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TAÍS GRACIELE LINASSI RUWER
MORAL CONTRA A EXCEÇÃO:
uma reflexão sobre educação a partir de Nietzsche
Ijuí
2008
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TAÍS GRACIELE LINASSI RUWER
MORAL CONTRA A EXCEÇÃO:
uma reflexão sobre educação a partir de Nietzsche
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação nas Ciências da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul UNIJUI, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Educação nas Ciências.
Orientador: Prof. Dr. Claudio Boeira Garcia
Ijuí
2008
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À alegria, à vida, ao devir.
Agradeço
aos professores Claudio, Vânia e Paulo...
e ao Daniel, à Nilza e ao Jorge
“O mais inequívoco indício de
menosprezo pelas pessoas é levá-las em
consideração apenas como meios para
nossos fins”
Nietzsche, 2006, p.244
“Noutro tempo o espírito era Deus;
depois fez-se homem; agora fez-se populaça”
Nietzsche, 1999, p.45
RESUMO
O presente estudo possui como tema central a educação. Objetiva, através de
uma metodologia qualitativa, do tipo revisão bibliográfica, analisar esta temática a
partir da filosofia de Friedrich Nietzsche. Propõe, para tanto, a seguinte questão:
possui a educação um fim, uma finalidade? Aborda a noção de causalidade,
analisando as falsas noções de causa e efeito, conforme o entendimento do filósofo,
para situar como o pensamento educativo é direcionado pelo pensamento causal, por
uma intencionalidade, no intento de concretizar um determinado objetivo, uma
finalidade inerente à educação. Discute a noção de Nietzsche de moral das
intenções, e, por conseguinte, apresenta uma leitura acerca do que este autor
entende por moral. Apresenta, ainda, uma análise dos objetivos da educação com o
ensino da ciência. Para tanto, debate as características do pensamento científico
enfatizadas pelo filósofo, as relacionando à finalidade moral da educação, à disciplina
do gosto pela regra. Entende que a educação é norteada por uma finalidade moral,
que visa a sustentação dos valores tradicionais da sociedade, objetivando, para tanto,
a formação de indivíduos adaptados, a formação da regra, de instrumentos úteis à
sociedade. Todavia, conclui, com Nietzsche, que não há um percurso prévio, ou
garantias causais de se produzir determinados efeitos, para alcançar um objetivo
esperado. O indivíduo não é conseqüência de uma intencionalidade e não possui um
fim que o transcenda. Não há um fim, uma finalidade para a educação ou para a vida.
Palavras-Chave: Causalidade; Finalidade; Moral; Educação; Nietzsche.
ABSTRACT
The present study has as main subject, the education. It intends, through a
qualitative methodology, of the type bibliographical revision, analyze this thematic in
Friedrich Nietzsche’s philosophy. The following question is proposed: does the
education have a goal, a purpose? So, it broaches the notion of causality, according to
Nietzsche’s philosophy, developing an analysis of the false conceptions of cause and
effect, to think about how the educative thought is directed by the causal one, by an
intentionality, to became a education’s purpose. It discusses Nietzsche’s conception of
moral of the intentions, and, therefore, it presents a reading about the author’s
understanding by moral. It also presents, an analysis of the education goals with the
science teaching. So, it argues the characteristics of the scientific thought,
emphasized by the philosopher, relating them, to the moral purpose of the education,
and to the discipline of taste for the rule. It understands that the education is guided by
a moral purpose that objectives the sustentation of the traditional values of the society,
the formation of adapted people, the formation of the rule, useful instruments to the
society. However, it concludes, with Nietzsche, that there isn’t a previous way or
causal guarantees to produce effects, to became an objective. The individual condition
is not consequence of an intention and it does not possess an objective that exceeds
it. There is no end, no purpose for the education or for the life.
Key-words: Causality; Purpose; Moral; Education; Nietzsche.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10
1 MORAL DAS INTENÇÕES OU O FIM MORAL DA EDUCAÇÃO ................... 13
1.1 Causalidade ................................................................................................ 21
1.2 Moralidade .................................................................................................. 37
2 PARA QUE SERVE SERVIR? ......................................................................... 49
2.1 Para que serve a ciência? .......................................................................... 49
2.2 ‘Moral’ da história ....................................................................................... 64
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 83
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 91
INTRODUÇÃO
Possui a educação uma finalidade? Essa é a pergunta que direciona nossa
abordagem ao tema da educação na obra de Friedrich Nietzsche. Para abordarmos a
questão, através de uma metodologia qualitativa, do tipo revisão bibliográfica,
estabelecemos dois percursos o primeiro, dedicado ao exame dos valores
transmitidos através da educação que visam à formação da regra e o segundo expõe
o caráter dos conteúdos ensinados, que objetivam a formação do gosto pela regra,
contra a exceção e que englobam aspectos como a ciência, a moral e o pensamento
causal.
O primeiro percurso, realizado no capítulo I, relaciona a educação aos valores
morais que a orientam. Indaga: há, para Nietsche uma finalidade, um objetivo
almejado através dos processos educativos? uma intencionalidade inerente ao
pensamento educacional qual seja: formar contra a exceção, ou em outros termos, a
formação da regra, do comum? Para responder essas questões abordamos, no
primeiro capítulo, as considerações de Nietzsche sobre os objetivos da educação
enquanto fins utilitários, adaptativos, de conservação e domesticação, como uma
tentativa de igualar, massificar o homem.
No primeiro capítulo são destacadas as seguintes considerações de Nietzsche:
quando se entende que uma finalidade para a educação, ou seja, que um
motivo pelo qual ela deva existir e ser justificada, também se aceita que, na busca
desse telos, os procedimentos adotados nas práticas educativas se insiram em uma
lógica causal, isto é, que certos procedimentos devem ser seguidos para realizar os
objetivos pretendidos. Que tais procedimentos são o móvel do processo; as causas
que produzem determinados efeitos em direção a um objetivo final a formação da
regra.
11
Nietzsche no Crepúsculo dos Ídolos, ao abordar o que denomina de
pensamento causal aponta para quatro grandes erros estabelecidos em relação à
noção de causalidade: o erro da confusão entre causa e efeito; o das causas
imaginárias; o da causalidade falsa e o do livre-arbítrio. Para o autor, esse tipo de
pensamento concebe que para tudo o que ocorre deva, necessariamente, existir um
móvel, uma causa desencadeante. Seus argumentos contra essa concepção estão
embasados em sua concepção de vontade (vinculada aos impulsos e ao corpo), por
isso, nosso estudo dedica especial atenção a este assunto.
Ao vincularmos a idéia de finalidade, de um telos esperado, ao pensamento
causal, depreendemos que para além de uma finalidade para a educação esta se
configura enquanto uma finalidade moral. Nestes termos, a educação articula-se e
prega os valores morais vigentes em uma determinada sociedade; sua
intencionalidade é direcionada para a manutenção, reprodução e à massificação
destes valores.
A descrição do que Nietzsche entende por moral propicia pode ser esclarecida
mediante o exame de sua proposição designada por ‘moral das intenções’ a qual
remete para a noção segundo a qual a ação supostamente intencional, consciente
em direção a uma finalidade específica é necessariamente moral. Sendo essa a
acepção – a de moral das intenções – que toda moral assume até o presente.
O segundo capítulo estende as reflexões do autor para as conseqüências de
uma educação desenvolvida segundo os objetivos e propósitos examinados no
capítulo anterior, e, move-se em torno do seguinte argumento do autor: a formação
do gosto contra a exceção objetivo que se vincula à instrução, aos conteúdos
ensinados. Demanda, para tanto, um exame de algumas características do
conhecimento científico, assim como dos objetivos daquilo que é transmitido,
ensinado. Trata-se de examinar os objetivos utilitaristas, fundamentalmente presentes
na ciência de tradição metafísica, considerados, sobretudo, em relação ao tema
verdade, isso porque é justamente pela afirmação de uma verdade e da formatação
do gosto pela busca da verdade, que o gosto pela regra é formado.
12
Entendemos que esses dois percursos de abordagem nos oferecem um
processo seguro de abordagem à crítica nietzschiana ao pensamento educativo
corrente. Resta-nos, ainda outra questão crucial: Seria o filósofo contra a educação?
Isto é, propõe Nietzsche que não mais se eduque, uma vez que a educação é
direcionada para uma finalidade moral de massificação? Propõe o autor uma
alternativa para tal educação? Poderíamos pensar em uma educação que ao invés de
formar a regra, reproduzir valores, objetivasse o contrário, a formação de exceções?
Configurar-se-ia, assim, uma finalidade distinta para a educação? A abordagem
destas questões conclui nosso estudo e apresenta nosso posicionamento acerca de
nossa questão norteadora – possui, de fato, a educação uma finalidade?
1 MORAL DAS INTENÇÕES OU O FIM MORAL DA EDUCAÇÃO
Por maior importância que possa haver em conhecer os
verdadeiros motivos que moveram a humanidade até nossos
dias, é talvez ainda mais importante para quem busca o
conhecimento saber quais são aqueles que podem ser
acreditados pelos homens, quer dizer, aqueles que sua
imaginação pode considerar como alavancas para seus atos.
Sua felicidade e sua miséria íntimas vieram-lhe efetivamente da
que teve nestes ou naqueles motivos e não naquilo que foi
motivo autêntico (NIETZSCHE, 1981, p.72).
Nosso estudo desenvolve uma análise da filosofia de Nietzsche acerca do
pensamento educativo, abordando principalmente temas como a moral, a ciência, a
verdade, causalidade, finalidade e a vontade. Para tanto, orienta-se pela seguinte
questão: possui a educação uma finalidade? E, decorrente desta, indaga, de maneira
mais específica, se a educação possui um fim moral.
Ao nos remetermos aos objetivos da educação direcionamos nossa reflexão
para a abordagem do vínculo educação e moral, analisando como, para Nietzsche, os
objetivos postulados pelo pensamento educativo constituem-se em um telos moral e
como os sentidos, tanto do processo educacional, mas também, dos conteúdos, das
explicações de mundo dadas no contexto educativo afirmam-se como valores morais.
Assim, atribuímos inicialmente às indagações colocadas por nosso estudo uma
resposta afirmativa. Vejamos se isto se sustenta.
Para refletirmos sobre as interrogações postas, tomamos como norteador,
neste capítulo, a crítica de Nietzsche a idéia de causalidade e de finalidade,
sobretudo quando aplicadas à educação. Para Nietzsche, causalidade e finalidade
são compreendidos como elementos de um mesmo processo, sendo a primeira o
móvel da ação e a segunda o seu elemento motivador. O pensamento causal é
compreendido aqui como o entendimento de que um determinado fato necessita de
uma causa que o determine. Ou seja, supõe que um evento possui uma causa que
14
por sua vez produz certos efeitos em direção a uma finalidade específica. Entende,
pois, que há um objetivo, um sentido final, teleológico, para cada fenômeno produzido
ou alcançado, controlando causas e efeitos. Assim, iniciamos nossa discussão
abordando os objetivos, da educação enquanto elementos integrantes do
pensamento causal.
Entende-se comumente o objetivo, a finalidade, como o motivo de uma ão
em determinada direção. Nietzsche propõe que
Estamos habituados a ver a força ativa no objetivo (a finalidade, a vocação,
etc...) segundo um erro antigo (...). O ‘objetivo’ e a ‘intenção’ são, na maioria
dos casos, simples pretextos decorativos, uma cegueira deliberada da
vaidade que não quer admitir que a nau seguiu a corrente onde entrou por
acaso!? (...) necessita-se ainda uma crítica a idéia de ‘objetivo’
(NIETZSCHE, 1981, p. 256).
Se compreendermos que o pensamento educativo possui um objetivo, este se
insere e se orienta pela noção de causalidade; pois, propõe uma finalidade específica
para ser atingida, uma intencionalidade, que pode ser alcançada seguindo
determinados procedimentos, sendo o próprio objetivo o motivador, a força ativa do
processo por vezes entendido erroneamente também como causa
1
. Conforme
veremos adiante, para Nietzsche, a idéia de causalidade insere em si um fim moral
moral das intenções uma vez que retira “a inocência do devir” (NIETZSCHE,1976,
p.46 ) e estabelece relações falsas de causa e efeito, afirmando a crença em um eu,
um querer e uma consciência causal, em detrimento dos afetos e impulsos; o que
nos permitirá pensar a finalidade como um engano, ‘um pretexto decorativo’.
Supor que a educação possua um fim, um objetivo, demanda interrogar qual
seria este? Para que serve a educação? Por que ensinar matemática, química ou
filosofia? Qual a utilidade dessas disciplinas e da própria educação? Quais os
objetivos e sentidos atribuídos à educação?
1
Antecipamos aqui a descrição do que Nietzsche considera, frente à idéia de causalidade, um ‘erro’, o
das causas falsas ao passo que o objetivo, a finalidade, assume o caráter de causa de si mesmo,
elemento central da critica à idéia de objetivo que o autor considera ainda necessária, conforme
citamos – discussão que apresentamos a seguir.
15
Para tanto, orientamos nosso estudo por dois percursos de análise. Primeiro,
seguimos pela abordagem dos pressupostos educativos com relação a formação do
indivíduo e da sociedade. Isto é, os valores que se busca tradicionalmente transmitir
na construção de um sentido para a vida.
Por outro lado, o de que a educação se ocupa essencialmente com o ensino
do que se consolidou enquanto científico seja nos níveis iniciais ou na formação
acadêmica. Assim, seguimos nosso debate pela análise do conhecimento,
fundamentalmente o expresso como ciência, para entendermos seus
direcionamentos
2
. Todavia, é certo que estes dois caminhos de análise irão se
confluir.
Nietzsche nos sugere estes percursos ao afirmar: “A educação: um sistema de
meios visando a arruinar as exceções em favor da regra. A instrução: um sistema de
meios visando a elevar o gosto contra a exceção, em proveito dos medíocres”
(2007b, p.227). O autor apresenta aqui, primeiro a educação em um sentido amplo,
como uma maneira de enquadramento, de adaptação à regra, em suma, aos valores
vigentes da sociedade, para então, afirmar a instrução
3
(o ensino das ciências) como
sustentador para tal intento – disciplinando o gosto contra a exceção.
Temos assim, a transmissão de determinados sentidos valores e a
transmissão da ciência instrução que determina o gosto pelos primeiros, ou, dito
de outra maneira, o gosto contra o que escapa aos primeiros, a exceção. Dois
caminhos que se encontram e servem ao mesmo objetivo, a massificação contra a
exceção a formação de indivíduos de acordo com a regra, de instrumentos para a
sociedade.
Até agora, a educação’ não tinha em vista senão o ganho da sociedade:
não o ganho maior possível do futuro, mas aquele precisamente da
sociedade existente. Não se queria para ela senão os ‘instrumentos’
(NIETZSCHE, 2007b, p.225).
2
Ver item 2.1.
3
Não nos interessa aqui abordar o debate entre instrução e educação, no sentido de estabelecer
distinções ou encontros teóricos destes conceitos. Nossa distinção é tão somente metodológica, com o
intuito de analisar estes dois elementos que entendemos sempre presentes no processo educativo.
16
Por que massificar, porque evitar exceções? Que tipo de indivíduos–
instrumentos se pretende e quais os valores ‘pregados’ para tanto? Em A Gaia
Ciência (1981), Nietzsche afirma que “a natureza vulgar”, a comum, a regra, “é
reconhecida por que nunca perde seu proveito” (p.39). Trata-se, de através da
valorização de um tipo vulgar de indivíduos, da perpetuação de uma tradição de
valores, de uma sociedade, formando indivíduos que se tornam instrumentos para
tanto, em benefícios de todos. Trata-se, de ser útil, de afirmar como fim um ‘bem-
estar’ da sociedade, pela consolidação do que está instituído e que assim caminha
para a naturalização.
O homem comum é a regra; para o pensamento educativo estabelecido
interessa a regra, uma vez que adaptado, o indivíduo trará ganhos para a sociedade.
Interessa o velho, e não o novo; “só o velho é bem” (NIETZSCHE, 1981, p.41). Ao
contrário, as exceções, “os espíritos fortes e os espíritos malignos (...) obrigaram a
natureza humana aos maiores progressos” (p.41). Suas ações, diferentemente dos
que visam a sustentação da regra, do instituído, direcionam-se para o novo, para a
contradição, para a confrontação das crenças, dos ideais, das opiniões, despertam o
que as “sociedades policiadas” (p.41) fazem dormir. São, por conseguinte, vistos
como ‘malignos’, pois ameaçam a ordem da sociedade.
O novo, de qualquer forma, é o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar
os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é bem! Os homens de bem
de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente as velhas
idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas
todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o revolva
(NIETZSCHE, 1981, p.41).
Os ‘homens de bem’, a regra. Eis o que a educação objetiva. Mas quem são
eles? São homens virtuosos, no sentido em que suas virtudes o proveitosas para a
sociedade (NIETZSCHE, 1981, p.54). É o homem que trabalha para todos, no
interesse da sociedade.
17
Nietzsche demonstra que a virtude deste direciona-se exclusivamente para o
conjunto, em detrimento dos interesses individuais, particulares mesmo que o
indivíduo possa aparentemente obter certos ganhos, como honras e outros benefícios
em função de sua posição virtuosa. A sociedade louva essa virtude, todavia, “quando
se possui uma virtude (...) se é vítima dessa virtude!” (NIETZSCHE, 1981, p.54). Um
exemplo, citado pelo autor (p.54-55), que demonstra sua afirmação, é o de um jovem
que ‘se matou de tanto trabalhar’. Seu trabalho, de “grande importância” é para todos;
sua morte, uma grande perda: não pelo seu sacrifício, mas pela perda de “um
instrumento submisso (...) um homem honesto, como se costuma dizer. (...) é o
instrumento que é louvado quando as virtudes são louvadas” (p.55).
A virtude é, nesse sentido, uma tendência prejudicial à vida privada
É verdade que em vista da educação, para inculcar hábitos virtuosos, tira-se
da virtude uma série de resultados que a fazem irgêmea do interesse
particular, e esse parentesco, de fato existe! Representa-se, por exemplo,
um zelo cego, uma aplicação encarniçada, virtude típica do instrumento,
como caminho da riqueza e das honras, como veneno mais eficaz contra o
aborrecimento e as paixões; mas esconde-se seu perigo, seu perigo
superior (NIETZSCHE, 1981, p.55).
O discurso educativo, ao buscar afirmar tal virtude, a de ser instrumento,
ensina as vantagens dessa, em benefício de todos, contudo, omite seus perigos ao
próprio virtuoso. A virtude, a regra, a submissão a esses valores acaba, também pela
educação, por se tornar um hábito.
“A educação logra sucesso, qualquer virtude individual se torna utilidade
pública e desvantagem privada tendo em vista o fim supremo do indivíduo”
(NIETZSCHE, 1981, p.56). Trata-se do princípio do bem de todos, do altruísmo, que
exige do indivíduo inclinações como humildade, desinteresse pelo seu próprio
progredir, indiferença, ‘justificados’ pela utilidade dessa virtude.
O sentido atribuído à virtude altruísta, ao bem comum, aproxima-se com a idéia
que Nietzsche apresenta como a doutrina do objetivo da vida’ (1981, p.35).
Referimos-nos a noção que entende que a vida humana, e assim, a sociedade, a vida
em sociedade, possui um objetivo daí a suposta necessidade de servir a todos. “O
18
homem deve trabalhar para a sua vida e a de seus semelhantes, porque ...!” (p.37).
Está suposto um motivo, um objetivo, uma finalidade, ou seja, um porque
transcendente para suas ações; o objetivo da vida.
Para acreditar na vida, atribui-se um valor à vida; um significado para a
existência, uma razão, um porque, proferido pelos ‘mestres da moral’ em sua “cátedra
de professor de objetivo da vida” (NIETZSCHE, 1981, p.37). Cria-se uma série de
deveres que precisam ser cumpridos pelo indivíduo, pois nestes estaria o sentido da
vida.
É porque tudo que sempre acontece necessariamente, o que acontece por si
mesmo e sem nenhuma finalidade aparece doravante como tendendo a um
fim e parece ao homem razão e lei suprema. (...) é por isso que ele [o
mestre da moral] inventa uma outra vida, uma segunda vida e que por meio
de uma nova mecânica faz soltar de seus velhos e vulgaríssimos gonzos
nossa velha existência tão vulgar (NIETZSCHE, 1981, p.37).
Em suma, estabelece-se um fim, uma finalidade para o que não senão
devir. Isto é, constroem-se culturalmente objetivos e sentidos, uma valoração para
vida. Através da doutrina mencionada por Nietzsche, passa-se avaliar a vida pela
finalidade atribuída a ela. Cria-se outra vida que não é critério de avaliação dos
valores, mas que é valorada e, portanto, pode ser avaliada, julgada pela sua
utilidade
4
. A educação somente passa a ter um fim quando serve a um objetivo maior
um objetivo da vida -, algo a mais; quando é útil e produz ou reproduz indivíduos
igualmente úteis – máquinas, instrumentos, adequados aos valores vigentes.
Pelo seu dever, em relação ao objetivo da vida, o homem comum é um
instrumento útil para a sociedade. “Toda conveniência útil prolifera ainda em toda
terra!” (NIETZSCHE, 1981, p.98). O homem útil, o instrumento, a máquina, o que
trabalha sem cessar, esse cumpre o objetivo da existência. E a educação? Esta lhe
indica o caminho, tal como Nietzsche o menciona em Crepúsculo dos ídolos (1976),
4
Esta referência concerne ao que Nietzsche designa por ideal ascético, que pode ser definido
conforme Azeredo (2003) como “um instinto não satisfeito, um instinto que vem em contradição à
vontade de vida (..) um artifício” (p.171-172), que apresenta-se como possibilidade de preenchimento
do vazio existencial, impedindo, com isso, a negação da vontade, embora seja expressão de uma
vontade de negar” (p.188), depreciar a vida, justamente por opor a ela, ao mundo, um outro mundo,
para além do sensível, ou um objetivo que transcenda a vida. Todavia, não nos dedicamos a este tema
- o ideal ascético – para não escapar do foco de nosso estudo.
