Nequete. Datilografado. s/d.
141
afirma que ele era o líder dos “anarquistas da Azenha”, grupo do qual fazia parte o
Sindicato da Força e Luz. Qual seria a relação da União Maximalista com este “Grupo da
Azenha” (que poderia ser na realidade o grupo de militantes engajados em torno do A
Arena) ou com o Sindicato da Força e Luz? Seria possível que Abílio, por ter saído da
União Operária Internacional, teria aproximado a União Maximalista deste grupo? Não é
demais lembrar que os militantes da União Operária Internacional fundaram a União Geral
dos Trabalhadores e depois assumiram a direção da FORGS; essa relação com a “rival” da
FORGS, nas palavras de Abílio, poderia ser fruto de uma hostilidade contra os anarquistas
com quem ele havia convivido na União Operária Internacional?
Os dados disponíveis são bem poucos para responder a estas perguntas ou para
montar algumas hipóteses válidas. Quanto à FORGS, Abílio afirma que, apesar de nunca
ter feito parte dela, sempre comparecia as suas reuniões. Quanto ao Grupo da Azenha ou ao
Sindicato da Força e Luz, mesmo que houvesse uma relação entre as referidas associações,
esta não foi sempre de concordância: Abílio de Nequete recusou-se a aceitar a proposta de
Araújo e Silva para dar um golpe contra as lideranças da FORGS, assim como negou-se a
atirar os tecelões contra os bondes quando o transporte público voltou a funcionar,
conforme desejava o mesmo Araújo e Silva.
A União Maximalista participou também do comício do Dia da Independência,
convocado pelo Sindicato da Força e Luz e que se realizaria na frente da Intendência,
embora fosse contra sua realização. Conforme as anotações de Sílvia Petersen: “Abílio não
gostava de comícios, especialmente quando são frente à Intendência como o de 7 de
setembro de 1919 que culmina com graves incidentes”
215
. O comício terminou com a
Brigada fazendo carga sobre a assistência e “espadeirando”
216
um grande número de
pessoas. Nesta ocasião, o líder da União Maximalista foi preso e levado para a chefatura de
polícia enquanto tentava reunir os participantes dispersos para se encontrarem na FORGS.
No fim das contas, tanto Abílio de Nequete quanto outras lideranças acabaram detidas.
Mesmo que o trágico comício tenha acabado na prisão de Abílio de Nequete, ao que parece
depois deste episódio a relação da União Maximalista com as outras associações,
especialmente com a FORGS, muda qualitativamente. Nequete, por exemplo, ganhou uma
215
PETERSEN, Sílvia Regina de Ferraz. Op. Cit.
216
Batendo com a espada sobre os operários.
142
coluna n’O Syndicalista. Apesar de acreditar que tal mudança é extremamente importante
no sentido de entender as relações entre os grupos de operários organizados da capital, não
pretendo aprofundar aqui suas conseqüências, que somente serão abordadas no último
capítulo, isto porque acredito que as relações de Abílio de Nequete e da União Maximalista
com a FORGS são fundamentais para a compreensão de alguns processos que só irão tomar
corpo ao longo dos anos 20, tema este que não pretendo tratar agora.
Mesmo não esgotando ainda o protagonismo da União Maximalista no cenário das
associações, as informações até aqui apresentadas já serviriam para contrapor-se a uma
visão de que esta associação era apenas uma “seita” e que não teve papel nenhum como
força dentro do movimento operário. Esta é a opinião de Otavio Brandão em seu livro
Combates e Batalhas, que caracteriza a União Maximalista como um grupo que não tinha
importância alguma, o que também é referido ao papel Abílio de Nequete, apresentado
como um homem presunçoso e fantasista:
Durante mais de três anos anos, a União Maximalista, seita insignificante, não representou
nenhum papel no cenário político nacional e nem mesmo do Rio Grande do Sul. Seu secretário,
porém, gabava-se: “somos o grupo mais velho e acatado do país”. Ninguém o conhecia.
Na realidade Nequete era um fanfarrão e um charlatão. Despejava a cada momento, fora de
propósito, citações de Lênin, extraída de más traduções espanholas.. Sentia um ódio furioso aos
anarquistas. Começava as conversas chamando-os de canalhas.
Conheci-o de perto no Rio de Janeiro. Caraterizei-o logo “é um anarquista às avessas”
217
.
Claro, deve ser considerado que Brandão não esteve em Porto Alegre durante o
período crítico das greves e provavelmente conheceu Abílio apenas do Rio de Janeiro.
Além do mais, a caracterização parece fortemente impregnada de uma antipatia pessoal
pela figura de Nequete.
Analisando a União Maximalista de Porto Alegre, não se percebe muita diferença de
atuação em relação a outras associações operárias do período, bastante significativo é o fato
de seu modelo ser uma União anarquista (União Operária Internacional). Pode-se
depreender daí que a revolução russa não tinha lançado bases teóricas para uma
organização de um novo tipo, base esta que o próprio Nequete admite ser falha. Isto
217
BRANDÃO, Otávio. Combates e batalhas. Memórias. São Paulo: Alfa-Ômega. 1978. p.243.
143
significa que não há necessidade de estudar as outras associações? Obviamente não!
Significa que as singularidades das associações comunistas ou maximalistas podem estar
ligadas não a um modelo totalmente novo de organização, mas à especificidades como
composição de seus membros, locais de atuação ou situação de determinadas categoria.
Especificidades que só podem ser descobertas estudando uma a uma estas associações.
As outras associações comunistas têm histórias bem diferentes da União Maximalistas
de Porto Alegre. Nem todas tiveram a liderança de uma figura como Abílio de Nequete e
nem todas atuaram em um movimento operário de cenário complexo como o de Porto
Alegre. Um caso que exemplifica bem esta diferença, não só de atuação, como de
organização, é a Liga Comunista de Santana do Livramento, fundada também em 1918.
Esta Liga surgiu da ação do pedreiro Santos Soares. Em depoimento dado à Isaac
Axelrud em 1945 (reproduzido posteriormente na revista Problemas, do Partido Comunista
do Brasil, em 1952) Santos Soares explicou que a agitação produzida pela revolução russa
resultou na fundação de uma associação que deveria ter como modelo a Rússia
revolucionária:
“O nome de Lênin, nas assembléias, incendiava os corações. Naquele tempo, era
comum chamar os bolcheviques de maximalistas. Interpretávamos assim esta palavra:
maximalistas são os que querem o máximo para os trabalhadores, isto é, o poder. Num
grande país os trabalhadores já conseguiram isso. Para que façamos o mesmo quando chegar
aqui precisamos de um partido maximalista.
218
Após sua fundação, ainda conforme Santos Soares, a Liga editou um jornal e iniciou
um trabalho de sindicalização entre os operários santanenses, formando diversas
associações de trabalhadores, fazendo com que a organização não se fechasse em si mesma.
Em 1919 este grupo comandou a greve contra os frigoríficos Armour e Wilson, a primeira
greve do Rio Grande do Sul contra multinacionais, que contou com mais de 2000 grevistas.
Esta greve terminou com a fundação do Sindicato de Ofícios Vários, também sob influência
da Liga Comunista, o que parece confirmar a campanha de sindicalização a que Santos
218
Informações de Isaac Axelrud no artigo Santos Soares da Revista Problemas nº 39, Rio de Janeiro, 1952.
Reproduzidas em MARÇAL, João Baptista. Comunistas gaúchos. A vida de 31 militantes da classe operária.
Santa Maria: Tche. 1986. P 118-126.
144
Soares faz referência no depoimento
219
. Outro fato ressaltado pelo líder da Liga Comunista
é o papel do Uruguai como refúgio de perseguições e busca de material de propaganda, já
que era em Rivera que ele se escondia para produzir seu jornal.
No depoimento a Axelrud é destacada a paixão que o nome de Lênin e que as
imagens da revolução despertavam nas assembléias de trabalhadores, mas pouco se diz
sobre aqueles que fundaram a Liga. Apesar de parecer óbvio que a associação foi fundada
sob influxo da revolução russa, seria importante registrar a atuação do movimento operário
que havia antes deste influxo para saber quem poderia estar envolvido na sua formação.
Conforme Ivo Caggiani, em Livramento aconteceram episódios de mobilização importante
desde a década de 1880 promovidos pelos caixeiros, que procuravam garantir o descanso
aos domingos e em dias santos. Também foram organizadas quatro sociedades operárias
desde a década de 1880 até a década de 1910. No início desta década, ocorreram episódios
significativos para as organizações operárias, como a fundação do jornal anarquista A
Evolução, em 1911, que circulava em Santana do Livramento e na cidade uruguaia de
Rivera, além de ter ocorrido uma greve dos pedreiros e alfaiates em 1912. Esta greve é
importante porque, comandada pelo Grêmio Internacional dos Pedreiros, envolveu as
categorias de Rivera e de Santana do Livramento, tendo estes conseguido uma vitória
significativa, com a diminuição das horas de trabalho e o aumento dos salários. Em 1916
esta categoria entraria de novo em greve, pois os patrões quebraram o acordo de 1912, mas
novamente os pedreiros foram vitoriosos nas suas reivindicações
220
.
Foi um pedreiro, Santos Soares, o fundador da Liga Comunista em 1918. Também o
Centro de Resistência dos Ofícios Vários, fundado pela ação desta mesma Liga, tinha
Santiago Savi, um pedreiro, como Secretário Geral. Savi fora integrante da comissão de
greve dos pedreiros em 1912 e seria tesoureiro do Grêmio dos Pedreiros fundado em 1920.
Isto pode ser indício de que a Liga tenha surgido da ação de um grupo já com experiência
de luta, como os pedreiros, que sob influência das notícias que chegavam do movimento
revolucionário na Europa, resolveram fundar um grupo político radical.
219
CAGGIANI, Ivo. Sant’Ana do Livramento. 150 anos de história. v.3. Sant’Ana do Livramento: Edição do
Museu Folha Popular. 1986. pp.157-160.
220
CAGGIANI, Ivo. Ibidem. pp. 147-156.
145
Mesmo que esta fundação possa ser devedora da ação de militantes com uma
experiência anterior na cidade, as condições sob as quais passou a atuar a Liga Comunista
eram muito diferentes daquelas de alguns anos antes. Nas palavras de Caggiani:
Em 1917 a Companhia Armour do Brasil (Armour Of Brasil Corporation) adquiriu o
estabelecimento saladeiril pertencente a firma Anaya & Irigoien e em fins de 1918 a Companhia
Wilson iniciou suas atividades.
Sant’Ana, em vista disso, passou a ser um grande centro industrial do Rio Grande do Sul e do
Brasil.
Para movimentar essas organizações tornava-se necessária uma mão de obra qualificada e,
conseqüentemente, pelo volume dos abates, um maior contingente de operários.
Além de grande número de uruguaios e argentinos, também vieram para Sant’Ana, muitos
espanhóis que trabalhavam em frigoríficos das capitais platinas. E entre estes últimos avultavam
os anarquistas.
221
Muitos destes operários eram uruguaios, vindos de um país onde a legislação
trabalhista garantia o trabalho de oito horas por dia e seis dias por semana. No Brasil, onde
não havia tal legislação, eles tinham de trabalhar muito mais, o que deve ter contribuído
para o descontentamento dos trabalhadores. A greve que estourou em 1919 contra os
frigoríficos tomou enormes proporções, mobilizando a maioria dos operários efetivos dos
estabelecimentos
222
.
Foi neste contexto, da existência de um grupo de trabalhadores muito numerosos e
agrupados recentemente, trabalhando sob condições deterioradas, que a Liga Comunista iria
atuar. Apesar de Caggiani localizar uma União Operária em 1911, ele não registra sua
continuidade. Desta forma a Liga, nestes anos críticos, foi o organismo político que agiu
entre estes trabalhadores fomentando sua organização. Nas palavras de Caggiani:
Pedreiro de profissão, Santos Soares, jovem tribuno operário que inflamava as massas, dedicou-
se a pregar a união da classe operária e a organização em associações e sindicatos das mais
diversas categorias profissionais: construção civil, padeiros, etc.
221
CAGGIANI, Ivo. Op. Cit. 157.
222
Sobre a instalação do frigorífico e algumas características do trabalho na empresa ver: ALBORNOZ, Vera
do Prado Lima. Armour. Uma aposta no pampa. Editora do autor: Santana do Livramento, 2000. pp.91-125.
146
Assim, por sua influência, em plena greve dos operários das Companhias Armour e Wilson, foi
fundada uma associação denominada ‘CENTRO DE RESISTÊNCIA DE OFÍCIOS VÁRIOS’
223
O fato de não haver uma associação que congregasse os novos operários do frigorífico
fez da Liga Comunista uma referência quase natural para os trabalhadores recém
mobilizados. A Liga foi um instrumento de aglutinação e organização, o que deve ter
propiciado um enraizamento como organização de classe, explicando a sua continuidade
pela próxima década. Santos Soares permaneceria organizando as várias categorias de
trabalhadores em sua militância. Em 1920, o Centro de Resistência se transformaria no
Sindicato de Ofícios Vários, participando então do II Congresso Operário Regional, que se
reuniu em Porto Alegre em março daquele ano
224
. A própria Liga se desdobrou em Centro
Socialista, lançando o jornal O Socialista, em 1º de maio de 1921
225
. O grupo se ligaria ao
Partido Comunista Brasileiro, no qual Santos Soares militou até a sua morte, em 1951.
Outro destes grupos surgidos em 1918 foi o Centro Comunista de Passo Fundo. Deste
Centro só existe a notícia do seu aparecimento, não se sabe nem o nome do seu fundador,
nem as categorias de trabalhadores envolvidas neste ato. Um dos principais problemas para
o caso de Passo Fundo é a falta de documentação das associações de trabalhadores e sobre
suas mobilizações.
Segundo Alessandro Batistella, que estudou o movimento operário naquela cidade do
começo do século XX ao golpe de 1964, a principal organização de classe existente em
Passo Fundo durante a República Velha foi a Sociedade Operária Beneficente, que surgiu
em 1909 e existiu até a década de 30
226
. Esta era uma sociedade beneficente e recreativa,
que não tinha orientação política clara. Em 1913, A Voz do Trabalhador, jornal da
Confederação Operária Brasileira, publicou notícia da formação do Centro dos
Trabalhadores de Passo Fundo. O surgimento da nova associação seria, para o periódico,
um indício do despertar dos trabalhadores da cidade.
223
CAGGIANI, Ivo. Op. Cit. p.163.
224
PETERSEN Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos
operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001. p.377.
225
MARÇAL, João Batista. A Imprensa Operária do Rio Grande do Sul. (1873-1972). Porto Alegre. 2004.
p.240.
226
BATISTELLA, Alessandro. O movimento operário e sindical em Passo Fundo (1900-1964). Passo Fundo:
PPG em História da UPF, 2007. (Dissertação de mestrado) pp.58-59.
147
Os trabalhadores desta localidade estão despertando. Dizemos despertando porque assim o
demonstra clara e positiva uma correspondência que à Confederação dirigiu o Centro dos
trabalhadores e em que comunicava, com verdadeiro entusiasmo, a sua fundação e posse da sua
respectiva diretoria.
227
Adhemar Lourenço da Silva Junior supõe que este Centro surgiu da tomada de
controle da Sociedade Beneficente por uma facção radical, mas que isto não teve muito
sucesso, pois na próxima nota publicada os dirigentes se queixavam de que o Centro não
tinha a adesão dos trabalhadores, nem estes se mobilizavam
228
. O Centro deve ter sido
efêmero, pois não houve notícia posterior desta sociedade.
Pelo seu nome e por ter existido aquela associação anarquista até aquele momento,
parece provável que o Centro Comunista seja uma reedição desta tentativa de erguer um
Centro dos Trabalhadores politicamente engajado, como havia sido em 1913. Isto até
permite um paralelo com o caso de Santana do Livramento. Assim como na cidade
fronteiriça, não havia um centro operário que fosse mobilizador, somente uma União
Beneficente, e vivia-se um momento de mobilização, pois foram registradas greves
ferroviárias em Passo Fundo em 1917 e 1919
229
. A fundação do Centro Comunista poderia
ser, a exemplo da Liga Comunista, resultado da ação de militantes com experiência de luta,
mas sem uma associação que congregasse os operários em um momento de mobilização.
Passo Fundo não era uma cidade isolada das correntes de informação operárias.
Existem indícios do envio de um material do Grupo Comunista do Rio de Janeiro para
Passo Fundo, em 1919. Na edição de 13 de dezembro de 1919 do Spartacus, jornal do
grupo dirigente do Partido Comunista, está indicado a remessa de pacotes de exemplares
para Passo Fundo, pedidos por G. Coutinho e outros
230
. Este que encomendou é muito
provavelmente Guedes Coutinho, que aparece fazendo outra encomenda algumas edições
227
A Voz do Trabalhador. Orgam da Confederação Operária Brazileira. Rio de Janeiro, 1908 – 1915.
(Edição
fac-similar, com prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Centro de
Memória Sindical, 1985). Rio de Janeiro, p.1, 1º nov, 1913.
228
SILVA JR. Adhemar Lourenço. Notas sobre a organização operária em Bagé, Passo Fundo a Uruguaiana
(Até 1930). In: VI Encontro Estadual de História, 2002, Passo Fundo. Anais o VI Encontro Estadual de
História Ser Historiador Hoje, 2002. p.5.
229
O único texto n’O Syndicalista vindo de Passo Fundo é de um operário que escreve sob o pseudônimo de
Vigilante, no seu nº 7, de 4 de setembro, reclamando das condições de trabalho dos ferroviários.
230
Spartacus. Rio de Janeiro, p.4, 13, dez, 1919.
148
antes
231
. O socialista português Antonio Guedes Coutinho, que fora o organizador do
Partido Socialista em Rio Grande no fim do século XIX, estava neste período, conforma
Benito Schmidt, vivendo nas regiões coloniais da serra gaúcha, sendo que a maior parte das
suas cartas eram remetidas de Alfredo Chaves
232
. Não é impossível que, pela pouca
distancia e por ser Alfredo Chaves um importante entroncamento ferroviário, as notícias da
formação de um núcleo comunista tenham chegado até ele, e por intermédio de grevistas ou
outros militantes, pudesse ter ele prestado apoio a este núcleo comunista. Quando Guedes
Coutinho voltou escrever para jornais de Pelotas, em 1922, ele se mostrou muito
esperançoso quanto ao futuro da revolução russa e do bolchevismo, o que parece confirmar
a hipótese acima
233
.
Como foi observado, o Centro Comunista de Passo Fundo é de todos os grupos o
que menos deixou informações. Os grupos comunistas surgidos posteriormente em outras
localidades, como o Núcleo Comunista de Pelotas de 1919 e a União Comunista de Rio
Grande de 1920, ao menos têm registros de suas atividades ou mandaram publicar algum
manifesto. As informações sobre estes grupos são também parcas, mas da mesma forma
que fiz com a Liga Comunista e o Centro Comunista, tentarei a partir de algumas
inferências caracterizar o contexto do seu surgimento e no que se diferenciavam ou
aproximavam de outros grupos similares.
Sobre o Núcleo Comunista de Pelotas foram publicadas algumas notas no jornal O
Rebate. A primeira notícia apareceu no dia 30 de maio, na Coluna Operária do jornal,
anunciando uma reunião deste núcleo para o domingo próximo, às 14 horas, na sede da
Liga Operária
234
. No dia 5 de junho, a mesma coluna d’O Rebate anunciava um espetáculo,
para sábado e domingo seguintes, beneficiando respectivamente o Núcleo Comunista de
Pelotas e a Liga Operária de Pelotas
235
. Além destas pequenas informações, não se obteve
outros dados desse grupo comunistas.
231
Spartacus. Rio de Janeiro, p.4, 25, out, 1919.
232
Atual cidade de Veranopolis.
233
SCHIMIDT, Benito Bisso. Um socialista no Rio Grande do Sul. Antônio Guedes Coutinho. (1868-1945).
Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS. 2000. p.103.
234
O Rebate. Pelotas, p.1, 30 de maio, 1919.
235
O Rebate. Pelotas, p.2, 5, jun, 1919.
149
Quanto à União Comunista de Rio Grande, o que se tem dela é seu programa, cópia
do programa do Partido Comunista do Brasil, publicado n’O Nosso Verbo de Rio Grande à
12 de janeiro de 1920. O programa inicia com uma rápida analise da situação do
capitalismo e seus prejuízos para a sociedade, considerando que, apesar disso, o mundo
estava se transformando e que na Rússia o povo já estava conseguindo mudar a sociedade,
pela ação do partido comunista daquele país.
Levando isto em consideração, era apresentado um programa, calcado em sete pontos:
1. Abolição da propriedade privada que constitua a base para a exploração do trabalho alheio
passando a ser posta em comuna; ficando, porém, a pequena propriedade em poder dos
possuidores, sempre que seja do seu exclusivo usufruto. Será de livre alvitre dos possuidores de
pequena propriedade incorpora-las ou não à comunidade, mas não poderão em sua falta lega-las
e transferi-las à outrem e passarão a fazer parte do patrimônio comum. 2. A socialização de
todas as indústrias, agricultura, meios de transporte e de comunicação que serão administrados
pelas respectivas associações de classe ou dirigidas por profissionais competentes em cada ramo
de produção ou atividade. Os indivíduos encarregados de dirigir a produção e a atividade social
exercerão apenas função de direção, nunca de mando. 3. Regulamentar as horas de trabalho de
acordo com as necessidades de produção e consumo. 4. Estabelecer o trabalho obrigatório para
todos os indivíduos, segundo as suas necessidades, e estabelecer a troca recíproca entre as
comunidades urbanas e rurais. 5. Distribuir a produção entre os indivíduos, segundo as suas
necessidades, e estabelecer a troca recíproca entre as comunidades urbanas e rurais. 6. Será
acessível para todos, livre e completa, instrução racional. 7. Garantir absoluta liberdade de
pensamento e de reunião, para todos os indivíduos.
236
A apresentação terminava com uma intenção de fazer da propaganda escrita e falada o
meio de ação até “estabelecer uma aliança de indivíduos [...] diversas classes que possa
garantir o êxito da transformação que o Partido Comunista do Brasil se propõe a
realizar”. A ação partidária consistia na propaganda do comunismo e na arregimentação e
educação do proletariado “para a conquista dos poderes públicos, única forma pela qual
conseguirá realizar seu programa”
237
.
Beatriz Loner aponta para Zenon de Almeida como uma possível influência para a
formação destes grupos, já que ele militava nas duas cidades e em seus textos aparece um
vivo entusiasmo pela revolução russa e o comunismo
238
. Mas se for assim, haveria muitos
236
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.2, 12, jan, 1920.
237
Idem.
238
Ver nota 344 sobre o início da atuação dos comunistas em Pelotas e Rio Grande. LONER, Beatriz Ana.
Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). Pelotas: UFPel, 2001. p.377.
150
outros potenciais apoiadores da formação de grupos comunistas, tanto em Pelotas quanto
em Rio Grande. Mais significativo que atentar para o papel de um fundador é o fato destes
grupos estarem vinculadas às federações operárias de suas respectivas cidades. As
atividades do Núcleo Comunista estavam intimamente ligadas à Liga Operária pelotense,
ou seja, funcionava dentro desta. A publicação do programa comunista no jornal da União
Geral dos Trabalhadores é um forte indício de que associados desta entidade podem ter
jogado um papel importante na fundação da União Comunista. Estes já seriam parâmetros
interessantes para comparar o processo de surgimento dos grupos comunistas nas duas
cidades, mas há outro sinal que pode aproximar a formação destas associações em Pelotas e
Rio Grande: sua ligação com o recém formado Partido Comunista do Brasil.
Este partido (cujas ligações com o Rio Grande do Sul abordarei logo adiante), surgiu
no Rio de Janeiro em março de 1919, procurando congregar grupos de várias partes do
Brasil. O programa assinado pela União Comunista de Rio Grande era na verdade um
programa do Partido Comunista
239
. A União Comunista apresentou um programa do PCB
como se fosse o seu, o que a faz nascer já ligada a este organismo. Quanto ao núcleo de
Pelotas, o fato de se um “núcleo”, pode remeter a um centro principal, que seria o PCB.
Neste momento o Partido Comunista era responsável pela formação de uma série de
núcleos pelos subúrbios cariocas (Núcleo de Copacabana, Núcleo de Andaraí, Núcleo de
São Cristovão etc.) Além disto Santos Barbosa, que havia militado em Pelotas no início dos
anos 10, vivia na Capital Federal, onde atuava no mesmo grupo que os fundadores do
Partido no Rio de Janeiro. Ele mantinha ainda ligações com a cidade gaúcha, como se
observa por uma coluna que tinha no Rebate, onde passava informações sobre o movimento
operário no centro do país. Pode ter sido por influência sua, ou de suas informações, que
surgiu o tal núcleo.
É difícil deduzir a formação destes grupos apenas por alguma influência externa, ou
seja, que eles tenham surgido pela propaganda do grupo dirigente do Partido Comunista do
Brasil no Rio de Janeiro (como supus para o caso de Santos Barbosa). Parece plausível, no
entanto, que as associações surgidas depois do aparecimento de um Partido que se pretendia
nacional, tivessem já um modelo ou referência a que recorrer (o que deve ter sido caso da
239
O programa da União Comunista vinha inclusive assinado pelo Partido Communista do Brasil.
151
publicação do programa da União Comunista de Rio Grande). De qualquer maneira, não se
pode descartar como fator de surgimento dos grupos comunistas a própria necessidade das
federações locais, como a Liga Operária e a União Geral dos Trabalhadores, de organizar,
ao menos como parte de sua estrutura, um grupo comunista, o que poderia dar prestigio e
ligá-las a um movimento que se desenvolvia no resto do Brasil e no mundo.
Mesmo baseado mais em suposições do que em fatos para a analise destas três últimas
associações comunistas, pode-se perceber a importância das condições locais, do grau de
organização da classe ou mesmo o momento de surgimento para caracterizar estas
associações. Condições que acabam distinguindo-as umas das outras em seu surgimento e
sua importância.
