Download PDF
ads:
1
AXEL GREGORIS DE LIMA
A PRODUÇÃO DE SABERES PROFISSIONAIS NO
PREPARO DOS ADOTANTES PARA A ADOÇÃO TARDIA
MESTRADO
SERVIÇO SOCIAL
PUC/SÃO PAULO
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
AXEL GREGORIS DE LIMA
A PRODUÇÃO DE SABERES PROFISSIONAIS NO
PREPARO DOS ADOTANTES PARA A ADOÇÃO TARDIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Serviço Social sob orientação
da Profª Drª Dilséa Adeodata Bonetti.
PUC/SÃO PAULO
2006
ads:
3
4
Autorizo, exclusivamente, para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
São Paulo, de de 2006
5
AOS MEUS PAIS
Quando era criança, lembro-me de que ao ler um livro sobre história universal
perguntei ao meu pai, querendo sabatiná-lo, qual era a pessoa mais importante do
mundo para ele. Ele me respondeu – eu esperava outro tipo de resposta – “as
pessoas mais importantes do mundo foram meu pai e minha mãe.” Desconcertado,
eu ainda não era capaz de entender a dimensão de tanta sabedoria.
Hoje quero dizer a vocês, meu pai e minha mãe, que vocês foram e são as pessoas
mais importantes da minha vida. Vocês são os meus verdadeiros heróis.
Quero dizer a vocês que não houve um só momento na elaboração deste trabalho,
que deixei de pensar em vocês. Hoje no meu trabalho, eu procuro, para uma criança
que nunca teve um pai e uma mãe; os pais que vocês sempre foram para mim.
A vocês dois, toda a minha gratidão e reconhecimento.
6
HOMENAGEM ESPECIAL
Márcia, ao seu lado eu nunca mais conheci o
que era a solidão. Você me preencheu por
inteiro. Pelos inúmeros momentos em que me
apoiou e me compreendeu, a você declaro todo
o meu amor.
7
AGRADECIMENTOS
À Profª Drª Dilséa Adeodata Bonetti, pelo seu senso de profissionalismo, pelo seu
caráter, honradez e acolhimento;
À Profª Drª Maria Lúcia Martinelli, pelas inúmeras sessões de terapia;
À Profª Drª Maria Carmelita Yasbek, pela sabedoria e pelo carinho com que
sempre me recebeu;
Às amigas Maria Madalena e Renata, pela concretização de um sonho;
À minha amiga Mara, por ter me trazido de volta, por ter me mostrado do que sou
capaz;
À Faculdade Paulista de Serviço Social de São Paulo, na pessoa do Diretor
Professor Heliton Betetto, pelo apoio constante;
Às amigas Maria Gardênia e Etelda Madsen, pela compreensão e pela paciência;
À Kátia, secretária do Programa, pelas inúmeras ajudas e pelo carinho com que
sempre me tratou;
Ao Professor José Pinheiro Cortez, pelo exemplo e pela ousadia;
À todas as crianças que me enriqueceram e me ensinaram a ser uma pessoa
melhor;
À todos vocês que fizeram parte da minha vida, que entraram e saíram, o meu
muito obrigado.
8
LIMA, AXEL G. A Produção de Saberes Profissionais no Preparo dos Adotantes
para a Adoção Tardia. São Paulo, 2006 110p. Dissertação (Mestrado em Serviço
Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
RESUMO
Com o desenvolvimento desta pesquisa, objetivou-se estudar como a produção de
saberes profissionais é construída na preparação dos adotantes para a adoção
tardia. A coleta de dados empíricos ocorreu entre os anos de 2000 e 2004,
pesquisados nos Processos da Vara da Infância e Juventude do Fórum de
Barueri/SP. Os sujeitos da pesquisa foram seis crianças com idades superiores a
seis anos. Também foram pesquisados dois casais e duas mulheres solteiras que
adotaram essas crianças. Observou-se durante o estágio de convivência se estava
ocorrendo ou não o processo de filiação – se adotantes e adotados estavam se
adotando mutuamente. Partimos de uma hipótese inicial que a falta de preparação
dos adotantes para adotarem crianças mais velhas é peça fundamental para que
essas crianças não retornem ao abrigo. Por outro lado, o profissional que trabalha
neste cotidiano constrói saberes e experiências ricas em significados. Os saberes
não são construídos isoladamente. Eles o são construídos na relação entre o
profissional com os adotantes, que por sua vez constroem saberes na relação com
os adotados. Abordamos ainda, neste estudo, a institucionalização de crianças e os
efeitos deste abrigamento no desenvolvimento nestas crianças que foram os sujeitos
desta pesquisa.
Palavras-chave: Saber, Experiência, Preparo, Abrigamento, Adoção Tardia.
9
LIMA, AXEL G. Building Professional Knowledge in the Preparation of Adoptors for
Late Adoptions. São Paulo, 2006 110p. Dissertation (Masters in Social Services) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
ABSTRACT
This present study was developed with the aim of studying how Professional
knowledge is acquired and built in the preparation of adoptors for late adoptions.
Empirical data collection was carried out between 2000 and 2004, drawn from
Barueri/SP Child and Juvenile Court Case records. The study subjects comprised six
children over the age of six years. The two couples and two single women adoptors
of these children were also investigated. The occurrence of the bonding process was
verified during the stage of living together – namely, whether adoptors and adoptees
were adopting mutually. The study was based on the initial hypothesis that a lack of
adoptor preparation to adopt older children is a key factor in their going back into
care. However, professionals working in this setting build rich knowledge and
experience. This knowledge is not built in isolation, but through the relationship
between the Professional and adoptors, who in turn build knowledge through their
relationship with the adoptees. The present work also investigated the
institutionalizing of children, and the effects such care had on the development of the
subjects in this study.
Key words: Knowledge, Experience, Preparation, Children’s home, Late Adoption.
10
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 01
CAPÍTULO 1: O Significado da Adoção e sua História................................... 08
1.1 Conhecendo a Adoção .......................................................................... 08
1.2 A História da Adoção............................................................................. 13
CAPÍTULO 2: O Trabalho do Assistente Social na Vara da Infância e
Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.. 20
2.1 O Serviço Social no Tribunal de Justiça ................................................ 20
2.2 O Trabalho do Assistente Social na Vara da Infância e Juventude do Fórum
de Barueri.............................................................................................. 21
2.3 A Experiência e a Produção de Saberes Profissionais do Assistente Social
no Trabalho de Adoção de Crianças ..................................................... 26
CAPÍTULO 3: A Trajetória de Crianças Adotadas Tardiamente e Seu Retorno
ao Abrigo ................................................................................... 30
3.1 A Vida no Abrigo.................................................................................... 30
3.2 Histórico e Caracterização das Crianças, dos Adotantes e do Estágio de
Convivência ........................................................................................... 40
3.3 Uma Vivência que deu Certo................................................................. 66
CONCLUSÃO...................................................................................................... 68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... 72
11
INTRODUÇÃO
Nossa preocupação em desenvolver esta dissertação, se dá em função de que há
nove anos tenho trabalhado como Assistente Social na Vara da Infância e da
Juventude da Comarca de Barueri, cidade da região metropolitana de São Paulo.
Esta Comarca abrange, além da cidade de Barueri, as cidades de Santana do
Parnaíba e de Pirapora do Bom Jesus. Nestes últimos anos estas cidades
cresceram e, atualmente a população circunscrita ao Fórum é de 475.226 habitantes
(vide página 21). Esta informação é importante pelo seguinte aspecto: para que uma
pessoa possa se inscrever no Cadastro de Adoção, deve procurar o Fórum da região
onde reside. O levantamento que procedemos junto ao Cadastro de Adoção, existe
desde 1996, com cerca de 240 pessoas inscritas até o momento, contando entre
casados e solteiros.
O Cadastro de Adoção é uma das atividades do Serviço Social no âmbito do
judiciário. Na Comarca de Barueri, assim como em outras do interior do Estado e
região metropolitana, a Vara da Infância e da Juventude não se constitui numa Vara
12
Especial, ou seja, com um juiz e um promotor público específicos. Em Barueri, não
ocorre de outra maneira, a Vara da Infância e Juventude é cumulativa, não
possuindo um juiz e promotor público específico. Vemos isto como uma faca de dois
gumes: por um lado, os profissionais apesar de conhecerem o Estatuto da Criança e
do Adolescente, precisam acumular outras atividades em Varas de Família,
Criminais e Fazendárias; por outro lado, o assistente social não fica centrado numa
única atividade precisando conhecer todos os aspectos do trabalho forense.
Como assistente social, trabalhamos não só com o cadastro de adoção, mas
também com os adolescentes infratores, com a fiscalização de entidades de
assistência à criança e ao adolescente, com a fiscalização dos abrigos no plantão
social e nas Varas de Família e Sucessões. Por ser uma Vara Cumulativa, o
assistente social atua em todas as situações processuais inerentes à natureza da
profissão.
Nós sempre desejamos trabalhar no Tribunal de Justiça, pois sempre soubemos
através de colegas de trabalho – antes de irmos trabalhar no Tribunal de Justiça,
trabalhamos no Instituto da Criança “Pedro de Alcântara” do Hospital das Clínicas da
FMUSP – como era o trabalho junto ao Cadastro de Adoção entre outros. Quando
entramos como funcionário concursado, ficamos lotados no Fórum de Barueri. Uma
das atividades que logo ganhou nossa preferência foi atuar junto ao Cadastro de
Adoção, bem como o estágio de convivência familiar.
A atuação no Cadastro de Adoção requer uma série de outros procedimentos diretos
e indiretos, tais como: avaliação psicossocial dos pretendentes, acompanhamento
das crianças abrigadas, avaliação social nos processos de destituição do poder
familiar, apresentação dos adotantes à criança e o acompanhamento do estágio de
convivência. É um trabalho que exige tempo e comprometimento do profissional. É
um trabalho que nos confere experiência e saberes, que nos amadurece e
sensibiliza.
A colocação em família substituta, conforme preconiza a Lei 8069 é medida
excepcional. A adoção é uma das formas de colocação, que tem como característica
principal a legitimação da filiação adotiva. Significa que, primeiro: a adoção
13
estabelece vínculos entre o adotante e o adotado; segundo: o filho adotado tem os
mesmos direitos de um filho biológico sem qualquer designação ou desqualificação
de sua origem. O filho adotivo, é filho. Não é filho de criação nem agregado.
A palavra adoção vem do latim adoptare que significa escolher, optar por, aceitar,
acolher (CUNHA, 1991).
Escolhemos como tema deste estudo a Produção de Saberes Profissionais na
Preparação dos Adotantes para a Adoção Tardia.
Por adoção tardia entendemos aquela criança que possui idade superior a dois
anos, segundo a literatura consultada. Para fins deste estudo, foram selecionadas
crianças com idade igual ou superior a seis anos e estas deverão estar em estágio
de convivência há pelo menos doze meses com os adotantes.
O estágio de convivência é o período de tempo que a criança e o adotante têm para
se adaptarem um ao outro, de criarem relacionamentos e estabelecerem vínculos.
Nas situações que envolvem adoções tardias, geralmente o estágio de convivência
pode durar dois anos ou até mais, dependendo do caso. Segundo o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o estágio de convivência só será dispensado se a criança
adotada tiver até 06 meses de idade. É no estágio de convivência que é possível
observar se efetivamente adotante e adotado estão criando o processo de filiação
adotiva, ou seja, se ambos estão se adotando e se esta criança está sendo
reconhecida como filho. Entendemos que o processo de filiação para ocorrer não
pode depender do tempo estabelecido pela autoridade judiciária. A filiação adotiva
precisa é de qualidade de tempo, de espaço e não de uma cronologia.
A produção de saberes a que estamos nos referindo, é todo o conhecimento e
experiência produzidos pelo assistente social no preparo dos adotantes. Este saber
produzido não é qualquer saber, é experiência, é dar significado a ação. Dar
significado é dar sentido, valor e sentimento. A adoção é cheia de significações quer
para o profissional quer para a criança adotada, quer para o adotante. Não são
saberes que se produzem isoladamente. São experiências compartilhadas, são
sentimentos compartilhados. A experiência, neste sentido, tem nos mostrado que a
14
preparação do adotante para receber uma criança mais velha e desenvolver a
filiação adotiva, é fundamental no trabalho do assistente social, para que esta
criança não retorne ao abrigo futuramente. A experiência de retornar ao abrigo, de
mais uma rejeição para a criança tem efeitos devastadores em seu desenvolvimento.
Para os adotantes, a devolução da criança é sinal de fracasso e de frustração. Já
para o profissional, quando a adoção é mal sucedida, significa que parte do seu
trabalho não foi adequado. Se saberes são produzidos no preparo dos adotantes,
eles o são produzidos tanto nas situações bem ou mal sucedidas. Este estudo
deseja mostrar os saberes produzidos nas situações em que a criança retornou ao
abrigo, ou seja, não houve o preparo dos adotantes por parte do profissional. Este
conjunto de experiências pode servir para se levantar um perfil, no futuro, naqueles
casos de adoções mal sucedidas. Este estudo, nada mais é, do que um retrato da
nossa experiência no trabalho de adoção tardia; portanto, a produção de saberes
permeia a produção aqui exposta.
No Brasil não existe uma cultura de adoção como em países Europeus e da América
Anglo-Saxônica. Nesses países, existem políticas de adoção e a cultura da adoção
(vide páginas 63 e 64). As estatísticas de abandono e institucionalização de crianças
é reduzida, isto tem haver com as condições materiais e econômicas da sociedade e
das políticas sociais adotadas pelo Estado. No Brasil, a adoção ainda se constitui um
verdadeiro tabu, ou seja, a prática e o hábito de adotar crianças está cercada de
práticas ilegais, não se recorrendo ainda, a adoção legal. Histórica e culturalmente o
que se observa é a existência da prática da adoção à brasileira, isto é, registrar
legalmente o filho de outro como se fosse filho próprio, bem como da circulação de
crianças – processo pelo qual a criança circula no meio familiar, geralmente quando
a mãe ou pai morreram ou não tem condições materiais de sustentá-las. A
circulação da criança é um sistema em que a criança permanece na família,
impedindo que ela seja adotada ou se fixe em algum lar familiar. Não pretendemos
neste estudo abordar a adoção à brasileira e a circulação de crianças, bem como
outras modalidades de adoção – intuito personae, inter-racial, unilateral e por
familiar.
A adoção preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é a adoção legal,
cuja criança ou adolescente para ser adotado precisa ser órfão de pai e mãe ou ter
15
os pais destituídos do poder familiar. Muitas pessoas desinformadas e sem o menor
senso de realidade, argumentam erroneamente que os abrigos e as ruas estão
cheias de crianças para serem adotadas. Desconhecem que a maioria destas
crianças não estão disponíveis para adoção, pois aguardam retorno para suas
famílias. A quantidade de crianças disponíveis para adoção é bem menor. Crianças
recém-nascidas dificilmente permanecem nos abrigos por muito tempo. As crianças
maiores não são procuradas para adoção, dando a falsa impressão que os abrigos
estão lotados. Muitas pessoas diante das exigências para ingressarem no cadastro
de adoção, que verbalizam tais comentários.
O Estatuto da Criança e do Adolescente não dificultou a adoção, ele mudou todo o
processo, ou seja, a adoção é irreversível quando levada a termo. Convém lembrar
que a adoção só é atingida no final do estágio de convivência e não antes – não há
mais a devolução da criança após a legitimação da adoção. Esta possibilidade só
existia em Códigos anteriores. A adoção confere ao adotado o novo registro de
nascimento. Por isso, o cuidado legal e metodológico na escolha dos pretendentes.
O que se procura agora é uma família para uma criança e não mais uma criança
para uma família (vide capítulo 2).
É muito mais difícil ser um pai adotivo do que uma criança adotada, pois as crianças
adotadas expressam a imagem e semelhança do filho biológico, enquanto que o pai
adotivo é confrontado com uma elaboração imaginária mais intensa que o pai de
sangue. Esbarramos freqüentemente com o mito de que é sempre o casal que adota
a criança, sem perceber que a criança também deve adotar o casal. Se apenas uma
das partes adotar, então não haverá adoção completa. Talvez isto demonstre a
necessidade de preparação do adotante.
A criança que é adotada tardiamente traz uma história de vida que não é apagada
nem esquecida no momento da adoção. Os adotantes acreditam que seu amor é
capaz de apagar o passado de sofrimento e abandono desta criança. Engano fatal.
O casal precisa aprender a lidar e construir novos saberes em relação a esta nova
situação.
16
Após acompanharmos durante todos esses anos situações de retorno da criança ao
abrigo em estágio de convivência, temos observado a existência de um perfil de
crianças, bem como das situações vividas pelos adotantes, expressadas em suas
falas ao justificarem o porquê da adoção não ter sido bem sucedida.
O perfil que observamos nestas crianças são: elas passaram por várias situações de
abandono, tem os pais destituídos do poder familiar; não aceitaram a separação da
família e mantém uma esperança de um dia retornar ao lar; foram vítimas de maus
tratos físicos, psicológicos e sexuais. Nestes casos, a nova convivência com os
adotantes é marcada por comportamentos rebeldes, agressivos por um lado e,
afetuosos por outro; é comum atos de auto-flagelação de arrancar os cabelos, de se
morderem e de se arranharem – dificuldade de aprendizagem, ciúmes, etc. Vale
lembrar que as situações de agressividade e anti-sociais são relatadas pelos
adotantes como preocupantes, assustadoras e até incontroláveis, levando-os muitas
vezes a questionarem se essas crianças não seriam portadoras de distúrbios
psiquiátricos.
As referências teóricas que buscamos tratam das problemáticas existentes na
relação dos adotantes com as crianças. Entretanto, sobre a temática que desejamos
estudar nada foi encontrado levando-nos a concluir que estamos diante de uma
temática original. No Serviço Social já existem estudos voltados à adoção intuito
personae (GUEIROS, 2006) e para a adoção inter-racial (SILVEIRA, 2005). Mas
nada encontramos em relação à adoção tardia.
Esta dissertação tem como objetivos principais, estudar como se dá a preparação
dos adotantes na adoção tardia, estudar a produção dos saberes profissionais nesta
preparação, bem como o processo de filiação.
Foram pesquisados a trajetória de seis crianças (três meninos e três meninas),
maiores de 06 anos, tomando como referência o relato da vida pregressa antes e
depois do abrigamento e no estágio de convivência com os adotantes. Foram
também sujeitos da pesquisa dois casais e duas mulheres solteiras, que adotaram
essas crianças, constituindo-se em seis adultos. A pesquisa de caráter qualitativa foi
realizada com base nos acompanhamentos efetuados por nós, relatados nos
17
Processos da Vara da Infância e Juventude. O nome dos sujeitos da pesquisa foram
suprimidos e trocados pela inicial da primeira letra.
Estruturamos o trabalho em três capítulos, sendo que o primeiro deles trata do
conceito da adoção e sua trajetória histórica. O segundo capítulo intitulado O
Trabalho do Assistente Social no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
refere-se à produção de saberes profissionais produzidos junto ao cadastro de
adoção na preparação dos adotantes. O terceiro capítulo denominado A Trajetória
de Crianças Adotadas Tardiamente e seu Retorno ao Abrigo, destaca as
experiências vividas pelos adotados e pelos adotantes no estágio de convivência.
Por último, apresentamos a Conclusão, onde buscamos responder ao objeto de
estudo.
18
CAPÍTULO 1
O SIGNIFICADO DA ADOÇÃO E SUA HISTÓRIA
1.1 Conhecendo a Adoção
A adoção, segundo Paiva (2004: 6) é a criação jurídica de um laço de filiação entre
duas pessoas. Levinzon (2000: 18), entende, a adoção como uma invenção social
que permite o estabelecimento de relações do tipo pais-filhos entre pessoas que não
estão ligadas biologicamente. Ainda segundo essa autora,
o tema da adoção pode ainda ser descrito como constituído pelo encontro
entre um casal que tentou e não conseguiu conceber um filho – houve a
ruptura vincular biológica com a descendência – e com o filho de um casal
que o concebeu e não criou – houve a ruptura vincular biológica com a
ascendência. A adoção determina a criação de um espaço vincular fundante
de um encontro que reúne desencontros biológicos, ausência de vínculos
de consangüinidade e conteúdos relacionados com
abandono do adotado e
com o filho não concebido do casal. Estes desencontros qualificariam
histobiograficamente a dinâmica vincular do encontro.
