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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Luana Teixeira Porto
MORANGOS MOFADOS, DE CAIO FERNANDO ABREU:
FRAGMENTAÇÃO, MELANCOLIA E CRÍTICA SOCIAL
Porto Alegre, 2005
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Luana Teixeira Porto
MORANGOS MOFADOS, DE CAIO FERNANDO ABREU: FRAGMENTAÇÃO,
MELANCOLIA E CRÍTICA SOCIAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras, área de Literatura Brasileira, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva
Porto Alegre, 2005.
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Luana Teixeira Porto
MORANGOS MOFADOS, DE CAIO FERNANDO ABREU: FRAGMENTAÇÃO,
MELANCOLIA E CRÍTICA SOCIAL
Essa Dissertação foi apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras, área de Literatura
Brasileira, da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul - UFRGS, para a obtenção do título de Mestre em
Letras.
Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva (UFRGS)
Orientadora
Profa. Dra. Rosani Umbach (UFSM)
1ª argüidora
Profa. Dra. Maria Eunice Moreira (PUC-RS)
2ª argüidora
Profa. Dra. Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS)
3ª argüidora
4
AGRADECIMENTOS
O processo de elaboração de uma pesquisa é um trabalho que exige reflexão
e diálogo constantes. As reflexões são suscitadas não só pelos autores e obras
lidos, os quais constituem um interlocutor mais distante que põe em xeque certezas
e propõe caminhos, mas também pelos mais próximos, com os quais dialogamos
pessoalmente. Esses merecem reconhecimento especial porque acompanham o
desenvolvimento de um estudo, apontando direções, sugerindo mudanças,
questionando afirmações, problematizando escolhas. Sob o olhar deles, a pesquisa
toma forma, e as idas e vindas de um texto e as suas leituras e releituras configuram
um ganhar, que ameniza o medo de se perder. Quero agradecer, então,
especialmente à Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva, orientadora da
dissertação, pelas leituras atentas e pela maneira generosa com que conduziu o
processo de orientação para que aflorasse de mim sempre o melhor. Ao Prof. Dr.
Jaime Ginzburg, agradeço o incentivo ao estudo da literatura e suas relações com o
autoritarismo no Brasil e suas contribuições críticas enriquecedoras. À Profa. Dra.
Rosani Umbach, agradeço o estímulo ao trabalho de investigação literária e a
integração ao Grupo de Pesquisa. Aos professores do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, agradeço a abertura a
perspectivas teórico-críticas plurais, que possibilitaram uma formação consistente
para o desenvolvimento de pesquisa em literatura.
Além dos profissionais do meio acadêmico, é preciso destacar a contribuição
de minha família, especialmente de minha mãe, a maior incentivadora, e de minha
irmã Ana Paula, uma leitora e crítica atenta de meus textos. Sobre elas registro o
carinho, a amizade e sobretudo o exemplo de perseverança e dedicação. Ao meu
namorado Jéferson, agradeço o apoio e a compreensão das minhas ausências. À
amiga Lisete Teixeira, agradeço a energia espiritual e o estímulo; ao amigo Lizandro
Carlos Calegari, os diálogos, os incentivos e as trocas de experiências; e ao João
Luís Ourique, o estímulo constante. A Vera Teixeira, Lucas Fangueiro, Lucimar da
Silva e família, Cristiano Cunha registro o agradecimento por terem tornado Porto
Alegre mais alegre nesses dois anos de estudo.
Ao CNPq, agradeço a bolsa de pesquisa.
5
SUMÁRIO
RESUMO 06
ABSTRACT 07
INTRODUÇÃO 08
1. DENTRO DO TEXTO, DENTRO DA VIDA 14
1.1. A recepção crítica da obra de Caio Fernando Abreu 14
1.2. A produção de Caio Fernando Abreu: literatura, história e sociedade 44
2. FRAGMENTAÇÃO FORMAL E MELANCOLIA 53
2.1. Fragmentação formal da narrativa 53
2.2. Melancolia: concepções e perspectivas 67
3. MORANGOS MOFADOS: FRAGMENTAÇÃO, MELANCOLIA
E CRÍTICA SOCIAL 80
3.1. Morangos mofados: estrutura fragmentária e perspectiva sombria 80
3.2. A experiência de perda em “Os sobreviventes 90
3.3. A insatisfação do sujeito em “Pêra, uva ou maçã?” 107
3.4. Os extremos e o sentimento de culpa em “Aqueles dois” 116
3.5. A descrença em “Morangos mofados” 128
CONCLUSÃO 139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 155
6
RESUMO
Este trabalho consiste em uma leitura da obra Morangos mofados, de Caio Fernando
Abreu, publicada em 1982. O objetivo da pesquisa é desenvolver uma leitura crítica
de contos da antologia que englobe uma articulação entre forma literária e conteúdo
social. O estudo parte de uma recuperação dos textos críticos sobre a produção do
autor e em seguida apresenta um caminho de leitura para os contos do livro a partir
das relações entre literatura, história e sociedade. Em sua segunda parte, a
investigação enfoca elementos teóricos sobre a fragmentação formal da narrativa e
sobre a melancolia. Entre os autores consultados para fundamentação estão
Theodor Adorno, Walter Benjamin, Sigmund Freud e Julia Kristeva. A terceira parte
constitui-se da análise de textos de Caio Fernando Abreu, a qual é elaborada a partir
da observação à fragmentação formal dos contos e à perspectiva melancólica que
transparece nas narrativas, pois esses são elementos que configuram a crítica social
da produção literária investigada e a relação da obra com o seu contexto de
produção. Os contos selecionados para essa leitura são “Os sobreviventes”, “Pêra,
uva ou maçã?”, “Aqueles Dois” e “Morangos mofados”. O trabalho também
contempla uma reflexão acerca dos estudos críticos sobre o escritor e a sua obra,
apontando a necessidade de se desenvolver uma leitura do texto a partir da
articulação entre forma literária e conteúdo social.
7
ABSTRACT
This thesis is an attempt to read Caio Fernando de Abreu’s Morangos mofados,
published in 1982. The research's objective is to develop a critical reading of stories
in the anthology which considers an articulation between literary form and social
content. The study's first part deals with critical texts about the author's production
and, afterwards, it presents a reading perspective for the stories of such a book,
taking into account the relationships among literature, history and society. The thesis'
second section focuses on theoretical elements about the formal fragmentation in
narratives and on melancholy. Theodor Adorno, Walter Benjamin, Sigmund Freud
and Julia Kristeva are some of the authors who underscore the present approach.
The third part of the work analyzes Caio Fernando Abreu's texts. Such an analysis
considers the formal fragmentation of the stories and the melancholic perspective
that appears in the narratives, because those are elements that configure the social
criticism of the literary production in regard and the relationship of the book with its
production context. The stories selected for investigation are "Os sobreviventes",
"Pêra, uva ou maçã?", "Aqueles dois" and "Morangos mofados". The work also
considers a reflection concerning the critical studies on the writer and his books,
pointing the necessity of developing a reading of his texts starting from the
articulation between literary structure and social content.
8
INTRODUÇÃO
Caio Fernando Abreu é autor de uma produção literária que tem o conto como
gênero predominante, embora também tenha escrito romances e peças de teatro.
Sua estréia literária ocorreu em 1966 com a publicação do conto “O Príncipe Sapo”
na revista Cláudia. Em 1970, Limite branco, seu primeiro romance, foi lançado em
meio aos conflitos sociais e políticos decorrentes da ditadura militar no Brasil. A sua
primeira coletânea de contos também data de 1970: Inventário do Irremediável
recebeu o Prêmio Fernando Chinaglia, dando projeção à obra do escritor, que
passou a ter textos incluídos em antologias, como Roda de fogo naquele mesmo
ano. O livro, que depois foi relançado como Inventário do Ir-remediável em 1995,
marca a trajetória de personagens que vivem situações limites, numa alusão ao
período autoritário de tempos de repressão.
A produção literária do escritor seguiu com a publicação, em 1975, de O ovo
apunhalado, de Pedras de Calcutá, em 1977, e Morangos mofados, em 1982, sendo
todos livros de contos. A coletânea de 1975 teve narrativas cortadas por atentarem à
moral e aos bons costumes: eram os censores ditatoriais avaliando as obras. Em
1983, Caio Fernando Abreu lançou uma trilogia de novelas chamada Triângulo das
Águas, obra que iniciaria um conjunto de livros elaborados sob o signo dos quatro
elementos da natureza, projeto que não chegou a ser concluído pelo escritor. Com
essa obra Caio Fernando Abreu conquistou o Prêmio Jabuti em 1985.
Com contos Caio Fernando Abreu formou Os dragões não conhecem o
paraíso, publicado em 1988, ano em que também foi lançada uma reunião de outras
narrativas curtas em Mel & girassóis, organizada por Regina Zilberman. Seu único
livro de literatura infanto-juvenil, As frangas, chegou às livrarias em 1989, e seu
segundo e último romance, Onde andará Dulce Veiga?, em 1990. O livro Ovelhas
negras, de 1995, foi a última obra editada em vida e levou o autor a receber o
Prêmio Jabuti no ano seguinte. Após a morte do escritor, foram publicados suas
crônicas em Pequenas epifanias e seus contos em Estranhos estrangeiros, ambos
em 1996. Em 1997, suas peças foram reunidas em Teatro completo sob a
organização de Luiz Arthur Nunes, e as correspondências do escritor foram editadas
em 2002 sob a responsabilidade de Ítalo Moriconi.
Os textos de Caio Fernando Abreu receberam diversas premiações e
adaptações para peças de teatro e cinema, além de serem traduzidos para outras
9
línguas. O conto “Aqueles Dois” recebeu roteiro para filme de nome homônino sob a
direção de Sérgio Amon; gravada em Porto Alegre e tendo pré-estréia no Festival de
Gramado, a película foi premiada como melhor filme no 1º Festival do Cinema
Brasileiro, em Fortaleza, em 1985. A narrativa “Sargento Garcia” também foi
transportada para as telas do cinema. Parte dos textos do autor já foi traduzida,
especialmente para o inglês e o francês, língua na qual Caio Fernando Abreu
escreveu, devido a uma bolsa de estudos que recebeu da Maison des Écrivains et
Traducteurs Étranger (MEET), em Saint Nazaire, “Bien loin de Marienbad”, texto
publicado na França, em 1993, e posteriormente incluído em Estranhos estrangeiros
com o título “Bem longe de Marienbad”.
Os contos do escritor caracterizam-se por uma densidade tanto na discussão
de temas complexos quanto na forma de elaboração estrutural e lingüística, já que
as narrativas privilegiam uma organização que se desvia dos padrões tradicionais de
ficção, acomodados em lógicas lineares. Devido a esse fator, a leitura das
coletâneas de contos, à primeira vista, parece não indicar sentido de unidade: é algo
que desconcerta a percepção do leitor, talvez não familiarizado com a literatura
construída a partir de fragmentos. O termo fragmento, nessa perspectiva, sintetiza a
construção da obra do autor, constituindo-se como uma estratégia de elaboração
literária. A fragmentação em Caio Fernando Abreu é observada não só no elemento
organizacional interno de cada conto, como também na articulação de contos de
cada livro: as narrativas que formam cada antologia sugerem não manter entre si
relações de conteúdo, uma vez que suas temáticas são diversificadas, e a idéia de
continuidade semântica parece ausente.
Um traço que tem definido a produção literária do autor é a ênfase dada à
realização formal dos contos, elaborados a partir de uma proposta discursiva que
freqüentemente alterna a posição do narrador, fragmentando cenas e impondo um
movimento ambíguo ao olhar do leitor. Através dessa oscilação da voz que narra as
histórias, os textos do contista projetam um efeito estético que está em consonância
com a proposta temática de cada obra, conferindo um equilíbrio entre a exploração
de temas e formas. A adoção de estratégias estéticas que se afastam do padrão
tradicional de escrita literária é um fator que intensifica um estranhamento inicial do
receptor. Essa faceta vai parecendo, através do exercício de leitura da obra, um
recurso fecundo para a abordagem e representação das experiências sociais e
humanas na literatura do autor.
10
Enquanto a forma e a estrutura dos textos de Caio Fernando Abreu
proporcionam um certo desconforto, a linguagem provoca inquietação. Sua prosa
mescla a linguagem coloquial com a formal e não são raros em suas histórias termos
“vulgares” e registros de outras culturas, como expressões da cultura afro-brasileira.
Além disso, é impossível não notar a poeticidade de suas narrativas: há textos em
que o lirismo e a construção de imagens metafóricas fazem confundir prosa e
poesia, obrigando o leitor a refletir sobre os gêneros literários e sua conseqüente
hibridização.
Na produção do escritor também é constante o diálogo com outras obras,
autores e manifestações artísticas. Referências a textos literários, canções e filmes,
por exemplo, podem não aludir a significados densos, mas constituem pontos de
contato com outras expressões artísticas e apontam caminhos de leitura. Os
recursos intertextuais e interculturais na obra do contista configuram uma forma de
diálogo; no entanto, não são exclusivos: o autor também interagiu com seu tempo
histórico e sua sociedade, discutindo temas e problemas que afetaram a vida social
em tempos turbulentos e em períodos aparentemente democráticos.
À extensão, à diversidade e à intertextualidade da obra de Caio Fernando
Abreu, alia-se a plurissignificação dos textos, e esses são traços que, combinados,
constituem um empecilho para o estabelecimento de uma leitura generalizante de
sua obra, embora a maior parte do discurso crítico sobre a sua produção literária
indique uma coordenada constante na obra. Por isso, selecionar um ângulo de
investigação e levantar aspectos relevantes da literatura do escritor tornam-se
estratégias necessárias para uma leitura interpretativa que possa não só contribuir
para a compreensão dos textos, mas também apontar particularidades ainda não
discutidas pela recepção crítica.
Compartilhando uma perspectiva teórico-crítica que considera fundamental no
processo de análise literária o desvendamento das características formais e sua
associação com condicionamentos sócio-culturais, a linha de investigação deste
trabalho orienta-se no sentido de relacionar forma e conteúdo dos contos de Caio
Fernando Abreu. Essa opção metodológica justifica-se por dois motivos principais: o
primeiro relaciona-se à idéia de que a obra de arte conjuga plano estético e plano
social, e o segundo, ao fato de que a produção literária de Caio Fernando Abreu
mantém relações estreitas com o seu contexto de produção, que envolve fatores
sociais e culturais. A consideração do contexto de produção também interessa por
11
promover a discussão sobre conflitos sociais, que estão enfatizados na obra do
escritor e intensamente abordados no livro escolhido para estudo nessa dissertação.
O objeto de investigação dessa pesquisa é o livro Morangos mofados,
publicado em 1982, num período caracterizado pela abertura política e início do
processo de democratização do país e pela discussão da liberdade, de valores
morais e da emancipação feminina. Essa obra é composta por contos e é dividida
em três partes: “O mofo”, composta por nove narrativas, “Os morangos”, formada por
oito textos, e “Morangos mofados”, constituída pelo conto de título homônimo a essa
seção e à obra
1
. Os conteúdos dos textos dessa coletânea sugerem, através da
temática e forma literária adotadas, uma percepção singular acerca de experiências
sociais do período histórico, calcadas em situações de violência social. Os contos da
obra incitam uma mobilização do leitor no sentido de propor uma reflexão sobre tais
experiências. Essa mobilização é produzida pelo efeito de estranhamento da forma
narrativa e pela necessidade de mudança na apreensão de uma dada realidade.
Os objetivos desse trabalho são desenvolver uma reflexão sobre textos de
Morangos mofados e apresentar uma leitura crítica da antologia, proporcionando
uma articulação entre forma literária e conteúdo social. Essa abordagem, de cunho
sociológico, considera as relações estabelecidas entre literatura, história e
sociedade, já que a obra de Caio Fernando Abreu permite que tais associações
sejam realizadas, e a teoria que fundamenta o trabalho pressupõe essa articulação
entre texto e contexto de produção. A análise dos contos da coletânea é elaborada a
partir da observação à fragmentação formal e à perspectiva melancólica que
transparece nas narrativas, pois esses são traços recorrentes na obra e são também
elementos que configuram a crítica social da produção literária investigada.
A escolha de Morangos mofados como objeto central de estudo justifica-se
tanto pela densidade crítica e experimentação estética dos contos quanto pelo valor
significativo da obra na produção literária do autor. Além disso, a opção por esse
livro deve-se ao fato de serem escassos tanto os estudos voltados para a análise da
forma estética dos contos e sua articulação com condicionamentos social, histórico e
cultural, quanto os enfocados exclusivamente na antologia, embora narrativas dessa
coletânea sejam referenciadas em diversos trabalhos.
1
A edição utilizada nesse estudo contém uma nota de Caio Fernando Abreu, escrita em 1995, na
qual o autor afirma ter feito uma “severa revisão de forma” no livro, mas mantendo seu conteúdo e
estrutura. ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
12
Partindo de uma recuperação do olhar crítico sobre a obra do escritor, com o
intuito de registrar como a produção literária de Caio Fernando Abreu é lida por
diferentes pesquisadores e de identificar as especificidades assinaladas pela
recepção crítica, essa pesquisa procura apontar uma possibilidade de interpretação
para a antologia de 1982. Com base nessas reflexões, é possível apontar um
caminho interpretativo para a obra, o qual é discutido a partir das relações entre
literatura, história e sociedade, já que os temas mais constantes da coletânea
apontam para a necessidade de se discutir como experiências sociais estão
exploradas esteticamente pelo escritor e como as estratégias artísticas colaboram
para uma representação de um dado conteúdo social.
Considerando que a forma narrativa em Caio Fernando Abreu estabelece
vínculos com processos histórico-sociais, a pesquisa prioriza o exame da
fragmentação formal nos contos do autor. A opção por esse foco de análise deve-se
tanto pela predominância desse traço no livro quanto pela relação desse elemento
com uma perspectiva melancólica identificada na obra. A avaliação acerca do
rompimento com as convenções clássicas de estrutura literária e da instabilidade da
posição do narrador, que caracterizam a fragmentação formal, contribui para a
compreensão dos contos por ser através dessa modalidade de escritura que o texto
adquire intensidade crítica e adequação ao conteúdo abordado.
A abordagem da forma literária das histórias de Morangos mofados é
fundamentada especialmente com estudos de Theodor Adorno e Walter Benjamin,
cujos ensaios acenam que a fragmentação da narrativa está intimamente
relacionada a antagonismos sociais e a uma visão também fragmentada de história.
Nesse sentido, a análise da forma fragmentada na literatura do autor é articulada a
traços da história e da sociedade brasileira, procurando mostrar que os contos do
escritor gaúcho manifestam, através de sua própria construção estrutural, um olhar
perplexo sobre as experiências históricas e sociais.
Em Caio Fernando Abreu, a perplexidade subjacente à percepção dessas
experiências é acompanhada de um sentimento melancólico, resultante da
impotência coletiva frente a um sistema social autoritário e violento e da
impossibilidade de concretização de ideais num contexto marcado pela opressão e
pela repressão social. A melancolia é considerada a partir de concepções modernas
sobre o tema, as quais indicam traços do discurso e dos sujeitos melancólicos que
ajudam a entender a constituição dos personagens dos contos. O trabalho busca
13
estabelecer pontos de contato entre as proposições teóricas sobre a melancolia,
pautadas em estudos de Walter Benjamin, Julia Kristeva e Sigmund Freud, e
articulá-las ao objeto de investigação, por considerar produtivo recorrer a essas
referências teóricas para examinar os textos literários de Caio Fernando Abreu.
Diante da diversidade e quantidade de contos do livro, houve a necessidade
de selecionar alguns textos que são representativos da obra e da sua perspectiva
formal e temática. A análise de todos os contos não poderia ser feita sem o risco de
inviabilização da finalização do trabalho em prazo aceitável. Para um estudo mais
detalhado foram escolhidas as narrativas “Os sobreviventes”, “Pêra, uva ou maçã?”,
“Aqueles Dois” e “Morangos mofados” que manifestam com intensidade os temas
mais constantes do livro e a perspectiva crítico-social da obra. É preciso assinalar,
no entanto, que essa seleção não implica um ocultamento de outros textos de
Morangos mofados, os quais estão referenciados ao longo do trabalho.
O estudo está estruturado da seguinte forma: no primeiro capítulo, são
apresentadas uma revisão da fortuna crítica da produção de Caio Fernando Abreu e
uma proposta de leitura para a obra baseada nas relações entre literatura, história e
sociedade; no segundo, a fundamentação teórica acerca da fragmentação formal e
melancolia são os tópicos abordados; e, no terceiro capítulo, são examinados os
contos, sendo apontada uma interpretação para a coletânea.
14
1. DENTRO DO TEXTO, DENTRO DA VIDA
2
1.1. A recepção crítica da obra de Caio Fernando Abreu
Os escritos de Caio Fernando Abreu têm recebido desde o momento de
publicação atenção da crítica literária. O lançamento das obras do autor sempre
despertou o olhar de críticos de jornal, preocupados em fazer a apresentação de um
novo livro e/ou dar um juízo de valor aos textos ficcionais para o público-leitor
3
.
Somente a partir dos anos 1990 o trabalho do escritor motivou a crítica acadêmica.
Esta tem mostrado um interesse em estabelecer reflexões sistemáticas sobre a
produção literária do contista de modo a apontar linhas de leitura capazes de propor
uma interpretação para as obras. Esses trabalhos também se caracterizam por
desenvolverem leituras temáticas dos textos do autor e por tentarem situá-lo dentro
de um conjunto de produções ou autores representativos de uma tendência literária.
Leitores como Luís Augusto Fischer, Antônio Hohlfeldt, Gilda Neves da Silva
Bittencourt, Luiz Costa Lima e Flora Sussekind propõem-se a identificar um lugar
para Caio Fernando Abreu na literatura rio-grandense ou a apontá-lo dentro de um
quadro mais amplo da literatura brasileira. Esses estudos não são exaustivos, já que
apresentam, em linhas gerais, comentários sobre o escritor; porém, são os primeiros
materiais críticos que incluem a produção do contista gaúcho num grupo maior de
obras literárias.
Com o propósito de mapear tendências (ou “constelações”) da literatura rio-
grandense, Luís Augusto Fischer traça fases da literatura gaúcha desde 1870 até
1990, caracterizando cada uma a partir de sua temática e abordagens principais. O
autor defende a tese de que a partir dos anos 90 surge uma “nova geração nas
2
Cabe registrar que a expressão “dentro do texto, dentro da vida”, que dá título a esse capítulo do
trabalho, é tomada de empréstimo de um livro cujos ensaios foram elaborados em homenagem aos
estudos de Antônio Cândido. Conferir D’INCAO, Maria Ângela & SCARABÔTOLO, Eloísa Faria
(orgs). Dentro do texto, dentro da vida – ensaios sobre Antônio Cândido. São Paulo: Companhia das
Letras/Instituto Moreira Salles, 1992.
3
Os trabalhos de Mairim Linck Piva e Letícia Chaplin da Costa fazem um apanhado dos comentários
críticos da obra de Caio Fernando Abreu publicados em jornal. Ver PIVA, Mairim Linck. Uma figura às
avessas: Triângulo das Águas, de Caio Fernando Abreu. Dissertação (Programa de Pós-graduação
em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997. CHAPLIN,
Letícia da Costa. O ovo apunhalado e Morangos mofados: retratos do homem contemporâneo.
Dissertação (Programa de Pós-graduação em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.
15
letras do Estado”, geração que não assume uma postura vanguardista e tampouco
tem consciência ou sabe que é uma “geração”
4
. É nessa “constelação” que Fischer
insere a literatura de Caio Fernando Abreu, que, junto com João Gilberto Noll, é visto
como principal expoente dessa tendência. Para o pesquisador, os escritores dessa
fase apresentam alguns traços novos. A literatura gaúcha desse período, diz ele,
não se compromete com a cor local, tal como ocorria na das gerações anteriores,
passando a ser a representação da cor local uma possibilidade e não o único
caminho para a criação literária; essa produção não se sente obrigada a falar de
gaúcho, peão, coronel, nem procura delimitar fronteiras numa abordagem da história
regional.
Além disso, frisa o autor, esses artistas têm outros caracteres que permitem
agrupá-los: esses escritores têm “formação universitária típica na área de Letras e
Jornalismo”, o que garante uma “dose acentuada e ordenada de informação literária
e teórica, e portanto uma tendência natural ao universalismo pelo menos mental”
(1998, p. 80); o grupo de escritores dessa geração demonstra uma “preocupação
específica com a linguagem”, tanto na sintaxe e no vocabulário quanto no processo
narrativo; essa geração não está voltada para uma representação ou descrição da
realidade tal como ela é, ela apenas usufrui da História “no próprio sentido do verbo:
tendo a posse e o gozo de coisas que não se pode alienar nem destruir” (1998, p.
82).
Semelhante propósito é verificado no estudo de Antônio Hohlfeldt
5
, que
também procura relacionar a obra de Caio Fernando Abreu no contexto da literatura
gaúcha. A orientação de leitura do crítico consiste na verificação das relações entre
história e literatura no Rio Grande do Sul. Detendo-se no gênero romanesco,
Hohlfeldt identifica as obras que fundaram a literatura do Estado e percorre os
caminhos de realização desse tipo de texto. O autor distingue seis modos de
4
O mapeamento da literatura sul-riograndense proposto pelo ensaísta começa em 1870, época que
se estende até 1890 e engloba a primeira geração dessa literatura. A “idéia de identidade” e a
investigação do gaúcho romântico como elemento de “coesão nacional do Rio Grande do Sul”
marcam essa primeira geração da literatura regional. O gaúcho também será núcleo da segunda
geração, de 1910 a 1920, só que a preocupação centra-se no gaúcho peão, que narra suas histórias,
seu heroísmo, o mundo que o cerca. De 1930 a 1950 tem-se a terceira geração, que se volta para o
“Coronel gaúcho”, que, devido à decadência, torna-se “matéria de ficção”. A quarta geração, de 1960
a 1980, explora um “cenário cosmopolita” com temas ainda regionais, mas não se prendendo ao tema
do gaúcho campeiro. Na quinta geração, está situada a obra de Caio Fernando Abreu. FISCHER,
Luís Augusto. Desenho de uma geração. In: __. Para fazer diferença. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1998.
5
HOHLFELDT, Antônio. Literatura e vida social. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1996.
16
exploração romanesca na literatura rio-grandense: romance regionalista, romance
contra-ideológico, romance do imigrante, romance de autoria feminina, romance
urbano e uma outra forma que não recebe nomenclatura, já que “Há alguns autores
difíceis de se classificar. Rejeitam etiquetas, querem-se livres e absolutos. (...) Na
verdade, se algo os liga, é o fato de serem essencialmente experimentadores da
linguagem.” (1996, p. 114-115).
Na perspectiva do pesquisador, essa última tendência do romance gaúcho
engloba os livros de Caio Fernando Abreu. Segundo Hohlfeldt, Limite branco (1970)
é uma “narrativa parcialmente autobiográfica” que se caracteriza por uma “forma
circular” (1996, p. 120), Triângulo das águas (1983) não alcança a categoria de
romance porque se limita a um “gênero misto” (1996, p. 120) resultante do
entrecruzamento dessa forma literária e da do conto, e Onde andará Dulce Veiga?
(1990) é um romance “curioso” visto quebrar a “tradição dos textos anteriores do
escritor” (1996, p. 120) ao abordar um ambiente artístico e tratar do
desaparecimento de uma cantora famosa.
O estudo de Hohlfeldt sobre o conto contemporâneo brasileiro
6
inclui Caio
Fernando Abreu e mantém a mesma linha de pesquisa sobre o romance sul-
riograndense: a preocupação do ensaísta é a de traçar uma historiografia do gênero,
valendo-se de uma recuperação de sua história e teoria, identificando os pioneiros
da narrativa curta no Brasil, os “pré-modernistas”, os “modernistas” e passando aos
contemporâneos. Estes recebem, como o próprio título do estudo crítico indica, a
maior atenção do pesquisador e são agrupados em diversas categorias, que “não se
excluem entre si, permitem uma melhor visualização do conto e dos contistas entre
nós” (Hohlfeldt, 1988, p. 11). Assim “conto rural”, “conto alegórico”, “conto
psicológico”, “conto de atmosfera”, “conto de costumes”, “conto sócio-documental” e
“conto da década de 80” são as classificações propostas para a leitura de contos e
autores contemporâneos.
Caio Fernando Abreu, ao lado de Clarice Lispector, Osman Lins e Sérgio
Sant’Anna, é localizado por Hohlfeldt na vertente do conto de atmosfera, que,
embora possa ser confundido com o conto psicológico, apresenta características
distintas, como “uma atmosfera, um clima, uma espécie de ‘aura’ que envolve a
narrativa” (1988, p. 137) e também uma certa repetição que conduz a um fácil
6
HOHLFELDT, Antônio. Conto brasileiro contemporâneo. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
17
reconhecimento do escritor: “Poder-se-ia mesmo dizer que, neste caso, estão
aqueles escritores a escreverem sempre o mesmo conto, porque na verdade estão a
escrever a si mesmos. (...) com todas as variantes externas ou internas da narrativa,
das personagens ao ritmo, encontramos constantes específicas, que permitem uma
rápida identificação do autor.” (1988, p. 137-138)
Os contos de Caio Fernando Abreu são referenciados especialmente pela
temática, havendo a associação da obra do escritor à abordagem de paisagens e da
marginalização da juventude brasileira da geração dos anos 1960. Essa relação do
texto com o contexto de produção não é vista por Hohlfeldt como uma fixação em
“nível de denúncia sócio-política”, mas como um acompanhamento e uma
identificação dos caminhos encontrados pela juventude. O crítico ainda sublinha que
a produção do autor gaúcho não se restringe à representação de situações de seus
companheiros de geração, uma vez que traz dimensões “mais amplas de todo e
qualquer momento de crise” (1988, p. 145) para a reafirmação do ser humano, tema
considerado constante na obra do escritor. Enfocando traços da estética dos contos
do autor, o ensaísta valoriza a produção de Caio Fernando Abreu e a situa em lugar
de destaque na literatura brasileira:
Contos ritualizados, numa linguagem intensamente lírica, onde a poeticidade ocorre
através da seleção vocabular, e na qual se encontram pela primeira vez vocábulos,
signos e símbolos orientais ligados à tradição ocidental brasileira, a literatura de
Caio Fernando Abreu oferece importante contribuição às letras brasileiras
justamente por enfocar, com perspectiva própria, o drama que então se vivia no
momento mesmo de sua ocorrência. (Hohlfeldt, 1988, p. 145)
Gilda Neves da Silva Bittencourt investiga o conto sul-rio-grandense da
década de 1970, agrupando autores e obras que formam “uma produção
representativa” do período, “tanto pelo caráter urbano das narrativas como pela
abordagem temática das questões mais inquietantes da época”
7
. A autora identifica
uma passagem do conto gaúcho da tradição à modernidade a partir dos anos 1960 e
aponta, nas obras da década seguinte, linhas de força temática dessa “nova
narrativa”: vertente social, vertente existencial/intimista, vertente memorialista ou da
reminiscência da infância e vertente regionalista. Em seu livro, a pesquisadora
esclarece que essas vertentes referem-se às questões abordadas nos contos, com
seus diferentes modos de exploração em cada escritor; além disso, ela adverte que
7
BITTENCOURT, Gilda. O conto sul-rio-grandense – tradição e modernidade. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 1999. p. 12.
18
um mesmo autor pode apresentar textos cujo tópico central não se limita a uma
única tendência.
Relacionando as vertentes identificadas nos contos ao seu momento de
produção, Bittencourt situa Caio Fernando Abreu em três delas: a social, a
existencial/intimista e a memorialista ou da reminiscência da infância. A vertente
social, que “compreende todos aqueles textos cuja idéia primordial é a análise da
sociedade em suas macro e micro relações” (1999, p. 73), é associada ao escritor
por sua produção da década de 1970 estar voltada à crítica à sociedade de
consumo e à moderna era tecnológica (O ovo apunhalado), por problematizar
experiências de jovens cujos sonhos e liberdade foram abafados em meio à
repressão e também por tratar de problemas coletivos (Pedras de Calcutá). A autora
acrescenta que Caio Fernando Abreu se afasta de uma “representação tradicional,
do tipo realista” (1999, p. 87).
Caracterizada pela abordagem de questões referentes à “relação do homem
com o mundo circundante ou consigo mesmo” (1999, p. 92), a vertente
existencial/humanista também engloba textos que refletem sobre a sociedade
contemporânea através da temática da solidão, da incomunicabilidade e da
inadaptação do sujeito ao mundo. É sob essa ótica que Bittencourt vê a produção de
1970 de Caio Fernando Abreu. Para ela, os textos do autor enfocam o plano
individual não só pela abordagem temática, mas também pela postura do narrador,
que intensifica o tom subjetivo daquilo que é narrado, “dando lugar ao comentário, à
interpretação ou à reflexão” (1999, p. 94). A ensaísta assinala ainda que a vertente
existencial/intimista na literatura do contista está relacionada ao seu momento
histórico de produção, já que “Seus contos fazem uma radiografia do jovem de
então, revelando o que se passava nas profundezas da sua mente e analisando,
também, a sua ligação com o mundo exterior” (1999, p. 98).
A vertente memorialista ou da reminiscência da infância contempla tanto
textos ambientados na infância e relatados sob a ótica do adulto quanto textos cujo
narrador é uma criança que narra sob o olhar infantil. O conto de Caio Fernando
Abreu adota esses dois modos de narrar: narrador maduro e narrador criança.
Segundo Bittencourt, nos textos do escritor o distanciamento temporal, marcado pela
opção do narrador, também determina o uso de recursos de linguagem e a visão
daquele que conta as experiências.
19
Luiz Costa Lima também investiga o gênero conto, detendo-se nos textos da
modernidade brasileira, especialmente entre o início do século XX e 1980. O autor
vê o conto de Caio Fernando Abreu como “um dos mais fecundos tripés da recente
ficção nacional”
8
, juntamente com o conto de Carlos Sussekind e Renato Pompeu. O
crítico destaca que os contistas da atualidade defrontam-se freqüentemente com
“cacoetes realistas” e com a proximidade do conto com a crônica e que essa prosa
moderna tematiza o papel do escritor, especialmente a partir de 1964 por obras que
refletem a história política do Brasil. Segundo Lima, o trabalho dos escritores citados
desvia-se de uma tendência ao realismo cru, praticado por outros autores modernos.
As obras O ovo apunhalado e Pedras de Calcutá são referenciadas como exemplos
de textos que discutem terror, delírio e loucura através do repúdio à realidade e à
ficção documental, o que explica a presença de um “real enlouquecido” e de uma
“transmutação” que impede uma “imitação” literária do real. Nas palavras do
ensaísta, “a condição para incorporar a vivência de insegurança total e do total
questionamento dos valores não consiste em imitar literariamente a experiência do
desvario, mas em constituir uma lucidez que não veja o desvario de fora, mas que o
tenha como um de seus possíveis produtos.” (1983, p. 214).
Flora Sussekind, em ensaio que discute os caminhos percorridos pelos
escritores da chamada “literatura pós-64” para representar os conflitos do contexto
sócio-político ditatorial, inclui Caio Fernando Abreu no grupo de autores que
souberam dar “maior elaboração literária para as cenas de tortura e violência cada
vez mais freqüentes na literatura dos anos 70”
9
, em oposição a escritores que
optaram por “flagrantes jornalísticos”, detendo-se a descrições e relatos das
experiências do período. Na visão da autora, o conto “Garopaba mon amour”
expressa a sua qualidade literária ao tratar da tortura e da repressão via contexto
narrativo:
Caio Fernando Abreu não se limita a descrever o horror, como se percebia nos
trechos de Renato Tapajós ou Rodolfo Konder (...), ou a refletir sobre a possível
lógica que regia a tortura, como fazem Gabeira e Sirkis por diversas vezes nas
suas memórias políticas. No seu caso o procedimento é bem outro. Não se está
registrando ocorrência, fazendo documento, diário ou depoimento da experiência
vivida. Mas sim literatura. (Sussekind, 1985, p. 47)
8
LIMA, Luiz Costa. O conto na modernidade brasileira. In: PROENÇA FILHO, Domício (org). O livro
do seminário – ensaios. São Paulo: L.R., 1983. p. 213-214.
9
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária – polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. p. 47.
20
As referências à fortuna crítica da literatura sul-rio-grandense e brasileira
constituem uma busca por estudos que abarcam a produção de Caio Fernando
Abreu num contexto mais amplo de criação literária. Esses estudos que mencionam
o autor são pautados em comentários que priorizam enfoques temáticos e a inserção
de obras em categorias relacionadas ao tema, minimizando um olhar sobre a forma
literária das narrativas. Exemplares dessa tendência são os ensaios de Fischer e
Hohlfeldt no sentido de que esses críticos partem de uma observação atenta aos
“conteúdos” abordados pelo autor gaúcho para chegarem a um juízo final sobre a
literatura do escritor e enquadrá-lo em grupos de artistas que possuem afinidades
quanto a escolhas temáticas. É preciso reconhecer que Fischer e Hohlfeldt
demonstram observação quanto ao aspecto formal da narrativa de Caio Fernando
Abreu quando apontam a experimentação da linguagem como um traço da obra do
autor, mas não apresentam uma análise rigorosa da estrutura dos textos nem
desenvolvem os comentários referentes à estética da experimentação assinalada na
obra do criador de Morangos mofados.
Em relação aos estudos de ordem temática, é preciso incluir o de Flora
Sussekind, que se concentra em investigar a literatura que problematiza o período
autoritário da ditadura militar brasileira. Ao eleger esse foco para análise e ao
distinguir os eficientes e os ineficientes escritores, a autora realiza leitura cujos
critérios de avaliação parecem ser balizados na recorrência ou não ao relato de tipo
documental, o qual é condenado por ela. Sussekind destaca, nesse sentido, um
traço distintivo de Caio Fernando Abreu, mas não atende à expectativa de
desdobramento desse juízo de valor, impedindo que o leitor tenha acesso a uma
análise mais detalhada da construção literária do escritor. Por isso, a pergunta: se
Caio Fernando Abreu não está “fazendo documento” ou “registrando ocorrência”,
mas fazendo “literatura”, que estratégias formais usa para isso?
Outro ponto a destacar é a perspectiva dos pesquisadores baseada
principalmente no exame da literatura de Caio Fernando Abreu a partir de gêneros
literários: as análises de sua obra de Caio Fernando Abreu concentram-se ou nos
contos do escritor ou em seus romances. Gilda Neves da Silva Bittencourt e Luiz
Costa Lima, por exemplo, exploram exclusivamente os contos, e Antônio Hohlfeldt
ora se dedica ao romance, ora à narrativa curta. Não foi encontrado nenhum estudo
crítico que apresentasse uma leitura globalizante da obra de Caio Fernando Abreu,
21
incorporando romances, crônicas, contos, peças teatrais. Talvez isso possa ser
explicado pelo fato de que a configuração de uma fortuna crítica da produção
literária do artista seja recente. A escassez de trabalhos com uma abordagem que
abarque todos os gêneros desenvolvidos pelo escritor é um fator que dificulta sua
avaliação ou inserção no conjunto da produção literária brasileira, já que a referência
à sua obra em antologias ou histórias da literatura brasileira é ausente ou
manifestada em proporções mínimas
10
.
Os estudos desenvolvidos a partir da observação temática na obra de Caio
Fernando Abreu constituem a maior parte da sua bibliografia crítica. Os caminhos de
leitura levantados centram-se na pontuação do caráter testemunhal da produção
literária do autor em relação à sua geração, destacando-se a referencialidade
explícita da obra e o seu vínculo com um momento histórico determinado. Além dos
trabalhos já citados, há outros que procuram interpretar sua obra, seguindo a mesma
tendência em observar o traço temático e as relações do texto com seu contexto de
produção. A maioria desses estudos é resultado de pesquisas de mestrado e segue
opções metodológicas e teóricas variadas.
Letícia da Costa Chaplin
11
relaciona a literatura de Caio Fernando Abreu à
filosofia existencial-humanista com base em proposições de Jean Paul Sartre e Rollo
May acerca do ser humano e do conflito entre homem e sociedade. De acordo com a
autora, a filosofia existencialista concebe a vida como algo pontilhado de frustrações
e perdas irreparáveis, o que conduz à tese de que sentimentos de plenitude e
felicidade são conceitos abstratos e impossíveis de atingir em concretude, sendo,
por isso, a filosofia existencialista considerada uma “filosofia da tragédia”. O
sentimento do trágico acentua a crença no fato de o homem estar condenado ao
fracasso e à infelicidade, assegurando-se a precariedade da condição humana e a
necessidade de se defender certos valores dignos de perpetuação pelo homem, tal
como a liberdade de escolha. Esta, para os existencialistas, é motivo gerador de
angústia, que desencadeia ação e não marasmo, mas também desamparo e
desespero.
10
A obra História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, por exemplo, não traz nenhuma
referência sobre a produção literária do escritor. Ver BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
brasileira. 38. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
11
CHAPLIN, Letícia da Costa. O ovo apunhalado e Morangos mofados: retratos do homem
contemporâneo. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Letras) - Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.
22
A partir da consideração segundo a qual a relação entre homem e sociedade
não se desenvolve de forma harmônica e sim através de uma rede de tensões e
limitações decorrentes da pressão de um grupo de indivíduos sobre outro, Chaplin
sublinha a ruptura entre sociedade e indivíduo, que passa a conceber o plano
coletivo social como secundário e seu “bem viver” como algo prioritário. Para a
autora, a conseqüência da exacerbação da individualidade é a consciência do
homem da impossibilidade de conciliar liberdade e dignidade pessoal, resultando
disso o sentimento de impotência que atinge o homem contemporâneo e a sua
dificuldade de projetar uma auto-imagem. Nessa perspectiva, a reflexão sobre a
morte é um expoente dessa consciência da impotência e da falta de uma
significação sobre o próprio ser do homem.
Na visão de Chaplin, a produção literária de Caio Fernando Abreu pode ser
interpretada à luz das concepções filosóficas existencial-humanistas porque suas
narrativas apresentam conflitos existenciais que registram a “problemática do ser
humano e os reflexos de um tempo confuso, cujos valores caracterizam-se pela
transitoriedade” (1999, p. 6). Repressão social e individual, na perspectiva da
comentarista, é uma temática da obra do escritor que perpetua a sua reflexão sobre
o ser humano, que é representado como um ser à margem do processo social
legitimado: “Em seus contos avultam personagens desumanizados em decorrência
da violência e da fragmentação da sociedade, resultado da ditadura e da censura.
Outros, reagindo à brutal realidade que assola o país, respondem com valores de
amor, emoções e sentimentos humanizadores os quais auxiliam a prosseguir” (1999,
p. 51).
Conforme a pesquisadora, o autor rio-grandense questiona a condição
humana e reflete sobre ela, acentuando um trabalho na subjetividade, na auto-
investigação do homem, cuja representação é elaborada de forma enigmática e
metafórica, o que conduz a uma pluralidade de interpretações e a uma ambigüidade
narrativa. Chaplin sublinha que essa discussão de cunho existencialista na obra do
escritor é motivada pelo diálogo dos textos literários com seu contexto de produção,
já que ele é um “fotógrafo” de seu tempo:
Em seus contos, Caio evidencia o aspecto interior e a questão existencial, sem
nunca desvincular-se da realidade ao redor e do momento histórico-político em que
está inserido. Então, suas narrativas representam o homem de sua época, e nosso
autor passa a agir como um fotógrafo de seu tempo, estando seriamente
comprometido com as vivências de sua geração. (Chaplin, 1999, p. 57)
23
As narrativas do escritor, nessa linha de raciocínio, exploram a situação de
indivíduos privados de esperança, liberdade e sonhos e isolados no mundo, numa
representação manifestada através da fragmentação formal dos contos, que através
dessa estratégia expressam a “frustração de toda uma geração também dividida
entre a ilusão do sonho e do amor e a repressora realidade que se instaura”
(Chaplin, 1999, p. 58). Analisando contos de O ovo apunhalado, Chaplin afirma que
a problematização da condição humana nessa obra expressa um interesse do
contista em denunciar o enclausuramento do homem diante da sua impossibilidade
de se adequar aos padrões de conduta impostos pela sociedade: “Os contos, então,
passam a representar o homem massificado pela sociedade de consumo, incapaz
de reconhecer a si próprio e aos outros que o cercam.” (1999, p. 54). Essa denúncia
também expõe a angústia do homem contemporâneo ao sentir-se excluído do
quadro social e ao viver a banalidade da rotina, como é possível apreender pela
discussão de temas como solidão, medo, morte e inquietação nos textos que
formam a coletânea publicada em 1975. A forma fragmentada dos contos, nessa
perspectiva, reproduz uma realidade frustrada.
