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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Mila Burns
Nasci para sonhar e cantar
Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara
Rio de Janeiro
2006
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Mila Burns
Nasci para sonhar e cantar
Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho.
Rio de Janeiro
2006
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Burns, Mila
Nasci para sonhar e cantar. Gênero, projeto e mediação na
trajetória de Dona Ivone Lara / Mila Burns. Rio de Janeiro,
2006.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional, 2006.
Orientador: Gilberto Cardoso Alves Velho
1. Gênero. 2. Samba
3. Antropologia – Teses.
I.Velho, Gilberto Cardoso Alves (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social.
4
Mila Burns
Nasci para sonhar e cantar
Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara
Rio de Janeiro, ...... de ..................... de .........
________________________
(Gilberto Cardoso Alves Velho,)
________________________
(Aparecida Vilaça)
________________________
(Santuza Cambraia Naves)
________________________
(Hermano Vianna)
________________________
(Yonne Leite)
5
Este trabalho é dedicado a Bininha, Glória, Penha, Terezinha, Sonia,
Ana, Denise e Julia, que em diferentes épocas e contextos vivem a
conciliar doçura e fibra.
6
Agradecimentos
Devo recusar qualquer mérito e confessar que a conclusão deste trabalho só foi
possível com muito esforço e companheirismo de uma porção de pessoas. Para conciliar
o árduo trabalho de jornalista com o ainda mais intenso trabalho de reflexão, estudo e
produção exigido no Museu Nacional/UFRJ, contei com o apoio fundamental de grandes
amigos.
Agradeço a todos do Programa de Pós-Graduacão em Antropologia do Museu
Nacional, por terem compreendido o projeto e apoiado desde o início minha entrada um
tanto aventureira e apaixonada na antropologia. Aos professores Giralda Seyferth, Carlos
Fausto, Bruna Franchetto, Daniel Carvalho, Márcio Goldman e Antonádia Borges. Aos
funcionários da secretaria, Tânia, Rosa, Beth e todos mais. Também aos da biblioteca:
Isabel, Cristina e a querida Carlinha.
Aos amigos de sala, com quem dividi questionamentos e conclusões, Zoy, Letícia,
Camila, Virna, Clara, Marina, Vicka, Julia, André, Tatiana, Liane e Maria Elvira.
A Andréa Rocca, amiga de todas as horas, que me ensinou a querer ser
antropóloga em cada momento da minha vida. Aos queridos Karina Kushnir e Celso
Castro, que há um tempão me inspiram e me estimulam.
Aos colegas de trabalho, Marcos Mendes, Miguel Athayde, Renato Ribeiro e
Marcelo Moreira, que ao longo desse mestrado foram meus chefes na TV Globo e me
permitiram trabalhar em horários não-convencionais para cumprir as exigências do
mestrado. Ainda, a Gabriela de Palhano, Cláudia Moretz e Aline Rabello, pelas
conversas, pelo apoio e pela amizade.
Agradeço a todos os entrevistados que participaram deste trabalho, Délcio
Carvalho, Ivor Lancelotti, Moacyr Luz, Luiz Carlos da Vila, Beth Carvalho, Bruno
Castro, André Costa, Teresa Cristina, Telma Tavares, Ana Costa e, especialmente a
Miriam, a Dona Ivone Lara e a toda a sua família, sempre alegre e orgulhosa da bela
trajetória, por mais longas e fora de hora que fossem as nossas conversas. Para mim, a
felicidade de Dona Ivone com a conclusão deste trabalho foi a maior recompensa pelos
fins de semana, feriados e madrugadas dedicados a sua feitura.
À minha família e meus pais, Denise e João Marcos e à minha irmã querida, Julia,
parceiros em todas as caminhadas, por mais fatigantes e sem fim que elas pudessem
parecer. Por abrirem mão da companhia, mas continuarem cada vez mais presentes em
cada esquina desta estrada que, aviso logo, está só começando.
A Ernesto, Ana, Tico, Léo, por nunca terem permitido que eu me sentisse sozinha.
A Marcelo, companheiro querido, que nunca deixou de abrir os braços orgulhosos
para apoiar e compreender as ausências, os pensamentos distantes e, de quebra, foi um
leitor/ revisor crítico e brilhante. Além de tudo isso, me ensinou um pouco de tudo o que
sei e sinto a respeito da música. E além de tudo o mais, me ensinou a querer ser sempre
melhor, mais bacana, mais compreensiva e mais tolerante.
Essa dissertação nunca seria nada além de um sonho sem o meu orientador,
Gilberto Velho. Foi ele quem, em 2000, despertou em mim a paixão pela antropologia,
pelas pessoas, pelo mundo. Foi ele quem apoiou minha decisão de fazer o mestrado e
quem, durante todo o curso, esteve ao meu lado. Pelos incontáveis ombros nos momentos
de insegurança, pelas intermináveis lições, pela amizade e carinho, para sempre serei
agradecida.
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Resumo
BURNS, Mila. Nasci para sonhar e cantar: Gênero, projeto e mediação na trajetória de
Dona Ivone Lara. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Tendo como pano de fundo a trajetória pioneira de Dona Ivone
Lara, primeira mulher a integrar uma ala dos compositores de escola de samba, a compor
um samba-enredo oficialmente e a ser reconhecida como compositora em um meio até
então exclusivamente masculino, este trabalho traz à tona um debate sobre gênero e
mediação no universo do samba no subúrbio do Rio de Janeiro. Foram utilizados como
referência trabalhos de Howard Becker, Alfred Schutz, Gilberto Freyre, Florestan
Fernandes, Gilberto Velho e Hermano Vianna, entre outros. Os conceitos de
complexidade e projeto também foram fundamentais para a compreensão da compositora
como indivíduo. Com base nesses estudos e analisando diferentes fases da vida da artista
(da infância à terceira idade), com informações colhidas em depoimentos dela própria, de
seus amigos e familiares e de outros sambistas, essa dissertação tem como objetivo traçar
um panorama da figura feminina no restrito espaço dos compositores do ritmo no Brasil
e, assim, pensar no mundo do samba, um dos principais representantes da cultura
brasileira.
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Abstract
BURNS, Mila. Nasci para sonhar e cantar: Gênero, projeto e mediação na trajetória de
Dona Ivone Lara. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Dona Ivone Lara was the first brazilian woman to officially take part
in a group of composers in a samba school. Until then, the “samba-enredo” was
exclusively a male work. This dissertation discusses the debate about genre and
mediation, surrounding the samba universe, in the suburbs of Rio de Janeiro. Howard
Becker, Alfred Schutz, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Gilberto Velho e Hermano
Vianna among others were used as references.The concepts of complexity and project
were fundamental to understand the composer as an individual. Based on these studies,
and on the analysis of different phases of the artist’s life (from her youth to her old age),
by using information gathered from friends, family, and other musicians, this thesis
focuses on delineating the role of women in samba’s narrow group of composers. By
doing so, it is also a reflection on samba universe, one of the most important
representations of brazilian culture.
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“Assim como há homens singulares, há outros plurais”
Carlos Drummond de Andrade
“As mulheres do Brasil em vez de cores boreais
terão as cores variamente tropicais.”
Gilberto Freyre
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Introdução
Por que elas?
A música está presente em diferentes grupos sociais, de diversos modos, em
situações e contextos variados. Se procurarmos os responsáveis por tantas dessas
manifestações, no entanto, curiosamente observaremos que, em nossa sociedade, a
quantidade de autores homens é bem maior que a de mulheres. Sempre me perguntei o
porquê desse fenômeno. Seriam elas menos propensas a unir melodia, letra e harmonia?
Ou ainda, seria a composição um ato masculino?
Pensando em alguns dos maiores nomes da música de todos os tempos ingênua e
arbitrariamente – não seria capaz de listar todos eles, nem teria a pretensão de fazê-lo –
apenas citando os dez primeiros nomes que me vêm à cabeça, lembro de Johann
Sebastian Bach (1685 - 1750), Ludwig van Beethoven (1770 - 1827), Claude Debussy
(1862 - 1918), Frédéric Chopin (1810 - 1849), Joseph Haydn (1732 - 1804), Gustav
Mahler (1860 - 1911), Maurice Ravel (1875 - 1937), Antonio Vivaldi (1678 - 1741),
Sergei Rachmaninov (1873 - 1943), Richard Strauss (1864 – 1949) e Igor Stravinsky
(1882 - 1971). São homens de épocas, famílias, países diferentes, alguns até pertencentes
a distintas classes sociais. Todos reconhecidos – uns postumamente, outros, ainda em
vida – e respeitados. Todos homens. Esses são alguns dos 250 citados em um website que
se propõe a publicar as biografias dos maiores nomes da música erudita de todos os
tempos
1
. Nenhuma mulher aparece listada no rol.
1
O website citado chama-se “The Classical Music Pages”. Apesar de seu conteúdo estar disponível em
inglês, o endereço é alemão: http://w3.rz-berlin.mpg.de/cmp/classmus.html
11
Wolfgang Amadeus Mozart, é claro, não foi esquecido. Seu pai, Leopold – um
conhecido músico da corte que não teve o sucesso por ele almejado e passou a vida
tentando fazer do filho mais novo uma grande estrela da música, ainda em vida – também
faz parte dos nomes relacionados no website. A irmã mais velha de Wolfgang, Nannerl,
no entanto, que chegou a excursionar com eles pela Europa, não é sequer mencionada.
Pudera. A moça jamais alcançou destaque e reconhecimento público suficientes para que
seu nome ficasse marcado na história, a não ser pelo fato de ser filha de Leopold e irmã
de Wolfgang
2
.
Dificilmente saberemos se o esquecimento reservado a Nannerl deveu-se a sua
falta de talento ou se ela era tão genial quanto, ou até mais que o irmão, e acabou sendo
vítima da sociedade da época, na qual o espaço possibilitado à mulher, especialmente
àquelas que não pertenciam à nobreza – ou eram de classe social um pouco mais baixa –
era ínfimo. Até o começo do século passado, no meio musical, poucas eram as que
apareciam em posição diferente da de ouvinte, musa ou intérprete. Nesse último caso,
quase sempre se fazia necessário que o talento e o timbre de voz estivessem
acompanhados da beleza e da sedução (fosse ela ingênua ou provocante).
No contexto da música popular brasileira, ocorre um fenômeno semelhante. É
notória a participação da mulher como cantora, desde o final do século XIX até os dias de
2
Em seu trabalho sobre o compositor, Mozart Sociologia de um gênio, Norbert Elias não analisa apenas a
biografia do músico, mas o contexto e a época em que ele viveu. Era o século XVIII e tratava-se de um
indivíduo complexo, pertencente à burguesia, mas em constante conflito com as regras de etiqueta vigentes
na corte, onde prestava serviço e a cujos membros deveria agradar. Também fazia parte do comportamento
da época a pouca participação da mulher em atividades que possibilitassem ascensão social. Em uma
passagem sobre o papel da mãe de Wolfgang Amadeus Mozart na família, Elias reconhece: “não sabemos
exatamente a parte que a mãe desempenhou nesta constelação; não há provas suficientes. Ela vinha de uma
família também pertencente à classe dos artesãos e aparentemente era uma mulher calorosa, animada,
paciente e com alguns interesses musicais. Até onde podemos perceber, submetia-se sem contestação nem
dificuldade à autoridade do marido, como era comum entre as mulheres de sua classe. Wolfgang Mozart
nasceu do que hoje se pode chamar de um casamento feliz do tipo antigo: o marido tomava todas as
decisões, a mulher seguia-o com confiança absoluta em sua decência, afeto e superioridade intelectual”.
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hoje. A pianista Guiomar Novaes, a soprano Bidu Sayão, as divas do rádio Marlene,
Emilinha Borba, Linda Batista e Ângela Maria, a musa da bossa-nova, Nara Leão e, na
mesma época, Elis Regina. Atualmente, poderíamos citar inúmeras outras que fazem
enorme sucesso em nosso país (como a filha da própria Elis Regina, Maria Rita)
3
.
Poucas são, no entanto, as mulheres compositoras brasileiras que conseguimos
localizar na primeira metade do século XX, ou antes disso. Mas se, ao contrário,
centrarmos nossa pesquisa nos homens, notaremos seu claro predomínio. Podemos pensar
nos mais eruditos, como Heitor Villa-Lobos, e Carlos Gomes e também naqueles ligados
à música popular brasileira, como Assis Valente e Ataulfo Alves.
O mundo do samba é o universo que escolhi para refletir sobre essa questão, por
se tratar de um meio onde os papéis principais – que exigem bom desempenho intelectual
e liderança – costumam estar reservados ao gênero masculino. Restam à mulher as
figuras da intérprete, da dançarina, da conselheira
4
ou, ainda, da musa
5
. Carmen Miranda,
Araci de Almeida, Clara Nunes, Linda Batista, Beth Carvalho, Alcione e outras das
maiores intérpretes brasileiras cantam samba. Mas são poucas as que dão voz a suas
próprias músicas.
3
Para mais informações sobre a biografia das cantoras, cantores, compositoras e compositores citados, ver
anexo.
4
Uma das figuras mais populares do samba é a das “tias”. A pioneira, Tia Ciata, era uma doceira baiana
que costumava abrir a casa para reuniões de músicos, no começo do século XX. Foi em sua casa, dizem,
que o samba foi criado. O primeiro deles, Pelo Telefone, seria um partido, tocado e repetido nas festas. Até
hoje as escolas de samba prestam homenagem à Tia Ciata com a Ala das Baianas, obrigatória em todos os
desfiles. O posto de “tia” é, atualmente, ocupado por senhoras de idade, com muitos anos de agremiação, e
com certa influência, mas não necessariamente com grande autoridade no meio do samba. Ter o “titulo
confere respeito à mulher – especialmente pelo tempo devotado à escola – mas não poder decisório. As
“tias” costumam ser representantes da velha guarda.
5
Falo, aqui, não apenas da musa que inspira letras de samba feitas por homens, mas, sobretudo, da figura
quase caricata das passistas e das modelos em carros alegóricos que desfilam, sempre em trajes diminutos,
simbolizando a beleza da agremiação.
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Entre os homens, poderíamos lembrar de Almir Guineto, Martinho da Vila,
Wilson Batista, Noel Rosa (criticado como cantor, mas sempre lembrado pelas muitas
canções que escreveu em seu pouco tempo de vida), Adoniran Barbosa, Cartola, Ismael
Silva e tantos outros que tinham o poder de transformar notas e palavras em
representações da cultura brasileira.
Entre as mulheres, uma das primeiras a alcançar tal espaço foi Chiquinha
Gonzaga. Nascida no Rio de Janeiro, em 1847, filha de Rosa Maria, de ascendência negra
e pobre, e do militar José Basileu Gonzaga, membro de uma família tradicional. A
família dele fora contra a união, e Francisca nasceu bastarda, longe do pai, que estava em
Pernambuco. Quando voltou ao Rio, no ano seguinte, ele assumiu a paternidade da
menina
6
.
Em 1877, ela compôs sua primeira música. Sonhava com a melodia e, em um
sarau na casa do maestro Henrique Alves de Mesquita foi tocando-a ao piano. Era a polca
“Atraente”, registrada pela editora do flautista Calado, grande amigo de Chiquinha. Este
último integrava um grupo bastante conhecido no final do século XIX, o “Choro do
Calado”, que se apresentava com freqüência em festas particulares e saraus. Na época,
faltava ao grupo um pianista capaz de tocar de um jeito mais solto, permitindo
improvisos, seguindo o novo estilo que se impunha à música brasileira, com um ritmo
que começava a fazer sucesso. Eram os primórdios do chorinho. Chiquinha preencheu a
vaga e tornou-se a primeira mulher “pianeira” no Brasil.
O “atrevimento” da jovem, que freqüentava eventos nas rodas mais boêmias da
cidade foi severamente condenado. Das roupas ao modo de agir, tudo em seu
6
Para mais informações sobre a vida e a obra de Chiquinha Gonzaga, ver Schumaher, 2001 e Diniz, 1984.
14
comportamento era motivo de comentários maldosos. Com a morte de Calado, em 1880,
ela não perdeu apenas o amigo, mas a principal fonte de renda, pois o grupo dele foi
extinto. Passou por sérias dificuldades financeiras até descobrir no teatro uma boa
oportunidade de crescer profissionalmente.
Ainda em 1880, Chiquinha escreveu o libreto “Festa de São João”. Três anos
depois, musicou “Viagem ao Parnaso”, de Artur Azevedo, mas seu trabalho foi recusado
porque o empresário responsável pela peça acreditava ser responsabilidade demais para
uma mulher. Só em 1885, com “A corte na roça”, começou a conquistar algum
reconhecimento. Era algo tão inusitado que a imprensa sequer sabia qual a maneira
correta de nomeá-la: maestra ou maestrina.
Lutou contra a escravidão (compôs, inclusive, um hino em homenagem à princesa
Isabel quando foi aprovada a Lei da Abolição), depois, contra a monarquia, e mais tarde
ainda, contra o governo do presidente Floriano Peixoto. Chegou a receber ordem de
prisão pela contestação.
Em 1902, viajou para a Europa e voltou acompanhada de um rapaz, João Batista,
egresso com ela de Portugal, mas que Chiquinha a todos apresentava como sendo seu
filho. Na verdade, os dois haviam se conhecido em 1899, no Rio de Janeiro. Ela com 52
anos, ele com 16. Joãosinho era músico amador e os dois passaram a viver um romance
que durou até a morte da maestrina, em 1935.
Trata-se, portanto, de uma mulher que impôs suas idéias, suas vontades, suas
composições em um meio quase exclusivamente masculino. Questionava o regime
vigente sem apegar-se a nenhuma corrente política específica, mas apenas levando em
consideração aquilo que a agradava ou incomodava. Fazia barulho se necessário. Entre os
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seus melhores amigos estavam homens influentes, que a ajudaram a conquistar espaço no
meio musical o que, naturalmente, em nada diminui a constatação de seu enorme talento.
Dolores Duran, outra compositora oriunda das camadas populares, também foi
incentivada por amigos a escrever canções. Nascida no Rio de Janeiro em 1930, começou
a cantar muito cedo, aos três anos de idade. Aos doze, quando o pai morreu, ela teve que
sustentar a família com sua a música.
Passou anos dedicando-se exclusivamente à atividade de intérprete. Participou de
programas para calouros e do rádio-teatro, na Rádio Tupi, no programa infantil “Teatro
da Tia Chiquinha”. Cantou, ainda, na Rádio Nacional e, aos 16 anos, foi contratada pelo
proprietário da Boate Vogue – uma das mais bem freqüentadas da época – como crooner
oficial. Dolores alcançou a fama.
Sua primeira composição data de 1955, e foi uma parceria com o amigo Antônio
Carlos Jobim. “Se é por falta de adeus”, gravada por Dóris Monteiro, não chegou a ser
um grande sucesso de público. Aos 27 anos, em 1957, ela reencontrou o amigo Tom
Jobim. Na ocasião, ele mostrou-lhe uma composição feita em parceria com Vinícius de
Moraes, que escrevera a letra. Ao ouvir a melodia, Dolores Duran imaginou uma outra
letra para “Por causa de você”. Vinícius ouviu, rasgou o próprio trabalho e disse que o de
Dolores era bem superior. Depois disso, ela compôs várias outras canções, inclusive
clássicos da música popular brasileira, como “Castigo”, “A noite do meu bem”, “Estrada
do sol”, “Pela rua”, “Fim de caso” e “Olha o tempo passando”.
Sua produção, no entanto, seria precocemente interrompida dois anos mais tarde.
Aos 29 anos, Dolores Duran morreu enquanto dormia. Desde criança ela sofria com
distúrbios de saúde provocados por um reumatismo infeccioso. Não se sabe ao certo se
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sua morte foi provocada por problemas cardíacos ou pela ingestão excessiva de
medicamentos barbitúricos.
Na década de 60, foi a vez de Rosinha de Valença conquistar um grande público
com seu violão. Em sua introdução ao meio musical, também destacam-se importantes
figuras masculinas. Foi um amigo, o jornalista Sérgio Porto, quem a apresentou, em
1963, a Baden Powell e a Aluísio de Oliveira, na época, produtor da gravadora Elenco.
Foi este último quem a contratou para gravar um álbum, o primeiro de sua carreira,
“Apresentando Rosinha de Valença”.
Um dos momentos mais importantes de sua trajetória foi a participação no show
“O Fino da Bossa”, ocorrido em São Paulo, em 1964, quando suas músicas foram
ouvidas por um numeroso e atento público. Rosinha fez várias turnês ao exterior. Em
algumas delas apresentou-se sozinha, em outras, acompanhada de artistas como Maria
Bethânia, Martinho da Vila, João Donato, Dona Ivone Lara e Miúcha.
Como Dolores Duran, Rosinha de Valença deixou de compor precocemente.
Morreu em 2004, aos 62 anos, depois de passar doze anos em coma, em estado
vegetativo. O problema teve início em 1992. De férias no Brasil, no auge da carreira, com
mais de vinte discos
7
gravados, a violonista sofreu uma parada cardíaca que provocou
uma lesão permanente no cérebro.
Na mesma época em que Rosinha começava a fazer sucesso, surgia outra jovem
compositora. Ao contrário das demais autoras até agora mencionadas, tratava-se, no
entanto, de uma moça de família rica. Maysa, nascida em 1936, escreveu sua primeira
canção, “Adeus”, aos 12 anos, quando ainda estudava de piano. Casou-se e deixou de
7
Em seus álbuns, Rosinha não gravava apenas composições suas. Costumava registrar interpretações de
canções de diferentes estilos e países, desde que soassem bem ao som de seu violão.
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lado a carreira. Passou a cantar apenas em festas de amigos. Até que em uma dessas
ocasiões foi convidada a gravar um disco com composições suas. Em 1956, foi lançado
“Convite para ouvir Maysa” que incluía, além de sua primeira obra, os sambas-canções
“Meu mundo caiu” e “Ouça” (ver Neves, 2004).
O sucesso continuaria até a década de 1970. Maysa, no entanto, dedicava-se
muito mais a interpretar canções de outros compositores do que as suas próprias. E, assim
como ocorrido com Dolores Duran e Rosinha de Valença, sua carreira também duraria
pouco. A cantora faleceu no auge da vida artística, em 1977, vítima de um acidente de
carro na ponte Rio-Niterói.
Na década seguinte, o samba também revelaria uma compositora. Freqüentadora
de um ambiente predominantemente masculino, o partido alto (ver Blanc, 2004), Jovelina
Pérola Negra nasceu no Rio em 1944. Fã de Bezerra da Silva, baiana do Império Serrano,
começou a versejar em pagodes no Vegas Sport Clube, localizado no bairro de Coelho
Neto, levada por um amigo. Mas a primeira participação em discos só aconteceria em
1985, quando gravou três faixas no álbum “Raça Brasileira”. O sucesso foi tamanho que
a gravadora produziu, no ano seguinte, seu primeiro disco solo, “Jovelina Pérola Negra”.
Além desses dois, outros nove foram lançados até 1997.
Em entrevista concedida à revista Raça, em 1998, Jovelina comentava a ausência
de pessoas ‘do meio musical’ em sua família e a dificuldade de ter acesso às grandes
gravadoras: “antigamente era ‘brabo’ entrar numa gravadora”. Dizia sofrer muito com o
racismo, mesmo depois de se tornar um grande sucesso de vendas (do primeiro álbum
foram vendidas mais de 200 mil cópias). Sentia que “onde só há brancos, o negro não é
visto com bons olhos”.
18
A versadora não compôs um grande número de canções. Sua carreira como
cantora profissional durou pouco mais de dez anos. Jovelina Pérola Negra morreu em
1998, aos 54 anos, de enfarte, enquanto dormia em sua casa, em Jacarepaguá. Deixou três
filhos.
Na segunda metade do século XX, as mulheres compositoras passaram a ter uma
visibilidade bem maior, apesar de continuarem, até hoje, a constituir minoria. Fátima
Guedes, Joyce, Rita Lee, Ná Ozzetti, Sueli Costa, Angela Ro Ro, Adriana Calcanhotto,
Marisa Monte, Zélia Duncan e mais recentemente a roqueira baiana Pitty, além da
cantora Vanessa da Mata e da estrela da música pop, Sandy, são algumas das mulheres
que assinam parte das músicas que interpretam.
No mundo do samba, atualmente, algumas fazem bastante sucesso. É o caso de
Teresa Cristina, que já gravou um disco contendo apenas composições de Paulinho da
Viola. Em seus álbuns mais recentes, no entanto, ela passou a incluir também faixas de
sua autoria, que há anos vem sendo apresentadas em espaços culturais do bairro da Lapa,
no Rio de Janeiro. O mesmo caminho é trilhado por Telma Tavares, pelas meninas do
grupo O Roda (Ana Costa, uma das compositoras do grupo, diz que sua maior influência
é Mart’nália, outra jovem sambista) e por Nilze Carvalho, entre outras.
Quando conversava com um dos atuais representantes da malandragem, da
boemia, do samba “de raiz”, o cantor e compositor Moacyr Luz, perguntei-lhe qual seria
a razão da preponderância masculina no mundo do samba. Piadista, ele respondeu que
“mulher não faz samba porque não vai a botequim
8
.” Da blague do compositor nos resta
8
Sobre o universo particular desses bares, especialmente os do Rio de Janeiro, um estudo de Luiz Antônio
Machado, intitulado O Significado do Botequim, explicita a função social desse espaço de sociabilidade
pública, onde há um permanente confronto de virilidades, onde os freqüentadores têm debates recorrentes
19
uma série de questionamentos. Afinal, o que é necessário para que alguém, não
importando gênero, raça, credo ou nacionalidade, seja capaz de transformar palavras e
notas em canções tão representativas da cultura brasileira? O que torna um indivíduo
sambista? E quem, de fato, pode ser tido como tal?
