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DORALICE ALVES DE QUEIROZ
MULHERES CORDELISTAS
Percepções do universo feminino na Literatura de Cordel
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras – Estudos Literários, como parte das exigências
para a obtenção do título de Mestre.
Área de concentração: Literatura Brasileira.
Linha de Pesquisa: Literatura,História e Memória Cultural.
Orientadora: Profa. Sônia Queiroz
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2006
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Três mulheres e a lua
Xilogravura de Samico
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Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
A minha mãe (in memoriam), pedra angular da minha vida.
Aos meus filhos, pedras construtoras de tudo o que tenho edificado.
AGRADECIMENTOS
A Sônia Queiroz, professora, orientadora e amiga, meu especial agradecimento pelo precioso
e fecundo aconselhamento em todas as etapas da realização deste trabalho.
Aos professores Eduardo e Constância Duarte, incentivadores e primeiras luzes na minha
caminhada em direção ao mestrado.
Aos familiares e amigos, principalmente Neuza e Rosângela, que souberam entender as
minhas ausências durante a escrita da dissertação.
A Vânia Moragas e Terezinha Pereira, pela atenção e estímulo.
A Fanka, Salete Maria, Maria Godelivie, Bastinha, pela colaboração.
A UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, que me acolheu desde o início da minha
vida acadêmica.
O dia terminava e sua luz, esmaecida,
poupava fadigas às criaturas terrenas, ao
tempo em que me aprestava para enfrentar a
guerra do caminho, que minha memória com
exatidão vai retratar.
Ó Musas, ó gênio, auxiliai-me neste intento! Ó
mente que, fiel, gravaste quanto vi, mostra
agora toda fidelidade!
Dante , Divina Comédia Primeira Parte –
Inferno, canto II, 1–9.
Leitor Amigo:
Nestes escritos o que for do povo, guarde,
porque é sábio; o que for dos eruditos,
considere com prudência; e seja sempre
indulgente com quem escreveu.
Renato Almeida, Inteligência do Folclore.
RESUMO
A Literatura de Cordel, antiga tradição brasileira de origem européia, foi, durante muito
tempo, reduto eminentemente masculino. Embora alguns estudiosos da cultura popular
brasileira tenham identificado as mulheres como o principal arquivo das tradições orais, nota-
se, nas antologias do gênero, a ausência de folhetos de autoria feminina, o que pode revelar,
dentre outros fatores, uma faceta de preconceitos contra a mulher e a sua participação numa
sociedade patriarcal. A pesquisa de campo realizada em diversos pontos de venda de cidades
nordestinas e a busca nos principais acervos de cordel de Campina Grande, João Pessoa,
Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo detectaram a presença de 70 mulheres cordelistas e 170
títulos. Depois da primeira mulher de que se tem notícia como autora de cordel, que publicou
em 1938 sob pseudônimo masculino, somente a partir de 1970 é que se pode verificar
manifestações de autoria assumidamente feminina. Na atualidade, mulheres, através da escrita
de cordéis, denunciam uma realidade social e também anunciam perspectivas de vida. São
professoras, psicólogas, advogadas, dramaturgas, donas de casa, que, utilizando-se dessa
forma de manifestação da nossa cultura, deixam fluir sua poeticidade e através dela
demonstram seus sentimentos, aspirações e visões de mundo, consolidando uma identidade
autoral e o espaço feminino na literatura de cordel.
ABSTRACT
The so-called Literatura de Cordel (string literature), an ancient Brazilian tradition of
European origin, has been considered, for a long time, an eminently male production.
Although some scholars of Brazilian popular culture have identified women as the main
archive of oral traditions, one can notice, in anthologies of the genre, the absence of booklets
written by them. This may reveal, among other facets, a feature of prejudice against women
and their participation in a patriarchal society. The field research realized in various points of
sale in northeastern cities and the survey made in the main patrimony of Campina Grande,
João Pessoa, Salvador, Rio de Janeiro and São Paulo detected the presence of 70 women
writers of string literature, with more than 170 titles. After the woman known as the first
cordel author, who published in 1938 under a male pseudonym, it is only from 1970 that one
can verify manifestations of assumed female authorship. Nowadays women, through cordel
writing, denounce a social reality and also announce perspectives of life. They are teachers,
psychologists, lawyers, playwrights, housewives who, using this form of manifestation of the
Brazilian culture, allow their poetry to flow and so demonstrate their feelings, aspirations and
world visions, consolidating an authorial identity and a female space in the cordel literature.
SUMÁRIO
ANDANÇAS EM BUSCA DO MOTE: “MULHER ESCREVE CORDEL”......................... 11
A LITERATURA DE CORDEL E SUA HISTÓRIA..............................................................20
As possíveis origens...........................................................................................................21
A Mulher e o Mundo Medieval .........................................................................................24
As Fontes Portuguesas.......................................................................................................31
A Literatura de Cordel no Brasil........................................................................................36
O bestiário medieval e a literatura de cordel brasileira......................................................39
MULHER, LITERATURA E CORDEL NO BRASIL...........................................................47
A visão dos viajantes .........................................................................................................48
Representatividade literária feminina no Brasil.................................................................49
A Literatura de Cordel e a autoria feminina ......................................................................54
PARAÍBA MULHER MACHO...............................................................................................62
A produção de cordel de autoria feminina na Paraíba.......................................................63
A contadora de histórias Maria Godelivie.........................................................................67
A POÉTICA FEMININA NO CEARÁ....................................................................................81
Cariri e poesia popular.......................................................................................................82
Academia e Sociedade de Cordelistas: Crato e Juazeiro...................................................85
Salete Maria da Silva, mestre do cordel.............................................................................89
Mulheres xilógrafas ...........................................................................................................99
NÃO EXISTE PONTO FINAL, MAS PONTOS DE PARTIDA......................................... 102
REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 110
ANEXO.................................................................................................................................. 115
9
ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 – Acervos de Literatura de Cordel pesquisados.......................................................17
Quadro 2 – Relação de Cordelistas por região......................................................................... 60
ANDANÇAS EM BUSCA DO MOTE: “MULHER ESCREVE CORDEL”
Desde tempos bem longínquos
Diz Zumthor pesquisador
Que as mulheres faziam
Percurso de cantador
Levando de um canto a outro
Notícias de grande valor
A Jograleza era chamada
A mulher que percorria
De cidade em cidade
Cantando as belas notícias
Que de outras terras trazia
A história entretanto
Quase nada delas fala
São poucos os que escutam
O silêncio que deixaram
Entretanto, em Campina
Aqui elas aportaram
Hoje como cordelistas
Elas tentam esclarecer
Que o saber que é de todos
Parece só pertencer
Ao mundo que é dos homens
Machista é só querer ver.
11
Gaston Bachelard escreve na obra A poética do Devaneio: "O ser do devaneio
atravessa sem envelhecer todas as idades humanas, da infância à velhice. Eis porque, no
outono da vida, experimentamos uma espécie de recrudescimento do devaneio quando
tentamos fazer reviver os devaneios da infância".
1
Imagens da infância povoam o imaginário
adulto e conduzem aos arquivos da memória, em que, além dos fatos, houve uma valoração.
Inconscientemente a imaginação busca no espaço mágico da memória os matizes para pintar
os quadros de seu deleite. Justificativa inicial para que eu desenvolva este trabalho buscando
na cultura popular imagens simbólicas e representativas de minha vida.
As primeiras lembranças que tenho de leituras, ainda na tenra idade, remetem-me ao
folheto de cordel e à imagem do meu pai. Procedente do Nordeste, trouxe em sua bagagem alguns
folhetos que lia em voz alta nos fins de tarde. Assim, no deslumbramento da minha infância,
chegavam-me as estórias de Bertholdo, Bertholdinho e Cacasseno, dos Doze Pares de França, de
princípes e princesas de reinos longínquos e das aventuras de Pedro Malazartes. Radicados no sul
da Bahia, aos poucos fomos perdendo o contato com os folhetos por falta de fornecedores e as
leituras nos serões vespertinos passaram a ser feitas com livros, tanto prosa quanto poesia.
O meu retorno à literatura de cordel se deu nas aulas de graduação do Curso de
Letras da UFMG, quando um dos professores de literatura mencionou Patativa de Assaré, um
dos grandes poetas da Literatura de cordel. Voltaram-me à memória os tempos de criança e
procurei adquirir um volume das obras do citado cordelista. Chegou-me às mãos uma
coletânea, em forma de livro, diferente do tradicional folheto, mas que continha os elementos
essenciais para as minhas reminiscências. A partir de então passei a buscar insistentemente os
folhetos e cada vez mais me sentia à vontade e via com familiaridade os temas tratados, a
métrica comumente adotada na construção dos poemas, o mistério e a magia que povoavam a
minha imaginação infantil.
1
BACHELARD. A poética do devaneio, p. 96.
12
Nessa minha procura pela literatura de cordel chamou-me a atenção o fato de que
somente homens cordelistas constavam nas antologias. Onde estariam as cordelistas?
Mulheres não escrevem cordel? O meu questionamento ganhou força com a afirmativa de
Sílvio Romero nos seus Estudos sobre a poesia popular do Brasil, em que constata: “as
mulheres não são somente o principal arquivo das tradições orais; são também as autoras de
muitas destas tradições.
2
O autor cita vários exemplos de cantigas anônimas, às quais se
atribui autoria feminina, dada à pureza de sentimentos ali revelados, bem como a leveza das
estruturas dos versos, características, segundo ele, nem sempre encontradas nas composições
masculinas. Afirma ainda que grande parte dessas cantigas foram colhidas na oralidade e
tratam de amores ocultos, ingratidões dos amantes, ausência dos amados, tristezas e solidões.
Em meados do século XIX, registra-se o aparecimento dos primeiros livretos de
cordel no Brasil. Mas, fato curioso, a autoria dos folhetos impressos é, então, exclusiva dos
homens, não se levando em conta a participação feminina na elaboração das estórias.
Poderíamos dizer que as mulheres ficaram na oralidade primária (em que ainda não houve
contato, ou só houve contatos muito superficiais com a civilização da escrita), considerando
que faziam parte de um grupo social mais isolado e na sua grande maioria formada por
analfabetas. Nas regiões rurais formavam-se grupos para ouvir o canto narrado ou a leitura de
romances trazidos pelos colonizadores, aliando-se a uma outra forma cultural muito
semelhante: a de origem africana. Os escravos vindos para o Brasil traziam, sobretudo, seus
trovadores e também o hábito de contar suas histórias, cantando ou narrando; são os famosos
akpalô registrados pelos especialistas em estudos africanos. Câmara Cascudo
3
define akpalô,
como contadores das glórias guerreiras e sociais, proclamadores das genealogias ilustres, que
de geração em geração, ressuscitam o que não deve cair no esquecimento. No Nordeste, essa
2
ROMERO. Estudos sobre a poesia popular do Brasil, p. 185.
3
CASCUDO. Literatura oral no Brasil, p. 152.
13
instituição era representada por negras velhas que transmitiam suas estórias às outras pretas,
amas dos meninos brancos e aos seus filhos.
O mundo das mulheres foi, tradicionalmente, um mundo relativamente fechado, e as
qualidades atribuídas a elas, como honestidade, beleza, virtudes, foram quase sempre cantadas
sob o ponto de vista masculino. Esses estereótipos femininos são descritos na literatura com
um caráter pedagógico, ditando normas de conduta que devem ser adotados pelas mulheres,
sob pena de duros castigos. Durante muito tempo, os sentimentos, as visões do mundo, as
aspirações femininas foram recalcados na escrita, e, salvo algumas exceções, foi talvez na
oralidade e no âmbito doméstico que a voz feminina pôde dar sua contribuição artística e
poética.
A ausência feminina na autoria dos folhetos impressos deve-se em parte às funções
que deveriam ser exercidas pela mulher numa sociedade patriarcal de passado colonial, em
que se evidencia o silêncio e a reclusão tanto no cenário público da vida cultural quanto no
registro das histórias da nossa literatura. No artigo “Mulheres do sertão nordestino”, Miridan
Knox Falci
4
, traça o perfil da mulher sertaneja:
“Mulheres ricas, mulheres pobres; cultas ou analfabetas; mulheres livres ou escravas
do sertão. Não importa a categoria social: o feminino ultrapassa a barreira das
classes. Ao nascerem, são chamadas ‘mininu fêma’. A elas certos comportamentos,
posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos, mas também viveram o seu
tempo e o carregaram dentro delas.”
Treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas “prendas domésticas” –
orientação dos filhos, cozinhar, costurar e bordar – aliava-se o alto índice de analfabetismo
reinante entre elas. A educação das mulheres (as de famílias mais abastadas) não deveria ir
além de escrever livros de receitas ou de orações. Em regiões mais ortodoxas, uma mulher
alfabetizada era considerada verdadeira aberração: “se uma mulher aprende a ler, será capaz
4
FALCI. Mulheres do sertão nordestino, p. 241.
14
de receber cartas de amor”.
5
Uma quadrinha popular do início do século XX define o que as
mulheres deveriam aprender para bem cumprir seu papel na sociedade:
Menina que sabe muito
É menina atrapalhada,
Para ser mãe de família,
Saiba pouco ou saiba nada.
A segregação da mulher e a sua vida em sociedade no Brasil do séc. XIX, pouco
diferia da situação feminina descrita por historiadores da Idade Média, assunto que tratarei em
capítulo específico neste trabalho. Até os dias atuais, em algumas regiões do Nordeste ainda
podem ser verificadas facetas dessa condição.
No início do século XX, numa sociedade sem jornais, rádios, TVs e com poucas
escolas, o cordel proliferou por vários estados do Nordeste e a mulher era descrita sob várias
formas: princesa européia, cuja nobreza e inocência trazem-lhe ao final justa recompensa e
punição para seus perseguidores; mãe devotada que luta e protege seus filhos dos mais
diversos perigos; lutas de mulher contra o diabo; metamorfose da mulher em animais como
serpente, cabras, como castigo nas suas ações; prostitutas. Nos folhetos de conselho, por
exemplo, a intenção do poeta é dar o caso como modelar, capaz de, pela força do exemplo,
incitar à prática da virtude. A sociedade, para alcançar equilíbrio da massa popular, propõe
um programa, uma praxis de vida, a fim de assegurar bem-estar, convivência social, honrosa,
comedida, dentro da convicção religiosa de que o lugar de cada um na sociedade já está pré-
estabelecido. No caso de não cumprimento desse programa, ocorrem, quer no plano coletivo,
quer no plano particular, desgraças sociais, catástrofes públicas, padecimentos individuais,
misérias em geral.
Dentro de uma ética tradicionalista e masculina, utilizando-se de ortodoxias do
puritanismo medieval é traçado para o sexo feminino um “código moral” e as personagens
femininas aparecem nas trovas como mães ou mulheres submissas, guardiãs dos lares,
5
HAHNER. Emancipação do sexo feminino, p. 56.
15
voltadas para o trabalho doméstico, destinadas à procriação. A amada é geralmente descrita
segundo moldes românticos, ou seja, uma figura idealizada de mulher cujas características a
divinizam e a aproximam de Maria. Ou, em contrapartida a essa figura cristã, aquela mais
próxima de Eva e mesmo da prostituta.
Desde o início da publicação dos folhetos até a década de 1970, a mulher
cordelista ainda estava invisível, não publicava oficialmente. Segundo Candance Slater
6
“apesar de poder-se encontrar um ocasional folheto escrito por mulher no Nordeste,
praticamente todos os profissionais são homens”. O cordel pertencia a um domínio
preferencialmente masculino como atesta a citação acima, e as poetisas eram pouco
conhecidas neste universo escrito. “A idéia de que a natureza das mulheres as destine ao
silêncio e à obscuridade está profundamente arraigada em nossas culturas [...] as mulheres
permanecem durante muito tempo excluídas da palavra pública”.
7
Durante a grande efervescência do cordel nordestino, a mulher, como autora,
ainda não tinha obtido espaço de visibilidade pública, diferentemente do homem que, com
mais liberdade de ação, percorria os sertões em viagens, participando de feiras, cantorias,
eventos artísticos, celebrações religiosas, enfim, ia para onde houvesse algum acontecimento
popular. Isto fez com que, de fato, esta narrativa fosse caracterizada no Nordeste, como uma
literatura tipicamente de homens.
Dando asas à minha curiosidade de descobrir mulheres autoras de cordel, encontrei,
em uma antologia de poetas cordelistas, alusão a Altino Alagoano, pseudônimo atrás do qual se
escondia uma mulher, Maria das Neves Batista Pimentel, filha do poeta e editor Chagas Batista.
Essa informação me deu a certeza de que havia encontrado uma pista concreta de que “mulher
também escreve cordel” – mote que orientou minha pesquisa.
6
SLATER. A vida no barbante, p. 27.
7
PERROT .Mulheres públicas, p. 59.
16
Outra pista encontrada foi um artigo publicado no jornal O Poti (RN), em
21/08/83, que discorria sobre a cordelista Maria Lindalva Gomes; em companhia do marido,
também poeta, divulgava a literatura de cordel, entrevistava poetas e cantadores e promovia
cantorias e pelejas entre artistas do seu estado e de outras regiões. O artigo caracterizava
Lindalva como uma poeta intuitiva, humana e comunicativa, que cantava e encantava seus
ouvintes. Enquanto o marido já tinha publicado várias composições de sua autoria, Lindalva
encontrava dificuldade para editar sua produção literária, ratificando a discriminação que
envolve a criação feminina.
A obra da goiana Cora Coralina (pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto
Bretas), que, em 1976, publica o livro Meu livro de cordel, acenou-me também a
possibilidade de encontrar, fora do âmbito nordestino, outras manifestações femininas no
cordel. Embora o livro de Cora Coralina não traga poemas de cordel escritos na forma
tradicional, mas textos em prosa e poesia, ela explica, no início da Parte I, a razão do título da
obra:
“Pelo amor que tenho a todas as estórias e poesias de cordel, que este livro assim o
seja, assim o quero numa ligação profunda e obstinada como todos os anônimos
menestréis nordestinos, povo da minha casta, meus irmãos do nordeste rude, de onde
um dia veio meu Pai para que eu nascesse e tivesse vida.”
8
A poetisa declara sua ascendência nordestina e seu amor aos versos de cordel.
Através dos seus poemas, Cora revela uma vocação para os versos livres e despojados, quase
beirando a prosa, e neles ela conta histórias da infância, tece considerações sobre os seres
humanos e a vida do interior, a situação da mulher, com uma rara sensibilidade de uma poesia
natural daqueles que já nascem com a arte dentro de si.
Na minha busca fui procurar em acervos de cordel possíveis produções femininas,
que poderiam vir, inclusive, camufladas com nomes masculinos, através de pseudônimos, a
exemplo de Maria das Neves Batista Pimentel, mencionada anteriormente. Começando por
8
CORALINA Meu livro de cordel, p. 15.
17
São Paulo(SP), consultei os acervos do IEB/USP, e da Fundação Cultural de São Paulo, além
de visitar a Editora Luzeiro, tradicional na publicação de literatura popular. Dirigi-me,
posteriormente, ao Rio de Janeiro (RJ), visitando a ABLC – Academia Brasileira de Literatura
de Cordel e a FUNARTE – Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Biblioteca
Amadeu Amaral. Em Salvador (BA), pesquisei o acervo da Fundação Cultural da Bahia; na
Universidade Federal da Bahia tive acesso aos arquivos do "Programa de Estudo e Pesquisa
da Literatura Popular" em cujo espaço físico há alguns folhetos de cordel. Partindo em
seguida para João Pessoa (PB), consultei os acervos da Fundação Casa José Américo e da
Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba. Em Campina Grande(PB), foi-me
disponibilizado para pesquisa os folhetos existentes na biblioteca da Universidade Federal de
Campina Grande.
Apresento no quadro 1 abaixo, o demonstrativo das pesquisas:
QUADRO 1
Acervos de Literatura de Cordel pesquisados
Período Jun/2004 a Nov/2005
Instituição/Órgão Localização
N
o.de títulos de cordel
Títulos autoria
feminina
USP/IEB São Paulo (SP) 1.555 5
Fundação Cultural de
São Paulo
São Paulo (SP) 3.500 14
A B L C Rio de Janeiro (RJ) 4.000 6
FUNARTE Rio de Janeiro (RJ) 6.000 10
Fundação Cultural da
Bahia
Salvador (BA) 5.000 37
UFBA/PEPLP Salvador (BA) 50 10
Fund.Casa J.Américo João Pessoa (PB) 1.000 5
UFPB João Pessoa (PB) 4.000 8
UFCG Campina grande (PB) 6.000 25
18
Além dos acervos pesquisados, tive oportunidade de manter alguns contatos com
pessoas que me forneceram dados sobre a produção das cordelistas. Em Juazeiro do Norte
(CE), a professora e cordelista Fanka foi de suma importância para o fornecimento de
informações sobre as poetisas cearenses. Em Campina Grande, na Coordenadoria de Cultura –
Fundação Severino Cabral, tive conhecimento de um projeto intitulado “Cordel campinense”,
que publicou 10 folhetos sendo 5 de mulheres. Ainda em Campina Grande, entrevistei o poeta
popular Manoel Monteiro que divulga e incentiva a produção de folhetos de mulheres,
inclusive forneceu-me dados importantes sobre as cordelistas, como vivem, as duplas jornadas
de trabalho que exercem, as dificuldades para editar.
A grande maioria dos folhetos coletados por mim foi conseguida através de
persistente e minucioso trabalho, consultando pesquisadores, professores, curiosos, amantes
da Literatura de Cordel, em eventos culturais ou faculdades, e procurando em mercados,
exposições, rodoviárias de cidades nordestinas; o fato curioso é que, mesmo comercializando
os folhetos, os vendedores desconheciam títulos de autoria feminina. Ao cabo de 18 meses de
pesquisa, consegui recolher 170 títulos de 70 mulheres, de variadas regiões brasileiras, tanto
do Nordeste como do Rio de Janeiro e São Paulo, conforme pode ser verificado no Anexo.
Começou então uma outra fase, que é a escolha do corpus a ser estudado. Diante
da impossibilidade de analisar as obras de todas as cordelistas, procurei concentrar meus
estudos na produção poética de duas regiões: a Paraíba, com destaque para a poetisa Maria
Godelivie, de Campina Grande (PB); e o Ceará, com um maior número de cordelistas,
principalmente em Juazeiro do Norte, onde destaquei a obra poética de Salete Maria,
pertencente ao grupo da Sociedade dos Poetas Mauditos.
Acredito que a literatura de cordel possa ser espaço profícuo e fecundo do
imaginário das mulheres, testemunho presente do que sentem e como vêem a própria imagem
e de como assimilam, antropofagicamente, a cultura masculina ou a rejeitam, traçando novos
19
caminhos em que sua voz possa ser ouvida, rompendo com a tradição cultural que destinou à
mulher um lugar marcado de silêncio e estereótipos.
Este trabalho apresenta-se dividido em cinco capítulos. No primeiro, trato das
origens do cordel, das fontes portuguesas até chegar ao Brasil; abordo também a participação
da mulher medieval, sua vida em comunidade e sua contribuição artística. No capítulo dois,
abordo a situação cultural da mulher no Brasil colonial e sua evolução na Literatura de
Cordel. No terceiro capítulo, trato da mulher paraibana enquanto produtora de cordéis; no
quarto capítulo, as cordelistas cearense, deixando para o capítulo cinco, as considerações
finais.
Tendo como processo norteador a premissa defendida por Silvio Romero de que
as mulheres não são somente arquivo das tradições orais mas sobretudo autora de muitas
delas, este trabalho procurou dar visibilidade ao processo em que “a musa da oralidade,
cantora, declamadora, memorizadora, está a aprender a ler e a escrever”
9
e mais ainda “a
musa que cantava traduz-se num escritor: ela, que requeria pessoas para a ouvirem, convida-
as agora a ler.”
10
9
HAVELOCK. A musa aprende a escrever, p. 34.
10
HAVELOCK. A musa aprende a escrever, p. 79.
A LITERATURA DE CORDEL E SUA HISTÓRIA
Na França e Portugal
cordel é o mesmo cordão
mas isto negou caboclo
com toda convicção
pra ele é o que é escrito
com as cordas do coração
Foi o espelho da vida
de toda sociedade
expressando em seus versos
com muita seriedade
rimando os acontecidos
dentro da realidade
O cordel foi o jornal
do povo de antigamente
de tudo que se passava
escreviam no repente
andava de feira em feira
em cidade diferente.
O cordel tem sua língua
e própria ideologia
aconselhando avisa
e criticando elogia
sabe contar a história
com pesar ou alegria.
21
As possíveis origens
A origem de nossa Literatura de Cordel remonta à Idade Média, ligando-se à
poesia trovadoresca portuguesa. Assim como os poetas medievais iam de burgo em burgo,
castelo em castelo, os poetas cordelistas nordestinos iam de uma feira a outra, ou visitando as
cidades, seguindo ciclos de festas religiosas ou acontecimentos importantes. A atividade
poética cultural na Idade Média era exercida por poetas de classes sociais diversas, que
recebiam nomes específicos, de acordo com sua região e o tipo de função que exerciam.
Hierarquizados socialmente, recebiam denominações: como trovador, jogral, menestrel e
segrel, de acordo com suas produções. O trovador era considerado o artista completo,
descendente de linhagem nobre, compunha e interpretava suas cantigas, sem receber por isso;
ainda que versejassem nas cortes e terem como público alvo a aristocracia, suas composições
tinham um sabor popular. Os jograis pertenciam a uma classe social inferior, eram artistas
itinerantes, que exerciam funções variadas como saltimbancos, músicos, atores mímicos,
apresentadores de marionetes ou de animais adestrados. O menestrel era um tipo de jogral,
tinha trabalho estável, ligado a um senhor medieval e sua função era entreter a alta nobreza,
interpretando as poesias escritas pelos trovadores. Os poetas entravam na esfera do canto
popular, por meio de romances, pastorelas, canções de gesta, de danças e de primavera.
A poesia heróica, considerada uma das primeiras expressões literárias, foi
modelada pela tradição oral. A estrutura dos segmentos melódicos que proporcionam a
harmonia e o ritmo e os processos sonoros e semânticos asseguravam a preservação do texto
pela memória, em comunidades em que poucos sabiam ler. Daí a preferência pela métrica
breve, a redondilha, a endecha, enfatizando os temas elevados, e ainda o apelo às figuras
sonoras, que compõem o conjunto de elementos estruturais de processos estilísticos de criação
popular. É uma poesia em que a exaltação, o entusiasmo e a divinização dos mais fortes e
22
mais audaciosos vencem o mais fraco; transfigurando a história, criando mito e lendas,
desperta uma consciência coletiva para perpetuar a memória e tecer o vínculo tradicional. A
origem das gestas vincula-se a um acontecimento ou figura que a imaginação fantasia. São
folclorizados e mitificados os heróis populares em cujos feitos se estabilizam elementos da
lenda e da tradição. Na tradição oral em que se cria a lenda, os heróis são transformados em
seres sobrenaturais e alguns deles são elevados à categoria dos seres mitológicos, criando uma
excitação coletiva. O fato histórico sofre deformação, quando não é ele suficiente para atuar
por si só no imaginário coletivo; por sua vez as expressões populares são reflexos de uma
mentalidade contextualizada numa comunidade.