1
1
LEVINZON, G.K. A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica. São Paulo: Escuta, 2000. p. 18.
19
Para Granato, baseado no Código Civil Brasileiro de 1916,
a adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais,
alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco
consangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua
família na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha.
2
Para essa autora a adoção é
a inserção num ambiente familiar, de forma definitiva e com aquisição e
vínculo jurídico, próprio da filiação, segundo as normas legais em vigor, de
uma criança cujos pais morreram ou são desconhecidos, ou não sendo esse
o caso, não podem ou não querem assumir o desempenho das suas
funções parentais, ou são pela autoridade competente, considerados
indignos para tal.
3
Esta é realmente a finalidade da moderna adoção: oferecer um ambiente familiar
favorável ao desenvolvimento de uma criança, que, por algum motivo, ficou privada
da sua família biológica. A adoção, como hoje é entendida, não consiste em “ter
pena” de uma criança, ou resolver situação de casais em conflito, ou remédio para a
esterilidade, ou ainda, conforto para a solidão (GRANATO, 2000). O que se pretende
com a adoção é atender às reais necessidades da criança, dando-lhe uma família,
onde ela se sinta acolhida, protegida, amada e segura (GRANATO, 2000).
A adoção constitui uma das medidas de colocação em família substituta, além da
guarda, tutela e apadrinhamento. Embora a guarda e a tutela sejam medidas
contempladas pela legislação, o Comitê de Especialistas da Organização Mundial da
Saúde, afirma que a adoção é o modo mais completo de recriar relações familiares
para uma criança privada de família e de promover relações familiares (PAIVA,
2004).
A palavra adoção vem do latim adoptare que significa escolher, optar por, aceitar,
acolher (CUNHA, 1991: 16). Para os pais adotivos, a adoção além de representar
sua responsabilidade frente a uma criança que veio através de canais legais e não
biológicos, significa um filho. Para a criança adoção tem um significado de ter um pai
e uma mãe, ter uma família.
2
GRANATO, E.F.R. Adoção: doutrina e prática. Curitiba: Juruá, 2006.
3
Ibid.
20
A adoção é considerada tardia quando a criança a ser adotada tiver mais de dois
anos de idade (VARGAS, 1998). A criança pode ter sido abandonada pela sua
família, que por circunstâncias pessoais ou sócio-econômicas, não pode continuar
cuidando dela; também havendo casos em que foram retiradas de seus pais pelo
poder judiciário, que julgou os pais incapazes de mantê-las em seu poder familiar, ou
ainda, foram esquecidas pelo Estado desde muito pequenas em “orfanatos”, que na
realidade abrigam uma minoria de órfãos.
A criança pode ser adotada pouco depois do nascimento, ou muitos anos após, e
isto parece ter bastante ressonância no seu desenvolvimento biopsicossocial e no
estabelecimento de relações. De modo geral, recomenda-se que se adote uma
criança o mais nova possível, de modo a tentar evitar maiores problemas no seu
desenvolvimento. No meu entender, o intervalo de tempo e as experiências vividas
entre o momento da separação da mãe natural e o acolhimento da criança pela
família adotiva podem ser fatores marcantes no desenvolvimento da criança. Muitas
vezes a criança passa por várias pessoas intermediárias ou é internada em
instituições até ser adotada, o que contribui para o aparecimento de intensas
sensações de desamparo e insegurança.
Na maioria das vezes a adoção refere-se ao vínculo entre uma criança que foi
abandonada por seus pais naturais e um casal que não pôde ter filhos biológicos,
por apresentar problemas de esterilidade. Este vínculo pretende que a criança tenha
o papel de filho, e este casal o papel de pais dessa criança.
Pode-se dizer que a adoção envolve situações muito dolorosas para a criança e
para os pais. Levinzon (2000), afirma que a adoção de uma criança é, em termos
humanos, sempre um evento doloroso e potencialmente traumático. Na nossa
cultura, a adoção acontece apenas quando alguma coisa importante falhou: um ou
os dois pais morreram, ou não tinham condições de cuidar do filho que conceberam.
Do lado dos pais adotivos, a decisão de adotar uma criança freqüentemente se
segue a anos de fracassos nas suas tentativas de conceber sua própria criança.
Estes fracassos podem estar baseados em anomalias fisiológicas ou conflitos
psicológicos, e os pais têm que considerá-los para optar pelo caminho da adoção.
21
A adoção foi descrita por alguns autores, Levinzon (2000), Dolto (1981) e Weber
(2004), como um trauma que marca a vida da família que adota e da criança,
considerando o relacionamento familiar e sua inserção no macrocosmo social.
Segundo este ponto de vista as vicissitudes do triângulo adotivo fazem com que as
dores da adoção sejam mais fortes do que “as do trabalho de parto”. Penso, no
entanto, que seria mais apropriado falar em trauma quando nos referimos aos
motivos que determinam a adoção: o abandono da criança pelos progenitores,
devido a sua impossibilidade de mantê-la, e o drama de um casal que não consegue
gerar um filho. A adoção em si é uma solução que proporciona a ambos os lados
possibilidades de superar essas dificuldades e encontrar situações de vida mais
satisfatórias.
Observam-se os mais variados tipos de atitudes e julgamentos em relação à criança
e pais adotivos, como afirma Levinzon (2000: 20),
bem sabemos que o adotado não deixa indiferentes as pessoas: algumas o
sentirão dotado de certo fascínio pelo seu misterioso passado; outras o
julgarão merecedor de amparo suspeitando antigas desproteções; outras,
mais preconceituosas, o julgarão inevitavelmente marcado por
características negativas. Quanto aos adotantes, eles também terão, às
vezes, de suportar chavões do tipo “a verdadeira mãe é só quem botou no
mundo”, chavão este que se tem incontestável confirmação no plano
biológico, nem sempre o terá dentro de uma visão mais ampla que inclua
fatores educativos, psicológicos, afetivos e interpessoais.
4
Apesar de pais e filhos adotivos existirem desde o início dos tempos, o tema adoção
foi sempre um pouco obscuro, tratado geralmente na intimidade das famílias. Há
algum tempo atrás, poucos estudos sistemáticos sobre este assunto tinham sido
realizados e isto trouxe como conseqüência a generalização de casos dramáticos e
a formação de preconceitos e estereótipos.
Os pais, muitas vezes, na tentativa de proteger a criança e a si próprios, escondem
da sociedade que possuem um filho adotivo e, sem saber, também estão agindo de
forma preconceituosa. Todos sabemos que é impossível enganar todo mundo, o
tempo todo. Algum dia a criança passa a saber o que lhe foi ocultado a vida inteira:
ela não nasceu da barriga de sua mãe, mas de outra mulher. É uma criança
adotada. Se isso tivesse sido trabalhado desde cedo, o importante seria a
4
LEVINZON, G. K. A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica. São Paulo: Escuta, 2000. p. 20.
22
compreensão de que todo amor é construído; ele não nasce pronto porque as
pessoas têm o mesmo tipo de sangue. O que poderia ter sido encarado como
perfeitamente natural pode tomar proporções dramáticas, não pela situação em si,
mas pela mentira que foi contada à criança. Muitas vezes, nestes casos, a família,
os vizinhos, os conhecidos, tomam ciência da situação e dizem a famosa frase: “viu
só, toda adoção traz problemas, cedo ou tarde”. Isso é o que chamamos de
generalização de casos dramáticos e um preconceito – um julgamento ou opinião
formada antecipadamente, sem ponderação ou conhecimento dos fatos.
Uma das primeiras questões enganosas que boa parte da sociedade ainda acredita
é que a adoção existe para satisfazer os desejos e as expectativas dos adultos, não
levando em conta a tragédia de milhares de crianças abandonadas. WEBER (2004:
100), aponta os principais preconceitos existentes sobre adoção:
as pessoas acreditam que quem já possui filhos biológicos não precisa
adotar uma criança; que a adoção deve servir para que casais que não
podem ter filhos realizem sua vontade de serem pais; as pessoas que
querem adotar uma criança devem poder escolher a criança que desejam;
algumas mulheres só conseguem engravidar depois de terem adotado uma
criança, portanto, a adoção é um bom motivo para se tentar ter filhos
biológicos; a morte de um filho natural é motivo suficiente para um casal
adotar uma criança; crianças adotadas devem ser devolvidas ao Juizado
quando surgirem problemas como desobediência ou rebeldia; é interessante
adotar crianças com mais de dez anos de idade para que pudessem ajudar
nos serviços domésticos; crianças adotadas, cedo ou tarde, trazem
problemas; uma criança adotada sempre vai sofrer preconceitos e ser
tratada diferente pelos outros e; quando uma criança não sabe que é
adotada ocorrem menos problemas.
5
Esquecendo-se que a mentira nunca é um bom começo, especialmente em
questões afetivas, onde a base sólida deve ser a confiança, e julgam sem levar em
conta os fatos da realidade.
Historicamente, a adoção pode ser dividida em duas grandes etapas: a Adoção
Clássica, que visa solucionar a crise dos casamentos sem filhos, e a Adoção
Moderna, que busca resolver a crise da criança sem família. Atualmente, o Estatuto
da Criança e do Adolescente assegura tal direcionamento aos interesses da criança,
estabelecendo condições para o desenvolvimento de uma Cultura da Adoção – que
significa a adoção para a criança. Deve-se deixar claro que a adoção não é uma
5
WEBER, L.N.D. Laços de Ternura, Pesquisas e Histórias de Adoção. Curitiba: Juruá, 2004. p.100.
23
medida para solucionar o problema do abandono de crianças, uma vez que isto
implica em caminhos sociais muito mais complexos.
1.2 A História da Adoção
Ao longo da história da humanidade, há diversas referências a adoções de crianças
e bebês, não sendo possível precisar em que momento e lugar o assunto surge pela
primeira vez. Mas, é possível inferir, que a adoção sendo um fenômeno psicossocial
deve ter seu surgimento histórico atrelado ao aparecimento dos primeiros
grupamentos humanos, por volta do quarto milênio antes de Cristo.
Os escritos bíblicos registram vários casos, entre eles a conhecida história de
Moisés. Aproximadamente no ano de 1250 antes de Cristo, o Faraó Tutmés III,
determinou que todos os meninos israelitas que nascessem deveriam ser
assassinados. A mãe de um pequeno hebreu decidiu colocá-lo dentro de um cesto
de vime e deixá-lo à beira do Nilo, esperando que se salvasse. Térmulus, filha do
faraó que ordenara a matança, achou o cesto quando se banhava nas águas do rio,
recolheu-o e decidiu criar o bebê como seu próprio filho. Amamentado pela filha do
faraó, Moisés viveu anos como egípcio, transformando-se mais tarde em herói do
povo hebreu (GÊNESIS: 25,12-6).
O caso de Moisés constitui a regra e não a exceção, pois, no Antigo Egito, a escolha
do faraó era realizada por um processo similar ao da adoção. Selecionavam-se os
alunos mais promissores das Escolas da Vida que, em seguida, eram adotados pela
Casa Real e submetidos a um longo treinamento até que um deles, despontando
como o melhor dentre todos, fosse gradativamente preparado para sagrar-se faraó.
A ocupação do trono por meio da seleção e da adoção dos melhores conseguiu
garantir a longevidade e a força da civilização egípcia (PAIVA, 2004).
O Código de Hamurabi (1686 antes de Cristo), gravado sobre uma estrela de diorito,
representa Hamurabi, sexto rei da primeira dinastia da Babilônia (1793-1759 antes
de Cristo), adorando o deus-sol e mestre da justiça. O Código é considerado o
primeiro texto jurídico da civilização e faz referência às adoções. Dentre os 282
24
dispositivos de lei que contempla, os artigos 185 a 193 referem-se exclusivamente à
regulamentação de casos de adoção. A leitura de tais artigos revela que, já naquela
época, a preocupação era garantir a indissolubilidade das adoções ou, em casos
aparentemente mal sucedidos, determinar sua anulação (PAIVA, 2004).
Na antiguidade greco-romana, a adoção esteve profundamente vinculada às crenças
religiosas. O historiador francês Fustel de Coulanges (1980), em sua memorável
obra, que as famílias gregas e romanas foram constituídas com fundamento em uma
religião primitiva, que estabeleceu o casamento, e fundou a autoridade paterna, fixou
as linhas de parentesco e consagrou o direito de propriedade e sucessão. Essas
crenças religiosas geraram regras de condutas e, assim os vivos passaram a ter
obrigações para com os mortos, manifestas em oferendas e ritos fúnebres. O culto
aos mortos só poderiam ser realizados pelos familiares de cada morto, e havia entre
os vivos e mortos de uma mesma família, perpétua troca de favores. O ancestral
morto recebia dos descendentes os banquetes fúnebres e estes, por sua vez,
recebiam a ajuda e a força de que necessitavam. O princípio fundamental da vida
humana, nessas sociedades era assegurar a descendência para manter o culto aos
ascendentes mortos (PAIVA, 2004).
O dever de perpetuar o culto doméstico demarcou entre os antigos o direito de
adoção, recurso utilizado principalmente por aqueles que não possuíam
descendência natural. Como a adoção não tinha outro sentido senão evitar a
extinção do culto em determinada família, era permitida apenas a quem não tivesse
filhos. O parentesco e o direito à herança não eram de modo algum regulamentados
pelo nascimento, mas pelos direitos consolidados com a participação no culto de
determinada família (PAIVA, 2004).
O celibato era combatido porque além de colocar em risco a perpetuação dos cultos
e a bem-aventurança dos antepassados, atraia também para o celibato um destino
funesto. O casamento contratado somente para perpetuar os laços de culto, era
obrigatório, mas marido, um irmão ou um parente do marido devia substituí-lo e a
criança dessa união era considerada filha do marido e continuava seu culto. O
nascimento de meninas não atingia o objetivo principal do casamento, pois as
mulheres, ao se casarem, integravam os cultos da família do marido (PAIVA, 2004).
25
A adoção funcionava para as famílias como último recurso para escapar à temida
desgraça da extinção dos cultos domésticos. Por meio de uma cerimônia sagrada, o
adotado era iniciado no culto da nova família e, a partir desse momento, deveria
romper todos os vínculos e renunciar ao culto da família na qual nascera.
Tanto na Grécia como em Roma na medida em que a religião primitiva foi
enfraquecendo, a voz do sangue passou a ser mais valorizada e o parentesco por
nascimento foi reconhecido como um direito. Em Roma, além da fundamentação
religiosa, as adoções encerravam também finalidades políticas, possibilitando que
plebeus se transformassem em patrícios.
Nessa época, a adoção constituía apenas um direito para famílias ameaçadas de
extinção e não uma possibilidade de solucionar o problema das crianças sem família
ou de pais sem filhos.
Na Idade Média, o instituto da adoção caiu em desuso, por estar em contradição
com os interesses dos senhores feudais e, possivelmente, por influência do Direito
Canônico. Nesse período, havia certa conspiração contra as adoções, pois o
patrimônio das famílias sem herdeiros era administrado pela igreja ou pelo senhor
feudal. Além disso, o Direito Canônico não reconhecia as adoções, uma vez que os
sacerdotes viam esse modo de constituição familiar com reservas, considerando-o
uma possibilidade de reconhecimento de filhos adulterinos ou incestuosos. Alguns
escritos alertam também para o fato de que as crianças, vendidas muitas vezes
como servos/escravos ou oferecidas em oblação aos padres – doação de uma
criança ao serviço de Deus e da religião – dificilmente eram adotadas. No século
XVI, nos raros casos de adoção, o filho adotado não gozava dos mesmos direitos
outrora reservados a ele, como a sucessão política ou a herança patrimonial (PAIVA,
2004).
O cristianismo modificou o fundo político e religioso da organização familiar, o que
contribuiu, de certo modo, para diminuir a importância da adoção. Os dogmas do
cristianismo, que asseguravam aos cristãos a morada eterna após a morte,
anulavam assim os temores daqueles que não possuíam descendência,
desestimulando o uso da filiação adotiva com os mesmos fins com que fora utilizada
26
na antiguidade. A finalidade religiosa foi modificada, mas permaneceu o objetivo de
perpetuar a família e solucionar o problema dos casais sem filhos.
Paradoxalmente, o cristianismo salientou que Jesus Cristo era filho adotivo de José,
além de ter consagrado, pela fé, os cristãos como “verdadeiros filhos de Deus”
(PAIVA, 2004).
Na época do império de Napoleão Bonaparte (1804-1815), as adoções foram
regularizadas no “Code”, nos artigos 343 à 360, ficando subordinadas a critérios
rigorosos. O Código Napoleônico determinava que o adotante tivesse mais de
cinqüenta anos, que fosse estéril e tivesse pelo menos quinze anos a mais do que o
adotado. Além disso, o adotado deveria ter atingido a maioridade, fixada em vinte e
três anos. Tal regulamentação parecia estar fundamentada em critérios econômicos
– garantia de herdeiros para os patrimônios de casais sem filhos – e, políticos –
sucessores para assumirem os poderes políticos de determinadas famílias. Contudo,
dois elementos importantes foram introduzidos nesse código: a noção de que a
adoção só devia acontecer se resultasse em vantagens para o adotado e a
atribuição do pátrio poder ao adotante, na figura da legitimação adotiva, que conferia
ao adotado os mesmos direitos e obrigações dos filhos biológicos, inclusive o direito
à herança (PAIVA, 2004).
Historiadores afirmam que a esposa de Napoleão Bonaparte era estéril, por isso ele
lutou para que a adoção fosse uma perfeita imitação da natureza e que fizesse parte
do Código Civil francês, salientando que o adotado deveria possuir todos os direitos
inerentes a um filho biológico. Situação parecida aconteceu com o presidente
brasileiro Juscelino Kubitschek de Oliveira e sua esposa Dona Sara Kubitschek, que
ao adotarem a filha Maria Estela, só puderam legitimar a adoção quando em 1957 o
presidente Juscelino assinou a Lei 3.133 de 1957 reconhecendo nela significativas
mudanças (vide página 43). Até então, a filha Maria Estela chamava o presidente e
sua esposa de padrinho e madrinha (BOJUNGA, 2005).
No Brasil, as iniciativas de proteção à criança abandonada tiveram início com a
própria colonização, seguindo o sistema de assistência caritativa existente em
Portugal. No período colonial, nem o Estado, tampouco a Igreja, assumiram
27
diretamente a assistência aos pequenos abandonados – ambos atuaram apenas
com contribuições financeiras esporádicas e auxílios diversos. De fato, foi a
sociedade civil que se compadeceu e agiu no sentido de prestar a assistência à
infância desvalida. Do período colonial até meados do século XIX, vigorou uma
assistência de caráter caritativo, marcada, principalmente pelo imediatismo, com os
mais ricos auxiliando os mais necessitados. Nessa fase, as políticas sociais de
assistência às crianças abandonadas eram desempenhadas formalmente pelas
Câmaras Municipais que, autorizadas pelo rei, firmavam convênios com as
confrarias das Santas Casas de Misericórdia para colocar em funcionamento as
Rodas dos Expostos (PAIVA, 2004).
Durante o império, as Misericórdias passaram a ser controladas pelo Estado,
tornando-se muitas vezes a Casa dos Expostos, mas ainda assim, a maior parte das
crianças era acolhida em casas de família ou morriam desamparadas. Foi nessa
época que surgiram as primeiras instituições de atendimento à infância – as Rodas
dos Expostos e as Casas de Recolhimento – pois, até meados do século XIX, a
assistência institucionalizada esteve associada às Misericórdias (PAIVA, 2004).
De meados do século XIX até meados do século XX, ocorreram transformações
sociais ocorridas no Brasil no que diz respeito às políticas sociais públicas voltadas
para a infância. Nesse período, ocorreu o avanço da legislação pró-infância
fundamentada nos Direitos da Criança e surgiram as primeiras leis sobre adoção.