19
sobre a instrução superior o que, todavia, entendemos que se aplica a todo
processo educacional.
- Qual é o objeto de toda instrução superior? Converter o homem numa
máquina. Que meios devem ser empregados para isso? Ensinar o homem a
aborrecer-se. Como se consegue isso? Com a noção de dever. Que modelo
se deve propor? O filólogo, que ensina a trabalhar sem descanso
(NIETZSCHE, 1976, p.80-81).
Temos assim, um direcionamento maior, um dito objetivo da vida seja qual
for. Mas ainda outros valores que compõem esse contexto e merecem ser
mencionados, pois corroboram a noção aqui apresentada.
A recriminação da ociosidade e o domínio sobre si mesmo, inserem-se em
nossa discussão como sentidos pregados, mas também como objetivos morais
esperados pela sociedade os quais a educação da regra busca enquadrar os
indivíduos. Nietzsche (1981, p.211-212) destaca que a ociosidade e o repouso são
apresentados pelos ‘professores da moral’ como princípios contrários às supostas
necessidades do mundo. A lei é o trabalho incessante, a pressa, o movimento, a
precisão.
Tem-se vergonha do repouso, a meditação mais demorada causa remorsos.
Reflete-se com o relógio na mão, da mesma forma como se almoça, com os
olhos fixos no correio da Bolsa, vive-se como alguém que temesse ‘deixar
escapar alguma coisa’. ‘Mais vale fazer qualquer coisa que não fazer nada’ –
também este princípio é uma ‘abertura’ para dar golpe de graça em qualquer
gesto superior (NIETZSCHE, 1981, p.211).
O próprio lazer é aceito somente quando entendido dentro dessa lógica; como
continuação do fazer e não como ócio ou contemplação. Nega-se a alegria; nega-se o
prazer. Se um indivíduo faz uma caminhada o faz não pelo prazer, mas pela saúde
(NIETZSCHE, 1981, p. 212), por exemplo.
20
Pois a vida à procura de ganho força o espírito, incessantemente, a se
estender até o esgotamento, numa dissimulação constante, com a intenção
de enganar ou prevenir; a verdadeira virtude consiste atualmente em fazer
alguma coisa mais rapidamente que outro. (NIETZSCHE, 1981, p.211).
Qual é a dissimulação, o engano referido aqui por Nietzsche? Entendemos
este como renúncia, como suposta necessidade de domínio sobre si mesmo, que
supõe a renúncia aos impulsos em prol dos ‘ganhos’ da virtude.
O pensador afirma que, os ‘professores da moral, expressão recorrente em sua
obra, recomendam que o homem domine a si mesmo. Isto é, tenha domínio sobre
suas inclinações, que desenvolva uma “irritabilidade constante diante dos impulsos”
(NIETZSCHE, 1981, p.199). Atitude que coloca o homem em uma posição defensiva,
atento, desconfiado “armado contra si mesmo” (p.199).
“Sim, com isto pode-se ser grande!” (NIETZSCHE, 1981, p.199). O homem que
renuncia quer alcançar o reconhecimento por sua renúncia, por seu sacrifício. De
fato, “está satisfeito com a impressão que produz; quer esconder a nossos olhos seu
desejo, seu orgulho, sua intenção de voar por cima de nós” (NIETZSCHE, 1981,
p.62). Mas, é justamente como renunciador que este é afirmador” (p.62).
Renunciando aos seus desejos, ao prazer, à alegria, dominando sobre si mesmo,
afirma a condição que se espera dele – a de um virtuoso instrumento.
Segundo Giacóia
Para Nietzsche, as esferas superiores da cultura moderna estavam
inteiramente dominadas por conceitos reativos, em grande parte,
provenientes do utilitarismo, do positivismo e do darwinismo social. Por essa
razão, noções como adaptação, conservação e reprodução apareciam como
determinantes das perspectivas teóricas fundamentais, indicando os
pretensos vetores de sentido e movimento tanto no mundo orgânico quanto
no histórico cultural (GIACÓIA, 2005, p.218).
Para Sloterdijk, comentado por Giacóia, empreendeu-se uma “tarefa de
amansar as forças selvagens e domesticar o homem pela via da escola e da leitura”
21
(2005, p.139). Assim, a cultura ocidental teria se dedicado a regulação da vida, a sua
reprodução e conservação pela domesticação do homem, o transformando,
enfatizamos, em um ser dócil e útil. “O homem bom, o animal doméstico e virtuoso”
(GIACÓIA, 2005, p.140).
Seguimos até aqui por um caminho descritivo dos objetivos de enquadramento
e conservação da educação conforme o conseguimos depreender de nossa leitura de
Nietzsche, os apontando essencialmente enquanto valores morais. Ou seja, os
objetivos, os fins e os sentidos pregados para alcançá-los são morais e visam à
sustentação de uma tradição moral sendo ao mesmo tempo constituídos a partir dela.
Ao indicarmos um fim, uma finalidade inerente ao processo educativo,
vinculamos, no início deste capítulo, a idéia de objetivo a uma intencionalidade
articulada ao pensamento causal presente no fazer educativo, em seu direcionamento
a um telos esperado. Necessitamos, assim, descrever o que entendemos por
causalidade a partir de Nietzsche, uma vez que, compreendemos o pensamento
causal como norteador da educação corrente, justamente por ser pautado por uma
intencionalidade. Descrição que nos permitirá situar o vínculo moral, ou o fim moral
apresentado, como moral das intenções, noção a partir da qual abordaremos a
concepção de moral presente na obra de Nietzsche.
1.1 Causalidade
A partir da abordagem da filosofia de Nietzsche sobre o que o filósofo
denomina em O Crepúsculo dos Ídolos (1976) de “Os Quatro Grandes Erros”,
desenvolvemos nossa leitura sobre a discussão proposta acerca da causalidade. Os
quatro grandes erros, quais sejam, o erro da confusão entre causa e efeito; o erro das
causas imaginárias; o erro da causalidade falsa; o erro do livre-arbítrio; são
apresentados pelo autor como se segue.
Em relação ao primeiro afirma que não há erro mais perigoso - o de confundir
causa e efeito. Nietzsche considera esta “uma verdadeira perversão da razão. (...)
este erro figura os antigos e modernos hábitos da humanidade; foi santificado por nós
22
e se enfeita com os nomes de religião e moral” (1976, p.39). Justamente porque em
toda moral este erro está inserido.
Afirma-se, em tom moralista, que o homem pode ser feliz ao realizar ou se
abster de determinados atos e que o vício é a causa de toda a degradação humana.
Todavia, Nietzsche (1976, p.40) contesta tal crença propondo que o vício é o efeito da
degradação, assim como a virtude não é causa, mas efeito da felicidade. Eis a
confusão, eis o erro, no entendimento do autor.
Por sua vez, o erro das causas imaginárias situa-se em uma dimensão que se
insere essencialmente no campo mítico, místico e religioso. A sustentação de tal erro,
na compreensão do filósofo, está na crença de que determinada situação se
desencadeia em função da interferência de elementos exteriores que a determinam.
Esta crença encontra seu acento em outra crença anterior; qual seja: a de que um
fato qualquer tem necessariamente uma causa que o desencadeia. Um evento não
poderia ocorrer senão por ação de um agente causador.
Queremos que haja uma razão para que nos encontremos neste ou naquele
estado, para que nos sintamos bem ou mal. Não basta experimentar
simplesmente o fato de sentirmos desta ou daquela maneira; não aceitamos
esse fato, não adquirimos consciência dele até que lhe outorguemos alguma
motivação, mesmo imaginária (NIETZSCHE, 1976, p.43).
Quando este agente é desconhecido, atribui-se imaginariamente a
responsabilidade causal, muitas vezes a aspectos míticos ou religiosos. Todo domínio
da moral e da religião encontram sua explicação através da idéia das causas
imaginárias (NIETZSCHE, 1976, p.45). Por exemplo a suposição de que
determinado sentimento desagradável nos advém pela ação de seres inimigos, como
espíritos maus. O pecado e o castigo situam-se igualmente neste campo. Ou seja, a
noção de que a dor, o mal que nos advém somente nos acomete por sermos
merecedores destes. Somos pecadores e sofremos como castigo aos nossos
pecados. Eis a causa da dor e do sofrimento (NIETZSCHE, 1976, p.45).
Traços que não se sustentam senão imaginariamente. Não garantem, não
demonstram qualquer relação possível entre causa e efeito, e, por isso, designados
23
por Nietzsche como um erro. Necessitam, assim, ser entendidos através de uma
noção de causalidade enquanto artifício utilizado para tentar explicar um determinado
fato ou situação e o como um agente causal que tenha de fato desencadeado tal
contexto.
Esta noção torna-se mais clara quando Nietzsche se remete ao erro da
causalidade falsa e também o do livre-arbítrio. Erros, enganos que se aproximam,
uma vez que, apesar de suas especificidades, estão em questão basicamente os
mesmos elementos, quais sejam, a vontade (o querer), o eu e a consciência.
O erro da causalidade falsa é apresentado por Nietzsche (1976, p.41-43) como
o engano de que o eu, a consciência e a vontade seriam capazes de ser causa de
uma ação. Esses três elementos estão presentes neste erro e são, também,
significativos para pensar o erro do livre-arbítrio.
O erro da causalidade falsa remete-se ao entendimento de que os atos em
geral o afiançados por causalidades interiores, ou seja, a vontade considerada
como causa; a noção de uma consciência (espírito) como causa e ainda, o eu
(sujeito) como causa (NIETZSCHE, 1976, p.41). Nietzsche entende estas causas
como falsas, pois, vontade, espírito e sujeito são construções posteriores. “Cremos
intervir nós mesmos como causa dos atos” (NIETZSCHE, 1976, p.41), no entanto, a
motivação da vontade, da consciência e do eu, o motivo que supostamente produz
um ato, um efeito, é um erro. O motivo, a finalidade, é tomado erroneamente como o
móvel, a causa da ação.
O motivo é somente um fenômeno superficial da consciência, uma coisa que
está ao lado do ato e que mais oculta os antecedentes deste que os
representa. E que diremos do eu! O eu chegou a ser uma lenda, uma ficção,
um jogo de palavras: este deixou de pensar, sentir e querer. Que se
deduz daí? Que não há tais causas intelectuais (NIETZSCHE, 1976, p.42).
Porque Nietzsche refuta, enfaticamente, estes elementos como causas?
Porque seriam estas causas falsas? Para responder é necessário perguntarmos
24
antes como estes “dados interiores” (1976, p.41), ou “causas intelectuais” (p.42) são
tomados comumente como causa.
Nietzsche (1976, p.41-42) parte da idéia de que a vontade neste momento
compreendida como vontade consciente, como querer - é entendida como necessária
para que qualquer ação do sujeito seja possível. A vontade é, portanto, o ponto
principal que determinaria a ação e pela qual se vinculam os outros dois aspectos
com o primeiro. Isto é, a vontade consciente de um eu (sujeito) seria capaz de
produzir efeitos igualmente conscientes.
Nesta direção, Nietzsche afirma que “a noção de uma consciência (espírito)
como causa e depois a do eu (sujeito) como causa, são posteriores; aparecem
quando, mediante a vontade estava estabelecida como um dado, como empirismo,
a causalidade”. (1976, p.41-42). E segue “a antiga psicologia, a que durou mais
tempo, consagrou-se a esse labor e não fez outra coisa; todo acontecimento era para
ela um ato, todo ato a conseqüência duma vontade” (NIETZSCHE, 1976, p.42).
Tomar, pois, a vontade como elemento central para discutir este ‘erro’, conduz
a pensar outros aspectos da vontade, não mais entendida como querer, mas
articulada com a noção de impulso. Isso remete para uma noção central da obra de
Nietzsche a vontade de poder
5
. Antes de expô-la, iniciemos pelo eu e pela
consciência como causas (entendendo que estas causas intelectuais, de fato não se
desvinculam, mas apresentam aspectos específicos).
Em Além do bem e do mal (2007), Nietzsche dedica-se a refletir sobre este eu
(sujeito) o abordando como um eu consciente, um eu que pensa. Por pensar, o eu
supõe-se senhor de seus pensamentos e também como causa destes, ao ponto de
referir-se ou definir-se como um ser que pensa. O eu é, existe, porque pensa
6
. Esta é
sua única certeza. E, se é porque pensa, e este eu, sendo a causa do pensamento, é,
portanto, causa de si mesmo (NIETZSCHE, 2007, p.20). A esta noção Nietzsche se
opõe claramente.
5
Também traduzida por vontade de potência. Sobre as divergências entre as duas traduções ver nota
26, em Além do Bem e do Mal (2007).
6
Nietzsche faz neste trecho uma alusão à filosofia de Descartes.
25
O eu como causa de si mesmo, noção advinda de uma certeza imediata como
o ‘Eu penso’ ou o ‘Eu quero’ de Schopenhauer (NIETZSCHE, 2007, p.20) é abordada
como ingenuidade por Nietzsche. Ou seja, o autor refere-se ao fato de que como se
nessas certezas o conhecimento fosse capaz de apreender seu objeto, no caso o eu,
como uma ‘coisa em si’, um objeto puro, sem distorções nem do objeto e nem por
parte do sujeito. Em contraponto propõe que
O filósofo tem de dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está
expresso na proposição eu penso”, obtenho uma série de afirmações
temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível por exemplo,
que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente algo que pensa,
que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que
existe um Eu”, e finalmente que está estabelecido o que designar como
pensar que eu sei o que é pensar. Pois se já não tivesse me decidido
comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que está acontecendo não
é talvez “sentir”, ou “querer”? (NIETZSCHE, 2007, p.21).
Para Nietzsche a noção de um eu como causa de si mesmo é uma redução ao
absurdo, assim como a própria idéia de causa sui. Seria como se nossos órgãos
fossem obra deles mesmos (NIETZSCHE, 2007, p.20) – ou seja, a finalidade, o
motivo passa a ser entendido como causa de si. Nesta direção é relevante situar
alguns elementos da crítica nietzschiana à filosofia de origem cartesiana na qual se
ancoram tais noções.
Segundo Onate (2000) a crítica de Nietzsche ao processo que Descartes
desenvolve na constituição do res cogitans é um dos pontos centrais de sua filosofia.
Conforme o autor, para Nietzsche, do projeto cartesiano de reconstruir desde seus
alicerces o edifício da ciência, adotando por regra a auto-inspeção do eu recluso em
si mesmo” (ONATE, 2000, p.23) decorre a noção de que o pensamento é critério da
verdade e da própria realidade. Ou seja, “só o que pode ser pensado com clareza e
distinção desfruta da efetividade existencial plena” (p.23), sendo o eu que pensa,
causa da existência.
Nietzsche opõe-se a esta proposição afirmando “que o pensamento seja uma
medida do efetivo que aquilo que não pode ser pensado, não é é um grosseiro
non plus ultra de uma bem aventurada confiança moral (num essencial princípio-de-
26
verdade no fundamento das coisas), em si uma afirmação delirante que nossa
experiência contradiz a cada momento” e propõe que “nada pode ser pensado,
justamente na medida em que é ...” (NIETZSCHE apud ONATE, 2000, p.23-24).
Nietzsche contrapõe-se desta maneira ao cogito enquanto princípio, causa, da
existência tanto do sujeito quanto da realidade.
Neste sentido, Nietzsche considera duvidoso que o sujeito possa tomar
consciência de si através de si mesmo, ou seja, possa provar a si mesmo enquanto
possuidor de um eu que tem a garantia de sua existência dada pelo fato de que é ele
mesmo que pensa (ONATE, 2000, p.33). Para que isto fosse possível, afirma que lhe
falta um ponto externo a partir do qual pudesse refletir sua imagem, uma vez que “o
estado consciente o deriva de uma pressão interior e nem se instaura por meio de
um movimento introspectivo; ao contrário, ele aparece e se desenvolve para
satisfazer necessidades extroversivas, comunicativas” (p.34).
A consciência não é, portanto, uma conquista do sujeito pensante, de um eu
auto-suficiente e nem se constitui como um traço fundante da individualização. É
antes, segundo Nietzsche, “uma rede de comunicações homem-homem foi apenas
enquanto tal que se viu forçada a desenvolver-se: o homem solitário e o animal de
rapina poderiam dispensá-la” (NIETZSCHE, 1981, p.241).
Para Nietzsche (2007, p.22), o eu não é condição do pensar. Um pensamento
não ocorre ao sujeito por seu querer, quando ‘eu quero’. Propõe que ao invés de eu
penso seria mais adequada a noção de que Isso pensa (Es denkt), mas que mesmo
esse ‘isso’ seria novamente uma “interpretação do processo” de pensar, ou seja, é
colocado como um agente da atividade de pensar, como causa do pensamento
ainda há algo que pensa
7
.
A noção do Eu e do Isso como agentes, causas do pensar, e assim, causas de
si mesmo uma vez que esta noção define a existência do sujeito, o pensar
7
Supõe-se que: “pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente” (NIETZSHE, 2007, p.22).
27
desconsideram as possibilidades de o sujeito ser, o pela consciência, mas pela via
do impulso
8
, do afeto – não seria este pensar “sentir” ou “querer”?
Nietzsche contrapõe-se as concepções de uma psicologia do eu, da
consciência. Ao perguntar “de onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em
causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um eu, e até mesmo de um eu como
causa, e por fim de um eu como causa de pensamentos?” (NIETZSCHE, 2007, p.21),
o autor passa a desqualificar as certezas do eu e a primazia da consciência. Em
Assim falou Zaratustra (1999) afirma que “Instrumento do teu corpo é também a tua
razão pequena, a que chamas espírito: um instrumentozinho e um pequeno
brinquedo da tua razão grande” (p. 41). Ou seja, o corpo, e não o espírito ou o eu
pensante é descrito como razão em ponto grande, uma vez que dele provêm os
impulsos, os afetos.
Com Nietzsche passa-se da subjetividade condicionada do cogito para uma
subjetividade incondicionada do corpo. A subjetividade é vista “enquanto
subjetividade do corpo, isto é, dos impulsos e dos afetos” (ONATE, 2000, p.94) e não
do eu como sujeito. Nietzsche propõe que “tudo é corpo e nada mais; a alma
9
é
apenas nome de qualquer coisa do corpo” (1999, p.41). Eis aqui, não outro
fundamento, mas, uma multiplicidade potencial à subjetividade, sem pretensões
unificadoras, sem traços metafísicos que a condicionem, entendida como
subjetividade dos impulsos, ela é o corpo, é criação deste. Nesta perspectiva, o corpo
cria, é criador, pois dele provém a subjetividade; os impulsos oriundos do corpo – não
condicionados, imprevisíveis - são sua ação criadora (ONATE, 2000, p.113),
interpretativa
10
(AZEREDO, 2002, p.49).
8
Impulso é a tradução considerada mais próxima para o termo alemão Trieb, que engloba os sentidos
de propensão, propulsão, ímpeto, pressão, inclinação, movimento, vontade - conforme Paulo César de
Souza, em nota do tradutor 21 (Além do Bem e do Mal, 2007). Distinguimos, assim, seu uso do termo
instinto (Instinkt), entendido como um comportamento inato, hereditário, comum aos indivíduos de uma
mesma espécie.
9
A alma é também referida por Nietzsche em Além do bem e do mal (2007) como “alma mortal, alma
como pluralidade do sujeito e alma como estrutura social dos impulsos e afetos” (p.19), aludindo à
noção aqui descrita.
10
Abordamos novamente este tema (corpo criador e interpretação) no item 2.2.
28
Nietzsche compreende desta maneira o corpo como ser, em detrimento do eu
e da consciência (espírito)
11
. “Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, meu
irmão, um senhor mais poderoso, um guia desconhecido. Chama-se ‘eu sou’.
Havia no teu corpo; é o teu corpo. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor
sabedoria”. (NIETZSCHE, 1999, p.41). O ser, o ‘eu sou’ é o corpo que é guia e
inspirador do eu.
É neste sentido que Nietzsche afirma que “o ‘instinto’ é a mais inteligente das
espécies de inteligência até agora descobertas” (2007, p.112) e que “pensar é apenas
a relação dos impulsos entre si” (p.39). Sendo os impulsos e não o eu ou a
consciência o elemento central da subjetividade, estamos prontos a renunciar eu e
consciência (espírito) como causa das ações de um sujeito, assim como a vontade,
enquanto um querer consciente como motivo da ação do eu, uma vez que
compreendemos que
O valor decisivo de uma ação está justamente naquilo que nela é o-
intencional, e que toda a sua intencionalidade, tudo o que dela pode ser
visto, sabido, ‘tornado consciente’, pertence ainda à superfície, à sua pele
que, como toda pele, revela algo, mas sobretudo esconde? Em suma,
acreditamos que a intenção é apenas sinal e sintoma que exige primeiro
interpretação (NIETZSCHE, 2007, p.37).
A não intencionalidade articula-se com o que de impulsivo no humano, de
“vontade de ...” (Wille zur...) – vontade de verdade, vontade de vingança, por exemplo
e, obviamente, não com o simples querer. Esta distinção, entre vontade e querer é
central para Nietzsche, pois, se a vontade fosse reduzida a um querer consciente,
uma intencionalidade de um sujeito essencialmente racional, seria igualmente
enquadrada na crítica nietzschiana como uma causalidade falsa. De fato, é este
querer como ordenador, direcionador das ações do eu o alvo central do autor.