Até aqui estudei apenas Uniões, Núcleos, Centros etc. A última associação comunista
que localizei foge destas características por ser marcadamente uma sociedade de classe: o
Sindicato Gráfico Comunista de Porto Alegre.
A formação deste sindicato foi anunciada por A Federação, em 30 de janeiro de 1920,
dando a nominata da primeira diretoria e algumas atividades que pretendiam ser
desenvolvidas:
Em sessão realizada a nove do mês findo, foi fundado nesta capital o Sindicato Gráfico
Comunista que, segundo suas bases, se destina ao aperfeiçoamento das artes e ao
desenvolvimento da classe.
O sindicato irá adquirir oficinas e manterá anexa uma aula de estudos sociais e irá realizar
conferências mensais.
A primeira comissão diretora e auxiliar que será em caráter provisório: 1º Secretário, Heitor
Gomes Dias; 2º secretário, Arnaldo Oliveira; Tesoureiro, Ezequiel Oliveira. Comissão Auxiliar:
Oscar Closs, Victor Moraes, Izidoro Holisoer.
240
O fato de ser um Sindicato, e não um Centro ou Núcleo supraclassista, deve orientar a
explicação da sua criação à categoria dos gráficos ou tipógrafos. Os tipógrafos sempre
estiveram entre as principais lideranças operárias, pelo seu acesso à cultura letrada e às
240
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Op. Cit. p.373.
152
informações dos jornais que compunham
241
. Este grupo de trabalhadores tinha uma longa
tradição organizativa em Porto Alegre, com a União Tipográfica funcionando desde 1910.
Adhemar Lourenço da Silva Júnior identifica uma crise dentro desta associação por ocasião
do irrompimento da greve geral de 1917: “o presidente da entidade de classe havia
renunciado por motivos ignorados e o tipógrafo que era secretário da FORGS fora
desacreditado na reunião de 29 de julho”
242
. Além disso, os tipógrafos haviam entrado em
greve sem a adesão da entidade e voltaram ao trabalho apesar de uma decisão contrária
tomada em assembléia.
A associação de tipógrafos ou gráficos era uma União e não um sindicato, tendo
resultado da junção de grupos sob orientação de socialistas e anarquistas. Congregava
trabalhadores de diversas correntes e sofrera em 1917 uma crise de legitimidade. Como o
período de mobilização e efervescência que vai até 1920 repercutiu sobre ela? Haveria
alguma ligação entre a União em crise e o aparecimento, anos depois, do Sindicato
Comunista?
Diferente das sociedades de Passo Fundo, Pelotas e Rio Grande, que são para nós
totalmente anônimas na medida em que nada se sabe sobre seus componentes, existe a
nominata de fundação do Sindicato Gráfico Comunista de Porto Alegre para ajudar a
formular algumas respostas. Um nome aparece ligado à União Tipográfica quatro anos
antes, em 1916: Oscar Closs; outro é do antigo secretário da FORGS, o tipógrafo
desacreditado na reunião de 29 de julho de 1917, Ezequiel Oliveira. Além do mais, o
representante do Sindicato no 2º Congresso Operário de 1920 era Orlando Martins, irmão
de Henrique Martins (sob pseudônimo de Cecílio Villar), cuja ligação com esta associação
se evidencia por ter participado como jurado em um concurso promovido para a escolha
dos melhores tipógrafos em 1916
243
.
Apesar destas “deserções”, a União Tipográfica continuaria existindo. Em dezembro
de 1921 o Correio do Povo publicou noticias sobre a eleição da sua nova diretoria, cujo
241
Sobre a cultura associativa dos tipógrafos no século XIX, ver VITORINO, Artur José Renda. O sonho dos
tipógrafos na Corte Imperial brasileira In: BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes (org) Culturas de
Classe: identidade e diversidade na formação do proletariado. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 167-204.
242
SILVA JR. Adhemar Lourenço. "Povo! Trabalhadores!”: tumultos e movimento operário (estudo
centrado em Porto Alegre 1917). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 1994. (dissertação de mestrado)
p. 300.
243
Idem.
153
presidente era Plínio de Freitas, militante que entrara em atrito com os anarquistas da
FORGS em 1918, tendo na Comissão Técnica Francisco Xavier da Costa
244
.
Observando estas sociedades distintas, que agrupavam trabalhadores gráficos e
tipógrafos, pode se supor que o Sindicato Gráfico Comunista era uma dissidência ou uma
alternativa à União, que não conseguiu passar incólume pelo agitado período que vai de
1917 à 1920. O nome de Ezequiel Oliveira na nova associação, que aparece anos antes
como um vacilante e desacreditado dirigente da FORGS, mostra que a formação do
Sindicato Comunista não precisa ter obedecido a uma separação preexistente entre radicais
e moderados (ou entre socialistas e anarquistas). Provavelmente seria resultado de uma
reorganização feita por um grupo que desejou vincular seu nome ao comunismo, porque
procurava nele um significado radical que os fizesse se separar de uma União em que
atuavam até membros do Partido Republicano Riograndense, como Xavier da Costa.
Estas foram as associações comunistas ou maximalistas surgidas no Rio Grande do
Sul entre 1918 e 1920. Como no caso da União Maximalista, suas congêneres de outras
localidades não adotaram formas radicalmente novas de ação entre os trabalhadores.
Mesmo assim, alguns destes grupos jogaram um papel muito importante entre as
sociedades operárias e entre as categorias de trabalhadores mobilizados. Talvez, para além
dos fatores específicos de momento e lugar já destacados, tenha contribuído para o sucesso
de grupos como a Liga Comunista de Livramento ou a União Maximalista de Porto Alegre,
a própria identificação com a revolução, mesmo que seus princípios teóricos não fossem
plenamente conhecidos.
Retomarei isto no fim do capítulo, onde pretendo discutir, entre outras coisas, o
significado do maximalismo e a legitimidade destas associações para falar em nome da
revolução. Por agora parto para a relação do movimento operário gaúcho com os grupos
comunistas de Rio e São Paulo.
244
Correio do Povo. Porto Alegre, p.4, 8, dez, 1921.
154
5.2. Relação com os grupos comunistas de São Paulo e Rio de Janeiro
Não se pode falar de grupos políticos surgidos sob influência da revolução russa e
esquecer que em outras partes do país grupos similares também se formavam,
estabelecendo profícuos contatos com as associações operárias do Rio Grande do Sul,
ajudando a propagar informações sobre a revolução russa e articulando ações que
ultrapassaram os limites locais. Esta dimensão inter-regional sempre foi importante para o
movimento operário, pois a “transumância” dos militantes, a circulação dos jornais
operários e a estrutura federal da COB, ajudavam os diversos movimentos locais a não se
isolarem
245
. No contexto estudado, o grupo cujas ações se tornam mais relevantes neste
aspecto é o já referido Partido Comunista do Brasil, surgido no Rio de Janeiro, em março
de 1919.
Não existem muitos estudos sobre este partido, possivelmente pela visão negativa
posteriormente desenvolvida pelos seus próprios formadores: os que aderiram ao
comunismo, pela permanência de muitos ideais anarquistas que norteavam seu surgimento,
e os que permaneceram anarquistas, por se sentirem enganados pela nova forma partidária.
Conforme Jacy Alves de Seixas, este “partido” não era simplesmente uma continuação dos
pressupostos anarquistas nem sua formação deveu-se somente à falta de informações do
que ocorria na Rússia, mas é um importante ponto de ruptura na tática dos militantes:
Por um lado não se deve negligenciar que a teoria do partido constitui uma parte essencial do
leninismo. No momento em que os anarquistas ou os sindicalistas revolucionários se engajam
em uma empresa semelhante, por mais anarquista que ela seja, ela continua sendo um “partido”,
inserido em uma estratégia particular, pressupondo uma centralização de decisões, uma
disciplina. Não seria o caso então nem de minimizar-se a importância do “efêmero partido
comunista criado pelos anarquistas” em 1919, nem de considerar-se simplesmente um tributo
pago à revolução russa, não aportando “nenhuma modificação nas concepções de base
corrente”.
246
245
PETERSEN Sílvia Regina Ferraz Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária
brasileira. In: ARAÚJO, Angela M. C. (org.). Trabalho, cultura e cidadania. S. Paulo, Scritta, 1997. pp.93-
101.
246
De une part, on ne doit negliger que la théorie du parti demeure une partie essenciel du leninisme. Au
moment oú des anarchistes ou syndicalistes révolutionnaires s’engagent dans une enterprise pareille, pour
plus “anarchiste” qu’il soit, il reste toujour um “parti”, inséré dans une strategie particulière, presupposant une
centralisation des decisions, une discipline. On ne saurait donc ni minimiser l’importance de “léphemere parti
communiste créé par les anarchistes” en 1919, ni le considérer simplisment comme un tribut payé à la
155
Mesmo reconhecendo a importância deste “partido”, a autora considera o primeiro
Partido Comunista do Brasil
247
como uma experiência que se deveu à ação dos libertários
do Rio de Janeiro, congregados na Aliança Anarquista, “mal tendo criado raízes em São
Paulo”. Apesar desta afirmação de Jacy Alves de Seixas, percebe-se pelas páginas do
Spartacus, que era o órgão onde escreviam os formadores desta agremiação, que houve a
formação de uma extensa rede de informações e contatos com este grupo, o que se
depreende tanto pela origem das notícias, quanto pelos locais a que o periódico era
remetido. O Congresso Partidário em junho daquele ano, realizado no Rio e em Niterói,
pode ter sido uma tentativa de dar mais organicidade a estes contatos, muitos dos quais com
certeza já existiam antes da formação do partido, por intermédio da COB, por exemplo.
Mais que o resultado do arrojo dos militantes da Capital Federal, a formação do PCB
e a tentativa de estabelecer vínculos com diversas partes do país, aparece como fruto de um
momento específico do movimento operário no Brasil, em que as condições nas quais vivia
a classe operária do país e as notícias que vinham da Europa foram dois importantes
ingredientes de uma mobilização intensa que extrapolou as fronteiras estaduais.
Diferente dos períodos de congressos operários, onde a mobilização nacional deve-se
a um esforço organizativo pontual, nestes anos a formação de uma rede de informações e
solidariedade se deu pela experiência das lutas locais e as expectativas criadas diante dos
fatos mundiais. A idéia de um “Congresso Geral da Vanguarda Social do Brasil”, ou seja,
uma tentativa de formar uma organização que fosse além dos parâmetros regionais, já
aparece no inverno de 1917, primeiro ano da revolução russa, pelas páginas d’A Plebe de
São Paulo
248
. Mas é somente em 1919 que se encontra a conformação de um partido como
o PCB.
As primeiras notícias deste partido aqui no Rio Grande do Sul apareceram n’O
Syndicalista, de Porto Alegre, informando sobre a fundação da entidade e publicando um
Revolution russe, n’apportant “aucune modification dans les conceptions de base courant”. SEIXAS, Jacy
Alves de. Memoire et Oubli: l'anarchisme et le syndicalisme revolutionnaire au Brésil. Paris: Editions de la
Maison des Sciences de l'Homme, 1992. p. 247.
247
Daqui a diante chamarei de PCB ou Partido Comunista do Brasil, ficando subentendido que se trata da
primeira experiência.
248
A Plebe. São Paulo, p.2, 18, ago, 1917.
156
pequeno programa de intenções
249
. Além das notícias, circularam no estado alguns
materiais oriundos do Rio de Janeiro e que foram enviados a Porto Alegre, dos quais há
informação por terem sido anexados a um processo contra participantes da greve de
setembro de 1919
250
. Entre eles estão as “Bases de acordo do Partido Communista do
Brazil
251
”. Este era um programa bastante simples, de oito pontos, que tratava do ingresso
no partido, da organização de núcleos regionais e do seu inter-relacionamento. Um
documento mais detalhado, intitulado “Programa do Partido Comunista do Brasil”
também circulou aqui, mais profundo que as simples bases de acordo
252
. Estes documentos,
divulgando o programa do partido e suas bases de acordo, parecem ser parte de um esforço
dos seus fundadores para fazer surgir núcleos em várias partes do Brasil, o que pode se
comprovar por outra circular do seu secretariado:
Diante do entusiasmo que reina nas classes trabalhadoras e no povo em geral, pelos movimentos
que se desenrolam no mundo tendentes a uma transformação social e amplamente baseados nas
idéias comunistas, os libertários do Rio de Janeiro reunidos a 9 do corrente mês, acordaram
formar o Partido Comunista do Brasil, afim de desenvolver ativa propaganda no sentido de
formar núcleos em todas as localidades do país.
Para esse fim, contando que seja secundado pela tua ação nessa localidade, te enviamos anexas
as bases, o resumo do programa e os meios de ação.
Avante, pois, na formação do número de núcleos possíveis, consoante as bases.
253
Uma outra relação entre o grupo comunista do Rio de Janeiro e a militância do Rio
Grande do Sul pode ser estabelecida por intermédio do Spartacus, que, como já afirmei, era
o jornal onde os militantes que haviam formado o Partido Comunista escreviam. Não
encontrei subtítulo contendo algo como “Orgam do Partido Communista”, mas havia
notícias das atividades do núcleo do Rio de Janeiro e das localidades suburbanas da Capital
Federal; além de informações de grupos comunistas em outras partes do Brasil,
249
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 17, jun, 1919.
250
Os materiais encontrados no Processo Crime 1016, movido contra o operário Cândido José da Silva, por
este ter sido acusado de atirar contra a Brigada Militar no conflito de setembro de 1919, estão no Arquivo
Público Estadual do Rio Grande do Sul.
251
Bases de Acordo do Partido Comunista do Brasi. Impresso do Partido Comunista do Brasil:Rio de janeiro,
1919.Processo Crime 1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
252
Partido Communista do Brazil. Impresso do Partido Comunista do Brasil: Rio de Janeiro, 1919. Processo
Crime 1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
253
Circular do Secretariado. Impresso do Partido Comunista do Brasil: Rio de Janeiro, 23, mar, 1919..
Processo Crime 1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
157
especialmente de São Paulo. Ademais, as informações relacionadas à situação européia,
especialmente russa, eram abundantes.
Este jornal tinha um sistema de “pacotes”, encomendas do Spartacus a serem
remetidos para fora da Capital Federal. Como “pacoteiros” aparecem muitos nomes do Rio
Grande do Sul, alguns mais de uma vez: Abílio de Nequete, Polydoro Santos, G. Coutinho
de Passo Fundo, a UGT do Rio Grande do Sul, Aguilar, de Pelotas, Pedro Bischoff, de Rio
Grande. Todos, em algum momento, encomendaram pacotes com jornais para a
distribuição no estado. Pode ser visto também um caminho inverso, em que materiais do
Rio Grande do Sul ou opiniões de operários gaúchos aparecem neste jornal. Assim, no dia
25 de outubro, na seção de brochuras para venda havia Ferrer Como Educador, editado
pela FORGS, e nesta mesma edição, na seção Os Nossos Jornais, aparecia A Dor Humana
de Bagé
254
. Neste dia o jornal também recebeu o apoio de operários do Rio Grande do Sul
ao manifesto lançado pelo Spartacus, no seu número 9, Os Anarquistas Brasileiros: Ao
povo
255
. Assinavam o apoio: Armando Martins, Gráfico; Djalma Fetermann, Professor
Público; Nino Martins, Impressor; Orlando de Araújo e Silva, Empregado no Comércio;
Orlando Martins, Gráfico; Polydoro Santos, Gráfico e Zenon de Almeida, Professor. Ainda
em relação a militantes operários gaúchos, no dia 10 de janeiro de 1920, existe uma
mensagem um tanto enigmática de Polydoro Santos para algum dos redatores do jornal: Em
mãos tua carta. O homem está são e salvo. O caso do Supremo resolve-se afinal
favoravelmente e está liquidada de vez. Tens toda a razão no que dizes. Saúde
256
. O mais
provável é que se refira à Joaquim Pimenta, líder operário paulista, participante da greve
daquele ano e que ainda estava no Rio Grande do Sul devido à sua deportação.
Além da troca de jornais, panfletos e telegramas, Santos Barbosa também representou
um elo de ligação entre o PCB do Rio de Janeiro e o movimento operário do Rio Grande do
Sul. Santos Barbosa era o diretor do Spartacus
257
, mas mantinha uma coluna esporádica
n’O Rebate de Pelotas. Sua posição entre os militantes do Rio fez desse espaço no jornal
pelotense um canal privilegiado para a propaganda das idéias revolucionárias e das
254
Spartacus Rio de Janeiro, p.4, 25. out. 1919.
255
Spartacus. Rio de Janeiro, p.1, 27, set, 1919.
256
Spartacus. Rio de Janeiro, p.4, 10. jan. 1920.
257
Isto pode ser comprovado pelos militantes que produziam o jornal, cujos nomes foram publicados no seu
primeiro número.
158
atividades do movimento operário na Capital Federal. No dia 6 de março, O Rebate
publicou uma entrevista com o anarquista Fábio Luz, em que um dos temas tratados era a
viabilidade da revolução maximalista no Brasil
258
. No dia 19 de abril, o tema foi a
conferência que o Partido Comunista havia realizado para responder a Ruy Barbosa e que
havia deixado patente a importância de discutir a questão social no país. Além do mais,
dava conta da rápida aceitação das idéias maximalistas no norte do Brasil, conforme as
notícias da Tribuna do Recife
259
.
Em outra ocasião, a 7 de maio, O Rebate publicou uma esperada entrevista com o Dr.
Kessler, representante da República Russa dos Soviets no Brasil, em que este dissertava
sobre as conquistas bolchevistas na Rússia. O tal Kessler era na verdade, conforme Moniz
Bandeira, o advogado carioca Roberto Feijó, que publicou com este pseudônimo algumas
cartas no jornal A Época, do Rio de Janeiro
260
. Seria difícil dizer se a entrevista foi feita
com Feijó ou inventada por Barbosa, mas sua publicação e o mistério no qual foi envolta
mostra que a imaginação da vinda de um representante soviético devia mexer com as
expectativas das pessoas, especialmente com os militantes. Havia, inclusive, no material
apreendido em Porto Alegre por ocasião da greve de setembro de 1919 e anexado no
devido processo, dois panfletos deste representante russo
261
. O mistério da figura de
Kessler era reforçado pelo final da entrevista, em que o delegado afirmava ter acabado sua
missão no Brasil, estando de partida, incógnito, para a América Central...
Outro elo de ligação com grupos comunistas do centro do país se deu por intermédio
dos anarquistas de São Paulo que editavam o jornal A Plebe, pois estes formaram um Grupo
Comunista, que se transformou em Partido Comunista, como acontecera no Rio de Janeiro.
A Plebe, como o Spartacus, também era remetida para diversas partes do país e em seu
conteúdo existia farto material sobre o movimento revolucionário internacional, sobre o
movimento operário em diversos estados e sobre estabelecimento de núcleos comunistas
especialmente em São Paulo. Algumas reportagens encontradas n’O Syndicalista de Porto
258
O Rebate. Pelotas, p.1, 6, mar, 1919.
259
O Rebate. Pelotas, p.1, 7, maio, 1919.
260
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O ano vermelho. A revolução russa e seus reflexos no Brasil. São
Paulo: Expressão Popular, 2004. pp.338-339.
261
Carta Manifesto. Aos trabalhadores- Manifesto do Delegado da República Russa dos Soviets aos
Operários da República Burguêsa dos Estados Unidos do Brazil, 1919. e Aos trabalhadores. O maximalismo-
Segundo Manifesto do Delegado da República Russa dos Soviets aos Operários da República Burguêsa dos
Estados Unidos do Brazil, 1919. Processo Crime 1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
159
Alegre sobre a revolução russa tiveram origem no A Plebe, como uma crítica à notícia da
falsa morte de Kropotkin, que saiu no dia 5 de abril no jornal paulista e foi reproduzida no
jornal de Porto Alegre à 7 de junho
262
. A matéria sobre as condições de vida na Rússia
revolucionária, A Revolução Social na Rússia e a Calúnia Burguesa, que apareceu dia 2 de
agosto n’O Syndicalista teve sua primeira versão na Plebe de 19 de julho
263
. A Plebe
também publicou notícias sobre o movimento operário do Rio Grande do Sul, como a
preparação para o 2º Congresso
264
e as informações sobre o massacre decorrente da greve
de Rio Grande
265
.
Como no caso do Spartacus, A Plebe também tinha um sistema de pacotes,
aparecendo como pacoteiros a União Operária Internacional e Polydoro Santos, o que
garantia a chegada destes volumes para o estado. Além do jornal, é importante citar que o
livro editado pelos militantes do PC de São Paulo para explicar a nova doutrina russa, “O
Que é Maximismo ou Bolchevismo: O Programa comunista”, de Antonio Nazianzeno
Candeias Duarte e Edgar Leuenroth, já era oferecido pel’O Syndicalista a 3 de setembro de
1919, pouco tempo depois de sua edição na capital paulista
266
.
Foquei aqui a relação do movimento operário do Rio Grande do Sul com os recém
formados grupos comunistas dos principais centros do país, Rio de Janeiro e São Paulo. É
importante ressaltar, no entanto, que esta análise não abarca toda a rede de relações
estabelecida entre os operários gaúchos e outras regiões do país. A ligação com outros
centros regionais, como o Paraná ou Minas Gerais, onde também se formavam grupos
comunistas, não foi possível de ser examinada por falta de tempo e material. A forma de
rastrear a difusão de informações, pelo sistema de pacotes, também não dá totalmente conta
da rede de contatos formada pelos militantes, visto que muitos destes jornais eram lidos e
repassados para outras localidades. Um bom exemplo é o pequeno jornal da Sociedade
Beneficente União dos Artistas de Uruguaiana, A União, que publicou em 22 de novembro
de 1919 um texto de Sebastien Faure sobre a atitude anarquista diante do bolchevismo e um
262
A Plebe. São Paulo, p.3, 5, abril, 1919.
263
A Plebe. São Paulo, p.2, 19, jul, 1919.
264
A Plebe. São Paulo, p.3, 5, abril, 1919.
265
A Plebe. São Paulo, p.4, 24, mai, 1919.
266
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 3, set, 1919.
160
texto sobre os deportados do Rio de Janeiro
267
, ambos oriundos do Spartacus, mesmo que
no jornal carioca, entre os exemplares pesquisados, não tenha existido nenhum pedido de
remessa para Uruguaiana.
De qualquer forma a difusão de informações através do país não começou por causa
das notícias da revolução russa ou para fazer propaganda do recém fundados grupos
comunistas, mas se remete às origens do jornalismo operário no Brasil. O fato é que a
intensidade das mobilizações, o entusiasmo com as novas organizações e os textos eivados
de linguagem revolucionária, passados de mão em mão, deviam potencializar o resultado
destas práticas. Vendo por este lado, não parece tão estranho o surgimento de grupos
comunistas em localidades distantes como Santana do Livramento e Passo Fundo.
Mais difícil que rastrear esta difusão de informações é rastrear os laços de
solidariedade entre os diversos grupos comunistas do Rio Grande do Sul. Não consegui
encontrar ligação entre eles e é possível que nem tenha havido. Já em termos nacionais,
houve um momento de reunião dos diversos grupos comunistas do país em junho de 1919,
no referido Congresso organizado por iniciativa dos militantes do Rio.
Deste Congresso se conhece algumas resoluções e um programa escrito por Oiticica,
publicado no Spartacus. Estiveram presentes representantes de Alagoas, da Capital Federal,
de São Paulo, de Minas Gerais, do Estado do Rio, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul,
mas o representante riograndense não é conhecido. Na verdade, não encontrei em nenhuma
fonte a nominata destes delegados. A União Maximalista declarou-se ligada ao Partido
Comunista no já citado panfleto em que criticava duramente a atitude da polícia carioca
contra aquele Congresso, mas nas memórias de Nequete não há nada que faça crer que ele
tenha estado no Rio e em Niterói naquele ano. Em termos de possibilidades, um dos mais
fortes candidatos a ser um dos representantes das organizações gaúchas no Congresso era
Santos Barbosa, pelos laços que tinha com o estado, pela posição que ocupava entre os
formadores do partido e por sua residência no Rio de Janeiro. Sobre outros militantes que
poderiam ter comparecido, seus locais de origem e organizações à que eram filiados, nada
se sabe.
267
A União. Uruguaiana, p.3-4, 22, nov, 1919.
161
Fazendo a reconstituição das ligações entre os núcleos comunistas do Rio de Janeiro e
São Paulo com o movimento operário do Rio Grande do Sul, pode-se tirar algumas
conclusões sobre a dinâmica destas relações. As que foram aqui analisadas, mostram a
persistência de um tipo de ligação que é uma das características dos contatos inter-regionais
da militância na República Velha: a troca de jornais e panfletos por intermédio de uma
densa rede de contatos entre os militantes
268
.
Estudando estas conexões pode-se chegar, por exemplo, à origem das informações e
discussões relacionadas à revolução russa, como foi o caso de alguns artigos encontrados
no A Plebe. Talvez seja até o caso de observar, através de estudos mais detidos, como uma
forma tradicional de contato dentro do movimento operário brasileiro pode adquirir um
novo sentido (ou até novos efeitos) quando empregado para difundir informações
revolucionárias ou para promover a formação de núcleos partidários regionais; esta sim
uma forma nova de contato dentro de um movimento operário predominantemente
influenciado pelas idéias libertárias.
Mas a formação de um Partido nacional por militantes anarquistas não foi a única
forma nova de articulação, influenciada pela revolução russa, que o movimento operário
gaúcho manteve com os grupos comunistas do centro do país. Em minhas pesquisas
descobri que militantes gaúchos estiveram envolvidos em uma ação pouco documentada,
que teria por objetivo repetir no Brasil o que acontecera na Rússia em outubro de 1917,
tentando deflagrar uma insurreição maximalista.
5.3. Participação dos militantes gaúchos na insurreição maximalista de 1919
Em outubro de 1919, conforme escreve Abílio de Nequete em seus Cadernos de
memórias
269
, o gerente do A Plebe de São Paulo (que o fundador da União Maximalista não
identifica) veio ao Rio Grande do Sul e hospedou-se na Escola Moderna. Este militante
vinha pedir que os operários do Rio Grande do Sul aderissem a um movimento
268
Sobre a importância dos jornais para se estudar casos que extrapolem o âmbito da história local ver
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira.