Lêda Tâmega Ribeiro relata que a Chanson de Roland, uma das mais tradicionais
canções de gesta, foi baseada num fato histórico de pequena monta, mas que foi transformado
e mitificado ao passar para a epopéia: o rei Carlos, aliando-se aos chefes árabes que lutavam
contra os mulçumanos, transpõe os Pirineus na primavera de 778, toma Pamplona e cerca
Saragoça. Chamado de volta para lutar contra os saxões, arrasa Pamplona e volta a
cordilheira. Pouco tempo depois, seus soldados são surpreendidos nos desfiladeiros por
montanheses bascos (cristãos) que os massacraram, pilharam as bagagens e continuaram
impunes. Entre as vítimas, encontra-se Roland, que no poema épico torna-se “sobrinho” do
imperador Carlos Magno, que o vinga, esmagando os sarracenos. Fica difícil determinar em
que ponto o fato histórico é transfigurado e recriado com um personagem mítico (Roland)
para que se perpetue na memória popular.
Nos ciclos heróicos, assim como nas mitologias, o povo precisa da narração a fim
de revelar ideais, criando figuras para simbolizá-las. Através dela, se expressam o
pensamento, sentimento e ação: o herói existe em função do episódio e o episódio ganha
sentido pela gesta que o imortaliza. A gesta não vive isoladamente. Cada motivo está ligado a
um uso, cada variante pode ser a interpretação de um costume, incorporando a cultura
23
material, que por sua vez se torna natural de um tempo e de um espaço. As aventuras de
Carlos Magno e a canção de Rolando, trazidas para o Brasil pelos portugueses, são exemplos
de como as lendas se perpetuam, existindo abundante literatura de cordel sobre o tema, que se
recria em várias edições através do tempo.
Não só de heróis fantásticos, de batalhas intermináveis de lanças e espadas viveu a
poesia dos trovadores. O amor entrou na poesia e a mulher passa a ser a companheira cheia de
ternura e beleza, justificando o heroísmo e passando a ser o troféu e dona dos cavaleiros. E se
cantou a mulher, o sentimentalismo e as dores do amor. No sul da França, os trovadores
iniciaram uma arte diferente, talvez com influência moura, e que depois se espalhou pelo
norte da França, Itália, Ibéria, Inglaterra, Alemanha, onde no século XIII apareceram os
Poemas dos Menestréis, dando origem à poesia do amor cortês.
Sigismundo Spina
11
, citando Pierre Belpérron, esclarece:
“Entretanto, se no sul da França esse renascimento da mulher estimula um
verdadeiro culto na poesia dos trovadores, no Norte a mulher não logra a mesma
independência: nas canções de gesta, escritas para celebrar o espírito heróico e
guerreiro da sociedade aristocrática do Norte, ela desempenha um papel acessório,
de mero refrigério dos heróis cansados e dos prazeres do senhor; estes só pensam
nelas quando se sentem cansados de matar.”
O autor considera ainda que se distinguiram dois movimentos literários: “o do
Norte, épico, guerreiro, fazendo da luta o seu tema capital, e o do Sul, sentimental, cortês,
elegante, refinado, transformando a mulher no santuário de sua inspiração.” No entanto,
salienta Spina, a canção do sul da França não é tão somente um hino ao amor puro, nobre,
inatingível, mas é também o amor carnal, ambos entrelaçados na mesma poesia. O amor, para
os trovadores, era para ser vivido integralmente: a alegria da razão desenvolvida no intelecto e
a alegria dos sentidos vivenciada através da boca, dos olhos e coração. Baseando-se no código
de amor, expresso nas canções, sintomas da erótica trovadoresca são listados por Spina:
“– a perturbação dos sentidos (que atinge às vezes a loucura);
– a impossibilidade de declarar-se, quando em presença da mulher; então embarga-
se-lhe a voz e treme como as folhas ao vento;
11
SPINA. Apresentação da lírica trovadoresca, p. 22.
24
– a perda do apetite, a insônia, o tormento doloroso, a doença e a morte como
solução de seu drama passional;
– e, às vezes, certo masoquismo, certo prazer na humilhação e no sofrimento
amoroso.”
O primeiro trovador de que se tem conhecimento, Guilhem de Peitieu (1071–
1127), embora estudiosos detectem um grau elaborado de conceitos e de linguagem nas suas
composições – o que faz acreditar na existência de poetas antecessores – compôs várias
canções em que se pode detectar a sintomatologia acima, trazendo uma grande carga de
erotismo e a dualidade amor platônico/amor carnal.
A partir do século XIII, com a invasão dos cruzados de Inocêncio III nas cidades
do sul da França, esse tipo de canção entra em declínio e a produção trovadoresca transforma-
se numa literatura dirigida: a Igreja impõe o culto de Maria como tema oficial dos novos
trovadores. A transformação do culto da mulher para a contemplação da Virgem foi feita em
condições favoráveis, pois o serviço cavalheiresco, humilde, prestado pelo vassalo à sua
dama, encontrou um correspondente religioso no culto dos fiéis à Virgem Santíssima. Com
isso modifica-se a imagem da mulher na lírica medieval.
A Mulher e o Mundo Medieval
A primeira questão que se apresenta para melhor se avaliar o impacto dessa
mudança comportamental é como os homens tratavam as mulheres antes do século XII.
Parece ser consenso entre os historiadores que, nos círculos sociais mais elevados de que se
tem notícia na documentação, a mulher não era tratada com qualquer tipo de ternura, muito
pelo contrário. Por um lado, a Igreja tinha um discurso regularmente misógino, apesar de,
pelo menos desde o século IX, colocar a mulher socialmente em pé de igualdade com o
marido. E não só em pé de igualdade social, mas também de condição humana: ainda no
século VIII as populações acreditavam que as mulheres possuíam relação e influência sobre
os eclipses lunares. A Igreja lutou contra essa concepção mágica feminina, e tentou fazer
25
prevalecer o conceito de igualdade entre os sexos. O Concílio de Leptines (744) destacou a
noção da mulher como um ser humano e não cósmico, pois muitos acreditavam que a mulher
dominava as forças da natureza, que era um mistério – benéfico, mas, sobretudo maléfico e
assustador. Acreditavam também que um dos maiores poderes da mulher era dominar o amor,
visto então como um sentimento negativo, capaz de levar as criaturas a um estado de loucura
e morte. Para muitos, o amor era uma força subversiva, incontrolável, e que deveria ser
combatida. Para aplacar essa angústia coletiva e amenizar o poder da mulher, oferecia-se aos
jovens casados uma taça de hidromel (álcool do mel fermentado), um tranqüilizante que era
considerado um antifiltro de amor, um antídoto contra aquele impulso negativo e destruidor
(por esse motivo surgiu a expressão “lua-de-mel”). Por outro lado, vivendo em uma sociedade
que enaltecia a força viril, a mulher tinha seu espaço bastante limitado. Sua função básica era
procriar. E, como devia obediência ao seu marido, era comum a esposa apanhar.
Elias Norbert em sua obra O Processo Civilizador, afirma que no tempo de Filipe
II Augusto (1180 – 1223), o gesto de violência mais comum era o soco no nariz: “O rei (Filipe
II) ouviu isso e a raiva coloriu-lhe o rosto; erguendo o punho, atingiu-a no nariz com tal força
que tirou quatro gotas de sangue. E a senhora disse: ‘Meus mais humildes agradecimentos.
Quando lhe aprouver, pode fazer isso novamente’.”
12
Esta brutalidade do rei contradiz suas
palavras, pois o próprio Filipe teria dito certa vez que havia uma grande diferença entre um
homem valente e um homem-bom (
prudhomme): para o rei, o último, homem cortês, gentil e
educado para com as mulheres, era muito superior ao primeiro.
13
Pode parecer paradoxal essa
declaração, mas, de qualquer modo, é um sinal de que, no início do século XIII, pelo menos
na teoria, a força bruta e a coragem já não eram suficientes para caracterizar o perfeito
cavaleiro.
12
NORBERT. O Processo civilizador, p. 76.
13
BLOCH. A sociedade feudal, p. 62.
26
A situação feminina era ainda pior nas camadas sociais inferiores (burgueses e
camponeses). Naturalmente, a descoberta da cortesia nas classes altas do século XII não se
difundiu rapidamente por todo o corpo social. No século XIV um texto do direito de
Aardenburgo (cidade flamenga que seguia o costume de Bruges) é muito chocante no que diz
respeito à condição das mulheres burguesas: “Um homem pode bater na sua mulher, cortá-la,
rachá-la de alto a baixo e aquecer os pés no seu sangue; desde que, voltando a cosê-la, ela
sobreviva; ele não comete nenhum malefício contra o senhor.”
14
Portanto, um homem não
cometia nenhuma infração jurídica se batesse em sua mulher, desde que não a matasse
(Costume de Namur de 1558, art. 18). Ainda no século XIV, os camponeses de Montaillou
surravam suas mulheres regularmente. As agressões verbais eram freqüentes e os textos
inquisitoriais dessa aldeia são um desfile de grosserias contra o sexo feminino. Naturalmente
elas tinham medo, muito medo deles. Além do mais, não podiam sair sozinhas, pois eram
pessoas “fracas e precisavam ser especialmente protegidas”. Na obra Damas do Século XII,
15
é esboçada a imagem que os homens faziam comumente das mulheres:
“Por natureza, as mulheres são fracas. Requerem ser especialmente protegidas.
Quando elas saem de casa, é preciso que um homem as acompanhe, senão se pode
livremente se apoderar dela. [...] como a moça violentada pelo monteador: ‘ Naquele
bosque sozinha, o que fazia.’ Era uma puta? Uma fada? Fatal, em todo caso. Pois
sozinhas, sem tutor masculino, a dama, a donzela, a virgem não apenas se encontram
em perigo de ser tomadas, elas estão entregues a si mesmas, portanto, a más
inclinações, abandonam-se inevitavelmente à luxuria, dado o fraco que têm pelo
jogo do amor.[...] As mulheres são presas, e muito fáceis, facilmente engodadas por
um palavreado, então se entregando por inteiro, mas por esse motivo são armadilhas
em que os homens, seduzidos por seus encantos, seus enfeites, pelo irresistível
atrativo de seus cabelos descobertos, tropeçam. Para todos, de qualquer estado que
sejam, a mulher, tentadora e perigosa, é fonte de prazer e causa de perdição.”
As qualificações de dama, donzela, virgem se contrapõem aos arquétipos de puta
e fada. Tanto a prostituta quanto a fada são consideradas como elementos fatais e, portanto
destruidores. As fadas, nas tradições orais, aparecem como espíritos da natureza que gozam as
próprias vidas num nível sobrenatural, portanto livres, intrometendo-se em questões humanas.
14
GILLISEN. Introdução histórica do Direito, p. 607.
15
DUBY. Damas do século XII, p. 67.
27
No Dicionário de Símbolos
16
, as fadas, embora detenham faculdades extraordinárias, exercem
ofícios humildes como o de fiandeiras e de lavadeiras. Recebem também vários nomes: damas
brancas, damas verdes, damas negras, numa equivalência aos cavaleiros medievais. São
suscetíveis a grandes transformações inesperadas e têm relação com outros seres míticos
como as sereias e as lâmias nos seus aspectos negativos como a atração e a destruição. Os
cabelos, elemento de sedução, devem estar sempre cobertos ou discretamente trançados.
Cabelos soltos têm forte valor erótico e imagens de fadas são representadas com cabelos
desfeitos e desgrenhados, simbolizando tristezas que podem advir de uma eroticidade
descontrolada. O personagem alegórico Tristeza, do Roman de la Rose, puxou e arrancou seus
cabelos sob o efeito do arrebatamento e do pesar.
17
A mulher espectro/sereia/lâmia revela-se
com impulsos instintivos e mortais. A musa sofre estranhas metamorfoses, é perigosa, mete
medo e é cruel.
Diante de um quadro tão desalentador quanto à imagem feminina, não é sem razão
que quando uma mulher falava de amor no mundo medieval estivesse sempre se referindo a
experiências vividas com carinhosos e solícitos amantes, nunca com o marido, seu dono e
senhor. Na Idade Média, com o enorme alcance desse fenômeno histórico, o amor cortês , o
amor e o tratamento carinhoso por parte dos homens nasceram a princípio sob o signo da
infidelidade conjugal.
Rodrigues Lapa
18
afirma que:
“O cristianismo elevou indiscutivelmente a condição social da mulher, fazendo-a,
em teoria, igual ao homem. Não é menos verdade, porém, que, praticamente, a sua
situação tenha sido bem precária na remota Idade Média, pois estava exposta ao
misoginismo mais ou menos feroz dos autores eclesiásticos e às brutalidades do
homem a quem pertencia.”
16
CIRLOT. Dicionário de símbolos, p. 60.
17
ARIES. História da vida privada, p. 362.
18
LAPA. Lições de Literatura Portuguesa, p.10.
28
No sul da França a mulher “herdava, possuía bens próprios e, depois de casada,
podia dispor deles sem o consentimento do marido.”
19
Esta abertura jurídica, influenciada
pelo direito justinianeu na França, teve grande influência na cultura trovadoresca. “Como
expressão da sujeição amorosa do homem, o trovadorismo nasceu da inspiração e em certo
modo do desejo e imposição das grandes senhoras. Foi uma reação ideal contra a dependência
social e jurídica da mulher na Idade Média.”
20
É interessante observar que os grandes amores cantados pelos trovadores eram
endereçados às mulheres casadas. As donzelas eram colocadas sob o poder paterno e não
tinham juridicamente como dispor de bens, não poderiam, dentro dessa ótica, ser objeto de
louvor dos trovadores, que, na maioria das vezes, louvavam por razões econômicas. Por outro
lado, havia a denúncia social da incompatibilidade entre amor e casamento. O compromisso
conjugal se apresenta ao trovador como um negócio e as relações entre marido e mulher,
consideradas materiais e terrenas, contradiziam o conceito de amor cortês, que levaria ao
infinito, à plenitude. No tratado de amor de Andreas Capellanus (séc.XII), que sintetiza as
regras do amor cortês, a questão do amor entre a mulher e o marido é levada para o
julgamento da condessa Maria de Champagne, que dá a sentença:
“Digo, pois, e estabeleço firmemente que o amor não se pode desenvolver entre
dois casados; porque os amantes dão-se reciprocamente tudo, de graça, sem o menor
constrangimento; ao passo que os casados se obrigam a mútua obediência, por
dever, e não se podem recusar cousa nenhuma.”
21
Na obra História da Vida Privada
22
há o registro de agrupamento de mulheres (o
gineceu), local destinado exclusivamente ao sexo feminino em que se desenvolviam várias
atividades: canções de fiar, canções de gesta, romances e serões literários. O gineceu é
19
LAPA. Lições de Literatura Portuguesa, p. 11.
20
LAPA. Lições de Literatura Portuguesa, p. 11.
21
“Dicimus enim et stabilito tenore firmamus, amorem nom posse suas inter duos jugales extendere
vires. Nam amantes sibi invicem gratis omnium largiuntur nullis necessitatis ratione cogente; jugales
vero mutuis tenentur ex debito voluntatibus obedire et in nullo se ipsos sibi invicem denegare.”LAPA.
Lições da Literatura Portuguesa, p. 14.
22
ARIES. História da vida privada, p. 343.
29
considerado um espaço privilegiado para a voz feminina e pode ter sido matriz de várias
composições medievais. Nas canções de fiar, o espaço privado das mulheres aparece como
local do devaneio, da disponibilidade, da confidência, protegido contra o mundo autoritário
das leis. No campo, esses grupamentos eram liderados por matronas sábias e prudentes que
repassavam suas experiências para mantê-las ou perpetuá-las na memória. Como algumas
delas eram conhecedoras das ciências ocultas, preparavam receitas imemoriais para tornar
produtivas as terras e fecundos os animais, e difundiam simpatias para afastar maldições e
pesadelos. O grupamento
camponês foi depositário de saber secreto, as mulheres
interpretavam “sinais”, liam as aparências e traduziam o sentido oculto. Essa troca dos saberes
mantinha a coesão do grupo, pois os segredos só eram repassados entre mulheres. Da mesma
forma, as canções de trabalho eram executadas dentro do grupo e faziam parte da tradição
popular. Registros de documentos antigos revelam a existência de canções que eram
interpretadas pelas mulheres nas cerimônias religiosas. Essa arte feminina teria sido
desenvolvida mais intensamente na Galiza, na Andaluzia e em Santiago de Compostela
. Com
o nascimento do trovadorismo, separando o compositor, denominado de trovador, da função
de executor, denominado de jogral, o papel da mulher muda de compositora e cantora para
dançarina (soldadeira). É comum em vinhetas da Idade Média a representação desses três
agentes da arte: o trovador, com o rolo das cantigas, o jogral tocando a cítola, e a soldadeira
em posição de dança.
No entanto, estudiosos da cultural medieval apontam para a existência de algumas
poetisas (trobairitz) no movimento trovadoresco: Maroie de Dregnau de Lille (séc. XII),
trovadora de origem desconhecida, compôs a peça Mout m’abelist quant je voi revenir,
canção de mulher (Chanson de jeune fille),e que se encontra registrada no Manuscrit du Roi;
Blanche de Castille (séc. XII), compôs a canção Amours u trop tars me sui pris, cantiga em
devoção a Virgem Maria; a famosa canção de cruzada, Chanterai por mon coraige, é
30
atribuída à “Dame de Fayel”, que era amante do famoso trovador Chatelain de Couci. Dentre
elas, desponta Beatriz de Dia (Condessa de Dia) cujas canções levam da alegria ao pranto,
emotividade característica da doutrina convencional da escola trovadoresca. A literatura
provençal narra o lendário envolvimento amoroso da Condessa com o trovador Raimbaut
d’Aurenga, por quem se apaixonou, tendo sido por ele desprezada. A incompatibilidade
espiritual entre os dois se manifesta na poesia dela, que se declara humilhada pela altivez e
pelo desprezo sentimental do seu amor. Discordavam também sobre a forma literária de
escrever poemas: ela, no estilo simples e delicado; ele, no estilo rebuscado, com preferência
pelas rimas difíceis e pelo refinamento de uma poesia imagética. A sensibilidade desta poetisa
deixa entrever a procura do amor nobre em contraponto com o amor cortês; outras vezes,
busca despertar o ciúme no coração do amado, proclamando a excelência de suas virtudes,
que atira contra o desprezo do amante. A lírica da trobairitz é considerada a manifestação de
um dos mais apaixonados e delicados temperamentos poéticos da literatura medieval.
Ria Lemaire, no artigo intitulado “Expressões femininas na literatura oral”, afirma
que uma das razões do desaparecimento das tradições femininas e conseqüente
obscurecimento da sua autoria literária teria como base a estrutura econômica, a produção
material das comunidades tradicionais. A mulher como agente econômico primário, e também
responsável pela perpetuação das tradições orais, foi paulatinamente substituída pelo homem
que conquistou poderio econômico, relegando as mulheres à vida privada. Observa também
que, no romanceiro ibérico há uma repartição dos mundos em público e privado. Na vida
privada as mulheres conservavam o tesouro literário dos romances. Na vida pública, eram os
homens que cantavam, representavam e eram conhecidos como “autores” das canções.
Perquiridos sobre seu repertório, afirmavam que aprenderam com suas mães, suas tias e avós,
que cantavam os romances.
31
As Fontes Portuguesas
O trovadorismo foi a primeira escola literária portuguesa. É a partir do século XII
que surge o galego-português, na região próxima à atual Galiza espanhola, ao norte do rio
Douro. A cultura dos trovadores refletia bem o panorama histórico desse período: as
Cruzadas, a luta contra os mouros, o feudalismo, o poder espiritual do clero. Uma das
características da época era a relação de dependência entre suseranos e vassalos, a
"vassalagem". Outro importante fator era o poder da Igreja, com o clero possuindo grandes
extensões de terra e dedicando-se à política. Daí as freqüentes procissões e as próprias
Cruzadas, que refletiam a visão teocêntrica do período. Foi esse o ambiente sociocultural que
modulou o trovadorismo em terras lusitanas.
Os poemas da época eram compostos para o canto. E os trovadores eram poetas e
músicos. Os menestréis, músicos-poetas sedentários, viviam na casa dos fidalgos; e os jograis,
cantores e tangedores ambulantes, eram normalmente plebeus; além desses, havia os segréis,
trovadores profissionais, fidalgos desqualificados que andavam de corte em corte, seguidos
por jograis. As cantigas eram acompanhadas por instrumentos de corda e sopro. Mais tarde,
essas cantigas
foram reunidas em três cancioneiros: o da Ajuda, o da Biblioteca Nacional e o
da Vaticana.
A produção poética medieval portuguesa pode ser agrupada em dois gêneros: o
lírico – de temática amorosa, com as cantigas de amor e as cantigas de amigo; e o satírico –
criticando alguém, de forma sutil ou grosseira, por meio das cantigas de escárnio e de
maldizer.
Sobre as cantigas de amor se pode dizer que a influência maior chegada a Portugal
foi a dos trovadores provençais. São cantigas palacianas, que expressam um amor idealizado,
em que a figura da amada é inatingível. O amante deve submeter-se à amada, numa
vassalagem humilde e paciente, honrando-a sempre com a mais absoluta fidelidade; para não
32
comprometer a mulher amada, seu nome deve permanecer no anonimato. O trovador
enlouquece com a beleza de sua dama e a falta de correspondência provoca perda de apetite,
insônia e a famosa "coyta" amorosa (a dor do amor).
Nas cantigas de amigo, o "eu-lírico" é feminino. Tais cantigas procuram mostrar a
mulher dialogando com sua mãe, com uma amiga ou com a natureza, sempre preocupada com
seu amigo (namorado). Ou, ainda, o amigo é o destinatário do texto, como se a mulher
desejasse fazer-lhe confidências de seu amor, embora nunca diretamente a ele. O texto é
dialogado com a natureza, como se o namorado estivesse por perto, a ouvir as juras de amor.
Geralmente as cantigas de amigo destinam-se ao canto e à dança. A linguagem é simples, pois
não se ambientam como as cantigas de amor, em palácios, mas nas trovas populares. As alvas,
as bailas, as romarias, as marinhas (ou barcarolas), as pastorelas, são exemplos das cantigas
de amigo.
As composições do gênero satírico expressam bem a psicologia da época,
deixando virem à tona assuntos que despertam comentários, nas relações sociais dos
trovadores; são sátiras que atingem a vida social e política, sempre num tom de irreverência;
possuem grande riqueza, uma vez que apresentam um considerável vocabulário, observando-
se, muitas vezes, o uso de trocadilhos; fogem às normas rígidas das cantigas de amor e
apresentam novos recursos poéticos.
Os principais temas das cantigas satíricas portugueses são: a fuga dos cavaleiros
da guerra, as traições, os escândalos das amas e tecedeiras, o homossexualismo e a pedofilia,
o adultério, amores interesseiros e ilícitos. Nas cantigas satíricas (de escárnio e de maldizer),
pode ocorrer diálogo, e quando isso acontece, a cantiga é denominada tensão (ou tenção). Ora
a conversa é entre mãe e filha, ora entre uma moça e uma amiga ou também entre uma moça e
a natureza, ou, ainda, a discussão entre um trovador e um jogral, tentando ambos provar maior
competência em sua arte. As cantigas de escárnio apresentam críticas bem-humoradas a
33
alguém, cujo nome não é citado, mas que será facilmente reconhecido pela maioria das
pessoas.
Mas nem só de poesia viveu o trovadorismo. Também floresceu um tipo de prosa
ficcional, as novelas de cavalaria, originárias das canções de gesta francesas (narrativas de
assuntos guerreiros), em que havia sempre a presença de heróis cavaleiros que passavam por
situações perigosíssimas para defender o bem e vencer o mal. Sobressai nas novelas a
presença do cavaleiro medieval, concebido segundo os padrões da Igreja Católica (por quem
luta): ele é casto, fiel, dedicado, disposto a qualquer sacrifício para defender a honra cristã.
Esta concepção de cavaleiro medieval opunha-se à do cavaleiro da corte, geralmente sedutor e
envolvido em amores ilícitos. A origem do cavaleiro-herói das novelas é feudal e nos remete
às Cruzadas: ele está diretamente envolvido na luta em defesa da Europa Ocidental contra os
sarracenos, os eslavos, os magiares e os dinamarqueses, inimigos da cristandade.
As novelas de cavalaria estão divididas em três ciclos e se classificam pelo tipo de
herói que apresentam. Assim, as que apresentam heróis da mitologia greco-romana são do
ciclo clássico (novelas que narram a guerra de Tróia, as aventuras de Alexandre, o Grande); as
que apresentam o Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda pertencem ao ciclo arturiano
ou bretão (A Demanda do Santo Graal); as que apresentam o rei Carlos Magno e os doze
pares de França são do ciclo carolíngio (a história de Carlos Magno). A busca pelo Santo
Graal é o tema central das narrativas das façanhas dos cavaleiros da Távola Redonda, cuja
lenda, provavelmente uma mistura de crenças celtas e cristãs, é o argumento de muitos
romances medievais. No Brasil, foi adaptada pelo poeta popular neles imprimindo o toque
regional. Geralmente, as novelas de cavalaria não apresentam uma autoria. Elas circulavam
pela Europa como verdadeira propaganda das Cruzadas, para estimular a fé cristã e angariar o
apoio das populações ao movimento. As novelas eram tidas em alto apreço e foi muito grande
a sua influência sobre os hábitos e os costumes da população da época. O Amadis de Gaula e
34
A Demanda do Santo Graal foram as histórias mais populares que circulavam entre os
portugueses.
Gil Vicente, autor português cuja obra tem sido classificada como de transição
entre o período medieval e o Renascimento, foi um dos escritores que mais se destacou na
adaptação dos temas populares para o teatro. A primeira obra teatral de Gil Vicente, o
Monólogo do Vaqueiro (Auto da Visitação), data de 1502 e foi representada pelo próprio
autor na câmara da rainha, quando do nascimento do príncipe D. João (coroado como D. João
III). A última, Floresta de Enganos, data do ano em que se supõe ter falecido o autor (1536).
Em termos de pensamento, Gil Vicente apresenta ora a defesa, ora a crítica da
mentalidade medieval de cruzada, denunciando por vezes a cobiça existente por trás do
espírito religioso. É, no entanto, um representante da concepção religiosa medieval ligada ao
sentido e valor da vida humana no mundo. Ao mesmo tempo, assume certas perspectivas
menos ortodoxas dos debates teológicos do século XVI, nomeadamente algumas tendências
próprias da ideologia da Reforma na sua crítica à corrupção da Igreja. O obra vicentina é,
acima de tudo, um texto de sátira: os personagens representam tipos humanos e sociais, uns
violentamente criticados (como o frade ou o escudeiro), e outros que denunciam as vítimas da
corrupção e do parasitismo de certas classes, como o camponês, o soldado, o sapateiro, o
judeu oportunista.