Algum tempo antes de Rosinha de Valença, Teresa Cristina, Jovelina Pérola
Negra, Pitty ou Rita Lee, uma mulher conquistava espaço entre os homens compositores
de samba. Ela começara a tornar-se mais conhecida em meados dos anos 1940 e, aos
poucos, transformou-se em referência, passando a ser citada por críticos musicais e
músicos profissionais como uma das maiores musicistas brasileiras de todos os tempos,
entre homens e mulheres. Em sua homenagem, o pianista Leandro Braga – que a
considera “uma das maiores melodistas do samba” – gravou o álbum “Primeira Dama”,
transformado, posteriormente, em livro de partituras com o mesmo nome (ver Braga,
2003). “Senhora da Canção”, do sambista Nei Lopes foi composta para a tal senhora, que
acabou tornando-se quase uma unanimidade no meio do samba, e é hoje apontada com a
grande “diva” desse ritmo brasileiro.
Quando perguntei a Luiz Carlos da Vila, Martinho da Vila, Beth Carvalho e
outros grandes artistas de samba se conheciam mulheres compositoras do ritmo, a
resposta, sempre depois de muita reflexão, era a de que só havia uma ou, no máximo,
havia duas mulheres entre tantos homens nesse universo tão brasileiro. A única que
estava presente em todas as respostas era Dona Ivone Lara.
O que levou a menina pobre de Madureira a alçar esse posto? O fato de grande
parte de sua família pertencer ao mundo do samba? Ou seria por ela ter-se casado com o
sobre temas como mulheres, futebol, política e religião, entre outros. Para mais informações sobre o tema,
ver Machado, 1969.
20
filho do presidente de uma destacada escola de samba da época, a Prazer da Serrinha? Ou
ainda, por ter-se imposto como autora, integrando a ala de compositores de uma grande
agremiação, onde fez história, tornando-se a primeira mulher a escrever um samba-
enredo? Ou por ter aberto mão de assinar as suas primeiras músicas para que seu primo,
sambista conhecido, pudesse apresentá-las como dele e, assim, fazer com que as canções
fossem finalmente ouvidas? O que há de diferente na vida dessa senhora para que hoje
ela seja lembrada por músicos, público e crítica como a principal compositora de samba
do Brasil?
Cantora a quem os mais jovens chamam, carinhosamente, de “muito fofa” e “uma
gracinha”, e a quem todos devotam respeito, Dona Ivone Lara é muitas mulheres em
uma. Como todas. Mas possui uma peculiaridade. Faz parte de um universo quase
sagrado no Brasil: o do carnaval, do samba, do ritmo, do suingue. Mas não se encaixa
exatamente em nenhum dos “tipos” mais conhecidos desse universo. Não é “tia”, não é
passista, tampouco é musa inspiradora. Ela simplesmente compõe e canta, como fazem
tantos homens.
Não me proponho a explicar que passe de mágica teria tornado possível tal
fenômeno, mas acredito que uma análise um pouco mais detalhada das etapas da
trajetória da sambista pode nos levar a algumas respostas. Ou, quem sabe, a ainda outros
questionamentos.
Em primeiro lugar, creio ser essencial tentar entender o contexto da época em que
ela emergiu como compositora. Trata-se de uma análise fundamental para compreender o
que seria essa confluência de fatores, essa união de elementos que não são constantes
tampouco uniformes, e que fizeram de nossa personagem uma “diva”.
21
Fredrik Barth sugere evitarmos os axiomas da cultura que muitas vezes deixamos
intocados, e propõe que se pense na realidade de indivíduos como uma composição de
construções culturais, “sustentadas de modo eficaz tanto pelo mútuo consentimento
quanto por causas materiais inevitáveis. Esse consentimento, ao que tudo indica, está
incrustado em representações coletivas: a linguagem, as categorias, os símbolos, os
rituais e as instituições” (ver Barth, 2000).
A partir da tentativa de compreender de onde viria esse consentimento
mencionado por Barth, proponho refletirmos sobre os tais mundos de que Dona Ivone
Lara faz parte. Pensando no universo do samba, trata-se de um grupo que representa
simbolicamente a cultura popular brasileira e – como concluiu Hermano Vianna em O
Mistério do Samba (1995) – a unidade nacional brasileira. Um meio formado por
inúmeras correntes de tradição cultural, de que a compositora faz parte, mas que não são
simples de se perceber, tampouco de se delimitar. Trata-se de uma rede de significados
complexa, nos termos de Clifford Geertz
9
, que envolve gênero, religião, arte, samba,
afro-descendência e brasilidade (ver Geertz,1989).
No começo do século passado, o Rio de Janeiro estava imerso em (e era o lugar
onde efervescia) uma série de movimentos culturais. O local perfeito para o nascimento
do gênero musical que mais tarde se tornaria um dos principais produtos culturais
brasileiros, expressão da nossa identidade.
Em uma de suas mais famosas canções, “Feitio de Oração”, Noel Rosa sustenta
que “o samba, na realidade, não vem do morro nem lá da cidade”. Hermano Vianna
menciona dois momentos: o do samba como ritmo maldito, perseguido, limitado aos
9
Penso aqui no conceito de web of meanings apresentando em A Interpretação das Culturas, de Clifford
Geertz.
22
morros cariocas e às camadas mais pobres da população e, mais tarde, o do samba como
símbolo da cultura brasileira, conquistando rádios e diversos setores da sociedade
10
. O
antropólogo dedica-se a contar essa misteriosa e radical mudança de patamar do gênero,
delineando o contexto da época e os fatores que a teriam desencadeado (ver Vianna,
1995).
Vianna aponta o processo de interação entre o popular e o erudito – um encontro
secular, com um impulso recíproco de intercâmbio – como um dos sustentáculos para a
coroação do samba como ritmo nacional. Dona Ivone vivenciou esse processo. Ela
provinha de uma família de sambistas e chorões e participou de rodas e festividades, mas
sua formação musical se deu por um método de ensino erudito: quando menina, estudava
teoria musical no internato onde vivia.
Considerado o primeiro samba, “Pelo Telefone”, uma criação coletiva creditada a
Donga e ao jornalista Mauro de Almeida, foi gravado em 1916, na voz do cantor Baiano.
Dona Ivone Lara nasceu em Botafogo pouco mais de cinco anos depois. Ela conta que
durante toda a sua infância e a juventude, o ritmo só fazia parte de sua vida durante as
férias, quando saía do colégio e ia para a casa dos tios, em Madureira, zona norte do Rio.
Neste local, o contato com tal gênero musical não se dava apenas pelas freqüentes
audições de rádio. Um de seus tios, Dionísio Bento da Silva, tocava violão de sete cordas,
e costumava fazer ensaios de choro em sua casa, freqüentados por amigos seus. Entre
eles, músicos já naquela época reverenciados, como Jacob do Bandolim e Pixinguinha.
10
Vianna lembra que essa perseguição poderia abranger até mesmo a esfera legal, pois o ato de sambar
poderia ser condenado criminalmente nas primeiras décadas após o seu aparecimento. Dançar ou cantar
samba podia ser considerado um ato de “perturbação da ordem pública”, muitas vezes punido com a prisão
do praticante.
23
Dona Ivone seria, nos termos de Barth, a expressão do encontro entre diferentes
correntes de tradição cultural (ver Barth, 2000). Em sua formação musical, houve uma
forte união entre popular (o samba e o chorinho, das rodas que freqüentava com a família,
especialmente em Madureira) e erudito (presente nas aulas teóricas e nos hinos cantados
na classe de canto orfeônico da qual participava no colégio interno), um retrato da
aclamada originalidade cultural brasileira. Encontrava, no colégio, meninas de classes
sociais diferentes da sua e, quando voltava para casa, se deparava com a realidade das
casas pobres do subúrbio do Rio de Janeiro. Convivia com negros, brancos, com pessoas
de formação escolar alta ou gente sem qualquer estudo.
Na mesma época em que Dona Ivone compunha seu primeiro samba – início da
década de 1930 – Casa-Grande e Senzala tornava-se um marco da bibliografia nacional,
transformando o mestiço – até então o grande vilão do país – em pilar da formação da
cultura nacional.
Em certa medida, ela constitui uma figura que ilustraria de maneira ímpar esse
indivíduo “verdadeiramente brasileiro”. Chegou a cantar regida pelo maestro Villa-
Lobos, mas descobriu-se musicalmente quando aprendeu a tocar cavaquinho com o tio.
Dona Ivone participa ativamente da cultura popular e estuda teoria musical com
ferramentas provindas da cultura erudita. É cantora e compositora. Negra, bisneta de
escravos
11
. Ela guarda em si essa indefinição de fronteiras entre os mais distintos mundos
sociais.
Tomando como referência o ponto de vista de Georg Simmel – segundo o qual, na
sociedade moderno-contemporânea, quanto maior é a participação do indivíduo em redes,
11
A avó de Dona Ivone já nascera depois da lei do ventre livre, que determinava que todos os bebês
nascidos filho de escravos depois de sua promulgação estavam livres da obrigação de servir seus senhores.
24
maior sua percepção de singularidade e maior sua assunção de valores individualistas –
não restam dúvidas de que tratamos, aqui, de um indivíduo demasiadamente complexo,
ator na construção desses diferentes mundos, de sua própria biografia e fundador de
novas redes a partir da mediação que faz entre os grupos. Não cabe aqui pensar em um
indivíduo passivo determinado pela sociedade, mas em um sujeito em constante relação,
em caráter dialético, ativo
12
(ver Simmel, 1971).
Ao longo de mais de oito décadas de vida, Yvonne tem desempenhado pepeis que
caberiam a muitas pessoas. Aos dez anos, tinha desejos completamente diferentes
daqueles que vislumbrou aos oitenta. Não apenas o mundo mudou, os contextos em que
ela se insere se alteraram, mas ela própria também sofreu mudanças.
A biografia dessa diva do samba é pano de fundo para a análise de várias
manifestações de correntes de cultura que compõem parte da identidade brasileira. Trata-
se, ao mesmo tempo, da luta para manter tradições de uma vertente cultural afro-
brasileira e de uma renovação, de uma transformação constante e dinâmica, que torna
essas mesmas tradições vivas e fortes dentro do mercado musical, composto por
empresas, mídia e público.
12
Tais conceitos perpassam toda a obra de Georg Simmel. Em Subjective Culture, ele torna clara a
existência de um indivíduo constantemente em relação. Trata-o como uma categoria básica, como um
construtor, mais que um resultado da vida social. O indivíduo está presente desde o início, não como ser
isolado, mas como integrante de grupos, como um sujeito humano sempre em diálogo com outros
indivíduos. Se por um lado temos essa interação, também está clara a descontinuidade entre sujeito e
objeto, numa relação com o exterior que jamais se esgota. Simmel concebe a arte como uma manifestação
altruísta, já que, quando cria e torna pública sua obra, o artista faz com que sua individualidade seja
apreendida por outros.
Idéia complementar está presente em um artigo ainda não publicado de Gilberto Velho, “Autoria e Criações
Artísticas”. O antropólogo afirma que “a noção de autoria tem sido objeto de múltiplas reflexões e
especulações. Certamente, está associada à percepção e à análise do desenvolvimento de valores
individualistas”.
25
Capítulo 1
Do samba ao samba
1. Primeiras notas
Nasceu Yvonne da Silva Lara, em Botafogo, no dia 13 de abril de 1921. Em casa,
com uma parteira, como era costume na época. Era a primeira filha de um casal unido
pela música. A mãe, Emerentina Bento da Silva, cantava em ranchos
13
nos quais o pai,
José da Silva Lara, tocava violão de sete cordas. Os dois se conheceram quando se
apresentavam juntos em um desses grupos tradicionais, o Rancho Ameno Resedá. Em
época de carnaval, saíam das ruas do bairro, na zona sul do Rio de Janeiro, por toda a
cidade, animando a folia dos cariocas.
De acordo com as histórias que Yvonne ouvia dos familiares sobre a juventude de
seus pais, e que ela me relatou, durante nossas entrevistas, eles eram dois jovens negros,
bonitos, com uma posição de relativo destaque entre os amigos
14
. Ser músico em um
meio carnavalesco tradicional, que dialogava com diferentes classes sociais, com pessoas
dos mais distintos bairros do Rio significava a possibilidade de conquistar
reconhecimento profissional e admiração.
13
Os ranchos eram, nas primeiras décadas do século XX, a expressão maior do carnaval carioca.
Consistiam, segundo definição do folclorista Luís da Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore
Brasileiro, em “agrupamentos de foliões, com instrumentos de corda e sopro, cantando em coro versos
musicados alusivos ao grupo, a marcha de rancho, ou mesmo os mais populares da ocasião”. Ao contrário
das escolas de samba, esses grupos exploravam bastante os instrumentos de sopro, e formavam pequenas
orquestras para as apresentações, nas quais músicos como Pixinguinha e Irineu Batina se apresentavam.
14
Segundo Yvonne, seu pai tocava violão de sete cordas com mais freqüência no Rancho Flor de Abacate;
sua mãe cantava muito em casa e era uma soprano “modéstia à parte com uma voz lindíssima. Era uma
espécie de crooner do Ameno Resedá, mas nunca pôde dedicar-se apenas a isso e trabalhava mesmo como
costureira, para ganhar algum dinheiro”.
26
Os ranchos apareceram na então capital do Brasil no final do século XIX e, assim
como as escolas de samba, “desfilavam com um enredo, fantasias e carros alegóricos, ao
som de sua marcha característica e eram organizados pela pequena burguesia urbana
15
(Cavalcanti, 1994).
A família que os pais de Yvonne formaram, no entanto, estava longe de pertencer
a tal estrato social. Os dois viviam em uma casa pequena e quando a primeira filha
nasceu chegaram a passar certas dificuldades. Mas não faltavam comida, roupas, o
básico, enfim. Yvonne tem poucas recordações dessa época. As memórias mais frescas
que tem guardadas referem-se ao rigor com que era educada pelos pais. “Eles me davam
limites, compreende? Uma coisa que era necessária desde cedo, para eu entender bem por
que é importante respeitar os outros e cuidar daquilo que se ganha com esforço”, orgulha-
se.
Contavam com a ajuda da tia de Yvonne, a irmã mais velha de sua mãe, Maria de
Souza. Casados, mas sem filhos, ela e o marido tinham condições de contribuir com o
sustento dos três. Esse apoio inicial tornou-se indispensável quatro anos mais tarde.
Quando estava grávida da segunda filha, Elza, Emerentina ficou viúva. Foi um momento
de confusão na família, mas Yvonne só sabe disso de ouvir falar. Não tem lembranças da
perda do pai.
Os relatos que ouve sobre essa fase referem-se à percepção de uma iminente
desconstrução da família. A morte de José Lara significou uma enorme perda, não apenas
do ponto de vista emocional, mas também financeiro. A mãe perdera estabilidade com a
15
Quando analisa a formação das escolas de samba do Rio de Janeiro, Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti aponta os blocos – menos estruturados e com menos recursos financeiros do que os ranchos –
como os principais originários das escolas de samba e ressalta que, após o surgimento destas últimas, tanto
blocos quanto ranchos tiveram suas bases desestruturadas e deixaram de apresentar-se como manifestações
distintas da cultura popular brasileira (ver Cavalcanti, 1994).
27
ausência do chefe da casa, do principal provedor. O que ganhava costurando não era
suficiente para arcar com todas as despesas. Emerentina passara rapidamente da condição
de “moça pobre casada com rapaz pobre mas direito” à de viúva, sem muitas perspectivas
de vida.
No entanto, essa situação durou muito pouco. Alguns anos depois, ela casou-se
novamente, com Venino José da Silva, que assumiu as duas meninas. “Uma sorte”,
diziam as irmãs. O casal teve ainda mais dois filhos: Nilo e Valdir. Depois do nascimento
destes últimos, a casa ficou pequena demais para todos. Mudaram-se, então, para uma
outra um pouco maior, no Largo da Segunda-feira, na Tijuca.
Perto dali, na rua São Francisco Xavier, ficava o Colégio Municipal Orsina da
Fonseca. Tratava-se de um internato público, mantido pela prefeitura, bastante conhecido
na cidade pelo rigor e pelos bons ensinamentos que transmitia às internas. Tinha
inspetoras famosas pela severidade, mas também tinha professoras com uma formação
educacional de qualidade, admiradas, inclusive, pelas classes mais altas. Na época, tal
colégio público era apontado como um dos que ofereciam o melhor currículo para a
formação educacional de meninas. O casal decidiu ser ali o lugar ideal para a mais velha
estudar.
O Orsina da Fonseca, naquela época, era considerado um colégio muito
tradicional. Foi inaugurado em 28 de outubro de 1898, com o nome de Instituto
Profissional Feminino, contando com pouco mais de cem alunas
16
. Era um lugar dedicado
16
Essa data é tida como a da fundação da escola por alguns dos atuais funcionários, como a diretora-
adjunta e o coordenador educacional, constando em documentos a que tive acesso, guardados pelo colégio,
e também no Acervo do Centro de Memória da Educação do Departamento de Educação da Secretaria
Municipal de Educação do Rio de Janeiro. No Cadastro de Escolas Municipais da Divisão de
Documentação do Departamento Geral de Administração da Secretaria Municipal de Educação do Rio de
Janeiro, no entanto, a data mencionada é 28 de dezembro. O nome do colégio foi mudado para Instituto
28
à profissionalização, especialmente de meninas de baixa renda, que ali poderiam tornar-
se “mulheres ideais”. Um dos educadores que participaram do projeto, o professor
Aprígio Gonzaga, ajudou a promover uma reforma educacional na então capital do país
no início do século XX. Ele dizia que “a escola tem de encarar a mulher sob duas faces: a
mulher casada e a mulher solteira”, e que seu objetivo seria o de formar a mulher como
“mãe de família, esposa, e quando necessário for, trabalhadora ao lado do homem, para se
manter, sem dependências ou humilhações.”
O decreto 981, de 2 de setembro de 1914, estipulava que o curso promovido pelo
colégio, na época, deveria oferecer disciplinas como modelagem, desenho, pintura,
gravura, litografia, fotografia, escrituração mercantil, datilografia, estenografia,
tipografia: brochura e encadernação, telegrafia, costura à mão e à máquina e cortes,
bordados à mão e à máquina, rendas à mão e à máquina, flores e suas aplicações, chapéus
e coletes para senhoras, e, finalmente, gravatas.
Ao longo de mais de um século de existência, o Orsina da Fonseca passou por
uma série de mudanças. Foi escola técnica, municipal, estadual, enfim, acompanhou
alterações sociais e políticas do país. Na década de 1930, quando Yvonne lá estudava, o
lugar ainda era um internato gratuito, administrado pela prefeitura. Em 1933, ele sofreu
uma grande remodelação, passando a se chamar Escola Técnica Secundária Orsina da
Fonseca. Na ocasião, foram admitidos novos diretores e professores, considerados de
ótimo nível. Disciplinas como física, química, história natural, língua portuguesa e
geometria, que já vinham sendo ministradas desde o início da década de 1920, ganharam
destaque no currículo.
Profissional Feminino Orsina da Fonseca em homenagem à então primeira dama, esposa do presidente
Marechal Hermes da Fonseca, por ocasião de sua morte, em 1912.
29
Para conseguir uma vaga no Orsina da Fonseca era preciso entrar em uma lista de
espera e torcer para ser selecionado. Por sorte, foi o que aconteceu com a filha de
Emerentina. Diferentemente do que se passa nos dias de hoje, em muitos casos, naquela
época, cursar o ensino básico em colégios públicos era uma opção que não se restringia
àqueles que não tinham condições de arcar com as mensalidades das escolas particulares.
O ensino fundamental era considerado de excelência em quase todos esses centros e o
Orsina da Fonseca, que a princípio foi concebido como um projeto de profissionalização
de meninas de baixa renda, tornou-se um exemplo de internato que funcionava bem.
Durante o processo de escolarização, portanto, Yvonne não teve contato apenas
com meninas de sua classe social. O colégio onde estudava era escolhido também por
famílias um pouco mais abastadas que buscavam uma formação marcada pela disciplina e
pela dedicação ao estudo durante o maior tempo possível. No Orsina da Fonseca, o
regime de aulas era integral, com algumas disciplinas extra-curriculares, como atividades
esportivas e culturais.
Aos dez anos de idade, Yvonne foi matriculada no internato, de onde só sairia
definitivamente ao atingir a maioridade. Chegava no local às segundas-feiras e saía nos
fins de semana, a cada quinze dias, para visitar a família. Era um mundo bem diferente
daquele a que estava acostumada. Vivia exclusivamente com outras meninas – cerca de
300 delas – e não rodeada de primos e irmãos. Algumas eram mais ricas, outras mais
pobres que ela. Umas mais bonitas, outras menos talentosas, outras mais quietas, mas
todas meninas saindo da infância ou já na adolescência.
A rotina diária das alunas era acompanhada de perto pelas professoras e diretoras
do estabelecimento de ensino, a quem ela chamava “orientadoras educacionais”. Todas as
30
estudantes eram responsáveis, apesar da pouca idade, por uma série de tarefas. Mas nada
disso era motivo de reclamação para Yvonne, muito pelo contrário. Ela classifica o lugar
como uma espécie de necessária “escola da moralidade”, nos termos de Durkheim (ver
Durkheim, 1963)
17
. “Tínhamos nossas obrigações e sabíamos que era importante cumprir
com elas. No colégio interno o ambiente era muito bom. Passávamos o dia com as
inspetoras, que sempre davam muitos bons conselhos, tomavam conta da gente. A
diretora era dona Maria José de Avelar Lacerda. Ela cuidava de perto para que nada nos
faltasse. Aprendi a jogar vôlei, a cantar...”
Essas atividades, por sinal, representavam algo importante dentro do grupo: eram
ferramentas capazes de promover ascensão social, reconhecimento àquelas que se
destacassem. Em sua clássica etnografia, Sociedade de Esquina, William Foote Whyte
descreve as relações entre gangues de uma região de Boston, por ele chamada
Cornerville. Em tal estudo, o autor procura demonstrar como se estruturava o equilíbrio
entre os integrantes dessas cliques e suas posições hierárquicas que, em determinadas
situações, tornava-se frágil, podendo ser rompido.
Tal possibilidade de ruptura foi vivenciada com a introdução do jogo de boliche
entre os Norton, uma das gangues estudadas por Whyte. Inicialmente, Doc, o líder,
incentivava o jogo, supondo que, apesar de não ser o melhor jogador, certamente não
estava entre os piores jogadores e que a recreação não colocaria em risco sua posição. O
que Doc observou, no entanto, foi a obtenção de certo prestígio por parte daqueles que
17
Tendo o social como ponto de partida e a perspectiva de que as regras do grupo, da sociedade, precedem
a vida do indivíduo, Durkheim define a educação como “a ação exercida pelas gerações adultas sobre as
gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver,
na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no
seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine”. Vale pensar, ainda, na
noção de que a sociedade não é apenas a soma de indivíduos, mas se dá pela associação desses indivíduos.
31
mais se destacavam no jogo, em detrimento de outros, tradicionalmente em posição mais
vantajosa, mas que tinham um mau desempenho na pista. Essa situação acabava
colocando em cheque o frágil equilíbrio ocasionado pela falta de mobilidade no interior
do grupo. As brigas tornaram-se freqüentes. Gentil e estrategicamente, Doc conseguiu
fazer com que a atividade deixasse de ser apreciada e saísse de vez da agenda de eventos
dos Norton.
Vôlei e música, no Orsina da Fonseca, possuíam essa mesma capacidade, com a
diferença de que, tratando-se de um colégio interno tão rigoroso, dificilmente haveria
liderança suficientemente forte entre as meninas para sugerir que qualquer atividade
proposta pela coordenação fosse desmerecida ou ainda para determinar a prática de novas
atividades. De toda forma, aquelas jogadoras que mais marcavam pontos nos esportes ou
as mais afinadas tornavam-se importantes no grupo quando estavam na quadra, no palco,
mas também fora desses espaços. Em um universo tão fechado, a escalada social se dava
pelos pequenos méritos.
À música conferia-se um destaque ainda maior do que à atividade esportiva. No
colégio havia um orfeão, espécie de coral com as vozes mais afinadas. As meninas
selecionadas recebiam não apenas o reconhecimento das demais, mas a possibilidade de
reafirmar sua condição, seu status, a todo o tempo, pois o conjunto fazia apresentações
com certa freqüência no colégio, mas também fora dele, em festas e eventos na cidade.
Yvonne tinha uma das melhores vozes do orfeão, e confessa que seu maior orgulho era
ser aluna de “Dona” Lucília.
32
2. Entre o erudito e o popular
A tal “Dona”, maestrina do orfeão e professora de canto orfeônico do colégio, era
ninguém menos que a mulher de Heitor Villa-Lobos, Lucília Villa-Lobos. O maestro
costumava ir a concertos de grupos desse tipo para ouvir as meninas apresentarem
composições eruditas, inclusive algumas de sua autoria. Yvonne chegou a cantar sob sua
regência
18
.
Aos poucos, essas experiências, a dedicação ao estudo de teoria musical e a
atenção à maneira como eram construídos a harmonia e os arranjos de peças do repertório
do orfeão desenvolveram em Yvonne o gosto pela música. “Em casa, a gente sempre
ouviu muito rádio e eu me lembro bem de canções de Noel Rosa e outros compositores
da época. Mas acho que o gosto pela música, de verdade, começou ali mesmo, no colégio
interno. Eis o motivo: tínhamos aulas e apesar de só cantarmos hinos cívicos, aquilo
mexia com a gente”.
