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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL – UCS
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
MULTICULTURALISMO E DIVERSIDADE CULTURAL: COMUNIDADES
TRADICIONAIS E A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA
HUMANIDADE
CAROLINA GIORDANI KRETZMANN
CAXIAS DO SUL
2007
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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL – UCS
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
MULTICULTURALISMO E DIVERSIDADE CULTURAL: COMUNIDADES
TRADICIONAIS E A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA
HUMANIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação - Mestrado em Direito da Universidade
de Caxias do Sul, sob orientação da Professora
Doutora Raquel Fabiana Lopes Sparemberger e
submetida à Banca de Avaliação para obtenção do
título de Mestre em Direito.
CAXIAS DO SUL
2007
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DEDICATÓRIA
Para Jaime, pela compreensão e pelo carinho.
Para meus pais, Dionísio e Magali, pelo apoio
incondicional.
AGRADECIMENTO
Por orientar, incentivar, instigar o
conhecimento e a pesquisa, oportunizar
novos caminhos, auxiliar na superação de
obstáculos, pela amizade e pelo carinho,
agradeço à minha orientadora, Dra. Raquel
Fabiana Lopes Sparemberger.
RESUMO
A dissertação tem como objetivo principal demonstrar a importância do reconhecimento
de culturas diferentes”, especificamente, das comunidades tradicionais brasileiras, para
que a diversidade cultural seja preservada e, conseqüentemente, para que o patrimônio
comum da humanidade seja protegido, em nome das presentes e futuras gerações. Para
tanto, aborda a questão do universalismo, do diferencialismo, da homogeneização
cultural, da identidade e do reconhecimento da diferença para grupos que foram
oprimidos e marginalizados no decorrer da história. Demonstra a importância e as
características das comunidades tradicionais brasileiras, de sua relação sustentável com o
meio ambiente, fundamentais para a preservação da diversidade biológica e cultural e que
lutam pela afirmação de seus direitos coletivos. E, por fim, trata de aspectos relacionados
ao meio ambiente cultural, ao direito à cultura, à diversidade cultural e ao patrimônio
comum da humanidade, demonstrando que, a partir dos processos de globalização
hegemônica e contra-hegemônica, a necessidade de compreensão entre as culturas e o
desenvolvimento do diálogo intercultural são fundamentais para a afirmação de uma
sociedade verdadeiramente multicultural.
Palavras-chave:
Multiculturalismo Comunidades Tradicionais Diversidade Cultural Patrimônio
Cultural.
ABSTRACT
This thesis mainly aims at showing the importance of the recognition of “different”
cultures, specifically the ones of traditional Brazilian communities, so that cultural
diversity is preserved, and, consequently, mankind heritage is protected, for the sake of
future generations. To accomplish this goal, this paper approaches such issues as
universalism, differentialism, cultural homogenization, identity and difference recognition
for oppressed and marginalized groups throughout history. It also shows the importance
and features of traditional Brazilian communities, its sustainable relation to environment,
fundamental for the preservation of cultural and biological diversity and that fight for the
establishment of their collective rights. And, at last, it deals with aspects related to cultural
environment, the right to culture, to cultural diversity and hegemonic and antihegemonic
globalization, the necessity of comprehension among cultures and the development of
intercultural dialog, are essential for the achievement of a truly multicultural society.
Key words:
Multiculturalism – Traditional Communities – Cultural Diversity – Cultural Heritage
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 08
1 MULTICULTURALISMO, IDENTIDADE E RECONHECIMENTO: EM BUSCA DA
EMANCIPAÇÃO DOS “DIFERENTES”............................................................... 13
1.1 Crise cultural e multiculturalismo...................................................................... 13
1.2 Unidade ou diferença?....................................................................................... 24
1.3 Identidade, diferença e reconhecimento ........................................................... 34
1.4 Espaço social, emancipação e cidadania: a afirmação das lutas multiculturais. 43
2 COMUNIDADES TRADICIONAIS E A SUSTENTABILIDADE
SOCIOAMBIENTAL.............................................................................................. 51
2.1 Crise ambiental: o despertar para a sustentabilidade......................................... 51
2.2 Comunidades tradicionais: as particularidades de uma cultura......................... 58
2.3 Comunidades tradicionais e a preservação cultural e ambiental....................... 66
2.4 Comunidades tradicionais e a proteção dos conhecimentos tradicionais associados ao
patrimônio genético................................................................................................. 72
2.5 Constituição Federal de 1988: a perspectiva socioambiental e os direitos coletivos das
comunidades tradicionais como afirmação do multiculturalismo........................... 77
3 A PROTEÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL COMO GARANTIA DE
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE: PARA UMA
SOCIEDADE VERDADEIRAMENTE MULTICULTURAL............................... 89
3.1 Meio ambiente cultural e o direito à cultura..................................................... 89
3.2 Patrimônio cultural e o direito à diversidade cultural........................................ 97
3.3 Globalização e diversidade cultural................................................................... 107
3.4 O sujeito social e o multiculturalismo emancipatório....................................... 115
3.5 O diálogo intercultural e a recomposição do mundo: por um cosmopolitismo
multicultural............................................................................................................. 120
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 135
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 142
INTRODUÇÃO
O que é possível perceber a partir dos novos movimentos sociais das últimas décadas é
uma crescente mobilização no sentido de denunciar as desigualdades e a exclusão de grupos
minoritários que clamam por reconhecimento de sua cultura singular. Esse desejo de
reconhecimento não está baseado em políticas igualitárias, com tendências à assimilação e
universalização das culturas, mas em políticas de reconhecimento das diferenças, fundamentais
para a construção do patrimônio histórico e cultural brasileiro e componente da formação
identitária nacional.
O multiculturalismo surge, então, como um desafio para as democracias liberais,
fortemente apoiadas em ideais de igualdade, mas que agora se deparam com duras críticas
dirigidas aos seus governos e instituições públicas. Como dar respostas às inúmeras e crescentes
reivindicações, baseadas na etnia, na raça, na religião, na sexualidade, no gênero ou em qualquer
área de identificação cultural que clama por reconhecimento?
O que torna a questão do multiculturalismo extremamente complexa é a necessidade de
articulação entre as lutas pela afirmação do direito à diferença e os processos de globalização,
que tendem a aumentar as desigualdades e excluir cada vez mais aqueles que de várias maneiras
estão à margem da sociedade. Nesse sentido, cabe questionar até que ponto a construção de
uma vida em comum é possível e quais são os processos que permitirão a inclusão e a
emancipação das minorias e dos grupos que lutam por ideais coletivos e pela afirmação do
multiculturalismo.
Dessa forma, este trabalho preocupa-se com a questão da universalidade dos valores da
cultura ocidental, que diante de sua expansão e dominação, consideram as culturas não-ocidentais
ou “diferentes” como culturas primitivas ou atrasadas. A partir dessa dominação/exclusão e da
não-conformação diante das crescentes desigualdades e opressões que marcam as culturas
dominadas, as lutas e reivindicações acerca da afirmação da identidade e do reconhecimento das
diferenças, em um mundo formado por um “mosaico de culturas”, são fundamentais para a
proteção e preservação da diversidade cultural.
Exemplo de grupo oprimido e esquecido, que possui características intrínsecas em sua
relação de respeito e convivência com o meio ambiente, construindo práticas e conhecimentos
que agora despertam o interesse de grandes empresas multinacionais, é o das comunidades
tradicionais brasileiras. São indígenas, quilombolas, seringueiros, caiçaras, quebradeiras de coco,
pescadores artesanais, babaçueiros, entre outros, que formam a diversidade cultural brasileira e
são integrantes do patrimônio cultural brasileiro. São grupos que clamam por respeito e
reconhecimento de seus direitos, lutam para manter viva a sua cultura, para a afirmação de sua
identidade e para serem valorizados nas suas diferenças.
Assim, o objetivo geral do trabalho é verificar a importância do reconhecimento de
culturas ditas “diferentes”, precisamente, das comunidades tradicionais brasileiras, para que a
diversidade cultural seja preservada e, desse modo, para que o patrimônio comum da humanidade
seja protegido, numa lógica de solidariedade intergeracional.
Para atingir tal objetivo geral, alguns objetivos específicos foram delineados, dentre os
quais, analisar os seguintes pontos: 1) A questão do universalismo e da homogeneização cultural;
2) A relação entre os processos de globalização e a homogeneização cultural; 3) A questão da
identidade e do reconhecimento da diferença; 4) O surgimento de lutas e reivindicações com
base em ideais multiculturais; 5) A caracterização e a importância das comunidades tradicionais e
dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético; 6) O surgimento de “novos”
direitos e sua implicação na proteção de direitos difusos e coletivos; 7) O meio ambiente cultural
e o direito à cultura na Constituição Federal de 1988; 8) O patrimônio cultural e a diversidade
cultural; 9) Os processos de globalização e sua relação com a diversidade cultural e a proteção
dos direitos humanos; 10) O diálogo intercultural e as possibilidades de afirmação das lutas
multiculturais.
No que respeita à questão metodológica, foi adotado o método analítico para que o
trabalho possa atingir seus objetivos, desenvolvendo um raciocínio demonstrativo, partindo do
exame de conceitos e teorias para então, estabelecer argumentos e conexões que conduzirão a
afirmações conclusivas a respeito do problema proposto. Para tanto, o trabalho foi estruturado em
três capítulos, como segue:
No primeiro capítulo, Multiculturalismo, identidade e reconhecimento: em busca da
emancipação dos diferentes, o texto trata de aspectos gerais da crise da modernidade e da
necessidade de superação de seu paradigma, estruturado nos conceitos de universalidade,
individualidade e igualdade, mas que, na verdade, impôs valores monoculturais, que se tornaram
excludentes, gerando um abismo entre as culturas “desenvolvidas” e aquelas consideradas
“primitivas”.
A partir dessa realidade e da necessidade de superação de valores monoculturais e
universais, o multiculturalismo surge das lutas pelo reconhecimento de outras formas de saberes,
diferentes e silenciadas ao longo da história e a cada dia mais suprimidas pelos processos de
globalização hegemônica. Diante dessa realidade, o texto expõe duas teorias opostas em relação
aos discursos multiculturais: o universalismo e o diferencialismo (ou relativismo cultural). A
tensão entre esses discursos conduz a uma abordagem da realidade cultural na formação do povo
brasileiro e da argumentação em torno do universalismo assimilacionista e do diferencialismo.
Ainda no primeiro capítulo, o texto aborda a questão da formação da identidade dos
sujeitos e a questão do reconhecimento, do não-reconhecimento e das políticas de
reconhecimento das diferenças culturais, diante das políticas de reconhecimento igualitário
introduzidas pelas democracias liberais. Perpassa pelas teorias e concepções de identidade de
autores como Charles Taylor, Andrea Semprini, Stuart Hall, Manuel Castells e Zygmunt
Bauman. Após, a questão da emancipação, da redefinição da cidadania e da afirmação das lutas
multiculturais é tratada, partindo da necessidade de ampliação do espaço social, onde os grupos
marginalizados e excluídos reivindicam o reconhecimento de seus direitos, de igualdade de
oportunidades e do respeito à diversidade.
No segundo capítulo, Comunidades tradicionais e a sustentabilidade socioambiental, o
texto aborda alguns aspectos da crise ambiental, da necessidade de novos rumos para o
desenvolvimento, que seja sustentável para as presentes e futuras gerações. A partir daí, analisa
as comunidades tradicionais brasileiras e sua intrínseca relação de sustentabilidade com o meio
ambiente, contribuindo para a preservação da diversidade biológica e cultural. Além disso, a
questão da apropriação do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético faz parte
da abordagem, demonstrando que a construção destes conhecimentos se de forma coletiva e
que devem ser respeitados e protegidos enquanto patrimônio comum da humanidade, não
podendo ser apropriado e transformado em mercadoria.
O reconhecimento pelas Constituições latino-americanas, de que seus Estados são
multiculturais, contribuiu para o surgimento de “novos” direitos, que podem ser caracterizados
como direitos socioambientais, o que também será estudado no segundo capítulo. Assim, no caso
do Brasil, a lógica individualista dos textos legais passou a comportar também direitos coletivos
de povos indígenas e quilombolas, proteção à cultura diferenciada das minorias étnicas e garantia
da diversidade cultural a toda a população, por exemplo. Porém, muito falta a fazer para que a
efetivação desses direitos se concretize e passe realmente a representar um avanço na proteção
dos grupos excluídos, por meio de políticas públicas eficientes, que visem modelos de
desenvolvimento diferenciados, com vistas à preservação cultural e ambiental.
No terceiro e último capítulo, A proteção da diversidade cultural como garantia da
preservação do patrimônio comum da humanidade: para uma sociedade verdadeiramente
multicultural, o meio ambiente cultural e o direito à cultura são questões introdutórias, que
perpassarão pelo conceito de cultura e de meio ambiente cultural e pela previsão constitucional
do direito à cultura. Após, o patrimônio cultural e o direito à diversidade cultural são analisados
na perspectiva da Constituição Federal de 1988, através dos conceitos de patrimônio material e
imaterial e alcançando a proteção internacional ao patrimônio cultural pelas declarações e
convenções da Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
A seguir, uma questão fundamental é tratada: os processos de globalização e sua relação
com a diversidade cultural e com a garantia de direitos multiculturais. Nesse sentido, a partir da
colaboração de Boaventura de Sousa Santos, os conceitos de globalização hegemônica e contra-
hegemônica são estudados e formam uma importante base para as considerações posteriores que
o trabalho irá adotar. As duas formas de globalização contra-hegemônica, o cosmopolitismo e o
patrimônio comum da humanidade, sinalizam para o surgimento de novos sujeitos sociais, com
reivindicações próprias e urgentes, formando novas forças sociais e políticas numa sociedade de
“iguais e diferentes”, parafraseando Alain Touraine.
Dessa forma, a partir das reivindicações dos novos sujeitos sociais e políticos, o diálogo
intercultural e a necessidade de compreensão entre as culturas constituem o enfoque final do
trabalho, baseado principalmente na teoria de Alain Touraine e suas contribuições para uma
“recomposição do mundo” e de Boaventura de Sousa Santos, através de sua proposta de diálogo
intercultural através da hermenêutica diatópica e de suas teses para se atingir um projeto
cosmopolita e uma sociedade verdadeiramente multicultural.
1 MULTICULTURALISMO, IDENTIDADE E RECONHECIMENTO: EM BUSCA DA
EMANCIPAÇÃO DOS “DIFERENTES”
Nosso mundo contém, em realidade, vários mundos. Quem poderá
ignorar que o mundo é um grande mestiço, a não ser aquele que nunca
saiu de seu lugar, ainda que tenha viajado e visitado outras regiões?
(ZAOUAL, 2003).
1.1 Crise cultural e multiculturalismo
Diante da crise da modernidade e de seu projeto “universalista,”
1
que se mostrou falho e
inadequado, emergiram inúmeras reivindicações de diferentes povos e culturas. O ideal de
justiça o significa somente a busca pela igualdade, mas o respeito à diferença, à identidade e a
superação de um monoculturalismo ocidental, dominante e opressor, responsável pela atual
situação de degradação ambiental e cultural.
Conforme Boaventura de Sousa Santos e João Arriscado Nunes (2003),
multiculturalismo, justiça multicultural, cidadanias plurais e direitos coletivos são algumas das
expressões que definem as tensões entre o reconhecimento da diferença e a realização da
igualdade, que estão no centro de lutas emancipatórias de movimentos e grupos que reivindicam
um novo ideal de cidadania e a construção de um multiculturalismo emancipatório. Diante dessa
tensão, questionam os autores: “Como é possível, ao mesmo tempo, exigir que seja reconhecida a
1
O universalismo prega a existência de valores, julgamentos, escolhas e comportamentos com valor absoluto para
todos os homens. Ele forma dois séculos o substrato ideológico da cultura política ocidental e pode ser
realizado eliminando-se a diferença e transformando em obrigação universal o que é apenas um ponto de vista
particular (SEMPRINI, 1999, p. 92-93).
diferença, tal como ela se constituiu através da história, e exigir que os “outros” nos olhem como
iguais e reconheçam em nós os mesmos direitos de que são titulares?” (2003, p. 25).
Em sua concepção original, a expressão multiculturalismo designa “a coexistência de
formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades
“modernas”” (SANTOS; NUNES, 2003, p. 26). Considerando as dificuldades de precisão do
termo, no entanto, pode-se afirmar que multiculturalismo se tornou rapidamente um modo de
descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. O termo
multiculturalismo, porém, pode continuar a ser associado a projetos e conteúdos emancipatórios
e contra-hegemônicos, baseados em lutas pelo reconhecimento da diferença (SANTOS;
NUNES, 2003). Assim,
A idéia de movimento, de articulação de diferenças, de emergência de
configurações culturais baseadas em contribuições de experiências e de histórias
distintas tem levado a explorar as possibilidades emancipatórias do
multiculturalismo, alimentando os debates e iniciativas sobre novas definições
de direitos, de identidades, de justiça e de cidadania. (SANTOS; NUNES, p.
33).
A respeito do sentido do termo multiculturalismo, afirma Alain Touraine (1997) que
muitas vezes este é entendido como um nacionalismo agressivo, mas, para o autor, não nada
mais distante do multiculturalismo que a fragmentação do mundo em espaços culturais que
idealizam a homogeneidade e a pureza e onde um poder comunitário toma o lugar da unidade de
uma cultura. Segundo este estudioso, cultura e comunidade não devem ser confundidas porque as
sociedades modernas, constantemente abertas a mudanças, não possuem uma unidade cultural
total e também porque as culturas são constantemente renovadas a partir de novos
acontecimentos e de novas experiências. Assim, “o multiculturalismo não é nem uma
fragmentação sem limites do espaço cultural, nem um melting pot cultural mundial: procura
combinar a diversidade das experiências culturais com a produção e a difusão de massa dos bens
culturais” (TOURAINE, 1997, p. 224-225).
Em menor ou maior grau, a questão multicultural está presente em todos os países
caracterizados por instituições democráticas, por uma população heterogênea e por uma
economia pós-industrial em vias de globalização. Países como o Canadá, o México, a Austrália e
o Brasil apresentam minorias nacionais fortemente discriminadas e, até mesmo na Europa
2
várias
minorias estão reivindicando seu direito ao reconhecimento (SEMPRINI, 1999).
Nas palavras de Charles Taylor (1997, p. 83), “todas as sociedades estão a tornar-se cada
vez mais multiculturais e, ao mesmo tempo, mais permeáveis.
3
Tudo isso conduz à questão da
imposição de algumas culturas sobre outras. E, considera-se que, neste aspecto, as sociedades
liberais do Ocidente são extremamente culpadas, em parte devido ao passado colonial, em parte
devido à marginalização de segmentos de sua população oriundos de outras culturas” (TAYLOR,
1997, p. 84).
A luta multicultural está enraizada no processo histórico de formação dos países
americanos, que passaram por um processo de conquista e colonização, seguido de uma política
de assimilação forçada e de eliminação da identidade dos povos
4
que habitavam as terras
“descobertas”. Após o desaparecimento de grande parte da população indígena brasileira e da
verdadeira segregação dos povos e culturas ditas “diferentes”, surge a consciência de que deve
haver o reconhecimento e o respeito a estes povos e às suas manifestações culturais.
Conflitos interétnicos sempre existiram no Brasil, entre as próprias tribos indígenas, por
exemplo, na tentativa de impor hegemonia umas às outras. Nesse sentido, assevera Darcy
Ribeiro (1996, p. 168) que “a situação muda completamente quando entra nesse conflito um novo
tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é o dominador europeu e os novos grupos
humanos que ele vai aglutinando, avassalando e configurando como uma macroetnia
expansionista”. Percebe-se então, no princípio da história da colonização brasileira, a
imposição e a opressão de uma cultura que se queria hegemônica, assentando e definindo os
contornos do que hoje ainda persiste: a necessidade de afirmação da identificação étnica e
cultural dos grupos formadores do povo brasileiro.
No que respeita à crise da modernidade, Sérgio Paulo Rouanet (2001) assegura que o
que existe por trás da crise da modernidade é uma crise da civilização. Para este autor:
2
Como é o caso dos catalães e bascos na Espanha, os católicos na Irlanda do Norte, os corsos na França
(SEMPRINI, 1999, p. 149).
3
“A permeabilidade significa que as sociedades estão mais receptivas à migração multinacional: são mais os
membros cujo centro se situa noutra parte qualquer, que passaram a conhecer uma vida de diáspora” (TAYLOR,
1997, p. 83).
4
“Pensa-se que desde 1492 os europeus têm vindo a projetar desses povos uma imagem de seres um tanto inferiores,
“incivilizados”, e que, através da conquista e da força, conseguiram impô-la aos povos colonizados” (TAYLOR,
1997, p, 46).
O projeto civilizatório da modernidade tem como ingredientes principais os
conceitos de universalidade, individualidade e autonomia. A universalidade
significa que ele visa todos os seres humanos, independentemente de barreiras
nacionais, étnicas ou culturais. A individualidade significa que esses seres
humanos são considerados como pessoas concretas e não como integrantes de
uma coletividade e que se atribui valor ético positivo à sua crescente
individualização. A autonomia significa que esses seres humanos
individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião
ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os
bens e serviços necessários à sobrevivência material (2001, p. 9).
A afirmação de que o projeto universalista da modernidade es em crise é explicável a
partir de novos deslocamentos e da emergência de novos atores sociais, que passaram a
questionar os modelos científicos, jurídicos, políticos, sociais e econômicos existentes. A
reformulação do projeto da modernidade é fundamental para a emergência do reconhecimento e
da valorização multicultural. Andrea Semprini (1999, p. 160-161) analisa as estruturas e as
deficiências desse projeto e conclui:
Construído a partir de um “universalismo” que era com freqüência apenas um
disfarce de uma monocultura sob os traços de um simulacro de humanidade
incrivelmente branca e européia; estruturado a partir de um espaço público
“igualitário” que na verdade fechava as portas a numerosos grupos sociais;
fundamentado sobre a noção de indivíduo abstrata e redutora; submisso à
experiência real da diversidade; enfrentando reivindicações de reconhecimento
radicais; sofrendo tensões pelas pressões exercidas nos limites do espaço
público; fragilizado enfim pelas mudanças ocorridas no coração mesmo deste
espaço, o projeto da modernidade dificilmente poderá dar uma resposta
coerente ao impasse multicultural se não for profundamente reformulado.
Assim, em mais um ponto fundamental é possível argumentar em favor da necessidade de
superação do paradigma da modernidade: sua base racionalista e universalista não parece ser
capaz de reconhecer as culturas diferenciadas, as especificidades dos seres humanos.
A necessidade de superação do paradigma da modernidade conduz à necessidade de
explicitar o significado do termo paradigma. De acordo com Thomas Kuhn (2003, p. 13),
considerado o criador do conceito originário de paradigma, estes são “as realizações científicas
universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções
modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” Um paradigma, no entanto, não
pode persistir para sempre, principalmente quando novas evidências estão em curso, conduzindo
ao que se chama de “mudança de paradigmas”, ou de “transição paradigmática.”
5
Segundo defende Edgar Morin
6
(2002, p. 25), “os indivíduos conhecem, pensam e agem
segundo paradigmas inscritos culturalmente neles”. O paradigma tem a função de instaurar
relações que constituem axiomas, de determinar conceitos e comandar discursos e/ou teorias,
desempenhando um papel ao mesmo tempo subterrâneo e soberano em qualquer teoria, doutrina
ou ideologia.
Para Kuhn (2003), a emergência de novas teorias ocorre com o surgimento de novas
ocasiões que exigem uma reformulação, uma vez que os paradigmas existentes não são mais
capazes de resolver os problemas com os instrumentos dados, o que leva a uma perda de
confiança nesses instrumentos. Assim, “o significado das crises consiste exatamente no fato de
que indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos” (KUHN, 2003, p. 105).
Dessa forma, as crises constituem uma pré-condição para a emergência de novas teorias,
que substituirão as que anteriormente adquiriram o status de paradigma e que são consideradas
inválidas quando substituídas por novas teorias e, por conseguinte, novos paradigmas. Rejeitar
um paradigma é sempre decidir, simultaneamente, aceitar outro (KUHN, 2003).
As crises, de acordo com Kuhn (2003), podem terminar de três maneiras: algumas vezes
a ciência normal é capaz de resolver os problemas que deram origem à crise, caso em que o
paradigma existente se mantém; em outros casos, o problema é posto de lado, pois não possui
solução imediata e deve ser resolvido por uma futura geração, com instrumentos mais elaborados;
e, por fim, a crise pode terminar com a emergência de um novo paradigma e da batalha pela sua
aceitação. Essa transição de um paradigma em crise para um novo ocorre mediante uma
reconstrução da área de estudo a partir de novos princípios, que indicarão novas concepções,
novos métodos e objetivos.
5
Conforme Kuhn (2003), as transições de paradigmas são revoluções científicas e por meio dessas revoluções é que
se o desenvolvimento normal da ciência amadurecida. As revoluções científicas, na concepção de Kuhn (2003, p.
125), são “aqueles episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou
parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior”.
6
Um paradigma, segundo Morin (2002, p. 24-25), pode ser definido por: “Promoção/seleção dos conceitos-mestres
da inteligibilidade. Assim, a Ordem, nas concepções deterministas, a Matéria, nas concepções materialistas, o
Espírito, nas concepções espiritualistas, a Estrutura, nas concepções estruturalistas, são os conceitos mestres
selecionados/selecionadores, que excluem ou subordinam os conceitos que lhes são antinômicos (a desordem, o
espírito, a matéria, o acontecimento).”. E ainda segundo o autor, por “determinação das operações lógicas-mestras.
O paradigma está oculto sob a lógica e seleciona as operações lógicas que se tornam ao mesmo tempo
preponderantes, pertinentes e evidentes sob seu domínio (exclusão-inclusão, disjunção-conjunção, implicação-
negação). É ele que privilegia determinadas operações lógicas em detrimento de outras, como a disjunção em
detrimento da conjunção; é o que atribui validade e universalidade à lógica que elegeu. Por isso mesmo, aos
discursos e às teorias que controla as características da necessidade e da verdade” (2002, p. 25).
Morin (2002, p. 26) descreve as dissociações causadas pelo “grande paradigma do
Ocidente”, formulado por Descartes e imposto a partir do século XVII, que determina a dupla
visão do mundo, dos objetos, de um lado (submetidos à observação, experimentação,
manipulação) e dos sujeitos, de outro (que se questionam sobre problemas de existência, de
consciência, de destino): “sujeito/objeto; alma/corpo; espírito/matéria; qualidade/quantidade;
finalidade/causalidade; sentimento/razão; liberdade/determinismo; existência/essência”.
Diante da deficiência do projeto da modernidade, “poderia ela evoluir e se adaptar a uma
nova condição histórica?” (SEMPRINI, 1999, p. 172). E as categorias da modernidade estariam
ainda aptas a compreender as mutações em curso nas sociedades contemporâneas? (SEMPRINI,
1999). Esses questionamentos conduzem a constatação, mais uma vez, da crise da modernidade.
Conforme este autor, são as categorias da modernidade (diferença e identidade, igualdade e
justiça, relativismo e universalismo, racionalismo e subjetividade, cidadania, ética, direito...) que
estão passando por uma crise, lançando por meio do multiculturalismo, um “desafio de
civilização.”
Edgar Morin e Anne Brigitte Kern (2002, p. 36-42) reconhecem um esboço de
consciência planetária na segunda metade do século XX, a partir de alguns pontos: 1) A
persistência de uma ameaça nuclear; 2) A formação de uma consciência ecológica planetária,
diante da multiplicação das degradações em todos os continentes; 3) A entrada no mundo do
Terceiro Mundo, em que a visão “ocidentalocêntrica” lugar ao reconhecimento da riqueza e
diversidade das culturas do mundo; 4) O desenvolvimento da mundialização civilizacional, que
homogeneíza e padroniza costumes e que também produz novos hábitos, costumes e gêneros de
vida comuns; 5) O desenvolvimento de uma mundialização cultural; 6) A formação de um
folclore planetário, graças aos meios de comunicação; 7) A teleparticipação planetária, que faz
com que o mundo seja espectador das tragédias, mas também desenvolve uma compaixão global;
8) A Terra vista da Terra, concretizando um sentimento de que uma “entidade planetária”,
com problemas mundiais.
Para Boaventura de Sousa Santos (2005) o mundo vive um período de transição
paradigmática,
7
na qual o paradigma sociocultural da modernidade tende a desaparecer. De
7
Conforme Santos (2005, p. 257), a transição paradigmática é um período histórico e uma mentalidade. É um
período histórico que não se sabe bem quando começa e muito menos quando acaba. É uma mentalidade fracturada
entre lealdades inconsistentes e aspirações desproporcionadas entre saudosismos anacrônicos e voluntarismos
excessivos. Se, por um lado, as raízes ainda pesam, mas não sustentam, por outro, as opções parecem
simultaneamente infinitas e nulas. A transição paradigmática é, assim, um ambiente de incerteza, de complexidade e
de caos que se repercute nas estruturas e nas práticas sociais, nas instituições e nas ideologias, nas representações
acordo com este autor:
Esse desaparecimento é um fenômeno complexo, que é simultaneamente um
processo de superação e um processo de obsolescência. É superação na medida
em que a modernidade cumpriu algumas de suas promessas, nalguns casos até
em excesso. É obsolescência na medida em que a modernidade não consegue
cumprir outras das suas promessas. Tanto o excesso como o défice de
cumprimento das promessas históricas explicam a nossa situação presente, que
aparece, à superfície, como um período de crise, mas que a nível mais profundo,
é um período de transição paradigmática (2005, p. 49).
Assim, pode-se dizer que “o paradigma da modernidade é muito rico e complexo, tão
suscetível de variações profundas como de desenvolvimentos contraditórios” (SANTOS, 2005, p.
50). Com a pretensão de harmonizar o “pilar da regulação” (Estado, mercado e comunidade) e o
“pilar da emancipação”
8
(artes e literatura, ciência e tecnologia, ética e direito) e posterior
insucesso, o paradigma da modernidade contém em si a semente do seu próprio fracasso:
promessas que não puderam ser cumpridas e déficits irremediáveis (SANTOS, 2005).
Os excessos e os déficits eram previsíveis, porém foram concebidos de forma
reconstrutiva e, no entendimento de Santos (2005, p. 50), “os excessos foram considerados como
desvios fortuitos e os défices como deficiências temporárias, qualquer deles resolúvel através de
uma maior e melhor utilização dos crescentes recursos materiais, intelectuais e institucionais da
modernidade”. E essa gestão reconstrutiva dos excessos e déficits foi progressivamente confiada
à ciência e, de forma subordinada, mas relevante, também ao Direito. Tanto que, “no início do
século XIX, a ciência moderna tinha sido convertida numa instância moral suprema, para além
do bem e do mal” (SANTOS, 2005, p. 51).
Com o passar do tempo a crença na ciência deu lugar a uma nova realidade, em que os
excessos e os déficits antes encobertos pelo paradigma dominante agora surgem recriados e,
muitas vezes, agravados. Todas as promessas da ciência passam a ser questionadas e constituem
sociais e nas inteligibilidades, na vida vivida e na personalidade. E repercute-se muito particularmente, tanto nos
dispositivos da regulação social, como nos dispositivos da emancipação social”.
8
O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, que consiste na obrigação política vertical entre
cidadãos e Estado; pelo princípio do mercado, que consiste na obrigação política horizontal individualista e
antagônica entre os parceiros de mercado; e pelo princípio da comunidade, que consiste na obrigação política
solidária entre membros da comunidade e entre associações. O pilar da emancipação é constituído pela racionalidade
estético-expressiva das artes e da literatura, pela racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e
pela racionalidade moral-prática da ética e do direito. O pilar da emancipação acaba por ser absorvido pelo pilar da
regulação, graças à hipercientifização da emancipação combinada com a hipermercadorização da regulação
(SANTOS, 2005).
fatores importantes de preocupação para a sociedade atual. Como bem sintetiza Santos (2005, p.
56):
A promessa da dominação da natureza, e do seu uso para o benefício comum da
humanidade, conduziu a uma exploração excessiva e despreocupada dos
recursos naturais, à catástrofe ecológica, à ameaça nuclear, à destruição da
camada de ozono, e à emergência da biotecnologia, da engenharia genética e da
conseqüente conversão do corpo humano em mercadoria última. A promessa de
uma paz perpétua, baseada no comércio, na racionalização científica dos
processos de decisão e das instituições, levou ao desenvolvimento tecnológico
da guerra e ao aumento sem precedentes do seu poder destrutivo. A promessa de
uma sociedade mais justa e livre, assente na criação da riqueza tornada possível
pela conversão da ciência em força produtiva, conduziu à espoliação do
chamado Terceiro Mundo e a um abismo cada vez maior entre o Norte e o Sul.
Duas formas de conhecimentos podem ser distinguidas no projeto da modernidade
conforme Santos (2005): o conhecimento-regulação, que tem como ponto de ignorância o caos e
como ponto de saber a ordem; e, o conhecimento-emancipação, cujo ponto de ignorância é o
colonialismo e o ponto de saber é conhecido como solidariedade. Apesar de essas formas de
conhecimentos estarem entrelaçadas, o conhecimento-regulação acabou dominando o
conhecimento-emancipação. Para o autor:
Na actual fase de transição paradigmática a teoria crítica pós-moderna constrói-
se a partir de uma tradição epistemológica marginalizada e desacreditada da
modernidade o conhecimento-emancipação. Nesta forma de conhecimento a
ignorância é o colonialismo e o colonialismo é a concepção do outro como
objecto e conseqüentemente o não reconhecimento do outro como sujeito
(2005, p. 29-30).
No conhecimento-emancipação ocorre uma mudança fundamental, em que o outro é
elevado da condição de objeto para a condição de sujeito, construindo uma nova forma de
conhecimento, o conhecimento-reconhecimento, que é designado por solidariedade e que deseja
superar a concepção colonialista do outro como objeto (SANTOS, 2005).
Uma das implicações da opção pelo conhecimento-emancipação é a passagem do
monoculturalismo para o multiculturalismo. De acordo com Santos (2005), o conhecimento
multicultural tem duas dificuldades fundamentais, quais sejam, o silêncio e a diferença. O
silêncio como dificuldade se justifica pela imposição de valores universais autorizados pela
razão, acarretando a supressão de muitas formas de saber, sobretudo aquelas que foram objeto do
colonialismo ocidental, que tiveram suas formas de ver e reconhecer o mundo silenciadas e as
necessidades e aspirações tornadas impronunciáveis. A segunda dificuldade, que se traduz pela
diferença, é aquela que conduz à necessidade de uma teoria da tradução, tornando compreensível
e inteligível uma determinada necessidade, aspiração ou prática de uma cultura para outra.
Outra questão crucial e que merece ser aqui abordada é a que se relaciona aos processos
de globalização que afetam intensamente as identidades culturais nacionais, que de “centradas,
coerentes e totalizadoras” (HALL, 1995, p. 39), estão sendo deslocadas e questionadas quanto a
sua unificação e homogeneidade. Assim, a idéia de que a identidade cultural é realmente uma
identidade unificadora está aberta à dúvida. Para isso, basta que se considere que a maioria das
nações modernas possui culturas diversas, que somente foram unificadas por processos de
conquista que subjugaram os povos conquistados e suas culturas, caracterizando uma supressão
forçada da diferença cultural (HALL, 1995). Neste sentido assevera Stuart Hall (1995, p. 48):
Ao invés de pensarmos nas culturas nacionais como unificadas, deveríamos
pensar nelas como constitutivas de um dispositivo discursivo que representa a
diferença como unidade ou identidade. Elas são entrecruzadas por divisões e
diferenças internas profundas, e “unificadas” apenas através do exercício de
formas diferentes de poder cultural. Ainda assim como nas fantasias do “self”
“total” do qual fala a psicanálise lacaniana as identidades nacionais continuam
a ser representadas como sendo unificadas.
A homogeneização que ocorre agora, em virtude dos processos de globalização, é aquela
na qual todas as culturas nacionais estão sendo enfraquecidas, em direção à homogeneização
global. Neste aspecto, contudo, também é possível identificar uma nova e importante tendência:
as identidades nacionais e algumas identidades locais estão sendo reforçadas, em razão da
resistência à globalização (HALL, 1995). Isso se justifica principalmente a partir da
“apropriação” que está ocorrendo nos países ricos em biodiversidade, como o Brasil. Os recursos
naturais e os conhecimentos a eles associados são transformados em mercadorias e lucro para as
grandes corporações e lançadas no “mercado mundial”.
Anthony Giddens (1991) afirma que a globalização se refere a um processo de
“alongamento”, em que as modalidades de conexão entre diferentes regiões ou contextos estão
interligadas. Para este autor, “a globalização pode assim ser definida como a intensificação das
relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que
acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-
versa” (p. 69). Ele, no entanto, também reconhece que, ao mesmo tempo em que as relações
sociais se tornam lateralmente esticadas, ocorre um fortalecimento nas pressões para a autonomia
local e pela afirmação da identidade cultural regional (1991).
Analisando essa nova perspectiva global, onde um novo cenário é definido nos moldes
dos processos de globalização (econômico, cultural, social, institucional e tantas outras facetas
que possa atingir), Guimarães (2001) atenta para o fato de que o problema imposto não é a
existência mais que evidente de tendências que buscam se inserir na economia globalizada, e sim
que tipo de inserção é desejada pelos povos, considerando o aspecto do crescimento em bases
nacionais e da conservação da identidade cultural, da coesão social e da integridade ambiental de
seus territórios. Assim, para o autor,
um dos principais desafios das políticas públicas diz respeito justamente à
necessidade de territorializar a sustentabilidade ambiental e social do
desenvolvimento o “pensar globalmente mas atuar localmente” e, ao mesmo
tempo, dar sustentabilidade ao desenvolvimento do território, ou seja, fazer com
que as atividades produtivas contribuam efetivamente para o aperfeiçoamento
das condições de vida da população e protejam o patrimônio biogenético a ser
transmitido às gerações futuras (2001, p. 49).
Zaoual (2003) argumenta que os fenômenos do desenvolvimento e da mundialização não
podem ser separados de maneira alguma do capitalismo.
9
Este representa uma cultura que pode
ser interpretada como “vontade de potência e domínio sobre o mundo” (ZAOUAL, p. 34) e cujo
braço armado é constituído pela aliança entre mercado, ciência e tecnologia. O capitalismo
constitui, para o autor, uma teologia da acumulação, da concorrência e da uniformização, que
requer medidas e respostas baseadas na diversidade da humanidade, no respeito à natureza e na
autonomia das populações. Nesse sentido, “a perspectiva escolhida aqui é a da necessidade de
uma civilização da diversidade; então, é o fim da hegemonia de um e único ponto de vista, o
do modelo único para todos” (ZAOUAL, 2003, p. 34).
Essa realidade conduz ao “fim da ocidentalização do mundo”, hipótese que pode ser
argumentada devido ao fracasso dos modelos de desenvolvimento econômico, dos problemas
sociais e ambientais, enfim, das anomalias causadas pela cultura de progresso do capitalismo e
que conduziu à crise da civilização do capitalismo. O fim da ocidentalização do mundo leva ao
9
Segundo Zaoual (2003, p. 38), o capitalismo “é um sistema que combina o mercado, a ciência, a tecnologia e
procede, de um lado, por meio de concorrência e de acumulação de riquezas, e, de outro, por intermédio de
empobrecimento antropológico e material. O sistema em questão é programado para estender ao infinito sua
hegemonia e sua exploração da diversidade humana e dos recursos naturais. Ele define e codifica tudo o que possa
aumentar seus lucros e destrói tudo o que não responde à sua cultura de domínio e acumulação.” Pode-se dizer que a
“auto-realização dos lucros é então a profecia fundamental do capitalismo” (p. 38).
fim de um projeto de domínio do mundo, fundamental para o convívio de uma pluralidade de
formas de ver e viver (ZAOUAL, 2003). Assim, conforme este autor (2003, p. 37),
A ruptura com o capitalismo e sua mundialização contemporânea requer então
uma verdadeira nova civilização abrangendo todos os domínios da condição
humana. Trata-se de uma mudança de sentido que se ao homem, à natureza,
ao progresso, ao outro, à liberdade, à justiça, ao tempo, etc. É imperativo
redefinir, de modo crítico, tudo o que define a ideologia econômica sobre a qual
se baseia e se reproduz o sistema capitalista. Isto é o pré-requisito do pós-
desenvolvimento.
O modelo único para todos (que conduziu à ocidentalização do mundo) encontra seu
declínio nos mesmos países que o promoveram. Se estes países enfrentam graves crises e não
conseguem controlar suas próprias economias, como pretendem continuar como modelo imposto
a todos? Os fundamentos da ocidentalização estão profundamente abalados, as tecnologias geram
riscos
10
e incertezas, a aliança entre ciência, mercado e tecnologia é questionada e os excessos da
modernidade impõem a necessidade de novas abordagens, de novos caminhos (ZAOUAL,
2003).