IN: ARAÚJO, Angela M. C. (Org.) Trabalho, Cultura e Cidadania. S. Paulo, Scritta, 1997. pp.100-101.
269
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Anotações dos cadernos de Abílio de Nequete. Datilografado. s/d.
162
revolucionário que seria deflagrado em São Paulo. Da reunião que as sociedades do Rio
Grande do Sul promoveram para responder ao delegado de São Paulo, ficou decidido que
Abílio de Nequete iria a Rio Grande e Pelotas para lá fazer irromper a greve geral quando o
movimento paulista começasse. A senha para o início da movimentação seria: “Mandei o
Trigo”.
Abílio de Nequete relata que durante a reunião com o delegado revolucionário, feita
na Escola Moderna, Zenon de Almeida propusera formar um novo organismo de atuação
operária, dissolvendo os que já existiam. É interessante lembrar que neste mesmo período
Zenon editava um jornal chamado Spartacus do Sul (que era também seu pseudônimo),
nome similar ao jornal produzido pelo Partido Comunista no Rio de Janeiro. Nequete se
negou a aprovar a proposta e o novo organismo teria “morrido na casca”. Quanto ao
movimento de São Paulo, foi dizimado pela polícia por causa de uma bomba que explodiu
prematuramente, resultando em inúmeras deportações de militantes. Para Abílio de
Nequete, a viagem à Rio Grande teria servido para dar início à sua formação marxista, pois
lá encontrou o primeiro livro de Trotsky e muitos endereços do exterior, ocasião que ele
aproveitou para pedir que fosse enviado de Buenos Aires o semanário Documentos del
Progresso.
Os Cadernos foram escritos em 1943; o tempo e as guinadas teóricas de Abílio de
Nequete devem tê-lo levado a reorganizar a memória e os fatos ocorridos naquele ano de
1919, assim como o desejo de prestar contas a si mesmo e a outros sobre seu passado.
Entretanto a possibilidade dos operários de São Paulo tentarem uma “revolução” não é
absurda. Se lembrarmos o antecedente do Rio de Janeiro em novembro de 1918, haveria já
um episódio de putsch para servir de exemplo. Esta revolução estaria ligada ao sucesso da
revolução russa na Europa, especialmente por que os acontecimentos na Rússia são temas
constantes no A Plebe durante o ano de 1919; Abílio chega a comentar nos Cadernos que,
diferente de Porto Alegre, os operários paulistas não tinham medo da revolução russa.
Este é um episódio com pouco destaque na história do movimento operário brasileiro.
Cristina Ebling Campos, que dá destaque aos episódios de repressão ocorridos em outubro
de 1919 em São Paulo, se refere não a uma revolta, mas a uma greve geral que estava sendo
preparada na capital paulista, mas que foi prejudicada pela explosão de uma bomba, não
163
permitindo a articulação do movimento: “A repressão foi muito intensa e a imprensa,
convencida da natureza “política” da greve, apoiou a polícia que se dedicava a divulgar a
existência de planos insurrecionais”
270
. Estes “planos insurrecionais” foram admitidos por
Everardo Dias, um dos líderes deportados naquela ocasião, em seu livro História das lutas
sociais no Brasil, publicado no início dos anos 60. Depois da tentativa fracassada de
levantamento em 1918, no Rio de Janeiro, e da repressão que se seguiu, os sindicatos
voltaram a se organizar e “o pensamento dos elementos mais emancipados culturalmente e
revolucionariamente voltou a persistir na preparação mais cuidadosa e numa amplitude
nacional mais direta e efetiva de um movimento com caráter eminentemente Sovietista”
271
.
As notícias da revoltas na Europa e a situação de carestia que vivia a população
configuravam um “período pré-insurrecional latente”:
Esse movimento devia irromper simultaneamente no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, Paraná,
Rio Grande do Sul (1919). Estava articulado de forma a prever qualquer deficiência a tempo e a
hora, e dar-lhe solução imediata. Mesmo assim, a precipitação de uma corporação de transportes
[...] provocou brutal repressão, pronta e antecipada, da polícia. [...] Tais fatos inesperados e
surgidos de forma tão desconcertante causaram o adiamento do movimento, que não mais
conseguiu coesão e firmeza, devido a prisão de dezenas e dezenas de líderes, deportação de
grande número e ocultamento de outros
272
.
Admitindo a existência deste plano para um levante em São Paulo, existiria então,
neste período, uma multiplicidade de contatos com organizações operárias comunistas de
outras partes do Brasil. Por um lado, haveria a troca de material e de informações, como no
caso dos panfletos enviados pelo recém formado Partido Comunista do Brasil e da
circulação das notícias veiculadas pelo jornal Spartacus e pelo A Plebe; de outro, haveria
novos tipos de laços, como o estabelecimento de ligações partidárias e a existência de um
plano conspirativo que envolveria as associações do Rio Grande do Sul, tendo inclusive a
visita de um representante “revolucionário” e um plano de ação estabelecido. Não posso
afirmar peremptoriamente que exista uma ligação entre a insurreição paulista e os grupos
comunistas de Rio e São Paulo, mas sua realização indica uma relação muito provável.
270
CAMPOS, Cristina Ebling. O sonhar libertário: movimento operário nos anos de 1917 a 1921. Campinas:
Pontes/UNICAMP. 1988. pp.72-75.
271
DIAS, Everardo. História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Edaglit. 1962. p. 90.
272
Ibidem. p. 91.
164
Independente disso, tanto a circulação de informações, quanto a formação de laços
partidários e a participação em um plano revolucionário, apontam para um contexto de
difusão de informações e possibilidades de ação da militância operária despertadas pela
revolução russa. Isso se deve tanto ao acúmulo das lutas anteriores quanto aos exemplos
que vinham de fora do Brasil, fazendo parte da experiência da classe operária naquele
momento. Dela resultaram novos arranjos, expectativas e frustrações; modificando os
caminhos da militância tanto nacional como regionalmente.
Apesar do referido levante não ter se concretizado aqui no Rio Grande do Sul, o
debate ocorrido na reunião e o próprio lugar onde esta foi realizada (Escola Moderna)
levantam algumas questões. Abílio de Nequete teria mais legitimidade para falar da
revolução que Zenon de Almeida, por ser este líder de um grupo “maximalista”, enquanto
Zenon era figura uma destacada da União Geral dos Trabalhadores de Rio Grande? Como
Zenon, mesmo não sendo de um grupo maximalista ou comunista, se envolveu no projeto?
O fato de a reunião ser realizada na Escola Moderna, tradicional reduto anarquista da
capital, tem algum significado? Para lá das questões particulares daquele momento está um
problema mais de fundo. A União Maximalista teria mais legitimidade do que as outras
associações em assuntos relacionados ao modelo revolucionário russo? Ou, colocando de
outra forma, alguma característica peculiar, como a origem não anarquista de seu líder,
tornaria a União Maximalista, mais “maximalista” que outros grupos militantes?
Estas duas perguntas, da maneira que estão colocadas, ajudam a relativizar uma certa
tradição que atribuiu papel preponderante à União Maximalista e à Abílio de Nequete como
precursores do comunismo dentro do movimento operário gaúcho. Esta visão foi muito
influenciada pelo papel posterior que este teria como primeiro presidente Partido
Comunista do Brasil (1922) e pelo fato de ele não ser anarquista
273
. Quanto ao primeiro
ponto, a legitimidade que a União Maximalista poderia ter para falar em nome da revolução
ou do comunismo internacional, se algum dia existiu, só seria conseguida a partir de um
273
Para a história operária regional, ver PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz e LUCAS, Maria Elizabeth da
Silva. Antologia do movimento operário gaúcho: (1870-1937). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1992
e PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas dos
operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001. Para a história
operária nacional, ver VINHAS, Moises. O partidão: a luta por um partido de massas, 1922-1974. São Paulo:
HUCITEC, 1982 e FOSTER DULLES, John. Anarquistas e comunistas no Brasil ( 1890-1960 ). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
165
processo posterior que a aproximou da Internacional por contatos nos países platinos;
quanto ao segundo ponto, acredito que o fato de Nequete ser um livre pensador eslavófilo e
espírita não o aproxime mais do bolchevismo que os outros militantes anarquistas. Além do
mais, o número de grupos que se autodenominaram “comunistas” formam um espectro bem
mais amplo e diversificado de associações que não se reduzem à experiência maximalista
de Nequete em Porto Alegre.
As associações operárias que se constituíram sob o nome de comunistas ou
maximalistas o foram por alguma influência da revolução russa, mas dizer isso não passa
de um truísmo e não ajuda a explicar muita coisa. O que as diferencia qualitativamente de
outras associações operárias ou mesmo entre si é o contexto em que elas foram fundadas:
em qual cidade, quais tradições havia no lugar, quais militantes tiveram a iniciativa de
organizá-las e porque, quais relações estabeleceram com as outras associações operárias e
principalmente, qual seu papel na mobilização dos trabalhadores. Foi isso pelo menos o que
tentei mostrar, mesmo com as enormes lacunas no material, quando analisei o surgimento
de cada uma destas associações.
Por este motivo, não teria sentido procurar alguma legitimidade destas associações
em uma maior fidelidade aos princípios do bolchevismo russo. Mesmo o apoio à revolução
não as diferencia tanto de outros grupos. Basta lembrar os esfuziantes textos que membros
da União Geral dos Trabalhadores de Bagé e de Rio Grande publicavam pelos seus jornais,
que nada ficam a dever aos panfletos da União Maximalista. Uma diferença entre estas
uniões sindicais e as associações comunistas é que, à exceção dos gráficos, elas não eram
organizados a partir de uma categoria profissional, o que lhes dava um caráter bem mais
político e também mais amplo, embora suas relações com os sindicatos possam ter sido
diferentes dependendo do lugar e do momento. O que desejo frisar aqui é que os grupos
maximalistas ou comunistas não estavam mais próximos da doutrina bolchevistas que
outros grupos, nem teriam motivos para se arrogar este direito neste momento. Nem o livre
pensador Nequete, nem o socialista Guedes Coutinho, nem o libertário Zenon de Almeida,
nem tampouco Santos Barbosa, administrador do jornal do PCB, tinham autoridade total
para dizer “O Que Fazer” em termos de maximalismo.
166
Embora tenha desenvolvido neste trabalho algumas idéias sobre o significado do
maximalismo naquele momento, cabe aqui retomar alguns aspectos desta questão. Mesmo
que houvesse importantes debates acerca do caráter marxista do bolchevismo,
principalmente pelas páginas do Spartacus, não era isto que identificava os militantes com
o comunismo. Esta identificação passava pelo caráter mobilizador e revolucionário da
organização política russa, ou conforme as palavras do “Dr. Kessler” ao O Rebate:
Máximalismo significa o máximo de bem estar imediato para todos os homens. Maximalismo
quer dizer ainda a realização máxima do programa socialista comunista. Contrapõe-se ao
minimalismo, que se satisfaz com a realização mínima do programa simplesmente socialista.
Assim entendido maximalista não é só o nome de um partido russo, mas a substância de todos os
partidos avançados que, em qualquer parte da terra, desejam a substituição imediata da ordem
capitalista e burguesa por uma ordem acentuadamente comunista. Quanto à seu triunfo em todo
o mundo civilizado, julgo-o inevitável e para breve. Tomará de certo nomes diferentes: aqui se
chamará espartacismo, ali comunismo, mais além socialismo radical ou anarquismo. O nome
importa pouco.
274
Apesar de ter sido enunciada por um personagem fictício, não poderia haver definição
mais realista para caracterizar estes grupos comunistas. O que os identificava era o seu
radicalismo em relação a outras associações ou seu apoio às idéias revolucionárias. Dos
grupos que consegui levantar mais dados, esta era uma característica comum,
principalmente pelo momento em que foram formados.
Este “caráter revolucionário” também levanta algumas questões, e não somente
relacionada aos grupos comunistas, mas a todo o movimento operário. Até que ponto a
revolução russa influenciou o movimento operário lhe imprimindo um caráter
revolucionário?
O “espírito revolucionário”, se pode se chamar assim, não é visível em todas as
atividades do movimento operário. Seria difícil encontrá-lo, por exemplo, na organização
de uma greve por melhores salários ou em um protesto contra a tirania patronal. Apesar
disso, creio que a mobilização de parcelas significativas do operariado tenha adquirido, aos
olhos de muitas lideranças, um caráter revolucionário. Abílio de Nequete, cuja organização
lançava panfletos esperando o dia da revolução, estava junto aos metalúrgicos para ajuda-
274
O Rebate. Pelotas, p.1, 7, maio, 1919.
167
los nas suas reivindicações; Zenon de Almeida, que participou ativamente das greves de
Pelotas e Rio Grande, conspirou junto à outros operários pela deflagração de uma revolução
maximalista. Considero que as greves ou outras mobilizações não foram resultado apenas
de alguma influência externa, mas que o grau de mobilização incutia esperanças
revolucionárias em muitos militantes que participavam ativamente na organização da classe
trabalhadora. Estas esperanças se explicitam de forma muito clara nos jornais operários do
período, como demonstrei nos capítulos anteriores.
Esta influência da revolução russa, como não é difícil entender, é mais visível sobre
as lideranças. Mas creio que não se pode negar a possibilidade de que as imagens do “do
mundo em chamas” tenham afetado também os militantes de base ou até os operários que
não participavam de organizações. O clima de mobilização era um terreno fértil para o
despertar das esperanças revolucionárias. Por esta razão, parece bem possível que estas
esperanças, traduzidas em uma linguagem subversiva, em sonhos de um novo mundo, em
planos contra a burguesia; levadas de mão em mão em panfletos, de boca em boca após
discursos ou nos gritos anônimos em meio às multidões, tenham influenciado a ação de um
número muito maior de pessoas do que se pode imaginar. Tanto os clamores
revolucionários tomariam impulso por uma mobilização cada vez maior da classe, quanto
os militantes se mobilizariam de forma cada vez mais radical por terem pela frente a
possibilidade de seguir a trilha que os “maximalistas russos” lhes haviam aberto. Seguindo
esta hipótese, Santos Soares não estaria exagerando ao dizer que “O nome de Lênin, nas
assembléias, incendiava os corações”.
Mas este clima intenso de mobilização não se manteve com o mesmo ímpeto pelos
anos seguintes. Já no início da década de 20 haveria um refluxo, tanto por disputas internas
do movimento operário, em que o tema dos destinos da revolução russa seria um dos
maiores pontos de discórdia, quanto pela repressão que o estado oligárquico moveu contra
o movimento. Todos estes sonhos revolucionários e estas manifestações de força foram
acompanhados de perto pelos agentes de repressão do estado, mas não só; a grande
imprensa, políticos, industriais, a classe dominante acompanhou com preocupação o que
ocorria. Os anos de 1918 e 1919 estão pontilhados de episódios traumáticos que podem ser
com muita razão considerados sinais da intensificação da luta de classes.
168
No final do ano de 1919 as sedes operárias de Porto Alegre foram fechadas.
Militantes foram ameaçados de deportação. Foi proibido o envio dos jornais operários do
centro do país para o Rio Grande do Sul. Como a revolução passa a ser vista neste
contexto? Quais são as perspectivas de luta que se abrem nesta década que nasce com a
marca da repressão? Como os militantes encaram as divergências crescentes entre
anarquismo e bolchevismo? Porque elas crescem? Estas são algumas questões que pretendo
responder no próximo capítulo que tratará do início desta confusa década de 20. Período em
que, para muitos, depois dos gritos de revolta; dos brados dos marinheiros ao lado dos
grevistas, desejando a morte da burguesia; das palavras de ordem ecoando pela velha
cidade da fronteira, com suas carcomidas tradições e seus frigoríficos vazios; do zunir das
balas contra a Brigada Militar, em frente à intendência, no centro da capital; sobreveio, no
rastro de um rumor de botas, o silêncio...
169
6. “NÃO PODERIA SE EXPLICAR O QUE SE PASSOU NA CABEÇA DE BOA
PARTE DE NOSSOS VELHOS AMIGOS- NUM PISCAR DE OLHOS SE TORNARAM
NOSSOS INIMIGOS
275
”: balanços e perspectivas do movimento operário gaúcho em
relação ao futuro da revolução russa
Terminei o capítulo anterior apontando para alguns problemas que o movimento
operário sofreria nos anos 20. No início desta década a repressão aumentou, as
manifestações operárias passaram por um refluxo e as organizações se viram afetadas cada
vez mais por dissensões internas. É verdade também que o início da década não foi
marcado somente por isso, em 1920, por exemplo, se realizou o III Congresso Operário
Brasileiro e o II Congresso Operário Regional do Rio Grande do Sul, eventos muito
importantes para o movimento; além do mais, muitas greves ainda foram realizadas no
estado, com mobilizações significativas. Mesmo assim este declínio, a partir de 1920, é
algo apontado por muitos militantes que vivenciaram o período, sendo corroborado por
importantes trabalhos historiográficos. Interessa para esta dissertação um aspecto particular
desta “crise” do movimento operário: o início das divergências entre os militantes sobre o
modelo político adotado pelos revolucionários russos.
A relação entre os anarquistas e os bolchevistas na Rússia nunca foi pacífica. Mesmo
que os anarquistas tivessem apoiado os bolchevistas e alguns até tivessem aderido ao
partido, aqueles que se mantiveram fiéis aos princípios libertários logo confrontaram o
modelo pelo quais os bolchevistas desejavam chegar à nova sociedade, o que explica
episódios como o choque com a guarda negra em Petrogrado e as divergências com a
guerrilha de Nestor Makhno
276
. Não eram apenas divergências teóricas, também se
relacionavam com o efetivo exercício de autoridade, marcando um conflito também de
ações entre bolchevistas russos e anarquistas russos.
A fuga de anarquistas da Rússia e a publicização das perseguições levadas a cabo
pelos bolchevistas contra estes é fato bem conhecido como episódio que tirou a “máscara
libertadora” dos bolchevistas e mostrou sua face autoritária aos libertários do resto do
275
Trecho das Memórias de um imigrante anarquista, de Friedrich Kniestedt.
276
Um interessante relato sobre o movimento makhnovista é “As comunas makhnovistas da Ucrânia”, de
autoria de Pedro Archinop, que se encontra em LEUENROTH, Edgar. Anarquismo. Roteiro de libertação
social. São Paulo: Mundo Livre. 1963. pp.155-158.
170
mundo. Na recente biografia de Luce Fabbri escrita por Margareth Rago, Entre História e
Liberdade, pode-se perceber quanto foi negativo o impacto destas informações sobre os
militantes. A anarquista italiana, ao falar do clima pré-revolucionário vivido em seu país no
início dos anos 20, se refere a esta decepção como se fosse um grande sonho de um futuro
promissor que de repente se transforma em um doloroso ato de traição:
Era grande a esperança, a grande esperança...um mundo novo que se abria e a desilusão que se
sentira em seguida...por um lado, despertava entusiasmo porque era “a revolução”, por outro, a
autoridade que se centralizava cada vez mais, as iniciativas populares esmagadas, os episódios
de Kronstadt, de Mackno, a notícia de que Emma Goldman havia sido detida...Sabia-se que
Kropotkin estava descontente, não se queria acreditar nas notícias da imprensa burguesa, então
era um afã de verificar, saber se era assim mesmo, se verdadeiramente se passara essa coisa tão
tremenda, era uma verdadeira angústia...Um movimento revolucionário tão esplêndido que se
perdia, que ficava afogado, não saber se era certo ou não o que diziam...
277
Se Luce Fabbri recorda o peso de uma decepção, não foram todos os militantes que
guardaram as mesmas lembranças. O outro lado da moeda é mostrado por Astrojildo
Pereira, quando afirma que, aos olhos de muitos companheiros, o anarquismo se tornara
obsoleto com as conquistas do proletariado russo. Neste caso, o que acontecia na Rússia de
realmente importante não eram as perseguições aos anarquistas, mas o novo caminho
apontado pelos bolchevistas para a vitória do proletariado. Esta decepção com o
bolchevismo ou esta descoberta da obsolescência do anarquismo não são questões menores
para os que estavam envolvidos com o movimento operário. Ela está ligada, entre outras
coisas, à necessidade de escolha entre divergentes postulados de ação e organização. Estes
posicionamentos são tanto mais complicados porque fatalmente colocariam companheiros
fiéis na posição de novos inimigos ou competidores.
A maneira como esta decepção foi recebida e a importância das divergências surgidas
dela para o movimento operário difere de historiador para historiador e mesmo de militante
para militante, quando estes escrevem suas memórias ou se recordam destes fatos. Tanto a
importância desta “decepção” por uma esperança enganadora, quanto a de uma “conversão”
por um modelo novo de militância, vai ligar-se à importância dos novos grupos comunistas
ou à continuidade do anarquismo, mais ou menos como apontei nas duas “correntes
277
RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São
Paulo, Editora UNESP, 2001. pp.51-52.
171
interpretativas” do impacto da revolução russa que esbocei na Introdução da dissertação.
No caso do Rio Grande do Sul, apesar de ser registrada uma continuidade das práticas
anarquistas nos anos 20
278
, observa-se uma cisão muito precoce no movimento operário
advinda da aceitação ou não dos pressupostos da revolução russa. Esta crise provavelmente
é um dos primeiros estremecimentos no movimento operário brasileiro causados por este
motivo e teve lugar no II Congresso Operário Regional ocorrido em março de 1920.
6.1. A revolução russa como motivo de discórdia entre os militantes operários do Rio
Grande do Sul: novas e velhas atitudes anarquistas
Este Congresso deveria ter ocorrido em 1919, mas sua realização foi adiada pela
repressão policial às greves daquele ano. Friedrich Kniestedt dá detalhes sobre a sua
realização: ele, Abílio de Nequete e Carlos Toffolo seriam os preparadores do evento.
Entretanto, os dois primeiros teriam o interesse de sabotá-lo, fazendo com que a FORGS
aderisse à III Internacional de Moscou. Isto não teria acontecido porque Kniestedt adiou a
decisão, dando um golpe na pretensão de Nequete e Toffolo. Ao final do Congresso, a
FORGS acabaria aderindo à Internacional Apolítica de Berlim
279
.
Abílio de Nequete, por sua vez, afirma nos seus Cadernos de Memórias que, apesar
de ter sido o autor das teses do Congresso, os anarquistas lhe cassaram a palavra por ele não
representar nenhuma associação sindical. Teria ele exposto a nova teoria e a proposta de
adesão à Moscou, mas os anarquistas finalmente aderiram à Internacional Anarquista, razão
pela qual se afastou da FORGS
280
.
O texto que está no Boletim da COB sobre este episódio do Congresso é o seguinte:
278
Ver entre outros PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz LUCAS, Maria Elizabeth da Silva. Antologia do
movimento operário gaúcho: (1870-1937). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1992 e LONER, Beatriz.
Construção da classe operária em Pelotas e Rio Grande. Pelotas: Editora da UFPel.
279
KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e Notas de
Rodapé: René E GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989. p.
131.
280
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. Anotações dos Cadernos de Abílio de Nequete. Datilografado. s/d.
172
Abilio de Nequete apresenta um projeto de organização, provocando longos debates.
O delegado dos gráficos faz várias considerações e apresenta uma proposta, retirando-a, em
seguida, em virtude da explicação obtida de Abílio de Nequete.
Fala o representante da Federação Pelotense e alonga-se no estudo da organização
operária, mostrando a necessidade de se seguir nova orientação.
Fazem ainda uso da palavra os representantes dos alfaiates, dos pedreiros da U.T. de
Bagé e do S.O.V. de Caxias.
A discussão dessa tese prolonga-se até 19 e ½ horas, sem se chegar a uma conclusão,
o que prova o interesse dos congressistas em resolver com calma e consciência as questões
sucitadas. Por fim, devido às opiniôes desencontradas, o delegado de Pelotas propôe que
seja nomeada uma comissão para dar parecer sobre o assunto, o que foi aprovado .
281
Estas poucas linhas não esclarecem a profundidade da discussão e sequer os
argumentos de crítica e defesa, mas ela demonstra que a adesão à III Internacional podia
provocar longos debates a ponto de não se chegar a um consenso. Para Friedrich Kniestedt,
o que havia ocorrido não era apenas uma cisão em um Congresso, mas um problema muito
maior, que embotou a capacidade de luta de todo o movimento:
“Não se consegue descrever o que passou na cabeça de nossos velhos amigos- num
piscar de olhos tornaram-se nossos inimigos. Seria muito demorado descrever todos esses
acontecimentos. É suficiente destacar que devido à decisão em favor de Moscou foi sendo
gradativamente destruída toda a capacidade de ação do operariado não só do Rio Grande do
Sul, mas do Brasil e de toda a América do Sul. Os festejos de 1º de maio de 1919 ainda
transcorreram em grande harmonia, mas em 1920, não mais. Em um ano o germe da
discórdia fizera grandes estragos.”
282
O militante anarquista se refere também ao que aconteceu à Escola Moderna, em que
a ação dos adeptos de Moscou, querendo controlar a instituição, teria feito Kniestedt fechar
suas portas, pois o militante libertário teria preferido ver a escola fechada a estar sob
controle dos seus adversários políticos.
Estes casos podem levar a imaginar que se tratava de uma disputa essencialmente
centrada em Porto Alegre, mas em Pelotas também surgiram brigas envolvendo a ação dos
maximalistas. Beatriz Loner mostra como, apesar da fluidez e de algumas confusões nas
interpretações sobre os rumos da revolução russa, o posicionamento em relação ao
281
Citado por PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria": história das lutas
dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001. p. 378.
282
KNIESTEDT, Friedrich. Op. Cit. p. 132.
173
maximalismo “foi conformando mágoas profundas, difíceis de serem sanadas e que
comprometeram em parte o trabalho associativo”. Em 1920, houve uma divisão na Liga
Operária de Pelotas, o que pode se depreender de um artigo de Manoel Bordalló n’O
Rebate, criticando duramente um grupo dos maximalistas. Estes eram militantes que se
diziam libertários, mas agiam como ditadores, tendo movido uma campanha de difamação
contra companheiros de fora da cidade, como Alberto Lauro, Santos Barboza e Zenon de
Almeida. Afirmava Bordalló diante da ação destes operários que “A doutrina, o programa
maximalista é sublime, é justo, é aceitável, é racional, mas se é posto em prática da mesma
forma que se propaga, ou melhor, da mesma forma que é propagado por esse povo,
desgraçado do povo russo, infeliz da Rússia.”