Morangos mofados é visto por Chaplin como uma produção literária que trata
da desilusão decorrente de “fracassos amorosos, descrença na sociedade,
marginalidade sexual”, e que, apesar das transformações sociais ocorridas desde a
sua publicação, continua sendo “o documento de uma época, uma emoção e um
comportamento que, muitas vezes, esclarecem a condição da atual sociedade”
(1999, p. 93). Os contos dessa obra, segundo a autora, convidam o leitor a reavaliar
a sua própria existência enquanto ser humano, e Caio Fernando Abreu expressa
“com a fidelidade da lente de um fotógrafo a condição de toda a geração de sua
época” (1999, p. 99-100).
Chaplin sublinha que a literatura do escritor faz um retrato do homem
contemporâneo, numa ligação entre representação literária e mundo real, a qual,
embora aborde uma situação delimitada social e temporalmente “como se fosse um
flash de luz sobre a realidade”, também “sobrevive na história, ultrapassando os
limites do tempo e das circunstâncias histórico-sociais” (1999, p. 102). A concepção
existencialista na obra de Caio Fernando Abreu é verificada na discussão da
condição humana, na redescoberta da sua essência e na exploração da solidão e do
medo como angústias do homem contemporâneo tanto nos contos de O ovo
24
apunhalado quanto nos de Morangos mofados. Esta coletânea, aliás, é considerada
pela autora como uma obra que mantém relações mais estreitas com o seu
momento histórico, enquanto a antologia de 1975 toca em questões mais universais:
Enfim, acreditamos que a grande diferença entre as duas obras reside no fato de,
muito embora ambas tratem do homem contemporâneo, O ovo apunhalado
representa homens em geral, com conflitos existenciais de cunho universal e
Morangos mofados representa homens advindos de uma realidade social mais
específica. Queremos dizer com isso que os personagens que sofrem angústias em
O ovo apunhalado não se restringem a indivíduos brasileiros da década de 60 ou
70, ao passo que as incertezas e contradições descritas nos contos de Morangos
mofados são características típicas de jovens daquela época. (Chaplin, 1999, p.
107-108)
O estudo de Chaplin relaciona a produção literária de Caio Fernando Abreu a
uma abordagem filosófica. A leitura proposta contempla uma discussão acerca de
conceitos da filosofia existencial humanista e uma análise da temática dos contos,
não se detendo em suas características formais. A autora deixa claro que a obra do
escritor pode ser investigada com base nessas concepções, já que os contos
representam artisticamente a “caótica condição humana” e propõem saídas para a
angústia do homem contemporâneo, “nem que seja pela morte, e novas esperanças,
a partir da consumição da dor” (1999, p. 109).
Em perspectiva teórico-crítica distinta da de Chaplin, Larry Wizniewsky frisa
as relações que os textos do escritor gaúcho mantêm com a realidade externa.
Através da ótica da Sociologia da literatura, o pesquisador procura mostrar que Caio
Fernando Abreu foi um crítico da contracultura e apontou limites e carências dos
princípios ético-estéticos desse movimento
12
. Para o ensaísta, a obra do autor está
vinculada a uma prática contracultural, o que possibilita uma percepção crítica sobre
a situação da contracultura
13
. Os conceitos benjaminianos de “erlebnis” e “erfahrung”
são operados para situar a experiência literária do escritor e a relação desta com a
perspectiva narrativa. Nesse sentido, Wizniewsky afirma que “Nos textos de Caio
Fernando Abreu, a contracultura é tematizada nos mesmos moldes, como
12
WIZNIEWSKY, Larry. Ângelus contraculturalis – Caio Fernando Abreu crítico da contracultura.
Dissertação (Programa de Pós-graduação emLetras) - Universidade Federal de Santa Maria. Santa
Maria, 2001.
13
Contracultura recebe a seguinte definição de Larry Wizniewsky: “Produção artística (música –
cinema – teatro, etc) proveniente de estruturas marginalizadas da cultura que sobreviviam, desde o
final dos anos 40, de forma estanque e, ao atuar simultaneamente e auto-influenciarem-se, deram
lugar a um movimento de escala mundial. A contracultura influenciou decisivamente a produção
artística no Brasil a partir dos anos 60, principalmente o Cinema Novo, o Tropicalismo e a chamada
literatura marginal, que ainda hoje representam a produção contracultural nestas áreas.” Op. cit. p. 6.
25
‘erfahrung’ (experiência coletiva, passível de transmissão) e como ‘erlebnis’
(experiência individual, apenas transmissível de forma fragmentada)” (200, p. 10). O
crítico destaca que o escritor adota tipos de narradores que correspondem à
experiência passível ou não de ser narrada. Essa opção é uma forma de abordar
esteticamente as experiências.
Wizniewsky sublinha que os contos de Caio Fernando Abreu apresentam uma
visão crítica da contracultura no Brasil através de uma perspectiva que se distancia
da abordagem acadêmica do tema no país, a qual vê a contracultura como uma
“subcultura” ou como uma “negação da cultura” e não como uma “outra” cultura ou
uma cultura alternativa. Os textos do escritor expressam, por isso, um “duplo caráter
de criação estética e crítica” (2001, p. 59), já que analisam o movimento enquanto
projeto e realização estética. O contista procura dar um testemunho da contracultura,
que é vista por Wizniewsky como um trauma no sentido de que o movimento não
elaborou um trabalho de luto diante do confronto entre a contracultura e o sistema
ético-social. Os textos do autor assumem então um traço pessimista, que é
resultante “de uma reflexão crítica profunda, conduzida pela palavra literária em
direção ao real da experiência vivencial” (200, p. 62).
Os contos do escritor, segundo Wizniewsky, constituem uma crítica em
progresso na medida em que textos produzidos entre os anos 1960 e 1980 formam
uma rede de representações críticas da contracultura, conduzindo à vivência do
choque (“chockerlebnis”). “Garopaba mon amour”, “Aconteceu na Praça XV” e
“Fuga” são apontados pelo estudioso como contos que discutem, via perspectiva do
narrador, a possibilidade de transmissão da experiência contracultural, e que oscilam
entre as categorias benjaminianas da “erfahrung” e da “erlebnis”, sendo esta
predominante nas narrativas do escritor. Wizniewsky situa a produção literária de
Caio Fernando Abreu, identificando uma tendência próxima a proposições de
Benjamin:
Para Benjamin (...), a única experiência que pode ser ensinada hoje é a da própria
impossibilidade de transmissão integral de uma ‘erfahrung” coletiva. Esse é o
mesmo sentimento intuído na literatura de Caio Fernando Abreu quanto à
contracultura. Nos contos que tematizam essa experiência, o autor recusa o nome
às personagens, isto é, apaga as pegadas, retendo-se no máximo em seus sinais
característicos externos. Metaforicamente são oferecidas ao leitor caveiras
alegóricas em cujos traços deve-se adivinhar a real estrutura da vivência. Resta às
ruínas dos referentes concretos (músicas, livros, discos, drogas) a capacidade de
recompor historicamente e figurativamente a experiência.
(2001, p. 106)
26
De acordo com Wizniewsky, a representação alegórica, a experiência
(in)comunicável e o testemunho da obra de Caio Fernando Abreu conduzem a uma
historiografia não-oficial a partir da consideração da perspectiva benjaminiana
acerca do conceito de história e historiografia. No entanto, para o pesquisador, esta
literatura não se concentra nem na visão dos vencedores nem na dos vencidos e sim
num terceiro caminho, o da crítica. Este caminho aponta a experiência da
contracultura como uma derrota, o que condiciona um sentimento melancólico
acerca da história na obra do escritor:
Assim sendo, é nitidamente melancólica a visão histórica de quem como Caio
Fernando Abreu adota o ponto de vista dos derrotados, não para consolá-los, mas
sim para criticá-los. Essa melancolia não impede o autor de atribuir um sentido
crítico ao seu relato alegórico. A obra de Caio Fernando Abreu, naquilo que diz
respeito à contracultura, não é uma lamentação “do que poderia ter sido”, mas uma
especulação sobre por que não foi. (2001, p. 108)
O caráter testemunhal e a perspectiva histórica em relação à contracultura na
obra de Caio Fernando Abreu, conforme Wizniewsky, contribuem para preencher
uma lacuna no discurso crítico sobre esse movimento que ainda não recebeu da
academia uma avaliação consistente. Para o crítico, a representação da
contracultura como experiência particular e coletiva torna a produção do escritor uma
literatura de testemunho ético e crítico, um testemunho que é mais intenso devido às
“ligações pessoais do autor com a experiência contracultural” (2001, p. 141).
Mantendo um olhar crítico que se distancia da forma sociológica que embasa
a leitura de Wizniewsky, Mairim Linck Piva desenvolve seu trabalho sobre a
produção de Caio Fernando Abreu a partir da crítica do imaginário, analisando
elementos simbólicos na obra do escritor. A autora inicia seu trabalho com uma
reconstituição da vida e da trajetória literária do contista e situa, em sua dissertação
de mestrado, o posicionamento dele em relação à sua própria obra ao afirmar que
seus textos tratam de sua geração e de seu tempo. Para a pesquisadora, a literatura
do escritor tem caráter universal por transcender as circunstâncias histórico-sociais
que estimularam sua produção
14
. Em outro ensaio, Mairim Linck Piva reitera a idéia
de que a produção literária do escritor contém temas universais, mesmo que a
14
PIVA, Mairim Link. Uma figura às avessas: Triângulo das Águas, de Caio Fernando Abreu.
Dissertação (Programa de Pós-graduação em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1997. p. 48.
27
grande parte da crítica considere os textos do autor como marcados por uma
realidade determinada
15
.
A pesquisadora sublinha em sua dissertação uma mudança no movimento da
crítica literária a partir da publicação de Os dragões não conhecem o paraíso, obra
que faz os estudiosos passarem a ver na produção literária de Caio Fernando Abreu
uma abrangência maior, em vez de identificarem-no como um relator de cenas de
determinado momento histórico ou segmento social
16
. Piva ainda rememora o
comportamento da crítica diante do conhecimento da doença do escritor,
assinalando um certo impasse dos comentaristas ao avaliar a obra do autor:
Após a descoberta da presença do vírus da AIDS, torna-se difícil dissociar a
existência da doença das análises e discussões em torno do escritor e de sua obra.
Por isso, a fragilidade física e as dificuldades que Caio enfrenta para continuar a
exercer sua atividade de criação servem de contraponto para a observação de sua
produção. Parece chamar a atenção dos críticos tanto a capacidade de continuar a
escrever como a visão positiva que o escritor apresenta da vida. (1997, p. 39-40)
A perspectiva de análise e interpretação da autora difere da crítica corrente
sobre a obra do escritor. Piva observa a presença de imagens simbólicas e seus
significados nos textos de Caio Fernando Abreu, optando por uma abordagem sobre
o imaginário e suas relações na literatura com base em proposições teóricas de
Mircea Eliade e Gilbert Durand. As narrativas que compõem Triângulo das águas
constituem o objeto da pesquisa e trazem constelações de imagens que apontam
para diversos significados:
O livro é atrevido segundo seu criador. Possui um caráter esotérico, lida com a
água enquanto o arquétipo astrológico da emoção, constrói analogias entre signos
do zodíaco e textos literários, é rico em imagens de grande densidade significativa.
As diversas epígrafes e dedicatórias são indicativas da pluralidade de sentidos
evocados pela obra. Literatura e vida se mesclam através de imagens literárias,
musicais, filosóficas e afetivas que compõem a bagagem tanto da vida de Caio
como de sua obra. (1997, p. 76-77)
Decifrando o simbolismo das imagens identificadas em cada narrativa do livro,
Piva assinala em “Pela noite” uma insatisfação e um desencantamento dos
personagens Pérsio e Santiago diante do mundo circundante e suas buscas de
15
PIVA, Mairim Linck. Múltiplas vozes sobre uma voz múltipla: Caio Fernando Abreu. Letras de Hoje.
v. 37, n° 2, Junho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 225-233.
16
É importante assinalar que, na sua dissertação de mestrado, Piva faz uma abordagem do discurso
sobre a obra de Caio Fernando Abreu a partir de textos críticos publicados em jornais desde os anos
1970 até o final dos 1990.
28
refúgio para a realização de seus desejos de amar. Sobre “O marinheiro” a autora
marca a angústia e o sentimento de escuridão que assolam o personagem e fazem-
no superar adversidades e encontrar o “cosmos paradisíaco desejado” (1997, p.
192). A narrativa “Dodecaedro”, segundo a ensaísta, configura-se como uma síntese
das trajetórias esboçadas nos outros textos da obra, abrindo caminho para o
estabelecimento de um “cosmos estável e seguro graças ao poder de metamorfose
e renovação” (1997, p. 192).
Piva analisa também a simbologia do elemento água no plano astrológico em
associação à forma do triângulo, em Triângulo das Águas, e conclui que
Esse triângulo, invertido e às avessas, ergue-se sobre e através da água. Com sua
capacidade criadora e regeneradora, a água coaduna-se com o feminino maternal,
que gera e alimenta esses seres que nascem, oferecendo, como ao final de cada
narrativa de Triângulo das águas, seu colo, a promessa da tranqüilidade e a
esperança da luz das manhãs que ilumina o ponto de chegada de todas as
trajetórias. (1997, p. 193)
Reconhecendo ambigüidades das imagens e possibilidades de
plurissignificação, a pesquisadora encaminha sua leitura para mostrar que o
triângulo proposto na obra de Caio Fernando Abreu associa-se ao triângulo da
condição humana, dos indivíduos que buscam, através da emoção, uma vida plena
de realizações e felicidade. A superação de medos e angústias, nesse sentido, é um
meio para a construção de algo novo, e cada unidade narrativa aponta uma face da
vida, cabendo ao conjunto dos textos e à união das facetas humanas “a existência
da própria obra e da vida dos seres que representa” (Piva, 1997, p. 193).
O processo de leitura de Piva enfatiza a importância dos elementos
simbólicos para uma interpretação da literatura de Caio Fernando Abreu, a qual é
associada à forma como o escritor problematiza a condição humana. Esta também é
considerada por Bruno Souza Leal na leitura que ele apresenta sobre a produção do
contista embora a perspectiva de investigação desse teórico seja a da teoria
desconstrutivista. Baseado no eixo triádico “metrópole/identidade/sexualidade”
17
,
que, segundo Leal, singulariza a produção literária do escritor, o ensaísta analisa
como “tal equação” aparece na obra de Caio Fernando Abreu e reconhece ser essa
uma tendência da literatura brasileira do final do século XX na narrativa curta de
temática urbana. Para o pesquisador, a inserção do sujeito numa metrópole
17
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro – contos,
identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002. p. 13.
29
caracterizada como um espaço das multidões, em que o indivíduo entra em conflito
consigo mesmo e especialmente com sua identidade, é também um fator propício
para o desenvolvimento da homossexualidade. Assim, os sujeitos homoeróticos
criam espaços flexíveis e estranhos ao ambiente heterocentrado e tornam-se
marginalizados, o que implica a dificuldade de construção de identidades fixas.
O crítico acredita que a definição de uma identidade sexual é complexa para o
indivíduo contemporâneo porque este passa a carregar consigo “um estranhamento,
um sentimento de inadequação, como se toda a certeza estivesse impregnada por
uma transitoriedade” (2002, p. 40). Nessa perspectiva, o assumir-se como
homossexual é um desafio, e viver na metrópole é conviver com um descentramento
que gera a fragmentação do sujeito. Os textos de Caio Fernando Abreu, na visão do
ensaísta, expressam esse traço do indivíduo contemporâneo na medida em que se
constituem de personagens deslocados, cujas facetas como loucura, drogas, desejo
e sonho sinalizam esse estado à margem, e de histórias que indicam uma reflexão
sobre a existência e a relação do “eu” com o mundo.
Tendo como corpus de análise os livros Inventário do irremediável (1970), O
ovo apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977), Morangos mofados (1982) e Os
dragões não conhecem o paraíso (1988), Leal detecta uma aparente falta de
organicidade na obra, a qual remete ao “signo do estranhamento formal e temático”
(2002, p. 46), propiciando a formação de uma identidade à produção do escritor:
Composto por um vasto número de historietas de tamanho variável, mas sempre
curtas, esse conjunto a princípio, constituiria uma espécie de amontoado de relatos
dispersos e sem ligação entre si. No entanto, esse é um dos pontos cruciais que
caracterizam essa obra: há entre eles uma coerência, uma espécie de organicidade
manifesta em recorrências e movimentos que unem os fragmentos que a
compõem, levando a pensar num texto que se formaria a partir de vários outros.
(...) Em cada livro dos abordados aqui, um grande número de historietas
aparentemente independentes umas das outras. No entanto, tais contos estão
reunidos em partes, ajuntados em grupos no interior de cada livro. Tal divisão
sugere, ela mesma, uma ligação entre os textos. Mais do que isso, cada livro
apresenta uma espécie de lógica, um propósito, um projeto que se delineia a partir
do seu título, invariavelmente extraído do último conto. (2002, p. 45-46)
O estranhamento formal de que fala o pesquisador refere-se à abolição dos
princípios de início, meio e fim das narrativas, o que, segundo o pesquisador, é um
recurso para apresentar “personagens que se estranham e que estão deslocados no
mundo” (2002, p. 48). Além disso, o estranhamento ocorre em virtude do
afastamento da forma mais tradicional do conto, já que os textos de Caio Fernando
30
Abreu não centram sua atenção na apresentação de uma “seqüência de fatos, no
enredo”, atendo-se a “descrições de estados emocionais ou existenciais das
personagens. São como que mapas, quadros, retratos que expõem paisagens
íntimas.” (2002, p. 53). De acordo com Leal, o texto do escritor, que trabalha com a
fragmentação e o descentramento, “concorre para um mundo também fragmentado
e descentrado” (2002, p. 61).
Desenvolvendo a idéia de que o texto de Caio Fernando Abreu é um “texto do
descentramento, do estranhamento do mundo, do eu, da vida, numa realidade em
que tudo o que é sólido se desmancha no ar” (2002, p. 78), Leal também procura
observar um movimento na obra do escritor. Para o crítico, os livros estudados
permitem reconhecer não só um projeto literário como também uma evolução dos
contos, a qual é acompanhada pelos personagens via passagem da infância à idade
madura:
os cinco livros e suas personagens que envelhecem, ao mesmo tempo em que
estão integrados nesse projeto, oferecem uma visão, de dentro, de sua evolução.
Assistimos a um interrogar no mundo (Inventário do irremediável), a uma adoção
desse projeto político e comportamental (O ovo apunhalado) e a um crescente
avanço nesse caminho, que resulta na percepção das dificuldades de sua
implementação (Pedras de Calcutá), do fim das utopias e da necessidade de um
recomeço (Morangos mofados) e da sobrevivência na companhia de seus restos
mortais (Os dragões não conhecem o paraíso). (2002, p. 79)
O autor ainda vê no conjunto de livros analisados um “aspecto de
individualização crescente” (2002, p. 87) diante das tentativas de afirmação do eu
em meio ao ambiente da metrópole e da dificuldade de definição da sexualidade.
Esse “eu” dos textos do escritor é caracterizado pelo crítico como um ser “ex-
cêntrico”, que está à margem do “mundo ‘tradicional’, heterossexual, católico, classe
média” (2002, p. 86) e que também está em constante interrogação sobre si, seu
percurso, sua sexualidade e o mundo. Nesse processo de caracterização, Leal
relaciona o indivíduo das narrativas de Caio Fernando Abreu aos homens dos anos
1970, com suas idéias, opções e ideologias e com o seu trânsito pela metrópole,
fatores que conduzem o ensaísta a identificar a “importância do caráter confessional
dos contos, que se debruçam sobre paisagens íntimas das personagens. Ele traz a
marca de um tempo no qual o eu se constitui.” (2002, p. 87). Numa síntese de sua
leitura o pesquisador afirma: “Sendo, por definição, como literatura, ‘via oblíqua’, os
contos de Caio Fernando Abreu constroem-se conscientes de sua estranheza, da
31
mesma forma que dão voz a estrangeiros que vivem em seu interior. Esse outro ser
estranho é esculpido com as marcas da história, que pontua e caracteriza sua
trajetória.” (2002, p. 116).
Além da tendência dos críticos de formular uma interpretação para a literatura
de Caio Fernando Abreu a partir de sua temática, outro caminho percorrido pelos
estudiosos é o da literatura comparada. Alguns autores aproximam textos do escritor
a outras manifestações artísticas, como a música, e à literatura estrangeira,
apontando diálogos possíveis entre obras. A posição dos comparatistas é clara
quanto à qualidade da criação de Caio Fernando Abreu, não havendo a
consideração de dívidas do escritor em relação a fontes e influências. O olhar
comparatista apresentado nesses trabalhos abandona os conceitos de fonte,
originalidade e influência, utilizados na Literatura Comparada tradicional
18
, e adota
as noções de intertextualidade, recepção e interdisciplinaridade numa tentativa de
apreender com maior eficácia o significado de uma obra.
O trabalho crítico de Isabella Marcatti sobre a produção literária de Caio
Fernando Abreu caracteriza-se por uma exploração interdisciplinar que conjuga
literatura e canção popular através do enfoque temático e do cruzamento dessas
duas formas de expressão artística nos textos literários
19
. A autora analisa o conto
“Os sobreviventes” em associação à canção “Amor, meu grande amor”, de Ângela
Ro-Ro e Ana Terra, a crônica “Pálpebras de neblina” em comparação com a música
“Guiletta Masina”, de Caetano Veloso, e a novela “Mel & Girassóis” em confronto
com a canção “Anos dourados”, de Tom Jobim e Chico Buarque. A investigação de
Marcatti parte da premissa de que há na obra do escritor gaúcho um diálogo intenso
com a canção popular, que ilumina os significados dos textos literários e intensifica
seus efeitos:
Pela análise podemos perceber o quanto a narrativa literária do autor se amplia
através da canção. E como o texto seria completamente outro se a canção não
estivesse ali. Portanto, quando o autor nos sugere uma determinada canção para o
acompanhamento da leitura, ele não pretende adornar aleatoriamente suas
18
É preciso assinalar que a literatura comparada, enquanto método de exploração intelectual e
disciplina acadêmica, tem se transformado ao longo do tempo, havendo a revisão de seus
paradigmas, campo de atuação e referencial teórico. Dentre os pesquisadores que acompanham
esse movimento, ver NITRINI, Sandra. Literatura Comparada – história, teoria e crítica. São Paulo:
EDUSP, 1997; CARVALHAL, Tânia Franco. O próprio e o alheio. São Leopoldo: ED. UNISINOS,
2003.
19
MARCATTI, Isabella. Cotidiano e canção em Caio Fernando Abreu. Dissertação. (Programa de
Pós-Graduação em Letras) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
32
próprias palavras; estão implícitos em seu conselho um limite (o do próprio texto) e
uma possibilidade de expansão e intensificação da experiência de leitura. (2000, p.
39).
A canção também é vista pela autora como o “expoente primordial” da
sintonia entre autor, época e leitor, na medida em que a referência a canções
populares conhecidas do grande público expressa um certo “gosto médio” na
representação literária de Caio Fernando Abreu e amplia a cumplicidade entre texto
e leitor. Nesse sentido, Marcatti sublinha que a relação entre as narrativas do
escritor e a canção popular permite passagens analíticas do texto ao contexto e vice-
versa, entendendo-se contexto num sentido amplo, que não limita a compreensão
da obra literária como reflexo imediato de uma determinada realidade social.
Para Marcatti, os textos literários de Caio Fernando Abreu mantêm uma
relação estreita com “a vida quotidiana de uma certa classe média urbana brasileira”
(2000, p. 6) dos anos 1980
20
, familiarizada com a canção popular e intelectualizada.
Categorias de Ítalo Calvino são utilizadas nessa perspectiva para caracterizar os
textos literários de Caio Fernando Abreu. Sintonia e focalização são conceitos
referidos para sustentar um exame da conexão entre produção literária e situação
histórico-social contemporânea. Essas categorias são vistas pela pesquisadora
como estratégias narrativas criadas pelo escritor para dar conta da representação
das experiências sociais de seu tempo, de “tipos humanos”, “clichês da época” e
situações típicas de um indivíduo que pertence, como o próprio autor, à geração dos
anos 1980. A sintonia e a focalização na obra constituem um limite da literatura do
escritor segundo Marcatti, uma vez que a obviedade das referências e a pacto direto
com o leitor tornam auto-evidentes os significados dos textos de Caio Fernando
Abreu:
Caio não mente quanto a sua verdade na medida em que essa verdade se funda
no âmbito do conhecimento da vida quotidiana. Um tipo de conhecimento que, por
definição, tange o senso comum, a experiência ordinária, os significados
compartilhados e, praticamente, auto-evidentes. Na obra de Caio, tudo isso se
transfigurou na palavra escrita, deixando de ser realidade enquanto tal para se
tornar realidade literária. (2000, p. 46)
20
Nas palavras da autora: “As situações narradas, suas cenas e cenários podem ser imediatamente
reconhecidos por um leitor nascido no seio de uma família de classe média brasileira no final dos
anos 40, educado e formado ao longo das décadas de 50 e 60, iniciado no mercado de trabalho entre
o final dos anos 60 e o início dos 70, por exemplo.” (2000, p. 12).
33
Num trabalho crítico que envolve comentário biográfico e análise literária,
Marcatti examina a literatura de Caio Fernando Abreu e a divide em duas fases,
segundo a cronologia da produção do autor: os textos escritos entre 1960 e 1970
constituem a primeira fase, e os de 1980 e 1990, a segunda. A literatura inicial do
escritor, na perspectiva da pesquisadora, sublinha a abordagem da experiência do
limite, entendida como a representação da dor, da perda, do sufocamento do sujeito
diante de situações pessoais, geralmente amorosas; além disso, misturam-se dois
tipos de sensações nessas obras inaugurais: o cansaço existencial/desgosto
decorrente do desgaste cotidiano e a descoberta/surpresa de horizontes de vida em
expansão. Nessa fase, estão incluídas as obras Limite branco (1971), Inventário do
Irremediável (1960), O ovo apunhalado (1975) e Pedras de Calcutá (1977). Esta
última, aliás, representa um momento de transição entre a primeira e a segunda fase
do autor, visto que já anuncia elementos constitutivos das obras posteriores. A
segunda fase da produção é marcada pelo tema urbano, com a representação de
tipos humanos da metrópole (gays, prostitutas, artistas, burocratas, mendigos,
jornalistas, etc) e situações típicas de quem vive nas cidades. Todas as obras de
Caio Fernando Abreu escritas a partir dos anos 1980 formam esse ciclo descrito pela
crítica.
Como as narrativas que formam o corpus da pesquisa da autora situam-se
nessa segunda fase, o destaque para os “tipos humanos” do final do século XX é
natural. Marcatti vê nos textos selecionados estratégias narrativas que, por
intermédio da canção popular, conduzem o leitor não só a um “balanço dos
impasses vividos por uma certa geração” (2000, p. 117), mas também à atualização
desses impasses numa relação do sujeito com a própria história. A leitura das
narrativas examinadas aponta ainda um aprofundamento da experiência de
alteridade no contexto social e político dos anos 1980 marcado pela urgência de
democracia e eleições diretas, entre outras reivindicações. Além disso, sugere a
ensaísta, a crise de identidade decorrente do processo mercadológico da sociedade
de consumo manifesta-se na crise da própria narrativa do autor, a qual mostra as
dificuldades, por meio de linguagem e estrutura formal, de projetar uma história
original diante de um “processo de desencantamento do mundo característico da
sociedade moderna” (2000, p. 166).
Com uma visão comparatista semelhante a de Isabella Marcatti no sentido de
que a aproximação de obras de diferentes autores é reconhecida como um caminho
34
para interpretação crítica, Aline Azeredo Bizello analisa textos de Caio Fernando
Abreu, confrontando-os com outras produções. A pesquisadora considera os
diálogos estabelecidos entre a literatura latino-americana e a literatura “beat”, entre a
produção do autor gaúcho e a de Jack Kerouac, manifestando um olhar crítico que
respeita as diferenças (culturais, sociais, políticas, etc) e ignora a hierarquização
entre obras e autores. Na perspectiva da pesquiadora, esse é um caminho para
“compreender o processo de criação literária do escritor”, já que alguns de seus
contos são representativos das “relações intertextuais e interculturais presentes em
sua produção”
21
.
Partindo da tese de que os ideais da chamada “Geração Beat” repercutiram
no Brasil da década de 60 não só na literatura, mas também na música da
Tropicália, Bizello sublinha que Caio Fernando Abreu absorveu a filosofia dessa
geração estrangeira, transformando-a diante de seu momento histórico, marcado,
nesse período, por agitações políticas e culturais. Para a autora, assim como os
jovens intelectuais americanos propunham uma revolução na linguagem e costumes
e uma atenção especial às minorias através da literatura, o autor de As frangas
também se rebelava através de seus textos, transgredindo a forma tradicional do
conto e dando espaços para a representação de sujeitos excluídos socialmente:
Os relatos de seus textos denunciam o sistema repressor responsável pela
privação dos sonhos, ideais e esperanças de liberdade, embora não descreva de
forma explícita a ditadura militar no Brasil. O escritor, com suas personagens,
agride o “status quo” dominante, pois apresenta indivíduos de perfis opostos aos
exigidos pela sociedade tradicional: são homens e mulheres fragmentados e
destituídos de identidade. Dessa forma, valendo-se de metáforas, Caio desmitifica
a visão de identidade una, denunciando, assim, a fragmentação do indivíduo. O
escritor cria jogos de linguagem, explora diálogos e monólogos e capta os detalhes
da expressão humana
. (2004, p. 14)
Ao aproximar a literatura de Caio Fernando Abreu da literatura da Geração
Beat, Bizello aponta também diferenças: a via anarquista é o caminho indicado pelos
jovens americanos para tratar das relações pessoais enquanto que para o escritor
gaúcho o resgate do passado é uma forma de compreender e restabelecer o contato
interpessoal, especialmente diante da desintegração da identidade pessoal surgida a
partir do golpe de 1964 no Brasil: “a ditadura contribui para a introspecção do
21
BIZELLO, Aline. Caio Fernando Abreu sob um viés comparatista. Monografia (Curso de Graduação
em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. p. 5.
35
homem, pois lhe roubou a liberdade e enclausurou-o num mundo de angústia,
solidão e vazio existencial.” (2004, p. 21).
Diagnosticando as diferenças entre a produção de Caio Fernando Abreu e a
literatura beat, Bizello aponta uma postura antropofágica do autor diante do texto
estrangeiro: “Os contos do escritor gaúcho manifestam uma nova interpretação, pois
são uma resposta à leitura da literatura ‘beat’. Caio não consome, simplesmente,
essas obras, mas produz uma nova.” (2004, p. 25). O olhar crítico da pesquisadora
ressalta, nessa perspectiva, a absorção e a transformação apresentada por Caio
Fernando Abreu diante da literatura de Jack Kerouac. Os contos daquele escritor
são “uma releitura de Pé na estrada” (2004, p. 27), o que comprova que a recepção
da obra literária pode trazer novos significados a um texto.
Bizello também se detém na forma narrativa de Caio Fernando Abreu e
mostra que há uma associação entre a representação do sujeito marginalizado e
excluído socialmente e a forma como tal sujeito é apresentado literariamente. Em
sua leitura, a fragmentação do indivíduo encontra correlação na fragmentação da
estrutura narrativa, que é descontínua e alheia ao padrão convencional do conto
literário. O rompimento com o gênero conto é, nesse sentido, um caminho para
sublinhar a desarmonia da realidade.
Situando-se numa perspectiva teórico-crítica distinta da de outros
comentaristas mencionados, Fernando Arenas
22
vê a obra do escritor a partir da
ótica dos Estudos Culturais. Para ele, a produção do contista gaúcho é “peça muito
importante para a compreensão da literatura brasileira pós-moderna” (1992: 54). Ao
considerar contos de Morangos mofados, o crítico destaca três coordenadas
temáticas: a presença de vozes ex-cêntricas (este termo é usado por Arenas a partir
de proposições de Linda Hutcheon), a problematização da escrita e a preocupação
ontológica com o sujeito, sendo que estas duas últimas estão voltadas para a
discussão da homossexualidade. Para o ensaísta, a coletânea de contos do escritor
obedece a uma estrutura que passa do hermetismo e do clima angustiante de
alguns textos a outros menos complexos e centrados na subjetividade, o que
configura uma obra aberta e marcada por um “profundo pessimismo” (1992, p. 59),
embora Caio Fernando Abreu não compartilhe o “espírito niilista de outras vozes
contemporâneas” (1992, p. 59).
22
ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos mofados, de Caio Fernando
Abreu. Brasil/Brazil. Ano 5, nº 8, 1992. p. 53-67.
36
A atenção de Arenas também está centrada na fala homossexual dos contos
do escritor. Segundo o estudioso, as vozes homossexuais, que aparecem ora
diretamente ora indiretamente nos textos, surgem sem apologias e constituem uma
“tentativa de destruir as máscaras sociais e estéticas mantidas pela cultura
hegemônica heterocêntrica, sob o risco de ser destruída no processo” (1992, p. 60).
Nesse sentido, Fernando Arenas identifica a função da literatura do escritor, tanto no
plano social quanto no literário:
O surgimento de vozes homo/bi/ssexuais na obra de Caio Fernando Abreu, então,
tem necessariamente uma dimensão política contestatória, dado que é uma
afirmação das diferenças. Igualmente, a sua obra se insere na luta pela redefinição
do espaço canônico (seja social, literário, estético, etc) que até agora tem
geralmente abafado ou excluído a expressão desmascarada de sexualidades (ex -)
cêntricas. (1992, p. 60-61)
Em estudo recente, o pesquisador detém-se na avaliação da emergência de
grandes narrativas da nacionalidade no Brasil e em Portugal, no âmbito do
pensamento intelectual e de sua subseqüente desconstrução na literatura
contemporânea de ambos os países
23
. O autor também examina a mudança das
grandes visões utópicas para pequenas imaginações utópicas na espera de uma
sociedade melhor. Arenas parte da premissa de que Portugal e Brasil influenciaram
e foram influenciados reciprocamente, fato co-extensivo à contemporaneidade, com
a influência da cultura popular e média brasileira em Portugal (telenovelas, música
popular, etc) – fator que tem propiciado “significant changes in Portugal, particularly
from a linguistic point of view” (2003, p. XXIII) – e a presença da “elite culture” de
escritores portugueses como Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e José
Saramago no Brasil, já que a cultura popular portuguesa não é expressiva no
trópico.
Procurando discutir como escritores brasileiros e portugueses exploram o
conceito de nacionalidade e refletem sobre questões como gênero, pós-
colonialismo, utopias, sexualidade e globalização, Arenas estuda um grupo de
autores, Caio Fernando Abreu, Isabel Barreno, Vergílio Ferreira, Clarice Lispector,
Maria Gabriela Llansol e José Saramago, que se preocupam com
23
ARENAS, Fernando. Utopias of otherness – nationhood and subjectivity in Portugal and Brazil.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003.
37
destiny of their respective nations in today’s globalized environment, as they are
interested in the destiny of humankind at the turn of the new century, where there is
profound skepticism in relationship to utopian ideologies of redemption, either
religious or political. Yet they all believe in the ties of solidarity, love, and ethical
commitment vis-à-vis the other, be it in the form of a lover, family member,
community, or nation, or that of humanity at large. It is the strength that derives from
these ties that allows them to live productively as writers, as citizens of their
respective nation-states, and as participants in the contemporany global system.
(2003, p. XXX).
O propósito do pesquisador é examinar as reflexões literárias sobre
nacionalidade a partir de “Braziliam gay male writers and contemporany Portuguese
women writers” (2003, p. 40), já que essa forma de escritura literária oferece uma
alternativa para o pensamento intelectual acerca da nação:
Through their attention to sexuality or gender concerns as they impinge upon
individual and collective identies, gay writers and women writers question the
universality of the construct of “the nation” at the same time as they posit
alternative modes of collective solidarity ou affectional attachment between
members of national and globalized communities, even questioning and ultimately
surpassing any sense of fixity that may be associated with the identity constructs of
“gay”’ or “woman”. (2003, p. 40-41).
O capítulo dedicado a Caio Fernando Abreu situa o escritor no contexto sócio-
político brasileiro do final do século XX, com destaque para o sentimento de
desespero resultante do regime ditatorial e também para a esperança de
democracia, e insere sua obra num grupo de expressões artísticas e culturais que
registram o período dramático do processo de transição política no Brasil. Para
Arenas, o texto do autor apresenta uma interação entre “personal, national and
global concerns” (2003, p. 42), através de um tom angustiado diante da tentativa de
um balanço dos problemas individuais e esperanças coletivas. O crítico aponta um
sentimento de perda e profunda solidão na literatura do escritor, assim como
“heightened skepticism about sexual and political utopias that nurtered the Braziliam
(and, in general, Western) imaginary throughout the 1960s and 1970s” (2003, p. 43).
O autor enfatiza:
The result has been a generalized sense of loss, disorientation, and pessimism,
acutely perceveid by the author, which is the product not only of the contemporany
global landscape, but also of a national historical trajectory that has seen many
years of authoritarian rule (1964-1984), with all of its well-known political and
economic consequences, and an ensuing decade of great insecurity and instability,
wrought with frustrated collective dreams, persistently wide socioeconomic
inequities, and unlikely saviors. (2003, p. 44)
38
Além do contexto ditatorial, Arenas sublinha a situação pós-abertura política,
com estagnação econômica, corrupção, violência urbana e desigualdade social
como elementos que configuram o universo ficcional de Caio Fernando Abreu. Da
literatura do escritor o crítico destaca a intertextualidade, identificada nos diálogos do
autor com outras formas de expressão e culturas. Esses diálogos, segundo o
pesquisador, conduzem à abolição das fronteiras entre o nacional e o estrangeiro
nos textos literários, cabendo, portanto, a noção de apropriação cultural para
compreender a produção de Caio Fernando Abreu.
Na visão de Arenas, o escritor gaúcho faz parte de uma cultura global “gay”
ou “queer” por discutir a homo e a bissexualidade, e sua literatura introspectiva traz
uma prosa profundamente lírica que está próxima da de Clarice Lispector: “The
attention paid to ephifanic moments of coming to awareness of being in the world
reveals an important kinship between the two authors. There is a clear philosophical
dimension to Abreu’s work, where existential concerns occupy a prominent space
alongside the author’s reflections on sexuality”. (2003, p. 46).
Arenas associa reflexão sobre a condição humana e sexualidade na obra de
Caio Fernando Abreu, chamando atenção para o fato de que o escritor identificou
utopias de vários níveis: “There is a deep sense of individual and collective
pessimism and disillusionment that is partly the result of the crashing of utopias of
various kinds in the past few decades, be they political, sexual, emotional, or even
professional. The author saw AIDS as one the most vivid and tragic embodiments of
the crashing of the utopia of sexual revolution.“ (2003, p.46).
Sobre a ficção do autor, Fernando Arenas também privilegia a abordagem do
escritor sobre o tema da AIDS, o que, para o crítico, mostra uma postura corajosa de
Caio Fernando Abreu em assumir publicamente a doença, refletir sobre seus
estágios em textos literários, falar do medo do desconhecido e afirmar a importância
da vida mesmo diante da iminência da morte. Nessa perspectiva, o pesquisador
reitera a idéia expressa em seu outro estudo citado de que as narrativas de Caio
Fernando Abreu lançam expressões de esperança apesar de manifestarem uma
visão melancólica: “In spite of the profound melancholy that envelops most of Caio
Fernando Abreu’s narratives, they often end with a lingering expression of hope.”
(2003, p. 48). A posição de Arenas é confirmada pela sua leitura de Os dragões não
conhecem o paraíso, cujos contos são elaborados pelo viés da negação ou da
morte, refletindo sobre esta, mas terminando com a afirmação da vida através do
39
ideograma chinês ”Chi’ en”, que significa a origem de todas as coisas, e com uma
citação de Ana Cristina César sobre felicidade.
A leitura proposta para Onde andará Dulce Veiga? é marcada pela
associação da trama do romance com a situação sócio-política do país e com o
processo de “cultura transnacional” que atinge São Paulo, espaço onde se
desenvolve grande parte da narrativa. Segundo Arenas, o repórter que sai em busca
de uma cantora brasileira famosa desaparecida acaba por descobrir a sua própria
imagem, uma imagem de solidão e medo, com sonhos ideológicos, pessoais e
profissionais frustrados, assim como os de toda a sua geração. Os romances
Harmada, de João Gilberto Noll, e Estorvo, de Chico Buarque, são outros exemplos
literários referidos como narrativas que tratam, como o texto de Caio Fernando
Abreu, das utopias da geração de 1960: “All three authors were deeply committed to
Brazil’s destiny as a society, but revealed na acute disenchantment vis-à-vis Brazil’s
intractable socioeconomic problems, as well as shared feeling of loss of the utopian
dimension, so fertile and strong in the 1960s.” (2003, p. 52).
Diante do exame de outros textos de Caio Fernando Abreu, Arenas apresenta
a sua linha de leitura da obra do escritor e assegura a abolição de categorias fixas
quanto à sexualidade e sistemas ideológicos pré-determinados:
Sexuality and gender identity categories appear as highly unstable sites of
signification in Caio Fernando Abreu’s fictional world, where fixed notions of
hetrosexuality, bisexuality, or homosexuality are constantly called into question.
Abreu’s textual space is populated by subjectivities representing a wide and fluid
spectrum of genders and sexualities that escape facile containment within dominant
ideological frameworks. The works attacks any ideological system that may
marginalize or exclude difference or that may preclude the subject from realizing
himself emotionally, sexually, and ontologically with whomever he chooses. Abreu
also makes a case for rethinking the “sexual” borders of the nation-state. In a variety
of forms and registers, the subjectivities that habit Abreu’s fiction underscore the
idea of the nation (in this case, the Braziliam nation) as a liminal signifying space
marked by a heterogeneity of discourses and tense areas of cultural differences.
(2003, p. 55).
Arenas identifica na produção literária de Caio Fernando Abreu uma
perspectiva voltada para “profound ontological disjuncture within the subject” (2003,
p. 61), especialmente depois da contaminação do escritor pelo vírus da AIDS. Se
antes sua literatura era marcada pelos sentimentos de desorientação, desilusão e
solidão decorrentes das circunstâncias nacionais e globais, dentre as quais podem
ser citados a ditadura militar brasileira e o movimento contracultural. Após a doença,
40
Caio Fernando Abreu passou a representar um sujeito angustiado e a enfatizar a
impossibilidade de uma “unitary and self-identified subject” (2003, p. 61). Na leitura
do ensaísta, a ficção do escritor destaca a urgência pelo outro através da dimensão
erótica do ser humano e da consciência do limite da vida. O princípio de alteridade,
aliás, é visto por Arenas como um dos vetores da literatura do escritor gaúcho, traço
que faz o crítico reconhecer na literatura da escritora portuguesa Maria Isabel
Barreno semelhanças com a prosa de Caio Fernando Abreu, já que a autora
privilegia a discussão sobre o sujeito, subjetividade feminina, numa dimensão “pós-
feminista”.
A conclusão a que chega Arenas é a de que tanto escritores portugueses
quanto brasileiros estudados expõem em seus textos ficcionais uma redefinição do
conceito de nação e procuram refletir sobre as utopias ou casos de emancipação,
como a revolução marxista, a revolução sexual e a libertação das mulheres, numa
postura voltada para modos alternativos de princípios éticos e políticos e para a
valorização da relação do sujeito com o “outro”. O crítico deixa claro que, embora os
escritores tenham assinalado uma espécie de falência de certas utopias, eles ainda
acreditam na necessidade de se cultivar idéias utópicas para a construção de uma
sociedade melhor: “They suggest that in spite of that exhaustion ou weakening of
utopias that governed tha human imaginary (nationally and transnationally) until that
late twentieth century, certain strands of utopian thinking are still necessary for the
survival of humanity.” (2003, p. 88). A utopia necessária, nessa linha de raciocínio
proposta por Arenas, é a utopia da alteridade, que se constata pela atenção ao outro
proclamada nos textos literários examinados pelo pesquisador. Essa atenção ao
outro vem acompanhada de uma percepção sobre as relações do sujeito com o
mundo num contexto em que a fragmentação é marca da condição humana
contemporânea:
The utopia of otherness thus situates itself between the condition of being an
absolute principle and the condition of being radically fragmented into a multitude of
small narratives and relational instances that describe and govern the
contemporany human condition. The other (…) presents a wide constellation of
meanings, ranging from various individualized or collective beings to the objects of
eventlike relations, as embodied in the figure of a lover, family, friend, co-worker, or
community; the nation; humanity; the ‘reader’; or the act of writing or reading. (2003,
p. 105)
The literature produced by this heterogeneous group of writers dramatizes the
notion that our individual and collective destinies are inextricably linked to a sense
41
of ethical responsibility vis-à-vis the other. This notion constitutes a final utopian
frontier, as well as an ultimate harbinger of hope. (2003, p. 125)
Um olhar sobre o discurso crítico acerca da literatura de Caio Fernando Abreu
permite constatar que o escritor tem sido objeto de estudo de pesquisadores com
diversas intenções e perspectivas teórico-críticas. Enquanto uns observam-no
tentando identificar um lugar para sua produção no panorama da literatura regional
do Rio Grande do Sul, tal como o fazem Luís Augusto Fischer, Antonio Hohlfeldt e
Gilda Neves da Silva Bittencourt, outros situam Caio Fernando Abreu na literatura
brasileira, seja por seu conto seja por seu romance, seja por sua relação com um
modo específico de elaborar literariamente cenas da história do Brasil, como destaca
Flora Sussekind ao englobá-lo na chamada literatura brasileira pós-64. Os estudos
cujo foco de atenção são os eixos temáticos seguem linhas teóricas distintas,
passando por uma compreensão da literatura do escritor através da filosofia
existencial/humanista (Letícia da Costa Chaplin), da crítica do imaginário (Mairim
Linck Piva), da crítica marxista benjaminiana (Larry Wizniewsky) e da desconstrução
(Bruno Souza Leal).
