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Sequência 1
Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes,
de modo que as suas visitas caridosas à paralítica perfizessem ao fim do
mês o número simbólico de sete, que devia corresponder, na idéia das
devotas, às Sete Lições de Maria. Na véspera o padre Amaro tinha
prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas cerrada,
depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a prática do
senhor pároco. Amélia nesses dias erguia-se cedo; tinha sempre alguma
saia branca a engomar, algum laçarote a compor; a mãe estranhava-lhe
aqueles arrebiques, o desperdício de água-de-colônia de que ela se
inundava; mas Amélia explicava que “era para inspirar à Totó idéias de
asseio e de frescura”. E depois de vestida sentava-se, esperando as onze
horas, muito séria, respondendo distraidamente às conversas da mãe, com
uma cor nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relógio: enfim a
velha matraca gemia cavamente as onze horas, e ela, depois de uma
olhadela ao espelho, saía, dando uma beijoca à mãe.
Ia sempre receosa, numa inquietação de ser espreitada. Todas
as manhãs pedia a Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus
encontros; e se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para
lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O
que a assustava era o Largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica,
costurando por trás da janela, exercia uma vigilância incessante. Fazia-se
então pequenina no seu mantelete, e abaixando o guarda-sol sobre o rosto,
entrava enfim na Sé, sempre com o pé direito.
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida numa luz fosca,
amedrontava-a; parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das cruzes,
uma repreensão ao seu pecado; imaginava que os olhos de vidro das
imagens, as pupilas pintadas dos painéis se fixavam nela, com uma
insistência cruel, e percebiam o arfar que ao seu seio dava a esperança do
prazer. Às vezes mesmo, atravessada de uma superstição, para dissipar o
descontentamento dos santos, prometia dar-se nessa manhã toda à Totó,
ocupar-se caridosamente só dela, e não se deixar tocar sequer no vestido
pelo Sr. Padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro não o
encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Tóto, postar-se à janela
da cozinha, vigiando a porta maciça da sacristia, de que ela conhecia uma
por uma as chapas negras de ferro.
Seqüência 2
Ele aparecia, enfim. Era então nos começos de março; já
tinham chegado as andorinhas; ouviam-nas chilrear, naquele silêncio
melancólico, esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas
dos lugares úmidos cobriam os cantos de uma verdura escura. Amaro, às
vezes muito galante, ia procurar uma florzinha. Amélia impacientava-se,
rufava na vidraça da cozinha. Ele apressava-se; ficavam um momento à
porta, apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam
enfim ver a Totó – e dar-lhe os bolos que o pároco lhe trazia no bolso da
batina.
A cama da Totó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu
corpinho de tísica quase não fazia saliência enterrado na cova da enxerga,
sob os cobertores enxovalhados que ela se entretinha a esfiar. Nesses dias
tinha vestido um chambre branco, os cabelos reluziam-lhe de óleo; porque
ultimamente, desde as visitas de Amaro, viera-lhe “uma birra de parecer
alguém”, como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não querer
separar dum espelho e dum pente que escondia debaixo do travesseiro e
obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que
agora desprezava.