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—Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.
Três horas depois cerca de cinqüenta convivas sentavam-se em volta da
mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto
obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações,
apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina,
aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão
modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista
ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito,
dizia ao ouvido da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D.
Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda
descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe
a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos,
pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em
que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. Deus,
disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa
pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a
outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista."
D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando
a cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na
verdade, 0 gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e
provavelmente de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E
uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico—ou que o
adiasse ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais
piedosa, chegou a admitir consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma
desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna.
Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta
idéia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora
para o Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não
lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele
mesmo a idéia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em
algum autor que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e
pareceu-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas idéias eram antes
arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo,
compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro
era o "dragão aspérrimo do Nada" esmagado pelas "garras vingadoras do Todo"; e
assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das idéias sublimes e raras,
das imagens grandes e nobres...
— Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: —Trata-se de um
caso de lesão cerebral: fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...
D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim
Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéias tão bonitas! As duas
senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa;
realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.
Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José
Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das cambraias, folgazão emérito,
o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem
estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos safam,