As pesquisas de âmbito comparatista, ao aproximarem a produção literária de
Caio Fernando Abreu a de outros autores, destacam o diálogo do escritor com
outras manifestações artísticas e sua postura ativa e antropofágica. Nesse sentido,
esses estudos vislumbram perspectivas de recepção da obra de Caio Fernando
Abreu: articular as relações que o texto do autor estabelece com outras formas de
expressão (filmes, canções, obras literárias) e desenvolver aproximações e
distanciamentos entre a obra do escritor e a de outros autores. Nessas abordagens,
são perceptíveis não apenas um interesse crítico sobre a obra de Caio Fernando
Abreu, mas também o apontamento de perspectivas multiformes para a
compreensão da sua literatura, o que proporciona uma amplitude de visão sobre a
literatura do escritor e metodologias de confronto e viabiliza um alargamento dos
horizontes de leitura (inter)textual.
Nas abordagens sobre a obra do autor, não há críticas severas quanto ao seu
modo de escrever ou quanto aos temas discutidos: de modo geral, são enfatizadas
as qualidades literárias dos textos do escritor e sua capacidade de criar imagens a
partir de uma linguagem própria que foge dos padrões convencionais e que
assegura a singularidade de sua escrita. Alguns autores chegam a ver em Caio
42
Fernando Abreu uma atitude inovadora na forma de escrita literária, tanto por sua
abordagem temática quanto por seu uso da linguagem. É assim que Arenas sublinha
a temática da AIDS na literatura brasileira, considerando o autor de O ovo
apunhalado como um precursor do tema no Brasil e como um escritor que elabora
artisticamente a descrição da dor e da consciência do limite da vida. Quanto à forma
de escrever, como já foi destacado, Fischer e Hohlfeldt manifestam-se discretamente
ao falar da linguagem que caracteriza as narrativas de Caio Fernando Abreu.
Os textos críticos, em sua maioria, destacam que a obra do escritor possui
ligações com seu contexto social e político. Apesar das diferenças de análise,
objetos de pesquisa e embasamento teórico, esses estudos asseguram que a
produção literária de Caio Fernando Abreu faz uma representação das situações
típicas dos indivíduos das décadas de 1960 a 1980. O uso de termos como
“geração”, “radiografia”, “testemunho” e “fotografia” procuram estabelecer a
associação das narrativas com seu momento histórico. Antônio Hohlfeldt, Gilda
Bittencourt, Letícia Chaplin, Aline Bizello, Larry Wizniewsky, Bruno Leal, Isabella
Marcatti e Flora Sussekind manifestam claramente a posição de que a literatura de
Caio Fernando Abreu trabalha condicionamentos históricos, culturais e sociais.
Nesses ensaios, fica explícita a noção de referencialidade da obra, já que a
associação das narrativas a certos tipos humanos, clichês de época, problemas
individuais e coletivos da geração dos anos finais do século XX é constante.
Alguns autores sinalizam que a produção de Caio Fernando Abreu está
relacionada a circunstâncias históricas e sociais, e também há posicionamentos
críticos que asseguram a universalidade da obra. Essa constatação é obtida pela
leitura de Letícia Chaplin, que reconhece a ligação das narrativas de Caio Fernando
Abreu com o período ditatorial brasileiro e sublinha que a representação literária do
escritor ultrapassa uma “realidade delimitada social e temporalmente” (1999, p. 10)
porque reflete sobre o homem contemporâneo e os conflitos existenciais, sendo,
assim, uma produção que contempla temas universais. Mairim Linck Piva mantém
posicionamento semelhante, já que acredita no caráter universal dos textos do autor,
que, segundo ela, reflete sobre a condição humana.
Os trabalhos que reconhecem a universalidade da obra estão voltados para
os enfoques temáticos, assim como os estudos que relacionam os textos do autor à
representação de um certo período histórico-social também estão interessados nos
“conteúdos” tratados por Caio Fernando Abreu. A conexão entre texto literário e
43
contexto social é uma idéia defendida por vários autores, que garantem que o
escritor construiu um “documento” das experiências de uma geração, elaborando
uma “fotografia” dos conflitos e problemas enfrentados e dos ideais compartilhados
por essa geração. No entanto, é preciso considerar a forma como Caio Fernando
Abreu elaborou esse diálogo do texto com o seu contexto de produção.
Não se trata de negar as relações das narrativas do autor com “fatores
extraliterários”, para usar expressão de Antonio Candido
24
, mas de ver como essas
relações são construídas. Para discutir essas questões, é necessário desenvolver
uma análise que contemple dois eixos principais: a forma literária e o conteúdo das
narrativas. Como já foi destacado, a fortuna crítica da produção de Caio Fernando
Abreu tem priorizado o exame das abordagens temáticas e apresentado comentários
de caráter geral sobre a estrutura e a forma dos textos do escritor. Devido a esses
fatores, este estudo pretende estabelecer como pontos de investigação de
Morangos mofados a forma das narrativas e a sua temática, articulando esses
elementos para uma interpretação da obra.
As pesquisas sobre a literatura de Caio Fernando Abreu apontam uma
imagem do escritor que está relacionada à sua visão acerca das relações do homem
com a sociedade e com o seu espaço sócio-político, seja através da definição de
papéis sexuais, seja através de atitudes políticas e opções ideológicas. A imagem de
Caio Fernando Abreu como um autor pessimista e crítico é destacada por suas
constantes abordagens da solidão, da desilusão, da inadaptação do sujeito ao
mundo, das perdas, da ruína dos sonhos, da exclusão social, da marginalidade.
Bruno Souza Leal, Fernando Arenas e Larry Wizniewsky chegam a fazer alusão a
um teor melancólico em contos do autor, mas não formulam um conceito de
melancolia nem correspondem às expectativas de desdobramentos da questão.
Um exame detalhado dos contos do escritor pode indicar essa perspectiva
melancólica e ajudar a elucidar muitos traços de sua literatura que ainda não foram
suficientemente compreendidos. Um olhar sobre as relações das narrativas de Caio
Fernando Abreu com condicionamentos sociais e históricos pode ser um caminho
produtivo para a identificação de como a melancolia surge em seus textos, na
medida em que é intensa a problematização de experiências sociais na literatura do
24
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo:
T. A. Queiroz, 2000.
44
escritor. Assim, a recorrência a esses traços na antologia de Morangos mofados
ratifica a inter-relação entre literatura, história e sociedade na produção do escritor.
1.2. A produção de Caio Fernando Abreu: literatura, história e sociedade
A obra de Caio Fernando Abreu, produzida entre 1969 e 1996, problematiza a
repressão política e sexual, o homoerotismo, a AIDS, entre outros temas, e constitui-
se como uma manifestação de repúdio e contestação aos princípios autoritários e
conservadores da sociedade e do governo desse período. Sendo composta em sua
maioria por narrativas de conteúdo denso e delicado, a produção literária do autor
expõe uma consciência social ao propor uma discussão sobre conflitos e problemas
humanos, como os suscitados pelo exercício extremo do poder e da violência física
ou moral e pela dificuldade de relação interpessoal, manifestada no âmbito familiar.
Em Morangos mofados, as narrativas reconstroem experiências sociais
marcadas pela imposição de valores morais e padrões de conduta estabelecidos por
uma sociedade autoritária e por um sistema político repressivo. A obra é marcada
pela diversidade temática, já que trata da repressão sexual, da repressão política, do
autoritarismo, do processo de escrita. Se, por um lado, a diversidade marca a
temática da coletânea, por outro, também caracteriza a forma literária. A atividade
formal das narrativas da antologia também não é homogênea: há histórias
construídas com estrutura linear, outras com estrutura fragmentária, num constante
entrecruzamento de formas, estilos e linguagens. Além disso, é preciso ressaltar que
a posição do narrador não é uniforme nos contos: ora ele mostra-se gentil com o
leitor, indicando possibilidades de leitura, ora se torna insensível com o processo de
interpretação, provocando o receptor. O lirismo está presente na prosa, e o drama
caracteriza o tom de algumas histórias da obra. A linguagem considerada vulgar é
colocada no mesmo plano da culta. Sob o signo da diversidade e da pluralidade,
tanto em recursos estéticos quanto em caminhos de leitura e interpretação, a
coletânea de contos apresenta-se como um desafio ao leitor.
A heterogeneidade temática e formal característica do livro de 1982 poderia
ser considerada como uma falha de composição se a análise da obra fosse realizada
45
a partir de uma perspectiva tradicional e classicista.
25
No entanto, uma leitura que
contemple a especificidade da obra do escritor parece não poder ser baseada nessa
linha de raciocínio. A verificação da qualidade dos textos do autor deve priorizar os
traços incomuns (ou não-tradicionais) como características singulares da construção
dos contos (e não como limites da criação literária) e como recursos que
estabelecem conexões com seu contexto de produção.
Para refletir sobre as relações entre obra e o seu contexto de produção, é
necessário fazer considerações acerca do vínculo entre literatura, história e
sociedade no Brasil. Críticos que estudam representações literárias e suas relações
com o contexto social e histórico apontam o autor de Pedras de Calcutá como um
exemplo não só pela temática abordada em sua obra, que traz ligações com a
História do país, mas também pela maneira como elabora experiências sociais.
Assim o faz Flora Sussekind, em texto já comentado
26
, ao reconhecer a qualidade
estética de um conto do escritor, o qual focaliza a tortura no Brasil dos anos de
chumbo.
Jaime Ginzburg
27
cita Caio Fernando Abreu dentro de um grupo de escritores
que procuraram representar a condição humana, dando ênfase ao seu caráter
problemático e antagônico em virtude de a subjetividade, no caso do contexto
brasileiro, ser “atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação
autoritária” (2000: 27). A perspectiva crítica do pesquisador é amparada na relação
entre autoritarismo e literatura no Brasil e na discussão da crise da representação
em sua associação com a violência do processo histórico do país. Ginzburg
28
,
compartilhando proposições de diferentes autores, destaca que o exercício do
autoritarismo em suas variadas formas na vida política interfere na “definição de
nossas relações sociais” (2001: 126), conduzindo a representações literárias cujo
eixo temático centra-se na relação entre os seres humanos, acentuando-se o
25
Se forem consideradas, por exemplo, as teorias dos gêneros literários sobre o conto, desde Edgar
Allan Poe até estudos mais recentes de Julio Cortázar e Ricado Piglia, por exemplo, é lícito observar
que a estrutura dos contos transformou-se e que não é possível o exame de textos contemporâneos
com a ótica de textos classicistas. Algumas formulações de Poe já não são mais perceptíveis em
contos recentes. Conferir CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996;
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Revista Brasileira de Literatura Comparada. Nº 1. 1991; POE,
Edgar Allan. A filosofia da composição. In: __. Poemas e ensaios. Rio de Janeiro: Globo, 1985.
26
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária – polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
27
GINZBURG, Jaime. Autoritarismo e literatura: a história como trauma. Vidya. Vol. 19. Nº 33. Santa
Maria: Centro Universitário Franciscano, 2000. p. 43-51.
28
GINZBURG, Jaime. A violência constitutiva: notas sobre autoritarismo e literatura no Brasil. Letras.
Nº 18/19. Santa Maria: Ed. UFSM, 2001. p. 121-144.
46
impacto das experiências histórico-sociais sobre a concepção de sujeito e forma
literária. A partir dessa premissa, o ensaísta reflete sobre a interiorização de conflitos
existentes na realidade brasileira em textos literários, associação que o faz
compreender a fragmentação formal em conexão com marcas do processo histórico.
Na visão do autor, encarar o processo histórico brasileiro sob a perspectiva do
trauma e reconhecer que a formação social do país é marcada por experiências de
violência e opressão é um caminho para se compreender como escritores tentaram
problematizar a História, abandonando uma concepção idealizada do Brasil e
apontando riscos de banalização de experiências sociais.
O trabalho do sociólogo José Antônio Segatto
29
amplia essa reflexão.
Segundo ele, a formação social brasileira é marcada por políticas autoritárias e
governos repressivos, que, em diferentes períodos e sistemas governamentais
30
,
exerceram forte poder e opressão sobre as estruturas sociais, especialmente sobre
as massas populares. Fazendo uma relação entre diferentes momentos históricos do
Brasil e representações desses traços na literatura, o autor afirma que nosso
processo histórico “caracterizou-se por ter sido marcadamente excludente e
autoritário” (1999, p. 201). Nessa linha de raciocínio, o pesquisador assinala uma
certa continuidade na postura dos governantes, a qual tem se mostrado, nos
diferentes momentos históricos, conservadora e autoritária. Essa perspectiva
também é compartilhada por Paulo Sérgio Pinheiro
31
, para quem a transformação do
regime político não assegura uma mudança nas práticas governamentais. De acordo
com o sociólogo, “O caso do Brasil mostra que o autoritarismo e o arbítrio podem
persistir apesar da abertura democrática, das eleições e da reforma constitucional”
(1991, p. 124).
Temas e problemas de ordem social, como democracia limitada, cidadania
restrita, repressão e opressão, conforme Segatto, são “postos e repostos
freqüentemente nas explicações e análises de grande parte dos cientistas sociais” e
representados na literatura, sendo que, nas manifestações artísticas, essa realidade
é “criada, ou recriada, inventada ou reinventada artisticamente. (...) ela surge de
modo peculiar, como representação artística, como figuração estética, por meio de
29
SEGATTO, José Antônio. Cidadania de ficção. In: SEGATTO, José Antônio & BALADAN, Ude
(orgs). Sociedade e literatura no Brasil. São Paulo: Unesp, 1999.
30
O autor engloba experiências histórias do Período colonial, do Império escravista e da Era
republicana no Brasil.
31
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP. Nº 9. São Paulo: USP, 1991. p.
45-56.
47
imagens sensíveis” (1999, p. 201-202). Textos de Machado de Assis, Lima Barreto e
Graciliano Ramos são algumas referências literárias sinalizadas pelo sociólogo, já
que, em sua visão, obras desses autores manifestam uma observação crítica sobre
determinada realidade histórico-social concreta do Brasil ao representar via recurso
literário a essência das relações entre Estado e sociedade. Os comentários do
estudioso mostram que traços de exclusão, antidemocracia, opressão, repressão,
discriminação e desigualdade, característicos da postura do Estado, não passaram
despercebidos por escritores cujos trabalhos assinalam uma “cidadania de ficção”.
As reflexões de Segatto são extremamente úteis para compreender como
episódios do processo histórico estão abordados em obras literárias. Estas, de
acordo com o crítico, propõem uma visão diferenciada daquela apontada pelas
ciências sociais no sentido de que, enquanto estas fazem análise descritiva e
objetiva dos eventos, a literatura representa-os através de uma linguagem subjetiva
elaborada esteticamente, acentuando o impacto desses traços do contexto sócio-
histórico na produção artística e cultural.
Os textos de Caio Fernando Abreu sinalizam a possibilidade de se pensar
relações entre autoritarismo, violência, repressão e literatura, visto que narrativas
permitem perceber traços violentos do país não só acerca das relações entre Estado
e indivíduo, mas também das entre sujeitos sociais. Morangos mofados, coletânea
lançada num período de abertura política e declínio da ditadura militar brasileira,
configura-se como uma manifestação literária que representa anseios e perspectivas
sociais de personagens que se deparam com a necessidade de fazer uma avaliação
de seus próprios princípios político-ideológicos e projetos num período ainda
marcado por repressão, embora a transição do regime militar para o democrático
começasse a se firmar, e algumas conquistas no plano das relações humanas
começassem a aparecer, como a emancipação das mulheres. Além disso, a obra
questiona valores do patriarcado autoritário e da moral conservadora ao representar
a correspondência de afetos de sujeitos homossexuais, abalando os padrões de
sexualidade socialmente legitimados e confrontando preconceitos.
A temática da sexualidade e do homoerotismo em Caio Fernando Abreu
conduz a uma reflexão sobre valores morais socialmente legitimados num espaço
em que o “diferente” passa a não ter aceitação, tornando-se indivíduo à margem dos
processos sociais. Muitos dos personagens centrais são excluídos do ambiente
social convencional por manterem postura sexual condenável ou suspeita de
48
reprovação. As narrativas do escritor problematizam situações exemplares para a
discussão de experiência de violência social e discriminação na medida em que
exploram uma visão de mundo que se opõe a um padrão vigente de comportamento
e conduta moral. A sociedade passa a ser vista não como uma entidade livre de
preconceitos ou favorável a diálogos com o “ex-cêntrico”, mas como uma autoridade
que julga e reprime tudo e todos os contrários a uma ideologia ou a uma postura
pré-estabelecida.
Marilena Chauí
32
observa que há uma tendência nas sociedades em geral de
negar a possibilidade de um indivíduo manter práticas sexuais que não obedeçam
ao padrão estabelecido. Trazendo exemplos de repressão sexual em diferentes
contextos e tempos históricos, a autora chama atenção para o fato de que há uma
certa inclinação da sociedade em encontrar justificativas para explicar a
irracionalidade e a inaceitabilidade de condutas estranhas à perspectiva moral. Nas
palavras da pesquisadora:
Encaradas pelo ângulo da moral, as práticas e idéias sexuais que não se
conformam aos padrões morais vigentes são considerados vícios, pois os seus
contrários, os padrões, são tratados como virtudes. (...) Na perspectiva moral,
portanto, as racionalizações que justificam a repressão sexual ligam-se às idéias de
hábito para o vício (uma espécie de segunda natureza), de impulso incontrolável
causado por uma imperfeição (um defeito que gera uma conduta quase
instintivamente viciosa) e de corrupção e desvio de normas (portanto, algo
deliberado). Nos três sentidos, há referência à norma. (1991, p. 118)
A prática homossexual, por se opor a normas, ganha status de transgressão,
e a estigmatização passa a ser um meio de reprimir o “vício”, sendo os indivíduos
“condenados publicamente e sinalizados, isto é, marcados para que os demais
membros da sociedade possam dispor de instrumentos para identificar os viciosos
‘naturais’, corruptos e depravados” (1991, p. 119). Marilena Chauí comenta que na
sociedade brasileira a “moralização do sexo” é estabelecida pela família e pelo
trabalho, que são controlados e regulados pelo Estado, numa ligação entre controle
estatal e controle sexual, uma vez que a “super-repressão”, incluindo-se a sexual,
configura um “conjunto de restrições e de imposições que têm como finalidade obter
e conservar a dominação. É um fenômeno sócio-político.” (1991, p. 156).
Os comentários dos ensaístas conduzem à constatação de que as práticas
autoritárias apresentam-se no Brasil em diversas facetas, seja na atitude
32
CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual - Essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Braziliense, 1991.
49
diretamente política, com as ações explícitas do Estado, seja na postura dissimulada
da repressão sexual, em que o Estado também está envolvido. É nesse sentido que
é possível discutir a produção literária de Caio Fernando Abreu, relacionando-a ao
exercício do autoritarismo no Brasil em seus variados níveis. A representação de
experiências de violência social e repressão política e sexual na obra do escritor
assume uma dimensão mais ampla, pois em ambas as situações a força impositiva
da ordem e da moral mostra-se avassaladora, o que expressa um olhar crítico
profundo dos textos acerca da miséria das relações entre Estado e sociedade civil.
A percepção de escritores sobre o contexto social violento e autoritário no
Brasil também é formulada por Eduardo Lourenço em um ensaio em que discute a
presença de uma “idéia do trágico como horizonte espiritual ou visão de mundo”
33
na
literatura brasileira. Como exemplo da perspectiva trágica, o ensaísta aponta Dom
Casmurro, de Machado de Assis, texto em que há um “evidente sentimento da vida
como tragédia” (1999, p. 194). Lourenço destaca que, apesar do modernismo
brasileiro ter reatualizado o “mito fundador” do “novo mundo“ como “paraíso”, há
uma perspectiva, acentuada na literatura brasileira dos anos 1930 e 1940, de
abordar as “visões mais cruas ou dolorosas da vida nacional nos seus aspectos
históricos ou individuais” (1991, p. 197). Escritores como Graciliano Ramos sinalizam
um “destino” trágico; no entanto, produções com essa perspectiva, têm sido
rejeitadas “pela opinião ledora do grande país” (1991, p. 198), sendo substituídas
por textos triunfalistas e com reflexo antitrágico.
O texto de Lourenço é particularmente elucidativo para a consideração do fato
de que escritores brasileiros estiveram atentos às contradições sociais, em suas
distintas manifestações. O posicionamento do crítico ajuda a compreender que há
uma espécie de sentimento comum em alguns escritores brasileiros quanto à
percepção de “tragédias” sociais, ou seja, de conflitos envolvendo indivíduo,
sociedade e Estado. Além disso, a consideração do sentimento do trágico na
literatura brasileira impulsiona uma reflexão acerca da existência de uma associação
entre esse sentimento e uma perspectiva melancólica nas obras literárias. A tese do
crítico pode ser aproximada da de outros pensadores, como Jaime Ginzburg
34
, que
33
LOURENÇO, Eduardo. Da literatura brasileira como rasura do trágico. In: __. A nau de Ícaro
seguida de imagem e miragem da lusofonia. Lisbora: Gradiva, 1999. p. 193.
34
Em estudo sobre a produção poética de Carlos Drummond de Andrade, Jaime Ginzburg sublinha
que o poeta em A rosa do povo não adota uma perspectiva idealista ou eufórica ao tratar da
experiência do autoritarismo do Estado Novo e do pós-guerra, optando por uma visão melancólica e
50
enfatizam na obra de autores brasileiros a presença de traços de conduta autoritária
que conduzem a uma percepção melancólica da experiência social brasileira. O
sentimento do trágico e o sentimento melancólico, nesse sentido, seriam formas de
expressar um posicionamento crítico diante do impacto dos processos históricos e
sociais calcados em práticas de opressão, violência e autoritarismo.
Considerando essas assertivas, é lícito reconhecer que as narrativas de
Morangos mofados seguem uma “linha” de abordagem sobre certas “tragédias”
sociais, já que apresentam indivíduos cuja constituição psicológica e integridade
moral mostram-se problemáticas e representam experiências de violência social. A
exploração de cenas de violência e opressão é fator que condiciona a
problematização da forma literária na obra na medida em que os personagens das
narrativas do escritor encontram-se envolvidos em “situações-limites”. São situações
em que o desejo de mudar e agir e de exercer liberdade individual contrastam com a
impotência frente ao sistema político e social. O saldo das experiências vividas pelos
personagens de Caio Fernando Abreu é negativo, os sonhos são frustrados, os
projetos são inacabados, e a liberdade individual é cassada. O quadro social
representado pelo escritor vislumbra uma percepção disfórica quanto às relações
sociais e humanas, sendo predominante na obra um sentimento melancólico diante
do impasse entre o mundo projetado pelos personagens e o experimentado por eles.
A adoção de uma perspectiva que contemple a visão daqueles que estão à
margem dos processos sociais e que têm consciência das limitações impostas indica
não apenas a estética da melancolia na coletânea, mas também uma defesa de
valores humanistas. Pensar em direitos humanos, como assegura Antonio Candido,
pressupõe a consideração da necessidade de se garantir a integridade espiritual, a
qual tem como traços básicos a liberdade individual, a resistência e a literatura, bens
que constituem “necessidades profundas do ser humano”
35
. Para o crítico, a
literatura tem um papel fundamental na sociedade por ser um “instrumento poderoso
de instrução e educação” (1995, p. 243) e também por expressar os “valores que a
sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais” (1995, p. 243).
Desmitificando a idéia de que a literatura é trivial, Candido acentua que ela propicia
crítica acerca da violência do processo histórico. GINZBURG, Jaime. Historicidade da poesia lírica:
Drummond e o autoritarismo. In: CAMPOS, Maria do Carmo & INDURSKY, Freda. Discurso, memória
e identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.
35
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: __. Vários escritos. 3.ed. São Paulo: Duas Cidades,
1995. p. 241.
51
a formação de um pensamento crítico, pois, de acordo com o ensaísta “A literatura
confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade
de vivermos dialeticamente os problemas.” (1995, p. 243).
Os contos de Morangos mofados possibilitam uma “vivência” dos problemas
humanos e assinalam uma consciência crítica diante das manifestações sociais de
violência física e moral. Por não banalizar as experiências sociais ao representá-las,
Caio Fernando Abreu coloca ao leitor um questionamento de valores, condutas,
regras sociais, induzindo-o a refletir e a formar um ponto de vista crítico sobre eles.
E é a partir dessa tomada de consciência que os valores humanistas imbricados na
obra ganham intensidade, visto que a antologia de contos marca a necessidade de
resistência diante das distintas formas de repressão, e resistir, conforme frisa
Candido, é fundamental para a garantia da integridade humana. Nesse sentido, a
literatura do escritor incita um pensamento crítico e induz à humanização.
A produção literária de Caio Fernando Abreu aborda conflitos sociais e
humanos, mostrando uma preocupação não apenas com a estética literária, mas
também com a construção de um pensamento intelectual que conduz a uma
compreensão da “sociedade e seu semelhante”, para usar a expressão de Antonio
Candido. Por isso, o escritor relaciona obra e contexto, forma e conteúdo, fatores
literários e extraliterários, e sua obra mostra-se articulada “dentro do texto” e “dentro
da vida”.
A problematização de experiências de repressão política e sexual na literatura
do escritor assinala que as possibilidades de liberdade individual e
autonomia/emancipação são restritas e que traços da violência no contexto social
brasileiro têm correspondência na forma literária. Para Jaime Ginzburg, Caio
Fernando Abreu foi um autor que esteve atento “ao quanto há de violência, injustiça
e agonia na sociedade brasileira”, manifestando interesse em trazer “a
problematização do externo para o interno, atingindo assim a forma de suas
criações” (2000, p. 44). Os textos que compõem a coletânea Morangos mofados
indicam que há uma relação estreita entre a forma literária dos contos e problemas
histórico-sociais.
Como traço predominante nas narrativas, a fragmentação formal pode
constituir um caminho para se compreender a configuração das relações entre obra
literária e contexto social e, por extensão, crise de representação e processos
violentos da história social brasileira. A perplexidade manifestada não só na
52
percepção das experiências sociais, mas também na estratégia formal dos contos de
Caio Fernando Abreu revela o desenvolvimento de uma perspectiva melancólica.
Esta resulta de um olhar inquietante que não vê possibilidades de superação dos
conflitos. Nesse sentido, nos textos do escritor aparece um movimento de mão dupla
na relação entre forma e conteúdo, pois a fragmentação formal e a melancolia
articulam-se de modo a constituir uma crítica social a episódios e experiências de
violência física e moral, assim como a experiências sociais e históricas. Nessa linha
de raciocínio, merece destaque o estudo da fragmentação formal e da melancolia
em contos da antologia da obra do escritor, visto que esses fatores mostram-se
como índices de significação literária e de crítica social.
53
2. FRAGMENTAÇÃO FORMAL E MELANCOLIA
2.1. Fragmentação formal da narrativa
Conforme assinalam diversos pesquisadores
36
, as narrativas modernas têm
apresentado mudanças significativas quanto às formas tradicionais de construção,
exigindo um esforço maior para compreensão em virtude da complexidade da
estrutura narrativa. As narrativas modernas, que englobam gêneros como romance e
conto, opõem-se às tradicionais por abolirem os princípios básicos de temporalidade
e causalidade, linearmente ordenados nos textos tradicionais. Além disso, as
narrativas modernas caracterizam-se pela instabilidade do narrador, que torna mais
difícil a compreensão de personagens e ordem causal, impedindo uma avaliação
tranqüila do leitor e um imediato estabelecimento de sentido sobre aquilo que lê.
Textos literários que rompem com o modo clássico de estrutura artística
exigem ainda uma discussão sobre as teorias da narrativa, já que estudos
modelares que visam a propor uma leitura puramente formal e descritiva mostram-se
insuficientes para abarcar a complexidade de obras cuja base estrutural afasta-se de
tipos convencionais. Pensadores como Theodor Adorno e Walter Benjamin
formularam uma reflexão sobre teoria da narrativa e formas literárias modernas,
articulando questões de estética literária e ciências humanas. Suas proposições
apontam para a possibilidade de se pensar problemas de teoria da literatura e
episódios da experiência humana, considerando-se o contexto de produção das
obras e o seu impacto sobre as formas literárias.
O posicionamento crítico e teórico desses autores traz uma contribuição para
a análise da estrutura fragmentada de textos modernos, como os de Caio Fernando
36
Anatol Rosenfeldt, por exemplo, apresenta reflexões sobre o romance moderno, discutindo as
transformações ocorridas no gênero a partir do século XX, e argumenta que categorias como espaço,
tempo, ordem causal e lógica mostram-se alteradas no romance desse século devido a
transformações de um mundo em crise. Conferir ROSENFELDT, Anatol. Reflexões sobre o romance
moderno. In: __. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996. Erich Auerbach, ao discutir o
romance realista contemporâneo, afirma que as categorias de tempo e espaço nesse gênero
revelam-se através de uma organização não objetiva do narrador, sendo que o leitor muitas vezes
“não consegue segurar constantemente qualquer fio condutor determinado” (1971, p. 479) porque o
contexto discursivo apresentado pelo narrador é construído por fragmentos. Essa forma de
construção do romance contemporâneo, segundo o crítico, opõe-se à forma comumente utilizada
pelos escritores durante o século XIX e início do XX, a qual se caracterizava por uma ordenação clara
dos acontecimentos nas tramas ficcionais. AUERBACH, Erich. Mímesis. São Paulo: Perspectiva,
1971.
54
Abreu, na medida em que as rupturas com as convenções da forma tradicional de
construção podem ser vistas como um movimento interno da estrutura literária que
busca alcançar o estrato da realidade social. Os contos de Morangos mofados
exemplificam muitos traços das narrativas modernas que transgridem as leis formais
literárias convencionadas ao longo do tempo, já que a estrutura das histórias do
escritor mostra-se estranha ao olhar de um leitor familiarizado com narrativas
lineares e o posicionamento do narrador é móvel, o que dificulta uma interpretação
definitiva para os textos. A representação de Caio Fernando Abreu está relacionada
a episódios de violência social e, por isso, as formulações de Adorno e Benjamin
constituem um caminho produtivo para a leitura dos contos do escritor no sentido de
que os teóricos destacam que os problemas de ordem estética podem ser
analisados à luz de considerações acerca do contexto de produção das obras e das
experiências de violência e desumanização.
Adorno e Benjamin são pensadores da Escola de Frankfurt
37
que se
dedicaram a estabelecer articulações entre cultura e experiências sociais,
englobando observações sobre traços da violência e do autoritarismo de regimes
políticos e sua repercussão em representações artísticas numa atitude crítica que os
levou a repensar conceitos em Teoria da Literatura e Sociologia da Literatura. O
empenho analítico desses dois autores é marcado por reflexões que permitem
avaliar as obras culturais em diálogo com seu contexto de produção, uma vez que a
base para elaboração de suas proposições teóricas é sócio-histórica.
A obra de Adorno aborda expressões artísticas, como música e literatura, e
estética da arte, e o posicionamento do filósofo é marcado por uma preocupação
constante com o impacto da indústria cultural nos modos de produção da arte, o qual
tende a fazer da arte um “produto de consumo”. Além disso, sua perspectiva teórica
e crítica é intensamente elaborada a partir de suas concepções filosóficas acerca
das experiências de barbárie no século XX, que são pensadas em suas relações
com a arte. Nesse sentido, Adorno discute a sociedade totalitária e suas formas de
37
O termo Escola de Frankfurt, segundo Bárbara Freitag, designa um grupo de intelectuais alemães
que, nos anos 1920, reuniram-se em Frankfurt para discutir os movimentos operários da Europa, e
refere-se a uma teoria social elaborada pelos membros desse grupo, como Theodor Adorno, Walter
Benjamin, Hebert Marcuse e Max Horkheimer. Ainda no início da década de 20, esses pensadores
fundaram o Instituto de Pesquisa Social, ligado à Universidade de Frankfurt, para analisar
criticamente os problemas do capitalismo moderno e a base das estruturas sociais e econômicas. O
trabalho desses intelectuais, na visão da autora, pode ser compreendido em três enfoques principais:
a dialética da razão e a crítica à ciência, a cultura e a indústria cultural, e o Estado e a dominação
tecnocrática. FREITAG, Bárbara. A teoria crítica ontem e hoje. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.
55
alienação social, opressão política e esquecimento num discurso crítico que retoma
essas questões e enfatiza que a obra de arte autêntica busca resgatar, conforme
explica Manuel da Costa Pinto
38
em texto sobre olhar crítico do filósofo, “os
conteúdos silenciados por meio de hieróglifos poéticos que desviam da linguagem
ordinária em que o mundo perpetua sua opressão” (2003: 61).
Através dessa perspectiva de investigação, Adorno articula representação
artística a fatos sociais, manifestando uma certa perplexidade com episódios da
história social e sinalizando a possibilidade de se compreender o rompimento dos
princípios formais convencionais na arte moderna como um caminho para a
problematização de experiências de desumanização e violência em períodos
turbulentos. Essas proposições serão o alicerce teórico para a análise dos contos de
Caio Fernando Abreu, já que as narrativas da antologia Morangos mofados propõem
uma discussão sobre experiências de violência física e moral através não só da
exposição da agressividade imposta pela moral conservadora e autoritária da
sociedade ao tratar da homossexualidade, mas também através do questionamento
da postura opressiva do Estado ditatorial sobre aqueles que subvertem os padrões
de comportamento e posicionamento ideológico predeterminados.
A leitura desenvolvida sobre os textos do escritor procura contemplar uma
articulação entre a forma de representação e sua ligação com o conteúdo externo ou
dado social, uma vez que a teoria crítica adotada pressupõe uma interpretação dos
textos literários que se desdobra em investigação formal e conteudística. Essa
atitude evidencia ainda uma visão acerca do fenômeno literário como uma
manifestação artística que conjuga atividade estética e atividade social, que está
disseminada na forma literária, pois, conforme alerta Anatol Rosenfeldt, o texto
literário não pode ser desvinculado do elemento social porque está condicionado a
ele, seja através da posição do autor, seja em relação ao leitor: “Seria ridículo querer
negar hoje que o fato literário se relacione com condições socioculturais gerais”
39
.
Os textos de Adorno manifestam um olhar inquietante quanto ao exercício de
leitura e atribuição de sentido às obras: para o pensador, a análise de uma obra de
arte não pode ser realizada tratando-se exclusivamente da imanência da forma
porque uma produção artística é constituída de “estética da forma” e “estética do
38
PINTO, Manuel da Costa. Uma ética da representação. Revista Cult. Ano VI, Nº 72. São Paulo:
Lemos, 2003. p. 61-61.
39
ROSENFELDT, Anatol. Literatura e sociedade. In: __. Estrutura e problemas da obra literária. São
Paulo: Perspectiva, 1976. p. 56.
56
conteúdo”, sendo este mediatizado pelas leis formais. Na sua Teoria Estética,
Adorno relaciona opção formal e tema através da dialética forma e conteúdo.
Defendendo a tese de que as obras de arte possuem uma ligação com a realidade
exterior, mas não são “cópias” dessa realidade, o crítico postula a existência de uma
tensão externa que motiva uma tensão interna na obra de arte, ou seja, uma
resposta em termos de estrutura da experiência artística:
Que as obras de arte, como mônadas sem janelas, “representem” o que elas
próprias são, só se pode compreender pelo fato de que a sua dinâmica própria, a
sua historicidade imanente enquanto dialética da natureza e do domínio da
natureza não é da mesma essência que a dialética exterior, mas se lhe assemelha
em si, sem a imitar. (...) Mas são reais enquanto respostas à forma interrogativa do
que lhes vem ao encontro a partir do exterior. A sua própria tensão é significativa
na relação com a tensão externa. Os extratos fundamentais da experiência, que
motivam a arte, aparentam-se com o mundo objetivo perante o qual retrocedem. Os
antagonismos não resolvidos na realidade retornam às obras de arte como os
problemas imanentes da sua forma
40
.
A linha de raciocínio do pesquisador alemão sugere que a percepção da
realidade como algo conflitivo leva o artista a elaborar o fenômeno estético também
com tensão. Os problemas de estética e a dificuldade de expressão, nessa
perspectiva, revelam a contradição da sociedade. Processos conflitivos da história
social são, assim, motivação para rupturas com paradigmas estruturais nas obras de
arte, já que a interiorização de conflitos sociais acarretaria transtorno na elaboração
do fenômeno estético. Como explica José Guilherme Merchior, a obra de arte, na
concepção adorniana, “exibe as feridas da luta sempre vã por alcançar a unidade. A
arte autêntica mostra vivas e nítidas as contradições do real. O seu estilo não pode
ser harmônico, porque a harmonia seria mentirosa (...) O estilo é ruptura (...) A
essência do estilo é o fragmento rebelde: o pedaço irredutível onde a hipócrita
homogeneidade da forma, cúmplice da ordem social, é denunciada pelo
anticonformismo da arte”
41
.
Conforme Adorno, devido à representação dos antagonismos sociais, o
princípio de logicidade das obras de arte passa a ser organizado segundo a “lógica
da experiência” (1982, p. 157). Assim, se a experiência social não é percebida como
algo harmônico, a forma de representação dessa experiência também não pode ser
harmônica, porque a harmonia seria falsa. Ao estabelecer que a lógica da obra de
40
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 16.
41
MERCHIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin – ensaio crítico
sobre a escola neohegeliana de Frankfurt. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. p. 53.
57
arte obedece à logica da experiência, Theodor Adorno não nega a racionalidade da
obra, mas afirma que a lógica da arte está no próprio procedimento estético: “A
lógica das obras de arte deriva da lógica formal, mas não se identifica com ela: eis o
que se revela no fato de as obras – e a arte aproxima-se assim do pensamento
dialético – suspenderem a própria logicidade e poderem, no fim, fazer desta
suspensão a sua idéia; para aí aponta o momento de disrupção em toda a arte
moderna” (1982, p. 159).
Quando o pensador faz referência à suspensão da logicidade, está aludindo
aos princípios de construção da obra de arte e, conseqüentemente, dos textos
literários. Suspender a lógica é romper com o modo clássico da narrativa, adotando
um estilo que esteja de acordo com a experiência a ser representada. Como Adorno
destaca que os antagonismos sociais retornam à obra de arte como um problema
estético, a idéia de ruptura com as convenções de linguagem e com a estrutura
narrativa é compreendida como uma condição para uma autêntica problematização
da experiência social. Esta, concebida como uma contradição, conduz à fratura e ao
fragmento da forma literária, os quais se opõem a uma ordem social conformista e
inviabilizam a noção de que a totalidade da experiência possa ser reverenciada, pois
o que se passa a ter são estilhaços de imagens. É nesse sentido que Adorno afirma
que a arte moderna nega a visão de arte como totalidade porque se caracteriza
como uma “forma aberta” em que a unidade pode ser comprovada em meio à
fragmentação e à recusa aos procedimentos formais tradicionais:
A arte de elevada pretensão tende a ultrapassar a forma como totalidade, e
desemboca no fragmentário. A indigência da forma deveria expressamente acabar
de se fazer sentir na dificuldade da arte temporal; na música, no chamado
problema do final; na poesia, na questão do desenlace que se torna até Brecht,
cada vez mais crítico. Uma vez desembaraçada da convenção, nenhuma obra de
arte pode já manifestamente concluir de modo convincente, enquanto que os
desenlaces tradicionais apenas procedem como se os momentos singulares se
associassem a com o ponto final no tempo para constituir a totalidade da forma. Em
numerosas obras da modernidade que, entretanto, forma objeto de ampla
recepção, a forma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que a
unidade da forma já não lhes era garantida. (1982, p. 169)
Essa forma de construção da arte moderna, conforme o filósofo, poderia ser
chamada de “montagem”, na medida em que os pormenores da obra associam-se à
sua macro-estrutura e a imbricação organicista fica ausente, conduzindo a uma
coerência que se faz aparecer mesmo na aparente ilogicidade ou falta de
organicidade. A coerência da obra de arte está na adequação da forma literária ao
58
conteúdo social. Por isso, Adorno afirma que as obras de arte constituem uma
espécie de “historiografia inconsciente”, que se afasta do historicismo e constrói uma
consciência verídica a partir de opções formais que melhor expressam os
antagonismos sociais. Essa historiografia assegura as relações entre texto e
contexto de produção e, no caso dos textos modernos, ainda sinalizam uma postura
da arte frente à sua condição realista.
Adorno, em estudo sobre o narrador no romance contemporâneo, afirma que
existe um paradoxo caracterizado pela necessidade de narrar e pela impossibilidade
de ela ser realizada, já que o romance exige a narração. Partindo da constatação de
que até o século XIX os romances apresentavam o realismo como característica
imanente da representação literária e a objetividade como traço do narrador, o crítico
observa uma fissura com esse paradigma no romance contemporâneo,
especialmente na posição do narrador. A objetividade cedeu lugar à subjetividade, a
qual “não admite mais a matéria intransformada, e com isso solapa o mandamento
épico da objectualidade”
42
. As modificações na postura do narrador, segundo
Adorno, estão ligadas ao capitalismo
43
e à indústria cultural, que fazem com que o
romance se concentre naquilo que o relato não dá conta.
Para o filósofo, essa tarefa exige uma recusa da narrativa de cunho realista e,
conseqüentemente, da linguagem, visto que as transformações do contexto social e
histórico indicam que a ruptura com a objetividade mostra-se necessária e expressa
uma outra forma de elaborar as experiências: “desintegrou-se a identidade da
experiência – a vida articulada e contínua em si mesma - que só a postura do
narrador permite. É preciso apenas ter em presente a impossibilidade de quem quer
que seja que tenha participado da guerra, a narrasse como antes uma pessoa
contava suas aventuras” (1983, p. 269). Os romances contemporâneos inauguraram
um “momento anti-realista” em que o desencantamento com o mundo aparece na
sua forma estética, que passa a buscar a essência e aquilo que o relato não
conseguia exprimir. A busca da essência, de acordo com o pensador, relaciona-se
com o rompimento com as convenções estéticas, já que a posição do narrador volta-
se para a subjetividade e a relação com o leitor torna-se variada, diferentemente do
romance tradicional em que a distância entre narrador e leitor era “inamovível”:
42
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN, Walter et alli.
Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 269.
43
Na perspectiva de Adorno, o capitalismo expressa uma forma de controle da sociedade por parte
do Estado, já que esse modelo econômico restringe as possibilidades de mobilização social.
59
“Agora ela [distância] varia como as posições da câmara no cinema: ora o leitor é
deixado fora, ora guiado, através do comentário, até o palco para trás dos
bastidores, para a casa das máquinas.” (1983, p. 272). Essa forma de elaborar a
experiência causa estranhamento, mas a estranheza estética evidencia uma
“condição do mundo” em que a atitude contemplativa não dá conta da experiência.
Tomando como exemplo as produções literárias de Gustave Flaubert e Marcel
Proust, em que, respectivamente, é marcante a abolição da objetividade e a
construção do relato conforme o fluxo da consciência (refutação da ordem espaço-
temporal), Theodor Adorno afirma que o realismo de uma obra de arte poder ser
apreendido pela “infração da forma” (1983, p. 272), sendo esta percebida pela
posição e comentário do narrador. A posição do narrador do romance moderno não
é fixa, e a distância estética dele em relação ao leitor também não o é. Assim, a falta
de uma regularidade do trabalho do narrador, no sentido que não é dado ao leitor
um enfoque único, provoca uma incerteza no leitor, pois a fragmentação das cenas e
o olhar múltiplo do narrador impossibilitam uma apreensão definitiva do texto
literário. Além disso, a linguagem é outra, é uma “segunda linguagem, destilada de
várias maneiras do refugo da primeira – uma linguagem-coisa associativa e
desmantelada, como a que entremeia o monólogo não apenas do romancista, mas
também dos números alienados da linguagem primeira que constituem a massa”
(Adorno, 1983, p. 273).
