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— O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente
o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com
doçura:
— Então está disposto a ensinar-me javanês?
— A resposta saiu-me sem querer: — Pois não.
— O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que eu,
nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...
— Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito
fecundos... ?
— O que eu quero, meu caro senhor....
— Castelo, adiantei eu.
— O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de
família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele
que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui
um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou
siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado
por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este
livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz
felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o;
mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que
teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o
velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da
morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz
da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a
esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto
desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do
talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus
últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro,
que preciso entender o javanês. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou
discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que
sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os
filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava
reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em
couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a
folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas
páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do
príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado
aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda
folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de
vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora,
comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão
diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer
quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de
Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.
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