A sátira envolve todas as classes sociais: o clero, devasso e descuidado do
cumprimento dos seus deveres religiosos (Auto da Barca do Inferno, Farsa do Clérigo da
Beira e Barca da Glória); a nobreza (por exemplo, no Auto da Barca do Inferno); e o povo
(Auto da Feira). São ainda tipificados e criticados comportamentos como as dissensões
religiosas da Igreja (Auto da Feira, Sermão de Abrantes); a corrupção da Justiça (Juiz da
Beira, Auto da Barca do Inferno); a ambição desmedida que comandava os descobrimentos e
a corrupção social e moral que estes provocavam (Auto da Índia); o viver acima das
35
possibilidades econômicas (Farsa dos Almocreves); a exploração dos pequenos pelos grandes
(Auto da Barca da Glória); e tipos sociais ou profissionais como os escudeiros presunçosos
(Quem Tem Farelos?), os médicos incompetentes (Farsa dos Físicos), as alcoviteiras (Auto
da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório, Farsa de Inês Pereira), os criados
maldizentes (Auto da Índia, Quem Tem Farelos?) e o velho apaixonado (O Velho da Horta).
Gil Vicente retrata, pois, a sociedade portuguesa do seu tempo, com todos os seus vícios e
mazelas, num registo de valor incomensurável para o conhecimento da época.
As figuras femininas na sua obra mereceram um tratamento especial, o que lhe
valeu a simpatia de nobres e plebéias. Retratando os desejos das personagens, traça um retrato
da mulher do século XVI: suas angústias, contradições e questionamentos; seus anseios de
liberdade, igualdade e respeito; denúncia do jugo dos homens, da falsa vassalagem do amor
cortês, das retóricas enganadoras que terminavam depois da sedução.
A situação da mulher portuguesa da Idade Média não era diferente das suas
contemporâneas francesas ou espanholas. A vida social praticamente não existia, a não ser nos
saraus, bailes e valsas para uma minoria privilegiada. O deslocamento do lar para o espaço
público era mínimo e as donzelas portuguesas só saíam para irem às igrejas, e de véu sobre o
rosto para não serem vistas, e as esposas eram verdadeiras escravas do lar. Só era admissível
que mulheres casadas andassem nas ruas com o marido ou acompanhadas por várias damas e
escudeiros. Quando viúva, se se casasse novamente, era rejeitada por outras mulheres. Não
raro, as viúvas se retiravam para os mosteiros ou se enclausuravam em casa. Situação
semelhante era vivenciada pelas mulheres casadas cujos maridos estavam em terras distantes
participando de expedições marítimas; o comportamento que se esperava delas era o mesmo
das viúvas. Até hoje se vêem em Portugal mulheres vestidas de negro a indicarem que o
marido emigrou para o Brasil, África ou algum outro país da Europa. Credita-se aos costumes
dos mouros que permaneceram bastante tempo em terras portuguesas o legado de
36
preconceitos e restrições impostas às mulheres. As heroínas de Gil Vicente, como Sibila
Cassandra, Mofina Mendes, Isabel, Rubena, Cismena, Domicilia, Orina, Flérida, Juliana
Ilária, representando o universo feminino da época, criticam os costumes vigentes, traço,
aliás, que perpassa por toda sua obra.
Alguns dos autos foram editados em vida do autor, em folhetos de cordel, como as
peças Barca do Inferno, Maria Parda, Inês Pereira, História de Deus, Ressurreição de Cristo
e Festa.
A Literatura de Cordel no Brasil
Para o Brasil alguns folhetos vieram com os colonizadores e, possivelmente,
começaram a ser divulgados entre nós já no século XVI. Márcia Abreu, no livro Histórias de
cordéis e folhetos, esclarece que todo material impresso que atravessava o Atlântico dependia
de autorização, conforme registra o “Catálogo para exame dos livros para saírem do Reino
com destino ao Brasil”, conservado no Arquivo Nacional da torre do Tombo, em Portugal.
Esse catálogo continha pedidos para que livros fossem liberados pelo Reino, e destinava-se à
“Real Mesa Censória”, que conferia ou não a licença, de acordo com a natureza das obras.
Dentre os vários títulos de livros remetidos para o Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco,
Maranhão e Pará, encontravam-se muitos folhetos de cordel. Esses cordéis contavam as
histórias de Carlos Magno, Bertoldo, Bertoldinho e Cacasseno, da Princesa Magalona, de D.
Pedro, da Imperatriz Porcina, Donzela Teodora, Roberto do Diabo, Paixão de Cristo, D. Inês
de Castro, João de Calais, Santa Bárbara e Reinaldo de Montalvão. Note-se a variedade de
temas, que vão desde histórias de cavalaria e da família Real até a temática religiosa.
No Brasil, fatores de ordem social e também a adaptação mais estável do
português e do africano escravo no Nordeste contribuíram para que a região fosse o ambiente
ideal para o surgimento desse tipo de literatura popular. O folheto, como veículo de
37
comunicação literária, pôde ser catalogado em vários grupos. Ruth Terra
23
salienta que
embora não pretenda classificar o cordel considera a seguinte tipologia:
“os poemas publicados em folhetos entre 1904 e 1930, podem ser reunidos em três
grupos. O primeiro abrange os desafios que comumente compreendem marcos,
descrições geográficas e ABCs [...] O segundo grupo é constituído por romances e
histórias. Esta designação genérica encobre uma variedade de narrativas que abrange
desde Carlos Magno e os Doze Pares da França a contos maravilhosos. O terceiro
grupo, o mais numeroso, constituído pelos poemas de época, comporta pelo menos
dois agrupamentos. No primeiro estariam os poemas sobre movimentos sociais e
políticos, como cangaço e ‘salvações do Norte’, no segundo, os protestos [...] e as
críticas de costumes.”
Várias foram as tentativas de classificar a Literatura de Cordel. Orígenes
Lessa,
24
considera que a temática é muito variada e assinala que existem temas permanentes e
outros que passam, sem maiores repercussões na literatura popular. No primeiro caso, situa as
histórias tradicionais, cangaço, secas e enchentes, profecias, milagres, festas religiosas, Padre
Cícero, o sobrenatural; no segundo, inclui casos de época, crimes, eleições, sátira política e
social, crítica de costumes. Já Ariano Suassuna propõe uma classificação mais sintética:
poesia improvisada; poesia de composição, abrangendo os ciclos heróico, maravilhoso,
religioso e de moralidade, cômico, satírico e picaresco, de circunstância e histórico, de amor e
fidelidade. Quanto às formas, podem ser: romances, canções, pelejas e abecês.
Edilene Matos
25
sugere uma outra classificação: a poesia improvisada, que
abrange as cantorias dos repentistas; e a poesia de composição, que reúne os folhetos com
várias temáticas como de heróis/anti-heróis, de encantamento, religiosos, de exemplo, de
amor, críticos e satíricos, de circunstância, históricos, políticos, licenciosos, de animais,
picarescos, de lua/valentia e miscelânia.
Como instrumento informativo, o cordel contribuiu visivelmente para a
divulgação de acontecimentos históricos como Canudos, cangaço, seca; temas de
23
TERRA, Memória de lutas, p. 59.
24
LESSA, Literatura Popular em verso, p. 60.
25
MATOS, Cuíca de Santo Amaro, p. 56.
38
assombração, trancoso, humor, amor, adivinhas, gestas, provérbios etc, e posteriormente,
campanhas políticas e publicitárias, dentre outros.
Quanto ao aspecto formal, o poeta nordestino busca na tradição medieval dos
trovadores o estilo para sua poesia: as quadras, as décimas, as redondilhas, fazem parte do
repertório tanto escrito como cantado do poeta popular. Márcia Abreu
26
transcreve trechos
de um artigo do poeta Rodolfo Coelho Cavalcante, intitulado “Como fazer versos”, publicado
no Correio popular, de Campinas, agosto de 1982:
“Não adianta escrever poemas, trovas ou estrofes que não sejam em sextilhas,
setilhas, décimas, setessilábicas ou em decassílabos, e vir dizer que é Literatura de
Cordel. Muitos eruditos andam escrevendo opúsculos até em prosa dizendo ser
Literatura de Cordel.
Quando os versos são compostos em forma de narrativa, têm de ser em sextilhas.[...]
E assim o poeta vai continuando a sua narração até completar 8, 16 ou mesmo 32
páginas – as mais usadas. Em cada página cabem cinco estrofes [sendo em
sextilhas]. Na primeira, apenas quatro – para que o título da história, do folheto ou
do romance fique mais destacado, bem como o nome do autor.[...]
O tamanho do folheto não deve ultrapassar 11-16 centímetros. Quando maior ou
menor, perde sua característica de cordel.
Não adianta o poeta mostrar eruditismo sem colocar as palavras difíceis em seus
respectivos lugares. O cordel sempre foi um veículo de aceitação nos meios rurais e
nas camadas chamadas populares, porém precisa arte e técnica de quem escreve. Um
folheto mal rimado e desmetrificado é um dinheiro perdido de quem empresa a sua
edição. Existem folhetos que se tornam clássicos, quer pelo seu conteúdo, quer pela
sua versificação. Precisa também muito cuidado na colocação do título, que deve ser
rápido, sucinto e ter seu “ponto focal” de atração para os leitores.”
Ao tratar sobre as origens do cordel brasileiro, Arnaldo Saraiva esclarece:
Assim, não se sabe ainda ao certo quando, como e onde nasceu a literatura de
cordel brasileira. O que aliás não admira, já que, como é óbvio, essa literatura só
poderia ter nascido a partir de modelos da literatura de cordel portuguesa, ainda
quando estes também já imitassem modelos de origem espanhola, francesa ou
italiana, e em tempos e cenários favoráveis à sua circulação ou recepção.”
27
Tanto a literatura popular em versos (escrita), mas também os versos orais típicos
dos violeiros, repentistas , cantadores de desafios ou pelejas – outra forma de poesia popular
que herdamos da tradição ibérica – têm suas fontes mais remotas, recuadas no tempo. Elas
estão na Alemanha, nos séculos XV e XVI, como estiveram na Holanda, Espanha, França e
Inglaterra do século XVII. No Brasil, somente com o aparecimento das pequenas tipografias
26
ABREU. Histórias de cordéis e folhetos, p. 110.
27
SARAIVA. O início da literatura de cordel brasileira, p. 127.
39
avulsas, espalhadas por várias cidades interioranas e capitais nordestinas, o que só ocorreu a
partir dos fins do século XIX, é que se pode falar de um cordel brasileiro.
Aproveitando-se das formas tradicionais herdadas do cancioneiro ibérico, o poeta
popular adapta ao contexto regional os temas medievais; assim é possível encontrar em
cordel, canções de gesta, romances, contos maravilhosos, originados das mais diversas regiões
do mundo. As estórias de animais, merecedoras de interesse popular, têm como raiz os
Bestiários Medievais.
O bestiário medieval e a literatura de cordel brasileira
Maurice van Woensel, informa que o termo bestiaire apareceu no começo do
século XII, na França, expandindo-se logo em seguida para outros países do Norte da Europa.
Designavam-se bestiários as obras redigidas em prosa ou verso que continham descrição de
certos animais, reais ou legendários, visando a um ensinamento religioso e moral. Modalidade
literária popular na Idade Média, os bestiários eram manuais de história natural e de doutrina
cristã, em cuja veracidade o homem medieval acreditava como se fossem os atuais tratados
científicos. A inspiração inicial para a construção dos bestiários medievais foi a Antiguidade
Clássica greco-latina, com a compilação alexandrina, de autor anônimo, surgida no século II,
chamada Physiologus (Naturalista), que consistia em um repertório de animais, de plantas e de
pedras utilizadas como suportes simbólicos de uma educação doutrinária e de preceitos
morais. Esse texto grego foi traduzido em diversas línguas orientais e em latim, entre os
séculos V e IX. Dez séculos depois é que se teve a primeira tradução do Physiologus, em
língua vulgar, produzida pelo poeta inglês-normando Philippe de Thaon. Seu Bestiaire,
escrito por volta de 1125, em francês, é o mais antigo de que se tem conhecimento. Ele é
composto por 3194 versos de seis sílabas e dividido em 38 capítulos, sendo os 22 primeiros
dedicados a Deus e aos animais terrestres, os 11 seguintes ao homem e às aves, e os últimos
40
ao diabo e aos minerais. Entre 1210 e 1218, aparecia a versão em prosa de Pierre de Beauvais,
que, dentre os diversos bestiários em francês, foi a mais próxima do original.
Na metade do século XII, o bestário tomou outro caminho com o poeta Richar de
Fournival, que introduziu uma renovação nas regras de funcionamento do simbolismo animal,
criando Le Bestiaire d’amour (O bestiário de amor) em prosa, e depois em verso. O poeta
utiliza o mesmo sistema de relações simbólicas encontradas no bestiário divino, mas numa
perspectiva profana, em que os animais representam a natureza do amor e as estratégias da
conquista amorosa do amante e sua dama. A tradição do simbolismo animal apareceu também
em outras obras da Idade Média, como por exemplo Le Roman de Renart, uma coleção de
pequenos poemas independentes, de autores diferentes, que se agruparam em torno de um
tema central: a luta da raposa (Renart) com o lobo (Ysegrin). Os poemas, escritos em
octossílabos rimados, são geralmente paródias das canções de gesta que exaltavam a
sociedade cavalheiresca. Eles são chamados, na maioria das vezes, de “a epopéia animal do
século XII”. Nessa obra, o mundo dos animais é organizado à imagem da sociedade francesa
da época, onde cada tipo encontra-se representado por um animal dotado de um nome próprio
e de uma função social determinada, de acordo com as características do animal. Esse
bestiário constitui-se em uma obra essencialmente satírica. Dependendo dos episódios, a sátira
pode tomar uma forma leve, o que acontece nos poemas mais antigos, ou tornar-se uma crítica
acirrada dos vícios sociais, como nas obras do século XII e XIV, período em que se torna um
gênero alegórico e atacam principalmente a hipocrisia religiosa e o poder do dinheiro.
Ainda no século XIII, o poeta Guillaume le Clerc, da Normandia fez uma
adaptação, em versos, do bestiário de Pierre de Beauvais. Seu bestiário diferencia-se um
pouco dos outros, pelo caráter não só moralista, mas também impregnado de um profundo
sentimento religioso, razão por que é chamado de Le Bestiaire divin (O bestiário divino).
41
Os bestiários medievais foram utilizados como instrumentos pedagógicos para a
educação religiosa e cristã. O caráter didático se expressa pela redundância temática, pela
repetição obstinada dos mesmos termos e conselhos, e pelas metáforas geralmente explícitas.
No século XX, a tradição medieval foi retomada pelo poeta francês Guilaume
Apollinaire, com Le Bestiaire ou Cortèje d’Orphée (O bestiário ou cortejo de Orfeu) que foi
ilustrado pelo pintor Raoul Dufy. A idéia de fazer um bestiário ilustrado partiu de seus
contatos com Picasso, que, em 1906, trabalhava com xilogravura de animais. A obra, editada
em 1911, segue os modelos da Idade Média e apresenta Orfeu, que na mitologia grega tinha o
poder de encantar homens e animais, como condutor e introdutor de um cortejo, uma
procissão de bichos que seguem alegremente o som da lira mágica do mestre da música. O
cortejo é composto de 30 animais, divididos em quatro categorias: doze animais que vivem
em terra firme, cinco que vivem na água, seis insetos, sete animais voadores. Para cada
animal, vê-se a descrição, pictórica e poética, da qual decorre uma lição, uma aplicação
didática ou de outro tipo. A lição contida em cada quadro pode ser profunda ou trivial,
anedótica ou psicológica. Os textos são poemas em quadras de octossílabos e às vezes o poeta
recorre à rima toante, uma das marcas típicas da poesia medieval.
A Literatura de cordel tem nas estórias de animais uma das suas mais fecundas
fontes de inspiração. Velhas narrativas, em contos maravilhosos ou em novelas tradicionais,
consagram o papel dos animais. O boi, o cavalo, a cabra, o bode, o gato e o cachorro, fazem
parte do universo imaginário dos cordelistas, e quase sempre as aventuras que os envolvem
resultam em ensinamentos de cunho moral e religioso ou da antinomia do bem e do mal.
O pesquisador Maurice Van Woensel
28
, descreve como o “jogo do bicho” –
loteria idealizada pelo Barão de Drummond, em benefício do Jardim Zoológico do Rio de
Janeiro – foi inspiração para o Poeta Garimpeiro, pseudônimo do cordelista baiano Antonio
28
WOENSEL.Simbolismo animal medieval, p. 184.
42
Teodoro dos Santos, escrever o folheto A B C do jogo do bicho. Recorrendo à tradicional
sextilha, versa sobre o funcionamento do jogo do bicho, destacando a ilusória possibilidade de
ganhar dinheiro e alertando para o vício dos jogadores. O folheto contém 102 estrofes; uma de
introdução, uma de conclusão e quatro estrofes dedicadas a cada um dos 25 bichos, em ordem
alfabética, desde o avestruz até a vaca.
29
No estilo dos bestiários, há primeiro a descrição do animal em questão para logo
em seguida tirar dali a moral da estória, invariavelmente uma denúncia do vício do jogo. O
cordelista também resgata uma outra tradição literária medieval: a dos poemas abecedários,
nos quais cada estrofe começa com uma das letras do alfabeto. No caso deste A B C do jogo
do bicho, cada um dos 25 grupos de quatro estrofes começa com uma letra do alfabeto,
independente da letra inicial do nome dos bichos. O poeta esclarece que, no sorteio do jogo, a
cada bicho correspondem quatro números: assim ao bicho de número 01 – avestruz –
correspondem os números de 01 até 04; ao segundo bicho – a águia – de 05 a 08, e assim por
diante:
Grupo 1 : Avestruz é grande ave...
Grupo 2 : Bonita águia das nuvens...
Grupo 3 : Como aqui trato dos bichos/Não posso esquecer do Burro
Grupo 4 : Devemos agora ouvir/ o que é a Borboleta...
Estrofe sobre a borboleta:
Devemos agora ouvir
O que é a borboleta
Uma lagarta vestida
Vive a fazer pirueta
Já deixou um jogador
Mendigando na muleta.
O macaco, número 17 do jogo do bicho, é descrito assim:
Quero agora descrever
Algo sobre o dezessete
O macaco já foi gente
Antes da terra – no ano sete,
Por isso é tão trapaceiro
Só no perigo nos mete.
29
A zebra não faz parte da descrição dos animais no cordel A B C do jogo do bicho.
43
Com a vaca, fecha as estrofes alertando para o perigo que corre o jogador do bicho:
Vaca é grupo vinte e cinco
E quatro vacas é cem
Tudo dela se aproveita
Pois tudo serve de bem
Porém a vaca do bicho
Faz do homem João Ninguém
.
O bode e a cabra são dois animais que aparecem com frequência na produção dos
folhetos de cordel. No Grande Livro dos Símbolos
30
, virilidade, potência, luxúria, astúcia e
destrutividade são qualidades atribuídas ao bode; à cabra são atribuídas a fecundidade e
cuidado da nutrição. O bode era a montaria do deus védico Agni, puxava a carruagem de Thor
e estava estreitamente ligado a Dionísio, além de fornecer muitas das características físicas de
Pã e dos sátiros.
A cabra Amaltéia era a ama-de-leite venerada do deus grego Zeus, seu chifre, a
cornucópia da abundância. Nos bestiários, faz-se a distinção entre o casal de cabra e bode
domésticos e os homônimos selvagens: é o bode selvagem que é tido como paradigma da
lascívia. Se à natureza da cabra doméstica só correspondiam virtudes, o bode selvagem é
diretamente associado a significações depreciativas, como a de bode-expiatório, culpado de
todas as faltas dos homens.
A cabra é um dos primeiros animais que o homem domesticou para utilizar seu
leite, sua carne e aproveitar seu couro. No Nordeste, a cabra é chamada de “vaca do pobre” e
se não é uma heroína de contos, várias expressões usadas na linguagem corrente estão ligadas
a ela. Cabra é um mestiço, cangaceiro ou bandido; é também uma mulher de mau caráter que
grita muito, ou de costumes libertinos. A expressão cabra-macho, paradoxalmente, tem uma
conotação positiva. Já o bode é lembrado como a imagem do diabo, a tal ponto que este,
tradicionalmente, é representado com chifres, barba e patas do animal. Vários folhetos de
cordel foram escritos tendo como tema maldições que transformam pessoas em bode ou
30
TRESIDDER. Grande livro dos símbolos, p. 51.
44
cabra. A exemplo dos bestiários medievais, as narrativas têm um objetivo moral, mostrando a
metamorfose de humanos em animais ou vice-versa, como exemplo maior de punição ou
como redenção dos pecados.
O Nordeste foi durante muito tempo uma região em que a pecuária se revestiu de
grande importância. O gado era o fundamento do Brasil Colonial, e o curral, foi a base de
muitas cidades. O rebanho bovino representava a riqueza, o prestígio social e o poder político
do proprietário. Assim, o principal entretenimento desta região pastoril era a vaquejada:
reuniam-se animais e pessoas numa atmosfera de festa e se organizavam rodeios em que o
vaqueiro derrubava os animais, numa exibição de força e destreza. Era também o momento
dos negócios, da divisão do gado, criado em conjunto, entre diferentes proprietários. Para
animar a festa, os cantadores exaltavam as façanhas do vaqueiro e seu cavalo, e seus
adversários: o touro e a onça. Inúmeros folhetos contam episódios meio reais, meio
imaginários da vida dos vaqueiros, com detalhes sobre o seu equipamento, as qualidades dos
cavalos, as reações dos animais, as perseguições e suas peripécias, e, sobretudo, o amor das
mulheres. São aventuras maravilhosas de vaqueiros valorosos, recompensados pelo amor,
presentes na linha de torneios da Idade média. O boi é o grande herói de uma série imensa de
folhetos, em que aparece como livre, altivo, recusando a escravidão que lhe impõe o homem e
por essa razão o desafia. Nas narrativas que tratam de lendas do bovino, figura a do boi
Belchior, que muitas vezes seduziu os holandeses, durante seu período de dominação no
Nordeste. O Rabicho da Geralda, de autor desconhecido, um dos folhetos mais significativos
na temática do boi, é fonte de vários outros romances. Narra uma seca, possivelmente a de
1777, segundo registro de alguns historiadores, uma das mais dramáticas de que se tem
notícia. A presença do boi como herói errante traduz uma verdadeira prosopopéia em que o
boi relata suas aventuras, perdido no mato, e nenhum vaqueiro consegue prendê-lo; depois de
várias façanhas e toda sorte de artifícios, o boi é finalmente apanhado pelo vaqueiro menos
45
significativo da região. Em 1874, José de Alencar divulga uma versão clássica do folheto,
resultante da fusão de quatro versões populares.
O Boi Misterioso, um dos mais famosos folhetos de Leandro Gomes de Barros, é
um arquétipo da vida e da mentalidade do sertão. Trata-se de uma obra de estrutura complexa,
onde se misturam elementos de lendas antigas e modernas, européias e indígenas, cuja
interpretação é, muitas vezes, de difícil entendimento. O boi possui uma força e uma rapidez
assombrosas e mantém contato com o sobrenatural: quando desaparece, sente-se um forte
cheiro de enxofre. Um vaqueiro, partindo uma noite para caçar onça, viu duas mulheres,
jovens e bonitas, acompanhadas de um boi negro que falava. O cordelista Leandro leva ao
público situações em que o sobrenatural presente no animal que fala, interliga as relações com
o humano, no caso, as mulheres. Para o sertanejo, de tendência animista, é muitas vezes difícil
de situar as fronteiras entre os mundos humano e animal, natural e sobrenatural. As
manifestações do além, divino ou demoníaco, são aceitas como fatos irrefutáveis.
O boi, a cabra, o bode, o gato, o cachorro, os pássaros, os peixes, feras pequenas e
grandes, os insetos, os répteis, fazem parte do universo em que vive o homem do povo.
Bestas, dragões, animais monstruosos ou encantados, o diabo, um sem número de
metamorfoses, aparecem na literatura de cordel como resultado das relações do homem com a
natureza que o alimenta e da qual dependem inteiramente. A natureza é considerada a própria
manifestação da Providência Divina. É muitas vezes punitiva e leva os homens a repensar
seus valores.
O cordel é espaço privilegiado para o sertanejo exprimir suas crenças, sua fé
integral. Muitos folhetos se baseiam num sentimento religioso; aparecem Deus, Nossa
Senhora, Jesus e os santos, de Roma ou de Juazeiro. Satanás também é onipresente, em
oposição ao Divino. A tudo isso misturam-se superstições, feitiçarias e crendices latentes no
imaginário popular. Os animais intercambiam essas crenças, ora metamorfoseados, ora como
46
agentes da fantasia, da prosa e do verso. Contudo, o desfecho é moral e reconfortante, já que a
fé, a virtude e os bons hábitos são sempre recompensados.
A literatura popular brasileira revela talentos surpreendentes do povo e faz com
que os autores consigam criar infinitas variações dos mesmos temas de base. O imaginário do
autor age de forma a apagar a tênue linha do real e do irreal que é representado pela fantasia.
Sobre o assunto, afirma Edilene Matos:
“Na poética popular, o momento da composição, isto é, o pensamento articulado em
linguagem, preserva aquele da concepção, mesmo que isto não se dê em termos
absolutos. Ao dar forma ao pensamento, o poeta materializa o imaginário,
conferindo-lhe o estatuto da realidade, ao tempo em que abstratiza o real concreto,
daí porque, do ponto de vista da literatura, a dicotomia real/irreal deixa de existir.”
31
Misturando o real e o fantástico, conseguem realizar, muitas vezes
inconscientemente, uma leitura palimpsêstica da Bíblia, das fabulas e dos bestiários da Idade
Média, modernizando-os e adaptando-os ao contexto em que vivem. As manifestações na
arte, nas danças, nas cerimônias, nas canções, na poesia, não são simples distrações, mas
representam necessidades, desejos e anseios de um povo.
31
MATOS. O imaginário na literatura de cordel, p.23.
MULHER, LITERATURA E CORDEL NO BRASIL
De corrente masculina
A mulher se libertou
Seu espaço na política
Brigou, lutou, conquistou
Nos prestando uma homenagem
Com muito orgulho hoje estou
Mais parece uma leoa
Seu instinto de guerreira
Defendendo seus direitos
Sempre forte e verdadeira
Escrita somos humanas
Traz nas mãos uma bandeira
Temos Raquel de Queiroz
Orgulho do nordestino
Nome vivo em Quixadá
Também vítima do destino
Mesmo a seca castigando
É um orgulho feminino
Tem a brava sertaneja
Que é forte por natureza
Enfrenta qualquer jornada
Mulher de rica nobreza
Dispensa o brilho do luxo
Honrando o dom da pureza.
48
A visão dos viajantes
Era percebível aos viajantes europeus no Brasil, no século XVII, a condição de
subordinação da mulher brasileira, numa sociedade patriarcal colonial, em que se evidencia o
silêncio e a reclusão feminina. Os ideais burgueses, responsáveis pela organização familiar e
pelo papel atribuído à mulher nas famílias brasileiras, consistiam "no marido autoritário,
cercado de concubinas escravas, que dominava os filhos e sua mulher submissa. Esta se
tornava uma criatura passiva e indolente, que vivia enclausurada em casa, gerava inúmeras
crianças e abusava dos escravos.”