Mexia não apenas emocionalmente, como explica Yvonne, mas também impunha
às alunas extrema dedicação. Para garantir o respeito das demais colegas, da professora e,
é claro, sentir-se realizada no dia-a-dia de estudante, ela não podia abrir mão de seu lugar
no orfeão. Passava o dia pensando em música, até mesmo nos momentos de descanso,
quando deixava o colégio para passar o fim-de-semana com a família. Essa imersão no
meio musical se deu de forma tão intensa que a menina foi, aos poucos, compondo suas
próprias melodias. O método de produção era o mesmo que ela utiliza até hoje: a
18
Outra professora de Yvonne no Orsina da Fonseca foi a primeira esposa do sambista Donga, Zaíra de
Oliveira, cantora negra que em 1921 venceu o concurso da Escola de Música, a instituição de ensino de
música de maior prestígio no Rio naquela época. Fez parte do “Coral Brasileiro”, integrado ainda por Bidu
Sayão e Nascimento Silva. Gravou 21 discos, alcançando um total de 25 músicas, mas apesar dos poucos
registros, é considerada uma das grandes cantoras negras do país.
33
intuição. “Não gosto de letra, não. Deixo isso para os meus parceiros, acho letra uma
coisa muito chata, que só deve fazer quem sabe mesmo. Só faço se não tiver jeito. Meu
negócio é mesmo a melodia. E ela pode aparecer assim, de repente. Enquanto eu estou
dormindo, caminhando, até mesmo enquanto a gente conversa. Neste momento pode
aparecer uma idéia”, provoca.
Foi assim com “Tiê-tiê”, a primeira música, composta quando ela tinha 12 anos.
“Estava em casa com meus primos mais velhos, Hélio e o irmão dele, Fuleiro
19
. A gente
viu um passarinho no quintal. Começamos a brincar com ele e, cantarolando, fizemos a
música. Assim, só de brincadeira mesmo”. Até os dias de hoje a canção faz parte do
repertório da artista em suas apresentações.
Cabe aqui uma pergunta: o que teria levado a menina a compor um samba se tudo
o que ela havia aprendido em teoria musical, até então, aplicava-se ao universo erudito?
Para Yvonne, a explicação deve ser buscada em seu universo familiar. “O samba estava
muito presente na minha vida desde cedo, na casa dos meus tios, dos meus pais, e não era
uma coisa mal vista por eles, pelo contrário. Era apreciado, respeitado, e até
incentivado
20
.”
19
Mais tarde esse primo de Yvonne viria a ser conhecido no meio musical como mestre Fuleiro.
Compositor de sambas do Império Serrano, era ele quem apresentava os primeiros sambas da prima nas
rodas da escola, numa época em que jamais se poderia conceber uma mulher compositora. Até hoje, na sala
de troféus da agremiação, em Madureira, há uma série de homenagens feitas a ele. Em algumas, aparece a
citação “monstro sagrado entre os compositores do Império”.
20
Mas a realidade da família de Yvonne era bem diferente da que se passava na época, do lado de fora da
casa dos Lara. No livro As escolas de samba do Rio de Janeiro, de Sérgio Cabral (1996), há um relato do
consagrado compositor João da Baiana, sobre um episódio ocorrido na Festa da Penha, um dos lugares
mais freqüentados por sambistas nas décadas de 20 e 30. É um exemplo das restrições que ainda
imperavam sobre este grupo social. Ao mesmo tempo, o desfecho do caso acaba demonstrando a crescente
admiração das elites pelo samba. “A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro na Festa da Penha e a
polícia me tomava o instrumento. Houve uma festa no Morro da Graça, no palacete do senador Pinheiro
Machado, e eu não fui. Ele perguntou pelo rapaz do pandeiro e mandou um recado para que eu fosse falar
com ele no Senado. Quis saber por que eu não tinha ido à festa e expliquei que meu pandeiro havia sido
confiscado pela polícia na Festa da Penha. Ele pegou um papel, escreveu uma ordem para que fizessem um
34
A preocupação que norteia a análise de Hermano Vianna em O Mistério do
Samba é desvendar que mistério seria esse, presente no titulo do trabalho, que foi capaz
de alçar o ritmo – até então mal visto – a símbolo de brasilidade. Vianna costura essa
história tendo como pano de fundo um encontro entre representantes da intelectualidade e
da arte erudita – Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Villa-Lobos e Luciano
Gallet – com músicos negros ou mestiços, saídos dos estratos populacionais mais pobres
do Rio de Janeiro – Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira (ver Vianna, 1995).
Não seria possível apontar apenas um fator como sendo o responsável por essa
mudança de patamar. Vianna menciona a comoção provocada pela obra de Gilberto
Freyre, Casa-Grande e Senzala, lançada em 1933, e também a descoberta da importância
do fenômeno da mestiçagem pelo autor, não apenas a partir desse encontro, mas pela
influência de Blaise Cendrars (“poeta francês, representante das vanguardas artísticas de
Paris”). Vianna cita, ainda, a chamada “tendência para a sinceridade, que fez o brasileiro
ser sincero num ponto de reconhecer-se penetrado pela influência negra” (ver Vianna,
1995).
No referido trabalho, o antropólogo traça também um panorama da época em que
se deu o encontro entre as personagens mencionadas e dos momentos posteriores, quando
o samba foi alçado à condição de ritmo brasileiro (décadas de 1920 e 1930). Havia uma
espécie de “espírito nacional”, movido por um impulso para a promoção da unidade. Ele
cita a seguinte passagem do livro A Unidade da Pátria, de Afonso Arinos: “o Brasil está
de tal modo regionalizado que, para as províncias não ficarem absolutamente estranhas
novo pandeiro para mim com a seguinte dedicatória: ‘a minha admiração, João da Baiana. Pinheiro
Machado’”.
35
umas às outras, é preciso um grande esforço no sentido de fortificar-se a unidade moral
da pátria” (apud Vianna, 1995: pp 55).
Toda a narrativa de Vianna decorre entre a infância e a adolescência de Yvonne.
Decerto ela vivenciou o período em que o samba era visto como caso de polícia, mas
também seria importante frisar que quando começou a pensar em suas próprias melodias,
o ritmo já não causava mais vergonha, mas orgulho.
Trata-se de uma espécie de diálogo promovido pelo samba entre a cultura popular
(popular culture) e a alta cultura (high culture), nos termos de Herbert J. Gans. Quando
define esses dois tipos de cultura, sempre pensando nas classes sociais mais diretamente
relacionadas a cada uma dessas manifestações artísticas, o próprio Gans, citando Dwight
MacDonald, reconhece tratar-se de uma via de mão dupla. Em certas situações, uma
produção de alta cultura pode ser popular, e vice-versa, sendo portanto justificável o uso
do termo cultura de massas (mass culture). Gans prefere, então, falar em cultura de gosto
(taste culture), aquela que “resulta da escolha, que está ligada a valores e produtos sobre
os quais as pessoas têm escolha” (ver Gans, 1974).
Em um artigo sobre cultura popular e folclore, Luís Roldolfo Vilhena também
aborda esse complexo conceito, destacando dois autores: Arnold van Gennep e Mikhail
Bakhtin (ver Vilhena, 1997). Vilhena relata a passagem de determinadas manifestações
culturais da marginalidade ao prestígio, em processos de “descoberta do povo”
semelhantes àquele estudado por Vianna. A análise do autor está centrada em duas obras
em especial: Os Ritos de Passagem, de van Gennep e A Obra de François Rabelais, de
Bakhtin, que trazem, além da discussão sobre cultura popular, o debate sobre o processo
de mudança e os ritos que simbolizam cada uma dessas passagens de um estado para
36
outro. Vilhena traz à tona a percepção de que as festas populares, como o carnaval, são
ritos de passagem que “dramatizam justamente as transições biológicas e da natureza
descritas por van Gennep”. Além disso, está presente nesse ritual um “estado específico
vivido por indivíduos e coisas envolvidos nestas cerimônias, o de liminaridade
21
”,
quando os participantes desses eventos situam-se no limite, na margem de determinadas
situações sociais.
Além do contexto bastante peculiar e de transformação vivido pelo universo do
samba nas décadas de 1920 a 1940, a infância de Yvonne foi marcada por processos de
ruptura e mudanças que delinearam um novo sentido para sua vida. Ela passava os fins-
de-semana, quinzenalmente, na casa da família, mas tinha no colégio uma espécie de lar
coletivo, compartilhado com outras 300 meninas, cada uma de um lugar diferente, de um
contexto diferente, com uma história de vida diferente. Todas, no entanto, recebiam um
tratamento muito parecido quando deixavam suas famílias para viver entre os muros do
internato. Entre as estudantes, tarefas, momentos de lazer e o cotidiano, enfim, eram
bastante semelhantes. A relação de Yvonne com as demais internas tornava-se cada vez
mais intensa, e a menina costumava passar mais tempo com as colegas do colégio do que
com seus parentes mais próximos. No entanto, de tempos em tempos, lá estava ela, de
volta a uma casa onde havia certa liberdade e na qual havia um contato bastante próximo
com meninos, fossem eles irmãos ou primos.
Entre os dois mundos havia, ainda, outro conflito: enquanto no colégio passava os
dias estudando um determinado gênero musical, sua teoria e aplicações, nos finais de
21
Vilhena lembra que, em sua obra, van Gennep não usa diretamente o conceito de liminaridade, mas o de
stade de marge e o adjetivo liminar.
37
semana, na casa dos familiares, não abria mão de escutar outro, não apenas distinto, mas,
aos olhos da sociedade, quase oposto.
É como naquele jogo de videogame, pinball, cujo objetivo é evitar que uma
bolinha caia em um buraco e, para tanto, o jogador é obrigado a lançá-la em diferentes
objetos da máquina. Yvonne fazia as vezes da tal bolinha, transitando entre diferentes
mundos e, quase sempre, mediando as relações entre eles. Ora aplicava os conhecimentos
obtidos no colégio interno em casa, ora levava para o internato o comportamento herdado
da família, abarcando em si todas essas noções, misturando os dois universos em um
novo, o seu próprio.
Yvonne é uma mediadora, no sentido empregado por Gilberto Velho. É um
indivíduo complexo, integrante de uma sociedade diferenciada, na qual há “múltiplos
grupos, com diferentes níveis de realidade, estilos de vida específicos e códigos
particulares”. A atuação da compositora como mediadora se dá ao passo que interpreta
esses diferentes códigos e os traduz, esclarece, levando essa vivência aos diferentes
mundos dos quais participa. (ver Velho 2001).
A idéia acima explicitada é de fundamental importância: trata-se aqui da análise
de um indivíduo complexo, integrante de uma sociedade complexa
22
, e que passeia por
diferentes correntes de cultura, correntes essas não necessariamente percebidas,
tampouco facilmente delimitáveis. Tomando emprestada a reflexão de Georg Simmel,
segundo a qual, em princípio, o indivíduo que participar do maior número de redes, maior
percepção terá de sua própria singularidade, notamos que, aos poucos, vai-se delineando
um indivíduo sobremaneira complexo e destacado dos demais (ver Simmel, 1971). A
22
Nos termos de Gilberto Velho (1987), uma das principais características das sociedades complexas é a
“coexistência de diferentes estilos de vida e visões de mundo”.
38
própria compositora concorda com a tese. “Fui pro colégio interno, vi um mundo
diferente. Voltava para casa, via outra coisa. Saía de novo, e mais uma coisa. Coloquei
em minha vida um segmento, algo que minha irmã, por exemplo, não teve. Ela foi,
depositou tudo no marido, se casou e virou doméstica. Acho que muito dessa diferença
entre a gente se deve ao colégio interno”, compara.
Os dois destinos antagônicos para meninas de uma mesma família são
mencionados no estudo sobre o abandono de garotas da favela ainda na infância, de Tania
Salem. A autora levanta duas hipóteses de futuro (entre as mais prováveis) para aquelas
crianças ou adolescentes que ficam órfãs muito cedo, ou se afastam definitivamente dos
pais por algum outro motivo. Uma delas é que a experiência “dessas mulheres, na fase
inicial de sua existência ilumina as expectativas depositadas no casamento e,
correlatamente, no homem. (...) Tenha ele um caráter legal ou consensual, o fato é que o
casamento vem sempre associado à idéia de ‘melhorar de vida’”. A outra possibilidade é
a “aspiração de trabalhar para si, isto é, de poder controlar tanto o ritmo quanto o produto
de seu trabalho” (ver Salem, 1981).
Gislene Aparecida dos Santos, em seu livro sobre o feminino negro, Mulher
Negra, Homem Branco, fala da presença de dois arquétipos formadores da personalidade
de um tipo feminino que não é o das mulheres fortes e bem sucedidas, mas daquelas que
“estão numa longa jornada para, à custa do trabalho de reconhecimento interior, se
transformarem”. As “cinderelas” teriam o “sentimento de orfandade (com todos os
elementos de rejeição, abandono, baixa estima) e o desejo de ser salva” (ver Santos,
2004).
39
Em muitos momentos da infância, no entanto, a compositora e sua irmã dividiram
as mesmas aflições e angústias. Pouco mais de dois anos após a ida de Yvonne para o
colégio interno, as meninas sofreriam a segunda drástica ruptura em suas vidas, da qual
ambas se lembram bastante bem: a morte precoce da mãe. Emerentina tinha apenas 33
anos e sofria de hipertensão arterial.
Quando recebeu a notícia de que estava órfã de pai e mãe, Yvonne sentia que há
algum tempo vinha rompendo substancialmente a dependência do núcleo familiar. Já
vivia no internato há cerca de dois anos, tinha as inspetoras e as colegas como principais
referências femininas em sua vida e ainda ficara sem o mais forte vínculo com o mundo
exterior ao colégio. A relação com os tios e primos era boa, estável, mas Yvonne tinha
plena consciência de que nenhum deles devia a ela qualquer obrigação, muito pelo
contrário. Eles já haviam investido bastante na criação de seus irmãos mais novos.
Em seus relatos durante as entrevistas que fizemos, Yvonne narrou o grande peso
de ser uma menina de apenas 12 anos, negra e órfã de pai e mãe. “Isso cobrava de mim
mais do que as garotas dessa idade costumam ser capazes de oferecer”. No mesmo ano
em que perdeu a mãe, ela viu ser aprovada a Constituição Federal que dava às mulheres
direito ao voto e as igualava aos homens em termos de direitos trabalhistas. Era um
momento de efervescência no país, em que elas começavam a deixar a posição de
subalternas para cobrar reconhecimento e igualdade.
Sob a luz dessas novidades, permaneceu no Colégio Orsina da Fonseca. Quando
de lá saía, seguia para a casa da tia Maria, que tomara para si os cuidados com os filhos
da irmã, Emerentina. “Fiquei emancipada por minha conta mesmo. Minha mãe morreu,
ninguém ficou tomando conta de mim. Com a idade de 12 anos, eu que resolvia tudo, me
40
guiava. Vou dizer uma coisa: foi muito bom, porque me fez ser como sou hoje. Tudo o
que fiz a partir daí foi por decisão própria. Eu que resolvi o meu caso como quis. Tudo
veio da minha cabeça, sem ninguém me guiar. Lembranças tristes às vezes vêm, mas sou
guerreira. Só não fui aquilo que não quis ser. O que usufruí e usufruo até a data presente é
porque eu quis e fiz por onde”, orgulha-se.
O discurso do “fiz porque quis” estava presente em todas as minhas conversas
com Yvonne. Em diferentes momentos, ela disse ter tomado decisões individuais e
independentes, dissonantes da sociedade e da época em que vivia, mas sempre segura de
que aquilo a levaria a alcançar um objetivo maior. Trata-se claramente de uma conduta
orientada no sentido de se atingir um objetivo específico, um projeto, nos termos de
Schutz (ver Schutz, 1979).
É muito clara a noção de Henri Bergson de attention a la vie, intimamente ligada
a essa idéia de que há subuniversos dos quais cada um de nós faz parte e de que cada um
deles demanda diferentes atenções, num movimento de fluxo contínuo, porém dinâmico
(ver Bergson, 1996). Nesse sentido, é simples perceber o que Alfred Schutz chamou de
“motivos a fim de”, aqueles comportamentos escolhidos pelo indivíduo, após uma
interpretação própria da realidade, com o intuito de alcançar um objetivo futuro, um
projeto ainda não realizado.
Quando fundamenta sua definição de homem cordial, em Raízes do Brasil, Sérgio
Buarque de Holanda menciona casos de jovens que foram forçadamente afastados dos
pais. Para o autor, tal perda impunha aos órfãos a necessidade de adquirir um senso de
responsabilidade que até então nem sequer haviam imaginado ser preciso. Holanda ilustra
sua hipótese com a história de Joaquim Nabuco: “em nossa sociedade (...) são os órfãos,
41
os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”. E completa: “a perda da mãe na
infância é um acontecimento fundamental que transforma o homem, mesmo quando ele
não tem consciência do abalo. Desde esse dia ficava decidido que Nabuco pertenceria à
forte família dos que se fazem asperamente por si mesmos, dos que anseiam por deixar o
estreito aconchego da casa e procurar abrigo no vasto deserto do mundo”. (Holanda,
1936: pp 104). Apesar do aparente exagero e da possível romantização da perda
apresentados nessa visão – e levando em conta as notáveis diferenças entre o meio social
de Nabuco, um dos principais incentivadores do abolicionismo, mas de família muito
tradicional, integrante da elite brasileira, e o de Yvonne, oriunda da classe pobre e
operária do Rio de Janeiro – podemos identificar nesse relato algumas semelhanças com
a trajetória da compositora aqui estudada.
3. Desafio e conquista
Valeria a pena refletirmos, então, a respeito do significado de ser uma menina,
negra e órfã, na década de 1930, no Brasil. Caio Prado Júnior delineou o hiato existente
entre masculino e feminino mostrando como, muito tempo antes, quando o país ainda era
uma colônia portuguesa, aos homens era permitido ter relações com escravas ou com
qualquer outra mulher, fora do casamento (ver Caio Prado Junior, 1996). Quanto às
mulheres, aquelas que “tirassem a sorte grande” e conseguissem casar-se só o faziam
mediante o cumprimento de algumas condições. A mais importante delas: ter um bom
dote para pagar ao marido. Tratava-se, portanto, de uma situação de completa opressão
42
social tanto para as mulheres mais pobres – a quem, muitas vezes restava a condição de
concubina – quanto para as casadas e ricas.
Em Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre confirma essa tese, ressaltando que na
sociedade patriarcal agrária a diferenciação entre feminino e masculino era sobremaneira
intensa. Havia um duplo padrão de moralidade, segundo o qual o homem era livre e a
mulher, um instrumento de satisfação sexual. Cabiam – e limitavam-se – a ela as tarefas
do lar. As esposas, brancas, pertencentes à elite, deveriam ser delicadas, em oposição ao
sexo masculino, forte e dominador. Eles, por outro lado, estavam livres para usufruir de
toda a diversão e do convívio social que mais lhes aprouvessem.
Yvonne, uma mulher negra, tem, como tal, antepassados que se relacionavam de
maneira subordinada à família patriarcal estudada por Freyre. Este autor nos relata que “a
escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e
vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações – as dos brancos com
as mulheres de cor – de “superiores” com “inferiores” e, no maior número de casos, de
senhores desabusados e sádicos com escravas passivas”. A situação de opressão
certamente aproximou o modo de vida europeu do ameríndio, como conclui Freyre, mas
o fez de maneira a conduzir a uma relação entre oprimido (negro) e opressor (branco)
(ver Freyre, 2005).
Na mesma obra, o autor conclui, sobre a presença dos negros na formação da
cultura brasileira, que “os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada
foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar, nobre na colonização
do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas
43
animais de tração e operários de enxada, à serviço da agricultura, desempenharam uma
função civilizadora.”
A obra focaliza, sobretudo, a época da escravidão no Brasil. Freyre, no entanto,
entende que o convívio entre raças vivido após a aprovação da Lei Áurea – que tornou a
prática inconstitucional em nosso pais – foi fortemente abalado pela relação fundadora
entre a casa-grande e a senzala. A questão apontada por Freyre remete à maneira de
enxergarmos o negro em nossa sociedade que atingiu, de forma direta, a vida de Yvonne
Lara. Ela própria aponta o fato de ser negra como uma das barreiras que enfrentou no
início da carreira. Tinha como exemplo o caso de uma das professoras do colégio Orsina
da Fonseca, Zaíra de Oliveira, esposa do compositor Donga. A cantora negra venceu em
1921 o concurso da Escola de Música – o mais importante da época – mas não pôde
receber o prêmio, segundo relatos, por causa da cor de sua pele (ver Efegê, 1979). Tais
situações ilustram a importância da análise de Gilberto Freyre para tentarmos
compreender os fatores que levaram Yvonne a alcançar o sucesso, mas a alcançá-lo tão
tardiamente, já na maturidade. “O negro nos aparece no Brasil, através de toda nossa vida
colonial e da nossa primeira fase de vida independente, deformado pela escravidão”, diz
Freyre em Casa-Grande e Senzala, afirmando, ainda, ser extremamente duradoura essa
maneira de vermos o afro-descendente em nosso país: “sempre que consideramos a
influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação do escravo, e não a do
negro, por si, que apreciamos”.
Freyre nos lembra, por exemplo, que quando se pensa na negra como a figura que
teria corrompido a vida sexual da sociedade brasileira – mantendo relações com os filhos
da família branca, patriarcal – estamos pensando, na verdade, na escrava, tanto a africana,
44
quanto a índia. O autor afirma, ainda, a necessidade de substituir a visão da negra como
depravada, responsável pela precocidade da prática sexual desses meninos, pela
percepção da relação de subordinação da escrava – para quem, mais que desejo ou
depravação, havia a ordem, o domínio dos senhores. Assim, o autor observa que à mulher
“de cor” cabia um papel específico neste “sistema de economia e de família” denominado
patriarcalismo brasileiro. Um papel de subordinação, de exploração (Freyre reconhece,
ainda, que a maior parte da prostituição na época atingia as negras) (ver Freyre, 2005).
Quando aborda as relações entre a família patriarcal e as pessoas “de cor”, Freyre
menciona o movimento que atingiu descendentes de escravos, como Yvonne. Na década
que mencionamos como aquela em que a compositora perdera a mãe e começara a viver a
adolescência – os anos 1930 – começava a se delinear uma aura de mudança na estrutura
patriarcal da sociedade brasileira. Era o período da revolução que levaria Getúlio Vargas
ao poder. Fase em que ocorreriam também alterações estruturais na economia e na
política nacionais que motivariam transformações sociais. Neste período foi fundado o
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e surgiram as primeiras leis trabalhistas.
Era o início do crescimento da indústria brasileira.
Florestan Fernandes nos lembra, no entanto, que tais mudanças na ordem
dominador-dominado, presente em nossa estrutura patriarcal, transcorrem muito
lentamente. O autor analisa o crescimento econômico e industrial, especialmente na
cidade de São Paulo, destacando a participação do negro nesses diferentes momentos.
Para Fernandes, a transição do trabalho escravo para o livre impôs ao negro a necessidade
de se adaptar rapidamente ao sistema econômico vigente, que, por sua vez, o absorveu
muito devagar, destinando-lhe quase exclusivamente ocupações mal remuneradas. Para o
45
autor, “a escravidão degradara a tal ponto o seu agente humano de trabalho, que tornara
sua recuperação econômica extremamente penosa, difícil, demorada” (ver Fernandes,
1971).
No caso de Yvonne, se por um lado ela acredita que o fato de ser negra pesou em
seu tardio reconhecimento como artista, por outro, sua origem racial proporcionou a sua
família a seu núcleo de sociabilidade imediato um importante legado das sociedades
matriarcais africanas. Segundo Santos, a imagem da mulher africana como matriarca,
forte e batalhadora, capaz de vencer obstáculos na luta por sua vida e pela de seus filhos
“certamente esteve e está vinculada às mulheres negras ao longo de sua história tanto na
África quanto nos países da diáspora” (ver Santos, 2004: pp 39). A estrutura africana
matriarcal se fez valer em vários momentos da vida de Yvonne. No terreiro de candomblé
que ela freqüentava, por exemplo, é a mãe-de-santo que detém a posição de maior
prestígio e poder. Trata-se do “posto mais elevado da hierarquia espiritual”, da “chefe
espiritual do terreiro” (ver Maggie, 2001).
Assim, não seria exagero pensar que a estrutura matriarcal – com uma liderança
feminina obrigatoriamente vivida durante os rituais de possessão – se transpunha às
relações entre familiares, vizinhos e amigos da compositora. Em face da organização da
sociedade brasileira, o conjunto “mulher-negra” trazia, sem dúvida, uma forte carga de
opressão, mas em alguns dos subuniversos integrados por Yvonne Lara podia, de outro
modo, conferir certa autoridade.
As tranformações descritas por Florestan Fernandes também refletem alterações
que apareciam na organização da família brasileira. Com a industrialização e o
crescimento econômico fazia-se necessário o incremento da mão-de-obra nacional.
46
Surgia a figura da mulher operária, que deixava de lado a obrigação de ficar em casa para
trabalhar fora, em fábricas, no comércio. Heleieth Saffioti observa que a partir daí
“decrescem as diferenças de participação cultural dos elementos femininos e masculinos.
Deste maior ajustamento da estrutura familiar às novas condições de vida urbano-
industrial surgiram profundas alterações na educação feminina” (ver Saffioti,1969).
Enquanto todas essas novidades efervesciam, Yvonne, de origem social humilde,
passou a morar na casa da tia, sempre que saía do colégio interno, quinzenalmente.
Quando assumiu os filhos da irmã falecida, Maria de Souza mudou-se para Madureira, no
subúrbio do Rio, para uma casa maior, onde pôde acolher todos os sobrinhos. Na época, o
bairro já era – do ponto de vista socioeconômico e cultural – uma espécie de núcleo
central do subúrbio carioca. Apesar de menos desenvolvido do que outras partes da
capital (a luz elétrica chegou tardiamente, o comércio nem de perto lembrava os atuais
mercadões, cheios de lojas, e os bondes ainda eram puxados por burros), o lugar tinha
uma característica própria, que o diferenciava dos demais: os moradores.