Antes do século XX, as adoções não eram regulamentadas por lei, os casais sem
filhos buscavam as Rodas dos Expostos para obterem uma criança para criar,
perfilhar ou adotar situação retratada na Novela da Rede Globo Terra Nostra
1999. Essas soluções informais marcam a história da assistência à criança
abandonada no Brasil, pois, ao contrário de outros países, que sempre utilizaram
abrigos ou instituições para o acolhimento de seus infantes abandonados, as
famílias brasileiras cultivaram o hábito de criar filhos alheios, os chamados filhos de
criação, sem qualquer documentação ou formalização. No Brasil, este foi o sistema
mais difundido de proteção à infância, por duas razões principais: a caridade cristã
estimulada pela Igreja (motivo religioso) e o fato dos agregados representarem um
comportamento ideal de mão-de-obra gratuita para as famílias que os acolhiam
28
(motivo econômico). Sabe-se que na maioria das vezes, essa condição se
perpetuava e a criança se mantinha como agregada por anos ou até seu casamento,
emancipação ou morte. A situação dos filhos de criação era em geral, permeada por
ambigüidades, pois embora fossem considerados membros da família, eram tratados
como empregados da casa. Assim, a ideologia filantrópica burguesa possibilitou a
exploração da mão-de-obra infantil através do discurso de auxílio à criança
desamparada (PAIVA, 2004).
No Brasil, apenas em 1828 surgiu a primeira legislação tratando da adoção que
recebe disciplina sistematizada. Esse código contemplava a adoção sob a
perspectiva de gerar uma solução para as famílias sem filhos. Estabelecia o limite de
cinqüenta anos para os adotantes e o impedimento desta medida a casais com
filhos. O adotando poderia ter qualquer idade, desde que houvesse a diferença de
dezoito anos com relação aos adotantes. De acordo com essa Lei, a adoção era
revogável e não anulava os vínculos do adotado com a família biológica.
Em 1957, com a lei 3.133, foram introduzidas algumas modificações com vistas a
incentivar a prática das adoções (vide história de J.K. já referido). Para os adotantes,
a idade mínima passou a ser trinta anos, desde que a diferença de idade entre ele e
o adotado não fosse menor de dezesseis anos, os adotantes poderiam ter filhos,
mas nestes casos, o adotado não teria direito sobre os bens patrimoniais da família
e nada herdaria. Se após a adoção, os adotantes viessem a ter filhos, o adotado
teria direito apenas a metade do que coubesse aos filhos legítimos.
Na legislação de 1965, Lei 4.655, permaneceram algumas condições instituídas em
1957, com a idade mínima de trinta anos para os adotantes e o período de cinco
anos de matrimônio. Uma das mudanças introduzidas foi a possibilidade de adoção
por pessoa viúva com mais de trinta e cinco anos, desde que o adotado estivesse
integrado em seu lar há mais de cinco anos. A medida foi estendida aos
desquitados, desde que tivessem a guarda do adotado antes da separação.
A inovação mais importante dessa legislação, no entanto, foi a introdução da
legitimação adotiva, sentença que conferia ao filho adotivo os mesmos direitos de
um filho legítimo e, que ao mesmo tempo, interrompia todos os vínculos daquele
29
com a família biológica. Além disso, pressupunha a irrevogabilidade do ato de
adotar, somente para crianças abandonadas até os sete anos de idade. Manteve,
entretanto, restrições ao direito de herança.
Em 1979, o Código de Menores – Lei 6.697 – extinguiu a legitimidade adotiva e
instituiu duas novas modalidades de adoção: a adoção plena (legitimação adotiva), e
a adoção simples (comparável às adoções do Código Civil). A primeira, adoção
plena, acessível aos menores de até sete anos de idade, introduzia a extensão dos
vínculos da adoção às famílias dos adotantes e a segunda modalidade,
regulamentava a adoção de menores de dezoito anos em situação irregular.
Com a constituição de 1988, os direitos dos filhos foram igualados, tal como descrito
no artigo 227: Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção,
terão os mesmos direitos e qualificações sem quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação (PAIVA, 2004: 46).
Com a promulgação da Lei 8069, em 1990, o tratamento dado à adoção tomou nova
configuração com a introdução do conceito de filiação adotiva – adoção tornou-se
irreversível. O filho adotivo passa a ter os mesmos direitos de filhos biológicos.
Surge o estágio de convivência, regulamenta a adoção internacional, é permitida
adoção por pessoa solteira; idade mínima para adotar caiu para vinte e um anos. O
Estatuto colocou a criança e o adolescente em situação peculiar de pessoa em
desenvolvimento, além de serem sujeitos de direitos. A partir dessa concepção é
que se passou a buscar uma família para uma criança e não mais uma criança para
uma família.
30
CAPÍTULO 2
O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA
VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
2.1 O Serviço Social no Tribunal de Justiça
O trabalho do assistente social no judiciário está descrito no artigo 151 do Estatuto
da Criança e do Adolescente: compete à equipe interprofissional, dentre outras
atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por
escrito, mediante laudo, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver
trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros,
tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária assegurada a livre
manifestação do ponto de vista técnico (Lei 8069).
31
Entretanto, a inserção do assistente social no Tribunal de Justiça se deu bem antes,
no ano de 1950, por ocasião da criação do Serviço de Colocação Familiar pelo
assistente social José Pinheiro Cortez. Segundo Favero (1995), o assistente social
foi substituindo gradativamente os Comissários de Menores em suas funções e
criando outras, até se legitimar na esfera do judiciário.
Iamamoto (2004), aponta algumas características do trabalho do assistente social na
esfera do judiciário: o modelo positivista jurídico que permeia a instituição e interfere
no trabalho profissional; tradicionalismo do Serviço Social de Caso, atuando na linha
da adaptação ou integração; a existência de situações-limite que condensam a
radicalidade das expressões da questão social. O assistente social viabiliza o acesso
aos direitos pela via da socialização das informações; investiga a realidade social;
não opera imediatamente a elaboração e/ou implementação de políticas sociais. O
assistente social exerce a função de perito/especialista; desenvolve um saber
interdisciplinar, na construção de um projeto ético-político profissional.
2.2 O Trabalho do Assistente Social na Vara da Infância e Juventude do Fórum
de Barueri
Trabalhamos há nove anos no Fórum da Comarca de Barueri, cidade situada na
Grande São Paulo – região oeste. Barueri, deixou de ser nos últimos anos uma
cidade dormitório, para tornar-se um centro industrial atraindo mão-de-obra e
investimentos. É uma cidade cujo poder político ainda está nas mãos dos partidos de
direita, entretanto, existe uma preocupação na elaboração de políticas sociais
assistenciais de inclusão social, com a presença dos Conselhos Municipais de
Assistência Social e o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente. Mesmo assim, é possível observar, que a questão social é tratada na
forma de palanque e através de clientelismo. A população ainda está muito
acostumada a ser tutelada, confundindo direitos com esmolas.
Barueri é a sede da Comarca, englobando os municípios vizinhos de Santana do
Parnaíba e de Pirapora do Bom Jesus. Embora o Tribunal de Justiça já tenha
32
autorizado o desmembramento do Fórum de Barueri, ainda não houve a instalação
de um Fórum na cidade de Santana do Parnaíba. Barueri, cresceu tanto em termos
populacionais que precisava ter um Fórum próprio. Pesquisando junto à Secretaria
de Planejamento do referido município, as estatísticas demográficas apontam para
uma população de 224.584 (IBGE 2002), com uma população flutuante de 130.000
(IBGE 2002). Pesquisando junto à Secretaria de Planejamento de Santana do
Parnaíba, a população estimada é de 98.247 habitantes (dados de 2005). No
município de Pirapora do Bom Jesus, segundo dados do IBGE 2003 a população é
de 22.395 habitantes.
Tamanha população gera uma enorme demanda para o Fórum de Barueri, o que
acaba por sufocar o trabalho do Serviço Social. Atualmente, o Serviço Social do
Fórum de Barueri atende numa média de 1.200 processos mensais (dados da
estatística forense de 2005), sem levar em conta os atendimentos efetuados no
plantão social uma média de 2000 pessoas por mês residentes na Comarca (dados
do registro do livro de plantão de 2005). Ainda não foi possível contar os
atendimentos feitos às pessoas que residem nas Comarcas contíguas – Osasco,
Carapicuíba, Jandira e Itapevi.
Enquanto não vier o desmembramento de fato do Fórum de Barueri, o Serviço Social
continuará atendendo a esta enorme população circunscrita, bem como a todas as
Vara Cíveis – sete ao todo – e a Vara da Infância e Juventude que é Vara
Cumulativa.
Por um lado isso é positivo, pois o assistente social precisa saber e conhecer as
especificidades do trabalho: plantão social; fiscalização de entidades; atendimento
aos adolescentes que cometem ato infracional; cadastro de adoção; separação de
casal e guarda de filho; interdição; guarda e tutela. Por outro lado, não é positivo
ficando impossível ao assistente social dedicar-se a uma única atividade.
A população atendida é bastante heterogênea quer em termos de sexo, cor, idade,
ocupação, escolaridade, renda, habitação, composição familiar e problemática
apresentada. Em todos esses anos de trabalho como assistente social, quando já
pensava ter visto de tudo, sempre aparecia uma situação diferente das demais. Uma
33
peculiaridade existente é o fato de todas as situações que chegam para o Serviço
Social, segundo Iamamoto (2004), já ultrapassaram a radicalidade das expressões
da questão social, ou seja, atingiram e passaram do insustentável para o
insuportável – morte, violência e abandono.
Nestes casos espera-se que o assistente social apresente respostas muitas vezes
rápidas e emergenciais – medidas de proteção. Não posso deixar de lembrar que a
clientela da Vara de Infância e Juventude são crianças e adolescentes e suas
famílias; e das Varas Cíveis são famílias, idosos, crianças e adolescentes.
Quanto às pessoas – casadas ou solteiras – que procuram o Cadastro de Adoção da
Comarca de Barueri, tenho observado ao longo destes anos, que praticamente 80%
delas tem como característica principal a esterilidade feminina e em menor
proporção a masculina. Depois seguem pessoas solteiras 10%; casais que já
possuem filhos 5% e casais estrangeiros residentes no Brasil 5%. Também é
possível observar que na sua maioria é composta por 90% casais ou solteiros
oriundos de segmentos sociais de alto poder aquisitivo. São pessoas cuja ocupação
declarada é a empresarial, comerciantes e profissionais liberais – médicos,
advogados, gerentes executivos, administradores, engenheiros, militares de alta
patente e publicitários. Os 10% restantes são de médio poder aquisitivo –
funcionários públicos, professores e motoristas. Também não é raro algum
postulante ao cadastro ser funcionário de abrigo, geralmente apegado a
determinada criança.
Embora exista um forte preconceito em relação à adoção de crianças por
homossexuais, a opção sexual do indivíduo não é fator impeditivo ao ingresso no
cadastro, até porque estas pessoas são solteiras, uma vez que a união legal de
pessoas do mesmo sexo no Brasil ainda não existe.
E as crianças que estão disponíveis para adoção, na Comarca de Barueri, qual o
perfil delas? Primeiramente qualquer criança ou adolescente para ser adotado tem
que ser órfão de pai e mãe, ou ter os pais destituídos do poder familiar. Só podem
ser adotadas nestas duas circunstâncias
34
Na Comarca de Barueri existem três abrigos, um mantido pela Prefeitura de Barueri
e outro pela Prefeitura de Santana do Parnaíba – só para crianças – e outro
somente para adolescentes. Para efeitos desta dissertação, vamos apenas nos
deter no abrigo de Barueri, uma vez que as crianças estudadas provêm deste local.
Como já mencionei, no Brasil as adoções de adolescentes são raras em função da
idade, dos mitos e dos preconceitos existentes na sociedade. Nestes anos de
trabalho no judiciário, nunca acompanhei adoção de adolescente.
Voltando ao perfil das crianças em abrigo na Comarca de Barueri, a maioria 80%
permanece em situação indefinida, ou seja, estão provisoriamente abrigadas
esperando o retorno para a família biológica. Somente 20% delas estão disponíveis
para adoção. As crianças adotadas mais rapidamente estão na faixa etária
compreendida entre o zero ano de idade a dois anos de idade. Crianças acima desta
idade permanecem mais tempo aguardando família. A espera por uma família pode
ser rápida ou levar muitos anos, ao ponto desta criança nem ser adotada. Por isso
defendemos para esta criança uma alternativa do apadrinhamento, seja encontrar
um adulto que possa ter com ela uma relação de padrinho, de proximidade, de
relativo afeto. Crianças negras, do sexo masculino, portadoras de algum tipo de
deficiência física ou mental, e portadoras do vírus da Aids, não são procuradas para
adoção. No Brasil, como já afirmei anteriormente não existe cultura e política de
adoção.
O tempo de espera de um casal ou pessoa solteira na fila para adotar uma criança
pode ser demorado ou rápido de acordo com as características da criança
pretendida. Como a maioria dos pretendentes, cerca de 95%, desejam crianças
recém-nascidas, do sexo feminino e cor brancas a espera pode levar muitos anos.
Observamos que o perfil dessas crianças pretendidas é muito semelhante, até pela
cor dos olhos e da pele, que são mais “suecas” do que brasileiras. O preconceito
chega as vias do absurdo. Uma variação de cor de pele, pode ser entendida como
uma criança de cor negra, e ela não será adotada. Os Estados mais procurados,
para adoção de crianças, são os da Região Sul do Brasil. São raros os adotantes
que buscam Estados do Norte/Nordeste do Brasil. A demora para se adotar uma
criança também serve de argumento para muitas pessoas utilizarem da adoção à
brasileira. Sempre procuramos refletir com os pretendentes, que existem crianças
35
mais velhas que podem ser adotadas, e que o tempo de espera na fila será menor.
Sempre procuramos incentivar à adoção tardia, discutindo com os pretendentes a
necessidade de desmistificar os esteriótipos existentes.
O Estudo Social e Psicológico são obrigatórios para quem pretende ingressar no
Cadastro de Adoção. A pessoa interessada em adotar deve primeiramente juntar
uma documentação: R.G.; C.P.F.; Certidão de Casamento; Comprovante de
endereço; Demonstrativo de Rendimentos e de Vínculo Empregatício; Atestado de
Saúde Física e Mental; Atestando de Antecedentes Criminais; Certidão negativa do
Distribuidor Cível e Criminal; duas fotos 3x4 e uma foto interna da residência e outra
externa da residência. Esta documentação dará origem a um processo que será
encaminhado ao assistente social para a realização do estudo social. O estudo
social é composto por duas etapas: a visita domiciliar na residência dos postulantes
e uma entrevista no fórum. Muitas pessoas acreditam que para se adotar uma
criança, ainda é necessário possuir um alto poder aquisitivo. No estudo social
procuramos investigar e analisar a situação do pretendente quer do ponto de vista
material e social, quer do ponto de vista relacional – aspectos que serão melhor
explicitados no próximo capítulo.
Não há um prazo determinado para a conclusão do estudo social. Podem acontecer
casos em que o assistente social percebe que determinada pessoa ainda não reúne
condições de ingressar no cadastro. Assim, o profissional pode propor novas
avaliações, pois nem sempre os postulantes estão devidamente preparados para a
adoção. Também, no sentido de preparar os adotantes, costuma-se recomendar que
os mesmos participem de grupo de apoio à adoção e façam acompanhamento
terapêutico. Muitas pessoas procuram na adoção uma tábua de salvação para a
solução de problemas pessoais e existenciais; outras vêm na adoção uma forma de
caridade, de se salvarem dos pecados, de cumprir uma promessa e de agradar a
Deus. Deve ficar bem claro, para essas pessoas, que na adoção muitos problemas
já deverão ter sido elaborados e resolvidos. A adoção só será atingida, se
representar reais vantagens à criança e não para aos adotantes. A criança não é um
objeto de resolução de problemas pessoais. Também não se recomenda a adoção
para se resolver o problema do filho que morreu, para servir de companhia ao filho
biológico, para ser empregado doméstico ou dama de companhia.
36
As pessoas que são aprovadas para ingressarem no cadastro, passam a fazer parte
de uma lista numérica e de espera. No Estado de São Paulo, desde maio de 1995,
o Cadastro de Adoção é centralizado, ou seja, além de existir uma fila única em todo
Estado, o candidato deve se inscrever na Comarca onde reside; a inscrição vale
para o Estado de São Paulo , sem a necessidade desta pessoa se inscrever em
várias Comarcas, como é o caso dos outros Estados da Federação. Já existem os
que defendem uma lista única de pretendentes para todo o Brasil, afim de
racionalizar o processo de adoção de crianças.
A fila de espera é grande e demorada, em função do que já analisamos
anteriormente. Quando o pretendente é aprovado para ingressar no Cadastro, passa
a constar as características da criança que deseja adotar. Ao surgir na Comarca de
sua residência ou qualquer outra do Estado, uma criança com tais características, os
candidatos são chamados, sempre segundo a ordem desta espera. Por isso, cabe
ao assistente social manter atualizada sempre a lista do cadastro de sua Comarca,
bem como a relação de crianças disponíveis para adoção. Toda criança e
adolescente abrigados têm um processo na Vara da Infância e Juventude e os
abrigos devem notificar ao Juízo da Infância e Juventude a relação de todas as
crianças e adolescentes abrigados. Portanto, existe um controle do Serviço Social da
lista das crianças disponíveis para adoção e dos pretendentes.
2.3 A Experiência e a Produção de Saberes Profissionais do Assistente Social
no Trabalho de Adoção de Crianças
Há uma diferenciação entre conhecimento e saber, nos reportando a Rodrigues
(2001: 152),
o conhecimento é a apropriação intelectual de um certo campo de objetos
materiais ou ideais como dados, isto é, como fatos ou como idéias. O
pensamento não se apropria de nada, é um trabalho de reflexão que se
esforça para elevar uma experiência à sua inteligibilidade, acolhendo a
experiência como indeterminada, como não saber – e não como ignorância
– que pede para ser determinado e
pensado, isto é, compreendido. Para
que o trabalho do pensamento se realize é preciso que a experiência fale de
si para poder voltar-se sobre si mesma e compreender-se. O
conhecimento
37
tende a cristalizar-se no discurso; o pensamento se esforça para evitar essa
tentação apaziguadora.
6
Para a referida autora,
diferentemente do âmbito estrito do conhecimento configurado como um
exercício mais intelectual, informativo, formal, a esfera do saber amplia-se
na perspectiva da inquietude, da aventura, do risco e da criatividade. Estas
características trazem dinamismo, vida, fortalecimento de um espírito de
busca que vai à experiência, à pesquisa, à prática com a disposição de
realizar uma descoberta, empreender um aprendizado e, inclusive, elaborar
conhecimentos (RODRIGUES, 2001: 153).
7
Entendemos que no trabalho do assistente social no cadastro de adoção, na
avaliação dos pretendentes e no seu preparo para a adoção, bem como o
acompanhamento destes no estágio de convivência, oferece uma experiência rica
de possibilidades. Segundo Rojas (1994: 69), é através da experiência que a
estrutura é transformada em processo, e o sujeito é reinserido na história.
Yasbek (1993: 73), utilizando Thompson, entende que
a experiência envolve sentimentos, valores, consciência e que transita pelo
imaginário e pelas representações. Thompson, ao trabalhar as condições
concretas da vida dos trabalhadores, recorre à experiência como categoria
capaz de situar a práxis humana, valorizando a esfera dos valores, da
cultura, do fazer político dos indivíduos. Para ele, a experiência é gerada na
vida material, estruturada em termos de classe (...) As pessoas
experimentam suas experiências não só como idéias, mas também como
sentimentos. Lidam com este sentimento na cultura como normas,
obrigações familiares e de parentesco, reciprocidade como valores ou arte,
ou nas convicções religiosas.
8
Este saber produzido na forma de experiência, oferece ao assistente social a
segurança necessária para ler nas entrelinhas quando muitas coisas não são ditas
no momento do estudo social, por exemplo. Muitas vezes os pretendentes à adoção
se sentem constrangidos em admitir que buscaram o cadastro de adoção por
problemas de esterilidade – ficam num silêncio ensurdecedor. Os olhares dirigidos
ao profissional e entre eles, são bastante significativos. A sensibilidade do
profissional consiste em acolher esta dor, que é mais dolorosa do que a dor do parto.
6
RODRIGUES, 2001, apud MARTINELLI, M.L. (Org.) O uno e o múltiplo entre as áreas do saber. São
Paulo: Cortez, 2001. p.152.
7
Ibid., p.153.
8
YASBEK, M.C. Classes Subalternas e Assistência Social. São Paulo: Cortez, 1993. p. 73.