32
Dos tempos coloniais até o início do século XX, as
mulheres brasileiras praticamente não eram vistas em público. Sua vida social restringia-se ao
âmbito familiar e, quando saíam, era para ir a alguma reunião de família, em celebrações
como casamentos, batizados, aniversários. Quando casada era considerada, por lei, uma
incapacitada. Sem a autorização do marido, ela não podia exercer uma profissão, aceitar ou
recusar uma herança, nem sair desacompanhada, a menos que fosse para fazer compras
necessárias ao consumo do lar. Nas classes sociais mais elevadas, a mulher podia participar de
reuniões ou saraus, em que acontecia a leitura em voz alta dos romances e a declamação de
poesias, contribuindo para formação de leitoras e, em raríssimas vezes, para expressão da
autoria feminina. Já na vida rural ou nas classes econômicas menos privilegiadas, a vida
feminina era ainda mais reclusa; segregada de quaisquer funções públicas, a mulher era
obrigada a obedecer a seus maridos, não podia comercializar os produtos da lavoura nos
mercados locais, nem sair sozinha. Ademais era proibida às mulheres uma educação formal e
na sua maioria eram analfabetas. O mercador britânico John Luccock registrou, em 1808, que
segundo os costumes brasileiros, a leitura das mulheres “não devia ir além dos livros de
orações, porque seria inútil à mulher, nem deveriam elas escrever, pois, como foi justamente
32
HAHNER. Emancipação do sexo feminino, p. 38.
49
observado, poderiam fazer um mau uso desta arte
33
. A educação das mulheres era
direcionadas para as funções domésticas como registra June Hahner:
“Não seria por muito tempo que visitantes estrangeiros, como o francês Charles
Expilly fez em suas observações, iriam poder aplicar às moças de classe alta
brasileira o provérbio português ‘ uma mulher é suficientemente educada quando
pode ler com propriedade seu livro de orações e sabe como escrever a receita de
geléia de goiaba; mais do que isso põe o lar em perigo”.
34
É ainda mais contundente as anotações do viajante Agassiz, em 1865, em que
reitera o quadro de reclusão da mulher brasileira:
Não há uma só mulher brasileira que, tendo refletido um pouco sobre o assunto, não
se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimento. Não podem
transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar
escândalo. A educação que lhes dão, limitada a um conhecimento sofrível de francês
e música, deixa-as na ignorância de uma multidão de questões gerais; o mundo dos
livros lhes está fechado, pois é reduzido o número de obras portuguesas que lhes
permitem ler, e menor ainda o das obras a seu alcance escritas em outras línguas.
Pouca coisa sabem da história do seu país, quase nada de outras nações, e nem
parecem suspeitar que possa haver outro credo religioso além daquele que domina
no Brasil [...] Em suma, além do círculo estreito da existência doméstica, nada existe
para elas.” (AGASSIZ apud LEITE,1984 p.74).
Diante de um quadro de segregação de quaisquer funções públicas, e com uma
educação concentrada na preparação para o seu destino de esposa e mãe era de se esperar que,
para os viajantes, a figura feminina fosse quase invisível, e as manifestações artísticas e
literárias femininas ficassem reservadas ao âmbito doméstico e sem destaques históricos.
Representatividade literária feminina no Brasil
Nos registros literários, pouco se sabe sobre os anseios, medos, angústias
femininas, pois eram, em grande contigente, analfabetas e tinham, no seu dia-a-dia de
trabalho, de lutar pela sobrevivência. Na literatura em geral, quando registrada, a autoria
feminina estava associada ao território doméstico e às temáticas do cotidiano, sob uma
estética intimista e confessional. E por tratar de trivialidades, amenidades e coisas menos
sérias, foi considerada de menor importância.
33
LUCCOCK.Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, p. 111
34
HAHNER. Emancipação do sexo feminino,p. 57.
50
Nádia Battella Gotlib
35
, no artigo “A literatura feita por mulheres no Brasil”,
descreve a situação literária no País, no século XIX:
“... os textos feitos por mulheres, se existiram, devem ter circulado oralmente: se
assim foi, encontram-se na tradição da poesia e cantos populares, território de
cultura que merece ainda cuidadosa investigação. Outros textos por elas escritos
fariam parte de um contexto de cultura bem específico: o espaço doméstico
registrado nos livros de receitas, diários, cartas, simples anotações, orações,
pensamentos, lista de deveres e obrigações, que também, efêmeros, quase na sua
grande maioria, desapareceram
.”
Algumas exceções despontam no cenário literário da época, como por exemplo, os
textos escritos por Nísia Floresta Brasileira Augusta, nascida no Rio Grande do Norte, em
1810. O início de sua militância política e jornalística acontece no Recife, onde escreve a
favor da libertação dos escravos e da luta pelos direitos da mulher. No início de 1850, já na
França, e freqüentando os cursos dos positivistas, inclusive de Auguste Comte, fundamenta
mais ainda as suas teorias revolucionárias sobre o papel da mulher na sociedade da época.
Volta ao Brasil em 1852 e, no ano seguinte, publica artigos sobre educação feminina, o
Opúsculo Humanitário, no Rio de Janeiro. Nele apresenta propostas avançadas para a época,
como a educação estendida a todas as mulheres, incluindo aí as pobres, como meio de livrá-
las da miséria, proclamando a necessidade de que todas sejam bem educadas em suas
respectivas situações. Nádia Gotlib assim resume a sua obra:
“A obra de Nísia Floresta, de variado assunto e gênero, mostra sensibilidade e
lucidez ao abordar não só a beleza da terra brasileira e de tantos países europeus,
mas a rebeldia do índio, a educação da mulher e a luta pelos seus direitos, mantendo
um fio de coerência intelectual e demarcando, assim, um território preciso e seu, no
espaço de construção da mulher brasileira a caminho da sua emancipação
cultural.”
36
Mais tarde, uma maranhense, Maria Firmina dos Reis, publica, em 1859, o
romance Úrsula, que, mesmo seguindo o padrão romântico, de amor, incesto e morte, anuncia
uma nova postura da mulher diante de problemas sociais. Considerada por alguns autores
35
GOTLIB.A literatura feita por mulheres no Brasil, p. 29.
36
GOTLIB.A literatura feita por mulheres no Brasil, p. 32.
51
como uma das nossas primeiras romancistas
37
, era professora primária, poetisa, jornalista, no
estado do Maranhão, onde nasceu no dia 11 de outubro de 1825. À época de seu nascimento e
de sua posterior atividade literária, o estado do Maranhão era um celeiro de homens ilustres e
de intelectuais, e sua capital, São Luís, era chamada de Atenas Brasileira. Ambientada neste
cenário, Maria Firmina, embora detivesse um grande cabedal de conhecimentos e defendesse
um ideal revolucionário, tinha contra ela alguns traços que a condenavam: era pobre, mestiça
e mulher.
No prólogo do livro Úrsula, publicado sob o pseudônimo de Uma maranhense,
Maria Firmina pede a complacência do leitor para aquilo que ela considera “um filho”, uma
“pobre avezinha silvestre”. Consciente do preconceito que enfrentaria e como estratégia para
se fazer aceitar, ela se declara humilde e pouca talentosa, afirmando que seu livro será
recebido com indiferença ou com zombaria. Mesmo assim ela o entrega ao público:
Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o
indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume.
Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor. Sei
que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de
educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, que
aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas
conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase
nulo
.
Embora não coloque seu nome na capa, numa atitude revolucionária, como o é
todo o texto para sua época, faz questão de se identificar como mulher.
O romance Úrsula é um típico produto da época, narrativa romântica folhetinesca,
com seus personagens apaixonados e sofredores, amores infelizes, seu final trágico. Dentro
desse contexto, a autora insere as questões que se colocavam ao país, no momento de pós-
independência, em que urgia a construção de uma nação brasileira.
37
Teresa Margarida da Silva e Orta, nascida em São Paulo em 1711, mudou-se em 1716 com a família, para
Portugal, onde morreu em 1793. Escreveu, com o pseudônimo de Dorotéia Engrássia Tavareda Dalmira, o livro
Máximas de virtude e Formosura, posteriormente denominado de Aventuras de Diófanes; conhecido a partir de
1752, é considerado por alguns como o primeiro romance brasileiro.
52
Amélia de Freitas, nascida no Piauí em 1861, foi a redatora de uma revista
literária exclusivamente feminina, O Lyrio, em Recife, nos anos 1902-1904. Para a revista
escreviam somente mulheres, como Cândida Duarte Barros, Maria Augusta Meira de
Vasconcelos Freire e Lúcia Ramalho. Amélia de Freitas Bevilaqua certamente pode ser
definida como uma mulher de vanguarda, influenciando a criação do Jornal Borboleta em
Teresina – PI. Ousou muito mais, sendo a primeira mulher a se candidatar à Academia
Brasileira de Letras, em 1930, mas não foi aceita porque a maioria dos acadêmicos decidiu
que, ao se referir a brasileiros, o estatuto da entidade não contemplava as mulheres. Na década
de 1920, Amélia de Freitas já era um nome reconhecido por críticos como Sílvio Romero e
Araripe Júnior, tendo várias obras publicadas pela Bernard de Fréres, importante editora da
época. Era casada com o renomado jurista Clóvis Bevilaqua e à frente da Academia Piauiense
de Letras estavam seus familiares, o que facilitou seu ingresso na mencionada entidade,
contudo sem reduzir-lhe o mérito. É presumível que a projeção literária alcançada por Amélia
de Freitas Bevilaqua tenha influenciado outras mulheres, especialmente as que viviam no
Piauí, a publicar seus escritos.
Na Bahia, Inês Sabino (1835-1911), poetisa, contista, romancista, biógrafa e
memorialista, foi uma das mulheres mais atuantes no mundo das letras e da nossa história
cultural. Autora de Mulheres Ilustres do Brasil, livro sobre mulheres destacadas pelo civismo
ou pela participação literária, repete a ideologia da sociedade patriarcal, sendo considerada
pela crítica como uma escritora com visão masculina. Esta publicação revela um primeiro
esforço, como afirma a autora, para tirar as mulheres da “barbárie do esquecimento”, projeto
que será recorrente e mesmo sintomático na historiografia e na crítica literária feminina em
geral. O trabalho de Inês Sabino comprova como bem cedo as autoras perceberam no gênero
para-pedagógico da historiografia um terreno promissor para a escrita de suas histórias e
experiências. Em certos casos, esta prática foi ainda sentida como um campo possível para a
53
articulação de um discurso, muitas vezes radical, sobre a mulher, no momento em que eram
debatidas questões altamente controvertidas como o destino da educação feminina, os novos
papéis da mulher na sociedade e a possibilidade efetiva de sua entrada na vida pública. Outra
baiana, a poetisa Adélia Fonseca (1827-1920), foi elogiada por Machado de Assis e agraciada
com um poema escrito por Gonçalves Dias. Destacou-se como sonetista de alta qualidade
formal e sensibilidade original, levando Machado a tentar diferenciar, a partir de sua obra,
textos escritos por homens e por mulheres. Versos como “Amar é verbo de mistério
infindo;/amarga taça que tem mel no fundo;/martírio que se sofre, às vezes rindo” também a
associam claramente a Camões.
Raquel de Queiroz, cearense, publica em 1930, com uma tiragem de mil
exemplares, O Quinze, romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática
exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca. Diante da reação reticente dos
críticos cearenses, a autora enviou o livro para o Rio de Janeiro e São Paulo, sendo elogiada
por Augusto Frederico Schmidt e Mário de Andrade. O livro logo transformaria Rachel numa
personalidade literária. Em 1977, realiza o sonho da piauiense Amélia de Freitas, sendo a
primeira mulher a pertencer à Academia Brasileira de Letras.
Na Paraíba, como em todo o Nordeste e, afinal, no País, a literatura feminina
somente começa a ser visível no início do século XX, como esclarece Zahidé Muzart: “Ainda
que singulares e produtivas, nossas escritoras de antes, sobretudo as do século XIX, foram
sistematicamente excluídas do cânone literário, que é, claro, forjado unicamente pela crítica e
pela historiografia masculinas”.
38
Embora os livros de História da Paraíba não citem a
presença e participação das mulheres no contexto dos anos vinte, e, ainda hoje desconhecidas,
as mulheres na Paraíba foram presença constante, principalmente nos jornais, publicando
crônicas, poesias, contos. É o caso, por exemplo, de Anayde Beiriz, poeta, escritora, nascida
38
MUZART, Escritoras brasileiras do sec.XIX, p. 18.
54
em 18 de fevereiro de 1905, em João Pessoa. Estudou na escola Normal Oficial do Estado,
onde recebeu seu diploma de professora em 1922. Lecionou em uma colônia de pescadores,
em Cabedelo, durante o dia ensinava as crianças e à noite, aos adultos. Aos 20 anos, ganhou o
concurso de beleza promovido pelo Correio da Manhã, como a mais bela paraibana em 1925.
Em 1927, habilitou-se em datilografia, na Escola Remington, na primeira turma mista da
conceituada Escola. Escreveu várias poesias, que foram publicadas na revista Era Nova. Foi
noiva do bacharel João Dantas, político influente na Paraíba. Faleceu no dia 22 de outubro de
1930 sendo enterrada como mendiga no Cemitério Santo Amaro. Seu resgate se deu 50 anos
depois, pelo historiador José Joffily.
Vários estudos vêm sendo desenvolvidos no sentido de dar visibilidade à autoria
feminina no Brasil, notadamente a escritoras e poetas do Século XIX. Faz-se necessário que a
historiografia seja atualizada, reconstituindo a história da mulher na literatura brasileira.
A Literatura de Cordel e a autoria feminina
E na Literatura de Cordel, onde encontrar as autoras? Na minha busca por
mulheres cordelistas encontrei um artigo do pesquisador Joseph Luyten, em que é registrado
um desafio entre uma jovem do povo e um cantador famoso:
“Segundo as crônicas da época, quando Pedro I soltou o célebre grito do Ipiranga, os
primeiros vivas de contentamento partiram de caboclos lavradores que formavam
um núcleo nas redondezas do local hoje histórico. Entre esses caboclos existiam
numerosos cantadores e famosos violeiros. Dentre os cantadores, porém, destacava-
se uma mulher – a Maria Riachão. Cabocla jovem e bonita, no entanto, era melhor
cantadora do que os seus cortejadores. Além de possuir uma voz bem timbrada,
rimava com espantosa facilidade. Daí, ela dizer a todo momento que seu coração
pertenceria àquele que conseguisse vencê-la num desafio. Inúmeros pretendentes
tentaram a vitória, mas, inutilmente. Maria do Riachão era infernal...”
39
Luyten esclarece que, embora difícil de comprovar a autenticidade dessa
informação, Maria do Riachão pode ser considerada uma demonstração da existência, no
século XIX, de cantadores do sexo feminino.
39
LUYTEN.Feminino versus machismo: autoras mulheres na literatura de cordel, p.146.
55
June Hahner
40
, registra, no Nordeste, a presença de uma conhecida cantadora e
poetisa, Rita Medêro, que era muito solicitada para as festividades locais e ficou famosa tanto
pela sua música como pelo seu estilo “boêmio” – principalmente pela capacidade de ingerir
bebida alcoólica – causando verdadeira revolução no mundo masculino da poesia popular,
também no século XIX.
Leonardo Motta, em sua obra Cantadores
41
assim descreve a obra e a figura da
poetisa:
“Ouvi, por vezes, em pontos diversos da zona noroeste cearense, os versos da Rita
Medêro, cantados na toada saracoteada dos batuques, de que ainda há memória
vivíssima entre os negros. Esses versos constituem uma cantiga amorfa, cheia de
incongruências de pensar. É, entretanto, muito popularizada e a vivacidade da
música realiza o milagre de não tornar fastidiosa a sua audição. Dela se fizeram
paródias obscenas que um ou outro cantador boêmio repete só para homens... Das
numerosas estrofes cantadas por Anselmo Vieira anotei as que se seguem:
Sá Rita Medêro
É muié de calaça,
Só não caso com ela
Devido à cachaça;
Ela pega queda de corpo,
Derruba touro de raça...
Pelo batido da pedra
Eu pego pela fumaça,
Gosto de festa e batuque,
Sou cabôco de relaxo,
E quem cuidá que sou fême
Se engana porque eu sou macho...”
Embora tenham sido reconhecidas como donas de grande inspiração, não se tem
notícia de que editaram algum folheto.
A forma de distribuição dos folhetos talvez seja uma das razões para a ausência
das mulheres no cordel. No início do século XX até os anos 50, época áurea da literatura de
cordel, o processo editorial dos folhetos encontrava-se em grande efervescência, com tiragens
expressivas, algumas em torno de dez mil exemplares, dependendo da aceitação popular.
Esses folhetos eram distribuídos em todo o Nordeste e havia uma rede bem estruturada para
comercializá-los. Os poetas tinham representantes fixos nas principais cidades como Recife,
Salvador, Fortaleza, Manaus, São Luís, garantindo a difusão das produções. No entanto, para
40
HAHNER. A mulher no Brasil, p.111.
41
MOTTA. Cantadores, p. 218.
56
divulgação e conhecimento de seu nome, tinha mais força a presença e a performance do
cordelista, que nas feiras, nas festas de padroeiros e acontecimentos importantes lia ou
declamava em voz alta os versos até o momento em que teria de parar para aguçar a
curiosidade e levar os ouvintes a adquirir os folhetos. Um dos grandes cordelistas brasileiros,
Rodolfo Cavalcante, em entrevista concedida à pesquisadora Martine Kunz, em fevereiro de
1980, conta como era feita a vendagem dos cordéis:
“Antigamente o trovador de cordel vivia exclusivamente dos seus livros, ele ia Ter
contatos com o público, ele ia pra feiras, cantava. Eu, por exemplo, transmitia a
minha mensagem lendo os meus folhetos, fazia graça, assumia o papel do
personagem no folheto, se chorasse, eu chorava; se gritasse, eu gritava. Tinha outros
que cantavam. Hoje, o mercado não é como era. Hoje, nós vendemos mas sem ler,
sem cantar os nossos folhetos. E olhe que o povo do interior só compra o folheto
depois que a gente canta ou lê em voz alta para a assistência..”
42
Zumthor, no livro A Letra e a Voz, observa que “quando um poeta ou seu
intérprete canta ou recita (seja o texto improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só, lhe
confere autoridade. O prestígio da tradição, certamente, contribui para valorizá-lo, mas o que
o integra nessa tradição é a ação da voz.”(p.19) Nas práticas culturais de origem popular a
presença física e simultânea de quem diz e quem escuta e a voz do intérprete adquirem papéis
fundamentais na transmissão oral de uma literatura impressa para um público analfabeto.
Dessa forma, o folheto funciona como suporte de textos captados na tradição popular e o
poeta torna-se elo de uma memória compartilhada. permitindo a constante reformulação e a
atualização dos fatos narrados.
O sucesso editorial dependia, em parte, da aceitação pública na adaptação da
estória, e em parte à rede de distribuição. Os vendedores iam às tipografias, compravam sacos
de folhetos, viajavam de trem ou animais para as mais diversas localidades nordestinas. A
venda dos folhetos era feita em feiras, onde eram expostos em bancas fixas ou espalhadas
pelo chão, ou ainda “a cavalo” num barbante ou amontoados em cima de um caixote. A
critério da assistência, que escolhia pelo título ou pelo autor o folheto que queria conhecer, o
42
KUNZ. Rodolfo Coelho Cavalcante: um caso de peleja entre oralidade e escrita, p.3.
57
vendedor declamava os versos, e da sua performance resultaria a venda ou não dos folhetos.
Seria difícil acreditar que, numa região patriarcalista como o Nordeste, mulheres pudessem
cantar ou apresentar, em público, performances capazes de sensibilizar os leitores, levando-os
a adquirir a sua produção artística, ou se fazerem conhecidas do grande público de forma que
isso possibilitasse a solicitação de seus folhetos pela assistência.
Em 1938, Maria das Neves Batista Pimentel, filha do conhecido poeta e editor
Francisco das Chagas Batista, e casada com Altino de Alencar Pimentel, publica, sob o
pseudônimo de Altino Alagoano, um cordel com o título O violino do diabo ou o valor da
honestidade. Esse folheto pode ser o primeiro cordel feminino publicado no Brasil. Em seu
depoimento, colhido por Maristela Barbosa de Mendonça para sua dissertação de mestrado, a
cordelista explica a razão do pseudônimo:
“Todos os folhetos que foram vendidos na Livraria de meu pai ou que foram
impressos, tinham nome de homem, eram homens que faziam, não existia naquele
tempo, folheto feito por mulher, e eu, para que não fosse a única, né?, meu nome
aparecesse no folheto, não fosse eu a única, então eu disse:
– Eu não vou botar meu nome.
Aí meu marido disse:
– Coloque Altino Alagoano. “
Há de se notar que o uso do pseudônimo foi a solução encontrada pela poetisa
para vender seus folhetos. Sabe-se que o artifício do pseudônimo é um recurso muito utilizado
na literatura. As mulheres buscam-no como meio de fugir à censura, à “especificação milenar
que as confina em sua feminilidade.”
43
Para publicar, nos idos de 1938, a cordelista utiliza
um disfarce, uma máscara para obter a aceitação popular numa sociedade patriarcal.
No folheto O violino do Diabo, a cordelista reescreve em verso o romance
homônimo de Victor Pérez Escrich, autor popular espanhol do século XIX. Absorvendo o
enredo e as mensagens do romance, a cordelista provoca modificações em sua estrutura
narrativa para estabelecimento dos seus próprios recursos poéticos: “o poeta popular
43
BEAUVOIR. O segundo sexo, p. 478.
58
transforma o livro da cidade, do autor letrado em romance, romance na acepção clássica de
adaptação e assimilação destinada a um certo ambiente social.”
44
O folheto se inicia com a adaptação de um trecho do romance:
“A virtude é um espelho de diamante que faz retroceder o vício, receoso de ver
retratadas as suas asquerosas feições. Algumas vezes intenta despedaçá-lo, e esgrime
ardilosamente as suas armas, mas não leva muito tempo para reconhecer a sua
importância, e foge envergonhado de si próprio”.
A cordelista transpõe em versos, o sentido captado do texto:
A virtude é um lago
de águas bem cristalina,
um espelho de diamante,
uma jóia rara e fina,
onde o vício não pode
lançar a mão assassina
!
A preocupação com a originalidade da obra não prejudica a criação nas narrativas
populares. Reelaborando o esquema narrativo, a poetisa dá autonomia a uma outra obra, em que se
podem reconhecer traços do texto anterior. O desafio que se impõe para a tarefa é tornar a narrativa
reconhecida pela comunidade, na adaptação que se processa aos moldes e valores regionais.
Outras produções femininas em cordel vão surgir na década de 1970, como, por
exemplo, a cordelista Vicência Macedo Maia, que publica em 1972, em Salvador(BA), o
folheto A B C da Umbanda.
Na capa do folheto visualiza-se a xilogravura de uma mulher com uma jarra na
cabeça, segurando num tronco de árvore, sem indicação do xilógrafo; na contracapa, uma
oração (atribuída a São Francisco de Assis) prática adotada por outros cordelistas da época.
Escrito em quadras, mistura figuras (ou entidades) da umbanda e santos católicos, numa visão
abrangente da religiosidade brasileira. Neste folheto, assim como indica o título, há a
manutenção de uma tradição literária medieval: a dos poemas abecedários, nos quais cada
estrofe começa com uma das letras do alfabeto. No verso final, com o acróstico de seu nome,
identifica a autoria, o que, é difícil de acontecer quando se trata de composições populares:
44
CASCUDO. Cinco livros do povo, p. 12.
59
V – vamos meu leitor amigo
I – nspirar em Bom Jesus
C – ada qual com seu madeiro
E – m modelo de uma cruz
N – unca volver ao passado
C – aminhando com ardor
I – ndo com fé ao porvir
A – os pés do seu Criador
!
Outras cordelistas (raras) são possíveis de encontrar em acervos de bibliotecas,
como o cordel Ou sou ou deixo de ser, publicado em 1977, em Maceió (AL), de autoria de
Maria José de Oliveira. Em 1980, Josefa Maria dos Anjos, escreve o folheto de cordel Briga
di ponta di rua (Aracaju – SE) . De 1982, encontrei o folheto Lampião – vagalume do sertão,
de autoria de Yonne Rabello, que se intitulava “Trovadora Pernambucana”. A autora Maria
Arlinda dos Santos publica também em 1982, em Salvador (BA), o folheto intitulado A
história de Zé Fubuia.
Na atualidade, mulheres cordelistas estão sendo divulgadas através de projetos
como o SESCordel, de Juazeiro do Norte, a Academia dos Cordelistas de Crato, no Ceará; em
Campina Grande, incentivadas pelo cordelista paraibano Manoel Monteiro e por projetos
culturais da Secretaria de Educação, algumas cordelistas despontam com suas criações, dando
visibilidade à autoria feminina. A temática escolhida pelas mulheres tem alguns pontos em
comum com os folhetos de autores masculinos. As histórias de Lampião, Padre Cícero, de
animais, e religiosas misturam-se com temas que exploram o cotidiano, no tempo e na
comunidade em que vive a cordelista. Assim a escrita do cordel feminino é enriquecida com
veios sociológicos, filosóficos, históricos que se unem a feições familiares e tradicionais, em
total harmonia no texto poético. Orquestrados pela oralidade, os temas se organizam em torno
de um discurso semântico que se expande na pluralidade dos assuntos e na fala coloquial e
descontraída do povo, engendrando uma nova identidade que irrompe no mundo hegemônico
masculino da Literatura de cordel. Muitos desses folhetos aliam a atividade da escrita a um
60
trabalho didático, têm fins específicos e são utilizados em sala de aula como suporte em
algumas áreas do conhecimento.
A pesquisadora Francisca Santos,
45
afirma:
“A presença feminina como autoras de cordéis, apesar de herdar a tradição, também
vai instituir uma outra autonomia. Elas vão ressignificar a literatura de cordel a
partir de temas próprios como o feminino, ecologia, saúde da mulher, etc, ao mesmo
tempo em que inauguram outros espaços de veiculação do cordel como escolas,
passeatas, instituições, universidades.”
Na pesquisa realizada para elaboração deste trabalho, pude constatar esta
afirmativa; as poetisas, embora pertencendo a diversas regiões do País, versando sobre temas
tradicionais ou temas próprios, imprimem suas características e suas vivências. Mais
numerosas no Nordeste, é possível também detectar autoras nos grandes centros urbanos do
Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP), como demonstrado no quadro abaixo.
QUADRO 2
RELAÇÃO DE CORDELISTAS POR REGIÃO
Período da coleta: Jun/ 2004 a Nov/2005
ESTADO No. DE AUTORAS TÍTULOS DE CORDEL
ALAGOAS 1
4
BAHIA 6 13
CEARÁ 29 91
GOIÁS 1 3
MINAS GERAIS
1 1
PARAÍBA
13 34
PERNAMBUCO
1 1
RIO GRANDE NORTE
5 5
RIO DE JANEIRO
7 8
SERGIPE
1 1
SÃO PAULO
3 5
SEM IDENT.REGIÃO
2 4
TOTAL 70 170
Assim, mesmo tendo identificado 70 poetisas, a maioria em fase de produção,
optei por estudar, na Paraíba, as obras de Maria Godelivie e, em Juazeiro do Norte (CE),
Salete Maria, representando o grande universo feminino que reescreve a história da mulher
45
SANTOS, F. Romaria dos versos, p. 80.