Marília Barbosa da Silva, em estudo sobre o compositor de sambas Silas de
Oliveira, que, mais tarde, seria um dos parceiros de Yvonne, relata que “a população
desses bairros, normalmente formada pelo excesso de contingente das zonas rurais,
procurava aquela zona para se estabelecer, em virtude do baixo custo dos aluguéis.
Formavam uma única massa de baixo poder aquisitivo, o que no Brasil significa ser ela
quase toda negra ou descendente de negro, de ex-escravo africano. Surge daí a tendência
a se desenvolver entre essa gente e nesses locais (a roça) um tipo de manifestação cultural
bem diversa da dos núcleos urbanizados (a cidade), um tipo de manifestação cultural bem
47
mais relacionada com as verdadeiras origens desse mestiço povo brasileiro” (ver Silva,
1981: pp 29).
Apesar da brusca mudança do campo para a cidade, parte dos moradores de
Madureira insistia em manter tradições rurais, entre elas o carnaval, realizado exatamente
como o era fora dos grandes centros urbanos
23
. Eles ignoravam algumas das novas
imposições da vida na metrópole, fechando-se em tradições arraigadas em sua cultura, e
preferindo os antigos hábitos rurais a certos modismos da primeira metade do século XX.
Por se situar longe do centro do Rio, e contar com poucas possibilidades de comunicação
ou acesso a ele, o bairro sentia menos os movimentos provocados pela urbanização da
cidade, tendo uma cultura mais cristalizada, “desenvolvida sem submissão a um processo
muito forte de descaracterização, que fatalmente ocorreria se o contato com a chamada
classe média fosse mais estreito” (ver Silva, 1981: pp 29).
Sobre o cotidiano naquela localidade, Silva (1981: pp 29) acrescenta: “diversão:
cinema, teatro, concerto, o que é isso? Um bom baile de calango, os blocos do seu
Zacarias, as pastorinhas, até a ladainha da Dona Maria, um jongo, um bom pagode, isso
tudo reunia e congregava aquele povo”
24
.
Todas essas manifestações culturais faziam parte da rotina de Yvonne dos doze
anos até a maioridade, sempre que deixava o colégio para passar uns dias na casa da tia,
em Madureira. Eram quase obrigatórias, nos finais de semana, as festas, as rodas de
samba e de chorinho e os encontros musicais. O único ritmo que, para a menina, ainda
23
Em A metrópole e a vida mental, escrito em 1902, Simmel menciona as alterações sociais e psicológicas
que atingem os moradores dos novos centros urbanos, surgidos na época da Revolução Industrial. Para o
autor, o excesso de estímulos que esse novo meio oferecia, fazia com que os indivíduos desenvolvessem,
como defesa, uma relação blasé de indiferença em relação a essa nova situação.
24
Para mais informações sobre o jongo na Serrinha ver dissertação de CASTRO, João Paulo Macedo,
defendida no Museu Nacional em 1998.
48
consistia em um grande mistério, era o jongo – uma dança de origem africana; no Brasil,
freqüentemente ligada a grupos umbandistas – porque, naquela época, ela era jovem
demais para ser admitida junto aos demais espectadores. Até muito recentemente – por
volta da década de 1990 – era proibido que crianças freqüentassem as rodas de jongo,
pois acreditava-se que alguns “pontos” jogados pelos participantes poderiam trazer, a
quem os recebesse, um feitiço difícil de ser retirado. Os pequenos eram considerados
incapazes de se livrar desses feitiços devendo, portanto, ficar sempre bem afastados do
grupo. “Minha tia mais velha, Tereza, mãe de Fuleiro, dançava muito jongo. Ela morreu
com mais de cem anos e até bem velha continuava dançando. Só sei que ela era boa
porque vi quando era mais velha. Quando criança, nem me atrevia a passar perto”, conta.
Quando deixou o internato, a compositora foi morar de vez com a tia Maria e os
irmãos. Assim, as despesas da casa – que já eram altas demais para a minguada receita da
família – cresceram bastante. O tio, então, chamou Yvonne para conversar e propôs a ela
que procurasse um trabalho. Caso não encontrasse, ele próprio se incumbiria de empregá-
la na mesma a fábrica de tecidos em que seus primos trabalhavam. “Mas eu não queria
ser operária. Pensava em trabalhar, em fazer minha independência, e onde quer que eu
estivesse, ajudar meus tios, que eram muito pobres, mas não queria que fosse assim. Até
que um dia eu li no jornal que estava abrindo concurso para a Escola de Enfermagem
Alfredo Pinto. O curso de enfermagem era o único de graça, então escolhi esse mesmo,
não tive muita opção. Meu tio repetiu que se eu não passasse, faria qualquer outra coisa.
Fiz o concurso e fui aprovada entre os dez primeiros colocados”. Na época, aqueles que
passavam nas primeiras colocações tinham direito a uma bolsa de estudos, no valor de 60
49
mil réis. “Eu dava tudo o que recebia para a minha tia, que comprava meus sapatos, e
cobria as despesas da casa.” Foram quatro anos de estudo.
Mas fazer carreira na enfermagem, na época, significava muito mais do que “a
única opção por ser um curso gratuito”. Era uma possibilidade concreta de crescimento
econômico e social, de conquistar um emprego seguro, estável – e, sem dúvida, mais
rentável do que o da maior parte dos familiares e amigos, que sempre tiveram limitados
recursos financeiros. Remetendo à análise de Florestan Fernandes sobre a integração do
negro à sociedade de classes, não devemos nos esquecer que, se o fim da escravidão
trouxe a possibilidade de ascensão social aos negros, o fez de maneira extremamente
morosa, e a sociedade em que Yvonne vivia ainda ressentia-se desse fato (para uma
discussão mais ampla sobre a inserção e a posição do negro na sociedade brasileira, ver
Fernandes, 1965).
Yvonne recorda-se que a procura pelo curso da Escola Alfredo Pinto era algo
bastante recorrente entre as meninas da mesma condição social que a de sua família.
“Muita gente fazia enfermagem. Eu mesma trabalhei com uma porção de pessoas do
meio do samba dentro dos hospitais. O pessoal que morava na zona norte, que não tinha
muito dinheiro, via nisso a chance de mudar de vida. Trabalhei, por exemplo, com a mãe
do Paulinho da Viola, mulher de seu Paulo Faria, que já era reconhecido como músico.
Mas ela mantinha o seu emprego estável. Era importante e mais seguro ter alguém com
salário fixo”, analisa.
Transcorria o ano de 1943, e a Escola de Enfermagem acabara de receber
oficialmente o nome de Alfredo Pinto, pelo decreto-lei 4.725, assinado pelo então
presidente Getúlio Vargas em 22 de setembro de 1942. Na mesma data, outro decreto, o
50
10.472, aprovava o regulamento da instituição, determinando como deveria ser o curso e
que exigências técnicas deveriam ser obedecidas para se alcançar o objetivo de preparar
enfermeiros-auxiliares para os serviços sanitários e assistenciais e promover a
especialização, em serviços psiquiátricos, de enfermeiros com diploma. O presidente
determinava, ainda, que, a partir daquela data, a escola, até então dividida em núcleos
masculino e feminino, passaria a funcionar em uma única unidade mista, na Avenida
Pasteur, Praia Vermelha.
Na época, o Rio de Janeiro ainda era a capital do país, e os cursos para formar
profissionais da chamada “Assistência a Psicopatas no Distrito Federal” tinham a duração
de dois anos. Ao final deste tempo, os alunos recebiam o diploma de enfermeiro. Entre as
disciplinas estudadas no primeiro ano, constavam enfermagem elementar, administração
e organização sanitárias, noções gerais de ciências físicas e naturais, noções gerais de
higiene e patologia, noções gerais de anatomia e fisiologia e ética. No segundo ano havia
outras, mais relacionadas à prática do trabalho em tratamento de “doentes mentais”, como
dietética, enfermagem médica, noções práticas de propedêutica clínica e farmácia, noções
práticas de pequenas cirurgias, ginecologia e obstetrícia, enfermagem cirúrgica, técnica
terapêutica geral e especializada, noções de medicina social e serviços de assistência
médico-social. Esta última era a disciplina de que Yvonne mais gostava, e as aulas
despertaram na estudante a vontade de seguir outra especialidade.
4. Trabalho ou lazer?
51
Saindo de lá, formada enfermeira, em 1943, a jovem foi trabalhar no bloco
médico-cirúrgico da Colônia Juliano Moreira. Atendia pacientes que apresentavam
diversos tipos de doenças, mas recebia com mais freqüência aqueles em estado grave,
pois era plantonista da emergência.
Na época, ela já se havia mudado da casa da tia, que já não tinha condições de
sustentar a todos, e passara a morar com outro irmão de sua mãe, o tio Dionísio. Ele era
funcionário público e trabalhava como motorista de ambulâncias da rede pública de
saúde. Nas horas vagas, estudava música. Yvonne menciona que era exímio tocador de
violão de sete cordas, compunha choros e não abria mão de receber em casa amigos do
meio musical. “Lembro de conhecer bem Pixinguinha, Jacob do Bandolim, esses músicos
daquela época. Iam todos na casa do tio Dionísio para as rodas de choro. Cada um
mostrava suas composições e nós ficávamos ouvindo. Eu prestava muita atenção, não
perdia um detalhe dos arranjos, de nada. Além de ser chorão, ele fazia umas marchas de
rancho. Mas a gente era criança, não podia sair no rancho. Então, ficávamos lá, todos
juntos, eu e meus primos, vendo ele fazer as músicas. Ele ensinava a gente a cantar,
educou muito o ouvido da gente, a gente cantava hinos, as marchas. Mas nenhum dos
meus primos deu para músico. Cada um fez uma coisa. Teve um que virou professor de
universidade, outra, enfermeira...”
Quando analisa a carreira dos músicos de jazz norte-americanos como grupo
outsider, Howard Becker – ele próprio é pianista – aponta a relação desses profissionais
com a música como sendo aquilo que mais fortemente influenciaria na composição de
suas identidades sociais. O sociólogo, de família judia, narra o episódio em que um casal
– também judeu – chega a um bar onde ele se apresentava com amigos. Os dois, a todo
52
momento, insistiam em ouvir canções chatas, consideradas inconvenientes pelo grupo.
Sem perceber a ironia de seu comportamento, Becker concordava com os demais
músicos, passando a tratar os dois visitantes com certa desatenção. O episódio fez com
que percebesse que, para ele, ser músico, pertencer àquela comunidade, tinha primazia
sobre sua origem judaica (ver Becker, 1963).
Para o sociólogo, entre as atitudes comuns àqueles que escolhem a carreira de
músico, estaria o fato de não identificá-la como um trabalho formal, pois, nesse ramo, a
troca de empregos ocorre com relativa freqüência. Becker acrescenta que um músico
norte-americano costuma medir seu sucesso profissional pelo reconhecimento advindo do
público, e segue enumerando quatro tipos de profissionais: os que tocam em festas e
casamentos eventualmente; os que tocam com certa regularidade em uma banda pouco
conhecida; os que tocam em uma banda conhecida e os de maior sucesso, que recebem
altos salários, aparecem na televisão, e têm suas canções tocadas nas estações de rádio.
Não é preciso refletir muito para perceber que Yvonne Lara, no caso brasileiro, não se
encaixaria em nenhum dos tipos descritos por Becker. Na época em que trabalhava como
enfermeira, ela ainda não era uma compositora profissional, já que não tinha a música
como principal atividade nem recebia qualquer gratificação financeira por cantar e
compor. Pelo contrário, ao samba ficava limitado o tempo ocioso, os momentos de folga
do trabalho.
Na ocasião, Yvonne já fazia as próprias composições – com bastante freqüência,
inclusive – mas só as mostrava a pessoas muito próximas. E mesmo assim,
ocasionalmente. Tampouco vislumbrava na atividade algum futuro promissor. “Não
pensava nunca em ser compositora. Cantava por cantar. Gostava de ouvir Ângela Maria,
53
Emilinha Borba, essas coisas. Para mim, elas eram pessoas especiais, divas mesmo;
aquelas que têm um talento muito acima dos outros, que têm uma postura diferente, e isso
é muito importante. A única coisa em que eu pensava era em trabalhar e fazer minha
independência.” E foi assim durante toda a sua vida, até que se aposentou como
funcionária pública e pôde, enfim, dedicar-se exclusivamente à música. Compor, cantar,
sambar não eram tidos por ela como profissões. “Eu gostava de estar no meio dos
sambistas, me divertia com eles, extravasava minhas tristezas. Mas era só o meu lazer e
nunca deixei isso atrapalhar a profissão.”
Ela tinha, sim, o projeto de tornar-se compositora, mas também fazia parte desse
projeto estabelecer-se como assalariada formal, com carteira assinada e garantir a
estabilidade financeira que poucos de seus familiares e amigos músicos conseguiram ter.
“Apesar de amar a música e pensar nela o tempo todo, tinha minhas responsabilidades e
nunca faltava com elas”, afirma. Encarava a composição como uma atividade qualquer,
mas não como uma “responsabilidade”, no sentido próprio da palavra.
Sabendo do tema desta pesquisa, uma amiga contou-me que seu marido fora
apresentado a Yvonne em uma roda de samba na década de 1990, quando ela já tinha
dezenas de discos lançados e era uma respeitada melodista. A própria compositora, no
entanto, apresentou-se como assistente social, e sequer mencionou qualquer
envolvimento com o samba, apesar de estarem ambos em um evento musical.
Tal comportamento condiz com o ambiente em que ela viveu e, principalmente,
com os legitimadores de suas ações. A principal influência, nesse sentido, era a prima
Maria de Lurdes da Silva, enfermeira, poucos anos mais velha que a compositora. Era a
melhor amiga e maior confidente. Yvonne não nega que até mesmo a escolha profissional
54
teve um empurrãozinho de Maria de Lurdes. “Me espelhava muito nela. Ela era perfeita.
Eu sei que não existe ninguém perfeito, mas ela era. Tinha juízo, eu tinha um respeito
enorme por ela, e ela me dava bons conselhos sobre tudo”.
Foi a prima quem explicou a Yvonne, segundo ela relata, que “naquele tempo era
importante para a mulher conquistar a própria independência, principalmente a
financeira”. Sem conseguir manter-se muito tempo distante do samba, ela ia a festas
sempre que tinha um dia de folga. Saía no carnaval quando estava de férias. Mas nada
além disso. Tampouco era uma daquelas sambistas que “se doíam” caso não pudessem ir
a uma roda de samba por causa do trabalho. “Minha responsabilidade era a coisa mais
importante, não podia faltar com ela. Depois vinha o lazer”, repete.
Tomando como referência Barth e Simmel e o debate sobre como se coloca a
problemática do aperfeiçoamento individual na relação com o mundo, caberia questionar
se a descontinuidade entre sujeito e objeto, constitutiva da sociedade, se apresentaria
sempre da mesma forma numa mesma sociedade
25
. Os seres humanos em grupo seriam
sempre dotados de uma vontade de aperfeiçoamento? No caso de Yvonne, segundo seu
depoimento, não apenas as condições internas – inerentes à sua posição no mundo, do
ponto de vista de gênero, classe e raça – mas também o fato de ela ter tão próxima a si
uma pessoa tida como modelo de perfeição, fabricaram esse impulso.
O que era visto como uma performance importante de ser desempenhada, para
Yvonne, naquela época, era diferente da concepção atual. Ser a melhor compositora não
conferia um status representativo. Naquele contexto, ter um emprego estável – mesmo
com um salário menor do que o dos grandes nomes da música – a levava mais perto do
25
Em Subjective Culture, Georg Simmel fala dessa descontinuidade entre sujeito e objeto como um
fenômeno permanente, universal, cuja relação com o indivíduo jamais se esgota.
55
que ela considerava ser a possibilidade mais promissora para uma jovem negra de origem
social humilde. Num primeiro momento, seu projeto de vida orientava-se no sentido de
conquistar, de maneira duradoura, a segurança familiar e financeira que não chegou a ter
na própria casa. Tratava-se de uma escolha consciente, mas não permanente. Ao longo de
sua vida, as categorias de relevância vão se alternando. Há, sim, um destaque para o
desejo de se tornar alguém, de construir o próprio destino, mas esse “devir” se relaciona
com a experiência, e está sempre em movimento.
Neste ponto, me parece fundamental voltar à temática da complexidade, já que se
faz presente, na vida da compositora, o fato de ela integrar diferentes grupos, e dedicar-se
a atividades distintas. Para Gilberto Velho, as sociedades complexas são marcadas
fundamentalmente pela “heterogeneidade e variedade de experiências e costumes,
contribuindo para a extrema fragmentação e diferenciação de domínios e papéis, dando
um contorno particular à vida psicológica individual.” (ver Velho, 1987). Yvonne é um
exemplo de indivíduo que vive nessa sociedade complexa, transitando, simultaneamente,
por meios sociais distintos.
Seria importante ressaltar, ainda, que, para Yvonne, esses múltiplos planos com
os quais ela se relaciona têm relevância distinta. Howard Becker fala em “graus de
adesão” diferenciados (ver Becker, 1976), ao analisar a carreira dos músicos de jazz
norte-americanos, em seu já mencionado estudo. Ele utiliza o conceito de carreira
trabalhado por Everett Hughes: o de uma “seqüência de movimentos, de uma posição
para outra, dentro de um sistema ocupacional realizado por alguém que trabalhe neste
sistema: inclui também a noção de ‘contingência de carreira’, ou seja, aqueles fatores dos
quais depende a mobilidade de uma posição para outra” (ver Hughes, 1971: pp 24).
56
Nesta fase de sua vida, o grau de adesão, o compromisso de Yvonne com a
enfermagem é certamente bem maior que com o samba. Tendo, ainda, Hughes como
referência, e pensando nesse compromisso (commitment) como o “processo através do
qual diversos tipos de interesse se tornam ligados à preservação de determinadas linhas
de conduta que lhes parecem ser formalmente afastadas” (ver Hughes, 1971: pp 27), ou,
ainda, pensando em Becker, para quem tratam-se de “mecanismos específicos que
provocam constrangimentos ao comportamento do ator social” (ver Becker, 1970: pp
273), nota-se que Yvonne possuía uma série de motivações para dar preferência à carreira
de enfermeira, e elas não se limitam à estabilidade financeira. Em seus relatos sobre esse
momento em particular, ela surge como um indivíduo “comprometido” com a opinião
alheia, com as regras do núcleo familiar em que estava inserida: trabalhar duro, ganhar
dinheiro, ter segurança e fugir da chamada “malandragem”.
Ainda em Outsiders, Becker ressalta que, assim como aqueles que seguem as
ditas “carreiras convencionais”, como médicos, ou enfermeiras, os músicos têm suas
posições influenciadas pelo sistema de recompensas e retribuições, pela opinião de
amigos e parentes com quem convivem, pela vizinhança, enfim, por esferas que
constituem grupos de influência (ver Becker, 1963).
No caso de Yvonne, além da prima, também exercia grande influência sobre a
compositora, o tio Dionísio, com quem ela morava. O motorista de ambulância tinha um
grande mérito, segundo Yvonne: “botava arroz e feijão na mesa, trabalhava muito e ainda
fazia música nas horas vagas”. Essas ações, apesar de denotarem grande sacrifício, eram
bastante admiradas pela jovem. Formava-se, assim, o principal grupo de referência para a
menina, naquela época. A tia Maria, que a criou após a morte da mãe, também não
57
estimulava a carreira de compositora. “Ela achava que isso naturalmente fosse me
prejudicar. Antigamente o samba não era bem visto, sabe? Principalmente por mulher.
Mulher não podia fazer. Minha tia achava que eu, fazendo um curso de faculdade, não
devia me meter nesses lugares”, conclui.
Em 1945, Yvonne decide participar de um curso para se tornar assistente social.
Era a primeira turma de estudantes e a profissão não fora, sequer, regulamentada. Pode
parecer ousadia, mas tratava-se, uma vez mais, da busca pela almejada estabilidade. A
especialização era garantia de emprego. Ao final do curso, com duração de dois anos, o
aluno recebia um diploma assinado pelo diretor-geral da Assistência Médico-Legal de
Alienados – de posse dele, tornava-se fácil conseguir trabalho em hospitais da rede
estadual de saúde. Bastavam vinte e cinco anos na labuta para que o assistente social se
aposentasse. Somado a tudo isso, estava o genuíno interesse de Yvonne pela profissão,
desde que cursou a disciplina no curso de enfermagem.
A moça dedicou-se muito durante esses dois anos de estudo. E o investimento
teve o final esperado. Assim que se formou, em 1947, a jovem foi contratada como
funcionária do Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, onde permaneceu até
aposentar-se, em 1977. “Era um trabalho ótimo, tratar de doente não é nem um pouco
estressante. A doutora Nise da Silveira era minha supervisora no serviço social. Ela ainda
não tinha fundado a ‘Casa das Palmeiras’ nem começado a fazer tratamentos tão
revolucionários, mas já sabia que era importante avaliar a família dos pacientes. Minha
função estava ligada a isto: eu fazia relatórios, falando do comportamento do doente em
casa, com os parentes. Eram todos observados. Aprendi muito sobre as pessoas, com ela e
com esse trabalho. Doutora Nise tinha uma sala grande e dizia que também precisava de
58
gente para programar o que chamava de ‘dia para os doentes’”. Yvonne recorda-se que,
mesmo no trabalho, acabava dirigindo-se para atividades voltadas à música. “Nesses dias
especiais, a gente organizava alguns internos que queriam se apresentar, dançar, cantar, e
eram essas as atividades mais estimuladas pelo método da doutora Nise, que começava a
ser posto em prática. Então a gente passava o dia inteiro com eles. Tinha um doente, por
exemplo, que se chamava Ribamar e pertenceu à Orquestra Tabajara. Outro tinha o
apelido de Xerife, e tocava piano muito bem. Às vezes a gente ficava horas ouvindo.” A
jovem Yvonne passava o dia dedicando-se a esse trabalho na Hospital e, quando saía da
clínica, ia direto para a casa do tio.
As rodas de samba continuavam freqüentes, mas ela já não podia participar com
tanta facilidade. Conciliar o trabalho ao lazer tornara-se uma missão difícil, e a jovem
precisou desenvolver algumas estratégias para não ficar de fora de nenhum dos dois. Uma
delas era programar as férias no Instituto de Psiquiatria para o mês de fevereiro. Assim,
cumpria com todas as suas responsabilidades mas estava presente no momento mais
importante da escola de samba: o desfile de carnaval.
Saía no chão, acompanhando as alas mais tradicionais da Prazer da Serrinha. A
agremiação havia sido fundada no final da década de 1920, e Yvonne não chegou a
acompanhar de perto esse processo. Em sua juventude, no entanto, freqüentava a casa de
Seu Alfredo Costa, um mineiro que comemorava o carnaval mais do que qualquer
carioca. Marília Barbosa da Silva o descreve como um “mulato forte, cabelos bem
cortados, olhar incisivo e bigodinho fino. Mestre-sala dos bons, pai-de-santo e jongueiro.
Sua mulher, Aracy Costa, era Dona Iaiá para os íntimos. Irmã de Euzébio Delfino
Coelho, compositor lembrado até hoje pelos companheiros como um ‘bamba’ de
59
verdade” (ver Silva, 1981: pp 30). Aos poucos, a casa da família Costa transformou-se no
ponto de encontro e de diversão de todos os moradores da Serrinha”, morro próximo a
Madureira, que até hoje se confunde com o bairro.
Foi Alfredo Costa quem, influenciado pela vitória da Portela no carnaval de 1929,
fundou a Prazer da Serrinha. Ele era o presidente, diretor, organizador, dono, mestre-
sala... Seu cunhado, o compositor e diretor de harmonia. O irmão, assessor. A escola era
muito organizada, mas todo o trabalho era feito em família. Yvonne relacionava-se com
essa agremiação como mais uma foliã apaixonada. Por pouco tempo. Aos 25 anos, ela
entraria para a família de verdade, ao casar-se com Oscar. O eleito, era filho de Seu
Alfredo e Dona Iaiá. Mas essa é uma outra história.
60
Capítulo 2
Uma outra história
1. Ritmo “criminoso” vira sucesso
Em 1926, Paulo Benjamin de Oliveira, Antônio da Silva Caetano e Antônio
Rufino dos Reis, três rapazes de Oswaldo Cruz – bairro vizinho à Madureira – ligados
aos blocos carnavalescos da região, resolveram formar um conjunto distinto daqueles que
há tantos anos faziam sucesso nas festividades cariocas. Juntaram-se algumas vezes,
conversaram sobre como seria sua organização, quem poderia integrá-lo, de que modo
participariam das festas de carnaval. Queriam algo diferente dos blocos. Decidiram,
então, fundar uma agremiação, batizada “Escola de Samba Oswaldo Cruz”. Durante
algum tempo, ela seria conhecida como “Vai Como Pode” até que, nove anos mais tarde,
transformaria-se no Grêmio Recreativo Escola de Samba da Portela.
A notícia da criação de um “bloco diferente” espalhou-se pela região e os
moradores de Madureira – em especial os do morro da Serrinha, muito ligados ao
carnaval – procuraram saber mais sobre a novidade. Não era a apenas a estrutura do
grupo que havia mudado. Também as canções – a levada que embalava os foliões – eram
extremamente inovadoras. Aos poucos, as marchas executadas pelos blocos do bairro
foram sendo substituídas pela batida sincopada do samba. Em 1930, o ritmo já era o mais
tocado no carnaval daquelas bandas.
No mesmo ano, foi fundada por Alfredo Costa, a Prazer da Serrinha. Oscar Costa
era filho de seu Alfredo. Saía na bateria, mas, segundo Yvonne, era muito diferente dos
61
demais rapazes ligados ao carnaval. Era calmo, discreto e trocava qualquer farra ou
noitada por uma boa conversa. Silas de Oliveira, um jovem de temperamento semelhante
e morador dos arredores, era sua companhia mais freqüente. Foi pelas mãos de Oscar que
Silas – que se tornaria um dos maiores compositores de sambas-enredo do Brasil –chegou
até a Prazer da Serrinha.
