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essa legislação, no Brasil, tornou-se instrumento de exclusão social (e resta ainda a ver se a
aplicação do Estatuto da Cidade – Lei n° 10.257 de 2001 – será capaz de rever esse quadro).
Flávio Villaça aponta que há um paradoxo apenas aparente no fato de que a legislação
urbanística tem influído pouco ou nada "sobre as condições de habitação da maioria da
população urbana brasileira" (1986, p. 43-44), porque essa legislação é feita (e nesse ponto entra
o comprometimento do Estado com o setor imobiliário) para colocar "fora da lei a maioria das
famílias e suas casas"; quem está fora do mercado, está fora da lei (1986, p. 45).
Dessa forma, a lei urbanística serviu para propiciar o surgimento de ocupações
irregulares; tornando-se, na conhecida análise de James Holston sobre os loteamentos irregulares
em São Paulo, num "instrumento de desordem calculada" (1993), em que a desordem
corresponde ao não-atendimento das necessidades vinculadas à moradia e o cálculo, a uma
estratégia de dominação. No caso dos conflitos fundiários, o próprio uso da lei tem gerado
irresoluções jurídicas, pelo que os movimentos populares não associam o acesso à justiça com a
realização do direito (FALCÃO, 1984) (CARVALHO, 1991) (HOLSTON, 1993)
80
.
Deve-se mencionar que a interpretação jurisprudencial que negava o direito à
moradia formal para os adquirentes de lotes representava uma distorção da legislação
urbanística: o contexto social não era levado em conta
81
, tampouco a finalidade da lei (que era a
80 Pode-se lembrar do primeiro diploma legal federal sobre loteamentos, o Decreto-lei nº 58 de 1937. O
parágrafo 1
o
do seu artigo 1º trazia uma exigência adicional para loteamento, em caso de propriedade urbana, que
era a de aprovação da planta e do plano pela Prefeitura Municipal. Como não haviam sido previstas sanções para
o descumprimento de seus dispositivos (nem mesmo o prazo para o loteador levar o projeto a registro), o
Decreto-lei foi sistematicamente desobedecido por loteadores. E, paralelamente, pelos cartórios; se estes fossem
cumprir a lei, teriam que negar aos adquirentes de lotes a condição de proprietários, devido às irregularidades
cometidas pelos loteadores (WALCACER, 1981, p. 152).
Pois o artigo 23 impedia ação baseada no Decreto-lei em caso de não ter sido realizado o registro do loteamento.
Waldemar Ferreira justificou esse dispositivo pelo fato de a norma ter fugido de estabelecer sanções aos que não
a cumprissem. Para que apenas os a que cumprissem gozassem de suas “vantagens indiscutiveis e prerrogativas
de valía imensa”, foi exigido que não poderia “nenhuma ação ser admitida, nem defesa alguma, fundada nos seus
dispositivos, sem apresentação de documento comprobatório do registro por ela instituído” (1938, p. 249). Essa
proibição que, deveria estender-se tão-somente ao loteador irregular, era interpretada judicialmente de forma a
causar um impedimento também aos adquirentes de lotes. Como conseqüência, os adquirentes, devido ao
inadimplemento do loteador, ficavam impedidos de socorrer-se do Judiciário e não poderiam pedir a escritura
definitiva. A impossibilidade de recorrer ao Judiciário, alegadamente justificada pela falta de punições aos
infratores, servia para garantir essa própria impunidade, o que equivalia a empregar a lei para escapar aos rigores
legais. A lei n° 6.766 de 1979, o atual diploma legal sobre loteamentos, revogou o artigo 23 do Decreto-lei n.º 58;
no entanto, anos depois, alguns tribunais ainda aplicavam a norma antiga, que privilegiava o loteador. Foi o caso
do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, publicado pela Revista dos Tribunais (São Paulo, 696:115-117,
out. 1993), em que foi aplicado, com as conseqüências já acima referidas, o artigo 23 do Decreto-lei n.º 58 num
julgamento de 1992.
81 Como afirmava parecer de Procurador do Estado da Guanabara na década de sessenta, contrário à demolição
de imóveis construídos em loteamento irregular: “Legalmente, seria exeqüível a demolição do que foi construído
ilegalmente. Ocorre, porém, que, ao longo de todos êstes anos, ergueu-se, no incompleto loteamento em causa,
um pequeno núcleo residencial, com três dezenas de habitações que abrigam, segundo o alegado, trabalhadores e
suas famílias. Não será justo nem humano buscar solução para o caso mediante simples considerações de ordem