61
no mundo dos folhetos. Considerarei aqui nos estudos a abrangência da palavra cultura, que,
segundo Alfredo Bosi, sob o viés antropológico, implica modos de viver: alimento, vestuário,
relação homem-mulher, habitação, práticas de cura, relações de parentesco, crenças, cantos,
provérbios, tabus, modo de olhar, de sentar, de visitar, etc.
PARAÍBA MULHER MACHO
Eu nasci na Paraíba
Num dia de Sexta-feira
Escutar som de viola
Era minha brincadeira
Até que cheguei um dia
A ser uma violeira
Viajei por vários cantos
Do nordeste brasileiro
Depois resolvi ficar
Ao lado de um companheiro
Para ser o meu esposo
E ganharmos mais dinheiro
Sou mulher e sei cantar
As coisas da natureza
Deus permita que eu cante
Pra fazer minha defesa
Já que não vou viajar
Posso escrever nesta mesa.
63
A produção de cordel de autoria feminina na Paraíba
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, um dos significados do verbete
“PARAÍBA” é:” p. metf. Valorativa, é atribuída à mulher forte e lutadora da região; no
sentido de mulher macho, ocorre no baião Paraíba (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira,
1950) cuja letra, referindo-se ao estado da Paraíba, diz “Paraíba masculina, mulher-macho,
sim senhor”. As paraibanas foram cantadas pela sua valentia, coragem e determinação de
vencer as barreiras impostas pela comunidade em que viveram.
Uma sucessão de invasões, lutas e conquistas permeia a história do Estado da
Paraíba. Na época do descobrimento, os índios que habitavam o litoral paraibano eram os
caetés, da família tapuia, tidos pelos colonizadores como atrasados e ferozes. Mais tarde,
vieram os potiguares e os tabajaras, que expulsaram os tapuias para o interior e construíram
suas tabas às margens do rio São Domingos, antiga denominação do rio Paraíba.
Os primeiros desbravadores da região foram os franceses. Desde o descobrimento
do Brasil que os franceses andavam por aqui, carregando o pau-brasil. Data de 1585 a
chegada do Ouvidor-Geral da Bahia, Martins Leitão, para desalojar os franceses das posições
que ocupavam. Várias batalhas já haviam sido travadas com os franceses que tinham como
aliados os índios. O capitão João Tavares, aproveitando-se dos desentendimentos entre as
tribos, conseguiu manter contato com os tabajaras, firmando um pacto de amizade com
Piragibe, o murubixaba (chefe) da tribo. A 24 de dezembro de 1634, a cidade foi ocupada
pelos holandeses, depois de violentos ataques aos fortins da barra, defendidos pelas tropas
aquarteladas em Cabedelo. Contava a região com 1500 habitantes e em suas imediações
funcionavam 18 engenhos de açúcar. O povo paraibano não se sujeitou ao jugo estrangeiro e
seu espírito de resistência teve como símbolo a figura de André Vidal de Negreiros,
organizador do movimento de reação. A Paraíba conseguiu se libertar dos holandeses em
64
1654, tomando posse no cargo de governador, João Fernandes Vieira, que deu ao estado, o
nome de Paraíba. Embora não se registre a participação feminina nessas conquistas, é voz
corrente que também a mulher participou de toda as batalhas de resistência, o que lhe rendeu
inclusive a alcunha de “mulher-macho”.
Na Literatura de Cordel, o estado paraibano é referência em todo o Nordeste, e
vários poetas de destaque – como Francisco das Chagas Batista, Silvino Piruá, João Martins
de Ataíde, Leandro Gomes de Barros, José João dos Santos, Mestre Azulão – nasceram na
Paraíba, que acolhe também muitos cantadores oriundos de outros estados como Oliveira de
Panelas, pernambucano radicado no interior. Também é paraibana a poetisa Maria das Neves
Batista Pimentel, primeira mulher, de que se tem notícia, a escrever cordel.
Não se pode deixar de citar nesse universo literário, Maria de Lourdes Nunes
Ramalho, ou Lourdes Ramalho, como é conhecida literariamente, que compõe em versos de
cordel algumas de suas peças teatrais. Nascida em 23 de agosto de 1923, entre a Paraíba e o
Rio Grande do Norte, na localidade denominada Jardim do Seridó, numa família de
intelectuais e artistas. Seu bisavô, Hugolino Nunes da Costa, fugiu de casa aos dezoito anos
para se dedicar ao repente e à cantoria de viola, tornando-se mais tarde um dos mais
renomados cantadores do sertão nordestino em meados do século XIX. Lourdes Ramalho,
professora, poetisa e dramaturga, cresceu em contato com cantadores de viola, cordelistas e
contadores de história, o que lhe permitiu captar da poesia oral inspiração para escrever suas
peças. Sua paixão pela palavra e pelo palco – alimentada durante anos em que trabalhou como
educadora – toma impulso e novos rumos a partir da década de 1970. Seus textos recriam,
criticamente, o universo da gente do sertão nordestino, enfatizando as relações de tensão e
opressão estabelecidas neste contexto social. Fundadora do Centro Cultural Paschoal Carlos
Magno e do Teatro Ana Brito, sediados em Campina Grande, muito contribui para a
divulgação da cultura regional. Saudada como a grande dama da dramaturgia nordestina, já
65
escreveu mais de cinqüenta peças, em prosa e verso, que vão da farsa à tragédia, passando
pelo drama e a comédia, incluindo um repertório infanto-juvenil.
Sobre sua escrita, escreve Ria Lemaire:
Dona Lourdes compõe em versos que ela chama ‘de cordel’ peças de teatro. Trata-se
de versos cuja unidade poética básica não é a palavra, como na poesia escrita
moderna. São grupos ritmados de palavras, tipo fórmulas, que pertencem à tradição
do cordel e da cantoria, que ela reutiliza, memorizando-os ao improvisar com
sempre novas variantes. Transcritos em seguida em cadernos, mais tarde impressos
em livros baratos, as pessoas os aprendiam de cor, antes de emprestarem ou
oferecerem os cadernos a outras pessoas. Não para serem lidos como livros, mas
para serem decorados com o objetivo de serem ditos no palco.
46
Poderíamos afirmar que a poetisa-dramaturga resgata com as suas composições a
tradição de Gil Vicente, tanto no formato típico das canções orais indo-européias – a
redondilha maior e a sextilha – como no trato dos temas.
Campina Grande, situada na serra da Borborema, agreste paraibano, tem tradição
de produzir folhetos: pesquisadores registram que, em 1902, Francisco das Chagas Batista,
publica seu primeiro folheto – Saudades do Sertão –, em Campina Grande. Chagas foi o
fundador da Popular Editora, casa pioneira na Paraíba e cujos serviços prestados à cultura
popular foi dos mais relevantes. Poeta, livreiro e editor, Chagas Batista escreveu o livro
Cantadores e poetas populares (1929) contendo informações antigas e confiáveis sobre esta
forma poética de literatura, colhidas diretamente da fonte, pelo parentesco com os principais
poetas de seu tempo.
A cidade tem oferecido importante contribuição para a difusão da literatura de
cordel, através de projetos desenvolvidos pela Universidade Federal de Campina Grande em
parceria com a Prefeitura. Campina Grande também abriga Manoel Monteiro, que, embora
pernambucano de Bezerros, mora na cidade paraibana. Como parte das suas atividades para
divulgação da Literatura de cordel, como palestras, oficinas, entrevistas nos meios de
comunicação, saliente-se o apoio que dá às mulheres cordelistas, incentivando-as, fazendo
46
LEMAIRE. Donde vindes filha branca y colorida?, p. 22.
66
revisões, cuidando da editoração, constituindo-se referência tanto dos estudos dos poetas
como das poetisas.
Esse apoio e de mais de alguns órgãos públicos podem ser sentidos na produção
que ora se desenvolve naquela cidade. Cordelistas como Célia Castro, Hélvia Callou, Maria
de Fátima Coutinho, Maria Julita Nunes, Maria Piedade Correa, Maria Godelivie, publicaram
alguns folhetos sob o patrocínio da Secretaria Municipal de Cultural.
Célia Castro, professora e poetisa, produziu em junho de 2002, um folheto
intitulado O Nascimento de Jesus (Foi aqui no sertão Nordestino), em que se pode perceber o
processo da transposição do texto bíblico. A ambientação é no sertão nordestino, “no sítio de
Nazaré”, e a figura de Herodes é transposta para um “coronel, cruel, brabo mais do que
serpente”; Jesus ou simplesmente “Zé”, nordestino, pobre, anda no lombo do jumento e
enfrenta o sol abrasador do Nordeste. A estrofe inicial conclama o leitor para o assunto
principal dos versos, prática adotada pelos cordelistas:
Chamo atenção do meu povo
Deste sertão nordestino
Pra falar dum casamento,
E da vida de um Menino
Que mudaram nossa história
Salvando nosso destino.
A presença do Anjo Anunciador presente no texto bíblico é assim descrita pela
poetisa:
Soou a voz de Asa Branca
Dizendo: Vixe Maria!
Tu vai receber de Deus
Com a luz que alumia
Um presente precioso
Filho da nossa alegria
.
Dois elementos populares podem ser destacados nesta estrofe. A expressão “Vixe
Maria!” (Virgem Maria), transcrita da linguagem oral nordestina, e a referência à “Asa
Branca”. Ave da família dos pombos, foi transformada pela tradição popular em símbolo do
sertão; a presença da Asa Branca é sinal de bom agouro e da estação de chuvas. Nos versos do
cordel, a ave representa também a mensagem divina, anunciadora da boa nova ao povo, a
67
esperança do renascimento. Ao transpor a figura do anjo à da “Asa Branca”, a cordelista
marca a presença do invisível no visível, em que as fronteiras do humano e do inumano se
encontram determinando o lugar transitório, entre um e outro.
Traduzindo a fuga de Maria e José para o Egito, a autora escreve:
Num terreiro de fazenda
Um povo que lá está
Dançando todos em volta
De um tal de Boi-Bumbá,
Uma festa interessante
Que se puseram a olhar.
[...]
Foi então que Pau de Arara
Parando no pé da serra
Levou os três caminhantes
Em busca de Nova Terra,
A Virgem estava cansada
A viagem se encerra.
As transformações simbólicas que são realizadas pela autora deixam transparecer
tanto vestígios do texto bíblico como da cultura oral tradicional. Ao serem representados num
contexto da realidade do Nordeste, o religioso mistura-se ao profano, perpetuando as crenças
e a memória cultural.
Helvia Callou, poetisa e escritora, é exemplo do acolhimento do estado da Paraíba
para com os seus vizinhos. Nascida em Serrita, Pernambuco, em 1973 foi morar em Campina
Grande, onde estudou, formou-se e onde trabalha. É autora dos seguintes cordéis: O saco,
Pinceladas da história previdenciária, Dona crise e o jovem maxi, Sonho de jornalista, Brasil
plastificado, Abolição sem libertação. No site www.cordelcampina.cgonline.com.br, é
possível visualizar o cordel O famoso pau do santo, de sua autoria, utilizando um novo
suporte para a apresentação da sua poesia.
A contadora de histórias Maria Godelivie
Maria Godelivie, paraibana, poetisa e professora, considera-se uma contadora de
histórias. A inspiração para seus folhetos vem da infância – da mãe, que lhe contava casos e
das suas idas às feiras com o pai, aos sábados, quando ficava fascinada com os versos e a
68
performance dos cordelistas. Com sete títulos editados e mais dois no prelo, a poetisa
aproveita-se de temas recolhidos na oralidade tradicional e dá uma visão atualizada,
condizente com a mulher do seu tempo. Para escrever as poesias, armazena no computador as
lembranças das estórias que ouvia, em prosa; posteriormente, versifica-as, tendo o cuidado de
conservar a forma tradicional do cordel, tanto na métrica como nas capas xilogravadas. Seu
maior incentivador foi o cordelista Manoel Monteiro, que considerou seu primeiro folheto – O
gostosão – como de boa qualidade. Daí em diante editou, com recursos próprios, mais outros
seis. A cordelista faz questão de frisar que todos os seus folhetos encerram um ensinamento,
uma lição de moral. Como professora, utiliza o cordel na sala de aula (o de sua autoria e de
outros autores) e estuda com os alunos a estrutura da narração, personagens, fatos
relacionados com os temas, etc. Uma das características dos folhetos de Maria Godelivie são
os títulos jocosos, que segundo ela, são para chamar a atenção: O gostosão, de 2002; O
Homem que beijou uma alma, A Vingança da falecida, O “Doidinho” bem dotado, de 2003;
A ganância do chifrudo, Eita!Paixão dos diabos e Ô Mulher desnaturada, de 2004. Embora
os títulos dêem a pista falsa de cordéis de humor, tratam de temas sérios como o adultério,
castigos advindos de maldades, paixões arrebatadoras, sexualidade feminina. Aliando o
humor ao tom pedagógico, a poetisa cumpre o papel de transmissão de valores no processo de
modernização da sociedade em que vive. O folheto O Gostosão, editado em novembro de 2002,
traz na capa xilografia de Silas, representando um triângulo amoroso.
Minha nossa! Meu Senhor!
Onde fui eu me meter,
Arranjar duas mulheres?
Eu não tinha o que fazer?
Agora já não sei mais
Como o caso resolver
Sou casado de aliança
Perante padre e juiz
A mulher legítima é braba,
Prometeu? Faz o que diz,
E eu, o que vou fazer
Com esse impasse infeliz.
69
A carne é fraca, porém,
Adoro minha mulher
Que além d’outras coisas dá-me
Beijo, abraço e cafuné
Mas me deixei envolver
Pela linda Salomé.
Não que a minha mulher
Seja feia ou desdentada,
Ela é bastante bonita
Bem feita e bem conservada
Eu porém não resisti
A ter uma namorada.
Note-se que, a esposa é retratada como “carinhosa e bonita, bem feita e bem
conservada” e a amante “linda”, qualidades que a poetisa emprega para a desconstrução e
reconstrução da imagem feminina de tal maneira que os mitos tradicionais relacionados ao
amor, ao casamento e ao papel prescrito à mulher tornam-se positivos, potencializando
imagens favoráveis à situação que se quer alterar. Já de início subjaz a culpabilidade
masculina que busca no sagrado o perdão para suas culpas.
Tanto a esposa quanto a amante, apresentadas a princípio dentro de uma ótica
tradicional, no enredo da estória subvertem os papéis e produzem outros percursos, por sua
legitimidade ou contestação. As palavras de Deleuze e Parnet
47
– “bem diferentes são os
devires contidos na escritura quando ela não se alia à palavras de ordem estabelecidas, mas
traça linhas de fuga” – aplicam-se ao modo como os estados femininos são representados pela
cordelista: a esposa e a amante são submetidas ao jogo de uma conquista e uma perda de
identidade, mostrando em seguida o movimento do seu devir. Assim, a exposição da figura
feminina é acompanhada, ao mesmo tempo, pela sua produção e desfiguração, reeditando o
código literário por meio da construção de um percurso identitário.
A esposa toda prosa
Foi logo dizendo assim:
– Mané responde se queres
À Salomé ou a mim
Saiba que de hoje não passa
Esse negócio ruim.
[...]
47
DELEUZE; PARNET. Dialogues, p. 56.
70
Salomé choramingava
Esperando o resultado
Quando chegou sua vez
De falar, disse: Safado
Gostei tanto de você
Sem saber que eras casado.
A esposa perdoa o marido, mas, numa atitude pouco convencional, impõe a ele a
mesma situação outrora vivenciada por ela, como as atividades domésticas e até mesmo a
traição.
Vamos querido Mané
Vamos pra casa ligeiro
Mas antes hás de fazer
Os teus serviços primeiro,
Lavar louça, passar ferro,
Cozinha, limpar banheiro.
Por que a partir de hoje
Meu “fogoso” maridão
Tu vais ficar na cozinha
E trabalhar de montão
Enquanto passeio com
O gostosão Ricardão
.
Percebe-se a construção de um discurso transgressor em torno da imagem da
mulher, cuja estereotipia foi imposta pelas instituições através do tempo. Fundamentam-se
desta forma as reflexões da mulher sobre a condição feminina, como também deixa
transparecer um novo discurso de representação do poder constituído.
No folheto intitulado O homem que beijou uma alma, editado em abril de 2003, a
poetisa resgata uma lenda, muito comum no imaginário coletivo nordestino. Na tradição do
cordel, a estória da moça que aparece em bailes ou em ruas seduzindo os homens e que depois
se descobre que era um fantasma está inserida na classificação de folhetos de exemplos e pode
ser lida com algumas variantes. J. Borges escreveu A moça que dançou depois de morta, que
contém os mesmos elementos e personagens da narrativa oral. Em Itabuna (BA), Minelvino
Francisco Silva editou (provavelmente em 1968) o folheto A mulher de sete metros que
apareceu em Itabuna, em que se podem encontrar as mesmas situações. Olegário Antonio, em
71
Belo Horizonte (MG), escreve o cordel A loura do Bonfim, com os mesmos elementos do
enredo dos anteriores.
As lendas disseminadas entre os povos são a tradução viva do pensamento e do
desenvolvimento intelectual através dos tempos, e constituem a base dos contos populares,
desenvolvendo as superstições, que se propagam no espírito coletivo. As lendas perdem-se ou
se revigoram, tomando as cores locais. Assim é que as lendas passam por um processo de
urbanização: as narrativas orais na cidade recebem um aparato citadino que envolve
linguagem, situações, tipos humanos e profissionais, sem, contudo modificar o conteúdo
moral e de exemplo. As lendas urbanas são histórias que os contadores alegam ser
verdadeiras, sendo transmitidas de pessoa a pessoa através da tradição oral ou escrita. Estas
histórias incluem relatos de situações atípicas, de eventos macabros ou engraçados, sendo que
o fato sempre aconteceu com alguém conhecido. Assim, um modo de diferenciar entre lendas
urbanas e outros tipos de narrativas, como por exemplo, a ficção popular, está no exame de
suas origens e como eles são disseminados. Lendas tendem a surgir espontaneamente, fora de
canais institucionais de comunicação e raramente têm origem em um único ponto. Além
disso, espalham-se principalmente de indivíduo para indivíduo, por comunicação interpessoal,
e só em casos atípicos por meios de comunicação de massas, possuindo variantes locais ou de
narrador para narrador
48
.
No site www.orecifeassombrado.com.br
49
, um dos “causos” retratados, de autoria de
Rodrigo Caldas, é exemplo de como se perpetua a lenda:
Maria do Forró
Era noite de Quinta-feira em Nossa Senhora do Ó, praia do município de
Paulista, em Pernambuco. Antônio tinha saído tarde da oficina, mas ainda assim
tinha fôlego para uma boa noite de farra. Foi sozinho a um forró perto ali da entrada
da vila. A casa estava cheia, muita música, muita bebida, muita dança. Tomou umas
cervejas e dançou com umas conhecidas suas, quando avistou uma moça muito
bonita, bem branca, até um pouco pálida, de cabelos castanhos longos. Parecia bem
tímida, estava de vestido branco, encostada sozinha numa pilastra, num canto escuro
48
XIDIEX. Narrativas populares.
49
Acesso em 01.11.2005.
72
da festa. Chamou-a para dançar. Ela resistiu um pouco; parecia assustada, surpresa
mesmo com aquele convite, mas ele insistiu e ela acabou por ceder. Dançaram e
conversaram bastante. Maria parecia uma moça de família, morava ali perto, um
pouco antes da entrada do Ó, quase na rua do cemitério. No meio da conversa, lá
pela terceira música, a moça deu um pulo e disse:
– Êita; tenho que ir por causa da hora!
– É cedo, disse o rapaz, um pouco decepcionado.
Afinal, gostara da menina. Ela tinha algo estranho, às vezes parecia distante,
mas ainda assim, tinha um jeito especial. Ela insistiu que deveria ir, porque tinha que
chegar em casa antes da meia noite, de todo jeito. Para convencê-la a ficar mais,
Antônio propôs o seguinte:
– Tome aqui o meu relógio. Fique com ele no braço. Você controla a hora de ir.
Ela aceitou. Também gostara de Antônio; bom moço, bem apessoado,
trabalhador. Dançaram mais, conversaram mais, até que chegou a hora de ir, perto
de meia noite. Antônio ainda insistiu um pouco, mas Maria disse que não tinha jeito,
que tinha que ir e ia mesmo. Ele tentou beijá-la, mas ela não deixou. Ele pediu para
levá-la em casa. A pé mesmo, ali pertinho. Ela recusou. Ele insistiu, ela continuou
negando. Ele acabou desistindo, porque começou a sentir algo estranho nela. Não
era uma irritação, mas uma certa angústia, quase agressiva. Parecia que ela estava
fazendo algo errado, e que tinha realmente que ir embora. Na saída, chovia bastante,
e ele lhe ofereceu uma capa de chuva. Na despedida, de propósito, ele deixou que
ela levasse o seu relógio, como se tivesse esquecido. Era um motivo pra que ele
voltasse a vê-la. Antes de ir, ela tirou do vestido uma pequena foto três por quatro, e
deu a ele. Despediram-se. Ela logo sumiu na chuva, coberta com a capa.
Na manhã seguinte, Antônio resolveu ir à casa de Maria. Sabia onde era
porque ela lhe dissera na noite anterior. Chegando a casa, bateu e esperou
alguns
minutos. Apareceu uma senhora com um aspecto muito triste, abatida.
– Bom dia, senhora. Vim aqui pra falar com Maria, sua filha.
– Que é isso moço! Que brincadeira é essa. Isso não se faz com uma mãe.
Minha filha morreu no ano passado, atropelada por um caminhão. Ontem fez
um ano da morte dela. O senhor não conheceu a minha filha.
Perturbado, Antônio disse que não era possível, que dançara com Maria na
noite anterior. A senhora ficou nervosa e disse-lhe que fosse ao cemitério, ali mesmo
no fim da rua, e procurasse por Maria. Antônio ficou perplexo e resolveu ir ao
cemitério. Era perto e nada lhe custava. Em menos de dez minutos, procurava entre
jazigos, algo com o nome da moça. Passaram-se vinte minutos e nada. De repente,
um vento muito frio chegou em suas costas, do nada. Virou-se em direção ao vento e
se deparou com uma lápide, com uma foto da moça, igual à que trazia na mão. Em
cima do túmulo, jogados, seu relógio e sua capa de chuva. O nome da morta: Maria.
Essa é uma história verídica. Foi-me contada há cerca de vinte anos, por uma
senhora hoje falecida.
Voltando ao folheto O homem que beijou uma alma, a poetisa Maria Godelivie,
inicialmente, descreve o personagem masculino:
Oscar era bonitão
E sabia conversar,
Andava sempre arrumado
Gostava de prosear
Olhava para as meninas
Já querendo desfrutar
Apesar de responsável
Com a família e o lar
Não perdia ocasião
Pra das festas desfrutar
Sem que a esposa soubesse
Que estava a farrear.
73
Ficou sabendo que à noite
Haveria uma festança
Coisa que lhe agradava
E lhe trazia esperança
De arrumar mais um caso
Que ficasse na lembrança
.
Fica evidente a intenção assumida pela poetisa de apresentar o personagem em
atitudes condizentes com a imagem sedimentada do homem numa sociedade patriarcal. A
infidelidade conjugal masculina é considerada uma atitude perdoável e até incentivada pela
sociedade. Os mitos que defendem que todos são potencialmente infiéis ou que os
envolvimentos extraconjugais recuperam um ardor perdido numa relação enfadonha reforçam
a idealização que se faz da figura do amante, que é percebido com uma sensualidade superior
à do cônjuge, ou, ainda, este último como alguém que possui falhas que provocaram a
carência do traidor.
A maior liberdade sexual que se experimenta nos dias atuais – reiteradas pelos
filmes, telenovelas, revistas etc.– eleva a curiosidade sexual e a tentação de ambos os sexos de
experimentar o sabor da conquista. No que tange ao prazer masculino, a infidelidade se
inscreve num território que o faz sentir-se envaidecido e potente quando consegue envolver
uma mulher atraente. A retórica masculina, que não dá importância ao um envolvimento
extraconjugal – posto que diz não passar de uma aventura sem maiores conseqüências, que
não muda em nada o sentimento que nutre pela parceira efetiva –, é usada para legitimar o
seu desejo, de longa data considerado justo e natural.
A narrativa continua dentro do padrão estabelecido na lenda: o encontro do
homem com uma bonita moça, a dança durante toda a noite, o percurso do casal até a casa da
moça, o casaco emprestado por ele para protegê-la do frio da madrugada, a volta no dia
seguinte à casa onde havia deixado a parceira na noite anterior e finalmente a constatação de
que “é morta a que você ama”. A finalização do folheto é feita com a estrofe de efeito
moralizante, uma característica dos escritos da poetisa:
74
Oscar se arrepiou,
Quis gritar, não conseguiu,
Saiu da casa da velha
Pulou o muro e sumiu
Ganhou o ôco do mundo
E ninguém jamais o viu
Portanto dou um conselho
Aos galinhas de plantão
– Quando arranjar um namoro
É bom prestar atenção
Fazendo um exame sério
Se catinga a cemitério
E se bate o coração.
A
o reescrever a lenda e/ou as muitas versões difundidas, Maria Godelivie o faz
adequando-a a um novo contexto. Configura-se dessa forma a imagem do “palimpsesto, na
qual vemos, sobre o mesmo pergaminho, um texto se superpor a outro que ele não dissimula
completamente, mas deixa ver por transparência”
50
. Utilizando-se de mecanismos como a
transcriação, e de práticas da transtextualidade, (conceituação desenvolvida por Gérard
Genette), como a transposição, paródia, é criada uma escritura única e ao mesmo tempo
múltipla, em que se pode visualizar outros textos, caracterizando verdadeiras operações
palimpsêsticas, prática adotada pela autora, em outras publicações. A transformação do tema
original possibilita o surgimento de um novo texto, singular, mas que conserva o traço
germinal, a expressão da essência, a atualização dos sentidos e das formas virtuais. A
elaboração de um folheto pressupõe transformações textuais sucessivas, que tanto pode ser da
oralidade quanto de textos eruditos; um texto cita um outro – intertextualidade – ou remete a
um outro, sem contudo citá-lo – hipertextualidade. Nesse jogo entre o texto e seus pré-textos,
o cordel recria uma literatura própria, em que elementos combinados formam um sistema de
representação cultural, adaptável ao contexto vivenciado pelo autor.
Outro exemplo em que se pode visualizar a transcriação de um texto é o folheto
Eita! Paixão dos diabos. Escrito em maio de 2004, a capa traz uma xilografia, sem
identificação do artista, com a figura de uma moça e a representação tradicional do diabo,
50
GENETTE. Palimpsestes, p. 21.