Em 1933, Silas já integrava a ala de compositores da escola, liderada por “mestre”
Delfino e composta, ainda, por Bacalhau, Manula, Penteado, Décio, Comprido e Manoel.
Dois anos mais tarde, compôs, ao lado de Manula, seu primeiro samba-enredo, “Sem
perdão”, desfilado naquele mesmo ano pela agremiação,.
Nessa época, as escolas de samba já constituíam uma instituição importante para
os participantes do carnaval. Os desfiles competitivos começaram em 1932 e, poucos
anos mais tarde, a dedicação à empreitada já tomava grande parte do tempo dos
participantes. Era um ano inteiro de trabalho para atravessar a Praça Onze exibindo o
resultado. Fazer parte da ala dos compositores conferia ao folião um papel de destaque,
de respeito na comunidade.
Essa situação tornou-se ainda mais notória quando, em setembro de 1934, foi
fundada a União Geral das Escolas de Samba, instituição criada para dar respaldo e
defender as escolas e seus componentes. A Prazer da Serrinha estava entre as menores
agremiações – e não chegou a ganhar nenhum campeonato – mas a mobilização
permanente dos integrantes da escola para “fazer o carnaval” provocou na região uma
efervescência cultural que poucos celeiros do samba vislumbraram na época. Os registros
sobre o Morro da Serrinha referem-se a um ambiente que tornava perenes riquezas e
tradições culturais que já haviam se extingüido de quase todos os outros redutos cariocas
62
(ver Silva, 1981), ou ainda, segundo relato da própria Yvonne, “era um lugar onde todo
mundo sabia sambar, todo mundo falava e pensava no carnaval” (para mais informações,
ver, ainda, Castro, 1998).
2. O ritmo das rodas
Em seu trabalho sobre a trajetória de Silas de Oliveira, Marília Barbosa da Silva
fala da importância do jongo no processo de formação dos compositores da época. Os
ensaios da Prazer da Serrinha eram feitos no terreiro de seu Alfredo Costa, que conciliava
as atividades como presidente e fundador da escola com as de respeitado e conhecido pai-
de-santo, responsável pela organização de rodas de jongo. A dança fazia parte das
celebrações em quase todas as grandes agremiações nas décadas de 1920 e 1930 (ver
Silva, 1981).
Yvonne, na época uma menina, não podia acompanhar as rodas. Como dito
anteriormente, acreditava-se que alguns pontos (os cânticos entoados em cada cerimônia)
poderiam lançar feitiços difíceis de serem desfeitos, ainda mais quando dirigidos a
crianças. No livro que acompanha o CD “Jongo do Quilombo São José”, gravado pelos
remanescentes de quilombos que vivem na comunidade de mesmo nome, em Valença, no
sul do estado do Rio, essa situação é explicada da seguinte forma: “antigamente só os
mais velhos podiam entrar na roda. Os jovens ficavam de fora, observando. Os antigos
eram muito rígidos com os mais novos e exigiam muita dedicação e respeito para ensinar
os segredos ou “mirongas” do jongo e os fundamentos de seus pontos. Os pontos de
jongo têm linguagem metafórica cifrada, exigindo muita experiência para decifrar seus
63
significados (...) Quem recebesse um ponto enigmático tinha que decifrá-lo na hora e
respondê-lo (desatar o ponto). Caso contrário, ficava enfeitiçado, amarrado, chegando a
desmaiar, perder a voz, se perder na mata, ou até mesmo morrer instantaneamente.”
Nos dias de hoje, tal regra já não é mais aplicada. Temendo que o jongo
desaparecesse – pois, atualmente, ele sobrevive apenas em algumas poucas comunidades
fluminenses – os mais velhos decidiram evitar os pontos cifrados e permitir a entrada dos
mais jovens na roda. Yvonne recorda-se que, em sua infância, não podia sequer
aproximar-se da dança, mas ouvia o ritmo ao longe, imaginando como transcorriam as
coisas naquele universo proibido. Ela prestava muita atenção nos relatos dos que
costumavam acompanhar o ritual. Muitos diziam que, no momento em que sua tia Tereza
entrava na roda, todos paravam para admirá-la.
Marília Barbosa da Silva relata algumas de suas conversas com antigos jongueiros
da Serrinha, ocorridas no final da década de 1970, nas quais eles reafirmavam esse
caráter misterioso do jongo e a preocupação dos mais velhos, inclusive de Tereza, em
manter o respeito às tradições. “Todos os entrevistados não hesitaram em considerar o
jongo uma dança com ‘fundamentos religiosos’, uma ‘dança das almas’, e contaram
abundantes histórias de encantamento e feitiços referentes àqueles que desrespeitavam o
jongo. Tia Tereza (mãe de Fuleiro), negou-se a ensinar o jongo a uma das netas, porque a
moça não levava a sério o jongo. Ensinou-o, entretanto, a outra que acreditava em
tradições” (ver Silva, 1981: pp 37).
Yvonne enquadra-se entre aquelas que seguiam as tradições. “Tínhamos um
temor de desrespeitar aquilo, sabe? Não era só o medo de acontecer o pior, do feitiço,
64
mas de decepcionar os mais velhos e pôr a perder aqueles costumes que nossos ancestrais
traziam com eles há tanto tempo”.
Quando atingiu a idade permitida, Yvonne passou a freqüentar as rodas de jongo
na casa de seu Alfredo Costa e Dona Iaiá. Gostava também do meio do samba, e já
começara a compor as próprias melodias com certa freqüência. Mas não se atrevia a
mostrá-las a ninguém. “Imagine: uma mulher fazendo samba! Tinha muito preconceito,
sim, era muito difícil.” Encontrava-se, então, em uma situação complicada: não podia
tornar públicos os seus sambas, sob pena de ser rechaçada, de antemão, pelo simples fato
de ser mulher. Todavia, desejava que suas músicas fossem ouvidas e ansiava obter a
opinião dos especialistas. Temia mostrar os sambas, mas queria que eles fossem
apreciados.
Neste ponto, vale a pena retomar, uma vez mais, a noção de Schutz de projeto, de
sujeito consciente. Yvonne, como indivíduo que utiliza seus recursos com um objetivo
definido, propõe ao primo, mestre Fuleiro, que apresente as canções que compunha como
se fossem de autoria dele. Foi o que passou a fazer sempre que a prima chegava com
alguma novidade. “Era um sucesso. Ele tocava e todo mundo gostava, elogiava,
perguntava de onde ele tinha tirado a idéia. Eu ficava de perto, vendo aquilo, ouvindo o
que diziam, e pensando que era tudo meu. Mas não dava raiva o preconceito, não. Dava
era orgulho de ver que o povo gostava.”
Yvonne submetia-se, respeitando aquilo que acreditava serem “os limites
naturais” para uma mulher negra. Não tinha coragem (ou “despeito”, como ela prefere
dizer) de impor suas canções. Cabe a ela, no entanto, a decisão quanto a como, quando e
por que mostrar seus sambas. É sua a opção de seguir a carreira de enfermeira e deixar de
65
lado as composições durante boa parte de sua vida adulta. Trata-se de um sujeito ativo,
ator em sua biografia, mas, também, de um sujeito condicionado a fazer escolhas. Para
Yvonne, simplesmente não se colocava a possibilidade de esperar calmamente a vida
encarregar-se de “fazer as coisas acontecerem”.
Apesar de não afirmá-lo explicitamente, ela parece não acreditar na existência do
destino. A idéia de que haveria um “poder impessoal, que representa a necessidade e a
justiça das disposições da natureza” ou de que existiria, para todos, uma “força
involuntária que nasce com o indivíduo” – assim como a beleza e o talento (ver Fortes,
1983) – é desconsiderada na trajetória da compositora. Apesar da ligação com o jongo e a
umbanda, Yvonne não acredita que as coisas boas ou ruins que aconteceram em sua vida
sejam resultado de algum poder divino, de algum orixá ou de qualquer outro ser
onipotente. Para ela, cada indivíduo constrói o próprio futuro, sendo capaz de mudá-lo a
qualquer instante.
Por outro lado, concebe o talento como uma dádiva, algo que já nasceria com
cada pessoa. Em seus relatos, sempre descreve a composição de sambas como um dom. É
como se seu discurso estivesse permeado pela “intencionalidade aparente no destino do
indivíduo”, nos termos de Simmel. Ou, ainda, como se fosse capaz de decidir o que iria
ou não tomar parte em seu destino. Do discurso da compositora podemos desprender sua
auto-percepção como um indivíduo ativo que é, possuidor de uma espécie de
intencionalidade vital – novamente nos termos de Simmel – que proporcionaria à pessoa
a realização de “uma seleção entre os acontecimentos que nos afetam e aqueles que se
enquadram em sua vibração própria (e a cuja ramificação e destruição pertence tal
enquandramento), jogando para nós o papel do destino” (ver Simmel, 1986).
66
A percepção de Yvonne da música como dom assemelha-se àquela descrita por
Howard Becker no trabalho sobre músicos de jazz norte-americanos. Neste estudo, o
autor menciona o fato de esses artistas considerarem-se pessoas especiais, dotadas de um
dom que os diferenciaria dos demais. O sociólogo comenta, ainda, algumas declarações
destes profissionais no sentido de que, para eles, seria impossível “aprender a ser um
grande músico”, afinal, tratar-se-ia de um talento inato, assim como o é para Yvonne.
Além disso, a percepção de sua singularidade estenderia-se também à forma de falar, de
atuar e à aparência.
Esse modo de encarar a vida fez com que Yvonne atropelasse qualquer indicativo
de que – por ser mulher, negra e de classe baixa – já teria seu “destino” traçado. Nesse
sentido, ela recorda-se de alguns dos questionamentos que se fez a respeito de como seria
sua vida adulta: “muitas das pessoas com quem convivi viraram donas de casa. Minha
irmã, minhas amigas. E não tenho nada contra isso. Mas era uma idéia de que a mulher
pobre e negra tinha que casar cedo, cuidar do marido e da casa, senão poderia acontecer o
pior e ela ficar solteira, sem nada. Mas é a gente mesmo que faz as coisas acontecerem na
nossa vida, ué. Não entendo essa idéia, acho que prejudica muito a pessoa a ter uma vida
melhor, entende?”.
Vale lembrar, uma vez mais, que nessa época – final da década de 1940 e início
dos anos 50 – quando Yvonne começava a ouvir suas canções serem executadas por
sambistas de prestígio, o ritmo já era respeitado e considerado um representante maior da
brasilidade, da autenticidade do nosso povo (ver Vianna, 1991). Foi assim, vendo seus
sambas serem apresentados nas rodas, conciliando o trabalho de enfermeira – e,
posteriormente, de assistente social – com as atividades na Prazer da Serrinha, que
67
Yvonne formou um círculo de convívio com aquele grupo. Freqüentava a casa de seu
Alfredo e Dona Iaiá, participava dos pagodes, conversava sobre música com os primos e
com os amigos deles. Foi, aos poucos, aproximando-se daquele universo e, em especial,
de um dos rapazes, o filho de seu Alfredo e Dona Iaiá, Oscar Costa
26
.
Os dois ficaram amigos. Gostavam de conversar e passavam as tardes de fins de
semana no terreiro, cantando samba ou dançando jongo. Na ocasião, Yvonne estava com
26 anos, idade em que, naquela época, a maioria das meninas já estava casada. “Quanta
gente casa com 18, 19 anos! Eu não tinha como. Não tinha nem mesmo tempo para
pensar em namoro. Minha criação não dava para isso, tanto que acabei me casando com
um rapaz que morava ao lado da minha casa”. A união de Yvonne e Oscar Costa foi
oficializada em 1947.
3. O casamento
Foi a índole calma de Oscar o que definitivamente conquistou a jovem
enfermeira, segundo ela. “Ele era muito bom, sabe? Não se metia em nada, concordava
com tudo o que eu queria fazer, e nunca criou confusão por causa do samba, pelo
contrário”. Yvonne afirma não ter feito muita diferença o fato de o marido ser filho do
presidente da escola, mas preocupa-se em deixar clara a situação financeira da família.
Apesar do status social advindo do parentesco com as lideranças do mundo do samba no
26
Para se ter uma idéia da importância de Alfredo Costa no universo do samba daquela época, ele foi
eleito, em 1939, Cidadão-Samba. O título fora criado em 1936 para homenagear o mais importante dos
foliões, escolhido pela União das Escolas de Samba entre todos os componentes de todas as escolas
filiadas. Para acompanhá-lo, foi criada a Rainha do Samba. Em 1937, a mulher de seu Alfredo, Araci
Costa, a dona Iaiá, recebeu a honraria ao lado de Paulo da Portela. Os irmãos de Iaiá, João Teodorico e
Delfino também eram do meio musical e tornaram-se grandes nomes da ala de compositores da escola
Prazer da Serrinha.
68
bairro, ela ressalta que Oscar “era de uma família pobre, de trabalhadores. Ele mesmo
trabalhava por conta própria, mas não tinha grandes ambições”.
O curioso é que, apesar das histórias que se contam sobre a Prazer da Serrinha, a
vida de Oscar, segundo Yvonne, era regrada, distante da boemia. “Ele gostava, sim de
samba, choro, essas coisas, mas não gostava do meio do samba. Essas coisas de escola
não eram com ele. Eu que fiz ele gostar. Mas só íamos nas férias, quando não prejudicava
o meu serviço, nem o dele.”
Yvonne ressalta, sempre, que o samba estava em segundo plano em sua vida,
diante da necessidade imperativa de dedicar-se ao trabalho no hospital psiquiátrico e,
ainda, dar conta das atividades de dona de casa, recém casada. Mas ela reconhece que não
deixava de lado as composições e, aos poucos, sentia-se mais à vontade para mostrá-las
em público. O marido a apoiava na empreitada, mas não teve maiores influências em sua
posição na escola. Apenas um ano depois da união dos dois, em 1948, a Prazer da
Serrinha fez seu último desfile. A agremiação ficara de fora da competição de 1943 a
1945 (por causa da Guerra, Seu Alfredo Costa achou melhor se retirar da disputa) e
resolveu encerrar suas atividades, após sucessivas derrotas. Na Serrinha, seu Alfredo
tinha fama de autoritário. Certa vez, chegou a mudar um samba-enredo na hora do
desfile, só para demonstrar que quem mandava era ele
27
. A indignação foi tomando conta
de parte da comunidade, até que um grupo de dissidentes resolveu romper com esse
comando e fundar sua própria escola. No dia 23 de março de 1947, nascia o Grêmio
Recreativo Escola de Samba Império Serrano.
27
Em 1946, a escola deveria desfilar com um samba de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola, chamado
“Conferência de São Francisco”, mas, por ordem de Alfredo Costa, apresentou-se com “No alto da colina”.
O episódio deixou parte da comunidade com muita raiva e inspirou mestre Fuleiro a compor uma música
que dizia “o samba do concurso não era aquele/ era outro que o Silas com o Décio escreveu/ Serra, dos
meus sonhos dourados/ a paz universal restabeleceu”.
69
A novidade não abalou Yvonne, que, acompanhada de Oscar, juntou-se à Império
assim que a Prazer da Serrinha fechou suas portas. Com o aval de ser nora de seu Alfredo
e, principalmente, prima de mestre Fuleiro – já, na época, reconhecido – foi aos poucos,
apresentando suas canções e ganhando espaço entre os compositores da agremiação. Por
mais que resistisse a assumir a atividade como profissão, ela começava a construir um
estilo próprio na composição de melodias de samba, sempre cercando-se de parceiros
ilustres e não menos talentosos.
Assim, no final da década de 1940, quando as alas dos compositores de todas as
escolas de samba ainda eram exclusivamente masculinas (situação que perdurou por
muitas décadas mais, e, até hoje, atinge parte das agremiações, que mesmo permitindo,
não contam com mulheres em seu elenco), ela tornou-se a primeira mulher a integrar –
com o mesmo poder decisório dos homens – uma ala de compositores de sambas-enredo,
a da verde-e-branco de Madureira.
O ano de 1947, o mesmo em que ela se formou assistente social e se casou, é
considerado também o do início de sua carreira artística. Foi quando ela passou a integrar
oficialmente da ala dos compositores do Império Serrano. Durante mais de uma década,
conciliou diversas atividades. Participava das reuniões e festas da agremiação, ajudava a
planejar o desfile de carnaval, trabalhava como assistente social e ainda desempenhava
tarefas domésticas, sendo a principal responsável pelo funcionamento da casa.
Em 1965, foi encontrar-se com um dos bambas da escola, Silas de Oliveira.
Chegou à casa do já famoso compositor de sambas do Império, onde estavam ele e o
parceiro, Bacalhau. Os dois trabalhavam no samba-enredo daquele ano da escola, “Os
Cinco Bailes da História do Rio”, mas já não conseguiam pensar em mais nada porque
70
haviam bebido além da conta. E ainda faltava uma parte da música. Yvonne chegou,
cantarolou um pedaço da melodia, e foi o suficiente para que entrasse para a história da
música brasileira como a primeira mulher a compor um samba-enredo oficial. “Tomei
parte neste samba mais com a melodia mesmo. Sobre a letra, tem o seguinte, a gente tem
que seguir uma sinopse para fazer samba-enredo e nunca gostei muito disso, não. A
melodia é que “são elas”. Tem que botar uma melodia bonita, que todo mundo goste,
sinta, se inspire com ela”, valoriza.
Sobre esse episódio, Yvonne conta que Fábio Mello – na época um dos diretores
da ala dos compositores da Império Serrano – “dizia que o Império tinha nascido
lançando novidades e que gostava muito de continuar trazendo coisas novas a cada
carnaval. Todo ano ele queria lançar uma coisa nova. Aquele ano, se virou para mim e
disse: você vai ser a novidade. Vamos colocar uma mulher mesmo, assinando o samba ao
lado dos homens”. A boa idéia de fato rendeu grande repercussão à agremiação, a mais
comentada naquele ano. Mas a Império não levou o carnaval. Ficou em segundo lugar,
atrás do Salgueiro, com o enredo que homenageava os 400 anos do Rio de Janeiro,
“História do Carnaval Carioca”.
O vice-campeonato e o pioneirismo tirariam de vez aquela negra de olhos grandes
da condição exclusiva de enfermeira ou assistente social, como ela própria preferia
apresentar-se. A partir daquele momento, Yvonne passou a ser, para os demais artistas e
também para o público, uma compositora, antes de qualquer outra coisa. Lançava-se,
assim, uma artista com identidade e talento próprios, agora mais reconhecidos dentro da
comunidade, e que entraria de vez para a história da agremiação.
71
4. Que artista é essa?
Em Mundos artísticos e Tipos sociais, Howard S. Becker enumera quatro
diferentes tipos de artistas: os “profissionais integrados” – a quem chama de canônicos –
aqueles perfeitamente adaptados ao mundo artístico instituído, sem causar ranhuras ou
incômodos, seguidos por um público fiel e numeroso; os “inconformistas” que, ao
contrário dos integrados, decidem quebrar os padrões estabelecidos e parecem obstinados
a obter reconhecimento no interior desse universo, do qual já fazem parte; os “ingênuos”,
alguns artistas que podem jamais relacionarem-se com o universo artístico, ou sequer
receberem qualquer formação profissional e que são, em certa medida, solitários; e,
finalmente, o “artista popular”, cuja obra nem sempre é considerada arte, pelo menos por
parte daquelas pessoas envolvidas em sua produção. Becker cita como exemplo o
“Parabéns pra você”. Ao cantá-lo, pouco importa estar afinado ou fora de tempo. Basta
que se cante. (ver Becker, 1997).
Refletindo sobre a qual dessas formas de classificação aplicadas por Becker
Yvonne Lara pertenceria, foi curioso perceber que, mesmo sendo algumas delas quase
antagônicas, a compositora poderia ser enquandrada em qualquer uma delas.
Depois de quase seis décadas de carreira, Yvonne poderia ser vista como uma
“artista integrada”, na medida em que está plenamente adaptada ao mercado fonográfico
(lança discos no Brasil e no exterior, faz shows semanalmente e é uma unanimidade entre
os críticos). Ao mesmo tempo, dedica-se ao chamado “samba de raiz”, tradicional, e isto
nenhum dos mais ortodoxos componentes do meio ousaria questionar.
72
Também poderíamos considerá-la uma “inconformista”, se pensarmos que, como
mulher, quebrou padrões há muito estabelecidos na música brasileira e no meio dos
sambistas. Rompeu, por exemplo, com o pensamento de que o samba é um mundo
exclusivamente masculino. Bateu o pé, criou estratégias – que incluíam mentir sobre a
autoria de suas músicas (como fez com mestre Fuleiro) – até conseguir ingressar nesse
universo e ser aceita como sua legítima integrante.
Yvonne estudou música no colégio interno e isso foi, como ela reconhece em seu
relato, um impulsionador para sua atividade de compositora. Ela diz, no entanto, que o
conhecimento teórico adquirido durante as aulas pouco ajudou na hora de compor as
melodias de samba. Os elaborados contra-cantos, marcas de seu talento como
compositora, sempre foram desenvolvidos a partir de um método próprio de autoria,
segundo ela, inteiramente instintivo, e nada técnico. Uma de suas canções mais
conhecidas e tocadas, até hoje, é “Tiê-tiê”, que ela compôs aos 12 anos de idade, quando
ainda não tinha sequer assistido a uma única aula de música no colégio Orsina da
Fonseca.
Yvonne afirma ter ingressado no mundo do samba por influência da família. Do
convívio familiar, no entanto, não herdou qualquer conhecimento particular de sambas
antigos, tampouco o domínio de técnicas ou instrumentos próprios ao ritmo. Segundo sua
percepção, sua obra foi elaborada apenas com base em suas emoções, sem relação direta
com o mundo artístico – como acontece com o terceiro tipo de artista descrito por Becker.
“Fui criada num colégio interno e no colégio a gente não tinha acesso a nada de samba.
Só comecei a ter contato com esse meio mais tarde, quando passei a conviver com
73
familiares sambistas e chorões, mas mesmo assim, acho que por instinto, já escrevia
sambas”, recorda-se.
Por último, Yvonne poderia ser considerada uma “artista popular” ao entoar
refrões de samba de partido, estrofes universalizadas, que não têm autor nem são
classificadas como arte. Também fazem parte do repertório dela cânticos religiosos,
segmento da cultura umbandista e do jongo, ritmo africano trazido pelos escravos, que
influenciou fortemente sua música.
A partir de 1965, com o sucesso de “Cinco Bailes da História do Rio”, seu
repertório passou a ser ouvido com maior freqüência pelo público ligado ao samba. Em
Madureira, suas composições já eram entoadas nas rodas e ela começava a ser
reverenciada como uma grande melodista.
Na época, Yvonne já era mãe de dois meninos. Alfredo Lara da Costa, nascido em
1950, e Odir Lara da Costa, o mais velho, nascido dois anos antes. Trabalhava no hospital
e corria para casa para cuidar das crianças e das atividades do lar. Nas horas vagas,
freqüentava as rodas de samba da Império Serrano, as reuniões da ala dos compositores, e
ajudava a preparar o carnaval. Meio a contragosto, Oscar costumava acompanhar a
mulher nesses eventos.
O nascimento dos filhos tornou a vida de Yvonne ainda mais corrida e repleta de
afazeres. Ela assumira a posição de chefe de família, pois Oscar Costa ganhava pouco
com os biscates que fazia. “Ele trabalhava por conta própria. Às vezes levava pouco, às
vezes não levava nenhum dinheiro para a família, porque não conseguia mesmo, era
pobre. Era eu que sustentava a casa, de modo que ficou muito difícil trabalhar, cuidar de
74
tudo isso e ainda fazer samba, né”? Ela se orgulha de dizer que, apesar do esforço, os dois
meninos estudaram e conseguiram concluir o segundo grau.
5. De Yvonne a Dona Ivone
No final da década de 1960, Yvonne Lara fez alguns shows históricos, com
platéias repletas de figuras importantes do meio musical, entre artistas e jornalistas.
Havia, enfim, muitos dos chamados “formadores de opinião”. As apresentações mais
importantes foram nas rodas de samba do teatro Opinião e na boate Monsieur Punjol, em
Ipanema. Depois de mais de três décadas integrando a ala dos compositores da Império
Serrano, a partir de agora ela passava a ser admirada também fora da comunidade do
samba, durante todo o ano, e não apenas no carnaval. “Foi aí que as pessoas começaram a
me conhecer mesmo, para além de Madureira e das escolas de samba. Tinha gente de
todo tipo assistindo, gente rica, pobre, jornalistas”, lembra a compositora.
Em 1970, um empresário apaixonado por samba – e, especialmente, pelas mulatas
– atraía admiradores do ritmo para a casa de espetáculos e restaurante que mantinha,
chamada “Sambão 70”. O local era freqüentado por grandes sambistas da época, mas
também pelo público que buscava apenas ouvir boa música e se divertir. Entre os artistas
que se apresentavam na casa, estavam Yvonne Lara, Clementina de Jesus e Roberto
Ribeiro.
Empresário com tino para os negócios, Oswaldo Sargentelli e o produtor Adelzon
Alves resolveram fazer um LP reunindo esses grandes nomes da música. Yvonne Lara
começava a ser conhecida pelo grande público e jamais havia gravado um disco com suas
75
canções. No início, ficou receosa. “Não sabia muito bem se isso poderia atrapalhar minha
carreira. Estava na dúvida, sabe? Mas já tinha muita estabilidade, mais de vinte anos
trabalhando como assistente social. O Sargentelli ia sempre lá no Império, me via
cantando, comandando a minha ala, e fazendo aquelas coisas que a gente faz. E insistiu
para fazer o projeto”.