Dessa forma, a partir da percepção da crise dos modelos dominantes da modernidade e a
partir da dominação e da supressão de culturas que não se enquadram no paradigma ocidental,
novas formas de emancipação fazem-se necessárias para definir um novo caminho para um novo
futuro, calcado em ideais surgidos em contraposição à marginalização e à opressão e em nome do
reconhecimento e da valorização de outras formas de saber, de ver e de ser em um mundo que
parece não oferecer espaço a essas formas.
Deve-se considerar que cada vez mais a busca pela afirmação de identidades pessoais e
coletivas se transforma em um ponto de apoio, de inclusão e de emancipação em um mundo
globalizado que, ao mesmo tempo em que une as culturas e possibilita várias interligações, separa
e oprime aqueles que não possuem forças suficientes para “entrar no jogo” munidos das mesmas
condições.
1.2 Unidade ou diferença?
10
Beck define os riscos de hoje como “riesgos de la modernización”, que se diferenciam dos riscos e perigos da
Idade Média justamente pela globalidade de sua ameaça e por serem produto da maquinaria do progresso industrial.
Além disso, os riscos contêm essencialmente um componente futuro, relacionado com a previsão, com a destruição
que ainda não ocorreu, mas que se revela iminente (BECK, 1998).
No discurso relativo ao multiculturalismo e ao reconhecimento das identidades étnicas e
culturais dos grupos minoritários, duas vertentes podem ser analisadas como idéias opostas e que
merecem uma sucinta análise. A primeira delas é o discurso universalista, citado e criticado
neste trabalho, e que conduz, conforme visto, a um ideal de igualdade que não considera as
diferenças e que está embasado no pensamento racional. O segundo discurso é o diferencialista
(ou relativista) que, ao contrário do primeiro, prega a consideração da identidade coletiva como
fundamental para que o indivíduo seja reconhecido efetivamente e conquiste seu lugar no espaço
social.
Em torno desses dois discursos é possível centrar algumas críticas e alguns argumentos
que irão contribuir para uma tomada de posição a respeito do tema. Darcy Ribeiro, por exemplo,
defende um ideal chamado de “etnonação”, alicerçado na idéia de homogeneização cultural,
evidenciando uma perspectiva universalista e pregando um modelo assimilacionista das diversas
culturas no Brasil. Conforme Ribeiro (1996, p. 265), apesar das áreas culturais brasileiras
resistirem às mudanças em nome da preservação de suas características, novas condições
uniformizadoras acabam tornando essas áreas cada vez mais homogêneas, o que significa que
“apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental”.
Ribeiro (1996) no Brasil uma unidade étnica básica, que apesar da confluência de
matrizes variadas (portugueses, negros africanos e índios americanos) em sua formação, se
constitui em uma etnia nacional, em um “Estado uni-étnico”. Para ele,
Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções
ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores
ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam
como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia (1996, p. 21-22).
Para Ribeiro (1996), entretanto, esse povo-nação não é fruto da evolução de formas
anteriores de sociabilidade, que apesar das classes sociais diferenciadas acabaram se conjugando
para atender as suas necessidades de sobrevivência e progresso. Ao contrário, surge da
concentração de uma força de trabalho escrava, subjugada a processos violentos de ordenação e
repressão que se revelaram um genocídio e um etnocídio implacáveis, exacerbando-se um
distanciamento social entre a massa do povo e uma minoria privilegiada, isolada numa barreira de
indiferença.
O processo de universalização cultural no Brasil, iniciado pelos europeus quando da
chegada destes na “ilha Brasil” e que originou o brasileiro, é fruto de vários conflitos, como
analisa Ribeiro (1996, p. 30):
Esse conflito se em todos os níveis, predominantemente no biótico, como
uma guerra bacteriológica travada pelas pestes que o branco trazia no corpo e
eram mortais para as populações indenes. No ecológico, pela disputa do
território, de suas matas e riquezas para outros usos. No econômico e social,
pela escravização do índio, pela mercantilização das relações de produção, que
articulou os novos mundos ao velho mundo europeu como provedores de
gêneros exóticos, cativos e ouros. No plano étnico-cultural, essa transfiguração
se pela gestação de uma etnia nova, que foi unificando, na língua e nos
costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos de
África, e os europeus aqui querenciados.
Reafirmando a existência de uma política assimilacionista e universalista no Brasil,
Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2003), discorrendo a respeito da criação dos Estados
nacionais latino-americanos, alerta que esta se deu com a redação de uma Constituição que
assegurava um rol de direitos e garantias individuais, restando aos índios a possibilidade de
integração como indivíduo, como cidadão, ou seja, como sujeito individual de direitos. Conforme
este autor,
As políticas públicas e as leis, porém, se propuseram durante muitos anos a
cumprir essa vontade dos Estados nacionais: integrar os povos como cidadãos,
sujeitos de direito, capazes de negociar juridicamente, sem reconhecer seus
direitos coletivos. Nesta perspectiva, o genocídio continuou, e cada tentativa de
integração desses povos significou a continuação do estado de guerra imposto
quando da chegada dos europeus. Os povos perdiam o a visibilidade, mas
a própria vida (2003, p. 78).
Dessa forma, os direitos garantidos pelas Constituições dos Estados nacionais apenas
serviam aos sujeitos individuais, detentores de propriedade.
11
Aos índios que aqui viviam eram
aplicadas políticas de integração, reforçando que sua situação como “índios” deveria ser
11
“Assim, aquele indivíduo que lograsse amealhar algo, formando uma propriedade, passaria a ser integrado ao
sistema, ao passo que todos os outros não se integrariam jamais, continuando a ser índios, quilombolas, pescadores,
ribeirinhos, seringueiros, pequenos posseiros, vivendo da extração, da coleta, da caça, da pesca, da pequena
agricultura de subsistência, mantendo fortes relações com a comunidade para viver e não raras vezes, enquanto longe
do contato da civilização, vivendo com fartura e felicidade, mas sob permanente ameaça, porque se estivessem sobre
terras boas ou sobre alguma riqueza vegetal ou mineral economicamente viável, passariam a ser objeto da cobiça, do
engano e da desintegração” (SOUZA FILHO, 2003, p. 77).
temporária. Exemplo disso é a própria Lei Indígena
12
6.001 de 1973, que em seu artigo
“regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito
de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”
(SOUZA FILHO, 2003, p. 79).
Souza Filho (2003) reconhece no Brasil dois eixos principais na aplicação de políticas em
relação aos povos indígenas: de um lado uma política de total omissão, como se os povos não
existissem e, de outro, uma política que cria refúgios, tirando-os de seus territórios ou reduzindo
seu espaço de vida original. Exemplo dessas políticas é o que ocorreu com o povo guarani que,
após total omissão da política oficial do governo brasileiro, sendo até considerados extintos nos
Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, não tiveram praticamente
nenhuma terra demarcada, passando a viver de empréstimo em territórios de outros povos e, no
estado do Mato Grosso, em confinamentos. Hoje, grande parte dos guaranis vive em unidades de
conservação.
13
Souza Filho (2003) afirma que, enquanto fora da Amazônia o Estado não considerou os
povos indígenas em suas políticas públicas, na Amazônia houve uma preocupação em contatá-
los. Esse contato, no entanto, precedia a expansão da fronteira agrícola, a construção de estradas,
12
Tramita no Congresso Nacional desde 1991 o novo “Estatuto das Sociedades Indígenas”, cuja proposta é adaptar-
se aos preceitos constitucionais que garantem direitos coletivos aos povos indígenas.
13
A Lei 9.985 de 18 de julho de 2002 institui no Brasil o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC),
que tem por fim ordenar as áreas protegidas nos âmbitos federal, estadual e municipal. Duas categorias de unidades
de conservação são estabelecidas pelo SNUC: as unidades de proteção integral e as unidades de uso sustentável. As
unidades de proteção integral têm o objetivo básico de preservar a natureza, admitindo apenas o uso indireto dos
recursos naturais, com algumas exceções, e são compostas por: I – Estação Ecológica: objetiva, além da preservação
da natureza, também a pesquisa científica, sendo proibida a entrada de visitantes, exceto os que possuem objetivos
educacionais ou científicos; II Reserva Biológica: objetiva a preservação da biota, sem interferência humana,
exceto nas medidas de recuperação dos ecossistemas, do equilíbrio natural, da diversidade biológica e dos processos
ecológicos; III Parque Nacional: objetiva a preservação dos ecossistemas com a possibilidade de atividades de
recreação, turismo ecológico, além de atividades de educação ambiental e pesquisa científica; IV Monumento
Natural: objetiva preservar sítios naturais raros; V Refúgio de Vida Silvestre: objetiva a proteção de ambientes
naturais que garantam a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora e da fauna. As unidades de
uso sustentáveis têm como objetivo básico a compatibilização da conservação da natureza com o uso sustentável dos
recursos naturais e são compostas por: I- Área de Proteção Ambiental (APA): área com certo grau de ocupação
humana e tem como objetivo a proteção da diversidade biológica disciplinando o processo de ocupação de forma a
assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais; II – Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE): área de
pequena extensão em geral, com pouca ou nenhuma ocupação humana e tem como objetivos manter os ecossistemas
naturais e regular o uso compatível com os objetivos de conservação da natureza; III Floresta Nacional: tem como
objetivo o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica com ênfase em métodos para a
exploração sustentável; IV – Reserva Extrativista: área utilizada por populações extrativistas tradicionais e tem como
principal objetivo a proteção dos meios de vida e da cultura dessas populações;V Reserva de Fauna: áreas com
animais nativos, residentes ou migratórios, adequados para estudos técnico-científicos sobre recursos faunísticos; VI
Reserva de Desenvolvimento Sustentável: área que abriga populações tradicionais que desempenham um papel
fundamental na proteção da natureza e manutenção da diversidade biológica; VII – Reserva Particular do Patrimônio
Natural: área gravada com perpetuidade, que objetiva a conservação da diversidade biológica.
a exploração dos recursos naturais ali existentes. E “as frentes de contato, como eram chamadas,
não tinham uma proposta do que fazer depois de contatados os índios, salvo a idéia genérica, que
vinha desde a colônia, de oferecer aos índios as doces leis do império, isto é, a integração na
comunhão nacional” (p. 87).
Apesar de reconhecer as diferenças entre os grupos sociais que se formaram no Brasil
desde a colonização e reafirmando sua visão “universal” da formação do povo brasileiro, Ribeiro
(1996) assegura que é possível identificar no Brasil uma identidade coletiva nacional, que
anularia as diferenças entre os grupos étnicos aqui existentes. Assim:
O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver e acolher a
gente variada que aqui se juntou, passa também pela anulação das
identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela
indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os mulatos (negros
com brancos), caboclos (brancos com índios), ou curibocas (negros com
índios). por esse caminho, todos eles chegam a ser uma gente só, que se
reconhece como igual em alguma coisa tão substancial que anula suas
diferenças e os opõe a todas as outras gentes. Dentro do novo agrupamento,
cada membro, como pessoa, permanece inconfundível, mas passa a incluir sua
pertença a certa identidade coletiva (RIBEIRO, 1996, p. 133).
A identidade coletiva à qual se refere Ribeiro não é de forma alguma a identidade pela
qual as comunidades tradicionais brasileiras lutam. Pelo contrário, em virtude da forte subjugação
e da exploração vivida por essas comunidades desde os tempos da colonização, seu desejo é de
reconhecimento a partir de uma identidade própria, que seja coletiva quando isso significa o
reconhecimento de direitos coletivos para os representantes de sua cultura diferenciada, e não
quando isso representar integração e assimilação a uma cultura nacional.
A respeito da identidade nacional ou cultural, Jayme Paviani (2004) explica que a
identidade de um povo ou de uma cultura aponta para um conjunto de costumes,
comportamentos, valores, obras e para elementos socioculturais, como a língua e a religião.
Alerta o autor, porém, que o conceito de identidade nacional pode se tornar um instrumento
equivocado da realidade cultural de um povo, uma vez que toda identidade é constituída sobre a
diferença. Dessa forma, na procura da identidade não se pode esquecer as diferenças. Mesmo que
em relação aos seres humanos exista algo de comum, como os direitos fundamentais, por
exemplo, as diferenças entre eles devem ser admitidas (PAVIANI, 2004).
Santos (2002) analisa o papel do Estado-nação ao tratar da questão cultural, que em sua
opinião vem desempenhando um papel ambíguo, colaborando para a homogeneização e
uniformidade cultural:
Enquanto, externamente, têm sido os arautos da diversidade cultural, da
autenticidade da cultura nacional, internamente, têm promovido a
homogeneização e a uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas
locais existentes no território nacional, através do poder da polícia, do direito, do
sistema educacional ou dos meios de comunicação social, e na maior parte das
vezes por todos eles em conjunto (SANTOS, 2002, p. 47-48).
Com base no discurso diferencialista é possível afirmar que um de seus pontos positivos é
a crítica à tendência do Estado de privilegiar a hegemonia da cultura ocidental em detrimento das
culturas minoritárias, como a indígena e a de grupos de origem africana. Um dos aspectos
negativos que podem ser ensejados, contudo, é o fato de esse discurso pregar o enclausuramento
dos grupos em torno de si, recusando qualquer possibilidade de diálogo e de comunicação
interculturas. Isso poderá originar o nacionalismo xenófobo, o fundamentalismo religioso e
outros extremismos de conseqüências negativas, que acabam buscando a unicidade e a
homogeneidade (D’ADESKY, 2005).
A noção de grupo étnico é de difícil definição, pois engloba inúmeros elementos e muitas
vezes pode indicar uma separação entre os ideais étnicos e aqueles que garantiriam a cidadania
para os indivíduos de uma nação. Para d’Adesky (2005, p.38),
pode-se identificar a raça, a religião e a língua como fatores fundamentais, a
história como o epicentro de uma herança cultural comum, o espaço como área
territorial e categoria de permanência, a consciência de pertencimento e a
vontade de viver em conjunto como expressões de uma certa comunidade
cultural.
Quando se analisa o conceito de etnia e nação, percebe-se a clara indicação de que as
nações modernas distanciam-se da etnia, pois existe uma ligação maior entre a idéia de cidadania
e nação. Conforme d’Adesky (2005, p. 61), “a cidadania não está diretamente ligada à etnicidade.
Não se é cidadão de uma etnia, mas cidadão de uma nação. A cidadania indica o pertencimento
ao povo soberano do Estado, segundo os princípios dos modernos Estados-nações”. Dessa forma,
mediante a utilização do aparelho estatal, a nação demonstra que pode fazer prevalecer a
identidade nacional sobre as identidades étnicas particulares, enfraquecendo o sentimento de
identidade dessas minorias étnicas e diminuindo seu poder de contestação (D’ADESKY, 2005).
No entendimento de Alcida Rita Ramos (1993), no cenário político brasileiro o conceito
de etnia não tem nem força política, nem legitimidade ideológica, uma vez que a sociedade
brasileira se quer homogênea e integrada. Para a autora, “etnias são tidas como excrecências
sociais que a História impingiu à pátria e que devem ser aplainadas e diluídas na correnteza
nacional” (1993, p. 2).
Alguns defensores da causa indígena defendem o uso da expressão “nações indígenas”,
causando repulsa àqueles que consideram o emprego do termo ofensivo ou ameaçador à
soberania nacional.
14
Conforme a explicação de Ramos (1993, p. 2):
Desde que foi adotado no Brasil, o termo “nações indígenas” tem incomodado
muita gente, principalmente, nas duas últimas décadas. Governantes tomam-no
como expressão de perigo para a soberania nacional e protestam contra os
defensores dos índios que a usam como símbolo de luta pelos direitos humanos
dos povos indígenas, enquanto coletividades, por mais paradoxal que isso
pareça. Os índios, pelo menos alguns, parecem apropriar-se dele mais ou
menos como os indianistas do século passado (José de Alencar, por exemplo) se
apropriavam de símbolos indígenas para marcar a brasilidade face à Europa, ou
seja, como emblema de alteridade legítima.
Ramos (1993) acrescenta que a etnia, por ser um termo politicamente fraco, foi relegado
ao âmbito cultural, sendo adotada a expressão “nações indígenas como instrumento de luta na
arena do contato interétnico. Dessa forma, “para haver nação e nacionalismo é preciso uma boa
dose de anonimato e impessoalidade, ainda que ambos estejam informados por uma maneira
comum e própria de se ser anônimo e impessoal. Em outras palavras, é preciso haver a figura
ideológica do indivíduo” (RAMOS, 1993, p. 6). E conclui acertadamente a autora:
Se o conceito de etnia não é politicamente potente e legítimo para alçar a causa
indígena ao plano das grandes problemáticas nacionais a exemplo, entre outros,
dos sindicatos ou das organizações empresariais, o conceito de nação, por
inapropriado, mais parece ir contra do que a favor dessa causa, ao menos em
certas conjunturas cruciais para o país como foi a assembléia constituinte de
1987-88. Por transbordar de significado, o conceito de nação acaba esvaziando-
se, principalmente quando passa a ser uma metáfora política, como é o caso das
“nações indígenas”, sempre que tomada ao da letra. Se a singeleza de etnia
mantém a situação dos povos indígenas na obscuridade política, a
complexidade da nação ameaça confundi-la com um ofuscante holofote que os
expõe a todo tipo de oportunismo (1993, p. 8).
14
Alcida Rita Ramos emprega o termo “sociedades indígenas”. A Constituição Federal de 1988 optou pela expressão
“grupos indígenas” (art. 231, § 5º).
Segundo d’Adesky (2005), é necessário reconhecer que mesmo que a etnicidade implique
um diferencial comunitário, isso não afirma, necessariamente, um antinacionalismo. Deve-se
analisar qual a política instituída pelo Estado, para então se chegar a uma conclusão. Se a política
do Estado prega um represamento dos pluralismos étnicos em nome da promoção da identidade
comum nacional, por meio de políticas assimilacionistas e uniformizantes e na defesa de uma
homogeneidade cultural, acaba negando o direito de cada indivíduo de fazer parte de uma
identidade cultural diferenciada.
Assim, é necessário que a definição de etnia seja alargada, comportando novos elementos
capazes de conduzir o Estado a políticas de reconhecimento das minorias étnicas, bem como de
democratização dos espaços públicos e acesso igualitário aos meios de discussão e promoção.
Isso não significa que a nação deixaria de ter primazia sobre a etnia, mas as interligações desses
conceitos possibilitariam uma abertura às lutas dessas minorias, desde muito discriminadas e
depreciadas (D’ADESKY, 2005).
É com base nessa necessidade de abertura do conceito de etnia que d’Adesky (2005, p.
191) propõe entender etnia como
um grupo cujos membros possuem, segundo seus próprios olhos e ante os
demais, uma identidade distinta, enraizada na consciência de uma história ou de
uma origem comum, simbolizada por uma herança cultural comum que
caracteriza uma contribuição ou uma corrente diferenciada da nação. A
consciência desse fato é baseada em dados objetivos, tais como uma língua, raça
ou religião comum, por vezes um território comum, atual ou passado, ou ainda,
na ausência deste, redes de instituições e associações, embora alguns desses
dados possam faltar.
Este autor também no reconhecimento dos negros e índios pelo Estado uma afirmação
do pluralismo étnico, imprescindível para que se tenha uma idéia adequada da importância das
diferentes etnias e do respeito às suas diferenças. Para ele:
O reconhecimento da existência de um pluralismo étnico, imbuído do
reconhecimento adequado da imagem dos grupos étnicos pelo Estado, teria
também efeitos deletérios sobre o discurso universalista dominante, baseado na
idéia da fusão das raças e na assimilação por todos da cultura européia
supostamente superior. Tal reconhecimento adequado da imagem dos grupos
negros e indígenas iria sem dúvida contra o desejo daqueles que cultivam o ideal
de homogeneização racial e que acreditam nas virtudes da assimilação cultural
como soluções para diluir as diferenças e as desigualdades socioeconômicas
(2005, p. 192)
A etnicidade, porém, não é a única questão abordada pelo discurso diferencialista.
Muitos outros grupos minoritários têm a “diferença” como forma de luta, devido às realidades
discriminatórias vividas e as dificuldades de atingirem os direitos de cidadão, tão “garantidos”
pelo Estado. Entre esses grupos estão as mulheres, os gays, os deficientes e todos aqueles que
vêem seus “direitos humanos” constituírem algo invisível para o Estado. Existe um sentimento
de exclusão motivando as lutas pelo reconhecimento da diferença e há entre os integrantes desses
grupos não uma identidade étnica, mas um sentimento de formarem uma identidade coletiva,
baseada em valores e em vidas comuns.
A teoria de Charles Taylor
15
acerca da identidade e das políticas de reconhecimento é uma
das principais colaborações para a defesa do reconhecimento diferenciado de grupos minoritários
e excluídos, que não são atingidos ou beneficiados pelo respeito à dignidade da pessoa humana
promovido pelos ideais universalistas e igualitários e pelo ideal de democracia, em que todos os
indivíduos são considerados “livres e iguais”. Conforme Charles Taylor (1997), a democracia
introduziu a política de reconhecimento igualitário, porém a importância do reconhecimento foi
se modificando e aumentando a partir da noção de identidade individual, de autenticidade. A
identidade pressupõe que cada ser humano possui características próprias, que são formadas e
negociadas nas relações com os outros, dando ao reconhecimento dessa identidade pelos outros
uma importância fundamental.
Baseado em Herder, que afirma que cada ser humano tem a sua maneira original de ser,
sua própria medida, Charles Taylor (1997, p. 50) explica que:
Antes do final do século XVIII, ninguém havia pensado que as diferenças entre
seres humanos pudessem assumir este tipo de importância moral. Existe uma
determinada maneira de ser humano que é a minha maneira. Sou obrigado a
viver a minha vida de acordo com essa maneira, e não imitando a vida de outra
pessoa.
É essa maneira própria e original de ser, com uma identidade única e diferenciada, que
não deve ser oprimida e assimilada, devendo ser reconhecida e respeitada, que constitui os
fundamentos dos ideais do multiculturalismo e que quer introduzir uma nova concepção na busca
pelo respeito à dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos e a todos os aspectos que esse
respeito englobaria.
15
As teorias do autor acerca da identidade e do reconhecimento serão aprofundadas no item 1.3 deste trabalho.
D’Adesky (2005) chama a atenção para a diferenciação entre pluralismo cultural e
multiculturalismo, assegurando que o pleno reconhecimento da igualdade e da cidadania
associado ao tratamento igual de grupos étnicos que possuem uma cultura diferenciada é a base
para uma política multicultural e não de pluralismo cultural. Conforme este autor, “o pluralismo
cultural não abarca necessariamente a política de tratamento em de igualdade das diferentes
culturas que se encontram num dado território geográfico” (p. 199); já o multiculturalismo possui
a tendência de reconhecer a igualdade de valor intrínseco de cada cultura.
Voltando à questão da igualdade, d’Adesky (2005) questiona se o reconhecimento igual
entre os indivíduos, uma garantia constitucional, não deveria ser reforçado pela garantia de tratar
também como iguais os grupos étnicos e suas manifestações culturais. E, para responder a tal
indagação, basta lembrar do argumento de que a igualdade garantida pela Constituição Federal
brasileira não atinge “igualmente” todos os representantes do povo brasileiro.
Santos e Nunes (2003) afirmam que as políticas de integração dos índios do Brasil e da
Colômbia na cidadania liberal constituem uma negação dos direitos coletivos destes povos,
ensejando a necessidade de políticas emancipátorias e a invenção de novas cidadanias. Os
autores, no entanto, reconhecem a tensão existente entre a igualdade e a diferença e sua
implicação nessas lutas e completam:
A igualdade ou a diferença, por si sós, não o condições suficientes para uma
política emancipatória. O debate sobre os direitos humanos e a sua reinvenção
como direitos multiculturais, bem como as lutas dos povos indígenas e das
mulheres, mostram que a afirmação da igualdade com base em pressupostos
universalistas como os que determinam as concepções ocidentais,
individualistas, dos direitos humanos, conduz à descaracterização e negação das
identidades, das culturas e das experiências históricas diferenciadas,
especialmente à recusa do reconhecimento de direitos coletivos. (2003, p. 63).
Assim sendo, a afirmação da diferença, por si só, também induz a um problema: pode
servir de justificativa para a exclusão, inferiorização e discriminação dos “diferentes” (SANTOS;
NUNES, 2003). É justamente diante dessa tensão entre a diferença e a igualdade que é possível
perceber a necessidade de reinvenção da cidadania e dos ideais de igualdade apregoados pelas
políticas liberais e que desde muito definem os caminhos da democracia em países que possuem
minorias excluídas e esquecidas em nome dos direitos dos cidadãos “livres e iguais”. Isso, porém,
sem esquecer da lição de Santos, para quem deve-se “defender a igualdade sempre que a
diferença gerar inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade implicar
descaracterização” (SANTOS; NUNES, 2003, p. 64).
E é realmente a abertura e a receptividade do tratamento verdadeiramente igual que estão
no cerne das reivindicações e das lutas dos grupos minoritários brasileiros, como os negros e os
índios. As reivindicações perpassam muitas esferas que são indispensáveis para a sobrevivência
material e cultural desses grupos e requerem políticas em áreas fundamentais, como no sistema
educacional, na proteção aos conhecimentos tradicionais, na garantia dos territórios
tradicionalmente ocupados por esses grupos, na sustentabilidade material e na sobrevivência
física do grupo, dentre outras.
D’Adesky (2005, p. 196), nesse viés, analisa as conseqüências mínimas que a
receptividade das reivindicações no sentido de tratamento igual pelo Estado trariam para os
grupos étnicos minoritários:
Por um lado, tornaria possível que instituições públicas viessem a apoiar, no
decorrer do tempo, culturas distintas, no sentido de garantir a percepção
adequada, pela sociedade, da imagem de grupos étnicos que julgam vitais tanto a
preservação de uma identidade cultural particular para os seus membros e seus
descendentes quanto o respeito às práticas, atividades e concepções de mundo
provenientes de suas culturas. De outro lado, asseguraria, no âmbito do sistema
educacional público, mas também nos organismos culturais do Estado, o
alargamento dos horizontes culturais, intelectuais e espirituais, desse modo
enriquecendo a nação com perspectivas culturais e intelectuais diferenciadas.
Dessa forma, pode-se argumentar em favor de um “multiculturalismo democrático”
(d’Adesky, 2005, p. 234) como política capaz de reconhecer as singularidades de cada cultura,
sem a pretensão de se identificar uma cultura como universal e ampliando o diálogo e o respeito
entre as diversas formas de manifestação e identificação cultural. Nem o universalismo, nem o
diferencialismo ou relativismo cultural, mas antes o respeito e a promoção de grupos culturais
depreciados e discriminados, por meio de políticas multiculturais que venham a aliar os
princípios constitucionais da dignidade, cidadania e igualdade ao reconhecimento da diversidade
cultural.
1.3 Identidade, diferença e reconhecimento
Identidade, para Charles Taylor (1997, p. 45), é “a maneira como uma pessoa se define,
como é que as suas características fundamentais fazem dela um ser humano”. E a respeito da
formação da identidade, acrescenta o autor:
A tese consiste no fato de a nossa identidade ser formada, em parte, pela
existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo
reconhecimento incorrecto dos outros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas
serem realmente prejudicadas, serem alvo de uma verdadeira distorção, se
aqueles que os rodeiam reflectirem uma imagem limitativa, de inferioridade ou
de desprezo por eles mesmos (1997, p.45).
Conforme Charles Taylor (1997), um aspecto definitivo da condição humana deve ser
considerado para a compreensão da estreita relação entre identidade e reconhecimento: o caráter
fundamentalmente dialógico dessa condição. Isso tudo graças à capacidade de entendimento entre
as pessoas, adquirida por meio de linguagens
16
humanas de expressão, ricas de significado e
fundamental na formação da identidade. Como as pessoas não aprendem sozinhas as linguagens
necessárias a sua autodefinição, a interação com os outros (“outros-importantes”, para Charles
Taylor) possibilita a formação da identidade, mediante o diálogo e a negociação (CHARLES
TAYLOR, 1997).
A política de reconhecimento é fundamental para Charles Taylor, pela sua capacidade de
formar a identidade do indivíduo. E o não-reconhecimento ou reconhecimento incorreto, por sua
vez, também tem o poder de afetar as pessoas (negativamente), podendo constituir-se até em
formas de agressão. De acordo com o autor,
Perante estas considerações, o reconhecimento incorreto não implica uma
falta do respeito devido. Pode também marcar as suas vítimas de forma cruel,
subjugando-as através de um sentimento incapacitante de ódio contra elas
mesmas. Por isso, o respeito devido não é um acto de gentileza para com os
outros. É uma necessidade humana vital (1997, p. 46).
Confirmando a teoria do não-reconhecimento de Charles Taylor, Semprini (1999)
acrescenta que as experiências da diferença e do encontro com o outro, apesar de se constituírem
em condição de emergência da identidade, também podem tornar-se experiências difíceis. Para
este autor:
16
“Defino linguagem no sentido lato, abarcando o as palavras que proferimos, mas também outros modos de
expressão, através dos quais nos definimos, incluindo as “linguagens” da arte, do gesto, do amor e outras do gênero”
(CHARLES TAYLOR, 1997, p. 52).
Quando acontece a interação, um indivíduo pode sentir que sua auto-imagem
retransmitida pelo outro por meio de palavras, atitudes, comportamentos é
uma imagem desvalorizante, discriminatória, ou até agressiva. Esta experiência
pode perturbar o sujeito e instalar no âmago de sua identidade uma dúvida sobre
o seu real valor e o valor das metas que ele estabeleceu para si mesmo. É esta a
grande queixa das minorias contra a maioria monocultural (1999, p. 105).
Na visão de Charles Taylor (1997), existe uma política de reconhecimento igualitário,
introduzida pela democracia e que se baseia na exigência de um estatuto igual paras as diversas
culturas. A própria importância do reconhecimento, contudo, modificou-se a partir de novas
compreensões, como a da idéia de identidade individualizada, surgida a partir do final do culo
XVIII. A identidade individualizada é aquela que cada ser descobre em si mesmo, sendo
verdadeiro com sua própria originalidade. E é com base nessa idéia que se torna possível
entender o ideal moderno de autenticidade e os objetivos de auto-realização que acolhem este
ideal.
E na relação de formação da identidade pode-se afirmar que a individualidade adquire
fundamental importância. Ela depende do contato e das interações com os outros, mediante as
experiências sociais entre o próprio grupo de pertença e entre este e outros grupos. Dessa forma,
a idéia de indivíduo como ser moral e dotado de um espírito cognitivo completo e autônomo, que
nega a importância das interações sociais e prega o exercício do livre-arbítrio independente de
condições históricas, culturais, tradicionais, nega também as possibilidades de construção de uma
identidade aos indivíduos (SEMPRINI, 1999). Nesse sentido, para Semprini (1999, p. 102),
uma teoria intersubjetiva do indivíduo procura reconhecer a importância das
noções de enraizamento e de pertença na construção do eu. Neste sistema, a
identidade individual é concebida como uma estrutura oca, que toma forma
somente no quotidiano do processo de educação e aprendizagem. Isto fornece ao
indivíduo um sistema de valores e de normas de conduta, permitindo-lhe
“compreender” o mundo e sua posição no interior deste.
Assim, conjugando a idéia de individualidade com a importância das relações dialógicas
com os outros, pode-se estabelecer que a identidade “é aquilo que nós somos, “de onde nós
provimos”. Assim definido, é o ambiente no qual os nossos gostos, desejos, opiniões e aspirações
fazem sentido”(CHARLES TAYLOR, 1997, p. 54). A questão do reconhecimento adquire,
então, uma nova dimensão a partir da noção de identidade e de autenticidade. Para Charles
Taylor (1997, p. 56):
A importância do reconhecimento é, agora, universalmente admitida, de uma
forma ou de outra: no plano íntimo, estamos todos conscientes de como a
identidade pode ser formada ou deformada no decurso da nossa relação com os
outros-importantes; no plano social, temos uma política permanente de
reconhecimento igualitário. Ambos os planos sofreram a influência do ideal de
autenticidade, à medida que este foi amadurecendo, e o reconhecimento joga um
papel essencial na cultura que surgiu à volta desse ideal.
Hall (1995) diferencia três concepções diferentes de identidade, que merecem ser aqui
destacadas:
a) O sujeito do Iluminismo, pelo qual o indivíduo é visto como um ser centrado e
unificado, cujas capacidades (razão, consciência e ação) emergiam com o seu nascimento e
permaneciam com ele durante a existência individual;
b) O sujeito sociológico, que é aquele que surge a partir da compreensão de que o núcleo
interior do indivíduo não era autônomo, mas formava-se em relação a “outros significativos”. A
essência interior do sujeito (o “eu real”) é modificada a partir do diálogo contínuo com os
mundos culturais externos. “O sujeito que anteriormente tinha experiência de uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma, mas de muitas
identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” (1995, p. 11).
c) O sujeito pós-moderno, que é isento de uma identidade fixa e esta, por sua vez, é
“formada e transformada continuamente em relação às maneiras pelas quais somos representados
e tratados nos sistemas culturais que nos circundam” (1995, p. 12). É uma identidade
historicamente (e não biologicamente) definida.
Essa concepção de identidade do sujeito pós-moderno conduz a afirmação de Hall (1995)
de que a identidade totalmente segura, unificada e coerente é uma fantasia. A partir da
multiplicação dos sistemas de significado e de representação cultural, uma multiplicidade de
identidades pode surgir.
Nesse propósito, é possível afirmar que a forma de conceituação do sujeito e da
identidade foi alterada pela modernidade, causando uma nova forma de individualismo, em cujo
centro estava uma nova concepção de sujeito individual e de sua identidade. Para Hall (1995, p.
20), “isso não significa que as pessoas, em tempos pré-modernos, não fossem indivíduos, mas
que a individualidade era tanto “vivida”, “experienciada” como “conceitualizada” de outra
maneira”. A nova concepção
17
da qual se fala é aquela em que o indivíduo é percebido como um
sujeito individual, com suas capacidades de raciocinar e pensar (era o sujeito cartesiano de
Descartes) (HALL, 1995).
À medida, porém, que as sociedades modernas cresceram de modo mais complexo, uma
concepção mais social de sujeito emergiu. As teorias liberais clássicas foram obrigadas a chegar
a um acordo com as estruturas do Estado nacional e com as grandes massas que criam uma
democracia moderna (HALL, 1995). E “o indivíduo passou a ser visto como mais localizado e
“instalado” no interior dessas grandes estruturas e formações de sustentação da sociedade
moderna” (HALL, 1995, p. 24).
Castells entende por identidade a fonte de significado e de experiência de um povo. É “o
processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto
de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de
significado” (2001, p. 22).
O autor chama a atenção para a diferenciação entre a identidade e os papéis
18
desempenhados pelos indivíduos na sociedade. Enquanto os papéis (trabalhador, pai, mãe,
sindicalista, jogador de basquete, por exemplo) são definidos por normas das instituições e
organizações sociais, as identidades são originadas pelos próprios atores sociais e são construídas
por meio de processos de individuação. Embora as identidades possam, algumas vezes, ser
formadas por instituições dominantes, isso ocorre porque os indivíduos internalizam esse desejo
de construir sua identidade a partir dessas instituições (CASTELLS, 2001, p. 23).
Desse modo, é possível afirmar que toda e qualquer identidade é construída e a questão é
definir como, por que, por quem, a partir de quê ocorre essa construção. Essa construção parte de
matéria-prima fornecida pela História, pela Geografia, pela Biologia, pelas instituições, pela
17
“Muitos dos grandes movimentos no pensamento e cultura ocidentais contribuíram para a emergência desta nova
concepção: A Reforma e Protestantismo, que tornaram a consciência individual livre das instituições religiosas da
Igreja, e a expuseram diretamente aos olhos de Deus; o Humanismo Renascentista, que colocou o Homem no centro
do Universo; as revoluções científicas, que dotaram o Homem de faculdades e capacidades de questionar, investigar
e desvendar os mistérios da natureza; e o Iluminismo, centrado na imagem do Homem racional e científico, liberto
do dogma e da intolerância, diante de quem a totalidade da história humana foi disposta para seu entendimento e
controle” (HALL, 1995, p. 21).
18
“Percebe-se, ainda, que os papéis são aprendidos mas podem ser revistos; podem ser perdidos, tirados e mesmo
abandonados; a pessoa pode variar, modificar e redefinir papéis, existem papéis relacionados a outros papéis (ex. o
papel do filho implica um pai) e todo relacionamento consiste de diversos papéis, ou seja, em suma, os papéis são
dinâmicos. Na verdade, nenhum papel é desempenhado sozinho nem de forma exclusivamente protagônica, vez que
todos os papéis são complementares ante sua situação de unidade de ação realizada em um ambiente humano. Assim,
o modo de ser de um indivíduo decorre dos papéis que exerceu como protagonista e como co-autor, além do que
colheu com as próprias respostas dessas interações” (CUNHA, 2004, p. 48).
memória coletiva, por desejos e fantasias pessoais, por crenças religiosas, entre outros fatores, e
seus conteúdos são processados e reorganizados pelos indivíduos ou pela sociedade em função de
sua vida e de sua cultura (CASTELLS, 2001, p. 23).
Castells elenca três formas e origens de construção de identidades: 1) Identidade
legitimadora: que foi introduzida pelas instituições dominantes da sociedade para expandir e
racionalizar sua dominação diante dos atores sociais; 2) Identidade de resistência: criada por
atores sociais dominados ou estigmatizados pelas forças de dominação e marcada pela resistência
aos princípios que definem as instituições dominantes; 3) Identidade de projeto: criada por atores
sociais que constroem uma nova identidade a partir de materiais culturais que estão a sua
disposição e com o intuito de redefinir a sua posição na sociedade e de buscar a transformação da
estrutura social (2001, p. 24).
Analisando-se as formas de construção de identidade, é possível concluir que cada uma
delas conduz a um resultado. A identidade legitimadora origina uma sociedade civil, ou seja,
organizações, instituições e atores sociais estruturados e organizados e que irão reproduzir a
identidade que racionaliza as fontes de dominação. Com a identidade de resistência tem-se a
formação de comunidades, a partir de formas de resistência coletiva diante de alguns tipos de
opressão. com a identidade de projeto tem-se a formação de sujeitos
19
(ou atores sociais
coletivos) que constroem sua identidade a partir de um projeto de vida diferenciado, que almeja
a transformação social como prolongamento dessa identidade (CASTELLS, 2001, p. 24-26).
Diante da realidade do mundo atual, afirma-se que as identidades legitimadoras perderam
sua força e sua capacidade de manter um vínculo com a vida e os valores estampados pela
maioria da sociedade, fazendo surgir as identidades de resistência, que lutam pelas suas crenças,
seus valores e criam uma identidade comunal. Já as identidades de projeto (capazes de reconstruir
uma nova sociedade civil, um novo Estado), por seu turno, surgem não a partir das identidades
legitimadoras, mas sim do desenvolvimento das atuais identidades de resistência,
20
constituindo-
se em novos sujeitos históricos (CASTELLS, 2001). Exemplo de transformação de identidade de
resistência em identidade de projeto, voltando-se à transformação da sociedade, é o do
movimento ambientalista, que, conforme Castells (2001), parte da defesa do meio ambiente de
19
A partir da concepção de Alain Touraine, Castells afirma que “sujeitos não são indivíduos, mesmo considerando
que são constituídos a partir de indivíduos. São o ator social coletivo pelo qual indivíduos atingem o significado
holístico em sua experiência” (2001, p. 26).
20
Conforme Castells (2001, p. 420), porém, é importante ressalvar que nem sempre as identidades de resistência
originarão identidades de projeto.
determinada área para um projeto ecológico que integre humanidade e natureza, baseado na
identidade sociobilógica das espécies.
A identidade é um conceito muito contestado e que, quando está em jogo, surge sempre
uma batalha a ser vencida contra a dissolução e a fragmentação, em que dois lados jogam, um
deles no intuito de devorar e o outro de evitar que isso ocorra (BAUMAN, 2005). Nesse sentido,
cabe destacar a afirmação de Bauman (2005, p. 82-83):
Sim, a identidade” é uma idéia inescapavelmente ambígua, uma faca de dois
gumes. Pode ser um grito de guerra de indivíduos ou das comunidades que
desejam ser por estes imaginadas. Num momento o gume da identidade é
utilizado contra as “pressões coletivas” por indivíduos que se ressentem da
conformidade e se apegam a suas próprias crenças (que “o grupo” condenaria
como exemplos de “desvio” ou “estupidez”, mas, em todo caso de
anormalidade, necessitando ser curados ou punidos). Em outro momento é o
grupo que volta o gume contra um grupo maior, acusando-o de querer devorá-lo
ou destruí-lo, de ter a intenção viciosa e ignóbil de apagar a diferença de um
grupo menor, forçá-lo ou induzi-lo a se render ao seu próprio “ego coletivo”,
perder prestígio, dissolver-se... Em ambos os casos, porém, a “identidade”
parece um grito de guerra usado numa luta defensiva: um indivíduo contra o
ataque de um grupo, um grupo menor e mais fraco (e por isso ameaçado) contra
uma totalidade maior e dotada de mais recursos (e por isso ameaçadora).