283
Além destes episódios de confronto entre maximalistas e anarquistas, apontados pela
historiografia e nas memórias dos militantes, também surgiram nos jornais da época críticas
ao bolchevismo que assinalavam um distanciamento da corrente libertária. Em fevereiro do
ano de 1920, O Rebate publicou um artigo anônimo intitulado Lênin. O político e o orador.
Neste artigo o líder russo é apresentado como um homem inescrupuloso, que se comportava
como um ditador entre seus companheiros socialistas russos, usando todos à sua volta
apenas como peões em um jogo de xadrez. O pensamento de Lênin também é criticado, não
por sua falta de escrúpulos, mas por ter sido falsamente apresentado como algo inovador:
Em suma, Lenine não enriqueceu o pensamento humano com idéia alguma nova. Procurar-se-á
em vão em suas obras escritas, antes e durante a revolução, outra coisa mais que comentários
mais ou menos engenhosos das teses de Karl Marx. Mesmo quando escrevia, em 1908, sobre a
pretendida superioridade do regime dos Soviets, não achou outro argumento em suas teses senão
citações retiradas da obra de Marx, das quais está cheio o seu livro. Aliás, a pobreza de
pensamento é a característica da revolução russa em todos os seus períodos.
Os bolcheviques pretendem que Lenine é o único discípulo de Karl Marx, que tenha guardado
em toda a pureza a sua doutrina. E Lenine tem em grande conta esta fama. Mas em teoria, como
na vida, a habilidade política o torna menos intransigente.
284
Não é possível identificar se isto foi escrito por um anarquista ou de um conservador,
pois o comentário afasta-se da tradicional acusação de que o bolchevismo era uma
degeneração da civilização russa. Na verdade, não parece estar colocado em questão
também a validade do pensamento marxista, mas sim o fato de que o bolchevismo, que fora
283
LONER, Beatriz. Op. Cit. p. 211.
284
O Rebate. Pelotas, p.1, 12, fev, 1920.
174
apresentado por muitos como grande teoria que mudaria o mundo, não passava de cópia das
idéias de Karl Marx. Um outro artigo que parece desmascarar o caráter do bolchevismo
apareceu n’O Syndicalista de Porto Alegre, de 14 de abril de 1920, mas aí a crítica
centrava-se no fato desta doutrina não ser sindicalista:
O Syndicalismo não é marxista.:
A ditadura do proletariado, clausula do marxismo, não é finalidade do sindicalismo.
O Alvorecer da aurora nas rudes estepes do oriente da Europa, com o triunfo do povo moscovita,
trouxe novos e importantes problemas que os militantes do sindicalismo não podem deixar
passar em silêncio. O termo da moda, bolchevismo, e cujo conceito neo-comunista não passe de
ser uma modalidade do socialismo marxista, empolgou quiçá com excesso de zelo atividade de
não poucos amigos e é preciso que constatemos bem a índole da revolução que prepara nossos
entusiasmos, para que os suscetíveis de equívocos não incorram em erro.
É indubitável que entre o despotismo dos favorecedores de Rasputine e o regime dos Soviets,
implantado pelo maximalismo na Rússia, existe uma dualidade que abarca todas as nossas
simpatias de um modo absoluto em favor do último. Não é isso porém óbice para que, dada a
natureza inequívoca da tática e essência da doutrina apostolada por nós, que tende a se
universalizar, a se ampliar, a envolver a vida em todos os seus aspectos no sentido anarquista,
não nos conformemos e menos façamos bandeira em nossa propaganda da dentologia
econômica estabelecida na Rússia pela central comunista dos Soviets.
Cremos e assim o afirmamos que a revolução a vir em nosso país, não pode dirigir seus passos e
menos reduzir sua missão aos feitos partidarios de Lenine. A ditadura do proletariado clausula
capital da carta doutrinária do marxismo, não é, nem muito menos exprime, a finalidade do
sindicalismo. Com ela o estado, a autoridade, o poder, não perde senão na forma a existência
intrínseca da sua prepotência. O domínio de casta ou classe, ainda que seja uma transição
acidental, transmite sua hegemonia ao proselitismo triunfante dos vencedores que, ainda que
com o título de ditadores administrativos e tutelares, mais tarde, como sucede em todas as
comoções em que as estruturas básicas das instituições da etnologia social e política em essência
fica de pé, transformou-se no maior obstáculo para o futuro prosseguimento da própria
revolução iniciada.
285
O restante do texto trata dos problemas que teriam os sindicalistas ao defender a
formação de um estado, mesmo que fosse a Rússia bolchevista, já que toda forma de estado
acabaria se constituindo em algum tipo de tirania. O escrito não é de nenhum militante
brasileiro, mas foi retirado de um jornal de Cádiz chamado Rebelión e enviado por Alberto
Lauro para que se publicasse sua tradução. A apresentação dizia que a sua publicação tinha
por intuito dissipar a “confusão lamentável que muitos sindicalistas e anarquistas se tem
apossado diante da revolução russa e que os faz esquecerem-se do comunismo libertário,
tão bem defendido e definido por Bakunine, na gloriosa I Internacional”.
285
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3 14, abril, 1920.
175
Tendo por base as memórias dos militantes e levando em conta este artigo, pode-se
afirmar que já havia divisões no movimento operário entre os maximalistas e anarquistas,
além de uma preocupação por parte de alguns anarquistas com uma possível inflexão na
direção de um novo método de ação e de uma nova teoria. Mesmo assim seria perigoso
estender este cenário para o conjunto dos militantes e das associações. Ou seja, a existência
destas divergências não prova que todo o movimento operário tenha se dividido ou que
todos os anarquistas tenham de imediato se colocado contra a influência do bolchevismo.
Nesta mesma edição d’O Syndicalista e ao lado deste artigo que pretende mostrar a
face verdadeira do bolchevismo, existe uma coluna chamada Evidentinas, que faz uma
defesa da nova Internacional Proletária. O texto publicado tratava inicialmente do
nacionalismo, que no passado teria razão de existir, mas que se tornara obsoleto com o
advento do sistema capitalista. O que o autor propõe é mostrar que o estado capitalista
internacionalizou a exploração humana, pois não importava com qual bandeira os
trabalhadores estivessem, eles seriam explorados do mesmo jeito, o que era um grande
avanço na direção do internacionalismo.
O texto aproveita fatos que estavam frescos na memória, como o nacionalismo e a
guerra, para apontar que o desenvolvimento do sistema econômico levaria a uma luta de
caráter internacional contra a burguesia. Assim como o capitalismo, auxiliado pela ciência,
teria transposto todas as fronteiras nacionais, “A internacional proletária, auxiliada pela
mesma ciência, derrubará sem piedade as fronteiras de classe, instaurando o regime do
direito humano, com a base seguinte: igualdade econômica, igualdade política e igualdade
social.”
286
O que surpreende é que estes dois textos, um fazendo uma crítica à expansão do
bolchevismo e outro fazendo uma apologia da III Internacional, estivessem lado a lado na
mesma página. Isto é um indício de que o choque provocado pela descoberta dos
“verdadeiros” princípios do bolchevismo pode não ter sido igual para todos os militantes e
em todos os lugares. Bem depois do Congresso em que Kniestedt e Nequete entraram em
choque, depois também da publicação do texto “O Syndicalismo não é marxista” e mais ou
menos no mesmo período em que Bordalló se queixava da atuação dos maximalistas em
286
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 14, abril, 1920.
176
Pelotas, Zenon de Almeida, em um artigo no A Folha do Povo de Santa Maria, ainda
manifestava toda sua admiração por um grande líder bolchevista:
“Goethe, Spencer, Comte, Tolstoi, Kropotkine, Marx, Haeckel, Bichner e Lebon irradiaram
uma infinidade de centelhas, discípulos que espalharam a luz pelo mundo.
Surge agora no cenário mundial este gênio maior que Voltaire e maior que Napoleão:
Lênine.
Ele desferirá o golpe mortal no coração de Roma.”
287
Zenon de Almeida tinha uma longa militância anarquista, mas parece não
desconsiderar o papel de Lênin como o ponto mais alto do pensamento racionalista, mesmo
depois de terem iniciado as divergências entre os anarquistas e aqueles que diziam seguir os
princípios do bolchevismo.
Outro exemplo de persistência da revolução russa como imagem inspiradora para os
militantes libertários se encontra n’O Nosso Verbo, de Rio Grande. A sua edição de 24 de
novembro de 1920 estampava na primeira página um texto intitulado A traição da Polônia
(O quinhão da vitória). Não se tratava apenas de um apoio tácito a uma organização estatal
menos opressiva que a outra, de uma escolha entre a burguesa República da Polônia e a
República Soviética, a exemplo do que preconizava o artigo publicado n’O Syndicalista
confrontando a Rússia comunista com a czarista. Tratava-se de uma adesão apaixonada à
causa russa. Um dos pontos ressaltados era o papel da Polônia, uma nação que os
revolucionários de todo o mundo haviam lutado para libertar das potências estrangeiras e
naquele momento fazia o jogo das mesmas potências, voltando-se contra os maximalistas,
que haviam defendido sua independência sem pedir nada em troca
288
.
Na mesma edição do jornal foi publicado um artigo sobre a educação entre os
maximalistas russos, que teriam criado um sistema moderno e simples de ensino, bem
diferente do “nosso antiquado didatismo escolar, muito querido dos dengosos e amofados
professores e das múmias pedagogistas da nossa terra”
289
. Também há obras de
divulgação sobre o bolchevismo, que são oferecidas para venda pelo jornal: A verdade
287
A Folha do Povo. Santa Maria, p.1, 25, ago, 1920.
288
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.1, 24, nov, 1920.
289
Ibidem. p.5.
177
acerca da revolução russa, O que é bolchevismo e O estado atual do comunismo na
Europa; assim como são oferecidos retratos de “dois gigantes da revolução”, Lênin e
Malatesta, por 200 Réis cada. A única coisa que lembra a cizânia entre comunistas e
anarquistas é uma pequena nota, na seção de notícias internacionais, que informa sobre a
construção de uma fábrica de papel na Rússia:
Em Gomel, a 640 kilometros de Moscóvia os bolchevistas montaram uma fábrica de papel cuja
produção aumenta consideravelmente, ultrapassando os já de antes da guerra dizendo os jornais
burgueses que este é destinado à propaganda das idéias comunistas entre os trabalhadores do
mundo.
Esperamos a ver se o comunismo dos bolchevistas traz alguma novidade para nós ou se é apenas
a do Manifesto de Engels e Marx e que há 50 anos Bakunine e outros tiveram que combater em
defesa da anarquia.
290
Dois meses antes, no mesmo O Nosso Verbo, havia um informe que teriam acontecido
em Rio Grande duas palestras, uma Sobre a anarquia, o que somos e o que queremos e
outra sobre O estado atual da Rússia
291
. Mesmo que as palestras fossem um esclarecimento
sobre o caráter do bolchevismo e um ato de marcar posição por parte dos anarquistas
perante novas idéias, conforme se pode desconfiar pelos títulos, não parece haver nenhum
sinal de mudança em relação à atitude diante da revolução de outubro, a não ser pela
pequena nota sobre a fábrica de papel em Gomel.
São referências bastante dispersas, que para o ano de 1920 não encontrei coleções
de jornais tão vastas como as existentes para 1919, mas elas servem para matizar o quadro
um tanto catastrófico pintado por Friedrich Kniestedt em suas memórias. Não está presente
nos textos que se referem à Rússia a mesma euforia do ano anterior, que parecia prever para
bem breve a chegada da revolução social, mas nada faz crer que a crítica ao bolchevismo
ou um processo de divisão do movimento operário tenha atingido todos os militantes do
Rio Grande do Sul neste momento.
A acusação estampada n’O Syndicalista de que “o sindicalismo não é marxista”, não
afastaria necessariamente algum apoio ou admiração pela revolução russa, na verdade ela
mais demarca uma posição que não deve ser seguida. Não se pode dizer o mesmo em
290
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.6, 24, nov, 1920.
291
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.3, 12, set, 1920.
178
relação às perseguições levadas a cabo contra os anarquistas pelo regime soviético.
Conforme Moniz Bandeira, foi por volta de novembro de 1920 que as notícias das
perseguições a anarquistas na Rússia começaram a ser publicadas no A Plebe de São Paulo.
Em dezembro de 1920 já eram estampadas manchetes como: O terror bolchevista na
Rússia; Piotr Koprotkin, o velho libertário, reduzido à miséria e Um apelo aos libertários
de todo o mundo. Notícias em que se materializavam as barbaridades ditas sobre a
revolução, que antes eram refutadas como calúnia da burguesia
292
.
Mesmo isto não parece ter influenciado a maneira de ver de todos os anarquistas.
Meses depois do A Plebe publicar as notícias sobre a perseguição aos anarquistas, A Revista
Liberal de Porto Alegre, publicação dirigida por Polidoro Santos, apresentava um texto
analisando o maximalismo na Rússia. Apesar de estar presente neste texto uma clara
diferenciação para com o anarquismo, o regime russo não era hostilizado, mas mostrado
como um progresso em direção à anarquia:
Diferenciações
A ANARQUIA repele em absoluto o direito de propriedade e a concepção de Estado de governo
determinado; não permite o uso da moeda.
Como governo só admite a idéia: assim, o governo anárquico é exercido por todos em conjunto,
e por ninguém individualmente.
As decisões são tomadas pelo conjunto dos elementos sociais e cumpridas sem coação de
autoridade pessoal e sim da consciência.
Esta é a lei, código e juiz.
O MAXIMALISMO, ao contrario, adota a concepção do Estado, a autoridade dos “Soviets” e o
uso da moeda.
Sob o ponto de vista econômico, o maximalismo russo não é, porém, nem o regime capitalista,
atualmente ainda em vigor no resto do mundo civilizado, nem o regime feudalista, nem o
militarista.
O regime econômico do governo da Rússia é o de uma grande federação cooperativista, o dos
“Soviets”.
Resumindo, o regime econômico da Rússia atualmente é o socialista, o regime político,
provisoriamente, o semi-republicano.
O SOCIALISMO deu lugar ao maximalismo russo e o está impulsionando para uma melhor
organização político-econômica, onde não haja ditadura de classe alguma, onde não haja tão
funda a divisão de classe.
292
BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil. São
Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 370-373.
179
O socialismo científico será o legislador da Moral que impõe o amor como o primeiro Dever.
293
Esta interpretação, ligando o desenvolvimento do bolchevismo na Rússia a um estágio
entre o socialismo tradicional e a futura implantação da sociedade sem classes, não era uma
novidade. No ano de 1919 Fábio Luz, em uma conferência sobre a imprensa reproduzida no
Spartacus, esposava esta mesma interpretação ao afirmar que: “Queremos, vis-a-vis da
imprensa assalariada à sociedade burguesa, a livre imprensa do proletariado, o órgão do
quarto estado, discutindo a viabilidade da organização social futura, do comunismo
anárquico, tão bem encaminhado pelos sindicatos de classe, de que a Revolução Marxista-
a Revolução russa dos Soviets é um preparo e um encaminhamento”
294
.
Este trecho da conferência de Fábio Luz aponta para outro ponto que deve ser
destacado: que o fato da revolução russa não ser conduzida por anarquistas não era algo
totalmente desconhecido antes de 1920. Tanto que o Spartacus tratou deste tema em
diversos artigos ainda no ano de 1919, artigos estes que poderiam ter circulado em Porto
Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul
295
. Também não era desconhecido o termo
“ditadura do proletariado” que foi apresentado como estigma pelo texto traduzido do jornal
espanhol Rebelión. Isto parece tornar o texto publicado pel’O Syndicalista uma “peça fora
de lugar”. Tanto mais que o mesmo Alberto Lauro, que no momento da publicação do A
Revolução Russa não é sindicalista estava em Montevidéu e de lá deve tê-lo enviado, um
ano depois escreveria com entusiasmo sobre o movimento social na Argentina, sobre a
formação de Soviets naquele país e sobre uma greve liderada por uma Federação Operária
Comunista, solidária a protestos estudantis
296
.
O que pode se depreender é que a divisão entre anarquistas e comunistas foi um
processo complexo e os indícios de divisão podem não ser um sinal de rompimento
293
A Revista Liberal. Porto Alegre, p.8, maio, 1921.
294
Spartacus. Rio de Janeiro, p.4, 18, ago, 1919.
295
O mais significativo talvez seja uma carta do Príncipe Piotr Koprotkin, publicada em 6 de dezembro de
1919, que diz claramente que o governo bolchevista é o de uma fração do Partido Social Democrata, mas
justifica o caráter centralizador da Ditadura pelo estado de guerra endêmica pelo qual o país passava. Nesta
mesma edição, José Oiticica publica uma coluna em que justifica a centralização do poder russo por esta ser
uma “nação guerreira”. Neste mesmo sentido, chama atenção outro texto, de autoria de Isidoro Augusto,
publicado na edição de 13 de dezembro, que se chama “Em torno das ditaduras” em que o autor afirma ser a
ditadura do proletariado russa, pelo seu caráter, mais anarquista do que marxista.
296
O Nosso Verbo. Rio Grande. 19, mar, 1921. O texto se chama “Chronicas argentinas”, tendo sido enviado
de Buenos Aires no dia 14 de fevereiro daquele ano.
180
definitivo com alguma tendência. Naturalmente, seria errado pensar em uma transformação
completa nas idéias de todos os militantes sobre um conjunto de fatos de forma tão rápida.
Este é um processo que foi se conformando de maneira complexa, diferente para cada
sujeito, para cada grupo. Muitos podem ter permanecido fiéis ao anarquismo, muitos outros
podem ter acreditado que o bolchevismo era a luz do futuro e muitos podem ter mudado de
posição pelo caminho.
Algo importante a se considerar é que Friedrich Kniestedt, quando escreveu suas
memórias, vivia em um clima político muito diferente daquele experimentado no início dos
anos 20. Quando publicou na década de 30, pelo jornal Aktion, os episódios de sua vida
(que depois seriam reorganizados em suas Memórias), os anarquistas e comunistas estava
há muito tempo em antagonismo. Olhando retrospectivamente, Kniestedt pode ter
enxergado no início dos anos 20, um momento em que as divisões recém se conformavam,
toda a intransigência de posições entre os libertários e os comunistas que caracterizava o
período em que ele estava escrevendo. O mesmo caso se passa com Abílio de Nequete que,
escrevendo seus Cadernos no início dos anos 40, vê os anarquistas em bloco antagonizando
os maximalistas:
A maioria dos congressistas era anarquista e a palavra de Abílio foi cassada por não representar
nenhum sindicato, embora fosse o autor das teses do congresso. Propunha a adesão à Moscou e
os anarquistas à Internacional Anarquista.
Na sessão seguinte cita a Marx e desiste da tese de adesão à Moscou.
O diário do congresso está errado ao dizer que Abílio concordou com suas decisões.
Por força da não adesão a Moscou, nada mais tinha a fazer na FORGS.
297
Não existe nada nos anais do congresso que permitam observar um definitivo “racha”
devido às posições antagônicas de Nequete e Kniestedt. A existência de um debate longo
por causa desta tese no 2º Congresso, na mais longa das sessões, também parece ser mais
um indicativo de interesse ou de um debate acalorado, do que de um repúdio geral ao
comunismo russo. Isto faz ver que não se pode transpor as divisões posteriores do
movimento operário para este momento. O antagonismo formado mais tarde, com a
297
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Anotações dos cadernos de Abílio de Nequete. Datilografado. s/d.
181
fundação do PCB comunista em 1922, não está dado, observando-se ainda uma amálgama
programática e teórica
298
. Mesmo assim já existem apropriações do projeto soviético e dos
termos bolchevistas; igualmente já há disputas entre operários por causa desse projeto.
Este é um ponto bastante delicado. Não se pode afirmar que os antagonismos que
separaram comunistas e anarquistas não provocaram divisões iguais às que separaram o
movimento operário nos anos posteriores, nem se pode afirmar que de uma hora para outra
as associações operárias se vissem divididas em dois grupos que se antagonizavam
agressivamente. Mas seria falso dizer que a revolução russa não provocou divisões no
movimento operário e que seus rumos não provocaram divergências no deste movimento.
A questão principal então é saber como se deram estas primeiras divisões.
6.2. O peso da reação: a campanha contra o maximalismo e a perseguição aos
militantes do movimento operário
No início deste capítulo destaquei o depoimento de uma importante militante
anarquista, Luce Fabbri, relatando a decepção que teve ao saber que a revolução russa não
era anarquista e que inclusive na República dos Soviets os libertários eram perseguidos. Ao
longo do capítulo, tentei mostrar que este fato, principalmente o saber que a revolução não
era anarquista, não provocou uma cisão imediata entre fiéis e infiéis do movimento
libertário. Mas se, mesmo com as notícias de que a revolução russa não era anarquista,
muitos militantes libertários a continuaram apoiando, porque começaram a haver disputas?
Porque alguns operários aderiram a determinadas idéias novas e não outros? As adesões a
diferentes posições foram puramente fortuitas? Mesmo supondo-se que notícias chocantes,
como estas das perseguições, tenham tido diferentes impactos conforme as idiossincrasias
de cada um dos militantes, acredito que esta hipótese não esgote todo o problema.
Para tentar se compreender melhor este processo, não se deve voltar os olhos apenas
ao que ocorria na Rússia ou dar atenção às informações que de lá chegavam, porque ao fim
298
Na verdade, nem mesmo com a formação do PCB em 1922 vai haver uma diferenciação teórica tão
profunda, já que quase todos aqueles que formaram o segundo partido comunista eram oriundos do
anarquismo e ainda tinham muitas concepções influenciadas pela doutrina libertária.
182
e ao cabo, não foram somente os fatos ocorridos na “República dos Soviets” que orientaram
as escolhas dos militantes. É necessário perceber uma série de mudanças bem mais amplas,
que ocorreram em nosso próprio país e que se ligam a outros aspectos desta “crise” que o
movimento operário teria passado no início dos anos 20.
Esta “crise” ou este enfraquecimento de uma determinada tradição de luta, encarnada
especialmente pelo anarquismo, foi analisado por Ângela de Castro Gomes no livro “A
invenção do Trabalhismo”. Os temas principais do livro não são as disputas ocorridas
dentro do movimento operário, mas a formação de uma tradição de luta que seria
apropriada depois pelo Estado Novo e que resultaria no trabalhismo; além do mais, o
estudo restringe-se à cidade do Rio de Janeiro. Acredito, entretanto, que a maneira como a
historiadora observa a atuação dos grupos anarquistas naquele momento sirvam para uma
frutífera comparação com algo que estava ocorrendo entre os militantes do Rio Grande do
Sul neste mesmo período.
Castro Gomes afirma que, no início dos anos 20, não se vivia um momento de
decadência da organização sindical ou da presença dos anarquistas nos sindicatos. Também
não era verdade que as dificuldades que acometeram os grupos mais radicais entre os
operários organizados teriam se dado por dúvidas doutrinárias ou pelo surgimento de grupo
concorrente aos anarquistas dentro do movimento. Quanto a esta última afirmação, que diz
respeito aos comunistas, Castro Gomes se posiciona contra Astrogildo Pereira, quando este
afirmava que o abandono do anarquismo se dera por um processo espontâneo de
autocrítica, ao observar a incapacidade da organização libertária para resolver os dilemas
que se colocavam ao movimento. Isto poderia ser rechaçado pelo próprio teor dos debates
que, como no caso do movimento operário do Rio Grande do Sul, não parecem ter
provocado uma ruptura imediata e irreversível entre os militantes, com direito a conversões
definitivas ao bolchevismo, que de resto não era conhecido com profundidade.
Quanto ao outro ponto analisado por Ângela de Castro Gomes, o da organização
sindical, no ano de 1920 as associações operárias do Rio de Janeiro e os anarquistas da
Capital Federal promoveram importantes eventos, como a luta contra a carestia de vida e
contra o aumento dos aluguéis. Também refundaram o jornal A Voz do Trabalhador,
promoveram o 3º Congresso Operário Brasileiro e realizaram festivais culturais para
183
angariar dinheiro em auxilio aos militantes presos. Mas nas grandes mobilizações, os
operários sofreram duras derrotas: “Do ponto de da ação política e sindical, continuavam
conseguindo vitórias, mas eram derrotados nos episódios de maior vulto e publicidade, o
que enfraquecia a imagem do movimento operário entre os trabalhadores e na sociedade
em geral”
299
. A diferença crucial que Ângela de Castro Gomes observa é o contexto
político mais geral, no qual o anarquismo passou a ser combatido de uma forma que não
acontecera antes.
O que havia de diferente na conjuntura política que então se abria era o tipo de combate que se
articulava contra o anarquismo. Aí o ponto crucial não era só o aumento da violência política,
que efetivamente teve um papel muito importante. O que ocorreu foi o amadurecimento de um
conjunto de alianças que reunia ao lado da polícia e do patronato setores da elite política e
intelectual da cidade, com franco apoio da Igreja Católica. Esta composição que somava sólidos
recursos materiais e ideológicos, traduzia-se, por exemplo, no revigoramento dos movimentos
nacionalistas, que neste momento tinham um nítido caráter militante e clerical. Renascia no Rio
de Janeiro o que se chamou de “novo jacobinismo”, que elegia como seu inimigo- além dos
tradicionais galegos- os anarquistas: estrangeiros e ateus.
O declínio que então se iniciou não teve, portanto como base o fracasso da militância anarquista
nos sindicatos, mas sua expulsão e eliminação por forças policiais com amplo respaldo político e
social. Talvez exatamente por isso os anarquistas não tenham sido gradualmente substituídos
pelos comunistas, que teriam paulatinamente ocupado um espaço deixado vago por um desgaste
de um movimento e de uma doutrina. Os anarquistas cariocas e o anarquismo continuaram
existindo no movimento sindical, e exatamente porque não houve um amplo debate precedendo
a criação de um Partido Comunista, era inevitável que ele ocorresse a posteriori, em
circunstâncias distintas das narradas por Astrogildo Pereira.