Em consonância com as idéias de Theodor Adorno estão os escritos de
Walter Benjamin. Como um dos mais atuantes membros da Escola de Frankfurt,
este pensador tem uma vasta produção crítica nas áreas de filosofia, história,
estética, literatura e religião e apresenta uma contribuição teórica importante para os
estudos literários, especialmente, segundo Flávio Kothe, para uma “leitura político-
alegórica dos textos”
44
. Ao deter-se na caracterização da modernidade e seu
conseqüente processo de industrialização capitalista e reprodução técnica e ao
refletir sobre os conflitos históricos, como as guerras e a ascensão do nazismo, o
pesquisador alemão pensa o impacto desse contexto sociocultural na produção
literária, que é examinada pelo viés do materialismo dialético. A valorização do
materialismo dialético como caminho para se compreender as obras literárias
constitui um foco central na perspectiva crítica de Benjamin. Esse método crítico
44
KOTHE, Flávio. Poesia e proletariado. In: KOTHE, Flávio (org). Walter Benjamin: Sociologia. São
Paulo: Ática, 1985. p. 8.
60
consiste em desvendar a ordem inerente da obra artística, entendendo esta como
uma forma aberta e não acabada, e em compreender seus elementos e descobrir a
sua verdade. Essa prática crítica pressupõe consideração acerca da historicidade da
obra e de seus movimentos internos, num processo que vai da destruição do texto à
sua reconstrução.
As proposições do pensador acerca dos estudos literários estão diluídas em
diversos ensaios em que o olhar crítico mescla-se a elaborações conceituais que
possibilitam interpretar a obra de arte. Os ensaios de Benjamin não são sistemáticos
nem de fácil compreensão, já que, conforme destaca Jeanne-Marie Gagnebin
45
, os
textos do autor não apresentam um encadeamento lógico: “Eles procedem antes por
associações, reúnem, como num jogo de quebra-cabeça, diversas peças, diversos
motivos, diversas citações, algumas anedotas, na esperança que deste amálgama
surja uma nova imagem.” (1980: 223) A forma ensaística do filósofo, que segue um
estilo de escrever baseado em fragmentos e aforismos, tem o propósito não só de
causar um estranhamento no leitor familiarizado com textos acadêmicos cujo
desenvolvimento é linear e lógico, mas também de romper com uma tradição crítica
que, nas palavras de Gagnebin, “oculta a força subversiva de uma obra” (1980, p.
224) ao vê-la como uma totalidade verdadeira.
Um dos textos mais conhecidos de Benjamin contém reflexões que auxiliam a
compreender a estrutura das obras literárias modernas por estabelecer uma
formulação conceitual que articula uma visão de história e seu processo de escritura.
Nas teses sobre o conceito de história, o pensador expõe sua teoria da narração.
Entendendo que “história” não se refere apenas a um conjunto de eventos históricos,
mas também à elaboração discursiva dos eventos ou da história em si, a qual tem
relações com o devir histórico, Benjamin propõe uma perspectiva teórico-crítica que
se afasta do modo como a história tem sido contada ou construída discursivamente.
De acordo com o ensaísta, as duas vertentes críticas que se ocupam em
escrever a história, a historiografia progressista e a historiografia burguesa
(historicismo), não o fazem de maneira adequada. Enquanto a primeira sugere uma
idéia de progresso histórico, que, para Benjamin, falseia a percepção do fascismo e
se torna impotente para impedir o avanço desse movimento, a segunda procura
revitalizar o passado através de uma identificação do historiador com o seu objeto,
45
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin. Discurso. Nº.
13.São Paulo: FFLCH-USP, 1980. p. 219-230.
61
sendo que esse historiador não questiona sua posição nem o modo como a história
foi narrada ou a maneira como ela se realizou. Para o pensador, esse discurso
histórico suprime vozes e representa a posição dos dominadores, dando a idéia de
que o passado está sendo descrito como ele de fato foi. Essa forma de escritura
deve ser rompida pelo materialista histórico, que, ao contrário do historicista, deve
ter empatia pelos vencidos e estabelecer um processo de transmissão da história
que não mascare o que há de barbárie:
o investigador historicista estabelece uma relação de empatia (...) com o vencedor.
Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que
venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses
dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje
venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje
espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são
carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens
culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os
bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem
horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os
criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um
monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E,
assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de
transmissão da cultura. Por isso o materialista histórico se desvia dela. Considera
sua tarefa escovar a história a contrapelo
46
.
Considerando que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de
exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral” (1994, p. 226), Benjamin
reconhece a necessidade de se construir um conceito de história que corresponda a
essa realidade, ou seja, que permita que se reconheça o assombro dos episódios
históricos. A proposta do filósofo para uma escrita da história que colabore na luta
contra o fascismo e as barbáries é apresentada metaforicamente através de uma
interpretação do crítico ao quadro “Angelus Novus”, de Paul Klee. Partindo da
caracterização do anjo da pintura do artista, Walter Benjamin identifica como deve
ser o olhar do historiador: este deve ver a história como catástrofe, como “ruína
sobre ruína” (1994, p. 226), e relatá-las dispersamente, em fragmentos,
compartilhando uma concepção de tempo do agora, que não conduz ao
estabelecimento de um nexo causal entre os momentos históricos como as “contas
de um rosário” (1994, p. 232), mas como episódios relacionados ao passado e vistos
como fragmentos: “Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em
contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda
46
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: __. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 225.
62
um conceito do presente como um ‘agora’ no qual se infiltraram estilhaços do
messiânico” (1994, p. 232). O historiador materialista deve resgatar o passado para
melhor compreender o presente, impedir o silenciamento da história dos vencidos e
sua escritura deve empenhar-se, como adverte Gagnebin, para a consolidação de
uma “dupla libertação: a dos vencidos de ontem e de hoje”
47
. Nessa perspectiva, a
memória dos episódios históricos deve ser preservada a fim de que as barbáries não
sejam repetidas.
Se a perspectiva teórica do filósofo vê a história não como contínua e
homogênea, mas lacunar e fragmentada, a história escrita, ou a sua narração,
também deve obedecer a esse princípio. Ver a história como algo linear, para
Benjamin, constituiria uma forma de conformismo e “mancomunação com as piores
barbaridades” (Kothe, 1985, p. 16), prerrogativa inaceitável para o pensador; então,
a concepção de história e sua escritura devem assegurar uma perplexidade diante
dos eventos históricos. Essa assertiva sugere a possibilidade de se pensar, tal como
propõe Adorno, em um rompimento com as convenções clássicas de linguagem e
estrutura literárias, já que estas estão concebidas de acordo com princípios de
linearidade e causalidade. Os estilhaços da história, nessa linha de raciocínio,
correspondem à fragmentação imagética e estrutural das obras literárias. No caso
das narrativas, o estilhaçamento do narrador e a ruptura com a estrutura clássica da
composição literária podem ser considerados indícios de uma perspectiva
convergente ao pensamento teórico Benjamin.
Para o filósofo, a arte não deve camuflar as experiências de barbárie, e,
nesse sentido, é preciso averiguar a qualidade e a autonomia da obra. Em um
ensaio em que Benjamin trata da autonomia da obra literária e da responsabilidade
do escritor, o ensaísta defende a idéia de que o artista, diante da situação
contemporânea, precisa “decidir a favor de que causa colocará sua atividade”
48
,
indicando uma “tendência” de ordem conteudística ou temática. Se por um lado, o
escritor deve posicionar-se, por outro, também deve buscar tornar sua produção de
“boa qualidade”, utilizando para isso recursos que garantam a correspondência do
nível interno da obra ao da tendência adotada. O equilíbrio entre o tema e a
abordagem que se faz dele, segundo o filósofo, assinala a qualidade da obra, sendo
47
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.
73.
48
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: __. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 120.
63
esse, portanto, um critério de valor: “a tendência de uma obra literária só pode ser
correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista
literário. Isso significa que a tendência politicamente correta inclui uma tendência
literária.” (1994, p. 121)
Essa perspectiva leva em conta as “relações sociais” implicadas nas
condições de produção das obras, ou seja, de que modo a técnica literária das obras
está vinculada aos “contextos sociais vivos” de uma determinada época. Ao ver o
intelectual como produtor, Benjamin chama atenção para o fato de que o artista tem
que pensar não só sobre suas convicções, mas também sobre a forma como elas
vão aparecer na obra, o que determina a qualidade de sua atividade artística. Além
disso, os meios produtivos da técnica, que devem estar ligados ao contexto maior de
produção, devem ainda levar o escritor a ter mais colaboradores ou leitores. O crítico
adverte que inovações técnicas são fundamentais nesse sentido na medida em que
proporcionam uma tomada de posição do espectador, que, ao assombrar-se com
aquilo que foge de suas expectativas, reflete sobre o que lê. Como exemplo dessa
prática, o filósofo analisa o teatro épico de Bertold Brecht, que com o método de
montagem fragmenta as ações no palco, despertando uma motivação para o
receptor tomar posição frente às situações. A experiência do choque, em termos de
estética, é um caminho para obter reflexão.
O ensaio de Benjamin destaca o papel do escritor enquanto responsável por
uma produção que mobilize o leitor. Mas desse texto e do que trata da teoria da
narração, é possível extrair idéias que satisfaçam o interesse em entender a obra de
arte moderna, especialmente as narrativas literárias que se apresentam como um
desafio à leitura e que se propõem a discutir temas e problemas sociais. As
proposições do pensador levam a crer que a literatura construída como um
amontoado de fragmentos relaciona-se com uma percepção intensa e singular sobre
os eventos históricos ou experiências sociais e constituem um recurso estratégico
para dar uma dimensão adequada ao “conteúdo” abordado, estratégia que visa à
tomada de consciência do leitor. A transgressão da forma tradicional torna-se, nesse
sentido, a expressão do impacto da violência do contexto.
Considerando que o historiador ou o narrador concebido por Walter Benjamin
deve, conforme explica Gagnebin ao apresentar reflexões sobre a teoria
64
benjaminiana, “constituir uma ‘experiência’ (‘Erfahrung’) com o passado”
49
no sentido
de que esta é uma condição para a escritura da história e para a introdução na
memória coletiva de traços catastróficos de experiências anteriores, é preciso
esclarecer que a noção de experiência na filosofia de Benjamin está lidada à sua
teoria da narração. Em seu clássico ensaio sobre o narrador, Walter Benjamin
declara que as narrativas orais arcaicas, que são caracterizadas pelo interesse dos
ouvintes em assimilar e transmitir as histórias relatadas pelo narrador e que
designam a experiência coletiva, compartilhada por grupos de pessoas e passada
de geração a geração, têm sido enfraquecidas no mundo capitalista moderno em
função da dificuldade de troca de experiências. Essas narrativas orais transmitiam,
antes do advento da sociedade capitalista moderna, o saber de um povo e
continham uma dimensão utilitária porque proporcionavam um “ensinamento moral”
ou davam conselhos a quem ouvia aquele que contava histórias. Walter Benjamin
anuncia, no ensaio, o fim dessa arte de contar, já que as experiências não são
passíveis de transmissão:
o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atividade viva. Ele é algo de
distante, e que se distancia ainda mais. (...). Uma experiência quase cotidiana nos
impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência
de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém
narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados
de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de
intercambiar experiências
50
.
Nas palavras do filósofo, “as experiências estão deixando de ser
comunicáveis” (1994, p. 200) não só porque a “sabedoria está em extinção”, o que
garantiria a capacidade de o narrador aconselhar seus ouvintes, mas também
porque a “evolução secular das forças produtivas” (1994, p. 201) contribui para a
eliminação gradativa do “discurso vivo” das narrativas arcaicas. Gagnebin explica
que, para Walter Benjamin, “a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela
parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno,
cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna”
(1994, p. 10). Se antes a vida em comunidade assegurava uma relação constante
49
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 8.
50
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: __. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 197-198.
65
entre narrador e ouvinte para a transmissão das experiências, a partir do
desenvolvimento do capitalismo e da técnica e do surgimento do romance e da
imprensa no início do período moderno esse quadro se alterou: aumentou a
distância entre os grupos humanos, o saber cedeu lugar à informação, o romancista
segregou-se e transformaram-se as condições de vida, atingindo também a
capacidade do homem para assimilar essas mudanças.
As narrativas arcaicas retomavam o passado porque traziam relatos objetivos
de experiências de gerações anteriores, constituindo assim uma tradição e uma
seqüência de experiências compartilhadas e compreendidas. Quando Benjamin
declara o fim dessa arte de contar, está levando em conta o contexto moderno, que
é calcado em experiências de sofrimento e dor. Segundo Benjamin, o contexto
violento da II Guerra evidencia a dificuldade de elaboração das experiências sociais:
“Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No
final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de
batalha, não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável.” (1994, p.
198)
51
. No texto “Experiência e pobreza”, o filósofo enfatiza que a experiência da
guerra e o desenvolvimento da técnica, que condicionam uma “nova forma de
miséria”
52
, tornam menos comunicáveis e transmissíveis as experiências. Essa
condição de miséria, como alerta Gagnebin, “não pode dobrar-se à junção, à sintaxe
de nossas proposições
53
, não pode ser simplesmente contada, mas deve ser
transmitida, mesmo que de uma forma diferente das concepções tradicionais de
narração.
Diante dessa dificuldade de narrar, Benjamin propõe que a experiência seja
formulada a partir de uma outra forma de narratividade. As narrativas arcaicas
transmitiam um saber ou um conselho que faziam o ouvinte pensar em uma
continuidade para a história que estava sendo narrada, o que garantia um fluxo
interativo entre narrador e receptor. Ao refletir sobre a narrativa moderna, Benjamin
postula a noção de abertura como ponto crucial para intermediar a necessidade de
recuperação da experiência. O ensaio sobre o narrador elucida essa proposta:
51
De acordo com Susana Kampff Lages, esse “abalo” na maneira de contar uma história assinala um
impulso melancólico “cujo propósito não é outro senão afirmar a perda de objeto para, a seguir
evidenciar o desejo de resgatá-lo, negando qualquer separação passada”. LAGES, Susana Kampff.
Walter Benjamin – tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002. p. 136.
52
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: __. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 115.
53
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,
1999. p. 63.
66
Walter Benjamin considera necessário um movimento interno na estrutura da
narrativa que favoreça uma espécie de desdobramento da história narrada a partir
da ótica do leitor. Exemplificando sua perspectiva crítica com a obra de Heródoto e
Nikolai Leskov, o filósofo afirma que as narrativas devem suscitar reflexões e não
impor ao leitor um sentido definitivo. Além disso, elas devem ter uma força
germinativa que permita leituras diversas e interpretações futuras renovadas. Nessa
perspectiva, o trabalho do narrador é fundamental, já que ele não deve contar dando
explicações, mas narrar de modo a impedir um esquema de interpretação
previamente elaborado, num trabalho que possibilite a pluralidade de significações.
A perspectiva de Benjamin acerca das narrativas modernas e da forma como
o narrador deve transmitir as experiências, aliada à visão de história e sua escritura,
traça não só um perfil das narrativas modernas, mas também uma forma de
compreendê-las. Assim como Adorno, Walter Benjamin propõe que os textos
literários sejam investigados considerando-se o contexto de produção e
relacionando os movimentos internos da obra a condições verificadas no plano
exterior, social e histórico. Os autores postulam que a transgressão da forma e a
escrita fragmentada, que se desdobra no plano da estrutura da obra e na posição do
narrador, o qual deve fazer uma narração aberta à plurissignificação, podem
configurar recursos estéticos que não mascaram as experiências sociais e que
conduzem à reflexão do leitor pela estratégia do estranhamento formal.
Os contos de Caio Fernando Abreu em Morangos mofados apresentam
características que podem ser associadas às proposições desses teóricos acerca
das narrativas modernas. Os textos ficcionais do escritor mostram-se fragmentados,
e a ruptura com as convenções de estrutura literária é constante. A oscilação
temática, que configura uma aparente ausência de um fio condutor no conjunto da
obra, e a diversidade de estratégias formais, a qual se caracteriza pela alternância
da posição do narrador em alguns contos e/ou pela transgressão da estrutura
clássica da narrativa em outros, são fatores que permitem refletir sobre as
implicações formais decorrentes da relação entre texto e contexto de produção,
categorias indissociáveis de acordo com a filosofia de Adorno e Benjamin.
A fragmentação formal das narrativas do escritor relaciona-se a um
movimento de inquietação diante de experiências de desumanização e sofrimento
do contexto social, e essa inquietação, percebida no plano estrutural dos contos e na
postura do narrador, assinala um olhar melancólico que é resultante do desconforto
67
vivenciado pelos personagens de Morangos mofados diante de situações de
opressão, desolamento e repressão. O teor melancólico, nessa perspectiva, passa a
configurar outra faceta das narrativas de Caio Fernando Abreu. Assim, a perspectiva
melancólica aparece em contos da coletânea como um dos elementos que propicia
não apenas um enfoque temático, mas também uma forma de ratificação da
fragmentação estrutural e lingüística dos textos. Isso aponta para a relevância de
uma reflexão sobre a melancolia (seus conceitos e perspectivas), associando-a à
obra do escritor.
2.2. Melancolia: concepções e perspectivas
O conceito de melancolia já recebeu muitas definições ao longo do tempo e
entre os autores que se voltaram para o tema nem sempre é possível apontar um
ponto convergente. Esse estudo não pretende apresentar uma abordagem exaustiva
sobre as concepções antigas e modernas referentes à melancolia nem eleger um
único conceito de melancolia devido ao fato de que é considerada produtiva a
referência a teorias diversas sobre o fenômeno para compreensão de imagens
melancólicas e formas narrativas no conto de Caio Fernando Abreu. Essa atitude
assinala que a “adoção” de um conceito unívoco de melancolia não dá conta da
criação literária do escritor. Assim como o conceito, também seus contos sugerem
nuances e traços específicos que apontam para uma perspectiva melancólica
singular e para a impossibilidade de “enquadramento” das narrativas a uma
concepção fechada sobre a melancolia. A proposta é recorrer a diferentes
formulações sobre a melancolia para avaliar imagens e situações representadas nas
nararativas que permitam reconhecer características melancólicas.
O termo melancólico vem do grego melas, que significa negro, e chole, que se
refere à bile. Considerando a etimologia da palavra, o termo designa bile negra, a
qual, desde os primeiros tratados sobre a melancolia, foi associada ao estado
melancólico. Os melancólicos, segundo alguns estudiosos, tinham em excesso
dentro do organismo os elementos seco e frio, que constituem a bile negra. Ao
serem dominados pela bile negra, o riso era diminuído e o sentimento de tristeza
passava a preponderar, conduzindo à melancolia. Para uns estudiosos, esse
psiquismo humano era considerado “doença” da alma e, para outros, doença do
68
corpo. Doença ou uma forma de condição existencial? Um histórico do conceito
mostra que não há um consenso nesse debate.
Nos diferentes períodos históricos há tratados sobre a melancolia
54
. São
textos de áreas como a filosofia, as artes e a medicina que deram impulso ao exame
das condições melancólicas tanto do ser humano quanto da representação desse
traço nas criações artísticas
55
. Moacyr Scliar
56
enfatiza que as acepções sobre
melancolia assumem conotações diversificadas ao longo do tempo e que a reflexão
sobre ela em variados tratados é uma constante por haver uma “espécie de contágio
psíquico” que emoldura o pensamento de uma época e de um lugar. Esse contágio
também assegura a representação da melancolia nas artes e na literatura.
Na Antigüidade ou período clássico, Hipócrates, Aristóteles e Constantinus
Africanus formularam proposições acerca do conceito de melancolia. Durante a
Idade Média, as teorias dos árabes ganharam força, e a melancolia foi vista sob a
influência maléfica do planeta Saturno. O cenário do Renascimento foi marcado por
profundas modificações psicológicas e tecnológicas que reativaram a reflexão sobre
a melancolia. No Romantismo, o estado melancólico passou a ser explorado por
poetas e prosadores, que viam na experiência da perda do objeto amado um
impulso para a melancolia. E no século XX pensadores como Walter Benjamin, Julia
Kristeva e Sigmund Freud apresentam reflexões modernas sobre o tema que
possibilitam pensar uma relação entre obra de arte e melancolia. Conforme destaca
Jaime Ginzburg, a teoria dos autores modernos, “está profundamente ligada às suas
bases antigas” (1997, p. 52), como demonstra a perspectiva crítica de Freud, que
retoma a idéia de Constantinus Africanus ao associar a melancolia a uma
experiência da perda. As proposições de Benjamin, Kristeva e Freud levantam
elementos que iluminam a análise literária de textos cuja perspectiva melancólica é
latente.
54
Segundo Jaime Ginzburg, “a criação do conceito de melancolia é atribuída a Hipócrates”, que a
define como um “estado de tristeza e medo de longa duração”. GINZBURG, Jaime. Olhos turvos,
mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte anos. Tese (Programa de Pós-graduação
em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997. p. 45.
55
Pesquisadores como Moacyr Scliar, Jaime Ginzburg e Julia Kristeva traçam em seus trabalhos um
percurso histórico do conceito de melancolia, apontando diferenças entre concepções de diferentes
autores. Ver SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos – a melancolia européia chega ao Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003; GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos
melancólicos em Lira dos vinte anos. Tese (Programa de Pós-graduação em Letras) – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997; KRISTEVA, Julia. Sol negro – depressão e
melancolia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
56
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos – a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
69
Em Origem do drama barroco alemão Benjamin estuda as interpretações do
Barroco na Alemanha, fazendo um esboço sobre as teorias do conhecimento, do
drama barroco e da alegoria e postula concepções acerca do conceito de
melancolia
57
. Construído com uma linguagem hermética, em que o caráter
enigmático das proposições teóricas é constante, a obra do filósofo se caracteriza,
segundo Sergio Paulo Rouanet, por apresentar de modo obscuro “o nexo entre a
introdução epistemológica e o restante da obra”
58
. A fragmentação do pensamento e
a justaposição de imagens estilhaçadas marca o texto benjaminiano e reflete,
através da escritura ensaística, a própria teoria defendida pelo filósofo e exige do
leitor a capacidade de unir os fragmentos para formar o sentido do livro.
Benjamin assegura nessa obra uma relação entre a empiria dos fenômenos e
as idéias, havendo uma mediação desses extremos através dos conceitos. Dessa
teoria sobre a sistemática do conhecimento, o pensador chega à estética e à obra de
arte e observa que os gêneros artísticos possuem autonomia, já que trazem em sua
estrutura e conteúdo idéias que devem ser interpretadas. O método crítico do filósofo
supõe uma análise que vá além do “nominalismo” (estudo que procura identificar
características gerais dos gêneros literários, sem preocupação com particularidades
da obra
59
) e do “realismo” (análise que prioriza a objetividade das idéias sem
correlacioná-las aos fenômenos), uma vez que é preciso ater-se, no trabalho de
crítica literária, às particularidades da obra para que esta possa ser percebida como
idéia e passe a ter uma interpretação objetiva. Benjamin destaca que a obra literária
deve ser vista criticamente não só pelo seu conteúdo, mas também pela sua forma,
que emoldura o conteúdo e determina o seu valor
60
:
57
Conforme Susana Kampff Lages, “A melancolia é um motivo constante e quase evidente na obra
de Walter Benjamin: pode-se dizer que ela constitui um denominador comum que acompanha o
encontro entre as concepções místico-teológicas da primeira fase com o engajamento político ao
marxismo da segunda.” (2002, p. 101). Para Susan Sontag, Walter Benjamin era um sujeito
profundamente melancólico e seus escritos versam sobre esse tema, como as idéias e as
experiências são vistas por ele como ruínas. SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. In: __. Sob o
Signo de Saturno. 2. ed. Porto Alegre: LP&M, 1986.
58
ROUANET, Sergio Paulo. Apresentação. In: BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão.
São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 13.
59
Segundo Walter Benjamin, os estudos de R. M. Meyer são exemplares desse método, já que “por
dedução, uma série de gêneros e espécies são obtidos e a análise crítica torna-se superficialmente
esquematizadora” (1984: 65). O filósofo enfatiza que esse método é oposto ao que ele adota no
trabalho sobre o drama barroco alemão.
60
A ênfase na necessidade de observação da forma literária postulada nesse livro é justificada
porque Walter Benjamin observava nos estudos críticos sobre o Barroco realizados pelos alemães na
época uma despreocupação com a forma. Além disso, esse critério de análise, que engloba a “idéia”
(conteúdo) e a forma, é defendido ao longo da obra do pensador, como já foi destacado na primeira
parte desse capítulo.
70
Nisso, elas [as obras de arte] podem ser ajudadas por uma investigação que não
procure, desde seu ponto de partida, identificar tudo aquilo que pode ser
caracterizado como trágico ou cômico, mas que vise o que é exemplar, ainda que
só consiga encontrá-lo num simples fragmento. Essa investigação não fornece
“critérios” para o autor de resenhas. Nem a crítica nem os critérios de uma
terminologia (...) podem constituir-se segundo o critério externo da comparação,
mas de forma imanente, pelo desenvolvimento da linguagem formal da própria
obra, que exterioriza o seu conteúdo, ao preço de sua eficácia. (1984, p. 66).
É partindo dessa premissa que o filósofo investiga um gênero literário: o
drama barroco alemão. Segundo Benjamin, os dramaturgos barrocos alemães
opuseram-se à estética clássica por esta ser apoiada numa perspectiva de história
da salvação, passando então a adotar uma visão de história como história natural.
Nessa visão de história, a imagem da caveira e o culto às ruínas formavam alegorias
da deteriorização da natureza e apontavam para uma noção de história como tempo
inconcluso e de transformação.
Na análise do drama barroco alemão, Benjamin distingue entre os elementos
desse gênero literário o “príncipe”, que possui uma condição ambivalente, já que é
ao mesmo tempo um mártir e um tirano, estando sujeito a sofrimentos e suplícios e
impondo a ordem numa prática de sua condição hierárquica: “Para o Barroco, o
tirano e o mártir são as faces de Jânus do monarca. São as manifestações,
necessariamente extremas, da condição principesca.” (1984, p. 93). Conforme
explica Rouanet, essa alternância de papéis leva o príncipe à hesitação e ao
sofrimento e “O verdadeiro nome dessa hesitação é acedia, a sombria indolência da
alma, traço mais geral da sintomatologia melancólica” (1984, p. 30). Viver na
fronteira entre dois mundos ou oscilar entre dois sentimentos distintos e opostos
provoca o estado mórbido que caracteriza a melancolia.
Segundo Ginzburg, a impossibilidade de conciliar termos antitéticos é o que
determina a articulação benjaminiana do conceito de melancolia
61
. Assim como o
príncipe, os outros elementos do drama barroco – o cortesão, o conselheiro e a corte
– vivem entre limites que geram a inconstância e a sensação de luto. Os extremos e
o condicionamento da melancolia na perspectiva benjaminiana assinalam uma visão
61
GINZBURG, Jaime. Melancolia e dualismo em Gregório de Matos. In: SCHÜLLER, Donaldo &
PAVANI, Cínara (org). Gregório de Matos: texto e hipotexto. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.
71
de história como catástrofe
62
, pois a salvação torna-se impossível quando o homem
está preso ao seu destino
63
.
Benjamin assinala que os dramaturgos do barroco alemão produziram suas
peças durante o luteranismo, que renunciava as “boas obras” e a vida profana
defendida pelo catolicismo, fazendo com que se instalasse no povo ”uma estrita
obediência ao dever”, a qual “entre os grandes instilou a melancolia” (1984, p. 161).
A melancolia, nesse contexto, era a manifestação de uma consciência acerca da
sujeição do homem ao seu destino, pois “as ações humanas foram privadas de todo
valor. Algo de novo surgiu: um mundo vazio.” (1984, p. 162). E esse mundo vazio
passou a ser explorado pelos autores da época, cujas obras apontavam a existência
como um “campo de ruínas, cheio de ações parciais e inautênticas” (1984, p. 162). O
mundo, analisado sob um olhar melancólico, ganhou uma representação que “não
se destina nem à afetividade do poeta nem à do público, mas a um sentimento
dissociado do sujeito empírico e vinculado por um nexo interno à plenitude de um
objeto.” (1984, p. 163). A relação entre o sujeito e mundo é intensificada pelo
universo intelectual, sendo a meditação barroca uma característica que intensifica o
sentimento melancólico da época. É uma melancolia que foge do espírito
contemplativo e que destaca a postura ativa dos dramaturgos barrocos.
A experiência marcada pelos extremos e a fragilidade que assola os
sujeitos
64
, tal como Benjamin observa no drama barroco alemão, marca também a
experiência social como um todo. É nesse sentido que Rouanet questiona “Que
arbitrariedade é essa, que reflete nossa própria experiência?” e conclui “O tirano e o
mártir vivem entre nós. Diariamente assistimos a execuções e massacres. O luto é
nosso elemento.” (1984, p. 47). O que Benjamin percebeu no Barroco do século XVII
é observável no contexto moderno do século XX, com a hegemonia do mercado que
provoca a perda da aura e da memória. Considerando a decadência, a ruína e a
desordem da história na contemporaneidade, Benjamin vê a melancolia como a
constatação da impossibilidade de se encontrar uma saída, uma vez que a
desarmonia marca tanto a história quanto o sujeito. O pensamento benjaminiano
62
À visão de história como catástrofe está associada a teoria da alegoria proposta por Walter
Benjamin. A alegoria media, via linguagem, essa concepção de história.
63
A miséria da condição humana acarreta a melancolia, que, na perspectiva de Walter Benjamin, tem
no procedimento alegórico uma forma de representação eficaz no sentido de que indica a face
"doente” da história. A fragmentação formal, que é um traço da alegoria, é nesse sentido, um sinal da
perspectiva melancólica.
64
Nesse sentido, o Príncipe é exemplar porque constitui o “paradigma do melancólico” (1984, p. 165)
ao ilustrar a sua fragilidade e ao oscilar entre a postura de um tirano e a de um mártir.
72
aproximado das vivências do quotidiano de que todos fazem parte permite a
avaliação de obras literárias, como as de Caio Fernando Abreu, em sua relação com
experiências sociais que sinalizam a brutalidade e a violência, indicando a
ambivalência que caracteriza um só sujeito como mártir e tirano. O contexto barroco
marca uma melancolia ativa, que se contrapõe a um ato contemplativo diante das
ruínas e assegura uma consciência crítica acerca das ruínas da história. É
importante salientar que a perspectiva melancólica identificada por Benjamin supõe
um caráter de criticidade, o que torna também possível a aproximação teórica do
filósofo aos textos do autor de Morangos mofados.
Se as proposições de Benjamin indicam uma forma de se pensar a melancolia
como resultado de circunstâncias histórico-sociais, as formulações de Julia Kristeva
apontam um caminho para associar a perspectiva sombria de textos literários à sua
forma narrativa ou poética, sem desconsiderar que a melancolia é constante em
tempos de crise. A proposta teórica da autora sobre a melancolia suscita uma
reflexão acerca da forma de representação, nas artes, do estado melancólico,
através de uma associação entre forma e conteúdo. Kristeva vê textos literários
enquanto criações melancólicas dotadas de recursos e estratégias artísticas
capazes de aliarem tristeza e dor à uma forma de comunicação da dor.
Em Sol negro – depressão e melancolia, partindo de uma perspectiva
psicanalítica, Kristeva destaca a propensão do melancólico à criação
65
e à
ambivalência e aponta a melancolia como forma predominante em tempos de crise,
numa sociedade em que os valores estão em conflito: “As épocas que vêem o
desmoronamento de ídolos religiosos e políticos, as épocas de crise são
particularmente propícias ao humor negro. É verdade que um desempregado é
menos suicida do que uma mulher apaixonada e abandonada, mas, em tempos de
crise, a melancolia se impõe, é expressa, faz sua arqueologia, produz suas
representações e seu saber.” (1989, p. 15). O posicionamento da autora, nesse
sentido, pode ser aproximado das proposições de Benjamin na medida em que
ambos sinalizam a melancolia como uma manifestação de um distúrbio do sujeito
diante de um processo de desestruturação social. Além disso, é possível perceber,
65
Essa idéia de que o melancólico possui uma predisposição à criação foi defendida por Aristóteles:
“Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do
Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados
por males dos quais a bile negra é a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heróis, os
que são consagrados a Hércules?” ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia – o problema
XXX. Rio de Janeiro: Lacerda, 1998. p. 81.
73
considerando as diferenças de abordagem, que os dois teóricos sublinham que a
perspectiva melancólica acarreta mudança na forma de comunicação, o que conduz
a uma representação literária distanciada das formas linearmente ordenadas.
Considerando que em nossa vida social há uma “lista de desgraças que nos
oprimem todos os dias” (1989, p. 11), Kristeva destaca que “uma existência
desvitalizada” conduz a um esforço para a morte e que a melancolia
66
é resultante
da não assimilação de uma perda, especialmente da perda amorosa: “Conscientes
de estarmos destinados a perder nossos amores, ficamos talvez ainda mais
enlutados ao perceber no amante a sombra de um objeto amado, outrora perdido.”
(1989, p. 12). A melancolia, nesse sentido, assinala que o sujeito não sabe perder
ou não consegue absorver uma perda. E isso acarreta “o sentimento de ser
deserdado de um bem supremo não nomeável, de alguma coisa irrepresentável que
nenhuma palavra poderia significar” (1989, p. 19). Assim, além de uma intolerância à
perda, o melancólico expressa uma dificuldade de comunicação, que se assemelha
a uma problematização da linguagem.
Para Kristeva, a melancolia abrande dois pólos distintos, o da opacidade e o
do ideal. O primeiro relaciona-se à falta de significação do mundo e o segundo, à
representação dos signos, à comunicação. Pela obra de arte, destaca a autora, o
melancólico consegue processar os signos, fazendo voltarem os sentidos da vida.
Assim o sujeito oscila “entre as duas bordas do sentido e do não-sentido, de satã e
de Deus, da Queda e da Ressurreição” (1989, p. 98). De acordo com Kristeva, a
criação literária recompõe a dimensão simbólica da situação comunicativa e a
realidade afetiva que envolve o sujeito.
Kristeva também associa o estado depressivo a uma fragmentação do ego
(pulsão de morte), que, por sua vez, conduz a uma fragmentação da fala do sujeito:
“Lembre-se da palavra do deprimido: repetitiva e monótona. Na impossibilidade de
encadear, a frase se interrompe, esgota-se, pára.” (1989, p. 39). O discurso do
melancólico, destaca a ensaísta, é desprovido de encadeamento lógico: “o
depressivo, (...), preso à sua dor, não encadeia mais e, por conseguinte, não age,
nem fala”. (1989, p. 39-40). A fragmentação do discurso, nessa perspectiva, é
sintoma da condição melancólica.
66
Embora Kristeva faça uma sutil diferenciação entre melancolia e depressão neurótica, admite que
os limites de conceituação dessas duas sintomalogias psiquiátricas são imprecisos. Por isso, a autora
adota esses dois termos como sinônimos, já que ambos têm traços em comum: a intolerância à perda
de um objeto e a falência da linguagem.
74
A autora admite a possibilidade de se apontar relacionamentos entre o
“substrato biológico e o nível das representações (explicação médica do uso da
linguagem e do discurso do depressivo, e criação artística, respectivamente) num
estudo de ressonâncias de um sobre outro e de modificações de um em relação ao
outro. Tal premissa assegura a associação entre obras literárias e perspectiva
melancólica, já que, enquanto representação, o texto literário faz referência à
condição psíquica do sujeito, através do discurso dos personagens ou do narrador.
Nesse sentido, a análise da forma e estrutura de produções literárias e da posição
do narrador nos textos de Caio Fernando Abreu pode ser articulada a uma visão
melancólica na medida em que a estratégia literária dos contos do autor sugere
traumas históricos decorrentes de um contexto sócio-político autoritário marcado por
experiências de violência e repressão, os quais condicionam um sentimento de
tristeza que constitui a melancolia.
É possível formular a partir disso que a fragmentação da forma narrativa e,
por conseguinte, do discurso donarrador (e de personagens que ganham vida com o
discurso do narrador) de obras literárias, seria então motivada por um
reconhecimento de perda e de dor, cabendo à linguagem a “tradução” dessas
perdas. Assim, considerando o sentimento de perda e de tristeza, seria lícito
observar nos discursos e estruturas não “normais” das representões literárias que
os encadeamentos estranhos são recursos utilizados para problematizar
experiências de sofrimento e desespero. Talvez por isso, Julia Kristeva fale do
melancólico como “um estrangeiro na sua língua materna” (1989, p. 55).
O sentimento de perda também foi discutido por Sigmund Freud em artigo no
qual faz uma distinção entre luto e melancolia
67
. Para o psicanalista, a experiência
da perda pode provocar tanto o luto quanto a melancolia: “O luto, de modo geral, é a
reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o
lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim
por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em
vez de luto; por conseguinte, suspeitamos que essas pessoas possuem uma
67
É importante salientar que as observações de Freud acerca da melancolia referem-se à condição
clínica desse estado emocional. Conforme afirma Susana Kampff Lages, “A análise que Freud realiza
é, por assim dizer, uma análise ‘imanente’, sincrônica, que pretende se concentrar na descrição do
mecanismo da manifestação psíquica de um ponto de vista muito específico: o da clínica da nascente
pscicanálise”. LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin – tradução e melancolia. São Paulo: Edusp,
2002. p. 58.
75
disposição patológica”
68
. Embora havendo semelhanças entre o luto e a melancolia,
Sigmund Freud deixa claro que o luto é efêmero, supõe que a perda é irreversível e
sinaliza a possibilidade de substituir o objeto perdido por outro, e a melancolia, ao
contrário, é constante e o sujeito não aceita a perda. Além disso, há outros traços
que singularizam o estado do sujeito melancólico, como um “desânimo
profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da
capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos
sentimentos de auto-estima” (1974, p. 276). O sujeito melancólico passa a conviver
com a insatisfação com o seu próprio ego e com a consciência da precariedade da
sua própria vida.
A perspectiva freudiana acerca da melancolia ainda sinaliza que ela pode
caracterizar-se como uma reação à perda de um objeto de natureza mais ideal, que
“não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor”
(1974, p. 277). Esse objeto perdido pode não ser identificado, mas o sujeito tem
consciência de que perdeu algo e isso resulta num trabalho interno que leva à
inibição melancólica, já que o ego torna-se vazio. De acordo com a leitura de Susana
Kampff Lages sobre a teoria de Freud, “o melancólico sofre, na pele e na alma, de
um mal-estar que provém da consciência demasiado aguçada de sua situação”
(2002, p. 63). Esse quadro condiciona a dificuldade de a pessoa apegar-se à vida,
estar satisfeita consigo mesma, e auto-recriminar-se pela perda do objeto. Além
disso, o sujeito melancólico apresenta uma tendência ao suicídio.
As concepções teóricas apresentadas por Benjamin, Kristeva e Freud
associam a melancolia a um estado de tristeza e instabilidade, seja em virtude do
dualismo que caracteriza a postura dos sujeitos, tal como propõe o filósofo de
Frankfurt, seja diante da experiência da perda, tal como destacam os outros dois
pensadores. A frustração de expectativas de superação de limites conduz à idéia de
que não é possível uma “experiência do Absoluto”
69
, ou seja, a realização plena das
experiências não é possível de ser atingida. E essa impossibilidade pode ser
explicada por fatores externos, como os “tempos de crise” ou as desconjunturas
sociais sugeridas por Kristeva e Benjamin.
68
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: __. Obras psicológicas completas. Vol. 14. Rio de Janeiro:
Imago, 1974. p. 275.
69
Essa expressão é usada por Jaime Ginzburg. Op. cit. p. 57.
76
Como foi exposto no capítulo precedente, a fortuna crítica de Caio Fernando
Abreu faz referência a um sentimento melancólico na produção do escritor, embora
essa indicação não tenha sido desdobrada nesses ensaios. Esses trabalhos críticos
são unânimes em afirmar um certo desconforto que caracteriza a obra do autor no
sentido de que a confrontação com ideologias e posicionamentos opressivos é
constante. As linhas de conceituação da melancolia dos autores referenciados nesse
trabalho permitem estabelecer uma relação entre esses aspectos e a perspectiva
melancólica identificada na obra do contista discutida nesse estudo. A presença da
melancolia em Morangos mofados é motivada por condicionamentos sociais,
históricos e políticos que impedem uma plena realização do sujeito, seja em sua vida
privada, seja em sua vida pública. Nesse sentido, merecem destaque as relações
percebidas entre literatura e contexto social na abordagem que Moacyr Scliar faz
sobre a melancolia no Brasil
70
. Segundo ele, é possível entender manifestações
melancólicas nas artes brasileiras como resultantes de um período de exceção ou de
crise.
Scliar traça um panorama histórico do século XVI até o XX e observa que no
Renascimento instituiu-se um paradoxo: o avanço nos planos científico e
tecnológico, sinônimo de progresso, trouxe a imagem do labirinto à tona, ou seja,
uma visão de mundo perturbada, que foi motivo de produções no campo das artes e
da filosofia. Essa perturbação também foi evidenciada pela quebra dos antigos
paradigmas no campo da fé, através da Reforma Protestante, e pelo surgimento de
doenças como a sífilis e a Peste Negra. Estas doenças asseguraram uma
intensificação na idéia de morte e finitude, inspirando terror e discussões sobre
suicídio, visto como uma atitude melancólica resultante de uma miséria moral e
humana. Esse mundo que oscilou entre idealismo e corrupção, entre riqueza e
pobreza, otimismo e desespero e que também começou a conhecer o capitalismo e
assistir à ascensão do individualismo, viu esse dualismo com culpa, uma culpa que
gera depressão e melancolia.
Conforme afirma Scliar, o quadro “Melancolia I”, de Albrecht Dürer, até hoje
considerado um dos melhores expoentes da criação melancólica
71
, representa a
70
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos – a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
71
Susana Kampff Lages também afirma que a gravura de Dürer é “uma das obras que melhor
ilustram o caráter fundamentalmente enigmático do humor melancólico”. LAGES, Susana Kampff.
Walter Benjamin – tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002. p. 38.
77
efervescência do pensamento intelectual da época renascentista por sua mensagem
sombria. Tirso de Molina e William Shakespeare também abordaram a melancolia
em suas obras de ficção. Neste período, a descoberta sobre o corpo humano
ganhou destaque e foram vários os estudiosos interessados em dissecar cadáveres.
Robert Burton, sob o pseudônimo de Demócritus Júnior, publicou então um livro no
qual a melancolia era vista como doença e como característica intrínseca ao ser
humano. Era um livro que, de acordo com Scliar, atendia aos interesses de uma
geração de melancólicos na Europa. No Renascimento, a visão sobre melancolia
oscilou entre a sua manifestação como estado emocional ou condição existencial e
como doença. Admirada entre os intelectuais e intolerada entre as pessoas comuns,
a melancolia passava a ser vista como característica de bruxas e judeus, os quais
passaram a ser perseguidos e vítimas de violência.
É a partir do Renascimento, segundo o ensaísta, que se pode pensar a
melancolia no Brasil. Como ponto central de discussão, Scliar questiona se a
melancolia tem um caráter cíclico e ignora fronteiras espaciais e culturais ou se é um
fato isolado de uma determinada comunidade. A resposta é afirmativa para a
primeira hipótese. Diante desta premissa, o autor analisa a melancolia no Brasil.
Passada de um país europeu a outro, ela chegou a Portugal. E os portugueses
chegaram ao Brasil trazendo uma carga de tristezas decorrentes da mudança
cultural ocorrida naquele país: “Por que haveriam de ser tristes os portugueses
chegados ao Brasil?”, pergunta Scliar, e ele mesmo responde: “O ‘português heróico’
do século XV desaparecera: a derrota na África, a morte de dom Sebastião, a união
com a Espanha, a crescente influência da Inquisição, os governos despóticos e
incapazes, o luxo, a desmoralização de costumes, a corrupção (...) Tudo isso
alterara o perfil dos colonizadores.” (2003, p. 190). A chegada de portugueses com
essa imagem de fracasso e com o sentimento melancólico resultante do
desaparecimento de Dom Sebastião, aliada a outras tristezas brasileiras e latino-
americanas, são motivos, enfatiza Scliar, para se projetar a tristeza no trópico. A
partir disso, é possível chegar à idéia de que o Brasil, enquanto país colonizado, já
“nasceu” melancólico e essa melancolia vem acompanhada de desilusões de ordem
histórica e social.
Para Scliar, então, a melancolia é uma constante na sociedade brasileira,
embora nosso país tenha criado antídotos, como o Carnaval, o futebol, o humor e
outras festas populares, para minimizar a tristeza. O autor defende a tese de que o
78
sentimento melancólico no Brasil instituiu-se, além da influência portuguesa, graças
a um conjunto de traços sombrios: pestes (sífilis, cólera, febre amarela),
transformações sócio-políticas turbulentas, condição de “inferioridade” brasileira
(caracterizadas pela difusão de idéias racistas), tristeza indígena (considerados bons
e maus selvagens e o próprio genocídio das tribos), tristeza dos negros
(intensificada pela escravidão), tristeza latino-americana (situação de dominação
frente aos países desenvolvidos), tristeza dos imigrantes. Toda essa conjuntura,
aliada à pobreza e à precariedade da condição humana, expressa uma visão
desanimada, pessimista e antiufanista do Brasil. Tal perspectiva, segundo Scliar,
aparece em Lima Barreto e Machado de Assis, já que a obra de ambos indica um
sentimento de tristeza diante de uma conjuntura social desfavorável à realização
plena dos sujeitos
72
. De acordo com a proposta de leitura desenvolvida neste
trabalho, a melancolia também caracteriza a produção literária de Caio Fernando
Abreu.