Bauman (2005) também reconhece no liberalismo e no comunitarismo tentativas opostas
e extremas de impor à identidade um valor único. Para ele, as batalhas pela identidade não devem
seguir a pureza de nenhuma das teorias, na verdade essas batalhas “são, e o podem deixar de
ser, misturas das demandas “liberais” pela liberdade de autodefinição e auto-afirmação, por um
lado, e dos apelos “comunitários” a uma “totalidade maior do que a soma das partes”, bem como
à prioridade sobre os impulsos destrutivos de cada uma das partes, por outro” (BAUMAN, 2005,
p. 84).
De acordo com Bauman (2005), é comum afirmar que as comunidades às quais as
identidades se referem são de dois tipos: as comunidades de vida e de destino (em que os
membros vivem juntos numa ligação absoluta) e as comunidades fundidas por idéias ou por uma
variedade de princípios. Conforme o autor, porém, somente com a exposição às comunidades
fundidas por idéias ou princípios é que surge a questão da identidade, e “é porque existem tantas
idéias e princípios em torno dos quais se desenvolvem essas “comunidades de indivíduos que
acreditam” que é preciso comparar, fazer escolhas, fazê-las repetidamente, reconsiderar escolhas
feitas em outras ocasiões, tentar conciliar demandas contraditórias e freqüentemente
incompatíveis” (2005, p. 17).
Além das considerações feitas acerca da identidade, acrescenta-se que a concepção do
termo que é base para as afirmações deste trabalho o é a identidade que define os
nacionalismos extremos, os grupos que desejam um “fechamento” cultural drástico em nome de
uma única religião, crença ou cultura. A defesa da identidade que é evocada em nome das
comunidades tradicionais considera o desejo desses grupos de continuarem a viver e a manter
viva sua cultura, o em nome de um pertencimento de destino, mas em nome de um
pertencimento que seja também o reflexo de uma escolha (de manter sua cultura e de não se
renderem à assimilação), de uma identificação que os situa como peças importantes num cenário
mundial cada vez mais fragmentado.
Bauman (2005, p. 19) entende que “as “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa
própria escolha, outras infladas e lançadas pelas pessoas a nossa volta, e é preciso estar em alerta
constante para defender as primeiras em relação às ultimas”. Nesse sentido, parece correta a visão
do autor quando defende a afirmação de uma identidade também a partir de escolhas, pois,
conforme referido, muitas vezes as opiniões e o reconhecimento (incorreto) que os outros
fazem de nós podem indicar imagens limitativas e degradantes, que não refletem o verdadeiro
sentido de “ser alguém”, de “pertencer” a uma coletividade.
A questão da diferença é também fundamental para o multiculturalismo e está no cerne
das discussões acerca da identidade e cabe aqui abordá-la. A diferença é processo humano e
social, também fruto do processo histórico e constitui ao mesmo tempo um resultado e uma
condição transitória. É resultado quando se considera o passado e privilegia-se o processo que
resultou em diferença, e é uma condição transitória quando se privilegia a continuidade da
dinâmica, que irá constituir uma configuração posterior (SEMPRINI, 1999).
Woodward (2005, p. 39) argumenta que “as identidades são fabricadas por meio da
marcação da diferença” e, que “essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas
simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social”. A identidade, então,
não é o oposto da diferença, mas depende dela, na medida em que a diferença separa uma
identidade da outra.
Com base na diferença, Semprini (1999) afirma que o multiculturalismo lança a
problemática do lugar e dos direitos das minorias em relação à maioria, discutindo a questão da
identidade e de seu reconhecimento. Para ele:
A emergência de uma minoria depende não somente do fato, para o grupo em
questão, de chegar a se perceber como uma “minoria”, ou seja, como uma
formação social apresentando suficientes traços comuns para adquirir
homogeneidade e uma visibilidade interna aos olhos de seus membros, mas
igualmente pelo fato de conquistar uma visibilidade externa e chegar a ser
percebido como “minoria” pelo espaço social circundante (1999, p. 59).
Outra questão crucial relativa ao multiculturalismo é a da igualdade em contraposição à
diferença. A busca pela igualdade pode, na verdade, ser discriminatória, uma vez que alimenta
uma utopia universalista, própria das sociedades liberais. Essa igualdade, na realidade, não
engloba o conjunto dos cidadãos, dado que o acesso ao espaço social não é garantido a todos,
conforme esse ideal preconiza. Além disso, conforme Semprini (1999, p. 93),
ela é somente uma igualdade ilusória, pois mesmo quando está estendida a todo
o corpo social, ela refere-se apenas aos direitos formais, administrativos, legais
do indivíduo e não se aplica às desigualdades econômicas, culturais ou sociais.
Esta igualdade também desconsidera as especificidades étnicas, históricas,
identitárias – em suma, a diferença – que torna o espaço social heterogêneo.
O problema do gerenciamento da diferença,
21
embora não seja exclusivamente um
problema ocidental, vê-se aguçado nas democracias liberais, nas quais o respeito à diferença é
uma das balizas constitucionais, integrando um dos fundamentos de sua legitimidade. A noção
de diferença, porém, foi diluída na noção de igualdade, gerando assim outra forma de diferença: a
desigualdade. A cultura ocidental, na verdade, mostrou-se incapaz de incluir a diferença em suas
atividades e sua ideologia universalista leva a transformar a diferença por vezes num estado
transitório e, por outras, num fato pessoal e privado (SEMPRINI, 1999).
O reconhecimento da crescente participação da dimensão subjetiva nas reivindicações
multiculturais também fornece bases para a explicação da ineficiência dos modelos de igualdade
da sociedade liberal. Como afirma Semprini (1999, p. 108-109):
Igualdade diante da lei, ampliação do espaço público por vias jurídicas e
administrativas, a instauração de uma legislação que garanta a igualdade de
oportunidades de todos os cidadãos e estatuto do cidadão a todos os membros da
sociedade são condições sine qua non de uma sociedade realmente liberal. (...)
Mesmo sendo necessárias estas soluções arriscam-se a tornar-se insuficientes.
21
“A história demonstra que as pequenas comunidades pré-industriais, as sociedades de caráter étnico e à força as
diferentes formas de totalitarismo, demonstram existir uma dificuldade básica de aceitar a diferença” (SEMPRINI,
1999, p. 157).
São exatamente a igualdade formal e um acesso mais universalizado ao espaço
público que estão, em parte, ligados à origem dos atuais conflitos multiculturais.
Bauman (2005) reconhece na identificação um importante fator de estratificação social,
polarizando os que podem optar por uma ou outra identidade e aqueles que o possuem tal
possibilidade. Para o autor:
Num dos pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e
desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-
as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária.
No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da
identidade, que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final
se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros
identidades de que eles próprios se ressentem, mas não têm permissão de
abandonar nem das quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam,
humilham, desumanizam, estigmatizam...(2005, p. 44).
E é justamente nessa idéia de negação da escolha por uma identidade determinada que é
possível observar o que está no cerne da luta pelo reconhecimento e pela afirmação da identidade
cultural das comunidades tradicionais: esses grupos não estão mais calados diante da negação
da escolha por uma identidade, eles não almejam alcançar determinada posição social que
possibilite atingir um pólo privilegiado. O seu desejo é de reconhecimento, de valorização e de
respeito ao que verdadeiramente são, à sua cultura singular, à sua importância para o patrimônio
comum da humanidade. Essa é a sua escolha.
1.4 Espaço social, emancipação e cidadania: a afirmação das lutas multiculturais
Santos (2005) defende a tese de que as formações sociais capitalistas são constituídas por
seis conjuntos de relações sociais (seis espaços estruturais): o espaço doméstico, o espaço da
produção, o espaço do mercado, o espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço
mundial. Cada um dos espaços estruturais definidos por Santos (2005) é também composto por
seis dimensões: unidade de prática social,
22
instituições,
23
dinâmica de desenvolvimento,
24
forma
de poder,
25
forma de direito
26
e por fim, forma epistemológica.
27
O autor caracteriza os espaços
estruturais como “matriz das múltiplas dimensões de desigualdade e de opressão nas sociedades
capitalistas contemporâneas e no sistema mundial como um todo e, conseqüentemente, como
matriz das lutas emancipatórias mais relevantes” (SANTOS, 2005, p. 274).
Ainda de acordo com Santos (2005), o espaço doméstico pode ser definido como o
conjunto de relações sociais de produção e reprodução da domesticidade e do parentesco, entre
parceiros conjugais, entre estes e seus filhos, entre os próprios filhos e demais relações parentais.
O espaço da produção é aquele em que ocorre o conjunto de relações sociais em torno da
produção de valores de troca econômicos e dos processos de trabalho e entre as demais relações
de produção (entre produtores e aqueles que se apropriam da mais-valia, por exemplo) e relações
na produção (entre os trabalhadores, por exemplo). O espaço do mercado é aquele em que se
desenvolve o conjunto de relações sociais de distribuição e de consumo de valores de troca. Já no
espaço da comunidade são produzidas e reproduzidas identidades e identificações, territórios
físicos e simbólicos, com referência a origens ou destinos comuns. No espaço da cidadania
ocorrem as relações sociais que constituem a esfera pública e as relações de obrigação vertical
entre os cidadãos e o Estado. E, por fim, o espaço mundial é o conjunto das relações sociais
locais ou nacionais em que se dá a soma total dos efeitos pertinentes internos das relações sociais
22
A unidade de prática social no espaço doméstico é a diferença sexual e geracional; no espaço da produção é a
classe; no espaço de mercado é a relação cliente-consumidor; no espaço da comunidade são a etnicidade, a raça, a
nação, o povo e a religião; no espaço da cidadania é a própria cidadania; e no espaço mundial é o Estado-nação
(SANTOS, 2005, p. 273).
23
As instituições do espaço doméstico são o casamento, a família e o parentesco; no espaço da produção, a fábrica e
a empresa; no espaço de mercado, o próprio mercado; no espaço da comunidade, a própria comunidade, a
vizinhança, a região, as organizações populares de base, as Igrejas; no espaço da cidadania, o Estado; e no espaço
mundial, o sistema inter-estatal, organismos e associações internacionais, tratados internacionais (SANTOS, 2005, p.
273).
24
A dinâmica de desenvolvimento no espaço doméstico é a maximização da afetividade; no espaço da produção é a
maximização do lucro e da degradação da natureza; no espaço de mercado, a maximização da utilidade e da
mercadorização das necessidades; no espaço da comunidade, a maximização da identidade; no espaço da cidadania, a
maximização da lealdade; e no espaço mundial, a maximização da eficácia (SANTOS, 2005, p. 273).
25
A forma de poder no espaço doméstico é o patriarcado; no espaço da produção, a exploração e “natureza
capitalista”; no espaço de mercado, o fetichismo das mercadorias; no espaço da comunidade, a diferenciação
desigual; no espaço da cidadania, a dominação; e no espaço mundial, a troca desigual (SANTOS, 2005, p. 273).
26
A forma de direito no espaço doméstico é o direito doméstico; no espaço da produção é o direito da produção; no
espaço de mercado, o direito da troca; no espaço da comunidade, o direito da comunidade; no espaço da cidadania, o
direito territorial (estatal); e no espaço mundial, o direito sistêmico (SANTOS, 2005, p. 273).
27
A forma epistemológica no espaço doméstico é o familismo, a cultura familiar; no espaço da produção, o
produtivismo, tecnologismo, formação profissional e cultura empresarial; no espaço de mercado, o consumismo e a
cultura de massas; no espaço da comunidade, o conhecimento local, a cultura da comunidade e a tradição; no espaço
da cidadania, o nacionalismo educacional e cultural, a cultura cívica; e no espaço mundial, a ciência, o progresso
universalístico, a cultura global (SANTOS, 2005, p. 273).
pelas quais se produz e reproduz a divisão global do trabalho. “É a matriz organizadora dos
efeitos pertinentes das condições e das hierarquias mundiais sobre os espaços doméstico, da
produção, do mercado, da comunidade e da cidadania de uma determinada sociedade” (SANTOS,
2005, p. 278).
E a partir desses seis domínios tópicos o autor argumenta que somente haverá
emancipação se os topoi
28
que exprimem as relações sociais capitalistas forem substituídos por
outros que estejam assentes em políticas de reconhecimento (identidade) e em políticas de
redistribuição (igualdade). Dessa forma:
Não pode haver emancipação sem uma tópica de emancipação. E isso pressupõe
a substituição, no espaço doméstico, de uma tópica patriarcal por uma tópica da
libertação da mulher; no espaço da produção, a substituição de uma tópica
capitalista por uma tópica eco-socialista; no espaço do mercado, a substituição
de uma tópica do consumismo fetichista por uma tópica de necessidades
fundamentais e satisfações genuínas; no espaço da comunidade, a substituição de
uma tópica chauvinista por uma tópica cosmopolita; no espaço da cidadania, a
substituição de uma tópica democrática fraca por uma tópica democrática forte;
no espaço mundial, a substituição de uma tópica do Norte por uma tópica do Sul
(SANTOS, 2005, p. 110).
Uma das conseqüências que podem emergir a partir das crescentes lutas multiculturais é
a necessidade de redefinição do espaço social. Com a crise do paradigma político, explicada pela
ineficiência e descrença na capacidade de sugerir um modelo adequado para o arranjo do espaço
social, um paradigma sociocultural surge para modificar a concepção e a percepção do espaço
coletivo e das entidades que o compõem (SEMPRINI, 1999).
No paradigma político dominante, a sociedade é pensada conforme um modelo que indica
verticalidade: tem-se a pirâmide, a montanha e a escada, em que cada camada corresponde a
determinado grupo social e onde as classes dominantes representam o topo, a elite. Os grupos
formadores da base da pirâmide são os marginalizados, dominados e explorados, definidos a
partir de suas condições econômicas, demográficas ou profissionais (SEMPRINI, 1999).
28
De acordo com Santos (2005, p. 99), “os topoi ou loci são “lugares-comuns”, pontos de vista amplamente aceites,
de conteúdo muito aberto, inacabado ou flexível, e facilmente adaptável a diferentes contextos de argumentação”. E
acrescenta: “Nas diferentes culturas, os topoi surgem geralmente agrupados em pares de elementos opostos (o topos
da quantidade contra o da qualidade, ou o topos clássico da superioridade do eterno contra o topos romântico da
superioridade do efêmero). O conjunto dos topos dominantes nos diferentes pares, num determinado tempo e lugar,
constitui a constelação intelectual hegemônica desse período e introduz-se, de uma maneira ou de outra, em todas as
áreas de conhecimento. Os topoi subordinados não são suprimidos, mas apenas usados em discursos argumentativos
marginais ou apresentados nos discursos centrais sob o disfarce de topoi contrários” (SANTOS, 2005, p. 101-102).
No paradigma sociocultural, o modelo topológico é do tipo horizontal, no qual a oposição
alto-baixo é substituída por uma oposição centro-periferia. O espaço social é concebido como
uma superfície plana, com limites incertos e conteúdo indeterminado. Enquanto no paradigma
político tradicional a escalada social -se pela ascensão, no paradigma sociocultural fala-se em
deslocamento, em aproximação (SEMPRINI, 1999). E conforme este autor:
O acesso ao espaço cultural é feito por inclusão, vencendo-se os limites externos
do sistema. O avanço para o centro se faz conforme uma lógica de integração,
segundo a qual o indivíduo ou o grupo assumem progressivamente os valores e
comportamentos característicos do centro do sistema (1999, p. 118).
A aproximação dos grupos minoritários ao espaço social contribui para a formação de sua
identidade, uma vez que esta, pelo menos em um dos níveis, é também formada pela interação
social. Dessa forma, uma abertura do espaço social pode colaborar para a afirmação e para a
auto-estima do grupo, para a sua conservação existencial e, principalmente, para o
reconhecimento de que esses grupos são constitutivos da identidade nacional, promovendo a
diversidade cultural brasileira.
Além da necessária ampliação do espaço social, que ocorrer também uma modificação
em seu conteúdo para que as lutas multiculturalistas modifiquem realmente a configuração deste
espaço. Assim, com o acesso de novos grupos e de novas reivindicações, a homogeneidade do
espaço público deve dar lugar à heterogeneidade, propiciando espaço para o reconhecimento e
para as considerações das diferenças.
Diante das situações reais de opressão e marginalização sofridas pelas minorias e pelos
povos considerados “diferentes”, é difícil acreditar na criação de um espaço autenticamente
multicultural. Algumas condições, no entanto, poderiam auxiliar nessa construção, segundo
avaliação de Semprini (1999, p. 146-148):
1) Em primeiro lugar, deve-se considerar o papel crescente das instâncias individuais
(como a realização pessoal, a subjetividade), dos fatores socioculturais (como os valores, os
estilos de vida) e reivindicações identitárias (como a necessidade de reconhecimento).
2) Em segundo lugar, o espaço multicultural deve ser reconhecido como dinâmico e
interativo, um espaço de sentido.
3) Em terceiro lugar, devem ser consideradas as diferentes manifestações dos personagens
sociais envolvidos, a partir das múltiplas percepções que os diferentes grupos possuem do espaço
social, para que realmente ocorra uma transição para um espaço multicultural.
4) Em quarto lugar, as reivindicações multiculturais devem ser situadas em sua própria
perspectiva. Isso significa que as raízes das reivindicações identitárias encontram-se numa
frustração cultural ou marginalização social. Dessa forma, o ressentimento pode tornar-se um
“catalisador identitário”.
5) E, por fim, deve-se reconhecer que os conflitos identitários típicos de sociedades pós-
industriais se dão entre sistemas temporais, entre ritmos discordantes. Assim, um espaço
multicultural deve buscar a harmonização entre esses sistemas temporais diferentes.
Nessa busca pela ampliação do espaço social percebe-se, de acordo com Touraine (1998),
que o próprio ideal de democracia passa por uma transformação fundamental, definindo um
sujeito pessoal, democrático e redefinindo a democracia como política do sujeito, contrapondo-se
à imagem dominante da modernidade em que a racionalização visava à abolição das diferenças, à
normatização e à padronização de comportamentos. Conforme este autor:
O pensamento democrático, que era um pensamento do futuro, tornou-se um
meio de combinar presente e passado. É em nome de um passado particular que
se reclama a liberdade; não é mais em nome de um futuro indefinido, comum a
todos, ponto de convergência final. O pensamento político das Luzes e das
revoluções, carregado de espírito democrático para agir como força de
destruição dos poderes privados, das barreiras sociais e da intolerância cultural,
tornou-se cada vez mais antidemocrático, elitista e mesmo repressivo quando
identifica uma nação, uma classe social, uma idade da vida ou um gênero com a
razão, justificando assim sua dominação sobre outras categorias (1998, p, 102).
Nessa perspectiva, Touraine (1998, p. 90) afirma que os termos “iguais” e “diferentes”
possuem uma interdependência, na medida em que a identificação da sociedade com princípios
universalistas (com valores superiores) dá lugar a um sistema social enfraquecido pelas mudanças
incessantes que o afetam e pela força da economia sobre as instituições e os mecanismos de
controle social, abrindo espaço para que os atores sociais reivindiquem igualdade de
oportunidades aliada ao respeito à diversidade. Para o autor, o abandono de um princípio superior
é o que possibilita a combinação da igualdade e da diferença, caminhando-se do cidadão ao
sujeito pessoal, como alternativa para possibilitar que cada indivíduo possa combinar sua
participação no universo instrumental com a reintegração e reconstrução de sua identidade
pessoal e coletiva.
Santos (2005) conceitualiza a crise final da modernidade e a transição paradigmática que
se configura a partir de um novo entendimento, o pós-moderno de oposição, que não celebra o
esgotamento das energias emancipatórias da modernidade, mas ao contrário, traça um novo mapa
de práticas emancipatórias, em que o pilar da emancipação esteja não em equilíbrio com o pilar
da regulação, mas que se sobreponha a este. O conhecimento-emancipação deve ser reavaliado,
atingindo a primazia sobre o conhecimento-regulação e transformando a solidariedade na forma
hegemônica de saber. Em seu ponto de vista,
A solidariedade é uma forma específica de saber que se conquista sobre o
colonialismo. O colonialismo consiste na ignorância da reciprocidade e na
incapacidade de conceber o outro a não ser como objecto. A solidariedade é o
conhecimento obtido no processo, sempre inacabado, de nos tornarmos capazes
de reciprocidade através da construção e do reconhecimento da
intersubjetividade. A ênfase na solidariedade converte a comunidade no campo
privilegiado do conhecimento-emancipatório (2005, p. 81).
Dessa forma, seguindo a teoria de Santos (2005), na fase de transição paradigmática para
uma pós-modernidade de oposição, a reinvenção e a revalorização do conhecimento-emancipação
constituiriam o caminho para a solidariedade e para a superação do colonialismo como uma
forma de ordem e sua afirmação como forma de ignorância. Nessa trajetória do colonialismo para
a solidariedade, a emancipação social emerge e configura uma reinvenção da vida comunitária
(por meio dos movimentos populares, das lutas pelos direitos humanos, das culturas populares
comunitárias), com vistas à construção da solidariedade pelo exercício de práticas sociais que
conduzirão a novas formas de cidadania individual e coletiva.
Elevar as comunidades tradicionais à condição de cidadãs do Estado brasileiro e ampliar a
noção de democracia, de solidariedade e de participação, constituem premissas básicas para se
atingir a verdadeira emancipação e inclusão social e para que seus direitos culturais sejam
garantidos e respeitados no Estado Democrático de Direito.
A questão da cidadania passa por revisões profundas a partir das mudanças estruturais
surgidas com o processo de globalização e com a crise do Estado-nação. Fala-se em declínio da
cidadania, em teorias da cidadania e na necessidade de novas interpretações e novos
alargamentos ao conceito de cidadania.
Conforme Liszt Vieira (2001, p. 39), “a cidadania encontra-se, assim, estreitamente
relacionada à imagem pública do indivíduo como cidadão livre e igual, e não às características
que determinam sua identidade”. A concepção clássica de cidadania não atende às aspirações e
necessidades de uma sociedade multicultural, composta por identidades étnicas e culturais
marginalizadas e carentes de políticas de reconhecimento e valorização cultural.
As idéias liberais
29
que estavam no cerne do conceito de cidadania colaboraram para que a
cidadania fosse considerada um status legal que existia para garantir direitos de igualdade e
liberdade aos indivíduos. Nesse sentido,
É inegável que o liberalismo contribuiu de forma significativa para a
formulação da idéia de uma cidadania universal, baseada na concepção de que
todos os indivíduos nascem livres e iguais. Por outro lado, porém, reduziu a
cidadania a um mero status legal, estabelecendo os direitos que os indivíduos
possuem contra o Estado. É irrelevante a forma do exercício desses direitos,
desde que os indivíduos não violem a lei ou interfiram no direito dos outros. A
cooperação social visa apenas facilitar a obtenção da prosperidade individual.
Idéias como consciência pública, atividade cívica e participação política em
uma comunidade de iguais são estranhas ao pensamento liberal (VIEIRA, 2001,
p. 71).
Ultrapassando o significado imposto pelas idéias liberais, a cidadania é agora redefinida
para comportar as reivindicações de diversos movimentos sociais e de grupos culturais
específicos. A situação formal de cidadão não pode mais ser aceita como a única correta e
possível de existência, pois os direitos universais promulgados em lei e garantidos a todoso se
traduzem em igualdade completa, como já foi referido.
O papel do Estado na garantia e na instituição dos direitos de cidadania, apesar das
transformações ocorridas, ainda é fundamental no modelo político nacional. Outras instituições e
organizações da sociedade civil, no entanto, surgem no cenário mundial para modificar as lutas
pelo acesso verdadeiramente democrático e pela redefinição do ideal de igualdade em nome dos
grupos minoritários, marginalizados, desvalorizados e excluídos da sociedade brasileira.
De acordo com Vieira (2001), existe uma crescente preocupação em compatibilizar a
existência de diversas possibilidades e gradações de cidadania: nas pequenas comunidades, no
29
“Com ênfase no indivíduo, o liberalismo propõe que a maioria dos direitos envolve liberdades inerentes a cada e
toda pessoa. Não obstante as poucas obrigações de contrapartida, como pagamento de impostos ou o serviço militar,
constituem pontos centrais as liberdades civis e os direitos de propriedade. Os direitos individuais são vitais para a
liberdade de ação do indivíduo. Em contraposição, os direitos sociais ou os pertencentes a grupos representam uma
violação aos princípios liberais, sendo assim evitados” (VIEIRA, 2001, p. 37).
próprio Estado-nação ou em âmbito global. Assim, “a cidadania, no âmbito desse esforço
coletivo, não pode mais ser vista como um conjunto de direitos formais, mas sim como um modo
de incorporação de indivíduos e grupos no contexto social” (VIEIRA, 2001, p. 48). A
revitalização do conceito de cidadania -se a partir da participação de uma diversidade de
cidadãos, com suas reivindicações específicas e lutas por novos direitos que, ao final, não
beneficiarão apenas um grupo específico, mas que abrirão caminho a uma cidadania universal
(VIEIRA, 2001).
As batalhas que as comunidades tradicionais brasileiras vêm travando nas últimas
décadas, em busca da afirmação de sua identidade e do reconhecimento de direitos coletivos, com
reconhecimento constitucional, é verdade, mas com necessidade de efetivação e proteção na
maioria dos casos, é um exemplo do esforço por emancipação social e redefinição do conceito de
cidadania e, indo além: é uma luta pela garantia da diversidade cultural, para o alcance de um
mundo plural.
Segundo Touraine (1997), a importância da diferença confere à democracia um papel
fundamental, qual seja, o reconhecimento da igualdade entre os indivíduos. Uma “democracia
que deve ser activa para resistir aos constantes movimentos de inferiorização do diferente”
(TOURAINE, 1997, p. 286). O desejo de participação política e de afirmação da cidadania das
comunidades tradicionais está assente numa consciência de origem, numa identidade cultural e
étnica que abre caminhos e motiva a luta pela emancipação democrática e pela conquista de
espaço e reconhecimento.
Assim, com base no que foi afirmado até aqui, as lutas pelo reconhecimento e defesa da
identidade das comunidades tradicionais brasileiras conduzem à necessidade de ampliação do
espaço social, à redefinição do conceito de cidadania e democracia. Somente dessa forma estará
garantida a preservação da diversidade cultural nacional, expressa por diversos grupos
culturalmente diferenciados, formadores de uma identidade nacional heterogênea e de um
patrimônio cultural rico e diversificado, fonte de orgulho e merecedor de respeito, proteção e
admiração, em nome das presentes e futuras gerações.
2 COMUNIDADES TRADICIONAIS E A SUSTENTABILIDADE SOCIOAMBIENTAL
2.1 Crise ambiental: o despertar para a sustentabilidade
Desde o surgimento do homem na Terra vêm ocorrendo modificações na natureza.
Antigamente acreditava-se que o homem seria julgado por tudo aquilo que fizesse contra o meio
ambiente. Este era uma criação divina e deveria ser respeitada, logo, o homem não a agredia
indiscriminadamente e dela retirava apenas o necessário para o seu sustento. Ainda assim o
homem modificou o seu ambiente a fim de adequá-lo às suas necessidades. Com isso as
agressões de grande porte começaram nas Idades Média e Moderna, especialmente no período da
Revolução Industrial.
Com o desenvolvimento da agricultura, da criação de animais, da silvicultura, do
artesanato pré-industrial, a pressão do homem ao seu meio aumenta. Considerando, porém, que a
população humana ainda era pequena nessa época e que os meios de transformação da natureza
possuíam relativa intensidade, essa pressão que o homem exercia sobre o meio ainda pode ser
tida como moderada (OST, 1995). Como prevê François Ost (1995, p. 33), no entanto, uma
“transformação discreta e como que carregada de culpabilidade num primeiro tempo, que
depressa se tornará brutal, maciça e dominadora”.
A influência das religiões (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) contribuiu para a
transformação da posição ocupada pela natureza. A partir da crença em um ser superior, criador
da natureza, esta perde seu caráter sagrado e como o homem fora criado à imagem e semelhança
de Deus, a natureza passa a ser subordinada à vontade do homem (OST, 1995). A partir dos
séculos XVI e XVII, a idéia de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção
do mundo como uma máquina. Isso graças às novas descobertas em Física, Astronomia e
Matemática, associadas a nomes como Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton,
consagrando a chamada Revolução Científica (CAPRA, 1995).
Conforme Ost (1995, p. 35), “é o século XVII europeu que constitui a verdadeira viragem
no movimento progressivo de apropriação da natureza pela espécie humana”. Com Descartes, a
superioridade do cogito e a crença de que toda certeza deriva dele, é estabelecida a máxima
“cogito, ergo sun” (Penso, logo existo), definindo que todo poder deriva de cada homem e as
relações estabelecidas com o exterior são relações de superioridade e de sujeição. E, dessa
maneira, “o homem percorre a Criação para lhe regular os movimentos à sua conveniência: nada,
nem mesmo o próprio Deus, se livre da imposição de um papel determinado no vasto cenário
do teatro mecânico” (OST, 1995, p. 45).
A ciência inaugurada por Descartes inicia a chamada era do artifício. Essa ciência não
objetivava conhecer o mundo, mas fabricá-lo (OST, 1995). A partir desta concepção, o homem
poderá se tornar, conforme Descartes, dono e senhor da natureza, e, a partir daí, estão abertas as
portas para a divisão, a separação, a dominação total e, posteriormente, a degradação das formas
de vida.
O século XVII também é caracterizado pela ascensão da propriedade privada, em que,
deixando para trás a utilização comum, o homem passa a ter o livre-arbítrio sobre os bens de que
é proprietário, podendo deles usar, fruir e dispor. Essa propriedade é marcada pela circulação e
transformação da natureza. Com isso, tudo passa a ser passível de apropriação: às coisas
corporais aplica-se a propriedade privada, às coisas abstratas, a propriedade intelectual e o que,
num primeiro momento parece não ser passível de apropriação (como o ar e a água), será de
domínio público, permitindo a apropriação privada posteriormente (OST, 1995).
Em meados do século XVIII, quando a ciência moderna saía da chamada Revolução
Científica iniciada no século XVI, deixava para trás os cálculos esotéricos de seus cultores para,
então, se consagrar como fermento de uma transformação técnica e social na história da
humanidade. Era uma ordem científica emergente, que iria transformar significativamente a
natureza, a sociedade e definir um marco de transição para algo que até hoje não é possível
prever qual será o fim verdadeiramente atingido (SANTOS, 2005). E hoje “somos todos
protagonistas e produtos dessa nova ordem, testemunhos vivos das transformações que ela
produziu” (SANTOS, 2005, p. 59).
A urgência de avaliar a visão de mundo que se desenvolveu a partir da transformação da
relação natureza/sociedade, culminando em graves conseqüências para a humanidade e para o
futuro do planeta, é também umas das conseqüências dessa visão a então dominante. A partir
das múltiplas transformações ocorridas na sociedade e das diversas formas de constituição de
seus pilares e também das claras evidências de que o caminho percorrido é insustentável, de que
a racionalidade dominante a partir do século XVI não é suficiente para explicar as
modificações no mundo real, vivo, em que a natureza e a sociedade não podem ser vistas como
uma máquina, é possível perceber a emergência de novos valores e, com eles, de novas lutas e
ideais.
Diante da emergente consciência a respeito da crise da modernidade e, com ela, da crise
ambiental, pergunta-se: qual o sentido da palavra crise? E, para esse entendimento, Morin e Kern
(2002, p. 93) têm a seguinte explicação:
Uma crise se manifesta pelo crescimento e até mesmo a generalização das
incertezas, por rupturas de regulações ou feedbacks negativos (os quais anulam
os desvios), por desenvolvimento de feedbacks positivos (crescimentos
descontrolados), pelo crescimento dos perigos e das oportunidades (perigos de
regressão ou de morte, oportunidades de encontrar solução ou salvação).
Morin e Kern (2002) classificam a crise ecológica como um problema de primeira
evidência,
30
que diz respeito a todas as nações e civilizações. E após a multiplicação das
degradações ecológicas locais, a partir dos anos 80 surgiram grandes catástrofes locais, mas que
geraram graves conseqüências para a humanidade: Chernobyl, Bhopal, secagem do mar de Aral,
poluição do lago Baikal, entre outras (MORIN; KERN, 2002).
A partir daí problemas ainda mais generalizados surgem nos países industrializados:
contaminação das águas, envenenamento dos solos, chuvas ácidas, urbanização de regiões
ecologicamente frágeis. Já nos países não industrializados ocorre a desertificação, o
desmatamento, as inundações, a erosão e salinização dos solos, a presença do monóxido de
carbono e do dióxido de azoto. E, finalmente, surgem problemas que definitivamente dizem
respeito ao planeta como um todo, como o CO2, a decomposição da camada de ozônio, o buraco
da camada de ozônio na Antártida (MORIN; KERN, 2002).
Falar de crise ambiental não significa apenas abordar a questão do ponto de vista
ecológico, do esgotamento dos recursos naturais, da poluição, das catástrofes naturais, etc.
Significa falar de crise de valores éticos e culturais (CARVALHO, 2003), de crise do vínculo e
do limite (OST, 1995), de onde emerge a crise ambiental. Conforme Ost (1995), a crise ambiental
tem suas bases na complexa relação homem-natureza e configura uma crise do vínculo, porque os
homens não sabem o que os liga à natureza, e uma crise do limite porque não conseguem
discernir o que os separa dela.
30
Dentre os problemas de primeira evidência definidos pelos autores estão, além da ecologia, a economia, a
demografia e o desenvolvimento, definidores do século XX.
Considerando o vínculo, obtém-se as relações de afinidade, a união, as raízes.
Considerando o limite, obtém-se as diferenças, mas também a possibilidade de transgressão.
Tem-se, então, “o nculo, ou a identidade aberta; o limite, ou a diferença implícita (quer-se
dizer: uma diferença relativa, ligada ou separada)” (OST, 1995, p. 10). Repensar esta relação de
vínculo e limite e reconhecer a interdependência existente entre a sociedade e a natureza é um
passo imprescindível para a superação da visão mecanicista do mundo, que parece preponderar.
A visão dualista de Descartes, que separa sujeito e objeto, “determina a perda do vínculo
com a natureza, ao mesmo tempo que suscita a ilimitabilidade do homem” (OST, 1995, p. 12). E
essa ilimitabilidade do homem, que possibilitaria um mundo novo, marcado pelo progresso e pela
dominação humana, o fez esquecer que o limite entre homem e natureza, assim como representa
aquilo que separa e distingue, também representa que há uma ligação entre eles (OST, 1995).
Capra (1995) alerta para a existência de uma crise de percepção. Diante dos problemas
ambientais que atingem níveis globais e que podem se tornar irreversíveis, emerge uma
necessidade de mudança nas percepções, no pensamento e nos valores do ser humano. Para este
autor, o conceito de sustentabilidade é fundamental, e criar comunidades sustentáveis, ou seja,
criar ambientes culturais e sociais em que a geração atual satisfaça suas necessidades sem, no
entanto, comprometer as gerações futuras, é o grande desafio que se impõe.
A crise ambiental é uma conseqüência do desenvolvimento das sociedades humanas.
Segundo Giddens (1991, p.15-16), existem descontinuidades que separam as instituições sociais
modernas das ordens sociais tradicionais, sendo possível observar mudanças inéditas nos modos
de vida. Dentre as características que distinguem as instituições modernas estão: 1) o ritmo da
mudança, resultando em inúmeras inovações, em várias áreas; 2) o escopo da mudança, uma vez
que várias áreas do globo estão interconectadas, as ondas de transformação social espalham-se
por toda a Terra; 3) a natureza intrínseca das instituições modernas, que não estavam presentes
em épocas tradicionais, como o sistema político do Estado-nação, a transformação de
mercadorias em produtos e o trabalho assalariado, por exemplo.
Discorrendo a respeito dessa crise que atinge a civilização, Guimarães (2001) afirma,
com razão, que é insensato desvincular os problemas do meio ambiente dos problemas do
desenvolvimento. Esta crise diz respeito ao “esgotamento de um estilo de desenvolvimento
ecologicamente depredador, socialmente perverso, politicamente injusto, culturalmente alienado
e eticamente repulsivo” (GUIMARÃES, 2001, p. 51). E para que a modernidade emergente no
Terceiro Milênio seja efetivamente a modernidade da sustentabilidade, é preciso que o ser
humano volte a ser parte (e não fique à parte) da natureza (GUIMARÃES, 2001).
O desenvolvimento, a tecnologia e o progresso, que ao mesmo tempo possibilitaram o
surgimento da sociedade moderna e garantiram o bem-estar, agora também são as causas do
agravamento das degradações e destruições da natureza. Essa situação faz nascer a noção de
sustentabilidade e com ela, a idéia de responsabilidade intergeracional. Mais uma vez estabelece-
se o vínculo entre a ação humana em relação à natureza e as conseqüências dessa ação, cujos
interesses confundem-se mutuamente, afirmando, cada vez mais, a inegável interdependência
entre ambas.
A partir do caráter global da crise ambiental, a necessidade de luta e mobilização no
sentido de transformar os meios de produção e de consumo, de educar para ações voltadas à
sustentabilidade planetária, de organização de instituições capazes de adotar políticas com vistas
à preservação ambiental, de valorização da sociodiversidade, o passos fundamentais para o
desenvolvimento de uma nova concepção acerca dos problemas que afetam a humanidade.
“De qualquer modo, o progresso não está assegurado automaticamente por nenhuma lei da
história. O devir não é necessariamente desenvolvimento. O futuro chama-se doravante
incerteza” (MORIN; KERN, 2002, p. 78). E, a partir desta certeza, a busca por um futuro de
bases sustentáveis para toda a vida na Terra passa a ser o fim comum de toda humanidade. A luta
de ambientalistas e outros movimentos sociais, instituições, governos e da sociedade vem
advertindo que algo deve ser feito em prol da preservação da diversidade biológica e cultural.
E, nesse sentido, a proteção desejada não diz respeito apenas à natureza ameaçada, aos
rios e lagos poluídos, à escassez de água potável, à extinção de espécies de animais e plantas. Vai
muito além: o que está em jogo é a garantia da continuidade das sociedades humanas, o que não
engloba apenas o direito à vida e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas o respeito
a sua identidade e a sua cultura e a todos os meios a elas interligados.
É preciso fazer frente aos processos devastadores do equilíbrio ecológico, das culturas, da
identidade dos povos e de seus saberes. Nesse sentido, a noção de desenvolvimento deve evoluir,
ultrapassando os padrões econômicos, civilizacionais e culturais ocidentais. A concepção de
progresso como certeza histórica deve ser rompida, assim como é falso acreditar que o
desenvolvimento adquirido é para sempre, uma vez que ele também sofre o ataque do princípio
da degradação e deve ser, constantemente, regenerado (MORIN; KERN, 2002).
A sustentabilidade do desenvolvimento e, por conseguinte, a sustentabilidade ambiental,
requerem a consideração das necessidades socioambientais, características dos países pobres e
que devem constituir as bases para um novo processo de afirmação do paradigma da
sustentabilidade. Dessa forma, a proteção da biodiversidade, assim como a preservação da
sociodiversidade, com suas manifestações culturais e sua importância na interação com o meio
em que vivem, garantiriam um novo estilo de desenvolvimento, ambientalmente, culturalmente,
socialmente, eticamente e politicamente sustentável.
A transformação ocorrida entre a relação sociedade/natureza produziu significativas
modificações também no que se relaciona com a sociodiversidade. Assim como a natureza se
transformou, a cultura também foi se moldando ao longo da história da humanidade. Dessa
forma, o valor da sociobiodiversidade pode ser entendido de diversos modos, conforme a época
em que está inserida.
Para as comunidades tradicionais, por exemplo, a valoração da sociobiodiversidade está
relacionada à sobrevivência material, à preservação dos costumes, da língua e toda herança
cultural deixada por seus antepassados. Além disso, os símbolos, mitos e atributos sagrados são
característicos do modo de vida tradicional e de sua intrínseca relação com o meio em que vivem.
Em contrapartida, para a sociedade ocidental, a sociobiodiversidade é vista como um objeto de
pesquisa, como matéria-prima para a indústria, como fonte de impulsos tecnológicos e
científicos, enfim, com finalidades que importam para a economia e para o mercado.
O processo de modernização responsável pelo desenvolvimento das sociedades ocidentais
e pelo degradante processo de transformação da relação sociedade/natureza, é o condutor da
transformação e apropriação ocorrida em relação à sociobiodiversidade. O que se percebe é uma
perda generalizada: da diversidade cultural, da biodiversidade, da soberania dos povos em nome
da soberania econômica dos países ricos, da plurietnicidade.
O que se estabelece, então, é a relação entre uma sociedade que busca a hegemonia e a
apropriação do saber, de um lado, e a proteção aos saberes locais e tradicionais, de outro. A
sociedade que busca hegemonia pretende impor suas próprias leis sobre propriedade intelectual,
por meio de acordos bilaterais e multilaterais, rumo à apropriação e mercantilização dos
conhecimentos tradicionais, do patrimônio genético e da biodiversidade.
Dessa forma, percebe-se nos países pobres a transformação cultural das comunidades e a
perda da biodiversidade em virtude do caráter utilitarista da sociobiodiversidade para os países
ricos. Essa perda/apropriação requer proteção legislativa eficiente e discussão em torno das suas
conseqüências e impactos para as comunidades tradicionais e para a sociedade mundial. A
necessidade de preservação da existência física e cultural das comunidades tradicionais, assim
como da biodiversidade, abre caminho para o reconhecimento e para a necessidade de lutas
estruturadas em ideais socioambientais.