38
Por outro lado, entender que existe uma criança necessitando desesperadamente de
uma família, de uma mãe que lhe dê colo e de um pai que lhe ofereça segurança. A
criança pode não se expressar verbalmente, mas é nítida sua cara de decepção
quando vê outro amiguinho de abrigo sendo adotado e ela não. Muitas vezes nos
deparamos com crianças maiores, pedindo às outras menores que estão sendo
adotadas , para pedirem aos novos pais adotivos, para que também levem-nas para
sua casa. Negar que observar estas situações, negando o sentimento do
profissional, é anular-se.
A experiência e o saber ensinam, que pessoas menos avisadas, ao visitarem um
abrigo, caem na cilada de serem recebidos por uma criança que irá seduzi-los,
envolve-los, numa rede, até que não tenham outra opção, a não ser em adota-las.
Quantas vezes ouvi dos adultos, que jamais gostariam de conhecer um abrigo,
temendo sua insegurança afetiva frente a uma criança. A falta de experiência não os
credencia ao contato direito com a criança.
Na apresentação da criança ao adotante, observamos o quanto estes adultos se
sentem perdidos, confusos afetivamente, ansiosos e emocionados. Quantas vezes
observamos o momento da chegada da criança e a reação emocional do adotante
naquele exato momento. É um momento indescritível, observar as reações deste
encontro. É um momento único. Vários funcionários do Fórum pedem para assistir
este momento – emocionante para todos. Mas para o assistente social é um
momento de triunfo, porque finalmente atendeu ao grande desejo da criança que é
ter uma mãe e um pai, tão sonhados e esperados.
Existem também aquelas situações em que a experiência profissional – eu chamo de
feeling profissional – saber de antemão que determinada adoção não se
concretizará, mesmo indo para o estágio de convivência. Esta antecipação de
resultado, não é ensinado, não é dito, é sentido. Os anos de experiência, o tempo
produziu um saber que nos ensinou a perceber intuitivamente uma relação que não
vai se tornar um processo de filiação adotiva. Este sentimento jamais é revelado aos
adotantes, o profissional guarda para si. Antes, ele, tenta de todas as formas
preparar o adotante para a adoção. Mas, mesmo assim, a adoção não se concretiza.
39
Thompson diz que a experiência reinsere o indivíduo na história, na sua cultura. Pois
bem, a experiência adquirida no trabalho de adoção de crianças, tem nos mostrado,
que as crianças ao conquistarem seu desejo por uma família, voltaram a trilhar uma
nova história, a de serem conhecidas e reconhecidas como sujeitos históricos.
40
CAPÍTULO 3
A TRAJETÓRIA DE CRIANÇAS ADOTADAS
TARDIAMENTE E SEU RETORNO AO ABRIGO
3.1 A Vida no Abrigo
Para os espaços de abrigamento vão as crianças que de alguma forma perderam
ou viram enfraquecer as relações com suas famílias ou comunidades ou ainda,
aquelas que transitam entre a casa, as ruas e os próprios abrigos, construindo sua
identidade e história de vida nestes diferentes e adversos espaços.
A história da institucionalização de crianças e adolescentes tem repercussões
importantes até os dias de hoje. A documentação histórica sobre a assistência à
infância dos séculos XIX e XX, revela que as crianças nascidas em situação de
pobreza e/ou em famílias com dificuldades de criarem seus filhos tinham um destino
quase certo quando buscavam apoio do Estado: o de serem encaminhadas para
instituições como se fossem órfãs ou abandonadas. O atendimento institucional
41
sofreu mudanças significativas na história recente, particularmente no período que
sucedeu a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dezesseis anos
após a aprovação do ECA, a sociedade brasileira ainda se depara com o fato de
existirem crianças sendo freqüentemente encaminhadas para instituições que pouco
diferem dos antigos asilos ou orfanatos (RIZZINI, 2003).
Verifica-se que não existem no Brasil, estatísticas que dimensionem o número de
crianças e adolescentes institucionalizados e as estatísticas que existem, mostram-
se pouco confiáveis. No entanto, sabemos que várias gerações de crianças
passaram suas infâncias e adolescências internadas em grandes instituições
fechadas. Estas eram, até o final da década de 1980, denominadas de internatos de
menores ou orfanatos e funcionavam nos moldes de asilos, embora as crianças, em
quase sua totalidade, tivessem famílias. Isto ocorreu a despeito do fato de que,
desde os idos de 1900, a internação de crianças aparece principalmente na literatura
jurídica como o último recurso a ser adotado. Por isso, consideramos que se instituiu
no Brasil uma verdadeira cultura da institucionalização (RIZZINI, 2003).
Com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, essa prática foi coibida
e os orfanatos caíram em desuso; porém, a cultura resiste em ser alterada. Em
parte, porque práticas tão enraizadas como esta resistem mesmo a mudanças e
estas se processam de forma lenta (RIZZINI, 2003).
Para Martins (1991), a questão do abandono de crianças está diretamente
relacionado às deficiências das estruturas sociais, à questão social e a falta de
enfrentamento da pobreza. Como ele mesmo escreve:
para o transeunte que passa pela rua e observa crianças dormindo ao
relento, vendendo bugigangas nas esquinas, fazendo pequenos biscates,
pedindo esmolas ou até mesmo furtando, a explicação do abandono é a
mais fácil de aceitar, reforçadas pelas notícias nos meio de comunicação de
massa que mencionam os milhões de menores abandonados no país. Com
efeito, parece mais simples considerar essas crianças como abandonadas
pelas famílias, mesmo quando se reconhece que a pobreza e o desespero
podem ter contribuído para isso. Martins ainda acrescenta outros fatores:
mães jovens que geram seus filhos ainda morando na casa dos pais;
separações e uniões em que os novos companheiros não aceitam os filhos
de outros pais; mais de uma família dividindo a mesma moradia. As
condições mínimas de sobrevivência são colocadas em risco nos momentos
de crise, como doenças e separações. A responsabilidade pelos filhos é
atribuída, pelo grupo, quase exclusivamente à mãe e as mulheres são
dependentes dos homens para as mínimas necessidades de sobrevivência.
42
Um dos únicos recursos que lhes sobram, nesses momentos, é a separação
dos filhos. O resultado é que as mães sós não ficam muito tempo sem
marido e as crianças circulam em grande número Podendo ainda acabar
num abrigo (MARTINS, 1991: 126).
9
Existem inúmeras crianças abandonadas no Brasil e por tal razão, costuma-se dizer
que deveriam ser incentivados programas e campanhas para promover a adoção e
outras formas de colocação em família substituta – família acolhedora e
apadrinhamento – como já existem em algumas cidades do país.
O que ocorre na verdade, é uma confusão conceitual entre abandono e pobreza,
uma vez que a imensa maioria das crianças pobres, mesmo as que estão nas ruas
ou recolhidas em abrigos, possuem vínculos familiares. Os motivos que as levam a
essa situação de risco não é, na maioria das vezes, a rejeição ou a negligência por
parte de seus pais, e sim as alternativas, às vezes desesperadas de sobrevivência
(BECKER, 1994).
É evidente que a questão da pobreza deve ser examinada do ponto de vista
estrutural, relacionada ao modelo de desenvolvimento que privilegia a concentração
de riqueza e é determinada, em grande parte, por políticas de ajuste
internacionalmente impostas e que acarretam significativos cortes orçamentários na
área social (BECKER, 1994).
Crianças institucionalizadas apresentam marcas muitas vezes profundas e sempre
dolorosas. Elas se referem basicamente ao dano causado ao processo de apego
subseqüente à sua internação e ao luto vivido quando da separação de sua família
biológica ou de seus cuidadores primários (MOTA, 2004).
De acordo com Bowlby (1982), a reação à perda dependerá também das
experiências que o enlutado teve com o objeto perdido. Para o autor, o luto é o
negativo do vínculo, sendo que a maneira de enlutar-se é uma resposta à separação
e variará dependendo da qualidade do vínculo estabelecido primariamente.
Não basta, pois, saber se a criança estava ou não vinculada a outras pessoas. É
fundamental que se conheça a qualidade desta ligação.
9
MARTINS, J.S. O Massacre dos Inocentes. São Paulo: Hucitec, 1991. p.126.
43
Se não forem adequadamente elaboradas, as marcas primeiras permanecerão por
toda a vida, pois a qualidade das experiências primárias com as figuras de apego,
também molda as respostas da pessoa adulta à perda, sendo que quanto mais
negativas tiverem sido aquelas experiências, mais a pessoa apresentará dificuldades
diante de perdas e obstáculos que a vida lhe oferecer. Poderá apresentar sintomas
psicossomáticos, depressão e ansiedade (MOTA, 2004).
Entretanto, com o passar dos anos a criança tende a se adaptar à vida institucional,
o que não a isenta de apresentar seqüelas em seu desenvolvimento biopsicossocial.
Bowlby (1982), ensina que, no curso do desenvolvimento sadio, o comportamento
de apego, leva ao desenvolvimento de laços afetivos, inicialmente entre a criança e
o adulto que dela cuida. Entretanto, estes padrões podem sofrer modificações ao
longo da vida, pois, até na vida adulta, as experiências vividas têm seu papel na
organização dos padrões de apego.
Ainda para o mesmo autor, existe uma forte relação entre as experiências afetivas
de um indivíduo com seus pais ou substitutos e o modo como se estabelecem
vínculos afetivos posteriormente. Destaca ainda que a principal variável a influenciar
a capacidade para estabelecer vínculos afetivos saudáveis, é o grau em que os pais
ou seus substitutos fornecem à criança uma base segura e a estimulam, a partir daí,
a explorar o ambiente, respeitando sua tendência natural a ampliar gradualmente
suas relações.
Os indivíduos que conseguem construir um modelo representacional de si mesmos
como sendo capazes de ajudar, de se ajudar e como merecedores da ajuda dos
outros desenvolvem, o que Bowlby (1982), denomina de “apego seguro”.
É bem provável que pessoas ansiosas, inseguras, em geral descritas como
superdependentes ou imaturas, ou, por outro lado excessivamente independentes e
solitárias, tenham vivido experiências patogênicas e tenham desenvolvido padrões
de apego inseguro ou ansioso.
44
Depreende-se daí que, provavelmente, a grande maioria das crianças
institucionalizadas estarão carregando, por ocasião da sua internação, problemas
anteriormente gerados que poderão ser agravados ou aliviados, dependendo da
conduta assumida em relação a ela.
As dificuldades apresentadas pelas crianças nas instituições são bem conhecidas e
todos sabemos de seu difícil manejo, entretanto, a atribuição à criança de um bom
ou mau caráter, de uma boa ou má índole, a priore, estrutura as relações para com
ela e lhe atribuem um lugar no grupo, do qual dificilmente conseguem escapar
(MOTA, 2004). Se é vista como má, tratada como tal, com quase toda a certeza, não
lhe restará outra alternativa que não seja a de corresponder às expectativas
existentes em relação a ela (MOTA, 2004).
Se uma pessoa supõe que é desprezada, comportar-se-á, justamente por isso, de
maneira arredia, insuportável, hipersensível, que suscitará nos outros o próprio
desdém do qual a pessoa estava convencida e que assim fica “provado” (MOTA,
2004).
Pelo já afirmado podemos vislumbrar que a institucionalização apresenta, por sua
própria natureza, dificultadores para que as condições necessárias ao bom
desenvolvimento possam ocorrer.
A falta de vida em família, a dificuldade em obter atenção individualizada, os
obstáculos ao desenvolvimento de atividades ou à expansão de tendências
particulares a cada um, a submissão a disciplina e rotinas rígidas, o convívio restrito
às mesas pessoas em todas as atividades diárias com pouco contato com a
comunidade são aspectos que se opõe diametralmente às diretrizes a serem
seguidas para que ocorra um desenvolvimento sadio da criança.
Institucionalizar não é, portanto, a melhor solução, pois priva a criança de um
convívio afetuoso mais personalizado, individualizado, que permita uma intimidade e
uma cumplicidade somente possíveis numa relação familiar (MOTA, 2004).
45
Na institucionalização não há lugar para as necessidades individuais, poucas
oportunidades para trocas afetivas, sendo que muitas vezes esta realidade
indesejável é determinada pelo acúmulo de tarefas das pessoas envolvidas com o
trabalho institucional. Essas vivências, por sua vez, dificultam o desenvolvimento, na
criança, de seus sentimentos de integridade e da sua identidade.
A disciplina é necessária para que o funcionamento institucional seja possível, no
entanto ela não pode submeter a criança a padrões a ponto de enquadrá-la num
sufocamento de suas expressões personalizadas (MOTA, 2004).
Por outro lado, a abertura para o mundo é quase inexistente na vida institucional,
limita as possibilidades, as oportunidades e o desenvolvimento de relações sociais
amplas e variadas (MOTA, 2004). A criança tende a ficar aprisionada numa dinâmica
que não a protege e a angustia frente à possibilidade de enfrentar o desconhecido
mundo externo.
Além disso, quando a separação coloca em perigo ou destrói um apego antigo,
torna-se difícil adquirir a convicção de que durante o curso de nossa vida acharemos
e mereceremos achar outros que satisfaçam nossas necessidades (MOTA, 2004).
Quando os primeiros laços são inseguros ou quebrados, tendemos a transferir
nossas experiências ou a resposta a elas para as expectativas em relação a todos
os vínculos futuros. Bowlby (1982), também se refere à tendência que a criança
apresenta após uma perda ou separação, a antecipar com angústia e medo, uma
outra possível separação. Para esse autor, as separações, quando prolongadas ou
repetidas têm dupla conseqüência: de um lado surge a raiva, de outro se atenua o
amor.
Apesar de todas as dificuldades e adversidades que a situação de abrigamento
apresenta, não podemos nos furtar a reconhecer que quanto mais cedo a criança
puder se certificar de que pode amar sem ferir-se, mais cedo e mais intensamente
desenvolverá a capacidade de amar, criando assim, um círculo vicioso positivo de
geração de segurança, a qual servirá como antídoto aos fatos adversos já vividos e
àqueles ainda por vir.
46
A adaptação social concretiza na integração de uma pessoa ao ambiente em que se
encontra, daí é fácil concluir que o lugar adequado para o desenvolvimento sadio de
uma criança não é no abrigo, e sim no seio de uma família amorosa, protetora e
clara na sua colocação de limites à criança (MOTA, 2004).
Muitas vezes o abrigado não apresenta problemas de comportamento no que tange
à tranqüilidade de sua convivência no abrigo, no entanto é necessário estar atento,
pois muitas vezes a maneira de ele estar em consonância com o abrigo é reveladora
de inadequações no desenvolvimento.
Estar em consonância com o abrigo é, por vezes, a maneira que a criança encontra
para sobreviver. Ela aprende a comer menos porque a comida é controlada; não
aprende o valor da privacidade, pois sempre teve que tomar banho coletivo porque o
chuveiro não é privativo e há apenas um funcionário para se ocupar de muitas
crianças; não constrói ou o faz de forma defeituosa sua própria identidade, pois
precisa compartilhar as mesmas roupas, brinquedos e sapatos que os demais
abrigados e assim por diante (MOTA, 2004).
Exemplos da pseudo-adaptação ou da adaptação inconveniente pode ser observada
por exemplo naquele abrigado que está aparentemente “bem adaptado”, como
pouco, não reivindica nada para si, conforma-se de estar sempre em companhia dos
demais e não ter nenhum momento de isolamento e privacidade. Aparentemente
este é o estado ideal de uma criança vivendo em abrigo. Na realidade, por comer
menos, desenvolve-se mal fisicamente; por não ter privacidade, a descoberta de seu
próprio corpo, a formação de sua identidade corporal e psicossocial ficam
prejudicados; por ter que dividir tudo desenvolve noções distorcidas de propriedade
e de respeito ao que é seu e o que é do próximo tornando-se comum a criança tratar
tudo como se fosse coletivo, daí a se apropriarem do que não é delas e com a
mesma facilidade se desfazerem do que é seu. O que aparentemente é adaptação,
na realidade é distorção do desenvolvimento sadio (MOTA, 2004).
O abrigamento por um período de tempo prolongado cria um mundo artificial no qual
a criança torna-se o sujeito passivo de sua vida e não o agente.
47
A criança abrigada não participa da rotina de uma casa, de uma família. Tudo é de
todos e tudo é para todos. A criança não desenvolve sua inteligência prática,
desconhecendo por exemplo atividades básicas tal como a rotina de fazer compras
para o abastecimento da casa. Em geral não opta sobre o que comer ou quando
fazê-lo; não tem liberdade para brincar nem tem como negociar o horário de ir para a
cama ou tomar banho.
As evidências das diferenças de comportamento entre ela e uma criança que vive
em família, se revelam quando ela sai do abrigo por algumas horas, alguns dias ou
então quando é desinstitucionalizada.
Nos relatos de pessoas que levaram crianças que vivem em abrigos para passarem
finais de semana em suas residências foram observados alguns pontos
característicos como: pedir permissão para ir ao banheiro, não saber colocar a pasta
na escova de dentes, não conseguir sentar no sofá para assistir a televisão, não
levantar à noite para ir ao banheiro sem ter alguém para chamá-la o que a leva a
urinar na cama, ser incapazes de perceber quando estão sujas até que alguém
tenha a iniciativa de mandá-las para o banho, não manter um comportamento
socialmente adequado.
O abrigamento prolongado pode levar a criança a apresentar sintomas de diferentes
ordens. Podem aparecer como alterações no desenvolvimento cognitivo, linguagem
e rendimento escolar (MOTA, 2004).
De acordo com Mota (2004), crianças que passam por um longo período de
frustração tendem a negar a realidade com prejuízo no processamento interno dos
estímulos, perdendo gradualmente a capacidade de reflexão. As condições para o
pensar tendem a ficar cada vez mais deterioradas, pois não há espaço para o
recebimento de novas informações, ou novas “introjeções”, incorporações, à
personalidade e ao caráter.
Pode-se também afirmar que a privação de estímulos sensoriais, sejam visuais,
auditivos, táteis ou de outra ordem, relativamente comum entre as crianças
48
institucionalizadas, atrasa o desenvolvimento geral e específico de cada área de
aprendizagem (MOTA, 2004).
Normalmente estas estimulações são realizadas pela mãe ou por uma figura
materna que se ocupa especial e individualmente de cada criança, proporcionando-
lhe atenção, cuidados e carinhos especiais, porque individualizado. Bowlby (1995),
afirma que quanto mais longo o período de privação da mãe, mais acentuada é a
queda no desenvolvimento da criança. A criança privada do convívio materno
apresentará dificuldades mais ou menos acentuadas dependendo da idade em que
se encontra, do tempo de duração desta privação e do grau em que ela ocorrer.
Alguns dos sintomas observados por Bowlby (1995), em função da falta de um
“objeto” específico e especial de apego denotam prejuízos de ordem somática,
intelectual e emocional. Dentre eles podemos citar: deixar de sorrir para um rosto
humano; deixar de reagir quando alguém brinca com ele; inapetente apesar de bem
nutrido; pode não engordar; não dormir bem; não demonstrar iniciativa. Efeitos
secundários: reação hostil à mãe ao reunir-se novamente a ela, pode recusar a
reconhecê-la; excessiva solicitação da mãe substituta; intensa possessividade
acompanhada de insistência em ter as coisas à sua maneira; ligação calorosa, mas
superficial com qualquer adulto que se aproxime dela; retraimento apático de
qualquer envolvimento emocional, associado a um monótono balançar do corpo, e
por vezes, bater a cabeça.
Entre as conseqüências físicas estão as febres, resfriados, alterações de peso,
suscetibilidade a infecções, úlceras, gastrites e elevação da taxa de mortalidade.
Entre os emocionais podemos nos referir à esterilidade emocional, às atividades
auto-eróticas freqüentes, à conduta anti-social, à agressividade aumentada, à
dificuldade de dar e receber afeto, à falta de capacidade para compreender e aceitar
limites, à dificuldade de adaptação ao meio, à dificuldade nas atividades que
envolvem cooperação, e tendência ao estabelecimento de uma personalidade
psicótica (MOTA, 2004).
As crianças chegam ao abrigo pela via institucional – Poder Judiciário – pelo
Conselho Tutelar na maioria das vezes, ou até através de suas próprias famílias.