11
Onate alerta que “a passagem nietzschiana do espírito ao corpo não tem como alvo dotar a
metafísica da subjetividade de um princípio mais radical que o cogito ou qualquer outra base fundante
postulada ulteriormente. O alcance desse transito é muito maior, é posto em xeque o próprio projeto
metafísico (...) [mas] A filosofia nietzschiana não é apenas o remate definitivo do pensar metafísico,
(...) mas instaura (...) uma nova forma de filosofar” (2000, p.115).
29
Conforme o lê Giacóia (2005), a vontade é “a capacidade de representar algum
objeto ou ação, acompanhada da consciência de poder realizar o conteúdo dessa
representação” (p.171). E, assim, “a causalidade da vontade constitui, para
Nietzsche, o processo antropológico do pensamento causal” (p.172). Se isto é um
fato, como veremos a seguir, todavia, não podemos interpretá-lo da mesma maneira
que Giacóia.
A vontade é o elemento sustentador do que entende por responsabilidade do
homem, o caminho para a autonomia, que é também um caminho gradual para o
além-do-homem (GIACÓIA, 2005, p. 170-180). Essa noção vincula-se, no entanto, a
uma vontade intencional, um domínio de si, de um sujeito imputável, responsável
pelos seus atos, um agente livre, “portanto, somente em relação a ele na qualidade
de sujeito pode ser reportado o princípio da ação, esta pensada como resultado de
sua causalidade eficiente” (GIACÓIA, 2005, p.176).
É justamente a esta noção que Nietzsche se opõe a de um sujeito como
causa, como um agente intencional, responsável por suas ações. A vontade, como
exposta por Giacóia aproxima-se de um querer consciente tal qual Nietzsche o
remete à Schopenhauer, um ‘Eu quero”. Assim, não pode ser abordada como o
elemento atuante da ação, mas como uma causa falsa.
Quando Nietzsche apresenta em Além do Bem e do Mal (2007) a idéia de que
a vontade é de fato a causa atuante, apontando a “causalidade da vontade como a
única” (p.40), não pode estar referindo-se a mesma noção de vontade que crítica
como sendo falsa e que nós denominamos aqui, para estabelecer uma distinção entre
os dois conceitos, de querer.
Mas que noção de vontade, “coisa tão múltipla, para o qual o povo tem uma só
palavra” (NIETZSCHE, 2007, p.23), estamos referindo? “Os filósofos”, afirma
Nietzsche, “costumam falar da vontade como se ela fosse a coisa mais conhecida do
mundo” (2007, p.22). Mesmo Schopenhauer, que pensava conhecer tão bem a
vontade, teria somente feito o que os filósofos costumam fazer “tomou um
preconceito popular e o exagerou” (p.22). É neste sentido que Nietzsche nos convoca
30
a sermos cautelosos com essa noção e a vincula à força, ao impulso, como vontade
de poder.
Em toda vontade existe “uma pluralidade de sensações, a saber, a sensação
do estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se vai, a sensação desse
‘deixar’ e ‘ir’ mesmo, e ainda uma sensação muscular concomitante, que, mesmo sem
movimentarmos braços e pernas’, entra em jogo por uma espécie de hábito”
(NIETZSCHE, 2007, p.22-23). Vincula-se, assim, vontade às sensações, ao sentir. O
pensar, todavia, está igualmente imbricado à vontade. Para Nietzsche, é impossível
retirar o pensamento do complexo da vontade e ainda restar vontade (p.23).
Cabe, no entanto, ressaltar que o pensamento não engloba um agente causal,
ou seja, um eu ou um isso, como agente da atividade de pensar. “Um pensamento
vem quando ele quer” (NIETZSCHE, 2007, p.21-22). Temos, desta maneira, dois
elementos que compõem a vontade, o pensamento e um novo, as sensações.
ainda um terceiro, apontado como o mais significativo pelo autor.
A vontade, portanto, “não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas
sobretudo um afeto: aquele afeto de comando” (NIETZSCHE, 2007, p.22). Nietzsche
critica, pois, a noção de vontade, até então entendida estritamente como uma noção
metafísica, enquanto o querer de um eu igualmente metafísico, como causa do agir,
ao ponto de se acreditar que “vontade e ação sejam, de algum modo, a mesma coisa”
(p.23).
Para o autor, os afetos “de ódio, inveja, cupidez, ânsia de domínio” (p.28)
passam a ocupar lugar central no complexo da vontade. Nestes termos, são
valorizados “como afetos que condicionam a vida, como algo que tem de estar
presente, por princípio e de modo essencial, na economia global da vida, e em
conseqüência deve ser realçado, se a vida é para ser realçada” (NIETZSCHE, 2007,
p.28). A vontade vincula-se pela via das sensações e dos afetos, “ao mundo dos
desejos e das paixões (...) à realidade de nossos impulsos” (p.39), entendendo “que
nada seja ‘dado’ como real” (p.39) exceto isto.
31
Trata-se, de referir a vontade como força. Em seu complexo vinculam-se
afetos, sensações e também o pensar, mas, se mesmo o pensar é uma atividade sem
agente é “relação dos impulsos entre si” (NIETZSCHE, 2007, p.39), afetos,
sensações e pensar atuam como forças. Todavia, se uma ação é produzida pela
vontade, ou seja, onde se reconhecem ‘efeitos’, “vontade, é claro, pode atuar
sobre vontade (...), todo acontecer mecânico, na medida que nele age uma força, é
justamente força de vontade, efeito da vontade” (NIETZSCHE, 2007, p.40).
A vontade como um complexo, uma força atuante que pode ser definida como
a própria vida. É neste sentido que Nietzsche define ao que se refere o termo
vontade, a saber – a vontade de poder (Wille zur Macht).
Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda nossa vida instintiva
como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade – a
vontade de poder, como é minha tese -; supondo que se pudesse reconduzir
todas as funções orgânicas a essa vontade de poder (...), então se obteria o
direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como vontade de
poder. O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o
seu ‘caráter inteligível’ seria justamente vontade de poder’, e nada mais
(NIETZSCHE, 2007, p.40).
“A própria vida é vontade de poder”, afirma Nietzsche (2007, p.19). Assim,
trata-se da força atuante da vida, a busca pelo exercício e sentimento de poder. “Uma
criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força” (p.19), disto, Nietzsche conclui
que princípios teleológicos como a auto-conservação, são, de fato, supérfluos, a
medida que simplesmente ocorrem como conseqüências secundárias da vontade de
poder. Não é o impulso de auto-conservação que protege e move a vida, tudo o que o
homem faz é feito em função da vontade de poder, ou seja, para dar vazão a sua
força.
A vontade de potência manifesta-se em luta, define-se pela luta, uma vez
que não há causa ou efeito, mas disputa entre impulsos que têm potência
desigual. Cada grupo de impulsos, forças, vontades quer tornar-se mais
forte, quer dominar, em suma, assenhorar-se daquele grupo que lhe opõe
resistência: o desejo de tornar-se mais forte, em cada centro de força, é a
única realidade de forma alguma conservação de si, mas desejo de se
32
apropriar, de se tornar senhor, de aumentar, de se converter em mais forte”
(14 [81] da primavera de 1888) (AZEREDO, 2002, p.91).
“Ao fazer o bem e o mal exercemos nosso poder sobre aqueles a quem se é
forçado fazê-lo sentir” (NIETZSCHE, 1981, p.48), isto é, não está em questão o bem
ou o mal. O valor da ação não está nestas acepções, seu direcionamento é a vontade
de poder, trata-se, agindo bem ou mal, de exercer o poder, a força, dar vazão ao
impulso.
O fato de fazermos sacrifícios para fazer o bem ou o mal não altera em nada
o valor definitivo de nossos atos, mesmo se arriscarmos nossa vida, como o
mártir pela sua Igreja, é um sacrifício que fazemos à nossa vontade de
potência, ou a fim de conservarmos nosso sentimento de poder
(NIETZSCHE, 1981, p.48-49).
É assim que podemos definir vontade de poder como sendo um quantum de
força, de potência (NIETZSCHE, 2003, p.36). Não há um querer intencional que dirige
uma ação, tornar-se mais forte independe da intencionalidade, é um impulso, luta
entre impulsos que querem governar. Nestes termos, não há vontade como um
fundamento metafísico; o há vontade e potência, ou vontade e poder, como se
pudéssemos acrescentar à vontade uma potência. É necessário entendermos que se
trata de um único complexo, vontade de poder é uma força, impulso de comando.
É esta vontade, no entanto, uma vontade livre, ou particularidade de um sujeito
autônomo como o quer Giacóia? Pensamos que não. Esta é, aliás, a principal crítica
de Nietzsche ao que chama de ‘erro do livre-arbítrio’. Este, tomado aqui em sua
acepção literal – Freiheit des Willens – liberdade da vontade
12
.
Pelo livre-arbítrio, trata-se, basicamente de comandar e obedecer. Ou seja, “o
que é chamado de ‘livre-arbítrio’ é, essencialmente, o afeto de superioridade em
relação àquele que tem de obedecer: eu sou livre, ‘ele’ tem de obedecer”
12
Utilizamos esta tradução corroborada pelo tradutor Paulo Cezar de Souza - ver nota do tradutor 52
em Além do bem e do mal (2007).
33
(NIETZSCHE, 2007, p.23). Ao agir conforme sua vontade, o homem supostamente
comanda a si mesmo, direciona seus atos, acredita que internamente há algo que lhe
obedece, que ele comanda. “Mas agora observem o que é mais estranho na vontade
(...) somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece” (p.23).
‘O querente’, para usar o termo de Nietzsche, acredita que sua vontade produz
sua ação, que basta querer para agir, e a este querer atribui o seu êxito. Cabe aqui
uma ressalva. Por esta via, tomamos novamente vontade como querer, na crítica do
autor frente ao livre arbítrio. Conforme o descrevemos até o momento, está em
questão a vontade de um sujeito supostamente livre que direciona seus atos e que se
engana “através do sintético conceito do ‘eu” (NIETZSCHE, 2007, p.23).
A liberdade de vontade refere-se a livre ação conforme a vontade do sujeito,
como motivação da ação. Ao entendermos vontade como causa da ação, todavia,
como vimos, não mais a situamos como uma vontade consciente, ou seja, ela não é
direcionada pelo sujeito, mas ao contrário, ela impulsiona a vida, é a própria vida,
uma vez entendida como vontade de poder. E, é neste sentido mesmo, como
podendo ser direcionada pelo sujeito, que ela é entendida como um engano por
Nietzsche.
Neste engano, isto é, o de atribuir à vontade como um direcionamento do
sujeito o êxito de uma ão, trata-se, em suma, de um gozo “de um aumento da
sensação de poder que todo êxito acarreta” (NIETZSCHE, 2007, p.24). E, assim,
“Livre-arbítrio’ é a expressão para o multiforme estado de prazer do querente, que
ordena e ao mesmo tempo se identifica com o executor da ordem” (p.24). Como
podemos pensar em algo livre, se “em todo querer a questão é simplesmente mandar
e obedecer” (p.24). Antes de uma vontade livre, esta noção se vincula “ao anseio de
carregar a responsabilidade última pelas próprias ões, dela desobrigando Deus, o
mundo, os ancestrais, acaso, sociedade” (p.25). Trata-se de arrancar-se pelos
cabelos do pântano do nada em direção à existência” (p.25) conforme Münchhausen.
Segundo o autor, a doutrina da vontade livre foi inventada para castigar.
“Retira-se a inocência do devir quando lhe atribui um estado de fato, qualquer que
seja, à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade” (NIETZSCHE, 1976, p.46).
34
Assim, toda ação tinha de ser voluntária e sua origem estaria na consciência. Desta
maneira, “os homens foram considerados livres para se poder julga-los e castiga-los”
(p.46), uma vez que seus atos possuem como causa sua vontade livre passando o
castigo ser novamente efeito destes atos. Contamina-se assim, “a inocência do devir
com pecado e castigo” (1976, p.47). “Razão por que um filósofo deve se arrogar o
direito de situar o querer em si no âmbito da moral
13
(NIETZSCHE, 2007, p.24),
pois, reiteramos, trata-se de comandar e obedecer.
Se não podemos pensar em uma vontade livre, no sentido em que o sujeito
livremente direciona sua ação, poderíamos, no entanto, se nos referirmos não
simplesmente ao querer, porém à vontade, conforme a distinção elaborada
anteriormente, ou seja, compreendida pela via dos afetos, dos impulsos, pensar em
uma vontade livre? Ou ainda, como livre em si, ao passo que o sujeito não pode
direcioná-la, e ela mesma é a causa das ações do sujeito? Necessitamos pensar esta
questão pelo contrário do livre-arbítrio, ou seja, “o contrário desse conceito-monstro:
isto é, o ‘cativo-arbítrio” (NIETZSCHE, 2007, p.25).
Pensar em uma vontade livre é para Nietzsche tão absurdo como pensar em
uma vontade cativa. Segundo o autor, não se trata de referirmos a vontade como livre
ou cativa. “O ‘cativo-arbítrio’ não passa de mitologia: na vida real apenas vontades
fortes e fracas (NIETZSCHE, 2007, p.26). O livre e o cativo arbítrio são apenas
criações ‘mitológicas’ articuladas as supostas necessidades de conexão causal que o
homem inventa para si. São maneiras de assumir ou negar a responsabilidade pelos
seus atos.
Uns não querem por preço algum abandonar sua ‘responsabilidade’, a
em si, o direito pessoal ao seu mérito (as raças vaidosas estão deste lado -);
os outros, pelo contrário, não desejam se responsabilizar por nada, ser
culpados de nada, e, a partir de um auto-desprezo interior, querem depositar
o fardo de si mesmos em algum outro lugar (NIETZSCHE, 2007, p.26).
O fato é que a vontade não é livre nem cativa. Ela não é abarcada por
conceitos metafísicos. Se ela é a força atuante da vida, não pode ser aprisionada e,
13
Grifo nosso.
35
portanto, também não libertada somente pode ser forte ou fraca. Neste sentido,
necessitamos nos dedicar a alguns aspectos do tema causalidade que ainda
precisam ser debatidos.
Afirmamos que a vontade, entendida como querer, é um engano, uma causa
falsa, aparente. Por outro lado, citamos anteriormente, que, para o autor, a única
força atuante, causa da ação é a vontade, desta vez, entendida como vontade de
poder. então uma causa de fato e não aparente? Faz-se necessário aqui situar
como o filósofo entende a noção de causalidade.
Para Nietzsche, causa e efeito são apenas construções conceituais. São
artifícios criados para o entendimento, interpretação, e não podem ser abordados
como explicações de um fato apesar de serem assim compreendidas
correntemente; entende-se que a causa possa de fato produzir um efeito. Contudo,
“não se deve coisificar erroneamente ‘causa’ e ‘efeito’ (...); deve-se utilizar a ‘causa’ e
o ‘efeito’, somente como puros conceitos, isto é como ficções convencionadas para
fins de designação” (NIETZSCHE, 2007, p.25-26).
A causalidade da vontade é, portanto, entendida não como uma causa em si,
ou como causa a partir da qual se produz um efeito esperado. Por este viés, não
um fim esperado ou predeterminado. Ao contrário, o pensamento causal, regido pelos
enganos – erros descritos por Nietzsche, coisifica causa e efeito. Dedica-se a
explicar à origem (causa) como estando nela não o princípio, mas, também, o
valor de uma ação (NIETZSCHE, 2007, p.36-37). A causa direciona o efeito, nela está
supostamente previsto o efeito que produzirá, ou seja, a priori um fim, um objetivo
pretendido pela ação, um telos que se quer alcançar, e sendo este querer
supostamente a causa da ação, o fim pretendido passa a ser erroneamente
entendido como causa.
Para Nietzsche o pensamento causal, nos termos aqui descritos, é absurdo
(2007, p.20) e errôneo. Se admite a vontade como causa, ela não o é em si, é
somente enquanto conceito, como interpretação e não como direcionamento
teleológico. Pois,
36
no “em si” o existem ‘laços causais’, ‘necessidade’, ‘não-liberdade
psicológica’, ali não segue ‘o efeito à causa’, não rege nenhuma lei’. Somos
nós que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a
coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade (NIETZSCHE,
2007, p.26).
Em A Gaia Ciência (1981, p.125-126) o autor antecipa sua posição, vinculando
o pensamento causal à intencionalidade e apresentando causa e efeito como simples
descrição e não como explicação. Mas é neste trecho que afirma a continuidade, e
não a dualidade causa e efeito, como o fluxo dos eventos. “Na verdade temos diante
de nós uma continuidade da qual isolamos algumas partes” (p.126). Isto é, da
continuidade, isolamos elementos particulares e os tomamos como causas e efeitos,
elementos que de fato “nós não vemos, nós o inferimos” (p.126). O que o leva a
afirmar que “um intelecto que visse causa e efeito como continuidade e não (...) como
divisão arbitrária, que visse o fluxo dos eventos negaria a idéia de causa e efeito e
toda condicionalidade” (p.126).
Nietzsche, ao negar o pensamento causal, o admitindo somente enquanto
conceito, enquanto interpretação e não explicação do mundo, afirma “que nada ao
homem suas qualidades, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e
antepassados, nem ele mesmo”, portanto, nem a educação, e que, “nada é
responsável pelo fato do homem existir” (NIETZSCHE, 1976, p.47). “As categorias do
ser não podem ser referidas a uma causa primária” (p.48).
Ao afirmar a idéia de continuidade, insere a noção de que não causas e
efeitos, uma vez que, não como julgar, medir, comparar “o todo. E não há nada
fora do todo!” (NIETZSCHE, 1976, p.47). Condena, assim, a intencionalidade
característica do pensamento causal, que denomina de ‘moral das intenções’
afirmando ser esta a “acepção que até agora teve” a moral (NIETZSCHE, 2007, p.37).
É por esta via que se empenha em sua crítica a intencionalidade causal, pelos
fins morais imbricados nesta. Negando a intencionalidade, a causalidade, nega
também a idéia de fim, de finalidade, uma vez que esta somente é possível quando
se pensa em causas e efeitos.
37
O homem não é conseqüência duma intenção própria, duma vontade, de um
fim; com ele não se fazem ensaios para obter-se um ideal de humanidade;
um ideal de felicidade ou um ideal de moralidade; é absurdo desviar a idéia
de seu ser para um fim qualquer. s Inventamos a idéia de fim; na
realidade não existe o fim (NIETZSCHE, 1976, p.47).
Todavia, a busca pelos ideais de humanidade, de moralidade, enquanto um fim
almejado, é corrente. “Em todos os tempos quis-se melhorar o homem; a rigor, isto é
o que chamamos moral” (NIETZSCHE, 1976, p.49). “E tudo isso foi aceito em nome
da Moral!” (NIETZSCHE, 2005, p.124). A moral situa-se, desta maneira, no campo da
causalidade, enquanto moral das intenções, acepção que toda moral assume.
Faz-se necessário, ainda expor o entendimento de Nietzsche acerca da moral.
Que moral é esta que se faz presente e norteia o pensamento educativo, pautado
pela intencionalidade, pelo pensamento causal?
1.2 Moralidade
A acepção que toda moral teve até aqui a moral das intenções. Isto é, em
toda moral há uma intencionalidade, e, também o contrário, a intencionalidade é
sempre moral. Trata-se de alcançar determinados objetivos para criar, instituir,
sustentar uma moral e utilizá-la como elemento sustentador da intenção, ao ponto da
própria moral tornar-se um fim.
Na moral está em questão o domínio, o poder. “O essencial, ‘no céu como na
terra’, ao que parece, é, repito, que se obedeça por muito tempo e numa direção”
(NIETZSCHE, 2007, p.77). “Deves obedecer” (p.78), é o dito moralista. Determina-se
o que se deve fazer e o que se deve não fazer, e isso, de maneira imperativa,
generalizada. Os valores morais se apresentam culturalmente enquanto verdades
38
inquestionáveis, seja pela via religiosa, como leis divinas, ou como leis naturais,
inerentes ao homem
14
.
Assim, ao seguir um preceito moral, o homem é visto como virtuoso, e da
virtude provém a felicidade erro que Nietzsche compreende como confusão entre
causa e efeito. A moral como verdade intocável é suposta enquanto sendo um
direcionamento ao indivíduo e à sociedade e este, obedecendo seus preceitos,
certamente seria feliz – um virtuoso. Todavia, não é esta a intencionalidade inerente à
moral – trata-se, como afirmamos, de poder.
Todas essas morais que se dirigem à pessoa individual, para promover sua
‘felicidade’, como se diz que são elas, senão propostas de conduta,
conforme o grau de periculosidade em que a pessoa vive consigo mesma;
receitas contra suas paixões, suas inclinações boas ou más, enquanto têm a
vontade de poder e querem desempenhar papel de senhor; pequenas e
grandes artimanhas e prudências, cheirando a velhos remédios caseiros e
sabedoria de velhotas; todas elas barrocas e irracionais na forma porque
se dirigem a ‘todos’, porque generalizam onde não pode ser generalizado -,
todas elas falando em tom incondicional, tomando a si de modo
incondicional (NIETZSCHE, 2007, p.84).
Moral situa-se, assim, em todos os aspectos da vida; abarca as relações
humanas o indivíduo, as instituições ... Trata-se, de pensarmos o fenômeno vida
como um fenômeno moral. “Moral, entenda-se, como a teoria das relações de
dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida”
15
(Nietzsche, 2007, p.24).
A obediência foi até agora a coisa mais longamente exercida e cultivada
entre os homens, é justo supor que via de regra é agora inata em cada um a
necessidade de obedecer, como espécie de consciência formal que diz:
‘você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster daquilo’, em
suma, ‘você deve’ (NIETZSCHE, 2007, p.85).
