Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir o convento edificado ao sopé do
monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de armas, as ameias das torres em
bordas de sepulturas, os umbrais das balhesteiras e postigos em janelas claustrais. O ruído
dos combates calou no alto do monte, e nas faldas dele alevantaram-se a harmonia dos
salmos e o sussurro das orações.
Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos maiores, porém, curavam mais de
praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas. Deixaram, por isso, sem
remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um dos mais
heróicos feitos de corações portugueses.
Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava de seus antepassados
em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com os castelhanos, depois de uma guerra
infeliz, intentada sem justificados motivos, e em que se esgotaram inteiramente os tesouros
do Estado. A condição principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D.
Fernando casasse com a filha del-rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu de
novo; porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe importar o contrato de que
dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher, com afronta da princesa
castelhana. Resolveu-se o pai a tomar vingança da injúria, ao que o aconselhavam ainda
outros motivos. Entrou em Portugal com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe
batalha, veio sobre Lisboa e cercou-a. Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos deste
sítio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.
O Adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província de Entre-Douro-e-
Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo, enquanto a maior parte do pequeno
exército português trabalhava inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa.
Prendendo, matando e saqueando, veio o Adiantado até as imediações de Barcelos, sem
achar quem lhe atalhasse o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel,
conde de Ceia e tio del-rei D. Fernando, com a gente que pôde ajuntar. Foi terrível o conflito;
mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas mãos dos adversários.
Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves. Saíra
este com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia, vindo, assim, a ser companheiro na
comum desgraça. Cativo, o valoroso alcaide pensava em como salvaria o castelo del-rei seu
senhor das mãos dos inimigos. Governava-o em sua ausência, um seu filho, e era de crer
que, vendo o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais
quando os meios de defensão escasseavam. Estas considerações sugeriram um ardil a Nuno
Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao pé dos muros do castelo,
porque ele, com as suas exortações, faria com que o filho o entregasse, sem derramamento
de sangue.
Um troço de besteiros e de homens d'armas subiu a encosta do monte da Franqueira,
levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O Adiantado de Galiza seguia atrás
com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodrigues de
Viedma, estendia-se, rodeando os muros pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse
do castelo de Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.