300
As dificuldades enfrentadas pelos anarquistas cariocas e pelo movimento operário da
Capital Federal não eram exatamente as mesmas enfrentadas pelos militantes do Rio
Grande do Sul. O novo jacobinismo não tem paralelo no estado sulino e a igreja não tinha a
mesma força que na Capital Federal. Mas deve ser retido este novo momento de repressão
pelo que passaram a viver as organizações operárias e as formas cada vez mais agressivas
pelas quais elas foram atacadas.
Ângela de Castro Gomes mostra que o debate sobre a validade das táticas sindicalistas
e a formação de um “emaranhado de posições” dentro do movimento operário se deu a par
de uma ação repressiva que sufocava as possibilidades de ação do movimento. As fissuras e
299
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do Trabalhismo. São Paulo: Vértice. 1988. p. 139.
300
Ibidem. p. 140.
184
as cisões se agravaram quando a militância enfrentava uma reação cada vez mais agressiva
contra si. Tendo em vista o que se deu na Capital Federal, talvez seja necessário observar se
um processo similar não ocorreu no Rio Grande do Sul, influenciando a relação que os
militantes tinham entre si e com suas próprias idéias. Se assim for, as disputas decorrentes
da aceitação do maximalismo podem estar inseridas no “emaranhado de posições” a que se
refere Ângela de Castro Gomes, fazendo parte de um processo mais geral de dificuldade de
atuação e reversão de expectativas. Mas para observar isto, deve-se atentar para alguns
aspectos da ação repressiva do Estado e seus efeitos no movimento operário.
De 1917 até 1919 o movimento operário em diversas cidades do Rio Grande do Sul
teve um crescimento significativo. Novas associações foram criadas, greves cada vez mais
abrangentes iam sendo articuladas e também uma linguagem cada vez mais violenta,
vazada por termos revolucionários, ia sendo empregada na mobilização dos trabalhadores.
Este processo, influenciado pela revolução russa e se alimentando dos seus sucessos, já foi
abordado nos capítulos anteriores, por isso não pretendo fazer uma retrospectiva dos fatos
acontecidos naqueles anos. Basta dizer, e este é o ponto que aqui interessa, que estas
mudanças na mobilização da classe operária e na própria postura do movimento foram
acompanhadas de muito perto pelo governo republicano.
Em 1917, quando ocorreu a greve geral em Porto Alegre, o governo Borges de
Medeiros aceitou negociar com os trabalhadores, tabelou os preços dos víveres e aumentou
os salários dos operários a serviço do estado. Em outras duas ocasiões, na greve de Pelotas
e na greve ferroviária, a postura do governo também foi de entabular negociações e se
colocar como mediador para a solução dos conflitos sociais. Claro, não se deve esquecer
toda a conjuntura especial que explica esta postura paternalista de Borges, como a
necessidade de mostrar legitimidade perante outros líderes políticos em um ano eleitoral e o
interesse em melhorar os serviços ferroviários administrados pela Compagnie Auxiliare.
Também não se deve esquecer que as organizações operárias estavam em um momento de
reorganização e suas palavras de ordem não se destinavam à derrubada do Estado ou à
revolução social. Em 1918, o cenário muda, tanto as organizações operárias quanto o estado
republicano endureceram suas posições. Na greve de Porto Alegre, em agosto daquele ano,
os operários da Força e Luz foram obrigados pela polícia a trabalhar e houve repressão às
manifestações que procuravam organizar uma paralisação generalizada. Também na cidade
185
de Rio Grande, no mês de outubro, a polícia reprimiu a greve que os trabalhadores do Porto
haviam deflagrado.
Em 1919, não só o grau de mobilização chegou ao ápice, como a violência contra os
operários tornou-se pior. A greve de abril daquele ano em Rio Grande é um exemplo.
Quando a cidade é ocupada militarmente e as notícias para os outros pontos do estado são
censuradas, aparece de forma clara a intenção de esmagar um movimento que se tornava
agressivo e perigoso. A atitude dos marinheiros de um destroyer chamado para o
patrulhamento da cidade, que após sua dispensa aderem ao movimento gritando morras à
burguesia, mostra também que a esperança de acabar com a miséria e a opressão social
poderia extravasar os círculos dos militantes da classe operária
301
. A violência policial e
militar contra a enorme concentração operária, onde mulheres e crianças foram vítimas das
estocadas de cavalaria, foi tão grande que não é de estranhar que, em um discurso no 1º de
maio daquele ano, na capital, um orador dissesse esperar que “Breve o operariado de Porto
Alegre estará apto a enfrentar a Brigada de Borges de Medeiros”
302
. Outro episódio de
repressão ocorreu em setembro, na cidade de Porto Alegre, quando o comício dos operários
da Força e Luz foi dissolvido por um piquete que trocou tiros com os militantes no centro
da cidade. A perseguição aos trabalhadores e a carga sobre populares que estavam na
Avenida dos Andradas, que se confundiram com os perseguidos, foi criticada mesmo por
um jornal conservador como o Correio do Povo: No domingo, era desnecessário que os
soldados da Brigada Militar entrassem na Rua dos Andradas, disparando seus revolveres,
e isso justamente quando essa rua se achava repleta de famílias, não só porque era
domingo, como, também, porque se realizavam as passeatas comemorativas da
independência nacional”
303
.
Neste caso, como no de Rio Grande, a repressão à manifestação dos operários foi
acompanhada de um ataque às suas associações e aos líderes. No dia seguinte, dia 8, após a
madrugada em que uma bomba foi atirada na casa de um fiscal geral da Força e Luz, o
Chefe de Polícia Eurico Lustosa mandou fechar os três principais centros de reunião dos
301
LONER, Beatriz Ana. Op. Cit. p.303.
302
SILVA JR, Adhemar Lourenco. "Povo! Trabalhadores!”: tumultos e movimento operário (estudo
centrado em Porto Alegre 1917). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 1994. (dissertação de
mestrado). P.389.
303
Correio do Povo, p.6, Porto Alegre. 9, set, 1919.
186
operários: a FORGS, a União Metalúrgica e o Sindicato da Força e Luz. Além disso,
proibiu a Sociedade Elena de Montenegro, onde tradicionalmente ocorriam assembléias
operárias, de receber reuniões de sindicatos.
A Brigada ocupou as associações, recolheu as bandeiras que estavam em frente aos
prédios das entidades e prendeu seus ocupantes para averiguações. Friedrich Kniestedt
escreve que nesta ocasião a ação da polícia não se limitou ao fechamento da FORGS, mas
que os policiais promoveram um verdadeiro quebra-quebra dentro do prédio
304
. No dia
seguinte, 8 de setembro, aconteceu o féretro do operário morto no dia anterior, Fernando de
Oliveira, em que se registrou mais um incidente quando um bonde guardado por praças do
exército cruzou o cortejo. Um operário que acompanhava o enterro pulou sobre o bonde e
tentou esfaquear um sargento, mas foi prostrado por um soldado que lhe encheu o corpo de
balas. Aqui também houve um grave enfrentamento, com muitos operários tendo que fugir
e se esconder em casas da redondeza, a exemplo do que ocorrera no dia anterior.
As sedes continuaram fechadas, mesmo que o prédio da FORGS fosse atacado por
uma carga de tiros (possivelmente de sindicalistas tentando expulsar os policiais), só nos
dias posteriores os locais foram liberados
305
. As associações tiveram suas existências
jurídicas extintas e importantes militantes como Kniestedt e Nequete foram ameaçados de
deportação.
A greve desta forma arrefeceu. A ação da polícia pode não ter tomado o contorno que
tomou no Rio de Janeiro, mas episódios como estes acabaram marcando o movimento
operário e servindo como um amortecedor para as esperanças dos militantes. Também se
deve levar em conta as notícias que vinham do centro do país, a repressão à insurreição de
outubro em São Paulo marcava o fracasso de um projeto do qual os militantes do Rio
Grande do Sul seriam participantes ativos; além do que, as informações sobre as
deportações, com os horrores dos porões do navio e do desterro à países distantes, era um
sinal para aqueles que, como Kniestedt e Nequete, tinham a espada de Dâmocles da
expulsão sobre suas cabeças.
304
KNIESTEDT, Friedrich. Op. Cit. 218.
305
Correio do Povo. Porto Alegre, p.6, 10, set, 1919.
187
Não pretendo aqui tratar de forma mais profunda o processo repressivo do estado
sobre as organizações operárias, nem fazer como Ângela de Castro Gomes identificando
como se deu a formação de uma aliança social (burguesia, políticos, intelectuais, igreja etc.)
que legitimasse esta ação repressiva sobre o movimento operário. Acredito, entretanto, que
há um aspecto desta ação que deve ser destacado e que se liga ao tema deste trabalho: a
criação de um clima hostil às organizações operárias. Este “clima” tinha como um dos
principais ingredientes a propaganda do perigo revolucionário, o medo do maximalismo e
da influência “nefasta” que a revolução russa podia ter sobre a classe trabalhadora.
No processo aberto contra José Cândido Martins, membro do Sindicato da Força e
Luz, preso naquele 7 de setembro, pode se ler uma justificativa da violência contra os
militantes operários dada pela polícia, que se nutre exatamente do perigo revolucionário
que as organizações operárias representavam para a ordem vigente.
No dia 7 do corrente, às 17 horas mais ou menos, uma multidão de grevistas, de que fazia parte
José Cândido da Silva, à Praça Montevidéu, pretendia realizar um meeting.
Esse meeting fora precedido por uma derrama de panfletos, artigos de jornal, boletins,
francamente revolucionários, assinados por diversas associações operárias desta capital. O
próprio órgão oficial da Federação Operária pregava abertamente a sublevação das massas
operárias contra a sociedade atual, o governo e a propriedade privada.
Nessas circunstancias a polícia resolveu comparecer e fazer com que os operários se
dissolvessem. O Dr. Chefe de polícia, neste sentido interveio junto aos operários, lendo os
artigos do Código Penal. SS foi então desatendido e desrespeitado pelos grevistas; que os
receberam com protestos e vaias.
Vendo-se desrespeitado no exercício das suas funções, o Dr. Chefe de Polícia recorreu [...] à
praça [...] que estava à seu lado. Muitos insistiram [...] contra a autoridade policial de revolver
em punho.
José Candido da Silva, que fazia parte de um grupo de quatro grevistas, que subia a Rua Uruguai
de revolver em punho, atirando sobre a praça foi preso instantes após na latrina da casa nº 35
dessa rua, tendo a seu lado o revólver com quatro cápsulas destacadas.
306
Este olhar sobre a ação dos militantes operários não era privilégio de um documento
produzido pela polícia. A Federação, órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense,
publicou uma série de editoriais depois do conflito de 7 de setembro que iam na mesma
306
Processo nº 1016, maço 66, folhas 2-3, do Cartório do Júri de Porto Alegre. 1919.
188
linha. Estes editoriais são muito importantes, pois representavam a opinião oficial do
governo, justificando a ação do estado.
No dia 8, logo após os confrontos, A Federação estampou na sua terceira página A
Greve: os acontecimentos de ontem. O texto traz trechos dos artigos publicados n’O
Syndicalista de 4 de setembro, proveniente do material apreendido pela polícia, fazendo
uma ligação muito clara não só do anarquismo com o perigo da revolução social, mas da
influência maximalista como algo que desvirtuava os operários. Os exemplos da revolução
da Europa são como ondas que chegam até o Rio Grande do Sul e que devem ser
combatidas a todo custo, mesmo que assim seja necessário aplicar a violência.
Se estas manifestações inadmissíveis e indefensáveis do espírito subversivo não justificassem o
rigor com que a polícia se vê coagida a por termo a seus desmandos, haveria ainda para pôr
termo ao delírio que está tomando conta de nossas classes operárias mal conduzida pela espuma
maximalista que bate até o recanto de nossa pátria liberal e justiceira que não reconhece
privilégios nem encampa injustiças sociais haveria ainda, dizia-nos, o testemunho eloqüente de
sua imprensa que não cessa de pregar idéias anárquicas que bem denunciam o grau de insânia
que se está apoderando de seus orientadores.
O último número d’O Sindicalista, órgão oficial da Federação Operária do Rio Grande do Sul,
publica um longo artigo intitulado, “O que nós comunistas queremos”. Basta reproduzirmos
alguns trechos desse aranzel sem lógica nem senso moral para que se perceba nitidamente que o
movimento operário que está alterando a ordem desta cidade há dias deixou de ser uma
manifestação pacífica de operários para assumir um caráter francamente subversivo.[...]
Em face destes testemunhos de palavra e de ação, não é possível, por conseguinte, que se fale,
sem rematada hipocrisia nos intuitos pacíficos dos operários em greve. As intenções da
subversão da ordem estão, mais do que provados, confessados publicamente, pelos cabeças do
movimento. Outra não podia ser a atitude da polícia ao proibir ontem um ajuntamento sedicioso
ao qual os anarquistas contrariando ordens expressas concorreram armados e dispostos à prática
de violências, tanto assim que desrespeitaram a autoridade que lhes foi aconselhar a dispersão e
agrediram a tiros de revólver os policiais que faziam efetiva a intimação do Sub-Chefe de
polícia. [...] É evidente em face do estado de ânimo cumpre a autoridade tomar medidas
enérgicas a fim de fazer cessar esta exposição de anarquia que não se coaduna com as nossas leis
liberais nem com o espírito de ordem de toda a sociedade civilizada. A Federação Operária que é
sabidamente o ninho dos agitadores foi fechada e com ela, outras sociedades de classe. A polícia
tomará medidas seguras para evitar qualquer reunião anarquista e o trabalho livre encontrará a
máxima garantia por parte das autoridades. Que não terá contemplações com elementos
deletérios que se antepuseram a sua determinação visando a ordem e a segurança pública.
307
Textos com o mesmo teor continuaram aparecendo nas edições posteriores do A
Federação. No dia 9 de setembro, o jornal noticiava a ação policial exemplar contra a sede
do Spartacus na Capital Federal: A polícia do Rio toma medidas enérgicas contra as
307
A Federação. Porto Alegre, p.3, 8, set, 1919.
189
tentivas anarquistas
308
. Na primeira página, por sua vez, aparecia uma coluna com o título:
Tentativas maximalistas. O objetivo deste texto era mostrar como os operários em greve
tinham finalidade subversiva em vez de trata-se de um movimento pacífico. Novamente, os
líderes da greve são mostrados como loucos, dementes, descontrolados e estrangeiros, que
desejavam levar o pacífico operário nacional a ser arrastado pela sua loucura. Por este
motivo era louvável a atitude da polícia do Rio de Janeiro e que deveria ser seguida pela
Brigada Militar de Porto Alegre: “Merecem, pois, todos os aplausos as medidas que a
polícia está tomando, a fim de impedir a reunião de sediciosos e a continuação de seus
ataques à propriedade privada e aos trabalhadores pacíficos que não se deixam imbuir
pela loucura de doutrinas exóticas, inaclimatáveis em nosso meio”
309
.
No dia 11 de setembro, a segunda página traz em letras enormes a noticia sobre Os
maximalistas e a polícia do Rio
310
. No dia 12, na primeira página, aparece um texto
chamado Fermentos anárquicos, onde igualmente se defende a necessidade de repressão à
ação dos militantes, que no dizer do articulista, seguiam “um credo terrorista que procura
não deixar pedra sobre o edifício social criado sobre a civilização dos séculos”. Na
verdade, se mesmo nos países da Europa, que viviam sob “ditadura militar” como
Alemanha, Hungria e Rússia, o operariado já estava se afastando “iludido e cheio de
arrependimento desses ensaios monstruosos da tirania da plebe como eles dizem” (com
certeza uma referência à ditadura do proletariado), no Brasil onde havia liberdade e
abundância estas tentativas deveriam ser objeto de repulsa. Seguindo esta linha de
raciocínio, comenta-se um artigo de José Oiticica
311
no Spartacus que criticara os operários
que não apoiavam o movimento: “A única coisa que o operário tem a fazer, no seu modo
de ver doentio, é declarar guerra sem trégua a todas as instituições sociais, é este o estado
de ânimo desta escória maldita que flui e reflui, em ondas pestíferas sobre todos os países,
procurando conspurcar a consciência de trabalhadores pacíficos que sempre encontraram,
como as outras classes, dentro de nossas leis liberais e humanas, o remédio precioso aos
seus ferimentos”. Evidentemente, era função do estado afastar da nossa sociedade estes
estrangeiros sem lar que vinham perturbar a ordem: “Nossa polícia estará vigilante e não
308
A Federação. Porto Alegre, p.2, 9, set, 1919.
309
A Federação. Porto Alegre, p.1, 9, set, 1919.
310
A Federação. Porto Alegre, p.2, 11, set, 1919.
311
Um dos principais líderes do movimento operário no Rio de Janeiro, foi também o autor de um dos
programas do Partido Comunista do Brasil, em 1919.
190
permitirá que a escória social corrida de outros centros leve avante entre nós com
impudente exploração da credulidade pública os planos sediciosos gerados no delírio de
multidões distantes”
312
.
O tom e o tipo de acusação diferem da postura do jornal em episódios de mobilização
ocorridos nos anos anteriores. Na greve de 1917, por exemplo, a ação dos operários foi
considerada exemplar e a ação do governo Borges foi mostrada como a prova da eficácia da
doutrina de positivista para resolver os problemas sociais: “No Rio Grande do Sul pode-se
por tudo considerar incorporado à sociedade o proletariado graças ao estatuto político de
Júlio de Castilhos sob o qual vivemos”
313
. A ação de Borges inclusive seria uma barreira
contra a ação do socialismo, que na Europa trazia tantos prejuízos com “suas bandeiras
vagas, equivocadas e incoerentes
314
. Em 1918, quando a greve foi reprimida, A
Federação dá pouco destaque ao movimento, já que a ação policial foi rápida. Por este
motivo, se procura diferenciar a situação do ano anterior, pois o governo já resolvera o
problema da carestia, culpando-se desta vez os operários estrangeiros por desvirtuar o
trabalhador nacional: “Sabemos bem que o operário nacional está sendo explorado por
elementos estranhos ao nosso meio que pretendem medrar as idéias reacionárias que não
estão em relação com os nossos hábitos e com a situação econômica particular do
operário”
315
. Mas não havia ainda uma postura de associação sistemática do movimento
operário ou do próprio ato de entrar em greve, com um intuito subversivo influenciado pelo
maximalismo, nem tampouco uma insistência em mostrar os operários mobilizados como
loucos ou desvirtuados.
Esta mudança ao longo do tempo por parte do governo do Partido Republicano não
deve ser estranhada. Como mostra Tiago Bernardon de Oliveira, ao analisar a relação entre
Estado e movimento operário em diferentes unidades da federação, o Partido Republicano
Riograndense se diferenciava de outros partidos estaduais por ter uma abertura positivista
que permitia enunciar o discurso de incorporação do proletariado à sociedade, mas este
312
A Federação. Porto Alegre, p.1, 12, set, 1919.
313
A Federação, Porto Alegre. p.1, 3, ago, 1917.
314
A Federação. Porto Alegre, p.1, 7, ago, 1917.
315
A Federação. Porto Alegre, p.1, 23, ago, 1918.
191
discurso não era sempre seguido, prevalecendo uma mescla de cooptação e repressão
316
. A
postura do estado republicano mudou conforme seus objetivos e o grau de enfrentamento
com a classe operária. À medida que o movimento cresceu e passou a expressar seus
objetivos em linguagem revolucionária, mais repressivos se tornavam os métodos do
governo republicano. Na mescla de cooptação e repressão que o governo Borges usou em
relação ao movimento operário, o último aspecto levava larga vantagem em fins de 1919.
Mas os ataques ao movimento operário não haviam começado por ocasião da
repressão à greve, nem vinham somente do órgão oficial de imprensa do Partido
Republicano. O discurso articulado contra os operários se alimentava de argumentos que
circulavam antes mesmo do episódio do 7 de setembro e da descoberta dos panfletos
revolucionários. Tanto o maximalismo quanto as grandes mobilizações recebiam ataques da
imprensa conservadora. O Correio do Povo, como se pode ver na luta que O Syndicalista
travou contra ele, publicou uma série de reportagens sobre o que ocorria na Rússia dos
Soviets no primeiro semestre do ano de 1919. Em 12 de abril, publicou-se o artigo O que é
e o que quer o maximalismo. A causa do seu triunfo na Rússia e os seus objetivos
internacionais
317
, em 15 de abril, A insânia maximalista. A expropriação das mulheres
318
,
em 4 de maio, A Europa perante o bolchevismo
319
, em 25 de maio, O movimento socialista
na Europa
320
, em 28 de maio, A Rússia sob o maximalismo
321
, em 6 de julho Acerca da
Revolução Social
322
. Ao contrário d’O Syndicalista, a experiência russa é mostrada como
um desastre que só teria provocado miséria e fome, ou então verdadeiras aberrações, como
o decreto emitido em uma aldeia que considerava as mulheres um bem público sem
nenhum direito civil, como no caso da “socialização das mulheres”.
316
OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Mobilização operária na República excludente: um estudo comparativo
da relação entre Estado e movimento operário nos casos de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul
(1889-1920). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS (Dissertação de Mestrado), 2003. Sobre a relação do
Partido Republicano Riograndense com o movimento operário ver também QUEIRÓZ, César Augusto
Bubolz. O governo do partido republicano Rio-Grandense e a questão social: 1895-1919. Porto Alegre: PPG
em História da UFRGS, 2000. (Dissertação de mestrado).
317
Correio do Povo. Porto Alegre, p.5, 12, abr, 1919.
318
Correio do Povo. Porto Alegre, p.1, 15, abr, 1919.
319
Correio do Povo. Porto Alegre, p.2, 4, mai, 1919.
320
Correio do Povo. Porto Alegre, p.1, 25, mai, 1919.
321
Correio do Povo. Porto Alegre, p.1-2, 28, abr, 1919.
322
Correio do Povo. Porto Alegre, p.6, 6, jul, 1919.
192
Estas notícias não eram publicadas apenas como curiosidades de um país distante e
pode se ver nelas que O Syndicalista tinha uma boa dose de razão ao acusar o Correio de
tentar jogar a opinião pública contra as idéias apoiadas pelos militantes operários. No dia
20 e 21 de junho, publicou-se na primeira página do jornal um longo texto de Wenceslau
Escobar chamado As injustiças sociais, que tentava mostrar a inutilidade e a violência das
revoluções, como a russa, dando ênfase ao caráter naturalmente desigual dos homens, que
poderia ser “minorado” pela ação do estatal, dando educação à todos, por exemplo
323
.
Outros textos e artigos também foram publicados para mostrar que haviam alternativas às
mudanças sociais radicais que eram discutidas, principalmente, nos meio operários.
Aparece desta forma à 30 de março uma longa conferência de Ruy Barbosa Sobre a
questão social
324
e um texto do Monsenhor Fernando Rangel, em 17 de abril, sobre Uma
cruzada religiosa sobre as obras sociais
325
.
Nem estes textos, criticando as propostas mais radicais de mudança social, nem
aqueles textos que atacavam o bolchevismo russo considerando-o uma tragédia, podem ser
desligados uns dos outros, assim como não podem ser descolados do momento de intensa
mobilização em que eram publicados. Eles parecem atestar, entre outras coisas, a existência
de um medo provocado pelo grau de radicalização dos operários organizados, que vinha da
possibilidade destes seguirem o exemplo russo e abraçarem a idéia de “subverter a ordem”.
A ligação destas preocupações, atestadas pelos artigos publicados pelo Correio do Povo e o
teor dos editoriais do A Federação, também não parece ser fortuita.
Estas informações não pareciam interessar apenas aos editores de grandes jornais ou à
polícia. Um indício de um interesse mais generalizado (ou de uma preocupação mais
generalizada), pelo menos entre as classes mais abastadas, pode ser observado na promoção
de conferências para esclarecer o que era o bolchevismo e se ele poderia chegar aqui. O
jornalista português José Simões Coelho, d’O Século de Lisboa, esteve em Porto Alegre e
em Pelotas proferindo uma palestra intitulada O espantalho do maximalismo. Seus efeitos
cômicos e seus aspectos trágicos. A chamada para esta conferência no Rebate de Pelotas,
tomava a seguinte forma: É viável o maximalismo no Brasil, sendo apresentado como um
323
Correio do Povo. Porto Alegre, p.1. 20-21, jul, 1919.
324
Correio do Povo. Porto Alegre, p.12-14, 30, mar, 1919.
325
Correio do Povo. Porto Alegre, p.1, 17, abr, 1919.
193
assunto palpitante já que as “classes conservadoras” temiam a subversão da ordem
326
. Na
verdade, é possível que o tema do maximalismo e da atuação dos maximalistas não fosse
restrito aos círculos operários, mas pudesse ser bem mais difundido e compreensível para a
população geral do que parece a primeira vista. A Federação de 2 de outubro de 1919,
chama a atenção uma curiosa propaganda que tem como tema a ação de um maximalista:
UM MAXIMALISTA ATACA UM CAPITALISTA!
E diz-lhe:
Procurai a fábrica de fogos GAGEIRO, à rua 7 de abril, nº 6, telefone nº 3012 e gaste o vosso
dinheirozinho em foguetes para festejar todos os santos e todas as pândegas
327
.
A chamada “um maximalista ataca um capitalista” tinha o objetivo atrair a atenção
para, depois de lida a notícia, provocar risos pelo motivo bobo do “ataque”. Mas este efeito
só teria sentido se um ataque de um maximalista a um capitalista fosse algo esperado ou
que atraísse muito a atenção do público. Se assim for, a imagem dos militantes operários
que A Federação constrói, como perigosos seguidores de uma doutrina terrorista, podia ser
compartilhada por outras pessoas que também viam nas ações dos operários a perigosa
sombra do exemplo moscovita. Mas além das informações que podiam vir da Rússia, havia
mais um perigo: a infiltração de agitadores estrangeiros. Temia-se a vinda de agentes
soviéticos ao Brasil para semear o germe do bolchevismo, conforme atesta uma nota do A
Época, do Rio de Janeiro, publicada no Correio do Povo:
O maximalismo está tomando proporções assustadoras no Rio Grande. Em algumas cidades vem
sendo observada a aparição de indivíduos que se tornam, desde logo, suspeitos pelo seu modo de
proceder e que são evidentemente oriundos de longes terras. Procedem geralmente de Buenos
Aires, alguns permanecem algum tempo em Buenos Aires e depois desaparecem, como por
encanto, tomando rumos desconhecidos. Embarcam em sua maioria na Estrada de Ferro São
Paulo- Rio Grande.