14
É importante ressaltar que nos remetemos aqui à obediência enquanto submissão a normas tidas
como incondicionais. Todavia, releva situar que este é somente um viés possível de interpretação, uma
vez que se evidencia na filosofia de Nietzsche, também, o aspecto afirmativo da obediência enquanto
um imperativo da natureza, da luta entre os impulsos, como podemos verificar em Além do Bem e do
Mal (2007, p.77-78).
15
Percebe-se aqui que Nietzsche se refere ao fenômeno vida, isto é, as relações humanas no âmbito
cultural ou social, como fundadas pela dominação moral. Todavia, isto não significa que a vida seja
moral, ao contrário, a vida não pode ser avaliada, valorada, portanto, não é um fenômeno moral, ela é
antes critério de valoração (NIETZSCHE, 1976, p.18). Ver item 2.2, página 75.
39
Mas obedecer à que? Para quê? Já referimos antes – a moral concebida como
receita contra as paixões ou inclinações. Ou seja, deve-se obedecer a
intencionalidade moral contra os afetos e impulsos. “Todos os antigos juízos morais
estão de acordo neste ponto: é preciso destruir as paixões” (NIETZSCHE, 1976,
p.33). E para quê? Em função do seu grau de periculosidade. As paixões são
perigosas, podem ameaçar o exercício do poder.
A moral das intenções, reguladora da vida é assim, moral da castração e da
domesticação. Práticas morais pelas quais se busca melhorar a humanidade,
inclusive pela educação. “Sob a palavra moral se ocultam tendências muito
diferentes” (NIETZSCHE, 1976, p.50). A domesticação do homem do animal
humano é uma delas. Esta noção, afirma Nietzsche, enquanto suposto
melhoramento “soa aos nossos ouvidos quase como uma brincadeira” (p. 50).
Domesticado, o animal é menos perigoso, é debilitado, pelo medo e pela dor.
“Faz-se dele um animal enfermo. O mesmo sucede com o homem domesticado”
(NIETZSCHE, 1976, p.50). Na domesticação moral do homem, este se enfraqueceu,
corrompeu-se, tornou-se doente – quem quer maneira mais fácil de manter um
domínio sobre um povo e ainda reivindicar o mérito por melhorá-lo.
O animal humano domesticado é entendido pelo autor como reduzido
A uma caricatura de homem, a um aborto; dele era feito um pecador, estava
enjaulado, fora encerrado no meio de idéias espantosas. Doente e miserável
aborrecia-se a si mesmo, estava repleto de ódio contra os instintos da vida,
repleto de desconfiança em relação a tudo que permanecia sendo forte e
feliz (NIETZSCHE, 1976, p.50).
A domesticação passa, como podemos antecipar, pela castração é preciso
destruir as paixões. Mas quem quer isto? Justamente aqueles que não podem lidar
com elas, não conseguem espiritualizar, embelezar os desejos; os degenerados, “os
demasiado débeis de vontade” (NIETZSCHE, 1976, p.34).
40
Em todas as épocas o peso da disciplina foi posto a serviço de extermínio
(da sensualidade, do orgulho, do desejo de dominar, de possuir e de vingar-
se). Mas atacar a paixão na sua raiz é atacar a raiz da vida (NIETZSCHE,
1976, p.34).
Destruir as paixões somente por seu caráter brutal e pelo suposto mal que
poderiam produzir é, para o autor, uma estupidez (NIETZSCHE, 1976, p.33-34).
Nietzsche entende que a extirpação das paixões o ódio contra a sensualidade é
um sintoma de um ser degenerado, que não se contém frente ao excesso, que
encontra na castração, na extirpação do desejo, o único remédio para as paixões.
Assim, “não são os impotentes, não são os ascetas os que lançam suas setas
envenenadas contra os sentidos: são os ascetas impossíveis, os que necessitam ser
ascetas” (p.34), os que pregam o remédio último contra os desejos enquanto uma
maneira virtuosa de viver.
Estamos apresentando a moral como uma forma de domínio, que se afirma
enquanto verdadeira e se empenha em dizer: “o homem deveria ser desta maneira”
(NIETZSCHE, 1976, p.37). Mas, como este artifício foi criado; como chegamos a
moral preponderante?
Os valores morais o para Nietzsche criações humanas, constituídas pelo
homem em um dado momento histórico a partir de algumas condições, que
resultaram na elaboração do que descreve como a moral do nobre (bom/ruim) e a do
ressentido (bom/mau) (Marton, 1993, p.53). Opõe-se desta maneira, a tradição que
pensava a moral como algo instituído, absoluto e imutável, uma moral que oferece
valores a priori e que devem ser cultuados e cultivados. Em contrapartida, propõe que
os valores – enquanto criação humana – podem ser questionados e transformados.
A moral e os juízos morais podem ser entendidos “como uma interpretação de
certos fenômenos, porém uma falsa interpretação” (NIETZSCHE, 1976, p.49). Para o
autor não fatos morais e é por isso que “nunca deve-se tomar ao da letra o
juízo moral” (p.49).
41
Enquanto interpretação, artifício criado e, portanto, “apenas uma linguagem de
signos, uma sintomatologia” (NIETZSCHE, 1976, p.49) é a moral aqui compreendida.
Sendo justamente neste sentido que nos interessa sua genealogia, uma vez que
“como semiótica possui um valor inapreciável, pois revela ao que sabe entender, ao
menos, realidades preciosas acerca das civilizações” (p. 49).
Em “Genealogia da Moral” (2003) o autor afirma que se faz necessário, para
pensar a moral, uma crítica dos próprios valores morais, uma interrogação do valor
destes valores (p.12). O que é ‘bom’? O que é mau’? Como se chegou a estas
designações, são estes valores efetivos? Nietzsche afirma que
Tomava-se o valor desses ‘valores’ como dado, como efetivo, como além de
qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em
atribuir ao ‘bomvalor mais elevado que ao ‘mau’, mais elevado no sentido
da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem. (...) E se o
contrário fosse verdade? (NIETZSCHE, 2003, p.12).
Desta interrogação Nietzsche principia sua genealogia da constituição da moral
questionando o valor do ‘bome do ‘mau’ e buscando na etimologia destas palavras
entender sua conotação. Etimologicamente, as designações para ‘bom e ‘ruim’,
afirma Nietzsche (2003, p.20), remetem, em várias nguas, a uma origem
semelhante. Em geral as palavras ‘nobre’, ‘aristocrático’ estão na base conceitual do
que passa a ser dito ‘bom’. Em oposição, das palavras plebeu’, ‘comum’, ‘baixo’,
origina-se o conceito de ‘ruim’.
Depreende-se ainda deste contexto, a auto-designação dos nobres como
‘senhores’, ‘poderosos’, ‘ricos’ e também ‘verazes’, noção que assume a acepção de
o verdadeiro, característica distintiva da nobreza, inclusive enquanto diferenciação
“perante o homem comum mentiroso” (NIETZSCHE, 2003, p.22). Para o filósofo
existe um modo de valoração primordial, o do nobre, do forte, que se auto-denomina
‘bom’ pelas condições etimológicas relatadas e por sua própria condição de poder,
pela sua força. O ‘ruim’ é somente, por esta via, uma designação secundária,
decorrente do contraste entre a condição do nobre e a do escravo é o comum, o
42
simples. É a moral do ‘sim’, da afirmação de uma condição em si mesma
(NIETZSCHE, 2003, p.29).
Existe, no entanto, um modo de valoração secundário, criado em oposição ao
outro o escravo, a moral ressentida. Esta se constitui na inversão dos valores da
primeira, na negação como ato criador, que sempre requer, para nascer, um mundo
oposto e exterior, para poder agir em absoluto” (NIETZSCHE, 2003, p.29). Trata-se
em suma, de uma transvaloração da moral nobre originada do ressentimento do
escravo em relação a sua condição de fraco e impotente perante a condição do
nobre.
Nietzsche a descreve, nos termos a seguir, como um ato de vingança, de ódio
os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus
inimigos e conquistadores apenas através de uma radical tresvaloração dos
valores deles (...) ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom
= nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes
(os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta
inversão, a saber, ‘os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres,
impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes,
são os únicos beatos, os únicos abençoados (...) mas vocês, nobres e
poderosos, vocês serão por toda eternidade os maus, os cruéis, os lascivos,
os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados,
malditos e danados! (NIETZSCHE, 2003, p.26).
Têm-se assim duas proposições de moral, a do nobre (forte) e a do ressentido
(fraco). Aquele que se entende ‘bom’ na moral primordial é justamente considerado o
‘mau’ pela moral ressentida. É interpretado de maneira distinta o que é ‘bom’ e ‘ruim’
e o que é bom’ e ‘mau’. Para a moral aristocrática o ‘bom’ é o nobre, pelo seu poder
e o ruim’ é somente um contraste deste. Para a moral ressentida o nobre o é
‘bom’, ele é um inimigo voraz e, portanto, não pode ser visto como ‘bom’, mas
também não como ‘ruim’, enquanto um contraste de ‘bom’. Ele é ‘mau’ em função de
sua força, de seu poder, que ameaça e oprime. O ‘bom para o ressentido, é, por
conseguinte, o que não é nobre, portanto, fraco, impotente, necessitado.
Os judeus realizaram esse milagre da inversão dos valores, graças ao qual a
vida na Terra adquiriu um novo e perigoso atrativo por alguns milênios os
43
seus profetas fundiram ‘rico’, ‘ateu’, ‘mau’,’violento’ e sensual numa
definição, e pela primeira vez deram cunho vergonhoso à palavra mundo
(NIETZSCHE, 2007, p. 83).
Percebemos aqui, mais uma vez, que um conceito permite múltiplas
interpretações. A linguagem não é capaz de expressar uma verdade essencial sobre
determinada noção. Um conceito, tal como o de bom’, é uma construção lingüística
que não carrega em si nada de verdadeiro, sua acepção depende de seu
revestimento moral, constituído a partir de determinados interesses.
Não podemos, assim, pensar em uma moral verdadeira, a priori. Mas sim, em
construções de valores expressos linguisticamente que direcionam comportamentos
morais e que passam a ser reproduzidos, cultivados.
Todavia, não é somente pela via da moral religiosa que Nietzsche pensa este
tema. A moral se refere aos mais diversos aspectos da sociedade, é um fenômeno
inerente à própria vida. Nos interessa aqui, abordar especificamente a ciência a
moral científica
16
– mas, justamente no que se refere aos seus vínculos com o
contexto descrito, para, posteriormente, pensarmos sua articulação com a educação.
Para tanto, partimos da referência científico-filosófica
17
inicial a grega. O
autor dedica-se a pensar o período grego como o instituidor da moral científica,
justamente naquilo que esta moral se opõe ao que havia de mais significativo para
aquela cultura, sua arte trágica, como valorização da vida – sendo a filosofia socrática
e platônica entendida como declínio, a decadência do helenismo.
Para Nietzsche, a cultura grega, fundamentalmente através de sua arte,
produzia um sentimento de glorificação de si, da vida, de superioridade. Todavia, com
16
Elemento importante para nossa discussão, no item seguinte, quando seguimos pelo segundo
percurso de análise anunciado - a instrução como disciplinadora do gosto pela regra, ou contra a
exceção.
17
Sempre que nos referimos à ciência, nos remetemos à concepção metafísica, alvo da crítica de
Nietzsche, principalmente quando esta assume seus contornos modernos com o iluminismo. Assim,
não nos dedicamos as distinções entre ciências empíricas e humanas, ou as discussões acerca das
diversas concepções de ciência, nem propomos, a partir do autor, uma noção distinta de ciência; nos
interessa, em nosso estudo, abordar tão somente à crítica nietzschiana à metafísica, considerada a
visão preponderante pelo autor, e que, nesse sentido, concerne à nossa reflexão sobre seus vínculos
com a educação.
44
o surgimento da escola socrática o caráter grego assume outra configuração;
inclusive como signo de sua decadência, como afirmamos. Conforme o autor (1976,
p. 108) os filósofos foram os decadentes do helenismo.
As virtudes socráticas foram pregadas porque os gregos as haviam perdido:
iracundos, medrosos, inconstantes, cômicos, tinham razões de sobra para
se deixarem pregar a moral. Não porque esta servisse para algo, mas
porque as grandes frases e as atitudes finas ficam muito bem nos
decadentes (Nietzsche, 1976, p.108).
Para Sócrates tudo deve ser consciente, inteligível para ser belo e bom
(NIETZSCHE, 2003b, p.81;83). A tendência socrática condena a arte e a ética vigente
na Grécia até então. Condena a arte trágica por não ser inteligível, por seguir apenas
por instinto. “Apenas por instinto’: por essa expressão tocamos no coração e no ponto
central da tendência socrática. (...) A partir deste único ponto julgou Sócrates que
devia corrigir a existência” (NIETZSCHE, 2003b, p. 85).
Sócrates, o homem teórico, é “precursor de uma cultura, arte e moral
totalmente distintas” (NIETZSCHE, 2003b, p.85). Em face de seu “pessimismo prático
(...) é o protótipo do otimista teórico” (NIETZSCHE, 2003b, p. 94). Atribui, pela sua fé
no saber, o valor de medicina universal ao conhecimento. Ao socrático, ocupar-se
com o conhecimento verdadeiro, em separá-lo da aparência e do erro, por
mecanismos lógicos, conceituais é a mais nobre e autenticamente humana das
atividades, base de seu otimismo dialético.
Agora porém a ciência, esporeada por sua vigorosa ilusão, corre,
indetenível, até os seus limites, nos quais naufraga seu otimismo oculto na
essência da lógica. Pois a periferia do círculo da ciência possui infinitos
pontos e, (...) o homem nobre e dotado, ainda antes de chegar ao meio de
sua existência, tropeça, e de modo inevitável, em tais pontos fronteiriços da
periferia, onde fixa o olhar no inesclarecível (NIETZSCHE, 2003b, p.95).
A moral socrática, contra o instinto, contra a vida, encontra discípulos por toda
parte na filosofia e nas ciências, mas foi Platão que a trouxe para a base da moral
cristã (NIETZSCHE, 1976, p.106). Esta doutrina, essencialmente moral, nega,
45
reprova e condena a arte tanto quanto condena a vida. É hostil à vida, “rancorosa,
vingativa aversão contra a própria vida (...) o cristianismo foi desde o início, essencial
e basicamente, asco e fastio da vida na vida” (Nietzsche, 2003, p.19). Seu aparente
otimismo em uma outra vida futura melhor ‘o sabá dos sabás’ conforme o dito
nietzschiano, é de fato um anseio pelo nada, pelo fim, sinal de negação desta vida, de
profunda doença, de desânimo (NIETZSCHE, 2003b, p.20).
Assim como a moral religiosa, a ciência igualmente sustenta a crença em um
mundo prometido. Basta nos remetermos aos ideais modernos de domínio da
natureza, da história e do próprio homem através do conhecimento científico, o qual
conduziria a humanidade esclarecida para a felicidade. Como vimos, desde Sócrates,
a moral científica é também pregadora da neutralidade - no agir científico, não
lugar para paixões. Ao invés da fé, a razão, mas nunca os impulsos conduzem à terra
prometida. Embora a ciência moderna, possa ser pensada como anti-cristã, é “de
maneira nenhuma anti-religiosa” (NIETZSCHE, 2007, p. 53).
Por isto, é a moral filosófico/científica e cristã, moral da decadência. “Como
negação da vontade de viver, essa moral é o mesmo instinto de decadência que se
transforma em imperativo; nos diz: caminha para tua perdição; é a sentença dos que
estão sentenciados” (NIETZSCHE, 1976, p. 37).
Ao passo que o moralista considera as paixões, os impulsos como perigo,
como uma ameaça, e, contra estes eleva seus valores morais, Nietzsche, dedica-se a
pensar a moral em si como um perigo. A moral criada, os valores incondicionais e
inquestionáveis, tal qual são apresentados, dirigem-se, no entendimento do autor,
contra a vida, além de exigirem sacrifícios e renúncias absurdas por parte do
indivíduo.
Assim, “toda moral ensinada, venerada e predicada até agora, se dirige (...),
contra os instintos vitais e é uma condenação já secreta, ruidosa e descarada
desses instintos” (NIETZSCHE, 1976, p.36). Mas, como a moral assume essa
configuração?
46
À medida que rebaixa o indivíduo, que o debilita, o obrigando a renúncias e
sacrifícios pulsionais, supostamente pelo bem do todo da sociedade, quando o
convoca a ser um instrumento, desinteressado por si mesmo, o faz ser altruísta, a
‘moral da decadência’ afirma o não valor do indivíduo. O pecador, resignado,
arrependido, condena-se por não conseguir controlar totalmente suas paixões e
entende sua ‘pequenez’, sua pouca importância o que importa é seu trabalho, a
utilidade de sua virtude altruísta – ‘o instrumento é louvado na virtude’ e não o
indivíduo.
É neste sentido, que Nietzsche considera que “uma moral altruísta, uma moral
em que se debilita o amor de si mesmo, é, de qualquer maneira que se considere,
uma coisa má” (1976, p.84). Isto porque, sua máxima se aplica não somente ao
indivíduo, mas também aos povos.
Isto sendo verdade em relação aos indivíduos, aplica-se acima de tudo aos
povos. Falta o melhor quando começa a faltar o egoísmo. Eleger
instintivamente o prejudicial, deixar-se seduzir por motivos desinteressados,
é quase a fórmula da decadência. Não olhar por seu interesse é
simplesmente a folha da parreira moral com que se encobre uma realidade
muito diferente; fisiologicamente quer dizer isto: ‘Não sei onde achar meu
interesse.’ Decomposição dos instintos. O homem que se torna altruísta é o
homem acabado (NIETZSCHE, 1976, p.84).
A moral escrava quer o sofrimento, o sacrifício. O homem sem valor’ cultiva a
dor, a decadência, o auto-escarnecimento, a auto-mutilação. Sacrifica sua liberdade,
seu orgulho, sua confiança de espírito. “Há crueldade e fenicismo
18
religioso nessa fé,
que é exigida de uma consciência debilitada, múltipla e de muitos vícios”
(NIETZSCHE, 2007, p.48). É por esta via, que o escravo vivência o tirânico, o
incondicional, “até a dor, até a doença seu enorme sofrimento oculto se revolta
contra o gosto nobre, que parece negar o sofrer” (p.48).
O sofrimento é condição dessa moral. O indivíduo desvaloriza seus atos
passados, os recrimina – e, assim desvaloriza a si mesmo – e, portanto, merece a dor
da resignação inclusive como castigo. “Seu pressuposto é que a submissão do
18
Auto-negação, auto-mutilação, como entre os fenícios [Nota nossa].
47
espírito seja indescritivelmente dolorosa, que todo o passado e todo o hábito de um
tal espírito se oponham ao absurdissimun que a ‘fé’ para ele representa”
(NIETZSCHE, 2007, p.48).
Dado o fato de que o indivíduo não vale nada, julga-se que a própria vida não
vale nada. “Em lugar de dizer ingenuamente: ‘eu não valho nada’, a mentira moral diz
pela boca do decadente: ‘Não há nada que tenha valor; a vida não vale nada”
(NIETZSCHE, 1976, p.84). Daí a necessidade de se criar um ‘objetivo para a vida’. É
esta máxima moral a vida não vale nada que o autor entende como um grande
perigo, como um juízo contagioso (p.84).
Todavia, se perigosos e decadentes, os artifícios morais são também em o.
Por que tanta resignação, abdicação, tanto sacrifício? Interrogamos se “uma tal
monstruosidade de negação, de antinatureza, não terá sido desejada em vão”
(NIETZSCHE, 2007, p.52). Para que servem tais artifícios? São de fato úteis, como
se quer, para a felicidade do virtuoso e da humanidade?
Não nos parece ser desta maneira. Como afirmamos anteriormente “os
espíritos fortes e os espíritos malignos (...) obrigaram a natureza humana aos maiores
progressos” (NIETZSCHE, 1981, p.41) e não a resignação virtuosa dos fracos. A
moral constituída até o momento, “um perigo muito grande” (NIETZSCHE, 2007, p.52)
somente conduz a uma inútil desvalorização da vida.
Aquele que compreende quão sacrílega é essa sublevação contra a vida,
que chegou a ser quase sacrossanta na moral cristã, compreenderá
concomitantemente outra coisa: o inútil fictício, absurdo e mentiroso que é
semelhante sublevação (NIETZSCHE, 1976, p.36).
Trata-se de uma maneira decadente de ver a vida. Absurda, fictícia, mentirosa,
mas que se apresenta enquanto a ‘verdadeira’, incondicional. Trata-se de uma
determinação de como viver e de como compreender o que é a vida a vida como
algo a ser condenado. “Diz-se não às aspirações internas e superiores da vida e se
considera Deus como inimigo da vida. O santo que agrada a Deus é o castrado ideal.
A vida finda ali onde inicia o reino de Deus” (NIETZSCHE, 1976, p.36).
48
Todavia, esta é somente uma apreciação da vida, uma forma decadente,
condenada de entendê-la, mas, perigosa, que se consolidou por séculos. Seu perigo
maior, no entanto, não se encontra no conteúdo, claramente degradante, mas sim na
idéia de determinação, no dever implícito em todo pressuposto moral. “A condenação
da vida que parte dum vivo, não é senão, em última instância, o sintoma duma
espécie de vida determinada” (NIETZSCHE, 1976, p.36-37). O problema moral não
está no dito deves ser assim ou assado, mas no ‘deves’, na determinação.