49
O abrigo da cidade onde trabalhamos conhecido como Casa Abrigo de Barueri, é
uma instituição pública mantida pela Prefeitura de Barueri. Houve sucessivas
mudanças de sede, uma vez que tem aumentado nesses anos a quantidade de
crianças abrigadas. O abrigo recebe crianças na faixa etária de zero a onze anos,
algumas permanecem por um longo período outras não. Aquelas que ficam por
muito tempo são aquelas cujas famílias estão se reorganizando para recebe-las de
volta, ou aquelas que aguardam para serem adotadas. O tempo de permanência
que deveria ser de apenas três meses, conforme preconiza o Estatuto da Criança e
do Adolescente, acaba se estendendo podendo chegar a vários anos. Ainda assim,
há crianças que precisam ser encaminhadas a novos abrigos para adolescentes,
pois jamais serão adotadas – são os verdadeiros filhos do abandono.
Na Casa Abrigo de Barueri, existe a preocupação de que o abrigo possa ser um
ambiente acolhedor, mas jamais poderá substituir uma família, jamais poderá
oferecer a criança condições reais para seu desenvolvimento integral. Por isso,
comungamos da idéia que é preferível manter a criança em sua família custe o que
custar, ou em família substituta, ou em família acolhedora e em alguns casos usar o
apadrinhamento. Não existem programas desenvolvidos no referido abrigo. As
atividades são as mesmas de sempre: festas natalinas, páscoa, juninas e o dia das
crianças. Nas férias monta-se uma piscina ou as crianças vão ao cinema, ou ficam o
dia todo em frente à televisão. Não há privacidade e nada é de ninguém. Os
brinquedos são todos quebrados. As pajens, na sua maioria, não são treinadas e
não demonstram apego às crianças. Os funcionários que exercem algum cargo de
chefia, são por indicações políticas. Raras são aquelas que se apegam às crianças e
existe o sistema de levarem essas crianças, as quais se apegaram, para suas casas
nos finais de semana. Existem situações de pessoas da sociedade, de grande poder
aquisitivo, que também pedem para levar alguma criança para passar as festas de
final de ano em sua companhia. Situação polêmica, encontrando prós e contras no
Poder Judiciário. Nestas pessoas parece existir uma necessidade de pagar seus
pecados dor de consciência – que só poderia ser compensada aos olhos de Deus
como fazendo caridade. Logo após, deixam as crianças no abrigo e nunca mais
retornam para visitá-las.
50
A sociedade de um modo geral não tem interesse na situação destas crianças. Vem
o abrigo como algo distante de sua realidade. Não foram poucas às vezes que no
plantão social atendemos mulheres que queriam conhecer o abrigo, para ver quais
crianças queriam levar para casa! Já chegamos a ouvir de pessoas, que gostariam
de conhecer uma “criança fresquinha” para ser adotada! Estas pessoas imaginam o
abrigo como um zoológico, em que as crianças ficam expostas a visitação!
Outro aspecto a ser considerado é a visita da família para as crianças retiradas de
sua convivência por algum motivo e que se encontram abrigadas. A família só pode
visitar uma vez por semana a criança. Existem abrigos cujo sistema de visitação é
mensal ou até semestral. Impedir que as crianças tenham acesso a seus pais, por
certo período de tempo, é colaborar com o rompimento do vínculo, é legitimar o
abandono.
Nossa experiência tem demonstrado que essas crianças afastadas de suas famílias
tendem a se distanciar afetivamente de seus pais, chegando a não reconhece-los na
visita. Por sua vez, os pais destas crianças, deixam aos poucos de visitá-las, pelos
mais variados motivos: não podem arcar com o custo da condução, acham melhor
que elas sejam adotadas e as abandonam gradualmente, sentem-se injustiçados
pela retirada da criança sem um bom motivo e vingam-se do abrigo não visitando os
filhos. Quando deixam definitivamente de visitar os filhos, podem ser destituídos do
poder familiar, mas é tarde demais, a criança foi ficando mais velha dentro do abrigo
e não se encontra mais uma família para ela.
As crianças escolhidas para fins deste estudo, são aquelas que estavam abrigadas
há muito tempo e disponíveis para adoção. É a trajetória delas que pretendo contar.
3.2 Histórico e Caracterização das Crianças, dos Adotantes e do Estágio de
Convivência
S., sexo feminino, cor negra, nove anos de idade. A mãe foi destituída do poder
familiar quando a criança estava com três anos de idade, por maus tratos físicos,
51
psicológicos, abandono e negligência. A mãe teve diversos companheiros e com
cada um deles uma filha. S., foi uma destas filhas. O pai da criança abandonou a
família quando soube que iria ser pai. A mãe nos contou, em sua primeira passagem
pelo Fórum, que passou a rejeitar a criança quando ela ainda estava na sua barriga.
Aos dois anos de idade, S., teve seu primeiro abrigamento: a mãe a deixava sozinha
em casa. Havia denúncias dos vizinhos que a criança era espancada pela mãe. O
Conselho Tutelar abrigou a criança. S., ficou no abrigo 04 meses e retornou para a
mãe. Desta vez, passou a ser negligenciada pela mãe: ficava sem comer e tomar
banho, tinha tratamento diferenciado em relação as outras irmãs, porque ela tinha a
pela de cor negra, segundos informações dos vizinhos. S., retornou novamente ao
abrigo e lá ficou 06 meses. Quando retornou novamente ao convívio da mãe, ela já
tinha outro companheiro. Este companheiro não aceitava a criança e acabou
abusando sexualmente de S. Desta vez, o Ministério Público, entrou com o pedido
de destituição do poder familiar da mãe de S., que fugiu levando as outras filhas. S.,
voltou ao abrigo pela terceira vez. No abrigo, começou a manifestar comportamentos
regredidos: enurese noturna, movimento de pêndulo, dificuldades de comunicação
(não falava com ninguém), dificuldade de aprendizagem na escola. Pedia
constantemente pela mãe e chorava muito sem qualquer motivo. Não brincava com
as outras crianças e evitava trocas afetuosas com os adultos. Levada para uma
avaliação psiquiátrica, o médico, suspeitou de esquizofrenia. Desde então, a criança
passou a ser estigmatizada de doente dentro do próprio abrigo e não era procurada
para adoção. Na escola não conseguia passar de ano e passou a freqüentar classe
especial. Era considerada dentro do abrigo como uma criança com forte carência
afetiva. Também era uma criança que se ressentia muito quando presenciava outra
criança sendo adotada. Pedia para ter uma mãe. A criança foi adotada por M.L.,
sexo feminino, cor branca, quarenta e nove anos de idade, solteira, professora de
educação artística. Entrou para o Cadastro de Adoção em 2002. Por ocasião da
avaliação psicossocial, contou que gostaria de adotar uma criança, por ser solteira e
pela idade que tinha. Disse que se sentia em condições de oferecer um projeto de
vida para uma criança. Não fazia restrição em adotar uma criança maior de sete
anos de idade, desde que fosse menina. Também não fazia restrição quanto a cor
da pele e até aceitava uma criança com algum tipo de deficiência física ou mental.
Pesquisando na relação de crianças disponíveis para adoção, observamos que, S.,
tinha o perfil dado por M.L. Foi apresentada à criança e permaneceu com ela
52
durante um ano. Não houve qualquer preparo na transição da criança do abrigo para
a ida na convivência da adotante, pois no dia da apresentação feita no Fórum, a
adotante não aceitou realizar um período de visitação à criança proposto por nós e
pelo abrigo. Também não foi possível passar informações sobre o histórico da
criança no abrigo e suas imensas dificuldades e carências. Foi tudo feito às pressas,
uma vez que a adotante estava acompanhada de seu advogado que rejeitou nossas
sugestões. A adotante, visivelmente emocionada pela situação, não soube entender
a importância do rito de passagem que significa a transição da criança do abrigo
para sua companhia. A adotante não demonstrou nenhum sentimento de medo ou
insegurança frente à nova situação; pelo contrário, demonstrou autoconfiança e
preparo, afirmando ter experiência com crianças em função de ser professora há
muitos anos. Durante o estágio de convivência, M.L. com S., houve o relato de
inúmeras dificuldades no relacionamento com a criança. A adotante contou que S.
não dormia à noite. Tinha pesadelos e acordava chorando e gritando. Também
acordava toda urinada. Contou que teve que colocar a cama da criança em seu
quarto, pois ela tinha medo de ficar sozinha. Relatou que a criança precisava dela
para tudo: para ir ao banheiro, para se limpar, na hora de escovar os dentes e para
tomar banho e se arrumar. A criança não tinha iniciativa para nada e solicitava sua
atenção o tempo todo. Quando estava trabalhando era chamada na escola que S.
freqüentava, pois a criança chorava muito e não acompanhava o desenvolvimento
das outras crianças. Assustada diante da dimensão dos problemas apresentados
pela criança, M.L. levou S. para uma avaliação médica. Nada foi diagnosticado. Em
contato com o abrigo nenhuma informação era passada sobre a história da criança.
Nas entrevistas realizadas no Fórum, ao adentrarem na sala de atendimento, S. ,
não permanecia ao lado da adotante, ela dava à volta na mesa e vinha se sentar ao
nosso lado. Em momento algum observamos qualquer gesto de afeto da adotante
em relação à criança. Nas visitas domiciliares, observávamos que a criança
permanecia no quarto o tempo todo e ficava se balançando na cama. A adotante
não entendia a forma como a criança se comunicava. Foi somente no quinto mês de
convivência que a adotante se interessou em saber a história de vida da criança e
quando o soube, demonstrou ter sido enganada. Disse que em momento algum
havia dito na avaliação que aceitava criança com qualquer tipo de deficiência.
Também não era observada qualquer modificação no comportamento da criança. Os
mesmos comportamentos manifestados no abrigo, foram mantidos na convivência
53
com a adotante. A gota d’água na deterioração da relação, foi quando S. contou à
empregada que o irmão de M.L., havia mexido em seus genitais, quando foi para a
praia com o mesmo e suas primas. Quando chegou em casa, e ficou sabendo do
ocorrido, a adotante levou à criança para fazer exame de corpo de delito. Nada foi
constatado, uma vez que a criança já tinha o hímen rompido. Afirmando não ter mais
condições de permanecer com a criança, a adotante a devolveu ao abrigo. S.
retornou ao abrigo pela quarta vez e permaneceu abrigada por mais quatro anos até
ser adotada por um casal italiano.
C., sexo feminino, cor branca, oito anos de idade. Até os três anos de idade, a
criança foi criada por uma tia avó materna, que não tendo mais condições de cuidar,
a entregou para a mãe. Quando a criança foi para a companhia materna, começou a
ser vítima de maus tratos físicos, psicológicos e de abuso sexual. A criança era
trancada no banheiro e lá ficava por dias, sem alimentação. Os vizinhos
testemunhavam que a criança comia sabonete e ração de cachorro. C., apanhava
muito da mãe, dos irmãos e do companheiro da mãe. Apanhou tanto, que teve o
osso da bacia fraturado. Levada ao hospital, os médicos constataram que a criança
também tinha o braço esquerdo fraturado e traumatismo craniano. Também
apresentava queimaduras pelo corpo feitas com bitucas de cigarro. O hímem estava
rompido e depois se soube que foi através de um cabo de pente introduzido na sua
vagina pelo companheiro da mãe. A criança estava desnutrida e precisou ser
acompanhada por uma junta médica. A mãe foi presa imediatamente. O
companheiro dela fugiu para não ser preso, mas em depoimento para a polícia,
acusou a mãe da criança de ser a causadora de tudo. A mãe foi condenada a cinco
anos de detenção em regime fechado por crime de tortura e destituída do poder
familiar. Na cadeia, contou que quando estava grávida de C. levou uma surra do pai
da criança, precisando ser internada. Quando a filha nasceu não quis ficar com ela e
a entregou para uma tia criar. Disse que tinha muito ódio da filha, porque ela lhe
lembrava do ex-marido. Disse ainda, que a filha era uma criança muito difícil,
desobediente e que só quando apanhava melhorava. Sentia-se muito arrependida
pelo que fez e tinha esperança que quando saísse da prisão, poderia retomar a
guarda dos filhos. Quando C. saiu do hospital foi levada para o abrigo. Lá encontrou
os irmãos, mas como também apanhava deles, foi separada dos mesmos e
encaminhada a outro abrigo. Procurando familiares que pudessem cuidar da criança,
54
encontramos um casal de primos da sua mãe que se predispuseram cuidar da
mesma. Os irmãos da criança foram entregues aos avós maternos e não tinham
contato com C. Durante o período que permaneceu com este casal, a criança
continuou sendo vítima de maus tratos físicos. A criança recebia cartas de sua mãe
que estava presa, mantendo a esperança de um dia voltar ao seu convívio. A mãe
da criança saiu para passar o Natal com os pais, e não voltou mais para a prisão,
ficando foragida. Chegou a fazer contato com a criança e parece ter sido este o
motivo do Ministério Público ter pedido o retorno de C. ao abrigo. No abrigo a criança
era considerada a “rainha da bagunça”. Tinha um comportamento arredio, agressivo
com dificuldades de estabelecer vínculos com as funcionárias e outras crianças.
Desconfiada e egocêntrica. Não sabia perder nas brincadeiras e jogos, ficava irritada
e frustrada. Deixava os meninos passarem as mãos em seus genitais em troca de
favores, principalmente, o de poder ganhar nas brincadeiras. Sedutora, conseguia
ganhar tudo na conversa. Independente, não aceitava ajuda de ninguém. Dizia que
quando morou com os primos fazia todo o serviço doméstico. Não gostava da
escola, tinha dificuldades de aprendizagem e de manter a disciplina. Não pedia para
ser adotada, dizia que ainda iria voltar para a mãe. Perguntava muito pelos irmãos,
principalmente, pela irmã caçula. Não aceitava ter sido separada dos irmãos.
Destruía todos os presentes que ganhava e todas as suas roupas eram manchadas
de tinta de caneta. Urinava na cama e quando ia ao banheiro não se limpava
adequadamente. Não se alimentava, dizendo que não gostava da comida do abrigo.
À noite não dormia, e quando dormia tinha o sono agitado. Não aceitava ordens e
limites impostos pelo abrigo. A criança foi adotada pelo casal J., sexo masculino,
branco, trinta e oito anos, professor de geografia, casado há quinze anos com E.,
sexo feminino, branca, trinta e cinco anos, professora de geografia. O casal entrou
para o Cadastro de Adoção em 2003. Não podiam ter filhos biológicos, uma vez que
E. era estéril. Fizeram vários tratamentos para fertilização, todos infrutíferos.
Optaram pela adoção como projeto para poderem ter filhos.Também havia a
cobrança dos familiares. Davam muita importância à maternidade e à paternidade.
Todos os familiares tinham filhos, só eles que não. Sabendo da demora na fila de
adoção para uma criança recém-nascida, optaram por uma criança com idade acima
de cinco anos, de preferência uma menina branca, até que pudessem adotar uma
criança recém-nascida. Visitando o abrigo conheceram C. e se interessaram em
adotá-la. Disseram que a criança foi muito carinhosa e atenciosa com eles,
55
chegando a ir no colo de J.. Também acharam a criança fisicamente bonita com
traços bem definidos. Aceitaram visitar a criança durante trinta dias. Solicitaram
licença para levar a criança para passar os feriados de final de ano em sua
companhia, sendo prontamente atendidos pelo abrigo. Contaram que logo que
chegou à casa do casal, C. correu para o quarto reservado a ela para ver o que
havia. Mostrou-se desapontada: havia poucos brinquedos e roupas novas. C. fez
questão de experimentar todas as roupas que havia no guarda roupas. Depois
deitou-se no sofá da sala e perguntou ao casal o que eles eram dela.
Despreparados para pergunta, se assustaram e disseram que não eram parentes e
que estavam interessados em adotá-la. Exigiram que a criança passasse a chamá-
los de pai e mãe. Outro acontecimento digno de nota, segundo o casal, foi quando a
criança estava brincando ao lado deles, e do nada verbalizou que pretendia contar
no abrigo que apanhava deles. O casal relatou que ficou perplexo diante desta
conduta da criança, sentiram-se chantageados. Mesmo assim, levaram a adoção
adiante. Quando a criança passou a viver em definitivo com eles, o primeiro mês de
convivência transcorreu sem incidentes. Os problemas começaram quando a criança
passou a freqüentar a escola. C., não fazia as lições de casa sem a supervisão da
adotante. A criança só queria ficar assistindo televisão. Não tinha iniciativa para
nada, para tudo solicitava a atenção dos adotantes – até para se limpar quando ia
ao banheiro. Algo que irritava o casal era que a criança tinha a mania de quebrar
todos os brinquedos que ganhava, não antes de fazer muito barulho. Depois queria
montar tudo de novo e desmontar novamente. Fomos surpreendidos com uma
ligação de E., relatando que a criança havia dito que ela não era sua mãe. Ficou
perdida e não soube como agir, disse que chorou muito. O casal relatou que a
criança tinha muitos problemas na escola: ficava andando pela sala, não entendia as
orientações da professora, e dava seus pertences aos colegas de classe. Recusava-
se a seguir qualquer limite imposto pela professora. Tinha vergonha de contar para
as outras crianças que era filha adotiva, porque temia que “gozassem” dela. Os
adotantes foram várias vezes chamados na escola em virtude do comportamento da
criança em sala de aula. A professora estranhou o fato de C. ser filha adotiva, uma
vez que não aparentava ter um comportamento de criança adotada, ela não falava
da sua vida em família na escola. Tinha um comportamento anti-social e não tinha
amizades. Algo que sempre chamou a atenção dos adotantes, é que as pessoas
comentavam que C., era muito parecida fisicamente a E., e notavam que a criança
56
não gostava destas comparações. Nas visitas domiciliares que fizemos, sempre
observamos que a criança ficava no quarto o tempo todo brincando. Os adotantes
contaram que a criança tinha o costume de se intrometer na conversa deles, que era
mandona e autoritária e que preferiam que ela ficasse no quarto. O sono da criança
era perturbador. Gritava e se mexia muito na cama. Tinha pesadelos. Sentia falta do
abrigo. Pedia para ser levada para visitar os amiguinhos que lá deixou. Falava muito
da vida que teve quando viveu com casal de primos. As revelações que fazia desta
convivência anterior, irritavam os adotantes. Davam a impressão que a criança
ficava comparando as experiências que teve e que ainda não gostava de viver entre
os adotantes. C., costumava perguntar aos adotantes que marcas eram aquelas que
ela tinha pelo corpo. Dizia não se lembrar do que havia acontecido, dos maus tratos
sofridos. O casal não sabia como agir: contava-se toda a verdade ou se não
contava. Achavam que a criança no fundo sabia de tudo, só não queria admitir os
maus tratos feitos pela mãe. A criança sempre se referia à mãe com saudades e
carinho. Contou que teve contatos com ela depois dela ter saído da prisão. Contou
que mantinha contato com os irmãos e que sentia muitas saudades da irmã caçula.
Perguntava ao casal se eles iriam adotar os irmãos dela, o casal falava que não. Os
adotantes não aceitavam o jeito de ser da criança: mentirosa e curiosa. Diziam que a
criança mexia nos pertences da adotante e nunca admitia um erro, jogava a culpa
nas outras pessoas. Às vezes a criança apresentava comportamentos extremados:
muito carinhosa e muito agressiva. Os adotantes várias vezes verbalizaram nas
entrevistas, que não se sentiam adotados pela criança. Não tinham idéia da
dimensão dos problemas trazidos pela criança. Não foram avisados pelo abrigo
sobre a vida da criança naquele lugar. Sentiam-se frustrados e sentiam que não
correspondiam às expectativas da criança. Ela queria voltar para a mãe e os irmãos.
Eles jamais teriam condições de concretizar este desejo. Com o tempo perceberam
que não eram preparados para adotar uma criança com tantos problemas e pediram
para que C. retornasse ao abrigo. Queriam mesmo adotar uma criança recém-
nascida. Logo após o retorno da criança ao abrigo, os adotantes fizeram novo
contato conosco, para relatar e mostrar os desenhos feitos pela criança no período
que permaneceu com eles. Contaram que o desenho era uma forma da criança
expressar seus sentimentos, uma vez que tinha dificuldades em expressar afeto
através de gestos. Os adotantes chegaram a montar uma pasta com todos os
desenhos da criança e os entregaram ao abrigo.