Antes da gravação do LP, Adelzon promoveu um show chamado “Quem samba
fica?”, no qual Yvonne se apresentou e foi muito aplaudida. Depois de assegurar-se de
que um disco contendo majoritariamente canções da compositora poderia dar algum
retorno comercial, o produtor resolveu gravar o que seria o primeiro álbum da artista,
com Clementina de Jesus e Roberto Ribeiro, o “Sambão 70”, lançado pela gravadora
Copacabana.
“O disco ficou muito bom”, lembra Yvonne, “mas quando ouvimos ele pronto, o
Sargentelli e o Adelzon me chamaram e disseram: ‘Dona Ivone. De hoje em diante o seu
nome artístico é Dona Ivone Lara’. Assim mesmo, sem explicar bem o porquê, acho que
só por respeito, porque gostaram do meu trabalho mesmo. Até achei ruim. Disse: ‘Dona?
Pra quê Dona? Não quero isso, não, sou nova, ainda! Não tenho nem cinqüenta anos,
imaginem!” mas eles insistiram e ficou assim mesmo. E ainda resolveram mudar a grafia
para ficar mais fácil para o público, entende? Foi um sucesso. A música de trabalho era
‘Serra dos meus sonhos dourados’. Um sucesso mesmo, mas nunca cogitei querer saber
se vendeu bem ou não. Isso, eu confesso que não sei”.
Dois anos mais tarde, foi lançado, com outros cantores e compositores, o LP
“Quem samba fica?”, pela gravadora Odeon. “Lembro que foi feita uma capa, se não me
engano na casa do falecido Manacéia. Saímos Fuleiro, Délcio Carvalho, eu e uma porção
76
de amigos. Foi um dia muito especial para todo mundo que participava do projeto e
sonhava com isso há tanto tempo”, recorda-se.
6. Encontros e Despedidas
Neste mesmo ano de 1972, no dia 20 de maio, o parceiro Silas de Oliveira foi
tocar em uma roda de samba, pensando em arranjar um dinheirinho extra para poder
pagar a taxa de inscrição de uma de suas filhas no vestibular. No momento em que
cantava sua parceria mais famosa com Dona Ivone Lara, “Cinco Bailes da História do
Rio”, sofreu um infarto fulminante.
A comunidade de Madureira compareceu em peso ao volório do compositor de
“Apoteose ao Samba” e “Aquarelas do Brasil” e seu enterro ocorreu debaixo de uma forte
chuva. Ainda hoje, sambistas que assistiram à cerimônia afirmam que o temporal desabou
por causa da tristeza, das lágrimas do povo da zona norte e do samba, que tanto perdia
com a morte do artista.
Délcio Carvalho é um dos que lembram bastante bem daquela data. Ele estave lá,
e conta que Yvonne era uma das mais abaladas com a perda. “Ela estava triste, chorando
muito. Eu ainda era novo no samba, mas já era conhecido como compositor. Seu Oscar,
marido dela, era muito apaixonado, e ficou arrasado de ver Dona Ivone daquele jeito.
Chegou para mim num cantinho e disse: “Ô, Délcio, não sei o que vai ser dela, cheia de
melodias sem ninguém para pôr a letra. Agora, sem o Silas, vai ficar tudo muito triste.
Você bem que podia passar lá em casa para conversar com ela um pouco, né? Soube que
você anda escrevendo uns sambas bonitos demais. O que você acha?”
77
Era um convite irrecusável. Délcio ficou encantado com as tais melodias inéditas
que Dona Ivone guardava. Juntos tocaram, cantaram, e, aos poucos, foram formalizando
aquela que seria a principal parceria da carreira dos dois. A dupla compôs mais de trinta
músicas.
Délcio é filho de um saxofonista da banda “Lira de Apolo”, e passou muitas
dificuldades financeiras durante a infância. Ainda menino, chegou a trabalhar como
cortador de cana. Começou a carreira cantando em conjuntos de baile em Campos, sua
cidade natal, no norte do estado do Rio de Janeiro, tendo transferido-se para a capital
logo após o serviço militar. Mas gostava mesmo era de música, e resolveu tentar a vida
como cantor e compositor. Apresentou-se em shows de calouros, cantou em vários bares
de Duque de Caxias – cidade onde morava – até que, em 1970, aos 31 anos, entrou para a
ala dos compositores da Império Serrano.
O ingresso na agremiação deu-se por conta da divulgação de “Pingo de
Felicidade”, samba gravado por Christiane – cantora relativamente conhecida na ocasião.
Com o sucesso da canção, os diretores da escola procuraram saber quem era seu jovem
compositor. Délcio fazia parte do conjunto “Lá Vai Samba”, e costumava apresentar-se
em festivais das redes de televisão Record e Globo, mas ainda não havia lançado discos.
Délcio foi o parceiro e amigo que acompanhou Dona Ivone nas horas mais
difíceis de sua vida. Apenas três anos apos a perda do parceiro, Silas de Oliveira, ela
atravessaria o período mais triste de sua vida. Em 1975, o marido, Oscar Costa,
companheiro há 28 anos, morreu, aos 52 anos, vítima de um infarto fulminante. Há
poucos registros sobre sua morte, mas Ivone a atribui à tensão causada pelo acidente de
carro, sofrido pelo filho mais velho, Odir, alguns meses antes.
78
O jovem tinha apenas 27 anos na ocasião, e estava dirigindo do centro do Rio para
casa. Na altura da Avenida Perimetral, perto da Praça XV, perdeu o controle do carro e
caiu do alto do viaduto. Dona Ivone conta que “ele ficou muito perto da morte, nem sei
como se salvou. Acho que esteve já morto mesmo, sabe? Ficou uns 45 dias em coma,
teve que ser operado pelo Dr. Paulo Niemeyer, que já era um conhecido neuro-cirurgião
naquela época, e acho que isso acabou salvando o Odir”, conclui.
Mãe e esposa, ela teve que haver-se, mais uma vez, como o arrimo da casa.
Segundo acredita, Oscar “não se agüentou de tanta preocupação e tristeza, porque a gente
já passava muitas dificuldades e mais essa... Acho que foi por isso mesmo que o Oscar
não resistiu e acabou falecendo”.
Quando da morte de Oscar, Odir permanecia no hospital e Dona Ivone ainda tinha
que trabalhar para sustentar a casa. “Foi uma época de muita tristeza e só a música trazia
inspiração mesmo. O Délcio fazia letras tristes, porque olhava para mim e sabia o que eu
estava querendo dizer com as melodias que escrevia”.
7. Mais músicas, mais parceiros
Em 1977, aos 56 anos, Dona Ivone aposentou-se como enfermeira e assistente
social e só então resolveu dedicar-se de verdade e integralmente à atividade de
compositora. No ano seguinte, lançou um disco solo, “Samba, minha verdade, minha
raiz”, novamente pela gravadora Copacabana. Nele já apareciam algumas parcerias com
Délcio de Carvalho.
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Acontecia, nesse momento, uma nítida reorientação em seu projeto de vida. Ela
deixava inteiramente de lado a carreira de funcionária pública – com a qual
comprometera-se, até então, com um grau de adesão sensivelmente maior do que com
música – para dedicar-se integralmente à composição, até então renegada a segundo
plano. Pensando, uma vez mais, nas obras de Hughes e Becker, poderíamos concluir que
Dona Ivone teria, agora, novas motivações para aventurar-se na carreira artística – tais
como já conquistada segurança financeira e o desejo de obter reconhecimento como
artista.
Nesta nova fase, suas músicas passaram a ser gravadas por diversos artistas. Em
1976, Eliseth Cardoso já havia incluído em um disco a parceria com Délcio Carvalho,
“Minha Verdade”. Dois anos antes, Cristina Buarque de Holanda gravara “Agradeço a
Deus” e “Confesso” em seu primeiro LP. Mas foi mesmo em 1978 que seu maior sucesso
seria apresentado ao grande público. Juntas, Maria Bethânia e Gal Costa fizeram shows e
ganharam prêmios de melhor música com a canção “Sonho Meu”, mais uma parceria
com Délcio Carvalho. A canção teve dezenas de regravações ao longo das décadas
seguintes.
Durante toda a carreira de Dona Ivone, a busca por parceiros foi uma constante.
São raras as obras de autoria individual. Essa constatação nos remete ao debate sobre
autoria e a visão da arte como ação coletiva (ver Becker, 1977 e 1982), a partir de uma
perspectiva interacionista. Yvonne aparece como autora, mas compartilha o mérito com
letristas ou até mesmo com outros melodistas.
80
Também valeria a pensa retomar a reflexão de Gilberto Velho – em sua
comunicação, Autoria e criação artística
28
de que a produção artística sempre é
coletiva, e faz parte de uma “complexa organização em que (...) técnicos dos mais
variados tipos desempenham funções e tarefas indispensáveis para a realização de
sucesso na empreitada”.
O processo de composição em parceria – utilizado em “Sonho Meu” – sempre
funcionou bastante bem com Délcio de Carvalho. Sobre isso, ele nos conta:
“Normalmente a Dona Ivone faz a melodia primeiro, e me mostra. É impressionante
como a música dela é clara, e me diz exatamente o que ela queria falar quando pensou
naquele andamento. Aí, com isso na cabeça, faço a letras. Ela diz que eu descubro o que
ela pensou”. Dona Ivone confirma: “Com o Délcio acontecia uma coisa engraçada. Ele
ouvia a melodia e parecia que ficava inspirado para escrever a letra na mesma hora. Uma
coisa extraordinária. A gente ficava numa apreciação de um pelo outro, sabe? Sentava,
ouvia, trocava idéias. Nunca aconteceu de ele me mostrar uma letra e eu ficar na dúvida,
achar que estava ruim ou diferente do que eu tinha pensado. De todas eu gostei”.
Délcio Carvalho foi, sem dúvida, o parceiro “mais presente”, como Dona Ivone
Lara gosta de dizer. Mas ela teve outros, aos quais quase sempre cabia a função de fazer a
letra. A ela, costuma destinar-se a melodia. Com Paulo César Pinheiro compôs “Bodas de
Ouro”. Com Jorge Aragão, “Enredo do meu samba” e “Tendência”. Caetano Veloso
assinou “Força da Imaginação”, gravada por Beth Carvalho e Hermínio Bello de
Carvalho, “Mas quem disse que eu te esqueço”, entre outras.
28
Comunicação apresentada no Colóquio “Artifícios e Artefactos: entre o literário e o antropológico”.
Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, RJ, 9/9/04.
81
O mais recente parceiro é o jovem Bruno Castro, de 32 anos, que costuma
acompanhá-la tocando cavaquinho e cantando em seus shows. Os dois se conheceram em
1999, por intermédio de um amigo de Bruno, o cavaquinista Mauricio Verde, que, na
ocasião, estava muito atarefado, dividindo-se entre shows com Altamiro Carrilho, João
Nogueira e Dona Ivone Lara. Quando não podia acompanhá-la, mandava Bruno substituí-
lo. “O Mauricio tocava com tanta gente que às vezes era impossível, não dava conta. Eu
comecei a tocar com ela e fui ficando, ficando. Também costumava encontrá-la para
ajudar nas gravações das músicas. Numa dessas gravações, ela me mostrou um
cavaquinho dela que estava quebrado. Perguntou se eu tinha como consertar. Ele estava
bem velhinho, aí levei num luthier e ele consertou. Peguei o cavaquinho para ver se
estava direitinho e quando toquei, me ocorreu uma melodia, e eu mostrei para ela quando
fui entregar o cavaquinho. Na mesma hora, ela cantarolou a segunda parte do que eu já
tinha feito, e aí fizemos nossa primeira canção”. Depois de “Um grande sonho”, os dois
tornaram-se parceiros constantes e já têm mais de vinte composições juntos. Bruno
afirma que esse número poderia ser ainda maior se ele não demorasse tanto para terminar
as canções. “Fico com a melodia muito tempo quando ela termina e me entrega a música.
Faço no máximo umas seis músicas por ano”.
O mais comum – como ocorre com as demais composições dela feitas em dupla –
é Dona Ivone imaginar a melodia e Bruno completar com a letra, mas isso está longe de
constituir uma regra. “Às vezes, ela vem com apenas uma parte da melodia e eu
completo; às vezes, vem com a música quase pronta, com uma primeira parte com letra e
melodia. Às vezes, acontece como com a última que ela me deu, em que eu estou
trabalhando agora. Ela faz a melodia, me mostra e diz: ‘o nome desta música é Destino’.
82
Aí eu já sei o caminho das pedras, penso mais ou menos no que vou trabalhar, no que ela
estava pensando. Ela dá essas dicas.”
No processo de composição, também é comum que um dos parceiros faça sozinho
boa parte da música e o outro, em seguida, modifique o que ouviu até que a canção ganhe
forma e, finalmente, fique pronta. “Ela tem toda a liberdade e eu também. Acontece, sim,
de ela mudar um pouco da melodia que eu fiz, eu mudar a dela, ela mudar a letra. Faz
parte do processo de composição que a gente desenvolveu juntos, é normal”, conta ele.
Outra parceria da dupla, gravada pelo Cordão do Boitatá e integra, também, o
disco solo – ainda inédito – de Bruno, começou com uma melodia do jovem, que Dona
Ivone desenvolveu e ele finalizou, elaborando a letra. Os dois voltavam de um show e,
conversando no carro, ele comentou que tinha na cabeça uma idéia preliminar: queria
fazer uma canção em homenagem ao mestre Fuleiro. Ela gostou da sugestão e os dois
trabalharam juntos até que “Apito de ouro” ficou pronta.
Fuleiro seria, na opinião de Bruno, o principal responsável pelo fato de Dona
Ivone Lara alcançado reconhecimento como compositora. “Acho que hoje já é muito raro
a gente encontrar alguma compositora mulher. Ela é minha única parceira mulher, todos
os outros são homens. Ainda existe uma coisa muito machista no meio musical. Imagina
naquela época! Acontece que era uma época em que as escolas de samba eram uma coisa
muito familiar, sabe? Então, sendo o Fuleiro uma pessoa influente nesse meio, que tinha
respeito e contatos no Império Serrano, permitiu que ela ganhasse espaço. Mesmo no
começo, quando ele mostrava as músicas dela como se fossem dele, era como se estivesse
preparando o terreno para que ela se tornasse a grande compositora que é, famosa e
reconhecida. Ela entrou num metier em que hoje em dia ainda é muito complicado entrar
83
mulher, né? E além do talento, da garra que sempre teve, o Fuleiro facilitou muito. Acho
que ela ter sido casada com o Oscar ajudou, sim, é claro, afinal o seu Alfredo, sogro dela,
era uma liderança na comunidade. Mas o Oscar tinha um pouco de ciúme, pelo que a
gente ouve falar, já o Fuleiro, não; queria mesmo era levar a prima, levar a família pro
samba”, pondera.
Bruno aponta, ainda, outro fator que poderia explicar o reconhecimento alcançado
por Dona Ivone Lara: “Ela respira música”, conclui. “Se você olhar para ela e ela estiver
assim, num canto, paradinha, pensando, pode saber que tem música aí. Ela com certeza
não vai estar pensando em outra coisa. Ela está o tempo todo ali, com alguma melodia
nova na cabeça, cantarolando, assobiando. Acho que ela ajudou muito, já fez muita coisa,
mas as mulheres ainda têm muito espaço para conquistar. Dona Ivone tem que servir
como um norte, um exemplo”.
84
Capítulo 3
Enfim, compositora
1. Lembranças do caminho
No dia 30 de agosto de 2005, a tradicional casa de shows Canecão, em Botafogo,
zona sul do Rio de Janeiro, estava lotada. Os ingressos haviam se esgotado algumas
semanas antes da apresentação, que reuniria quatro estrelas da música brasileira. Alcione,
Maria Bethânia, Ana Carolina e Dona Ivone Lara foram, por vários momentos,
aplaudidas de pé, especialmente quando cantaram “Sonho Meu”, a mais famosa parceria
de Dona Ivone e Délcio Carvalho.
Para a compositora, tratava-se de um momento que sintetizava sua trajetória –
desde a composição da primeira música até a “independência profissional”, quando ela
pôde enfim permitir-se a dedicação exclusiva à atividade de compositora, já aposentada
como enfermeira e assistente social. Era um show beneficente, cuja renda seria
integralmente revertida à “Casa das Palmeiras”, instituição criada pela Doutora Nise da
Silveira. No palco, Alcione, amiga do samba, Maria Bethânia – que com a gravação de
“Sonho Meu”, juntamente com Gal Costa, tornou Dona Ivone conhecida do grande
público e que, ainda hoje, vez por outra, costuma incluir composições da sambista em
seus discos – e Ana Carolina, integrante da nova geração de compositoras, que costuma
falar bastante da importância de Dona Ivone para a música brasileira tendo declarado, na
época do espetáculo, sua admiração pela artista, diante do papel por ela desempenhado na
abertura de “espaço para as mulheres compositoras no Brasil”.
85
O público presente talvez não soubesse da conjunção de fatores que fazia daquele
um show especial na carreira de Dona Ivone. Mas respondia com muitos aplausos. “O
pessoal delirava”, conta ela. “É raro a gente pegar um Canecão, uma casa grande assim, e
fazer um show daqueles. Um mês antes já não tinha mais bilheteria. O contato com o
público era diferente, e acho que também por ter sido beneficente, estava todo mundo
feliz”, lembra Dona Ivone.
Além desse espetáculo, o ano de 2005 foi repleto de momentos marcantes na
carreira da cantora e compositora. Aos 84 anos, ela – que passara de Yvonne a Dona
Ivone durante a década de 1970 – ganhou um novo título: era agora chamada de “diva”,
ou “dama do samba” pela imprensa especializada. “Isso foi depois do Festival Tim
29
, né?
Fiz dois shows que foram mesmo muito bonitos, de samba de verdade. O público adorou
e os jornalistas falaram que foi o melhor show do evento, e começaram com essa história
de diva”. Perguntei se ela concordava com a nova alcunha. “Não sei bem o que é isso de
diva. Acho que é alguém especial, alguém que se destaca como artista, né? Fico muito
honrada. Se tem um monte de jornalistas bons e respeitados dizendo que eu sou, acho que
é muito bom, né?”.
O jornalista Leonardo Lichotte estampou em uma reportagem publicada no Globo
Online do dia 24 de outubro daquele ano, que “era a dama do samba no palco do jazz.
(...) Em noite iluminada – o que não é nada raro no caso dela – Dona Ivone Lara eliminou
qualquer dúvida de que ali, no palco Club do Tim Festival, era o seu lugar. (...) Em
menos de 15 segundos ali, seu contracanto divino mostrava que diva é diva, independente
da seara, e que ninguém carrega um Dona no nome por acaso”.
29
O Tim Festival é um tradicional acontecimento do calendário musical do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Reúne atrações internacionais e, no princípio, limitava-se a receber músicos de jazz. Nos últimos anos,
abriu os palcos também para artistas de outros estilos musicias.
86
O Estado de São Paulo chamou-a de “rainha do samba”. Na Folha de São Paulo,
o show ocorrido na capital paulista foi narrado da seguinte forma: “o passo lento e a
dificuldade para sentar e levantar são as únicas pistas dos 84 anos da sambista. Sua voz
ainda é forte e precisa, e a dança descendente do jongo que executa ainda tem graça. (...)
Dona Ivone Lara, depois de empolgar o sentado público com “Alguém me avisou e
“Candeeiro da vovó”, acalentá-lo com “Sonho Meu”e contar muitas histórias com outras
tantas canções, foi aplaudida de pé”.
Na edição de 23 de outubro do Jornal do Brasil, o crítico musical Luís Pimentel
anunciava o show que aconteceria naquela mesma noite na edição do festival no Rio de
Janeiro como uma exibição da “dama maior do gênero mais popular do Brasil”, e
destacava que “Ivone Lara é uma artista brasileira na mais perfeita tradução do clichê.
Uma batalhadora que enfrentou vários batentes como enfermeira e como assistente social,
até poder se dedicar ao seu nobre ofício”.
Nas duas noites do festival, grande parte do público era composta por jovens. Mas
isso não chegava a constituir uma novidade para ela. “De uns anos para cá está sendo
uma coisa extraordinária o número de jovens no meu show. Todo lugar onde eu vou tem
bastante jovem. É claro que tem também adultos, mas só aqueles mais antigos, que já me
acompanham há mais tempo.”
Desde o começo de 2000, a compositora tem feito mais shows em São Paulo que
na sua cidade natal. A mudança acompanha o movimento do mercado de shows de
samba. Os paulistanos – segundo a empresária de Dona Ivone, Miriam – têm se mostrado
mais ávidos por acompanhar a carreira de sambistas, enquanto no Rio de Janeiro a
87
agenda já não é mais a mesma. Dona Ivone diz que, curiosamente, os paulistanos, hoje
em dia, parecem gostar mais dos sambistas cariocas que os próprios cariocas.
2. Ser diva
Dona Ivone se envaidece com o título de diva, mas ressalva que para conquistá-lo
não bastou ter talento. “Ser afinada, trabalhar duro, ser esforçada, isso a gente pode até
arrumar. Qualquer um, se quiser, consegue. Mas tudo isso sem a pessoa se portar da
maneira correta, não adianta nada”. A preocupação com a aparência é notória. As roupas
com as quais a compositora se veste já foram peças de uma exposição no Espaço Cultural
dos Correios, no centro do Rio de Janeiro, e fazem parte da construção da artista
enquanto tal. Fã das rainhas do rádio – especialmente de Marlene e Emilinha Borba – que
sempre ressaltaram a importância da dedicação à aparência como algo essencial, ela
repete a receita das cantoras. “Não aceito essa coisa do artista que vai cantar de
chinelinho. Acho até desrespeito. O público paga, vai lá para te ver e você está de
qualquer jeito, parece que nem se preparou. Acho que a postura, a aparência são
fundamentais”, conclui.
Vestir-se como artista constitui uma espécie de ritual que requer certo empenho
por parte da cantora. Ela conta com a ajuda de costureiras para confeccionar suas roupas,
algumas desenhadas por ela própria, outras, por profissionais e amigos. “O que esses
homens que entendem de moda fazem é uma coisa extraordinária. Eles têm um gosto que
é fora do normal, eu nem preciso dar muito palpite. Meu amigo saudoso Evandro Castro
88
de Lima fazia uns vestidos para mim. Sempre com lantejoulas, muito brilho e bordados,
que eram os mais bonitos que eu tinha. Todo mundo comentava”.
Tudo isso contribui para a constituição da identidade da artista. A preocupaçãode
Dona Ivone em agradar a platéia é bastante explícita, e pode ser enquadrada naquilo a que
Erwin Goffman chamou de “sedução” (ver Goffman, 1985). A intenção de seduzir,
segundo o autor, está sempre presente nesse modelo de interação social no qual a
performance é simultaneamente moldada pelo ambiente e pelo público. Dona Ivone tem
consciência dos distintos papéis que representa em cada uma das situações vivenciadas.
No palco, deve vestir-se de determinada maneira, causar impressões específicas. Em
casa, pode comportar-se como dona de casa, provedora, mãe, avó amantíssima. Como
outra personagem, enfim.
Há que se pensar, ainda, que, para a compositora, o cuidado com a apresentação
de si é imperativo a quem, como ela, atinge um determinado status social. Sendo a artista
que é, nos termos de Anselm Strauss, ela sabe que “motivações apropriadas a um status
anterior – e usualmente inferior – devem ser abandonadas ou transmutadas, e novas
motivações devem ser acrescidas para substituir as antigas” (ver Strauss, 1999: pp 110).
Ela defende o ponto de vista segundo o qual, no palco, não há espaço para a enfermeira,
para a assistente social ou para a chefe de família. É preciso comportar-se de maneira
especial, como uma pessoa especial, diferente daquelas que estão na platéia. Ser artista,
ser diva.
É uma postura que acompanha toda a trajetória de formação musical de Dona
Ivone. Apesar de ter sido criada em meio a sambistas, de compor sambas e de ter
estudado música erudita, ela sempre deixou claro, como anteriormente mencionado, que
89
sua maior admiração dirigia-se às cantoras da Rádio Nacional. Essa relação de fã, ela
confirma, não se limitava ao fato de que essas mulheres tinham vozes poderosas, mas
centrava-se, principalmente, na beleza delas. A grande preocupação estética –
demonstrada abertamente pela compositora – acarretava, em sua opinião, bons resultados
para a carreira de artista.
Em seu estudo sobre a bossa-nova e a tropicália, Santuza Cambraia Naves
menciona essa tentativa de distinção, de afastastamento das pessoas comuns, da platéia,
como algo recorrente nos artistas das décadas de 1940 e 50. “Com relação à sua
apresentação, era comum o cantor construir uma persona exuberante, recorrendo a trajes
reluzentes e a uma postura teatral. O palco – principalmente o da Rádio Nacional, onde se
afirmaram grandes talentos – era uma espaço em que a figura do intérprete era mitificada,
o que criava uma enorme distância entre o artista e o espectador” (ver Naves, 2001: pp
11).
Outra preocupação da artista, que conquistou reconhecimento do grande público
quando já passava dos 60 anos de idade e lançou seu primeiro álbum aos 56, é a de
permanecer bonita em qualquer idade. Falar de seus 84 anos não lhe é embaraçoso, muito
pelo contrário. Algumas vezes, em nossas conversas, por causa de qualquer confusão
movida pelo excesso de dados em minhas mãos, eu me enganei, dizendo que ela tinha 83
anos. Sempre fui prontamente corrigida por ela e, confesso, depois de perceber o cuidado
que ela tinha em afirmar sua idade, ainda errei a data de propósito algumas vezes só para
assegurar-me da importância atribuída a esse fato.
