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nação dos Chavantes, a qual, com bastante mágoa o digo, vejo bem decaída de seus antigos brios, depois que a idade
começou a vergar os ombros e a enfraquecer o ânimo de nosso bravo e glorioso chefe.
Que atos tem ele praticado que denunciem essas intenções pérfidas e hostis contra nós? resistiu
desesperadamente aos nossos, quando aqui aportou, porque foi súbita e violentamente atacado. Amou Guaraciaba,
porque esta apresentou-se como um manitó celeste à cabeceira do leito onde ele jazia moribundo e crivado de golpes,
para abrir-lhe as portas da vida e da esperança; transviou-se com ele nas florestas, porque uma tempestade os
surpreendeu. Eis seus crimes; entretanto em todas essas ocasiões ele tem dado sobejas provas de valentia e de ânimo
leal e generoso. Podereis dizer outro tanto desse que aclamais o único esposo digno de Guaraciaba e legítimo
sucessor de Oriçanga? Não será uma ação infame e desleal a que praticou indo cobrir de insultos e baldões a nobre
filha de seu chefe e seu inofensivo companheiro, na caverna em que se tinham abrigado contra a fúria da tempestade,
e atentando contra a vida dos mesmos no momento em que Itajiba acabava de salvá-lo das garras de uma fera?...
Bem vejo que o nosso velho e ilustre cacique está ligado por promessas sagradas, que não podem ser violadas sem
desonra sua; o cumprimento da palavra de um chefe está acima de tudo. Um alvitre porém me ocorre, e dou graças a
Tupá que mo inspira, que sanará todas as dificuldades, e decidirá de uma vez para sempre esse pleito entre os dois
rivais; e a ocasião é a mais oportuna que se podia deparar. Não longe de nós, para além do rio, existe a nação dos
Caiapós, que nos quer mal, nos ameaça constantemente; há bastantes anos, vós bem o sabeis, eles invadiram
traiçoeiramente nossas tabas, roubaram nossas virgens e mataram nossos irmãos; entretanto, Oriçanga, este insulto
está por vingar-se, porque teus velhos anos não permitem mais guiar-nos aos combates. Por outro lado, para as
bandas onde tem suas nascentes este rio sagrado, os imboabas com suas bandeiras devastadoras cada vez mais vão-se
avizinhando, nos ameaçam com o extermínio, a escravidão e a morte. Cumpre opor-lhes um dique e fazer-lhes perder
para sempre o desejo de penetrar em nossas florestas. Cumpre que nos arranquemos deste ignóbil torpor em que há
tanto tempo jazemos, se não quisermos ser esmagados por nossos inimigos, quando menos o esperarmos. Pois bem,
ilustre Oriçanga e veneráveis pajés que me escutais, mandemos duas fortes expedições compostas de guerreiros
escolhidos contra esses inimigos, que de diversos lados nos ameaçam; uma delas, seja qual for, seja comandada por
Inimá; à testa da outra marche Itajiba. Aquele que melhores serviços prestar, que mais bem desempenhar sua árdua e
gloriosa missão, seja o preferido.
— Bem falado, Andiara! Bem falado! clamaram os anciãos arrebatados pelo enérgico discurso do pajé, que
entre eles passava como um profeta que lia no futuro e conversava com os espíritos celestes. Alguns, que porventura
ainda não aderiam às razões por ele apresentadas, não ousaram erguer a voz, e o alvitre de Andiara, adotado por
quase todos, prevaleceu.
Ainda o conselho dos pajés não tinha terminado suas deliberações, e já uma turba alvorotada se apinhava e
crescia em torno da cabana de Oriçanga. O amotinamento insuflado por Inimá se tinha propagado com caráter
assustador. Os inimigos de Itajiba exigiam em altos e ameaçadores gritos que lhe entregassem o traidor estrangeiro,
pois queriam dar-lhe o castigo que mereciam seus embustes e pérfidias. Já mesmo algumas flechas sibilavam por
cima do teto, e alguns guerreiros furiosos ameaçavam transpor as soleiras da habitação do chefe. Também não mui
longe se achavam reunidos em bandos os amigos de Itajiba, prontos a defendê-lo a todo o risco e a libertá-lo, caso
caísse nas mãos de seus adversários. Um grande alvoroço popular, um renhido e sanguinolento conflito estava
prestes a fazer explosão. O sangue dos Chavantes ia correr em torno da taba de seu antigo e ilustre chefe, sem que
nenhum inimigo estranho viesse acometê-los, mas derramado por suas próprias mãos. Itajiba, que de dentro da taba
ouvia os furiosos clamores de seus inimigos, dirigiu-se resolutamente à presença de Oriçanga.
— Velho e ilustre cacique, lhe diz ele, por minha causa vejo que vossos lares são desacatados por vossos
guerreiros revoltados; compreendo que não posso existir entre vós sem perturbar o sossego e a união de vossos
vassalos; eles pedem minha morte; deixai-me pois ir a eles; deixai-me morrer a seus golpes, já que não sirvo entre
vós senão para elemento de discórdia e de insubordinação. Seja-me lícito ao menos, para testemunhar minha
lealdade, verter o meu sangue em favor de vossa tranqüilidade e da de vosso povo.
Assim falou, e dirigindo-se para a porta precipitadamente, já ia expor-se aos golpes dos revoltos. Mas
Oriçanga, Guaraciaba e Andiara colocando-se diante dele embargam-lhe os passos.
— Não irás, diz-lhe vivamente Oriçanga, de modo nenhum o consentirei. Queres que a minha autoridade de
chefe vergue e fraqueie diante da insolente audácia de meia dúzia de sediciosos? ignoras, acaso, que estão divididos
em duas facções contrárias, e que a tua presença, longe de pôr termo ao tumulto, serás antes o sinal para se travar
uma luta encarniçada? fica-te aqui, Itajiba, e deixa a meu cargo reprimir e castigar essa turba insubordinada.
Ditas estas palavras, Oriçanga dirige-se à porta da cabana, e aí apresenta-se em pé e desarmado aos olhos dos
sediciosos. À vista do vulto grave e venerável daquele antigo e ilustre chefe, que outrora tantas vezes no campo da
peleja os tinha conduzido à vitória, e que tanto lustre e poderio tinha dado à nação com seus feitos valerosos, os
revoltosos sentiram-se possuídos de respeito, e suspenderam suas vozerias tumultuosas. Então o cacique erguendo a
voz, em breves, mais enérgicas palavras, exprobrou-lhes a ação indigna e feia que praticavam, de que nunca houvera