75
com chifres, rabo e tridente. A estória reconta o mito de Fausto, um homem na sua incessante
e angustiada busca pelo conhecimento universal e absoluto. A condição de ser finito e
imperfeito não satisfaz a Fausto, que tenta superá-la, nem que para isso tenha que negociar o
único objeto de valor apreciável neste tipo de negociação: sua alma. A danação de Fausto não
consiste apenas num castigo exterior – ou superior – por ter infringido uma regra moral,
religiosa ou divina, mas é, antes de tudo, a conseqüência do livre-arbítrio. O mito fáustico
deriva, como todo grande tema universal, da tradição oral, tendo aparecido na Alemanha entre
1470 e 1540 a partir da figura de um sábio que teria de fato existido na época, chamado
Johann ou Georgius (o nome latino era muito apreciado na época e visto como um sinal de
erudição), que estudou em várias universidades antes de se tornar uma espécie de mago
charlatão. Misturando conhecimentos de filosofia e medicina com alquimia, magia e
astrologia, apresentava-se em feiras vendendo poções e conhecimentos, e dele se dizia ter
feito um pacto com o diabo. A primeira versão impressa da história composta em torno deste
homem foi publicada durante a feira de Frankfurt de 1587, como um livro de cordel, já
incluindo personagens como Wagner (o discípulo), Helena de Tróia e o Imperador. Era
dividido em três partes: na primeira, o pacto; na Segunda, viagens pelo mundo, pelo céu e
pelo inferno e, na terceira, o arrependimento e a danação. Outras versões anônimas
decorreram desta , até a adaptação do inglês Christopher Marlowe, em 1592, para o teatro.
Nesta peça, Marlowe desenvolveu, a partir da lenda, temas morais como a busca insaciável e
maldita pelo saber, numa advertência ao homem renascentista sobre a ânsia de querer a tudo
conhecer e especular, sem critérios éticos.
51
A versão mais difundida é a do escritor alemão Goethe. O personagem goethiano
encontra-se desencantado, já não acredita no ser humano e aceita as propostas de
51
BRUNEL. Dicionário de mitos literários, p. 335.
76
Mefistófeles. Rejuvenescido, seduzirá e em seguida abandonará Margarida, que morrerá logo
após.
Sobre o assunto, escreve Jerusa Ferreira:
“Nenhum tema é mais vivo, nada instiga e convida mais do que esta história de amor
e morte, de confronto com a eternidade e a salvação, de comércio com as forças do
mal, que vem de tempos muito distantes, ligando-se a narrativas longínquas e
dispersas, algumas delas da primeira literatura cristã. Passando pelo universo
medieval, se faz a estória dos tempos modernos, se enraíza na literatura inglesa, se
prototipa na alemã, e difunde em várias outras literaturas, alcançando pontos muito
altos nas obras de Marlowe e de Goethe.”
52
No folheto em questão, o Fausto é representado por uma moça “bela e faceira”.
Ao conhecê-la, o diabo, metamorfoseado em um “homem de cabelos lisos, compridos, olhos
verdes, pele branca, corpo esbelto...”, apaixona-se e lhe faz uma proposta:
– Sendo minha, tu terás
O poder em tua mão
Reinarás sobre a maldade
Viverás só de ilusão
Terás tudo que quiseres
Fama, dinheiro e paixão
.
Numa atitude pouco convencional, a moça não aceita o pacto com o diabo,
demonstrando autonomia sobre suas atitudes, sendo capaz de pensar sobre suas ações, de
escolher seu destino.
Belinda ficou parada
Sua mente a meditar
Que adiantava a beleza
Sem o conforto do lar,
Sem carícias de um marido
Que muito fosse lhe amar.
Por isso disse ao diabo:
– Eu não tenho a intenção
De casar com o senhor
Que vive sem coração
Que não tem amor a Deus
O pai de toda nação.
52
FERREIRA. Fausto no horizonte, p. 87.
77
Uma outra questão a ser levada em conta é o pacto da mulher com o diabo visto
como “uma mediação das tensões entre o real e a imagem ideal, desvelando gradativamente,
fragmentos de verdades femininas tresdobradas e situadas à margem do sistema.”
53
“Essas narrativas de pactos da mulher com o diabo são o retrato das crises de
identidade de mulheres marcadas pelo silêncio imposto pelo sistema patriarcal.
Entretanto, esse silêncio é neutralizado pela função simbólica do diabo nos pactos.
Ele desencadeia uma epifania imaginária de uma nova mulher. Essa dinâmica
esclarece e incentiva a reflexão da situação das atividades femininas e de suas
vivências psicológicas que, embora imaginárias, apontam um novo dinamismo
social, baseado principalmente no uso da astúcia feminina. Esta idealização
irracional realmente se manifesta como expressão fundamentadora das grandes
transformações e faz a mulher a tecelã de uma nova ordem.”
54
E a poetisa continua com os seus versos:
Tomando força e coragem
Belinda continuou:
–Me tirastes a beleza
E Deus me recompensou
Dando um marido querido
Que muito me ajudou.
De nada mais importava
A beleza que perdeu
O amor era mais forte
E logo refloresceu
Criou raiz e vingou
Nos filhos que Deus lhe deu.
O capeta revoltado
Para o inferno rumou
Sentia tanta vergonha
Que até o nome mudou
Se escondeu no inferno
E nunca mais se mostrou.
Conquanto nos folhetos escritos por homens sobre o assunto a representação da
mulher seja calcada nos estereótipos de dependência, fragilidade, submissão e repressão, a
poetisa Maria Godelivie escreve uma estória em que se percebe a desmitificação de valores,
como a beleza física, poder e riquezas. Ao recusar o pacto com o diabo, rompe com a
tradição, caracterizando uma denúncia e a descentralização do poder instituído.
Um outro folheto da poetisa, intitulado Ô Mulher desnaturada, de agosto de 2004,
traz na capa uma xilografia de Silas. Partindo para a etimologia da palavra “desnaturada”
53
MELLO. O imaginário do pacto da mulher com o diabo nos folhetos de cordel, p. 144.
54
MELLO. O imaginário do pacto da mulher com o diabo nos folhetos de cordel, p. 146.
78
temos como significado: perda daquilo que é da natureza, que é característico ou próprio de
algo; descaracterização, adulteração.
Mas afinal que mulher é essa tão descaracterizada ou adulterada? O folheto trata
de um casamento realizado com uma mulher que não é virgem, situação configurada nas
estrofes 32 e 33:
Chorando o rapaz falou
–Ô MULHER DESNATURADA...
Imagine seu Doutor
Ela já é desonrada...
Fingia que era donzela
Mas já tinha sido usada.
Eu preparei nossa casa
Comprei tudo direitinho
Não faz vergonha a ninguém
Visitar o nosso NINHO
E aquela DESNATURADA
Deu a outro o PASSARINHO
.
O paradigma da virgindade é questionado pela poetisa. Historicamente o estatuto
da virgindade foi considerado como conferindo capacidades mágicas ou sagradas. Assim, por
exemplo, no antigo oráculo de Delfos, o contato com os deuses era estabelecido pela Pítia,
uma mulher virgem. Durante a Idade Média acreditava-se que o mítico unicórnio só podia ser
domado por virgens. Uma grande variedade de culturas tradicionais e as principais religiões
monoteístas como o cristianismo, o islamismo e o judaismo, prescrevem a virgindade até o
casamento. Na comunidade sertaneja, obediência, fidelidade, respeito, cuidado pelo marido e
bem-estar das crianças parecem sintetizar as regras e valores centrais atribuídos à posição
social da mulher no casamento. Mas para que haja o casamento é necessário que a mulher seja
virgem. Antigamente, o homem se casava com uma mulher educada para o casamento,
portanto, esse era o diferencial feminino daquelas que eram consideradas “direitas” –
legitimado pela preservação da virgindade –, que a colocava em condição ideal de procriar,
após o casamento. Em situação inversa, a mulher poderia ser considerada uma “desnaturada”,
fora dos padrões institucionais, considerados “naturais”.
79
Na continuação do enredo da estória, o marido (XERÉM) ordena à mulher que lhe
prepare a mala, e lastima seu ultrajante destino:
XÉREM olhou para EMÍLIA
E mais brando lhe ordenou:
– Vá arrumar minha mala
Já que você me obrigou
Sair por este mundão
Com os chifres que me botou.
Viverei como um judeu
Errante por essa vida
Chorando a desesperança
Da alma desiludida
Que viu a taça do amor
Enxovalhada e traída.
EMÍLIA lhe obedeceu
E a mala preparou,
Chorava um choro baixinho
E por entre ele implorou
Para XERÉM desistir
Da decisão que tomou
.
Tendo sua partida adiada por vários motivos – ora perde o trem, ora tem
indigestão, ou o terno da viagem não estava do seu gosto – o homem descobre as virtudes da
esposa e acaba rompendo as barreiras da incompreensão:
Foi protelando a partida,
Protelando, protelando
Sempre encontrava um motivo
Pra ir se justificando
Entre os lençóis de EMÍLIA
Terminou se acomodando.
O tempo tudo resolve
Foi isso que ocorreu
A MULHER DESNATURADA
Muitos filhos já lhe deu
Hoje é feliz e nem lembra
Daquilo que aconteceu.
A finalização do folheto é feita com um dito popular “o tempo tudo resolve”, e a
mulher fora das convenções sociais “a desnaturada”, cumprindo seu papel de esposa e mãe.
O cordel de 16 páginas intitulado A ganância do chifrudo, de março de 2004,
insere-se no ciclo “do marido logrado” em que estão agrupados os folhetos que têm como
tema o marido enganado, o corno, um dos mais tradicionais da poesia popular nordestina. Já o
80
Doidinho bem dotado ou o tesão da Filomena, de novembro de 2003, trata da sexualidade
feminina e pode ser considerado dentro do ciclo erótico.
Percebe-se na leitura dos cordéis de Maria Godelivie uma especial sensibilidade
em retratar a personagem feminina, que aparece representada na sua integridade de caráter,
marcada pela firmeza e perspicácia com que enfrenta os fatos do cotidiano, mas também
como denunciadora de preconceitos sedimentados na memória popular. O equilíbrio
manifesta-se no percurso da ação, entre o comportamento individual e o coletivo.
Quanto ao aspecto formal, utiliza nas versificações a sextilha que é uma estrofe
constituídas de seis linhas ou seis versos de sete sílabas, com rimas deslocadas: as rimas
acontecem nas linhas pares (2
ª
, 4
ª
e 6
ª
) conservando-se as demais em versos sem rimas.
Valendo-se da maneira mais conservadora para metrificar seus versos e tratando
de temas do cotidiano, da oralidade que lhe foi passada através de diversas fontes e
resgatando mitos e lendas, a poetisa busca a transformação de atitudes, crenças e valores,
construindo socialmente, uma outra representação ideológica. É a voz insurgente da mulher
no contexto da literatura de cordel.
A POÉTICA FEMININA NO CEARÁ
Eu faço cordel porque
Aprendi a escutar
E mesmo aprendi a ler
Vendo vovó recitar
História de Lampião
De Padim Ciço Romão
De João Grilo e Boi-bumbá
Eu devorava o romance
Ligeiro, bem de pressinha
Quase que não dava chance
Pra respiração que vinha
Eu tinha prazer demais
Lia até não querer mais
Mas só o que me convinha
Escrevi sobre mulher
O meu tema preferido
Compreenda quem quiser
Pois meu verso é atrevido
Denuncio a violência
Dou nome a incompetência
Quero o machismo banido
Falei de gay, de amor
Entre homossexuais
Não faço nenhum favor
Contemplando os marginais
Sou porta-voz de outros lemas
Inovar, ver outros temas
É tudo que me apraz
82
Cariri e poesia popular
O Cariri cearense é considerado, da perspectiva ecológica, um tipo de óasis no
sertão. Considerando os critérios culturais, é classificado como uma região especial, diferente
do ambiente cultural sertanejo e visto como o maior reduto da cultura popular nordestina. Não
é por acaso que na região nasceu Antonio Gonçalves da Silva, um dos maiores cordelistas da
atualidade. Nascido no dia 05 de março de 1909, num casebre do sítio da Serra de Santana, a
três léguas da cidade de Assaré, no sertão do Cariri, aos vinte anos de idade, já cantador e
improvisador de repentes, ganhou o apelido que iria imortalizá-lo: “Patativa do Assaré”, em
referência a uma ave canora que habita as caatingas do sertão nordestino e à localidade onde
nasceu. Comprometido com a o seu tempo e engajado na luta do povo sertanejo, Patativa do
Assaré, cantou e encantou o universo da poesia popular. Em sua extensa obra é possível
visualizar aspectos do cotidiano do homem do sertão, sua luta contra a seca, as agruras da
miséria, os costumes da comunidade, a religiosidade. Seus cordéis são também um libelo ante
as opressões e as injustiças sociais; as suas aspirações e seus ideais políticos.
No Ceará a produção de cordéis sempre teve um papel relevante. Segundo Gilmar
de Carvalho
55
a atividade tipográfica cearense teve início em 1824, mais precisamente em
abril, com a impressão e circulação do Diário do Governo Ceará, que apoiava o movimento
libertário republicano desencandeado a partir do Estado de Pernambuco. No entanto, não foi
na capital nem nas cidades interioranas próximas de Fortaleza que se desenvolveu a produção
de folhetos de cordel. Desde o século XIX essa literatura é produzida na cidade de Juazeiro do
Norte, tendo como elemento impulsionador a tipografia São Francisco, do editor José
Bernardo da Silva, responsável por uma das maiores tiragens do cordel nordestino. Nomes
expressivos da Literatura de cordel tiveram seus trabalhos impressos em Juazeiro do Norte,
55
CARVALHO. Publicidade em cordel, p. 67.
83
como Moisés Matias de Moura, José Costa Leite, Romano Elias, Teodoro Câmara, entre
outros.
O município de Juazeiro do Norte está localizado no Vale do Cariri, região do
extremo sul do Ceará. Distante 563 quilômetros de Fortaleza, é a Segunda maior cidade do
estado, depois da capital. Até o ano de 1872 o município era habitado por escravos, e não
passava de um arraial com poucas casas e uma capela bem pequena. No mês de abril desse
mesmo ano, chega para fixar residência na localidade o Padre Cícero Romão Batista, também
conhecido como Padre Cícero ou “padim”, que mudou a história da região. O recém-chegado
padre conseguiu em pouco tempo modificar os maus hábitos da população acabando
pessoalmente com a bebedeira e a prostituição que aconteciam em vários locais da cidade. Foi
com ele que a população daquele pequeno arraial conheceu os primeiros passos da religião e
do desenvolvimento. Mas foi um fato extraordinário acontecido no ano de 1889 que mudou
totalmente a rotina do lugar. Padre Cícero, ao dar a hóstia consagrada à beata Maria
Magdalena do Espírito Santo, se surpreendeu quando a hóstia se transformou em sangue. O
fato se repetiu dezenas de vezes com diferentes outros moradores da cidade. As toalhas que
eram usadas para limpar a boca das pessoas se tornaram objeto de curiosidade e foram
expostas para visitação. Apesar de terem sido testemunhados por muitos moradores e padres,
o Milagre de Juazeiro nunca foi reconhecido pela Igreja e Padre Cícero não foi beatificado.
A cidade, centro de romaria de Padre Cícero, é também lugar profícuo de
cantorias e poesia popular. Padre Cícero, figura mítica e religiosa, por ter aglutinado o
processo de produção de folhetos, é considerado personagem de um dos ciclos temáticos do
cordel, servindo como inspiração para os mais variados eventos sacros ou profanos, do início
do século XX até a atualidade. São inúmeros os cordéis que tratam da sua vida, morte,
profecias, milagres, posicionamento político, maneira de pensar. Neles se encontra o que o
84
povo crê a respeito do padre e das suas manifestações religiosas; ou que tratam de outros
assuntos mas se registra a presença do padre.
O cordel, portanto, está presente na história dessa região, que reflete, talvez, o
quadro geral do cordel escrito por mulheres no Brasil, na atualidade. Das 29 cordelistas
cearenses catalogadas na pesquisa, 19 ou são de Juazeiro do Norte ou tiveram suas produções
editadas naquela cidade.
Há de se registrar também a grande seara poética desenvolvida na cidade de
Crato, distante 12 km de Juazeiro do Norte e que mantém com esta intenso intercâmbio sócio-
cultural. Elói Teles, radialista, e que apresentou durante 35 anos, um programa radiofônico
intitulado “Coisas do meu sertão”, começou na década de 1960 a dar oportunidade a algumas
poetisas como Nair Silva:
“No início deste programa, 1960, poucas mulheres destacavam-se publicamente na
chamada poesia popular caririense, caso de Nair Silva. Em Juazeiro, esta
desenvolvia as ações culturais ‘folclóricas’ da cidade através do Instituto Cultural
Carirense – ICVC, onde tomou posse em 1974. Nair era professora, musicista,
seresteira...poeta! para ela Patativa do Assaré escreveu quando da sua morte: ‘Nair, a
Segunda vida/ a nossa eterna guarida/ segundo o que agente lê/ o paraíso é sem fim/
preparar um lugar para mim/ bem pertinho de você!’ Esta autora, todavia, não
escrevia versos nos moldes conhecidos do que se denominou chamar cordel, fazia
versos, porém, ‘brejeiros’, enlaçados pelo ritmo poético chamado matuto.”
56
Outra poetisa divulgada pelo programa de Elói Teles foi Mundinha Torquato,
musicista e dramaturga; embora tenha tido uma intensa produção de cordel (escreve desde
1985), só publicou seu primeiro folheto em 1998, através do projeto “SESCordel Novos
Talentos”, de Juazeiro do Norte. Também tiveram a oportunidade de divulgar seus trabalhos
através do citado programa radiofônico: Maria Esmeralda Batista, Sebastiana Gomes,
Rosimar Araújo e Josenir Lacerda. Segundo os cratenses, o programa de Elói Teles exerceu
grande influência na difusão da poesia sertaneja e do cordel, tanto de homens, como de
mulheres. Foi o fundador e primeiro presidente da Academia dos Cordelistas do Crato.
56
SANTOS, F. Romaria dos versos, p. 69.
85
Academia e Sociedade de Cordelistas: Crato e Juazeiro
Fundada em janeiro de 1991, A Academia dos Cordelistas do Crato é “uma
organização não governamental, sem fins lucrativos, de natureza cultural que tem por objetivo
resgatar o cordel em sua expressão mais autêntica.”
57
A criação do grupo foi iniciativa de
Elói Teles, e contou com a participação de doze poetas cujo objetivo principal era a união de
uma classe que representasse o que de mais puro e popular existe em termos poéticos, o
cordel. A Academia traz em seu estatuto uma série de regras como, por exemplo, a
obrigatoriedade do poeta morar na cidade de Crato, e regulamenta a criação de cadeiras e
patronos. Defendendo uma continuidade da tradição do cordel, o estatuto define um público
preferencial: o povo, rural e sertanejo, suas questões e aspirações.
No juramento, proferido pelos membros da Academia fica visível esta posição:
JURAMENTO DA ACADEMIA DOS CORDELISTAS DO CRATO
Eu prometo defender
com esforço absoluto
pra que eu faça valer
o que diz o estatuto
Ordem, respeito, união
amor pela poesia
trabalhar com o coração
pela nossa Academia
A cada verso sutil
que eu consiga rimar
será em honra do Brasil
e a cultura popular
Juro que no dia a dia
farei do verso o relato
pra honrar a Academia
dos Cordelistas do crato.
Embora introduzam algumas inovações nos folhetos – como a biografia do autor
no interior da capa, atualização de temas, como ecologia, política, feitos comemorativos –,
mantém um posicionamento bem conservador quanto às produções literárias: vetam,
censuram e não aceitam elementos de duplo sentido, nos cordéis selecionados para publicação
sob a égide da entidade. Desde a sua formação, pertencem ao grupo as poetisas Sebastiana
57
SANTOS, F. Romaria de Versos, p. 111.
86
Gomes de Almeida Job (Bastinha), Josenir Amorim; mais recentemente se incorporaram ao
grupo Anilda Figueiredo e Francisca Oliveira (Mana).
Sebastiana Gomes de Almeida, a Bastinha, nasceu em Santo Amaro, município de
Assaré (CE), terra de Antonio Gonçalves da Silva (o Patativa). Professora aposentada de
Língua Portuguesa e Literatura Popular da Universidade Regional do Cariri – URCA, tem
publicado um grande número de títulos, que abordam temas atuais como ecologia, tabus
sociais como o corno, as solteironas e as sogras, passando por motivos políticos atuais e pelo
gênero satírico. Com uma grande capacidade de versificar – geralmente em décimas – mesmo
sendo uma mulher acadêmica, traz a “visão popular, o dito, o provérbio, o escárnio, o
julgamento, a farsa, a moral, o encantamento, a superstição, o alegórico, o grotesco.”
58
Elementos da cultura popular oral que ela transpõe para a escrita, com humor e malícia,
criando uma estética própria, uma maneira diferenciada de fazer cordel. Ao criar estruturas
em que as rimas conduzem ao riso, ludicamente trabalha as mazelas sociais, a crítica política,
os costumes e tabus locais. Alguns títulos de sua autoria demonstram esta faceta de
criatividade: A sogra no folclore, Dona Flor e seus namorados, O corno e a tipologia, Só
quem segura os caídos é Deus e o sutiã, Santo Antonio responde à solteirona, A saga do
professor, Lula cadê?
O folheto Cordel no quadrão perguntado, editado em julho de 2005, traz na capa
xilogravura de Carlos Henrique: no plano principal a figura de um homem com uma mala na
mão, dirigindo-se ao aeroporto, numa clara alusão ao panorama político da época da
publicação. Na contra-capa há uma apresentação de Luciano Carneiro que explica a dinâmica
do quadrão perguntado: “O quadrão perguntado é um estilo muito solicitado pelos
apreciadores da cantoria. Por que além de gostoso de ouvir, serve para testar o conhecimento,
o potencial e a criatividade dos cantadores. Aonde um pergunta e outro responde.”
58
SANTOS, F. Romaria de versos, p. 89.
87
O Brasil vai sair dessa?
– só mesmo vendo pra crer;
e se isso não ocorrer?
– o povo é quem sofre à beça;
e a crise que atravessa
– vem de longe meu irmão
de quem é a culpa então?
– é do político safado
isso é quadrão perguntado
isso é responder quadrão.
E onde tá o dinheiro?
– tá guardado na cueca;
como fica a perereca?
– fica só sentindo o cheiro;
e o que tá n’outro maleiro?
– foi da venda do melão
e lucrou desse “tantão”
– porque foi bem adubado;
isso é quadrão perguntado
isso é responder quadrão.
E a C P I do Correio?
– acho que vai dar em pizza;
eles têm a cara lisa?
– o que importa é o bolso cheio
com o dinheiro alheio?
– e também do mensalão
e o povo ganha um quinhão?
– o quinhão de ser frustado.
Isso é quadrão perguntado
Isso é responder quadrão.
O social e o político confluem na voz da poetisa e se torna crítica contra o poder
estabelecido e a impunidade já sedimentada na história do País, denunciando também a
espoliação do povo verificada através do desvio de verbas. Enfaticamente pergunta: “Quem
tem nome de Excelência? – larápio na CPI”, numa demonstração de consciência crítica
amadurecida na observação dos fatos atuais. Vale salientar a semelhança com a poética de
Gregório de Matos, o “Boca de Inferno”, na Bahia do século XVII.
Sobre ecologia publica, em julho de 2001, Turismo e ecologia; em abril de 2003,
Grito Ecológico; e em abril de 2004 A água é fonte de vida não deixe a água morrer;
prestando, com a sua poesia, importantes e indispensáveis ensinamentos em defesa do meio
ambiente e de uma melhor qualidade de vida.
88
Bastinha, como é mais comumente conhecida, com o seu humor e através de
sátiras, intertextualidades e críticas sociais, imprime a marca da mulher na Literatura de
cordel cearense. Fiel aos princípios que norteiam a Academia dos Cordelistas do Crato, como
a conservação de um cordel “autêntico”, com métricas e temáticas que se aproximam do
tradicional e que exprimam os valores do e para o povo, a poetisa se destaca pelo valor
incomparável das suas criações.
Mas é em Juazeiro do Norte que ocorre uma verdadeira revolução do cordel, com
a criação da Sociedade dos Cordelistas Mauditos. Composto de 12 poetas (o mesmo número
de formação da Academia do Crato), eles iniciaram suas atividades no dia 1
º
de abril de 2000,
por ocasião das comemorações dos 500 anos do Brasil. Assim define FANKA o projeto do
movimento:
“Procurando trabalhar com a ‘intertextualidade’ consciente para ‘redimensionar’
esta literatura, os Mauditos propuseram: ‘criar novas formas visuais no cordel,
denunciar os costumes populares reacionários’, além de proporem uma prática
‘(eu)cológica’, ao introduzirem em suas oficinas de gravura a plantação da
umburana, árvore geradora da madeira onde é talhada a xilogravura juazeirense.”
59
Composta por artistas, poetas, músicos, artesãos, xilógrafos, atores, cantores,
apresentam um cordel redimensionado, com outras técnicas e linguagens e com temas que
abordam uma nova realidade social. A poetisa Francisca Pereira dos Santos, a Fanka,
integrante do grupo, esclarece que “o que caracteriza o cordel não são os temas tradicionais,
mas a sua forma, aliada a uma fórmula editorial”. Assim é que a carta de intenções da
Sociedade dos Mauditos enumera seus objetivos:
“Diversificar os códigos estéticos na literatura de cordel; buscar na cultura da região
os elementos revolucionários para composição do nosso movimento maudito, que se
desdobra em shows, performances, oficinas, exposições e mesas-redondas;
denunciar os costumes populares reacionários, como a visão do negro, da mulher, do
homossexual, etc; incentivar a leitura da poesia.”
59
SANTOS, F. Romaria de versos, p. 124.
89
Uma releitura de cordel é proposta, agregando a ele novos significados e outros
caminhos. A reflexão sobre questões pouco discutidas ou vistas sob o ângulo de preconceitos
reforçados ideologicamente pela classe dominante é uma das mudanças propostas.
O Manifesto dos Mauditos ratifica essa concepção:
“A nossa comunicação se dar através da poesia de cordel – traço de nossa identidade
nordestina. Odiamos os tecnicistas sem sentimentos literários. Somos contra o lugar
como, combatemos a globalização que impõe signos massificantes e uniformiza o
comportamento e estéticas; nosso movimento pretende, sob uma ótica intertextual,
utilizando vários códigos estéticos, redimensionar a literatura de cordel para um
campo onde todas as linguagens sejam possíveis. Não somos nem erudito nem
popular: somos linguagens. Entramos na obra porque ela esta aberta e é plural.
Somos poetas e guerreiros do presente. A poesia escreverá enfim outra história.
Salve Patativa do Assaré e Oswald de Andrade!”
Neste contexto de reformulação, emergem várias mulheres dando um cunho
diferenciado aos novos temas da literatura de cordel. As poetisas Salete Maria, Rivaneide,
Edianne, Maria dos Santos, Madalena de Souza, Luiza Campos, Silvia Matos, Camila
Alenquer encontram na Sociedade dos Mauditos significativo apoio para divulgar suas
produções.