Quem serão? O público acredita que se tratam de maximalistas, dessa gente exportada da Rússia
a fim de fazer a revolução social no estrangeiro, como na Argentina.
Depois dos últimos movimentos grevistas, de que foi teatro Buenos Aires, a polícia exerce forte
pressão sobre esses homens suspeitos. Eles procuram outro campo de atuação e como o Brasil
326
O Rebate. Pelotas, p.2, 10, jun, 1919.
327
A Federação. Porto Alegre, p.7, 2, out, 1919.
194
está mais próximo, é escolhido para vítima, e como encontram máxima facilidade de entrar no
porto e na fronteira, a onda estranha aqui penetra irradiando por todo o país.
A propósito destes indivíduos, tive conhecimento, através de um noticiário de um jornal de
Uruguaiana, de um fato que não posso deixar de relatar.
Era hora do jantar, num dos hotéis da cidade onde costumam se hospedar estes adventícios. Três
se sentaram à mesa e começaram a conversar animadamente, em francês. Um oficial do exército,
hóspede do mesmo hotel e ali de passagem, ouviu-os casualmente e percebendo que a palestra
era em torno do maximalismo, prestou-lhes a maior atenção. Os três indivíduos, desconfiados
que eram compreendidos, passaram a palestrar em inglês sobre o mesmo assunto. Verificando,
ainda, que o oficial conhecia a língua inglesa e apesar das cautelas deste, fizeram uso língua
russa. O militar, entretanto, estava enfronhado nos segredos da língua do ex-Império Moscovita.
Ainda uma vez, trocaram de língua, usando mais tranqüilos, da polaca, mas o oficial brasileiro
ainda desta vez, podia entende-los, porque também tinha conhecimento da língua falada na
Polônia.
Os hospedes palestrando sempre, continuaram a fazer considerações sobre a teoria de Lenine,
sua aplicação no Brasil, os meios de aplicação etc. Diziam que não valia a pena agir nesta
cidade, porque aqui seriam assassinados, deviam seguir para São Paulo e Rio, campos de ação
mais vastos, com fáceis meios de se ocultarem da polícia e centros mais ou menos trabalhados
por companheiros que ali se encontravam”
328
.
A história é pouco verossímil, tanto pela exportação tão precoce de agentes soviéticos
para o Brasil, quanto pela quantidade de línguas faladas pelo oficial do exército brasileiro.
Mas este tipo de artigo, que a primeira vista não passa de uma peça de propaganda contra o
radicalismo do movimento operário, pode ter produzido efeitos concretos na ação da
polícia. Um comunicado enviado pelo subchefe de polícia de Porto Alegre ao delegado de
Santiago do Boqueirão, uma pequena cidade encravada no centro das Missões, atesta os
efeitos do medo maximalista:
Reservado ao delegado de polícia de Santiago do Boqueirão. 9/6/1919.
Estando governo uruguaio expulsando agitadores maximalistas procedentes Argentina, convém
empenheis máximo esforço sentido serem tomadas rigorosas medidas evitar entradas mesmos
território brasileiro, porém se conseguirem não deveis deportá-los sem que seja esta chefia
avisada e ouvida respeito. Tais indivíduos acompanham mulheres de vida fácil. Saudações
Gomes Bento, Chefe Polícia.
329
Não estava longe o dia em que o governo justificaria o ataque aos militantes como uma
legítima ação contra os insanos e desumanos maximalistas brasileiros, não só influenciados
por exemplos longínquos, mas possivelmente por perigosos agentes que viriam perturbar a
328
Correio do Povo. Porto Alegre, p.10, 19, jun, 1919.
329
Maço 111. Chefatura de polícia de Porto Alegre. Telegrama nº 45000, folha 56, data 7, hora 19.
195
paz social do país. Estes não eram apenas maximalistas ou anarquistas, adeptos de uma
doutrina que pretendia derrubar a sociedade de classes, eram muito mais que isso, eram
bandidos que seguiam idéias monstruosas e imorais, por isso deviam ser destruídos. Mesmo
uma revista aparentemente inócua como a Revista Máscara, de Porto Alegre, faz eco a
estas idéias, quando na edição de 4 de outubro de 1919, apresenta a foto de 4 operários, um
dos quais Zenon de Almeida, sob uma sintética legenda: Praga Maximalista
330
.
As acusações contra os estrangeiros, o tratamento como loucos ou bandidos, a
acusação de exploração do pacífico operário nacional, o medo dos agentes enviados de
Moscou, lembram sob muitos aspectos o anticomunismo desenvolvido por setores da elite
dirigente brasileira e sua instrumentação contra o movimento operário ou os partidos de
esquerda. Rodrigo Patto de Sá Motta mostra que o anticomunismo nasceu junto com a
revolução russa em 1917. A vitória bolchevista e as revoluções que vieram na sua
seqüência, juntamente com a instabilidade do pós-guerra, provocaram nas classes
dominantes de diversos países o medo de que o exemplo russo fosse imitado pelas suas
respectivas classes operárias. Os governos, apoiados por outros grupos sociais, teriam então
se lançado à repressão e à propaganda anticomunista. A elite brasileira teria então, já a
partir de 1917, se empenhado em denegrir o perigoso exemplo maximalista importando
modelos e idéias correntes nos países europeus
331
. Isto se confirma, no caso do Rio Grande
do Sul, pela recorrência de artigos como os do português João Grave sobre a Rússia, ou
pela vinda do diretor d’O Século de Lisboa para palestrar sobre o assunto. O que discordo
de Sá Motta é sobre sua opinião que, antes da revolução de 1930, o bolchevismo nunca
tenha sido encarado como um perigo real, sendo visto apenas como uma aberração de terras
distantes. As fontes jornalísticas e a ação policial, em nosso caso, parecem não confirmar
tal hipótese.
Ver em alguma associação ou em algum militante o perigo do bolchevismo pode ter
se tornado um fato corriqueiro. No início de 1920, o presidente da Sociedade União dos
Foguistas do Rio de Janeiro, Alcebíades Romão Garrido, veio a Rio Grande resolver um
330
Revista Máscara. Porto Alegre, 4, out, 1919.
331
SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. Em guarda contra o "perigo vermelho": o anticomunismo no Brasil (1917-
1964). São Paulo: Perspectiva, 2002. Sobre os primórdios do anticomunismo, ver também RODEGHERO,
Carla Simone. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e Igreja Católica no Rio
Grande do Sul (1945-
1964). Passo Fundo: Ediupf, 1998.
196
problema com o delegado local. Tendo sido preso por causa de um conflito, seu advogado
produziu um pedido de hábeas corpus em que acusava o Capitão do Porto de perseguir a
União e tratá-la como um grupo de subversivos. Os termos usados pelo advogados foram
bastante significativos: “E, cavilosamente, para bem de seu temperamento virulento,
atrabiliário, fez da Sociedade dos Foguistas um covil de Bolchevikis, dos bons, dos
legítimos, ajuntando, à maravilha, na pobre cabeça do delegado da sucursal do Rio
Grande a gorra de Trotsky, e do paciente [o presidente da União dos Foguistas], a do
presidente Lênin...”
332
O Capitão do Porto, Américo Azevedo Márquez, respondeu indignado aos adjetivos e
ao papel que o advogado lhe atribuía. Mas não seria nada estranho o uso de termos como
“covil de bolcheviques” por parte de uma autoridade; termo inclusive que o advogado
repete mais adiante e sublinha a cada vez que cita. Quantos “covis de bolcheviques” como
estes podem ter existido no Rio Grande do Sul para as autoridades do Estado? E como
todos os “covis”, em vez de militantes operários, não estariam cheios de bandidos que
mereceriam o devido castigo?
6.3. Rumo à década de 20: o sonho da revolução desfeito entre disputas internas e
ataques da classe dominante
Não foi possível, no âmbito deste trabalho, mapear em toda a complexidade a
“coligação social” que se opôs à força crescente do movimento operário, mas é perceptível
a existência de uma série de ações violentas por parte da polícia, dos grandes jornais e do
partido dominante contra os trabalhadores organizados. Em um momento de acirramento
dos conflitos sociais, a imagem dos militantes como “bandidos” ou “insanos” era uma arma
por parte da classe dominante para enfraquecer o movimento, ao mesmo tempo em que
respaldava a ação repressiva desencadeada contra os trabalhadores.
Estes episódios não foram nada excepcionais na trajetória da classe operária
brasileira, nem podem ser explicados somente pela influência da revolução russa, que fez
332
Pedido de hábeas corpus a Alcebíades Romão Garrido. Maço nº 34, processo nº 3144, do Foro Federal de
Porto Alegre. 1920. fl. 4.
197
com que os militantes usassem termos revolucionários e projetassem a derrubada da classe
dominante. Marcelo Badaró Mattos, estudando a ação repressiva da polícia carioca entre a
segunda metade século XIX e início do século XX, mostrou como as tentativas de
organização e as ações de rebeldia por parte de escravos e operários, à medida que
tomavam formas mais articuladas, iam moldando a ação policial, que tentava respondê-las e
sufocá-as. Desnecessário é dizer que esta montagem do aparelho repressivo era sentida por
suas vítimas e tinha conseqüências para as suas organizações: “Girando nossa atenção
para o pólo oposto, o dos trabalhadores, nas primeiras décadas da República essa ênfase
repressiva policial sobre suas organizações e manifestações era um dado sensível no
cotidiano[...] Em outros momentos, a ação repressiva ia, como vimos, muito além da
vigilância ostensiva, atuando para desmontar os episódios grevistas até mesmo por
infiltração no movimento dos trabalhadores”
333
.
Girando para o pólo oposto da onda repressiva de fins de 1919, é necessário observar
como os militantes responderam a ela, como se sentiram em relação às forças sociais que os
reprimiam com cada vez mais vigor e que faziam se apagar os sonhos de mudar o mundo
que haviam acalentado com tanta esperança.
Nos jornais onde os militantes escreviam é possível encontrar referências à estas
experiências de ação repressiva, como a crítica à violência policial e à censura da
circulação de informações. Em Porto Alegre, onde o baque parece ter sido maior, O
Syndicalista na sua edição de 24 de novembro de 1919, fez um balanço daquele ano e abriu
algumas perspectivas para o ano seguinte. O texto começava reafirmando os valores do
sindicalismo, a ação positiva da FORGS entre as entidades, além de comentar as greves
vitoriosas dos tecelões e a greve derrotada dos chapeleiros, perseguidos pela polícia apesar
de fazerem uma parede pacífica. Contrastando com o início relativamente otimista, a parte
final do texto, que falava da greve da Força e Luz, era bem mais lúgrube, retratando o novo
momento que os trabalhadores organizados viviam na capital:
333
MATTOS, Marcelo Badaró. Greves e repressão policial na formação da classe trabalhadora carioca (1850-
1919). In: MATTOS, Marcelo Badaró (org). Trabalhadores em greve, polícia em guarda. Greves e repressão
policial na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto / Faperj, 2004. pp.52-53.
198
A greve dos operários da Força e Luz terminou pelo terror implantado nas ruas de Porto Alegre.
Um meeting dissolvido à bala e a casco de cavalo. Um morto e vários feridos. A Federação
Operária invadida e estúpida e violentamente destruído tudo que estava lá.
Prisões em massa. Operários maltratados por criaturas do serviço ingrato de defender os
argentários.
O Sindicato dos Operários da Força e Luz, como a sede da F.O. fechado e os seus diretores
presos. O enterro da pobre vitima da autoridade, perturbado pela provocação ostensiva da
polícia, com ordens de fuzilar os trabalhadores.
Os trabalhadores nesta greve aprenderam muito e oxalá lhes seja útil para o futuro.
Encerrando essa rápida notícia sobre os principais fatos operários ocorridos no ano que finda, a
F.O. lembra aos trabalhadores que mais do que nunca é necessária a união das classes
trabalhadoras para resistir à onda reacionária que ameaça anular todas as nossas conquistas para
fazer retrogradar a mais abjeta escravidão.
334
Havia passado apenas dois meses da publicação do texto de Zenon de Almeida, que
vaticinava o fatal desenlace da maré montante de greves desaguando na revolução social. O
balanço daquele ano apontava para outro desenlace possível: a reação. Na mesma página
d’O Syndicalista, havia outras notícias que testemunhavam os efeitos da repressão. Pavel
Pawlowsky (pseudônimo de Abílio de Nequete) em um artigo chamado “A República
desrespeita a sua constituição” reclamava da censura ao jornal Spartacus, vindo do Rio de
Janeiro, que o “companheiro Nequete” recebia para venda avulsa. Os jornais foram
proibidos de serem entregues, pois deveriam ser queimados. Também se noticiava a estada
em Porto Alegre do militante operário João da Costa Pimenta, obrigado a vir ao Rio Grande
do Sul por ter sido deportado de São Paulo por ordem do governo daquele estado
335
.
Não na capital havia reclamações. O Nosso Verbo de Rio Grande reapareceu em
janeiro de 1920 depois de ter parado de circular por cerca de três meses porque “motivos
alheios à nossa vontade a isso nos obrigou[sic]”. Nesta edição, publicou-se um artigo
chamado A Constituição da República, em que a ação dos republicanos no período
monárquico é comparada à dos maximalistas no período republicano. O centro da questão
não era a comparação de ações ou ideologias, mas o tratamento dado aos revolucionários
do período anterior e aos revolucionários daquele momento:
334
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 24, nov, 1919.
335
Idem.
199
Quando estava para a monarquia, os republicanos (inclusive os estrangeiros), como posso
provar, criticavam que neste país não havia liberdade, mas porque eles queriam galgar as
culminâncias do poder, em defesa [...] dos seus interesses. Hoje quando nós os comunistas
analisamos os atos institucionais dessa camarilha, nos mandam trancafiar, e graças não
pagarmos com a vida sermos comunistas, regime puro e de igualdade social, regime de
humanidade, liberdade e justiça, que diz bem alto quem trabalha não come!
336
Aqui, não é militar no movimento operário ou organizar-se em sindicatos combativos
que motiva as perseguições pelas autoridades, mas o fato de “ser comunista”, que é um
motivo bom o suficiente para ser trancafiado e quase perder a vida. Esta pressão a que
podiam estar submetidos os que se diziam comunistas ou simpatizavam com a Rússia
bolchevista, também aparece em um texto publicado na Coluna Operária d’O Rebate, mais
ou menos um mês depois do texto A Constituição da República. O artigo Quem semeia
vento começava criticando a campanha movida contra as idéias revolucionárias que haviam
agitado os militantes: “Acabou-se, isto é, passou o carnaval, mas continuará por certo a
propaganda contra o maximalismo, contra os trabalhadores comunistas russos, que a três
anos aproximadamente vem atraindo a atenção do mundo, com seu ideal criador de novas
formas de vida”
337
.
Não é uma tarefa simples medir ou avaliar o efeito destas ações movidas contra as
organizações, os militantes e mesmo as suas idéias. Pode-se ler as denúncias nas páginas
dos periódicos onde escrevem os trabalhadores, pode-se observar as campanhas
difamatórias dos grandes jornais e avaliar os choques da polícia contra a multidão de
grevistas, mas não é possível conhecer a reação de muitas vítimas anônimas ou mesmo dos
trabalhadores não militantes diante destas situações. Também é complicado avaliar as
possíveis seqüelas que atingiram as organizações, tanto em sua relação com os
trabalhadores não militantes, quanto entre os membros destes grupos. Se é difícil avaliar
estas conseqüências, também o é analisar o que passou a significar a doutrina dos
bolchevistas russos, quando se articulou uma campanha contra estas novas idéias,
considerando-se demente e criminoso quem as seguia. Mesmo assim, acredito que é
possível lançar uma hipótese de que as primeiras divergências em torno da aceitação ou não
do comunismo estariam diretamente ligadas a estas seqüelas da repressão que
336
O Nosso Verbo. Rio Grande, p.4, 12, jan, 1919.
337
O Rebate. Pelotas, p.1, 25, fev, 1919.
200
desorganizaram e dividiram as associações de trabalhadores, além de fazer parte de um
processo em que os militantes vão perdendo suas perspectivas de mudança revolucionária
diante dos ataques da classe dominante.
A forma como Abílio de Nequete reagiu depois do fracasso da greve da Força e Luz é
uma prova de que estas derrotas levam a uma perda de confiança nos meios de luta.
Segundo seus Cadernos de Memórias, os episódios de 7 e 8 de setembro de 1919
mostraram à Abílio que tudo estava errado”. Quando questionado por Maximiliano
Ouriques o que deveria fazer “sugere aos companheiros formar uma biblioteca para
selecionar textos que ajudem a organizar-se”
338
. O caso de Zenon de Almeida também é
representativo do efeito desorganizador da repressão sobre o movimento: depois da invasão
do prédio da FORGS, os líderes resolveram montar um O Syndicalista com fotos da
destruição promovida pela polícia. Como usaram pseudônimos em seus artigos, tiveram de
“se explicar” para o Chefe de Polícia e Zenon de Almeida foi o único que não reconheceu
sua assinatura
339
. O episódio lhe valeu a perda de confiança por parte dos companheiros e
seu afastamento do grupo dirigente da FORGS. Zenon de Almeida tentou fundar um novo
jornal operário em Porto Alegre, chamado o Spartacus do Sul, mas seu empreendimento
não teve êxito e logo ele foi embora para Pelotas. Diferente de quando foi fundada a União
Maximalista, mais ou menos um ano antes, o momento não era mais propício para a
formação de novos grupos militantes dentro do movimento operário.
Nem todas as conseqüências são tão imediatas ou tão visíveis como estas. A repressão
pode promover reorganizações dentro do movimento operário, fazendo vir a tona conflitos
latentes, como parece ter sido o caso do 2º Congresso Operário Regional. Entre os
episódios de setembro de 1919 e as reuniões de março de 1920, houve uma mudança
qualitativa na relação da União Maximalista com a principal associação de classe da
capital, a FORGS. Antes dos episódios de setembro, os maximalistas e seu líder Abílio de
Nequete haviam aparecido apenas uma vez n’O Syndicalista, o órgão oficial da Federação
Operária, quando o militante libanês pedia doação de livros para a formação de uma
biblioteca. Depois da repressão de setembro, Nequete se torna uma presença constante no
338
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Anotações dos cadernos de Abílio de Nequete. Datilografado. s/d.
339
KNIESTEDT, Friedrich. Op. Cit. p.130.
201
jornal. No dia 8 de novembro existe na página 3 um Apelo aos soldados
340
, explicando
que, ciente das dificuldades em que viviam tanto operários quanto militares, um pedido era
dirigido a estes últimos para que não fossem mais “carrascos” dos trabalhadores, rogando
que em breve os dois grupos se unissem para lutar contra os “tiranos”. O apelo vinha
assinado por um Comitê de Operários e Soldados. Mesmo sendo impossível provar a
autoria ou mesmo a existência de tal comitê, esta iniciativa muito se assemelha ao intento
de unir os dois grupos levada a cabo por Nequete dois anos antes, quando ele distribuiu
entre os praças o boletim Ao povo Rio grandense.
No dia 24 de novembro, foi publicado o já citado artigo A República desrespeita sua
Constituição, escrito por Pavel Pawlovsky, pseudônimo de Abílio de Nequete
341
. Na
mesma primeira página havia também uma coluna chamada As Evidentinas, composta de
textos curtos sobre a evolução das idéias, sobre a vitória do maximalismo, algumas citações
de Max Nordau e uma parábola sobre a maneira como os capitalistas tratavam os operários
que não se rebelam. A coluna se chamava As Evidentinas porque eram escritas pelo
Máximo Evidente, ou seja, Abílio de Nequete
342
. Esta coluna continuaria existindo mesmo
após o 2º Congresso, pois na edição de 15 de abril d’O Syndicalista ela aparece na terceira
página do jornal, exatamente ao lado do texto que denunciava o caráter não sindicalista da
revolução russa
343
.
Não se tratava apenas de publicar textos n’O Syndicalista, o que com certeza era algo
importante, mas também de agir na organização da FORGS. No dia 8 de novembro, na
nominata da administração do jornal, a gerência d’O Syndicalista apareceu sob o nome de
Maximiliano Ourique
344
. Este militante é citado mais de uma vez nos Cadernos de Abílio
de Nequete. Foi a ele que Nequete se dirigiu para explicar que estava tudo errado com a
tática adotada na greve de setembro e que se deveria estudar mais a teoria. Foi junto de
Maximiliano Ourique também que Abílio de Nequete estava quando resolveu reunir os
operários, após o comício do dia da Independência, para dirigir-se a FORGS a fim de
340
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 8, nov, 1919.
341
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 24, nov, 1919.
342
Idem.
343
O Syndicalista. Porto Alegre, p.3, 15, abr, 1920.
344
O Syndicalista. Porto Alegre, p.2, 8, nov, 1919.
202
contar os feridos
345
. É provável, até pelo fato de Nequete lembrar-se dele nestas ocasiões
importantes, que Ourique não só fosse da confiança de Abílio de Nequete, mas que fosse
membro da União Maximalista. Além disso, membros da União Maximalista aparecem em
posições chave da organização do Congresso Operário Regional de 1920. Para prepará-lo
foi formada uma Comissão de três pessoas composta por Abílio de Nequete, Carlos Tóffolo
e Friedrich Kniestedt
346
. Tanto Nequete quanto Tóffolo eram da União Maximalista, sendo
que este último também era presidente da União Metalúrgica de Porto Alegre.
Esta aproximação pode ter se dado pela perda de força dos “anarquistas da Azenha”,
com os quais Nequete mantinha laços, depois do desastroso comício de 7 de setembro (do
que pode ser uma prova o fato do Sindicato da Força e Luz não ter enviado um
representante sequer para o 2º Congresso), ou também pela necessidade de unir os grupos
operários mais influentes para combater a onda da reação. Mas o crescimento dos
maximalistas não deve ter sido visto com bons olhos por alguns anarquistas. Friedrich
Kniestedt, que conhecia os bolchevistas e combatera os marxistas na Alemanha, parece ter
sido um destes. Depois de ter passado todo período de ascensão de lutas repisando os
princípios do anarquismo e alertando para os “estados econômicas” e “organizações
eclesiásticas”, ele publicou, n’O Syndicalista de 8 de novembro, o artigo Problemas
futuros do sindicalismo operário. No texto, ele mantém a mesma posição de sempre,
reafirmando que a única forma de fazer a revolução social seria tendo como base o
sindicato, mas desta vez Kniestedt ataca mais precisamente alguns perigos que punham em
risco a organização operária: os enganos com uma revolução política e a ilusão das
mudanças sociais por decreto:
Queremos realizar uma revolução social e não uma revolução política, são dois fenômenos
totalmente distintos. Para o fim que temos em vista significa qualquer desvio para o terreno
político a perda de força propagandística em favor da boa causa.
O que poderia acontecer se graças a uma agitação parlamentarista se formasse uma maioria e lhe
seguisse o emposse [sic] da propriedade por um governo socialista? Poderia chegar este governo
a realizar uma transformação social através de decretos. Eis o que é mais do que inverossímil.
Dar-se-ia o que vimos em 1871 com o levante da Comuna. Quando a Assembléia
Revolucionária decretou que os operários entrassem na posse das oficinas abandonadas, quase
345
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Op. Cit.
346
O Syndicalista. Porto Alegre, p.4, 24, nov, 1919.
203
não passou de um decreto de letra morta, porque, infelizmente, não havia lhe precedido uma
educação econômica e social dos operários
347
.
A relação entre Kniestedt e o representante da União Maximalista não foi muito
pacífica durante a preparação do Congresso, pois Nequete afirma que foi o autor de suas
teses, enquanto o militante alemão diz que fez todo o trabalho sozinho. As disputas no 2º
Congresso foram fruto deste enfrentamento. Ou seja, ela não foi fruto de um
“desmascaramento” do caráter marxista da revolução e mesmo que isso tenha acontecido,
não houve um repúdio geral por parte do Congresso, já que a assistência levou a questão
por horas a fio. Parece mais crível a indicação que Nequete dá em suas memórias, que sua
palavra “foi cassada por não representar nenhuma entidade sindical”
348
. É provável que a
rejeição da proposta de adesão à III Internacional não tenha a ver necessariamente com o
caráter marxista da organização, mas com o seu caráter político, incompatível com uma
entidade sindical como a FORGS, o que de resto concordaria com os artigos escritos por
Kniestedt.
Mais além de um debate sobre a orientação marxista, sindicalista ou anarquista das
associações, estas discussões marcam um momento de cizânias e dificuldade de ação
conjunta que seriam impossíveis de contornar em casos como o da União Maximalista, que
se afastaria da órbita da FORGS após o II Congresso. Abílio de Nequete e alguns de seus
companheiros da União Maximalista, a propósito, abandonariam também o movimento
operário alguns anos depois.
Este desenho de alianças e disputas é factível para o caso de Porto Alegre, pois na
capital existe maior abundância de fontes, além das memórias dos protagonistas, o que não
ocorre em outros lugares. Em locais como Pelotas, é necessário trabalhar com material mais
escasso, pois os únicos testemunhos das lutas internas deste período que localizei são os
artigos Manoel Bordalló n’O Rebate. Este militante se sentiu ofendido com o procedimento
de alguns companheiros que se diziam libertários e maximalistas, mas moviam uma
campanha contra outros companheiros de luta. Bordalló, disposto a abandonar a militância
por este estado de coisas, expõe toda sua indignação no texto A derrocada:
347
O Syndicalista. Porto Alegre, p.1, 8, nov, 1919.
348
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Op. Cit.
204
Dão-se quotidianamente casos e produzem-se fatos que se não deixam de todo espantados,
conseguem, pelo menos chamar atenção, e um desses casos é o que tratarei de expor a todos
aqueles que se derem ao trabalho de ler esta coluna.