Basta de delírios! Basta de formas modestas de imodéstia! A moral, por
pouco que condene, é em si mesma, e não em relação à vida, um erro
específico com o qual o se deve ter compaixão, uma idiossincrasia de
degenerados que causou muito dano (NIETZSCHE, 1976, p.38).
Quando se determina um modo de valoração, seja qual for, se domina, ao
passo que essa determinação alcança o indivíduo e se generaliza. É disto que trata a
moral das intenções causa e finalidade da educação da regra a intencionalidade
do dever, pela qual se o domínio. A moral da decadência, da negação da vida é
tão somente a configuração, a valoração que assume até aqui o ‘tu deves’.
2 PARA QUE SERVE SERVIR?
2.1 Para que serve a ciência
“O conhecimento pelo conhecimento’ eis a última armadilha colocada pela
moral: é assim que mais uma vez nos enredamos inteiramente nela”
(NIETZSCHE, 2007, p.62).
Em nossa abordagem, no capítulo anterior, discutimos a noção nietzschiana de
moral, criticando suas implicações culturais e afirmamos que em toda proposição
teleológica está sempre inserido um fim moral. Assim, com essa idéia, propomos que
a educação, à medida que objetiva uma finalidade, vincula-se, enquanto
intencionalidade causal, necessariamente à moral.
Se tomamos os valores descritos como sendo os pregados pela educação, no
intuito da formação da regra, contra a exceção, necessitamos, ainda, seguir pelo
outro percurso anunciado no início do primeiro item de nosso estudo o da ciência,
como elemento central do que é ensinado no processo educacional; como elemento
disciplinador do gosto pela regra. Cabe aqui refletir acerca de como Nietzsche
compreende ciência, e como esta se vincula aos valores educacionais abordados, e
como se articula com seus objetivos utilitaristas.
Nietzsche entende que
Promoveu-se o avanço da ciência nos últimos culos (...) porque se
acreditava na utilidade absoluta do conhecimento, particularmente na íntima
união da moral, da ciência e da felicidade motivo principal dos grandes
franceses, como Voltaire (NIETZSCHE, 1981, p.67).
Um conhecimento útil, capaz de conduzir o homem à felicidade. É isto um fato?
A crítica de Nietzsche direciona-se justamente a esses aspectos, apregoados como
características inerentes à ciência.
50
Primeiro ao seu alcance, ou seja, poderia ela de fato ser útil ao homem ou
melhor, deve ela ser útil? As proposições iluministas de domínio da natureza, da
história e do homem, a partir da ciência, e que a entendem como um conhecimento
verdadeiro, e assim, útil à felicidade humana, são interrogadas pelo autor uma vez
que este não considera a ciência tal como se desenha no período moderno como
capaz de realizar tais promessas.
O autor entende que a felicidade vincula-se à quantidade de prazer e
desprazer possíveis ao homem. Não como desvincular um elemento do outro; o
prazer vem acompanhado do desprazer, e a tentativa de se evitar o desprazer implica
abdicar de boas doses de prazer. Assim, o objetivo da ciência seria “dar ao homem a
maior quantidade de prazer e a menor quantidade de desprazer possível”
(NIETZSCHE, 1981, p.47). Todavia, o problema então se desloca.
A questão deixa de se dirigir ao fato de a ciência poder ou não proporcionar
prazer ou evitar o desprazer. “É correto que com a ciência se pode proporcionar um e
outro objetivos!” (NIETZSCHE, 1981, p.48). A interrogação é: como chegar a
felicidade por esta via se prazer e desprazer estão intrinsecamente vinculados?
Mas como chegará a isso, se o prazer e o desprazer estão tão intimamente
ligados que aquele que quer saborear um deles ao máximo é forçado a
provar ao ximo o outro, se o que quer chegar a “felicidades celestes’
também deve se preparar para ‘angústias mortais’? (NIETZSCHE, 1981,
p.47).
Assim, ou se busca uma saída estóica, visando obter da vida o menor prazer
possível, para com isso, conhecer pouco desprazer; ou se objetiva o menor desprazer
o menor sofrimento -, o que na mesma: evita-se o prazer. Outro caminho é
buscar o maior desprazer possível, isto é, “como juro do aumento da quantidade de
prazer e alegrias” (NIETZSCHE, 1981, p.48). Como é evidente, no entendimento de
Nietzsche, em nenhuma das circunstâncias prazer e desprazer se separam.
51
Se quiserdes em conseqüência reduzir e rarefazer os sofrimentos humanos,
pois bem! Precisas reduzir e rarefazer vossa capacidade de alegria. Talvez
seja ela [a ciência] mais conhecida em nossos dias pela sua faculdade de
privar o homem de suas alegrias, de o tornar mais frio, mais estátua’, mais
estóico (NIETZSCHE, 1981, p.48).
Se a ciência serve para tornar a humanidade mais feliz ou não, é de fato uma
discussão, uma indagação enganosa. A pergunta não é se ela é útil para tanto, mas
se a ciência é um conhecimento útil em si. No entanto, nessas mesmas questões,
seja se ela serve para proporcionar felicidade, ou se serve para algo, há um
direcionamento explícito do ideal que norteia o pensamento científico moderno,
essencialmente metafísico o de que ela se postula enquanto útil; nesse sentido,
pouco importa para que; seja para a felicidade, para o progresso, para o estado, etc.
Qual é então o caráter utilitário da ciência? Para que serve, ao passo que se
vincula com a educação; isto é, quando se constitui no conteúdo central a ser
transmitido no processo educativo?
“O primeiro sinal de que o animal se tornou homem ocorre (...) quando o
homem busca a utilidade, a adequação a um fim: então surge pela primeira vez o livre
domínio da razão”, afirma Nietzsche (2006, p.66). O caráter utilitário da ciência, do
conhecimento racional, vincula-se, para o autor, a idéia de um fim, ou a
intencionalidade de adequação do homem a um fim. Nos parece ser justamente neste
sentido que a ciência situa-se no campo educativo. Ela é tida como útil, pelo caráter
do conhecimento produzido. Mas, sua utilidade na educação vai além disso. Ela é útil
à formação da regra, pois disciplina o gosto pela regra. Isto porque, pela ciência,
disciplina-se o gosto pela razão e, portanto, pelo que é útil.
O conhecimento o capacita [homem] a preferir o mais útil, isto é, a utilidade
geral duradoura, à utilidade pessoal, o honroso reconhecimento de valor
geral e duradouro àquele momentâneo: ele vive e age como indivíduo
coletivo (NIETZSCHE, 2006, p.67).
Se é a ciência um conhecimento que serve para tanto, ou seja, para capacitar
o homem a preferir o útil e assim, para agir como indivíduo coletivo, conforme a regra,
52
o é, porque se postula enquanto um conhecimento verdadeiro – somente nesse
sentido pode ser útil. Contudo, Nietzsche opõe-se claramente a essa noção de
ciência, aos pressupostos que a constituem e mais especificamente a concepção de
verdade nela presente.
Ao passo que Nietzsche empenha-se em sua crítica ao instituído, mais
diretamente aos valores morais, entendidos até aquele momento como naturais e
absolutos, dedica-se igualmente a crítica à filosofia iluminista de caráter metafísico,
dualista, centrada no subjetivismo e na razão esclarecida. Sua filosofia coloca em
xeque o pensamento e os valores modernos vigentes, que fundavam-se
substancialmente no pensamento cartesiano. Marques (1993, p.60) propõe que o
“ataque mais frontal à razão iluminista moderna é o empreendido por Nietzsche”,
colocando em crise o paradigma da modernidade, crise esta, que por si é instituidora
do pensamento pós-moderno.
Marques esclarece que a dita crise da modernidade refere-se justamente aos
pressupostos iluministas cartesianos criticados por Nietzsche –
Culminou a modernidade numa exasperação da subjetividade, do
individualismo, que teve início na opção do mundo ocidental pelo dualismo
de sujeito objeto e que se acentuou no paradigma cartesiano da consciência
fundadora das idéias claras e distintas (MARQUES, 1993, p. 56).
É Justamente neste âmbito, da crítica ao cogito e aos seus pressupostos
acerca da consciência - de um eu (alma) pensante - que Nietzsche, reiteramos, situa
o seu afastamento em relação ao pensamento metafísico. “O que me separa mais
radicalmente dos metafísicos, é que não lhes concedo ser o ‘eu’ que pensa; melhor,
considero o próprio eu uma construção do pensamento” (apud ONATE, 2000, p.45).
Através da ruptura com os fundamentos de uma filosofia metafísica, de sua
crítica aos princípios do pensamento cartesiano e com a própria noção de verdade
ao afirmar que o importante não é apontar o que é verdadeiro ou falso em um
conceito, juízo ou ato, mas qual sua contribuição para o desenvolvimento da potência
(ONATE, 2000, p.52) tão cara à filosofia tradicional e moderna, Nietzsche inaugura
53
um novo paradigma de pensamento (pós-metafísico, pós-moderno). Neste sentido,
sua crítica não se direciona somente a uma análise reflexiva de um ou outro princípio
filosófico, mas a toda uma forma de pensamento, aos procedimentos filosóficos
modernos. Onate afirma que a abordagem de Nietzsche
pretende auscultar o pressuposto que mobilizou Descartes e os demais
filósofos a constituírem seus sistemas a partir de métodos e princípios
fundantes, legitimadores, tais como o cogito e o eu penso kantiano. O
interesse maior de Nietzsche está em averiguar se o itinerário constitutivo do
sujeito pensante estabelece uma ruptura efetiva com a tradição filosófica ou
se, ao contrário, ele conduz ao extremo refinamento, sob a scara de uma
nova trama conceitual. (ONATE, 2000, p.28).
É através da analise do pensamento vigente na filosofia, buscando evidenciar
o que uma proposição possui de vínculo com outra como nos sistemas de
Descartes e Kant – e principalmente em que elas se fundamentam e como se
constituem que Nietzsche rompe com as tradições filosóficas anteriores. Essa ruptura
evidencia-se pelas proposições nietzschianas acerca do tema verdade, elemento
central ao pensamento metafísico.
Não nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um
pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo
como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador,
mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os
lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e
pensar (NIETZSCHE, 1983, p.45).
Ao escrever sua concepção de verdade, Nietzsche dedica-se a pensar
sobre como se constitui o impulso à verdade. Para tanto, refere-se inicialmente ao
que designa como “o minuto mais soberbo e mentiroso da ‘história universal”
(NIETZSCHE, 1983, p.45) a saber, a invenção do conhecimento, em outras
palavras, o próprio intelecto humano.
Para Nietzsche, o impulso à verdade está intimamente vinculado ao impulso
intelectual, ao conhecimento, à formação de conceitos universais postulados
54
enquanto verdadeiros. O intelecto, entendido “como um meio para a conservação do
indivíduo (...) meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se
conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com
chifres ou presas aguçadas” (NIETZSCHE, 1983, p.45), assume assim um caráter
necessário à espécie humana diante de sua fraqueza física perante outros animais.
Todavia, em sua própria constituição, ou invenção, como meio de conservação
está implícito a configuração do intelecto, do conhecimento, como um disfarce, uma
dissimulação, um engodo.
Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada
sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da
existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o
próprio conhecer. Seu efeito mais geral é o engano (NIETZSCHE, 1983,
p.45).
Trata-se aqui do engano sobre o que de fato é possível conhecer, da
estimativa exagerada em relação às possibilidades do intelecto, da ilusão de que
seria possível constituir um conhecimento verdadeiro. Pode o homem conhecer algo
verdadeiramente? O que sabe o homem acerca de si mesmo, pergunta Nietzsche
(1983, p.46). Poderíamos pelo intelecto ter acesso a qualquer coisa que possamos
designar como sendo a verdade sobre algum aspecto do mundo?
O intelecto somente permite ao homem juízos enganosos, seja acerca de si
mesmo, acerca da centralidade ou superioridade do humano no mundo e acerca do
próprio mundo. Isto porque, conhecemos somente por convenções lingüísticas. O
conhecimento, o senso de verdade que o acompanha, é expressão indireta da
realidade, constituído através da linguagem, que provém, “em todo caso não da
essência das coisas” (NIETZSCHE, 1983, p.48).
Se o conhecimento intelectual não provém da essência das coisas, é porque a
própria linguagem, como expressão deste, não possui uma gênese lógica e não é
capaz de expressar a verdade das coisas (NIETZSCHE, 1983, p.48). O conhecimento
visa à universalização através de conceitos, de estilos lingüísticos compartilhados e
55
convencionados, mas, que só supostamente poderiam trazer em si algo de
verdadeiro sobre o mundo.
Depreende-se deste entendimento de Nietzsche sua concepção de verdade,
vinculada a afirmação intelectual, expressa e regida pela linguagem, de uma
generalização conceitual. “Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser
‘verdade’, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória
das coisas, e a legislação da linguagem também as primeiras leis da verdade”
(NIETZSCHE, 1983, p.46).
O conhecimento somente pode ser constituído por meio da palavra e através
desta é capaz de adquirir qualidades universais, conceituais, que assumam a
condição de verdade, supostamente contida no conhecimento. Para Nietzsche, se
conhecemos por meio da linguagem, se o intelecto constitui-se pela palavra, justifica-
se o caráter de disfarce, engodo, dissimulação que o autor atribui ao conhecimento
intelectual. Isto porque a linguagem traz em si esta condição.
Para o filósofo a palavra é “a figuração de um estímulo nervoso em sons”
(NIETZSCHE, 1983, p. 47), ou seja, uma metáfora de um estímulo nervoso em uma
imagem e esta, por sua vez, metaforizada em som. A palavra surge de um estímulo
nervoso interno, não da coisa que visa expressar. O intelecto não é capaz de captar
esta ‘coisa em si’, ou a verdade desta. A linguagem, o conhecimento possui por essa
via uma origem subjetiva. A realidade, ou a verdade não está assim na gênese nem
da palavra e nem do conhecimento possível através dela (NIETZSCHE, 1983, p. 47).
“Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores,
neve e flores, e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas,
que de nenhum modo correspondem às entidades de origem” (NIETZSCHE, 1983,
p.47). Todavia estas designações se universalizam linguisticamente, tornam-se
obrigatórias socialmente, assumindo caráter de verdade.
A verdade não está, no entanto, na gênese da linguagem, a formação das
palavras se dá, como afirmamos, por uma metáfora constituída não a partir da
realidade, mas de maneira subjetiva. O conceito que nasce disso é fruto de uma
56
universalização de elementos desiguais que são colocados em uma mesma estrutura
conceitual, em um mesmo sistema. “Todo conceito nasce por igualação do não-igual”
(NIETZSCHE, 1983, p.48).
Desconsidera-se desta maneira o singular, o individual, em prol de uma
generalização conceitual arbitrária a partir da qual se enquadra, se julga, se classifica,
se denomina o particular. Nietzsche argumenta esta idéia afirmando que, por
exemplo, o conceito de ‘folha’ somente é possível pelo abandono das diferenças
individuais, ou seja, tal como se na natureza houvesse além de folhas, uma matriz
primordial ‘folha’ a partir da qual fosse possível compreender conceitualmente o que é
folha e pela qual todas as folhas fossem constituídas como uma cópia fiel
(NIETZSCHE, 1983, p.48).
Da mesma maneira, uma designação como a ‘honestidade’ nada diz acerca de
uma “qualidade essencial” (NIETZSCHE, 1983, p.48) da honestidade. Somente temos
acesso a uma série de ações individuais e desiguais que entendemos como sendo
honestas. Todavia, as igualamos para formar o conceito de ‘honestidade’.
A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como
nos também a forma, enquanto que a natureza não conhece formas nem
conceitos, portanto também não conhece espécies, mas somente um X,
para nós inacessível e indefinível. Pois mesmo nossa oposição entre
indivíduo e espécie é antropomórfica e não provém da essência das coisas,
mesmo se não ousamos dizer que não lhe corresponde: isto seria, com
efeito, uma afirmação dogmática e como tal indemonstrável quanto seu
contrário (NIETZSCHE, 1983, p.48).
O que é então entendido por verdade frente ao contexto, do intelecto e da
linguagem, descrito? Nietzsche afirma que é
Um batalhão vel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim,
uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e
retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a
um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das
quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem
força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora entram em
consideração como metal, não mais como moedas (NIETZSCHE, 1983,
p.48).
57
De fato, não uma verdade essencial sobre qualquer aspecto da realidade.
Há sim, construções lingüísticas que se afirmam enquanto verdade. No entanto,
conforme o filósofo, existe um impulso à verdade inerente ao homem, acerca do qual
Nietzsche busca apontar a gênese.
Se entendemos o intelecto e sua articulação intrínseca com a linguagem como
uma construção necessária à conservação da espécie, podemos compreender que
uma obrigação da sociedade frente à verdade lingüística, conceitual, intelectual, a
partir do momento que o homem por “necessidade e tédio, quer existir socialmente e
em rebanho” (NIETZSCHE, 1983, p.46). É necessário que a sociedade sustente, para
sua própria conservação, as verdades (no sentido lingüístico em que o possíveis)
constituídas intelectualmente. Verdades que organizam, convencionam relações, a
partir das quais, ou fundado nelas, constituem-se sistemas, estilos obrigatórios,
normas, ilusões que permitem a vida em sociedade; que permitem ao menos um
acordo de paz entre os indivíduos em prol da sociedade, “para que pelo menos a
máxima bellum omnium contra omnes desapareça do mundo” (NIETZSCHE, 1983,
p.46). Eis o motivo da instrução, do ensino das verdades científicas – a conservação.
Mas porque seria a verdade condição de suposta garantia de sustentação da
organização. Nietzsche o justifica pela oposição da verdade em relação à mentira, ou
ao mentiroso.
O mentiroso usa designações válidas, as palavras, para fazer parecer o não-
efetivo como efetivo; ele diz, por exemplo: ‘sou rico’, quando para seu
estado seria precisamente ‘pobre a designação correta. Ele faz mau uso
das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões
dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a
sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si (NIETZSCHE,
1983, p.46).
Se o mentiroso é excluído pelo seu ‘mau uso’ das palavras, afirma-se em
contraste a valorização do honesto, do verdadeiro. Contudo, não é simplesmente pelo
fato de mentir, de enganar que o mentiroso não é digno de confiança. Antes, a
hostilidade social relacionada a ele deve-se aos efeitos nocivos do engodo. Não se
teme propriamente a mentira, mas sim, ser prejudicado por ela. Assim, o homem
58
“deseja as conseqüências da verdade que são agradáveis e conservam a vida”
(NIETZSCHE, 1983, p.46-47).
De fato, o conhecimento, a verdade, a mentira são indiferentes ao homem, o
que se torna efetivo são as conseqüências prejudiciais ou favoráveis dos enunciados.
Somente assim, poderia constituir-se a sociedade com bases em um intelecto, em
uma linguagem, enganosos em si. Neste sentido, o disfarce, a dissimulação, a ilusão,
travestida de verdade conceitual pode ser sustentadora da sociedade. Verdade e
mentira o construções lingüísticas. Em suma o que importa são os seus efeitos.
Trata-se de “mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo
obrigatório para todos” (NIETZSCHE, 1983, p.49).
No sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como ‘vermelha’,
outra como ‘fria’, uma terceira como ‘muda’, desperta uma emoção que se
refere moralmente à verdade: a partir da oposição ao mentiroso, em quem
ninguém confia, que todos excluem, o homem demonstra a si mesmo o que
de honrado, digno de confiança e útil na verdade (NIETZSCHE, 1983,
p.49).
Trata-se, portanto, em última instância de uma referência moral à verdade. Não
importa à sociedade o caráter ilusório da verdade. “O próprio homem (...) tem uma
propensão invencível a deixar-se enganar” (NIETZSCHE, 1983, p.51). Esquece que
estas verdades, as metáforas lingüísticas, conceituais, são tão somente metáforas, “e
as toma pelas coisas mesmas” (p.50). É decerto o sentimento moral que dá a
conotação da verdade e da mentira. O contraste entre a honradez da verdade em
oposição à mentira recobre o questionamento acerca do alcance e da efetividade da
verdade e o direciona propriamente a um imperativo moral em relação ao que é bom
e ao que é mau, considerando somente os efeitos da verdade ou da mentira.
É justamente por esta perspectiva que se faz interessante pensar a verdade e
a mentira no sentido ‘extra-moral’. Ou seja, não ser conduzido na reflexão por uma
valoração moral da verdade e da mentira enquanto designações que se remetem à
algo bom ou ruim/mau, para que, com isso, se possa pensar os limites destas noções
frente ao intelecto humano e, para após, verificar na constituição destes conceitos a
presença de uma referência moral que os determina.
59
A verdade e a mentira certamente possuem conotações distintas se tomadas
em uma ou outra perspectiva moral. Para o nobre, auto-denominado o verdadeiro, a
mentira, o mentiroso é o simples, o comum, o plebeu em contraste à sua condição.
Para a moral ressentida a verdade liberta. A mentira é vinculada com o ‘mau’, o
destruidor, o aprisionador, é um inimigo a ser combatido.
Os sentimentos morais, os modos de valoração, influenciam desta maneira a
compreensão do que é verdadeiro, - é por essa via que verdade e mentira possuem
um referente moral - e em decorrência, a conduta dos homens e da sociedade. A
verdade conceitual é condição necessária, obrigação da sociedade, para sua
sustentação, mas é também, neste sentido a sustentação de uma mentira, como
buscamos descrever. Sua função de sustentação direciona-se moralmente para um
tipo específico de sociedade e de homem, um tipo dissimulador e enganoso. Eis o
que podemos depreender de uma reflexão sobre o sentido extra-moral’ da verdade e
da mentira, justamente seu caráter moral, regulador.