Salete Maria da Silva, mestre do cordel
Advogada, ativista política, professora da Universidade Regional do Cariri (Crato-
CE), mestre em Direito, poetisa, membro da Sociedade dos Cordelistas Mauditos, Salete
Maria está inserida na proposta de apresentar um cordel diferenciado. Assim, são personagens
de sua poesia as mulheres, os homossexuais, os negros, as minorias. Discorre sobre o papel
feminino na atualidade, a violência contra as mulheres, o assédio sexual e moral, a velhice, os
grupos de homossexuais, cria estratégias para gerar possibilidades de resistência social à
exclusão e fazer mudar a História. Seus folhetos abrem espaço para digressões de ordem
filosófica, sociológica e moral e principalmente para a reivindicação de uma sociedade mais
justa, seguindo o pensamento de Foucault e outros teóricos da atualidade, segundo os quais a
90
literatura contemporânea deve fazer emergir as vozes que foram silenciadas e que não
detinham poder político na modernidade.
Dentro da proposta de discutir as vozes marginalizadas, Salete escreve 03 folhetos
sobre a homossexualidade: A história de Joca e Juarez (em parceria com Fanka), O grito dos
maus entendidos e o Dia do orgulho gay. Com esta temática procura dar visibilidade a um
preconceito arraigado na sociedade e inserido no imaginário coletivo ocidental como
“desvio”: o mundo dividido entre “normais” e “anormais, desviantes “, em que há a tendência
à exclusão e à condenação à marginalidade dos que não se enquadram dentro do padrão
heterossexual. Preconceito ainda mais reforçado dentro da perspectiva do mundo sertanejo,
cujos valores muito se aproximam de ideologias medievais.
O folheto A história de Joca e Juarez, editado em maio de 2001, com 8 páginas,
tem como epígrafe inicial os versos de Caetano Veloso e Milton Nascimento: “Toda maneira
de amor vale a pena/ qualquer maneira de amor valerá”. Nas primeiras estrofes já são
delineados os personagens, as linhas de forças como Deus e Diabo e o misticismo do Padim,
que servirão como desestabilizadores da ordem pré-estabelecida:
Juarez era um senhor
Devoto do meu padim
Trabalhava com ardor
Cultivando seu jardim
“um dia o cão atentô”
e Juarez se apaixonou
por Joca de Manezim!
Isso se deu em meados,
De mil novecentos e seis
Naquele tempo veado
Era bicho que deus fez
“home não ama ôtro home
senão vira Lobisomem”
disse o padre, certa vez.
Note-se que a narrativa descreve um dos personagens como um homem
trabalhador, religioso (devoto do padim), portanto dentro de uma ótica convencionada do que
é “normal”. A desconstrução se dá através do sobrenatural – “um dia o cão atentô –, é o
Satanás que subverte a lei natural e faz acontecer o amor entre os dois homens. A punição,
91
transformação do homem em Lobisomem é avalizada por um padre (padim) como
representação do poder constituído, que legitima a ordem pretensamente natural das relações
do homem dentro da sociedade.
Pra você vou alembrar:
Romão era conselheiro
Vivendo a orientar
Beatos e bandoleiros.
Apesar da seca forte
Do milagre fez suporte
Que atraía os romeiros.
Misturando Joca e Juarez, o casal de homossexuais, com “Padim Ciço” e as artes
do demônio, de uma maneira lírica e sensível e utilizando-se de intertextualidades com as
músicas de Djavan, Faltando um pedaço (nos dois primeiros versos) e de Milton Nascimento
e Caetano Veloso, Paula e Bebeto (no penúltimo), versa sobre o amor:
O amor é grande laço
O amor é armadilha
O amor não tem compasso
O amor não segue trilha
O amor não se condena.
Todo amor vale a pena
Salve quem ama e brilha!
Nos versos finais, a epifania da situação:
Após o “ide em paz”
O povo se recolheu
Ao cabaré de Lilás
Foi Floro Bartolomeu
Meretriz com seu cartaz
Joca, Juarez e um rapaz
Enfim, o amor se deu.
Para época em questão
O ocorrido era novo
Foi alvo de agitação
Entre pessoas do povo
Mas Floro Bartolomeu
Com o poder que recebeu
Tornou comum como um ovo.
A expressão final da estrofe remete à representação do “ovo” como “símbolo
universal do mistério da criação original, a vida a romper o silêncio primordial”, significando
a gênese, o microcosmo perfeito. Nos mitos da criação, do Egito, Índia, Ásia e Oceania, um
ovo cósmico, que pode ser fertilizado por uma serpente ou posto por uma ave gigante, dá
92
forma ao caos de onde eclode o sol (a gema), a divisão entre terra e céu e a vida em todas as
suas formas, naturais e sobrenaturais. Em figuras mitológicas o ovo significa também
renascimento: a Fênix, que morreu no fogo, ressurgiu de seu próprio ovo; o deus Dionísio era
mostrado carregando um ovo como símbolo de sua eventual reencarnação. No Cristianismo,
durante as cerimônias da Páscoa o ovo representa a ressurreição. A ligação do ovo com a
criação é reforçada pela forma de testículos do ovo e pela dualidade sexual da gema e da
clara; no Congo asssocia-se a gema ao ardor feminino e a clara o esperma masculino
60
. Na
finalização do folheto A história de Joca e Juarez, o simbolismo da transformação do
preconceito em um ovo leva a uma reflexão sobre o nascimento de uma nova ordem social,
em que as preferências e direitos individuais sejam respeitados.
Uma outra vertente de sua temática, os direitos humanos, sinaliza um dos
objetivos a que se propõe a poetisa, que é a divulgação e esclarecimentos dos direitos
fundamentais presentes na vida cotidiana dos membros da comunidade. Assim, compõe, em
2001, o folheto Direito fundamental em constante evolução!, em que, através da poesia, dá
informações acerca de situações corriqueiras, traduzidas da Constituição Federal, em
linguagem acessível, diferente da linguagem técnica do documento oficial:
Direito fundamental
Tá na Constituição
É aquele sem o qual
Não existirá razão
Da gente bater no peito
E protestar por respeito
Se dizendo cidadão
É direito de existir
E jamais ser molestado
Direito de ir e vir
E também ficar parado
É o direito de pensar
De poder se expressar
E não ser discriminado.
60
TRESIDDER. O grande livro dos símbolos, p. 253.
93
Direito de estudar
De morar, de ter lazer
Direito de trabalhar
De salário perceber
E de se aposentar
Quando o tempo chegar
Sem ter de se aborrecer
Cumpre-se o papel social da literatura, levando às camadas menos favorecidas, ou
ao homem do povo, conhecimento das normas que regem as relações tanto no plano das
representações individuais como na coletiva.
Mas é na temática sobre as mulheres que Salete Maria investe grande parte de sua
produção. Inúmeros folhetos foram editados desde 1999, em que se percebe, além de denúncia de
situações sócio-culturais dominantes – como a agressão, estupros e até mortes –, a identificação
dos principais traços/funções caracterizadores das mulheres e seus universos íntimos, como
também propostas de reconstrução de uma imagem feminina. Folhetos como Habeas bocas
companheiras!”, Mulheres fazem, O que é ser mulher?, Mulher-consciência – nem violência nem
opressão, Mulher-Cariri Cariri-mulher, Embalando meninas em tempos de violência, Mulheres
(invisíveis) de Juazeiro, Cidadania nome de mulher, dão idéia da gama de assuntos tratados.
No folheto Embalando meninas em tempos de violência, editado em 2001, com 4
páginas, transpõe algumas canções do repertório do cancioneiro popular ou das cantigas de
roda, denunciando a violência a que comumente é submetida a mulher da região. Na
apresentação do folheto a Profa. Sônia Maria da Silva, escreve:
A violência contra a mulher tem crescido assustadoramente na região do Cariri.
Sobre esta temática a autora já escreveu ensaios, matérias para jornais e quatro
cordéis.
Neste Embalando meninas em tempos de violência ela mostra de maneira
dramática o que hoje se pode ‘cantar’ para embalar o sono das futuras gerações.”
A transposição, prática textual apontada por Genette como de regime sério, é uma
das técnicas utilizadas pelos poetas populares nos folhetos de cordel. De uma maneira
contundente, fazendo transposição de cantigas de roda, tão comuns no universo das
brincadeiras infantis, Salete Maria registra a violência contra a mulher:
94
Terezinha de Jesus
De uma queda foi ao chão
Alguém viu um cavalheiro
Com uma faca na mão
Depois um tiro certeiro
Dilacerou por inteiro
O seu jovem coração.
“Marido que bate, bate
marido que já bateu”
Quem não aguenta calada
Conhece quem já morreu
Eis o que diz a moçada
À noite pela calçada
Sobre o que aconteceu.
Uma é rica, rica, rica
De mavé, ma, ma
Outra pobre, pobre, pobre
De mavé, ma, ma
Escolhei a que quiser
Pois ambas são agredidas:
A porrada e ponta-pé
“O amor que tu me tinhas
era pouco e acabou”
Mas teus pés nas costas minhas
Deixou marcas, tatuou
Comentei com a vizinha
Pois era o que me convinha
E por isto, então, ficou.
“O cravo brigou com a rosa
dentro de sua morada
A rosa saiu ferida
E o cravo a dar risada
A rosa pediu socorro
E o guarda veio atender
Se o cravo é seu marido,
Não devemos nos meter”.
Através do folheto permite-se ler uma situação recorrente no seio da comunidade.
Com uma poesia crítica e testemunhal, a autora investe no desejo de fazer ver e/ou levar à
reflexão um quadro de discriminação sócio-cultural; contando com seu discurso feminino,
cheio de imagens que remetem a situações vivenciadas pelas mulheres, faz do cordel espaço
para seus questionamentos. Na esteira desta proposta edita em 2001 Mulher-consciência nem
violência nem opressão e Cidadania Nome de Mulher; em 2004 lança Mulheres do Cariri:
mortes e perseguição.
95
No site www.ceará.gov.br/notícias
61
pode-se tomar conhecimento da violência
contra as mulheres na região do Cariri:
06.09.2002 – POLICIA DESVENDA CRIMES NA REGIÃO DO CARIRI
Fortaleza (Agência Ceará – AC) – O trabalho integrado das Polícias Civil e Militar
realizado na região do Cariri – sul do Ceará – permitiu que 94% dos homicídios
contra a mulher, nos últimos 20 meses (janeiro de 2001 a 31 agosto de 2002) fossem
solucionados, ou seja, que os executores – e em alguns casos os mandantes – fossem
identificados. Em um ano e oito meses foram registrados 34 homicídios (vítima
mulher), dos quais 32 já tiveram os criminosos identificados.
Apenas dois casos continuam sendo investigados. O primeiro é da Telma de Sousa
Lima, assassinada em 29 de maio do ano passado, no Crato. A apuração prossegue e
em breve o autor do crime terá seu nome divulgado. O segundo é mais recente:
Miguelina Cardoso Cosmo, morta em Juazeiro do Norte, no último dia 26 de junho.
A maioria dos casos de homicídios é de caráter passional.
A sensibilidade poética de Salete Maria não poderia ficar à margem de tal
situação. Com o título Mulheres do Cariri: mortes e perseguição, aborda o fato. A capa já
deixa entrever o tema: rostos de mulheres que choram e uma mão que pede socorro. Nos
versos, a indignação de quem espera soluções.
Nosso velho Cariri
Que tanta beleza ostenta
Onde a flor do pequi
Deixa a boca sedenta
Não só pela natureza
É lembrado com tristeza
Por tanta morte sangrenta
A Chapada do Araripe
De cristalinas nascentes
Onde já subi de jipe
Vi riquezas imponentes
Virou palco de tragédia
(antes fosse uma comédia)
matar mulher inocente
No ano dois mil e dois
Estampadas nos jornais
Li várias vezes depois
Manchetes! Nada de paz!
Uma onda de terror
Espalhando medo e dor
Foi crueldade demais
Revólver, faca e pau
Usados para extinguir
A vida (e não o mau)
Quem ousava reagir?
Os corpos dilacerados
Haviam dedos cortados
Findava então o porvir.
61
Acesso em 03.11.2005.
96
A poesia é repleta de magia, beleza, sabor, vida e, paradoxalmente, morte. Os
sentidos se aguçam pois, como num sonho (ou filme), a descrição das situações é feita
valorizando o cenário natural e a tragédia. O olhar da poetisa vê, não apenas as belezas como
as flores, as nascentes, signos de vida, mas também a morte das mulheres. O olhar é, desta
forma, o instrumento que revela e denuncia ao mesmo tempo, o dilaceramento dos corpos, a
destruição do ser, a morte dolorosa, o limite de tudo, o fim do porvir. E mais ainda, a
impunidade dos culpados favorecida pela inércia da sociedade.
Um outro folheto, O que é ser mulher?, publicado em 2001, retoma a questão
sobre a condição feminina na atualidade. Uma crítica veemente sobre os meios de
comunicação que traça um perfil na sociedade de consumo: ”mulher é quem faz o tipo/ da
mulata ‘globeleza’?/ ou quem arrisca uma ‘lipo’/ e agride a natureza.”
Fazendo intertextualidade com Simone de Beauvoir, que, no início da obra O
segundo sexo, afirma que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino
biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização” que o determina, provocativamente a poetisa
pergunta:
Alguém já nasce mulher?
Ou em mulher se transforma?
E se um homem quiser
Então mudar sua forma?
Quem poderá impedir
Se a alma consentir
Quem pode ditar a norma?
[...]
Será mulher a gordinha
Que se ama e se respeita?
A negra, baixa, a magrinha
Que como é se aceita?
Ou somente é mulher
Quem o “mercado” disser
Ou por ele for eleita?
Inserida no contexto de apresentar um cordel em que o elemento feminino se faça
presente, a poetisa, ao nomear o sujeito que é obliterado por questão não só de gênero mas
também da categorização de estereótipos – a gordinha, a negra, a baixa, a magrinha -, ditados
97
pelo mercado de consumo, faz emergir uma poesia em que desloca seus personagens em
busca de novos parâmetros e novas dimensões críticas e poéticas.
Parece-me que a mulher
É um ser fundamental
Não é melhor que o homem
Convém que seja igual
Não é mero “complemento”
É um “acontecimento”
Do dito reino animal.
Procurando dar visibilidade à presença feminina, escreve o folheto Mulheres
fazem, em que enumera múltiplas funções possíveis à condição da mulher e sua participação
na vida da sociedade, abrindo espaço para a tomada de consciência de uma nova identidade:
Mulheres fazem esforço
fazem pesquisa de campo
fazem aula de reforço
fazem remendo de tampo
Mulheres fazem sinal
fazem bis no carnaval
fazem presilha e grampo
Mulheres fazem tratados
fazem lavagem de roupas
fazem compras em mercados
fazem que são muito loucas
Mulheres fazem revistas
fazem também entrevistas
fazem favor como poucas
Mulheres fazem o mundo
fazem o globo girar
fazem tudo num segundo
fazem a vida durar
Mulheres não fazem guerra
fazem nascerem na terra
os frutos do verbo amar
Mulheres fazem, enfim
parte da espécie humana
não é pior nem melhor
é o anjo mais sacana
Mulher é a “bruta-flor”
de quem Caetano falou
não convence, mas engana.
Intercalando atividades privadas, como trabalhos domésticos, e outras ditas
públicas, como profissões autônomas, a cordelista lança seu grito de protesto, de contestação
do estabelecido, do falso moralismo das ideologias vigentes. Percebe-se um discurso crítico,
98
desmistificador da condição da mulher, um chamamento para derrubar barreiras e transgredir.
Fazer “parte da espécie humana” é ser sujeito de sua história, buscar na banalidade do
cotidiano sua dignidade, objetivos e razões de vida.
Em setembro de 2005, com o folheto Mulher também faz cordel, conquista o 2
º
lugar no concurso nacional de Literatura de cordel promovido pela Fundação Cultural do
estado da Bahia. Nos versos, um panorama da situação do cordel no Brasil, desde às suas
origens ibéricas até os dias atuais, e da contribuição da mulher no contexto da produção de
folhetos.
O folheto de cordel
Que o povo tanto aprecia
Do singelo menestrel
À mais nobre Academia
Do macho foi monopólio
Do europeu foi espólio
Do nordestino alforria
Desde que chegou da França
Espanha e Portugal
(recebido como herança)
De caravela ou nau
O homem o escrevia
Fazia a venda e lia
Em feira, porto e quintal
Se agora a gente vê
Mulher costurando rima
É necessário dizer
Que de limão se fez lima
Hoje o que é limonada
Foi água podre, parada
Salobra com lama em cima
[...]
Nas cantigas de ninar
Na contação de história
Tava a negra a rezar
A velha e sua memória
Porém disso não passava
Nada ela registrava
Pra sua fama e glória.
Quanto ao aspecto formal, Salete Maria utiliza preferencialmente a setilha, que,
como a sextilha, destacam as rimas como auxiliar mnemônico. Nas setilhas, as rimas ocorrem
na fórmula abcbddb.
99
Assim, à mestre do Cariri cumpre a importante missão de fazer aparecer, em meio
à sociedade tradicional, o amadurecimento de uma consciência crítica e contestadora da
mulher contemporânea. Não mais silêncio e opressão, mas acima de tudo voz que exige o
registro de sua história para ser incorporada ao presente e ao futuro, rompendo com o estigma
de uma escrita feminina limitada à expressão de menos valia ou da subjetividade da mulher. A
Literatura de cordel apresenta-se, neste contexto, como catalizador do processo, permitindo
vislumbrar inquietações, sensações, experiências, saberes, indignações de ordem política e
social da mulher, enquanto sujeito da sua história.
Mulheres xilógrafas
Constitui um aspecto de grande importância no cordel a xilogravura de suas
capas. Sabe-se que o cordel antigo não trazia xilogravuras. Suas capas eram ilustradas apenas
com cercaduras e vinhetas – arabescos usados nas pequenas tipografias do interior nordestino.
A partir da década de mil novecentos e trinta, surgiram folhetos trazendo nas capas fotos de
artistas de cinema, de Padre Cícero e Lampião, além de postais e desenhos. A xilogravura ou
“taco”, como ainda hoje preferem chamar os artistas populares, é feita usando madeiras leves,
como umburana, pinho, cedro, cajá, onde são talhados cortes que resultam em áreas “brancas”
que a tinta não atinge. A imagem que recebeu a tinta é formada pelo relevo da madeira, que
sobra depois do corte e que, como um carimbo, ou matriz, como é conhecida, serve para a
estampagem da gravura no papel. O gravador Dila foi o primeiro a substituir a madeira por
borracha vulcanizada, inaugurando assim a linogravura do cordel.
A xilogravura – arte de gravar em madeira – é de provável origem chinesa, sendo
conhecida desde o século VI. No Ocidente, ela já se afirma durante a Idade Média, através das
iluminuras e confecções de baralhos, e era considerada apenas como técnica de reprodução.
Só mais tarde ela começa a ser valorizada como manifestação artística. No século XVIII,
100
chega à Europa nova concepção revolucionária da xilogravura: as gravuras japonesas a cores,
processo que só se desenvolveu no Ocidente a partir do século XX. Hoje, já se usam inúmeras
cores e nuanças em uma só gravura.
No Brasil, a gravura erudita tem como marco o ano de 1912, com a exposição do
artista alemão Lasar Sagall, em São Paulo. Posteriormente, outro artista importante desse
gênero de arte foi Oswaldo Coledi, carioca, filho de suíços, professor da Escola de Belas
Artes, que deixou discípulos distintos, como Lívio Abramo, Yolanda Mohaliy, Carlos Scliar,
todos também xilógrafos reputados, ao lado de nomes mais modernos como Marcelo
Grassmann, Fayga Ostrower, Maria Bonomi, Gilvan Samico e outros. Samico interessou-se
vivamente pelas xilogravuras dos artistas nordestinos. Nelas, admirou a genuína expressão da
criatividade dos xilógrafos: as soluções plásticas sintéticas, o traço forte, incisivo, a rude e
bela expressividade dos desenhos, o mundo fantástico dos seres míticos e mágicos. Ao lado
dos folhetos, essas xilogravuras do cordel refletem ideais, anseios e sonhos do homem
nordestino.
Na história da Literatura de cordel vários são os xilógrafos que se destacam e que
podem ser tomados como exemplos da arte do povo, que se perpetua através do tempo:
Abraão Batista (Juazeiro); Ciro Fernandes (Rio de Janeiro); José Costa Leite (Condado);
Marcelo Alves Soares (São Paulo); Minelvino Francisco Silva (Itabuna); Severino Gonçalves
de Oliveira (Recife); J. Borges (Bezerros-PE)..
Gilmar Carvalho
62
esclarece que, no Nordeste, a arte milenar da xilogravura
encontra “na ponta da faca sertaneja, no canivete de cortar fumo e até nas hastes de guarda-
chuvas uma perfeita adequação e tradução de todo um imaginário de princesas, dragões e
mitos como Lampião e Padre Cícero”. Embora se utilizem de instrumentos improvisados e
rudimentares, há de se destacar a engenhosidade do gravador nordestino, que, tendo como
62
CARVALHO, Desenho Gráfico Popular, p. 10.
101
ponto de partida a inspiração em iconografia religiosa, em ilustrações de livros escolares ou
rótulos de produtos industrializados, traduz em gravura a sinopse do folheto. Para se chegar a
um trabalho representativo da estória impressa é necessário que o artesão leia o texto, retire os
elementos importantes e posteriormente elabore sua imagem.
Em Juazeiro do Norte, a partir de 1940, registram-se grandes tiragens de folhetos,
notadamente na tipografia São Francisco, de propriedade de José Bernardo da Silva, o que
ocasionou uma grande demanda de xilógrafos para ilustração das capas dos folhetos.
Ao lado de grandes xilógrafos da região do Cariri, surgem algumas mulheres que,
usando a técnica da xilogravura, entalham na madeira as ilustrações dos cordéis, imprimindo
desta forma o traço feminino na capa dos folhetos. Nos cordéis de autoria feminina coletados
para a pesquisa, no Ceará, aparecem as xilogravuras de 8 mulheres: Erivana, Edianne Nobre,
Jô Andrade, Emanuele Alencar Pinheiro, Maria Rivaneide, Áurea Brito, Regilene Stéfanni e
Eliane Nobre. Não seria possível afirmar que fazem uma ilustração diferente da masculina,
uma vez que a arte é individual e revela concepções surpreendentes, com beleza plástica e
expressão, tanto na criação feminina como na masculina. Talvez um estudo mais aprofundado
sobre o assunto poderia identificar algumas características como traços mais finos, áreas
menos chapadas, a preferência por certos tipos de abordagens, etc.
Jô Andrade é a xilógrafa que aparece com maior número de ilustrações nos
cordéis femininos; são de sua autoria as capas dos folhetos Peleja de Dríade e Virgínia Ninfa
das trevas, de Edianne Nobre; No tempo da clarabóia, de Fanka; A História do cordel, de
Maria do Rosário Lustosa da Cruz; A escravidão no Brasil de Maria Rosimar; e Assédio
Moral: diga não!, de Salete Maria.
Vale ressaltar que, durante a minha pesquisa, não localizei nenhuma mulher
xilógrafa na Paraíba.
102
NÃO EXISTE PONTO FINAL, MAS PONTOS DE PARTIDA
Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para
todo o sempre, talvez elas, [...] soubessem dizer-
nos o que nos falta saber.
José Saramago. O Evangelho segundo Jesus Cristo.
O título é parafraseado do livro Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu, de Roberto
Freire, em que o escritor discorre sobre a quase impossibilidade de se terminar uma obra
literária, no caso, o livro que estava escrevendo. À medida que pretendia pôr um ponto final
em um assunto, vários outros correlatos apareciam, determinando outras linhas de
pensamento, outras partidas. Comungando com o escritor este sentimento de recomeços,
inicio estas considerações finais.
No projeto de dissertação que apresentei ao Programa de Pós-Graduação em
Letras – Estudos Literários, da UFMG, o meu objetivo principal era “contribuir para uma
maior difusão da cultura popular, especificamente a Literatura de Cordel, salientando a
autoria feminina.” Durante todo o período da pesquisa (e mesmo antes dela formalizada)
procurei levar a cabo este meu intento. As mulheres cordelistas apareceram, com as suas
peculiaridades regionais e maneira especial de escrever, dentro do mundo hegemonicamente
masculino da Literatura de cordel. Vale ressaltar que as autoras, diferentemente dos seus
precursores masculinos – geralmente homens do povo, com pouca escolaridade –, têm um
nível de instrução formal elevado. A grande maioria das poetisas são vinculadas a
universidades, exercem o magistério e outras funções de nível superior. São doutoras e
mestres em diferentes áreas do conhecimento, como Sociologia, Letras, Antropologia, e, com
raras exceções, não utilizam a produção literária do cordel para sobreviver. Incentivadas por
organizações como a Academia dos Cordelistas de Crato, Sociedade dos Cordelistas
103
Mauditos, alguns poetas populares como Manoel Monteiro e por iniciativas culturais de
Secretarias Municipais e Estaduais, as poetisas escrevem folhetos, dando visibilidade aos
seus pensamentos, sentimentos e percepções do universo em que vivem, no mundo masculino
da Literatura de cordel.
Mas como as mulheres escrevem? Existem diferenças fundamentais entre os
folhetos escritos por homens e os folhetos escritos por mulheres?
Isabel Allegro de Magalhães, ao estudar a questão da escrita feminina, cita duas
linhas paradigmáticas da crítica literária que poderiam definir como as mulheres escrevem. A
corrente anglo-americana afirma que os “textos de autoria feminina cuja matéria é a opressão
sexual e social das mulheres e as lutas de libertação”
63
mantêm uma “atitude reivindicativa”,
procurando dentro do sistema patriarcal um lugar para si, uma identificação. Já a corrente
francesa, tem uma visão mais abrangente, que inclui a questão da linguagem:
“Com uma formação filosófica, lingüística e psicanalítica, as autoras assumem uma
postura qualitativamente diferente. Preocupam-se com a definição de uma
identidade feminina e com as suas realizações simbólicas, procurando encontrar
uma linguagem própria para as experiências do corpo e da intersubjetividade,
deixadas mudas pela cultura dominante.”
64
Embora as duas correntes tenham posicionamentos diferentes em alguns aspectos,
é unanimidade que as autoras, ao fazer protesto com seus textos, rompem com a ordem social
e simbólica dominante à procura de uma identidade feminina, desconstruída ao longo do
tempo.
Na Literatura de cordel, onde encontrar essas premissas? Para efeito de
sistematização
, utilizarei algumas diretrizes elaboradas por Isabel de Magalhães, que
poderiam identificar tendências predominantes na escrita das mulheres. Ela cita três aspectos:
1. Temas abordados, universos criados e meios sociais em presença;
2. Posicionamentos das autoras e criação das suas personagens femininas;
63
MAGALHÃES. O sexo dos textos e outras leituras, p. 19.
64
MAGALHÃES. O sexo dos textos e outras leituras, p. 19.
104
3.
Aspectos da linguagem e da construção narrativa.
Com referência ao primeiro item, numa análise dos títulos dos cordéis escritos
pelas mulheres, observei que a maioria prefere escrever sobre acontecimentos da vida urbana,
conforme demonstrado no Anexo. Utilizando-se de lendas, mitos, estórias tradicionais e,
comentando fatos políticos, as poetisas normalmente apresentam um final moralizante, uma
crítica aos costumes e preconceitos, o que foi possível verificar especialmente na análise de
alguns folhetos de Maria Godelivie e Salete Maria. Outros folhetos que tratam de
acontecimentos urbanos também descrevem fatos políticos e trazem um cunho moralizador,
aspecto que também é encontrado nos folhetos de autoria masculina, o que, a princípio, não
forneceria um diferencial feminino.
Os meios sociais e contextuais presentes nos temas abordados pelas poetisas
apontam para uma grande diversidade: além do ambiente doméstico, local de grandes
transformações, como verificamos nos folhetos de Maria Godelivie, a sociedade local em que
está inserida a cordelista, presente nos versos de Salete Maria, o ambiente rural, as romarias,
peregrinações, fatos sociais e de interesse da comunidade e também lugares não situados, da
utopia e do desejo. O cordel Regresso a São Saruê, de Maria Julita Nunes, descreve o lugar
idealizado: “Tens o carro d’alegria/ pros caminhos percorrer/ aqui há paz, poesia/de manhã ao
anoitecer/ o canto da cotovia/ não deixes São Saruê.”
Os universos criados pelas mulheres detalham ora aspectos da vida rural, ora da
vida urbana, mas sempre entrecruzando a magia com a vida cotidiana e com uma re-
interpretação dos temas tradicionais e históricos. Lourdes Ramalho, por exemplo, no folheto
Viagem no Pau-de-Arara, cria uma atmosfera de dor e lamento ao relatar a viagem ou êxodo
do povo nordestino, fugindo da seca: “Eu sou Maria das Dores/ nascida lá no sertão/ levo a
terra no meu peito/meu povo no coração/ já que não tenho outro jeito/me vou por este
mundão!”. Faz um relato histórico das secas nordestinas, descreve o universo do espaço do
105
ônibus (“nem hotel, nem restaurante/nem banheiro pros aperto”), denuncia mazelas sociais
como a ausência de controle da natalidade, a loucura provocada pela falta de condições
básicas de vida, como o alimento e a moradia, e a saudade da terra natal de quem parte para
regiões desconhecidas.
Referências religiosas também estão presentes no ambiente poético das mulheres.
Vários folhetos abordam as festas religiosas, passagens bíblicas, antinomia do bem contra o
mal, messianismo e principalmente a temática de Padre Cícero. O que os diferencia dos
folhetos escritos por homens são os enfoques, predominâncias, visões críticas dos fatos.
Quanto à construção das personagens femininas, a obra de Maria Godelivie
exemplifica bem o posicionamento da mulher, vista através de uma percepção interior, uma
visão de dentro quanto ao ser e ao estar das mulheres. Como já foi dito antes, a princípio, as
personagens são apresentadas de uma forma tradicional, dentro da perspectiva de uma
sociedade patriarcal, para, no desenvolver da trama, promover uma verdadeira mudança de
papéis. Não mais circunscritas numa visão masculinizada do que é ser mulher, mas numa
atitude renovadora, propõem uma nova identidade, livres das amarras que as oprimiram e as
relegaram ao silêncio. Maria de Fátima Coutinho descreve no cordel A vida da mulher os
anseios desta nova identidade: “A mulher precisa e quer/ o direito de escolher/ a vida que quer
levar/ com quem deseja viver/ nisso a mulher tem direito/ Ter direito é ter poder.”
Salete Maria fala das mulheres e das propostas para uma condição feminina
liberta de estereótipos e respeitada na sua diferença. Denunciando o sistema que mutila e
mata, tanto física como psicologicamente, a poetisa convida o leitor para uma reflexão sobre a
condição feminina na atualidade. Irreverente, contestadora e irônica, através dos seus versos é
possível observar uma tomada de consciência, a formação da identidade feminina. Em
Mulheres do Cariri: mortes e perseguição conclama para um posicionamento: “Mulheres que
se dedicam/ a construir a história/ que dia-a-dia acreditam/ resgatarem a memória/ daquelas
106
que já partiram/ que em vida construíram/ sua própria trajetória.” A indefinição dos
personagens masculinos serve, ao meu ver, de contraponto que valoriza o posicionamento da
autora na delimitação dos temas e dos conflitos que marcariam, com exclusividade, o
universo feminino.
Quanto à linguagem e construção do discurso, Magalhães afirma que “na
construção narrativa, na estrutura, na sintaxe, na semântica ou no ritmo”
65
como também
nos aspectos próximos da fala, da linguagem oral, é possível se encontrar elementos que
podem exprimir uma escrita feminina. Outros aspectos considerados pela autora como
importantes nesta distinção são: “a combinação da racionalidade com uma atitude emotiva e
afetiva”
66
; a intertextualidade, em que se verifica a erudição que as mulheres adquiriram
enquanto permaneceram silenciadas; uma “intencional transgressão de modo a produzir, por
um lado, uma atitude lúdica em quem escreve e em quem lê e, por outro lado, a introduzir na
linguagem, mais sonoridades, mais ritmos, mais informação”.
67
Ao analisar folhetos de várias cordelistas, constatei a presença da maioria dos
elementos identificados por Isabel Magalhães como aqueles que poderiam configurar uma
escrita própria das mulheres. Aproveitando as formas da linguagem coloquial e popular,
tratando do seu cotidiano e da sociedade como um todo, as mulheres escrevem poesias
revestidas de novas cargas de significação, de interrogações, legitimando novas perspectivas.
Em A ordem do discurso, Foucault aponta três tipos de interdição do discurso:
tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala.
Ao longo da história, as mulheres sofreram um processo de silenciamento e de exclusão,
sendo sempre o homem a ocupar a função do sujeito que fala, tanto na literatura como em
65
MAGALHÃES. O sexo dos textos e outras histórias, p. 42.
66
MAGALHÃES. O sexo dos textos e outras histórias, p. 44.
67
MAGALHÃES. O sexo dos textos e outras histórias, p. 47.
107
outros discursos. Para a mulher foram reservadas as funções de procriar, administrar a casa, a
comida e zelar pela família e pelo lar, enquanto o homem assumia a vida pública.
Embora se registre a presença feminina nas contações de estórias desde os tempos
coloniais, e pesquisadores da cultura popular brasileira tenham identificado um estilo
feminino na maioria das canções anônimas coletadas, na Literatura de cordel, só a partir de
1970 é que se pôde registrar esta autoria, à exceção da poetisa Maria das Neves Pimentel, que
escrevia folhetos desde 1938, sob o pseudônimo de Altino Alagoano. Fatores variados como o
analfabetismo que durante muito tempo predominava na população feminina, a questão da
autoria nem sempre reconhecida na poesia popular, a falta de recursos materiais que
garantissem à mulher o seu sustento, e a ausência de divulgação do cordel das poetisas –
quando passaram a escrever – contribuíram para excluí-las da história do cordel brasileiro.
Um quadro sobre a situação da mulher no início do século XX é descrito por
Virgínia Woolf
68
em Um teto todo seu:
“Um ser muito estranho, complexo, emerge então. Na imaginação, ela é da mais alta
importância; em termos práticos, é completamente insignificante. Ela atravessa a
poesia de uma ponta à outra; por pouco está ausente da história. Ela domina a vida
de reis e conquistadores na ficção; na vida real, era escrava de qualquer rapazola
cujos pais lhe enfiassem uma aliança no dedo. Algumas das mais inspiradas
palavras, alguns dos mais profundos pensamentos saem-lhe dos lábios na literatura;
na vida real, mal sabia ler, quase não conseguia soletrar e era propriedade do
marido.”
As mulheres atravessaram o silêncio e ficaram muito tempo ausentes do discurso
histórico, mas tiveram coragem suficiente para soltar sua voz polissêmica e polifônica.
Erguem-se, pois, inovadoras da linguagem, desafiando velhos paradigmas, desconstruindo
situações e vivências em que se sedimenta a sua identidade. Com a sua poesia, promovem
uma subversão dos estereótipos femininos tradicionais, criando uma nova ordem social: a
transformação da mulher de objeto em sujeito da história e da vida.
68
WOOLF. Um teto todo seu, p. 58.
108
Se a literatura medieval aponta, embora com poucas alusões, a presença feminina
nas manifestações artísticas na Europa, no Brasil colonial, de uma forma ainda velada, já é
possível encontrar a autoria feminina em vários segmentos literários como jornal, poesia,
romance e no final do século XIX, até mesmo em cantorias – como é o caso de Maria do
Riachão e de Rita Medêro –, na atualidade, mulheres emergem no espaço da Literatura de
cordel.
Através da poesia de cordel, as mulheres dão um testemunho do que sentem e
como vêm a própria imagem e de como assimilam a tradição ou a rejeitam, traçando novos
caminhos em que sua voz possa ser ouvida, rompendo com a herança cultural que destinou à
mulher um lugar marcado de silêncio e estereótipos.
Realizar a pesquisa de campo, viver intensamente e com consciência todas as suas
etapas – as viagens longas, a adaptação ao espaço, ora em cidades do Sudeste, ora em cidades
do Nordeste, o reconhecimento do local, a procura pelos folhetos, o contato com as pessoas;
posteriormente, o manuseio do material coletado, as lembranças e as anotações das
impressões das viagens, a manutenção de correspondência com as pessoas contatadas – talvez
tenha sido a parte mais significativa deste trabalho. Tão importante quanto descobrir em cada
folheto, nas entrelinhas de cada produção, a sensibilidade e a alma criativa da mulher, na
conquista de novos espaços para expressão de seus desejos e ideais.
Os folhetos chegaram às minhas mãos, ora pelas mãos das cordelistas que,
timidamente, apresentaram suas produções, ora como resultado de exaustivas pesquisas em
acervos de instituições de pesquisa; ou, ainda, foram encontrados escondidos em bancas onde
eram comercializados, embora desconhecidos pelos próprios vendedores. Numa dessas
bancas, ao perguntar ao vendedor, também cordelista, sobre produções de autoria feminina,
ele me retornou a pergunta: “– E elas existem?”.
EXISTEM.
109
Enfrentando todos os desafios, de ordem sócio-econômica e também cultural, as
mulheres cordelistas utilizam-se dessa forma de manifestação popular e deixam fluir sua
poeticidade. Desse modo tentam mudar os rumos da Literatura de Cordel, considerada como
propriedade privada dos homens. As mulheres, agora, também têm vez e voz na criação de
cordel.
110
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GOTLIB, Nádia Battella. A Literatura feita por mulheres no Brasil. In: BRANDÃO, Izabel;
MUZART, Zahidé. (Orgs.). Refazendo nós. Florianópolis: Editora Mulheres, 2003.
114
HAHNER, June E. A mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
HAHNER, June E. Emancipação do Sexo Feminino: A luta pelos direitos da mulher no
Brasil, 1850-1940. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2003.
LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro: Século XIX. São
Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1984.
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.
MUZART, Lupinacci Zahidé. Escritoras brasileiras do séc. XIX. Florianópolis: Ed.
Mulheres, 1999.
PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
PRIORE, Mary del. História das Mulheres no Brasil .São Paulo: Contexto, 1997.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1987.
115
ANEXO
MULHERES CORDELISTAS E FOLHETOS COLETADOS NA PESQUISA
Autora Títulos
Temas
UF Capa Autor
ADELIA CARVALHO Vamos todos a Puebla ou o
novo peregrino da América
A traição de Tibiriçá
O peregrino de Deus
Tradição religiosa
Romances
Tradição religiosa
GO Desenho
Desenho
Desenho
S/ident.
S/ident.
S/ident.
ALBA HELENA
CORRÊA
O sonho das pedras verdes Personagem RJ Antologia S/ident.
ANA DENISE PRIMO
DE MORAIS
Casá de namorado Crítica social CE Xilogravura Erivana
ANA MARIA DE
SANTANA
Visite a Bahia
A luta nas fazendas
A vida do professor
A voz da humanidade ou o
Menino de Rua
Homenagem aos velhacos
do mundo
CASANOVA – Manual do
amante moderno
Vida urbana
Fatos
circunstanciais
Crítica social
Crítica social
Crítica social
erótico
BA Xilogravura
Desenho
Sem
ilustração
Desenho
Vinhetas
fotografia
S/ident.
Olga
S/ident.
S/ident.
S/ident.
S/ident.
BENEDITA
DELAZARI
O sonho do caboclo e o
carnê do Baú
Grande peleja de Sérgio
malandro com Pedro de
Lara
O homem que gerou um
diamante na barriga
Vida urbana
Vida urbana
Conto maravilhoso
SP Desenho
Desenho
Desenho
S/ident.
S/ident.
S/ident.
BERENICE
HERINGER
Família Heringer Elemento humano MG Antologia S/ident.
CAMILA
ALENQUER
A Saga de fulana de tal Crítica social CE Computa-
dorizada
S/ident.
CARMELITA DA
SILVA TEIXEIRA
Passado e presente tudo
quente
Vida urbana BA S/ilustração
CELIA CASTRO O nascimento de Jesus
Historiando com os animais
Tradição religiosa
Ciclo dos animais
PB Xilogravura Silas
CLOTILDE SANTA
CRUZ TAVARES
A vida e obra de Xico
Santeiro
Elemento humano RN Xilogravura S/ident.
Classificação adotada cf. Manuel Diegues Júnior. Literatura Popular em Versos.Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1973.
116
EDIANNE NOBRE Driade e a saga de Eros
O retorno de Dríade à terra
dos mauditos
Peleja de Dríade e Virginia
Ninfa das trevas
Agora são outros 500!
(Fatos reais)
Movimento raízes do Cariri
(dedicada ao Moraca)
romances
conselho
conselho
Crítica social
Vida urbana
CE Xilogravura
Computa-
dorizada
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Orivaldo
Batista
S/ident.
Jô Andrade
Hélio
Ferraz
Edianne
Nobre
EMANUELE
ALENCAR
PINHEIRO
O grito de uma Maudita Crítica social CE Xilogravura Emanuele
Pinheiro
ESMERALDA
BATISTA
O sertão pro Lampião Cangaceirismo CE Xilogravura Hamurabi
FANKA Padre Cícero e a vampira
O verbo patativar
No tempo da clarabóia
Terrorista é quem nos U$A
Misticismo
personagem
Crítica social
Crítica social
CE Xilogravura
Fotografia
Xilogravura
Antologia
Antonio
Celestino
IEC
Jô Andrade
S/ident.
GEORGINA
VIRGOLINO
A herança que vovó me
deixou
Crítica PB Xilogravura Silas
GLORIA FONTES
PUPPIN
Triste corrupção
Passeata da Paz
Crítica social
Crítica social
RJ Fotografia
Antologia
S/ident.
HELOISA CRESPO Narcisa Amália Elemento humano RJ Antologia S/ident.
HELVIA CALLOU Abolição sem libertação
Brasil plastificado
A gestação de Dona Crise
Crítica social
Crítica social
Crítica social
PB Xilogravura Silas
IRACEMA M. REGIS A vida nos trilhos Vida urbana SP Xilogravura Klévissson
Viana
ISAURA MELO Cordel Matéria Viva
(parceria com Oliveira de
Panelas)
Acontecido CE Xilogravura Francisco
Freitas
JOSEFA COSTA DOS
SANTOS
Padrim Cícero – o cearense
do século
Misticismo CE Xilogravura Cícero
Vieira
JOSEFA MARIA DOS
ANJOS
Briga di ponta di rua Vida urbana SE Desenho S/ident.
JOSEFA NAZARE
ALVES
A feira de Currais Novos Vida urbana RN Desenho S/ident.
JULIA ROSA COSTA Trovas NI Xilogravura J.Barros
JULIANY ANCELMO
SOUZA
A História do Padre Cicero Misticismo CE Xilogravura Naldo
JULIE ANE A Esperteza de João
Uma tragédia em família ou
O Pai que matou o filho
Peripécias
Contos
CE Desenho
Xilogravura
Klévisson
Viana
Klévisson
Viana
LENORA O P DINIZ
DE SÁ
Saúde e poesia Vida urbana PB Xilogravura silas
117
LOURDES NUNES
RAMALHO
Porque a noiva botou o
noivo na justiça
Viagem no pau-de-arara
Judite fiapo em serra pelada
Conselho
Crítica social
Crítica social
PB S/ilustração
Desenho
Desenho
S/ident.
S/ident.
S/ident.
LUCIA MARIA
DORES
GONÇALVES
(LUMA)
Uma bonita estória de amor
de Neidinha e João Ocrídio
Romance CE Xilogravura Orivaldo
Batista
LUCIA PELTIER DE
QUEIROZ
Homenagem a Rodolfo
Coelho Cavalcante
Personagem BA Fotografia S/ident.
LUCIANA BARBOSA
NOBRE
A heroína do Cariri
O Acre – uma terra de
heróis
Personagem
Personagem
CE Xilogravura
Desenho
Mapuche
S/ident.
LUIZA CAMPOS
OLIVEIRA – CE
Nosso Brasil Crítica social CE Xilogravura Orivaldo
batista
LUZINETE MORAES Natais de outrora Misticismo RJ Desenho S/ident.
MADALENA DE
SOUZA
FIGUEIREDO - CE
Uma história verdadeira Elemento humano CE Xilogravura José
Lourenço
MAGNA CONSUELO
VIEIRA MEDEIROS
O conselho de duas
mulheres para uma amiga
que vai se casar
O ano de 96 na CNEC
Conselho
Acontecido
PB Computa-
dorizada
Desenho
S/ident.
S/ident.
MARIA ALDA DE
OLIVEIRA
Cantores do infinito Religiosidade CE Xilogravura Francoli
MARIA ARLINDA
DOS SANTOS
O homem que deu corno na
mulher
A História de Zé Fubuia
Sátira
Personagem
BA Xilogravura
Desenho
S/ident.
S/ident.
MARIA DA PIEDADE
CORREA
O menino estudioso e o
menino preguiçoso
Conselho PB Xilogravura Silas
MARIA DE FATIMA
COUTINHO
Da luta do povo nasce uma
escola em Santa Rosa
A vida da mulher
De cordel e de mulher
muito se tem a dizer
Vida urbana
Crítica social
Acontecido
PB Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Silas
Silas
Silas
MARIA DE FÁTIMA
LUCAS
Apologia à vida Vida urbana SP Xilogravura Klévisson
Viana
MARIA DO
ROSARIO LUSTOSA
DA CRUZ
A escolha do Cearense do
século
Retrato do Juazeiro
A História do Cordel
História de uma
vida:Marciana Pereira de
Figueiredo
Acontecido
Vida urbana
Acontecido
Elemento humano
CE Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Fotografia
Francoli
Áurea Brito
Jô Andrade
S/ident.
118
MARIA DO
SOCORRO C
SOARES
Dois matutos no maior
S.João do Mundo
Vexame para casar no
maior São João do Mundo
Vida urbana
Vida urbana
NI xilogravura S/ident.
MARIA DOS
SANTOS BATISTA
Fé, coragem e confiança em
Deus
Misticismo CE Xilogravura José
Lourenço
MARIA GISELDA
SILVA TRIGUEIRO
A cura do professor ou a
vitória do sertanejo
Regionalismo RN Xilogravura S/ident.
MARIA GODELIVIE Ô Mulher desnaturada
A vingança da falecida
O gostosão
O homem que beijou uma
alma
Eita! Paixão dos diabos
O “doidinho” bem dotado
A ganância do chifrudo
Crítica social
lenda
Crítica social
Lenda
Lenda
Crítica social
Crítica social
PB Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Silas
Silas
Silas
Silas
Silas
Silas
Silas
MARIA JOSE DE
OLIVEIRA
Ou sou ou deixo de ser
A diferença dos homens
antigos para os rapazes de
hoje em dia
A diferença das mulheres
antigas para as mocinhas de
hoje
O sexo praticado em
público vai causar muitos
desastres
Vida urbana
Vida urbana
Vida urbana
Vida urbana
AL S/Ilustração
S/Ilustração
S/Ilustração
S/Ilustração
MARIA JULITA
NUNES
Estude o dicionário se
quiser saber também
A criança e o idoso estão
plantando esperança
Avante! Um, dois, três...Fui
Regresso a São Saruê
Conselho
Elemento humano
Vida urbana
Contos
maravilhosos
PB Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Josafá de
Orós
Silas
Silas
Silas
MARIA LINDALVA
GOMES
Poesia com viola Vida urbana RN Xilogravura S/ident.
MARIA LINDALVA
MACHADO RIBEIRO
História em quadrinhos
(síntese dos principais
acontecimentos históricos
de Juazeiro do Norte)
Acontecido CE S/Ilustração
MARIA LUCIENE Cordel da praça dos
mártires (passeio público)
O desafio entre o canário e
o Bem-te-vi
Acontecido
Estórias de animais
CE Fotografia
S/Ilustração
S/ident.
MARIA MATILDE
MARIANO
De coração para coração romances CE Xilogravura Felipe
Henrique
119
MARIA MATILDE
MARIANO
Luzianne Loira Guerreira
A montanha enfeitiçada
Acontecido
Novela
CE Xilogravura
Xilogravura
Felipe
Henrique
Nilo
MARIA DAS NEVES
BATISTA PIMENTEL
O amor nunca morre
Violino do diabo
O corcunda de Notre Dame
Romance
Romance
Romance
PB Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
S/ident.
S/ident.
S/ident.
MARIA RIVANEIDE O homem que duvidou de
Deus
Iara e Samuel
Misticismo
Romance
CE Xilogravura
Xilogravura
Gilberto
Pereira
Maria
Rivaneide
MARIA ROSIMAR
ARAUJO
A escravidão no Brasil Crítica social CE Xilogravura Jô Andrade
MARILENE
EDUARDO LIMA
A força da Mulher Acontecido NI Desenho S/ident.
MARILZA DE
CASTRO NOBRE
Força Motriz personagem RJ Antologia S/ident.
MAYSA MIRANDA A B C de uma cordelista
bahiana
A B C da Ribeira
Elemento humano
Vida urbana
BA Desenho
Antologia
Luiz Souza
S/ident.
MESSODY RAMIRO
BENOLIEL
Inda não foi dessa vez Vida urbana RJ Antologia
MUNDINHA
MACEDO
Engano de Mané Sarapião e
a traição de Cremice Saburá
Romance CE Xilogravura Stefany
ROSIMAR Cento e um anos de
Canudos
Fanatismo CE Xilogravura José
Lourenço
SALETE MARIA DA
SILVA
Cidadania Nome de Mulher
Habeas Bocas
Companheiras!
O grito dos "mau"
entendidos
Cordelirando
Mulher-consciência – nem
violência nem opressão
Embalando meninas – em
tempos de violência
Agora são outros 500 -
"mentira tem perna curta"
O que é a velhice
Dia do orgulho Gay
URCA:18 de JULHO
URCA: Caso de Polícia?
VIOLETA:Carpinteira da
Cultura
Crítica social
Crítica social
Crítica social
Elemento humano
Crítica social
Crítica social
Crítica social
Elemento humano
Crítica social
Crítica social
Crítica social
Elemento humano
CE Desenho
Desenho
Xilogravura
Xilogravura
Desenho
Desenho
Fotografia
Fotografia
Xilogravura
Fotografia
Fotografia
Fotografia
S/ident
S/ident..
Regilene
Stéfanni
Hélio
Ferraz
S/ident.
S/ident.
Nívea
Uchoa
S/ident
Francoli.
S/ident
S/ident..
Charmizon
120
SALETE MARIA DA
SILVA
O que é ser mulher?
Mulheres (invisíveis) de
Juazeiro
Meu Pai
Mulheres do Cariri: Mortes
e Perseguição
Assédio Moral: Diga Não!
Direito Fundamental em
constante evolução
Mulheres Fazem
A História de Joca e Juarez
Mulher-Cariri
Cariri-Mulher
Crítica social
Crítica social
Elemento humano
Crítica social
Crítica social
Crítica social
Crítica social
Crítica social
Crítica social
CE Desenho
Xilogravura
Xilogravura
Desenho
Xilogravura
Desenho
Xilogravura
Xilogravura
Fotografia
S/ident
Erivana
José
Lourenço.
S/ident.
Jô Andrade
S/ident.
Erivana
Regilene
Stéfanni
S/ident.
SAMARA DE
SOUSA
O milagre do século Misticismo CE Xilogravura Eliane
Nobre
SANTINA ANDRADE Coisas do meu sertão Regionalismo CE Xilogravura Hélio
Ferraz
SEBASTIANA
GOMES ALMEIDA
O Frade e a freira ou lenda
do amor proibido
30 anos de sertão
A sogra no folclore
O corno e a tipologia II
50 anos de música
Turismo e ecologia
Computador no cordel
Dona flor e seus namorados
Só quem segura os caídos é
Deus e o sutiã
O povo sabe o que diz
Voto do Matuto desiludido
Santo Antonio responde à
Solteirona
LULA, Cadê?
Se queres ser meu amigo
não fales mal do Crato
Adivinhação no Cordel
Lenda
Regionalismo
Satírico
Satírico
Acontecido
Fatos
circunstanciais
Vida urbana
Crítica social
Sátira
Regionalismo
Crítica social
Misticismo
Crítica social
Crítica social
Regionalismo
CE Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Naldo
Maranhão
S/ident.
Maércio
Lopes
Lourenço
Carlos
Henrique
Carlos
Henrique
Guto
Carlos
Henrique
Elieser
Carlos
Henrique
Maércio
Lopes
Carlos
Henrique
Carlos
Henrique
Carlos
Henrique
121
SEBASTIANA
GOMES ALMEIDA
A saga do professor
Pegando carona
Grito ecológico
A água é fonte de vida não
deixe a água morrer
As proezas dos João Grilo
Brasileiros
Felizes os que promovem a
paz
Cordel no quadrão
perguntado
Crítica social
Homenagem
Ecologia
Ecologia
Satírico
Vida urbana
Crítica social
CE Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Xilogravura
Carlos
Henrique
Carlos
Henrique
Maranhão
Carlos
Henrique
Carlos
Henrique
Carlos
Henrique
Carlos
Henrique
SILVIA MATOS
ROCHA
A Bela e o bode
Coisas do meu sertão
Estórias de animais
Regionalismo
CE Xilogravura
Fotografia
Orivaldo
Batista
S/ident.
TEREZINHA DE
JESUS BORGES
História Vida Sofrimentos e
morte de Frei Damião de
Bozzano
Misticismo RN
TEREZINHA F. DE
LIMA
O dia em que a Terra
Tremeu (1980)
Acontecido CE
VALDELIA BARROS
PEREIRA
Os estudantes com fome
sem achar o que comer
Acontecido PB Xilogravura S/ident.
VANIA FREITAS Dicas para curar o estresse
A sociedade brasileira
contaminada pelo vírus da
violência
Cuecão de dóloares aperta a
vida de cearense
No lamaçal do mensalão
Vida urbana
Crítica social
Crítica social
Crítica social
CE Desenho
Computa-
dorizada
Desenho
Desenho
Rute de
Alencar
S/ident
Vânia
Freitas.
Vânia
Freitas
VICÊNCIA MACEDO
MAIA
A B C da Umbanda Religiosidade BA
WANDA DE ASSIS
BRAUER
O caso de meu avô e minha
avó
Elemento humano RJ Antologia S/ident.
YONNE RABELLO Lampião – Vagalume do
sertão
Misticismo PE Xilogravura JRS
ZAIRA DANTAS DA
SILVA
Considerações de uma
poetisa pela feira de
Fagundes
Um grande amor
Vida urbana
Romance
PB S/ilustração
Xilogravura
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