Trata-se de uma questão semelhante àquela observada por Andréa Moraes Alves
em seu trabalho sobre sociabilidade e envelhecimento em bailes de dança de salão do Rio
90
de Janeiro (ver Alves, 2004). A autora menciona que algumas de suas entrevistadas –
senhoras freqüentadoras de tais bailes – gostavam de contar histórias sobre jovens que
desconfiavam de sua idade, afirmando que elas pareciam bem mais jovens. Alves
percebeu nessas mulheres uma grande preocupação com a aparência, e uma “exaltação à
capacidade de manter-se bela mesmo tendo perdido a juventude”, o que a autora
considera uma espécie de “equilíbrio de perdas e ganhos”. Dona Ivone Lara disfarça, mas
assume que se enxerga elegante, bonita e “conservada”.
3. Samba longe de casa
Depois do lançamento de “Sambão 70” e “Quem samba fica?”, de 1972, Dona
Ivone gravou ainda outros dois discos na década de 1970. O primeiro solo, “Samba,
minha verdade, minha raiz”, e “Sorriso de criança”, de 1979. A carreira continuaria de
vento em popa na virada dos anos 1980, momento em que a compositora começa a
aparecer com maior freqüência na televisão e também nos jornais. “Você sabe que é isso
o que importa, né? A mídia faz isso mesmo com você. De repente, diz que a moda é o
samba, aí a gente faz um monte de shows, grava discos entende? Mas depois, resolve que
você não serve mais e aí você fica um tempão esquecido”, reflete.
Foi mais ou menos o que se passou com ela. Em 1980, gravou “Serra dos meus
sonhos dourados”; em 1982, “Sorriso Negro”; em 1983, “Alegria minha gente” e em
1985 “Ivone Lara”. Depois dessa seqüência de sucesso estrondoso, lançando quase um
disco por ano, Dona Ivone passaria mais de uma década sem gravar composições
inéditas. Ela atribui esse “esquecimento” à falta de espaço na imprensa especializada e a
91
um movimento natural da música. “Você vê o Zeca Pagodinho, por exemplo. Ele também
passou um bom tempo sem ser gravado, fazendo um show ou outros, e agora está
vendendo muito bem”, exemplifica.
Mas essa fase terminaria na metade dos anos 1990. Aproximavam-se os 80 anos
de vida e os 50 anos de carreira, comemorados em 1997. A partir de então, Dona Ivone
passou, a apresentar-se com freqüência no exterior. Em janeiro de 1996, fez tanto sucesso
entre os franceses que, dois anos mais tarde de apresentar-se em Paris, foi homenageada
no Festival Latino, promovido pela Eurodisney.
Em agosto de 1999, levou sua música à África, representando o Brasil no Festival
Panafest, em Ghana. O ano de 2000 ela passou quase inteiramente na Europa. Em junho,
mostrou suas composições no Festival de la Villette, em Paris. Neste mesmo mês, foram
os portugueses que assistiram à uma de suas apresentações, na Torre de Belém, em
Lisboa. Em julho ela festeve na Suíça, no tradicional Festival de Montreux e na
Alemanha, no Festival Viva Afro Brasil, em Tubingen. Em 2001, participou da
Brazilfest, em Nova York, e de um show promovido pelo governo de Benguela, em
Angola.
As homenagens também se deram no Brasil. Em comemoração aos 50 anos de
carreira, em 1997, a gravadora Sony Music lançou “Bodas de Ouro”, com a participação
de vários artistas interpretando sua canções. Djavan, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho,
Martinho da Vila, Gilberto Gil, Almir Guineto e Danilo Caymmi foram alguns dos
convidados.
Em outubro de 1999, Dona Ivone foi homenageada por sua cidade natal. Recebeu,
da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, a Medalha de Mérito Pedro Ernesto, criada
92
em 1980 para agraciar as personalidades de maior destaque no país em diversas áreas de
atuação.
Mas era mesmo a carreira na Europa que dava passos mais largos. Depois da série
de shows realizada no exterior, ela fechou contrato com o selo francês Luzafrica,
conhecido por lançar artistas da chamada “world music”. O novo disco, “Nasci para
sonhar e cantar”, com dez músicas inéditas e quatro regravações – inclusive a que dá
nome ao álbum – foi lançado nos países europeus em junho de 2001, um mês antes de
chegar à lojas brasileiras.
O CD foi muito bem recebido pela crítica especializada, e a compositora tornou-se
alvo de uma série de homenagens depois de seu lançamento. Em dezembro de 2001,
recebeu o prêmio da Academia Charles Cros, em Paris. Em 2002, foi a grande vencedora
do Prêmio Caras, patrocinado pela revista de mesmo nome e tido como a principal
premiação de música popular brasileira daquele ano. Foi contemplada, também nessa
ocasião, com o troféu de “melhor disco de samba”. Em novembro do mesmo ano ganhou,
ainda, o Prêmio Shell de Música Brasileira, entregue no Canecão – local escolhido para a
realização do show em que foram celebrados os seus 55 anos de carreira.
4. Ser Yvonne
As várias atividades que o sucesso como compositora exigem de Dona Ivone não
são as únicas de seu dia-a-dia. A idade e a profissão não a eximem de coordenar a vida de
toda a família. Certo dia, tentando marcar mais uma entrevista para esta dissertação,
tivemos dificuldades na escolha do local adequado, pois a casa dela estava em reforma, e
era a própria Dona Ivone quem cuidava da administração da obra. Conversamos na sala
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de uma gravadora, no Humaitá, onde Dona Ivone gravava uma das faixas de um álbum
em homenagem a Rosinha de Valença. Mesmo estando em meio ao trabalho de gravação
e a uma entrevista para essa dissertação, ela deixou escapar, entre uma pergunta e outra, a
grande preocupação com o prazo dado pelos responsáveis pela referida obra para o seu
término.
Com base nos diferentes processos de envelhecimento explicitados por Clarice
Ehlers Peixoto, e na observação da autora de que “o avançar da idade se desenrola
seguindo um percurso de vida socialmente estruturado”, podemos analisar a atual relação
de Dona Ivone com a família, a casa e o trabalho como uma conseqüência do papel por
ela desempenhado nessas diferentes esferas ao longo de toda a sua trajetória de vida (ver
Peixoto, 2004).
Do ponto de vista das personagens desta persquisa, a velhice não estaria
associada, mesmo da perspectiva dos mais jovens, ao declínio, mas ao melhor momento
do ciclo de vida. Dona ivone continua a desempenhar todas as atividades que exerceu
durante a juventude, com a mesma capacidade produtiva, e a compor com a mesma
freqüência e velocidade, contando, ainda, com a vantagem de que, agora, pode dedicar-se
profissionalmente apenas ao que mais gosta, sem se preocupar com as conseqüências
financeiras dessa escolha. Se, em nossa sociedade, a idade cronológica é um dos critérios
utilizados para determinar o status dos indivíduos, para Dona Ivone Lara, ela seria apenas
em mérito a mais a somar-se em seu já reconhecido desempenho como melodista e
cantora.
A partir do final da década de 1970, quando ela aproxima-se do que se
convencionou chamar “terceira idade”, a velhice começa a encarada, em alguns setores
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de nossa sociedade, como uma fase em que “o hedonismo, o prazer e a busca pela
realização pessoal tornam-se objetivos legítimos e desejáveis”, como demonstra Andréa
Moraes Alves em outro texto sobre envelhecimento feminino (ver Alves, 2005: pp 21).
No caso de Dona Ivone, em particular, podemos observar que essa realização pessoal está
mais ligada à atividade profissional de compositora do que à busca por lazer ou diversão.
Outra consideração importante a ser feita é que seu filho mais velho, Odir Lara da
Costa, de 57 anos, mora com ela. Depois do acidente de carro sofrido em 1975, Odir
aposentou-se por invalidez e recebe, da Previdência Social, um salário mínimo por mês.
Ele não se casou. É um “solteirão”, segundo a compositora, e, por isso continua a viver a
seu lado. Assim, a atividade de mãe nunca deixou de requisitar de Dona Ivone dedicação
em tempo integral. Apesar de o filho caçula ter se casado, ela continua convivendo com o
mais velho diariamente, e o ajuda financeiramente. “O que ele recebe de aposentadoria é
muito pouco, dá só para ajudar um pouco em casa. Mas continuo cuidando de tudo, como
sempre fiz. Não tenho como conseguir descanso, não, e nem quero isso para a minha
vida”. Há cerca de dois anos, Odir ficou com a saúde um pouco debilitada, engordou
muito e se descobriu diabético. Ivone tem passado boa parte do tempo dedicando-se a ele.
Três vezes por semana, conta com a ajuda de Neuza, uma empregada doméstica, mas nos
demais dias cozinha, faz a faxina da casa e cuida das roupas sozinha – ou com a ajuda da
nora e dos netos.
Assim, certas transformações esperadas nesta fase da vida não aconteceram com
Dona Ivone. Myrian Lins de Barros lembra que “o término das limitações profissionais e
familiares (a saída dos filhos da casa paterna/materna e, muitas vezes, a solidão) leva,
também, a uma liberação das normas comportamentais sexuadas, vinculadas a esses
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papéis”. Essa “liberação” não se deu com Ivone, portanto ela prolonga à terceira idade as
mesmas atividades e comportamentos de toda a vida adulta (ver Barros, 2004).
Barros fala, ainda em um tratamento da velhice da mulher, por parte de nossa
sociedade, “duplamente insignificante”, e conclui que há certos “privilégios” devotados
ao homem velho, que recebe uma atenção maior, visto que a aposentadoria, para ele, é
percebida como uma “mudança radical de vida – uma passagem de um mundo amplo e
público para um mundo doméstico e restrito”. A mulher, em contrapartida, alcança, na
velhice, “o último estágio de um continuum sempre ligado à esfera doméstica” (ver
Barros, 1981). De fato, ela preserva o papel de avó, mãe e dona de casa, mesmo passando
dos 80 anos, e continua a exercer um papel fundamental para que as atividades do lar
transcorram de maneira adequada.
Andréa Moraes Alves fala em duas teorias sobre envelhecimento que funcionam
como bases do discurso gerontológico. “A primeira, conhecida como teoria do
desengajamento, advoga que um envelhecimento ‘normal’ implica a diminuição
progressiva dos papéis sociais do indivíduo e redução de suas interações, transformando a
natureza de suas relações com o mundo social” (Alves, 2005: pp 21).
A segunda teoria, a da atividade, defende que “um envelhecimento bem sucedido
deve compensar as perdas de certos papéis e habilidades pela intensificação de outros”
(ver Alves, 2005: pp 21). Seria basicamente o que fazem as mulheres estudadas pela
autora em A dama e o cavalheiro, que freqüentam bailes de dança de salão com essa
finalidade (ver Alves, 2004).
A velhice de Dona Ivone, todavia, não se encaixaria em nenhum dos dois modelos
de envelhecimento mencionados. Ela não permitiu que houvesse, em nenhuma medida,
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uma diminuição nos seus papéis sociais, tampouco substituiu tais habilidades,
intensificando outras. A compositora faz tantos shows, ou até mais, do que costumava
fazer na sua juventude. A mãe, avó e dona de casa continuam atuantes da mesma
maneira, ou até mais, do que quando Oscar Costa ainda era vivo.
Há cerca de dez anos, Odir apresentou à mãe e ao irmão uma filha já crescida que
ele tivera com uma namorada. Simone é a neta mais velha de Dona Ivone. Freqüenta sua
casa e tem uma boa relação com a família. Apesar de morar em Inhaúma, no mesmo
bairro do pai e da avó, não os encontra com tanta regularidade quanto os filhos e a mulher
do caçula.
Alfredo Lara da Costa, hoje com 55 anos, casou-se com Eliana e teve dois filhos,
André Luiz, hoje com 25 anos, e Jorge Augusto, com 22. Ambos têm uma relação muito
próxima com Dona Ivone. Mudaram-se há pouco tempo para o bairro de Osvaldo Cruz,
mas continuam a ir com freqüência a Inhaúma, visitar a avó. Jorge pretende seguir a
mesma carreira do pai. Entrou para o Exército, foi pára-quedista e agora estuda para ser
admitido na Escola Naval. Alfredo aposentou-se na carreira militar.
O mais velho, André, é o mais próximo de Dona Ivone. É ele quem a leva aos
compromissos – como shows e gravações – destinando boa parte de seu tempo aos
cuidados com a avó. Sempre gostou de samba – ao contrario do irmão, fã de “hip hop” –
e nos últimos anos começou se interessar-se pelo estudo de teoria musical. Matriculou-se
na Escola Portátil de Música, fundada pelo parceiro de Ivone, Hermínio Bello de
Carvalho, e se dedica muito às aulas de cavaquinho. “Eu procuro estudar todos os dias,
quantas horas conseguir. Temos aulas com a Luciana Rabello, o Vanderson Martins, que
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são excelentes instrumentistas, e o que eu mais gosto de fazer é mesmo tocar, por isso sei
que tenho que me dedicar muito”, diz o rapaz.
O curioso é que, assim como a avó, apesar de sempre ter gostado muito de
música, André achou mais seguro seguir outra profissão. Prestou vestibular e foi
aprovado no curso de Educação Física, da Universidade Gama Filho. Formou-se em 2004
e desde então dá aulas em uma academia de ginástica, em um projeto do Sesc, em uma
organização não-governamental e ainda é personal trainer, dá aulas particulares.
Brincando, perguntei se ele pretende fazer como a avó, e só dedicar-se à música quando
se aposentasse. Ele me respondeu: “minha vontade é ir para a música, fazer isso da minha
vida. Gosto de compor, penso muito em melodias, adoro tocar cavaquinho, mas por
enquanto não dá para eu fazer só isso”. André admite que nunca sofreu as dificuldades
financeiras que a avó e os irmãos dela enfrentaram, mas defende que seria muito
arriscado deixar o trabalho sem ter estabilidade na carreira de músico. “Não posso pensar
em trocar o certo pelo duvidoso. É uma escolha muito arriscada, muito difícil. Tenho o
exemplo da minha avó em casa. Hoje eu me vejo passando pela mesma coisa. Fico
olhando para ela e não sei como ela agüenta fazer tudo ao mesmo tempo. É muito difícil,
cansativo, mas a vida dela e todo o esforço que fez pela família e por ela mesma me
servem de inspiração quando penso em desistir de uma coisa ou de outra.”
No ano passado, André compôs sua primeira canção em parceria com Dona Ivone
Lara e Bruno Castro que, coincidentemente, também concilia a atividade de músico com
o trabalho de professor de educação física. “Investida fatal” será gravada pelo Quarteto
em Cy, em seu próximo álbum. “Quem começou com a idéia foi minha avó, que me
chamou e disse que tinha feito uma melodia para mim. Ouvi, achei muito bonita e
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continuei a melodia. Mostrei para o Bruno, com um pedacinho da letra e o Bruno fez o
resto. A gente gravou, pensou que não fosse vingar, mas no final do ano passado veio a
notícia de que ela seria gravada. Fiquei muito feliz.”
O jovem prefere não fazer muitos planos porque diz ainda não saber se “tem
dom”. Conta que, de toda a família, ele é o único a se interessar pelo samba, e isso é uma
grande responsabilidade. Quando, no entanto, fala sobre sua maneira de compor, o
método parece hereditário: “Por enquanto, sigo muito a minha intuição. As melodias
vêm, aparecem assim, de repente. Tenho várias guardadas e quero mostrar para muita
gente antes de mostrar para a minha avó. Para ela tem que ser coisa muito boa, muito
fina, senão ela não gosta.”
5. Herdeiras
Além, é claro, de André, que Dona Ivone aponta como seu herdeiro natural no
samba, em plena atividade neste começo de século XXI, a artista não passa mais por
aquela sensação de olhar para o lado e não ver nenhuma outra mulher despontar na
atividade de compositora. Nos últimos anos, a imprensa especializada em música tem
apresentado reportagens especulando sobre quem seriam as possíveis sucessoras de Dona
Ivone. Ela tem suas favoritas.
“Uma que eu adoro é a Lecy Brandão. Sempre gostei muito das melodias delas,
mas acho que ela é muito prejudicada, porque o preconceito com as mulheres continua.
Fico triste em ver uma pessoa como ela, que é reconhecida, que todo mundo respeita, não
conseguir emplacar um samba-enredo. Acho que isso vai muito da escola, porque eu
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mesma enfrentei preconceito, no Império Serrano, em 1965, mas muito menos do que ela
enfrenta hoje. Aquilo de o Império dizer que lançaria uma novidade, que eu era a
novidade, isso não acontece mais hoje. Ela faz um samba bonito, chega perto de ganhar,
mas na hora é sempre um homem que ganha, mesmo que o samba seja pior”, defende.
Lecy Brandão foi, como Dona Ivone, educada em redutos do samba. Nasceu em
Madureira e foi criada em Vila Isabel. Ela começou a cantar e a compor nos anos 60 e em
1968 passou a ser mais conhecida do grande público, após ganhar um prêmio no
programa de televisão “A Grande Chance”, da extinta TV Tupi. Logo depois, em 1972,
entrou para a ala dos compositores da Mangueira. Era a primeira mulher a fazer parte do
grupo.
Participou de vários festivais de música brasileira e, em 1974, gravou um
compacto com canções de sua autoria, a convite do crítico musical e jornalista, Sérgio
Cabral. Ao longo de sua carreira, participou de uma série de movimentos contra o
preconceito, fosse ele dirigido a negros, mulheres, gays ou pobres. Nunca ganhou um
samba-enredo, apesar de ter, por várias vezes, chegado às finais.
O principal parceiro de Dona Ivone Lara durante sua carreira, Délcio Carvalho,
aponta outra compositora – de menor expressão que Lecy Bradão – como uma de suas
prováveis sucessoras: Telma Tavares, que recentemente gravou seu primeiro disco. Além
de parcerias com Délcio, ela compôs, também, com outros homens, mas nunca compôs
com outra mulher. Telma relata que, para ela, o processo de produção artística é como um
ritual: “É um grande exercício para o compositor, sabe? Sou uma compositora instintiva,
componho pela minha inspiração e não consigo fazer trabalho nenhum por encomenda,
por isso acho que teria muita dificuldade em fazer um samba-enredo como Dona Ivone,
100
por exemplo”. Em comum com esta última, o fato de encarar a profissão como um dom.
“é uma coisa meio mágica, na verdade, e talvez o Délcio tenha falado de mim porque sou
mais melodista que letrista, como a Dona” Ivone. Às vezes componho com o violão, às
vezes, como ela, sem instrumento nenhum”.
Sua relação com Délcio Carvalho é parecida com a que ele mantinha com Dona
Ivone. “Normalmente eu dou total liberdade e tenho parceiros que me dão liberdade para
mudar se eu quiser. A gente vai mexendo até chegar num consenso. Muitas vezes ele
manda uma letra e eu acha linda, mas não tenho uma idéia da melodia naquele momento.
Em outros casos, recebo a letra e já leio com a música. Mas o mais comum é pensar numa
melodia e ele colocar a letra”.
Telma Tavares trabalha, agora, em seu segundo disco. Ela teve músicas de sua
autoria gravadas por Alcione e Osvaldinho do Acordeon, mas afirma ainda enfrentar
resistências pelo fato de ser mulher. “Nunca é fácil para a mulher, o mundo da música é
bastante machista, vide o que fizeram com compositoras de alto nível como a Fátima
Guedes e a Sueli Costa, que desapareceram. O samba é ainda pior. Obviamente que não é
uma coisa genética, a história conta exatamente o que nós mulheres vivemos no decorrer
dos anos. A música já começou com uma coisa masculina. A mulher, normalmente, é
muito mais criativa, tem lamentos que o homem não tem, mas não dá para entender
porque é tão difícil dar certo”, arrisca.
Para Telma, o caso de Dona Ivone não configuraria uma prova de que o universo
da música não é preconceituoso, muito pelo contrário. “Como compositora, acho que ela
aconteceu tarde. Mesmo assim, ela deu dignidade ao mundo da composição de samba.
Acho que hoje já é menos pior que na época dela. É evolutivo, é impossível negar que
101
mulher seja capaz de tocar um instrumento bem, de compor bem. Agora estão aparecendo
algumas pessoas como as meninas do grupo O Roda”.
“O Roda” é o nome abreviado, que acabou sendo incorporado como oficial, do
grupo “Roda de Saia”, formado em 1996, por cinco jovens cariocas que se conheciam de
rodas em redutos de samba do Rio de Janeiro. No começo da carreira, elas interpretavam
sucessos de compositores como Zeca Pagodinho e Paulinho da Viola. Foram
apadrinhadas por Martinho da Vila, que as convidou para tocar em seu bar, o Butiquim
do Martinho, em Vila Isabel. A iniciativa deu certo e as meninas continuaram se
apresentando por mais de dois anos no local. Depois de alguns shows em bares e casas de
espetáculos da Lapa, no Rio de Janeiro, Bianca Calcagni (voz e percussão), Roberta
Nistra (voz e cavaquinho), Carol D’Ávila (flauta), Geórgia Câmara (percussão) e Ana
Costa (voz e violão) lançaram o primeiro disco em 2000. No álbum em questão, havia
canções de Jorge Aragão, Wilson Moreira, Arlindo Cruz e Martinho da Vila, mas as
meninas também reservaram espaço para canções de sua própria autoria. Em 2003,
lançaram “Coisas do amor”, também com músicas delas e de artistas já consagrados.
Ana Costa é a principal compositora do grupo e agora prepara o primeiro disco
solo. A jovem não nega a importância de Dona Ivone em suas composições, mas diz-se
influenciada também por cantoras e compositoras de sua geração. “Acho que neste
momento minha principal fonte de inspiração vem das músicas da Mart’nália, com quem
toco de vez em quando”.
Mart’nália é filha do sambista Martinho da Vila. Estreou cedo, aos 16 anos,
fazendo backing vocal em um disco do pai. Em 1987, lançou o primeiro disco,
Mart’nália, com faixas de outros compositores e a sua “Na mão de Deus”. Durante a
102
década de 90, participou como percussionista da banda Batacotô e acompanhou Ivan Lins
no espetáculo “A cor do pôr-do-sol”, no Canecão.
Mas foi somente em 2002, aos 37 anos, que ela tornou-se mais conhecida do
grande público, com o disco “Pé de meu samba”, cujo título é o nome de uma
composição de Caetano Veloso, feita especialmente para ela. No álbum, havia duas
músicas de autoria da compositora: “Beco” e “Chega”.
Finalmente, haveria, ainda, pelo menos outras duas outras compositoras apontadas
como possíveis sucessoras de Dona Ivone Lara. Nilze Carvalho, filha de um trompetista,
era levada pelo pai às rodas de samba desde muito cedo. Aos sete anos já participava das
feijoadas da Portela. Gravou o primeiro disco em 1981, aos 12 anos. Aos 15, viajava ao
exterior. Apresentou-se nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Em 1992 foi morar no
Japão, onde morou por sete anos, e ganhou a vida apresentando-se em uma churrascaria.
O último álbum foi lançado este ano. “Estava faltando você”, que inclui músicas
de compositores “da antiga”, como ela gosta de dizer – inclusive “Candeeiro da vovó”, de
Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho. Suas, ela gravou três canções, parcerias com o pai,
Cristino Ricardo.
Teresa Cristina orgulha-se da comparação com Dona Ivone Lara. Admite a
grande influência da compositora em sua vida, e não apenas musicalmente. “A história de
vida dela é uma coisa para se conhecer mesmo, se admirar. Não é qualquer um que
consegue conquistar o espaço que ela conseguiu. Hoje ainda é difícil conquistar
reconhecimento no mundo da música mas, se ficou um pouquinho mais fácil que no
passado, certamente foi por causa dela”.
103
A cantora trabalhou muito antes de poder dedicar-se integralmente à música. Foi
fiscal do Departamento de Trânsito – o Detran – manicure e vendedora de cosméticos,
entre outras coisas. Começou freqüentando a casa da Tia Surica, uma das mais antigas
representantes da Portela, cujas famosas rodas de samba que organiza acontecem, pelo
menos, uma vez por mês. Em 1995, Teresa Cristina passou a apresentar-se em casas de
espetáculos do Rio de Janeiro e sua carreira decolou. Lançou três álbuns com seu grupo,
o Semente e participou da gravação de discos de outros artistas, como o da própria Surica
e o do Cordão do Boitatá.
Teresa Cristina orgulha-se da influência que os antigos compositores exercem em
sua obra, e não esconde gostar de pesquisar sobre artistas e canções da época em que o
ritmo ainda não era tido como um dos principais produtos culturais brasileiros. No livro
que publicaram sobre os novos nomes do samba, Aldir Blanc, Hugo Sukman e Luiz
Fernando Vianna retratam a artista como alguém que reflete, nas próprias composições, a
admiração que sente pelos sambas antigos. Uma das canções mencionadas pelos autores é
“Candeeiro”, que lhes chama atenção justamente pelo título, remetendo-se a um objeto
raríssimo nos meios urbanos, nos dias atuais.
Mas a compositora não encara a observação como uma crítica. “Se for para fazer
samba, quero que seja mesmo como se fazia. Claro que colocando a minha história, as
minhas questões, mas acho que o samba de verdade, Dona Ivone fazia quando começou e
faz até hoje, em pleno ano de 2005”.
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Considerações finais
Pensar no significado da categoria “samba de raiz”, ou “samba de verdade”, como
disse a compositora Teresa Cristina, não é um dos objetivos desta dissertação. Mas o
termo, já desgastado pelos jornalistas especializados em música e pelos próprios artistas,
remete a alguns fatores essenciais para a compreensão deste trabalho. Tratei, aqui, da
trajetória de uma compositora do dito “samba de verdade”, que em sua longa carreira,
relacionou-se com diferentes grupos e vivenciou momentos muito distintos da história da
música brasileira – e do samba em especial.