“Por que sempre a moral?” (NIETZSCHE, 1981, p.228). O gosto pela verdade
é assim essencialmente moral. Isto é, pela utilidade moral da verdade. O gosto pelo
útil, pela regra, é o gosto pela verdade. Todavia, poderíamos pensar em uma utilidade
da verdade que não se situasse estritamente no campo moral? Nietzsche entende
que a vontade de verdade, ou o impulso à verdade, não possui outra motivação não
moral. Sua suposta utilidade frente ao fato de o homem não querer se deixar enganar
não diminuiria realmente os riscos de encontrar coisas prejudiciais, perigosas,
nefastas” (p.227). Nietzsche demonstra que o ‘eu não quero me deixar enganar’, ou
seja, aquilo que motivaria uma vontade de verdade, isto é, ao que ela seria útil é
igualmente um engano. Sua utilidade é moral; a verdade somente assume seu
caráter, enquanto tal, por convenção, por antiguidade, não podemos de fato, como
temos descrito, demonstrar a verdade sobre algo. Mas, “apesar da demonstração
constante da inutilidade e do perigo que residem na ‘vontade de verdade” (p.228) a
crença na ciência permanece.
A fé na ciência se sustenta supostamente pela fé na verdade, “fé absoluta,
esta convicção que lhe serve de base, que a verdade é mais importante que qualquer
outra coisa e também mais importante que qualquer outra convicção” (NIETZSCHE,
60
1981, p.227-228). Mas, como a verdade se afirma, não pela sua veracidade, mas por
seu aspecto moral, “a força do conhecimento, portanto, não reside em seu grau de
verdade, mas em sua antiguidade, seu grau de assimilação” (p.123). No entanto, a fé
na verdade permanece.
“O desejo vaidoso de ser considerado inteiramente consistente, uniforme no
ser e no pensar: pois isso conquista respeito, empresta confiança e poder”
(NIETZSCHE, 2006, p.257). Eis o que move a vontade de verdade; ela é necessária
aos sistemas consistentes da filosofia moderna. Pela consistência de uma proposição
conquista-se respeito e poder. Assim, o homem, ao passo que lhe agrada o que é
tomado por verdadeiro, faz uso das verdades científicas na educação com o intuito de
sustentação, conservação e regulação do caráter moral da sociedade. Se a verdade
lhe agrada o gosto, é através dela que se disciplina o gosto pelo instituído o próprio
instituído assume caráter de verdade -, pelo comum, pela regra, como entende
Nietzsche.
O gosto pela verdade assume uma configuração, que se expressa também no
pensamento educativo, como gosto pelo instituído, pela regra, se entendermos a
verdade como expressões lingüísticas, metáforas, que se consolidaram ao longo do
tempo, que se naturalizaram e pareceram aos homens como lidas e obrigatórias
pois, o que é a regra senão o que se consolidou discursivamente, no campo moral?
Ao afirmar o gosto pela verdade, ao transmiti-lo no meio educativo, trata-se sempre
de conservação, de domínio, controle, de sustentação de poder, ou de dar vazão à
vontade de poder. Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles
dizem assim deve ser! (..) sua vontade de verdade é vontade de poder”
(NIETZSCHE, 2007, p.105-106).
nesse aglomerado se produziu uma fermentação, a luta e uma vontade de
potência. Não somente a utilidade e o prazer, mas ainda todos os instintos
tomaram parte na luta pelas ‘verdades’; a luta intelectual tornou-se uma
ocupação, um encanto, uma vocação, uma dignidade; o conhecimento e a
aspiração à verdade tomaram lugar então como necessidade em meio a
outras necessidades. (...)
O conhecimento a partir de então tornou-se uma
parte da própria vida e, enquanto vida, uma potência em contínuo
crescimento (NIETZSCHE, 1981, p.124).
61
Para além da utilidade, do prazer felicidade –, a busca pela verdade torna-se
uma necessidade para a ciência, e o conhecimento uma necessidade para a vida. Em
outros termos, a vontade de verdade, entendida em última instância como vontade de
poder, assume, enquanto impulso, lugar de móvel do conhecimento. Por conseguinte,
afirma-se igualmente como móvel da educação. Isto é, não é uma intencionalidade,
seja ela a busca da felicidade ou da construção de um conhecimento útil, ou a
verdade em si que move a ciência e a educação, mas um impulso. A justificativa do
fazer científico embasada em sua utilidade enfraquece frente a essa afirmação. Para
que serve a ciência, se seu móvel o é nem a utilidade, nem a verdade, nem a
felicidade?
Vontade de poder aparece neste contexto como móvel do conhecimento
enquanto impulso, ou seja, como força que demanda vazão, um impulso que quer ser
senhor; trata-se de exercício de poder ou potência. Ao deslocarmos o seu móvel e
interrogarmos a serventia da ciência, todavia, não deslocamos sua função no campo
educativo. É como vontade de poder que exerce sua função. A utilidade, a felicidade,
a verdade, são as vias pelas quais este impulso ganha vazão, é como se torna
senhor; travestido de coerência sistemática, ganha respeito e poder.
Nossa discussão, ao criticar a utilidade, a felicidade e a verdade, afirma o
caráter ilusório no qual a ciência busca sustentação, ou seja, nas intencionalidades
que compõem os motivos finalidades aparentes do conhecimento. Apesar de não
entendermos estes elementos como impulsionadores do conhecimento, a ciência, no
campo educativo, é ainda entendida como útil porque reafirma o gosto pela verdade e
o conhecimento dito verdadeiro. Pelo ensino das ciências se objetiva disciplinar o
gosto por estes elementos leia-se disciplinar o gosto contra a exceção -, e, como
afirmamos, entendemos que é por esta via que a vontade de poder se expressa no
campo científico e educativo, regulando a conservação e perpetuação do gosto moral.
Todavia, como pode esse conhecimento se sustentar como verdadeiro,
sustentar seu caráter de utilidade, frente à crítica nietzschiana? Estaria a educação
ancorada em um engano?
62
Seu aporte encontra-se na invenção de um outro mundo. Assim como a moral
religiosa, a científica busca sustentar suas verdades pela criação de um outro mundo,
de uma outra vida. Se a religião promete um mundo além da vida, paraíso dos
ressentidos, a metafísica cria o mundo-verdade, paraíso dos idealistas.
Não dúvida, o verídico, no sentido mais rigoroso e extremo, tal qual o
prevê a na ciência, afirma destarte um outro mundo que aquele da vida,
da natureza e da história e enquanto afirma esse outro mundo, nega seu
antípoda, este mundo, nosso mundo (NIETZSCHE, 1981, p.228)
Isto é, chama-se este mundo de mundo das aparências, cria-se por esta via,
um mundo distinto da realidade; o mundo como o vemos é aparente, enganoso, não é
a realidade. Para quê? Para afirmar um mundo da verdade, um mundo no qual o ser
é, no qual é referido pela idéia, sem as distorções, sombras e enganos produzidos
pelos sentidos que nos mostram somente a aparência. O impulso à verdade faz do
homem criador. Cria um habitat para a verdade, para que ela possa existir
consistente, coerente. É feita a vontade de seu inventor.
A razão metafísica visa a unidade, exatidão, identidade, coerência sistemática;
visa a verdade do ser, o que é, e não o vir a ser. Nega o devir. O que não é não pode
vir a ser, e o que se faz, se torna, não é (NIETZSCHE, 1976, p.25;28) É necessário
situar o ser, a realidade no âmbito (mundo) da idéia, onde é verdadeira e serve à
coerência dos sistemas filosóficos.
Não se encontra a verdade neste mundo, donde se conclui que
‘É forçoso que haja uma aparência, um engano por efeito do qual não
podemos perceber o ser onde está o impostor?’ o apanhamos gritam
alegremente são os sentidos! Os sentidos o quem nos enganam acerca
do mundo verdadeiro (NIETZSCHE, 1976, p.25).
63
A verdade está em um mundo superior divinizado. Nietzsche entende este
artifício como sugestão da decadência (1976, p.29). Compreende que carece de
sentido falar de um outro mundo, uma vez que uma “outra realidade é absolutamente
indemonstrável” (p.29).
É certo que o tal mundo. “O mundo das aparências é o único real, o
mundo-verdade foi acrescentado pela mentira” (NIETZSCHE, 1976, p.26). Mas, se
abolimos o mundo-verdade, também, com ele “abolimos o mundo das aparências”
(p.32). Não resta um outro mundo.
Porém, é nesta fé na verdade, na crença metafísica de uma verdade possível,
que se sustenta a na ciência. Mesmo para os antimetafísicos, como Nietzsche
assume
Mas compreendeu-se ou se está em vias de compreender que é sempre
numa crença metafísica que repousa nossa fé na ciência – que nós, também
nós buscamos, ainda hoje, o conhecimento, nós, ímpios e antimetafísicos,
emprestamos nosso fogo ao incêndio que uma fé de mil anos acendeu, essa
cristã que também foi a de Platão e que admitia que Deus é a verdade e
que a verdade é divina (NIETZSCHE, 1981, p.228).
A ciência ancorada nesta crença, resulta na afirmação da moral contra os
sentidos, para sustentar sua noção de verdade. A educação, em sua finalidade de
formação da regra, se ocupa da transmissão dos valores de domesticação dos
sentidos e paixões. Com o mundo-verdade, a ciência alia-se a esse ideal.
Resultado: mister se faz desprender-se da ilusão dos sentidos, do devir, da
história, da mentira. Conseqüência: negar tudo o que supõe nos sentidos,
negar todo o resto da humanidade; isso pertence ao povo; é necessário ser
filósofo, é necessário ser múmia, é necessário representar o monoteísmo
como uma mímica de coveiro (NIETZSCHE, 1976, p.25).
O gosto pela verdade, pelo mundo das idéias, é o gosto contra as exceções,
pois, é o gosto contra tudo que é sensível e dito aparente. É o gosto contra as
paixões, porque são um atrapalho ao conhecimento verdadeiro, uma vez que
64
enganosas, que provém dos sentidos, do corpo. É o gosto contra o corpo, contra a
vida, que é ensinado.
E acima de tudo que pereça o corpo, essa lamentável idéia fixa dos
sentidos, o corpo contaminado por todos os defeitos que a lógica pode
descobrir, refutado, até impossível, se se quer, ainda que tão impertinente
que se porta como fosse real!... (NIETZSCHE, 1976, p.25-26).
A educação ao seguir esses ideais, alia-se mais uma vez à moral. O sistema
educacional fecha seu circuito; disciplinando a formação e o gosto contra a exceção.
2.2 “Moral” da história
Vejamos que rumo estamos tomando. Afirmamos que o pensamento educativo
propõe como objetivo geral a formação da regra e a disciplina do gosto pela regra (ou
contra a exceção). Esse objetivo, por sua vez, é também entendido como sendo o
motivador de toda ação educativa, ou seja, é efeito que se espera do processo e em
função dele, por sua motivação se educa.
Em última instância, são adotados procedimentos para que se alcance esse
objetivo. Todavia, o objetivo, supostamente, é que promove o ato de educar, pois é
em função dele que o processo educativo se organiza. Assim, os procedimentos
educativos seriam as causas pelas quais se efetivariam certos efeitos esperados. No
entanto, o objetivo, o motivo, a finalidade almejada por destes procedimentos, é posto
como fim e também como princípio da ão educativa, portanto, causa da causa, isto
é, causa-de-si-mesmo.
Nestes termos, os procedimentos do processo educativo tradicional podem ser
entendidos da mesma maneira como Nietzsche compreende o engano presente no
pensamento causal que acaba por reduzir o motivo à causa da ação. Não se trata
somente de uma confusão entre causa e efeito – um dos erros possíveis deste tipo de
pensamento, descritos por Nietzsche. Trata-se, da atribuição de uma causa falsa ao
processo, justamente pela invenção de um fim, de um telos para a educação,
erroneamente tomado também como causa.
65
Cria-se a idéia de que um fim, um objetivo a ser alcançado e este passa a
determinar o processo. Assim como a vida possuiria um objetivo maior conforme
supõe o moralista a educação tem um fim que necessariamente deve corroborar,
contribuir para o objetivo da vida. Um objetivo que não é futuro, o está colocado no
horizonte, mas no princípio. Em essência, ele é o passado, a perpetuação do velho,
de uma sociedade, mais precisamente, de seus valores morais por isto, todo fim é
moral.
A educação é uma das grandes cátedras dos ‘mestres da moral’. Através dela
atribuem-se sentidos tanto para condutas quanto para concepções e juízos, que
visam garantir a transmissão moral. Sentidos estes, que se por um lado são
entendidos como meios para um fim, por outro, compõem o mesmo engano até aqui
descrito são mais uma vez também eles os objetivos. Pretende-se, através da
educação, doutrinar, disciplinar, normatizar os sentidos, os valores, adaptando os
indivíduos à regra.
A análise de Nietzsche acerca da educação predominante, de caráter moral, e
das concepções modernas iluministas que a norteiam, possui um traço claramente
crítico. Porém, esta crítica não se direciona somente à configuração do processo
educativo tal qual o autor o descreve, mas vai além, uma vez que se dedica a pensar
os limites desta prática.
Ao passo que Nietzsche aponta os perigos da formação de instrumentos úteis
à sociedade, justamente em função da perpetuação moral e da decorrente
estagnação da sociedade e do indivíduo, além dos sacrifícios, resignações e
renúncias exigidas deste, o pensador interroga os alcances da educação. Poderia ela
de fato garantir a formação da regra, contra a exceção? Poderia normatizar o
indivíduo ao ponto deste sacrificar a si mesmo em prol da moral pregada?
Se, em parte os objetivos morais da educação parecem ser atingidos, à
medida que os sentidos ali transmitidos de fato se propagam enquanto supostas
verdades, necessitamos pensar que, por outro lado, o pensamento causal que regula
a educação é altamente contraditório. Como poderia ter total êxito um processo que
66
toma seu produto como causa dele mesmo engana-se o educador que entende a
finalidade da educação como móvel de sua ação. Como poderia o engano intrínseco
à idéia de uma finalidade da educação produzir efeitos a partir de causas falsas?
Temos aqui dois pontos a ser analisados. O primeiro, de caráter evidente,
como introdutório ao segundo, propõe que: o que move o fazer educativo, não é sua
finalidade. E, com maior destaque, por segundo: há um elemento essencial que
escapa ao processo educativo.
A finalidade do processo educativo é um motivo aparente, e, como tal, nos
interessa em nossa abordagem, pois, todavia, é um motivo no qual se acredita e que,
como afirma Nietzsche, a felicidade e a miséria íntimas da humanidade “vieram-lhe
efetivamente da fé que teve nestes ou naqueles motivos e não naquilo que foi motivo
autêntico” (1981, p.72). Tomamos, até aqui, o objetivo da formação da regra como
norteador do pensamento educativo, como uma intencionalidade moral presente
neste. Todavia, pensamos que outro elemento motivador não direcionado em si
por nenhum objetivo, finalidade, e que produz efeitos imprevisíveis, que só
conceitualmente pode-se supor vinculados.
Nos referimos a vontade, a entendendo como força motriz de uma ação
impulsionadora desta. Reiteramos que não se trata de um querer consciente, mas de
um complexo da vontade, vinculada também às sensações e afetos a própria vida
é vontade de poder” (NIETZSCHE, 2007, p.19).
Em uma conclusão simples, se a vontade rege tudo, deve igualmente estar
presente no princípio do processo educativo. Assim, o impulso é móvel, e não os
objetivos ou causas conscientes. Por esta via, podemos especular que, se o impulso
não possui um fim a priori, a não ser o de ter vazão, pode direcionar-se para qualquer
sentido, ou seja, o objetivo supostamente norteador da educação da regra pode não
se concretizar. Primeiro, porque é em si um engano e segundo porque, conforme
Nietzsche, o móvel de fato, encontra-se no impulso, ou seja, seus efeitos estão
totalmente a dispor do devir, não podem ser controlados.
67
Passamos, assim, ao segundo ponto, ao qual nos dedicamos mais
demoradamente. Permanecemos, todavia, na temática do impulso. Se é ele
responsável por toda ação humana, inclusive a educativa, é também ele que escapa
ao fazer pedagógico.
Como temos enfatizado
19
, a educação busca a afirmação da regra justamente
tentando disciplinar os impulsos; direciona-los para ações nobres, virtuosas – o
impulso egoísta deve ser altruísta, o ocioso, laborioso. Essencialmente, o impulso
deve ser dominado e disposto à virtude; caso contrário deve-se renunciar a ele.
É o impulso tão perigoso para ser tão veementemente reprimido? É possível a
educação dos afetos, dos impulsos? Elemento central de todo pensar educativo, de
toda pedagogia tradicional, a renuncia aos impulsos é entendida como condição
moral necessária, tanto pela ciência, quanto pela religião e pregada na fabricação de
instrumentos nos bancos escolares. Felizmente, é aí que a educação falha.
Ao apontarmos no capítulo inicial de nosso estudo os impulsos como
provenientes do corpo e, por conseguinte, afirmarmos este como a grande razão, não
é a toa que o corpo, no contexto educativo, tem sido predominantemente abordado
como elemento a ser dominado. Ou seja, tem-se como pressuposto que o aluno deva
ter um domínio do corpo de maneira que este não interfira nos processos de
aprendizagem. Os sentimentos, afetos, sensações oriundas do corpo necessitam ser
dominados para que a atividade intelectual possa desenvolver-se sem estes
percalços. “E acima de tudo que pereça o corpo...” (NIETZSCHE, 1976, p.25-26).
Aisenstein (2000) ao descrever o processo histórico do vínculo corpo-educação
atenta para este aspecto indicando que os sistemas educacionais, de maneira
significativa, objetivam através do próprio processo educativo estabelecer no
estudante o domínio de seu corpo. “A educação escolar resulta, sob este ponto de
vista, como parte do mecanismo desenvolvido com o fim de controlar, modelar,
orientar o corpo infantil” (p.141). E segue afirmando
19
Ver item 1.
68
(...) essa tarefa sobre o corpo [controle] não se considera somente
como requisito prévio para o ensino (que os alunos aprendam a ficar
quietos em suas classes durante o tempo que requer a lição de
matemática, por exemplo) mas é também parte do conteúdos mesmos
da área. Nesse minucioso processo se pode reconhecer um dos
mecanismos pedagógicos que se implementaram para o controle do
corpo popular. (AISENSTEIN, 2000, p.141)
20
A idéia aqui expressa da necessidade do controle, do domínio do corpo como
pré-requisito ao processo educativo remonta ao pensamento de Platão
(AISENSTEIN, 2000, p.139) quando este concebe a alma como superior ao corpo
diferenciando-o da natureza inteligível da alma restando ao corpo os sentidos, vistos
como enganadores e dificultadores para a ascensão do espírito ao mundo das idéias.
“Platão sustenta que se deve aspirar ao conhecimento da filosofia, porém para chegar
a possuí-lo, é preciso um adequado adestramento do corpo que preceda os severos
exercícios da mente” (p.139).
Igualmente, Adorno e Horkeheimer apresentam o domínio da natureza do
corpo “como expressão dialética da natureza subjugada que forja o sujeito
esclarecido” (VAZ; BASSANI, 2003, p.16). Vaz (1999) afirma que “faz parte das
grandes teorias da civilização, e também do imaginário popular, a idéia de que as
grandes conquistas da humanidade relacionam-se com o domínio da natureza, seja
esta entendida do jeito que for” (p.89). É este percurso, o do intento de dominar a
natureza (e neste contexto o corpo), que Adorno toma, também, como norteador à
sua reflexão sobre o esclarecimento iluminista.
O ideal de renúncia, de domínio da natureza corporal é constitutivo do próprio
processo civilizatório sendo que este mesmo ideal, como afirmamos, está presente
desde Platão como um pressuposto educacional. A educação coloca-se neste modelo
identificada com a visão de esclarecimento da ciência de tradição iluminista. Assim,
em seu intento normatizador o discurso educativo proclama e repete o domínio do
corpo como necessário.
20
As citações retiradas do texto de Aisenstein (2000) foram por nós traduzidas livremente do espanhol.
69
Ao tentar dominar o corpo, a natureza, o iluminista repete o modelo de
esclarecimento mítico
21
, reproduzindo sua lógica, e não atinge seu intento de
emancipação. Ao contrário “o esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de
pensar o pensamento. (...) O procedimento matemático tornou-se, por assim dizer, o
ritual do pensamento. Apesar da autolimitação axiomática, ele se instaura como
necessário e objetivo: ele transforma o pensamento em coisa, em instrumento”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.37). Temos assim, um esclarecimento não
emancipatório e que aprisiona a natureza e o sujeito na necessidade de domínio de
seu corpo, de seus impulsos.
No intento de domínio dos impulsos, do corpo, supostamente estariam dadas
as condições para a ilustração. Isto é, a razão não seria atrapalhada em seu processo
de conhecer, de esclarecimento, pelas paixões e sentidos corporais. Todavia,
Nietzsche entende (assim como, posteriormente, Adorno) que este processo não é
esclarecedor, ao contrário, é nocivo à vida, pois, debilita e adoece o homem.
Por que tal intento é contra a vida? Demandar a renúncia ou o domínio de um
impulso transforma o homem em um animal doente, ou seja, atenta-se contra o que
move a vida o próprio impulso. Como afirmamos, a vontade de poder é a própria
vida – é força que visa vazão, domínio. Renunciar a isto é renunciar a própria vida. Ao
se objetivar um controle pulsional, origina-se “uma crônica enfermidade, que constitui,
precisamente o ônus do processo civilizatório ao longo do qual a humanidade se
autoconforma” (GIACÓIA, 2005, p.150).