Leila da Costa Ferreira e Lúcia da Costa Ferreira (1995) relacionam o Estado, a sociedade
civil, o setor privado e as comunidades locais como entes que devem compartilhar a gestão de um
novo estilo de desenvolvimento. “Assim, a busca de estilos de desenvolvimento não-tradicional
poderia ser alcançada sob regimes de democracia participativa, que garantissem a criatividade
e a gestão autônoma da sociedade” (FERREIRA; FERREIRA, 1995, p. 29).
Conforme José Carlos Barbieri (2003), diante da percepção de que a degradação
ambiental é um problema planetário decorrente do tipo de desenvolvimento praticado, novas
ações são necessárias, iniciando pelo questionamento das políticas e metas desenvolvimentistas
estabelecidas. Assim, para Barbieri (2003, p. 16):
Essa nova maneira de perceber as soluções para os problemas globais, que não
se reduzem apenas à degradação do ambiente físico e biológico, mas que
incorporam dimensões sociais, políticas e culturais, como a pobreza e a exclusão
social, é o que vem sendo chamado de desenvolvimento sustentável.
A efetiva construção de um novo modelo de desenvolvimento desejável e necessário,
colocaria, segundo Henri Acselrad (2001), a cidadania como condição essencial. Dessa forma, a
prioridade do desenvolvimento de políticas públicas reconhecendo as especificidades regionais
dos territórios e das culturas; o desenvolvimento de um modelo agrícola que preserve a
fertilidade dos solos e respeite a biodiversidade; um padrão energético baseado em fontes
alternativas, seriam alguns dos meios possibilitadores dessa construção (ACSELRAD, 2001).
Um tal desenvolvimento “apoiar-se-ia nas possibilidades oferecidas pela variedade de
biomas, ecossistemas e demais configurações territoriais, ou seja, na diversidade de saberes dos
sujeitos sociais que se referenciam a esses territórios” (ACSELRAD, 2001, p. 95). Mais uma vez
o respeito às potencialidades e à riqueza ambiental e cultural do país poderia conduzir a novas
ações e políticas governamentais, por meio de projetos que possuam bases democráticas, que
visem às garantias constitucionais das minorias étnicas e da coletividade, que concretizem o
direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, enfim, que priorizem o ser
humano na mais ampla garantia de sua dignidade.
2.2 Comunidades tradicionais: as particularidades de uma cultura
Os grupos sociais conhecidos como comunidades tradicionais m grande conhecimento
do mundo natural, vivem em harmonia com a natureza e possuem práticas e saberes próprios em
relação à biodiversidade, desenvolvendo formas especiais de manejo. Em sua maioria, vivem
numa economia de subsistência, em que o uso sustentável dos recursos é uma questão de
autopreservação. Grande parte desses grupos está concentrada nos trópicos, onde a riqueza da
diversidade biológica possibilita maiores condições de sobrevivência (HELENE; BICUDO,
1994).
Antonio Carlos Diegues e Rinaldo Arruda (2001, p. 27) definem populações tradicionais
como:
Grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem
historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na
cooperação social e relações próprias com a natureza. Tal noção refere-se tanto
a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que
desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos
específicos.
O princípio 22 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992 estabelece que:
As populações indígenas e suas comunidades, bem como outras comunidades
locais, têm papel fundamental na gestão do meio ambiente e no
desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos e práticas tradicionais. Os
Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e
interesses dessas populações e comunidades, bem como habilitá-las a participar
efetivamente da promoção do desenvolvimento sustentável.
Percebe-se, a partir desse princípio, o reconhecimento e a importância das comunidades
tradicionais e de seus conhecimentos para o meio ambiente. Em virtude, porém, dos interesses
econômicos, do desrespeito à identidade e cultura desses povos e da falta de proteção legal aos
seus conhecimentos e territórios, a sobrevivência e os propósitos de conservação ficam à mercê
da exploração de multinacionais, interessadas na riqueza da biodiversidade nacional e dos
conhecimentos que essas comunidades possuem, obtidos em sua vivência e interação com os
ecossistemas, bem como aos modelos de desenvolvimento econômico característicos e
definidores da sociedade atual .
A Medida Provisória 2.186-16/2001
31
define “comunidade local” como grupo humano,
incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais,
que se organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva
suas instituições sociais e econômicas”.
Derani (2002, p.153) reconhece cinco elementos identificadores de uma comunidade
tradicional: “1. propriedade comunal; 2. produção voltada para dentro (valor de uso); 3.
distribuição comunitária do trabalho não assalariado; 4. tecnologia desenvolvida e transmitida por
processo comunitário, a partir da disposição de adaptação ao meio em que se estabelecem; 5.
transmissão da propriedade, conhecimento, pela tradição comunitária, intergeracional”.
As comunidades tradicionais caracterizam-se pela dependência em relação aos recursos
naturais com os quais constroem seu modo de vida; pelo conhecimento aprofundado que possuem
da natureza, que é transmitido de geração a geração oralmente; pela noção de território e espaço
onde o grupo se reproduz social e economicamente; pela ocupação do mesmo território por várias
gerações; pela importância das atividades de subsistência, mesmo que em algumas comunidades
a produção de mercadorias esteja mais ou menos desenvolvida; pela importância dos símbolos,
mitos e rituais associados as suas atividades; pela utilização de tecnologias simples, com impacto
limitado sobre o meio; pela auto-identificação ou pela identificação por outros de pertencer a uma
cultura diferenciada, entre outras (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Como importante elemento na relação entre as populações tradicionais e a natureza está a
noção de território para essas populações. O território é que fornece os meios de subsistência, os
meios de trabalho e produção, os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais
(DIEGUES, 2001). “Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o território
é também o locus das representações e do imaginário mitológico dessas sociedades tradicionais”
(DIEGUES, 2001, p. 85). . “No território estão inscritas as mais básicas noções de
autodeterminação, de articulação sociopolítica, de vivências e crenças religiosas, para não falar
na própria existência física do grupo” (RAMOS, 1986, p. 20-21).
31
A Medida Provisória 2.186-16/2001 dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao
conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia
para sua conservação e utilização.
A noção de território possibilita o desenvolvimento das diversas práticas sociais,
indispensáveis para a vida na comunidade. O território é também o espaço do convívio social,
onde a cultura, a religião, os rituais e a organização social têm suas bases. Conforme Ramos
(1986), embora os povos indígenas tenham a noção de território, isso não significa que não possa
haver acesso entre as sociedades vizinhas e até mesmo a busca de locais mais apropriados para o
cultivo das roças, a coleta e a pesca em determinada época e de conformidade com as
necessidades do grupo. Para esta autora,
Um dos temas de conversa mais recorrentes entre pessoas da mesma aldeia ou de
aldeias diversas é o estado geral e particular do território: trocam-se notícias e
anedotas sobre caçadas, abundância ou escassez deste ou daquele produto, o
processo no amadurecimento deste ou daquele fruto, as idas e vindas destes ou
daqueles moradores desta ou daquela aldeia, os sustos e as recompensas que a
mata pode trazer, os aspectos extranaturais ou sobrenaturais da floresta ou dos
rios ou das montanhas, como, por exemplo, o encontro ocasional com espíritos
na mata, e muitos outros assuntos que revelam a inquestionável importância do
território, não apenas como o sustentáculo físico dessas populações, mas também
e principalmente como uma realidade socialmente construída, elaborada e
intensamente vivida (1986, p. 19).
Além das características referidas, um dos elementos mais importantes para a
caracterização de uma comunidade tradicional é o fato de os integrantes do grupo reconhecerem-
se como tais, como membros de uma cultura singular, um grupo social particular, que possui uma
identidade diferenciada dos demais membros da população nacional. Além deste reconhecimento,
o reconhecimento dos “outros” (conforme a teoria de Charles Taylor) também influencia no
próprio reconhecimento do grupo tradicional, incentivando a luta pela afirmação de sua
identidade cultural específica.
A capacidade que as comunidades tradicionais possuem de se relacionar com um meio
ecológico complexo, identificando, por exemplo, as diferenciações na fauna e na flora, as
diversas espécies existentes, suas formas de vida e funções, pode ser considerada prova do
patrimônio cultural, graças a um saber prático que valoriza e preserva os ecossistemas e que
muitas vezes é visto como práticas improdutivas pelas sociedades modernas (CASTRO, 2000).
Para Edna Castro (2000), os saberes tradicionais manifestam-se por ações práticas,
provêm de um entendimento formulado na experiência das relações com a natureza, informando
o processo de acumulação de conhecimentos através de gerações. E em relação ao trabalho
realizado pelas comunidades tradicionais, acrescenta que
suas atividades apresentam-se complexas, pois constituem formas múltiplas de
relacionamento com os recursos, e é justamente essa variedade de práticas que
assegura a reprodução do grupo, possibilitando também uma construção da
cultura integrada à natureza e formas apropriadas de manejo (2000, p. 169).
Ao mesmo tempo em que retiram da natureza os recursos necessários para seu sustento,
esses grupos tradicionais preservam os ecossistemas, respeitando seus ritmos de renovação e
equilíbrio. Conforme Castro (2000, p. 167), “nas sociedades ditas “tradicionais” e no seio de
certos grupos agroextrativos, o trabalho encerra dimensões múltiplas, reunindo elementos
técnicos com o mágico, o ritual, enfim, o simbólico”.
É com base no sistema de representações, símbolos e mitos que as populações tradicionais
constroem suas ações sobre o meio em vivem. Alguns povos acreditam, por exemplo, que
existem entes mágicos que castigam os que destroem as florestas, maltratam os animais ou
pescam mais do que o necessário (DIEGUES, 2001). Dessa forma, associando mitos, símbolos e
até mesmo explicações religiosas, as populações tradicionais criam uma relação de respeito pelos
ciclos naturais, garantindo também sua sustentabilidade e mantendo viva a sua cultura.
Diegues e Arruda (2001) diferenciam as populações tradicionais indígenas daquelas
tradicionais não-indígenas. Para eles, a identidade dos povos indígenas é definida de forma mais
clara que a identidade da população não-indígena, pois aqueles têm reconhecidos o direito
histórico a seus territórios quando do estabelecimento de áreas indígenas no Brasil. A história
sociocultural dos indígenas é anterior e distinta das demais populações tradicionais (embora suas
formas de reprodução tenham sido dependentes e articuladas com a sociedade nacional), além de
possuírem línguas próprias, diferentes do português. Apesar dessa diferenciação, porém, o
conceito que reconhece as populações tradicionais como grupos humanos que possuem cultura
diferenciada, com relações baseadas na cooperação social e em formas próprias de tratar a
natureza, é apropriado para caracterizar ambos os grupos de populações tradicionais: os indígenas
e os não-indígenas.
As populações tradicionais não-indígenas descritas por Diegues e Arruda são as seguintes:
açorianos, babaçueiros, caboclos/ribeirinhos amazônicos, caiçaras, caipiras/sitiantes, campeiros
(pastoreio), jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros, quilombolas,
sertanejos/vaqueiros, varjeiros.
Um exemplo de comunidade tradicional que luta para manter viva sua cultura e ter
reconhecida a propriedade das terras que ocupam séculos, é o das comunidades de
quilombolas. Conforme o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, os remanescentes de
comunidades de quilombos podem ser definidos como “grupos étnico-raciais, segundo critérios
de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida.”
Os atuais quilombos tiveram sua origem em fazendas falidas, em doações de terras feitas
aos escravos, nas compras de terras pelos escravos alforriados, das terras de Ordens Religiosas do
século XIII, na prestação de serviços de escravos em guerras. (PNUD, 2006). Em sua maioria, os
quilombolas vivem da pequena agricultura, do artesanato, da pesca e do extrativismo.
O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal
de 1988, assegura direitos especiais aos quilombolas: “Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
As comunidades de ribeirinhos também se caracterizam por exercerem atividades
extrativistas, fazendo da pesca sua principal fonte de renda. Vivem, em sua maioria, à beira de
lagos, várzeas e igarapés. Quando as chuvas inundam os rios, impossibilitando a pesca e o cultivo
da roça, dedicam-se ao extrativismo e à agricultura, produzindo em regime familiar e vendendo o
excedente (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Conforme Diegues e Arruda (2001, p. 41),
Como os sítios ocupam beiras dos rios, os ribeirinhos podem tirar proveito das
várzeas, colhendo produtos alimentícios, em particular a mandioca, mas
também frutas e ervas medicinais. Nas florestas extraem o látex para a venda e
também a castanha-do-pará, além de criarem pequenos animais domésticos e
possuírem algumas cabeças de gado. Moram em casas de madeira construídas
em palafitas, mais adequadas ao sistema de cheias.
De acordo com estes autores, os babaçueiros são populações extrativistas que vivem
principalmente da coleta do babaçu, mas praticam também a pequena agricultura. Estão
localizados principalmente no Meio-Norte, abrangendo o Maranhão, o Piauí e algumas áreas de
Goiás. “O babaçueiro não utiliza apenas o coco, vendido para a produção de óleo, mas também as
folhas para a construção de casas e a casca como combustível doméstico e matéria-prima para
artesanato caseiro” (2001, p. 40). As mulheres e as crianças são fundamentais no
desenvolvimento das atividades das populações babaçueiras, recolhendo e quebrando o coco que
será vendido posteriormente e que se transformará em uma das principais fontes de renda da
família.
As comunidades caiçaras são formadas pela mescla étnico-cultural de indígenas,
colonizadores portugueses e, em menor grau, escravos africanos. Suas atividades são basicamente
a agricultura itinerante, a pequena pesca, o extrativismo vegetal e o artesanato. Localizam-se
principalmente nas áreas costeiras do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná e norte de Santa
Catarina
(DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Os caiçaras vêm sofrendo muitas ameaças a sua sobrevivência material e cultural,
especialmente em razão do avanço da especulação imobiliária a partir das décadas de 50 e 60,
que privou grande parte dessas populações de suas posses nas praias, obrigando-os a exercer
atividades de caseiros e pedreiros e a morar longe de seu local de trabalho, dificultando a
atividade pesqueira (DIEGUES; ARRUDA, 2001). Além disso, grande parte dos territórios
ocupados por caiçaras foi transformada em áreas protegidas, limitando as atividades
tradicionalmente desenvolvidas por essas comunidades. Emergiram assim, os conflitos com os
administradores das unidades de conservação, além de uma migração ainda maior para as áreas
urbanas, onde os caiçaras, expulsos de seus territórios, passaram a viver em verdadeiras favelas,
fadados ao desemprego e ao subemprego” (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 43).
As populações açorianas se estabeleceram no litoral catarinense e rio-grandense a partir
do século XVIII, passando a combinar as atividades agrícolas com a pesca. A partir do século
XX, em função da expansão urbana de Florianópolis e da orla marítima entre Santa Catarina e
Rio Grande do Sul, ocorreu uma especialização nas atividades pesqueiras e a agricultura passou a
ser exercida principalmente pelas mulheres (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Assim como ocorreu com os caiçaras, os açorianos passaram a sentir as conseqüências, a
partir das décadas de 70 e 80, da expansão urbana e do turismo em seus territórios, o que fez
com que essas populações se transferissem para o setor de serviços para atenderem o número
crescente de turistas na região (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Os praieiros estão localizados na faixa litorânea da região amazônica, compreendida entre
o Piauí e o Amapá. A principal atividade exercida por estas populações é a pesca,
complementada pelo extrativismo e pelo turismo. Como ocupam grandes extensões de
manguezal, é daí que retiram os principais produtos para sua sobrevivência, como o pescado, os
crustáceos, os moluscos, a madeira para construção de suas casas (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Os pescadores artesanais estão espalhados pelo litoral, fazendo da pesca sua principal
atividade, mas exercendo também a pequena agricultura, o extrativismo e o artesanato. A
produção pesqueira é em parte consumida pela família e em parte comercializada e a unidade de
produção é geralmente familiar, incluindo na tripulação de suas embarcações os conhecidos e os
parentes longínquos (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
As comunidades de jangadeiros são formadas por pescadores marítimos, que habitam a
faixa costeira entre o Ceará e o sul da Bahia. Utilizam as “jangadas de alto” para a pesca em alto-
mar e os paquetes e botes (pequenas jangadas) para a pesca costeira e estuarina. Os jangadeiros
sofrem com a concorrência dos pescadores de botes motorizados, além dos impactos causados
pelo turismo e pela perda da posse nas praias para a construção de residências secundárias dos
veranistas (DIEGUES; ARRUDA, 2001). Estes estudiosos destacam que:
Esses pescadores detêm grande conhecimento da arte da navegação e
identificação dos locais de pesca situados longe da costa pelo sistema de
triangulação, por meio do qual linhas imaginárias são traçadas a partir de
acidentes geográficos localizados no continente.[...] Os jangadeiros demonstram
possuir grande conhecimento da diversidade das espécies de pescado que
capturam, sabendo a sazonalidade e os bitos migratórios e alimentares de
número razoável de peixes, sobretudo os de fundo (2001, p. 47).
As populações indígenas constituem um exemplo muito expressivo de comunidade
tradicional existente no Brasil. São mais de 200 sociedades indígenas culturalmente
diferenciadas, que falam cerca de 180 línguas e que desenvolveram formas de adaptação aos
ecossistemas presentes no território nacional. Conforme Diegues e Arruda (2001, p. 29):
Ainda hoje, a qualidade de ocupação indígena deve ser enfatizada. Suas áreas,
em geral, são as de cobertura florestal mais preservada, mesmo nos casos em que
a devastação ambiental tenha se expandido ao seu redor. Isso explica também as
situações de envolvimento de povos indígenas em processos de extração
ambientalmente predatórios (madeira, minérios). Baseados em formas
socioculturais que restringem a ampliação desmesurada do uso dos recursos
naturais assim como a acumulação privada, esses povos desenvolveram
profundo e extenso conhecimento das características ambientais e possibilidades
de manejo dos recursos naturais nos territórios que ocupam.
Apesar de os povos indígenas terem reconhecidos constitucionalmente o direito à
identidade cultural e direitos originários às terras que ocupam, Diegues e Arruda (2001, p. 53)
asseveram que
o Estado não tem cumprido esse papel legal de proteção às áreas indígenas;
mesmo as totalmente regularizadas, na sua maior parte, sofrem invasões de
garimpeiros, mineradoras, madeireiras e posseiros; são cortadas por estradas,
ferrovias, linhas de transmissão, inundadas por usinas hidrelétricas e outros
impactos decorrentes de projetos econômicos da iniciativa privada e projetos
desenvolvimentistas governamentais.
A valorização e o respeito aos indígenas, quilombolas, caiçaras, babaçueiros e demais
povos detentores de saberes tradicionais e que dependem diretamente da natureza para viver,
pode partir também do reconhecimento às formas de manejo que desenvolvem. Essas formas
respeitam o ritmo da natureza, como, o fato de exercerem a pesca na época adequada e, quando
cheias ou piracema, buscarem outra forma de subsistência, como a pequena agricultura e o
extrativismo vegetal.
Como todas as populações tradicionais dependem dos recursos naturais para a
sobrevivência familiar, medidas ecológico-sustentáveis são fundamentais no desenvolvimento
das atividades dessas populações. Diante da necessidade de preservação ambiental e da intensa
degradação a que o mundo assiste, políticas públicas em prol das populações tradicionais devem
ser priorizadas.
Expulsar as populações de seus locais de origem (como ocorre nos modelos de unidades
de conservação integral, por exemplo), onde vêm desenvolvendo sua cultura e lutando pela sua
sobrevivência gerações, recolocando-os em áreas que não oferecem condições de manutenção
e que o permitem a continuidade de seu modo de vida tradicional, apenas colabora para a sua
marginalização e empobrecimento.
2.3 Comunidades tradicionais e a preservação cultural/ambiental
O que tem chamado especial atenção no que respeita às comunidades tradicionais é sua
estreita ligação com a preservação da diversidade biológica, uma vez que a perda da diversidade
ameaça também a sobrevivência cultural desses grupos, sendo possível afirmar que a destruição
de ecossistemas e a perda global da diversidade biológica podem conduzir a uma perda maciça de
diversidade cultural (HELENE; BICUDO, 1994). “As diversidades biológica e cultural estão
intimamente relacionadas entre si, ao mesmo tempo em que ambas são condição essencial para
uma maior sustentabilidade global” (HELENE; BICUDO, 1994, p. 31).
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinada pelo Brasil em 1992, durante
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e ratificada pelo
Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 2, de 3 de fevereiro de 1994, é um
importante instrumento de proteção à biodiversidade.
Avaliando a importância da Convenção sobre Diversidade Biológica, Teodora Zamudio
(1999) afirma que o documento é fruto da luta de muitos países para incorporar o tema da
biodiversidade na agenda mundial. Conforme a autora:
En esse documento, la comunidad de naciones reconoció que la biodiversidad
es responsabilidad de los Estados donde se encuentra, pero que es, al mismo
tiempo, un asunto de legislación y política internacional. El Convenio marca un
hito porque supera una visión sectorial sobre el tema. Antes, los programas de
manejo de la biodiversidad se diseñaban para conservar, por ejemplo, a una
especie en peligro de extincion o a un ecosistema en particular. Ahora, el
compromiso es global: todas las formas de vida en la Tierra requieren
conservación y protección, incluso la humana, se puede agregar y subrayar
(1999, p. 72-73).
A definição do termo diversidade biológica ou biodiversidade pode ser extraída do artigo
2º da Convenção sobre a Diversidade Biológica:
Diversidade biológica significa as variabilidades de organismos vivos de todas
as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos
e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte;
compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de
ecossistemas.
Críticas, no entanto, podem ser apostas ao conceito de diversidade biológica extraído da
Convenção, pois a “variabilidade” de que trata o conceito é entendida como produto da própria
natureza, sem considerar a intervenção humana. A diversidade biológica, contudo, não pode ser
considerada apenas um produto da natureza, uma vez que em muitos casos é produto da ação de
culturas e de sociedades humanas, constituindo objeto de conhecimento, de domesticação, de
inspiração e fundamentais para a sobrevivência (DIEGUES; ARRUDA, 2001).
Zamudio (1999, p. 70) afirma que “la biodiversidad es la música y el universo la
orquestra... la batuta la tiene el hombre”. Reafirmando a importância da relação entre a
biodiversidade e a diversidade cultural, acrescenta a autora:
Esa biodiversidad es la clave para la seguridad ambiental del ser humano a
largo plazo. Una gran cantidad de especies ayuda a sostener las condiciones
ambientales que nos permitem vivir sobre la Tierra, y asegura nuestra
subsistencia y resistencia ante los cambios dañinos en el entorno, nos
proporciona elementos para nuestro mejor y mayor provecho. Pero lo que no
debe olvidarse: el hombre mismo es parte, integra ese abanico, esa pieza
musical que es la biodiversidad. Y, en esta instancia, debe tomarse nota de que
la biodiversidad se relaciona con la diversidad de culturas, de lenguas, creencias
y manifestaciones estéticas que los hombres han desarollado a través de la
historia (1999, p.71).
“A biodiversidade não simboliza apenas a riqueza da natureza; ela incorpora diferentes
tradições culturais e intelectuais” (SHIVA, 2001, p. 146). Para Shiva (2001), existem dois
paradigmas conflitantes da biodiversidade, que é exacerbado pela emergência de novas
biotecnologias e normas legais para o controle monopolista da vida. O primeiro paradigma é
mantido pelas comunidades locais, que dependem da biodiversidade para sua sustentabilidade. O
segundo é aquele mantido pelos interesses comerciais ligados à utilização da biodiversidade.
Dessa forma,
Para as comunidades indígenas locais, conservar a biodiversidade significa
conservar seus direitos aos recursos, conhecimento e sistemas de produção
próprios. Para os interesses comerciais, como as empresas de biotecnologia
farmacêutica e agrícola, a biodiversidade em si não tem valor, não passa de
matéria-prima. Esta produção tem suas bases na destruição da biodiversidade, à
medida que os sistemas locais de produção fundados na diversidade o
desalojados pela produção fundada na uniformidade (SHIVA, 2001, p. 146).
A crise da biodiversidade não se caracteriza apenas pelo desaparecimento de espécies que
servem de matéria-prima para os empreendimentos empresariais. É uma crise que atinge a
sustentação da vida e os meios de subsistência nos países pobres. E diante dos conflitos surgidos
em torno do sentido da biodiversidade, é preciso reconhecer que ela sempre foi um recurso local
comunitário, do qual dependem muitos sistemas sociais que o utilizam segundo princípios de
justiça e sustentabilidade e reconhecem o valor intrínseco da riqueza da biodiversidade (SHIVA,
2001).
A necessidade de preservação da diversidade biológica envolve três circunstâncias
principais, que dão caráter de urgência à matéria, segundo Wilson (1997, p. 3):
Primeiro, o crescimento explosivo das populações humanas está desgastando o
meio ambiente de forma muito acelerada, especialmente nos países tropicais.
Segundo, a ciência está descobrindo novas utilizações para a diversidade
biológica, que podem aliviar tanto o sofrimento humano quanto a destruição
ambiental. Terceiro, grande parte da diversidade está se perdendo
irreversivelmente através da extinção causada pela destruição de hábitats
naturais, também de forma mais acentuada nos trópicos.
Conforme dados do Instituto Socioambiental (ISA), a diversidade biológica talvez seja a
única esfera que situa o Brasil como o país mais rico do planeta. A Amazônia representa a maior
área contínua de floresta tropical do mundo, entre 10% e 20% das 1,5 milhão de espécies
catalogadas de seres vivos. Além disso, o Brasil é extremamente rico no quesito diversidade de
populações tradicionais, possui cerca de 220 povos indígenas, além dos povos não-indígenas.
Assim, a necessidade atual da adoção de um conceito mais abrangente de biodiversidade
justifica-se pela riqueza de diversidade cultural presente nos locais onde a biodiversidade é mais
concentrada (Amazônia, Mata Atlântica, no caso do Brasil). Nesse sentido, pode-se afirmar que:
A diversidade cultural humana também pode ser considerada parte da
biodiversidade. Tal como a diversidade genética ou de espécies, alguns
atributos das culturas humanas (como o nomadismo ou rotação de culturas)
representam “soluções” aos problemas de sobrevivência em determinados
ambientes. E, como outros aspectos da biodiversidade, a diversidade cultural
ajuda as pessoas a se adaptarem a novas condições. A diversidade cultural
manifesta-se pela diversidade de linguagem, de crenças religiosas, de práticas
de manejo da terra, na arte, na música, na estrutura social, na seleção de
cultivos agrícolas, na dieta e em todos os outros atributos da sociedade
humana. (WRI, UICN, PNUMA, 1992, p.3).
Discorrendo a respeito dos índios ianomâmi do Norte do Brasil, Kenneth Taylor (1997,
p.177) observa:
O uso e o gerenciamento de recursos naturais pelos ianomâmi incluem a caça, a
pesca e a coleta de recursos da fauna, a coleta e reunião de recursos florais e o
cultivo itinerante de bananas, mandioca, diversas variedades de tubérculos como
a batata e várias outras plantações menores. (...). Para o padrão de vida ao qual
estão adaptados, a floresta fornece em abundância tudo de que precisam para se
alimentarem bem e terem uma vida saudável e gratificante.
O emprego das técnicas indígenas para o cultivo do solo e extração dos recursos colabora
sobremaneira, para a revitalização da floresta, contribuindo para sua diversidade e para o
tamanho de suas populações de fauna e flora. Além dos indígenas, que se reconhecer nos
caboclos ribeirinhos (que habitam a floresta) e nos seringueiros bons exemplos de comunidades
tradicionais que desenvolvem um estilo de vida auto-sustentável na Amazônia (TAYLOR,
Kenneth, 1997).
Kenneth Taylor (1997) reconhece na sociedade indígena caiapó, exemplo de sociedade
indígena das florestas tropicais,
32
uma importante forma de convivência e administração dos
recursos que seu território oferece. Assim:
Como resultado de sua presença e de seu notável modo de vida, os recursos de
plantas e animais de sua área são mais diversos, mais concentrados localmente,
de maior tamanho e densidade populacional e mais viçosos e vigorosos do que
os que poderiam ser encontrados numa floresta sem índios administradores de
recursos (1997, p. 180).
Ademais, outro elemento fundamental é o reconhecimento da dependência dos recursos
naturais, o que leva à preservação, mesmo que de forma inconsciente muitas vezes. Assim, “os
ianomami e os caia vivem na floresta e são parte dela. Se eles a destruírem , destruirão a si
próprios. Portanto, eles fazem campos de proporções modestas e plantações suficientes para suas
necessidades” (TAYLOR, Kenneth, 1997, p. 181).
Apesar de a biodiversidade ser considerada o ouro e o petróleo verdes das indústrias
farmacêuticas e de biotecnologias, ela é, na verdade, mantida e protegida pelas comunidades
tradicionais (SHIVA, 2001). Dessa forma, “quando se pede às comunidades nativas que vendam
seu conhecimento às corporações, está se pedindo que vendam seu direito inato de continuar a
32
De acordo com Diegues e Arruda (2001, p. 22): k. Brown e G. Brown (1991) também comparam o papel das
comunidades tradicionais indígenas na conservação da biodiversidade na floresta tropical brasileira, que teve sua
destruição ocasionada pela ação dos grandes fazendeiros e grupos econômicos. Para esses autores, a ação dos
grandes grupos resulta num máximo de erosão genética, mesmo quando acompanhada de ‘medidas
conservacionistas’. Também afirmam que o modelo de uso dos recursos naturais de baixa intensidade, desenvolvidos
pelas populações extrativistas e indígenas, freqüentemente resulta em erosão genética de mínimas proporções e em
um máximo de conservação. Ainda que a densidade populacional seja em geral inferior a 1hab/km², pode tornar-se
dez vezes maior se o uso dos recursos naturais for cuidadosamente planejado, aproximando-se do uso na agricultura
camponesa. Ainda, segundo Brown, esse uso ‘subdesenvolvido’ da terra e de seus recursos, descrito como
‘primitivo’, não-econômico e predatório pelas agências oficiais de ‘desenvolvimento’, tem sido o uso mais rentável
da floresta a curto e médio prazo, mantendo a biodiversidade e os processos naturais de forma eficaz; mesmo que
não sirva aos interesses das populações urbanas mais densas e poderosas, muitas vezes míopes”.
praticar suas tradições no futuro e suprir suas necessidades com conhecimentos e recursos
próprios”(SHIVA, 2001, p. 100-101).
Shiva (2001) argumenta que a conservação da biodiversidade depende do respeito aos
direitos das comunidades locais. A alienação desses direitos é o caminho para a deterioração da
biodiversidade, ameaçando a sobrevivência ecológica e o bem-estar econômico. Para ela, “a
diversidade é a chave da sustentabilidade. É a base do mutualismo e da reciprocidade a “lei do
retorno” que tem como princípio o reconhecimento do direito de todas as espécies à felicidade e
ao não-sofrimento”. (2001, p. 113).
Para esta autora, as duas causas principais da deterioração da biodiversidade são a
destruição dos habitats devido à construção de barragens, rodovias, minas e aqüiculturas e a
pressão tecnológica e econômica para substituir diversidade por homogeneidade na silvicultura,
agricultura, piscicultura e pecuária. E a crise causada por essa deterioração não ameaça somente a
sobrevivência das espécies, mas também ameaça a vida e os meios de subsistência de milhões de
pessoas no Terceiro Mundo. “A emergência das novas biotecnologias mudou o sentido e valor da
biodiversidade. Ela foi convertida de base de sustentação da vida para as comunidades pobres,
em base de matéria-prima para empresas poderosas” (SHIVA, 2001, p. 92).
De acordo com Diegues (2001), o reconhecimento da importância das populações
tradicionais para a conservação e manutenção da diversidade biológica é um fenômeno recente,
causado pelo surgimento de um ecologismo no Terceiro Mundo que difere dos países
industrializados. E nesse ecologismo do Terceiro Mundo, surgem movimentos sociais que lutam
pelo respeito à diversidade cultural como base para a preservação da diversidade biológica.
Como essas comunidades dependem do meio ambiente e dos recursos naturais
disponíveis em seus territórios, elas exercem um controle sobre o meio de forma que a utilização
dos recursos não leve à degradação ambiental. Assim, para Helene e Bicudo (1994, p. 34):
As relações das comunidades tradicionais com o meio ambiente são de
sustentabilidade: elas conseguem identificar o necessário limite de extração das
riquezas naturais, de utilização do solo e das águas e de lançamento de dejetos.
Tais comunidades quando não estão em contato com a civilização moderna,
jamais superam a capacidade de suporte dos ecossistemas aos quais pertencem.
Assim, as comunidades tradicionais desenvolvem uma forma especial de se relacionarem
com a biodiversidade, graças à riqueza cultural que lhes é característica. Segundo Diegues e
Arruda (2001, p. 33):
As populações tradicionais não convivem com a biodiversidade, mas
nomeiam e classificam as espécies vivas segundo suas próprias categorias e
nomes. Uma particularidade, no entanto, é que essa natureza diversa não é vista
pelas comunidades tradicionais como selvagem em sua totalidade; foi e é
domesticada, manipulada. [...] Pode-se falar numa etnobiodiversidade, isto é, a
riqueza da natureza da qual também participa o homem, nomeando-a,
classificando-a e domesticando-a. Conclui-se, então, que a biodiversidade
pertence tanto ao domínio do natural como do cultural, mas é a cultura, como
conhecimento, que permite às populações tradicionais entendê-la, representá-la
mentalmente, manuseá-la, retirar suas espécies e colocar outras, enriquecendo-
as, com freqüência.
Shiva (2001) chama a atenção para a necessidade de reconhecer o valor da biodiversidade
em si, detentora do direito à vida. Além disso, deve-se reconhecer o valor da biodiversidade para
as comunidades tradicionais que dela dependem e que possuem meios diferenciados de utilizá-la
e conservá-la. Para a autora:
Proteger esse conhecimento implica uma contínua disponibilidade e acesso a
ele por parte das gerações futuras, nas suas práticas diárias agrícolas e de
cuidados com a saúde. Se a organização econômica que emerge baseada nas
patentes destrói os estilos de vida e sistemas econômicos nativos, o
conhecimento nativo não está sendo protegido como herança viva. Se
reconhecemos que o sistema econômico dominante está nas origens da crise
econômica porque ignorou o valor ecológico dos recursos naturais, a expansão
desse mesmo sistema não irá proteger nem o conhecimento nem a
biodiversidade nativas (2001, p. 104).
A vida das comunidades tradicionais brasileiras é diretamente afetada pela destruição da
diversidade biológica. O desmatamento, o uso indiscriminado dos recursos, a expansão das
fronteiras e a instalação de projetos de desenvolvimento econômico acabam tirando das
comunidades o direito ao uso e controle dos recursos naturais indispensáveis a sua sobrevivência.
A partir daí, as conseqüências serão sentidas tanto na esfera ambiental quanto no plano social. A
destruição ou diminuição de várias espécies e de seus hábitats é um dos exemplos de perda
resultante desse processo. O empobrecimento, a marginalização e até mesmo o desalojamento das
comunidades constitui a outra face do mesmo problema.
Pode-se reconhecer nas comunidades tradicionais uma capacidade de auto-organização,
que foi possível graças à riqueza da biodiversidade presente em seus territórios. Quando essa
biodiversidade é vista como um objeto, fonte de matéria-prima para as multinacionais, além da
ameaça à biodiversidade, ocorre a ameaça à auto-organização das comunidades e,
conseqüentemente, uma dependência maior da intervenção estatal, tanto no desenvolvimento de
políticas em benefício dessas comunidades, quanto na necessidade de proteção jurídica, uma vez
que as relações sociais, econômicas e culturais são alteradas e podem modificar o modo de vida
tradicionalmente desenvolvido.
2.4 Comunidades tradicionais e a proteção dos conhecimentos tradicionais associados ao
patrimônio genético
A lógica da apropriação, que é determinante da sociedade atual, busca incorporar ao
mercado novas matérias-primas e novos conhecimentos capazes de impulsionar a indústria
químico-farmacêutica. Assim, “a força da expansão do mercado dirige-se ao patrimônio
ambiental apropriado por produções sociais fora-do-mercado, cujas relações sociais e
patrimoniais estão fundadas nas escolhas coletivas e na ação transformadora do meio, o
mediada pelo equivalente monetário” (DERANI, 2002, p. 151). E essa busca põe em risco a
relação diferenciada das comunidades responsáveis por essa produção social, intensamente
ameaçada pelo processo de globalização, pelas lógicas que regem o mercado e caracterizam a
sociedade ocidental.
Conforme Derani (2002, p. 152), os conhecimentos tradicionais associados
33
constituem
“um saber construído pela ação social de produção da existência, em que técnicas de ação sobre o
meio o desenvolvidas para melhor satisfação de necessidades e vontades, pela atividade direta
dos homens junto ao meio, na construção da vida social”. E essa ação sobre o meio não é guiada
pela lógica do mercado; é, na verdade, uma relação de troca e dependência, imprescindíveis para
a existência da comunidade e construção de seus saberes. Assim:
O conhecimento tradicional é fruto do reproduzir de uma determinada relação
social entre os homens e destes com o meio para a produção de sua existência.
Este resultado não tem valor monetário,o gera mercadoria, o que ocorrerá
quando ingressar como recurso no processo produtivo fundado na propriedade
privada, tendo na unidade produtiva o lócus transformador de recursos privados
para a construção da mercadoria (DERANI, 2002, p. 152).
33
Pela definição da Medida Provisória 2.186-16/2001, conhecimento tradicional associado é a “informação ou
prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial,
associada ao patrimônio genético” (Artigo 7º, II).
As comunidades tradicionais são detentoras de um conhecimento rico, fruto da sua
relação diferenciada com a natureza e que constituem uma manifestação da diversidade cultural
brasileira. Essa diversidade faz parte do patrimônio histórico e cultural de um país que tem na
multietnicidade e na multiculturalidade uma de suas características mais marcantes. Dessa
forma, “enquanto objeto produzido e reproduzido nessas sociedades, o conhecimento associado
ao meio é um patrimônio que o tem valor de troca e não é apropriado individualmente. Sua
produção, reprodução, utilização, manutenção é social: um patrimônio da coletividade que dele
necessita e com ele constrói sua existência” (DERANI, 2002, p. 153).
Os conhecimentos tradicionais são fruto de um processo social de aprendizado, de
criações, de trocas e desenvolvimentos, transmitidos de geração para geração. É possível admitir
a transmissão desse conhecimento, mas não a apropriação sob forma de patentes, sem considerar
as características peculiares que possuem. Assim como foram gerados e transmitidos no decorrer
de sua história, também devem ser protegidos como fruto da história, como construção histórica e
patrimônio histórico. Assim como a língua, os costumes e as crenças em deuses e seres especiais,
os conhecimentos tradicionais passaram por um processo de aprendizado, de experiência e de
descoberta, permitindo a sobrevivência, a cura de diversos males, o culto aos rituais, a crença nos
mitos e sobretudo, a continuidade da vida em comunidade.
A apropriação do saber nega a criatividade dos diferentes sistemas de conhecimento e
impede a valorização e a preservação desses conhecimentos e sua importância para a utilização e
conservação da diversidade biológica. Para Shiva (2001, p. 30), “os sistemas de conhecimento
autóctones são de um modo geral ecológicos, enquanto o modelo dominante de conhecimento
científico, caracterizado pelo reducionismo e a fragmentação, o está equipado para levar em
consideração integralmente a complexidade das inter-relações na natureza”.
Com o incremento das pesquisas científicas para indústrias farmacêuticas, de
biotecnologia, químicas, de alimentos, a pressão sobre a biodiversidade e o reconhecimento e
desejo de apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade passam a ser
uma realidade. O conhecimento científico quer se apropriar de um conhecimento “não-
científico”, taxado de inútil por longo período (talvez assim seja mais fácil acessá-lo), que estava
à margem do Direito e que clama por proteção.
Com a Convenção sobre Diversidade Biológica uma série de conceitos e determinações
acerca dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados entra em cena, definindo
novos valores a serem reconhecidos internacionalmente, em nome da preservação da diversidade
biológica. O reconhecimento pela CDB de que a preservação da diversidade biológica está
intrinsecamente ligada aos modos de vida tradicional abre um leque de discussões quanto à
importância do respeito e preservação desses modos de vida e de toda riqueza cultural que eles
representam.
O trato legislativo que é dado à matéria referente ao patrimônio genético e conhecimentos
tradicionais no Brasil é merecedor de críticas. O ponto de partida para a discussão a respeito de
direitos intelectuais coletivos no Brasil foi o reconhecimento da diferença entre as culturas pela
Constituição Federal de 1988, que reconhece como direitos coletivos o direito à sociodiversidade
(artigo 215), o direito ao patrimônio cultural (artigo 216), o direito à biodiversidade (artigo 225).
O projeto de lei 306/95 da então senadora Marina Silva abria oficialmente a discussão a
respeito da importância da proteção à biodiversidade e ao conhecimento tradicional e respaldava-
se em oito princípios sicos, dentre os quais: soberania sobre os recursos; participação das
comunidades tradicionais nas decisões; participação nacional e local nos benefícios decorrentes
do acesso; promoção e apoio às formas de geração de conhecimentos e tecnologias; proteção à
diversidade cultural e valorização dos conhecimentos e práticas tradicionais e garantia dos
direitos individuais e coletivos associados à biodiversidade. Apesar da preocupação
socioambiental evidenciada no projeto 306/95, a proteção ao conhecimento tradicional era
prevista por meio da noção de direitos coletivos de propriedade intelectual, a serem
regulamentados em legislação posterior e não havia a consagração de direitos de propriedade
intelectual sui generis para o conhecimento das comunidades tradicionais (GARCIA DOS
SANTOS, 2005).
O substitutivo do senador Osmar Dias, de 4.842/98, reformulou o projeto 306/95,
conferindo primazia ao sentido econômico do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento
tradicional a ele associado. Numa análise desse projeto Laymert Garcia dos Santos (2005)
argumenta que o substitutivo mais parecia se preocupar em estipular as condições do acesso aos
recursos genéticos e conhecimentos tradicionais do que afirmar direitos, reduzindo a proteção
das comunidades mediante uma repartição “justa e eqüitativa” dos benefícios do acesso, uma
espécie de compensação. Também dotado de ambigüidades e imprecisões foi o projeto de lei
4.579/98, do deputado Jacques Wagner, pois, apesar de apresentar alguns pontos importantes,
como o direito das comunidades tradicionais de negarem o acesso aos recursos genéticos e aos
conhecimentos a ela associados quando considerarem que ameaça à integridade de seu
patrimônio, ainda representa uma iniciativa tímida quando o assunto é a necessidade de criação
de um regime sui generis de proteção.
Apesar das tentativas e dos debates que vinham ocorrendo em torno da matéria, em julho
de 2000 o governo federal brasileiro editou a Medida Provisória 2.052
34
para regulamentar o
acesso ao patrimônio genético, que posteriormente foi substituída pela Medida Provisória 2.186-
16, de 24 de agosto de 2001. Esta MP veio regulamentar o inciso II do § 1º e o § 4º do artigo 225
da Constituição Federal, os artigos 1º, 8º, alínea “j”, artigo 10, alínea “c”, artigos 15 e 16, alíneas
3 e 4 da Convenção Sobre Diversidade Biológica (DERANI, 2002). Explica Derani (2002, p.
155-156) que,
A MP disciplina o acesso ao patrimônio genético, o acesso ao conhecimento
tradicional associado, a repartição de benefícios adquiridos com a exploração
do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado e o acesso à
tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização.
Acessar é apropriar-se. Quando a norma fala sobre acesso, dispõe sobre a
apropriação, em que o sujeito “acessante” torna-se proprietário privado de algo
que não é privativo de ninguém, pois ou pertence a todos (patrimônio genético)
ou pertence a uma coletividade (conhecimento tradicional associado ao
patrimônio genético). Só propriedade privada se o proprietário encontrar-se
legitimado pela norma jurídica. Ocorre uma apropriação privada originária, em
que aquilo que está fora do mercado e do sistema privado de propriedade torna-
se pela primeira vez integrante do modo capitalista de produção.
O que ocorre com a regulamentação do acesso aos conhecimentos tradicionais e aos
recursos genéticos pela Medida Provisória 2.186/01 é a legitimação da propriedade privada dos
conhecimentos tradicionais e dos recursos genéticos acessados, é a transformação de
propriedades comunitárias em propriedade privada. Um dos problemas reside no fato de que o
objeto apropriado não tem um valor de troca, não é representado por dinheiro. Além disso, uma
das partes do contrato de apropriação não é um sujeito igual aos demais sujeitos proprietários, é
um indivíduo que não é proprietário privado e que não reproduz sua existência pela aquisição de
objetos de que necessita com a mediação de um equivalente. Esses sujeitos diferenciados agem
34
Essa Medida Provisória ficou conhecida como a “Medida Provisória da Novartis”, editada às pressas pelo
Executivo para legitimar o acordo de bioprospecção firmado entre a multinacional Novartis e a organização social
BioAmazônia (criada para implementar o Programa de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da
Biodiversidade da Amazônia, com vistas a fomentar o desenvolvimento da bioindústria), considerado lesivo por se
resumir em vender o acesso à matéria-prima genética para indústrias de biotecnologia. Mesmo com os protestos de
várias ONGs, da sociedade civil e com o caráter antidemocrático dessa regulamentação, o governo vem reeditando
esta Medida Provisória (SANTILLI, 2003).
em função de um valor de uso (apenas o que necessitam) e não de um valor de troca (DERANI,
2002).
Assim, é possível questionar, com Derani (2002, p. 157): “é constitucional a inserção de
um patrimônio coletivo nas relações privadas de produção? É constitucional a transformação da
propriedade coletiva em propriedade privada? É constitucional a modificação de modos de vida
tradicionais pelas novas relações criadas e pelo sistema de remuneração previsto?”
Apesar de haver o reconhecimento de direitos socioambientais na Constituição Federal de
1988, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de proteção legal que proteja
eficazmente os direitos das comunidades tradicionais. E, a “inexistência de tal proteção jurídica
aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade tem gerado as mais diversas formas
de espoliação e de apropriação indevida” (SANTILLI, 2003).
Dessa forma, a luta pela proteção legal adequada às comunidades tradicionais conduz à
preservação da diversidade biológica e do patrimônio cultural da humanidade. As formas
especiais de manejo, a dependência aos recursos naturais, as crenças e mitos que fazem parte de
sua herança cultural, são apenas alguns exemplos da forma diferenciada de convivência das
comunidades tradicionais com o meio em que vivem. O respeito às comunidades e aos
conhecimentos tradicionais por elas desenvolvidos é também a garantia de que essas
comunidades continuarão vivas, desenvolvendo sua cultura e possibilitando que as gerações
futuras usufruam do legado cultural de seus antepassados e que não venham a constituir mais
uma camada da população excluída e empobrecida, expulsa para grandes centros urbanos e
condenada a viver à margem de todas as garantias inerentes aos seres humanos.
2.5 Constituição Federal de 1988: a perspectiva socioambiental e os direitos coletivos das
comunidades tradicionais como afirmação do multiculturalismo
A afirmação da identidade de um grupo que representa uma minoria excluída é também a
afirmação de sua história, perpassando pelo seu modo de vida, pelos costumes, pelos mitos e
crenças, pela língua compartilhada e pelos conhecimentos gerados no seio do grupo. O que num
primeiro momento parece apenas ser o desejo de se fazer reconhecer pelo outro, engloba também
o próprio reconhecimento e a consciência que o grupo detém enquanto parte de uma
coletividade, que possui dignidade e valores capazes de construir e perpetuar uma história.
A questão da dignidade adquire importância fundamental na análise do reconhecimento
das minorias excluídas. É necessário, porém, que o respeito à dignidade da pessoa humana,
fundamento da República Federativa do Brasil e garantido pela Constituição Federal de 1988 em
seu artigo 1º, III, seja garantido também ao indivíduo enquanto componente de um grupo
cultural específico, caracterizando a importância da dignidade para essa coletividade. A luta pelo
reconhecimento e pelo respeito às diferenças faz parte de um ideal democrático mais amplo,
saindo da esfera individual para abarcar a esfera coletiva e ir em busca da ampliação do espaço
público.
O debate acerca da dignidade humana traz uma questão fundamental, exposta por
Boaventura de Sousa Santos, que é o de saber como tornar mensuráveis as exigências de
dignidade humana formuladas em linguagens distintas, que possuem sua própria concepção de
direito e justiça, por exemplo (SANTOS; NUNES, 2003, p. 63). A cultura diferenciada dos
povos indígenas confirma a existência de concepções de direito e justiça muito diferentes das
sociedades ocidentais, existindo regras internas que devem ser respeitadas por todos os membros
do grupo e, da mesma forma, julgamentos e punições conforme regras próprias para quem não
segue o Direito interno.
A garantia de direitos e o respeito às comunidades tradicionais e suas manifestações,
regras de auto-organização, crenças, modos de vida, são fundamentais para que o princípio da
dignidade da pessoa humana seja respeitado também quando se refere a essas comunidades, tão
dignas de consideração e tão merecedoras de dignidade quanto todos os “cidadãos” do Estado. E,
de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet (2002, p. 108),
onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde
as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a
intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas,
onde sua igualdade relativamente aos demais o for garantida, bem como onde
não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa
humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças.
Toda proteção e valorização asseguradas às comunidades tradicionais é, dessa forma,
garantia de proteção à dignidade dos indivíduos pertencentes a essas comunidades. Da mesma
forma, toda garantia de direitos e respeito ao patrimônio cultural formado pelas comunidades
tradicionais é também expressão de proteção à dignidade da pessoa humana, que deve constituir o
valor primeiro de uma sociedade que se pretende justa e solidária. Na análise de Cunha (2004, p.
59):
Verifica-se que, por ser um atributo da pessoa tanto em sua dimensão
individual como social, e por trazer indissoluvelmente unida a idéia de
liberdade, a dignidade adquire um significado jurídico-político. Seu
reconhecimento pelos diversos textos constitucionais e declarações
internacionais de direitos e em particular sua inclusão na Constituição de 1988
converte a dignidade humana em objeto de estudo desde o ponto de vista das
políticas públicas adotadas. Com efeito, uma vez que todas as pessoas merecem
viver em um ambiente que favoreça o seu desenvolvimento pessoal e social, a
dignidade encontra-se unida, de modo indissociável, às idéias de liberdade e
igualdade. E por isso ambas erigem em valores jurídicos fundamentais. O
reconhecimento jurídico da dignidade supõe, então, que o Direito garanta o
respeito à dignidade nas relações interpessoais e nas relações entre o poder e os
indivíduos.
A dignidade adquire, assim, o status de valor fundamental
35
do sistema jurídico, assim
como de valor fundamental da própria condição humana. No entendimento de Alexandre de
Moraes (2002, p. 60),
a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e
que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas,
constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve
assegurar (...).
Cunha (2004) entende que estreita conexão entre o princípio da dignidade da pessoa
humana e os valores fundamentais de liberdade, igualdade e justiça, uma vez que não pode existir
dignidade sem a garantia de liberdade, igualdade e aplicação da justiça, derivando daí a
imposição constitucional de respeito às manifestações culturais e ao patrimônio cultural. Nesse
sentido, a dignidade é característica própria e inseparável de todo indivíduo, materializando-se no
exercício dos direitos que lhe são correlatos.
35
Conforme K. Stern, citado por Sarlet, importa considerar que, “na sua qualidade de princípio fundamental, a
dignidade da pessoa humana constitui valor-guia o apenas dos direitos fundamentais mas de toda ordem jurídica
(constitucional e infraconstitucional), razão pela qual, para muitos, se justifica plenamente sua caracterização como
princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa” (2002, p. 74).
Mesmo com as tentativas assimilacionistas e com o intenso massacre sofrido pelos povos
indígenas, o que se constata é que eles são, na verdade, “livres” para viver sua cultura, para ter
seu direito próprio, para se relacionar de maneira diferenciada com a biodiversidade e para seguir
sua história e reafirmar sua força e importância como cultura. Apesar de terem sido praticamente
dizimados desde que foram “descobertos” pelos europeus, a crescente consciência acerca da
importância da biodiversidade, da diversidade cultural e da crise desencadeada pela
modernização e seus processos tem auxiliado na luta dos povos indígenas, que vêm se
mobilizando, com o auxílio de várias ONGs e movimentos sociais, nas lutas pela afirmação de
sua identidade e de seus direitos coletivos e abrindo caminho para que outras minorias e culturas
diferenciadas se engajem nessas lutas.
A Constituição Federal de 1988 instituiu um Estado Democrático de Direito, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade justa,
fraterna, pluralista e sem preconceitos. O conceito de Estado Democrático de Direito é ainda
fundamentado na cidadania, na dignidade da pessoa humana e no pluralismo político, tendo como
objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de
discriminação. Esses valores também são reforçados pelos princípios constitucionais da
prevalência dos direitos humanos e repúdio ao racismo, os quais são formulados no contexto da
carta de direitos constitucionais, sob o título Direitos e Garantias para todos os cidadãos de forma
igualitária.
As modificações nos Estados nacionais latino-americanos, começando com a Constituição
Brasileira de 1988, reformaram suas Constituições para inserir em seu texto a idéia de que esses
Estados não eram idênticos culturalmente, mas apresentavam uma característica multiétnica e
pluricultural.
36
Essa nomenclatura (multiétnica e pluricultural) o está presente em todas as
36
“Se fizermos uma revisão de cada uma das constituições reescritas desde a década de 80, veremos que são muito
parecidas, embora possam usar terminologias diferentes. A paraguaia, por exemplo, além de reconhecer a existência
dos povos indígenas, declara o Paraguai um país pluricultural e bilíngüe, considerando as demais línguas patrimônio
cultural da Nação (Paraguai, 1992, art. 140); a colombiana estabelece que o “Estado colombiano reconhece e protege
a diversidade étnica e cultural da nação colombiana” (Colômbia, 1991, art. 7º). Como um sinal dos tempos, as novas
constituições americanas foram reconhecendo a sociodiversidade. O México (1992) assume que tem uma
“composição pluricultural”; o Peru, em sua constituição outorgada de 1993, não vai tão longe e apenas admite como
línguas oficiais, ao lado do castelhano, o quéchua, o aimara e outras línguas “aborígenes”; finalmente, em 1995, a
Bolívia, com sua fulgurante maioria indígena, admite romper a tradição de silêncio integracionista e se define como
multiétnica e pluricultural, e a Argentina determina a seu Congresso o reconhecimento da preexistência de povos
indígenas” (SOUZA FILHO, 2003, p. 94)
Constituições infelizmente não aparece na Constituição Brasileira. Esses dois termos temos de
encontrá-los na Constituição garimpando textos, juntando normas e, especialmente, analisando os
artigos 210, 215 e 231 (MAIA, 2005).
Souza Filho (2003) analisa este momento histórico e destaca a luta e a participação de
organizações indígenas e da sociedade civil a partir da década de 80 nas discussões e na defesa
de novos direitos, baseados na diversidade cultural de cada país. Conforme o autor:
A ameaça da hecatombe ambiental promoveu o reencontro dos povos com suas
localidades, e grupos organizados de ambientalistas se aliaram às organizações
indígenas e indigenistas nas reivindicações coletivas. As novas constituições
foram surgindo com um forte caráter pluricultural, multiétnico e preservador da
biodiversidade. Ao lado do individualismo homogeneizador, reconheceu-se um
pluralismo repleto de diversidade social, cultural e natural, numa perspectiva
que se pode chamar de socioambiental (2003, p. 93).
Como decorrência. muitos movimentos socioambientais
37
surgiram também no Brasil a
partir da década de 80, representando a luta por ideais multiculturais e colaborando para que a
questão da preservação ambiental aliada ao respeito pelas comunidades e conhecimentos
tradicionais e a luta por justiça social fossem inseridas em vários níveis e instituições, inclusive
contribuindo para a consagração de direitos socioambientais na Constituição Federal de 1988.
Na visão de Santilli (2005, p. 35):
O socioambientalismo nasceu, portanto, baseado no pressuposto de que as
políticas públicas ambientais teriam eficácia social e sustentabilidade
política se incluíssem as comunidades locais e promovessem uma repartição
socialmente justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração dos
recursos naturais.
O socioambientalismo surge como um movimento de extrema importância para países em
desenvolvimento, ricos em diversidade biológica e cultural como o Brasil
38
. Para Santilli (2005,
p. 40), “o socioambientalismo passou a representar uma alternativa ao
37
A partir de alianças com movimentos sociais, verifica-se no Brasil uma evolução do movimento ambientalista
para o movimento socioambientalista. Apesar da consideração de que o movimento ambientalista nasceu nos
Estados Unidos e na Europa para depois se espalhar pelo restante do mundo, Santilli (2005) argumenta que a crítica
ambiental nasceu no Brasil, nos séculos XVIII e XIX, como reação ao modelo de exploração colonial baseado no
latifúndio, no escravismo na monocultura e na intensa devastação ambiental que já ocorria.
38
Dentre os países megadiversos estão: Brasil, México, China, Colômbia, Indonésia, Quênia, Peru, Venezuela,
Equador, Ìndia, Costa Rica, África do Sul, o que represemta 70% da diversidade biológica mundiaL (SANTILLI,
2005).
conservacionismo/preservacionismo ou movimento ambientalista tradicional, mais distante dos
movimentos sociais e das lutas políticas por justiça social e cético quanto à possibilidade de
envolvimento das populações tradicionais na conservação da biodiversidade”.
De acordo com esta autora, é possível perceber na Constituição Federal de 1988 uma
orientação claramente multicultural e pluriétnica, uma vez que reconhece direitos coletivos a
povos indígenas e quilombolas. Dessa forma, além da proteção ao meio ambiente prevista no
artigo 225, a Constituição protege também a sociodiversidade. Ademais , os artigos 215 e 216 da
Carta Maior, são dedicados à proteção da cultura, sendo que o § do artigo 215 determina a
proteção pelo Estado, das manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras, assim
como aos demais grupos participantes do processo civilizatório nacional.
A autora nessa orientação multicultural da Constituição pátria um benefício para a
coletividade:
Os dispositivos constitucionais que asseguram os direitos dos povos indígenas e
quilombolas e a proteção à cultura consagram duas faces dos direitos coletivos.
Asseguram direitos coletivos às minorias étnica e culturalmente diferenciadas e
garantem a todos ou seja, a toda a coletividade o direito à diversidade
cultural. Por um lado, os povos indígenas e quilombolas têm o direito a
continuar existindo enquanto tais, e a garantia de seus territórios, recursos
naturais e conhecimentos, e, por outro, toda a sociedade brasileira tem o direito
à diversidade cultural e à preservação das manifestações culturais dos diferentes
grupos étnicos e sociais que a integram (2005, p. 81).
Os “novos” direitos surgidos com a Constituição Federal de 1988 constituíram a base
para a evolução dos chamados direitos socioambientais, influenciando fortemente a legislação
infraconstitucional brasileira.
39
Esses direitos rompem com a excessiva ênfase nos direitos
individuais, de cunho patrimonialista e impõem novos desafios à ciência jurídica, tanto para
conceituá-los como para concretizá-los, além de marcar uma conquista de lutas de natureza
emancipatória, coletiva e indivisível (SANTILLI, 2005).
39
Exemplo disso são as leis que foram criadas a partir da Constituição Federal, afirmando novos” direitos de
enorme relevância política e social: Lei 7.853/89 (Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, tutela
dos interesses difusos ou coletivos, integração social); Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei
8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); Lei 9.294/96 (Restrições ao uso e a propaganda de produtos
fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas); Lei 9.795/99 (Educação Ambiental);
Lei 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos); Lei 9.605/98 (Crimes Ambientais sanções penais e
administrativas), dentre outras.
Ainda que o modelo de legalidade encontre seus primórdios na doutrina clássica do
Direito Natural, foi na França pós-revolucionária que a tese da universalização dos direitos do
homem se concretizou, estimulando o processo de integração dos sistemas legais sob o
fundamento da igualdade de todos os indivíduos perante uma legislação comum (WOLKMER,
2003). Acrescenta este estudioso:
Assim, em face de crescentes modificações, a sociedade moderna européia não
só favorece a emergência de uma estrutura centralizada de poder (Estado-Nação
Soberano), como edifica uma concepção monista de regulação social e uma
racionalização normativa técnico-formalista (ciência jurídica), que tem no
Estado a fonte legitimadora por excelência. Constrói-se, neste sentido, a teoria e
a prática jurídicas assentadas sobre uma concepção individualista, patrimonial e
científica, em que o Direito expressa o que está na lei escrita e o Estado, a fonte
direta e exclusiva de todas as normas sociais válidas (2003, p. 2).
Como bem analisa Wolkmer (2003, p. 2), “o projeto da modernidade européia está em
crise: vive-se o deslocamento de modelos de fundamentação e a transição para novos paradigmas
de conhecimento, de representação institucional e de representação social”, o que abre o
horizonte para mudanças e para a construção de um novo paradigma, com base em uma
perspectiva pluralista, flexível e interdisciplinar.
Com a emergência de novos conflitos e novos atores sociais no contexto atual, diferentes
formas de direito se impõem como fundamentais para contemplar as novas exigências
relacionadas à vida, ao meio ambiente, à dignidade humana, enfim, a todas as esferas que não
encontram guarida no sistema tradicional. São “novos direitos que se desvinculam de uma
especificidade absoluta e estanque e assumem caráter relativo, difuso e metaindividual”
(WOLKMER, 2003, p. 3).
São direitos históricos, que, conforme Norberto Bobbio (1992), nasceram em certas
circunstâncias, caracterizando lutas pela conquista de novas liberdades e contra velhos poderes.
Assim, “o elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança
das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos
meios disponíveis para realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc” (BOBBIO, 1992,
p.18).
Considerando que os direitos fundamentais passaram por diversas transformações,
influenciados pelo contexto histórico e social, verifica-se a existência da divisão doutrinária destes
direitos em gerações ou dimensões. Na análise de Walber de Moura Agra (2002, p. 139),
as dimensões de direitos são quantitativas e qualitativas. Uma dimensão
posterior incorpora direitos da anterior e acrescenta uma nova densidade de
prerrogativas aos cidadãos que até então não existia. Não se pode precisar um
término para a evolução dos direitos fundamentais. Ela é infinita, consolidada
uma dimensão, imediatamente outra começa a se consolidar.
Para Sarlet (2003, p. 51), os direitos de primeira dimensão afirmaram-se “como direitos
do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma
zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder”.
A primeira dimensão de direitos fundamentais, enraizada na doutrina jusnaturalista,
40
estabelece o papel do Estado de garantir a liberdade individual e, por isso, engloba direitos que
são apresentados como de cunho negativo, uma vez que não prevêem uma conduta positiva por
parte do Estado e sim sua abstenção, sendo, nesse sentido, “direitos de resistência ou de oposição
perante o Estado” (BONAVIDES, 2002, p.517). Como exemplo dos direitos de primeira
dimensão pode-se citar o direito de liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de
igualdade perante a lei, de propriedade, o direito às garantias processuais, dentre outros.
Em contraposição aos direitos de liberdade, os direitos de segunda dimensão requerem
uma maior amplitude do poder do Estado, diante das novas revoluções ocorridas no meio social.
Com o impacto da industrialização e os decorrentes problemas sociais e econômicos, a
consagração de alguns direitos de liberdade que não eram efetivamente gozados, vieram a
desencadear, no século XIX, movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de
direitos, atribuindo ao Estado um comportamento ativo na realização da justiça social (SARLET,
2003, p. 52). Segundo este autor, esses direitos caracterizaram-se por “outorgarem aos indivíduos
direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc,
revelando uma transição das liberdades materiais concretas” (2003, p.52).
40
De acordo com Darcísio Corrêa (1999, p. 34), “por jusnaturalismo se entende uma doutrina segundo a qual existe
e pode ser conhecido um “direito natural” (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva
diverso do sistema de normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Segundo tal corrente de pensamento, existe um
direito superior e anterior às normas positivas da sociedade, servindo de fundamento e inspiração para as normas
concretas de regulamentação da convivência humana e seus sistemas de direito”.
Os “novos direitos são classificados como direitos de terceira dimensão, também
chamados de direitos de solidariedade ou fraternidade que promovem alterações na titularidade da
proteção. Assim, esses direitos “trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em
princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos
humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de
titularidade coletiva ou difusa” (SARLET, 2003, p. 53). O direito à paz, ao desenvolvimento, ao
meio ambiente, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural, à comunicação e à
autodeterminação dos povos, são alguns exemplos (FERREIRA FILHO, 2002).
Explica Bonavides (2002, p. 523), ao comentar tais direitos que,
um novo pólo jurídico de alforria se acrescenta historicamente aos da liberdade e
da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanidade e universalidade, os
direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX
enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses
de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por
destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua
afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.
Wolkmer (2003) reconhece nos “novos” direitos uma característica específica
fundamental, que o leva a afirmar que, na verdade, a denominação “novos” direitos nem sempre
significa que esses direitos sejam inteiramente novos. “Novo”, muitas vezes, é a forma de luta
por tais direitos, que não passam mais pelas vias tradicionais (legislativa e judicial), mas que
definem uma nova realidade, com processos específicos de reivindicações baseadas em
identidades coletivas que clamam por reconhecimento pelo Estado ou pela ordem pública
constituída.
Os direitos socioambientais articulam direitos difusos com outros, coletivos, delineando
novos anseios e necessidades de uma sociedade que teve sua história permeada por desigualdades
sociais e pelo intenso massacre à natureza. O direito na perspectiva socioambiental o se
resume apenas à soma de “social” mais ambiental”, mas resulta de uma releitura dos diversos
direitos consagrados na Constituição Federal de 1988 (LIMA, 2002).
André Lima (2002, p. 12) enumera alguns destes direitos, integrantes da complexa
equação que resulta na construção da síntese socioambiental brasileira: o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a construção de uma
sociedade mais justa e solidária, o combate ao racismo, a autodeterminação dos povos, a
supremacia dos direitos humanos, a função social da propriedade, a valorização das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, a proteção dos bens de natureza material e imaterial
portadores de referência à identidade, à ação e à memória, os modos de criar, fazer e viver dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, os espaços territoriais especialmente
protegidos, como a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal, a
Zona Costeira, entre outros.
Os direitos indígenas, ambientais, culturais e a função social da propriedade são
considerados os pilares que sustentam os direitos socioambientais (LIMA, 2002). E a
Constituição Federal de 1988, ao reconhecer esses direitos, “abre as portas para um novo direito
fundado no pluralismo, na tolerância, nos valores culturais locais, na multietnicidade, que rompe
com a lógica excludente do Estado Constitucional e seu Direito único” (SOUZA FILHO, 2002, p.
23). A Carta Magna, porém, “apenas abriu as portas”, muito falta a fazer (SOUZA FILHO, 2002,
p. 23).
O reconhecimento constitucional possibilitou que questões antes consideradas meta-
jurídicas fossem discutidas e pesquisadas com maior ênfase. E, se antes a defesa destes direitos
era pura paixão, utopia e luta política, depois da Constituição se pode somar ao sonho o estudo
jurídico porque o Judiciário e o Ministério Público passaram a ser chamados a participar da
realização destes direitos” (SOUZA FILHO, 2002, p. 24).
Assim sendo, os direitos socioambientais vêm consagrar um leque de novos direitos, de
titularidade coletiva, que não são valoráveis economicamente e nem podem ser acoplados a um
patrimônio individual. Isso rompe, de certa forma, com o direito da modernidade, assentado nos
direitos individuais, garantindo o patrimônio individual de plantas, animais, minerais, frutos, por
exemplo. O direito da modernidade obedece à lógica da apropriação, pela qual tudo pode ou deve
pertencer a uma pessoa (SOUZA FILHO, 2002).
Outras mudanças também devem ser observadas no que se refere aos objetos de direito.
Quando alguns bens imateriais passaram a também fazer parte do patrimônio (que antes era
composto apenas por bens materiais), estes passaram a ser objeto de direito, adquirindo a
qualidade de bem jurídico (como o conhecimento, a invenção, a criação, a moral) (SOUZA
FILHO, 2002). “Com a mudança do sujeito passando de individual a coletivo e o objeto de
material a imaterial, o velho paradigma do direito moderno foi superado e os sonhos humanos
puderam entrar na ordem jurídica, basta poder realizá-los” (SOUZA FILHO, 2002, p. 29).
Com a previsão constitucional, os direitos coletivos perderam sua invisibilidade e,
diferentemente dos tradicionais, que devem ser garantidos pelo Estado, os direitos coletivos
exigem a interferência do Estado para a sua promoção. Conforme Souza Filho (2002, p. 32),
O ser coletivo titular do direito, o “todos”, “muitos” ou “alguns”, pode ser
formado por um grupo de pessoas que vive de forma diferente dos outros, como
os índios, como pode ser a universalidade humana ou um conjunto difuso. Estes
novos direitos têm como principal característica o fato de sua titularidade não ser
individualizada, de o se ter ou não poder ter clareza sobre ela. Não são frutos
de uma relação jurídica precisa mas apenas de uma garantia genérica, que deve
ser cumprida e que, no seu cumprimento acaba por condicionar o exercício dos
direitos individuais tradicionais.
E, nessa passagem do individual para o coletivo, nessa impossibilidade de atribuir a um
único indivíduo a titularidade desses novos e importantes direitos socioambientais, Souza Filho
(2002, p. 23) complementa: “Se todos são sujeitos do mesmo direito, todos têm dele
disponibilidade, mas ao mesmo tempo ninguém pode dele dispor, contrariando-o, porque a
disposição de um seria violar o direito de todos os outros”.
Os direitos coletivos possuem titularidade não individualizada, no entanto isso não
significa que é um direito sem sujeitos, mas um direito onde todos são sujeitos. Exemplo disso é
o direito coletivo constitucionalmente garantido ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
em que todos são titulares, independentemente de conviverem diretamente com um desequilíbrio
ambiental, e o direito aos bens culturais, também assegurados a todos, mesmo que não conheçam
ou não se preocupem com os bens em questão (SOUZA FILHO, 2004). uma figura maior a
ser protegida, a coletividade, e um interesse difuso, aquele de um grupo ou de vários grupos, que
merece e deve ser tutelado.
No caso dos povos indígenas, pode-se verificar duas perspectivas em relação a categorias
de direitos coletivos assegurados constitucionalmente: os direitos territoriais e os direitos
culturais. No que se refere aos direitos territoriais, a proteção alcança um grupo indígena
determinado, que possui direitos originários a certo território e nele desenvolve seus hábitos,
cultua suas crenças, suas relações sociais, culturais e suas atividades para a sobrevivência
material. os direitos culturais possuem uma abrangência maior, pois além do direito que o
grupo detém de poder manifestar sua cultura das mais variadas formas, um direito oponível a
todos, de que a cultura seja preservada, de que o patrimônio cultural possa ser garantido também
às gerações futuras (SOUZA FILHO, 2004).
Como exposto, em uma análise dos direitos socioambientais na Constituição Federal de
1988, é possível concordar que tal previsão rompe com os direitos clássicos individuais, baseados
na lógica patrimonialista e fragmentária. Conforme Lima (2002), porém, a plena satisfação
destes direitos ainda está em construção, uma vez que a distância entre os fatos e o Direito ainda
é considerável. Para este autor:
Direitos difusos e coletivos geram demandas por políticas públicas. Geram
demandas por transparência e participação direta da população nas tomadas de
decisão e para tanto novos instrumentos são imprescindíveis, sob pena dos
direitos constitucionais socioambientais restarem inertes em cartas declaratórias
de boas intenções e visionárias obras acadêmicas (2002, p. 321-322).
Pelo disposto na Constituição Federal de 1988, a defesa de direitos difusos e coletivos
pode ocorrer mediante Ação Popular, prevista no artigo 5º, LXXIII, conferindo legitimidade a
qualquer cidadão para propor ação que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio
ambiente, ao patrimônio histórico e cultural. A Ação Civil Pública, criada pela Lei nº 7.347/85, é
o principal instrumento processual utilizado na defesa em juízo dos direitos difusos e coletivos,
com o Ministério Público, a União, Estados, municípios, Distrito Federal, entidades e órgãos da
administração pública, direta ou indireta, e associações legalmente constituídas sendo partes
legítimas para propor a ação. Conforme o disposto no artigo e incisos da Lei da Ação Civil
Pública:
Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ões
de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I- ao meio
ambiente; II- ao consumidor; III- a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico; IV- a qualquer outro interesse difuso ou
coletivo; V- por infração da ordem econômica e da economia popular; VI à
ordem urbanística.
O reconhecimento do texto constitucional, assim como os instrumentos processuais para
a defesa de direitos difusos e coletivos, abrem um leque de possibilidades para a criação de
espaços e processos que garantam a efetivação dos direitos socioambientais. A participação do
Ministério Público, das organizações ambientalistas, das instituições públicas, da sociedade civil
e das comunidades tradicionais nos debates e na formulação de pressupostos para um modelo de
desenvolvimento diferenciado, enfatizando as necessidades e características também
diferenciadas das comunidades tradicionais é o primeiro passo a ser dado. Além disso, o papel
do Estado na proteção dos direitos coletivos das comunidades tradicionais deve ser reforçado,
criando possibilidades concretas de proteção aos conhecimentos tradicionais, garantindo a
demarcação e proteção de seus territórios, desenvolvendo políticas efetivamente em prol do
desenvolvimento cultural e da sobrevivência desses povos.
3 A PROTEÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL COMO GARANTIA DA PRESERVAÇÃO
DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE: PARA UMA SOCIEDADE
VERDADEIRAMENTE MULTICULTURAL
3.1 Meio ambiente cultural e o direito à cultura
O termo cultura originou-se do verbo latino colere, significando o cultivo e cuidado com
as plantas e os animais (agricultura, por exemplo). O sentido também é empregado no cuidado
com as crianças e sua educação (puericultura) e com o culto” aos deuses e ao sagrado. Com o
decorrer da história o sentido do termo se altera, passando, no século XVIII, a relacionar-se com
o conceito civilização (CHAUI, 2006). Nesse período “avalia-se o progresso de uma civilização
pela sua cultura e avalia-se a cultura pelo progresso que ela traz a uma civilização” (CHAUI,
2006, p.130).
O conceito de cultura, apesar de possuir múltiplos significados, é fundamental para
entender a dimensão social e histórica do ser humano. Inicialmente pode-se falar em oposição
entre cultura e natureza, constituindo a cultura o que se acrescenta à natureza, a ação humana que
a transforma. Outra significação é aquela que se refere aos níveis de cultura, como a erudita, a
popular e a cultura de massa, por exemplo. Também é usual o emprego da expressãoidentidade
cultural”, designando um conjunto de significações que possibilitam a identificação e a
comunicação dos membros de um grupo (língua, costumes, crenças)
41
(PAVIANI, 2004).
Paviani (2004) propõe dois métodos que podem ser empregados para esclarecer o
significado de cultura: um deles baseado na observação dos múltiplos significados que o termo
assume no uso comum da linguagem, e outro, que consiste na busca em textos filosóficos e
científicos ou em dicionários técnicos, de significados de cultura desenvolvidos em épocas
distintas. A partir da distinção no emprego dos métodos citados, conclui-se que:
O primeiro explicita os significados do conceito a partir do emprego efetivo das
línguas naturais em cada situação lingüística. Nessa perspectiva, os discursos
científicos e os discursos do cotidiano se complementam em benefício de um
entendimento mais objetivo das relações da vida em grupo, em comunidades,
em sociedade (PAVIANI, 2004, p. 73).
41
Paviani (2004) define o uso da expressão “identidade cultural” como problemático, uma vez que muitas vezes, o
que define a identidade ignora as diferenças por ela produzidas. Conforme o autor: “Nas concepções ideológicas e
doutrinárias, predomina um conceito único, genérico, de cultura e não, como nos ensinam as pesquisas
antropológicas, um conceito diferencial. Em outros termos, o uso da noção de identidade, ao caracterizar um núcleo
ou aspecto da cultura, pode assumir dois modos de concepção do princípio de diferença, um absolutamente externo,
isto é, que define a identidade excluindo a diferença, e outro constitutivo da própria identidade, isto é, que define a
identidade admitindo a diferença” (2004, p. 73).
Este autor explica que a partir da origem latina do termo, do processo de cuidar das
plantações e da criação de animais, “passou-se para o sentido socioantropológico de cultura,
indicando o conjunto de padrões de comportamento, crenças, costumes, obras técnicas e
artísticas, conhecimentos, etc., próprios de um grupo social”. E atingindo um outro nível
semântico, o autor assevera que, cultura significa forma evoluída de valores e tradições morais
intelectuais e espirituais”. (2004, p. 74).
Nas relações culturais se expressam as relações de vida, as vivências, os bitos, os
costumes, os modos de produção de uma sociedade, que são objetivados na fala, nas idéias ou
pensamentos contidos na linguagem do grupo, na experiência individual e coletiva dos processos
educativos, nos modos de ser da família, das organizações, das instituições, nos padrões de
comportamento, nos hábitos alimentares (PAVIANI, 2004). “Assim, a cultura caracterizada como
produção objetiva pode ser definida como o conjunto dos modos de agir e fazer (produzir), dos
modos de pensar e conhecer, presentes no tecido social e nas relações dos homens com a
natureza” (PAVIANI, 2004, p. 75).
Morin e Kern (2002, p. 56), por sua vez, apresentam a seguinte definição para cultura:
Conjunto de regras, conhecimentos, técnicas, saberes, valores, mitos, que
permite e assegura a alta complexidade do indivíduo e da sociedade
humana, e que, não sendo inato, tem necessidade de ser transmitido e
ensinado a cada indivíduo em seu período de aprendizagem para poder se
autoperpetuar e perpetuar a alta complexidade antropo-social.
Para Henrique Rattner (2005), o que distingue os seres humanos das demais criaturas é o
fato de que o homem é o único ser capaz de “construir culturas”. Afirma ainda este autor que as
características culturais, embora universais, variam muito de uma sociedade para outra. São
conhecidas muitas definições para o termo cultura, mas há um certo consenso entre os estudiosos
de que “cultura refere-se àquela parte do ambiente produzida pelos homens e por eles aprendida e
utilizada no processo contínuo de adaptação e transformação da sociedade e dos indivíduos”.
(RATTNER, 2005, p. 1). Rattner (2005) argumenta ainda que a cultura, apesar de universal na
experiência dos homens, apresenta-se com mais intensidade especialmente nas manifestações
regionais, com características próprias e distintas de outros povos, como é o caso da cultura
indígena, diferente do conjunto das estruturas sociais do homem branco.
Um dos empregos mais comuns do termo cultura é aquele relacionado às humanidades.
Conforme Santos e Nunes (2003, p. 27), “definida como repositório do que de melhor foi
pensado e produzido pela humanidade, a cultura, neste sentido, é baseada em critérios de valor,
estéticos, morais ou cognitivos que, definindo-se a si próprios como universais, elidem a
diferença cultural ou a especificidade histórica dos objetos que classificam”. Uma outra
concepção coexiste com a anterior, mas reconhece a pluralidade de culturas, reconhecendo-as
como diferentes e incomensuráveis ou como meros exemplares em estágios evolutivos
(SANTOS; NUNES, 2003). Na análise destes pensadores:
Estes dois modos de definir a cultura permitiam estabelecer uma distinção entre
as sociedades modernas as sociedades coincidentes com espaços nacionais e
com os territórios sob a autoridade de um Estado -, estruturalmente
diferenciadas, que “têm” cultura, e as “outras” sociedades “pré-modernas” ou
“orientais” que “são” culturas. Essas duas concepções foram consagradas e
reproduzidas por instituições típicas da modernidade ocidental como as
universidades, o ensino obrigatório, os museus e outras organizações, e
exportadas para os territórios coloniais ou para os novos países emergentes dos
processos de descolonização, reproduzindo nesses contextos concepções
eurocêntricas de universalidade e de diversidade (2003, p. 27).
Santos e Nunes (2003) reconhecem a dificuldade em manter a diferenciação entre os dois
tipos de sociedade descritos anteriormente, a partir das mudanças introduzidas pelos processos de
globalização e com eles o aumento das desigualdades tanto nos países do Norte como no Sul,
com a mobilidade das populações do Sul para o Norte e a conseqüente diversificação étnica
ocorrida. Dessa forma, o conceito de cultura, além de estar associado a repertórios de sentido ou
significado partilhados pela sociedade, associa-se também à diferenciação e à hierarquização
tanto em contextos nacionais e locais como transnacionais. A cultura adquire, nesse viés, uma
conotação estratégica paras as lutas em defesa de identidades e posterior reconhecimento das
diferenças.
Seguindo a diferenciação oferecida por Santos e Nunes (2003), acrescenta-se o
entendimento de Chaui (2006) quando assevera que a partir do século XVIII cultura passa a se
opor à civilização, podendo tomar duas direções. Por um lado, passa a significar o que era
“natural” nos homens (em oposição ao artificialismo da civilização), designando a interioridade
do sujeito, sua consciência, espírito e subjetividade. Por outro lado, passa a significar amedida”
de uma civilização, a capacidade de desenvolvimento da razão no conhecimento dos homens, da
natureza, da sociedade, criando uma ordem que é superior (civilizada) em relação à outra,
ignorante. Assim, “a oposição deixa de ser entre o “natural” e o “artificial” para tornar-se
oposição entre liberdade (cultura e história) e necessidade (natureza)” (CHAUI, 2006, p. 12).
Dessa forma, embora representasse as formas simbólicas e os modos de vida de uma
sociedade, a noção predominante de cultura é aquela em que ocorre uma divisão social das
classes, expressa na diferenciaçãoculto” e “inculto”. Na visão de Chaui (2006, p. 13), com essa
divisão:
1) a cultura e as artes distinguiram-se em dois tipos principais: a erudita (ou de
elite), própria dos intelectuais e artistas da classe dominante, e a popular,
própria dos trabalhadores urbanos e rurais; 2) quando pensadas como produções
ou criações do passado nacional, formando a tradição nacional, a cultura e a
arte populares receberam o nome de folclore, constituído por mitos, lendas e
ritos populares, danças e músicas regionais, artesanato, etc.; e 3) a arte erudita
ou de elite passou a ser construída por público de letrados, isto é, pessoas com
bom grau de escolaridade, bom gosto e consumidoras de arte.