A pesquisa para elaboração deste trabalho centrou-se, essencialmente, na
biografia da compositora, considerando não apenas sua inserção em grande parte dos
movimentos culturais que contribuíram para alterar a visão do brasileiro a respeito de sua
produção musical – e, conseqüentemente, a respeito de si mesmo – mas também seu
desempenho individual, a descendência negra, o fato de ser mulher, dona de casa,
funcionária pública, mãe, esposa, idosa, compositora de sucesso etc.
Parti do pressuposto de que, fazendo uma espécie de micro-antropologia – ao me
debruçar sobre a complexa trajetória de um determinado indivíduo – seria possível
alcançar uma visão despretensiosa, mas edificante, de determinadas nuances da vida
social. Tal complexidade adviria, a meu ver, não apenas da trajetória de um indivíduo
singular, mas das relações, dos encontros entre diferentes visões de mundo e de universos
que talvez sequer se tangenciassem, não fosse atuação desse indivíduo como mediador.
Observando a trajetória de Dona Ivone Lara, me ocorre pensar, então, se não seria
o samba de raiz mais um representante da mistura brasileira – e não da “pureza”, como
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sustentam alguns de seus defensores. Tentei fugir do que considero uma “armadilha”: a
de separar a vida da obra da artista, o que poderia ocasionar um falso afastamento da vida
social, na qual ela atua cotidianamente como um indivíduo ativo, participante, e não
como um “ídolo” inatingível pelos demais.
Esse paradoxo entre a mistura e a pureza já era questionado na dissertação de
mestrado sobre Caetano Veloso, apresentada por Santuza Cambraia Naves, em 1988, no
Museu Nacional. Neste trabalho, a sinaliza o movimento de inclusão presente na música
contemporânea, uma busca pela mistura de diferentes estilos por parte dos tropicalistas,
mas também por parte de movimentos como a bossa-nova, o rock e o bebop. A isso, ela
opunha a “postura fechada dos sambistas ortodoxos, por exemplo, que trabalham dentro
de um campo circunscrito de temática, instrumentos e ritmos, para garantir a ‘pureza’ e a
‘autenticidade’ de seu produto indiferenciado com todos os aspectos captáveis do
universo brasileiro” (ver Conclusão de Naves, 1988).
Percorrendo os dados sobre a vida de Yvonne da Silva Lara (mais tarde
“rebatizada” de Dona Ivone Lara), colhidos nas entrevistas que fiz com ela (foram pelo
menos oito, com horas e mais horas de duração), com familiares, empresária, parceiros,
admiradores e sambistas, propus-me a mostrar de que forma foram construídas algumas
das divisões hierárquicas com as quais convivemos, ainda nos dias de hoje, em nossa
sociedade. Para entender as diferentes fases da vida de Dona Ivone, foi preciso pesquisar
o que se passava na sociedade brasileira em cada uma dessas etapas, e, da mesma forma,
para entender os acontecimentos que transcorriam em nosso país, me foi muito útil
conhecer a história da compositora e as escolhas que assumiu.
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O primeiro questionamento seria em torno das relações entre gêneros em nosso
país. Centrei-me no universo do samba no subúrbio do Rio de Janeiro, local onde muitos
acreditam que o ritmo tenha sido criado (há controvérsias sobre o nascimento do samba
ter-se dado no Rio ou na Bahia) e onde, até os dias de hoje, celebra-se o desfile das
escolas, no carnaval, um dos rituais mais importantes do país. Se, como concluiu
Hermano Vianna (ver Vianna, 1995), o samba carioca continua a ser um “agente
unificador nacional”, isso não se deve ao fato de ele preservar a pureza, mas. Muito pelo
contrário, de abarcar a mistura.
Dona Ivone Lara é tida, hoje, como uma das maiores compositoras de samba do
Brasil, entre homens e mulheres. É cultuada como diva, faz shows em várias cidades – e
no exterior – e seus discos têm uma vendagem bastante satisfatória. Até a obtenção da
fama, todavia, um longo caminho foi percorrido e, mesmo assim, o reconhecimento
chegou na maturidade. Seu primeiro álbum foi gravado quando ela tinha 56 anos de
idade, apesar de a primeira canção ter sido composta muito tempo antes, ainda na
infância, aos 12. Trata-se de uma mulher negra, que cedo ficou órfã de pai e mãe, e que
só alcançou a consagração como musicista depois de se aposentar como enfermeira e
assistente social.
Meu principal objetivo seria, aqui, o de tentar entender que fenômenos e que
traços de nossa sociedade ajudaram a compor a trajetória de Dona Ivone, a primeira
mulher no mundo do samba a poder assinar suas composições – e por elas ser
reconhecida, ainda que tardiamente. O que teria feito, o que ela individualmente detém
para ter-se tornado a pioneira na conquista de um espaço nessse universo, até então,
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exclusivamente masculino? E, ao mesmo tempo, o que a teria levado a conquistá-lo tão
tardiamente e a não acreditar que a música pudesse tornar-se sua profissão?
Uma das primeiras barreiras mencionadas por Dona Ivone foi o fato de ser
mulher. Ela chamou minha atenção para o grande número de homens compositores no
Brasil, e para o ínfimo número de mulheres. Essa situação – como demonstrado neste
trabalho – fez-se presente não apenas no mundo do samba carioca, mas em muitos outros
universos.
Conversei com algumas compositoras que despontaram nos últimos anos e elas
me confirmaram a dificuldade. Telma Tavares ampliou essa constatação a outros setores
de nossa sociedade, dizendo ter sempre se deparado com o preconceito, mesmo fora do
meio do samba – considerado extremamente machista pelas mulheres que dele tentam
fazer parte dele.
As primeiras interpretações de canções de Dona Ivone em rodas de samba não
foram apresentadas como sendo de sua autoria, mas como obras do primo, mestre
Fuleiro, que além de influente na Império Serrano, era homem, podendo mostrar suas
músicas a qualquer momento, sem temor pelas possíveis retaliações. Naquela época, as
agremiações abarcavam famílias inteiras em seu núcleo e a presença da prima de mestre
Fuleiro entre os bambas foi, aos poucos, sendo por ele sugerida e aceita pelo grupo. Até
que um dia, ele finalmente revelou a autora daquelas e de tantas outras obras e Dona
Ivone – ainda Yvonne na ocasião – tornou-se a primeira mulher a ingressar na ala dos
compositores de uma escola.
Pensando no contexto da época, o fato de ser mulher atrapalhou, sem dúvida, sua
consagração como artista popular. A bisavó de Dona Ivone era escrava, sua avó já nasce
108
apos a promulgação da Lei do Ventre Livre. Tendo antepassados que vivenciaram a
relação de subordinação da mulher negra no interior da estrutura patriarcal. Ela sofreu na
pele as conseqüências da morosidade em alterarem-se as relações de força entre casa-
grande e senzala, já há muito estabelecidas – assim como descrito por Gilberto Freyre e
Florestan Fernandes.
Se, por um lado, a mulher negra ainda podia ser vista como inferior, subalterna,
por outro, Dona Ivone costumava freqüentar espaços onde o gênero feminino não contava
simplesmente com a possibilidade ascensão, mas liderava. Os terreiros de candomblé
constituíam uma dessas esferas.
Nesse universo com o qual Dona Ivone se relacionou de maneira muito próxima,
a principal comandante do grupo é a mãe-de-santo. Yvonne casou-se com Oscar Costa,
filho de um pai e de uma mãe-de-santos que, além de figuras proeminentes no terreiro,
tinham grande destaque também no carnaval. Além disso, a compositora costumava
freqüentar, desde a juventude, as rodas de jongo, manifestação cultural que confere
grande valor à preservação das tradições afro-brasileiras.
Sem dúvida, na visão de Dona Ivone Lara e das demais musicistas entrevistadas
para este trabalho, o universo do samba era – e continua, de certa forma, sendo, até hoje –
bastante machista. Segundo a compositora, o preconceito teria atrapalhado sua ascensão
como artista. Por outro lado, parece-me evidente que, nesse mesmo meio, a influência de
tradições afro-brasileiras das camadas populares – nas quais cabem às mulheres papéis de
destaque – ajudou no seu reconhecimento como personalidade pública.
Pensando no social como um conjunto de relações estabelecidas entre os diversos
elementos que o compõem – e não perdendo de vista a idéia de Simmel de que essas
109
relações estão constantemente em processo, modificando-se, construindo-se e destruindo-
se – poderíamos vislumbrar esse movimento na trajetória de Dona Ivone: o samba como
elemento instaurandor dessa sociabilidade.
Apesar da desigualdade social e da hierarquia presentes na sociedade brasileira, a
mobilidade social, não está totalmente descartada, como vimos no caso estudado. O
universo do samba, embora não autônomo, cria e recria suas próprias regras de
sociabilidade. Na hora em que se está na roda, o fato de ser negro deixa de configurar um
elemento de opressão para se tornar um mérito. A herança escrava jamais é apontada
como motivo de vergonha ou de embaraço, mas exaltada com grande orgulho. O
preconceito de que Dona Ivone reclama ter sido vítima pode ter atrapalhado sua carreira
no sentido de dificultar seu acesso ao mercado fonográfico no qual, ainda segundo a
própria, existiam fortes resistências às tradições afro-brasileiras. Apesar de ter gravado
mais de dez discos, ela nunca integrou o chamado main stream – a fatia das gravadoras
ocupada pelos grandes nomes da música (leia-se, os que vendem maior número de cópias
e cujas músicas estão entre as mais tocadas nas rádios).
A trajetória da compositora – que perdeu os pais muito nova, tendo vivido boa
parte da infância e da adolescência em um colégio interno exclusivo para moças – foi
marcada pela busca da independência. No colégio, convivia com meninas de classes e
famílias distintas, e foi estimulada a buscar sua individualidade – fosse através da
participação no orfeão do Orsina da Fonseca, fosse obtendo as melhores notas da turma.
A época em que viveu no internato consistiu justamente o momento em que se daria a
transição da visão da mulher, como mãe e espoa, para aquela que buscaria na formação
educacional e profissional a independência.
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Não podemos esquecer que tratamos, aqui, não de uma intérprete, mas de uma
autora, e é justamente isso o que a faz singular, pioneira. Ao longo da história, a produção
artística sempre esteve ligada à criação coletiva, mas também a movimentos
individualistas, como lembra nos Gilberto Velho em Autoria e criação artística (ver
Velho, 2004). Para o autor, a arte é sempre uma ação coletiva, na medida em que “o
artista como indivíduo negocia e elabora sua identidade singular dentro de uma cultura,
de códigos e de relações sociais de que faz parte e que transforma com sua obra. A
condição do artista como sujeito criador só pode ser devidamente compreendida se
pudermos avaliar o espaço sociocultural (tradições, costumes, padrões, valores) em que
se move, não como um autômato, mas como reinventor de códigos e linguagens”.
Numa época em que a maioria das mulheres se casava cedo e muitas, em seu
bairro, dedicavam-se às “prendas do lar”, Yvonne optou por seguir uma profissão que lhe
conferisse estabilidade financeira. Formou-se enfermeira, depois, assistente social, tendo
dedicado-se ao emprego de funcionária pública até aposentar-se. Só então, pôde entregar-
se exclusivamente à sua verdadeira paixão: a composição.
Depois de casar-se, aos 26 anos, ao contrário da maiora das mulheres de sua
origem social, Dona Ivone não foi sustentada pelo marido. Na realidade, Oscar não
ganhava dinheiro suficiente com os trabalhos esporádicos que arrumava e a compositora
– além de mãe, esposa e dona de casa – sempre desempenhou também o papel de chefe
de família. Para ser ouvida e acolhida, precisou traçar estratégias de conquista e sedução,
nos termos de Goffman (ver Goffman, 1985). Teve de se mostrar especial, singular, e isso
incluía um vestuário próprio, melodias diferentes e uma conduta organizada para atingir
seu objetivo.
111
Entre as estratégias usadas por Yvonne estavam: mentir sobre a autoria de suas
músicas – apresentadas pelo primo Fuleiro como sendo dele – tirar férias no mês de
fevereiro, para afastar-se o mínimo possível da escola e contar com os amigos homens,
compositores, como parceiros – o que, no princípio, facilitou sua aceitação.
O que teria feito, então, nossa compositora tornar-se uma das principais
expressões da brasilidade – a despeito de ser mulher, negra e já uma senhora de ecrta
idade? Outra observação, presente no já mencionado trabalho de Naves sobre Caetano
Veloso poderia servir como uma pista para entendermos que – assim como ressaltado por
Gilberto Velho (ver Velho, 2005) – a assunção da autoria não dependia exclusivamente
de um movimento interno de Dona Ivone, mas de uma confluência de fatores externos
que possibilitaram sua ascensão no meio musical. Na época em que a compositora
começa a se destacar e grava seus primeiros discos, nosso país atravessava uma fase de
notável transformação social. Naves afirma, remetendo a Octavio Paz (ver Naves, 1988 e
Paz, 1984) – que a partir dos anos 60, “a ênfase no postulado da universalidade e
igualdade é substituída por uma visão pluralista, em que a diferença – de raça, faixa
etária, sexo etc – é cada vez mais valorizada”. Sua conclusão advém da observação de
movimentos negros, feministas, homossexuais e até de associações de bairros, que
naquela ocasião, ganhavam grande visibiblidade.
Dava-se, assim, uma significativa mudança de perspectiva na sociedade brasileira,
que abria-se ao novo e passava a perceber a diferença como um instrumento de
identidade nacional. Era o momento certo para que figuras semelhantes à Dona Ivone
pudessem destacar-se. Mas aí, teríamos uma nova questão: por que somente ela
despontou? Aí, sim, a resposta parece residir na postura individual da compositora; a da
112
matriarca, a da mulher que acreditava em sua obra não teve medo de se expor – mesmo
tendo usado, no princípio, o nome de seu primo como referência. Dona Ivone se
metamorfoseia constantemente em dona de casa, assistente social, mãe e na personagem
que mais exige seu empenho: a de artista.
Aos 84 anos, ela não pensa em se aposentar mais uma vez. A relação com o palco
é bem mais do que uma profissão, do que mera necessidade financeira. Ser diva, ser
artista, exige de Dona Ivone a manutenção da forma física, da beleza, da vaidade. É no
samba que ela se sente prolongando a juventude, participando da vida social exatamente
como há décadas atrás.
Continuar cantando e se apresentando em exaustivas turnês pelo Brasil e pelo
exterior significa para Dona Ivone – muito mais do que cansaço – a prórpia reafirmação
da vida. Ela criou para si um pedestal no qual se vê diferente dos demais, em uma
posição de status finalmente alçada, depois de tantos anos entre estratégias e trabalhos.
Sua transformação de dona de casa em diva implica uma proximidade com a beleza (uso
de roupas, cabelo e maquiagem especiais para a ocasião), com a juventude – marcada em
sua voz firme – e a capacidade de exibir seu corpo em passos de samba, presentes em sua
mais tenra infância e nas mais recentes apresentações.
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Anexos
Brevíssimas biografias de artistas citados neste trabalho
Adoniran Barbosa – Nascido em Valinhos, no interior de São Paulo, em 1910, é o ícone
maior do samba paulista. Filho de imigrantes italianos erafazia, em suas canções, uma
epécie de crônica da vida de sua cidade. Autor de grandes clássicos da nossa música,
como “Tiro ao Álvaro”, “Saudosa Maloca” e “Trem das Onze”.
Adriana Calcanhotto – O último disco da cantora gaúcha foi dedicado ao público
infantil, mas ela fez carreira com álbuns de música popular, destacando-se composições
suas. O primeiro álbum foi gravado em 1990. Já lançou outros seis desde então.
Alcione – Cantora, instrumentista e compositora, a maranhense entrou no meio musical
aprendendo a tocar instrumentos de sopro. Tocava em uma orquestra de jazz até que um
dia substituiu o crooner, que estava rouco. Marrom gravou e vendeu uma série de discos
de samba, pagode e música romântica.
Almir Guineto – Um dos íncones do pagode e da malandragem, nasceu em 1946, no Rio
de Janeiro. Na década de 1970, fez parte do grupo de compositores que freqüentavam o
Bloco Carnavalesco Cacique de Ramos. Na mesma época, inventou um instrumento
híbrido, colocando num banjo o braço do cavaquinho. Até hoje, a criação é usada no
samba.
Ângela Maria – Nascida em 1928, sonhava desde criança em ser cantora de rádio e tinha
como inspiração Dalva de Oliveira, um sucesso na época. Na década de 50 gravou uma
série de discos e sua voz tornou-se uma referência.
Angela Ro Ro – Nascida no Rio em 1949, começou a carreira dando “canjas” em bares
do Rio. Fez carreira em um universo musical bastante diferente do samba: o rock. Em
1974, participou de festivais do gênero e se consagrou como compositora com “Tola foi
você”, sua primeira musica a tocar nas rádios e “Amor, meu grande amor”, com letra de
Ana Terra.
Araci de Almeida – Apontada como uma das cantoras de samba do país, nasceu no Rio
de Janeiro em 1914 e morreu em 1988. Gravou seu primeiro disco na década de 1930 e é
considerada até hoje uma das maiores intérpretes de Noel Rosa.
Assis Valente – Nascido em 1911, começou a compor sambas no início dos anos 30. O
auge de sua carreira foi em 1940, mas após a notícia de que ele teria tentado se matar, se
jogando o alto do Corcovado, viu a fama se afastar. Em 1958, desesperado com sua
situação financeira, suicidou-se ingerindo formicida. Entre os amiores sucessos, “E o
mundo não de acabou” e “Camisa listrada”, ambas gravadas por Carmen Miranda.
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Ataulfo Alves – Nascido em 1909, o compositor começou a trabalhar ainda menino para
ajudar a mãe no sustento da casa. Com 18 anos, deixou o interior de Minas Gerais para
trabalhar no Rio de Janeiro. Foi sambistas de maior sucesso dos anos 1940 e 1950.
Primava pela elegância. Seu maior sucesos foi “Ai, que saudade da Amelia”, parceria
com Mário Lago.
Beth Carvalho – Carioca, nascida em 1946, começou a carreira tocando bossa-nova, mas
logo se apaixonou pelo samba. Gravou vários discos e até hoje é uma das cantoras mais
atuantes no meio.
Carmen Miranda – A pequena notável nasceu em Portugal, mas mudou-se para o Brasil
com apenas 18 meses. Cantora, atriz e dançarina, conquistou o Brasil e também o
exterior. Tornou-se um mito.
Cartola – Nascido em 1908, no Rio de Janeiro, o grande compositor da Estação Primeira
de Mangueira fundo, em 1925, com o amigo e parceiro Carlos Cachaça, o Bloco dos
Arengueiros, que levou à criaçãoda escola de samba. Muitos de seus sambas foram
imortalizados na sua prórpia voz e na de outros autores. Destaque para “As rosas não
falam”, “Acontece” e “Cordas de Aço”, que tiveram várias regravações.
Clara Nunes – Nascida em 1942, ganhou o primeiro prêmio como cantora aos dez anos.
Não parou mais. Em 1966, a mineira já estava morando no Rio, e gravou seu primeiro
disco. Participou de uma série de festivais, dedicando-se, sobretudo, à gravação de
sambas. Morreu em 1983 após uma cirurgia.
Elis Regina – Apontada ate os dias de hoje como uma das maiores cantoras brasileiras de
todos os tempos, a “Pimentinha”, como era conhecida ar hospitalizado. Nasceu em 1945
e faleceu em 1982, deixando uma vasta obra.
Emilinha Borba – Nascida no Rio de Janeiro, em 1923, tinha cantoras do rádio como
Carmen Miranda como grande inspiração. Ela prórpia se tornou um ícone da música
brasileira, especialmente do rádio. Faleceu em outubro de 2005.
Fátima Guedes – Nascida no Rio de Janeiro em 1958, começou a compor aos 15 anos.
Fez trilha musicias para peças de teatro e participou de muitos fetivais, ganhando alguns
prêmios. Apesar de ter gravado mais de dez discos, nunca chegou a ser um sucesso de
vendas.
Ismael Silva – Nascido em 1905 na comunidade de pescadores de Jurujuba, na Baía de
Guanabara, ficou órfão de pai cedo e, por isso, mudou-se com a mãe para o Rio. Compôs
seu primeiro samba, "Já desisti", aos 15 anos. A partir da década de 1920, passou a
freqüentar bares da cidade. Boêmio, compôs dezenas de sambas.
Joyce – Cantora e compositora, atualmente faz muito sucesso fora do Brasil,
especialmente no Japão. Fez suas primeiras gravações na década de 60 e entre as
principais composições está a canção “Feminina”.
115
Linda Batista – Famosa pelo carisma, mas também era conhecida por ser temperamental
e excêntrica. Em 1959, recebeu da UBC e da Sbacem o troféu Noel Rosa. Na década de
1960, porém, começou a se distanciar da carreira de cantora. Nos anos 1980, parou de
trabalhar, recolhendo-se à companhia das irmãs, em seu apartamento em Copacabana, o
último imóvel que lhes sobrou. Nasceu em 1919 e faleceu em 1988.
Maria Rita – Filha de Elis Regina e do compositor, instrumentista e arranjador César
Camargo Mariano tem dois discos gravados como intérprete, sempre com composições
de outros artistas. Ambos venderam mais de 500 mil cópias.
Marisa Monte – Com a direção de Nslon Motta, a cantora, compositora e produtora
musical lançou, em 1987, o show “Veludo Azul” . De lá para cá, lançou seis álbuns,
tornando-se sucesso de público e crítica. Considerada uma das maiores cantoras
brasileiras da atualidade, tem composições próprias, muitas em parceria.
Marlene – Considerada uma das grandes divas do rádio e dos programas de auditório no
Brasil, ao lado de Emilinha Borba. De origem humilde, a cantora nasceu em 1924 e
comou a fazer sucesso aida na década de 40. Suas apresentações atraiam multidões até a
década de 80.
Martinho da Vila – Nascido em um sábado de carnaval, o compositor foi criado no
subúrbio do Rio. Aos 15 anos, compôs seu primeiro samba, "Piquenique", que foi
cantado no terreiro da escola de samba “Aprendizes da Boca do Mato”. Quatro anos mais
tarde, fez os primeiros sambas-enredos, e tornou-se uma referência na escola de samba
Unidos de Vila Isabel.
Ná Ozzetti – Iniciou-se na carreira artística em 1978, aos 20 anos, como integrante do
grupo Rumo, no qual permaneceu até 1992. Seu primeiro CD solo foi gravado em 1988, e
o album lhe rendeu o Prêmio Sharp de cantora revelação. Te composições em parceria
com Luiz Tatit e Itamar Assumpção.
Nara Leão – A musa da bossa-nova, cantora de voz tida como pequena, recebia em seu
apartamento, em Copacabana grandes nomes da musica brasileira, que, mais tarde,
seriam apontados como criadores do ritmo.
Noel Rosa - Nascido no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, o "Poeta da Vila" viveu
apenas 26 anos, mas deixou uma vasta obra. Considerado um dos maiores compositores
de samba de todos os tempos, é mais reconhecido como tal que como cantor. Compôs
“Feitio de Oração”, “Feitiço da Vila” e “Conversa de Botequim”, entre outros clássicos
da música brasileira.
Pitty – Aos 28 anos lançou recentemente seu terceiro CD, Anacrônico. Considerada uma
das revelações do rock brasileiro, é apontada como sucessora de Rita Lee, entre as
mulheres que se dedicam ao ritmo.
116
Rita Lee – Apareceu pela primeira vez em 1967, aos vinte anos, no Festival de Musica
Popular Brasileira da Tv Record, acompanhada pelo seu grupo de “rock psicodélico”,
Mutantes. Tornou-se mais popular depois de seguir em carreira solo, sempre em
companhia do marido, Roberto de Carvalho. É autora de grandes sucessos da música
brasileira, como “Mania de Você” E “Lança Perfume”.
Sandy - Filha do cantor sertanejo Xororó, da dupla Chitãozinho e Xororó, formou
quando tinha apenas 6 anos, uma dupla com o irmão, Júnior. Cantando a música “Maria
Chiquinha”, de Geysa Bôscoli e Guilherme Figueiredo, os dois se lançaram ao sucesso.
Lançaram mais de uma dezena de discos, bateram vários recordes de vendas e se
tornaram ícones para muitas crianças brasileiras.
Sueli Costa – Lançou no Brasil seis álbuns desde o primeiro, em 1975. Nascida em 1943,
no Rio de Janeiro, começou a tocar violão aos 15 anos. Três anos mais tarde, compôs a
bossa-nova “Balãozinho”. Em 1967 sua canção “Por exemplo você”, parceria com João
Medeiros Filho, foi gravada por Nara Leão. A partir daí, ela participou de vários festivais
e foi gravada por outros intérpretes.
Vanessa da Matta – Cantora e compositora com diversos hits radiofônicos, teve seus
primeiros sucessos gravados por Chico César (“A força que nunca seca”) e Maria
Bethânia, em dupla com Caetano Veloso (“O canto de Dona Sinhá”). Seu último álbum,
“Essa boneca tem manual”, a lançou de vez no mercado como compositora e intérprete.
Wilson Batista – O compositor começou a carreira, freqüentando os cabarés da Lapa, no
Rio de Janeiro. Tornou-se amigo de “malandros” da época, foi preso várias vezes. Foi, ao
lado de Noel Rosa, um dos grande nomes da composição de sambas nos primórdios do
ritmo.
Zélia Duncan – Iniciou sua carreira musical em 1981, em Brasília, mas só foi gravar o
primeiro álbum nove anos mais tarde, morando no Rio. Suas composições pop fizeram de
alguns de seus álbuns grandes sucesos de venda. “Zélia Duncan”, de 1994, foi incluído na
lista dos Melhores Álbuns Latinos da revista americana "Bilboard" e recebeu o Disco de
Ouro (100.000 cópias vendidas). Em 1998, recebeu o Disco de Platina pelas 250.000
cópias vendidas do álbum.
117
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