O cultivo dos valores morais vigentes, sua reprodução, para o velho, são a
condição do estado enfermiço humano. Por eles se iguala, se massifica; o velho
homem persiste. Controlar o corpo é a intencionalidade mais sagaz contra o novo. É
o corpo que cria, que aponta para o novo, uma vez entendido como centro da
subjetividade, como impulsionador. Por outro lado, é justamente esta ‘sagaz’
intenção, uma estupidez. Nietzsche afirma que, “destruir as paixões e os desejos
unicamente por sua brutalidade e para evitar as conseqüências nocivas que esta
produz, nos parece hoje uma fórmula particular de estupidez” (1976, p.33).
21
Sobre este tema, ver Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento (1985).
70
Os impulsos são brutais e nocivos somente porque são força; exigem vazão.
São vistos como maus, pois, constituem uma ameaça a maneira enferma como a
civilização se configura. Dar vazão e não renunciar a um impulso criador é possibilitar
o surgimento do novo, e isto é, decerto, um perigo para a moralidade doente. O
homem civilizado é doente: “e tanto mais doente quanto mais civilizado” (GIACÓIA,
2005, p.149).
Renunciar a um impulso, torna o homem fraco, ou seja, renuncia ao que há de
forte nele, renuncia à vida em prol da civilização. Mas como isto se processa?
Nietzsche situa aqui a idéia de um excesso pulsional, ou seja, não como extirpar
um impulso, não comando ou domínio sobre este. Uma vez sendo necessário
moralmente uma negação da satisfação pulsional, isto é, o impulso não encontrando
uma descarga “para fora”, volta-se “para dentro”, para o próprio homem.
Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro
(...) fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e
errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. (...) Esse homem,
(...) esse animal que querem ‘amansar’, que se fere nas barras da própria
jaula, este ser carente, consumido em aventura, mara de tortura, insegura
e perigosa mata esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero
(...). [Assim] foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje
não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem
(NIETZSCHE, 2003, p. 73).
O sofrimento do homem consigo mesmo é a origem da doença. Igualar os
homens significa perpetuar esse sofrimento. A regra é o sofrimento é a separação
de seu passado animal pela “guerra aos velhos instintos nos quais até então se
baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava” (NIETZSCHE, 2003, p.73).
Civilização é o nome da doença da qual padece o homem.
Igualar o desigual – eis a fórmula da educação, da moral civilizadora. Os
impulsos conflitantes, que lutam constantemente por domínio precisam ser
silenciados para que se ouça a voz da moral. Díspar, único, por sua constituição
pulsional, cada homem é tornado igual, formatado, é feito massa, populaça.
71
De maneira muito semelhante a de Nietzsche, Adorno remete-se a temática do
controle dos impulsos, da natureza corporal do homem, a apresentando como
inerente ao processo civilizatório e atenta para a problemática de uma educação
massificadora
22
. Para Adorno (1995), da educação tradicional pautada pelo controle
do corpo decorrem dois aspectos relevantes. Um refere-se à tendência à violência
resultante de tal prática, o outro afirma a adesão cega do indivíduo ao coletivo.
As práticas educativas que visam o domínio do corpo e, por conseguinte, o
controle da subjetividade, produzem reflexos na esfera corporal que tendem a
violência. A severidade e a disciplina no trato com o corpo, que a educação
tradicional afirma, conduzem a uma mutilação do indivíduo. Em cada situação em
que a consciência é mutilada, isto se reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma
forma não-livre e que é propícia à violência” (ADORNO, 1995, p.126-127).
O segundo elemento indicado por Adorno (1995) é a adesão ao coletivo.
Objetivo da educação tradicional, a adaptação ou adesão do indivíduo a formas
normalizadas de sociedade, produz, conforme o autor, uma indiferenciação de si e do
outro, um não reconhecimento de sua condição, ou seja, uma objetificação, uma
materialização de si e do outro. “Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos
convertem a si próprios em algo como material, dissolvendo-se como seres
autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar os outros como sendo
uma massa amorfa” (ADORNO, 1995, p.129).
Estes dois elementos, a adesão ao coletivo e a tendência à violência, se
entrecruzam. O indivíduo dissolvido no coletivo torna a si mesmo igual a uma coisa e
passa a tratar o outro igualmente como coisa. Indiferente a sua dor e a dor do outro e
sem perceber sua condição particular, imerso no coletivo, seguindo seus valores
absolutos o indivíduo sofre a mais evidente forma de mutilação (ADORNO, 1995, p.
129-130). Esta é inclusive, para o autor, a base para a erupção da barbárie e o
modelo do qual derivou o nazismo.
22
As discussões de Adorno demonstram, para nós, mais uma vez, a atualidade do pensamento
Nietzschiano e a relevância de suas preocupações frente uma educação de caráter moralizador.
72
As conseqüências do intento normativo do corpo presentes na educação
tradicional apontadas por Nietzsche nos remetem a um quadro complexo que coloca
em questão os valores adaptativos pelos quais se pauta tradicionalmente o
pensamento educativo. E, para além disso, interrogam de maneira incisiva os
alcances de sua prática, uma vez que pode decorrer dela, não o enquadre social
desejado do indivíduo, mas ao contrário, produções extremamente problemáticas à
toda a sociedade, ao ponto de Adorno (1995), como afirmamos, vincular estas
práticas às condições de surgimento da barbárie nazista.
A idéia de um ser massificado, imerso em seus conflitos internos oriundos do
processo civilizatório que exige o controle dos impulsos ou sua extirpação, reafirmado
por uma educação severa e disciplinadora, o transforma, tanto para Adorno quanto
para Nietzsche, em um ser decadente. Reprodutor de valores absolutos, que, em
função da repressão pulsional, pode reagir de forma violenta, bárbara à contenção
pulsional que se impõe. Isto porque, o impulso demanda vazão, podendo assim,
irromper de maneira violenta à severidade moral exigida.
Trata-se, pela repressão pulsional, da negação da natureza humana. Negar o
corpo, os impulsos é dizer “muda tua natureza” e isto, “é desejar a transformação do
todo” (NIETZSCHE, 1976, p.38). Igualar o todo, tornar o desigual em igual
igualmente doente. “A doutrina da igualdade! ... Não veneno mais venenoso, pois
parece pregado pela própria justiça, quando é a ruína de toda justiça” (p.101).
A intencionalidade de igualar o desigual aponta para a decadência, para o
passado, para a manutenção de um tipo de moral civilizadora decadente. A exceção,
o desigual, como temos afirmado, aponta para o novo. É criador e não reprodutor.
A igualdade (...), pertence essencialmente a uma civilização decadente; os
abismos entre homem e homem, entre uma classe e outra, a multiplicidade
de tipos, a vontade de ser cada um algo, de distinguir-se, (...) é o que é
próprio das épocas fortes (NIETZSCHE, 1976, p.88-89).
73
Igual, civilizado, com sua natureza subjugada, o homem sofre, adoece. Se a
educação logra certo êxito na formação da regra, o faz, também, porque falha
23
. Ao
reprimir um impulso este não se extingue, volta-se ao interior do homem e o faz
doente. A regra é a doença. Todavia, é certo que, ao não conseguir extirpar as
paixões, afetos, sentimentos, a condição para a exceção, e não somente para a regra
está dada. E, de fato é que falham os intentos moralizadores presentes na
educação. O corpo não silencia.
A exigência de um controle sobre a natureza corporal o se concretiza
integralmente. O impulso persiste. Não há como dominar a natureza, “por mais que a
Pedagogia moral se empenhe em aniquilar as paixões, seu inexorável destino é
sucumbir ao fracasso, que nenhuma criatura pode se subtrair à força da natureza”
(GIACOIA, p. 158, 2005). Nestes termos, estaria Nietzsche propondo um retorno a
uma natureza humana perdida? Ou ainda, estaria afirmando a necessidade de
proporcionar total vazão aos impulsos, como uma suposta cura ao estado doentio do
homem? Surgiria destas indagações uma outra educação que, ao invés de
disciplinadora, seria libertadora?
Chegamos assim ao ponto crucial de nosso estudo. Necessitamos refletir
sobre estas indagações, às quais respondemos desde de maneira negativa, para
que possamos situar nosso posicionamento frente à problemática por nós abordada
afinal, há uma finalidade para a educação?
Nietzsche, frente à questão de um retorno à natureza, posiciona-se de maneira
paradoxal. Afirma, em Crepúsculo dos Ídolos, que “também eu falo dum ‘retorno à
natureza’ (1976, p.100). Aparentemente, estaria o autor, aqui, supondo a
possibilidade de uma alternativa para o estado doentio do homem que seria a de
voltar-se para a sua natureza original. Fato que implicaria na abdicação do seu
estado civilizado e que contraria nossa resposta negativa à questão proposta. No
entanto, o filósofo esclarece sua afirmação.
23
Por outro lado, é certo que se de fato os impulsos fossem passíveis de serem extintos ou totalmente
dominados a regra estaria perpetuamente garantida; não haveria ameaça instintual, não haveria
exceção.
74
Ao propor a idéia de um retorno à natureza, Nietzsche, não supõe uma volta
para trás, não se trata de um estado de natureza que teria sido perdido em um
passado remoto e que deveria ser reencontrado, revivido. A própria noção de um
estado natural do humano é complexificada pelo autor isto é, a idéia de humano é
propriamente uma criação do homem civilizado, portanto, o natural. “Não houve
jamais uma humanidade natural” (NIETZSCHE apud GIACOIA, p.161, 2005).
O retorno à natureza em Nietzsche é antes de tudo um direcionamento para a
natureza, não uma volta. É um passo adiante, para o futuro, para o alto, nunca para
trás. Nestes termos, ao afirmar que também eu falo de um retorno à natureza,
prossegue esclarecendo sua proposição
ainda que não se trate propriamente de uma volta para trás, mas sim uma
marcha para frente e para o alto, para a natureza sublime, livre e terrível,
que joga e tem o direito de jogar com os grandes destinos (NIETZSCHE,
1976, p.100).
Que natureza é esta? Como pensar em uma natureza sublime ou livre? É
nesta perspectiva que se situa novamente a temática do corpo e dos impulsos.
Natureza assume este caráter (livre, sublime, mas também terrível), justamente
porque não pode ser diferente, isto é, não pré-determinação na natureza, as leis
humanas, sejam as regras morais, a consciência, a linguagem, as crenças, não
determinam, não regem e o influenciam o devir da natureza o que de modo
algum significa dizer que o homem não produza efeitos sobre a natureza. Nietzsche
refere-se ao fato da natureza não seguir as convenção humanas, sequer as
constantes da física, da química ou tantas outras, enquanto ciências que objetivam
compreender e controlar a natureza. As supostas explicações enunciadas pela
ciência são, para o autor, tão somente interpretações que visam atribuir à natureza
características semelhantes às humanas, enquadrar seu funcionamento às leis
criadas pelo homem (NIETZSCHE, 2007, p.26-27).
É neste sentido que a natureza é dita livre, o por conter em si uma condição
essencial de liberdade – de fato não há nada de livre ou cativo na natureza, estas são
atribuições humanas, conceituais, portanto, não presentes em um estado natural. É
75
livre, pois, é independente, nela não lei, mas, falta absoluta de leis, daí também
seu caráter terrível. A impossibilidade de controle de qualquer fenômeno natural torna
assustadora a imagem da natureza, para tanto, se constroem, se criam, leis que
supostamente a tornam compreensível o que é “uma bela dissimulação, na qual mais
uma vez se disfarça a hostilidade plebéia a tudo o que é privilegiado e senhor de si”
(NIETZSCHE, 2007, p.27).
O caráter sublime da natureza encontra-se nestes dois atributos
mencionados pelo autor. O sublime é justamente o estado independente e terrível da
natureza. É por esta via que entendemos a natureza como potencial criador, voltar-se
para ela é, assim, não um retorno, mas, uma possibilidade de criar o novo sublime.
Não havendo determinações, é justamente seu caráter terrível condição para o
inesperado. Retorno à natureza é “ousar ser imoral como a natureza” (NIETZSCHE
apud GIACOIA, 2005, p.161).
O homem civilizado, estruturalmente doente encontra, para Nietzsche, sua
única cura possível dando um passo adiante, em direção a natureza, a uma
imoralidade, tal qual a da natureza. Trata-se de transformar sua indigência em
fortuna, pela via da cultura (GIACOIA, 2005, p. 151), ousando ser imoral, isto é,
criando novos valores e com isso, voltando-se ao futuro e não simplesmente
repetindo o passado, reafirmando valores cristalizados.
Mas como isto se processa? Aqui retornamos ao tema do corpo e dos
impulsos, anunciado acima. O corpo, enquanto elemento da natureza, assim como
os impulsos provindos do corpo estão totalmente a dispor do devir, ou seja, sobre
os impulsos, em outras palavras, sobre a vontade, não controle ou determinação
consciente como temos afirmado. Não há como prever, calcular seus
direcionamentos; não intencionalidade, finalidade ou relação causal. Isto significa
que o moral. O corpo, nestes termos não é condicionado pelas designações e
regras morais da sociedade. O que emana do corpo, entendido como sua vontade, é
o novo, o terrível, imoral, criador. O corpo é a natureza no homem, é seu próprio ser,
que se ri do Eu (NIETZSCHE, 1999, p. 41).
76
O corpo é aqui entendido como corpo criador, como ser criador. “O nosso
próprio ser diz ao Eu: ‘experimenta dores! (...) experimenta alegrias” (NIETZSCHE,
1999, p. 41). O corpo cria sua estima e seu menosprezo (p.42), e, assim, cria valores.
Os novos valores, aqueles que superam o estado doentio, provêm dos impulsos,
provêm do corpo. Trata-se de uma criação sublime (no sentido mesmo de
sublimação), da passagem de um estado para outro. “A mudança dos valores é
mudança de quem cria. Sempre aquele que cria destrói” (p.59).
Para criar valores, no entanto, conforme o filósofo, é necessário avaliar. “Pela
avaliação se o valor”; “Avaliar é criar” (NIETZSCHE, 1999, p. 58). Mas quem
avalia? De fato, não se trata de quem. Referimo-nos aqui, à interpretação como ão
infinita, sem intérprete, sendo o impulso que interpreta, avalia.
Conforme Azeredo (2002), “os impulsos manifestam-se em nossas estimativas
de valor” (p.49). Isto é, a maneira como estimamos e suas implicações culturais, para
o pequeno ou para o grande, são sinais, sintomas, da luta dos impulsos, são a via
pela qual aparecem, se manifestam. Pois, “são nossos impulsos que interpretam”
(p.49). Trata-se, na luta constante dos impulsos, de interpretar, de atribuir valor.
“A interpretação é sempre a imposição de uma perspectiva, cuja base é dada
pelas configurações de domínio manifestas por nossos impulsos” (AZEREDO, 2002,
p.49). Os sintomas manifestados, enquanto estimativas de valor, são, neste contexto,
resultado de sucessos ou fracassos pulsionais, fisiológicos; resultado da interpretação
que somente assim se manifesta, uma vez que, o segue as vias usuais da
linguagem, justamente por ser um ato do impulso. Nestes termos, a criação ou a
perpetuação de valores são fatos necessariamente vinculados à ação interpretante
dos impulsos. Buscar dominar, extirpar impulsos, como é o intento do pensamento
educativo, é, assim, mais uma vez entendido, como um sintoma depreciativo, uma
tentativa de silenciar novas interpretações, avaliações.
O impulso que avalia, cria valor, a ão que valora, para Nietzsche, o difere
da própria interpretação. O interprete perde seu lugar de juiz. A avaliação não se
constitui em um ato de cognição de um sujeito e possui, enquanto ação, um caráter
77
inacabado e imprevisível, precisamente por não haver algo a ser interpretado, dado
que tudo, e assim, toda ação, é interpretação. Conforme Azeredo
O intérprete não se opõe nem difere da interpretação, pois, na rede
instintual que compõe os existentes, agir é interpretar e o resultado da ação
é sempre interpretação (...). De um lado, os signos, antes mesmo de
poderem ser oferecidos como elementos para uma interpretação, são eles
mesmos interpretação. De outro, os intérpretes não podem estabelecer
vínculos ou associações que não sejam previamente resultantes. É nessa
medida que reconhecemos o inacabamento constitutivo da interpretação
que se assenta no dado de que o algo a ser interpretado, pois que
tudo é sempre interpretação. Por isso, não um estado terminal a ser
atingido. Destituem-se, assim, os lugares fixos do intérprete e do
interpretado e do signo, do significado e do significante, que passam a ser
intercambiáveis, dos quais se exclui a passividade e passa-se a atribuir a
violência, o inacabamento e a infinitude. Por conseguinte, é possível
conceber, de um lado, a imposição de uma perspectiva e, de outro, excluir
em definitivo a figura do intérprete. Em vista disso, a rejeição de uma
perspectiva antropocêntrica, subjetivista ou mesmo cognitiva, no sentido de
pressupor a remessa de uma à outra cognição (AZEREDO, 2002, p.50-51).
Daí o caráter imoral da interpretação em Nietzsche o de não possuir um
determinante, um valor moral a priori que a direcione. Entendida como uma ação que
não possui uma intencionalidade ou orientação prévia que circunscreva a avaliação;
para além de qualquer perspectiva antropocêntrica ou subjetivista, sem intérprete,
infinita; a interpretação tem somente um critério – a vida.
A vida é em si imoral, uma vez que não pode ser avaliada, isto é, não podemos
atribuir valor a ela, pois não pode ser apreciada nem por um vivo porque “é parte ou
até objeto de litígio, e não juiz; nem (...) por um morto, por outras razões”
(NIETZSCHE, 1976, p. 18). Ao afirmarmos estes elementos como condição para a
avaliação, a criação de valores situamos a imoralidade como princípio da natureza e
da vida. Todavia, como se torna evidente, não se trata de uma proposição que negue
qualquer valor; tão somente está em questão a superação dos valores morais
vigentes, que fazem o homem doente e a criação, pela via dos impulsos, da
interpretação, de novos valores. “O valor que afugenta os fantasmas cria os seus
próprios duendes: o valor quer rir” (NIETZSCHE, 1999, p.45).
78
Mas, como pensar a educação nesta perspectiva? Direcionada, segundo a
crítica de Nietzsche, por uma intencionalidade moral que visa à perpetuação,
reprodução, o cultivo dos valores vigentes, aliada ao processo histórico de dominação
e massificação que adoece o homem, facilmente estaríamos dispostos a pensar em
uma proposição que afirmasse a educação como decadente ou degradante,
justamente por intentar arruinar as exceções, evitar o novo – seja pelos valores
pregados ou pelos conteúdos que moldam o gosta pela verdade, contra a exceção.
Todavia, isto não significa uma condenação da educação. Ao contrário, Nietzsche
entende a educação como elemento auxiliador da constituição de uma cultura
superior, nos termos do filósofo. Sua oposição não é direcionada à educação, mas à
moral, à intencionalidade moral presente no pensamento educativo.
Como já afirmamos, a educação falha em seu intento de domínio dos impulsos,
de controle do corpo. Se o pensamento educativo postula um telos moral e acredita
ser este o motivo e erroneamente o móvel de sua ação, isto, para o autor, não passa
de um grande engano. A postura que tomada frente à educação é elemento central
para a criação e não somente para a reprodução.
Em suas conferências na Basiléia, sobre o futuro dos estabelecimentos
docentes (2007b), o filósofo apresenta a educação intimamente vinculada a formação
de uma cultura diferenciada (p.69) e mesmo em Assim falou Zaratustra (1999) os
impulsos criadores vinculam-se ao conhecer (p.71). Não se trata, portanto, de uma
negação da educação, no sentido em que ela cumpriria um papel depreciativo.
Proporia o autor, então, uma nova educação?
A educação ao ser entendida como elemento auxiliador da constituição de uma
cultura nova, ou do cultivo do novo nos remete ao fato de que não se trata, mais uma
vez, de uma negação da civilização em prol de um estado natural do homem. É na
cultura que se reproduz e se cria, se adoece e se supera. Nestes termos, a
proposição nietzschiana compreende a educação como não direcionada, dedicada à
formação da regra, ou a quaisquer outros intentos de massificação. A cultura é
entendida pelo filósofo como o principal aspecto a ser considerado pela educação.
Uma cultura que possa ir além das valorações atuais. Para tanto, o conhecimento
científico possui lugar significativo no processo educativo, mas não é seu cerne, a
79
cultura é o elemento central. O conhecimento científico, ocupa papel relevante desde
que compreendido como não sendo uma realidade de fato, um ‘texto’, mas apenas
uma arrumação e distorção de sentido” (NIETZSCHE, 2007, p.26). Isto é, não
direcionado para a verdade, motor da formação do gosto contra a exceção, mas uma
ciência dedicada à interpretação.
O conhecer, tomado enquanto ato interpretativo, como avaliação, portanto
como criação. É neste sentido que em Zaratustra, o impulso, o corpo criador vincula-
se ao conhecer
Sirvam a vossa inteligência e a vossa virtude no sentido da terra, meus
irmãos, e o valor de todas as coisas será renovado por vós. Para isso
deveis ser criadores! O corpo purifica-se pelo saber, eleva-se com o esforço
inteligente: todos os instintos do que pensa e conhece se santificam
(NIETZSCHE, 1999, p.71).
É certo que este saber não se situa ao nível de um conhecer metafísico, no
sentido em que haveria algo a ser explicado, decifrado no mundo, algo que pudesse
ser revelado ao sujeito enquanto a verdadeira essência de um determinado objeto
pela via da cognição. O próprio pensar, enfatizamos, é entendido por Nietzsche como
relação de impulsos, assim, o conhecimento, o saber que santifica os instintos, os
embeleza, diviniza, espiritualiza (NIETZSCHE, 1976, p.34) é justamente a ão
interpretativa, que pressupõe a luta e um tipo específico de economia dos impulsos.
Não se trata, portanto, de dar total vazão aos impulsos, como se fosse
postulado um estado puramente impulsivo da humanidade. Antes, conforme
Giacoia (2005) a ação criadora, interpretativa, o concerne uma total vazão e nem
uma renúncia pulsional, mas parte da luta entre as diversas tendências pulsionais e
pressupõe uma particular economia dos impulsos, situada por Giacoia como
antagônica ao tipo de economia pulsional orientada por uma práxis moral que visa a
renúncia, a castração do impulso (p.155). Nietzsche situa, segundo o autor, uma
práxis moral que poderia ser designada como um ‘imoralismo das paixões’, isto é, ao
invés de renunciar ou simplesmente retornar a um estado puramente instintual, “a
dietética nietzschiana, consiste, antes, na reapropriação do excesso, daquela imensa
80
gama de impulsos e afetos renegados (...), porém, não de sua estupidez’ bruta, (...),
mas de sua força (...) sublimada” (p.157).
Para tal economia pulsional, para tal ação criativa, sublime, a educação e o
conhecimento participam. Ou seja, conforme refere Giacoia (2005), situa-se aqui a
idéia de Nietzsche de que o sábio e o animal se aproximarão e que com isso, um
novo tipo de homem e de cultura se dará (p.168). Trata-se, portanto, sim de educar,
como aspecto integrante do processo de criação de novos valores.
Educar pressupõe o ensinar a pensar, a falar e a escrever aspectos
considerados primordiais para Nietzsche na formação de uma cultura superior (1976,
p.60). Estes três elementos vinculam-se intrinsecamente ao traço indicado pelo
filósofo como sendo o mais significativo a ser considerado pela educação, a saber,
uma dedicação para com a língua.
Sobre este elemento entendido como essencial para a cultura, Nietzsche
afirma: “Levem sua língua a rio! Aquele que não chega ao sentimento de um dever
sagrado para com ela, este não tem mais em si o germe que convém a uma cultura
superior” (2007b, p.69). Sob este ponto de vista, à educação concerne a seriedade
para com a língua, atitude necessária ao novo, à criação. A educação tão criticada
pelo filósofo situa-se enquanto possibilidade de aporte para o novo, para uma cultura
superior - entendida pontualmente como a superação de valores, a não reprodução,
a criação de novos valores.
Como a educação cumpriria este papel esperado por Nietzsche? E novamente,
situamos a pergunta, nisto um novo conceito de educação? Nos parece difícil e
contraditório apresentarmos a partir de Nietzsche um novo modelo educativo. O
filósofo, avesso ao fundamento, ao enquadre, a regulação certamente não se dedica
a tal empreendimento. Sua proposição direciona-se ao pensamento educativo
tradicional, o qual critica, e, por outro lado, à afirmação da importância da educação.
Sua preocupação situa-se nos efeitos culturais do processo educacional, que se
dirigidos por uma intencionalidade utilitária voltam-se à massificação.
81
Assim, ao propor uma educação que se preocupe principalmente com o ensino
da língua e com o caráter do conhecimento transmitido interpretativo; o autor não
formula um modelo educacional, mas apresenta uma maneira distinta de
compreender o processo existente. Isto é, sua reflexão direciona-se ao ‘para quê’,
à finalidade do processo e não ao como, aos procedimentos. Em outras palavras,
Nietzsche compreende que o pensamento educativo que supõe que a educação
possua e é direcionada por uma finalidade, um telos, é um engano, uma vez que sua
intencionalidade moral não passa de um motivo aparente. A finalidade, é motivo
aparente do fazer educativo; não conexão causal, também nos processos
educacionais. O móvel é o impulso, a vontade e não a finalidade. O impulso, como
tal, não possui direcionamentos prévios ou um telos a ser atingido.
Entendida, todavia, de maneira distinta, como pode a educação contribuir para
a formação de uma cultura superior? Nietzsche esclarece esta indagação situando o
papel que entende ter a educação. Se por um lado o ensino da ngua é apontado
como aspecto central, justamente por ser inconcebível uma cultura que não ‘cultive’ a
língua, ou cultura sem língua, por outro lado, a ênfase situa-se mais uma vez no
caráter interpretativo do conhecimento transmitido, pois, é da ação interpretativa, pela
via do impulso, da imoralidade pulsional que se dá o novo. Assim, a educação, à
medida que cultiva a língua, cria, pela via interpretativa. Seu papel é não afastar o
estudante de sua relação com a natureza (impulsos).
Se vocês quiserem guiar um jovem no verdadeiro caminho da cultura,
abstenham-se de romper a relação ingênua, confiante e, por assim dizer, a
relação pessoal e imediata que ele tem com a natureza: é preciso que a
floresta e o rochedo, a tempestade, o abutre, a flor solitária (...), cada uma
dessas coisas fale a sua linguagem (NIETZSCHE, 2007b, p.105)
A educação assume aqui, com a metáfora de Nietzsche, um caráter inovador
de não interferência, isto é, não se situa enquanto formativa de um tipo moral ou de
um tipo específico de indivíduo, mas que permite ao sujeito uma práxis pulsional não
castradora, mas criadora. Uma educação que não postula um objetivo moral, mas
que permite o novo. Mesmo a noção de uma cultura superior não constitui um telos.
82
Esta concepção de Nietzsche não configura algo em si, isto é, cultura superior o é
um estado fixo ou instância capaz de ser prevista em sua configuração, não é
finalidade do processo educativo. Enquanto resultado (sintoma) da interpretação,
simboliza a não estagnação, a continuidade infinita de possibilidades, é ação e não
status a ser alcançado.
Nietzsche não pretende uma nova educação e nem constitui uma crítica vazia
ao pensamento educativo, mas sim, afirma um engano, qual seja, o de que a
educação teria uma utilidade, o que equivale dizer, que ela teria um fim que a
justifique. É um engano pensar a educação em sua utilidade para a formação da
regra e assim, também o seria se propuséssemos sua utilidade para a constituição de
uma cultura superior. um engano intrínseco à idéia de fim, na intencionalidade
alcançada ou não. Se há intencionalidade, esta é sempre moral e, ao passo que esta
se opõe a vida, a exceção, ao corpo, portanto, ao novo, a criação, é condenada pelo
autor.
Nietzsche, como afirmamos
24
, atenta para o fato de que os intentos de
condicionamento do homem são falhos, uma vez nada ao homem suas
características, justamente porque não fim. O homem inventou a idéia de fim
(1976, p.47). Neste sentido, pensar em uma nova educação, seja ela dita libertadora,
transformadora, isto é, que sirva, objetive, seja útil para a construção de um
contraponto à sociedade atual, em oposição a uma educação disciplinadora,
massificadora, não constitui a proposição de Nietzsche. Ao passo que não fim,
que os direcionamentos da economia dos impulsos não possuem uma
predeterminação, é contraditório pensarmos em uma tal educação que se configure
como servindo ao oposto da formação da regra, algo como a formação para a
exceção. A utilidade, a intencionalidade são elementos sempre vinculados a uma
moral reprodutora. Servir, ser útil pressupõe uma intencionalidade, um para quê. Em
Nietzsche, faz-se mister pensar em uma educação que não sirva ... Afinal, para que
serve servir?
24
Ver item 1.1.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao propormos como objetivo de nosso estudo o debate sobre a finalidade da
educação, direcionamos nossa indagação para o que se configura como o motivo do
fazer educacional, o que o discurso educativo tradicional espera do processo de
educar, o que almeja. Concomitantemente, esta questão se expressa como uma
busca de sentido da educação, isto é, qual seu papel, sua utilidade. Em outras
palavras, trata-se de uma pergunta que pede uma resposta afirmativa, uma finalidade
que justifique a educação.
Possui a educação uma finalidade? Em um primeiro momento, cedemos ao
apelo metafísico de nossa pergunta norteadora. Respondemos que sim. O que aqui
chamamos de apelo metafísico refere-se justamente ao aspecto teleológico implícito
na própria interrogação. Há, para nós, a suposição de um fundamento, de um sentido
último esperado e definitivo que constitua a essência da educação. Quando
perguntamos se a educação possui ou não este elemento, de fato, o fazemos a partir
da lógica do próprio discurso educativo, a partir de uma preocupação inerente a este
– para que serve a educação?
Propor uma finalidade é apontar um sentido, uma utilidade ao processo
educativo. Mas, como realizar tal tarefa justamente a partir da filosofia de Friedrich
Nietzsche? Pensador avesso a qualquer fundamento metafísico, como buscamos
descrever ao longo de nosso estudo, sua filosofia certamente não pode participar de
tal empreendimento. Assim, é com Nietzsche que o problema posto assume outro
caráter. Isto é, deixa de ser uma demanda por um fundamento, situando a
possibilidade de uma reflexão que não tenha o compromisso de identificar ou
prescrever uma finalidade e que possa de fato interrogar as características do
pensamento educativo sem necessariamente postular um telos para este.
84
Quando afirmamos, no início do estudo, que a educação possui uma finalidade,
o fazemos com Nietzsche, por mais paradoxal que esta noção poderia parecer. No
entanto, esta afirmação demonstrou ser provisória, não se tratava ali de uma
constatação, mas antes, do ponto de partida da crítica nietzschiana ao pensamento
educativo tradicional. A finalidade, enquanto o que supostamente move e justifica a
educação, apresenta-se, no pensamento do autor, como um engano, um motivo
aparente.
Nossa leitura de Nietzsche nos permitiu, assim, abordar a indagação proposta
neste estudo por dois caminhos bastante diversos. Primeiro, através da crítica ao
pensamento educativo que entende que uma finalidade para a educação,
analisando como este se constitui, debatendo suas pretensões utilitaristas,
massificadoras, em última instância, morais - de conservação e reprodução de valores
morais. Segundo, pela proposição de Nietzsche que desqualifica o móvel, o motivo e
as supostas conexões causais presentes na intencionalidade educativa, apontando
para a negação da idéia de fim.
A crítica desenvolvida, parte, justamente, da suposição de uma finalidade,
caracterizada como uma finalidade moral. A afirmação de Nietzsche, situando a
educação como um meio para arruinar a exceção, ou, em outros termos, formar a
regra e a instrução como um meio para moldar o gosto contra a exceção, orienta a
reflexão crítica desenvolvida. A partir dessa idéia, analisamos como se configura no
discurso educativo tradicional o que o pensador entende como sendo o fim moral
esperado pela educação.
Caracterizamos este fim como uma intencionalidade moral que se direciona
para a reprodução dos valores, a conservação, pela massificação, de um tipo de
moral, de um tipo de sociedade. Trata-se, portanto, pela formação da regra, de uma
proposição utilitária da educação. Esta, serviria à sociedade, isto é, sua finalidade,
seu telos, direciona-se para a manutenção do velho, através de procedimentos que
visam arruinar a exceção e moldar o gosto contra ela.
Por este pensamento educativo, entende-se que a educação possui uma
finalidade e que esta é o motivo que impulsiona o fazer educativo, uma vez que
85
compreende que é para tanto que a educação serve é por esta finalidade que se
justifica a educação. Compreendemos, no entanto, com Nietzsche, que tal
pensamento segue uma gica causal que o orienta. A finalidade almejada, para ser
alcançada, demanda certos procedimentos que produziriam efeitos em direção a este
fim. Isto é, os procedimentos educativos que moldam a regra seriam o caminho para a
manutenção dos valores morais vigentes.
É preciso considerar, todavia, que tal compreensão situa aquilo que a motiva,
sua finalidade, igualmente como o seu móvel, isto é, sua causa. O objetivo esperado,
a manutenção e reprodução moral é tomado erroneamente também como causa.
Para se atingir o motivo da educação, parte-se, justamente, da afirmação destes
mesmos valores morais que se espera reproduzir. Somente pelo fato destes valores
estarem dados é que são tomados como referência, sua afirmação, causa dos
procedimentos educativos em direção ao telos esperado, é condição para que se
produza o efeito massificador esperado, que nada mais é do que a reprodução dos
valores existentes no princípio do processo. Em outras palavras, a finalidade da
educação passa a ser compreendida por Nietzsche como sendo a causa de si
mesma.
Noção considerada pelo autor como enganosa, como a própria idéia de causa
sui, é apresentada no texto como característica do erro da causalidade falsa, descrito
pelo filósofo, dentre os quatro grandes erros, como os denomina, referentes ao
pensamento causal, o qual entendemos como norteador do pensamento educativo.
Não se desvincula, em nosso estudo, a noção de finalidade do contexto da lógica
causal de compreensão do mundo. Esta última, ao postular que tudo
necessariamente possui uma causa determinante, entende que para que se alcance
certo objetivo, algo precisa direcionar a ação para tanto. É necessário um móvel ao
processo. Por outro lado, quando se postula uma finalidade, necessariamente se está
em uma lógica causal, ou seja, se há um fim a ser alcançado, deve haver um
procedimento que o possibilite, do qual decorra.
Esta reflexão conduziu nosso estudo para a análise daquilo que Nietzsche
compreende por causalidade. Para tanto, apresentamos o que o autor descreve como
erros característicos presentes nesta noção. Primeiro, o da confusão entre causa e
86
efeito. Idéia que ainda nos remete a suposição de uma relação causal possível, uma
vez que, deveriam haver causas, que elas poderiam ser confundidas com seus
efeitos. A seguir, a atribuição de causas imaginárias aos fatos, que não se desvincula
da primeira idéia, todavia, se refere à dificuldade de se estabelecer uma
causalidade para certos acontecimentos, ao ponto de serem criadas causas
imaginárias.
A crítica nietzschiana se consolida ao referir-se ao erro da causalidade falsa
e ao erro do livre-arbítrio. É importante ressaltar que se uma causa falsa, isto não
significa para o autor que haja uma verdadeira. As causas falsas, quais sejam, o eu, a
consciência e a vontade, tomadas como móveis da ação, são entendidas como falsas,
não porque haja outra causa de fato, mas, porque não relação causa-efeito, isto é,
não há uma decorrência causal que determine uma ação em direção a um fim.
Isto, por duas razões. Primeiro, pela própria desqualificação das causas ditas
espirituais enquanto móveis da ação humana. Nietzsche empenha-se em demonstrar
o quanto o eu, a consciência e a vontade (entendida como um querer voluntário,
intencional do indivíduo) não são elementos decisivos para a ão. Ao contrário, a
única causalidade possível é a da vontade, desta vez entendida como vontade de
poder, isto é, como quantum de força, impulso, que move a ação. Em outros termos, é
a própria ação, no sentido em que é o impulso que interpreta, que cria valores. Sendo
tudo entendido enquanto interpretação, a vontade de poder é apresentada como a
própria vida.
A vontade, tal qual a descrevemos, não pode, portanto, ser livre ou cativa
centro da crítica de Nietzsche ao livre-arbítrio uma vez que, enquanto vontade não
pode estar presa ou liberta, enquanto força, somente pode ser forte ou fraca. Nestes
termos, a cultura, ao evidenciar valores para o grande ou para o pequeno, é sintoma
do direcionamento dos impulsos, de sua força criadora.
Se Nietzsche apresenta a vontade como a única causalidade possível, no
entanto, esta não se vincula à lógica causal. Causalidade passa a ser entendida como
um mero artifício conceitual, como interpretação dos fatos e nunca como sua
explicação. Não há, para o pensador, uma conexão, um dualismo causa e efeito.
87
sim, uma continuidade, um constante devir dos acontecimentos, sobre o qual não
temos controle. Até porque, não há uma predeterminação possível dos impulsos,
estes não são regidos por uma intencionalidade vontade somente pode agir sobre
vontade.
A segunda razão que Nietzsche opõe à causalidade refere-se especificamente
a negação da idéia de fim. Ou seja, o filósofo entende que não um fim, uma
finalidade para as ações humanas, nada que as justifique ou que se estabeleça como
um critério transcendente para elas. Assim, não um objetivo para os atos
humanos, para a educação, ou para a vida. Esta última, entendida como o único
critério de avaliação possível, uma vez que sobre ela não se pode deliberar e,
portanto, não está sujeita a determinações morais que a condicionem.
Na mesma direção, afirma que nada ao homem suas características. O
homem não pode ser moldado, formatado para que se adéqüe a um modelo esperado
e não pode ser meio para qualquer fim. Justamente, porque não existem
procedimentos causais que possam garantir tais efeitos. Não causalidade. Não
fim.
Consideramos que, por outro lado, os intentos adaptativos estão presentes no
pensamento educativo. Busca-se moldar o homem em direção à igualação, à
massificação, à reprodução moral. Em decorrência disto, Nietzsche propõe que a
finalidade da educação se apresenta enquanto um fim moral, não somente pela
proposição moral presente em sua finalidade, mas, pela própria idéia de que uma
intenção, um fim. Isto é, uma intencionalidade que orienta o pensamento
educativo.
A moral das intenções acepção que toda moral teve até o presente é
apresentada como sendo o traço característico da finalidade educativa. Com esta
noção, situamos a idéia de Nietzsche de que toda intencionalidade é moral. Ao se
pretender atingir um fim, trata-se sempre de moral. Mas, como entendemos a moral?
Porque o autor tomado como referência ao nosso estudo se dedica tanto a esse
tema?
88
Buscamos abordar estas questões ao apresentarmos uma série de valores que
consideramos como orientadores e como objetivos do fazer educativo e situarmos a
crítica de Nietzsche a estes, os descrevendo como decadentes, justamente por se
direcionarem à castração dos impulsos, ao silenciar do corpo. Ao nos dedicarmos a
esta descrição não o fizemos somente para demonstrar seu caráter degradante,
contra a vida. O fizemos, também, por serem estes valores característicos da moral
vigente. Nestes termos, afirmamos o papel decadente de toda moral da reprodução,
da igualação.
Descrevemos a moral como um conjunto de valores criados que se instituem
enquanto verdadeiros, se naturalizam ao decorrer do tempo. Situamos, para tanto,
alguns aspectos da genealogia que Nietzsche desenvolve acerca da constituição da
moral vigente, buscando evidenciar o argumento do filósofo de que estes valores o
possuem em si um caráter definitivo, apesar de serem assim referidos culturalmente.
Seu intento é de domínio. A moral que visa à reprodução e massificação foi inventada
para a dominação e neste sentido é criticada pelo autor, inclusive ao se fazer
presente no discurso educativo. Toda moral, em seu sentido reprodutivo, é vista
como algo prejudicial à vida.
Com essa noção, encerramos o primeiro percurso de análise de nosso estudo,
ou seja, nossa abordagem dos procedimentos e valores educativos que objetivam a
formação da regra, a ruína da exceção. Descrevemos, para tanto, a finalidade da
educação, presente no pensamento educativo tradicional, como um intento moral de
dominação e massificação. Todavia, situamos a crítica de Nietzsche a tal intento,
apresentando como enganosa a própria idéia de fim e como equivocada a lógica
causal na qual se ancora.
A seqüência do estudo foi, então, dedicada a um segundo percurso o de
análise da disciplina do gosto contra a exceção. Com esta descrição, pautada pela
discussão do caráter do conhecimento transmitido no processo educativo e sua
suposta condição de verdade, fechamos o circuito do processo educacional sugerido
por Nietzsche – arruinar a exceção e moldar o gosto contra esta.
89
Apresentamos o caráter do conhecimento científico, essencialmente o
iluminista, como um conhecimento que postula sua utilidade para o progresso e para
a felicidade humana. Tal intento, se ancora na noção de que a ciência seria capaz de
garantir o alcance destas promessas justamente por ser um conhecimento verdadeiro.
Assim, a verdade, ou a busca pela verdade passa a ser norteadora do fazer científico
e este, por sua vez,é transmitido no âmbito educativo como uma verdade.
A verdade entendida por Nietzsche como a consolidação lingüística de uma
proposição, isto é, a afirmação de uma noção ou um fato, uma explicação de mundo,
que se institui culturalmente como verdadeira, mas que não passa, para o autor, de
uma interpretação possível das coisas, assume um caráter regulador da ciência.
Assim, o gosto pela ciência é em outras palavras o gosto pela verdade, que
caracteriza o que entendemos como sendo o gosto contra a exceção.
Isto posto, direcionamos nossa reflexão ao que Nietzsche compreende frente
ao contexto abordado. Tendo descrito como se constitui, para o autor, o pensamento
educativo tradicional, e, após apresentar os principais conceitos de Nietzsche que
sustentam sua crítica a este pensamento, nos dedicamos ao debate da proposição do
filósofo frente ao contexto criticado. Primeiro, cabe ressaltar que sua crítica não se
direciona à educação, mas, à maneira como esta é compreendida tradicionalmente,
ao ser direcionada por uma moral reprodutiva.
Assim, afirmamos que Nietzsche não desqualifica a educação, todavia,
também não propõe outro modelo educativo ou outro telos para a educação. Ao
afirmar a importância do corpo, dos impulsos, em seu aspecto criador, o pensador
enfatiza a relevância da não reprodução dos velhos valores e da criação de novos,
que se possibilitam também pelo viés educativo. Para tanto, sugere um retorno à
natureza, isto é, um retorno que não implica uma volta ao passado, a um estado
natural da humanidade, impensável para o filósofo. Trata-se antes, de uma afirmação
da imoralidade da natureza; trata-se, por este retorno, de ser, pela via do impulso, do
corpo, imoral como a natureza, para assim criar.
Enfatizamos que a criação de valores, neste contexto, não se constitui em uma
finalidade da educação, justamente porque o garantias causais, determinação
90
prévia dos sentidos interpretativos que o impulso tomará para que se alcance o novo.
De fato, o novo não é um fim, ao contrário, é o sublime, o inesperado, o infinito; é
devir. Não há uma finalidade para a educação. Esta não é compreendida como sendo
útil para que se alcance determinado fim. A finalidade torna-se um apêndice moral
supérfluo.
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