57
Os irmãos M., sexo masculino, cor branca, dez anos de idade e P., sexo masculino,
cor branca, oito anos de idade; eram órfãos de pai e mãe. Os pais faleceram em
virtude da contaminação pelo vírus da Aids. Com a morte dos pais, as crianças
foram circulando entre os familiares por parte da mãe. Por todos os familiares que
passaram eram colocados para pedir esmolas na rua e quando não chegavam em
casa com dinheiro, eram severamente espancados. Em função disso, foram
abrigados pelo Conselho Tutelar. No abrigo, nunca receberam visitas dos familiares.
Em entrevista no Fórum, as tias maternas se recusaram a visita-los e concordaram
que fossem adotados. No abrigo eram crianças agressivas, revoltadas, quebravam
tudo que lhes caia nas mãos. Não aceitavam qualquer aproximação de adultos e
eram tidos como os reis da bagunça. Enfrentavam agressivamente qualquer
tentativa de imposição de limites, chegando a agredir colegas e professoras na
escola. Inclusive com cuspes. Não gostavam da escola e eram constantemente
transferidos. Os funcionários do abrigo pediam para que encontrássemos uma
família para eles. A única atividade que faziam com certo prazer era desenhar.
Desenhavam muito, até nas paredes do abrigo. As funcionárias ficavam encantadas
com a qualidade dos desenhos. Observamos que nos desenhos havia um traço
comum: casinhas todas muito coloridas. As crianças comentavam que gostariam de
morar numa casa igual ao desenho. Após longo tempo de abrigamento, os irmãos
começaram a ser visitados por A., sexo feminino, cor negra, quarenta e um anos de
idade, solteira, assistente social. A., entrou para o cadastro de adoção com muitas
dificuldades. Na avaliação psicológica contou que era solteira porque não gostava
de homens. Considerada homossexual, foi reprovada. Entrou com recurso no
Tribunal de Justiça, que lhe garantiu o direito de ingressar no cadastro. Conhecemos
A., por intermédio do Grupo de Apoio à Adoção Projeto Acalanto. Ela estava
procurando dois meninos para adotar. Não fazia restrição a idade, nem a cor da
pele. Afirmava já estar velha para querer adotar um recém-nascido. Também dizia
que havia ajudado as irmãs a criarem seus filhos e agora queria ter os seus. Os
irmãos M. e P., tinham o perfil desejado pela adotante. Inicialmente, as visitas foram
feitas no abrigo e depois os irmãos passaram a ir aos finais de semana para a casa
da adotante. Não houve por parte da adotante, qualquer referência aos
comportamentos dos irmãos. O abrigo também não informou como era o
comportamento deles. Como a adotante era cadastrada por outro Fórum e morava
em São Paulo, o acompanhamento do estágio de convivência, não foi realizado por
58
nós. Após um ano sem ter notícias da adotante e das crianças, fomos surpreendidos
com uma visita da adotante no Fórum. Estava desesperada, pedindo nossa ajuda,
porque pretendia devolver as crianças para o abrigo. Chorando muito, contou que
não havia outra saída a não ser devolver as crianças. Contou que no início da
convivência tudo transcorreu as mil maravilhas. Os problemas começaram quando
os irmãos passaram a freqüentar a escola. Não tinha idéia dos problemas que iria
enfrentar, não havia sido preparada. Disse que as crianças não aceitavam qualquer
autoridade dela. Não queriam dormir nas horas determinadas e ficavam assistindo
televisão até tarde da noite. Não iam à escola: não entravam e matavam aula. Foram
pegos várias vezes pela Guarda Municipal e levados ao Conselho Tutelar. Ficava
muito constrangida. Disse que os meninos pediam esmolas na rua e chegaram a
vender as bicicletas que ganharam por ocasião do natal. Na escola extorquiam
dinheiro das outras crianças. Ela não tinha apoio da sua família. Tinha vergonha de
freqüentar a casa das irmãs com medo dos comentários, principalmente da diferença
da cor da pela entre ela e a das crianças. Diante da impossibilidade de permanecer
com os meninos procurou ajuda no Fórum respectivo, mas não foi atendida.
Recorrendo ao grupo de apoio, foi orientada a nos procurar. Os irmãos retornaram
ao abrigo e depois foram encaminhados a outro abrigo para adolescentes.
A trajetória das quatro crianças e dos adotantes contados acima merece uma
atenção e análise que passaremos a expor.
Bowlby (2002), relata que a decisão de separar, por qualquer motivo, uma criança de
sua família, é muito séria, desencadeando uma série de acontecimentos que
afetarão, em maior ou menor grau, toda a sua vida futura. Seja qual for a causa da
separação – doença, abandono, negligência ou ineficiência ou morte dos pais, ou
ainda a conduta da criança dentro ou fora do lar – a transferência da
responsabilidade para estranhos jamais deveria ser feita sem muita reflexão.
Freqüentemente as crianças são retiradas de seus lares sem que tenha havido um
estudo sério das causas que estão por trás da situação aparente. Muitas instituições,
erradamente, abordam o problema com idéias preconcebidas sobre as condições
que justificam a remoção, em vez de procurarem saber, com certeza, se é possível
fazer alguma coisa para tornar o próprio lar adequado para a criança.
59
Bowlby (2002), relata ainda, que crianças separadas da mãe precocemente,
apresentam comportamentos de desapego e desespero, mesmo que esta separação
não seja longa. Ao estudar crianças institucionalizadas, observou esse autor, que
estas choravam muito e pediam constantemente pela presença da mãe. Também
eram crianças, que com o tempo, manifestavam condutas de indiferença e desapego
frente às pessoas e aos objetos. Estas crianças, que no abrigo dificilmente são
donas de suas coisas – tudo é socializado – tendem a não dar valor e a não cuidar,
do que lhes pertencem.
As crianças acima retratadas apresentam comportamentos descritos por Spitz
(1992) e Winnicott (1987), típicos do fenômeno conhecido por hospitalismo e de
privação. Segundo estes autores, crianças que permanecem por longo período em
instituições e ainda passam por privações afetivas, pois são separadas dos pais –
principalmente da mãe – apresentam comportamentos regredidos, dificuldades de
comunicação, enurese, movimento de pêndulo, agressividade e idiotia. Weber
(2004), esclarece que a idiotia assemelha-se ao embotamento do desenvolvimento
neuro-psicomotor da criança. Todas as crianças que permanecem em abrigo por
longo período estão sujeitas a essas situações. No acompanhamento destas
crianças, que foram escolhidas como sujeitos desta pesquisa, todas elas em maior
ou menor grau, apresentaram indícios de embotamento e principalmente
dificuldades em estabelecerem novos vínculos.
A palavra preparo vem do verbo preparar que significa aprontar, arranjar, planejar
(CUNHA, 1991). Para fins desta análise entendemos que o preparo dos adotantes é
um processo que implica várias etapas que devem ser percorridas e vivenciadas por
eles. A fase de preparação dos adotantes que se inicia na transição da criança do
abrigo para a convivência cotidiana, passa pelo modo como esses adotantes
planejam seu projeto de adoção, seus medos, inseguranças e motivações. Implica
na sua concepção de paternidade e maternidade, como se predispõem a seguir as
orientações da equipe técnica, o conhecimento da história de vida dos adotados
antes e depois do abrigamento, para terminar no estágio de convivência que é o
momento em que os vínculos são ou não estabelecidos, ou seja, se haverá ou não a
adoção mútua.
60
Temos observado em todos estes anos de experiência nos abrigos, que o preparo
do adotante é peça fundamental no processo, para que adotantes e adotados
possam encontrar a realização de seus desejos e projetos. O preparo, a falta dele ou
quando este é mal feito, pode acarretar a devolução da criança ao abrigo, pois não
ocorreu o processo de adoção.
Nos adotantes acima referidos, podemos notar que três deles não possuíam o
preparo a que nos referimos. Apenas o último casal que adotou as crianças P. e D.,
deram mostras de que estavam preparados ou se predispuseram à preparação.
Nem sempre existe um trabalho interdisciplinar nas Varas da Infância e Juventude
com os Abrigos. Ocorrem situações em que não há uma troca de informações sobre
a história de vida da criança entre o abrigo e os técnicos da Vara. A história oficial
passa a ser a história da criança após o abrigamento. Não se conhece às vezes com
exatidão a história pregressa da criança antes do abrigo. Os responsáveis pelo
abrigamento, Conselheiros Tutelares, agentes do governo e até os profissionais do
poder judiciário, não estão devidamente atentos à importância do registro escrito e
detalhado destas informações. Existem verdadeiros hiatos na trajetória dessas
crianças. Passagens perdidas para sempre, histórias que jamais serão recuperadas.
Para Dolto (1987), mais grave que as separações ou rupturas são as incertezas da
criança sobre seu presente e futuro, pois muitas delas, ao serem abrigadas, não são
sequer informadas sobre os motivos da transferência de moradia e nem mesmo
sobre o que poderá ocorrer a partir deste momento. O caráter trágico não é
introduzido apenas pelo abandono ou pelo abrigamento, que podem superar se
forem ajudadas, mas por ficarem submetidas a dúvidas, incertezas e constantes
esperas. A ressalva aqui feita é primordial para os profissionais que trabalham com
crianças e adolescentes abrigados. Os dados sobre o histórico de vida, as razões do
abrigamento e as informações atuais sobre a situação processual de cada criança e
adolescente mesmo se houver atrasos e incoerência nos procedimentos jurídicos
devem ser remetidos à direção do abrigo e, além disso, as próprias crianças e
adolescentes precisam acompanhar o que está acontecendo e saber de suas
possibilidades futuras, pois as dúvidas e a espera interminável são devastadoras
para elas, já que se fragilizaram com separações seguidas de abandono real ou
legal. Paiva (2004), enfatiza, que a criança nunca é pequena demais para que lhe
61
falemos a verdade; as palavras permanecem sempre na sua memória inconsciente,
testemunhando o respeito por sua pessoa. Ainda, segundo Paiva,
Mesmo quando as condições de vida são corretas (material e afetivamente),
a insegurança quanto ao amanhã torna impossível um desenvolvimento
harmonioso e é fonte constante de angústia, de desespero, de raiva
impotente (PAIVA, 2004: 134).
10
Outro aspecto a ser levado em consideração, é o teor das informações a serem
transmitidas aos adotantes por ocasião do desabrigamento da criança, Não existe
consenso sobre se todas as informações devem ser passadas ou apenas parte
delas. Existe o receio de que se os adotantes ficarem sabendo da história de
abandono, rejeição e maus tratos da criança, tendem a ficar receosos e inseguros,
inviabilizando a adoção. Por outro lado, informar uma meia história pode significar
omissão e segredo. Nosso posicionamento com relação ao preparo dos adotantes, é
que eles devem ser informados de toda a história do adotando antes e depois do
abrigamento. Não acredito que com o objetivo de poupar os adotantes de um
sentimento de receio ou medo, possa inviabilizar a adoção.
Ducatti (2003), refere que o indivíduo que desconhece suas origens, sua história
ancestral familiar, tem grandes possibilidades de desenvolver distúrbios psíquicos.
Sofre com a desorientação, tem dificuldade de estabelecer vínculos e tem baixa
auto-estima. Situação parecida acontece com aquelas crianças cuja origem também
não foi revelada pelos adotantes, que por sua vez também tiveram medo de revelar
a história verdadeira temendo a rejeição dos filhos. Um indivíduo que desconhece
sua história não se reconhece no mundo, no grupo a que pertence, não sabe que
lugar ocupa. Pior, os adultos, que adotam crianças, também não sabem como
oferecer um espaço adequado para a inserção dessa criança. O desconhecimento
destas trajetórias anteriores ao abrigamento, afeta não só a criança, mas também o
adotante.
Ducatti (2004), estudiosa da Psicanálise das Configurações Vinculares afirma que,
10
PAIVA, L.D. Adoção: significados e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. p. 134.
62
(...) ao se estruturar um grupo familiar, várias são as questões implicadas.
Desde a escolha deste ou daquele parceiro, tudo parece repousar sobre um
infinito mistério (...). A estruturação familiar compõe-se de vários processos
que lhe dão uma qualidade sistêmica. Um desses processos é o da filiação,
qual seja, dar a uma cria humana o lugar de filho tanto dentro do ponto de
vista jurídico, social como psicológico. A transgeracionalidade e o processo
de filiação, presentes em todos os grupos familiares, são discutidos diante
da questão da adoção. Por transgeracionalidade, se entende a transmissão
de uma cadeia de significações ligadas entre várias gerações que abrange
ideais, mitos, modelos identificatórios que envolvem o discurso familiar.
Mesmo no caso daquilo que não é de fundamental importância na
determinação do inconsciente, como conteúdo reprimido (DUCATTI, 2004:
49).
11
Ainda segundo Ducatti (2004),
A filiação implica a relação de pelo menos três gerações sucessivas
reconhecidas como tais, tendo como referência um mito comum de origem.
O surgimento do sujeito da filiação corresponde à colocação específica que
este ocupa dentro deste conjunto que tem um ancestral como
representante. A filiação é tanto conhecimento como reconhecimento. É a
necessidade de continuação narcísica dos pais que geram os filhos e os
levam ao reconhecimento da sua própria posição dentro da ordem das
gerações. Este reconhecimento dá-se também pela inscrição do estatuto
civil da criança, no registro ou na árvore genealógica (DUCATTI, 2004:
50).
12
Dolto, (1981), nos lembra que a criança desde a concepção e até mesmo antes dela,
inscreve-se na cadeia de desejos, expectativas, e fantasias daqueles que a geram, e
é a partir desse campo de desejo que poderá situar-se numa história na qual sua
identidade terá um lugar. A questão da origem, notadamente, é da ordem do desejo.
“Em relação à criança adotada, os adotantes, esperam, sonham com ela bem antes
que exista, tornam-se pais pelo desejo. São, sem o saber, pais e mães de seus
filhos bem antes de terem nascido” (DOLTO, 1981: 106). Esta autora afirma ainda,
é impossível que um ser humano possa nascer sem que um desejo e um
amor estejam associados a esse nascimento. Talvez não tenha havido amor
no momento da concepção, mas terá havido amor na gestação, pois a
criança nasceu viável. A mãe pôde levá-Ia a termo, a pôs no mundo, aceitou
entregá-Ia a seu destino (DOLTO, 1981: 232).
13
Daí fica evidente a necessidade dos adotantes conhecerem as origens do adotado e
a importância deste ser reconhecido como filho.
11
DUCATTI, M.T. Diálogos sobre Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. p.49.
12
Ibid., p.50.
13
DOLTO, F. Destinos de Crianças. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p. 232.
63
Agora também o que se discute é o preparo da criança para a adoção. Não conheço
experiências existentes sobre o preparo de crianças, exceção feita às adoções
internacionais. Não se revela a criança que ela está indo conhecer seus futuros pais.
Até por que não se sabe se realmente serão os futuros pais. Para uma criança
acostumada ao abandono e à rejeição, seria muita crueldade no nosso entender,
submeter essa criança a mais uma frustração. Entretanto, nossa experiência mostra
que de certo modo as crianças sabem intimamente que aqueles adultos desejam
algo com elas, quem sabe levá-Ias para casa. Ainda não conheço uma criança ou
adolescente, que viva em abrigo, que não deseje no íntimo ter uma família.
Dolto (1981), considera que “o ser humano desde sua vida pré-natal, já está
marcado pela maneira como é esperado, pelo que representa em seguida, pela sua
existência real diante das projeções inconscientes dos pais”.
Quando se trata de elaborar um projeto de adoção, em se tratando de um casal, o
que se espera é que seja um projeto do casal e não apenas de um deles. A
elaboração de um projeto de adoção requer muito diálogo, cumplicidade,
autoconhecimento. Podemos chamar de projeto de adoção uma elaboração
subjetiva, em que o adulto reserva em seu imaginário, em sua subjetividade um
espaço destinado a uma criança. Um projeto de adoção é um processo que consiste
em vivenciar uma gestação imaginária, ou seja, esperar uma criança que
evidentemente pode não chegar em nove meses não se trata de uma gestação
biológica mas é como se fosse. Nesta gestação a que nos referimos, o casal deve
engravidar junto. Da mesma forma que numa gravidez biológica, o casal ou pessoa
solteira, criam planos futuros para o bebê, imaginam como ele será fisicamente,
compartilham sonhos e projetos. Montam o quarto do futuro bebê, decoram,
compram o enxoval. A família extensa também se envolve no período da gestação
compondo um projeto maior.
Quando um casal ou pessoa solteira procuram o Cadastro de Adoção, para se
tornarem pretendentes, a primeira questão a ser avaliada é se possuem um projeto
de adoção e se ele é compartilhado pelo casal e se a família extensa também se
envolveu no projeto. Muitas vezes existe a vontade de adotar, mas não existe um
projeto de adoção. Quando é realizada a visita domiciliar, observa-se, que sequer foi
64
reservado um espaço na casa (um quarto) para o adotado. Não há um espaço
reservado no imaginário dos adotantes, ou seja, não entendem que desejar ter filhos
é uma coisa, tê-Ios é outra completamente diferente.
Mota (2001), relata que nos dias atuais a noção de maternidade está deixando de
ser apenas uma questão biológica, para também assumir uma dimensão social e
psicológica. Existe uma cobrança velada da sociedade que espera que a mulher
assuma o papel materno. Quando tratamos de projeto de adoção, não podemos
esquecer que acima de tudo, o que se está discutindo é como o adotante está se
preparando para ser pai e/ou mãe. Outro detalhe que entra nesta discussão é se
uma pessoa solteira heterossexual ou homossexual, pode ter um projeto de adoção,
entendemos que sim, pois uma coisa é desempenhar o papel de pai e mãe, outra
coisa é ser pai e mãe biológico.
Ninguém possui a fórmula para ser pai e mãe, são papéis aprendidos. Tenho
observado nestes anos todos, que muitos adotantes demonstram a disponibilidade
para serem pais, outros são apenas cuidadores. Chamo de disponibilidade para
assumir o papel materno e paterno, quando observo que o adotante está atento para
as necessidades da criança, que a aceita tal como ela é, sem querer modificá-Ia ou
ter pressa para. Estes adotantes não vêem na adoção tardia um problema, mas um
desafio a ser vencido. Em suma, não é todo adotante que está preparado para
adotar.
Falar de motivações pode parecer chocante. A adoção tem uma tal conotação de
humanidade que o simples fato de imaginar motivações inconscientes que não
seriam altruístas ameaça suscitar a desaprovação da família, da sociedade.
Lembrou-me da entrevista com o casal J. e E.. Eles se casaram sem saber que ela
era estéril. Depois que souberam, empreenderam um projeto de adoção. Eles se
amavam, diziam, e em nome desse amor, o processo de adoção Ihes parecia
natural. Esperavam esse filho exatamente como se fosse o filho biológico que não
podiam ter. Eles o haviam inscrito em seu projeto de vida como um casal fecundo.
Era isso que queriam nos fazer entender, esperando convencer que o gesto era
simples e belo.
65
Pode acontecer de a motivação para adoção ter uma ligação direta com
acontecimentos traumáticos, um sofrimento neo ou pós-natal, ou ainda, a perda de
um filho. Alguns evocam o luto, ainda presente, de um filho mais novo ou com um
pouco mais de idade, morto num acidente grave. Ou ainda, para substituir um
sobrinho ou outro parente, com quem mantém grande afeto. A adoção é encarada
como uma alternativa menor pior. Não se trata tanto de substituir o ausente, mas de
pegar uma criança que já está aí e que não teve a chance de viver com sua família.
Em outras palavras, a experiência do sofrimento, torna-os disponíveis para receber o
sofrimento de um outro, uma criança, a fim de lhe dar o que deles não cessou de se
dizer, cristalizado com a perda que eles conheceram.
Quando uma demanda de adoção, está de algum modo, sobrecarregada com muito
sofrimento é preciso tentar começar a trilhar, com os adotantes, uma reflexão que
poderia chegar à necessidade de falar em outro lugar, com alguma outra pessoa,
sobre o que eles vivem. Se eles não estão prontos, o que é freqüente, devemos
convidá-Ios a reformular seu projeto de adoção.
Também é comum encontrarmos adotantes que condicionaram seu projeto de
adoção a promessas feitas, a aspectos religiosos, morais e humanitários. Não há no
imaginário destas pessoas, qualquer espaço destinado a uma criança. A adoção
está vinculada à necessidade da salvação da alma do adotante, não da criança. Não
acreditamos num projeto de adoção que só traga benefícios aos adotantes. Ter um
filho é antes de tudo, compartilhar. Não se trata de um projeto egocêntrico dos
adotantes. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 43, defende que a
adoção só será deferida, quando conferir reais vantagens à criança. Não se trabalha
com o que for melhor para os adotantes, e sim com o que for melhor para a criança.