Existem aqui em Pelotas grupos de seres semelhantes a homens que se dizem libertários, livres
de preconceito, inimigos da moral burguesa, revolucionários convictos, anarquistas e muitas
outras coisinhas da mesma categoria, e com este grupo acontece o mesmo que com os
materialistas, quando menos julgam estão sob domínio dos espíritos.
Dizem-se libertários e querem ser, ou já o são, verdadeiros ditadores, não se admitem que se lhes
mostrem os erros , querem ser infalíveis, absolutos, e para tais seres os outros, são, sem exceção
de um só, seres atrasados, sem critérios, homens a quem não se pode confiar coisa nenhuma;
este é que é o primeiro erro, são libertários e querem impor aquilo que eles bem entendem,
quando não podem, fogem, não comparecem às reuniões, com receio de serem desmascarados
na presença de todos.
Dizem-se livres de preconceitos e enfurecem-se, rabiam-se, esperneiam, gritam, berram, dão
guinchos, ficam hidrófobos quando lhes apontam um erro, uma falta cometida.
O pândego é o que grita; os burgueses são uns canalhas, perseguem os trabalhadores, forma
intrigas nos seios operários, difamam os mais conscientes e ativos...
E esse grupo procede da mesma forma; eles criticam, difamam, caluniam, a prova está, clara,
palpável, insofismável, essa prova é o proceder destes seres com os inteligentes camaradas
Zenon de Almeida, Santos Barbosa e ultimamente Alberto Lauro (M. Rita); intrigam-se estes
camaradas com os operários de Pelotas, difamaram os mesmos e agora se descobre que é tudo
inveja, tudo orgulho baixo e mesquinho, tudo pretensão, mal íntimo; e a conclusão que chego é
que estes seres semelhantes que formam este grupo são mais canalhas e porcos que a burguesia;
estes ao menos combatem aos que a prejudicam, o açambarcamento, a exploração, mas estes?
Intrigam, difamam, caluniam os seus próprios amigos, os seus próprios camaradas de idéias,
aqueles que são mais inteligentes do que todos eles juntos.
Há quatro ou cinco anos, todos eles eram anarquistas, por entusiasmo ou vaidade, ou mesmo por
inveja de não poder dominar como atualmente governa a burguesia, mas por convicção; agora já
não mais anarquistas, são maximalistas, são ditadores e dizem-se maximalistas por convicção, já
não são mais anarquistas convictos, são maximalistas.
Um qualquer que fique de parte e julgue estes tais libertários, concluem que são uns idiotas, uns
pobres diabos que o acaso fez com que a organização operária lhes caísse de joelhos, julgando-
se ao lado dos seus amigos, dos seus defensores, sem no entanto investigar, meditar, ver enfim
que são uns infelizes, uns excitados qualquer, mais covarde que qualquer ladrão.
Dizem eles, como todas as coisas, que a derrocada da burguesia se aproxima, mas quem analisar
sem paixões, sem orgulho, sem critério, verá facilmente que em tal passo o que se aproxima é a
derrocada do pouco que fizeram os três companheiros citados acima, será em tal passo mais fácil
a derrocada do maximalismo, da ditadura operária, do que a da burguesia, e daqui destas colunas
digo: a doutrina, o programa maximalista, é sublime, é justo, é aceitável, é racional, mas se é
posto em prática da mesma forma que se propaga, ou melhor, que é propagada por este grupo,
desgraçado do povo russo, infeliz da Rússia que será uma nação de canalhas e malucos, de
patifes, difamadores e intrigantes de tal força.
Se os russos são de tal convicção como estes, maldito seja o maximalismo.
Sou e serei revolucionário, não posso adapatar-me a este ambiente, desejo uma sociedade livre,
como livre é o sol, não é a ditadura que eu quero, eu quero é a anarquia, mas vou afastar-me
daqui em diante da propaganda até que o povo de Pelotas resolva correr a ponta pés, da liga,
todos estes sátrapas.
205
Aqueles que são homens, que tem vontade, que desejam de fato a transformação da sociedade,
aqui me tem as suas ordens para toda e qualquer coisa que vise o bem estar dos trabalhadores.
Retiro-me porque não quero pactuar com tais organizadores, não quero ser vítima da derrocada
bestial de tais malucos.
349
No dia 5 de julho, Manoel Bordalló voltaria a carga, referindo-se a calúnias e
difamações que alguns militantes estariam espalhando sobre ele, tentando fazer “intrigas”
como haviam feito com Santos Barbosa, Zenon de Almeida e Alberto Lauro. Trata-se do
mesmo grupo que Bordalló atacara no artigo A derrocada, os mesmos que se diziam
maximalistas e agiam como ditadores, só que desta vez os nomes destes são citados:
Antônio Luis da Silva, Pedro Bischoff, Luiz Bezerra e José Martins
350
.
Mesmo que Bordalló tenha revelado os nomes dos maximalistas, a origem do
problema não é clara, nem é tampouco o papel que o maximalismo e o anarquismo teriam
nesta disputa. O que estava ocorrendo não parece se encaixar na tradicional dicotomia dos
aderidos ao comunismo contra os arraigados ao anarquismo. Segundo o autor do artigo, os
“difamadores” também se diziam anarquistas, libertários e “outras coisinhas do mesmo
tipo”. O maximalismo em si também não era um problema para Bordalló, muito pelo
contrário, pois ele o considerava uma doutrina sublime, justa, aceitável e racional. Qual
seria a orientação deste grupo então? Será que, como muitos que se referem a este período,
vivia-se apenas uma grande confusão?
Acredito que esta situação pode se tornar mais clara por intermédio de uma analogia
com o que acontecia em Porto Alegre. Assim como havia ocorrido uma crise no movimento
operário da capital, causada pelo crescimento da União Maximalista no âmbito da FORGS
depois de uma reorganização de forças, em Pelotas existia um grupo de militantes cujo
movimento “caíra de joelhos por obra do puro acaso”, antagonizando a partir daí
tradicionais lideranças, algumas de renome nacional. O que pode ter ocorrido é o
surgimento de um grupo ascendente, que pretendia se impor sobre as tradicionais
lideranças, mais visadas pelas perseguições policiais, aderindo a novas concepções. As
acusações jogadas contra os “velhos militantes” talvez não fossem necessariamente
causadas pelo seu anarquismo, mas por apego a velhas formas de lidar com a organização.
349
O Rebate. Pelotas, p.1-2, 15, jun, 1920.
350
O Rebate. Pelotas, p.1, 5, jul, 1920.
206
Isto, de qualquer forma, é só uma hipótese. O que fica de concreto é que o problema não
era o maximalismo, mas a ação de determinados maximalistas.
Tanto o que ocorreu em Porto Alegre, quanto o que ocorreu em Pelotas, apresentam
semelhanças que ajudam a entender estas primeiras disputas em torno dos rumos da
revolução russa. Estas cisões não teriam nascido no momento exato em que chegaram as
notícias das perseguições aos anarquistas, como faz crer as memórias de muitos libertários,
como Luce Fabbri. Ao invés disso, encarnariam predisposições ou mesmo conflitos
latentes, que havia se gestado quando este tema ainda não era objeto de disputa. Nisto se
encaixa a predisposição negativa de Kniestedt frente ao marxismo ou a divisão entre um
grupo ascendente e as tradicionais lideranças no hipotético caso de Pelotas. Seriam então as
primeiras querelas entre anarquistas e comunistas (ou maximalistas, para manter o termo da
época), fruto apenas de atritos entre lideranças ou frações?
Parece que não. Deve-se considerar a dinâmica interna ao movimento operário, a
relação entre militantes, diferentes associações, alianças que vão se aglutinando ou se
repelindo, mas neste caso, o processo perde todo o sentido se não for ligado ao contexto
mais amplo das lutas da classe operária. É bem verdade que, como afirma Hobsbawn, o
movimento operário não pode ser identificado com a classe operária, mas o contrário não é
verdadeiro. As associações de trabalhadores e os militantes que a constituem fazem parte
da classe operária, tirando sua força da capacidade de mobilização dos trabalhadores e da
sua capacidade de enfrentar a classe dominante. Os momentos em que a revolução russa foi
evocada com mais força e mais tinha sentido para os militantes, foram aqueles de
recrudescimento destas lutas, pois nestes momentos era factível sonhar em imitar os
bolchevistas russos e derrubar aqui mesmo o Estado e a burguesia. Quando a onda da
reação cresceu, a capacidade de ter sucesso em grandes mobilizações se viu prejudicada.
Isto abateu a moral dos militantes e esterilizou muito do esforço organizativo. O sonho da
revolução se desfez diante de fracassos como a greve da Força e Luz ou a insurreição de
paulista de outubro de 1919. Da mesma forma, deveria ser complicado, ou até mesmo
perigoso, em um clima de perseguição e campanha pública contra o maximalismo, tentar
ganhar novos aderentes para as idéias revolucionárias que vinham da Rússia.
207
O bolchevismo ou o maximalismo passaria de uma “linguagem da união” por um
objetivo revolucionário, para uma “linguagem da divisão”, onde companheiros atacam-se
uns contra aos outros por seguir este ou aquele princípio de luta. Em um momento de
retração do movimento, as relações entre militantes se tornam mais difíceis, há menos
segurança para projetar o futuro, as novas idéias, outrora um fator de radicalização, se
tornam um ponto de discórdia para os militantes. Com isto não se quer dizer que muitos
anarquistas sinceros não se viram traídos em suas concepções e passaram a lutar contra
aquilo que achavam um terrível engano, ou que outros militantes, também sinceros,
atraíram-se pelo maximalismo por ver nele o verdadeiro futuro do movimento operário. O
que não se deve fazer é analisar os fatos como se fossem dependentes somente de debates
internacionais ou de acontecimentos longínquos, já que os destinos do movimento operário
eram decididos nas lutas que aqui empreendiam estes militantes.
Levando em conta estes fatores, acaba tendo um outro sentido as afirmações de
Kniestedt sobre o efeito perverso do bolchevismo, que em menos de um ano havia semeado
a discórdia entre os operários e embotado a capacidade de ação do movimento. Mais
próximo da realidade talvez esteja Abílio de Nequete quando escreve, em 1922, sobre os
problemas que se abatiam sobre as organizações operárias. A par de uma suposta campanha
anarquista contra os partidários da revolução russa, o militante sírio-libanês coloca os
efeitos das perseguições aos militantes como fator desagregador, que impedia o
entendimento entre os militantes e semeava mágoas e decepções:
A reação começa e houve várias deportações dos melhores militantes, para a Europa dos
estrangeiros e para os estados dos nacionais. Nesse tempo começava a acentuar-se uma reação
anarquista contra o bolchevismo. Alguns militantes (dois) anarquistas bolchevistas deportados
para Porto Alegre e que durante a deportação estiveram conosco, falando da reação de alguns
anarquistas contra os bolchevistas disseram:
JOSÉ OITICICA E OS MELHORES ANARQUISTAS DO RIO DE JANEIRO
RECONHECEM TER FALIDO A TÁTICA ANARQUISTA, E POR ISSO APOIAM O
BOLCHEVISMO. (Oiticica é um dos autores do programa do PCB) A reação anárquica ganha
terreno assombrosamente e, em março e abril de 1920, nos Congressos operários: regional, em
Porto Alegre, e nacional, no Rio de Janeiro, os anarquistas formam a maioria absoluta e
derrotam a moção maximalista de adesão à III Internacional, passando a boicotar toda e qualquer
propaganda maximalista. A reação burguesa, deportando, prendendo, ferindo e mesmo matando
208
a muitos trabalhadores, amedronta a todos, a reação anárquica estabelece uma verdadeira
confusão e as organizações se dissolvem em sua absoluta maioria.
351
A revolução russa apareceu como o horizonte de um mundo possível, em um tempo
em que o futuro parecia estar muito mais perto do que nunca antes estivera. Assim como
outras tantas esperanças, ela também acabou como fator de desapontamento e mágoas que
não mais foram superadas. Assim como outros projetos, estes terminaram embaraçados,
perdidos, sem força em meio à repressão que viria em resposta aquele período de comoção
social na República Velha. O que outrora fora uma aurora que apontava para o novo
mundo, acabou fazendo parte de um crepúsculo, em uma noite que cada vez mais ia
invadindo o horizonte das organizações operárias do Rio Grande do Sul.
351
Carta de Abílio de Nequete ao Comitê Executivo da Internacional Comunista. Montevidéu, 1º de fevereiro
de 1921. Esta carta encontra-se no RGASPI – Rossiiskii Gosudarstvennii Arkhiv Sotsialnoi i Politicheskoi
Issledovanii (Arquivo do Estado Russo de História Social e Política).
209
CONCLUSÃO
Iniciei esta dissertação com uma pergunta que deveria nortear todo o desenvolvimento
do meu trabalho: de que forma a revolução russa de 1917 influenciou o movimento
operário do Rio Grande do Sul? A pergunta se justificava, por um lado, pelo caráter da
revolução russa, que tinha nos operários organizados sua principal força motora e por outro
pelo que acontecia aqui no Rio Grande do Sul, que a partir daquele ano vive um ciclo de
intensa mobilização da classe operária, com graves enfrentamentos dos trabalhadores
organizados contra o Estado e a burguesia. Além do mais, deve-se considerar o fato de que
este tema foi pouco trabalhado na historiografia sobre o movimento operário no Rio Grande
do Sul.
A bem da verdade a pergunta que me propus a responder não era totalmente inédita e
algumas respostas podem ser encontradas de forma difusa nas principais obras de história
do movimento operário que tratam daquele período que vai de 1917 à 1920. Existiam
algumas evidências de que a revolução russa havia atraído o interesse dos militantes
operários no estado, o que se pode depreender pela fundação muito precoce de associações
que desejavam se identificar com a revolução russa como a União Maximalista de Porto
Alegre, a Liga Comunista de Santana do Livramento ou o Centro Comunista de Passo
Fundo, grupos estes fundados menos de um ano depois dos bolchevistas terem tomado o
poder na Rússia.
Este interesse também poderia se verificar pelas declarações de lideranças operárias
registradas em grandes jornais ou por intermédio da imprensa operária. Mas eu não poderia
responder à pergunta que formulei logo acima apenas registrando o surgimento destas
associações que se identificavam com a Rússia Soviética ou com uma lista de moções de
apoio àquela revolução. Não poderia fazer isto, entre outros motivos, porque já existiam
algumas idéias mais ou menos cristalizadas sobre o impacto da revolução russa no
movimento operário brasileiro que tratavam da relação (ou da não relação) entre o que
acontecia na Rússia e no Brasil, que eu fatalmente teria de enfrentar.
Um elenco de percepções sobre a revolução russa entre os operários gaúchos não
poderia ser feito ignorando que aqui havia um predomínio de uma corrente ideológica entre
210
os militantes, o anarquismo, que historicamente rivalizou e se confrontou com a corrente
ideológica predominante entre os principais atores sociais da revolução russa, o socialismo
marxista. Também não poderia ignorar que esta mesma corrente ideológica predominante
entre os militantes daqui sofreria um declínio considerável a partir dos anos 20, sendo
paulatinamente substituída pelo comunismo, que passou a exercer enorme influência entre
os operários de todo o mundo a partir da vitória da revolução soviética na Rússia.
Mas acima de tudo o que não poderia ignorar é que estes dois fatores influenciaram de
forma decisiva a maneira de ver o impacto da revolução russa entre operários organizados
do nosso país. Para uma parte dos historiadores, principalmente os ligados ao Partido
Comunista, a revolução russa teria mostrado um método de luta muito mais eficaz que
contribuiria para a derrocada do anarquismo, resultando na fundação de um Partido
Comunista de orientação marxista em 1922. De outra parte, esta hipótese foi combatida
com o aprofundamento das pesquisas sobre história do movimento operário, mostrando que
esta substituição não ocorrera e que muitas daquelas declarações eufóricas de apoio ao
comunismo, por parte dos libertários, não passaram de enganos que logo seriam desfeitos,
pois o anarquismo continuou sendo predominante em boa parte dos anos 20.
Mas como apontei na Introdução, não pretendia estudar este impacto da revolução
somente visando uma mudança de orientação ideológica, nem tampouco tendo em vista
uma defasagem entre o que diziam os militantes gaúchos e o que faziam os revolucionários
russos, mas desejava entender as referências e os atos inspirados na revolução nos termos
das próprias experiências destes militantes.
Para tanto era necessário estudar as tradições ideológicas que se formaram entre os
operários organizados dos principais centros industriais do Rio Grande do Sul. Quando as
primeiras notícias da insurreição operária na Rússia chegaram ao estado, foi por intermédio
das referências oferecidas por estas tradições que a novidade da “grande revolução” foi
interpretada. Como neste momento o anarquismo era predominante entre estes operários
mais radicais, que eram aqueles para os quais a revolução russa fazia mais sentido, através
destes parâmetros libertários que aquele processo foi caracterizado.
Mas isto não quer dizer que os militantes pintaram um quadro com diversos motivos
anarquistas usando uma simples moldura vinda da terra dos czares. Pelas páginas do A
Luta, jornal da União Operária Internacional de Porto Alegre, percebe-se que a revolução
211
russa era importante porque permitia discutir alguns temas queridos aos libertários, como o
combate ao militarismo, a necessidade de derrubada do estado oligárquico ou a exaltação
do papel dos trabalhadores na sua própria emancipação. Além do mais, fica evidente que a
maneira como a revolução russa aparece nas notícias ou artigos também dependia de
condições sociais específicas de apropriação daquelas informações. Os anarquistas de Porto
Alegre viviam uma situação em que era necessário atacar determinado tipo de ação
sindical, encarnada pelas lideranças da Federação Operária ligadas ao conselheiro
republicano Francisco Xavier da Costa e que não se traduzia em um confronto aberto com o
estado borgista. Assim, a revolução russa pode tanto ser o espelho das esperanças
anarquistas, quanto ser um exemplo mobilizador e um pretexto para o ataque a inimigos
políticos, como se pode observar em um artigo do A Luta de Porto Alegre, em que um
militante proclama a falência do socialismo burguês da II Internacional, celebrando a
vitória do socialismo operário russo, vitória que os libertários daqui procuravam também
alcançar nas disputas internas do movimento.
Se for verdade que estas interpretações devem muito às condições sociais em que elas
foram geradas, também é verdade que seu sentido vai mudando à medida que estas
condições se transformam, o que vai acontecer especialmente a partir do fim do ano de
1918 e durante o ano de 1919. Neste período de tempo se ativam muitas sociedades de
classe, greves são deflagradas por todo o Rio Grande do Sul e os confrontos com o governo
e as forças da ordem pública se radicalizam.
Acompanhando esta mobilização da classe operária, existe o surgimento de vários
jornais de classe, que foram os canais para a circulação das informações que chegavam da
Europa. A deflagração da revolução alemã, da revolução húngara e o espocar de
movimentos pelo resto da Europa e na América Latina, em que os operários eram os
principais protagonistas sociais, acenavam para uma realidade que se tornava mais próxima
dos nossos militantes.
A propósito, a qualidade das informações que chegavam se tornaram muito mais
ricas, já que no ano de 1919 as notícias são mais detalhadas, dão conta de forma mais
específica das modificações sociais que ocorriam nos países revolucionários.
Estas novas condições acabaram por modificar as próprias formas de interpretar a
revolução russa. As tradições ideológicas dos militantes não são estáticas: se o estudo do
212
anarquismo no Rio Grande do Sul fornece os elementos para compreender as interpretações
dos militantes ligados a esta corrente, é necessário igualmente perceber que esta forma de
interpretar também vai se modificando com as circunstâncias. Em um artigo do Nosso
Verbo de Rio Grande, por exemplo, um militante afirmava que mesmo sendo um pacifista,
se via na necessidade de apoiar a idéia de revolução, o que mostra uma mudança de postura
que acontece quando se interpreta fatos novos. Também é um bom exemplo deste
deslocamento alguns artigos d’O Syndicalista que comentavam uma nova forma de
exército, em que o soldados seriam homens livres e não haveria distinção entre os praças e
os oficiais.
Exército, restaurantes populares, Soviets, partidos, são todos elementos novos, ou
com novos significados, que são incorporados aos projetos e discursos destes militantes. É
um momento em que não só a tradição anarquista é a base para a compreensão da
revolução, mas no qual a revolução oferece elementos que vão ser incorporados pelos
militantes, fazendo com que eles se debrucem sobre objetos de interesse diversos do que
estavam acostumados.
Se a tradição anarquista era de fato hegemônica entre os militantes que se
identificaram com a revolução russa, não se pode dizer que apenas os libertários se
preocuparam em interpretar o modelo soviético. Observando de forma mais acurada as
interpretações sobre a revolução, percebe-se que mesmo entre os que se diziam anarquistas,
não existia um só modelo, um só padrão de encarar aquele processo. E isto porque a forma
como cada militante se aproximava da revolução não se devia apenas às suas filiações
políticas ou ideológicas.
Tirando o foco do anarquismo, pode-se compreender que esta identificação que os
militantes tinham com a revolução russa podia ser múltipla e devedora de outras tradições,
como as culturais ou as religiosas. O exemplo de Abílio de Nequete permanece como o
caso mais exemplar de uma aproximação que tinha suas raízes em outras referências ou
“lentes” étnico-religiosas, como me referi no texto. Um barbeiro sírio-libanês que
penhorava suas simpatias para com a Rússia durante a Guerra Mundial pela sua cultura
grego-ortodoxa e que por estas referências acabou transferindo esta identificação para a
Rússia dos Soviets. O fato de Abílio de Nequete ser espírita também deu características
213
específicas a maneira como ele encarou o bolchevismo, ou o maximalismo, muito distante
da forma como os libertários se aproximaram da revolução.
Já os casos de Friedrich Kniestedt e de Zenon de Almeida mostram como uma mesma
matriz ideológica pode redundar em duas formas diferentes de se relacionar com os
acontecimentos russos. Se a vivência de Kniestedt com o Partido Social Democrata na
Alemanha o fez ver na revolução russa um exemplo que não devia ser seguido, pois
solaparia as bases do anarquismo e do sindicalismo, tal coisa não aconteceu com o judeu
polonês Zenon de Almeida. Para este, a referência de uma oposição entre o anarquismo e a
tradição marxista podia não ser tão forte a ponto de fazê-lo negar esta nova revolução.
Além do que, sua militância calcada na importância da cultura lhe fez ver no exemplo russo
não só uma emancipação política ou econômica, mas também novas formas para o
desenvolvimento da consciência crítica entre os trabalhadores. Pode-se agregar aí o
exemplo de Carlos Cavaco, que pertencendo à tradição socialista do movimento operário e
envolvido com o nacionalismo, acabaria por escolher a outra revolução russa, não a de
outubro, mas a de fevereiro.
Este quadro mostra uma complexidade muito maior no processo aproximação dos
ideais da revolução russa por parte dos militantes do que a movida por uma matriz
ideológica. É inegável que algumas formas de interpretação acabam predominando entre os
militantes, mas elas não formam um bloco único de opiniões.
Mas dizer isto também não é afirmar que a identificação com a revolução produziu
uma série de discursos desarticulados ou formas de ação dispersas que teriam apenas por
ligação uma miragem distante. Em casos como o d’O Syndicalista, que diante das críticas à
revolução publicadas pelo Correio do Povo resolveu publicar textos que questionavam a
legitimidade daquele jornal, percebe-se que este esforço analítico pode tomar também o
caráter de uma ação que se deseja, já que pretende falar em nome de toda a classe.
As ações coletivas inspiradas pela revolução russa são mais visíveis no campo
organizativo. A forma mais clara destas ações foi a fundação dos grupos comunistas e
maximalistas, que proliferam no período que vai de 1918 a 1920. Em minhas pesquisas
localizei sete destas associações: União Maximalista de Porto Alegre, a Liga Comunista de
Santana de Livramento, o Centro Comunista de Passo Fundo, o Núcleo Comunista de
214
Pelotas, a União Comunista de Rio Grande e o Sindicato Gráfico Comunista de Porto
Alegre.
Apesar de serem grupos comunistas ou maximalistas, o que se constituía em uma
novidade, sua criação e sua importância não dependeram de uma nova teoria ou de um
novo método de ação. Suas peculiaridades se ligavam mais ao tipo de militante que as
criaram, aos locais onde foram formadas ou às categorias de trabalhadores com quem
atuaram. Uma característica peculiar era a sua organização supraclassista, além de ter um
conteúdo mais puramente político que o sindicato, pois acenava, em seu discurso, para a
possibilidade da tomada de poder. Outro traço comum era a abertura para uma
radicalização de suas práticas, já que “filiar-se” a Rússia significava também aderir a uma
forma radical de luta.
Formas novas de organização influenciadas pela revolução russa podem ser
percebidas em um âmbito mais nacional que local. A idéia de um Partido Comunista do
Brasil, formado em 1919, era algo novo. Mesmo que os elos de ligação estabelecidos entre
seus núcleos principais e o movimento operário do Rio Grande do Sul se dessem a partir de
formas tradicionais, como a troca de jornais, livros e panfletos, esta formação era um tipo
diferente de entidade política que surgia a partir do modelo russo. Neste sentido, o
planejamento de uma insurreição maximalista, que seria deflagrada em São Paulo, mas teria
a participação de militantes gaúchos, também pode ser considerado um novo tipo de ação
que era levada adiante.
Esta combinação de novidades no campo da organização e da ação em um horizonte
mais largo, mas com uma prática de base tradicional destas associações comunistas, não é
paradoxal. O impacto da revolução russa não modificou a ação cotidiana da luta sindical,
mas serviu como um exemplo que radicalizou o discurso destas associações, alargando
também suas esperanças. A noção de maximalismo, que seria a tradução para o português
de bolchevismo, está mais ligada ao apoio à revolução social do que um corpo doutrinário
como o marxismo-leninismo. Por isto as modificações se davam em planos mais amplos
(como a organização de um Partido Comunista de abrangência nacional ou a fomentação de
uma insurreição de inspiração soviética), porque estas modificações em larga escala eram
os aspectos da revolução mais visíveis para os militantes brasileiros e gaúchos. Também
eram estes exemplos que podiam ser incorporados à tradição anarquista do movimento
215
operário, permitindo pensar formas de organização nacionalmente mais orgânicas e mesmo
exemplos concretos para a tomada do poder.