A discussão da melancolia como resultado de uma conjuntura social
desfavorável, proposta por Scliar, aliada às formulações conceituais de Benjamin,
Kristeva e Freud que permitem identificar nuances da postura de sujeitos
melancólicos, apresenta-se como um caminho para a compreensão da melancolia
em Caio Fernando Abreu. A obra do autor problematiza uma série de experiências
sociais calcadas em violência, repressão, opressão que evidenciam uma descrença
e uma insatisfação coletiva diante do contexto histórico e social brasileiro. Além
disso, os personagens do escritor apresentam traços que caracterizam uma postura
melancólica que está ancorada numa percepção singular acerca das experiências
sociais. Todos esses traços são indicativos da melancolia e são enfatizados pela
72
O autor analisa O alienista, de Machado de Assis, e Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto. Nas palavras de Scliar, “Machado de Assis está nos falando do poder, da arbitrariedade. É o
poder que resulta de um suposto conhecimento. Mas este conhecimento – porque suposto – não dá
ao doutor Bacamarte qualquer segurança. Ao contrário, seu estado de espírito oscila constantemente
entre a onipotência e a impotência, entre a euforia e o desânimo. Ele crê na ciência, mas sabe que
ciência tem limitações – daí sua melancolia.” (2003, p. 217). A melancolia na obra de Lima Barreto é
apreendida pela postura do personagem principal da obra, que possui a ambivalência e a
instabilidade próprias dos sujeitos melancólicos: “Policarpo (...) evolui através de ciclos. Ciclos de
entusiasmo até extravagante se alternam com outros, de tristeza, de desânimo, de depressão – de
melancolia. Policarpo faz projetos mirabolantes, julga-se capaz de salvar o país; ou, ao contrário,
sente-se descrente de tudo. Instável como é, não consegue levar nada até o fim, derrotado tanto
pelas circunstâncias quanto pelo seu lado doentio.” (2003, p. 226). Os dois personagens são, para
Scliar, exemplares da perspectiva melancólica explorada na literatura brasileira, já que eles “revelam
descrença em relação ao Brasil, ao mundo”, tentam reagir, mas, ao fim e ao cabo, derrota-os a
melancólica situação brasileira. Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e Macunaíma, de Mário de Andrade,
também são apontados como personagens que são portadores de melancolia.
79
estética dos contos, havendo uma estreita conexão entre forma literária e conteúdo
social. Cabe, então, fazer uma leitura de contos de Morangos mofados para não
apenas examinar como a condição melancólica aparece em seus textos, mas
também para refletir como essa condição é explorada formal e estruturalmente,
especialmente através da fragmentação narrativa.
80
3. MORANGOS MOFADOS: FRAGMENTO, MELANCOLIA E CRÍTICA SOCIAL
3.1. Morangos mofados: estrutura fragmentária e perspectiva sombria
Morangos mofados é o livro que proporcionou a Caio Fernando Abreu
reconhecimento nacional e notoriedade pela escritura de narrativas curtas. Sendo
constituída por dezoito contos distribuídos em três partes, “O mofo”, “Os morangos”
e “Morangos mofados”, formado pelo conto de título homônimo, a obra assinala um
movimento inquietante diante de um contexto em que a repressão é constante. Os
personagens das narrativas da coletânea quase sempre vivenciam experiências de
sofrimento, descrédito, opressão. O livro apresenta em cada bloco de contos um
sentimento de descrença na possibilidade de transformação social, já que não há
“final feliz” na maioria das histórias, e as situações enfrentadas pelos personagens
não asseguram nem um trânsito livre de preconceitos, violência e repressão nem a
possibilidade de realização plena. Pelo contrário, nas narrativas da obra essas
manifestações são contínuas, minimizando-se a esperança de mudar valores e
posturas. É nesse sentido que Letícia da Costa Chaplin assinala que “os
personagens que se sobressaem nos contos de Caio vivem o grande sofrimento da
consciência impotente, isto é, suas personagens falam do diferente, do excêntrico,
daquilo que não segue a linha de pensamento da maioria da sociedade”
73
. A obra de
Caio Fernando Abreu expressa perplexidade diante da falência de sonhos e da
perda de ideais tanto no plano político quanto no cultural e social.
Lidos em conjunto, os textos, à primeira vista, parecem não manter uma
continuidade temática, já que as abordagens são diversificadas: a antologia oscila
entre a representação da repressão sexual, da opressão política e da sexualidade
“ex-cêntrica”
74
e ainda sobre o processo de escrita. Essa diversidade de temas
sinaliza um olhar sobre um tempo sombrio em que muitas questões de ordem social,
moral, política e cultural são debatidas não só pelo tema, mas também pela forma de
representá-lo. Daí a pertinência da reflexão sobre o processo de escrita.
Além dessa pluralidade de temas, é preciso assinalar que cada conto traz
uma forma singular de composição no sentido de que são múltiplas as estratégias
73
Op. cit. p. 82.
74
O termo “ex-cêntrico” está sendo utilizado no sentido de indicar um comportamento que foge das
“normas” convencionais legitimadas.
81
literárias empregadas em cada narrativa. Em alguns contos, o diálogo é
predominante; em outros, aparece um discurso calcado na fala de um narrador que
constantemente dificulta o trabalho do leitor com sua alternância de posição; alguns
textos também apresentam um narrador que mantém um discurso linear. Os contos
“Diálogo” e “Os sobreviventes”, por exemplo, que fazem parte de “O mofo”, são
construídos com diálogos, sendo que o último inova na forma de exposição do
diálogo porque não obedece à forma tradicional desse discurso – essa narrativa
ignora travessões, sobrepondo as vozes que falam e transgredindo a lei de
organização linear das falas. Contos como “Fotografias”, incluído na parte “Os
morangos”, e “Além do ponto”, do segmento das histórias de “O mofo”, optam por
um narrador em primeira pessoa que relata suas experiências pessoais de modo
fragmentado e com intercalação inusitada de imagens. E há também os textos cujo
narrador mantém uma postura ambígua e uma posição móvel que impede
julgamentos definitivos e problematiza escolhas do receptor. Esse é o traço
característico dos contos “Aqueles dois”, da segunda parte do livro, e “Eu, tu, ele”,
que está na primeira parte da obra.
O modo como as narrativas estão dispostas no livro também não segue uma
seqüência temática de ordem lógico-causal porque o movimento da obra não prioriza
uma organização linear. Contos com temas e formas distintos aparecem em cada
parte da coletânea, não sendo possível identificar uma tendência única em cada
segmento. Essa constatação da diversidade temática e da aparente desconexão
entre os contos da antologia é enfatizada pelo fato de que o livro não busca traçar
uma unidade estanque entre as partes, mas, pelo contrário, procura suscitar no leitor
a percepção de que a pluralidade (de formas, temas e sentidos) é um recurso
estético que propõe a “montagem” da obra, ou seja, a articulação entre as suas
partes e, conseqüentemente, uma interpretação. Essa idéia de montagem é
apontada por Theodor Adorno como uma característica da obra de arte moderna,
recurso que exige uma percepção apurada do leitor e que está em consonância com
o “conteúdo” abordado em cada produção artística. Walter Benjamin também
considera essa “montagem” como um traço da arte moderna que se preocupa em
apontar as “ruínas” e as descontinuidades da história através de uma construção
narrativa que não mascare as barbáries do contexto. A descontinuidade temática em
Morangos mofados, nessa linha de raciocínio, pode ser compreendida como um
82
artifício para a representação de experiências sociais delicadas e para a
interiorização desse traço na própria estrutura da obra.
A organização “externa” dos contos em cada parte e das partes entre si no
livro aponta para a idéia de que a fragmentação é uma constante na obra, afirmação
que é intensificada pela observação à estrutura formal de cada narrativa. Os textos
da antologia de 1982 são construídos de modo a romper com a estrutura clássica da
prosa literária, especialmente porque a voz de quem conta a história oscila como
uma “posição de câmera”, conforme destaca Adorno quando se refere à posição do
narrador em romances contemporâneos, e impede a construção de um sentido
definitivo para o texto, deixando-o aberto à plurissignificação. As formulações do
filósofo sobre o narrador permitem compreender a postura da voz que relata as
histórias de Caio Fernando Abreu na medida em que a configurão desse elemento
narrativo não mantém uma distância fixa com o leitor nem um grau de
distanciamento único em relação aos fatos narrados. A abertura da obra, provocada
pela instabilidade do narrador, é fator que assegura, tal como propõe Benjamin, a
recuperação da experiência representada, que é necessária para a reflexão do leitor
e para o não silenciamento de episódios marcados pela brutalidade. O narrador dos
contos de Morangos mofados ora é sensível à presença do leitor e interage com ele,
ora se mostra indiferente ao seu receptor, impedindo uma leitura tranqüila dos textos
e induzindo não só à plurissignificação dos textos, mas também à reflexão sobre as
experiências abordadas.
Outro aspecto a destacar é que o narrador dos textos de Morangos mofados
emprega geralmente um tom subjetivo e emotivo, abandonando a objetividade que
marca o discurso do narrador convencional. A abolição da objetividade é, segundo
Adorno, característica das narrativas contemporâneas e evidencia a impossibilidade
de se manter um olhar contemplativo, que seria expresso pelo discurso objetivo,
diante de uma “condição de mundo” em que a atitude contemplativa não dá conta da
experiência. Essa postura do narrador acompanha um contexto social cultural em
que histórias com caráter objetivo e mimético não abarcam toda a subjetividade e
essência das situações. Narrativas como “Os companheiros (Uma história
embaçada)”, “Luz e sombra”, “Pêra, uva ou maçã?” e “Caixinha de música” são
exemplares da subjetividade que marca o discurso do narrador. As histórias chegam
até o leitor através de um olhar que prioriza imagens metafóricas e ambíguas em
detrimento de relatos diretos e objetivos.
83
A configuração estrutural da coletânea está pautada na fragmentação da
forma narrativa e está em consonância com a perspectiva de obras modernas do
cenário literário, tal como propõem Adorno e Benjamin. Na obra literária analisada, a
estratégia narrativa atende a uma visão que não procura ocultar uma perplexidade
diante da violência social. Como já foi mencionado, em Morangos mofados é
constante e intensa a problematização de experiências sociais marcadas pela
imposição da dor e da repressão, seja em seu aspecto moral, seja em seu traço
político, seja no âmbito das relações interpessoais.
O conto “O dia que Urano entrou em Escorpião” pode ser apontado como um
expoente da tendência em abordar experiências de sofrimento. Narrado em terceira
pessoa, o texto apresenta uma situação desconfortável vivida por um personagem
identificado pelo narrador apenas como “o rapaz de blusa vermelha” (Abreu, 1995, p.
23). O rapaz, que mora com um grupo de amigos, queria falar a eles que “Urano
estava entrando em Escorpião” (Abreu, 1995, p. 23), mas nenhum de seus
companheiros dava-lhe atenção. O narrador, através de um discurso pautado na
subjetividade e desprovido de observações elucidativas quanto à pertinência da
afirmação do personagem, vai aos poucos incorporando ao relato a angústia vivida
pelo rapaz que não consegue ser ouvido nem ser compreendido pelos colegas, que
o classificam como um “garoto esquizofrênico” (Abreu, 1995, p. 25). De tanto tentar,
sem sucesso, conquistar a atenção dos companheiros de apartamento, o jovem de
blusa vermelha toma uma atitude extrema e resolve atirar-se pela janela, buscando o
suicídio. É o ápice de seu estado emocional, da sua perturbação, do seu
desassossego: “sem que ninguém esperasse, deu um salto em direção à janela
gritando que ia se jogar, que ninguém o compreendia, que nada valia mais a pena,
que estava de saco cheio e não apostava um puto na merda de futuro” (Abreu, 1995,
p. 27).
A incompreensão e o mal-estar que domina o rapaz de blusa vermelha assim
como a consciência da ausência de perspectivas promissoras e a tentativa de
suicídio (reveladora do desejo de morte) são “sintomas” que anunciam a presença
de um sentimento melancólico que caracteriza o personagem do conto. Conforme
atestam Sigmund Freud e Julia Kristeva, anteriormente referenciados, o sujeito
melancólico, insatisfeito consigo mesmo e com a vida e estando diante de um
processo de desestruturação social e psíquica, sinaliza um “esforço para a morte”.
Essa perspectiva sombria acarreta uma representação que foge dos padrões
84
convencionais; por isso, o narrador de “O dia que Urano entrou em Escorpião” abole
a objetividade e passa a encadear seu discurso conforme a condição melancólica do
personagem, criando um conto fragmentado. Semelhante construção narrativa é
encontrada no conto “Os sobreviventes”, que receberá uma análise mais detalhada
na seção seguinte deste trabalho.
As narrativas que compõem o livro estudado também apontam o olhar dos
sujeitos que estão à margem dos processos legitimados socialmente e concentram-
se na concepção materialista da história proposta por Benjamin na medida que os
personagens representam os “vencidos” e a escritura da história é feita “a
contrapelo”. Dessa forma, os contos abordam acontecimentos que não devem ser
esquecidos e recusam o estilo linear. Significativos dessa característica da obra são
os textos “Os sobreviventes”, “Aqueles dois” e “Os companheiros”. Essas historietas
conjugam a posição de sujeitos marginalizados e são construídas de modo a
transgredir as “leis” da narrativa tradicional no sentido de que o narrador desses
contos mostra-se em posições flexíveis e discursa em tom subjetivo. Além disso,
esses textos propõem ao leitor uma visão marcada pela perplexidade diante das
relações sociais, já que as cenas representadas centram-se na abordagem de
situações-limite e os personagens são vítimas de violência física ou moral ou estão
em posição frágil diante do cenário social.
Um exemplo significativo da representação de situações extremas e da
abordagem da violência física e moral é encontrado no conto “Terça-feira gorda”,
que é narrado em primeira pessoa. Esse texto põe em destaque a voz de um
personagem masculino que vivencia uma experiência erótica com um outro
personagem masculino. Ao relatar sua própria história, o personagem carrega de
subjetividade a narrativa, acentuando o impacto de, ao mesmo tempo, sentir um
grande prazer, resultado de seu envolvimento afetivo e sexual, e assistir a uma
condenação social, representada pela ação dos “outros” que agridem os dois e
repreendem a sua relação. A cena de envolvimento entre os personagens é relatada
logo no início do conto, quando é sugerido um “reconhecimento” entre os dois
futuros amantes:
De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos
quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação.
Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca
com coca-cola, uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de
mão em mão dentro dos copos de plástico. (Abreu, 1995, p. 50)
85
A identificação entre os personagens se dá tanto no plano do prazer quanto
no do sexual. Ambos vivenciam uma relação homoerótica em meio a uma festa de
carnaval:
Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dançava agora, acompanhando o
movimento dele. Assim: quadris, coxas, pés, onda que desce, olhar para baixo,
voltando pela cintura até os ombros, onda que sobe, então sacudir os cabelos
molhados, levantar a cabeça e encarar sorrindo. (...) Eu queria aquele corpo de
homem sambando suado bonito ali na minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse
quero você também. (Abreu, 1995, p. 51)
O comportamento dos personagens permite reconhecer que não há nenhum
tipo de preconceito quanto a envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo, o que
direciona a pensar numa total liberdade de opção sexual. Essa liberdade é melhor
apreendida nesta passagem do conto:
Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão
aberta, passou no meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso,
ele disse. E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de
homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu
estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou.
Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem
gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também. (grifos da
autora) (Abreu, 1995, p. 51)
Se, por um lado, a postura dos personagens desestabiliza qualquer tipo de
pensamento conservador, por outro lado, o comportamento dos “outros” manifesta
uma tentativa de impor regras de conduta baseadas na oposição binária
homem/mulher como padrão legítimo de relação sexual. Esses outros, cujas vozes
aparecem embutidas na fala do próprio narrador, representam uma voz social da
estrutura de macro-poder, já que é dela que partem as regras. O fragmento a seguir
ilustra o “olhar” desses que julgam e condenam: “Passou a mão pela minha barriga.
Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As nossas carnes duras tinham
pêlos na superfície e músculos sob as peles morenas de sol. Ai-ai, alguém falou em
falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta, olhavam.” (grifos da autora) (Abreu,
1995, p. 51).
As vozes dos personagens, irônicas e maldosas, manifestam indignação e
preconceito e revelam também uma incapacidade de aceitar uma ruptura com
códigos repressivos e conservadores, fazendo com que numa festa onde o
86
“desregramento” é a tônica maior, como no carnaval
75
, a postura de liberdade e
ousadia, própria da cultura carnavalesca, seja abolida. O rompimento com tudo o
que, à primeira vista, é permitido no carnaval leva à constatação de um paradoxo da
sociedade, uma vez que ela aceita um desregramento nas festas e condena atitudes
de liberdade, no caso a sexual. Nesse sentido, a proposição de Arnaldo Franco Jr.
76
é bastante elucidativa: “O carnaval, em ‘Terça-feira Gorda’, alegoriza a própria
tessitura de violência sombria mesclada a explosões circunstanciais de euforia e
aparente desregramento que caracterizam um modo de ser ‘alegre’, irresponsável e
brutal.” (2000, p. 92).
O lado avesso da sociedade é reconhecido pela ironia de a repressão
acontecer justamente no carnaval. Para Arnaldo Franco Jr., “o carnaval torna-se, no
conto, signo de uma ironia amarga: a intolerância tropical manifesta-se nele e, mais,
por meio dele. Repressiva e dissimulada, a sociedade que celebra o Momo é a
mesma que, ambivalente com a identificação de limites, reage violentamente
quando, por alguma razão, os limites tornam-se claros.” (2000, p. 92). A
representação da repressão sexual no carnaval torna a narrativa ainda mais crítica
porque questiona o conservadorismo social e também uma liberdade previamente
garantida nas festas populares do Carnaval. O fragmento a seguir ilustra tal
característica do conto, ao propor a inversão de máscaras:
Veados, a gente ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música era só um
tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha lá as
Plêiades, só o que eu sabia ver, que nem raquete de tênis suspensa no céu. Você vai
pegar um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que percebi que
não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única
emoção que não usa máscara. Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora
ali sobre nós, eu nem sei se era alegria, também não usava máscara. Então pensei
devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara, ainda mais no carnaval.
(Abreu, 1995, p. 52)
75
Segundo Moacyr Scliar, o Carnaval no Renascimento era compreendido como uma “válvula de
escape” fundamental para a interrupção da agressividade e para uma liberação geral dos costumes,
pois os mascarados podiam insultar pessoas e criticar autoridades. Para o pesquisador, o Carnaval
também aludia a sexo e à carnalidade – a palavra carnaval vem de carne -, o que intensificada o culto
ao corpo e à sexualidade. Todos esses traços faziam dessa festa popular um “símbolo da subversão”:
“Tudo no Carnaval contribui para essa idéia de subversão. Assim a máscara é expressão de
metamorfose, de violação dos limites, de ridicularização: um simbolismo inesgotável. O grotesco, no
Carnaval, emergia diretamente da cultura popular.” (2003, p. 110-111). Os elementos
caracterizadores do Carnaval no Renascimento podem também ser estendidos ao Carnaval moderno
no sentido que ele continua a ser visto como “símbolo da subversão”, do desregramento.
76
FRANCO JR, Arnaldo. Intolerância tropical: homossexualidade e violência em Terça-feira gorda, de
Caio Fernando Abreu. Expressão. nº 1. Santa Maria: ED. UFSM, 2000. p. 91- 96.
87
A imposição de regras de comportamento implica também a exclusão do ser
diferente ou do ser que não se “encaixa” nas normas. No conto, um dos
personagens é espancado e morto pelos ”outros”, por aqueles que não toleram a
relação homoerótica. O narrador descreve da seguinte forma o espancamento:
Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e
nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos. Fechando
os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu consegui ver três imagens se
sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção.
Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E
finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão
em mil pedaços sangrentos. (Abreu, 1995, p. 53).
A representação da morte através da metáfora da fruta que se despedaça no
chão conduz ao desnudamento de uma “política da sexualidade” contrária às
relações homoeróticas. A morte do personagem impossibilita a transcendência e
assegura uma finitude provocada pela agressão violenta de um grupo de pessoas
aos sujeitos marginalizados. O final trágico do relacionamento entre os dois homens
deixa transparecer uma visão negativa da percepção da sociedade sobre as
sexualidades “excêntricas”, acentuando um sentimento de desconforto e isolamento
daqueles que sofrem a repressão. Há possibilidade ou garantia de liberdade sexual?
O conto mostra que não e, por isso, há a sinalização de uma perspectiva
melancólica na narrativa. Uma leitura atenta do conto indica que há motivos para se
projetar uma tristeza, só que nesse caso não são motivos de crise existencial, mas
razões de cunho moral, social, ideológico que asseguram experiências de dor,
tristeza e também fragilidade. A combinação desses elementos contribui para a
consolidação de um sentimento melancólico no conto “Terça-feira gorda”.
A imagem do corpo morto na areia ainda sugere falta de humanidade.
Separado de seu companheiro e esmagado por “os outros todos que estavam em
volta”, o suplício enfrentado pelo personagem ultrapassa os limites da tolerância. Ao
leitor fica a representação de uma dor, que, mais do que física, é moral. A
dramaticidade narrativa intensifica o desabafo do horror da violência e da ruptura
com o sonho de liberdade. Carnaval como expoente da liberdade? Não. O conto
sugere uma inversão do constructo ideológico que associa uma das festas mais
populares brasileiras à liberdade em suas múltiplas formas. A opção por representar
a repressão sexual no carnaval é também significativa para a percepção do teor
melancólico do conto. O carnaval no Brasil, segundo Moacyr Scliar, é um dos
88
antídotos para a melancolia, serve de instrumento para neutralizar a tristeza. O conto
de Caio Fernando Abreu subverte essa lógica ao problematizar a repressão sexual
justamente em um momento carnavalesco, situando a percepção do leitor sobre a
moralidade burguesa, que considera intolerável a adoção de papéis sexuais
contrários ao padrão dominante imposto. O carnaval brasileiro é uma festa em que
as “moralidades brasílicas” supostamente desaparecem: o culto à liberdade sexual e
ao despojamento comportamental seriam as tônicas desse movimento popular.
Nesse sentido, o conto impulsiona uma reflexão acerca das convenções sociais e
morais que norteiam a prática carnavalesca, as quais se mostram frágeis diante da
possibilidade de relação homoerótica, e mostra a arbitrariedade que cerca o uso de
“máscaras”. A essa representação subjaz uma perspectiva melancólica.
Do conto também surge um questionamento: derrotados pelas circunstâncias
sociais e pelas posições ideológicas, os personagens de “Terça-feira gorda” ajudam
a consolidar que imagem da situação social? Considerando a conjuntura sócio-
histórica brasileira, é possível reconhecer na mensagem sombria do conto um outro
indício de melancolia, que agora aparece em decorrência de uma experiência
problematizada pelo próprio protagonista do texto. A narrativa de Caio Fernando
Abreu apresenta uma morte sofrida, mas o faz de maneira a reavaliar a vida. O
corpo morto do personagem contrastando com o corpo vivo dos outros e também
dos leitores traz um convite à reflexão. A banalidade da morte nesse conto direciona
a uma visão triste do homem e de sua relação com a sexualidade marginal e, além
disso, sugere a perda de um ideal de relacionamento entre sujeitos do mesmo sexo,
a qual é intensificada pela não aceitação dessa condição.
Todos os fatores levantados em contos de Morangos mofados – a
fragmentação formal, a abolição da estrutura tradicional, a visão do marginalizado, a
representação da violência física e moral, a repressão – possibilitam identificar na
obra de Caio Fernando Abreu uma perspectiva singular acerca das experiências
sociais. Os contos da coletânea expressam de forma latente a precariedade da
condição humana e uma frustração diante da dificuldade de realização plena dos
sujeitos, seja no aspecto moral e social, seja no sexual. Como já foi destacado, as
histórias criadas pelo escritor não apresentam final feliz, e os personagens
enfrentam situações extremas de dor e sofrimento. A abordagem proposta no livro
sinaliza um profundo mal-estar dos personagens com a vida e com o “mundo” do
89
qual fazem parte. Esse mal-estar, aliado a uma sensação de descentramento e
marginalização social, suscita reflexões acerca da melancolia nos contos do escritor.
Uma revisão das concepções modernas sobre melancolia, apresentada no
capítulo anterior do trabalho, aponta que a condição melancólica pode ser motivada
por circunstâncias histórico-sociais que atingem o sujeito e fazem-no demonstrar
menos apego à vida. A postura do narrador de Caio Fernando Abreu permite
reconhecer o estado melancólico dos sujeitos-personagens dos contos. Além disso,
o próprio narrador manifesta uma melancolia diante das experiências que relata, já
que é sob o seu discurso e seus comentários que o leitor tem acesso às situações
extremas vividas pelos personagens. A melancolia em Morangos mofados é
apreendida a partir do olhar do narrador e é expressa em mão dupla, já que
contempla não só a perspectiva dos personagens como também a do narrador, e
isso aparece de forma distinta em cada conto da obra.
Ao realizar uma leitura dos contos do livro, é impossível não reconhecer um
tom amargo e a desilusão que norteiam os personagens e que são intensificados
pelo trabalho do narrador. Embora possa haver uma certa esperança quanto à
possibilidade de dias melhores, os personagens de Caio Fernando Abreu têm
consciência de que uma transformação social com reconfiguração de valores,
crenças e ideologias é algo difícil de acontecer. Essa consciência da precariedade
da vida, aliada à idéia de que certos ideais de vida perderam-se diante de um
sistema social determinado, num sentido geral, também assinala a melancolia em
Morangos mofados, e, por isso, as proposições de Walter Benjamin, Sigmund Freud
e Julia Kristeva quanto à melancolia, já abordadas, podem ser articuladas aos
contos da coletânea. Para o filósofo alemão, a melancolia aponta para a
impossibilidade de se encontrar uma saída e, para os outros dois teóricos, refere-se
a experiências de perda. Considerando tais formulações teóricas, uma análise de
contos da antologia mostra que as narrativas de Caio Fernando Abreu expressam
situações indicativas de uma condição melancólica, uma vez que as experiências
representadas são frustradas, desprovidas de realização plena e marcadas por
constantes experiências de crise, dor, desolamento, solidão e desejo de morte, entre
outras. Nessa perspectiva, além de constituírem narrativas de significação literária
expressiva, os contos selecionados para este estudo, cuja abordagem é
desenvolvida a seguir, comprovam uma tendência da literatura de Caio Fernando
Abreu à melancolia.
90
3.2. A experiência de perda em “Os sobreviventes”
O conto “Os sobreviventes”, incluído no segmento “O mofo”, pode ser
considerado exemplar da perspectiva formal e temática predominante na obra
Morangos mofados. O texto conjuga uma experimentação formal ímpar na produção
literária de Caio Fernando Abreu não só porque rompe com a estrutura clássica da
narrativa, mas também porque inviabiliza a construção de um sentido definitivo para
a trama. Nesse conto, o narrador convencional desaparece, os personagens são
estranhos, o espaço é irreconhecível ou ausente e o tempo é flutuante. Esses traços
caracterizam a “disrupção” da arte moderna, que, conforme Theodor Adorno,
suspende a “lógica” tradicional e passa a conceber a representação a partir da
“lógica da experiência”.
O texto tematiza a repressão social e moral imposta no regime ditatorial
brasileiro
77
a militantes de esquerda. Os personagens da narrativa representam
vozes que foram sufocadas em meio ao aparato opressor do sistema governamental
da época. É importante destacar que a temática da narrativa não é desenvolvida
explicitamente (e isso é um dos traços que tem definido os contos da antologia), pois
as alusões ao contexto ditatorial e as referências a crise dos personagens aparecem
em imagens fragmentadas, que precisam ser acomodadas pelo leitor para formação
de um sentido.
A narrativa é densa, embora curto, e a interação do leitor com o conto é
fundamental porque o texto exige maior esforço diante da complexidade da estrutura
narrativa. Essas peculiaridades de “Os sobreviventes”, segundo Isabella Marcatti,
são próprias das historietas do autor:
Encontramos, em seus textos, uma economia lingüística que equaciona
desperdício discursivo e concisão narrativa. Por um lado, as personagens de Caio
falam demais. Protagonistas de crises existenciais, elas são, muitas vezes,
verdadeiros porta-vozes das bandeiras políticas e individuais de seu tempo. Por
outro lado, as passagens, na narrativa, são velozes: saltam de um momento a outro
sem deixar rastros das mediações do pensamento. Essa operação literária resulta
77
O regime ditatorial brasileiro foi instaurado em 1964 e estendeu-se até 1985. Durante esse período,
os governos montaram intenso aparelho repressivo e violento para “manter a ordem”, silenciar vozes
e movimentos contrários ao sistema. A sociedade civil, no início dos anos 1980, organizou-se para
propor a abertura ao processo democrático, que só foi iniciado em 1982 no governo do General
Ernesto Geisel, que investiu na minimização da censura e na revogação de Atos Institucionais.
Consultar PAES, Maria Helena Simões. A década de 60 – Rebeldia contestação e repressão política.
São Paulo: Ática, 1973; HABERT, Nadine. A década de 70 – Apogeu e crise na ditadura militar. São
Paulo: Ática, 1994.
91
na rapidez de estilo e no estímulo da memória do leitor como peça fundamental da
estratégia forjada pelo autor. O leitor vê-se obrigado assim a focalizar as questões
que estão em jogo para não perder o fio da história. (2000, p. 10)
Em “Os sobreviventes”, não há uma preocupação em apresentar os fatos
segundo uma ordem absoluta com aparente relação com a realidade sensível; os
fatos seguem uma outra ordem, a ordem da subjetividade e da lógica da consciência
dos personagens. Nesse conto, o narrador, que tradicionalmente se ocupava em
relatar as experiências psíquicas dos personagens e em transmitir seus
pensamentos, cede lugar à profusão de um discurso emitido por duas vozes que se
confundem em primeira e terceira pessoa e que se alternam constantemente. No
discurso dessas duas vozes, é possível apreender, após uma leitura atenta, que
uma voz predomina sobre a outra, tentando dar uma seqüência aos fatos, mas essa
tentativa não é promissora porque a outra voz impede qualquer possibilidade de um
encadeamento lógico ao discurso narrativo. Esse traço singulariza a posição
daquele que quer ordenar o discurso, pois o narrador não consegue se apresentar
com um discurso linear. Conforme já foi destacado no capítulo anterior, a
subjetividade, a suspensão da ordem causal e a alternância da posição do narrador
são, segundo Adorno, características dos romances contemporâneos e expressam
uma condição de escritura que não ignora as contradições sociais, mas que, ao
contrário, incorporam-nas justamente pela opção formal que transgride as leis
convencionais.
A narrativa inicia com um questionamento que deixa o leitor confuso, pois não
há indicação clara de quem é a voz que fala (narrador ou personagem ou narrador-
personagem) e nem do que se fala, há apenas a sugestão de que são duas vozes
em jogo, identificadas pelos pronomes “ela” e “eu”: “Sri Lanka, quem sabe? ela me
pergunta, morena e felina, e eu respondo por que não?” (Abreu, 1995, p. 17). Nesse
fragmento, o leitor pode reconhecer que há uma reprodução de fala indicada por um
narrador, que também participa das ações, sendo, portanto, narrador-personagem.
Na seqüência, é possível inferir que o assunto é uma carência afetiva que leva um
dos personagens a querer viajar para amenizar seu sofrimento e despertar o
interesse dos “outros”: “mas inabalável ela continua: você pode pelo menos mandar
cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar
em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te
importa?” (Abreu, 1995, p. 17).
92
Esses fragmentos que compõem o início do conto já permitem reconhecer
duas vozes: uma masculina e uma feminina, sendo que a primeira parece conduzir o
discurso, sinalizando a entrada da outra voz. As duas vozes são alternadas e
configuram um diálogo entre dois personagens, um homem e uma mulher que
desesperadamente relatam suas angústias e sofrimentos. As falas dos personagens
são marcadas pela subjetividade e pela declaração de uma crise emocional
resultante da sensação de fracasso diante das “ilusões perdidas”, pois, afinal, os
personagens são sobreviventes de uma geração que lutou contra o sistema político
e social e cuja resistência foi enfraquecendo com o tempo.
Ao longo de toda a narrativa os personagens sugerem uma descrença
perante a vida e o sistema social do qual fazem parte. A sensação de desapego à
vida e a falta de motivação para lutar de novo são especialmente enfatizadas pelo
personagem feminino, como é possível perceber no seguinte fragmento:
Quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui mesmo comparecendo a atos
públicos, pichando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de
monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, uma dia de
merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder
pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa
reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha de centro em
junco indiano que apóia nossos pés descalços ao fim de mais outra semana de
batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados.
(Abreu, 1995, p. 17)
A situação descrita revela que o personagem feminino não tem realização
plena nem vê possibilidades de reverter o caos em que vive, pois, afinal, es
enfrentando “mais outra semana” de situações desestimulantes, o que leva o leitor a
concluir que o “desprazer” é uma constante e não uma exceção. As expressões
grifadas são, nesse sentido, sintomáticas da condição do personagem na medida
em que elas estão carregadas de termos com valor negativo. As situações listadas
pela mulher sinalizam uma falta de perspectivas quanto ao futuro, e, ao longo do
conto, essa impressão passa a ser intensificada porque o homem e a mulher
passam a fazer um balanço de suas atuações e suas perdas diante da luta travada
para mudar o sistema social vigente: “Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim,
claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados,
tantos filmes vistos juntos, tantos pontos-de-vista sócio-políticos existenciais e
bababá em comum só podiam era dar mesmo nisso: cama.” (Abreu, 1995, p. 17-18).
Nesse trecho, chama a atenção a alternância da posição do narrador, pois ora é ele
93
que discursa, ora é a voz do personagem feminino que toma conta do diálogo. A
sensação é a de que o narrador é flexível no sentido de que se deixa “atropelar” pela
fala da mulher, que suprime a voz narrativa e intensifica o seu discurso,
interrompendo o relato narrativo a partir de “claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive
trepar (...) cama.”
A referência aos ideais sociais, políticos e existenciais e ao ato sexual
assinala que os personagens do conto compartilhavam experiências e faziam de
suas convicções um ponto-chave na luta para instauração de um processo anti-
autoritário. Mas, na seqüência narrativa, através da fala da mulher, o leitor percebe
que essas tentativas todas foram frustradas:
Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi que aconteceu, que foi meu deus
que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro e não queria
lembrar, mas não me saía da cabeça o teu pau murcho e os bicos dos meus seios
que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu
acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, e não sei se você acreditou. (Abreu,
1995, p.18).
O não-estabelecimento da relação sexual e a dificuldade de sentir prazer são
fatores que exemplificam o desconforto e o desajustamento enfrentado pelos
personagens. O conto sugere que o abalo emocional dos dois foi tão intenso que
bloqueou o impulso sexual. Além disso, a descrição da atitude da mulher - depois do
fracasso da tentativa sexual – em fumar um cigarro após outro demonstra que o
fracasso sexual a deixou ainda mais perturbada. A postura do personagem expressa
uma condição típica de sujeitos melancólicos no sentido de que estes, diante de
uma situação de pressão e frustração, têm seu comportamento alterado, passando a
manifestar seu desânimo de forma veemente. Os dois idealistas do conto podem ser
caracterizados como melancólicos porque suas falas e atitudes os aproximam dos
sujeitos que apresentam a condição melancólica. A melancolia como traço dos
personagens do conto também é reconhecida diante da alusão à experiência da
perda de condições psíquicas, ideológicas e físicas e se traduz na lamentação do
presente em relação ao passado, ao que eles se consideravam ser e ao que se
reconhecem ser no presente: “Eu quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não
pára, tanto tesão mental espiritual moral existencial e nenhum físico, eu não queria
aceitar que fosse isso: éramos diferentes, éramos melhores, éramos superiores,
éramos escolhidos, éramos mais, éramos vagamente sagrados, mas no final das
94
contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou.”
(Abreu, 1995, p. 18). A reiteração do verbo “ser” no passado torna mais enfática a
constatação do personagem feminino acerca da perda de uma condição que dava
caráter distintivo aos dois – a supremacia em relação aos outros – e acentua a
dificuldade de aceitação dessa perda.
Segundo Sigmund Freud, o melancólico reluta em aceitar que perdeu algo
caracterizado como um objeto de amor. Nesse sentido, a postura dos personagens
do conto indica o estado melancólico descrito pelo psicanalista, já que eles
demonstram resistir à idéia de que não têm mais as condições especiais que os
singularizavam no passado. Uma outra passagem do conto, em que a descrição da
carência afetiva da mulher é destacada e em que ela lamenta a sua aparência física
atual, ilustra a sensação de perda que atinge os personagens do conto:
Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos
frios, eu tive tanto amor um dia, ela pára e pede, preciso tanto tanto tanto, cara,
eles não me permitiram ser a coisa boa que eu era, eu então estendo o braço e ela
fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está
mesmo muito feia e meio puta e velha demais e completamente bêbada, eu não
tinha estas marcas em volta dos olhos, eu não tinha este jeito de sapatão cansado,
e eu repito que não, que nada, que ela está linda assim, desgrenhada e viva (grifos
da autora) (Abreu, 1995, p. 21).
Para Freud, essa dificuldade de aceitação da perda também leva ao
desinteresse pela vida, traço que também é observado nos personagens de “Os
sobreviventes”, especialmente quando eles desabafam suas angústias e sofrimentos
diante da impotência frente ao sistema social e da dificuldade de ter fé novamente.
As falas destacadas em itálico sinalizam o discurso do narrador-personagem, que é
interrompido pela voz do personagem feminino. No fragmento acima, fica nítida a
instabilidade do narrador no sentido de que ele não conduz o relato de forma
tradicional: ele simplesmente permite que o discurso do personagem seja
atravessado ao seu, sem anunciar claramente a mudança de voz ao leitor. A forma
como está conduzida a narração assemelha-se à da posição da câmera descrita por
Adorno. O narrador de “Os sobreviventes” é instável e perturba o leitor ao dificultar a
identificação de vozes e também ao abolir os princípios da lógica convencional de
narração segundo a qual os fatos são apresentados ao leitor de acordo com os
princípios de início, meio e fim e de disposição linear das falas.
95
A descrição da mulher quanto à sua forma de enfrentar uma crise depressiva
sinaliza que ela não vê razões consistentes para viver nem perspectivas promissoras
na vida:
não, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, nothing special,
baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que
não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe, meu bem, depois que você sair
tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto, gin-seng e lexotan, depois
deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a banchá e arroz integral,
absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro
porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o cvv às quatro
da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas do
tipo preciso-tanto-uma-razão-para-viver-e-sei-que-essa-razão–só-está-dentro-de
mim-bababá-bababá e me lamurio até o sol pintar atrás daqueles edifícios sinistros
(Abreu, 1995, p. 21).
Na fala do personagem feminino, está clara uma sensação de que a mulher
não consegue controlar suas angústias, recorrendo a diversas drogas para tentar
amenizá-las e sugerindo a idéia de suicídio (bater o carro propositadamente) e a
falta de razões para viver. Chama atenção nesse fragmento a maneira como es
representado o “clímax” do discurso do personagem: a separação das palavras com
hífen no final do fragmento dá maior intensidade e dramaticidade à fala da mulher e
à sua constatação de que não tem motivos para viver. Esse recurso gráfico é
bastante significativo na construção do conto porque através dele a forma literária
incorpora ou representa o conflito vivenciado pelo personagem. De acordo com
Adorno, a grande obra de arte é capaz de representar os conflitos sociais e
humanos esteticamente, articulando o interno (forma literária) ao externo (conteúdo).
No conto de Caio Fernando Abreu, a problematização estética se apresenta não só
pela instabilidade do narrador, já comentada, mas também pela forma de
representação dos conflitos, como está sublinhado no fragmento acima. Além disso,
é preciso assinalar que a perspectiva melancólica que está subjacente à condição
psíquica dos personagens é outro fator que condiciona a tensão interna da obra.
Considerando, conforme Julia Kristeva, que a melancolia é resultante de uma
“existência desvitalizada”, ou seja, de uma condição de vida desfavorável e propícia
ao “humor negro”, é possível identificar no conto a melancolia que atinge os
personagens e que é sugerida através da representação do sofrimento deles. A
frustração marca as ações dos personagens, e a representação dessa condição
também é incorporada ao discurso narrativo. Os discursos dos personagens
parecem emergir diretamente da consciência, num fluxo contínuo que oscila entre
96
convicções e idéias, fala e pensamento, e que se assemelha ao discurso
melancólico caracterizado por Kristeva segundo o qual a ordenação e a coerência
da fala mostram-se ausentes. O fragmento a seguir é exemplar nesse sentido:
você vai curtir os seus nativos em Sri Lanka depois me manda um cartão-postal
contando qualquer coisa como ontem à noite, na beira do rio, deve haver uma porra
de rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio,
sem planejar nada, de repente, sabe, por acaso, encontrei um rapaz de tez
azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de
dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste
planeta podre e pobre, dentro de mim? (grifos da autora) (Abreu, 1995, p. 19-20)
A referência ao mundo imperfeito nesse fragmento é significativa da tendência
melancólica de Caio Fernando Abreu, a qual é sinalizada especialmente por uma
insatisfação dos sujeitos com a sua própria vida e com o “mundo” do qual fazem
parte. A fala do personagem no excerto acima mostra-se fragmentada e desprovida
de uma ordem lógica. O discurso expressa uma dificuldade de o sujeito comunicar
sua experiência, sendo a interrupção abrupta e a inconclusão de uma idéia
“sintomas” dessa dificuldade de expressão. Nessa perspectiva, a elaboração do
discurso do personagem e o seu sentimento de insatisfação indicam uma condição
melancólica. Para Kristeva, a melancolia conduz a uma dificuldade de comunicação
do sofrimento, e, na literatura, a melancolia e a forma narrativa passam a ser
associadas, havendo a necessidade de a forma narrativa interiorizar a dor através de
estratégias artísticas que apontam a condição melancólica. No conto “Os
sobreviventes”, a fragmentação do discurso dos personagens, a alternância e a
transgressão da postura do narrador evidenciam uma relação estreita entre forma
literária e conteúdo social, entre fragmentação formal e melancolia, conduzindo à
idéia proposta por Kristeva de que a representação artística, através de recursos
estéticos, incorpora o teor melancólico ao próprio texto.
De acordo com a psicanalista, os tempos de crise são particularmente
propícios para o desenvolvimento da melancolia no sentido de que o sujeito
envolvido em situações extremas tem mais chances de mostrar-se melancólico.
Como os personagens de “Os sobreviventes” enfrentam um tempo sombrio, têm
consciência da precariedade da condição humana em períodos autoritários e
lamentam terem perdido a fé que os movia no passado, a melancolia passa a
caracterizá-los, e a maneira de representar esse estado melancólico é
97
especialmente trabalhada pela figura do narrador. A forma de representação da fala
e do pensamento dos personagens no conto de Caio Fernando Abreu implica a
limitação do trabalho de um narrador que, tradicionalmente, ocupava-se em relatar
as experiências psíquicas dos personagens e em transmitir seus pensamentos. No
texto em estudo, esse narrador tradicional não tem espaço; os personagens
encarregam-se de desenrolar a “trama”, através de seus diálogos ininterruptos e
divagações subjetivas. De acordo com reflexões de Anatol Rosenfeld baseadas nas
proposições teóricas adornianas, a tentativa de reproduzir esse fluxo da consciência
condiciona o desaparecimento ou a omissão do intermediário, isto é, do narrador
78
:
A tentativa de reproduzir este fluxo da consciência – com sua fusão dos níveis
temporais – leva à radicalização extrema do monólogo interior. Desaparece ou se
omite o intermediário, isto é, o narrador, que nos apresenta a personagem no
distanciamento gramatical do pronome ‘ele’ e da voz do pretérito. (1996, p. 83-84).
A eliminação do narrador clássico confere ao texto uma outra particularidade.
A seqüência lógica perde-se em meio aos relatos e diálogos dos personagens, o
princípio de causa e efeito e o encadeamento de início, meio e fim tomam outros
contornos, e a estrutura do conto revela-se fragmentária e transgressora. Theodor
Adorno assinala que o relato moderno segue o fluxo da consciência e que as
fraturas diante das convenções estéticas são constantes, o que permite o
reconhecimento de “Os sobreviventes” como uma narrativa que apresenta em sua
estrutura formal esse rompimento e essa forma moderna de relatar. As declarações
e as falas dos personagens são sinal dessa fragmentação e dessa transgressão,
uma vez que não há uma ligação lógica de ordenação das idéias e os assuntos são
misturados numa espécie de caos. Exemplar nesse sentido é o discurso do
personagem feminino, que deixa proliferar uma série de idéias sem organizá-las:
não é plágio do Pessoa, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de
Buda, uma mãe de Oxum, outra de Jesuzinho, um poster de Freud, às vezes
acendo velas, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso
nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri
Lanka depois você me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como
ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio por lá. (Abreu, 1995, p. 18)
78
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: __. Texto/contexto I. São Paulo:
Perspectiva, 1996.
98
Para Rosenfeldt, o desaparecimento do narrador também determina um
alargamento da lei de causalidade:
Ao desaparecer o intermediário, substituído pela presença do fluxo psíquico,
desaparece também a ordem lógica da oração e a coerência da estrutura que o
narrador clássico imprimia à seqüência dos acontecimentos. Com isso esgarça-se,
além das formas de tempo e espaço, mais uma categoria fundamental da realidade
empírica e do senso comum: a da causalidade (lei de causa e efeito), base do
enredo tradicional, com seu encadeamento lógico de motivos e situações, com
início, meio e fim. (1996, p. 84)
A ausência de uma explicação sobre os motivos que desencadearam a crise
dos personagens também contribui para essa descontinuidade dos elementos de
causa e efeito. A perda de uma seqüência lógica dos fatos narrados é intensificada
na narrativa através da suspensão do padrão lingüístico de escrita e da supressão
de parágrafos. Em “Os sobreviventes”, são abolidas vírgulas, algumas frases são
terminadas de modo a deixar incompleta uma idéia e o texto é apresentado em um
único bloco. No entanto, essas rupturas com o modo clássico da narrativa não
implicam a perda da lei de causa e efeito, pois esta se mostra de outra forma,
intencionalmente desorganizada e desprovida, aparentemente, de coerência.
O conto de Caio Fernando Abreu possui uma particularidade no que diz
respeito ao foco narrativo. Além da instabilidade na posição do narrador no sentido
de que o diálogo entre os personagens é conduzido por uma voz que em alguns
momentos cede a palavra a uma outra voz: é voz de um “eu” e de um “você” que
estabelecem um diálogo desenfreado, há também a introdução da voz de uns
“outros”, cuja fala aparece nos próprios discursos dos personagens. O foco narrativo
assim constituído direciona-nos a observar três posicionamentos (o do narrador-
personagem masculino, o do feminino e o dos outros) que, na verdade, são
entrecruzados para causar um maior efeito estético. Essa alternância na posição de
quem narra a história é vista por Adorno como uma característica do romance
moderno, como já foi comentado anteriormente.
Logo no início do conto é encontrado um exemplo desse cruzamento de
vozes. Os objetivos não concretizados durante a luta contra a Ditadura e a sensação
de fracasso ao fim de mais uma batalha são fatores que levam os personagens do
conto a uma crise emocional e a uma necessidade de estabelecer relações afetivas
consistentes e de afirmação na sociedade. Os diálogos dos personagens confirmam
tal constatação, sendo que em uma das conversas o discurso dos personagens é
99
atravessado pelo discurso do outro, justamente para enfatizar a crise que atinge os
sujeitos:
Sri Lanka? Quem sabe? Ela me pergunta, morena e felina, e eu respondo por que
não? Mas inabalável ela continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais
de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka,
que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa? uma
certa saudade: em Sri Lanka, bancando o Rimbaud, que nem foi tão longe, para
que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose
suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras & abacaxis. (grifos
da autora) (Abreu, 1995, p. 15).
A voz do personagem masculino que começa o relato é cortada pela pelo
discurso da companheira, que, por sua vez, insere a voz de um outro (a das
pessoas). A voz da mulher aponta a crise existencial de militantes fracassados que
vêem numa viagem uma alternativa para amenizar seus conflitos e mostrar aos
outros o quão especiais eles são e como devem ser reconhecidos pela sociedade
como um todo. O discurso dos outros, parecendo ser quase uma extensão da
consciência dos protagonistas, reitera a idéia de que os personagens devam ser
valorizados. É interessante notar que a introdução do discurso do outro no do
personagem não é anunciada de uma forma direta com o uso de aspas, como se
esperaria num texto convencional, mas também não está totalmente disssimulada. O
discurso do outro é introduzido no do personagem numa linguagem estranha a
deste, ou melhor, há marcas lingüísticas (estilo e forma adquirem um outro tom) que
apontam a presença da “língua de outrem”. Além disso, o discurso do personagem
é organizado de maneira a permitir a introdução de uma outra fala, que tem estrutura
e característica próprias; a sintaxe do período em que a voz do outro é introjetada na
fala do personagem é marcada por verbos (pensar e lamentar) que exigem um
complemento, no caso, o discurso do outro, o qual passa a fazer parte do contexto
narrativo
79
.
No conto, em alguns momentos é impossível identificar de quem é a voz que
fala. A estrutura do discurso não permite tal constatação. Embora essa tentativa de
definição de gênero seja secundária para a construção do sentido do texto, a
79
Nas palavras de Mikhail Bakhtin
79
, “a enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição
uma outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la
parcialmente, para associá-la à sua própria unidade sintática, estilística e composicional, embora
conservando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia primitiva do discurso de outrem,
sem o que ele não poderia ser completamente apreendido”. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia
da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 144.
100
observação a esse traço é pertinente porque assinala que a experiência é
compartilhada por eles e é bastante valiosa em termos estéticos. Nesses casos de
indefinição de voz, o enunciado pode pertencer a um ou outro personagem, tendo
assim sentidos e perspectivas diferentes.
Em “Os sobreviventes”, a sobreposição de vozes é uma estratégia que
ressalta o interesse dos personagens em marcar uma visão pessimista sobre as
relações sociais e humanas ou o seu desencanto com a vida e enfatiza que a crise
quase (in)suportável que os atinge é reflexo do “desgaste das utopias e das ilusões
perdidas”, para usar a expressão de Fernando Arenas
80
. Esse desencanto dos
personagens torna-se mais enfático quando a mulher declara que a subjetividade foi
tão atingida pelas experiências de repressão que a crise emocional instaurou-se:
ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei
mais de cinqüenta ácidos, fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você
me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei,
Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhava entupida de mandrix e babava soluçando
perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário
& positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage,
companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu
potencial criativo, tua lucidez libertária e bababá bababá. As pessoas se
transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e
suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei,
voltei a isso que dizem que é o normal, e cadê a causa, meu, cadê a luta, cadê o
po-ten-ci-al criativo? (Abreu, 1995, p. 20)
A descrição da crise enfrentada pelo personagem feminino, além de enfatizar
o aspecto psicológico melancólico resultante da perda da causa social contrária ao
regime autoritário (nesse sentido são significativas as alusões a um “roubo” de
esperança, à idéia de liberdade e de companheirismo tipicamente defendidas pelos
militantes do período ditatorial), aponta para a desestruturação do sujeito diante de
situações de opressão e repressão. Pelo relato que faz, a mulher sugere que a
imposição da repressão a levou para uma crise profunda de valores e auto-estima,
sendo o tratamento psiquiátrico um caminho para sua recuperação. A metáfora das
noites que não terminam nunca e da pele triste são, nessa perspectiva, ilustrativas
da tendência à melancolia verificada na posição do personagem. A pergunta, ao final
do fragmento (“cadê a causa, meu, cadê a luta, cadê o po-ten-ci-al criativo?”) ainda
alude à idéia de que não há mais causa nem luta no sentido de que não há futuro
80
ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu.
Brasil/ Brazil. Ano 5, Nº 8, 1992.
101
promissor. O tom da questão, aliado à descrição anterior, está carregado de valor
negativo e evidencia uma melancolia profunda em virtude de o personagem ter
perdido a fé e os sonhos.
Ao longo do texto, o leitor pode perceber que os personagens são sujeitos
frustrados em relação à vida, já que é expressa uma visão pessimista acerca das
experiências ou situações relatadas. A perspectiva sombria do personagem feminino
diante de sua rotina calcada em ações pouco satisfatórias e de sua frustração com
a luta social é reiterada constantemente no conto e, em certo sentido, é mais intensa
do que a perspectiva do personagem masculino, que ainda manifesta ter alguma
esperança. Essa constatação é identificada no seguinte excerto em que o homem
começa a falar, mas é atropelado pela mulher, que sintetiza a diferença entre os dois
quanto às expectativas diante da situação vivenciada por eles:
Mas, eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração,
caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que
pode escapar, e eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha
garganta seca que só umedece com vodca, me passa o cigarro (Abreu, 1995, p.
20).
Nessa passagem, a alusão à repressão é elaborada de forma indireta e é
apreendida especialmente porque se refere à imposição do silêncio e à censura à
liberdade de expressão, como sugere a construção “ferro enfiado fundo na minha
garganta”. Mais uma vez o personagem feminino expõe sua angústia e sua dor,
indicando ao leitor que tais sentimentos são também sintomas da melancolia. A
angústia do personagem, aliás, é enfatizada em outro fragmento do texto. Através
do discurso do personagem feminino que atravessa o do narrador-personagem
masculino, a problematização da experiência de violência e da impossibilidade de
superação da crise atinge um ponto de intensa dramaticidade:
Eu peço um cigarro e ela me atira o maço na cara como quem joga um tijolo, ando
angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, a velha angst, saco, mas
ando, ando, mais de duas décadas de convívio cotidiano, tenho uma coisa
apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso (Abreu, 1995, p. 21)
Sentir-se sufocado e angustiado e manifestar um “mal-estar” em relação à
própria vida são características da condição melancólica dos sujeitos de acordo com
Kristeva e Freud. Nesse sentido, a postura dos personagens de conto evidencia uma
102
tendência à melancolia, especialmente porque eles vivenciam uma experiência de
perda de um “objeto de amor”, que se apresenta como algo idealizado nos sonhos e
nos projetos de transformação social. Os sonhos foram perdidos, os projetos não se
realizaram, a frustração e a angústia tornaram-se constantes. A perda dessas
causas sociais e políticas é o fator que desencadeia a crise existencial dos
personagens e, conseqüentemente, o sentimento melancólico que os envolve.
A falência dos sonhos e o desajustamento social dos personagens do conto
no sentido de que eles não se “encaixam” no padrão de comportamento estipulado
para o período ditatorial sinalizam que a experiência de perda e a transgressão
estão alinhadas. A transgressão leva à repressão, e a repressão conduz à
melancolia. É importante destacar que a idéia de transgressão é incorporada à
estética do conto. Como falar de horror sem chocar? Como representar uma
realidade bruta com um discurso linear que supõe a idéia de harmonia das
experiências sociais? A transgressão característica da forma narrativa do texto
manifesta-se, como já foi abordado, na eliminação do narrador clássico e do
encadeamento lógico, mas também aparece na sua estrutura formal e linguagem. O
texto é constituído em um só parágrafo, o que contraria a visão tradicional de texto
organizado e segmentado com certa coerência. Há efeitos lingüísticos, como o uso
de hífens separando sílabas de uma palavra e alongamento de uma sílaba sonora
pela repetição de letra (claaaaaaaro), e mescla vocábulos cultos e vulgares. Esses
recursos dão o tom do texto, colaboram para um efeito de estranhamento numa
leitura inicial, o qual, aos poucos, vai sendo reconhecido como estratégia narrativa.
Esta está em consonância com a perspectiva dos personagens do conto no sentido
de que elas alertam para a existência de uma experiência de choque e de perda e
para a angústia que assola os sujeitos.
O ato de transgressão também se mostra na atitude dos personagens
(cuspido e vômito, nojo e náusea), na opção sexual
81
, nas suas leituras, nas músicas
que ouvem. É extremamente interessante a relação dos personagens com os
autores que citam: Marx, Marcuse, Reich, Castañeda, Laing. Marx critica o
capitalismo, o valor de uso e de troca instaurado em sociedades capitalistas,
81
O sentido de transgressão aqui provém de uma ruptura com os padrões morais e sociais
legitimados pela sociedade conservadora e patriarcal. A opção sexual é um forte elemento de
transgressão, porque, conforme os estudos de David William Foster, a única prática sexual aceita em
sociedades como a nossa (patriarcal e conservadora) é a heterossexual. Ver FOSTER, David William.
Producción cultural e identidades homoeróticas – teoría y aplicaciones. San José: Editorial
Universidade Costa Rica, 2000.
103
opondo-se a uma ideologia dominante que perpetua as regras do mercado. Marcuse
é um dos membros da Escola de Frankfurt, tem estudos na área da psicanálise e
seu pensamento engloba a defesa de transformações revolucionárias tanto nas
instituições sociais como nas atitudes do homem (inclusive na questão da
sexualidade), o qual deve se livrar de convenções que o controlam. Reich é também
da área da psicanálise, acredita que o orgasmo tem papel político e defende a idéia
de que a revolução social só é possível através da revolução sexual. Castañeda está
ligado ao universo das drogas e defende a libertação do pensamento tradicional,
propondo interpretações alternativas do mundo. Laing faz parte da chamada
Literatura Alternativa. Todos estes autores citados possuem uma visão contrária a
um pensamento dominante, são posições que buscam transgredir “leis”
estabelecidas seja no plano econômico ou político, seja no sexual e social.
Além disso, a alusão à canção de Ângela Rô-Rô merece ser destacada. A
referência à cantora (Para ler ao som de Ângela Rô-Rô, como indica o subtítulo do
conto) e à sua música “Amor, meu grande amor” enfatizam a carência afetiva que
assola os personagens do conto, principalmente a mulher. A canção de Ângela Rô-
Rô é introduzida na própria fala dos personagens num momento em que a carência
deles é sublinhada. O homem e a mulher, em busca de uma nova “fé” que os
devolva o espírito de luta e resistência do passado, vêem na canção a ser executada
enquanto eles desabafam suas angústias uma tentativa de esperança de um amor,
ou seja, de uma vida com mais afeto e com motivos que façam a vida valer a pena:
ela pede que eu coloque uma música e escolho ao acaso o Noturno número dois
em mi bemol de Chopin, mas ela se contrai violenta e pede que eu ponha Ângela
outra vez, e eu viro o disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o
banheiro onde sustento sua cabeça para que vomite (Abreu, 1995, p. 21).
A referência à canção de Ângela Rô-Rô ocorre justamente quando a mulher
está frustrada não só com sua aparência física, mas também com sua solidão.
Considerando que a cantora é polêmica e tem várias canções cujas letras
apresentam uma percepção incomum sobre a sexualidade e, como diz Isabella
Marcatti, é uma “ex-roqueira, bluseira underground, [que] poderia ser uma
personagem típica de ‘Os sobreviventes’”
82
, é possível chegar à conclusão de que a
82
MARCATTI, Isabella. Cotidiano e canção em Caio Fernando Abreu. Dissertação (Programa de Pós-
Graduação em Letras) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. p. 94.
.
104
alusão à musica de Ângela Rô-Rô configura-se como uma estratégia narrativa que
busca dar maior intensidade e dramaticidade à experiência dos personagens.
O caráter subversivo dos escritores e da cantora citados é um elemento que
fortalece a perspectiva da transgressão do conto, uma vez que tais referências
apontam para uma “visão de esquerda” e para uma possibilidade de resistência a
postura e pensamento conservadores. Além disso, a forma como os personagens se
relacionam com tais obras já indica uma posição de liberdade e repulsa à repressão.
Como o conto “Os sobreviventes” aborda a situação de sujeitos cuja liberdade foi
interrompida pelo sistema sócio-político ditatorial e cujos sonhos se tornaram
irrealizáveis diante do processo de repressão, o teor crítico da narrativa passa a ser
elaborado por uma construção narrativa que tem a suspensão da estrutura
tradicional, a alternância da posição do narrador e a estética do transgressão como
elementos fundadores da perspectiva social e também da criticidade do texto.
A tônica social e crítica do conto “Os sobreviventes” aparece na exploração
do conflito entre sociedade, representada pelos personagens do conto, e Estado,
cuja postura é abordada pelos próprios personagens em alusões à repressão
imposta pelo sistema ditatorial, e também na forma de elaboração estética dessa
luta social. A tentativa de representar o “mundo bruto” em que não há liberdade de
expressão nem possibilidade de realização pessoal e de apontar um sentimento
melancólico diante dessas experiências de violência social e de perda de sonhos e
projetos é a motivação para a forma fragmentada. Por isso, a adoção de um estilo
que foge do padrão clássico de narração e que se afasta de uma tela realista
tradicional em que o narrador relata os fatos seguindo uma ordem de causalidade
pautada nos princípios lineares de início, meio e fim. Assim constituído, o conto de
Caio Fernando Abreu caracteriza-se por apresentar um discurso que não privilegia
uma única leitura interpretativa, mas que, ao contrário, proporciona uma
sobreposição de imagens fragmentadas e um discurso também fragmentado para
que o leitor elabore a “montagem” da obra. Esse montagem, segundo Theodor
Adorno, além de impedir a totalização da experiência social, também singulariza a
literatura moderna, caracterizando-a como uma obra aberta. Essa noção de abertura
é especialmente verificável em “Os sobreviventes” visto este ser uma narrativa que
impossibilita a atribuição de uma leitura definitiva e fechada. O conto, por sua
estética fragmentada e pela abolição do princípio de logicidade, dificulta o trabalho
105
do leitor, que precisa refletir sobre o porquê da estética literária do conto e sua
relação com o “conteúdo” abordado.
O conto “Os sobreviventes” explora, através da elaboração dos discursos dos
personagens e da estrutura da narrativa, uma situação de desumanização e
opressão, sinalizando estratégias literárias que asseguram uma representação da
história como algo descontínuo e fragmentado. Essa perspectiva narrativa está em
consonância com as idéias de Benjamin quanto à escrita da história e com o
posicionamento de Adorno segundo o qual a forma literária deve incorporar as
tensões sociais, o que pode resultar numa dificuldade de expressão. As rupturas
com os modos tradicionais de composição verificadas no conto de Caio Fernando
Abreu representam impasses sociais e dirigem o leitor para a percepção da dor, da
violência e da vontade de resistência de dois militantes cuja força para contestação
política e social foi enfraquecendo com o tempo e especialmente com a imposição
vigorosa da repressão ditatorial.
A experiência frustrada dos personagens da narrativa é intensamente
explorada no conto e já sugerida no próprio o título do texto, pois sobreviver indica
resistir a uma situação de tensão. Os personagens do conto são sobreviventes de
uma elite intelectual consciente de seus “fracassos”. Nesse sentido, a voz da mulher
sublinha uma tentativa malograda de resistir, pois, como ela diz, “tem coisa mais
autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?” (Abreu, 1995, p. 21) O
reconhecimento da impotência em subverter a ordem vigente acentua o impacto da
experiência, que é traumática para os personagens, e indica uma visão pessimista
da vida social.
Dessa forma, a leitura da narrativa direciona a uma interpretação do conto: o
sujeito (expresso pelos personagens que fazem parte das histórias dos contos),
descentrado de um ambiente social “normal” (ou convencional?) e impossibilitado de
exercer sua liberdade individual e assumir ostensivamente suas posições, lamenta a
dificuldade de concretização dos ideais de resistência e liberdade. E essa
lamentação e insatisfação com a situação experimentada aponta para uma
perspectiva melancólica que é acentuada pela experiência de perda dos sonhos. O
texto marca a distância entre o mundo projetado pelos personagens e o mundo
experimentado por eles. O desencanto com a situação vigente é manifestado por
declarações dos próprios personagens, como é possível perceber na referência à
“cidade escura” e ao “planeta pobre e podre” em que habita o sujeito. Essas
106
expressões são sintomáticas da condição existencial dos personagens, e a ênfase
ao mundo das sombras indica um estado melancólico.
O sentimento melancólico que transparece no conto de Caio Fernando Abreu
advém das experiências de violência social enfrentadas num período marcado pelo
autoritarismo e pela repressão. É preciso assinalar, nesse sentido, que “Os
sobreviventes” não se propõe a fazer um relato objetivo da repressão nem a se
constituir como um documento histórico de um período marcado por perseguições
políticas, violência, tortura. No entanto, há alusões a formas de opressão do regime,
referências que são colocadas engenhosamente, sendo uma criação artística sobre
um evento. O tom do texto e a ênfase na crise vivenciada pelos personagens
revelam um modo singular de estabelecer relações entre arte e sociedade, entre
literatura e vida social. A referência ao processo ditatorial é feita indiretamente, há
uma elaboração literária que torna possível a identificação do tema e do contexto
sócio-político a que alude o texto. São expressões ligadas aos termos usados por
militantes da época, recursos lingüísticos e “relatos” de experiências os
procedimentos que direcionam à leitura do conto através do contexto e são também
eles que fazem da narrativa uma criação artística, literatura. Por ser arte e não
simplesmente documento, o exame das estratégias narrativas é importante, pois,
afinal, o sentido do texto só pode ser alcançado graças a uma análise que
contemple forma e conteúdo.
A observação à fragmentação formal, nessa linha de raciocínio, torna-se
necessária não só porque é o traço estético mais evidente na obra, mas também
porque sinaliza uma estreita relação com a perspectiva crítica do conto. A forma
fragmentada de “Os sobreviventes” expressa uma condição contrária à
contemplação e à passividade, indicando que o conteúdo social do conto recebe
uma problematização estética. A melancolia é um traço dos personagens do texto e
do seu teor social, e, conforme Kristeva, a representação dessa condição
melancólica nas artes precisa encontrar uma forma adequada a essa perspectiva.
No conto de Caio Fernando Abreu, a estratégia artística para a representação da
melancolia é a fragmentação formal visto ser esta uma opção que expressa não só o
discurso dos melancólicos, mas também a tensão social externa.
A experiência da perda de sonhos configura o teor melancólico de “Os
sobreviventes”, mas ela não é a única condição que assinala a melancolia em
Morangos mofados. Há a problematização da insatisfação do sujeito que condiciona
107
uma outra forma de exploração do sentimento melancólico no livro de Caio Fernando
Abreu.
3.3. A insatisfação do sujeito em “Pêra, uva ou maçã?”
Inserido na segunda parte de Morangos mofados, “Os morangos”, o conto
“Pêra, uva ou maçã?” é o texto do livro que ilustra com uma intensa subjetividade do
discurso do narrador uma crise emocional vivida por uma mulher identificada apenas
pelo pronome “ela”. Narrado em primeira pessoa por um sujeito que é também
personagem, o conto traz em sua estrutura e forma literária as características da arte
moderna apontadas por Walter Benjamin e Theodor Adorno. O narrador apresenta
um relato fragmentado e imagens estilhaçadas do personagem feminino, cuja
história passa a ser explorada através de “flashes” que sugerem uma dificuldade do
narrador em compreender a experiência vivida pelo personagem. Contrariando
expectativas iniciais de apresentação e caracterização de personagens, o narrador
abre o seu discurso descrevendo uma situação que só no decorrer da narrativa vai
ser esclarecida ao leitor:
Rói as unhas no momento em que abro a porta, a bolsa comprimida contra os
seios. Como sempre, penso, ao deixá-la passar, cabeça baixa, para sentar-se no
mesmo lugar, segundas e quintas, dezessete horas: como sempre. Fecho a porta,
caminho até a poltrona à sua frente, sento, cruzo as pernas, tendo antes o cuidado
de suspender as calças para que não se formem aquelas desagradáveis bolsas
nos joelhos. (Abreu, 1995, p. 102)
Nesse fragmento, ora a posição do narrador volta-se para a descrição da
situação do personagem feminino, ora pauta-se na sua própria situação. Ao leitor,
fica a incerteza, pois não é possível apreender o que o narrador está tentando falar.
É sobre o personagem ou sobre si mesmo? Essa mobilidade do narrador é vista por
Theodor Adorno como um recurso para despertar a reflexão do leitor e para marcar
a abertura da obra de arte no sentido da sua plurissignificação. No conto de Caio
Fernando Abreu, essa estratégia também se associa à perspectiva crítica do texto
no sentido de que essa alternância na posição do narrador expressa a inconstância
do próprio personagem cuja história vai aos poucos sendo reconhecida pelo leitor.
A seqüência narrativa do conto mantém essa alternância da “posição da
câmera” do narrador, mas já possibilita ao leitor a apreensão de mais um dado sobre
108
o personagem feminino, já que a mulher entra na sala para falar alguma coisa.
Associando a descrição anterior ao fragmento seguinte, já é possível obter duas
informações: 1) a mulher se encontra com o narrador duas vezes por semana
sempre no mesmo horário; 2) esses encontros servem para o estabelecimento de
conversas:
Espero um tempo. Ela não diz nada. Parece olhar fixamente as minhas meias. Tiro
devagar os cigarros do bolso esquerdo do paletó, apanho um com a ponta dos
dedos, sem tirar o maço do bolso, e fico batendo o filtro no braço da poltrona
enquanto procuro o isqueiro no bolso pequeno da calça. Antes de acendê-lo, penso
mais uma vez que não deveria usar esses isqueiros plásticos descartáveis. Alguém
me disse que não-são-degradáveis-e-que-eu-deveria-ter-uma-atitude-um-pouco-
mais-ecológica. Não consigo lembrar quem, quando, nem onde ou por quê. Rodo o
isqueiro maligno entre os dedos, depois acendo o cigarro. Então ela diz:
Desculpe, mas acho que você está com as meias trocadas. (Abreu, 1995, p. 102)
A postura do narrador é a de esperar que a mulher profira algumas palavras,
mas enquanto isso não acontece, ele se ocupa em expor algo sobre si, mesmo que
algumas dessas observações não sejam relevantes ou seguras. O próprio narrador
não tem certeza da origem de uma informação que ele apresenta. O movimento
instável do narrador assinala um certo desconforto, pois, afinal, ele está à espera do
posicionamento da mulher. Aos poucos, o leitor vai percebendo que o desconforto
do narrador e a sua instabilidade são sinais da própria experiência que ele
representa, já que a mulher de que ele fala é sua paciente e faz tratamento
psicológico em sua clínica.
As ações que o narrador realiza são, segundo ele, estratégias para acalmar
sua cliente e deixá-la à vontade para falar. O excerto a seguir indica que as
tentativas do narrador-psicólogo nem sempre alcançam êxito, pois a mulher
constantemente reluta em desabafar:
Geralmente um cigarro dura entre cinco e dez minutos. Como eu, para tranqüilizá-
la, tento gastar o máximo de tempo possível fazendo coisas como fechar a porta,
puxar as calças, pensar em isqueiros e ecologias, quase sempre ela fala somente
quando termino o primeiro cigarro. Quase sempre depois que pergunto, com
extremo cuidado, no que está pensando. Só então ela suspira, ergue os olhos, me
olha de frente. Desta vez, porém, não suspira ao falar nas meias. Penso em dizer
que acordei um pouco tarde demais, razoavelmente atrasado, e que. Mas prefiro
perguntar lento:
E isso te incomoda? (Abreu, 1995, p. 102-103)
O discurso do narrador no excerto acima prioriza a sobreposição de imagens
sobre as suas ações e sobre a postura da mulher que está na clínica tendo sua
109
consulta médica. As cenas são apresentadas de modo a sugerir que tanto o
narrador-personagem quanto o personagem feminino estão à espera de algo
significativo – uma conversa, um desabafo, uma afirmação – que está demorando a
acontecer. Na seqüência, o narrador continua a descrever o que faz quando aguarda
a fala da mulher, mas essa fala ainda não vem. Só mais adiante o narrador resolve
ajudar a paciente, perguntando algo para incitar um pronunciamento dela: “Quer
dizer que você não se importa nem um pouco com as minhas meias?” (Abreu, 1995,
p. 103). Com a insistência do psicólogo, a mulher resolve falar:
Ela suspira. Estica as pernas, cruza os braços impaciente:
Foi, foi. Mas o que eu quero mesmo dizer é que hoje não estou disposta a gastar.
Gastar não, passar. Não se sinta ofendido, não é isso. O que acontece é que. Eu
não estou disposta a passar. Eu, eu aposto nas ameixas. (Abreu, 1995, p. 103)
A voz da mulher manifesta uma certa indignação e/ou intolerância com a
postura do psicólogo no sentido de que ela não está interessada em desabafar ou
relatar suas angústias. O discurso dela também sinaliza uma dificuldade de aceitar
sua angústia, pois, ao negar-se a falar, o personagem está minimizando a
importância de sua condição psicológica e do trabalho do “orientador” emocional.
Além disso, a forma como a mulher se pronuncia aponta para a idéia de que há uma
dificuldade de elaboração verbal de suas próprias experiências. Nessa perspectiva,
a frase "O que acontece é que.” é elucidativa da dificuldade de expressão, visto que
a idéia está inconclusa. O que acontece afinal? O discurso do personagem impede a
obtenção de uma resposta a essa pergunta e fragmenta a seqüência narrativa. Há
que ser considerada ainda nesse fragmento a mudança de foco conteudístico.
Imediatamente após a mulher esboçar uma resposta para a questão do psicólogo,
aponta uma outra idéia que aparentemente não se relaciona ao assunto anterior,
deixando o leitor confuso e intrigado. Por que apostar em ameixas?
A fragmentação do discurso a partir desse momento narrativo passa a
caracterizar não só a postura do narrador, mas também a do personagem feminino,
tornando o conto ainda mais complexo. Além de não apontar uma razão para a sua
crise emocional, o personagem feminino não elabora com logicidade o seu discurso.
Esse traço do discurso da mulher pode ser comparado ao do discurso do sujeito
melancólico caracterizado por Kristeva. Para a psicanalista, a desorientação do
sujeito e a sua conseqüente dificuldade em compreender suas próprias crises
110
emocionais são fatores que conduzem à desestruturação do discurso. Considerando
que a fragmentação singulariza a fala do personagem feminino resta investigar o
porquê dessa falta de encadeamento discursivo.
Durante todo o texto, o narrador apresenta imagens que possibilitam
reconhecer no personagem feminino traços típicos de sujeitos melancólicos. O olhar
fixo da mulher, sua dificuldade de comunicação, seus constantes suspiros, sua
impaciência, sua tensão são elementos que caracterizam a crise do sujeito e que
permitem relacionar o estado emocional do personagem à condição melancólica
apontada por Freud e Kristeva. Para o primeiro, a melancolia acarreta no sujeito um
“mal-estar” e uma baixa auto-estima, que deixam a pessoa desanimada e
desinteressada pela vida, sendo a falta de motivação para falar um sintoma desse
desinteresse. Para Kristeva, o sujeito melancólico também se apresenta insatisfeito
com a sua vida, não aceita a perda de objetos queridos e demonstra dificuldade em
expressar sentimentos relacionados à perda. O personagem protagonista de Caio
Fernando Abreu em “Pêra, uva ou maçã?” apresenta todos esses traços, pois, além
de resistir à idéia de expor verbalmente suas angústias e de mostrar dificuldades em
elaborar um discurso coeso, objetivo e lógico sobre a sua experiência, expressa ser
um sujeito triste:
Ela acende outro cigarro. Do lado certo. E fala soltando a fumaça:
Sei lá, que eu ando. Muito triste. Uma merda, tudo isso. Mas não importa, não me
interrompa agora. Deixa eu falar. Tem uma coisa dentro de mim que continua
dormindo quando eu acordo, lá longe de mim. – Traga fundo. E solta a fumaça
quase sem respirar. – Foi então que vi aquelas ameixas e achei tão bonitas e tão
vermelhas que pedi um quilo e era minha última grana certo porque meus pais não
me dão nada e daí eu pensei assim se comprar ameixas vou ter que voltar a pé (...)
(Abreu, 1995, p. 105-106)
É significativo na fala do personagem a ausência de uma explicitação das
razões de sua tristeza. Pelo discurso da mulher não é possível identificar o porquê
de seu baixo-astral e de seu sofrimento em virtude de sua fala apenas enfatizar,
através de termos de valor negativo (triste, merda), que há algo que a incomoda. Na
tentativa de desabafo, o discurso desestrutura-se, a logicidade perde-se, e a mulher
introduz um novo assunto – a compra de ameixas. Essa interrupção abrupta do
desabafo sinaliza a crise emocional enfrentada pelo personagem e a sua condição
melancólica. Conforme Freud, o sujeito melancólico nem sempre tem consciência de
qual “objeto de amor” foi perdido, havendo a impossibilidade de nominá-lo e
111
descrevê-lo. A postura do personagem feminino sugere essa indefinição do objeto
perdido e dos motivos desencadeadores da crise no sentido de que em nenhum
momento do conto o leitor tem acesso a um dado que explique a tristeza e a
melancolia do personagem.
A melancolia, que até então era apenas sugerida pelo discurso do narrador e
do personagem, torna-se mais clara quando a mulher lamenta a perda de um tempo
passado em que brincadeiras e danças descontraíam-na. É especialmente a partir
dessa alusão a experiências sociais do passado que o sentimento melancólico do
personagem feminino evidencia-se. No momento em que o narrador percebe que
sua paciente está muito distraída, tenta “trazê-la de volta, firme” e pergunta “No que
é que você está pensando?” (Abreu, 1995, p. 107). A mulher ri, como nunca rira
antes, observa o narrador, e se pronuncia:
Numa brincadeira besta que a gente tinha quando eu era mais guria. Aquela
coisa de reunião dançante, cuba-libre, você sabe. – Tira o objeto de dentro da
bolsa, mas permanece com ele fechado dentro da mão. – Faz tanto tempo que eu
não bebo, tanto tempo que eu não danço. Tanto tempo, meu Deus, que não brinco.
Será que ainda existe reunião dançante? E cuba-libre, será que existe? E aquela
brincadeira, será que alguém ainda brinca? – Olha para mim. Imagino que o objeto
em suas mão deva ser uma caixa de fósforos. – Era meio sacana, mas uma
sacanagem boba, meio juvenil, era assim. Uma pessoa tapa os olhos de gente com
um lenço, depois aponta para outra pessoa e pergunta se você quer pêra, uva ou
maçã. Pêra é um aperto de mão. Uva, um abraço. Maçã é um beijo na boca. – Ri
de novo e me olha enviesada. – Só que a gente dá um jeitinho de falar com a
pessoa que pergunta e daí, quando ela aponta alguém que a gente tá a fim, dá um
puxão disfarçado no lenço. Então a gente pede: maçã. – Enquanto fala, percebo
que esfrega suavemente aquele objeto contra a blusa, sobre os seios. Sorri mais
ao dizer:
Foi a primeira vez que eu beijei de língua. (Abreu, 1995, p. 107)
Há observações a fazer sobre esse discurso do personagem feminino, que é
entrecruzado por comentários do narrador: 1) ao relatar sobre experiências do
passado, a mulher elabora um discurso linear; 2) as situações descritas pela mulher
apontam para uma experiência de realização e satisfação pessoal; 3) a brincadeira
relatada envolve ações que tocavam emocionalmente o personagem; 4) o
personagem feminino expressa uma certa nostalgia em relação ao passado; 5) a
brincadeira que envolve nomes de frutas apresenta-se como uma metáfora da
condição existencial do personagem no presente. Todos esses aspectos apontam
para uma caracterização singular do sujeito.
A experiência vivenciada pelo personagem no passado, quando a mulher “era
mais guria”, está elaborada de forma lógica por ter sido uma experiência de
112
realização plena. As brincadeiras e as danças são fatos que comprovam essa
constatação, intensificando a idéia de que no passado havia sentimentos de alegria
e descontração. Essas sensações, no entanto, não são percebidas no presente, e,
como indício da ausência de alegria, surge a lamentação do personagem feminino
diante do fato de não brincar mais e de não dançar mais. O discurso do personagem
nesse sentido está carregado de construções que enfatizam a perda dessas
experiências, como a reiteração da expressão “tanto” e as questões sobre a
continuidade da existência das atividades compartilhadas pelo personagem no
passado. Essas construções constituem-se como estratégias discursivas que se
propõem a mobilizar a atenção do leitor para a observação à condição emocional do
personagem.
Um outro elemento que deve ser considerado é a referência à brincadeira que
envolve a nominalização das frutas pêra, uva e maçã. De acordo com a descrição do
personagem, a escolha de cada fruta indicava uma determinada “ação”, sendo que
cada uma das ações apontava para o estabelecimento de alguma forma de contato
entre as pessoas – um abraço, um aperto de mão, um beijo. Ao indicar que essa
brincadeira era prazerosa e assinalava algum afeto entre as pessoas e que essa
atividade não faz mais parte de sua vida, a mulher está sugerindo ao leitor a perda
de uma experiência que era tida como positiva. Será esse o motivo de sua tristeza?
Por que a mulher não está satisfeita com sua vida?
A construção narrativa do conto não permite que o leitor tenha uma resposta
exata a essas perguntas, pois em nenhum momento o narrador ou o personagem
falam abertamente sobre as causas da desorientação da mulher. No entanto, seus
discursos apontam para um estado melancólico decorrente de alguma experiência
de perda de um “objeto de amor”, talvez nem identificado pelo próprio sujeito
melancólico. Aliás, como destaca Sigmund Freud, o melancólico nem sempre
consegue identificar o objeto amado e outrora perdido. Nesse sentido, o
personagem feminino de “Pêra, uva ou maçã?” aproxima-se dos sujeitos
melancólicos, já que lamenta a perda de algo importante no passado, mas não
expressa nem identifica essa perda.
Essa observação à lamentação da mulher ganha ênfase no comentário do
narrador quando a mulher finaliza a explicação sobre a brincadeira. Ele diz que a
mulher riu ao fechar o relato, e esse riso não é uma constante na postura do
personagem, como o narrador destacara no início da narrativa. O riso dela pode ser
113
entendido como um sinal de realização diante da participação na brincadeira do
passado. Esse riso, no entanto, é cortado logo após a mulher afirmar que, quando
pediu a “maçã”, foi a primeira vez que beijou de língua, ou seja, a primeira vez que
teve um contato pessoal marcante e satisfatório. Depois de rememorar uma
atividade prazerosa, o personagem feminino parece voltar ao tempo presente, e
essa “volta” já vem acompanhada de um sentimento de tristeza. O narrador então
diz:
Agora seus ombros estão um tanto baixos demais, quase curvos, côncavos. Os
olhos brilham menos, começam a ficar meio enevoados. Acho que vai chorar,
procuro com os olhos a caixa de lenços de papel. E que mais, penso em perguntar.
Então ela endireita o corpo:
Quanto tempo ainda falta? (Abreu, 1995, p. 107)
Os comentários do narrador são particularmente significativos para a
compreensão da postura do personagem, que, logo após falar do beijo, silencia,
entristece e parece querer chorar. A relação de traços descritos pelo narrador –
ombros baixos e curvos, olhos menos brilhantes e enevoados – induzem à idéia de
que o personagem feminino tem motivos para sentir-se triste, e a possibilidade do
choro e do silêncio ao final de seu relato sobre a brincadeira são indícios de um
desassossego. O passado do personagem é construído de forma objetiva, ao passo
que a experiência do presente é marcada pela subjetividade e pela dificuldade de
expressão, indicando que o personagem tem algum sentimento de perda, e as
observações do narrador quanto à postura do personagem enfatizam essa
perspectiva. O desconforto do personagem em falar sobre si e sobre suas
experiências é também marcado pela forma abrupta como a mulher encerrou seu
desabafo, pois, quando o narrador esperava continuidade da fala dela, a mulher
interrompe e pergunta sobre a proximidade do fim da consulta. O desolamento do
narrador passa a ser também do leitor, já que ambos manifestam expectativas de
“conhecer” mais o personagem.
Depois que o médico responde à pergunta de sua paciente e avisa que faltam
poucos minutos para o fim da consulta, o personagem continua a “desconversar” e,
nas palavras do narrador, “cantarola desafinada, com um entonação que me parece
irônica” (Abreu, 1995, p. 107) ao dizer “Faltam cinco minutos, já não existem mais
palavras” (Abreu, 1995, p. 107). Ao anunciar que não há mais o que falar, a mulher
está sugerindo que não está disposta a desabafar nem a ouvir alguma orientação, o
114
que reforça a tese de que a melancolia a acompanha, pois o sujeito melancólico
“fecha-se” para o outro e para o mundo, impedindo contatos interpessoais mais
intensos.
Antes de despedir-se do médico, a mulher esfrega um objeto sobre sua blusa
– uma ameixa – e diz:
Olha, antes de ir embora eu quero dizer a você que aposto nas ameixas. Foi isso
que me veio na cabeça depois que saí caminhando. E quando entrei aí no edifício,
de costas para o enterro, o tempo todo, sem olhar para trás, no elevador, na sala
de espera, quando entrei e sentei aqui, o tempo todo. – Os olhos brilham mais.
Nunca ela me olhou tanto tempo de frente, antes. – Eu quero, certo? Eu preciso
continuar apostando nas ameixas. Não sei se devo, também não sei se posso, se
é. Permitido? Sei lá, acho que também não sei o que é dever ou poder, mas agora
estou sabendo de um jeito muito claro o que é precisar, certo? E quando a gente
precisa, não importa que seja proibido. Querer? – Interrompe-se como se eu
tivesse feito uma pergunta. Mas eu não disse nada. – Querer a gente inventa.
(Abreu, 1995, p. 108)
O discurso do personagem nesse fragmento parece não ter lógica, porque
não há uma explicação sobre a motivação em apostar em ameixas nem sobre a
relação dessa aposta com situação vivida pelo personagem. Ao leitor, cabe a tarefa
de decifrar esse enigma e apontar um caminho para compreender a inserção dessa
fala no contexto da consulta médica da mulher. Considerando que a brincadeira cuja
nomeação de frutas era praticada pelo personagem no passado e que essa
experiência não existe mais em sua vida, é possível inferir que a aposta nas ameixas
seja uma maneira de o personagem tentar resgatar aquilo que foi perdido e que é
metaforizado na alusão à brincadeira “Pêra, uva ou maçã?”. A ameixa possui
conotação erótica e está associada ao prazer sexual
83
, sendo também um “apelido”
dado à genitália feminina na cultura americana; logo, pode ser comparada à
simbologia da maçã, que também carrega uma aura ligada ao prazer e ao amor. A
perda de uma experiência que proporcionava prazer e afeto é lamentada pelo
personagem, e, por isso, a necessidade de estabelecer com uma outra fruta (a
ameixa) a mesma relação reconhecida no passado quando se escolhia a maçã
como meio de ativar um contato afetivo com alguém. A aposta nas ameixas, nessa
linha de raciocínio, é mais um elemento que evidencia a carência e a insatisfação do
personagem com sua vida, mais um dado que aponta a sua melancolia.
83
Essa simbologia é apontada em CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
símbolos – mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 7. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1993.
115
Todos os traços levantados sobre a postura do personagem e o modo como o
narrador apresenta-os permitem relacionar a forma de narração à característica do
sujeito observado. A mulher que protagoniza a história do conto apresenta muitos
traços que possibilitam reconhecê-la como um sujeito melancólico, e a maneira
como o narrador sugere isso ao leitor é também significativa da representação da
melancolia na literatura no sentido de que a fragmentação da narrativa torna-se uma
estratégia para problematizar a própria condição do sujeito da história. Conforme
Kristeva, a elaboração de um discurso pautado na linearidade não seria
representativo da condição melancólica, sendo a fragmentação, portanto, um
recurso adequado à representação da melancolia.
Embora o conto não explicite claramente a melancolia do personagem
protagonista no sentido de que esse traço é sugerido pelos discursos do narrador e
do próprio personagem, a relação do título do texto com a descrição da brincadeira
de nome homônino apresenta-se como um fator que autoriza a interpretação da
postura do personagem como indício de uma melancolia que atinge o sujeito. Se
essa “brincadeira” não fosse relatada e se ela não estabelecesse nenhuma relação
com a crise vivida pelo personagem, não haveria motivo de referenciá-la no título do
conto. Como essas relações devem ser estabelecidas pelo leitor, esse pode ser um
caminho interpretativo para o conto, já que a abordagem da obra de Caio Fernando
Abreu sinaliza a possibilidade de se reconhecer a melancolia como elemento
recorrente nas narrativas de Morangos mofados.
No conto “Pêra, uva ou maçã?”, o sentimento melancólico é apreendido
graças a um conjunto de observações referentes à postura do personagem feminino.
A crise emocional que atinge a mulher é reconhecida ao longo de toda narrativa e
estabelece relação com a fragmentação narrativa, que, conforme pontuam Adorno e
Benjamin, pode ser indício de desestabilização social e histórica. Embora o texto não
explicite essas correlações, é possível desenvolver a tese de que a crise do
personagem feminino e sua melancolia articulam-se a um crise em sentido mais
amplo que pode ser compreendida como as fraturas do contexto contemporâneo.
Essa leitura ratifica-se especialmente se a construção formal e temática desse conto
for relacionada às constantes tendências temáticas da antologia, como
exemplificado na leitura de “Os sobreviventes”, “Terça-feira gorda”, “Os
companheiros”, textos que problematizam experiências de crise, dor e frustrações,
116
em geral, decorrentes das mazelas de uma sociedade pautada em valores morais
conservadores e violência social, física e moral.
Além da fragmentação da forma narrativa e da perspectiva social marcada por
experiências de perdas, como é verificável em “Pêra, uva ou maçã?”, outros contos
da antologia enfatizam um teor melancólico dos sujeitos. A perspectiva melancólica
é também explorada em contos cuja temática centra-se na repressão à sexualidade,
como é possível perceber na leitura do conto “Aqueles dois”.
3.3. Os extremos e o sentimento de culpa em “Aqueles Dois”
“Aqueles Dois”, última narrativa que compõe o segmento “Os morangos”, é
um conto de temática homossexual que problematiza a ação e o olhar da sociedade
diante de posturas que não seguem os valores estabelecidos pelo patriarcado no
que se refere à identidade sexual. O enredo da narrativa centra-se na história dos
personagens Raul e Saul, amigos e colegas de trabalho que, julgados como
homossexuais, são demitidos do emprego porque, segundo os funcionários e o
chefe da repartição, mantêm “relação anormal e ostensiva”. Fernando Arenas
84
, ao
propor uma leitura para o livro Morangos mofados, afirma que as vozes
homossexuais no livro “Se revelam às vezes de modo direto (...) e às vezes de modo
alegórico” (1992: 59). No caso de “Aqueles Dois”, não é possível falar em “vozes
homossexuais” porque a história é contada por um narrador em terceira pessoa que
não é personagem, mas é lícito reconhecer que a fala do narrador é apresentada de
modo alegórico, pois é na figura dele que o leitor toma conhecimento da história.
O narrador, num tom insinuante e muitas vezes ambíguo, ora estabelece os
fatos, ora deixa dúvidas quanto ao desenrolar da história e ao relacionamento de
Raul e Saul. O narrador do conto é o elemento central da estrutura narrativa, pois é
através dele que são colocados o suspense e as sutilezas da relação entre Saul e
Raul. Durante todo o conto, o narrador leva o leitor a mergulhar na história num
movimento de “vai e vem” que quebra expectativas quanto à definição do
envolvimento (amoroso e/ou sexual ou nenhum dos casos) entre os colegas de
trabalho. A fragmentação das cenas e a ambigüidade proposta pelo narrador são
84
ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu.
Brasil/Brazil. Ano 5, nº 8, 1992. p. 53-67.
117
traços que caracterizam a fragmentação formal da narrativa no sentido de que a
posição do narrador mostra-se flexível e inconstante, tornando o texto
plurissignificativo e propenso a leituras diversas, tal como postulam Theodor Adorno
e Walter Benjamin ao tratarem das narrativas modernas.
O conto é dividido em seis segmentos, o que já sugere uma fragmentação em
nível estrutural e uma independência das partes. Estas, aliás, não são colocadas em
ordem de linearidade dos fatos, dificultando a percepção do leitor quanto à
seqüência dos episódios que envolvem os protagonistas da história. Na primeira
parte do texto, o narrador insinua uma relação especial entre os dois personagens,
embora deixe isso em aberto até o final: “Num deserto de almas também desertas,
uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe?”
(Abreu, 1995, p. 133). A indagação no final do fragmento acentua ainda mais a
expectativa diante da situação, uma vez que a pergunta sugere uma possível
aproximação entre os personagens. As frases seguintes a esse trecho do conto, as
quais tratam da primeira vez que Raul e Saul se viram, são fundamentais para
instigar o leitor a pensar sobre as “afinidades” entre os personagens e a
possibilidade de haver um interesse mútuo entre eles desde o momento em que se
conheceram: “Não chegaram a usar palavras como especial, diferente ou qualquer
outra assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do
primeiro minuto. Acontece que não tinham preparo algum para dar nome às
emoções, nem mesmo para tentar entendê-las.” (Abreu, 1995, p. 133-134).
Ao relatar a forma como um personagem se apresentou ao outro, o narrador
sugere mais uma vez, de forma sutil, uma simpatia entre os dois protagonistas do
conto, que logo trataram de seus afazeres para não criar mal-entendidos a respeito
deles: “Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome?
sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a
gente, afinal nunca sabe onde está pisando.” (Abreu, 1995, p. 134) A frase grifada
apresenta uma indefinição da voz que fala, não se sabe se é o narrador que emite o
juízo ou se é um dos personagens que faz a declaração. A ambigüidade da
sentença quebra a monotonia da leitura e provoca uma situação de choque no leitor,
que deve refletir para saber quem está falando.
A frase em questão apresenta uma construção híbrida, pois em um único
enunciado podem se distinguir dois modos de falar, dois posicionamentos (o do
narrador ou o do personagem) conforme salienta a teoria de Mikhail Bakhtin. A
118
expressão “a gente” pode se referir tanto à fala do narrador como à do personagem,
cabendo ao leitor recuperar o contexto maior de leitura do conto para decidir de
quem é a voz. Como a leitura do conto propõe uma (re)visão dos princípios da
sociedade que reprime quem transgride as regras morais, é possível considerar que
a declaração é do próprio narrador, pois é através do discurso dele que o leitor pode
tomar uma posição de contestação destes valores e passar a “encarar” a sociedade
sem poder confiar nela (não se sabe onde se pisa).
Ainda na primeira parte do conto, o narrador redireciona as expectativas,
projetando novamente uma suposta identificação entre Raul e Saul que poderia
resultar num movimento amoroso. O fragmento a seguir é o trecho exemplar das
insinuações do narrador: “Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando
limitar-se a um cotidiano oi, tudo bem ou no máximo, às sextas, um cordial bom-fim-
de-semana-então. Mas desde o princípio alguma coisa – fados, astros, quem
saberá? – conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.” (Abreu, 1995,
p. 134).
A segunda parte do conto quebra a continuidade temática do segmento
anterior porque se constitui da apresentação dos personagens: o narrador relata a
origem e o porte físico de cada um deles, os seus gostos, os seus pertences, etc.
Assim estabelecidos os relatos, a narrativa vai se desenvolvendo de forma circular,
já que não há uma progressão semântica dos fatos narrados. A todo momento o
narrador desestabiliza expectativas, pois, quando o leitor espera uma definição da
situação dos personagens, depara-se com um novo assunto abordado, envolvendo-
se ainda mais na história.
Nos dois segmentos seguintes do conto, o narrador informa sobre a
aproximação de Raul e Saul no trabalho, as conversas que tinham, os programas
que faziam nos fins de semana, etc. Antes de se tornarem amigos, os personagens
falavam apenas sobre coisas banais como uma forma de manter contato com
colegas da repartição. Diz o narrador: “Cruzavam-se silenciosos, mas cordiais, junto
à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho,
depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando um pedia fogo ou um
cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas
nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti.” (Abreu, 1995, p. 136).
O fato que desencadeou a amizade entre os dois personagens foi o atraso de
Saul para um dia de trabalho. Ao questionar o motivo, Raul ficou sabendo que Saul
119
perdeu a hora porque ficou até tarde assistindo a um filme. Como Raul já havia visto
aquele filme, os dois “falaram sem parar sobre o filme” (Abreu, 1995, p. 136),
propiciando outros momentos de conversa nos próximos dias: “Outros filmes viriam
nos dias seguintes, e tão naturalmente como se alguma forma fosse inevitável,
também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperanças
e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma
tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito.” (grifos da autora)(Abreu, 1995, p.
137). Ironicamente, o nome do filme que deu início aos diálogos deles era “Infâmia”.
Raul e Saul podem ter sido vítimas de infâmia quando a sociedade os condenou por
terem cometido “desavergonhada aberração” (como será abordado mais adiante),
sem ao menos ter apresentado provas do ato de acordo com a postura tradicional e
preconceituosa da sociedade autoritária. As expressões grifadas são indício de que
os personagens tinham algo para falar e anunciar, mas que não o faziam;
guardavam o pensamento “Apertado no fundo do peito”. O “nó” a que alude o
narrador pode ser originário de alguma emoção reprimida, de algo que os
personagens não tinham coragem de declarar, o que acentua ainda mais o tom
misterioso dos relatos.
Se o fragmento comentado for articulado com um outro seguinte, é possível
chegar à idéia de que as “queixas” e o “nó” se referem à vida pacata que os
personagens levavam e aos seus romances fracassados, comentados nas
conversas que tinham: “E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de
todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências
mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias
vidas. Embora, isso disseram, não soubessem o que fazer com elas.” (Abreu, 1995,
p. 137). A partir dessas conversas, Raul e Saul passaram a se encontrar mais vezes
e, quando um não aparecia para trabalhar, o outro ficava desolado, sem um
companheiro para trocar idéias. Devido a uma ressaca, certo dia Saul não foi à
repartição e “Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente
desertos, gelados, cantando baixinho ‘Tu me acostumbraste’, entre inúmeros cafés e
meio maço de cigarros a mais que o habitual.” (Abreu, 1995, p. 137). A postura de
Raul evidencia que ele, sem o seu amigo, ficava totalmente isolado, como se
estivesse num deserto. Essa imagem do ambiente de trabalho como deserto e
gelado indica que os colegas da repartição onde Raul e Saul trabalhavam não eram
120
receptivos nem calorosos com os dois. Por isso, a ausência de um deles era motivo
para solidão e desapontamento.
Outra passagem do conto também comprova essa sensação de solidão que
eles sentiam quando ficavam sem companhia para conversar. O fragmento a seguir
refere-se à ausência de Raul durante uma semana devido à morte de sua mãe:
“Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que
não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. À
noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou
desenhando olhos cada vez mais enormes, acariciava Carlos Gardel. Bebeu
bastante nesta semana.” (Abreu, 1995, p. 139).
Aos poucos, o narrador vai relatando que o entendimento entre Raul e Saul
se tornava cada vez maior e que eles começaram a se ver também nos finais de
semana, quando “Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, jogavam cartas,
falavam o tempo todo” (Abreu, 1995, p. 139) e cantavam e ouviam discos:
quem cantou foi Raul: ‘Perfídia’, ‘La Barca’, ‘Contigo em la distancia’ e, a pedido de
Saul, outra vez, ‘Tu me acostumbraste’. Saul gostava principalmente daquele
pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi
corazón. (...) Enquanto Raul cantava – vezenquando ‘El dia que me quieras’,
vezenquando ‘Noche de ronda’, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos
Gardel pousado no seu dedo indicador. (...) Saul deu a Raul um disco chamado Os
grandes sucessos de Dalva de Oliveira. A faixa que mais ouviram foi “Nossas
vidas’, prestando atenção naquele trechinho que dizia ate nossos beijos pareciam
de quem nunca amou. (Abreu, 1995, p. 138-141)
Nesses fragmentos, há um aspecto que configura a intenção do narrador em
deslocar e confundir a todo momento a visão do leitor sobre o relacionamento dos
personagens: as referências a músicas. As canções citadas, pelas letras que
possuem, apresentam, na maioria das vezes, um teor romântico, em que o sujeito se
declara apaixonado por alguém. A referência a essas músicas e a versos de
algumas delas põe novamente em evidência o interesse do narrador em insinuar um
sentimento amoroso entre Raul e Saul, sentimento que até o final do conto é apenas
sugerido, mas não explicitamente confirmado.
Nesse jogo de insinuações e sugestões sobre o envolvimento entre os
colegas de trabalho, o narrador passa a inserir o olhar dos “outros” sobre os dois. Ao
perceber que Raul e Saul estavam sempre conversando no trabalho e nos horários
de descanso, os funcionários da repartição começaram a ter um olhar mais atento
121
sobre os dois, falando baixinho sobre eles. Fernando Arenas
85
afirma que assim que
a amizade entre Raul e Saul se tornou “mais íntima (embora não sexual)”, o “olhar
da sociedade circundante” tornou-se também “mais crítico” (1992: 64). O fragmento
a seguir comprova esta afirmação: “Na segunda-feira não trocaram uma palavra
sobre o dia anterior. Mas falaram mais do que nunca, e muitas vezes foram ao café.
As moças em volta espiavam, às vezes cochichavam sem que eles percebessem.”
(Abreu, 1995, p. 138).
Ao mesmo tempo em que o narrador focaliza o relato no olhar dos “outros”
sobre Saul e Raul, direciona o leitor a observar o envolvimento afetivo entre os dois.
Logo após a descrição dos cochichos dos colegas, o narrador comenta:
Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis
subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam
cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Pouco tempo depois, com o
pretexto de assistir a Vagas estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou
escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno de paletó.
Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram
atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando “Io che non vivo”, Raul viu os
desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou
como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente
preocupado. Não é triste? Perguntou. Você não se sente só? Saul sorriu forte: a
gente acostuma. (Abreu, 1995, p.138).
O fato de Raul criar “pretexto” para visitar Saul e burlar a regra da pensão que
proíbe visitas noturnas acentua a probabilidade de Raul e Saul estabelecerem laços
consistentes de afeto. E é isso que o narrador parece quer durante todo o conto:
induzir. No fragmento citado, também chama a atenção a forma como o personagem
Saul define o ambiente em que vive. É um ambiente triste assim como é triste o local
de trabalho sem Raul. A tristeza, aliada à solidão, parece ser um elemento
caracterizador dos dois personagens do conto, já que em vários momentos o
narrador sugere que Raul e Saul são sujeitos infelizes e isolados. Seriam eles
melancólicos? Teriam motivos para tristeza? Até a quinta parte do texto, o narrador
parece indicar que há uma certa melancolia que atinge os personagens do conto,
mas no último segmento do texto, o narrador propõe ao leitor uma inversão nessa
caracterização. Se durante quase todo o texto o narrador inclina a assegurar uma
condição melancólica de Raul e Saul, no final passa a apontar esse sentimento nos
85
ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu.
Brasil/Brazil. Ano 5, nº 8, 1992. p. 53-67.
122
“outros”, nos colegas da repartição, desestabilizando a expectativa de um final
doloroso para os dois.
Essa inversão começa quando o narrador relata o julgamento e o tratamento
discriminatório dos colegas da firma em relação a Raul e Saul. A posição desses
“outros” representa a postura moralizante, preconceituosa e autoritária da sociedade,
que acredita ter o direito de dar a “sentença final” sobre os assuntos privados da vida
de determinados sujeitos. Um dos julgamentos sociais impostos aos dois
personagens é descrito pelo narrador da seguinte forma: “Uma noite, porque chovia,
Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos
molhados do chuveiro. Nesse dia as moças não falaram com eles. Os funcionários
barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam
compreender se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou
três piadas enigmáticas.” (Abreu, 1995, p. 139). Pelo relato do narrador, infere-se
que o fato que culminou na rejeição social a Saul e Raul foi o de que eles “chegaram
juntos à repartição” e estavam com os “cabelos molhados do chuveiro”, uma vez que
essas imagens poderiam remeter, na mente dos empregados, a uma noite de amor
entre Raul e Saul, o que seria inadmissível na perspectiva da sociedade patriarcal.
Isso porque o patriarcado só reconhece o envolvimento amoroso e sexual entre
pessoas de sexo diferente.
Durante a semana em que Raul esteve fora porque sua mãe havia morrido,
Saul teve um sonho bastante curioso. Nele, a situação representada parece
antecipar metonimicamente o que a sociedade faria com eles alguns meses depois,
destacando a estratégia do narrador em instigar o leitor a refletir sobre a sociedade
repressora: “E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de
preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele.
Abraçados fortemente, e tão próximos que um poderia sentir o cheiro do outro.
Acordou pensando estranho, ele é que devia estar no luto.” (Abreu, 1995, p. 139-
140). As imagens do sonho focalizam o traço “acusador” da sociedade em
“incriminar” sem ter provas. As “pessoas da repartição” são frias, sombrias e
autoritárias, como se constata através da indicação de que elas estavam “todas de
preto”, imagens que também convergem para uma idéia de perigo e ameaça. Por
outro lado, a figura de Raul no sonho aponta para uma sensação de paz e harmonia,
pois estava “todo de branco”, sugerindo assim que ele tinha uma consciência
tranqüila quanto a seus atos e que não estava culpando Saul.
123
A posição instável do narrador, no sentido de que desestabiliza expectativas
do leitor, fica bem marcada na quinta parte do conto, onde ele relata alguns gestos
de Saul e Raul para confortarem-se e aliviarem-se das tensões, destacando a
profunda amizade dos personagens. O trecho que exemplifica essa constatação
refere-se ao desolamento e à tristeza de Raul com a morte da mãe:
Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que
fazia, Saul estendeu a mão, e quando perceberam seus dedos tinham tocado a
barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se
fortemente. E tão próximos ficaram que um podia sentir o cheiro do outro: o de
Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. A mão de
Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do
cabelo do outro. Não diziam nada. (Abreu, 1995, p. 140)
A amizade de Saul e Raul era o que supria as suas carências afetivas e o que
eles tinham de mais importante na vida: “Afastaram-se. Raul disse a Saul qualquer
coisa como não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa como você tem a
mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes – ninguém, mundo, sempre –
e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de
fumo e álcool.” (Abreu, 1995, p. 140).
A última parte do conto é a mais densa do texto porque é a partir dela que o
texto discute o “olhar” da sociedade sobre os homossexuais. O segmento final
constitui-se do julgamento e da condenação de Raul e Saul perante a moral e os
valores da sociedade representada no conto. A forma como o narrador conduz o
relato acentua a sua própria perspectiva crítica em relação aos fatos, pois os termos
que usa indicam uma rejeição à condenação imposta aos personagens. Depois de
terem passado a noite de Natal e o Ano Novo juntos e de planejarem passar as
férias também juntos “quem sabe em Parati, Ouro preto, Porto Seguro” (Abreu,
1995, p. 141), Raul e Saul voltaram ao trabalho no início de janeiro. A passagem que
o narrador relata a volta dos dois ao local de trabalho depois das festas de final de
ano apresenta também o “veredicto final” através da ação do chefe da repartição,
pautada em princípios conservadores e preconceituosos da sociedade:
Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias (...), ficaram surpresos
naquela manhã em que o chefe da seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia
muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto: tinha recebido algumas cartas
anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, os dois ouviam expressões como
“‘relação anormal e ostensiva”, “desavergonhada aberração”, “comportamento
doentio”, “psicologia deformada”, sempre assinadas por Um Atento Guardião da
Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul levantou de um salto. Parecia
124
muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra
erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o
chefe, depois que as coisas como a-reputação-de-nossa-firma ou tenho-que-zelar-
pela-moral-dos-meus-funcionários, declarasse frio: os senhores estão despedidos.
(Abreu, 1995, p. 141-142).
A expressão “nunca” proferida por Raul diante das acusações do chefe soa
como uma tentativa de explicação que não chega a ser concretizada. Queria dizer
Raul que as acusações eram falsas? Através desse fragmento não é possível saber
se eram verdadeiras ou não as acusações porque o conto deixa isso em suspense,
mas se deduz que os personagens não tinham nenhum sentimento de culpa, pois
Raul “levantou de salto” e “parecia muito alto” quando saiu da sala do chefe, o que
pressupõe uma ausência de intimidação diante da “autoridade” que o julgava e uma
certeza de sua inocência quanto ao “seu crime”. O fragmento seguinte reforça esta
afirmação: “Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido
com uma clínica psiquiátrica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas
todos na janela, a camisa branca de um e a azul de outro, estavam ainda mais altos
e mais altivos.” (Abreu, 1995, p. 142). O comentário do narrador sobre o prédio é
significativo para a caracterização dos personagens Raul e Saul e dos outros: se
antes eram Raul e Saul considerados os sujeitos com “psicologia deformada” e
“comportamento doentio”, agora são os outros – os colegas – que passam a ser
encarados como sujeitos anormais no sentido de que quem vive numa clínica
psiquiátrica ou numa penitenciária são os sujeitos considerados impossibilitados de
estar nos ambientes “normais”.
Os termos usados pelo chefe da repartição para definir a relação entre Raul e
Saul sinalizam fortemente a repressão diante de supostas práticas sexuais que não
obedecem ao padrão sexual socialmente legitimado, o heterossexual. David William
Foster, estudioso da cultura e da literatura latino-americana e da sexualidade,
acredita que é necessária uma (re)consideração sobre o corpo humano no sentido
de reconhecer outras formas legítimas de prazer que não sejam as da
heterossexualidade: “Se contempla una reconsideración del cuerpo humano, urgida
tanto por la necesidad de combatir la primacía obsesiva de la heterosexualidad em lo
genital como única sede del placer legítimo y como metonimia de propiciar la
erotización total del cuerpo.”
86
Nesta perspectiva, Foster diz que o ideal sexual
86
FOSTER, David William. Propuestas. In: __. Producción cultural e identidades homoerótica - teoría
y aplicaciones. San José: Editorial Universidade Costa Rica, 2000. p. 17.
125
defendido pelo patriarcado é aquele entre homem e mulher, onde o prazer se
legitima na relação macho-fêmea: “El patriarcado funciona sobre la base de una
estricta homologia entre másculo (macho)-masculino-hombre y femíneo(hembra)-
feminino-mujer” (2000, p. 21), sendo que “La única mirada legítima dirigida al cuerpo
es la que confirma su asimilación al sistema homológico del patriarcado” (2000, p.
26).
Assim, de acordo com Foster, quem não segue as “regras” do sistema tem
sua situação contestada dentro dele, uma vez que a estrutura do patriarcado não
admite definições sexuais diferentes das heterossexuais por acreditar que é
inconveniente para o sistema aceitar outras formas de configuração da identidade
sexual. Segundo o pesquisador, “Se encubre, se elimina, se olvida cualquer acto o
proceso que tienda a propiciar algo que desmienta este sistema es una amenaza
para él y la participación del individuo en el mismo.” (2000, p. 26). As formulações de
Foster podem ser relacionadas com a situação de repressão vivida pelos
personagens do conto de Caio Fernando Abreu, já que Raul e Saul foram demitidos
pelo chefe da repartição com a justificativa de que mantinham “relação anormal e
ostensiva” e apresentavam “comportamento doentio” e “psicologia deformada”.
Assim explicitados os “argumentos” para a impossibilidade de permanência deles
naquele emprego, é possível detectar que os princípios em que o chefe de Raul e
Saul acredita fazem parte do sistema fechado da sociedade. E esta, como declara
Foster, não permite outras formas de prazer e relacionamento sexual que não sejam
pautadas na relação binária homem-mulher. Desse modo, a sociedade continua
perpetuando a regra da “primacía obsesiva de la heterosexualidad”, reservando aos
“guardiões da moral” a tarefa de eliminar do contato profissional e pessoal os
indivíduos que não seguem os padrões de comportamento desse sistema e que
podem colocá-lo em risco. Demitir Saul e Raul do emprego foi a forma encontrada
pelos moralistas para impedir futuros problemas, já que num meio social onde só se
aceita a “relação sexual legítima” a presença do “transgressor” não é bem-vinda.
No último parágrafo do conto, depois de marcar o posicionamento do chefe da
repartição e dos colegas de Raul e Saul, o narrador direciona a visão do leitor para
esses outros - a sociedade que reprime e pune Raul e Saul, sinalizando uma
percepção singular acerca dos fatos e do julgamento envolvendo os protagonistas.
O fragmento que encerra o conto, calcado num relato subjetivo do narrador, aponta
126
para um desconforto dos funcionários da repartição diante da demissão dos dois
colegas:
[Raul e Saul] Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o
mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai! Alguém gritou da
janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes
poirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo
frito no azul do céu, ninguém conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase
todos ali tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.
(Abreu, 1995, p. 142).
A situação descrita pelo narrador apresenta um contraste que elucida a
perspectiva crítica do texto: apesar de ser um dia de sol brilhante, os colegas de
Raul e Saul não tinham motivos para sorrir nem para trabalhar em paz porque
estavam conscientes de que a repressão aos dois poderia ter sido equivocada.
Embora o narrador não defina o sujeito de “seriam os infelizes para sempre” porque
o verbo em terceira pessoa não permite identificar se eram Raul e Saul ou os
funcionários, é possível afirmar que os “infelizes” seriam os funcionários da
repartição, a sociedade que os condenou. Essa idéia pode ser considerada
procedente porque, na produção literária de Caio Fernando Abreu, vários textos de
temática homossexual apresentam um posicionamento que leva o leitor a questionar
valores morais e a conduta da sociedade, acentuando a moral preconceituosa que
ela prega. Nesse sentido, Fernando Arenas
87
foi feliz ao dizer que “o título do conto
é subvertido e já não são ‘aqueles dois os condenados, mas a sociedade, ‘aqueles
outros’.”(1992: 64). É preciso assinalar que a ambigüidade do discurso do narrador e
a sua alternância de posição ao longo de todo o conto são estratégias para a
tomada de reflexão do leitor. Esse recurso do conto, aliás, configura a fragmentação
da forma narrativa moderna, que abole discursos definitivos a privilegia a
plurissignificação, a abertura. Nesse sentido, as proposições de Theodor Adorno e
Walter Benjamin acerca da narração moderna podem ser referenciadas na leitura do
conto de Caio Fernando Abreu.
Em “Aqueles dois”, é especialmente significativa a posição dos “outros” em
relação a Raul e Saul. Por um lado, os colegas dos protagonistas gozam de uma
posição privilegiada que os permite “julgar” e punir aquilo ou aqueles que não se
enquadram em determinado padrão de comportamento. Por outro, eles são vítimas
87
ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu.
Brasil/Brazil. Ano 5, nº 8, 1992. p. 53-67.
127
da própria condição de “juiz” no sentido de que essa condição os levou à tomada de
uma decisão que os deixou entristecidos, como acentua o final do conto. A condição
dual que caracteriza “aqueles outros”, a de acusador e a de condenado, revela a
precariedade da própria condição humana. Essa dualidade que caracteriza os
“outros”, os colegas de Raul e Saul, pode ser associada à perspectiva melancólica
que é apreendida pela forma como os outros ficaram quando assistiram à saída de
Raul e Saul do trabalho. O sentimento de tristeza e a sensação de que a
condenação poderia ter sido injusta contrasta com a arrogância dos funcionários
antes do “julgamento final”.
A oscilação entre duas posições diferentes, a de acusador e a de réu, aliada à
consciência da fragilidade dessas “funções”, é fator que permite fazer a associação
dos funcionários da repartição aos sujeitos melancólicos definidos por Walter
Benjamin. Segundo esse teórico, a melancolia advém de uma condição antitética
decorrente de extremos, sendo essa teoria explicada pelas observações que o
filósofo faz da postura do príncipe. No conto de Caio Fernando Abreu, os
personagens que punem e condenam Raul e Saul podem ser tomados como
exemplo da perspectiva melancólica surgida por essa condição dual: dominados
pelo sentimento de repulsa à homossexualidade e aos sujeitos não heterossexuais,
agem como os donos do poder, e, ao mesmo tempo em que julgam e expulsam os
dois, percebem que essa posição pode não ter sido acertada, tornando-se, assim
sujeitos entristecidos. Sendo, então, poderosos e frágeis, inocentes e culpados, os
personagens que reprimem Raul e Saul representam uma síntese da condição
melancólica apontada por Benjamin. E essa perspectiva é ressaltada porque o
sentimento de culpa que assola esses “outros” também é fator que conduz à
melancolia de acordo com as proposições de Moacyr Scliar.
Para a interpretação de “Aqueles Dois”, várias são as possibilidades de
análise do “teor social” que pode ser discutido através da problematização da
homossexualidade e da repressão sexual. As considerações de Foster sobre o
privilégio da heterossexualidade como forma de estabelecimento das relações entre
os sujeitos na sociedade patriarcal ajudam a entender os atos repressivos do
patriarcado contra os homossexuais, situação representada no conto através da
“condenação” social imposta a Raul e Saul. Além disso, as considerações do
pesquisador permitem identificar na sociedade brasileira traços do patriarcado,
elucidando as relações entre literatura e sociedade no Brasil no sentido de que a
128
primeira representa traços da segunda e alerta para a disseminação de idéias
preconceituosas e práticas repressoras.
É preciso ressaltar que o conto não se propõe a fazer o leitor decidir se Raul e
Saul eram mesmo amantes ou não. O suspense da narrativa quanto a isso até o
final do texto não é casual nem tem a pretensão de questionar o leitor sobre o
suposto envolvimento amoroso entre os personagens. A indefinição que permeia em
toda narrativa leva a acreditar que esse suspense é uma estratégia para instigar
uma reflexão sobre os motivos que levam a sociedade a condenar pessoas que,
segundo a moral conservadora e autoritária, transgridem valores morais. A falta de
“provas concretas” quanto ao relacionamento amoroso e sexual de Saul e Raul
acentua ainda mais a intolerância e a mediocridade da sociedade e, como aponta o
subtítulo do conto (“História de aparente mediocridade e repressão”), torna ainda
mais agressiva e repugnante a repressão exercida por ela.
Repressão sexual e social marca a postura de personagens em “Aqueles
dois” e acentua um ponto de vista crítico sobre a sexualidade “marginal” e a
sociedade conservadora, indicando que esse olhar é intenso na obra de Caio
Fernando Abreu, mas não é o único. Há ainda narrativas que abordam a
desintegração do sujeito diante de outras formas de desilusão, como está
representado no conto “Morangos mofados”.
3.5. A descrença em “Morangos mofados”
O conto “Morangos mofados” compõe a terceira parte da obra, cujo título é
homônimo, e encerra o livro de Caio Fernando Abreu. Constituído em cinco
segmentos, “Prelúdio”, “Allegro agitato”, “Adágio sostenuto”, “Andante ostinato” e
“Minueto e rondó”, a narrativa assemelha-se a um amontoado de fragmentos
dispersamente apresentados ao leitor. Desde o início do conto, há marcas de uma
fragmentação formal, pois os personagens não são apresentados, não há
identificação clara de quem é o narrador, nem sempre é possível definir as vozes
que falam, não há uma seqüência lógica na exposição dos fatos, o relato não segue
os princípios de início, meio e fim, alguns discursos são fechados sem conclusão de
idéias. Todos esses traços confundem o leitor, deixando-o perplexo diante da
estrutura e forma narrativas do conto “Morangos mofados”.
129
“Morangos mofados” inicia-se com um discurso em terceira pessoa
apresentado em apenas um parágrafo. Esse parágrafo compõe a primeira parte da
narrativa, “Prelúdio”. O título desse segmento indica que haverá uma introdução ou
uma espécie de abertura e informação acerca do que virá depois, no caso a história
narrada. No entanto, essa expectativa não é confirmada após a leitura da primeira
parte do conto, já que o narrador não informa a que ou a quem está se referindo
nem explicita o que vai contar, apenas sugere estar disposto a relatar algo sobre
alguém que luta para sobreviver, embora essa tentativa de sobrevivência também
não seja claramente elucidada:
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se movia. Era
dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo?
– e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou que-se-há-de-
fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas mas-afinal-que-importa. E a cada dia
ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado
no fundo escuro de alguma gaveta. (Abreu, 1995, p. 145).
O fragmento ilustra um comentário do narrador sobre o mal-estar de um
personagem que não é identificado, mas cuja insatisfação é informada pelas alusões
a expressões que sinalizam um mal-estar. O narrador recorre à “estética da
sugestão” para mobilizar o leitor, fazendo-o questionar por que o personagem afirma
viver sob uma tensão e por que se resume a aceitar a situação presente como algo
difícil de ser transformado. Essa constatação é obtida através da introdução, no
discurso do narrador, da própria fala do personagem, que recebe recurso gráfico
(hífen entre as palavras) para enfatizar a desilusão do sujeito. O personagem
referido pelo narrador parece amargar alguma espécie de derrota, como sinaliza a
metáfora dos morangos mofados dentro de uma gaveta. O que significa essa
metáfora? Só uma leitura de todo o conto pode revelar, já que a primeira parte do
texto não traz mais informações nem pistas ao leitor.
A segunda parte da narrativa, “Allegro agitato”, começa com um discurso
dirigido a um sujeito, que não é apresentado ao leitor. O narrador introduz a fala de
um personagem e em seguida faz um comentário que permite ao leitor reconhecer
que a voz que fala no início é a de um médico: “Pois o senhor está em excelente
forma, a voz elegante do médico, têmporas grisalhas como um coadjuvante de filme
americano, vestido de bege, tom sur tom dos sapatos polidos à gravata frouxa, na
medida justa entre o desalinho e a descontração.” (Abreu, 1995, p. 145). Nesse
130
fragmento, o narrador não avisa ao leitor que introduzirá a fala de um personagem,
apenas a coloca e imediatamente faz comentários sobre o sujeito. Este parece
estabelecer um diálogo com outro personagem, visto que a sua fala apresenta um
dado que indica haver um interlocutor (“o senhor”). Essa forma de elaboração do
discurso narrativo dificulta o trabalho de leitura porque pressupõe um interlocutor
muito atento a detalhes e à estrutura narrativa, o que inviabiliza uma interpretação
definitiva e uma certeza quanto aos fatos narrados.
Na seqüência do conto, o narrador continua o seu relato, descrevendo as
ações do médico. Essa descrição é cortada pela introdução da fala do interlocutor do
médico, como é possível apreender pelo contexto discursivo: “Acendeu outro cigarro,
desses que você fuma o dobro para evitar a metade do veneno, mas não é no
cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não aparece em
check-up algum.” (grifos da autora)(Abreu, 1995, p. 145). Agora o narrador já aponta
dois personagens: o médico e o seu paciente, cuja voz aparece destacada no
excerto acima. A fala do paciente indica que há alguma “doença” na alma que não
se relaciona a nenhum estado patológico. O “câncer”, de acordo com a sugestão do
personagem, origina-se de uma condição espiritual ou emocional. É interessante
destacar que a observação que o personagem faz sobre a sua própria “doença”
alude à idéia de “doença da alma”, explorada pelos teóricos antigos ao abordarem a
condição melancólica das pessoas. O personagem do conto que se diz ser portador
de um “câncer na alma” pode ser caracterizado como um sujeito melancólico de
acordo com traços de seu comportamento e de seu discurso e conforme indica uma
leitura proposta pelo conto.
E essa melancolia é advinda de uma conjuntura de traços do contexto
histórico, como pode ser percebido no seguinte fragmento, que se inicia com uma
observação do médico (em itálico) e é continuada com comentários do narrador:
Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar a tecer considerações
sócio-político-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento da Hipocondria Motivada
Pela Paranóia dos Grandes Centros Urbanos, cara bem barbeada, boca de
próteses perfeitas, uma puta uma vez disse que os médicos são os maiores
tarados (talvez pela intimidade constante com a carne humana, considerou), e
este? (grifos da autora) (Abreu, 1995, p. 146).
Nesse fragmento, o médico concorda com o seu paciente quanto à existência
de um “câncer” na alma decorrente de circunstâncias do contexto histórico e social
131
em que o paciente vive. Considerando que o texto e a obra como um todo
metaforicamente aludem ao mofo dos morangos, ou seja, à perda e à falência de
sonhos e projetos de ordem social de sujeitos que enfrentaram a repressão e o
autoritarismo de um governo ditatorial e de uma sociedade conservadora, é possível
associar a observação do médico e do próprio paciente quanto ao “mal do tempo” a
problemas do contexto histórico-social. Essa articulação ganha respaldo no decorrer
do conto com novas alusões ao desapontamento do personagem diante de
situações extremas.
O médico aconselha seu paciente a diminuir o cigarro e fazer atividades
físicas para ter uma vida futura mais saudável, mas o paciente questiona a idéia de
vida futura, já que não tem expectativas promissoras para o tempo por vir:
Mas se o futuro, doutor, é um inevitável finalmente alguém apertou o botão e o
cogumelo metálico arrancando nossas peles vivas, bateu com cuidado o cigarro no
cinzeiro, um cinzeiro de metal, odiava objetos de metal, e tudo no consultório era
metal cromado, fórmica, acrílico, anti-séptico, im-po-lu-to, assim o próprio médico,
não ousando além do bege. Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas,
pêras pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia escancarada,
nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango sangrento.
Um morango mofado – e este gosto, senhor, sempre presente em minha boca?
(Abreu, 1995, p. 146).
As palavras do paciente são entrecortadas por comentários que tanto podem
ser do narrador quanto do próprio personagem. Essa indefinição da voz que fala é
decorrente do fato de o personagem começar seu discurso dirigindo-se ao doutor e
de na seqüência narrativa haver uma quebra desse discurso através de comentários
acerca do ambiente do consultório e do médico, tornando o fragmento ambíguo.
Essa oscilação do foco narrativo representa a variabilidade da posição do narrador,
apontada por Theodor Adorno ao referir-se ao narrador de romances
contemporâneos. É significativa essa ambigüidade no sentido de que ela acentua a
própria indeterminação do sujeito quanto à sua situação de vida, pois, afinal, ele não
sabe como enfrentar o futuro. No excerto acima também merece destaque a
descrição do ambiente da sala do médico decorado com objetos limpos e puros
demais na perspectiva do paciente, que também considera apáticas as uvas, pêras e
maçãs em tons claros. Para ele, deveriam estar naquele ambiente desenhos de
frutas vibrantes, como a melancia (“escancarada”), a pitanga (“madura”), a manga
(“molhada”) e o morango (“sangrento”). Essas frutas simbolizam o frescor, a
vitalidade e a energia necessários ao ser humano. No conto, a alusão a elas
132
aparece como representação simbólica do interesse do personagem em encontrar
um caminho de esperança de retorno à alegria de viver e do fim da sua “doença da
alma”. No entanto, conforme a fala final do paciente, essa esperança ainda não está
sendo fortificada, pois ele continua com o “gosto” de morango mofado em sua boca.
A reiteração do gosto de morango mofado na boca é outro elemento simbólico
intensamente explorado no conto de Caio Fernando Abreu. Ter a sensação de que
os morangos estão mofados indica que a vitalidade sugerida pela fruta está ausente,
o que conduz à idéia de impotência do sujeito diante de sua condição de vida. Em
“Morangos mofados”, o personagem central problematiza a sua “doença da alma”, a
sua insatisfação com a vida, consigo mesmo. Considerando que o mofo alude a
bolor e a fungos que diminuem ou eliminam a qualidade de objetos, alimentos,
roupas, é possível reconhecer no uso da expressão “mofo” uma forma de apontar
para uma alteração na qualidade de vida e, conseqüentemente, para uma
diminuição de uma perspectiva otimista diante da condição vital das pessoas. O
personagem de “Morangos mofados”, ao enfatizar o gosto de morango mofado,
sugere não ter expectativa positiva quanto ao fim de sua doença nem quanto a uma
mudança de seu estado melancólico.
Depois de descrever os sintomas de sua doença, o personagem assiste à
orientação do médico para uma minimização dos seus sofrimentos: “Um
tranqüilizante levinho levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por
dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração
tranqüilo, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas emoções.”
(Abreu, 1995, p. 146-147). A receita do médico sinaliza o uso de medicamentos para
tranqüilizar o paciente, proporcionando a ele mais conforto e menos emoções e
angústias, como indica a fala seqüente do doutor: “Proibido sentimentos, passear
sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça para baixo, proibido
emoções cálidas, angústias fúteis, um nirvana da Bayer e se é Bayer.“ (Abreu, 1995,
p. 147). Na proposta do médico está subentendida a idéia de que o paciente sente
emoções e angústias constantemente e que isso deve ser evitado com o uso de
remédios. O sintomas apresentados pelo personagem são claramente elucidativos
de uma “doença” que atinge o aspecto psíquico do sujeito, no qual a emoção e a
angústia estão inseridas. Essas informações sinalizam um estado do personagem
próximo à condição melancólica, e essa hipótese passa a ser confirmada nos
segmentos seguintes do conto.
133
“Adágio sostenuto” é a terceira parte da narrativa e inicia com o relato do
narrador acerca da postura do personagem com o começo do tratamento estipulado
pelo médico. Estando meio dopado com os remédios, o personagem não sente
motivação para fazer nada, não atende quando o telefone toca nem tem energia
para colocar o disco dos Beatles com a música “Strawberry fields forever” que tanto
aprecia. Resta ao personagem uma lamentação de tudo o que poderia ter feito e não
fez: “agora é troppo tarde, tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não
resolvido, bom isso. E idiota. E inútil.” (Abreu, 1995, p. 148). A posição do
personagem é reveladora da condição melancólica que o atinge no sentido de que
ele tem consciência não só da precariedade da sua vida no presente, mas também
da possibilidade perdida de ter realizado algo no passado que elevaria seu ego e
minimizaria seu desânimo atual. Essa consciência da perda da possibilidade de uma
experiência no passado é um indício de melancolia.
Quando o personagem reflete sobre a sua condição e percebe que algo
poderia ter sido diferente, sente-se angustiado, e então vem o vômito, símbolo de
uma condição de “irregularidade” no organismo da pessoa e de um mal-estar
decorrente de motivos de ordem diversa. O personagem do conto, logo após
declarar a insatisfação com a sua vida, tem seu comportamento relatado da seguinte
forma pelo narrador: “Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo
de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos
vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em
todas as caixas-d’água de todas as cidades, o azul dos azulejos começando a
brilhar, maya, samsara, que às vezes voltava.” (grifos da autora)(Abreu, 1995, p.
148-149). Nesse fragmento, o narrador expõe a náusea do personagem e introduz a
fala do sujeito marcada em itálico acima. Essa fala é apreendida pelo leitor porque
pressupõe um interlocutor que é companheiro do personagem, mas que também
pode ser o leitor, convidado a refletir sobre a situação enfrentada pelo personagem,
uma situação de desolamento de desconfiança e também de solidão.
O protagonista do conto expõe essa situação ao relembrar experiências de
prazer e sossego do passado, as quais ele não tem mais. Por isso, afirma ter
saudade, um sentimento que se apresenta em meio ao vômito e à reflexão:
Nojo, saudade. Sou um publicitário bem-sucedido, macio, rolando nas nuvens, o
Carvalho me disse que rodando-nas-nuvens é do caralho, que achado, cara, você é
um poeta, enquanto olho pra ele e não digo nada como eu mesmo já rodei nas
134
nuvens um dia, agora tou aqui, atolado nesta bosta colorida, fodida & bem paga.
Strawberry fields: no meio do vômito podia distinguir aqui e ali aqui e ali alguns
pedaços de morangos boiando, esverdeados pelo mofo. (Abreu, 1995, p. 149).
A fala do personagem apresenta um diálogo que ele teve com “Carvalho”, um
provável amigo seu. Nesse diálogo, o personagem expressa gozar da satisfação em
ter sido um cara que “roda nas nuvens”, ou seja, que não tem problemas e vive em
harmonia, mas lamenta não possuir mais essa condição, como é possível apreender
pelo desabafo que faz quando diz estar “atolado nesta bosta colorida, fodida & bem
paga”. Além dessa constatação, ainda persistem o vômito e a imagem de morangos
mofados boiando, os quais novamente sinalizam a precariedade do sujeito e a sua
desestruturação psíquica.
O segmento “Andante ostinato” fragmenta o relato em relação à parte anterior
da narrativa porque traz ao leitor a descrição de uma situação vivida por uma
personalidade artística americana e por um outro personagem: Jack Nicholson e
Alice. Assim começa o relato:
Nem ontem nem amanhã, só existe agora, repetia Jack Nicholson antes de ser
morto a pauladas, enquanto ele espiava Davi jogado no fundo do poço tão profundo
que precisaria de uma escada para descer até lá, evitando os escombros da
cidadezinha que era ao mesmo tempo Köln após a guerra e o Passo da
Guanxuma, com aquele lago no centro de onde sem parar partiam ou chegavam
barcos, nunca saberia, e não importa, Alice corria entre os ciprestes do cemitério
sem túmulos enquanto ele gritava (Abreu, 1995, p. 149).
O corte na seqüência do relato desestabiliza as expectativas do leitor, que
está à espera de um desfecho da situação do personagem principal do conto. A
idéia de objetividade no relato também acaba se perdendo, o que diminui a
possibilidade de uma interpretação mais tranqüila da história. Por que esse discurso
aparentemente não segue uma lógica com o que estava sento relatado
anteriormente? Na seqüência do conto, o leitor ainda não consegue uma resposta a
essa pergunta, já que o narrador continua a relatar fatos envolvendo Jack Nicholson
e Alice até que movimenta a sua “câmera” em direção ao personagem do conto,
fazendo com que o leitor perceba, afinal, que o que relatava era uma cena de filme
assistida pelo personagem na televisão: “Desligou a televisão, saiu para o terraço de
plantas empoeiradas, devia cuidar melhor delas, não fosse essa presença viva
dentro de mim corroendo carcomendo a célula pirada na alma fermentando o gosto
nojento da língua.” (Abreu, 1995, p. 150).
135
É preciso notar que esse discurso do narrador também é atravessado pela
fala do personagem, a qual é apreendida porque está em primeira pessoa,
diferentemente do relato do narrador que começa em terceira. Essa mudança de voz
narrativa determina a alteração da posição da “câmera”, que se mostra flexível e
inconstante. Essa postura do narrador remete à construção da obra de arte moderna
apontada por Theodor Adorno no sentido de que a linearidade e a objetividade já
não são os princípios adotados pela literatura moderna. A fragmentação das cenas e
do discurso de narrador e personagem, na perspectiva de Walter Benjamin, também
pode ser compreendida como uma estratégia que procura mostrar com maior
intensidade a desestruturação que atinge os sujeitos e as mazelas de um dado
contexto social.
No conto “Morangos mofados”, o contexto social está dissimulado nas
alusões do narrador e do personagem acerca da “experiência do mofo”, reconhecida
como uma metáfora para indicar a violência de um período que desestabiliza os
sujeitos, levando-os a refletir sobre a condição de vida e sobre a dificuldade de
estabelecer sentimentos de conforto e segurança. O personagem da narrativa de
Caio Fernando Abreu é enfático ao afirmar uma perda de esperança e de um tempo
passado promissor e uma sensação de que não vale a pena viver, conduzindo o
leitor a associar o estado emocional do personagem a uma crise social e política
enfrentada nos início dos anos 1980, período em que foi lançada a obra do escritor.
Essa crise do contexto pode ser considerada fator de motivação para a crise do
sujeito e, conseqüentemente, para sua melancolia: “O cheiro daquele único jasmim
espalhado sobre os sete viadutos da avenida mais central. Bastava um leve impulso,
debruçou-se no parapeito, entrevado, morto da cintura para baixo, da cintura para
cima, da cintura para fora, da cintura para dentro – que diferença faz? Oficializar o já
acontecido: perdi um pedaço, um tempo. E nem morri.” (Abreu, 1995, p. 150).
A articulação entre a desestabilização emocional do sujeito e a
desestabilização social é possível graças a um conjunto de traços do conto e da
obra do escritor como um todo, que problematizam o “ser no mundo”, enfocando
dificuldade e impedimentos de se manter uma vida digna em meio à brutalidade e à
violência sociais. O conto “Morangos mofados” é, nessa perspectiva, uma obra
aberta a leituras que procuram associar texto e contexto, já que a narrativa
indiretamente aborda a situação de sujeitos que perderam a esperança diante de
uma situação de instabilidade. Perder um pedaço de si e um tempo, como declara o
136
personagem do conto, são indícios de um sentimento de tristeza resultante de
alguma experiência dolorosa e são formas de expressar uma condição melancólica,
anunciada pela consciência da experiência de perda, que é apontada por Sigmund
Freud e Julia Kristeva como fator que provoca a melancolia.
Na penúltima parte do conto, narrador e personagem destacam uma
experiência de perda e, na última, “Minueto e rondó”, é um sentimento de desolação
e solidão que toma conta do início do relato. O narrador começa a descrever a
observação que o personagem faz do ambiente em que vive, que é deserto, sem
“rumores nem carros nem pessoas” (Abreu, 1995, p. 151), e da falta de “horizontes
num céu escuro, e logo introduz o pensamento do sujeito acerca de sua condição de
vida. O fragmento seguinte ilustra o que o personagem estava pensando quando
refletia sobre sua solidão:
Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente e
finalmente apertasse o botão? e se aquele cinza-claro no sucedâneo de horizonte
for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando tudo aconteceu? e se fiquei
sozinho na cidade, no país, no continente, no planeta? Sabia que não. E um outro
de-dentro pensava também, se sobrepujando mais claro, quase organizado, não
totalmente porque para dizer a verdade não era um pensamento nem uma emoção,
mas algo assim como o cinza-claro brotando natural por sobre o horizonte, se
houvesse horizonte, ou como o vento fresco batendo nas cortinas, ou ainda como
se uma onda nascesse daquele imóvel mar ativo, ali onde começa a luz, onde
começa o vento, onde começa a onda, desse lugar que não eu sei, nem você, nem
ela sabia agora: brotou qualquer coisa como – não quero ser piegas, mas talvez
não tenha outro jeito – uma luz, um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda
calma ou arquejante, um vento minuano ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa,
repito que brotou, repetiu incrédulo. (Abreu, 1995, p. 151).
O pensamento do personagem aparece desdobrado em uma espécie de duas
consciências representadas por “um de-dentro” e um “outro de-dentro”, que, na
verdade, indicam duas perspectivas críticas do personagem sobre sua própria
experiência de vida. Enquanto o “um de-dentro” mostra-se mais pessimista e não
acredita em uma possibilidade de mudança da condição vital do sujeito, o “outro de-
dentro” parece estar esperançoso quanto à vinda de uma “luz” que propicie algo
promissor, o que, no entanto, não é especificado – é a simbologia da vinda de uma
luz que sugere algo positivo.
No excerto do conto, é possível identificar uma sobreposição de discursos:
ora é o personagem que fala, ora é o narrador que conduz o relato. Ao leitor, cabe o
papel de decifrar as vozes e juntar os discursos fragmentados para compreender o
que está sendo narrado. E essa tarefa só pode ser realizada se forem observados
137
os tons dos discursos e a maneira como cada um se dirige ao leitor, o narrador usa
uma linguagem mais direta enquanto o personagem é mais subjetivo. O narrador
parece ter consciência do que o personagem pensa e ilustra isso quando descreve o
que ele pensava, chamando o leitor a “pensar junto” ao usar “você” como forma de
estabelecer uma interlocução. Essa postura do narrador é desconcertante e
inviabiliza uma interpretação conclusa sobre o texto, já que a variação da posição do
narrador e a introdução da fala do personagem sem anúncio prévio são fatores que
impedem uma leitura definitiva.
No final do conto, o personagem continua a afirmar a vinda de uma luz que
pode trazer outro significado à sua vida, como demonstra o seguinte fragmento:
Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido
de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não
perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara mas substituições oportunas,
como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um novo tempo
traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas
dilatadas. Estava absolutamente como era, sem aditivos. (Abreu, 1995, p. 151-
152).
O posicionamento do personagem em marcar uma luz que chega para
iluminar sua vida pode ser compreendido como um sinal de esperança e de
reconfiguração das perdas no sentido de seu aprendizado. Essa idéia de esperança,
no entanto, não garante uma mudança social e de vida nem anula a perspectiva
melancólica do conto porque reflete apenas a vontade de o sujeito encontrar uma
outra forma de elaborar suas experiências no futuro. A esperança do personagem
marca a necessidade de se projetar algo novo que possibilite a compreensão da
riqueza das experiências e a renovação dos sonhos num contexto em que o
“cimento” é predominante, mas onde pode ser possível plantar morangos:
“Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto
considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar
morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos
morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim.” (Abreu, 1995, p. 152)
88
.
88
A idéia de plantar morangos em um canteiro de cimento pode ser comparada à imagem da flor que
rompe o asfalto no poema “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade. Tanto nesse poema
quanto no conto de Caio Fernando Abreu, os sujeitos esperam por algo que acabe com o tédio, a
náusea, a inquietude e a insatisfação. Conferir DRUMMOND, Carlos. A flor e a náusea. In: __. A rosa
do povo. 23. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
138
Os morangos frescos, vivos e vermelhos sugerem a vivacidade outrora
experimentada e perdida e agora esperada. O movimento de inquietação e
descrença do personagem parece ter sido amenizado. Por isso, o conto encerra-se
com um “minueto e rondó”, expressões que no campo musical referem-se a formas
animadas de estruturar composições. O minueto é uma forma clássica que se
originou de uma dança francesa de nome homônimo; o rondó também tem origem
em uma dança francesa, na qual se forma uma roda, e tem a função de retomar o
tema de uma obra depois de ela passar por variações, é a idéia de um círculo que
remonta o final de óperas, voltando à origem. No conto “Morangos mofados”, o uso
das expressões “minueto” e “rondó” sugere a possibilidade de se instaurar um
movimento de renovação e revisão de projetos, indicando a necessidade de o sujeito
aprender com as experiências.
A leitura de “Morangos mofados” e dos contos “Os sobreviventes”, “Pêra, uva
ou maçã?” e “Aqueles dois” assinala a recorrência de estruturas formais
fragmentadas quanto à tendência de representação de perspectivas e sujeitos
melancólicos. A estética fragmentada e a condição melancólica culminam na
orientação crítico-social dos textos de Morangos mofados, sinalizando uma estreita
relação entre forma literária e conteúdo social.
139
CONCLUSÃO
A leitura de narrativas de Morangos mofados aponta que os textos de Caio
Fernando Abreu trazem uma visão singular acerca de experiências sociais
enfrentadas por indivíduos cuja subjetividade e integridade moral mostram-se
abaladas. Os personagens do autor são sujeitos que vivenciam situações extremas
que os levam a um sentimento de desolamento, solidão, insegurança, crise
emocional, melancolia, criando uma atmosfera que se aproxima de uma perspectiva
sombria quanto à possibilidade de realização plena do sujeito e de sua reabilitação
moral e emocional. Os contos examinados, embora contendo problematizações e
opções estéticas distintas, sinalizam essa perspectiva na medida em que sugerem a
dificuldade de os indivíduos constituírem relações interpessoais consistentes e de
poderem defender com liberdade seus princípios políticos e sociais.
O conto “Os sobreviventes” enfoca a desestruturação de indivíduos cujos
sonhos tornaram-se irrealizáveis diante de um sistema social e político intensamente
repressor e autoritário. Nessa narrativa, os personagens vivenciaram experiências
de violência física e moral por se oporem a “regras” de conduta estipulados por um
governo extremamente autoritário e por lutarem por uma transformação social
calcada em valores libertários. O saldo dessa experiência é negativo, e os
personagens pagam um preço alto pela “subversão”, pois se tornam vulneráveis à
prática repressiva, que, imposta a eles com veemência, deixa-os em crise e
conscientes não só da impotência de lutar contra o sistema, mas também da perda
do sonho e da dificuldade de encontrar uma saída. Essa consciência da situação é
fator que condiciona o sentimento melancólico dos personagens.
Em “Pêra, uva ou maçã?”, a insatisfação de um personagem feminino
anônimo marca a precariedade da condição humana de um sujeito que não sente
motivação para a vida nem mantém expectativas promissoras quanto ao futuro,
sendo a rememoração de experiências do passado um único sinal de felicidade e
realização vivenciadas. O personagem, ao sugerir a oposição entre passado e
presente e entre uma situação prazerosa vivida e outra desagradável presenciada,
sinaliza a impossibilidade de realização plena e de euforia diante da vida. Nesse
caso, o saldo também é danoso, e a visão, melancólica, pois o personagem feminino
140
não anuncia nenhuma mudança de trajetória ou de renovação da vida, pelo
contrário, enfatiza a sua carência e a sua insatisfação com a vida.
A narrativa “Aqueles dois”, cuja temática é repressão moral e sexual,
apresenta uma abordagem inteligente e sensível, já que o texto não procura
representar a experiência de repressão como forma de defender uma causa social,
mas como meio para despertar uma necessidade de humanização no leitor. O conto,
ao insinuar um envolvimento afetivo e/ou sexual entre dois homens, Raul e Saul,
problematiza a prática de valores preconceituosos numa sociedade conservadora,
deslocando o olhar do leitor para aqueles que exercem a repressão e não para os
que a sofrem. Dessa forma, o texto sugere uma melancolia decorrente de um
sentimento de culpa e de uma condição ambivalente (vítima e agressor) dos
personagens que repreendem Raul e Saul, indicando uma tristeza que acentua o
teor melancólico da narrativa e reitera a representação de situações marcadas por
sentimentos de desolamento e angústia.
O conto “Morangos mofados” também trata dos anseios de um personagem
que procura um caminho de esperança e retorno à alegria de viver e tenta acabar
com a sua “doença da alma”. Mas essa esperança não é fortificada, e ele continua
com o “gosto” de morango mofado em sua boca, metáfora que representa a
dificuldade de encontrar uma solução para os problemas. Essa narrativa, assim
como as outras que compõem a obra, desemboca numa perspectiva sombria que
acentua a impotência dos sujeitos quanto à possibilidade de transformação de suas
vidas e da sociedade como um todo e intensifica a consciência da precariedade da
condição humana. O conto pode ser lido como uma espécie de “síntese” do livro de
Caio Fernando Abreu, já que encerra a coletânea e amarra a visão sobre a distância
existente entre o mundo projetado/sonhado e o mundo vivido, simbolizada na idéia
de que os personagens procuram encontrar morangos frescos, vivos e vermelhos,
mas eles conseguem apenas “saborear” morangos mofados. Nesse sentido, a busca
dos personagens não obtém sucesso, como propõem os encerramentos dos textos e
a narrativa final da obra.
A análise de contos mostra que essa falta de “sucesso” que caracteriza a
trajetória dos personagens de Morangos mofados ganha intensidade não só pela
perspectiva sombria dos textos apreendida pela temática explorada, mas também
pela realização estética das narrativas. Os contos, ao abordarem experiências de
violência e repressão, como em “Terça-feira gorda”, “Os sobreviventes” e “Aqueles
141
dois”, e experiências marcadas por crises emocionais e pela sensação de angústia e
perda, como em “Pêra, uva ou maçã?” e “Morangos mofados”, além de marcar uma
percepção singular acerca dessas experiências, assinalam uma forma especial de
representá-las. Essa forma, que se distancia do modo tradicional de elaboração das
experiências, choca o leitor e motiva-o a decifrá-la e a interpretá-la.
As narrativas da coletânea de 1982 têm como traço estético predominante a
fragmentação formal embora outros elementos, como a poeticidade, o plurilingüismo
e a hibridização de gêneros, também possam ser referenciados na abordagem da
forma literária da obra. A fragmentação formal, apreendida pela instabilidade do
narrador e pela descontinuidade lógica dos relatos, torna-se índice fundamental para
análise porque é um traço recorrente em todos os contos e mantém relações
estreitas com o conteúdo das narrativas. Uma leitura atenta dos contos sugere que
essa forma literária não é gratuita nem resultado de uma simples “experimentação
da linguagem”, como sugerem Antonio Hohfeldt e Luís Augusto Fischer ao
apresentarem comentários gerais sobre a estética de Caio Fernando Abreu.
Os contos examinados possuem uma especificidade quanto ao foco narrativo,
à posição do narrador, à estruturação textual e alertam para uma ”infração da forma”
e para uma transgressão dos padrões convencionais de representação literária. A
alternância da posição do narrador marcada em “Os sobreviventes” e “Aqueles dois”
e a suspensão do relato objetivo nesses contos são fatores que conduzem à
fragmentação formal de acordo com a proposta teórica adotada neste trabalho. O
discurso fragmentado e subjetivo dos personagens e dos narradores de “Pêra, uva
ou maçã?” e “Morangos mofados” também são indicadores de uma estética que
rompe com convenções de escrita literária e que opta pela fragmentação. Theodor
Adorno e Walter Benjamin sublinham que a arte moderna abole paradigmas da arte
tradicional, optando por estabelecer a “posição da câmera”, móvel e inconstante,
como sinal da postura do narrador moderno, abdicando a objetividade em detrimento
de discursos pautados na subjetividade e trocando a linearidade pela fragmentação.
A estética da arte moderna apontada pelos pensadores é, nesse sentido,
fundamental para a compreensão da forma literária dos contos de Morangos
mofados, que são desenvolvidos não só por um discurso subjetivo, mas também por
um relato que não segue os princípios de organicidade da narrativa tradicional. Ao
promover uma constante sobreposição de vozes que não raramente confunde uma
identificação tranqüila do sujeito que fala, as narrativas da obra também estão
142
transgredindo as “regras” da composição convencional, baseada em relatos cuja
ordenação e clareza discursiva são referências inegáveis. Nos contos de Caio
Fernando Abreu, essa “estética do choque e da fragmentação” mobiliza o leitor para
uma busca de significados e interpretações e incita-o a relacionar a forma literária ao
conteúdo das narrativas.
Considerando que a forma também é um “conteúdo” literário, como alerta
Adorno, é possível afirmar que as narrativas de Caio Fernando Abreu apresentam
um modo particular de elaborar experiências sociais: as cenas são fragmentadas; o
discurso do narrador é flexível, fragmentado e ambíguo; a estrutura narrativa não é
linear; a definição de tempo, espaço e personagens não é nítida; o princípio de
causalidade não é explícito. Todos esses tros indicam que as estratégias literárias
são complexas, assim como são complexas as experiências abordadas, o que
destaca a idéia de que estética e conteúdo estão em consonância, proporcionando
um equilíbrio à obra.
Os contos de Morangos mofados representam experiências de sujeitos
deslocados emocional e sexualmente e abalados física e politicamente, podendo a
idéia de “crise” ser apontada para caracterizá-los. Os personagens de “Os
sobreviventes” são sujeitos que resistem a um sistema opressor, mas sofrem por
sua impotência; os de “Pêra, uva ou maçã?” e “Morangos mofados” são seres
fragilizados e entristecidos diante da dificuldade de realização plena e os de
“Aqueles dois” enfrentam o paradoxo de serem ao mesmo tempo juízes e réus de
suas próprias histórias, acusadores e acusados, o que os deixa também deprimidos.
Essa crise que atinge os sujeitos conseqüentemente interfere na forma de abordar
as situações vividas por eles e de problematizar suas experiências. Daí a
“dificuldade da forma”
89
, percebida pela estética da fragmentação, que se constitui
como uma estratégia fecunda para a interiorização dos conflitos dos personagens e
para a problematização de suas histórias.
Essas tramas são marcadas pela violência social no sentido de que os
personagens dos contos são sujeitos que experimentam a repressão, o autoritarismo
e a agressão moral e física e que têm sua integridade atacada. Frágeis e vulneráveis
à prática da violência, os personagens de Caio Fernando Abreu manifestam, através
89
A expressão é de Rodrigo Naves em obra sobre a arte plástica brasileira. Para o autor, pintores que
retratam a situação conflitiva brasileira incorporam à forma dos quadros uma “dinâmica social
descompassada”, resultando numa “dificuldade da forma”. Conferir NAVES. Rodrigo. A forma difícil –
ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Ática, 1996.
143
de seus próprios discursos e de sua constituição psíquica, uma perplexidade diante
das situações vividas e uma consciência em relação à dificuldade de reversão do
status quo. A representação dessa violência social que atinge os sujeitos é
intensificada nas narrativas pela opção formal na medida em que tanto a fala dos
personagens e do narrador quanto a estrutura dos textos apresentam-se
fragmentadas, sendo a fragmentão um recurso adequado para a exploração de
situações extremas baseadas em práticas de violência.
As narrativas do livro, ao se mostrarem fragmentadas formal e
estruturalmente, desestabilizam o receptor, e essa fragmentação, no decorrer do
exercício de leitura dos contos, passa a ser reconhecida como uma estratégia para
causar estranhamento e provocar reflexão. Na leitura dos contos da antologia, o
leitor tem papel fundamental, já que é ele quem precisa fazer a montagem dos
fragmentos e propor um sentido aos textos, e este não é dado, precisa ser
construído atentamente com a observação à forma e ao conteúdos das histórias.
Além da mobilização ativa do leitor, a fragmentação formal é um índice que destaca
a representação de experiências sociais e humanas marcadas por sentimentos de
angústia e desolação e por episódios de violência social.
O rompimento com as convenções tradicionais de composição literária nos
contos de Morangos mofados, cuja característica aparece especialmente na
fragmentação da forma narrativa, destaca que essa é uma estratégia que procura
dar maior intensidade às problematizações temáticas do livro, assinalando uma
tendência da obra em resistir à uma estrutura literária que indique neutralidade ou
que proponha um mascaramento de experiências marcadas pela violência e pela
repressão. Um discurso linear, pautado pela objetividade e pela explicitação das
relações de causa e efeito, por exemplo, poderia minimizar o impacto do leitor diante
daquilo que é problematizado nas narrativas. Além disso, a linearidade poderia
atender a interesses de alienação no sentido de que a perplexidade e a reflexão,
necessárias à percepção de eventos baseados em episódios de violência, não
seriam provocados por uma escritura literária que não motivasse um questionamento
sobre a estrutura e a forma dos textos e sua relação com as experiências
representadas.
É preciso destacar que a fragmentação formal também atende à exploração
da constituição dos sujeitos dos contos do escritor gaúcho na medida em que seus
personagens são seres em crise, insatisfeitos com sua vida, conscientes da
144
precariedade da condição humana, enfim, melancólicos. Esse quadro que
caracteriza os personagens aponta para a impossibilidade de os sujeitos articularem
linearmente suas falas, tornando-as fragmentadas e desprovidas, aparentemente, de
lógica. A fragmentação do discurso dos personagens, nesse sentido, converge para
uma exploração mais intensa das experiências vivenciadas por eles, as quais
enfatizam o deslocamento social e sexual dos “atores” dos contos cuja marca
também é apreendida pelas experiências de perda e pela repressão.
A observação à condição dos sujeitos dos textos de
Morangos mofados e aos discursos proferidos por eles e pelos narradores das
histórias mostra que a melancolia é intensa e subjacente aos contos da obra. Não
há personagem feliz assim como não são felizes os desfechos das histórias, e o
leitor depara-se constantemente com a insatisfação e a desilusão dos personagens
que deixam transparecer através de seus discursos e de suas ações a crise que os
cerca. E essa crise vem acompanhada de um sentimento melancólico, que expressa
não só o descontentamento dos personagens, mas também a consciência deles em
relação às experiências que vivenciam. Os personagens das narrativas “Os
sobreviventes”, “Pêra, uva ou maçã?”, “Aqueles dois” e “Morangos mofados” não
crêem em mudanças significativas em suas vidas nem têm perspectivas promissoras
quanto ao futuro, embora existam projetos e sonhos simbolizados pela alusão aos
“morangos”. Os morangos estão mofados, porque o saldo das situações enfrentadas
é sempre negativo.
Essa percepção acentua a melancolia dos sujeitos e da obra como um todo. A
oposição entre o mofo e os morangos é um elemento que destaca a distância entre
o mundo projetado pelos personagens e o mundo vivido por eles e que enfatiza o
teor melancólico da coletânea, visto a dificuldade de transpor o limite que separa o
sonho da realidade. As narrativas exploram essa perspectiva melancólica de
diferentes formas, ora acentuando as experiências de perda, ora destacando a
insatisfação e o desolamento dos sujeitos, ora abordando o sentimento de culpa, e
essas diferenças de apresentação da melancolia indicam que: 1) a melancolia é
apreendida através de diversas facetas, como a perda, a insatisfação, a desilusão,
etc; 2) a perspectiva melancólica em Morangos mofados não se manifesta através
de um único elemento; 3) a adoção de uma única concepção moderna sobre a
melancolia não dá conta da experiência melancólica discutida na obra; 4) a
145
diversidade de abordagem da melancolia no livro torna mais rica a problematização
das experiências e a compreensão da condição melancólica.
Todos esses fatores levantados sinalizam que a melancolia em Caio
Fernando Abreu recebe conotação singular e que a produção literária do escritor é
plural, não permitindo um enquadramento em uma determinada concepção teórica
sobre a melancolia. Por isso, a impossibilidade de eleição de um conceito único do
tema para abarcar as experiências problematizadas na antologia do escritor gaúcho.
As referências a Julia Kristeva, Sigmund Freud e Walter Benjamin, cujas
proposições manifestam perspectivas teóricas e analíticas distintas, reiteram a idéia
de que a melancolia em Morangos mofados apresenta-se de variadas formas,
cabendo ao leitor encontrar um meio para compreensão que não minimize nem
desloque a “força germinativa” do texto ou que o coloque em gavetas fechadas.
Essa constatação advém não só da diversidade da percepção melancólica
nos contos, mas também da plurissignificação dos textos, que pode ser considerada
índice de valorização da obra e elemento que inviabiliza uma leitura definitiva das
histórias. Além disso, as narrativaso plurais por discutirem situações sociais
distintas, como a opressão política, o preconceito, a repressão sexual, a solidão, a
insatisfação pessoal, a descrença, a desestabilização do sujeito, temas que
concorrem para a abordagem de “fatos” calcados em experiências de tristeza e
desolação que geram melancolia. Essas experiências tornam-se mais intensas e
melancólicas porque estão combinadas com uma conjuntura desfavorável à
realização plena dos sujeitos.
O contexto social e político de que fazem parte os personagens da obra
caracteriza-se pela predominância de valores conservadores numa sociedade
patriarcal, conforme destacam David William Foster e Marilena Chauí ao tratarem da
sexualidade em ambientes como o brasileiro
90
, e de práticas de repressão e
violência, de acordo com proposições de José Antônio Segatto e Paulo Sérgio
Pinheiro sobre o sistema governamental e social do país
91
. O conservadorismo, a
repressão e a violência são fatores que provocam a dificuldade de ajustamento dos
sujeitos, tornando-os vulneráveis ao exercício do autoritarismo e da opressão, e que
90
As narrativas “Terça-feira gorda” e “Aqueles dois” ilustram a predominância de valores
conservadores na sociedade brasileira quanto às práticas sexuais, como já foi destacado no capítulo
anterior.
91
Os contos examinados exploram diferentes facetas da repressão e da violência praticada pelo
sistema político e social brasileiro, seja no plano moral e sexual, seja no plano individual e coletivo.
146
colaboram para a constituição melancólica da obra. Esta, nessa linha de raciocínio,
pode ser compreendida à luz das relações entre literatura, sociedade e história, visto
que as narrativas da coletânea apontam nas experiências representadas uma
conexão intensa entre os problemas dos personagens e a conjuntura social,
histórica e política em que estão inseridos.
As relações entre obra e sociedade, tal como são construídas nas narrativas,
assinalam uma perspectiva crítica acerca de problemas sociais a que fazem
referência as cenas dos contos. As posições crítico-reflexivas são desenvolvidas na
antologia a partir de um intenso trabalho com a forma literária, os temas arrolados e
o teor melancólico. Dessa maneira, a fragmentação da forma aparece como um dos
elementos que dá sustentação à perspectiva melancólica e ao pensamento crítico
que transparece em todos os contos, indicando uma inter-relação entre literatura,
sociedade e crítica social.
Os textos do escritor exploram a fragmentação formal como uma via de
abordagem e estruturação de uma perspectiva crítico-social que é também
enfatizada pelo teor melancólico subjacente aos contos. A melancolia em Morangos
mofados é oriunda da insatisfação em face de uma determinada ordem estabelecida
– a ordem moral, política e social – e revela a impossibilidade de realização dos
projetos. Nesse sentido, é possível assinalar uma elaboração da perda de “objetos
de amor”, entendendo-se como objetos de amor os sonhos e os projetos
existenciais. Essa melancolia vem acompanhada de um trabalho estético que
procura representar através da postura do narrador a insatisfação dos sujeitos em
relação ao contexto social. A melancolia em Caio Fernando Abreu dialoga
criticamente com o contexto social e histórico brasileiro na medida em que o
sentimento melancólico advém da consciência da precariedade da condição
humana, não se resumindo a um sentimento de tristeza diante da inoperância de
valores num contexto em que a repressão, a violência social e a impotência dos
sujeitos são dominantes. Como sintoma de desconforto e questionamento, a
perspectiva melancólica assinala o posicionamento crítico e ativo da obra, sendo
uma via de acesso para a dramatização de experiências sociais e para a ruptura
com um modo de pensar acomodado em lógicas lineares. A escritura dilacerada que
marca os contos de Morangos mofados assemelha-se ao projeto de construção da
“história em ruínas” (numa alusão à visão benjaminiana acerca do conceito e da
147
escritura da história), o qual não permite que sejam apagadas as marcas de um
processo social em que as vozes marginais não têm espaço.
Nas narrativas da antologia, as experiências de perda decorrentes de um
“tempo de ruínas” caracterizado como um “mal do tempo” são acompanhadas de
uma atitude crítica em relação ao contexto social e aos personagens, insatisfeitos
com sua própria trajetória, conscientes de sua impotência, mas avessos à
contemplação. A atmosfera melancólica que perpassa nos contos de Caio Fernando
Abreu é intensificada pelos enfoques à repressão, à violência, à perda de ideais, à
morte. Em íntima conexão com um tempo sócio-histórico marcado pela prática de
autoritarismo, repressão e lutas sociais, as narrativas refletem um desencanto com o
“mundo”, em que a falta de uma saída ou de uma perspectiva promissora sinaliza a
angústia e a impotência dos sujeitos frente a um sistema estabelecido. Além disso, a
problematização desse “mundo” faz com que a melancolia na obra seja ativa e
marcada pela perplexidade diante de experiências sociais. A melancolia que
caracteriza os contos de Caio Fernando Abreu e a consciência da insuficiência para
transformar a realidade circundante, tal como sugerem as narrativas do escritor,
reiteram a necessidade de se construir, de acordo com o pensamento benjaminiano,
uma experiência com o passado para evitar no presente e no futuro que as
catástrofes se repitam.
Além disso, a melancolia em Caio Fernando Abreu só pode ser
compreendida, conforme apontam os caminhos teóricos adotados, se não se perder
de vista a relação entre atividade narrativa e vida social, que é manifestada em
Morangos mofados através de uma linguagem narrativa construída “a contrapelo” e
que evidencia fissuras e descontinuidades. Estas marcam os fragmentos que
indicam as inter-relações entre produção narrativa e vida social e apontam também
uma das formas pelas quais a melancolia se manifesta, já que uma leitura de contos
da obra mostra que há uma estreita relação entre fragmentação formal e perspectiva
melancólica. A estética da fragmentação formal na antologia sinaliza para a
emergência de outra linguagem que possibilita a expressão das “fraturas provocadas
pelo contexto”. Na perspectiva de Jaime Ginzburg,
A fragmentação se tornaria adequada para a representação da realidade, na
medida em que as seguintes condições fossem satisfeitas: o entendimento do
processo histórico é problematizado, pela sua complexidade e por seu impacto, de
modo que a consciência humana, em condições convencionais, não tem como dar
conta de sua profundidade, exigindo novo modo de pensar e representar, por estar
148
em um contexto de autoritarismo e opressão, tem sua individualidade atingida, sua
integridade dilacerada, e sua expressão deixa marcas das fraturas provocadas pelo
contexto. O abandono das estruturas tradicionais – a narrativa com tempo linear,
enredo articulado logicamente, personagens planos ou coesos, o poema com metro
regular, esquema de rimas, sintaxe culta – em favor de uma concepção
fragmentária, com a subversão das referências de tempo e espaço, a adoção do
verso livre, a representação de uma subjetividade frágil, inconstante e
freqüentemente paradoxal, corresponde a uma mudança, por parte de escritores
dedicados à atitude crítica, no modo de perceber o sentido da História. Perde-se a
noção de totalidade, abandona-se a idéia de progresso. (2001, p. 30-31)
A fragmentação formal e a melancolia, então, são artifícios que consolidam a
presença do componente extraliterário na estrutura interna da obra na medida em
que condicionam não um registro de temas e problemas sociais e históricos, mas
uma representação que equilibra uma tendência estética com tendência social, tal
como propõe Benjamin ao falar da qualidade de uma obra de arte. A harmonia entre
a estética e o “conteúdo” social mostra a capacidade da coletânea em esboçar uma
perspectiva voltada tanto para o plano extraliterário quanto para o literário numa
dimensão que não limita a produção literária ao desvendamento de uma dada
realidade como ponto-chave nem à experimentação estética como único elemento
caracterizador da obra. Os contos de Morangos mofados dialogam com seu contexto
de produção na medida em que problematizam experiências sociais não só através
da opção formal, mas também através da temática, sinalizando a possibilidade de se
pensar relações entre texto e contexto que não se limitam a um “reprodução” de uma
dada realidade.
Por elaborar esteticamente experiências marcadas pela imposição do
autoritarismo, violência e repressão, as narrativas do escritor podem ser
referenciadas como exemplo de obras que permitem relacionar texto e contexto,
literatura e vida social. As narrativas do escritor, nessa linha de raciocínio,
confrontam traços violentos do país não só acerca das relações entre Estado e
indivíduo, mas também nas entre sujeitos sociais. Por isso, os contos estudados
aludem a crises emocionais e à sensação de desolamento e insatisfação, verificadas
na postura dos personagens e compreendidas como expressão de dados da
realidade social brasileira. Considerando que a sociedade brasileira é marcada
desde sua formação por valores conservadores, por um sistema político-social
autoritário e pela dificuldade de os sujeitos realizarem-se plenamente (seja no
aspecto pessoal, seja no profissional), é possível assinalar que na produção literária
estudada há uma maneira singular de elaborar experiências calcadas na
149
problematização desses traços do contexto histórico e social brasileiro. Os contos
“Os sobreviventes”, “Pêra, uva ou maçã?”, “Aqueles dois” e “Morangos mofados”
trazem elaboradas direta ou indiretamente reivindicações de ordem moral, sexual,
emocional.
A obra questiona valores do patriarcado autoritário e da moral conservadora
ao representar a possibilidade de correspondência de afetos de sujeitos
homossexuais, abalando os padrões de sexualidade socialmente legitimados e
confrontando preconceitos. É o caso da abordagem de “Terça-feira gorda” e
“Aqueles dois”, narrativas que se propõem a questionar princípios morais da
sociedade conservadora e patriarcal através de recursos estéticos que não se
propõem a levantar bandeira de causas sexuais nem a inserir o escritor numa
chamada “cultura global gay” como sinaliza Fernando Arenas.
A temática da sexualidade e do homoerotismo em Caio Fernando Abreu
conduz a uma reflexão sobre valores morais socialmente legitimados num espaço
em que o “diferente” passa a não ter direito de aceitação social, tornando-se
indivíduo à margem dos processos sociais. Essas narrativas problematizam
situações exemplares para a discussão de experiência de violência social e
discriminação na medida em que exploram uma visão de mundo que se opõe a um
padrão vigente de comportamento e conduta moral. A sociedade passa a ser vista
como uma entidade que, autoritária e conservadora, exclui o “ex-cêntrico”,
reprimindo e condenando-o. E essa proposta conduz à idéia de que as narrativas da
obra não banalizam as experiências homoeróticas, mas, ao contrário, promovem
uma reflexão e uma humanização ao leitor, apreendidas através da construção das
cenas e de personagens marginalizados.
Essa abordagem, assim como a da repressão política e da insatisfação do
sujeito, conduz à perspectiva crítica dos contos de Morangos mofados, uma
perspectiva amparada por uma realização estética que está em consonância com a
proposta temática da obra. A fragmentação formal, nessa linha de raciocínio, dialoga
com circunstâncias sociais e históricas marcadas por imagens de violência e
desumanização, sendo que as contingências de natureza externa passam a
desempenhar um papel intrínseco à estética da obra. A fragmentação formal do livro
de Caio Fernando Abreu e a melancolia da obra aponta uma conexão da forma
literária com interiorização das experiências sociais e históricas e é uma das facetas
que caracteriza a literatura do escritor, embora outros elementos de análise possam
150
ser abordados em uma pesquisa sobre a produção do autor, como a hibridização de
gêneros, o plurilingüismo, a poeticidade narrativa, etc. Neste trabalho, o enfoque
sobre a fragmentação formal e a melancolia que convergem para a construção de
uma crítica social indica um dos caminhos de leitura, não o único, porque a obra
Morangos mofados é aberta a variadas interpretações. Esta pesquisa não contempla
uma leitura de conjunto da produção do escritor, envolvendo um corpus maior de
análise e livros de distintos gêneros textuais: o limite de preparação do texto
dissertativo não permitiria o desenvolvimento adequado de uma abordagem mais
ampla; por isso, a necessidade e a pertinência de um recorte ao objeto de
investigação para este trabalho. O tópicos elegidos para a investigação são
elucidativos de uma tendência de Caio Fernando Abreu e evidenciam que a forma
das narrativas obedece a uma descontinuidade em micro e macro-extensão.
Além da fragmentação em nível formal e estrutural das narrativas de
Morangos mofados, é preciso assinalar a fragmentação externa da obra, entendida
pela desconexão aparente entre os contos de cada parte do livro e das partes entre
si. A fragmentação interna e externa na coletânea também é indício de uma ruptura
com os padrões tradicionais de composição literária e servem como estratégia crítica
para abandonar a idéia de progresso na história e optar pela abordagem
“materialista” do processo histórico. Essa transgressão narrativa, percebida ainda na
abolição da linearidade e da objetividade da linguagem, é índice que associa os
contos do escritor à tendência moderna da obra de arte apontada por Adorno e
Benjamin.
Os acontecimentos tratados em narrativas fragmentadas procuram não
circunscrever a obra a um único referencial, já que a fragmentação indica a
plurissignificação dos textos e a possibilidade de leituras variadas. Esse traço
também imprime à obra de Caio Fernando Abreu uma “forma aberta”, de caráter
inconcluso e leituras diversas, estando, nesse sentido, condizente com a perspectiva
dos teóricos de Frankfurt quanto à pluralidade interpretativa das obras. Para Adorno
e Benjamin, a produção artística deve instigar no leitor um processo de busca pela
significação, mas, para que tal movimento seja assegurado, a estética da obra dever
ser eficaz.
Essa opção pela estética do fragmento não é gratuita na obra do escritor,
mas, pelo contrário, é significativa da abordagem crítica que seus textos
proporcionam. Todos esses fatores – a fragmentação formal, a abolição da estrutura
151
tradicional, a visão do marginalizado – possibilitam identificar na obra de Caio
Fernando Abreu uma perspectiva crítica que suscita reflexões e não impõe ao leitor
um sentido definitivo. A noção de que a obra literária deve ser “aberta” e ter uma
“força germinativa” capaz de promover leituras diversas e interpretações renovadas
é defendida por Benjamin e essa parece ser uma marca do texto de Caio Fernando
Abreu. Tal prerrogativa é constatada em face à diversidade de leituras encontradas
sobre a produção do autor e especialmente em relação à construção de seus textos,
que permite interpretações plurais e perspectivas críticas variadas.
A exploração de estruturas fragmentárias, aliada às tendências temáticas,
impulsiona a identificação do caráter melancólico da produção de Caio Fernando
Abreu, considerando-se melancolia não só como um sentimento de perda, mas
também como uma consciência acerca da precariedade da condição humana e dos
fatores sociais que apontam para a desestruturação do sujeito e sua marginalização.
O movimento melancólico em Morangos mofados não pode ser desvinculado, tal
como sugerem Benjamin, Kristeva e Scliar, da conjuntura social, política e histórica
que está subjacente nas narrativas. Por isso, a articulação entre texto e contexto de
produção na análise dos contos do livro é pertinente, tal como mostram as análises
de narrativas desenvolvidas neste estudo. A perspectiva melancólica defendida por
Scliar é particularmente produtiva para a compreensão da melancolia em Caio
Fernando Abreu no sentido de que a proposta do ensaísta é a de articular
sentimento de tristeza a um conjunto de traços desfavoráveis de um dado contexto
social e histórico. Por problematizar a história, abandonando uma concepção
idealizada do Brasil e apontando riscos de banalização de experiências sociais em
sentido amplo, os contos de Caio Fernando Abreu expressam uma perplexidade
diante de experiências sociais marcadas por perdas, insatisfação, crises emocionais,
etc, as quais sinalizam a presença de um melancolia na obra do autor.
Questionar de que modo a produção de um autor incorpora à narrativa
conflitos da sociedade a que se refere o texto é um meio para compreender como se
estabelecem as relações entre estrutura literária e artística e condicionamento social.
Caio Fernando Abreu é um escritor que se preocupou em discutir literariamente
problemas da experiência humana e conflitos sociais, propondo uma perspectiva
singular para a formação e humanização do homem. Seus textos são elaborações
literárias que combinam elementos de ordem social com elementos de ordem
estética, num trabalho artístico que rompe com as convenções tradicionais de
152
linguagem e composição e que aponta para a necessidade de se defender valores
humanistas, tal como propõe Antonio Candido.
Os textos de Caio Fernando Abreu problematizam experiências de “violência
social”
92
em contos cuja temática ora é o homoerotismo ora é a repressão política
ora é a repressão moral ou a insatisfão/frustração do sujeito e esses temas
provocam no leitor uma reflexão sobre valores humanistas ao sensibilizá-lo quanto à
experiências de violência social. O modo como os textos são elaborados enuncia
uma perplexidade que se manifesta em dois níveis: um relacionado à impotência de
lutar contra as amarras impostas pelo sistema social, e outro ligado ao
estranhamento da forma. Este último traço, que caracteriza as rupturas com o modo
convencional de construção narrativa e a instabilidade do narrador, pode ser
compreendido como uma estratégia para expressar a dificuldade de elaboração das
experiências sociais. Essas estratégias formais e a abordagem temática, reveladas
pela tensão interna da obra em consonância com a tensão externa, induzem à
percepção de uma desarmonia social. Nesse sentido, os contos do escritor
sublinham um olhar inquieto acerca dos processos de violência social do período
autoritário brasileiro e da sociedade conservadora, e esse olhar marcado ainda pela
perplexidade não deixa de ser também melancólico e crítico. A obra de Caio
Fernando Abreu é representativa da impossibilidade de conciliação de perspectivas
antagônicas que estão na base da realidade histórica, marcada por tensões sociais
e culturais, e a forma como isso está problematizado na obra configura uma crítica
social ímpar.
Todas essas articulações (entre forma fragmentada e conteúdo social e entre
perspectiva melancólica e contexto de produção) estão interligadas e assinalam que
a construção formal dos contos afasta a obra das narrativas de cunho documental.
Isso torna-se evidente porque há um distanciamento do realismo nu e cru e os textos
não se propõem a apresentar uma “radiografia” ou uma “fotografia” de uma
determinada realidade social, tal como indica a maioria dos discursos críticos sobre
a obra do escritor, referenciados no primeiro capítulo deste trabalho. A idéia de
“radiografia” ou “fotografia” sugere a apresentação de um discurso que copia uma
realidade e que objetiva registrar eventos. O exame dos contos de Morangos
92
A expressão “violência social” é usada por Antonio Candido em artigo sobre as relações entre
violência e literatura no Brasil e designa as formas de violência física e mental. CANIDO, Antonio.
Censura-violência. In: __. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 205.
153
mofados mostra que a forma como são representadas as experiências sociais
impede uma simples “cópia” do real no sentido de que o recurso estético usado não
atende a essa proposta: a fragmentação formal das narrativas opõe-se à idéia de
fotografia e acentua a necessidade de “montagem”, de estilhaçamento de imagens,
contrariando a adoção de uma visão já dada ou reproduzida.
A leitura proposta para a antologia não nega que os textos estabelecem
relação com um momento histórico especifico, mas destaca que a referencialidade
da obra não configura as narrativas de Morangos mofados como “documento” de
uma época ou de uma geração. Afirmar que os contos de Caio Fernando Abreu são
uma fotografia ou um documento de uma geração ou de uma época pode ser uma
forma de minimizar o potencial criativo e crítico que singulariza o livro. A exploração
da estruturas fragmentadas nas narrativas é índice que comprova o distanciamento
dos contos à literatura do tipo documento ou fotografia.
O recurso da fragmentação também não deve ser interpretado como uma
simples “experimentação da linguagem”, visto que não é uma estratégia gratuita ou
casual nem um capricho do autor. A fragmentação procura causar estranhamento
formal e motivar a reflexão sobre as situações abordadas nos contos, além de
manifestar uma estreita conexão com a perspectiva melancólica dos sujeitos criados
por Caio Fernando Abreu. Se a fragmentação não mantivesse relação com o
conteúdo das narrativas, não poderia ser referenciada como fator que intensifica a
problematização das situações vividas pelos personagens e que condiciona o
equilíbrio entre tendência estética e tendência política na obra.
Além da fragmentação, da melancolia e do equilíbrio entre o estético e o
político, os contos de Caio Fernando Abreu permitem outros desdobramentos de
análise, como os propostos pelos estudos comparatistas. Estes, ao aproximarem a
obra do escritor a outras formas de manifestação artística, relacionando-os com
base em diferentes perspectivas, ampliam as reflexões sobre o texto do autor de
modo a apontar aspectos singulares de sua produção, os quais mostram diálogos da
obra e um rompimento com a temática comumente explorada na literatura regional.
Esses traços revelam ainda que a produção literária do criador de Morangos
mofados ignora fronteiras espaciais e culturais, promovendo uma inter-relação
artística que impede uma visão restrita da potencialidade temática, crítica e literária
da obra.
154
Com base nessas observações, é possível assegurar que os textos do
escritor, pela sua forma de elaboração estética e perspectiva crítica, não permitem
“etiquetar” ou “guetificar” sua literatura. Nesse sentido, categorizações do tipo
“cultura gay”, “autor de geração”, “conto de atmosfera”, por exemplo, referidas por
diferentes ensaístas na abordagem da produção de Caio Fernando Abreu, parecem
não contemplar a especificidade e a natureza singular da obra do autor, embora
façam alusão a alguns elementos constitutivos das narrativas. A análise
desenvolvida nesta pesquisa acena para a necessidade de se associar forma e
conteúdo, literatura e vida social na representação da condição humana na obra,
não havendo, portanto, a necessidade de rotulação dos textos quanto ao tipo de
abordagem apresentada ao leitor, tal como acreditava o próprio escritor ao dizer:
“gostaria que uma pessoa, ao ler um livro meu, percebesse a dimensão disso, e não
ficasse procurando classificações”, pois a aplicação de rótulos literários “é uma
discussão muito perigosa” e “uma tentativa de colocar as coisas em prateleiras, para
que elas não sejam perturbadoras.”
93
93
ABREU, Caio Fernando. In: COUTINHO, Sônia. Ficção nos tempos de cólera. O Globo, Rio de
Janeiro, 15 de maio de 1988.
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