Por isso, é que se busca uma família para uma criança e não mais uma criança para
uma família.
Quando se procura conhecer qual a preferência dos adotantes para uma criança do
sexo masculino ou feminino, cor da pele e faixa etária, ou seja, com características
físicas bem definidas, é para que se perceba mais claramente a imagem que estes
adotantes fazem do filho pretendido. Segundo Hamad (2002), a escolha destas
características, está relacionada a questões conscientes e inconscientes. Se a
66
escolha de uma menina nada tem de particular em si, os argumentos que a
justificam dão, pelo contrário, muito o que pensar. Geralmente argumentam, que as
meninas são mais fáceis de criar e que no futuro, criam-se menos conflitos com o
pai. Outros se recusam a escolher o sexo do filho adotivo; afirmam que se fosse um
filho biológico, também não poderiam escolher o sexo dele. Entretanto, essa posição
é complexa, uma vez que é negar a especificidade da adoção, tornando-a
equivalente a uma gravidez biológica.
Existem situações que o motivo da adoção está vinculado a salvação do
relacionamento do casal adotante. A impossibilidade de uma gravidez por parte da
mulher, vem carregada muitas vezes, pela frustração de não poder cumprir com seu
papel; o sentimento de culpa frente ao esposo, tenta ser compensado pela adoção.
O mesmo acontece com o homem, quando se constata que é estéril, perante ele
mesmo e à sociedade, a sensação de fracasso é enorme. A importância dada à
virilidade se faz sentir na necessidade de adotar uma criança e de segurar o
relacionamento matrimonial. Neste caso, a adoção, vira uma tábua de salvação para
que o casal não venha a se separar. Foi o que observamos no casal Auro e Edite, e
no caso de Maria Lúcia e Abigail, a necessidade de provarem para elas e para a
sociedade que poderiam ser mães.
A escolha do sexo, ainda, é mais pertinente, quando a demanda vem de celibatárias
mulheres ou homens. Na maioria das vezes são mulheres, algumas delas
orientaram sua escolha em função das suas prioridades até aquele momento. Em
geral, fizeram estudos superiores ou exercem profissões apaixonantes que solicitam
muito delas. Elas descobrem, quando já passaram dos 40 anos de idade, que não
podem mais fazer um filho biológico e se voltam para a adoção. É difícil neste caso,
segundo Hamad (2002), ver nisso a projeção de conflitos latentes relacionados a
uma estrutura edipiana, que se traduziria pela recusa de fazer um filho com um
homem.
A questão da idade é outro fator importante no projeto de adoção. É importante ficar
atento quando os adotantes atingiram uma certa idade e desejam uma criança bem
pequena. Embora não haja restrição legal a idade dos adotantes, a disparidade de
idade entre o adotado pretendido e a idade do adotando, pode se configurar numa
67
relação entre avós e netos e não entre pais e filhos. Trabalha-se com adotantes bem
mais velhos, um projeto que permita uma adoção tardia e de preferência
adolescente. Não é comum este tipo de trabalho no Brasil; as melhores experiências
estão nos países do primeiro mundo e na adoção internacional. Uma adoção com
idade muito díspar entre adotantes e adotados, tem mostrado, que com o tempo
surgem sérios conflitos geracionais, que terminam com a tentativa de devolução da
criança, quando esta já chegou na sua adolescência.
Embora não tenha sido observado nos adotantes pesquisados, recusa em revelar
aos adotados, sua condição de filhos adotivos, é imprescindível saber no preparo
dos adotantes, como eles pensam a questão da revelação das origens. Sobre isso,
Paiva (2004), comenta,
dentre as pessoas que admitem que a criança compreende quando lhe
falamos de suas origens ou da origem das rupturas que sofreu, algumas se
perguntam se é preciso dizer tudo, uma vez que, depois de delegarmos a
ela a possibilidade de compreender, podemos querer protegê-Ia, mantendo-
a na ignorância monitorada, a menos que estejamos preocupados com o
fato de que a criança sem defesa não queira saber! Mas para não saber,
para esquecer, é preciso que ela saiba antes. Constatamos com
adolescentes e adultos que viveram uma experiência de revelações sobre
suas origens, seus pais e ancestrais, que uma vez superado o primeiro
choque, o fato de as coisas serem ditas permite rememorar todo o tipo de
lembranças, fragmentos de conversas, atitudes registradas, mas não
interpretadas, manifestações somáticas, decisões tomadas sem
conhecimento de causa, peças isoladas de um quebra cabeça no qual
faltava aquela essencial para compreender o conjunto (PAIVA, 2004: 118).
14
A recusa e o medo da revelação por parte dos adotantes no momento da
preparação é sempre preocupante e pode até ser um motivo para reprová-Ios no
ingresso do Cadastro de Adoção. Questões do tipo quando pretendem contar e se
pretendem contar, são essenciais para a construção de um projeto de adoção.
Adotantes que vinculam a recusa em revelar as origens ao medo de serem
rejeitados um dia, demonstram imaturidade e insegurança, achando que uma boa
mentira é sempre melhor à verdade dolorosa. Entendemos, que o sentimento de
amor dos pais para um filho, não pode haver espaço para segredos e mentiras.
Paiva (2004), ainda nos diz que o não dizer dos pais é uma confissão de culpa, um
julgamento e uma condenação implícitos. Condenam-se da tentativa de encaixar
uma criança em seu sonho, fazendo dela um instrumento para resolver, a qualquer
14
PAIVA, L.D. Significados e Possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. p. 118.
68
custo, a questão do casal quanto a poder ou não ser mãe e pai. Pesquisas feitas no
passado e a própria experiência tem demonstrado, que existe uma forte relação
entre a ocultação das origens segredo com as adoções mal sucedidas,
principalmente as adoções à brasileira. Entretanto, nada nos garante, que mesmo as
adoções legais, feitas com base no ECA, os adotantes realmente cumpram o que
disseram na ocasião do ingresso no cadastro.
Não se dá ainda, a devida importância à revelação das origens, pelo fato que no
Brasil o nosso sistema de adoção é o fechado, aquele em que qualquer menção à
origem do adotado é apagado de seus registros e também ao fato que não há
qualquer acesso às informações da vida pregressa da criança, caso um dia ela
queria, quando adulta, obter estas informações. Fica a cargo do adotante, toda a
responsabilidade e a carga emocional, em digerir este encargo. Por isso, mais uma
vez, defendo uma preparação em que os adotantes devem ser acompanhados
durante o estágio de convivência, nesta difícil tarefa. Mota (2004), critica o modelo
de adoção fechada existente no Brasil. Segundo ela este é um modelo arcaico, que
dificulta não só o acesso às origens da criança, como rompe qualquer possibilidade
desta no futuro de ter acesso a estas informações. Discute, que no modelo de
adoção aberta existente nos Estados Unidos e Europa, não só a família biológica
pode escolher e participar da adoção do filho, como acompanhá-Io quando estiver
na família adotiva. Neste caso, não há o rompimento dos vínculos entre a criança e
sua família biológica, que passa a compor junto com a família adotiva, uma grande
família. No Brasil, os vínculos são rompidos já no abrigamento, e não há a menor
possibilidade da mãe biológica ter conhecimento do destino do filho após a adoção.
Vale lembrar que os adotantes sempre possuem muito medo, na adoção, que a mãe
biológica possa obter o filho de volta. Este medo inconsciente, é uma das grandes
causas para não se revelar ao filho, sua condição de adotivo. Talvez, por este
motivo, seja tão difícil pensar no Brasil em Políticas de Adoção.
Para Bowlby (1976), uma criança retirada judicialmente de sua família sofre
profundamente a ruptura e não está facilmente pronta para aceitar outros pais, para
refazer laços afetivos, e segundo esse autor, várias pesquisas apontaram, num
grande número de casos, que as crianças foram passadas de uma figura materna
para outra durante seu terceiro e quarto anos de vida, desenvolveram
69
personalidades anti-sociais e tornaram-se incapazes de estabelecer relações
satisfatórias com outras pessoas.
Ao analisar o padrão de apego em crianças adotivas, Berthoud (1992), aponta que a
criança com idade acima de seis meses, época crítica em que o comportamento de
apego costuma se estabelecer, já estaria numa situação de risco em relação ao
desenvolvimento do apego seguro. Enquanto o bebê, na adoção precoce, tem a sua
disposição a mãe adotiva para eleger como primeira/principal figura de apego, a
criança mais velha irá depender de inúmeros outros fatores para o sucesso desta
tarefa, como o tipo de experiência anterior com a figura materna. Se a criança
conseguiu estabelecer vínculos precoces positivos, internalizar uma figura de boa
mãe, mais fácil será a construção de novos vínculos significativos. A criança que
sofreu ruptura com as figuras às quais esteve vinculada, pode reconstruir o seu
primário a partir das novas representações dela própria das quais participa,
profundamente, a interiorização das novas imagens parentais.
Vargas (1998), refere que o processo de adoção dos pais pela criança maior de três
anos só se completa quando esta consegue retomar seu desenvolvimento. A criança
adotada tardiamente vive um processo psicossocial de regressão reportando-se ao
estado imaginário de recém-nascido e vive uma espécie de segundo nascimento, a
partir do qual ela pode percorrer de seu novo desenvolvimento e até resolver as
fases da constituição de seu ego. Com relação aos pais adotivos, é importante que
estes possam ver a criança desejando renascer deles.
Os momentos de regressão variam segundo Vargas (1998), tanto na forma de
expressão como na intensidade, sendo que jamais aparecem da mesma maneira em
duas crianças diferentes. É o que podemos observar nos comportamentos
regredidos das crianças Sthephanie e Carla, ao utilizarem uma linguagem típica de
crianças mais novas.
Vargas (1998), utiliza um padrão de desenvolvimento na leitura e entendimento do
processo de adoção tardia. Trata-se de um modelo de desenvolvimento proposto por
Anzieu (1985), do qual apresentaremos uma síntese.
70
A fase mais regressiva do processo de adoção tardia é a fantasia de
reinclusão no corpo materno. O fantasma intra-uterino leva a criança a
buscar, através de um contato corporal pele a pele, boca a boca, a
realização do desejo de se reintroduzir no corpo matemo, de voltar a viver
na barriga da mãe no caso de habitar pela primeira vez. O relato de
algumas mães cujos filhos recém adotados verbalizaram querer "morar na
sua barriga", "ter nascido da sua barriga", “entrar na sua barriga para sair de
novo”, é um exemplo dessa fase. Também existe uma conduta destas
crianças utilizarem uma linguagem verbal regredida, bem como outros
comportamentos como a enurese noturna (VARGAS, 1998: 37).
15
A segunda fase, denominada de o fantasma de pele comum, pode ser traduzida
como uma busca da criança com a identificação física com os pais adotivos.
Aparece em afirmativas como "mamãe, eu sou como você”, ou, "sou igual a você". É
a partir da manifestação dessa fase que a criança passa a se identificar
psicossocialmente com a mãe. Passa também, a apresentar idéias de apropriação
do mundo, sentimento onipotente de invulnerabilidade, de heroísmos. Estes últimos
são manifestações com o fim de alcançar uma imagem positiva de si e
suficientemente valorizada no ambiente onde possa conviver (VARGAS, 1998: 38).
É comum a manifestação exagerada de afeto e carinho, aos olhos dos adotantes,
uma conduta que os assusta. A criança sente uma enorme necessidade de ser
aceita, de se sentir amada. Pergunta constantemente, se está bonita, desejando
assemelhar-se à mãe ou ao pai adotivo.
Na terceira fase, aparece um distanciamento, chamada de retaliação da
pele comum. Acabou a fase da lua de mel. Nesta fase, a criança, manifesta
agressividade, e pode reagir, tomada de cólera, a algum tipo de controle
dos pais adotivos com afirmativas do tipo "vocês não são meus pais", "não
nasci de vocês”. A perda do objeto de vinculação-identificação com a
primeira figura materna pode levar à desestruturação do mundo interno da
criança, que passa a necessitar de introjetar novos objetos de identificação.
O movimento de introjeção pode levar ao luto pela mãe biológica sobretudo
a mãe internalizada. Tal reconhecimento que pode ser acompanhado, como
defesa, da projeção maciça dos objetos internos maus, pode acarretar uma
profunda angústia na criança. As fantasias persecutórias da criança adotiva,
são geralmente, incrementadas pelos fantasmas, quase sempre maus da
família biológica (má) pode ser confundida com a figura da mãe adotiva e
resultar em ataques a esta, que precisará de esclarecimentos e de preparo
para resistir aos mesmos (VARGAS, 1998: 38).
16
Vargas, 1998, refere ainda, que o temor de outro abandono concorre também para o
desencadeamento de atitudes hostis para com os pais adotivos, numa tentativa de
proteger-se de mais uma frustração. Isso pode ser observado não só nessa fase,
15
VARGAS, M.M. Adoção Tardia: da família sonhada à família possível. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1998. p.37.
16
Ibid., p.38.
71
mas em todas as outras do processo de vinculação. O medo de uma nova rejeição
por parte da criança adotiva é constante. A criança testa freqüentemente o vínculo e
suas atitudes hostis podem significar, também uma pergunta como: "até que ponto
eu sou querido", ou, "até que ponto vocês vão me agüentar". Os ataques aos pais
possuem a mesma dimensão da violência e das rejeições sofridas pela criança.
Freud (1908), denomina este tipo de atitude de ferida narcísica, ou seja, existe na
criança rejeitada pela mãe biológica, uma dor, uma ferida incurável pela rejeição
sofrida e ao mesmo tempo um profundo ódio pelo abandono e pela figura materna.
Não é incomum, quando estas crianças atingem a maioridade, manifestarem o
desejo de procurar pela mãe biológica, querendo saber por que foi rejeitada por ela.
Esta fase pode se revelar muito destrutiva e desconcertante para os pais adotivos,
se estes não estiverem preparados para lidarem com as condutas que a
caracterizam (VARGAS, 1998).
Também existem as dificuldades escolares descritas por Woiler (1987), que se
traduzem por problemas na aprendizagem da língua portuguesa e da matemática.
Segundo esta autora, a dificuldade na alfabetização e no raciocínio matemático,
podem estar relacionados à baixa auto-estima destas crianças, ao desconhecimento
de suas origens, e a não revelação por parte dos adotantes que a criança é adotiva.
Ainda segundo Woiler (1987), crianças adotivas não se sentem donas de seus
pertences como brinquedos e outros objetos já que no abrigo tudo é socializado
e nada é de ninguém portanto, tendem a destruir o que Ihes é dado seus
brinquedos e o material escolar. A baixa auto-estima está relacionada à ferida
narcísica, e daí a falta de motivação para os estudos que exigem segurança e
atenção.
A quarta fase do processo de adoção tardia começa a partir da restauração
do narcisismo infantil secundário, que oferece elementos para a criança
construir o seu ideal de ego. É em tomo desta construção que a criança
adotiva vive (refazendo) o "romance familiar". Para a criança adotiva
fantasia tem um componente de realidade: existem mesmo outros pais, uma
vez idealizados (sem a possibilidade de confrontação), vir resgatá-Ia de
situações percebidas como negativas em suas famílias adotivas (VARGAS,
1998: 39).
17
Por outro lado, devem fazer a realidade de que foram abandonados, o que pode
17
Ibid., p.39.
72
acarretar profundas feridas ao narcisismo de tais crianças, que ficariam mais
suscetíveis em períodos críticos de seus desenvolvimentos. É nesta fase que
podemos observar os pais adotivos verbalizarem que se sentem adotados por seus
filhos, como salienta Vargas (1998).
Vargas (1998), vê na elaboração de um novo romance familiar, a resolução do
processo de identificação e construção egóica, que pode ser chamado de um novo
nascimento psíquico. Mesmo que nunca se refira à mãe biológica, a criança mantém
a representação desta, viva e atuante no seu inconsciente e, dentro de uma certa
medida, ainda segundo a autora supra citada, a elaboração do luto pela mãe
biológica seria inviável. Por outro lado, uma situação externa nova, através dos pais
adotivos, é um importante suporte para emergir uma nova realidade interna com
novas figuras parentais que podem, por estarem presentes e atuantes, ser
confrontadas pela criança.
As projeções dos pais, de acordo com as expectativas de todo o grupo familiar em
relação à criança, imprimem características ao processo de adoção tardia,
determinando, muitas vezes, o caminho que ele vai seguir. Vargas (1998), assinala
que a criança fantasiada pelos pais deve ser maleável o bastante para permitir uma
superposição com a criança, ou seja, deve haver certa flexibilidade quanto às
características imaginadas, para que a criança real possa, pouco a pouco,
desenvolver qualidades no sentido de se aproximar da criança imaginária dos pais
adotivos. Ainda entende que tanto a idade da criança como a história de vida que
antecede a sua adoção são fatores intimamente relacionados e que tem influência
decisiva no sucesso da adoção. Aponta também como fundamental a capacidade da
mãe adotiva, principalmente, para desenvolver relações afetivas de ótima qualidade,
apesar da fase de adaptação.
73
O acompanhamento realizado durante o estágio de convivência busca saber como
está se dando a adaptação entre a criança e seus novos pais, que dificuldades ou
dúvidas emergem, como a situação vivida se coaduna com as expectativas
anteriormente formuladas, como os adotantes conseguem integrar aquela criança
desconhecida à condição de filho e até mesmo pesquisar a ocorrência de algum fato
grave que implique sérios riscos ao bom prognóstico da adoção, casos em que seria
recomendável concluir pela inadequação da medida antes que seja legalmente
deferida.
Há discordâncias sobre a necessidade e até sobre a existência do período de
convivência. Os argumentos geralmente apresentados são que os adotantes sentem
muita insegurança enquanto a adoção não se concretiza, nutrindo mesmo fantasias
de que os pais biológicos possam conseguir a criança de volta; temem até sair às
ruas com a criança sem que a situação jurídica esteja plenamente definida ou ainda
receiam perderem o novo filho por não serem considerados "aptos" pelos
profissionais que realizam o acompanhamento (VARGAS, 2004).
Entretanto, a pouca compreensão sobre a validade e a importância desse período
explica, em parte, o modo negativo com que tem sido conotado. Não seria razoável
e justificável equiparar o trabalho realizado durante o estágio de convivência a uma
forma de avaliação das competências e potencialidades dos adotantes, mesmo
porque se supõe que, caso exista algum impedimento para que possam acolher uma
criança, isso já tenha sido verificado anteriormente. Se em lugar de se sentirem
fiscalizados e avaliados, os adotantes puderem entender o acompanhamento como
suporte ou respaldo, como uma escuta que possa ajudá-Ios a rever sentimentos,
fantasias, dúvidas e dificuldades surgidas com a chegada do filho e nas etapas da
interação com ele, é provável que o trabalho seja mais facilmente aceito e, em
alguns casos, até mesmo requisitado, como também é possível que a vivência da
adoção transcorra com maior tranqüilidade (VARGAS, 2004).
Alguns adotantes mostram-se assustados com a chegada da criança, mesmo
porque em alguns casos o processo transcorre de forma rápida, em menos de nove
meses, que é o tempo de uma gestação natural. Na gravidez, o período de espera
74
para o nascimento do bebê não se traduz somente em mudanças corporais e
hormonais da gestante, mas também num tempo para que os pais possam elaborar
a nova condição, planejar detalhes, gestar imaginariamente a criança e se adaptar
às mudanças decorrentes de sua vinda. Mesmo assim, nas filiações biológicas,
sabe-se que, freqüentemente, os pais não reagem como pensavam diante do
nascimento da criança. Segundo Paiva (2004), isso se dá por que o período pós-
parto se caracteriza por uma grande alteração, com a perda de um estado e
passagem para outro.
Nas adoções, o início da convivência com o bebê, a criança e/ou adolescente
também é carregado de afetos intensos e, por vezes, ambivalentes. Além disso,
nessa etapa, os pais são colocados entre a imagem do filho esperado/idealizado e a
do filho real. Na prática, esse confronto parece ainda mais evidente nos casos de
adoção de crianças maiores, em que o acompanhamento de profissionais durante o
estágio de convivência se revela, por vezes, tão necessário quanto indispensável
(PAIVA, 2004).
Nas adoções de adolescentes ou de crianças maiores podem existir componentes
que demandam acompanhamento intensivo por parte dos profissionais. As crianças
de mais idade, em geral, chegam ansiosas, revelam necessidade de serem
acolhidas afetivamente, mas, ao mesmo tempo, podem expressar o temor de não
serem aceitas. Algumas chegam a atuar seus sentimentos e necessidades por meio
de condutas regressivas, que requisitam compensar as lacunas e falhas ocorridas
em épocas anteriores. Outras vezes, podem assumir uma postura desafiadora e
agressiva como forma de testar se os sentimentos dos pais com relação a ela são
verdadeiros e consistentes e se não estará a mercê de novo abandono. Assim,
deixam para não serem deixadas e destroem para não terem o que perder. Alguns
adotantes revelam dificuldades para compreender e aceitar tais sentimentos e
manifestações, chegando a interpretar a recusa do envolvimento afetivo da criança
ou adolescente reação natural a seus medos como expressão de seu não-
desejo de ser adotado. Ao sentirem-se impotentes diante da intensa demanda
afetiva da criança, os novos pais podem cogitar a alternativa de sua devolução à
autoridade judiciária, o que certamente viria a perpetuar a repetir o ciclo de
abandono (PAIVA 2004).
75
Por essas e outras razões, o trabalho realizado por ocasião do estágio de
convivência tem se revelado muito importante. Em algumas conferências, Dolto
(1998), chegou a afirmar que somente depois da chegada da criança é que se pode
dizer verdadeiramente sobre o desejo dos pais, pois nesse momento é possível
analisar o surgimento das emoções que essa vinda ocasiona e como se sentem eles
diante do fato de estarem ocupando as posições de pai e mãe. A autora alerta que
esse processo não deve acontecer de forma brusca para a criança e que o
deferimento da adoção nunca deve ocorrer antes de se saber se está conseguindo
se adaptar à nova família e antes que faça um desligamento gradual do meio no
qual vivia.
Paiva (2004), afirma que,
essa separação de seu meio, de seus amiguinhos, é uma violação, um
rapto, uma violência abominável. Deve-se proceder introduzindo mediações
e etapas (...). É preciso que a relação se mantenha por um certo tempo; não
convém separar-se de tudo e fazer com que se estivesse acabado. A
adoção não é um nascimento, nem o meio de acolhimento, uma placenta. A
placenta só existe uma vez, ao passo que a vida depois do nascimento é
feita incessantemente de mediações na linguagem (PAIVA, 2004: 141).
18
Paiva (2004), reitera, que adotar uma criança significa, antes de qualquer coisa,
possibilitar que ela seja feliz como ela mesma tem vontade de ser. Para ela, a família
que adota funciona como uma nova fonte de referência que, eventualmente,
proporciona à criança uma herança e vínculos afetivos consistentes; contudo, é
preciso que os novos pais possibilitem ao filho ter acesso a uma rede social mais
ampla e preservar, se for de seu interesse, os contatos anteriores, evitando a
exclusividade nessa nova relação. Os novos pais podem ou não estar preparados
para compreender e lidar com as angústias, fantasias, medos e hesitações
manifestadas por seus filhos, assim como acontece a qualquer pai e mãe. A
diferença é que terão ainda de enfrentar suas imperfeições e o sentimento de
incompletude e, na medida do possível, elaborar perdas, lutos, dúvidas quanto às
suas capacidades, temores relacionados ao passado desconhecido da criança e
empreender um longo percurso para serem também adotados pelos seus novos
filhos.
18
PAIVA, L.D. Adoção: significados e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, p. 141.
76
3.3 Uma Vivência que deu Certo
Apresentaremos a seguir uma trajetória de duas crianças e seus adotantes em que o
preparo destes foi fundamental na concretização da adoção P., sexo feminino, cor
branca, sete anos de idade. A criança foi abandonada pela mãe, quando recém-
nascida. Foi deixada na companhia da avó materna. A mãe, adolescente, já era
acompanhada pela Vara da Infância e Juventude do Fórum de Barueri, porque já
havia entregue outro filho em adoção. P., nasceu de um relacionamento passageiro.
A mãe se prostituía para ajudar em casa. Um dia saiu e nunca mais voltou.
Desconfia-se que foi viver entre as prostitutas da Região da Luz em São Paulo. A
avó materna que já criava outros netos não teve condições de permanecer com P. e
a entregou ao abrigo. P., foi uma das muitas crianças que cresceram em abrigos.
Seu desenvolvimento foi típico de uma criança institucionalizada. Não sorria, vivia
com medo e chorando, evitava qualquer contato com pessoas desconhecidas. Seu
mundo era composto pelo abrigo. Foi por duas vezes apresentada aos adotantes,
mas nem houve o estágio de convivência, pois a criança se recusava
terminantemente a estabelecer qualquer vínculo. O único vínculo que a criança
estabeleceu foi com D., sexo masculino, cor parda, seis anos de idade, que tinha
uma história de vida semelhante a P. Ambos eram tidos dentro do abrigo como
inseparáveis, como irmãos fraternos. Todas às vezes que íamos ao abrigo,
observávamos as crianças sempre juntas. Davam a impressão que precisariam ser
adotados conjuntamente. Após pesquisas junto ao cadastro de adoção,
encontramos um casal interessado no perfil de P. O casal R., sexo masculino, cor
branca, quarenta anos de idade, motorista, casado há 20 anos com R., sexo
feminino, cor branca, quarenta anos de idade, do lar foram apresentados à criança
com certo receio, que mais uma vez não desse certo. Entretanto, os adotantes se
mostraram preparados desde o início. Os adotantes ingressaram no cadastro em
2001, porque nunca conseguiram ter filhos. Já estavam casados há muito tempo e
sentiam falta de uma criança entre eles. Não faziam questão de adotar uma criança
recém-nascida. Gostariam apenas que fosse uma menina. Já freqüentavam um
Grupo de Apoio à Adoção e fizeram terapia de casal. Não ficavam se culpando por
não terem filhos biológicos, tinham a esperança de um dia exercer a maternidade e a
paternidade. Quando conheceram P., a criança foi resistente. Procuraram conhecer
77
logo de início a história da criança, mas não criaram uma áurea de mistério em torno
dela. Aos poucos foram conquistando a criança. “Você será muito querida por nós”,
é o que eles diziam à criança nas visitas. Aos poucos a criança foi cedendo até ficar
em definitivo com eles. No estágio de convivência, não cortaram os vínculos da
criança com o abrigo. P., pedia para ser levada para visitar o irmãozinho. Os
adotantes também levaram a criança para acompanhamento terapêutico. Sempre se
mostravam atentos a todas as necessidades da criança. Também sabiam colocar
limites. Em função das constantes visitas feitas a D. o casal acabou criando um laço
afetivo com ele. Foi quando nos procuraram com a proposta de também adotarem
D.. O estágio de convivência com D. transcorreu naturalmente sem incidentes. P.
colaborou muito para que os vínculos entre o irmão e os adotantes se fortalecessem.
Houve sim, momentos difíceis, mas os adotantes jamais ventilaram a possibilidade
de devolverem as crianças ao abrigo. Foi uma adoção tida como bem sucedida.
A trajetória dos sujeitos apresentada acima, veio com a intenção de mostrar que o
preparo dos adotantes, o projeto de adoção destes foram fundamentais para que
não houvesse o retorno das crianças ao abrigo. Os adotantes se predispuseram a
seguir as orientações e mais importante, já estavam se preparando há muito tempo
para adotar uma criança. Já haviam elaborado um projeto de adoção e reservaram
em seu imaginário um lugar para a criança. Souberam entender os comportamentos
manifestados pelas crianças, não tentaram modifica-las. Aceitaram as crianças tais
como eram.
78
CONCLUSÃO
Muitas questões surgiram em nossa mente durante a elaboração desta dissertação.
Nossa pretensão neste estudo foi responder a produção de saberes profissionais na
preparação dos adotantes para a adoção tardia.
Percorremos um caminho que foi nos mostrando o fenômeno da adoção e suas
implicações tomando como fio condutor à produção de saberes profissionais do
assistente social construídos no cotidiano de seu trabalho.
Para tanto, fomos abordando o fenômeno da adoção, especificamente no Brasil e
como determina o ECA. Podemos observar que se trata de um fenômeno de difícil
concretização, uma vez que explica não só a história de vida do adotado, de sua
família biológica, bem como o processo de adoção na sua concretude. Implica ainda,
as condições físicas, mentais e culturais dos adotantes.
79
Esse intrincado processo que ocorre no nosso cotidiano do trabalho forense,
possibilita uma reflexão sobre a produção de saberes profissionais que podem
contribuir concretamente para a construção de nosso saber profissional.
A pesquisa possibilitou-nos conhecer de forma sistematizada o intrincado processo
de adoção. Processo tal, que abrange a história de vida que sofre interferência da
institucionalização e que se reflete no fazer profissional dos assistentes sociais.
Esse complexo movimento exige do profissional competência, lucidez, sensibilidade
além do conhecimento sobre a problemática.
Essa experiência construída coletivamente pelos profissionais da Vara da Infância e
Juventude propicia a construção e a produção de saberes. A importância dessa
construção no processo de preparação dos adotantes para o recebimento de uma
criança, que chamamos aqui de adoção tardia, uma vez que não se trata de recém-
nascido, mas de crianças que trazem uma bagagem de sofrimento e abandono.
Procuramos neste trabalho, sistematizar processos de adoção tardia que denotam a
produção de saberes construídos nesse cotidiano de sofrimento e de esperança.
Vimos às dificuldades enfrentadas tanto pelos adotantes como pelas crianças
adotadas. Esperamos que essa reflexão possa contribuir para que o cotidiano do
trabalho do profissional se enriqueça em prol das crianças.
Uma das questões que consideramos significativas: a importância da família no
desenvolvimento do indivíduo. A criança que por algum motivo sofre a separação de
sua família – da mãe principalmente – não tem seu desenvolvimento adequado. A
separação é danosa para a formação da criança. Toda sua vida afetiva estará
comprometida. Aqui estamos nos referindo àquela mãe que efetivamente foi mãe.
Mas, nossa experiência tem mostrado, que mesmo mães ausentes, mães que
maltratam, mães que abandonam deixam marcas permanentes no desenvolvimento
da criança. Percebemos nos adotantes pesquisados aqueles que desempenharam o
papel materno e paterno e, aqueles que foram somente provedores. Estar disponível
para exercer a maternidade e a paternidade não é para todos. Como diz Mota
(2004), desejar ter filhos é uma coisa, tê-los é outra bem diferente. Discute-se muito
80
que se deve preparar os adotantes para a adoção, mas não se discute o preparo de
pais biológicos. Por que só os pais adotivos é que devem provar que podem ser
bons pais? Enquanto que são os pais biológicos os que mais abandonam e
maltratam seus filhos?
Outro aspecto a ser considerado, é que nossa experiência mostra, que apesar da
literatura pesquisa afirmar que a adoção tardia é quando a criança tem idade
superior a dois anos, entendemos que não é verdadeira. Toda adoção é tardia.
Mesmo aquela cuja criança adotada é recém-nascida. No momento que nasceu já é
tardia. Ninguém adota uma criança na barriga da mãe, antes dela nascer. Um
recém-nascido, que também foi rejeitado e abandonado quando estava na barriga
da mãe, pode apresentar no futuro, as mesmas características de uma criança
adotada tardiamente. Um adotante que adota uma criança recém-nascida, não está
livre de passar pelas experiências de quem adota tardiamente.
Toda criança é passível de ser adotada. A adoção é mais que uma situação, é um
sentimento. Existem filhos biológicos que são órfãos de pais vivos. Nem todos os
pais adotam seus filhos. A adoção não se refere a aspectos biológicos, é uma
criação humana que surge da necessidade de amar, de dar e receber afeto.
No Brasil, lamentavelmente, não existe uma cultura de adoção. Não existem
políticas públicas de incentivo à adoção. Por outro lado, algumas pessoas, ainda
consideram a adoção como primeiro recurso de família substituta. Ser filho de pais
pobres é estar condenado à institucionalização e com sorte à adoção. Não se
trabalha a família natural para que ela possa reaver seus filhos. É mais fácil buscar a
via da adoção. As medidas de proteção defendidas pelo ECA, não são devidamente
utilizadas pelos operadores do direito. Ser um pai ou uma mãe pobre, também
significa a possibilidade de um dia serem destituídos do poder familiar, por serem
culpados por serem pobres. Ficamos indignados com a postura de conselheiros
tutelares e profissionais das Varas, que abrigam crianças sem a menor necessidade,
porque seus pais são pobres. Como nos diz Rizzini (2003), no Brasil se instituiu uma
verdadeira cultura da institucionalização.
81
Defendemos a proposta que a criança deve ser mantida na sua família custe o que
custar. Se não for possível mantê-la em sua família, não utilizar o recurso do
abrigamento, utilizar família acolhedora e o apadrinhamento. Existem municípios do
Estado de São Paulo, cujas prefeituras desenvolvem programas de famílias
acolhedoras, pois entendem que é melhor manter uma criança em família do que em
abrigo. Estar em abrigo, significa estar em situação de risco. Os abrigos ainda são
necessários, mas defendê-los como único recurso é crime. Ainda existem aqueles
que acham que o abrigo deve ser um local de acolhimento, que deve se assemelhar
o máximo possível ao lar da criança. Mas a única coisa que os abrigos oferecem
mesmo, é o danone, o bolo e às vezes um chocolate. Os pais pobres não podem
oferecer o danone. Mas o abrigo não substitui a família. Na Casa Abrigo de Barueri,
não se comemoram os aniversários das crianças. As crianças não sabem informar
qual é data do seu aniversário, não sabem nem a data do nascimento. Perderam
toda a noção de realidade. Para aquelas crianças cuja adoção é um sonho distante,
seria interessante utilizar o apadrinhamento. É um meio da criança manter uma
espécie de vínculo com um adulto de fora do abrigo, que poderá auxilia-lo no dia em
que sair da instituição.
O abrigo é medida protetiva, mas em um aspecto pouco conhecido, que muitas
crianças criam laços com funcionários, entre elas mesmas e com os voluntários. É
um espaço rico de experiências de vida e para a vida, e é um espaço de construção
de saberes.
82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Domingos. No Bico da Cegonha. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
ANZIEU, Didier. Eu-Pele. Trad. Rosaly Mahfuz. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1989.
ARIÈS, Philipe. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed.
Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
BAPTISTA, Myriam Veras. A Investigação em Serviço Social. Lisboa-São Paulo:
Veras, 2001.
BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2001.
BOJUNGA, Cláudio. JK o Artista do Impossível. São Paulo: Objetiva, 2005.
BOWLBY, John. Apego, Separação e Perda. Trad. Leonidas Hegenberg. 3.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
______, Formação e Rompimento dos Laços Afetivos. Trad. Leonidas Hegenberg.
5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
83
CARVALHO, Sônia Regina. Primeiro Guia de Adoção de Crianças e Adolescentes
do Brasil. São Paulo: Winners, 2000.
CECIF. Dialogando com Abrigos. São Paulo: CECIF, 2004.
CFESS. O Estudo Social em Perícias, Laudos e Pareceres Técnicos. São Paulo:
Cortez, 2004.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. 10.ed. São Paulo: Cortez, 2003.
CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário Etimológico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1991.
CURY, Munir (Org). O Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3.ed. São
Paulo: Malheiros, 1996.
DOLTO, Françoise. Destinos de Crianças. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 1981.
DUCATTI, Maria Tita. A Tessitura Inconsciente da Adoção. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2003.
______, Diálogos sobre Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
ECO, Humberto. Como se faz Uma Tese. Trad. Gilson Cardoso. 1.ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
FÁVERO, Eunice Terezinha. Serviço Social: práticas judiciárias e poder. São Paulo:
NCA, 1996.
______, Rompimentos dos Vínculos do Pátrio Poder. São Paulo: Véras, 2001.
FONSECA, Cláudia. Caminhos da Adoção. 2.ed. São Paulo: 2002.
FREUD, Sigmund. Romances Familiares. Trad. Maria Aparecida M. Rego. Rio de
Janeiro: Imago, 1996. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol. XI.
GRANATO, Eunice Ferreira Rodrigues. Adoção: doutrina e prática. Curitiba: Juruá,
2006.
GUARÁ, Isa Maria Ferreira Rosa. Trabalhando Abrigos. São Paulo: IEE/PUC-SP,
1998.
GUElROS, Dalva Azevedo. Adoção por Consentimento da Família de Origem. 2005.
Dissertação (Doutorado). Pontifície Universidade Católica, São Paulo, 2005.
84
GUIRADO, Marlene. Instituição e Relações Afetivas. São Paulo: Summus, 1986.
HAMAD, Nazir. A Criança Adotiva e suas Famílias. Trad. Sandra Figueiras. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 2002.
IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na Contemporaneidade. São Paulo:
Cortez, 2005.
JORGE, Maria Raquel Tolosa. O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário. São
Paulo: Cortez, 2005
LEVINZON, Gina Khafif. Adoção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
______. A Criança Adotiva na Psicoterapia Psicanalítica. São Paulo:
Escuta, 2000.
MALDONADO, Maria Tereza. Os Caminhos do Coração. 5.ed. São Paulo, Saraiva:
2001.
MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo:
Hucitec, 1998.
MARTINELLI, Maria Lúcia (Org.). O Uno e o Múltiplo nas Relações entre as Áreas
do Saber. São Paulo: Cortez, 1995
MARTINS, José de Souza. O Massacre dos Inocentes. São Paulo: Hucitec, 1991.
MOTA, Maria Antonieta Pisano. Mães Abandonadas: a entrega de um filho em
Adoção. São Paulo: Cortez, 2001.
NEPI. O Uso de Abordagens Qualitativas na Pesquisa em Serviço Social. São Paulo:
PUC, 1994.
NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2003.
PAlVA, Leila Dutra. Adoção: significados e possibilidades. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004.
PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
2004.
RIZZINI, Irene. O Século Perdido. Rio de Janeiro: Universidade Santa Úrsula, 1997.
______. A Institucionalização de Crianças no Brasil. Rio de Janeiro: Loyola, 2004.
85
RODRIGUES, Maria Lúcia. O Serviço Social e a Abordagem Interdisciplinar. In:
MARTINELLI, Maria Lúcia (Org.). O uno e o múltiplo entre as áreas do saber. São
Paulo: Cortez, 2001.
ROJAS, Juana Eugenia. O Indizível e o Dizível na História Oral. In: MARTINELLI,
Maria Lúcia (Org.). O uso de abordagens qualitativas na pesquisa em Serviço Social.
São Paulo: PUC, NEPI, maio/2004.
SARTI, Cíntia Anderson. A Família como Espelho. São Paulo: Cortez, 2001.
SILVA, José Luiz Mônaco. A Família Substituta no Estatuto da Criança e do
Adolescente. São Paulo: Saraiva, 1998.
SILVElRA, Ana Maria. Adoção de Crianças Negras. São Paulo: Véras, 2005.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 22.ed. São Paulo:
Cortez, 2004.
SZNICK, Valdir. Adoção. 3.ed. São Paulo: Universitária, 1999.
THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros. Trad. Waltencir
Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
TRIVINÕS, Augusto Nibaldo. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais. São
Paulo: Atlas, 1990.
VARGAS, Marlizete Maldonado. Adoção tardia: da família sonhada à família
possível. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
YASBEK, Maria Carmelita. Classes Subalternas e Assistência Social. São Paulo:
Cortez, 1993.
WANDERLEY, Luis Eduardo. Desigualdade e Questão Social. 2.ed. São Paulo:
Educ, 1998.
WEBER, Lídia Natalia Dobrianskyj. Laços de Ternura, Pesquisas e Histórias de
Adoção. 3.ed. Curitiba: Juruá, 2004.
______. Aspectos Psicológicos da Adoção. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2004.
______. Pais e Filhos por Adoção no Brasil. Curitiba: Juruá, 2004.
WINNICOTT, D.W. Privação e Delinqüência. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
86
______. A Família e o Desenvolvimento Individual. Trad. Marcelo Cepolla. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
WOILLER, E.A.A.W. A Condição Afetivo-Emocional da Criança Adotada:
repercussões na aprendizagem escolar. 1987. Dissertação (Mestrado). Pontifície
Universidade Católica, São Paulo, 1987.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo