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O CASTELO DE FARIA
Alexandre Herculano
(1373)
A breve distância da vila de Barcelos, nas faldas do Franqueira, alveja ao longe um convento
de Franciscanos. Aprazível é o sítio, sombreado de velhas árvores. Sentem-se ali o murmurar
das águas e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o silêncio daquela
solidão, a qual, para nos servirmos de uma expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a
saudade de seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito à contemplação das
coisas celestes.
O monte que se alevanta ao do humilde convento é formoso, mas áspero e severo, como
quase todos os montes do Minho. Da sua coroa descobre-se ao longe o mar, semelhante a
mancha azul entornada na face da terra. O espectador colocado no cimo daquela eminência
volta-se para um e outro lado, e as povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os
pinhais apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se descobre de qualquer ponto elevado
da província de Entre-Douro-e-Minho.
Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, se viu regado de sangue: já sobre ele se
ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de habitações incendiadas,
sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra. Claros sinais de que ali viveram homens:
porque é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram
para habitar na terra.
O castelo de Faria, com suas torres e ameias, com a sua barbacã e fosso, com seus postigos
e alçapões ferrados, campeou como dominador dos vales vizinhos. Castelo real da Idade
Média, a sua origem some-se nas trevas dos tempos que já lá vão há muito: mas a febre lenta
que costuma devorar os gigantes de mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos
membros, e o antigo alcácer das eras dos reis de Leão desmoronou-se e caiu. Ainda no
século dezessete parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas: no século
seguintenenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de um historiador nosso.
Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o único eco do passado que restava.
Na ermida servia de altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro Duque de Bragança, D.
Afonso. Era esta lájea a mesa em que costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de
Ceuta. D. Afonso, que seguira seu pai D. João I na conquista daquela cidade, trouxe esta
pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de Barcelos, cujo
conde era. De mesa de banquetes mouriscos converteu-se essa pedra em ara do
cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?
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Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir o convento edificado ao sopé do
monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de armas, as ameias das torres em
bordas de sepulturas, os umbrais das balhesteiras e postigos em janelas claustrais. O ruído
dos combates calou no alto do monte, e nas faldas dele alevantaram-se a harmonia dos
salmos e o sussurro das orações.
Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos maiores, porém, curavam mais de
praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas. Deixaram, por isso, sem
remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um dos mais
heróicos feitos de corações portugueses.
Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava de seus antepassados
em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com os castelhanos, depois de uma guerra
infeliz, intentada sem justificados motivos, e em que se esgotaram inteiramente os tesouros
do Estado. A condição principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D.
Fernando casasse com a filha del-rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu de
novo; porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe importar o contrato de que
dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher, com afronta da princesa
castelhana. Resolveu-se o pai a tomar vingança da injúria, ao que o aconselhavam ainda
outros motivos. Entrou em Portugal com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe
batalha, veio sobre Lisboa e cercou-a. Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos deste
sítio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.
O Adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província de Entre-Douro-e-
Minho com um grosso corpo de gente de e de cavalo, enquanto a maior parte do pequeno
exército português trabalhava inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa.
Prendendo, matando e saqueando, veio o Adiantado até as imediações de Barcelos, sem
achar quem lhe atalhasse o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel,
conde de Ceia e tio del-rei D. Fernando, com a gente que pôde ajuntar. Foi terrível o conflito;
mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas mãos dos adversários.
Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves. Saíra
este com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia, vindo, assim, a ser companheiro na
comum desgraça. Cativo, o valoroso alcaide pensava em como salvaria o castelo del-rei seu
senhor das mãos dos inimigos. Governava-o em sua ausência, um seu filho, e era de crer
que, vendo o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais
quando os meios de defensão escasseavam. Estas considerações sugeriram um ardil a Nuno
Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao dos muros do castelo,
porque ele, com as suas exortações, faria com que o filho o entregasse, sem derramamento
de sangue.
Um troço de besteiros e de homens d'armas subiu a encosta do monte da Franqueira,
levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O Adiantado de Galiza seguia atrás
com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodrigues de
Viedma, estendia-se, rodeando os muros pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse
do castelo de Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.
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De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação de Faria: mas silenciosas e
ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao longe as bandeiras castelhanas, que
esvoaçavam soltas ao vento, e viram o refulgir cintilante das armas inimigas, abandonando os
seus lares, foram acolher-se no terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a
cerca exterior ou barbacã.
Nas torres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha, e os almocadens corriam com a
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pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos colocados nos ângulos das muralhas.
O terreiro onde se haviam acolhido os habitantes da povoação estava coberto de choupanas
colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das mulheres e das crianças, que ali se
julgavam seguros da violência de inimigos desapiedados.
Quando o troço dos homens d'armas que levavam preso Nuno Gonçalves vinha a pouca
distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias encurvaram as bestas, e os
homens dos engenhos prepararam-se para arrojar sobre os contrários as suas quadrelas e
virotões, enquanto o clamor e o choro se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme estava
apinhado.
Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã, todas as
bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num silêncio
profundo.
- "Moço alcaide, moço alcaide! - bradou o arauto - teu pai, cativo do mui nobre Pedro
Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galiza pelo mui excelente e temido D. Henrique de
Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo."
Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro e, chegando à barbacã,
disse ao arauto - "A Virgem proteja meu pai: dizei-lhe que eu o espero."
O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e depois de breve
demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao dela, o velho guerreiro saiu
dentre os seus guardadores, e falou com o filho:
"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo, que, segundo o regimento de guerra,
entreguei à tua guarda quando vim em socorro e ajuda do esforçado conde de Ceia?"
- "É - respondeu Gonçalo Nunes - de nosso rei e senhor D. Fernando de Portugal, a quem por
ele fizeste preito e menagem."
- "Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por nenhum
caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?"
- "Sei, oh meu pai! - prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos
castelhanos, que começavam a murmurar. - Mas não vês que a tua morte é certa, se os
inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?"
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então: - "Pois se o
sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu
no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo,
sem tropeçarem no teu cadáver."
- "Morra! - gritou o almocadem castelhano - morra o que nos atraiçoou." - E Nuno Gonçalves
caiu no chão atravessado de muitas espadas e lanças.
- "Defende-te, alcaide!" - foram as últimas palavras que ele murmurou.
Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando vingança. Uma nuvem de
frechas partiu do alto dos muros; grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves
misturaram o próprio sangue com o sangue do homem leal ao seu juramento.
Os castelhanos acometeram o castelo; no primeiro dia de combate o terreiro da barbacã ficou
alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de
Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro
incendiado para dentro da cerca; o vento suão soprava nesse dia com violência, e em breve
os habitantes da povoação, que haviam buscado o amparo do castelo, pereceram juntamente
com as suas frágeis moradas.
Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai: lembrava-se de que o vira
moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos o último grito do bom
Nuno Gonçalves - "Defende-te, alcaide!"
O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do castelo de Faria.
O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército castelhano foi constrangido a levantar
o cerco.
Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu brioso procedimento e
pelas façanhas que obrara na defensão da fortaleza cuja guarda lhe fora encomendada por
seu pai no último trance da vida. Mas a lembrança do horrível sucesso estava sempre
presente no espírito do moço alcaide. Pedindo a el-rei o desonerasse do cargo que tão bem
desempenhara, foi depor ao dos altares a cervilheira e o saio de cavaleiro, para se cobrir
com as vestes pacificas do sacerdócio. Ministro do santuário, era com lágrimas e preces que
ele podia pagar a seu pai o ter coberto de perpétua glória o nome dos alcaides de Faria.
Mas esta glória, não hoje ai uma única pedra que a ateste. As relações dos historiadores
foram mais duradouras que o mármore.
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