A Antropologia Cultural surgiu na segunda metade do século XIX e, segundo Rattner
(2005), manifestou-se em resposta à polêmica da suposta superioridade da cultura ocidental sobre
os selvagens, ou seja, sobre as culturas denominadas de primitivas, como eram conhecidas as dos
indígenas. A alegada superioridade servia para efetivar e consolidar a dominação do homem
branco sobre os índios e os negros. A partir dos estudos da Antropologia Cultural pode-se
concluir que a cultura es inserida no processo de socialização de cada ser, que se constitui no
convívio comunitário, no qual são assimiladas as normas, os padrões, a conduta, a religião, a
língua, enfim, o conjunto que compõe o estilo de vida ou cultura de cada grupo. É por meio da
cultura que um povo constrói a sua identidade e mantém vivas a sua história e sua etnia.
Segundo Hall (2003), para que se possa conceituar cultura é necessário levar em conta a
comunidade imaginada: as memórias do passado, o desejo de viver em conjunto e a perpetuação
da herança. Como manter a identidade cultural diante da era da globalização e da eliminação das
fronteiras geográficas e políticas pelo avanço das tecnologias? Para Hall (2003), cada conquista
do homem branco subjugou o povo conquistado e sua cultura, sua língua, suas tradições e
costumes, na tentativa de impor uma hegemonia cultural unificada. Diante dessa hegemonia é que
as culturas ditas “dominadas” se impõem e buscam afirmar-se como culturas que também
merecem reconhecimento e valorização.
Santos (2002, p. 47) alega que “a cultura é por definição um processo social construído
sobre a intercepção entre o universal e o particular”. E acrescenta:
Poderíamos até afirmar que a cultura é, em sua definição mais simples, a luta
contra a uniformidade. Os poderosos e envolventes processos de difusão e
imposição de culturas, imperialisticamente definidas como universais, têm sido
confrontados, em todo o sistema mundial, por múltiplos e engenhosos processos
de resistência, identificação e indigenização culturais.
No entendimento de Dulci Matte (2001), a identidade étnica está diretamente relacionada
aos conteúdos culturais como os valores de moralidade e excelência, e às expressões culturais de
cada povo. É certo que alguns aspectos da cultura mudam e outros permanecem, e essas
mudanças são características das dinâmicas culturais, fruto de fatores externos, assim sendo,
assevera a autora que o culturas puras e não se pode considerar algumas delas como
legítimas ou ilegítimas.
Cunha (2004) argumenta ser a empatia
42
o primeiro passo para a aceitação de culturas
diversas. Entender o outro e saber como este se sente não significa apenas entender a origem dos
sentimentos e sua importância para determinado indivíduo, mas sentir o que o outro sente.
“Outrossim, quanto mais aceitamos e compreendemos nossas emoções, mais hábeis seremos na
interação com os demais, possibilitando que nossa capacidade de leitura de emoções adquira
maior exatidão” (CUNHA, 2004, p. 49).
A empatia pressupõe uma compreensão e um reconhecimento do outro, o que contribui
para a formação da personalidade e, dessa forma, também da identidade. Em conformidade com
a teoria de Charles Taylor (1997), o reconhecimento do outro e a interação que daí decorre
possibilita a formação da identidade, tendo como base o diálogo e a negociação. A formação
saudável da personalidade dá-se justamente quando o indivíduo sente que está sendo
compreendido empaticamente, tendo a certeza que pode revelar seus sentimentos e emoções,
originando assim a capacidade do próprio indivíduo de também compreender os outros de igual
forma (CUNHA, 2004, p. 50). De acordo com este autor:
Essa compreensão baseia-se na atitude de não procurar mudar os sentimentos
do interlocutor, mas simplesmente tentar-se aprender como ele se sente,
percebendo as nuanças de seu sentimento naquele momento. Assim, quem age
com empatia consegue “ver” como o interlocutor vê, “sentir” como ele sente,
em uma interpenetração no mundo da outra pessoa compreensivamente. (2004,
p. 51).
A cultura não pode ser entendida como algo individual, ela é obra coletiva, é
comunicação com os outros (PAVIANI, 2004). Assim:
42
Entende-se por empatia o modo de conhecimento intuitivo de outrem; a capacidade de se colocar no lugar do
outro; o saber como o outro se sente tendo como fundamento a própria autoconsciência.
A cultura enquanto processo, rede de signos (de comunicação), nasce das
relações entre os grupos. Portanto, a identidade de um grupo requer o
reconhecimento de outros grupos e do Outro. A cultura pode ser critério de
definição do grupo, da comunidade e da sociedade, cada momento com suas
marcas identificadoras e diferenciadoras. Ela nos identifica com um grupo ou
comunidade e nos diferencia em relação aos outros (PAVIANI, 2004, p. 77).
O reconhecimento de que as culturas ditas “primitivas” também são detentoras de
importantes manifestações, que formam uma singularidade que merece respeito e valorização e
que amplia a noção do próprio termo “cultura”, é igualmente demonstrado quando se analisa o
conceito de meio ambiente e a abrangência do que é considerado patrimônio cultural,
caracterizando a diversidade cultural brasileira.
A Lei 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), em seu artigo 3º, I , define meio
ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. O conceito normativo de
meio ambiente estabelecido por esta lei é merecedor de críticas, pois, conforme a grande maioria
dos doutrinadores, é um conceito em que prevalece o aspecto biológico do meio ambiente,
desdenhando o aspecto social do termo (ANTUNES, 2005).
Vladimir Passos de Freitas (2005) acrescenta que a visão moderna de meio ambiente
entende este o apenas como natureza, mas também abrangendo as modificações introduzidas
pelo homem. Para o referido autor, “é possível classificar o meio ambiente em natural, que
compreende a água, a flora, o ar, a fauna, e cultural, que abrange as obras de arte, imóveis
históricos, museus, belas paisagens, enfim, tudo o que possa contribuir para o bem-estar e a
felicidade do ser humano” (2005, p. 92).
O mesmo entendimento possui Milaré (2005, p. 399), para quem
A visão holística do meio ambiente leva-nos a considerar o seu caráter social,
uma vez que é definido constitucionalmente como um bem de uso comum do
povo. Caráter ao mesmo tempo histórico, porquanto o meio ambiente resulta
das relações do ser humano com o mundo natural no decorrer do tempo. Essa
visão faz-nos incluir no conceito de meio ambiente além dos ecossistemas
naturais as sucessivas criações do espírito humano que se traduzem nas suas
múltiplas obras.
Na concepção de José Afonso da Silva (1994, p. 2), o meio ambiente é “a interação do
conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento
equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção unitária
do ambiente, compreensiva dos recursos naturais e culturais”.
Assim, englobando elementos que independem da ação do homem (meio ambiente
natural) e outros que são fruto dessa ação (meio ambiente cultural), o meio ambiente é, na
verdade, a interação destes elementos. Na explicação de Souza Filho (2005, p. 15):
O meio ambiente, entendido em toda sua plenitude e de um ponto de vista
humanista, compreende a natureza e as modificações que nela vem
introduzindo o ser humano. Assim, o meio ambiente é composto pela terra, a
água, o ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras de arte e os elementos
subjetivos e evocativos, como a beleza da paisagem ou a lembrança do passado,
inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou da passagem de seres
humanos. Desta forma, para compreender o meio ambiente é tão importante a
montanha, como a evocação mística que dela faça o povo.
Uma vez que o meio ambiente é também meio ambiente cultural, percebe-se que a cultura
e todas as suas manifestações enquanto modificadoras da natureza e enquanto formadoras da
diversidade da humanidade (língua, religião, crenças, relações sociais, símbolos...), são também
direito de quem a constrói, por um lado, e de toda a humanidade, por outro, das gerações atuais
e futuras, das diferentes etnias e grupos, das comunidades nacionais e sociedade mundial.
“Percebe-se que, além dos ecossistemas naturais, convivemos com obras e manifestações que,
indo além do mero utilitarismo, expressam a criatividade e características de um povo, fazendo
parte, portanto, de sua identidade, representando seu patrimônio cultural” (CUNHA, 2004, p. 79).
O direito à cultura está consagrado no artigo 215, integrante do Título VIII (“Da ordem
social”), Capítulo III (“Da educação, da cultura e do desporto”), Seção II (“Da cultura”) da
Constituição Federal de 1988:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
§ O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
§ A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação
para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
§ A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual,
visando ao desenvolvimento cultural do País e a integração das ações do poder
público que conduzem à:
I- defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II – produção, promoção e difusão de bens culturais;
III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas
dimensões;
IV – democratização do acesso aos bens de cultura;
V- valorização da diversidade étnica e regional.
O direito à cultura supõe a proteção dos bens culturais. Estes, por sua vez, são integrantes
da categoria dos bens socioambientais e são formadores do patrimônio cultural. De acordo com
Souza Filho (2005), a proteção dos bens culturais inicia-se com a sua individuação, para que seja
localizado, conhecido, reconhecido e nele identificado o status de bem preservável. O bem
cultural é aquele bem jurídico que, além de ser objeto de direito, está protegido por ser
representativo, evocativo ou identificador de uma expressão cultural relevante” (SOUZA FILHO,
2005, p. 36).
Os bens culturais possuem um valor inestimável para os povos, sendo a sua produção,
promoção e difusão (artigo 215, § 3º, II), a valorização da diversidade étnica e regional (artigo
215, § 3º, V) e a democratização do acesso aos bens culturais (artigo 215, § 3º, IV) alguns dos
caminhos que conduzirão à defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro (artigo 215, §
3º, I).
Com esta sucinta abordagem a respeito do conceito de meio ambiente e da dimensão
cultural que ele deve englobar, objetiva-se apenas demonstrar a importância do meio ambiente
cultural e do direito à cultura, consagrada pela Constituição Federal de 1988, mas que ainda
carece de proteção e efetivação, especialmente quando o bem jurídico cultural que clama por
proteção é composto pelas manifestações e pelas formas de vida das comunidades tradicionais
brasileiras, detentoras de uma cultura diferenciada, mas que de forma alguma se pode chamar de
“primitiva” ou “inferior”, pois embora não se enquadre na cultura dita erudita, possui uma
identidade própria, um significado construído pela relação com o meio em que vivem e que
possuem um valor inestimável, tanto quando se analisa sua relação intrínseca com a
biodiversidade, como quando se estuda o patrimônio cultural formando por suas representações e
formas de vida.
3.2 Patrimônio cultural e o direito à diversidade cultural
A Constituição Federal de 1988
43
amplia a noção de patrimônio cultural
44
definida pelo
Decreto-Lei 25 de 30 de novembro de 1937
45
(conhecido como Lei do Tombamento),
conferindo maior ênfase à pluralidade cultural presente na formação do povo brasileiro. Ademais,
como visto, o texto constitucional prevê que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais (artigo 215), além de proteger as manifestações culturais dos grupos
participantes do processo civilizatório nacional.
46
Conforme leitura do artigo 216 da Constituição
Federal de 1988:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Com a análise do artigo 216 da Constituição Federal de 1988, constata-se que o
patrimônio cultural engloba tanto bens materiais (obras, objetos, edificações, conjuntos
urbanos...) como imateriais (formas de expressão, criações, modos de vida...), que se referem à
43
A Constituição Federal de 1988 seguiu a tendência internacional de considerar de forma integrada o patrimônio
natural e cultural, que se iniciou com a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural
adotada pela Unesco em 1972 e ratificada pelo Brasil em 1977 (SANTILLI, 2005).
44
De acordo com Cunha, as primeiras idéias a respeito da preservação do patrimônio cultural levavam em conta o
conceito abstrato de “excepcionalidade”; somente em 1964, por ocasião do II Congresso Internacional de Arquitetos
e Técnicos de Monumentos Históricos, concluiu-se que a noção de monumento histórico compreende a criação
arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que testemunho de uma civilização particular, de uma
evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não às grandes criações mas também às
obras modestas, que tenham adquirido com o tempo significação cultural e, em 1985, quando da Conferência
Mundial sobre as Políticas Culturais, ocorrida no México, entendeu-se que o patrimônio cultural de um povo
compreende as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas
surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida. Ou seja, as obras materiais e não materiais
que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura,
as obras de arte e os arquivos e bibliotecas.”
45
O Decreto-Lei 25/37 define o “patrimônio histórico e artístico nacional” como “o conjunto dos bens móveis e
imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis
da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.
46
De acordo com Freitas (2005), “buscando as raízes do patrimônio cultural do Brasil ao tempo em que era colônia
de Portugal, viu-se a cultura indígena relegada a plano secundário, quase desprezada. Depois, com a escravatura, a
população negra, oriunda da África, trouxe sua cultura e seu modo particular de viver. Depois vieram as levas de
imigrantes: alemães, em 1818 (RJ), italianos, em 1860 (SP), japoneses, em 1908 ( SP), bem como espanhóis, árabes,
judeus, poloneses, ucranianos, russos e tantas outras etnias. Por fim, mais recentemente, coreanos, chineses e latino-
americanos de origens diversas. Todos à procura de dias melhores em suas vidas” (p. 94).
identidade, ação e memória dos grupos formadores da sociedade brasileira, não sendo a
excepcionalidade uma característica determinante dos bens culturais. Além disso, com o
reconhecimento e a proteção aos bens imateriais e sua característica de mutabilidade intrínseca,
não necessidade de tombamento
47
para que o bem seja considerado integrante do patrimônio
cultural brasileiro (CUNHA, 2004).
Souza Filho (2005) acrescenta que a Constituição Federal de 1988 introduz uma
diferença fundamental quando não vincula ao ato de tombamento o patrimônio cultural brasileiro.
Nesse sentido, colabora o entendimento do autor:
Podemos visualizar a história da seguinte forma: em 1937, o patrimônio cultural
era chamado de histórico e artístico, e considerado como o conjunto de bens
tombados; na década de quarenta iniciou-se a considerar, por lei, bens coletivos
como monumentos nacionais, que foram interpretados como de igual efeito ao
de tombamento; em 1961, com a Lei dos Sambaquis, se ampliou o conceito de
patrimônio histórico e artístico aos bens arqueológicos, ficando estes no
domínio da União e independente de tombamento. Portanto, a partir daqui, o
patrimônio histórico e artístico não era o conjunto dos bens tombados, mas
estes e outros mais, definidos em lei. Em 1988, a Constituição alterou o nome
do patrimônio para cultural, ampliando-o e o desencaixando do ato de
tombamento, isto é, não exige que haja tombamento para que seja reconhecido
como bem integrante do patrimônio cultural (2005, p. 86-87).
Na análise de Milaré
48
(2005, p. 400), com a noção de patrimônio cultural, a Constituição
Federal abraçou modernos conceitos científicos sobre a matéria:
Assim, o patrimônio cultural é brasileiro e não regional ou municipal, incluindo
bens tangíveis (edifícios, obras de arte) e intangíveis (conhecimentos técnicos),
considerados individualmente e em conjunto; não se trata somente daqueles
eruditos ou excepcionais, pois basta que tais bens sejam portadores de
referencia à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos que formam a
sociedade brasileira.
47
Segundo Souza Filho, “o tombamento é ato administrativo da autoridade competente, que declara ou reconhece
valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, bibliográfico, cultural ou científico de bens que, por isso, passam
a ser preservados.” (2005, p. 83). Conforme o Decreto 25/37, em seu artigo 1º, § 1º somente serão considerados bens
constituintes do “patrimônio histórico e artístico nacional” aqueles inscritos, separada ou agrupadamente, num dos
quatro livros do Tombo (Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Livro do Tombo Histórico;
Livro do Tombo das Belas Artes, Livro do Tombo das Artes Aplicadas).
48
Para o autor, com a proteção constitucional ao patrimônio cultural, tem-se a consagração, diante do direito
positivo, do pluralismo cultural brasileiro, demonstrando que a cultura brasileira não é única e não se resume ao eixo
Rio – São Paulo, ou ao Barroco mineiro e nordestino. Nas palavras do autor: “E é essa diversidade e riqueza de bens
culturais, construídas incessantemente num país de dimensões continentais e variegada formação étnica, que se
pretende ver preservadas. Desaparece, enfim, o antigo conceito de que os valores culturais a serem preservados eram
apenas aqueles das elites sociais, necessariamente consagrados pelo ato de tombamento, como ocorria no Direito
anterior” (2005, p. 400).
O texto constitucional consagra, então, a diversidade cultural brasileira e configura a
proteção aos bens culturais materiais (tangíveis) e imateriais (intangíveis). De acordo com Santilli
(2005, p. 78),
Os bens imateriais abrangem as mais diferentes formas de saber, fazer e criar,
como músicas, contos, lendas, danças, receitas culinárias, técnicas artesanais e
de manejo ambiental. Incluem ainda os conhecimentos, inovações e práticas
culturais de povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais, que vão
desde formas e técnicas de manejo de recursos naturais até métodos de caça e
pesca e conhecimentos sobre sistemas ecológicos e espécies com propriedades
farmacêuticas, alimentícias e agrícolas.
Nesse propósito, acrescenta-se que o conhecimento tradicional associado ao patrimônio
genético
49
é também integrante do patrimônio cultural imaterial, pois esses conhecimentos
referem-se à identidade, à ação e à memória das comunidades tradicionais. Assim, a proteção ao
patrimônio cultural imaterial constituído pelos conhecimentos tradicionais é também uma forma
de proteção ao patrimônio genético, como já exposto neste trabalho.
Não somente os monumentos, prédios históricos e obras arquitetônicas são importantes
para a memória e cultura de um povo. O modo de agir, de ser e viver é o que define os contornos
de sua história, enche-a de cores, vozes e movimentos, dando sentido à vida desse povo. A
riqueza cultural é expressa na diversidade cultural e em suas manifestações, sempre valiosas, em
todas as suas formas e independentemente de sua origem.
Referindo-se às ações humanas, gestos, movimentos, toques que constituem o patrimônio
imaterial, Oswald Barroso, citado por Cunha (2004, p. 122), acrescenta com propriedade:
Tais ações, tornadas tradicionais, não apenas expressam nosso modo de ser
enquanto povo, como revelam nossa universalidade, porque, à medida que
afirmam nossa singularidade, nos ligam a outras gentes e eras, tornando-os
parte do cosmos e, como tal, infinitos e eternos... Cada povo criou, assim, um
modo de viver e raciocinar, mas também de buscar utopias, que aos poucos foi
se inscrevendo em seu próprio corpo, como também em suas ações mais
recorrentes... Constituem patrimônio que, para ser preservado, necessita não
apenas de inventários, registro, proteções e estímulos, como exige,
principalmente, estar gravado nos músculos, nos sentidos, no pensamento e no
coração da gente que o criou. Preservá-lo, pois, é usá-lo, praticá-lo, mas
49
O artigo 8º, § da MP 2.186/01 reza que o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético integra o
patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto de cadastro, conforme dispuser o Conselho de Gestão ou
Legislação Específica.
também renová-lo, juntar a ele nossa contribuição, tornando-o nosso, vivo e
contemporâneo.
O patrimônio imaterial tem uma importância intrínseca e por representar a porção
intangível da herança cultural dos povos e fonte de sua identidade, possuindo formas de
transmissão geralmente orais ou gestuais, merece especial proteção e reconhecimento dos
Estados e dos organismos internacionais, para que possa ser constantemente recriado ao longo do
tempo, coletivamente e em benefício das gerações atuais e futuras.
No plano legislativo nacional, o Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o
Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial
50
do patrimônio cultural brasileiro, tendo como
referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, identidade e
a formação da sociedade brasileira, definindo para tanto, em seu artigo 1º, § 1º, que o registro se
fará nos seguintes livros:
I – Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de
fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II Livro de Registro das
Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva
do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida
social; III Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV Livro de
Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e
demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.
Várias declarações e convenções internacionais foram adotadas para a proteção do
patrimônio cultural e da diversidade cultural em âmbito internacional, com a Unesco -
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura o principal organismo
preocupado com a causa. Em 1972 foi aprovada a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio
Cultural e Natural
51
; em 2001, a Unesco aprovou a Declaração Universal sobre Diversidade
50
Como partes legítimas para provocar a instauração do processo de registro tem-se o ministro de Estado da Cultura,
as instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, as Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal e as
sociedades ou associações civis. As propostas de registro serão encaminhadas ao presidente do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN e serão submetidas à análise do Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultural (DECRETO 3551/2000).
51
Esta Convenção considera patrimônio cultural: “os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas
monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do
ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por
sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da
arte ou da ciência; os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que
incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou
antropológico” (ARTIGO 1º). E define como patrimônio natural: “os monumentos naturais constituídos por
formações físicas e biológicas ou por conjuntos de formações de valor universal excepcional do ponto de vista
estético ou científico; as formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente delimitadas que constituam
habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou
Cultural; em 2003, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e em 2005
a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais
A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de
2005, define que a diversidade cultural “refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as
culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre
e dentro dos grupos e sociedades” (Artigo 4º). Além disso, a Convenção declara que a
diversidade cultural não se manifesta apenas nas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se
transmite o patrimônio cultural da humanidade, mas também pelas formas de expressão, criação,
produção, difusão e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias
empregados.
Com a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, de 2001, a diversidade cultural
foi elevada à categoria de “patrimônio comum da humanidade”. A Declaração pretende
preservar o tesouro vivo e renovável que é formado pela diversidade cultural, buscando evitar a
segregação das culturas e colaborando para o reconhecimento de uma sociedade plural,
constituindo-se em orientações
52
que devem guiar os Estados-membros, o setor privado e a
científico; os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas detentoras de valor universal excepcional
do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural” (ARTIGO 2º).
52
A Declaração contém as linhas gerais de um plano de ação para a proteção da diversidade cultural, que serão aqui
expostas de forma resumida: 1) Aprofundar o debate internacional e a reflexão sobre os problemas relativos à
diversidade cultural; 2) Definir princípios, normas e práticas nos planos nacional e internacional, assim como dos
meios de sensibilização e cooperação para a salvaguarda e promoção da diversidade cultural; 3) Favorecer o
intercâmbio de conhecimentos e práticas em matéria de pluralismo cultural; 4) Avançar na compreensão e
reconhecimento do conteúdo dos direitos culturais; 5) Salvaguardar o patrimônio lingüístico da humanidade; 6)
Fomentar a diversidade lingüística e estimular a aprendizagem do plurilingüismo; 7) Promover uma tomada de
consciência do valor positivo da diversidade cultural por meio da educação; 8) Incorporar ao processo educativo,
métodos pedagógicos tradicionais, para preservar e otimizar os métodos culturalmente adequados para a
comunicação e transmissão do saber; 9) Fomentar a “alfabetização digital” e aumentar o domínio das novas
tecnologias da informação e da comunicação; 10) Promover a diversidade lingüística no ciberespaço e fomentar o
acesso gratuito e universal a todas as informações de domínio público; 11) Favorecer o acesso dos países em
desenvolvimento às novas tecnologias; 12) Estimular a produção e difusão de conteúdos diversificados nos meios de
comunicação; 13) Elaborar políticas e estratégias de preservação e valorização do patrimônio cultural e natural, em
particular do patrimônio oral e imaterial e combater o tráfico ilícito de bens e serviços culturais; 14) Respeitar e
proteger os conhecimentos tradicionais e sua especial contribuição para a proteção ambiental e gestão dos recursos
naturais e favorecer a sinergia entre a ciência moderna e os conhecimentos locais; 15) Apoiar a mobilidade de
criadores, artistas, pesquisadores, cientistas e intelectuais procurando preservar e aumentar a capacidade criativa dos
países em desenvolvimento e em transição; 16) Garantir a proteção dos direitos de autor, com remuneração justa ao
trabalho criativo, defendendo ao mesmo tempo o direito público de acesso à cultura; 17) Criar ou consolidar
indústrias culturais nos países em desenvolvimento e nos países em transição; 18) Elaborar políticas culturais que
promovam os princípios dessa Declaração; 19) Envolver diferentes setores da sociedade civil na definição das
políticas públicas de salvaguarda e promoção da diversidade cultural; 20) Reconhecer a contribuição que o setor
privado pode aportar à valorização da diversidade cultural, criando espaços de diálogo entre o setor público e o
privado.
sociedade civil, na luta pela instituição e concretização de políticas com vistas a um mundo
plural, criativo e democrático.
O artigo da Declaração determina que a diversidade cultural (fonte de intercâmbios, de
inovação e de criatividade), patrimônio comum da humanidade, deve ser preservada em benefício
das gerações presentes e futuras, sendo tão necessária para o gênero humano quanto a diversidade
biológica o é para a natureza. Reconhece também a importância do pluralismo cultural como
resposta política à realidade da diversidade cultural. Num contexto democrático, o pluralismo
cultural pode garantir uma interação harmoniosa entre as diversas culturas (Artigo 2º).
A diversidade cultural é também considerada fonte de desenvolvimento, não apenas em
termos de crescimento econômico, mas inclusive como meio de acesso a uma existência
intelectual, moral e espiritual satisfatória (artigo 3º). Ademais, a diversidade cultural é um
imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade da pessoa humana, implicando o respeito
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, especialmente no que tange aos direitos das
minorias e dos povos autóctones (artigo 4º).
Em seu artigo a Declaração determina que os direitos culturais são parte integrante dos
direitos humanos, sendo que toda pessoa possui, então, o direito de se expressar, criar e difundir
suas obras na língua que desejar, tem o direito a uma educação que seja respeitosa a sua
identidade cultural, o direito de exercer suas práticas culturais, dentro dos limites que impõe o
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.
Além disso, todas as culturas devem ter assegurado o direito de se expressar e se fazer
conhecidas, com a liberdade de expressão, o pluralismo dos meios de comunicação, o
multilingüismo, a igualdade de acesso às expressões artísticas e ao conhecimento científico e
tecnológico revelando-se meios para a garantia da diversidade cultural (artigo 6º). O contato e o
diálogo entre as culturas também merece destaque na Declaração, uma vez que as criações são
construções culturais, mas se desenvolvem plenamente quando em contato com outras culturas
(artigo 7º).
A consideração especial aos bens imateriais pela Unesco ocorreu em 2003, com a
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que possui as seguintes
finalidades: “a) a salvaguarda
53
do patrimônio imaterial;
54
b) o respeito ao patrimônio cultural
imaterial das comunidades, grupos e indivíduos envolvidos; c) a conscientização no plano local,
nacional e internacional da importância do patrimônio cultural imaterial e de seu reconhecimento
recíproco; d) a cooperação e a assistência internacionais” (artigo 1º). O patrimônio cultural
imaterial manifesta-se nos seguintes campos, de acordo com a Convenção: “a) tradições e
expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões
artísticas; c) práticas sociais rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à
natureza e ao universo; e) cnicas artesanais tradicionais” (artigo 2º, item 2). A Convenção
também reconhece que o patrimônio cultural imaterial é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para o respeito à diversidade
cultural e à criatividade humana (artigo 2º, item 1).
Entre as medidas para assegurar a salvaguarda do patrimônio imaterial, determina a
Convenção que cada Estado Parte deverá empreender esforços para:
a) adotar uma política geral visando promover a função do patrimônio cultural
imaterial na sociedade e integrar sua salvaguarda em programas de
planejamento; b) designar ou criar um ou vários organismos competentes para a
salvaguarda do patrimônio cultural imaterial presente em seu território; c)
fomentar estudos científicos, técnicos e artísticos, bem como metodologias de
pesquisa, para a salvaguarda eficaz do patrimônio cultural imaterial, e em
particular do patrimônio cultural imaterial que se encontre em perigo; d) adotar
as medidas de ordem jurídica, técnica, administrativa e financeira adequadas
para: i) favorecer a criação ou fortalecimento de instituições de formação em
gestão do patrimônio cultural imaterial, bem como a transmissão desse
patrimônio nos foros e lugares destinados à sua manifestação e expressão; ii)
garantir o acesso ao patrimônio cultural imaterial, respeitando ao mesmo tempo
os costumes que regem o acesso a determinados aspectos do referido
patrimônio; iii) criar instituições de documentação sobre o patrimônio cultural
imaterial e facilitar o acesso a elas.
53
De acordo com a Convenção, “entende-se por “salvaguarda” as medidas que visam garantir a viabilidade do
patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a
promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e revitalização
deste patrimônio em seus diversos aspectos.”
54
A definição de patrimônio imaterial para a Convenção é a seguinte: “Entende-se por “patrimônio cultural
imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.”
Como importante aliado na preservação do patrimônio cultural, pode-se citar o papel da
educação patrimonial, que, sendo entendida como uma extensão da educação ambiental,
55
pode
ser um instrumento hábil de conscientização
56
e de envolvimento da comunidade na gestão do
patrimônio ambiental. A Lei 9.795, de 27 de abril de 1999, que dispõe sobre a educação
ambiental, em seu artigo estabelece entre seus princípios básicos o reconhecimento de que o
meio ambiente deve ser concebido em sua totalidade, considerando a interdependência entre o
meio natural, o socioeconômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade, e, além disso,
estabelece a abordagem articulada das questões ambientais locais, regionais, nacionais e globais,
com o reconhecimento e o respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural (CUNHA,
2004).
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger e Rosinês Rolim (2005) destacam o importante
papel tanto da educação ambiental formal, quanto da educação ambiental não-formal, para que
os objetivos da Lei de Educação Ambiental realmente se concretizem, tanto no nível da
conscientização quanto das ações individuais e coletivas para a preservação ambiental. Explicam
as autoras, que a educação ambiental formal é aquela aplicada pelas escolas, em seus programas
curriculares e nas atividades voltadas para as especificidades das comunidades locais. a
educação ambiental não-formal, é aquela que busca a integração entre a comunidade em geral, os
empresários, agricultores, alunos, professores e poder público, nas discussões e nos projetos com
vistas à promoção e aplicação dos dispositivos da Lei.
O desenvolvimento do exercício da cidadania, através do resgate da sensibilização
comunitária, com a aquisição ou formação de novos valores, constitui a base da Lei de Educação
Ambiental. (SPAREMBERGER; ROLIM, 2005). Dessa forma,
Será por meio da Educação Ambiental que se possibilitará a conscientização,
num esforço conjunto entre o erário público, entidades sociais, entidades não
governamentais e comunidade em geral, buscando promover e difundir a
conservação a natureza como um processo permanente. Assim, indivíduos e
comunidade poderão tomar consciência do seu meio ambiente e adquirir
55
Conforme artigo. 225, § 1º, VI da Constituição Federal de 1988, deve o poder público promover a educação
ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente.
56
De acordo com Cunha, “tal conscientização é, no nosso sentir, realizada em uma forma mais profunda do que
apenas com a sinalização de sítios e monumentos, a veiculação de material informativo, a realização de eventos,
seminários e exposições, a publicação de livros, revistas e cartilhas, a produção de vídeos e outros materiais, mas
com o verdadeiro desenvolvimento de ações educativas que possibilitem o surgimento de uma empatia verdadeira e
sensível com a nossa própria maneira de ser, capacitando o indivíduo para a leitura e compreensão do universo
sociocultural em que está inserido” (2004, p. 124).
conhecimentos, valores, experiências e atitudes que possam levá-los ou torná-
los aptos a agir em benefício de todos, amenizando ou resolvendo problemas
presentes e futuros, e que possa haver transparência por parte do poder público
nas suas decisões par alcançar o bem comum. (SPAREMBERGER; ROLIM,
2005, p. 47).
Assim, a educação ambiental e, por seu turno, a educação patrimonial têm o propósito de
tornar acessível aos indivíduos e aos diferentes grupos formadores do povo brasileiro, uma
leitura crítica dos seus bens culturais, propiciando o conhecimento e o reconhecimento da
pluralidade de formas e de manifestações culturais, colaborando, dessa maneira, para o
fortalecimento da identidade cultural dos grupos constitutivos do cenário nacional e
possibilitando que um sentimento de tolerância se desenvolva e se concretize entre as diferentes
manifestações culturais.
Uma importante abrangência do termo patrimônio e de sua importância para um futuro
comum” é dada por Ost (1995, p. 354), para quem, “o patrimônio é um conceito transtemporal,
que é, simultaneamente, de hoje, de ontem e de amanhã, como uma herança do passado que,
transitando pelo presente, se destina a dotar os hóspedes futuros do planeta”. O patrimônio requer
ser gerido e ser protegido, conservado e administrado, em nome de utilizações e de titulares
diferentes, mas principalmente em nome de um interesse geral (OST, 1995). E, delineando um
regime jurídico de proteção ao patrimônio, que o autor compara ao movimento da dialética que
não se contenta em justapor os dados (sujeito e objeto, por exemplo), mas os faz interagir
permanentemente, (fazendo surgir propriedades emergentes), acrescenta:
Do local (a “minha” propriedade, a “minha” herança), conduz ao global (o
patrimônio comum do grupo, da nação, da humanidade); do simples (tal espaço,
tal indivíduo, tal facto físico), conduz ao complexo (o ecossistema, a espécie, o
ciclo); de um regime jurídico ligado em direitos e obrigações individuais
(direitos subjectivos de apropriação e obrigações correspondentes), conduz a
um regime que toma em consideração os interesses difusos (os interesses de
todos, incluindo os das gerações futuras) e as responsabilidades colectivas; de
um estatuto centrado, principalmente, numa repartição-atribuição estática do
espaço (regime monofuncional da propriedade), conduz ao reconhecimento da
multiplicidade das utilizações de que os espaços e recursos são susceptíveis, o
que relativiza, necessariamente, as partilhas de apropriação (1995, p. 355).
Aparentemente ligada apenas à idéia de conservação do passado, a proteção do
patrimônio significa a proteção de um passado “vivo”, que é revivificado e que representa um
recurso para o futuro, que merece e deve ser salvaguardado. Na proteção ao patrimônio comum, a
solidariedade impõe-se como obrigação incondicional: se um “futuro comum”, não haverá
também uma série de novas obrigações em nome desse futuro? (OST, 1995, p. 370).
O patrimônio está projetado translocal
57
e transtemporalmente,
58
o que supõe uma ética de
solidariedade entre as gerações. Mesmo inscrito no local, o patrimônio projeta-se ao global e,
conseqüentemente, ao futuro, ensejando proteção e consciência na sua utilização (OST, 1995). E
mesmo que identificável no presente, o patrimônio contém a marca do passado e o caráter do
futuro: “Herança das gerações passadas, recurso das gerações presentes, ele é também a garantia
comum das gerações futuras, em relação às quais contraímos a dívida de transmissão” (OST,
1995, p. 374).
A crença na existência de um patrimônio comum cria redes de direitos de utilização e de
controle que superam a lógica da propriedade privada e da soberania estatal. Na explicação de
Ost (1995, p. 371):
Inspiradas pela necessidade de proteger o bem em questão e de reservar o seu
usufruto ao maior número possível de pessoas, estas redes de direitos e de
controlo escapam às partilhas privatistas, para se moldarem aos contornos dos
paradigmas ecológicos ou, em matéria cultural, à integridade dos locais e dos
estilos. Dois exemplos entre muitos outros: se, por um lado, determinada pessoa
é proprietária de determinado animal, ou se determinado Estado exerce direitos
de soberania sobre determinada colônia de animais, em contrapartida, o
patrimônio genético de que esses indivíduos são portadores releva do
patrimônio comum da humanidade; se determinado local histórico é e
permanece propriedade de uma pessoa privada, em contrapartida, a
classificação de que é objecto assegura determinados direitos, de acesso e de
preservação, nomeadamente, à coletividade.
Os bens que constituem o patrimônio comum inscrevem-se numa lógica de domínio
público, de interesse geral, que, como referido, transcende o local e o temporal. Patrimonializar
um bem (considerá-lo patrimônio comum) é inscrevê-lo numa lógica de solidariedade,
57
Conforme Ost, “o patrimônio é uma instituição translocal. Para das divisões administrativas e da lógica
monolítica da propriedade, o patrimônio conduz à tomada de consideração de outros conjuntos e outras escalas, a
escalas variáveis, consoante o tipo de recursos a proteger e consoante o tipo de utilização a favorecer. [...] Também
aqui, a multilocalização do patrimônio o significa a sua ausência de localização; a sua ubiqüidade virtual não
confina com a utopia (literalmente, “ausência de localização”). efectivamente, uma ancoragem local e real do
patrimônio (determinada água corrente atravessa minha propriedade, determinada espécie selvagem encontra nela
refúgio, determinado fluxo de ar a sobrevoa), mas, ao mesmo tempo, estes recursos transitam através da propriedade
e transcendem-na, na medida em que um interesse mais geral as finaliza” (1995, p. 376).
58
“O patrimônio é, simultaneamente, um recurso de que é permitido retirar interesses no imediato e um capital
(nomeadamente simbólico) de que importa manter a integridade para o futuro” (OST, 1995, p. 374).
importando, senão conservar o bem em seu estado original, pelo menos garantir a sua
regeneração (quando possível) ou a sua transmissão (OST, 1995).
3.3 Globalização e diversidade cultural
Depois de a modernidade favorecer a correspondência entre os indivíduos e as
instituições, afirmando o valor universal da concepção racionalista do mundo, um fluxo de
mudanças lugar a um certo pessimismo e a muitas dúvidas quanto aos novos rumos que
conduzirão e definirão a vida social, política, cultural e econômica. Numa análise dessa crise
vivida pela sociedade, que caracteriza uma fase denominada “desmodernização”
59
por Touraine,
ele argumenta que:
Vivemos numa crise mais profunda que um acesso de medo ou de desencanto;
sentimos separar-se, dissociar-se, em nós e à nossa volta, por um lado o
universo das técnicas, dos mercados, dos signos, dos fluxos, nos quais estamos
mergulhados e por outro lado, o universo interior que chamamos cada vez mais
freqüentemente da nossa identidade. A afirmação mais forte da modernidade
era que nós somos aquilo que fazemos; a nossa experiência mais viva é que
não somos aquilo que fazemos, que somos cada vez mais estranhos às condutas
que nos fazem ter os aparelhos econômicos, políticos ou culturais que
organizam nossa experiência. (1997, p. 35).
Em todos os lugares é possível perceber a necessidade e a importância dopertencer”, do
identificar, do encontrar um lugar de pertencimento no qual seja possível o desenvolvimento de
habilidades e convívios coletivos e onde a valorização da diversidade encontre espaço e
significado. Na medida em que os processos globalizantes se intensificam, se fortalecem também
os sentimentos pelo “local”, em resposta ao aumento opressor do “globale demonstrando que é
preciso repensar os projetos de desenvolvimento, de unificação e de reducionismo que devem
perder sua supremacia em nome de um mundo plural, diverso.
59
Conforme Touraine, “se a modernização foi a gestão da dualidade da produção racionalizada e a liberdade interior
do Sujeito humano pela idéia de sociedade nacional, a desmodernização é definida pela ruptura dos elos que unem a
liberdade pessoal e a eficácia coletiva.” (1997, p. 43). E acrescenta: “A desmodernização é definida pela dissociação
da economia e das culturas e pela degradação de uma e outra como sua conseqüência direta. Começou no momento
em que, no final do século XIX, se formou, numa escala até então desconhecida, uma economia financeira e
industrial internacional que provocou a resistência das identidades culturais e nacionais nos países centrais e
sublevações anticolonialistas nos países dependentes” (1997, p. 57).
A globalização é, na verdade, um fenômeno multifacetado, que reúne dimensões
econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas, jurídicas, que se mostram completamente
interligadas. E, embora a tendência seja reduzir os debates sobre a globalização às suas
dimensões econômicas, igual atenção deve ser dada às demais dimensões deste processo. Com as
transformações do sistema mundial, muitas mudanças e interações ocorrem concomitantemente
aos processos de globalização, tais como: aumento das desigualdades entre países ricos e pobres;
a catástrofe ambiental; os conflitos étnicos; as guerras civis; a migração internacional maciça e a
sobrepopulação mundial (SANTOS, 2002).
Outra mudança fundamental é perceptível no que se refere aos processos de globalização:
no lugar de se encaixar no padrão moderno ocidental de globalização, representando
homogeneização e universalização, o fenômeno parece agora combinar universalização e
eliminação de fronteiras, por um lado, com particularismo, diversidade, identidade étnica e
comunitarismo, por outro (SANTOS, 2002).
Santos (2003) explica que aquilo que chamamos de globalização são, na verdade,
conjuntos diferenciados de relações sociais, dando origem a diferentes fenômenos de
globalização. E propõe uma definição: “globalização é o processo pelo qual determinada
condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a
capacidade de considerar como sendo local outra condição social ou entidade rival” (2003, p.
433).
Prosseguindo a análise das globalizações, Santos (2002) argumenta que a globalização é
sempre a globalização bem-sucedida de determinado localismo,
60
sendo que toda condição global
possui uma raiz local. Nas palavras do autor:
Em primeiro lugar, perante as condições do sistema mundial em transição não
existe globalização genuína; aquilo a que chamamos globalização é sempre a
60
Santos (2002, p. 72), entende por localização “o conjunto de iniciativas que visam criar ou manter espaços de
sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relações face-a-face, orientados para a auto-
sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas.” De acordo com o autor, “existem muitos
exemplos de como a globalização pressupõe a localização. A língua inglesa enquanto língua franca é um desses
exemplos. A sua propagação enquanto língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais,
nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o
seu sentido e explicação integrais não podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de
relocalização com ele ocorrendo em simultâneo ou seqüencialmente. A globalização do sistema de estrelato de
Hollywood contribuiu para a localização (etnicização) do sistema de estrelato do cinema hindu. (...) Para dar um
exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se globaliza o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo de
bacalhau português ou a feijoada brasileira, no sentido em que serão cada vez mais vistos como particularismos
típicos da sociedade portuguesa ou brasileira” (2002, p. 63-64).
globalização bem-sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não
existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local,
real ou imaginada, uma inserção cultural específica. A segunda implicação é
que a globalização pressupõe a localização. O processo que cria o global,
enquanto posição dominante nas trocas desiguais, é o mesmo que produz o
local, enquanto posição dominada e, portanto, hierarquicamente inferior. De
facto, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de
globalização (2002, p. 63).
A partir desse localismo o autor identifica quatro formas de globalização: o localismo
globalizado, o globalismo localizado, o cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade
(SANTOS, 2002).
O localismo globalizado é o processo de globalização pelo qual determinado fenômeno
local é globalizado com sucesso (atividade mundial das multinacionais, por exemplo). Neste
processo, “o que se globaliza é o vencedor de uma luta pela apropriação ou valorização de
recursos ou pelo reconhecimento da diferença. A vitória traduz-se na faculdade de ditar os termos
da integração, da competição e da inclusão” (SANTOS, 2002, p. 66). No caso do reconhecimento
da diferença, a conotação do conceito anterior se distingue da luta pelo reconhecimento da
diferença travada pelas minorias étnicas, pelas comunidades tradicionais e outros grupos de
alguma forma excluídos e oprimidos e que foram citados neste trabalho. O reconhecimento da
diferença no processo do localismo globalizado implica, de acordo com Santos (2002), a
conversão da diferença vitoriosa em condição universal e a conseqüente exclusão ou inclusão
subalterna das diferenças alternativas.
O globalismo localizado, por seu turno, representa o impacto de práticas e imperativos
transnacionais nas condições locais. Conforme a explicação de Santos (2002, p. 66), “para
responder a esses imperativos transnacionais, as condições locais são desintegradas,
desestruturadas e, eventualmente, reestruturadas sob a forma de inclusão subalterna.” Dentre
alguns exemplos citados pelo autor estão: desmatamento e destruição dos recursos naturais para
pagamento da dívida externa; artesanato e vida selvagem postos à disposição da indústria global
do turismo; alterações legislativas e políticas impostas pelos países centrais (SANTOS, 2002).
O cosmopolitismo
61
é fundamental na teoria de Santos. E esse processo de globalização
contra-hegemônica identificado pelo autor consiste em
61
Santos (2003) explica que não utiliza o termo cosmopolitismo no sentido moderno convencional. “Na modernidade
ocidental, cosmopolitismo está associado às idéias de universalismo desenraizado, individualismo, cidadania
mundial e negação de fronteiras territoriais ou culturais” (2003, p. 436).
um conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e organizações
que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição
ambiental produzidas pelos localismos globalizados e pelos globalismos
localizados, recorrendo a articulações transnacionais tornadas possíveis pela
revolução das tecnologias de informação e comunicação (SANTOS, 2003, p.
436).
O cosmopolitismo traduz-se em solidariedade transnacional entre grupos explorados,
oprimidos ou excluídos, revelada por movimentos de resistência que articulam lutas progressistas
locais que objetivam maximizar seu potencial emancipatório in loco, por meio de ligações
translocais/locais.
62
Dentre as atividades cosmopolitas, pode-se nomear: organizações
transnacionais de direitos humanos; redes de movimentos feministas; redes de movimento e
associações indígenas, ecológicas ou de desenvolvimento alternativo; movimentos e organizações
no interior da periferia do sistema mundial; redes de solidariedade transnacional não desigual
entre o Norte e o Sul; movimentos em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas e
contra-hegemônicos (SANTOS, 2002, p. 67).
Em busca de uma democracia cosmopolita, a questão que se impõe é se há a possibilidade
e de que maneira irá desenvolver-se uma consciência de solidariedade cosmopolita (BECK,
2002). E, comparativamente ao “Manifesto Comunista”, que tratava do conflito de classes, hoje
um novo manifesto faz-se necessário: o “Manifesto Cosmopolita”, para tratar de “un conflicto
transnacional-nacional y de un diálogo transnacional-nacional que es preciso inaugurar y
organizar” (BECK, 2002, p. 22), com o objetivo de inaugurar e organizar as metas, os valores e
as estruturas de uma sociedade cosmopolita (BECK, 2002). De acordo com este autor:
La idea clave de un Manifesto Cosmopolita es que existe uan nueva dialéctica
de cuestiones globales y locales que no tiene cabida en la política nacional.
Estas cuestiones que podríamos denominar “glocales” ya formam parte de la
agenda política: en los municipios y regiones, en los gobiernos y esferas
públicas nacionales e internacionales (2002, p. 23).
Para tanto, o marco de discussão dessas questões globais deve ser em âmbito
transnacional, por meio da reinvenção da política e de um novo sujeito político, que Beck (2002)
define como “partidos cosmopolitas”, que representariam tanto os interesses nacionais como
defenderiam os interesses transnacionais. Os partidos cosmopolitas (alguns atuantes, como
62
Um exemplo de movimento cosmopolita citado por Santos (2002) é a realização do Fórum Social Mundial.
Organizações Não-Governamentais que lutam pela causa ecológica, por exemplo) formam um
“partido mundial” em triplo sentido, conforme Beck (2002, p. 26-27): 1) Em primeiro lugar,
pelos valores e objetivos com fundamentos cosmopolitas (como diversidade e tolerância); 2) Em
segundo lugar, por situarem a globalidade no núcleo da ação e organização políticas; 3) E por
fim, porque somente são possíveis como partidos multinacionais, capazes de atuar mutuamente
nos diversos âmbitos da sociedade mundial, produzindo valores, reciprocidades e instituições
cosmopolitas.
Além do cosmopolitismo, Santos (2002) identifica uma segunda forma de globalização
contra-hegemônica: o patrimônio comum da humanidade. Essa forma de globalização consiste
em “lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, entidades, artefactos,
ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja
sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária” (SANTOS, 2002, p. 70). As lutas pela
proteção do patrimônio comum correspondem a uma lógica que liga a comunidade internacional
em nome das gerações presentes e futuras e entre estas lutas estão: a sustentabilidade da vida
humana na Terra, a proteção da camada de ozônio, da Antártida, da biodiversidade, a exploração
do espaço, a lua e os outros planetas.
Santos divide ainda os processos de globalização em “globalização hegemônica” e
“globalização contra-hegemônica”. Seguindo essa divisão, o localismo globalizado e o
globalismo localizado constituem exemplos de globalização hegemônica, enquanto que o
cosmopolitismo e o patrimônio comum são exemplos de globalização contra-hegemônica, ou
seja, uma política alternativa à hegemônica, vinculando temas e lutas transnacionalmente. Cabe
ainda diferenciar a globalização “de cima para baixo” e a globalização “de baixo para cima”. A
globalização de cima para baixo é representada pelos dois tipos de globalização hegemônica, o
localismo globalizado e o globalismo localizado. A globalização de baixo para cima é
representada pelas formas de globalização contra-hegemônica, ou seja, o cosmopolitismo e o
patrimônio comum da humanidade (SANTOS, 2002).
A globalização contra-hegemônica é uma forma de transformação, que consiste na
aplicação transnacional das lutas por ideais de bases multiculturais, de caráter emancipatório, que
conduzem à construção democrática das regras de reconhecimento recíproco entre identidades e
culturas distintas. É a resistência à globalização hegemônica e revela um caminho de esperança,
de valorização da diversidade cultural, do respeito às identidades, da reconceitualização dos
direitos humanos em multiculturais.
A respeito dos processos de globalização, também Beck (2002) identifica duas
perspectivas distintas:
en la primera, tenemos la globalización desde arriba (por ejemplo, mediante
tratados e instituciones internacionales); en la segunda, la globalización desde
abajo (por ejemplo, a través de nuevos actores transnacionales que operan al
margen del sistema de política parlamentaria y desafían las organizaciones
políticas y los grupos de intereses establecidos) (BECK, 2002, p. 58-59).
A partir dos movimentos da “globalização de baixo”, Beck (2002) define uma nova forma
que modifica as normas e os limites do político: a subpolítica. Esta é uma forma de política
“direta”, que pressupõe a participação individual nas decisões e que vai além das instituições
representativas do sistema político do Estado-nação, constituindo novas formas de lutas e
alianças globais.
uma diversidade de situações, de populações e de sistemas de crenças e práticas,
variáveis no tempo e no espaço e levando a uma modificação no pensamento social, imposta pela
potencialização da diversidade, por um lado, e pelo esgotamento das abordagens globalizantes,
por outro. Assim,
A tensão entre a ascensão da mundialização das economias, de um lado, e a
volta às identidades e aos territórios, de outro, desempenha papel fundamental
nessa decomposição-recomposição do pensamento social. Tudo acontece como
se a globalização criasse um “impulso planetário”, empurrando as populações,
excluídas ou não, a buscar demarcações cognitivas, encontrando suas fontes
indiferentemente nas religiões, nas crenças, nas identidades locais, ou
simplesmente em uma proximidade de pertença, para melhor gerir a incerteza
decorrente do reino, que se quer sem partilha, da técnica e da mercantilização
do mundo (ZAOUAL, 2003, p. 28).
A importância do sentido de pertencimento é preponderante na teoria de Zaoual (2003),
que pode ser entendido com o significado de “sítio simbólico de pertencimento”, um marcador
imaginário do espaço vivido, no qual crenças, conceitos e comportamentos se articulam e não
podem ser compreendidos separadamente. O homo situs (homem situado), para encontrar o sítio,
combina vários mundos e múltiplas dimensões ao mesmo tempo. É o homem social, pensando e
agindo em dada situação, diferenciando-se do homo oeconomicus (que não se comunica com o
seu meio). Na prática, o conceito de sítio pode-se aplicar a um bairro, uma região, uma cidade,
uma etnia, uma comunidade, um país, uma cultura, uma profissão, uma civilização, dentre outras
possibilidades, indicando ser um conceito flexível.
O sítio é uma pátria imaginária, uma entidade imaterial, que impregna os comportamentos
individuais e coletivos e todas as manifestações materiais de um dado lugar. É um espaço,
constituindo um patrimônio coletivo, do qual o homem necessita, representando seu lugar de
encontro e ancoragem (ZAOUAL, 2003). Esquematicamente, o sítio é constituído de “três
caixas”: “Sua “caixa preta” contém os mitos fundadores, suas crenças, sua experiência, sua
memória e trajetória. Sua “caixa conceitual” contém seu saber social, suas teorias e seus modelos.
Por fim, sua “caixa de ferramentas” restitui, de modo imediato, seus ofícios, seus modelos de
ação, etc” (ZAOUAL, 2003, p. 55).
A “caixa preta” (mitos, crenças, revelações, influências...) forma a identidade do sítio,
atribuindo-lhe um caráter único (mesmo que algumas semelhanças sejam descobertas em grupos
vizinhos), fundamentando a diversidade dos múltiplos sítios que podem existir em uma nação, ou
em uma região, e conduzindo à afirmação de que a diversidade é onipresente e proliferante,
graças aos intercâmbios e às mudanças caracterizadoras dos meios sociais (ZAOUAL, 2003, p.
112).
Considerando a grande diversidade dos sítios humanos, pode-se afirmar que a estrutura
cultural do planeta é um “imenso tapete de sítios” (ZAOUAL, 2003, p. 104), onde quem procura
a pureza, sem considerar a diversidade, encontrará a destruição (ZAOUAL, 2003). Assim, o
mundo uniforme deve dar lugar ao mosaico das culturas, cada qual com seu valor único, com seu
conhecimento próprio, mas que compõe a riqueza da diversidade e dos sujeitos que a
representam.
Como a globalização atingiu um ponto em que não volta, tornando as pessoas
dependentes umas das outras, em que todos são vulneráveis e em que a segurança comum precisa
ser garantida, Bauman (2005, p. 95-96) acredita que pela primeira vez na história da humanidade
o auto-interesse e os princípios éticos de atenção e de respeito mútuo apontam para a adoção de
uma mesma estratégia:
Não vivemos o fim da história, nem mesmo o princípio do fim. Estamos no
limiar de outra grande transformação: as forças globais descontroladas, e seus
efeitos cegos e dolorosos, devem ser postas sob o controle popular democrático
e forçadas a respeitar e observar os princípios éticos da coabitação humana e da
justiça social. Que formas institucionais essa transformação produzirá, ainda é
difícil conjeturar: a história não pode ser objeto de uma aposta antecipada. Mas
podemos estar razoavelmente seguros de que o teste pelo qual essas formas
terão de passar para poderem cumprir o papel pretendido será o de elevar as
nossas identidades ao nível mundial – ao nível da humanidade.
Leonardo Boff (2001) chama a atenção para as potencialidades do Brasil diante do
processo de globalização, que deve ser conduzido pela solidariedade e pela benevolência, para
então ser entendido como uma fase positiva da evolução da humanidade. Para ele,
Todo patrimônio cultural, com sua diversidade, sua criatividade, seu bom humor,
sua mística e seu aspecto lúdico, associado ao patrimônio natural, à
biodiversidade, à alegria das águas e das florestas, à fauna e a tantas histórias que
disso decorrem e que povoam o imaginário popular brasileiro, esse mosaico afinal
que caracteriza a nossa formação, constitui-se em material precioso para que o
nosso país, liderado por uma ampla elite democrática, ética e transparente,
apresente ao consórcio das nações uma contribuição inestimável para uma
globalização diferente (2001, p. 25-26).
No entendimento de Boff (2001), o Brasil é um país que possui vários atributos que
podem contribuir para a globalização, com vistas a um futuro ecologicamente sustentado e
reconhecendo o valor da cultura brasileira. Entre essas contribuições estão: a) O imenso capital
ecológico do Brasil, com sua biodiversidade, suas reservas de água potável e riqueza das
substâncias farmacológicas; b) A visão relacional da realidade, pela qual, apesar das
desigualdades sociais e hierarquizações, desenvolveu-se uma “cultura das alianças”, um hábito
permanente de coexistência, de tolerância; c) O jeitinho e a malandragem como navegação social,
como forma de conciliar todos os interesses sem que ninguém saia prejudicado; d) A cultura
multiétnica e multirreligiosa, que apesar das diferenças, oportuniza uma convivência com
relativa paz e tolerância; e) A criatividade do povo brasileiro, destacando-se, principalmente,
quando comparada a sociedades racionalizadas e bem-estruturadas como as européias; f) A aura
mística da cultura brasileira, que faz crer que outro mundo é possível, que rompe com o mundo
da pura razão, da funcionalidade das instituições e que resgata um horizonte de esperança para a
vida humana; g) O caráter lúdico do povo brasileiro, marcado pela leveza e pelo humor,
embalado pelas festas, pela hospitalidade e pelo intrínseco modo de ser brasileiro; h) Um povo de
esperança, que apesar das dificuldades e sofrimentos, possui uma inarredável confiança no
futuro; i) A globalização solidária, que faz do povo brasileiro e das riquezas naturais do Brasil
um importante agente nessa busca.
3.4 O sujeito social e o multiculturalismo emancipatório
Novas lutas e novos movimentos surgem originados das mudanças e das crises que
mobilizam novos atores sociais, assim como novas reivindicações, em vários níveis. Touraine
(1997) analisa essa transformação e avalia que os discursos liberais extremos que conduzem a
sociedade a um conjunto de mercados e em que as decisões, tanto pessoais como coletivas, são
tomadas a partir de escolhas racionais, não convencem mais. Assim, diante da dualidade
instaurada pela crise das instituições e das forças políticas, por um lado, e da ausência de
projetos pessoais e coletivos por outro, os efeitos futuros podem ser desastrosos e até mesmo
irreversíveis. “Mas, tanto como das reconstruções sociais e políticas, temos necessidade de novas
análises que mostrem onde se encontra o poder e onde podem nascer novos movimentos sociais,
e quais são os objetivos e os actores da vida pública” (TOURAINE, 1997, p. 157).
Beck (2002) identifica cinco desafios, aos quais a sociedade atual, que vive a “segunda
modernidade”
63
, deve enfrentar: a globalização; a individualização;
64
a revolução dos gêneros; o
subemprego e os riscos globais.
65
Estes processos, que são conseqüência da vitória da primeira
63
Beck (2002) propõe a distinção entre uma primeira e uma segunda modernidade. A primeira foi por ele tratada
como uma sociedade estatal e nacional, com estruturas coletivas, pleno emprego, rápida industrialização e
exploração da natureza não "visível". Tal modelo que caracterizou a chamada primeira modernidade é identificada
por ele como “simples” ou “industrial” e que apresenta profundas raízes históricas, ou seja, afirmou-se na sociedade
européia, por meio de várias revoluções políticas e industriais, principalmente a partir do culo XVIII. o
nascimento de uma nova ou de uma segunda modernidade é definida por Beck como “modernização da
modernização”, ou modernização reflexiva.
64
Para entender o significado que o termo assume na obra de Beck, cita-se sua explicação: “Aclaremos qué quiere
decir “individualización”. No quiere decir individualismo. No quiere decir individuacíon, cómo converterse en una
persona única. [...]. Por el contrario, individualización es un concepto estructural, relacionado con el estado de
bienestar; quiere decir “individualismo institucionalizado”. La mayoría de los derechos del estado de bienestar, por
ejemplo, están pensados para individuos más que para familias. En muchos casos presuponem movilidad. A través de
todos estos requisitos, se invita a la gente a constituirse como individuos: a planear, a entender, a diseñarse como
individuos y, en caso de que fracasen, a culparse a sí mismos. De forma paradójica, la individualizacióm implica, por
tanto, un estilo colectivo de vida” (2002, p. 14).
65
Beck (1998) define os riscos de hoje como “riesgos de la modernización”, que se diferenciam dos riscos e perigos
da Idade Média justamente pela globalidade de sua ameaça e por serem produto da maquinaria do progresso
industrial. Além disso, os riscos contêm essencialmente um componente futuro, relacionado com a previsão, com a
destruição que ainda não ocorreu, mas que se revela iminente. O risco é considerado o enfoque moderno que atenta
para a previsão e para o controle das conseqüências que a ação humana trará para o futuro do planeta. Beck (1998, p.
29-30) demonstra a arquitetura social e a dinâmica política dos riscos mediante cinco teses: 1) Os riscos gerados
pelo processo de modernização são muito diferentes das riquezas. Eles podem permanecer invisíveis, baseiam-se em
interpretações causais, podem ser transformados, ampliados ou reduzidos conforme os interesses em jogo; 2) Os
riscos contêm um efeito bumerang, atingindo também aqueles que os produziram (nem os ricos e poderosos estão
seguros diante deles); 3) Esses riscos não rompem com a lógica do desenvolvimento capitalista, pelo contrário, eles
são considerados um grande negócio, proporcionam o aumento das necessidades da população; 4) Diante das
situações de risco, o saber adquire um novo significado. Nas situações de classe o ser determina a consciência,
enquanto que nas situações de risco a consciência determina o ser; 5) Esses riscos reconhecidos possuem um
modernidade (simples, linear, industrial e baseada no Estado nacional), indicam o colapso da
idéia de controle, certeza e segurança e apontam também para a necessidade de um novo marco
para a reinvenção da sociedade e da política. Conforme o autor, “está constituyéndose un nuevo
tipo de capitalismo, un nuevo tipo de economia, un nuevo tipo de orden global, un nuevo tipo de
sociedad y un nuevo tipo de vida personal, todos los cuales difieren de fases anteriores del
desarrollo social” (2002, p. 2-3).
Diante dessas mudanças, Beck (2002, p. 3) questiona: “Qué formas sociales nuevas e
inesperadas están surgiendo? Qué nuevas fuerzas sociales y políticas y qué nuevas líneas de
conflicto emergen en el horizonte?” Para responder a estas questões, um traço fundamental é a
caracterização da sociedade de risco global,
66
que engloba tanto as sociedades ocidentais como as
não-ocidentais, que vivem as mesmas ameaças e que devem buscar em conjunto um novo marco
de referência para entender a dinâmica e as contradições da segunda modernidade (BECK, 2002).
Assim,
La creciente velocidad, intensidad e importancia de los procesos de
interdependência transnacional, a como el aumento e los discursos de
“globalización” económica, cultural, política y social, no sólo sugiere que las
sociedades no occidentales deberían incluirse en cualquier análisis de los retos
de la segunda modernidad, sino también que las refracciones y reflexiones
específicas de lo global tendrían que examinarse en estas diversas
localizaciones de la sociedad global emergente (BECK, 2002, p. 4).
Nesse sentido, é possível perceber que Beck (2002) chama a atenção para a importância
do reconhecimento das sociedades não-ocidentais, relegadas à categoria de “pré-modernas”, na
elaboração de respostas aos desafios impostos pelos processos de modernização e que
caracterizam a sociedade global de risco. Segundo o autor, muitas partes do “Terceiro Mundo”
mostram hoje à Europa a imagem de seu próprio futuro. E essa afirmação tem um lado positivo e
outro negativo. Na explicação deste autor:
conteúdo político explosivo: o que até então considerava-se apolítico, transforma-se em político.
66
Conforme Beck (1998), passou-se de uma “lógica de distribuição de riquezas”, característica da sociedade
industrial clássica, para uma “lógica de distribuição de riscos”. não estamos mais diante de uma luta de classes,
mas diante de um processo intenso de modernização, capaz de transformar as antigas formas sociais e estabelecer
um novo paradigma, que tem como objeto os riscos gerados nesse processo. A sociedade de risco foi impulsionada
pela riqueza, pelo crescimento econômico, pelo desenvolvimento técnico-científico, que acabaram se tornando os
responsáveis pelos perigos e ameaças que a caracterizam. Não é a crise do capitalismo, mas sim as suas vitórias as
responsáveis por essa nova forma social (BECK, 1997). Para Beck (1997, p. 17), “o conceito de sociedade de risco
designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da
sociedade industrial”, e que impõem a necessidade de considerar a questão da autolimitação do desenvolvimento que
desencadeou essa sociedade.
En el lado positivo podríamos enumerar características tales como el desarrollo
de sociedades multirreligiosas, multiétnicas y multiculturales, los modelos
interculturales y la tolerancia de la diferencia cultural, el pluralismo legal
observable en diversos niveles y la multiplicación de las soberanías. En el
aspecto negativo, podríamos señalar la extensión del sector informal de la
economía y la flexibilización del trabajo, la desregulación legal de grandes
sectores de la economía y de las relaciones laborales, la pérdida de legitimidad
del estado, el crecimiento del desempleo y el subempleo, la intervención más
enérgica de las corporaciones multinacionales y los elevados índices de
violencia y crimen cotidianos. (2002, p. 4).
Touraine (1997) questiona como será possível “viver juntos”, considerando uma
sociedade formada por “iguais e diferentes”? Para ele, a combinação da unidade da sociedade
com a diversidade das personalidades e das culturas (e com ela a possibilidade de viver juntos) só
será possível se a idéia de sujeito pessoal for o centro da reflexão e da ação atual. Pois, “o sonho
de submeter todos os indivíduos às mesmas leis universais da razão, da religião ou da história
transformou-se em pesadelo, em instrumento de dominação; a renúncia a qualquer princípio de
unidade, a aceitação de diferenças sem limites, conduz à segregação ou à guerra civil”
(TOURAINE, 1997, p. 30).
De acordo com Touraine (2006), os indivíduos somente se tornam sujeitos quando
aceitam como um ideal reconhecerem-se e serem reconhecidos como indivíduos, defensores e
construtores de sua singularidade. E a respeito da formação do sujeito, ensina Touraine (2006,
p.119):
O sujeito se forma na vontade de escapar às forças, às regras, aos poderes que
nos impedem de sermos nós mesmos, que procuram reduzir-nos ao estado de
componente de seu sistema e de seu controle sobre a atividade, as intenções e as
interações de todos. Estas lutas contra o que nos rouba o sentido de nossa
existência são sempre lutas desiguais contra um poder, contra uma ordem. Não
há sujeito senão rebelde, dividido entre raiva e esperança.
A importância do sujeito é inegável e, utilizando-se de um comparativo, Touraine (2006)
sustenta que assim como é impossível descrever uma sociedade esquecendo o fato religioso, é
também impossível esquecer a presença do sujeito no mundo atual, diante dos imperialismos,
nacionalismos e populismos, e diante do reinado do dinheiro e do aumento das desigualdades.
Dessa forma, “é impossível não falar de direitos humanos, não reconhecer portanto que são cada
vez mais numerosos os seres humanos que avaliam seus atos e sua situação em termos de
capacidade de se criar a si mesmos e de viver como seres livres e responsáveis” (TOURAINE,
2006, p. 123).
Hoje o que cada indivíduo procura é a possibilidade de construir sua vida, de ser o autor,
o sujeito de sua própria existência, com a sua diferença e capacidade única de dar sentido aos
acontecimentos (TOURAINE, 2006). Então,
Esta imagem do indivíduo apresenta-se a nós sempre mais como a imagem do
ser humano que se afirma como um ser de direitos, direito sobretudo de ser um
indivíduo, ou seja, não o Homem acima de todos os atributos, mas o ser
humano dotado de seus direitos cívicos e de seus direitos sociais, de seus
direitos de cidadão e de trabalhador, e também (e sobretudo) hoje de seus
direitos culturais: direitos de escolher sua língua, suas crenças, seu gênero de
vida mas igualmente sua sexualidade, que não se reduz a um gênero
construído pelas instituições dominantes (TOURAINE, 2006, p. 124).
Dessa forma, a idéia de sujeito possuidor de uma identidade pessoal e de uma cultura
particular deve ser combinada, na visão de Touraine (1997), com a participação num mundo
racionalizado, possibilitando a afirmação de sua liberdade e responsabilidade. Nesse sentido é
utilizada a teoria de Touraine, considerando suas contribuições e suas análises a respeito da figura
dos sujeitos sociais e da necessidade e possibilidade de ampliação dos processos de
democratização política e social.
As noções de sujeito e de sociedade multicultural estão interligadas, pois, conforme
Touraine (1997), o reconhecimento mútuo das pessoas como sujeitos é o que irá possibilitar o
“viver juntos” numa sociedade marcada pela diferença. E nessa vida juntos”, o papel da
democracia deve adquirir uma conotação importante: o de política do sujeito, que irá possibilitar
a vida como sujeito. Assim sendo,
Num momento em que o continente dos mercados se afasta cada vez mais do
das identidades culturais e em que somos cada vez mais incitados a viver
simultaneamente numa economia globalizada e em comunidades obcecadas
pela pureza, a idéia de Sujeito pode criar não um campo de acção pessoal
mas sobretudo um espaço de liberdade pública. conseguiremos viver juntos
se reconhecermos que a nossa tarefa comum é combinar acção instrumental e
identidade cultural, logo, se cada um de nós se construir como Sujeito e se nos
dermos leis, instituições e formas de organização social cujo objetivo principal
é proteger a nossa exigência de viver como Sujeitos da nossa própria existência
(TOURAINE, 1997, p. 214).
Para este pensador, o essencial hoje é recusar a separação entre a unidade do mercado e a
fragmentação das comunidades, como afirmado, como único caminho que conduza à
possibilidade de viver juntos, combinando igualdade e diversidade e, para tanto, aliando a
democracia política e a diversidade cultural, com base na liberdade do sujeito e na possibilidade
de livre construção da vida social, sem que nenhuma organização social ou prática cultural esteja
situada acima das outras.
Assim, é possível afirmar que na construção de uma sociedade multicultural, com base
na análise de Touraine (1997), deve haver o recurso a um princípio universalista, qual seja, o
apelo à livre construção da vida pessoal. Esse princípio
não se reduz ao deixar-fazer ou à pura tolerância, primeiro porque impõe o
respeito da liberdade de cada um e, logo, a recusa da exclusão; depois, porque
exige que todas as referências a uma identidade cultural se legitimem pelo
recurso à liberdade e à igualdade de todos os indivíduos, e não pelo apelo a
uma ordem social, a uma tradição ou às exigências da ordem pública
(TOURAINE, 1997, p. 225).
Segundo as lições de Touraine (1997), não é possível escolher entre a globalização e os
movimentos comunitários e lutas pela afirmação da identidade, mas o seu argumento é em
favor da rearticulação da abertura controlada da economia e o respeito às identidades. Deve-se
procurar um novo princípio de combinação da racionalidade instrumental e da identidade cultural
como novo caminho para a condução da vida social, em constante mutação. Assim,
É preciso destruir uma representação da sociedade e da história que coloca
acima de tudo a idéia de uma sociedade racional, animada por seres racionais e
libertada de uma diversidade cultural ligada à persistência das tradições, das
crenças e das formas de organização locais e particulares. E substituí-la pela
idéia da multiplicidade das vias e dos modos de mudança que consistem, todos
eles, em mobilizar o passado para o futuro, em fazer novo com o velho, e, por
conseguinte, em associar a referência a uma racionalidade que se tornou
instrumental com o reconhecimento de actores definidos também por uma
identidade e uma herança individuais ou colectivas (TOURAINE, 1997, p. 52).
A sociedade multicultural opõe-se tanto à homogeneização comunitarista quanto à razão
conquistadora e o caminho para a sua construção é, como visto, o da combinação entre a
identidade cultural e a racionalidade instrumental, refletindo o fim de um período em que uma
parte do mundo julgava deter o monopólio da modernidade, impondo a sua maneira de viver
como universal (TOURAINE, 1997). Nesse sentido,
A sociedade multicultural não se caracteriza pela coexistência de valores e de
práticas culturais diferentes; ainda menos pela mestiçagem generalizada. É
aquela onde se constrói o maior número de vidas individuadas, onde o maior
número possível de indivíduos conseguem combinar, de uma maneira sempre
diferente, o que as une (a racionalidade instrumental) e o que as separa (a vida
do corpo e do espírito, o projecto e a memória). Tanto foram frágeis e ruíram
por toda a parte os impérios multi-étnicos e multiculturais, como se vigorosa
uma sociedade capaz de reconhecer a diversidade dos indivíduos, dos grupos
sociais e das culturas, ao mesmo tempo que ela saberá fazê-los comunicar entre
si, suscitando em cada um o desejo de reconhecer no outro o mesmo trabalho de
construção que ele opera em si mesmo (TOURAINE, 1997, p. 244).
E esse desejo de reconhecimento não idealiza um fechamento cultural (o que é
considerado uma ameaça por Touraine) em que a diferença quer significar isolamento. A história
das comunidades tradicionais brasileiras é marcada por indiferença e exclusão e as suas lutas são
construídas a partir dessa realidade e objetivando não o isolamento, mas a possibilidade de
participação e de inclusão (em todos os níveis).
Touraine (1997) adverte que assim como a economia se tornou política no século XIX,
também a cultura se torna política na atualidade. Um exemplo disso são os debates em torno da
educação e da escola para crianças provenientes de meios culturais diferentes (índios e negros), o
que indica não a separação entre dois universos (instrumental e cultural), mas a necessária
articulação entre ambos.
3.5 O diálogo intercultural e a recomposição do mundo: por um cosmopolitismo multicultural
Diante das críticas aos modelos universalistas, que desejam uma sociedade homogênea e
regulada por seus princípios universais, que se combater também, na perspectiva introduzida
por Touraine (1997), o modelo que prega o comunitarismo e o isolamento cultural. A partir da
análise aqui desenvolvida, tendo como objeto o patrimônio cultural representado pelas
comunidades tradicionais brasileiras e a realidade por elas vivida, o fechamento comunitário
conduziria esses grupos minoritários à segregação e a um processo ainda mais intenso de
destruição e perda de sua identificação cultural.
A recusa ao fechamento cultural deve estar aliada à valorização da diversidade cultural e à
garantia de que as comunidades tradicionais possam defender sua cultura e sustentabilidade no
seio de instituições democráticas. As lutas das comunidades tradicionais devem ocorrer num
espaço de mediação, em que a atividade racional e a identidade cultural não apareçam como
contraditórias, mas como complementares e como elementos fundamentais na construção de uma
sociedade verdadeiramente multicultural, justa e democrática.
Morin e Kern (2002) argumentam que o fato de as sociedades se verem como espécies
rivais, demarcadas por diferenças que parecem formar um abismo entre culturas diversas, deve
ser superado, em nome do reencontro e da realização da unidade do ser humano. Assim,
conforme os autores:
Devemos reencontrá-la, não numa homogeneização que terraplenaria as culturas,
mas, ao contrário, através do pleno reconhecimento e do pleno desabrochar das
diversidades culturais, o que não impede que os processos de unificação e de
rediversificação sejam levados a cabo em níveis mais amplos (2002, p. 60).
Os autores defendem uma identidade humana comum, cujo princípio é unitas
multiplex,” a unidade múltipla, tanto do ponto de vista biológico quanto cultural e individual”
(MORIN; KERN, 2002, p. 59). Esse princípio significa que, por mais separados que os homens
estejam pela ngua, pelo tempo ou pela cultura, a comunicação é possível e a unidade da
identidade humana é, na verdade, formada por uma imensa diversidade (MORIN; KERN, 2002).
Zaoual (2003) a diversidade sempre presente e infinita, revelando-se ao mesmo tempo
uma fonte de conflitos e de enriquecimento. Nesse sentido, dá-se a necessidade de diálogo entre
os vários sítios de pertencimento, que formam a riqueza da diversidade e abrem um leque de
possibilidades e de necessidade de mudanças paradigmáticas fundamentais. A necessidade de
mudança ocorre, segundo a constatação de Zaoual, pela crise paradigmática das ciências
ocidentais, em que a ciência econômica apresenta-se no comando da civilização global. “É sobre
as “ruínas do desenvolvimento” que poderíamos antecipar uma civilização da diversidade,
tolerante e respeitosa do homem em sua universalidade e em suas singularidades locais”
(ZAOUAL, 2003, p. 18).
Assim, após a globalização ter se tornado uma “máquina incontrolável e excludente”
(ZAOUAL, 2003, p. 97), tendo como projeto o extermínio da diversidade cultural e como
conseqüências vários problemas sociais e ambientais, é chegada a hora de perceber que a lógica
do crescimento econômico é incompatível com a preservação da biodiversidade e da
sociodiversidade e com a possibilidade de os povos do Sul desenvolverem suas experiências,
valorizando seus sítios simbólicos de pertencimento (ZAOUAL, 2003). Então, é possível afirmar
que,
A cultura do sítio está no horizonte dos paradigmas do futuro. É ela que
constitui o cadinho dos modos de organização e de estímulo dos atores locais
em torno das mudanças necessárias. O sítio funciona assim como um perito
cognitivo e coletivo. Ele desencadeia mecanismos de cooperação que
estabilizam a desordem inerente aos organismos sociais. As crenças
compartilhadas tornam-se motores simbólicos para a ação, o que fundamenta a
relevância das dimensões inviáveis no sucesso econômico. Então, precisamos
estudar as caixas pretas dos tios para melhor conceituar a situação e agirmos
de fato com os atores do lugar (ZAOUAL, 2003, p. 103).
Somente a partir de um paradigma pluralista será possível compreender e gerenciar a
desordem da civilização, buscando a participação dos próprios atores, cujos comportamentos
estão orientados pelos sítios de pertencimento e são dotados de uma autonomia responsável, que
está no centro da ética dos sítios. As sociedades locais e globais estão emergindo dos escombros
da mundialização, derrubando os imperativos impostos pelo pensamento único e demonstrando
que uma revisão radical desses imperativos é fundamental para uma nova visão de mundo
(ZAOUAL, 2003, p. 31). De acordo com Zaoual (2003, p. 61):
Assim, essa uniformização em torno dos únicos critérios econômicos
desencadeia a destruição da diversidade estabilizadora de nosso mundo. No
entanto, nesse mesmo movimento que se pode denominar de ocidentalização do
mundo entendida como projeto de domínio e acumulação, a diversidade de
situações da “gente de baixo” (gens d’em bas), de dentro e de fora do sistema,
ressurge e resiste ao aniquilamento. Tais choques desnorteiam o paradigma
econômico e geram, em profundidade, uma grande variedade cuja
complexidade pode ser interpretada a partir de um novo olhar, o do
paradigma para pensar o diverso, o múltiplo, o movente, o contraditório, etc.
Santos (2003) argumenta em favor da necessidade de compreensão entre as culturas, do
diálogo intercultural e da reconceitualização dos direitos humanos.
67
Para isso, propõe um método
interpretativo: a hermenêutica diatópica. A partir da constatação de que compreender
determinada cultura a partir dos topoi
68
de outra cultura o é tarefa fácil, a hermenêutica
67
Santos (2003) entende que sempre que os direitos humanos forem concebidos como universais, tenderão a operar
como localismo globalizado (uma forma de globalização hegemônica). Para que os direitos humanos operem como
globalização contra-hegemônica, deverão ser reconceitualizados como multiculturais.
68
“Os topoi o os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas
de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de
argumentos. Topoi fortes tornam-se altamente vulneráveis e problemáticos quando usados” em uma cultura
diferente” (SANTOS, 2003, p. 443).
diatópica é um procedimento que o autor julga adequado para esta tentativa. Santos (2003, p.
444) explica que,
A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada
cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura
a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa
cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo
todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude
um objetivo inatingível mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a
consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogo que se
desenrola, por assim dizer, com um em uma cultura e outro em outra. Nisto
reside o seu caráter diatópico.
Reconhecer a incompletude das culturas é, então, condição sine qua non para que se o
diálogo intercultural. Outras dificuldades, contudo, residem nessa tentativa, principalmente
diante das trocas desiguais que ocorreram por séculos, em que a cultura ocidental dominante
tornou impronunciáveis inúmeras aspirações das culturas dominadas (SANTOS, 2003).
Santos (2003) relaciona algumas premissas básicas para que novas propostas de
concepções de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana, por intermédio do diálogo
intercultural, caminhe de um localismo globalizado para um projeto cosmopolita:
1) A primeira premissa refere-se à superação do debate entre universalismo e relativismo
cultural. Nessa tensão, nem o universalismo e nem o relativismo cultural devem ser tomados
como posições corretas, devendo ambos serem superados, pois o universalismo prega valores
superiores de uma cultura sobre a outra e o relativismo nega qualquer possibilidade de diálogo de
comunicação interculturas. Contra o universalismo Santos propõe a construção de diálogos
interculturais sobre preocupações isomórficas, ainda que expressas em linguagens distintas e a
partir de universos culturais diferentes. Contra o relativismo o autor sugere o desenvolvimento de
critérios que permitam distinguir uma política progressista de uma política conservadora de
direitos humanos, uma política emancipatória de uma política regulatória, uma política de
capacitação de uma outra de desarme. As políticas progressistas, emancipatórias e de capacitação
devem ser tidas como válidas e estimuladas.
2) A segunda premissa é aquela que reconhece que todas as culturas possuem concepções
de dignidade humana, mas nem todas as concebem em termos de direitos humanos, daí a
necessidade de identificar preocupações isomórficas para as diferentes culturas na tentativa de
identificar valores máximos (e não mínimos) existentes em cada uma delas.
3) A terceira é a que reconhece a incompletude das culturas em suas concepções de
dignidade humana. Essa incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de
culturas e, por conseguinte, de uma multiplicidade de valores e concepções de dignidade humana.
Mais uma vez o autor afirma que aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das
tarefas prévias para a construção de uma concepção multicultural de direitos humanos.
4) A quarta premissa é aquela que reconhece que, apesar da incompletude das culturas,
todas elas possuem versões diferentes de dignidade humana, umas mais amplas do que outras,
umas com círculo de reciprocidade mais amplo que outras.
5) A quinta reconhece que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos
sociais entre dois princípios hierárquicosa igualdade e a diferença. Diante da tensão entre esses
princípios, deve-se entendê-los não como antagônicos, mas como intimamente interligados.
Santos (2003) propõe ainda cinco imperativos transculturais que devem ser aceitos por
todos os grupos sociais e culturais interessados no diálogo intercultural, que ele acredita serem
condições para um multiculturalismo progressista e colaborando para um melhor entendimento
de seus argumentos, lançados no decorrer deste trabalho:
1) Da completude à incompletude cultural. Na medida em que surge um sentimento de
frustração ou de descontentamento com a própria cultura, ocorre uma pré-compreensão de que
outras culturas são relevantes, suscitando a curiosidade por elas e suas respostas. D emerge a
consciência da incompletude cultural, nascendo o impulso individual ou coletivo para o diálogo
intercultural e para a hermenêutica diatópica.
69
2) Das versões culturais estreitas às versões amplas. A partir do reconhecimento de que as
culturas possuem grande variedade interna, imensa diversidade, o diálogo intercultural deve partir
de versões culturais que têm a reciprocidade mais ampla, a versão que vai mais longe no
reconhecimento do outro.
3) De tempos unilaterais a tempos partilhados. Dessa premissa parte a afirmação de que
cabe a cada comunidade cultural decidir o momento em que o diálogo intercultural deve ser
iniciado. E da mesma forma como a hora para iniciar o diálogo tem de resultar de uma
convergência entre as culturas envolvidas, o tempo para terminá-lo ou suspendê-lo deve ser
decidido unilateralmente por cada cultura, demonstrando que não nada irreversível no
69
E, na explicação de Santos: “Longe de pretender reconstituir a completude cultural, a hermenêutica diatópica
aprofunda, à medida que progride, a incompletude cultural, transformando a consciência inicial de incompletude, em
grande medida difusa e pouco articulada, em uma consciência auto-reflexiva. O objetivo central da hermenêutica
diatópica é precisamente fomentar auto-reflexividade a respeito da incompletude cultural” (2003, p. 455).
processo de hermenêutica diatópica.
70
Esse caráter de reversibilidade do diálogo é fundamental
para impedir que ocorra o fechamento ou a conquista cultural, que o são objetivos do diálogo
intercultural.
Importante observar o significado político da decisão pelo fim do diálogo intercultural,
que se difere dependendo de que tipo de cultura toma essa decisão, a cultura dominante ou a
subordinada. De acordo com Santos:
No primeiro caso, trata-se freqüentemente de atos de chauvinismo agressivo
justificados por objetivos imperiais (como, por exemplo, a luta contra o
terrorrismo”), enquanto no caso de culturas subordinadas trata-se muitas vezes de
atos de defesa ante a impossibilidade de controlar minimamente os termos do
diálogo (2003, p. 457).
4) De parceiros e temas unilateralmente impostos a parceiros e temas escolhidos por
mútuo acordo. O requisito de que tanto os temas como os parceiros do diálogo devem ser fruto de
acordos mútuos entre as culturas é uma das condições mais difíceis da hermenêutica diatópica. A
busca pela convergência entre as culturas, no entanto, deve partir das preocupações isomórficas
existentes, que poderão conduzir os parceiros a temas que são importantes para ambas as culturas
envolvidas no diálogo.
5) Da igualdade ou diferença à igualdade e diferença. Os dois princípios devem ser
utilizados, como já argumentado neste trabalho, de forma que seja garantida a igualdade quando a
diferença inferioriza e, que seja respeitada a diferença quando a igualdade serve para
descaracterizar determinada cultura.
Para Touraine (1997), conforme analisado anteriormente, o mundo vive um afrontamento
entre a desmodernização (dissociação entre o universo da instrumentalidade e o universo da
identidade) e a recomposição. A recomposição do mundo consiste em “reunir o que foi separado,
em reconhecer o que foi recalcado ou reprimido, em tratar como uma parte de nós mesmos o que
havíamos rejeitado por ser estrangeiro, inferior ou tradicional” (TOURAINE, 1997, p. 240) e, por
meio dela, a diversidade cultural não conduzirá à guerra das culturas, mas à comunicação entre as
culturas. Assim, de acordo com este autor:
Todas as partes do mundo participam nesta recomposição. Os países
dominantes ou centrais elaboram a nova idéia do desenvolvimento duradouro e
sustentável (sustaining growth), que vai muito mais longe que o do
70
Isso se explica porque, de acordo com Santos (2003, p. 456), “uma dada comunidade cultural pode necessitar de
uma pausa antes de avançar para uma nova fase do diálogo, ou pode chegar à conclusão de que o diálogo a
enfraquece além do que é tolerável e que, por isso, deve pôr-lhe fim.”
desenvolvimento endógeno (self-sustaining growth), e são transformados pela
redução das barreiras sociais, pela crise de uma educação autoritariamente
racionalista e, sobretudo, pela ação das mulheres. Os países dependentes, por
sua vez, procuram combinar a modernização com a defesa da sua identidade e a
industrialização com a limitação das desigualdades sociais (1997, p. 241).
Assim, “a vida de uma sociedade multicultural organiza-se em torno de um duplo
movimento de emancipação e de comunicação” (TOURAINE, 1997, p. 241). A comunicação
entre as culturas possibilita o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural, abrindo os
caminhos para a reconciliação da igualdade e da diferença e para a conquista da emancipação da
vida pessoal e coletiva. Desse modo, com a comunicação, o multiculturalismo passa a
representar cada vez mais não a separação de categorias sociais e a distância entre elas, mas a
interação e a comunicação entre ambas (TOURAINE, 1997).
Diante das resistências e lutas multiculturais, a necessidade de redefinição da política
como política cultural é fundamental para que as reivindicações que mobilizam essas lutas
realmente se concretizem. Para tanto, dois problemas fundamentais deverão ser enfrentados,
conforme Santos e Nunes (2003, p. 40): 1) A partir de várias formas de dominação e opressão
existentes em todo o mundo, também o muitas as formas de resistência surgidas a partir daí,
resistências que partem de atores coletivos distintos e que nem sempre são mutuamente
inteligíveis, podendo causar dificuldades nas tentativas de redefinição política; 2) Além disso,
como a maior parte das lutas multiculturais tem origem local, a legitimação e a eficácia de suas
reivindicações dependem de alianças translocais ou globais, necessitando também de
inteligibilidade mútua.
Assim, a partir da necessidade de redefinição do campo político para a formação de
políticas multiculturais e em razão das dificuldades desse processo, a teoria da tradução é
significativamente importante para que se a articulação das lutas multiculturais sem, contudo,
fazer desaparecer a autonomia e a diferença peculiares a cada uma delas (SANTOS; NUNES,
2003). Então, “mais do que de uma teoria comum, do que necessitamos é de uma teoria da
tradução que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita aos atores colectivos
“conversarem” sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam” (SANTOS,
2005, p. 27).
A partir da teoria da tradução defendida por Santos, a idéia de cidadania multicultural
ganha sentido “como espaço privilegiado de luta pela articulação e potencialização mútuas do
reconhecimento e da redistribuição” (SANTOS; NUNES, 2003, p. 43). E defendem estes
autores:
A teoria da tradução igualmente permite identificar as diferentes formas sociais
que as lutas emancipatórias assumem e os diferentes vocabulários que elas
utilizam. A defesa da diferença cultural, da identidade coletiva, da autonomia
ou da autodeterminação podem, assim, assumir a forma de luta pela igualdade
de acesso a direitos ou a recursos, pelo reconhecimento e exercício efetivo de
direitos de cidadania ou pela exigência de justiça (2003, p. 43).
Santos e Nunes (2003, p. 60-66) elaboraram cinco teses a respeito de multiculturalismos
emancipatórios e escalas de luta contra a dominação, que poderão contribuir para o entendimento
de afirmações e argumentos desenvolvidos até aqui:
1) A partir de formas diferentes de ver o mundo está em curso uma reavaliação entre essas
formas e suas repercussões no direito e na justiça. Exemplo disso são as batalhas travadas entre
comunidades tradicionais, que dependem dos recursos biológicos presentes em seus territórios
para viver e manter viva a cultura, e as multinacionais que desejam apropriá-los em nome do
lucro e do mercado.
2) Diferentes formas de opressão e dominação geram diferentes formas de resistência, de
mobilização, de identidades coletivas e a articulação dessas formas é o impulso para uma
globalização contra-hegemônica. Exemplos de formas variadas de resistência e de lutas são os
povos indígenas que resistem à assimilação e lutam pela afirmação de sua identidade e por seus
direitos coletivos; as populações rurais da Índia que lutam contra as multinacionais e os ativistas
de direitos humanos, entre outros.
3) A divergência entre as culturas e as diferentes concepções de dignidade, direito e
justiça conduzem para a necessidade de diálogo e conseqüente ampliação dos círculos de
reciprocidade, tornando inteligíveis e até mesmo partilháveis muitas reivindicações.
4) As políticas emancipatórias e as lutas por novas formas de cidadania enfrentam
dificuldades diante das tensões entre igualdade e diferença, reconhecimento e redistribuição.
Diante dessa tensão, afirmar a igualdade com base em princípios universalistas leva à negação de
identidades, assim como a afirmação da diferença pode ensejar discriminação, exclusão ou
inferiorização. Dessa forma, a igualdade deve ser defendida quando a diferença implicar
inferioridade e a diferença deve ser defendida sempre que a igualdade significar
descaracterização.
5) As alianças locais, nacionais e globais contras as diferentes formas de opressão são
fundamentais para o sucesso das lutas emancipatórias, promovendo a globalização contra-
hegemônica e a garantia de que essas lutas não ficarão limitadas e ameaçadas por retrocessos e
práticas discriminatórias.
A partir dessas teses, alguns exemplos e algumas considerações importantes podem ser
delineados, analisando as comunidades tradicionais brasileiras e sua real situação nos dias atuais,
a questão dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e as mobilizações e
reinvindicações surgidas em torno das questões multiculturais relacionadas aos direitos
humanos, aos processos de globalização, aos direitos coletivos dos povos indígenas, às lutas pelo
reconhecimento do direito à diferença e pela afirmação da identidade e a tantas formas de
opressão e exclusão de que se tem conhecimento.
No que tange especificamente às comunidades tradicionais e aos conhecimentos
tradicionais associados ao patrimônio genético, diante da apropriação e dominação exercida pelas
multinacionais e pelos países dominantes, percebe-se o desrespeito aos conhecimentos e às
formas de vida dessas comunidades, em sua maioria desenvolvidas em harmonia com o meio
ambiente e com vistas à sustentabilidade do grupo.
Muitos casos de biopirataria
71
têm sido relatados nos últimos anos, evidenciando a
necessidade de proteção eficaz aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais a eles
associados, o que se justifica tanto pela proteção à biodiversidade dos países do Sul, quanto pela
proteção ao patrimônio cultural imaterial, representado pelos conhecimentos tradicionais.
O caso do nim, árvore indiana empregada séculos como fonte de biopesticida e
remédios pelos camponeses e médicos indianos, é um exemplo de repercussão internacional da
apropriação privada de conhecimentos nativos desenvolvidos a partir da relação intrínseca com a
biodiversidade. A empresa norte-americana W. R. Grace Corporation e o Departamento de
Agricultura dos Estados Unidos obtiveram, no Escritório de Patentes Europeu, seis registros
71
Conforme Santilli (2005, p. 198-199), embora não haja uma definição propriamente jurídica de biopirataria, é
aceito o conceito de que se trata da “atividade que envolve o acesso aos recursos genéticos de um determinado país
ou aos conhecimentos tradicionais associados a tais recursos genéticos (ou a ambos) em desacordo com os princípios
estabelecidos na Convenção sobre Diversidade Biológica, a saber: a soberania dos Estados sobre os seus recursos
genéticos e a necessidade de consentimento prévio e informado dos países de origem dos recursos genéticos para as
atividades de acesso, bem como a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados de sua utilização”. E, ainda
segundo a autora, quando a atividade envolve conhecimentos tradicionais, a CDB estabelece a necessidade de
aprovação e participação dos detentores dos conhecimentos tradicionais e a repartição, com estes, dos benefícios
extraídos da atividade.
sobre produtos e processos derivados do nim. O relato do desfecho deste caso é dado por Shalini
Randeria (2003, p. 496-497), como segue:
Nos dias 9 e 10 de maio de 2000, o destino da árvore Neem indiana esteve
suspenso na sala 3.468 do Instituto Europeu de Patentes, em Munique
(Alemanha). Em causa estava a legitimidade de uma patente para um método de
preparação de um óleo com propriedades pesticidas, extraído das sementes da
árvore, uma das 14 patentes de produtos derivados da árvore Neem indiana
concedidos pela autoridade de Munique. A empresa transnacional norte-
americana W. R. Grace Corporation e o Departamento norte-americano para a
Agricultura, em conjunto donos de seis dessas patentes, eram representados por
uma sociedade de Hamburgo. Alinhada contra eles estava uma coligação
transnacional de peticionários requerendo a revogação da patente: Vandana
Shiva, diretora da Research Foundation for Science, Technology; Linda Bullard,
presidente da International Federation of Organic Agricultural Movements e
Magda Alvoet, ministra belga da Saúde e do Ambiente. Eram representados por
um professor suíço de Direito da Universidade de Basiléia. Os representantes
dos interesses químicos norte-americanos permaneceram em silêncio durante os
dois dias de audiências. Era o silêncio dos poderosos, daqueles que sabiam que
o tempo, o dinheiro e o governo dos EUA estavam do lado dos interesses
econômicos norte-americanos. O Instituto Europeu de Patentes ouviu os
eloqüentes argumentos políticos de Vandana Shiva sobre a biopirataria e o
colonialismo intelectual, bem como o testemunho do agricultor do Sri Lanka
Ranjith de Silva sobre a ilegitimidade moral de uma patente que menospreza
séculos de sabedoria tradicional local. Mas o que acabou pesando na decisão do
Opposition Division Bench foram os valores para a centrifugação, filtração e
evaporação fornecidos pelo testemunho de Abhay Phadke, dono de uma fábrica
indiana. A sua empresa, nos arredores de Delhi, tem usado, desde 1985, um
processo muito semelhante ao patenteado pela empresa multinacional e pelo
Departamento da Agricultura norte-americanos para fabricar o mesmo produto
na Índia. Ao fim de uma batalha legal de cinco anos, no dia 10 de maio de 2000
o Instituto Europeu de Patentes revogou a patente com base no fato de o
processo patenteado pelos norte-americanos não trazer qualquer novidade.
No Brasil, casos como o do ayahuasca,
72
planta amazônica empregada por comunidades
tradicionais com finalidades curativas e medicinais e em rituais religiosos, e o do cupuaçu,
73
72
“Desde inúmeras gerações, pajés da Amazônia ocidental vem utilizando a planta Banisteriopsis caapi para
produzir uma bebida cerimonial chamada “ayahuasca”. Os pajés utilizam a ayahuasca (que significa “cipó da alma”)
em cerimônias religiosas de cura, para diagnosticar e tratar doenças, para encontrar com espíritos e adivinhar o
futuro” (www. amazonlink.org.br).
73
“O cupuaçu (Theobroma Grandiflorum) é uma árvore de porte pequeno a médio que pertence à mesma família do
cacau e pode alcançar até 20 metros em altura. A fruta de cupuaçu foi uma fonte primária de alimento na Floresta
Amazônica tanto para as populações indígenas, quanto para os animais. Essa fruta tornou-se conhecida por sua polpa
cremosa de sabor exótico. A polpa é usada no Brasil inteiro e no Peru para fazer sucos, cremes de sorvete, geléia e
tortas. [...] Povos indígenas assim como comunidades locais ao longo do Amazonas cultivaram cupuaçu como uma
fonte primária de alimento desde gerações. Nos tempos antigos, sementes de cupuaçu foram negociadas ao longo do
Rio Negro e Orinoco, onde o suco de cupuaçu, depois de ser abençoado por um pajé foi utilizado para facilitar
nascimentos difíceis. O povo Tikuna utiliza sementes do cupuaçu para dores abdominais” (www.amazonlink.org.br).
revelam o total desrespeito aos princípios da Convenção sobre Diversidade Biológica e a plena
desconsideração com os conhecimentos tradicionais. Conforme relata Santilli (2005, p. 202-203):
Outro caso de biopirataria amplamente denunciado foi o do patenteamento de
uma variedade do ayahuasca (nome indígena que quer dizer “cipó da alma”),
planta amazônica utilizada por diferentes povos indígenas e populações
tradicionais com finalidades curativas e medicinais, bem como em rituais
xamânicos e em cerimônias religiosas. O cancelamento da patente, concedida ao
norte-americano Loren Miller, foi requerida ao Patent and Trademark Office
(órgão norte-americano responsável pelo registro de patentes e marcas
comerciais) pela organização não-governamental Center for International
Environmental Law (Ciel), em nome da Coordenação das Organizações
Indígenas da Bacia Amanzônica (Coica) (em espanhol, Coordinadora de las
Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazônica) e da Coalizão Amazônica
(Amazon Coalition), em 1999. O órgão patentário chegou a emitir uma decisão
rejeitando a patente em 1999 e, em 2001, voltou atrás em tal decisão, e a patente
continuou em vigor até junho de 2003, quando espirou o seu prazo de validade,
não podendo ser renovada. Outro caso lebre, e muito veiculado na imprensa,
foi o do patenteamento de processos de extração do óleo da semente do cupuaçu
para a produção do chocolate de cupuaçu (o “cupulate”) pela empresa japonesa
Asahi Foods Co. Ltd. Essa empresa registrou ainda o nome “cupuaçu” como
marca comercial, gerando diversos protestos de organizações brasileiras e
internacionais. Em março de 2004, o Escritório de Marcas e Patentes do Japão
decidiu anular o registro da marca comercial “cupuaçu”, atendendo a pedido
formulado pela Rede GTA Grupo de Trabalho Amazônico e da organização
acreana Amazonlink. O escritório japonês acolheu os argumentos de que uma
marca comercial não pode ser registrada se indicar o nome comum de matérias-
primas.
O emprego da biodiversidade pelas comunidades tradicionais é algo construído ao longo
da história de cada uma delas, mediante conhecimentos e práticas transmitidos pelos
antepassados, com vistas à sobrevivência e também porque a vida da comunidade é construída
em torno de diversas crenças, rituais e entes mágicos relacionados com a natureza. São “formas
diferentes de ver o mundo”, na expressão de Santos (2003), e que requerem proteção também
diferenciada, urgente e efetiva.
Além dos casos de desrespeito relacionados com os conhecimentos tradicionais e com a
biodiversidade, uma questão crucial hoje é a situação precária em que vivem os povos indígenas
na América Latina. No caso específico do Brasil, comunidades inteiras estão assoladas pela
pobreza, pelas péssimas condições de saúde nas aldeias, pelo alcoolismo, pela desnutrição
infantil, pela prostituição de mulheres e crianças indígenas e pela violência. Em matéria
veiculada em 4 de março de 2007, o repórter Hudson Corrêa, do jornal Folha de São Paulo,
denuncia essa situação:
Donos de menos de 40 mil hectares de terra, cerca de 30 mil índios guaranis e
caiuás de Mato Grosso do Sul estão confinados. Falta terra em um ambiente de
miséria. casos de desnutrição infantil, alcoolismo, prostituição, filhas
grávidas do pai, violência (ao menos 60 índios são presidiários), suicídios (11
enforcamentos em 2006) e conflito pela posse da terra (uma índia de 70 anos foi
morta a tiros em janeiro dentro de uma fazenda). Com esse quadro, as famílias
dependem de cestas de alimentos dos governos estadual e federal. Apesar disso,
algumas famílias trocam cestas por bebida alcoólica, segundo lideranças. Nas
duas etnias, a desnutrição causou a morte de 47 crianças indígenas menores de
quatro anos de 2005 a fevereiro deste ano, segundo a Funasa (Fundação
Nacional da Saúde). Em janeiro e fevereiro deste ano foram seis mortes
relacionadas à desnutrição. [...] O alcoolismo atinge parte das famílias. Não
estatísticas, mas em Dourados (MS) a Funasa tem uma lista de 60 famílias em
que os pais bebem e as crianças são desnutridas. Na reserva de 3.475 hectares
vivem cerca de 11 mil índios, incluindo terenas. Entre 2.338 crianças, 8,2%
estão desnutridas. 20 em estado grave. Três crianças morreram neste ano de
causa relacionada à desnutrição nessa área indígena, situada a 5 km da cidade.
Diante desse quadro de opressão, marginalização e exclusão dos índios no Brasil, assim
como das demais comunidades tradicionais brasileiras, dos negros e de outros grupos socialmente
excluídos (deficientes físicos, crianças, mulheres, desempregados, homossexuais), muitas formas
de resistência estão mobilizadas nas lutas em defesa desses grupos. No Brasil, somam-se muitos
movimentos e organizações não-governamentais,
74
além de ativistas, juristas, antropólogos,
sociólogos, na defesa da causa indígena e da biodiversidade, por exemplo, na luta pela afirmação
de seus direitos coletivos e de sua identidade, pela demarcação de seus territórios e pela
aprovação do Estatuto das Sociedades Indígenas, em substituição ao ultrapassado Estatuto do
Índio, Lei 6.001 de 1973.
Além dos movimentos e organizações, que se destacar o papel dos próprios índios,
quilombolas, seringueiros e demais comunidades tradicionais engajadas na luta pela defesa de
seus direitos, pela concretização de políticas públicas com vistas a melhores condições de vida e
74
Dentre as ONGs atuantes no Brasil pode-se citar: Amazonlink.org; Amigos da Terra Internacional (Friends of the
Earth International); Argonautas – Associação Ambientalista da Amazônia; CCPY – Comissão Pró-Yanomami; Cimi
Conselho Indigenista Missionário; Coica Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica;
Ecoforça; FBCA Fundação para Conservação da Biodiversidade na Amazônia; Fundação Vitória Amazônica
FVA; Greenpeace International GPI; GTA Grupo de Amazônico; ICV Instituto Centro de Vida; Imaflora
Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola; Imazon Instituto do Homem e Meio Ambiente da
Amazônia; ISA Instituto Socioambiental; ISPN- Instituto, Sociedade, População e Natureza; MAB Movimento
dos Atingidos por Barragens; Opitarj Organização dos Povos Indígenas de Tarauacá e Jordão; SOS Amazônia;
WWF – Brasil – Fundo Mundial para a Natureza.
sustentabilidade socioambiental. Esse engajamento origina-se na própria consciência que essas
comunidades adquiriram ao longo de sua história, de sentirem-se como índios, quilombolas,
seringueiros, de terem orgulho de pertencerem às suas comunidades e de terem uma história
própria, que desejam continuar construindo.
Destaca-se, nesse sentido, o papel das mulheres indígenas na luta pela preservação da
identidade, da cultura e pela sustentabilidade de suas comunidades.
75
Segundo Ignacy Sachs
(2000), a mulher desempenha um papel importante na preservação dos direitos culturais e
naturais de seu povo/de sua comunidade, pois ela contribui para o ecodesenvolvimento e para
uma gestão eficiente dos recursos naturais, principalmente diante da necessidade dessas
comunidades de se auto-sustentar economicamente.
Assim, faz-se necessário enfatizar o papel das mulheres indígenas que está ressurgindo,
uma vez que foram massacradas e caladas ao longo dos séculos e junto com suas famílias foram
violentadas pelo racismo e brutalidade. Esse povo sobreviveu ao peso da colonização, do
racismo, da intolerância civil e religiosa e hoje necessita de campanhas de solidariedade que se
constituam em um veículo de luta para relembrar à sociedade de que os povos indígenas são os
primeiros habitantes desse país, suas primeiras nações, e como tal devem ser respeitados,
venerados, preservados como patrimônio da humanidade e o discriminados, empobrecidos,
excluídos social, histórica e racialmente (SPAREMBERGER; KRETZMANN, 2005).
A valorização da mulher indígena e políticas públicas voltadas para a sua capacidade de
ação dentro das comunidades, para o reconhecimento de sua força como mulher, determinada e
preocupada com a sobrevivência de seus filhos e com a sustentabilidade de sua comunidade, são
caminhos alternativos que podem conduzir a bons resultados. O cooperativismo na agricultura, a
confecção de artesanato, o cultivo de árvores frutíferas, o cuidado com as plantas medicinais, o
uso sustentável da biodiversidade presente em seu território, são exemplos de atividades que
poderiam melhorar a qualidade de vida da comunidade, com a participação efetiva das mulheres
indígenas nesses processos, aumentado assim a auto-estima do grupo e colaborando para a
revitalização de sua cultura.
De acordo com Elida Seguin (2002, p. 12-13), interesse internacional de minimizar as
diferenças e estabelecer metas para um crescimento contextualizado e globalizado do ser
75
Este tema foi especificamente tratado no artigo “Identidade e Cultura: O Papel das Mulheres Indígenas na Gestão e
na Preservação Ambiental para o Desenvolvimento Sustentável de suas Comunidades”, de autoria de Raquel Fabiana
Lopes Sparemberger e Carolina Giordani Kretzmann, apresentando no II Seminário de Biodireito e Direito
Ambiental da Universidade de Caxias do Sul, realizado de 17 a 19 de novembro de 2005.
humano. Busca-se anular a possibilidade de que um entendimento anacrônico permita que
situações nefastas sejam perpetuadas. A Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (Pnud), tenta dinamizar o
desenvolvimento e fomentar o respeito aos direitos humanos, ou seja, o direito a ter direitos. É
pacífico que os atuais instrumentos de controle são insuficientes e ineficazes para resolver o
problema das minorias, da intolerância e da discriminação, porque a diferença está no tratamento
recebido, no relacionamento - ou fricção - entre os vários grupos, ocorrendo uma relação de
dominação/subordinação, em que a minoria é quem domina, não importa seu número, e a maioria
é dominada.
A necessidade de diálogo intercultural, defendida neste trabalho, é mais uma vez
retomada, principalmente no que concerne à tese de Santos (2003) de que diferentes concepções
de dignidade, direito e justiça requerem ampliação dos círculos de reciprocidade entre as culturas,
fazendo com que preocupações comuns para as diferentes culturas possam ser partilhadas e
reivindicadas no cenário mundial, ensejando alianças locais, nacionais e globais nas lutas
emancipatórias.
Um exemplo desse diálogo cultural que se articulou e que merece ganhar força e
adesão cada vez maior, é o Fórum Social Mundial,
76
com o lema “um outro mundo é possível” e
proposto inicialmente como uma espécie de opositor ao Fórum Econômico Mundial. Conforme
proposta do Comitê de Organização Brasileiro do evento, o Fórum Social Mundial será um
novo espaço internacional para a reflexão e a organização de todos os que se contrapõem às
políticas neoliberais e estão construindo alternativas para priorizar o desenvolvimento humano e
a superação da dominação dos mercados em cada país e nas relações internacionais” (VIEIRA,
2001, p. 381). De acordo com o mesmo Comitê, o objetivo do Fórum Social Mundial é a criação
de espaços voltados para a formulação de alternativas, para a troca de experiências, para a criação
de articulações entre ONGs, movimentos sociais, sindicatos, associações, entidades religiosas,
em cada país, em âmbito continental e mundial (VIEIRA, 2001).
Muitos outros exemplos de mobilizações e resistências em torno das questões
multiculturais poderiam ser elencados, no âmbito da Organização das Nações Unidas, em
76
O primeiro Fórum Social Mundial foi realizado em 2001, na cidade de Porto Alegre (RS). O segundo, em 2002, e
o terceiro, em 2003, também ocorreram na mesma cidade. O quarto Fórum foi realizado em 2004, em Mumbai,
Ìndia, o quinto, em 2005, ocorreu novamente em Porto Alegre. A sexta edição foi em 2006, caracterizando-se por ser
um Fórum policêntrico, realizando-se na cidade de Bamako, em Mali, e na cidade de Caracas, na Venezuela. A
sétima edição ocorreu em 2007 em Nairóbi, Quênia.
diversos movimentos pelos direitos humanos, em movimentos ambientalistas, feministas, étnicos.
O objetivo primordial deste trabalho, entretanto, não é apenas citar exemplos de movimentos e
articulações por essas causas, mas sobretudo alertar para a importância dessas articulações e para
a necessidade, cada vez maior, de novas mobilizações e de reafirmação das que existem. Por
outro lado, deseja também chamar a atenção para o papel dos Estados e para a sua
responsabilidade na revisão de suas políticas para com os grupos que tanto são oprimidos e
excluídos e para a preservação do patrimônio comum da humanidade, tarefa que por si
traçaria caminhos rumo à afirmação do cosmopolitismo multicultural, do direito à diferença, da
preservação da diversidade biológica e cultural, da sustentabilidade do desenvolvimento, entre
outras conseqüências e em busca de “um outro mundo possível”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto universalista da modernidade impôs valores monoculturais a toda humanidade,
diante disso, muitas lutas emancipatórias e reivindicações baseadas em ideais multiculturais
surgiram no cenário mundial. Esses ideais respeitam, principalmente, ao reconhecimento do
direito à diferença e à realização de políticas de reconhecimento verdadeiramente igual. O
multiculturalismo, nesse sentido, se constitui em um movimento preocupado com as
possibilidades emancipatórias de indivíduos e de grupos minoritários, excluídos e
marginalizados. O multiculturalismo não idealiza a fragmentação cultural, assim como não busca
a homogeneização cultural. Almeja, na verdade, o reconhecimento e a valorização da diversidade
cultural, para que todas as culturas sejam respeitadas nas suas diferenças e manifestações
próprias.
A importância do multiculturalismo se configura também na identificação de identidades
múltiplas, e com elas, uma série de manifestações culturais diferenciadas. Está preocupado com
as implicações que fatores como raça, etnia, gênero e cultura terão na formação da identidade
de indivíduos e grupos e, conseqüentemente, no papel do Estado diante dessas identidades e de
seus interesses, necessidades e aspirações particulares.
Ademais, o multiculturalismo busca tolerância e solidariedade. Tolerância no sentido de
entender e de aceitar o outro empaticamente, respeitando as diferenças e as escolhas de cada ser,
individual ou coletivamente. E solidariedade, no sentido de compreender que não uma única
cultura detentora da verdade universal, superior em seus métodos e conhecimentos, mas sim, que
o mundo é formado por um “mosaico de culturas”, e que em nome desse mosaico e de um futuro
comum para todos, a diversidade cultural e ambiental deve ser preservada.
Diante das insuficiências das teorias universalistas e diferencialistas quando aplicadas
isoladamente, a idéia de multiculturalismo democrático, em que os princípios da dignidade da
pessoa humana, da igualdade e da cidadania estão aliados ao respeito à diversidade cultural, é um
caminho que pode conduzir as políticas públicas do Estado, em nome da emancipação e do
reconhecimento dos grupos excluídos, através da construção de uma cidadania multicultural. O
multiculturalismo democrático deve equilibrar a tensão entre igualdade e diferença. Assim,
considerando o que ensina Boaventura de Sousa Santos, a diferença que caracteriza os grupos
minoritários não deve conduzir à inferiorização dos mesmos, da mesma forma que a igualdade
não deve implicar a descaracterização daqueles que, na maioria das vezes, não atingem o status
de cidadãos do Estado.
A construção da identidade através do reconhecimento da diferença é fundamental para
que os grupos excluídos e marginalizados possam crer no seu valor e na sua importância
enquanto indivíduos ou coletividades. A partir dessa idéia, a política de reconhecimento dos
Estados não deve aplicar um estatuto igual para todas as culturas, mas sim, reconhecer a
diversidade cultural e aliá-la ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao respeito aos
direitos humanos na instituição de suas políticas. A relação entre identidade e igualdade merece
ser pensada de um ponto de vista que trate a igualdade não como um ideal universal, onde
“todos” são cidadãos, livres e iguais. Essa idéia de igualdade formal deve dar lugar a uma política
de redistribuição e de reconhecimento verdadeiramente igualitário, como bem argumenta
Charles Taylor.
Na identidade está a fonte de significado e de experiência de cada indivíduo ou grupo,
com base em sua história, crenças, sentimento de pertencimento, conhecimentos, práticas,
línguas, enfim, em todas suas manifestações culturais. Daí o porquê da importância da identidade
em um mundo em que as manifestações culturais “diversas” são oprimidas por valores culturais
universais e por processos de globalização hegemônica: a identidade é capaz de unir os sujeitos
em nome de seus ideais e lutas comuns, mas também, em nome de um ideal de transformação
social, para o bem de toda a humanidade.
A busca pela emancipação dos “diferentes” requer, então, que os espaços e as relações
sociais capitalistas sofram transformações e substituições em seus topoi”, de acordo com
Boaventura de Sousa Santos, e que cada espaço transformado” possa servir de base para a
afirmação das lutas multiculturais e para a construção do espaço multicultural. Assim, partindo
das lutas e dos espaços multiculturais, também a cidadania e a democracia passarão por
transformações fundamentais, onde a igualdade esteja aliada ao respeito à diversidade e em que
as práticas emancipatórias conduzam à afirmação de novos valores, mais solidários e construídos
com a participação de todos.
A luta das comunidades tradicionais pela afirmação e reconhecimento de sua identidade,
construída através de sua diferença, é um exemplo de busca pela validação de um passado e de
uma história vivida em meio a opressões e tentativas assimilacionistas, porém, nunca silenciadas
e a cada dia mais significativas para seus membros e para toda a humanidade. A afirmação da
identidade das comunidades tradicionais dá-se através do reconhecimento de suas diferenças, que
por sua vez, estão estampadas nas formas singulares de vida, na relação com a biodiversidade, na
significação e representação dos territórios que ocupam e, sobretudo, na riqueza cultural que
essas comunidades representam, formando um patrimônio cultural que merece ser protegido e
preservado.
Embora a confiança no Estado e na sua capacidade de suprir as deficiências de uma
sociedade em constante mutação esteja nitidamente enfraquecida (e com razão), os meios à
disposição dos que clamam pelo reconhecimento como verdadeiros cidadãos e por uma nova
definição de cidadania e de democracia ainda são escassos. O papel do Estado na garantia e na
implementação dos direitos de cidadania ainda é fundamental no modelo político nacional,
porém, outras instituições e organizações da sociedade civil surgem no cenário mundial para
modificar as lutas pelo acesso verdadeiramente democrático e pela redefinição do ideal de
igualdade em nome dos grupos minoritários, marginalizados, desvalorizados e excluídos da
sociedade.
Autores como Zygmunt Bauman, reconhecem que inúmeras categorias sociais em
desvantagem ergueram suas bandeiras diante dos descontentamentos sociais, principalmente a
partir da década de 80, cada qual manifestando suas reivindicações. Porém, o autor tece sua
crítica ao dizer que essas categorias eram cegas às reivindicações semelhantes, ocasionando uma
fragmentação acelerada da dissensão social e uma fragmentação dos conflitos e reduzindo a idéia
de um “mundo melhor” à defesa de causas específicas de um grupo ou categoria.
Mesmo não fazendo uma análise pormenorizada dos novos movimentos sociais surgidos
em nome de lutas pelo reconhecimento da diferença, pela preservação da diversidade biológica e
cultural, dentre outros temas, é possível discordar em certos aspectos com Bauman, uma vez que
diante das conseqüências do mundo globalizado, da economia capitalista e das inúmeras
modificações ocorridas no mundo “pós-modermo”, a luta por um “mundo melhor” parece carecer
de definição, uma vez que as concepções de “mundo melhor” são, por vezes, variáveis de uma
cultura para outra.
Ainda que o tenham atingido todos os ideais pelos quais lutavam e lutam os grupos
estigmatizados e excluídos, que se reconhecer a importância e a relevância de seus
movimentos. Ademais, diante das cegueiras e deficiências das políticas públicas dos Estados, há
que se reconhecer um valor inestimável e fundamental nessas lutas, principalmente no que diz
respeito à concretização ou a previsão de “novos” direitos, de titularidade difusa e coletiva e que
definem um novo marco na proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos
fundamentais, observando sempre, o caráter multicultural de tais direitos.
As reflexões em torno do multiculturalismo, da identidade e da diferença, conduziram a
uma análise do significado do termo cultura e de suas implicações, considerando o meio ambiente
cultural, os bens culturais e a formação do patrimônio cultural material e imaterial. Nesse sentido,
pode-se acrescentar que a cultura produz símbolos, idéias, forma valores, conduz a crenças, a
hábitos, comportamentos, induz ões e formas de ver o mundo que se difere muito de uma
sociedade para outra, de um grupo para outro. Isso pode levar a conseqüências diversas, como,
por exemplo, considerar a própria cultura como superior, em que o próprio modo de vida é tido
como o mais correto e natural, conduzindo ao chamado etnocentrismo, podendo ensejar atitudes
agressivas e hostis, ou formas de racismo e intolerância. Outra conseqüência que pode ser
ensejada é o abandono nas crenças e nos valores de sua cultura, em virtude de alguma crise que
atinge os membros do grupo, gerando uma situação de apatia e um sentimento de inferioridade
diante das outras culturas.
Diante dessas conseqüências, mais uma vez a necessidade de respeito e de valorização das
culturas diferenciadas e o respeito entre as culturas é algo imprescindível para a condução da
proteção da diversidade cultural e por seu turno, do patrimônio comum da humanidade. A
recepção dos fatores culturais diversos de uma cultura para outra geralmente ocorre quando esses
fatores são vantajosos para a cultura receptora ou quando não apresentam ameaçadas às mesmas.
a intolerância pode ocorre quando a cultura dita “diferente” não segue nenhum padrão
universalmente aceito, não apresenta vantagens aparentes caso fosse incorporada ou incluída nas
políticas públicas do Estado, ou quando as lutas dos seus membros por autonomia e afirmação de
suas identidades podem levar a uma “independência” não desejada pela cultura dominante.
A questão cultural, os impulsos sociais surgidos dos movimentos sociais e culturais, os
novos direitos surgidos das lutas por reconhecimento, ensejam mudanças no sistema jurídico,
para que a produção legislativa se adapte aos novos contextos e às novas realidades, tornando
políticas questões que antes não eram consideradas. Porém, um problema fundamental que pode
ser identificado no sistema jurídico é o de criar soluções legislativas parciais e emergenciais,
acabando por tornar definitiva a não-elaboração de uma lei própria e criteriosa para a matéria em
questão (como é o caso da Medida Provisória 2.186-16/2001, que dispõe sobre o acesso ao
patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado). Um outro
aspecto também relevante é o fato de a legislação normalmente expressar os interesses e
aspirações de grupos dominantes, restando enfraquecidos os desejos e as necessidades dos grupos
dominados.
Nesse sentido, os movimentos de globalização contra-hegemônica adquirem um
importante papel, no sentido de proteger às diversas manifestações culturais e buscar
entendimento e mobilização entre culturas diversas, buscando nos direitos humanos fundamentais
e na dignidade da pessoa humana pilares comuns, pelos quais vale a pena lutar. O
cosmopolitismo pretende combinar as lutas de culturas diversas, baseadas na solidariedade e por
meio de articulações locais e transnacionais. A luta pela proteção do patrimônio comum da
humanidade também se através de ligações transnacionais, considerando a sustentabilidade
social e ambiental em nível planetário e, mais uma vez, baseadas numa lógica de solidariedade
entre as presentes e futuras gerações.
O direito de cada indivíduo de ser tratado como sujeito, de ter seus direitos humanos
respeitados e também de respeitar os direitos dos outros, mesmo que as instituições que
defendem os “interesses da sociedade” muitas vezes não são capazes de proteger os direitos
concretos, como aqueles que protegem as particularidades culturais, devem prevalecer em
qualquer discussão, nas articulações dos movimentos sociais, nos diálogos interculturais, sempre
em nome de preocupações recíprocas para o maior número de culturas possível.
Dessa forma, pelo que foi tratado neste trabalho e pela dificuldade em alcançar uma
solução eficaz para a questão da proteção da diversidade cultural e do patrimônio comum da
humanidade, por meio da valorização e do respeito às culturas diversas, alguns pontos
fundamentais podem ser arrolados, embasados nas valiosas contribuições dos teóricos estudados,
em nome da afirmação das lutas multiculturais e para a construção de uma sociedade
multicultural, por intermédio da compreensão e do diálogo entre as culturas:
1) O monoculturalismo deve dar lugar ao multiculturalismo. Todas as culturas devem ser
consideradas nas suas diferenças, mas de modo que nenhuma imponha seus valores e suas
crenças sobre as outras, para que nenhuma cultura acabe oprimida, explorada ou desintegrada.
2) Os globalismos localizados e os localismos globalizados, formas de globalização
hegemônica, devem dar lugar ao cosmopolitismo e ao patrimônio comum da humanidade, formas
de globalização contra-hegemônica, desenvolvidas através de uma consciência de solidariedade
cosmopolita.
3) Reconhecer a importância dos sítios simbólicos de pertencimento, que contribuem para
a construção da identidade de seus membros e para a diversidade cultural mundial, constituindo
um patrimônio rico e diverso e colaborando para a superação da visão de mundo uniforme, que
não considera os “mosaicos de culturas” que compõem os sítios simbólicos.
4) O sujeito deve atingir importância fundamental nas mobilizações e reivindicações
multiculturais, por meio da afirmação de sua liberdade e de sua responsabilidade na construção
do “viver juntos”. Nesse sentido, a ação instrumental (por meio de leis, políticas públicas,
instituições, movimentos sociais...) deve aliar-se ao reconhecimento e proteção da diversidade
cultural.
5) A construção da identidade e a proteção à cultura diferenciada das comunidades
tradicionais deve ser promovida por meio da comunicação intercultural, do diálogo intercultural e
da aceitação da incompletude das culturas. Nesse viés, o respeito e a tolerância poderão tornar
pronunciáveis as aspirações e reivindicações dos grupos dominados e oprimidos. Para tanto, a
formulação de preocupações isomórficas para as diferentes culturas pode auxiliar no diálogo
intercultural, partindo da premissa de que a humanidade possui um destino comum, devendo ser
construído a partir de contribuições multiculturais.
6) E por fim, o objetivo da “recomposição do mundo” deve ser perseguido por meio do
reconhecimento e da valorização das culturas excluídas e marginalizadas; do respeito ao outro; da
defesa da identidade; da busca pela igualdade sem abdicar da diferença; da emancipação e
redução das desigualdades sociais; da cidadania multicultural e das alianças e articulações
transnacionais, a partir de vários sujeitos e de suas lutas para a promoção e a proteção da
diversidade cultural e do patrimônio comum da humanidade.
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