Ao fim e ao cabo, já não se tratava mais do anarquismo anteriormente conhecido, nem
tampouco do marxismo-leninismo inspirado pelos bolcheviques. Evitei deliberadamente
dar nome a estas novas fórmulas de pensar a revolução social, deixando que os próprios
militantes definissem o que eram. Por esta razão muitas vezes não os defino como
anarquistas, nem como comunistas, mas simplesmente como maximalistas, já que era o que
acreditavam estar seguindo.
Esta mescla acabou por não evoluir em sua forma teórica; também não houve
evolução em suas práticas e isto não se deveu somente à “natural” antinomia entre
anarquismo e marxismo, mas principalmente ao desenvolvimento das lutas sociais naquele
momento.
Os planos, os sonhos, as idéias e as esperanças dos militantes eram direcionados
contra o estado oligárquico e a burguesia. Não seria temerário dizer que as mobilizações da
classe operária no período que vai de 1917 a 1919 haviam tomado, pelo menos em suas
expectativas, contornos revolucionários. O fato é que, à medida que as mobilizações iam
tomando cada vez mais vulto e a linguagem usada era cada vez mais agressiva, a repressão
ao movimento operário também tomou formas extremas. O tratamento dispensado aos
operários de Rio Grande na greve de maio de 1919 e aos trabalhadores de Porto Alegre
durante a manifestação de 7 de setembro do mesmo ano, são exemplares desta reação.
Não houve violência física contra manifestantes de passeatas ou participantes de
greves, mas também aconteceram ocupações de sedes de sindicatos, prisão de lideranças
militantes e ameaça de deportações. A par desta ofensiva, o jornal oficial do Partido
Republicano Riograndense, A Federação, lançava editoriais onde os operários eram
mostrados como loucos ou como bandidos que colocavam em risco toda a organização
social, merecendo por isso uma lição exemplar.
Uma das justificativas desta postura por parte do governo republicano era a ameaça
que as doutrinas exóticas, nomeadamente o maximalismo da Rússia, traziam para o restante
da sociedade. O bolchevismo russo seria fruto de mentes doentias e só trouxera desgraças
para os povos que o abraçaram. Por isto era necessário impedir que o Brasil e o Rio Grande
do Sul caíssem em estado de anarquia!
216
O governo estadual não criara estes argumentos apenas para justificar os atos
violentos da Brigada Militar. Esta maneira de ver a circulação das idéias da revolução russa
no meio operário fazia eco a opiniões já anteriores aos incidentes mais graves que levaram
A Federação a publicar aqueles artigos.
Em jornais como o Correio do Povo, desde os primeiros meses de 1919, são
publicados textos que se referiam às desumanidades ocorridas na Rússia, como a
assustadora socialização das mulheres, as notícias de agentes russos que estariam
fomentando a revolução no Brasil e artigos sobre a necessidade de impedir que o
maximalismo se espalhasse pelo país. Fechava-se o cerco contra as organizações dos
trabalhadores e a repressão foi duramente sentida pelos militantes.
Em uma situação como esta o movimento operário entra em crise. A dificuldade de
arregimentar trabalhadores, a impossibilidade de manter um ritmo crescente de
mobilização, a perda de líderes experientes e de meios para levar adiante um trabalho que
vinha se desenvolvendo desde 1917, deve ter se traduzido em perda de esperanças e
reversão de expectativas. Em um ambiente onde predomina esta desagregação, mais
facilmente vão se conformando mágoas, e menos sentido existe em trabalhar juntos por um
sonho que se esfacela por entre os dedos. É justamente neste contexto que localizo as
primeiras disputas envolvendo a adesão ou não ao maximalismo.
Obviamente, tenho plena consciência de que estas disputas internas fazem parte da
experiência operária: o complicado xadrez de lutas pela liderança sobre os operários,
mantidas pelos grupos da capital no ápice das mobilizações, prova que a repressão não
criou isto. Mas um ambiente repressivo potencializa estas tendências, principalmente
quando as disputas são relacionadas a uma possibilidade de emancipação que parece ter
perdido o sentido.
Apesar de tudo o que eu escrevi até agora, é muito importante frisar que não pretendi
diminuir a importância dos debates internacionais, como as críticas de Kropotkin e
Malatesta aos caminhos da revolução soviética. Com certeza elas foram fatores muito
importantes para se conformar a grande desilusão que os anarquistas tiveram nos anos que
se seguiram. Mas nas fontes em que pesquisei não encontrei os sinais destes debates, o que
provavelmente encontraria se pesquisasse um material mais vasto ou avançasse no tempo.
217
O que eu desejei durante todo este trabalho, no entanto, foi mostrar que os atos e as
idéias dos militantes gaúchos inspirados na revolução russa, assim como as divergências
em torno dela, não foram apenas pálidos reflexos de um processo maior que se desenvolvia
em outras partes do mundo. Tais relações com a revolução se deveram principalmente às
experiências vividas pelos trabalhadores naqueles momentos, e sem partir delas, as palavras
e os atos que tinham por referência a revolução russa não teriam muito sentido.
Quando me refiro a experiências, me refiro a experiências de classe, e mais que isto,
experiências formadas na luta de classe. É necessário pensar que a revolução russa, na
maior parte dos casos, era um referencial para esta luta. Sem ter isto em mente, com certeza
vai se perder muito dos significados que aqueles trabalhadores davam às informações e
questões que aqui foram tratadas. Levando isto em conta, também se pode perceber porque
a revolução representava coisas diferentes em momentos de ascensão ou refluxo do
movimento operário gaúcho.
Mas dizer que o impacto da revolução russa dependeu das formas da luta de classe
não é tratar esta luta como um Deus Ex Machina. A luta de classes, pelo menos na forma
como eu a entendo, não é uma entidade que sai de um maquinismo qualquer para dar um
final feliz (ou infeliz, no caso destes militantes) a uma trama cujos atores principais são os
operários e os burgueses. Os militantes operários estavam presentes nas suas próprias lutas
e agindo sobre a realidade, eles foram transformados por suas vitórias e suas derrotas.
Tratando desta forma o devir histórico, acredito estar seguindo as melhores tradições que
estudaram os conflitos sociais e aqui me reporto tanto a Karl Marx quanto a Edward Palmer
Thompson.
Então nossa história chega mesmo ao fim sem final feliz? Estariam os militantes
operários destinados a não conseguir imprimir suas marcas no destino do Rio Grande do
Sul e do Brasil? Teria o estado oligárquico vencido definitivamente? Talvez esta seja uma
forma bem pessimista de ver a história.
Espero que fique deste estudo não apenas a derrota do sonho revolucionário no
início dos anos 20, mas a possibilidade que os operários gaúchos tiveram de se organizar e
lutar por uma mudança radical da sociedade que os oprimia, levando este sonho muito
longe enquanto agiam para que ele se concretizasse. Além do mais, a mobilização daquele
período não foi esquecida com o passar do tempo; mesmo que lembrada de forma
218
contraditória por diferentes correntes políticas, aqueles anos continuariam como referência
na memória dos militantes que continuaram a acreditar na revolução social. Quanto ao
vitorioso estado oligárquico, este passou a sofrer um processo de desagregação nos anos
que se seguiram àquelas grandes manifestações, processo que levaria a enormes mudanças
no início dos anos 30.
O quanto teriam contribuído os sonhos daqueles militantes, suas ações sobre a
realidade, para as grandes mudanças que viriam no futuro? Esta é uma pergunta que o
historiador deve fazer para estas circunstâncias dos anos 20 ou para outras em que as lutas
operárias tenham se verificado e que somente o aprofundamento sempre maior das
pesquisas poderá responder.
219
FONTES PRIMÁRIAS
Arquivos:
AEL – Arquivo Edgar Leuenroth – Campinas.
Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul – Porto Alegre.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – Porto Alegre.
Biblioteca Pública de Rio Grande – Rio Grande.
CEDEM - Centro de Documentação e Memória - São Paulo.
Museu de Comunicação Social Hypolito Jose da Costa – Porto Alegre.
Núcleo de Pesquisa Histórica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre.
Jornais e revistas:
A Dor Humana. Bagé 1919.
A Federação. Porto Alegre, 1917-1920.
A Folha do Povo. Santa Maria, 1920.
A Luta. Porto Alegre, 1918.
A Plebe. São Paulo, 1917-1920.
A Revista Liberal. Porto Alegre. 1921.
A Voz do Trabalhador. Orgam da Confederação Operária Brazileira. Rio de Janeiro, 1913.
(Edição fac-similar, com prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado/Centro de Memória Sindical, 1985).
A União. Uruguaiana, 1919.
Correio do Povo. Porto Alegre 1919-1921.
220
O Echo Americano. Porto Alegre, 1918.
O Nosso Verbo. Rio Grande, 1919-1920.
O Rebate. Pelotas, 1919-1920.
O Syndicalista. Porto Alegre, 1919-1920.
Rebelião. Porto Alegre, 1917.
Revista Máscara. Porto Alegre, 1919.
Spartacus. Rio de Janeiro, 1919-1920.
Outros:
Boletim da Comissão Executiva do 3º congresso Operário Brasileiro. Rio de Janeiro, 1920.
Panfletos:
Ao Povo. O programa maximalista. Impresso da União Maximalista: Porto Alegre, 1919.
Aos Trabalhadores. O Maximalismo - Segundo Manifesto do Delegado da República Russa
dos Soviets aos Operários da República Burguêsa dos Estados Unidos do Brazil, 1919.
A Revolução Social em Marcha Contra Seus Inimigos. Cartão Postal da União Maximalista:
Porto Alegre, 1919.
Bases de Acordo do Partido Comunista do Brasil. Impresso do Partido Comunista do Brasil:
Rio de janeiro, 1919.
Boletim de Protesto da União Maximalista (contra a intervenção no congresso comunista
brasileiro). Impresso da União Maximalista: Porto Alegre, 1919.
Carta Manifesto. Aos Trabalhadores - Manifesto do Delegado da República Russa dos
Soviets aos Operários da República Burguêsa dos Estados Unidos do Brazil, 1919.
Circular do Secretariado. Impresso do Partido Comunista do Brasil: Rio de Janeiro, 23, mar,
1919.
Do Canhão à Peste. Impresso da União Maximalista: Porto Alegre, 1919.
221
Grupo de Operários e Soldados Brasileiros. Ao povo rio-grandense. Porto Alegre, 1917.
Moção da FORGS (contra qualquer intervenção nos países revolucionários). Impresso da
FORGS: Porto Alegre, 1919.
Povo!! Panfleto da Aliança Anarquista, s/d.
Protesta/ “Operários do Mundo Armai-vos”(poemas sobre a Rússia Comunista). Folheto
com dois poemas. Autoria de Otavius.
Partido Communista do Brazil”. Impresso do Partido Comunista do Brasil: Rio de Janeiro,
1919.
Documentos Oficiais:
Hábeas corpus 3144. Foro Federal. Porto Alegre, 1920.
Inquérito Militar 1432. Foro Federal. Porto Alegre, 1917.
Mensagem do Chefe de Polícia Gomes Bento ao Delegado de Polícia de Santiago do
Boqueirão. Maço 111. Chefatura de Polícia de Porto Alegre. Telegrama nº 45000, folha 56,
data 7, hora 19, 9/6/1919.
Processo Crime 899. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1918.
Processo Crime 1016. Júri-Sumários. Porto Alegre, 1919.
Outras fontes:
Anotações dos Cadernos de Abílio de Nequete feitos por Sílvia Petersen. Datilografado.
s/d.
Carta de Abílio de Nequete ao Comitê Executivo da Internacional Comunista. Montevidéu,
1º de fevereiro de 1921.
222
BIBLIOGRAFIA
ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Dois Pontos, 1986.
ALBA,Víctor. Historia del movimiento obrero en América Latina. México: Libreros
Mexicanos Unidos, 1964.
ALBORNOZ, Vera do Prado Lima. Armour. Uma aposta no pampa. Editora do autor:
Santana do Livramento, 2000.
AGOSTI, Aldo.
As correntes constitutivas do movimento comunista internacional. In
História do marxismo v. 6. HOBSBAWM, Eric (org). São Paulo: Paz e Terra. 1985.
ALMEIDA, Ângela Mendes de. A República de Weimar e a ascensão do fascismo.
São Paulo: Brasiliense, 1999.
ALVES, Francisco Neves. Imprensa e política: algumas reflexões acerca da
investigação histórica. História em Revista: Pelotas, n.7, dez. 2001.
ANTUNES, Adriano B. A repercussão da revolução russa nos jornais diários da
república velha. História em Revista: Pelotas, n.6, dez de 2000.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Internacionalismo proletário no cone sul. A
experiência internacional do sindicalismo brasileiro no cone sul. Revista Resgate:
Campinas, n 3, 1991.
BACZKO, Bronislaw. Los imaginários sociales. Buenos Aires: Nueva Visión. 1979.
223
BATISTELLA, Alessandro. O movimento operário e sindical em Passo Fundo
(1900-1964). Programa de Pós Graduação em História. Universidade de Passo Fundo.
2007. (dissertação de mestrado)
BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos
no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. Vida associativa: por uma nova
abordagem da história institucional nos estudos do movimento operário. Revista Anos 90.
PPG em História da UFRGS: Porto Alegre, n. 8, dez. 1997.
BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. A historiografia da classe operária no
Brasil: trajetórias e tendências. In. FREITAS, Marcos C. Historiografia brasileira em
perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.
BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. “Nós, filhos da Revolução Francesa’, a
imagem da revolução no movimento operário brasileiro no início do século XX”. Revista
Brasileira de História: São Paulo, vol. 10, n° 20, 1990.
BATALHA. Cláudio Henrique de Moraes. O movimento operário na primeira
república. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
BILHÃO, Isabel. Família e Movimento Operário. A anarquia dentro de casa. Estudos
Ibero-Americanos. PUCRS: Porto Alegre, V. 22, n.2, dezembro de 1996.
BILHÃO, Isabel. Identidade e trabalho. Análise da construção identitária dos
operários porto-alegrenses. (1896-1920). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS.
2005.(dissertação de mestrado).
224
BILHÃO, Isabel. Rivalidades e solidariedades no movimento operário. (Porto Alegre
1906-1911). Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
BODEA, Miguel. A greve geral de 1917 e as origens do trabalhismo gaúcho: ensaio
sobre o pré-ensaio de poder de uma elite política dissidente a nível nacional. Porto Alegre:
L&PM, 1979.
BROUÉ, Pierre, União Soviética. Da revolução ao colapso. Porto Alegre: Síntese
Universitária/Editora da UFRGS. 2002.
CAMPOS, Cristina Ebling. O sonhar libertário: movimento operário nos anos de
1917 a 1921. Campinas: Pontes/UNICAMP. 1988.
CAVACO, Carlos. Rosas de sangue. Lisboa, 1920.
CAGGIANI, Ivo. Sant’Ana do Livramento. 150 anos de história. Sant’Ana do
Livramento: Museu Folha Popular, 1986.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
CORREA, Norma Elizabeth Pereira. Os libertários e a educação no Rio Grande do
Sul: 1895-1926. Porto Alegre: PPG em Educação da UFRGS, 1987.(dissertação de
mestrado).
CRUZ, Heloísa F. São Paulo em papel e tinta. Periodismo e vida urbana 1890-1915.
São Paulo: EDUC/FAPESP, 2000.
225
DROZ, Bernard e ROWLEY, Anthony. História do Século XX. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 1988.
DUARTE, Antônio Nazianzeno Candeias e LEUENROTH, Edgar. O que é
maximismo ou bolchevismo: programa comunista. São Paulo: Editora Semente, 1981.
ELMIR, Cláudio P. As armadilhas do jornal. Algumas considerações metodológicas
de seu uso para a pesquisa histórica. Cadernos do PPG em História da UFRGS: Porto
Alegre, n.13, Dez.1985.
FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: DIFEL, 1977.
FERRO, Marc. O ocidente diante da revolução soviética: a história e seus mitos. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo-ditadura, propaganda e imaginário social no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1997.
FORTES, Alexandre, Nós do Quarto Distrito: A classe trabalhadora porto-alegrense e
a Era Vargas,
Caxias do Sul: Educs, Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
FOSTER DULLES, John. Anarquistas e comunistas no Brasil ( 1890-1960 ). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
226
GALISSOT, René. Nação e nacionalidade nos debates do movimento operário. In
HOBSBAWM, Eric (org.). História do marxismo, Vol. IV: o marxismo na época da II
Internacional. 3ª Parte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
GARCIA, Marco Aurélio. Alguns problemas da historiografia do comunismo.
Comunicação apresentada na ANPOCS. UNICAMP: Campinas, 1983.
GERTZ, René Ernani. Operários alemães no Rio Grande do Sul (1920-1937). Revista
Brasileira de História. ANPUH: São Paulo, v.6, n.11, set.1985/fev.1986.
GODIO, Julio Historia del movimiento obrero latinoamericano Mexico: Nueva
Imagem 1983. 2 v.
HOBSBAWM, Eric. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. 2.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
JARDIM, Jorge Luís Pastorisa. Comunicação e militância. A imprensa operária no
Rio Grande do Sul (1892-1923). Curso de Pós-Graduação em História da PUCRS: Porto
Alegre, 1990. (dissertação de mestrado).
JARDIM, Jorge Luís Pastorisa. Imprensa operária: comunicação e organização.
Estudos Ibero-Americanos. PUCRS: Porto Alegre, vol. 22, n.2, dez. 1996.
LEUENROTH, Edgar. Anarquismo. Roteiro de libertação social. São Paulo: Mundo
Livre. 1963.
227
LOPREATO, Christina Roquette. O espírito de Revolta: a greve geral anarquista de
1917. São Paulo: Anablume, 2000.
KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista. Tradução,
Introdução, Epílogo e Notas de Rodapé: René E. GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de
Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989.
KOVAL, Boris. La gran revolución de octubre y América Latina. Moscú: Progresso,
1978.
LONER, Beatriz Ana. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande
(1888-1930). Pelotas: UFPel, 2001.
LEUENROTH, Edgar. Anarquismo – Roteiro de libertação social. Rio de Janeiro,
Editora Mundo Livre, 1963.
MARÇAL, João Batista. Os anarquistas no Rio Grande do Sul: anotações
biográficas, textos e fotos de velhos militantes da classe operária gaúcha. Porto Alegre:
Unidade Editorial, 1995.
MARÇAL, João Batista. A imprensa operária do Rio Grande do Sul. (1873-1972).
Porto Alegre. 2004.
MARÇAL, João Batista. Comunistas gaúchos: a vida de 31 militantes da classe
operária. Porto Alegre: Tchê!, 1986.
228
MARÇAL, João Batista. 1917 Novembro. As conseqüências da revolução russa no
Rio Grande do Sul. Revista O Sul: Porto Alegre, N. 18, 1987.
MATTOS, Marcelo Badaró. Greves e repressão policial na formação da classe
trabalhadora carioca (1850-1919). In: MATTOS, Marcelo Badaró (org). Trabalhadores em
greve, polícia em guarda. Greves e repressão policial na formação da classe trabalhadora
carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto / Faperj, 2004.
MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson no Brasil. Outubro. Revista do Instituto
de Estudos Socialistas: São Paulo, n.14, 2º semestre, 2006.
MARX, Karl. Al director del Otiechéstvennie Zapiski. Correspondencia. Tomo III.
Seleccionada por el Instituto Marx-Engels-Lenin (Leningrado, 1ª edición alemana 1934),
digitalizado por Simón Royo Hernández para o Marxists Internet Archive em maio de
2001. Retirado do site http://www.marxists.org/espanol/m-e/cartas/m1877.htm.
OLIVEIRA, César. A revolução russa na imprensa portuguesa da época. DiAbril:
Lisboa,1976.
OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Mobilização operária na república excludente: um
estudo comparativo da relação entre estado e movimento operário nos casos de São Paulo,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul (1889-1920). Porto Alegre: PPG em História da
UFRGS, 2003.(Dissertação de Mestrado).
PACHECO, Eliezer Moreira. O partido comunista brasileiro: (1922-1964). São
Paulo: Alfa-Omega, 1984.
229
PEREIRA, Astrogildo. Ensaios históricos e políticos. Alfa-Ômega: São Paulo, 1979.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Operários, mulheres, prisioneiros. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. "Que a união operária seja nossa pátria":
história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2001.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. El proletariado urbano em Rio Grande do Sul.
1889-1919. México: Universidade Federal Autônoma de México, 1977. (Dissertação de
mestrado em História).
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Guia para o estudo da imprensa periódica dos
trabalhadores do Rio Grande do Sul: (1874/1940). Porto Alegre: Ed. da
Universidade/UFRGS, 1989.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a
história operária brasileira. IN: ARAÚJO, Angela M. C. (Organizadora). Trabalho, Cultura
e Cidadania. S. Paulo, Scritta, 1997.
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz e LUCAS, Maria Elizabeth da Silva. Antologia do
movimento operário gaúcho: (1870-1937). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1992.
PINHEIRO Paulo Sérgio de Moraes Sarmento. A classe operária no Brasil: (1889 a
1930): documentos. São Paulo: Brasiliense, 1981. 2 v.
PINHEIRO Paulo Sérgio de Moraes Sarmento. Estratégias da ilusão: a revolução
mundial e o Brasil : 1922-1935. 2. ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
230
QUEIRÓZ, César Augusto Bubolz. O governo do partido republicano Rio-Grandense
e a questão social: 1895-1919. Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 2000.
(Dissertação de mestrado).
RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo
contemporâneo. São Paulo, Editora UNESP, 2001.
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução russa 1917-1921. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1999.
RIBEIRO, Luís Dario Teixeira. A ruptura revolucionária na Rússia. In: VIZENTINI,
P. G. F. (Org.). A Revolução Soviética/1905-45: O socialismo num só país. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1989.
RODEGHERO, Carla Simone. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e
Igreja Católica no Rio Grande do Sul (1945-1964). Passo Fundo: Ediupf, 1998.
RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e cultura social. Laemert: Rio de Janeiro, 1972.
ROSITO, Renata Irene Haas. O pensamento político de Abílio de Nequete. Porto
Alegre: PUCRS, 1972.( Trabalho para a disciplina de Política, do Curso de Bacharelado em
Ciências Sociais ).
RÜDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da
Universidade/Ufrgs, 1998.
231
SAMIS, Alexandre. Clevelândia: anarquismo, sindicatos e repressão policial. São
Paulo: Editora Imaginário, 2002.
MOTTA, Rodrigo Patto. Em guarda contra o "perigo vermelho": o
anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.
SCHMIDT, Benito Bisso. Em busca da terra da promissão: a história de dois líderes
socialistas. Porto Alegre: Palmarinca, 2004.
SCHIMIDT, Benito Bisso. O Deus progresso. Revista Brasileira de História: São
Paulo, V.21. n.41. São Paulo. 2001.
SCHMIDT, Benito Bisso. Um socialista no Rio Grande do Sul. Antônio Guedes
Coutinho. (1868-1945). Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS. 2000.
SCHMIDT, Benito Bisso. De mármore e de flores. A primeira greve geral do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2005.
SILVA JR, Adhemar Lourenço. A bipolaridade política rio-grandense e o movimento
operário: (188?-1925). Estudos Ibero-Americanos. PUCRS: Porto Alegre, Vol. 22, n. 2,
dez. 1996.
SILVA JR, Adhemar Lourenço. Notas sobre a organização operária em Bagé, Passo
Fundo a Uruguaiana (até 1930). In: ANPUH- VI Encontro Estadual de História, 2002,
Passo Fundo. Anais o VI Encontro Estadual de História Ser Historiador Hoje, 2002.
232
SILVA JR, Adhemar Lourenço. O herói no movimento operário. In: FELIX, Loiva
Otero; ELMIR, Cláudio Pereira (Org.). Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto
Alegre: Ed. da Universidade-UFRGS, 1998.
SILVA JR, Adhemar Lourenco. "Povo! Trabalhadores!”: tumultos e movimento
operário (estudo centrado em Porto Alegre 1917). Porto Alegre: PPG em História da
UFRGS, 1994. (dissertação de mestrado).
SEIXAS, Jacy Alves de. Memoire et oubli: l'anarchisme et le syndicalisme
revolutionnaire au Brésil. Paris: Editions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1992.
SIMONSEN. Roberto C. Evolução industrial do Brasil e outros ensaios. São Paulo:
Ed. Nacional/Ed. da USP.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. A árvore da
liberdade. V.1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria, ou, um planetário de erros : uma
crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
THOMPSON, Edward Palmer. Tradición, revuelta y consciencia de clase Barcelona:
Grijalbo, 1984.
TROTSKY Leon. A história da revolução russa. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978-1980. 3 v.
TROTSKY, Leon. Balanços e perspectivas. Lisboa: Antídoto. 1979.
233
VALDES, Eduardo Devés. El transpaso del pensamiento de América Latina a África
a través de los intelectuales caribeños. História UNISINOS: São Leopoldo, Vol. 4, n. 2,
jul./dez. 2000.
VINHAS, Moises. O partidão: a luta por um partido de massas, 1922-1974. São
Paulo: HUCITEC, 1982.
VIOLA, Solon Eduardo Annes. Considerações sobre o movimento operário no início
da década de 1920. Porto Alegre: UFRGS, 1983. (Monografia de conclusão de Curso de
Especialização em História do Rio Grande do Sul, datil.)
VITORINO, Artur José Renda. O sonho dos tipógrafos na corte imperial brasileira.
In. BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes (org) Culturas de classe: identidade e
diversidade na formação do proletariado. Campinas: UNICAMP, 2004.
WALICKI, Andrej. O marxismo polonês entre os séculos XIX e XX. In
HOBSBAWM, Eric (org.). História do marxismo, Vol. III: o marxismo na época da II
Internacional. 2ª Parte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
WOOD, Ellen Meiksin. Democracia contra capitalismo. A renovação do
materialismo histórico. São Paulo: Editorial Boitempo, 2001.
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Porto Alegre:
L&PM, 2002.
234
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo