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Cláudio Beserra de Vasconcelos
A PRESERVAÇÃO DO LEGISLATIVO PELO
REGIME MILITAR BRASILEIRO
Ficção legalista ou necessidade de legitimação?
(1964-1968)
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio de Janeiro
2004
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A PRESERVAÇÃO DO LEGISLATIVO PELO
REGIME MILITAR BRASILEIRO
Ficção legalista ou necessidade de legitimação?
(1964-1968)
Cláudio Beserra de Vasconcelos
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Social
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre em
História.
Orientador: Dr. Renato Luís do Couto
Neto e Lemos
Rio de Janeiro
2004
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i
A PRESERVAÇÃO DO LEGISLATIVO PELO
REGIME MILITAR BRASILEIRO
Ficção legalista ou necessidade de legitimação?
(1964-1968)
Cláudio Beserra de Vasconcelos
Dissertação submetida ao Corpo Docente do Departamento de História do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em
História Social.
Aprovada por:
________________________________________________
Prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos – Orientador
________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fico
________________________________________________
Prof. Dr. Celso Castro
Rio de Janeiro
2004
ii
Vasconcelos, Cláudio Beserra de.
A Preservação do Legislativo pelo Regime Militar
Brasileiro: ficção legalista ou necessidade de legitimação?
(1964-1968) / Cláudio Beserra de Vasconcelos. – Rio de
Janeiro, 2004.
334 p.
Dissertação (Mestrado em História Social) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais – PPGHIS, 2004.
Orientador: Renato Luís do Couto Neto e Lemos
1. Ditadura militar e legitimidade. 2. Ditadura militar e
Legislativo. 3. Ditadura militar e processo político –
Dissertação. I. Lemos, Renato Luís do Couto Neto e
(Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.
Pós-Graduação em História Social. III. Título.
iii
Agradecimentos
Sou especialmente grato ao Professor Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos
pela orientação a este trabalho. Com ele divido todos os possíveis méritos
apresentados. A ele, porém, não cabe qualquer responsabilidade pelos equívocos,
omissões e insuficiências que certamente ocorreram. Todos são de minha inteira
responsabilidade.
Aos professores Carlos Fico e Celso Castro devo sugestões que contribuíram na
orientação da pesquisa. Se não segui todas por completo, serviram, contudo, para que
eu procurasse fazer uma melhor defesa dos meus pontos-de-vista.
Em termos materiais, agradeço à Universidade Federal do Rio de Janeiro e ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pela bolsa
de estudos concedida para a realização do Mestrado.
iv
Resumo
VASCONCELOS, Cláudio Beserra de. A Preservação do Legislativo pelo Regime
Militar Brasileiro: ficção legalista ou necessidade de legitimação? (1964-1968).
Orientador: Renato Luís do Couto Neto e Lemos. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS;
CNPq/UFRJ, 2004. Dissertação (Mestrado em História Social).
A pesquisa discute o problema da legitimidade no regime militar brasileiro entre
1964 e 1968, com ênfase na preservação de instituições democráticas.
Especificamente, analisa a relação entre Executivo e Legislativo, e a idéia de que a
preservação deste indicou um compromisso com o regime democrático.
Parte do pressuposto de que qualquer regime político, seja ele democrático ou
autoritário, necessita construir bases de legitimidade para o estabelecimento e
preservação do seu projeto de dominação. Desse modo, teria que buscar o
consentimento de parcelas significativas da sociedade. No caso brasileiro, o regime
militar teria procurado aceitação junto às camadas médias e alta da sociedade.
Sustentando a tese de que a democracia era a formação discursiva dominante no
imaginário político e social do Brasil dos anos 1960, esta pesquisa defende a hipótese
de que, para legitimar-se, o regime teria optado por preservar princípios e instituições
típicos das democracias-liberais. Entre os quais, o Poder Legislativo em
funcionamento e em “diálogo” com o Executivo.
v
Abstract
VASCONCELOS, Cláudio Beserra de. A Preservação do Legislativo pelo Regime
Militar Brasileiro: ficção legalista ou necessidade de legitimação? (1964-1968).
Orientador: Renato Luís do Couto Neto e Lemos. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS;
CNPq/UFRJ, 2004. Dissertação (Mestrado em História Social).
The research discusses the problem of the legitimacy in the Brazilian military
regime between 1964 and 1968, with emphasis in the democratic institution’s
preservation. Specifically, it analyze the relation between Executive and Legislative,
and the idea that the preservation of them indicated a commitment with the
democratic regime.
Part of purpose that any political regime, being it democratic or authoritarian,
needs to build legitimacy bases for the establishment and preservation of its
dominance project. Thus, it would have to seek consent in the significant bits of the
society. In the Brazilian case, the military regime would have demanded acceptance
close to media and high class of the society. Sustaining the thesis that the democracy
was the dominant discursive formation in Brazil's political and social imaginary in the
1960's, this research defends the hypothesis that, to legitimate, the regime would have
opted for preserving principles and institutions typical of the liberal-democracies.
Among which, the Legislative Power in operation and in “dialog” with the Executive.
vi
Sumário
Introdução
1
Capítulo I – O discurso da democracia 45
1. A retórica e a democracia 47
1.1. A simulação de um sujeito coletivo 47
1.2. Valores coletivos 54
1.3. Discurso Bipolar (o Bem vs o Mal) 66
1.4. As construções dos sujeitos 69
2. A democracia como princípio 89
Capítulo II – Os primeiros passos: algo além da força 109
Capítulo III – Um longo outubro: o regime endurece 156
Capítulo IV – Fins do primeiro mandato: definindo-se caminhos 193
Capítulo V – Dia dos Cegos: o fracasso do sistema híbrido 253
Conclusão
315
Bibliografia
324
1
Introdução
Ao se propor um trabalho de reflexão sobre a questão do processo de
legitimação do regime militar brasileiro, tomando por foco de análise a relação
Executivo-Legislativo, através do tratamento dado pelos editoriais de jornais da
grande imprensa, torna-se necessário, primeiro, esclarecer alguns pontos.
Antes, ainda, é preciso classificar o regime militar brasileiro.
Mário Stoppino, citando a tipologia dos regimes autoritários contemporâneos
proposta pelo sociólogo Juan Linz, classifica o regime militar brasileiro como um
“regime autoritário burocrático militar”
1
. Esses regimes, segundo Stoppino,
(...) são caracterizados por uma coalizão chefiada por oficiais e burocratas e
por um baixo grau de participação política. Falta uma ideologia e um
partido de massa; existe freqüentemente um partido único, que tende a
restringir a participação; às vezes existe pluralismo político, mas sem
disputa eleitoral livre. (...).
2
De modo geral, podemos classificar os regimes e instituições autoritários como
antidemocráticos. São regimes nos quais o Parlamento e as eleições populares não
existem ou são meramente figurativos, predominando o poder Executivo; onde há
uma ausência de liberdade dos subsistemas políticos (partidos, sindicatos e grupos de
pressão), que têm as suas autonomias destruídas ou toleradas enquanto não
perturbarem a posição de poder da elite governante; onde o pluralismo político e a
oposição são suprimidos ou, ao menos, reduzidos; e onde a penetração-mobilização da
sociedade é limitada. Face a estas características, as instituições representativas (o
Poder Legislativo, por exemplo) são relegadas a uma posição secundária e/ou
esvaziadas e, até mesmo, eliminadas.
3
1
STOPPINO, Mário. “Autoritarismo”. In: BOBBIO, Norberto et alii (org.s). Dicionário de Política.
12.ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 102.
2
Ibidem.
3
Idem, p. 100.
2
O regime militar brasileiro apresentou tais características, o que nos leva a crer
que ele pode ser considerado como um regime autoritário.
Caracterizado o regime, surge, então, uma primeira questão: por que um regime
de cunho autoritário, possuidor do monopólio do uso da força, necessitaria se
legitimar para manter o seu domínio? Esta questão que, a um primeiro olhar pode
parecer um contra-senso, na realidade é um ponto crucial dentro da estratégia de
implantação de um novo sistema de dominação. R. Bendix, citado por Robert
Bierstedt, ao analisar a obra de Max Weber, afirma que
(...). Como todos os que desfrutam de vantagens sobre seus semelhantes, os
homens no poder querem ver sua posição como ‘legítima’ e suas vantagens
como ‘merecidas’, e interpretar a subordinação da maioria como ‘justo
destino’ dos subordinados.
4
A legitimidade, portanto, não é um luxo, é uma necessidade de qualquer tipo de
Estado, seja ele democrático ou mesmo autoritário.
No entanto, o próprio Max Weber afirmara que “só podemos definir o Estado
moderno sociologicamente em termos dos meios específicos peculiares a ele, como
peculiares a toda associação política, ou seja, o uso da força física.
5
. A força não
seria o meio normal, nem o único, mas a peculiaridade é que ele seria um meio
específico do Estado. Ainda de acordo com Weber,
(...). Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o
monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado
território. (...) o direito de usar a força física é atribuído a outras instituições
ou pessoas apenas na medida em que o Estado o permite. O Estado é
considerado como a única fonte do “direito” de usar a violência. (...).
6
Desse modo, seria esse monopólio que manteria a relação de homens
dominando homens. Restaria saber as razões que levariam os dominados a obedecer à
autoridade alegada pelos detentores do poder.
4
BENDIX, R. Max Weber: na intelectual portrait. London: Heinemann, 1960, p. 297. Citado por
BIERSTEDT, Robert. “Legitimidade”. In: SILVA, Benedicto (coord.). Dicionário de Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1986, p. 675. Grifos do autor.
5
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Trad.: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Guanabara, s.d., p.
98. Grifo do autor.
6
Ibidem. Grifo do autor.
3
Nesse sentido, Weber formulou três tipos ideais de legitimação básica do
domínio
7
: a tradicional, fundamentada no respeito às instituições consagradas pela
tradição e às pessoas que detêm o poder conferido pela tradição; a carismática,
fundamentada na ligação à pessoa do líder; e a racional-legal, típica do mundo
moderno e que reside no fato do poder ser definido por leis e exercido de
conformidade com elas. Segundo Weber, a forma mais corrente de legitimidade seria
a crença na legalidade, ou seja, a submissão às leis
8
.
Entretanto, mesmo a dominação de tipo racional-legal se mostra incompatível
com o Estado contemporâneo. As profundas transformações na estrutura material do
Estado a partir de fins do século XIX e a consolidação de uma sociedade complexa
alteraram a forma jurídica do Estado, os processos de legitimação e a estrutura da
administração. A nova racionalidade administrativa surgida necessita de uma
legitimação que não é mais a legal, mas a sublegal, baseada em processos empíricos
de busca de consenso da decisão política
9
.
De qualquer forma, toda sociedade na história precisou de mais do que apenas
de instrumentos de coerção; precisou de instrumentos de persuasão e de formação
ético-moral (da criação de opinião, costumes e hábitos) adequados à realização de
determinado projeto estratégico vitorioso. Portanto, é o consentimento e não a força a
base da ordem social, a base da dominação nas sociedades contemporâneas. É o
consenso que, contribuindo para a reprodução da ordem social, legitima, enfim, a
dominação de uma classe sobre outra. Assim, quanto maior o consenso, maior a
capacidade de direção política sobre a sociedade.
7
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 5.ª ed. Trad.:
Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, vol. I, 1991, p.
139-161.
8
Idem, p. 23.
9
Cf. GOZZI, Gustavo. “O Estado Contemporâneo”. In: BOBBIO, Norberto et alii (org.s). op. cit., p.
408.
4
Não se pretende, contudo, ignorar o papel da força, mas destacar o papel da
legitimação “sublegal” na conquista e na construção do Estado em tais sociedades.
Sem ela, o domínio não se sustentaria por um longo tempo. De qualquer forma, há
que ficar claro que a legitimidade é uma situação nunca plenamente concretizada na
história, a não ser como aspiração
10
.
No que se refere propriamente ao regime militar brasileiro, há algumas
particularidades que o distinguem dos registrados nos demais países latino-
americanos. Para Thomas Skidmore, havia uma “propensão dos militares brasileiros
para uma legitimidade formal” e um desejo “de estarem munidos de uma justificativa
legal para a afirmação de sua autoridade arbitrária”
11
. Alfred Stepan
12
, por sua vez,
afirma que os militares brasileiros são os mais “constitucionais” se comparados aos
dos demais países latinos. Para o autor, o movimento/regime dos militares brasileiros
não poderia se transformar em uma quartelada. O Brasil não poderia vir a se tornar
uma “republiqueta latina”. O regime brasileiro não poderia se tornar uma ditadura
pessoal – como a que posteriormente ocorreu com o General Pinochet, no Chile –,
deveria ser institucional e “aceito” como uma solução viável e legítima para os nossos
problemas. Mas, como foi dito, legitimidade não se impõe, depende de um consenso
– ao menos em parte, manipulado – de uma parcela significativa da sociedade com
relação ao regime.
Nos momentos que antecederam o movimento militar de 1964, houve uma
intensa campanha que visava questionar a legitimidade do governo João Goulart
13
.
Ao mesmo tempo, foi “construída” a idéia de que caberia aos militares “salvar” o país
10
Cf. LEVI, Lucio. “Legitimidade”. In: BOBBIO, Norberto et alii (org.s). op. cit., p. 679.
11
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). 7. ª ed. Trad.: Mário Salviano
Silva (org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 170.
12
STEPAN, Alfred C. Os Militares na Política. Trad.: Ítalo Tronca. Rio de Janeiro: Artenova, 1975,
p. 82.
13
Idem, p. 72-92.
5
do “abismo” no qual estávamos afundando. Mas a legitimidade da ação militar não
significava legitimidade para a instalação de um regime militar.
Como é sabido, a frente civil-militar que depôs o presidente João Goulart não
era homogênea e, uma vez no poder, dividiu-se em face de questões cruciais relativas
ao estabelecimento da nova ordem. A afirmação da natureza democrática do regime
era, certamente, um dos principais divisores de água entre as correntes militares que
passaram a disputar a primazia na condução do novo regime. “Moderados”, “linhas-
duras” e “nacionalistas radicais”
14
divergiam em relação ao quantum de democracia a
ser preservado da ordem anterior, bem como quanto ao cronograma de devolução do
poder aos civis. Enquanto predominou a corrente “moderada” ou “castelista”,
prevaleceu um projeto político dualista, em que as instituições do período
democrático coexistiram com o aparato institucional progressivamente montado para
viabilizar a implantação da ditadura militar no país. Neste quadro, os novos donos do
poder investiram considerável energia política na obtenção do assentimento de
parcelas expressivas da sociedade para seu projeto de dominação e reforma
institucional.
Quando os conspiradores questionaram a legitimidade da política de João
Goulart, estavam, ao mesmo tempo, buscando colocar a ação militar como legítima;
quando passaram a questionar a capacidade civil de “salvar” o país, o governo militar
se mostrava como solução viável; e quando o seu agir (do governo militar) se
“apresentava” como orientado e o mais adequado a manter aspectos básicos da vida
política, que estariam em vias de “desintegração”, ele se aproximou da legitimação.
Portanto, dentro de uma estratégia de implantar um novo sistema de dominação,
tornava-se necessária a busca da legitimação. Para tanto, determinados valores
democráticos foram mantidos durante a implantação de um aparato repressivo. Entre
eles, o Legislativo.
6
Sendo o regime militar brasileiro autoritário e, portanto, antidemocrático, a
manutenção de um dos pilares da democracia, que é o Poder Legislativo, em
funcionamento, mesmo limitado, e em “diálogo” com o Executivo
15
poderia ser
considerada, a princípio, paradoxal. Eli Diniz, menciona que o regime militar
(...) forneceu elementos para a consolidação de uma cultura política
deslegitimadora da ação dos partidos e do Congresso na promoção do
desenvolvimento. Retomou-se [no período 1964-1985] a tendência,
impulsionada pelo pensamento autoritário hegemônico nos anos 30, a
idealizar o Executivo enquanto agente das transformações necessárias à
modernização do país. Assim, a idéia de reforma e de mudança seria
associada ao modelo de Executivo forte, sendo o Legislativo, ao contrário,
percebido como força aliada ao atraso e à defesa dos interesses
tradicionais.
16
Concordo com a idéia de Diniz de que o Legislativo perdeu força. No entanto,
seu papel não pode ser ignorado. Fosse assim, o Executivo não teria submetido
importantes questões à apreciação do Legislativo, não teria havido o “diálogo” entre
estes dois poderes.
Lúcia Klein
17
, por sua vez, constata que o regime militar atribuiu ao Legislativo
a função de legitimar as iniciativas do Executivo, mas não discute por que nem como
essa relação entre os dois poderes se dá na dinâmica do processo político no período
em questão.
Já Maria Aparecida de Aquino
18
percebe a insistência dos dirigentes do regime
militar, regime autoritário, em caracterizá-lo como democrático. Contudo, não me
parece que ela responda a esta questão. Talvez esta não fosse a sua preocupação.
14
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, cap. VIII.
15
Existiram diversos conflitos e negociações políticas entre estes dois poderes, durante o período em
questão, que serão analisados ao longo dos capítulos II ao V.
16
DINIZ, Eli. “Empresariado, regime autoritário e modernização capitalista: 1964-85”. In:
D'ARAÚJO, M.ª. Celina et alii (org.s). Vinte e um anos de regime militar: balanços e perspectivas.
Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 201.
17
KLEIN, Lúcia. “Brasil pós-64: a nova ordem legal e a redefinição das bases de legitimidade”. In:
KLEIN, Lúcia; FIGUEIREDO, Marcus. Legitimidade e Coação no Brasil Pós-64. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1978, p. 17-103.
18
AQUINO, Maria Aparecida de. “A especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e
exercício empírico”. In: REIS F.º., Daniel Aarão (org.). Intelectuais, História e Política: séculos XIX
e XX. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2000, p. 271-289.
7
A proposta deste trabalho passa exatamente pela tentativa de respondê-la.
Nesse sentido, adota-se a ótica de que, para a implantação de um novo sistema de
dominação em uma sociedade relativamente complexa como a brasileira, seria preciso
buscar uma legitimação junto a determinadas parcelas da sociedade. Por isso, o
regime não só reivindicou um perfil democrático, como, de fato, adotou algumas
medidas congruentes com isso, e não buscou impor-se exclusivamente pela força. O
Legislativo aberto é um exemplo de valor democrático-liberal preservado, na busca
por legitimação por parte do regime militar.
Um Estado liberal pressupõe a proteção das liberdades individuais, igualdade e
a limitação do poder do governo através de uma lei, resultante de um processo político
legitimado pelo conjunto da sociedade. No Brasil desenvolveu-se um liberalismo à
moda da casa (temperado com autoritarismo e elitismo, características ausentes do
pensamento liberal clássico, de matriz européia)
19
. Mas, ainda assim, alguns
pressupostos básicos se mantiveram inalterados.
Um dos pilares básicos de um Estado de democracia representativa e de tradição
democrático-liberal é o Poder Legislativo como órgão representativo máximo,
composto por membros eleitos pelo povo, para tomar decisões em seu nome. Ou seja,
em um Estado democrático-liberal, o Legislativo é o órgão máximo, que integra
politicamente o povo e o governo, na medida que representa os diversos setores da
sociedade levando ao governo as suas demandas. Além disso, fiscalizando-o, legitima
o processo político. Dessa forma, em última instância, é o povo que decide, através
da igualdade de valor de voto. Ao manter este órgão composto por representantes dos
grupos sociais em funcionamento, mesmo que limitado e com suas atribuições
reduzidas, o regime está buscando legitimar-se. E os “representantes do povo” ao
negociarem/fiscalizarem o regime, legitimam a sua ação, legitimam a nova ordem.
8
O próprio Roberto Campos, ministro do planejamento do governo do general
Humberto Castelo Branco (1964-1967), afirmava que a manutenção do Parlamento,
embora pudesse acarretar resistências às mudanças sociais, tendências inflacionistas e
impulsos distributivistas, teria, entre outras, a função de “legitimar” o sistema político,
através da intermediação na relação entre a clientela e a burocracia ou tecnocracia,
canalizando para o governo as demandas advindas da sociedade
20
.
Poderíamos questionar: mas como fica isto diante da limitação dos poderes do
Legislativo durante o regime militar? No entanto, historicamente, as profundas
transformações na estrutura material do Estado a partir de fins do séc. XIX, levaram a
transferência da competência legislativa do Congresso para o Executivo
21
. A partir de
então, ocorreu um crescimento das iniciativas legislativas do Executivo; o Legislativo,
de um modo geral, foi acusado de baixa eficiência (lentidão, localismo dos
parlamentares, pouca flexibilidade e resistência à mudanças); iniciou-se o processo de
esvaziamento da função legislativa do Parlamento em prol de uma organização
corporativa do poder; alterou-se o princípio da legalidade do Poder Legislativo e o
controle da legitimidade através da atividade judiciária; e a administração do Estado
se privatizou, ficando autônoma com relação ao Parlamento e subordinada a grupos
específicos de interesse
22
.
Como afirmam Sérgio Abranches e Gláucio Soares, “No Estado moderno, as
atividades tradicionais do Legislativo foram substituídas por outras, consideradas
compatíveis com o desenvolvimento acelerado da sociedade.
23
. A principal tarefa do
19
Cf. PEREIRA NETO, André de Faria. “‘O Estado de São Paulo’ e a deposição do Presidente
Goulart (1964: Um estudo sobre as peculiaridades do liberalismo no Brasil”, Revista de História
Regional, Juiz de Fora (MG), vol. 4, n.º 2, 1999, p. 107-123.
20
CAMPOS, Roberto de Oliveira. “O Poder Legislativo e o Desenvolvimento”. In: MENDES,
Cândido (ed.). O Legislativo e a Tecnocracia. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 35.
21
Cf. ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. “As funções do Legislativo”.
Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, vol. 7, n.º. 1, janeiro/março 1973, p. 73-75, e
GOZZI, Gustavo. op. cit., p. 401-402.
22
Cf. GOZZI, Gustavo. op. cit., p. 401-409.
23
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 98.
9
Legislativo contemporâneo é, pois, fiscalizar as atividades do governo e da
administração cotidiana.
Embora o caso brasileiro possa ser posto como um caso extremo, ele se
apresenta dentro dessa tendência mais geral. No Brasil, o Legislativo também era
acusado de ineficiência e tornara-se um alvo para os reformistas que pretendiam
aumentar a eficiência do sistema político do país. A partir de 1964, e especialmente
depois de 1968, com o AI-5, o Legislativo perdeu o seu poder de legislar e viu coibido
o seu poder fiscalizador. As justificativas foram de limpar o sistema político, dar
coerência e continuidade à política econômica e ao movimento de 1964. Houve uma
reestruturação global da ordem social, política e econômica da sociedade, inclusive da
estrutura de poder e autoridade, particularmente, da relação entre o Executivo e o
Legislativo. No entanto, esse não foi um processo que tenha ocorrido sem que
surgissem conflitos
24
.
A partir de 1964, houve um aumento na taxa de aprovações dos projetos de
origem executiva. Ocorreu uma espécie de “pacto” entre o Executivo e o Legislativo,
onde este não ofereceria obstáculos às iniciativas legislativas daquele (o Congresso
passa a aprovar praticamente 100% dos projetos de origem executiva). No entanto, o
Parlamento teve mantidas as suas funções e a sua autonomia no que se referia aos
projetos de origem legislativa.
25
Com a Constituição de 1967, o Legislativo teve
restringido o conteúdo das suas iniciativas legislativas (deixou de poder criar
despesas, por exemplo). Desde então, os conflitos com o Executivo se
intensificaram
26
.
Com o governo do general Artur da Costa e Silva (1967-1969), membros do
Congresso Nacional – inclusive parlamentares da governista Aliança Nacional
Renovadora (Arena) – passaram a pressionar pela recuperação de seus poderes e de
24
Idem, p. 76.
25
Id., p. 78-79.
10
sua autonomia. O governo acabou sofrendo derrotas no Legislativo
27
, ao mesmo
tempo em que ocorria um aumento da atividade fiscalizadora do Congresso
28
. Apesar
da maioria das propostas de leis aprovadas serem de origem executiva, o Legislativo
havia se tornado no único fórum onde poderia ser feita a crítica livre ao governo.
29
O objetivo do governo era consolidar o regime e legitimá-lo e, a partir de 1967,
o Legislativo passou a contestar e a resistir a ele. O conflito tornava-se mais intenso.
A partir de fins de 1968, o Legislativo ficou, virtualmente, impedido de legislar, sendo
forçado a rejeitar suas próprias iniciativas. Os projetos aprovados eram aqueles que o
Executivo apresentava através do Legislativo
30
.
Apesar disso, ao manter o Poder Legislativo, mesmo que “saneado”, o governo
militar, teoricamente, “manteve” alguns princípios básicos de um Estado democrático-
liberal: a liberdade de escolha dos representantes do povo, ainda que dentro de um
quadro limitado de candidatos; a igualdade, já que as eleições para o Legislativo
foram mantidas; e o “poder de decisão do povo”, ainda mais se pensarmos nos
conflitos e negociações políticas que ocorreram entre Executivo e Legislativo, que
como representante do povo, ao negociar com o regime, legitimava a sua ação.
Expostas as razões que levam um regime autoritário a necessitar legitimar-se,
em particular, preservando determinados princípios democráticos, é preciso entender
os motivos que o fazem buscar este consentimento junto à “opinião pública”.
A opção pela construção de um consenso junto a parcelas da sociedade civil,
quanto ao governo militar, não é uma particularidade do regime brasileiro. É, muito
26
Id., p. 79.
27
Como exemplo destas derrotas, cito a própria negativa da Câmara dos Deputados¸em 1968, em
conceder a licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves, e a rejeição, também da Câmara,
em 1967, do projeto que dispunha sobre o recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias
(ICM). Id., p. 84.
28
O aumento da atividade fiscalizadora do Congresso se deu através de requerimentos de informações,
que cresceram muito durante os primeiros anos do regime militar, principalmente a partir de 1967;
convocações de ministros para prestar esclarecimentos; tentativas de criar comissões parlamentares de
inquérito e; críticas na tribuna.
29
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 80-86.
30
Idem, p. 95.
11
mais, resultado da conscientização da facção detentora do poder de que não teria
como se manter unicamente através do uso da força. Bolivar Lamounier considera
que, não podendo agir desta forma, um poder, para ser legítimo, precisa contar com o
suporte de outros centros de poder. O objetivo é que, em caso de necessidade, esses
outros centros possam ser convocados em sua defesa. Para o autor,
(...). Sua simples existência (...) é pois uma reserva de poder dissuasório
que permite aos detentores do poder (...) contarem com uma taxa razoável
de aquiescência a um custo também razoável em termos de emprego efetivo
da coerção física, econômica, ou de qualquer outra natureza.
31
É necessário, então, identificar o porquê de grupos específicos exercerem esse
papel de “reserva” que possibilita a aquiescência, o consenso.
Para se chegar ao consenso desejado é preciso seduzir a “opinião pública”. Mas
qual a real importância da “opinião pública”?
Como afirma Jean-Jacques Becker
32
, é pouco provável que a “opinião pública”
desempenhe um papel importante no nível das decisões. Entretanto, as decisões têm
sempre como objetivo fazer evoluir a “opinião pública” no sentido desejado. Becker
afirma que
A opinião pública não faz a política externa, assim como não faz a
interna, mas nenhuma política, ao que parece, pode ser feita nem contra,
nem sem ela. (...) A opinião pública talvez não atue diretamente nos
acontecimentos, não tem poder de decisão, mas tem o poder, ao que parece,
de tornar possível a política de seus representantes. (...).
33
E conclui: “não existe política que possa se desenvolver por muito tempo – pelo
menos num Estado democrático e provavelmente também um pouco nos outros – sem
vínculos estreitos com as tendências dominantes da opinião pública”
34
.
31
LAMOUNIER, Bolivar. “O discurso e o processo (da distensão às opções do regime brasileiro)”. In:
RATTNER, Henrique (org.). Brasil 1990: caminhos alternativos do desenvolvimento. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1979, p. 97.
32
BECKER, Jean-Jacques. “A Opinião Pública”. In: RÉMOND, René (org.). Por uma História
Política. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro / Editora da Fundação
Getúlio Vargas, 1996, p. 185-205.
33
GIRARD, Alain, Sondages d’opinion et politique étrangère, in Élaboration de la politique
étrangère. Presses Universitaires de France, 1969, p. 40. Citado por BECKER, Jean-Jacques. op. cit.,
p. 203.
34
Idem., p. 205.
12
Em complemento à tese de Becker e concordando com Pierre Bourdieu, creio
que não exista uma “opinião pública”, e sim, várias tendências de opiniões diferentes.
A idéia da existência de uma opinião pública unânime seria uma construção “para
legitimar uma política e reforçar as relações de força que a fundam ou a tornam
possível”
35
.
Para que seja atingida essa “opinião pública”, se constitua o consenso, e se
legitime a dominação de um grupo sobre outro, é preciso elaborar todo um arcabouço
ideológico, produzir idéias sobre o mundo social. Esta produção estaria, ainda
conforme Bourdieu
36
, subordinada à lógica da luta pelo “poder simbólico”, que é um
“poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”
37
. Poder este que
tenderia a estabelecer uma norma para o sentido do mundo social e que, enquanto
instrumento de conhecimento e de comunicação, tornaria possível o consenso sobre
esse sentido. Dessa forma, contribuiria de modo fundamental para a reprodução da
ordem social permitindo que se obtivesse o equivalente daquilo que é obtido pela
força (física ou econômica)
38
. Colaboraria, ainda, como instrumento, para impor e
legitimar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)
39
ao apresentar
a ordem estabelecida – através de uma imposição mascarada, portanto, ignorada como
tal – como algo natural
40
.
Nessa luta pelo “poder simbólico” que, no fim, contribui para legitimar a
dominação de uma classe sobre outra, o que está em jogo “é o poder sobre um uso
particular de uma categoria particular de sinais e, deste modo, sobre a visão e o
35
BOURDIEU, Pierre. “A Opinião Pública Não Existe”. In: THIOLLENT, Michel J. M. (org.). Crítica
metodológica, investigação social e enquete operária. 5.ª ed. São Paulo: Polis, 1987, p. 140.
36
BOURDIEU, Pierre. “Sobre o poder simbólico”. In: ____. O Poder Simbólico. 3.ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 7-16.
37
Idem. p. 7-8.
38
Id. p. 14. Grifo do autor.
39
Id. p. 11.
40
Id. p. 14.
13
sentido do mundo natural e social”
41
. Cada agente envolvido nessa luta possui o seu
“capital simbólico”, que é o reconhecimento que recebe de um grupo. O seu poder é
proporcional a este capital. Mas esse “poder simbólico” dos agentes, capaz de
produzir e impor uma classificação do mundo como legítima ou legal, depende da
posição ocupada no “espaço social” – aquele que está em uma posição dominada no
“espaço social” também o está no campo de produção simbólica
42
.
Portanto, o valor da mensagem que busca estabelecer um sentido para o mundo
social depende mais da importância do grupo produtor na estrutura social, ou seja, de
posições econômicas e sociais, do que de seu conteúdo. É essa posição que determina
o “capital lingüístico” de um indivíduo ou grupo, isto é, o crédito, a confiança e a
importância de sua mensagem
43
. Sua legitimidade, enfim. O reconhecimento da
mensagem decorre, então, mais de posições econômicas e sociais privilegiadas do que
de características lingüísticas.
Em conclusão, os outros centros de poder que podem ser convocados em sua
defesa não precisam ser, necessariamente, a maioria numérica, e como afirma
Bourdieu, nem uma classe no sentido de grupo mobilizado, mas sim uma classe
provável. Esta classe, é composta por um conjunto de agentes, que ocupam posições
semelhantes, e hierarquicamente “superiores” no “espaço social”, e que estão sujeitos
a condicionamentos semelhantes. Desse modo, terão, provavelmente, atitudes e
interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posições semelhantes aos
detentores do poder
44
. Assim, ela pode reconhecer o “capital simbólico” da classe
dirigente, reforçando o seu “poder simbólico”. Ao mesmo tempo, este grupo se presta
41
BOURDIEU, Pierre. “A gênese dos conceitos de habitus e de campo”. In: ____. O Poder Simbólico.
op. cit., p. 72, nota 16.
42
Sobre a relação posição no “espaço social” e domínio, ver: BOURDIEU, Pierre. “Espaço social e
gênese das ‘classes’". In: ____. O Poder Simbólico. op. cit., p. 151-152.
43
Ver, sobre esta questão: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. op. cit., cap. VI e VII.
44
Ver BOURDIEU, Pierre. “Espaço social e gênese das ‘classes’". In: ____. O Poder Simbólico. op.
cit., p. 136.
14
a servir de “reserva de poder”, que torna capaz o estabelecimento do consenso
desejado pelos dirigentes.
Buscando legitimidade, o reconhecimento de sua mensagem, através da sanção
do grupo de posição social hierarquicamente “superior” no “espaço social”, crendo na
necessidade de uma “reserva de poder” e da sanção da “opinião pública” para
legitimar a sua política, é que o discurso do regime militar se dirigiu à elite e às
camadas médias. Camadas estas que, de modo geral, não possuem uma ideologia
clara, o que as impede de estabelecer um projeto autônomo e as mantém atreladas à
classe dominante
45
. Desse modo, é preciso, agora, analisar o porquê destas camadas
sociais difundirem a mensagem dos detentores do poder e, assim, reforçarem a
dominação de um grupo sobre os demais.
A língua é, ao mesmo tempo, um sistema simbólico e um código social que
pode contribuir para a reprodução da ordem social. De acordo com Ciro Flamarion
Cardoso,
Numa sociedade coexistem e se articulam múltiplos níveis de
codificação e muitos códigos, bem como existem diversos grupos sócio-
semióticos. Pode-se dizer, porém, que. a classe dominante numa sociedade
é também “a classe que possui o controle da emissão e circulação das
mensagens verbais e não-verbais constitutivas de uma dada comunidade”.
46
Assim, conclui o autor, a função principal desses códigos “comportamentais”
“ditados” pela classe dominante é manter a sociedade tal como ela é, conservando a
coesão dos diversos grupos e preservando determinados valores culturais, de acordo
45
De acordo com Marilena Chauí, “Trabalhos científicos recentes têm mostrado 'que tanto do ponto de
vista histórico efetivo quanto do ponto de vista da posição estrutural, a classe média não pode ser
portadora de um projeto político autônomo e que, pelo contrário, mesmo quando suas propostas
divergem daquelas defendidas pela classe dominante, a divergência não chega a constituir sequer um
antagonismo real, de sorte que, bem ou mal, as classes médias estão atreladas às classes dominantes ou
a reboque delas. Fundamentalmente, mostra-se que a heterogeneidade da composição e a ambigüidade
ideológica, a despossessão econômica, o medo da proletarização e o desejo de ascensão fazem da
classe média não apenas uma classe conservadora, mas visceralmente reacionária.” CHAUÍ, Marilena
Chauí et alii. “Ideologia e Mobilização Popular”, Rio de Janeiro: Paz e Terra, CEDEC, 1978, pg. 59,
citado por Fiorin, José Luiz. O Regime de 1964: discurso e Ideologia. São Paulo: Atual, 1988, p. 122.
46
CARDOSO, Ciro F. “Semiótica, História e Classes Sociais”. In.: ____. Ensaios Racionalistas -
Filosofia, Ciências Sociais e História. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 80. A citação é de: ROSSI-
LANDI, F. “Programas de la comunicación”. In: ROSSI-LANDI, F. et alii. Diccionario teórico-
ideológico. Trad. B. Sarlo. Buenos Aires: Galerna, 1975, p. 145.
15
com os interesses dessa classe
47
. Reforçando, por fim, a sua própria posição de
domínio. Desse modo, as idéias da classe dominante tornam-se as idéias dominantes
de cada época, embora não sejam as únicas. Por isso, não podemos separar o estudo
dos códigos sociais e de suas relações da questão do poder e da ideologia.
Tomando a língua natural como um sistema simbólico pelo qual se exprimem
idéias, portanto, ideologias, e, como um “código social”, estando o controle da
emissão e circulação deste sistema sob a tutela do grupo dominante, a própria
linguagem passará a ser determinada pelo grupo cuja posição social for
hierarquicamente “superior”. Sua missão é, pois, contribuir para a reprodução da
ordem social vigente, legitimando, por fim, a dominação de uma classe sobre outra
48
.
Face a este fator e em virtude da necessidade que tem de estabelecer um consenso
para legitimar o seu domínio, a classe dominante faz uso do controle que exerce sobre
o “código social” “língua natural” para atingir este objetivo.
Em síntese, podemos considerar as formas discursivas como um elemento do
processo de dominação. Nesse processo, estando camadas médias atreladas à camada
dominante, em última instância, a linguagem que estes grupos determinam é oriunda
dos detentores do poder. Assim, tanto o discurso originário nestas camadas quanto o
discurso voltado para estas camadas contribuem para a reprodução da ordem social.
No entanto, esta origem não é suficiente para provocar a aceitação do discurso.
O ato argumentativo, que pode ser a leitura ou a escrita, faz parte de um processo de
instauração de sentidos nos sujeitos, e sendo ambos determinados histórica e
ideologicamente, há condicionamentos que interferem tanto na emissão quanto na
recepção da mensagem.
47
Ibidem.
48
Sobre a língua como “sistema simbólico”, e sobre a dominação de uma classe sobre outra ver
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. op. cit., cap. I, VI e VII.
16
Como frisa Eni Pulcinelli Orlandi
49
, quando o autor escreve um texto,
estabelece um leitor imaginário (destinatário) que tanto pode ser seu cúmplice como
seu adversário. “Assim, quando o leitor real, aquele que lê o texto, se apropria do
mesmo, já encontra um leitor aí constituído com o qual tem que se relacionar
necessariamente”
50
. Ou seja, um narrador nunca está sozinho, ele se expressa em
concordância ou em oposição a outros narradores, a outros discursos; ele se expressa
para um público, que forma o seu auditório
51
. É necessário, portanto, que ele
“conheça o seu público para escolher os argumentos, os estilos, a pronunciação
adequados para movê-lo. Auditórios diferentes exigem argumentos diferentes. Cada
auditório terá os seus valores, cada época terá seus auditórios. (...).”
52
Em função deste problema, antes de proceder ao ato argumentativo, o narrador
precisa, de acordo Haquira Osakabe, se questionar: “Qual imagem faço do ouvinte
para lhe falar dessa forma?”; “Qual imagem penso que ele faz de mim para que eu lhe
fale dessa forma?. “Qual imagem faço do referente para lhe falar dessa forma?”;
“Qual imagem penso que o ouvinte faz do referente para lhe falar dessa forma? e; “O
que pretendo do ouvinte para lhe falar dessa forma?”
53
De acordo com Osakabe é
mais sobre a pergunta “Qual imagem penso que o ouvinte tem do referente para eu
falar dessa forma?” que devemos nos deter. O autor faz essa opção pois, para ele, é
ela que justifica a produção do discurso, “à medida que é o pressuposto de o ouvinte
49
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez Editora / Campinas: Editora da
Universidade de Campinas, 1996, p. 9.
50
Ibidem.
51
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Trad.: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. XIX.
52
CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”,
Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro, n.º 1, 2000, p. 138.
53
A perguntas apresentadas são produtos da reformulação que Osakabe processou no quadro de
formações imaginárias proposto por Michel Pêcheaux. Cf. OSAKABE, Haquira. Argumentação e
Discurso Político. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 65-66. O quadro original de M.
Pêcheux está transcrito nas páginas. 54 e 55.
17
ter uma imagem distinta do referente que justifica da parte do locutor a produção de
seu discurso”
54
.
Creio que, com relação à primeira fase do regime militar imposto ao Brasil a
partir de 1964 e ao discurso jornalístico do período, a resposta nos remete à defesa da
democracia. Considero que tanto o regime quanto os jornais tinham a crença de que
para o seu auditório a defesa da democracia e a preservação de princípios e
instituições associados a ela eram de fundamental importância
55
. Por isto, a retórica
dominante adotou esse elemento por base temática. Contudo, não é possível limitar
esse procedimento apenas à retórica. A prática, ainda que de maneira tortuosa, teve
que assumir o exercício desses elementos.
Era preciso, no entanto, difundir esta mensagem aos segmentos da sociedade
brasileira que interessavam. A imprensa teve um papel estratégico nesta missão.
Porém, os questionamentos que surgem são: Por que ela foi a escolhida? E, por que
se prestou a tal missão?
Na sua primeira fase, o regime ainda estava carente de uma instituição que
fizesse parte da máquina estatal que servisse de divulgadora de suas ações e que
pudesse colaborar na produção do seu “capital simbólico”. Por outro lado, a grande
imprensa jornalística, que desempenha um importante papel na produção desse
“capital”, já era uma mídia firmemente estabelecida. Além disso, seu discurso se
dirigia exatamente à fração da sociedade que o regime pretendia atingir
56
. Desse
modo, ela assume um papel estratégico dentro do projeto do novo sistema de
54
Idem. p. 91.
55
Ao longo da análise dos editoriais, procurarei comprovar a tese da democracia como formação
discursiva dominante no imaginário político das camadas médias e alta, dos jornais e dos militares.
56
Não quero dizer com essa afirmação que todos os jornais tinham como público as camadas média e
alta. Há jornais voltados para as demais camadas. Minha afirmação leva em consideração apenas os
jornais de maior “credibilidade”, maior “peso”, os jornais ditos “de referência”. Estes sim, voltados
para os setores médio e alto da sociedade.
18
dominação elaborado pelos grupos no poder
57
. Segundo Anne-Marie Smith, “O
regime acreditava que uma imprensa fidedigna seria um instrumento importante para
garantir o êxito de seu empenho em legitimar-se. Alguém precisava proclamar as
conquistas do regime. (...).”
58
Contudo, conforme ressaltado por Bethania Mariani, há que perguntar até que
ponto o discurso jornalístico pode realmente ser considerado um elemento atuante na
construção de uma imagem? De que modo ele pode “decodificar”, “didatizar” um
evento? E, qual seu papel no colocar em circulação tal imagem?
59
A resposta ao primeiro questionamento, ao meu ver, passa pelo caráter
imprescindível que a imprensa ocupa na sociedade atual e pela validação que ela
fornece à eficácia do governo em administrar. Como o nosso mundo moderno é
marcado pelo “desencaixe” das relações sociais (vidas ligadas e condicionadas por
grupos de pessoas que nunca vimos), surge a influência daquilo que Luís Felipe
Miguel
60
denomina de “sistemas peritos”. Ou seja, “‘sistemas de excelência técnica
ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e
social em que vivemos’, incluindo saberes, práticas e artefatos”
61
.
Segundo o autor, há dois traços marcantes nos “sistemas peritos”: 1º) o elevado
grau de autonomia com relação aos que são submetidos (cliente ou consumidor têm
pouca capacidade de influenciar o sistema, sua influência só se dá pelo mercado,
como, por exemplo, deixando de comprar); 2º) os consumidores crêem na
competência especializada do “sistema perito” (engenheiros, eletricistas, médicos,
57
Excetuando-se o Última Hora, os jornais apoiaram o golpe. Isto sugere que, ao menos em linhas
gerais e nos primórdios do regime, havia uma coincidência de pontos de vista entre eles e a coalizão
civil-militar que derrubou João Goulart.
58
SMITH, Anne-Marie. Um Acordo Forçado: O consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 46.
59
MARIANI, Bethania. O PCB e a Imprensa: Os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989).
Rio de Janeiro: Revan / Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1988, p. 22. Os
questionamentos da autora referem-se ao seu objeto: os comunistas no imaginário dos jornais. Aqui
faço uma adaptação, de modo a generalizar o uso das questões.
60
MIGUEL, Luís Felipe. “O jornalismo como sistema perito”. Tempo Social: Revista de Sociologia
da USP, vol. 11, n.º 1, 1999, p. 197-208.
19
feiticeiros, etc.). Nesse sentido, o jornalismo pode ser encarado como “sistema
perito”, pois
(...). O leitor/ouvinte/espectador, no papel de consumidor de notícias,
mantém em relação ao jornalismo uma atitude de confiança similar à dos
outros sistemas peritos (...) 1) confiança quanto à veracidade das
informações relatadas; 2) confiança quanto à justeza na seleção e
hierarquização dos elementos importantes ao relato; 3) confiança quanto à
justeza na seleção e hierarquização das notícias diante do estoque de “fatos”
disponíveis.
62
O que diferencia o jornalismo dos demais “sistemas peritos” é que, nestes, a
confiança se adquire pela experiência (o prédio que não caiu, o remédio que curou
etc.) enquanto no jornalismo não há como obter esta “prova de efetividade”. Apenas
em raros casos há como verificar a veracidade das informações. Além disto, não
temos acesso aos elementos de seleção do que é notícia, do que deixa de ser, do que é
ignorado. Isto também justifica a necessidade do jornalismo, pois, em nosso mundo,
temos contato apenas com um pequeno número de informações das quais precisamos,
e o jornalismo vem suprir este vazio.
Na mesma linha de Bourdieu, Luís Felipe Miguel considera que a imprensa
(...) desempenha um papel nada negligenciável na produção de capital
simbólico, isto é, do crédito social que permite a certos indivíduos
ocuparem posições de autoridade em determinados campos. De forma mais
específica, a formação do capital político passa, cada vez mais, pela
intermediação do jornalismo. (...).
63
E isto vale não só para indivíduos, como também para o governo como
instituição, auxiliando-o na aquisição de seu capital político. No entanto, a mídia não
possui um controle absoluto na construção da agenda, da realidade e dos valores (vide
a Rede Globo, primeiro ignorando, depois apoiando a campanha das “Diretas-Já”),
mas, “por sua posição estrutural de agregador/difusor de informação, o jornalismo
está habilitado a cumprir um papel chave neste processo”
64
.
61
Idem. p. 198. A citação do autor refere-se a: GIDDENS, Anthony. As conseqüências da
modernidade. São Paulo: Unesp, 1991, p. 35.
62
Id. p. 199. Grifos do autor
63
Id. p. 201. Grifo do autor.
64
Ibidem.
20
Porém, esta crença nos “sistemas peritos” não está baseada apenas na
experiência (mesmo no caso dos outros sistemas). Há, também, a existência de forças
reguladoras (“meta-sistema perito”) que, estando em um patamar acima, exerceriam a
função de protetores dos consumidores. Por sua vez, as atitudes dos consumidores
para com essas forças reguladoras também são baseadas na crença em conhecimentos
especializados que ele, consumidor, não possui.
Quando o jornalismo passa para os consumidores experiências relatadas por
outras pessoas, sobre determinados “sistemas peritos”, que se somam às dos próprios
leitores, ele também funciona como “meta-sistema perito”. Se admitirmos o próprio
governo e o Legislativo como “sistemas perito” (o primeiro, aquele que supostamente
tem competência para administrar o país; e o segundo, aquele que, também
supostamente, tem competência para representar o povo e legislar), o jornalismo pode
vir a exercer, com relação a eles, a função de “meta-sistema perito”. Dessa forma, a
mídia se apresenta como o principal “meta-sistema perito”, pois valida, ou não, a
crença na eficácia de outros “sistemas peritos”. Entre eles, o governo e o Legislativo.
Portanto, é principalmente através da imprensa que a população entra em
contato com os conhecimentos sobre a vida social, se apropria de tais saberes, reflete
sobre eles e muda o seu modo de agir, se for o caso. Há uma apropriação, pelo
indivíduo, de uma “perícia técnica”, que o leva a refletir, daí a se
“autoconscientizar”
65
.
Quanto à questão do modo como o discurso jornalístico “decodifica” e
“didatiza” um evento, creio que se deva tomar por base o papel da imprensa como
“sistema perito” que impõe à sociedade seus critérios de seleção e hierarquização de
informações. No exercício desse papel, ela institucionaliza os dizeres que devem ser
ditos/repetidos, e procura “fazer crer”, através de narrativas que visam dar sentido à
história. Como no discurso jornalístico o locutor se impõe como “perito”, ele não
21
apresenta dúvidas e contradições, e, assim, pode pedir ao povo renovação da
confiança em si e no referente. Na medida em que se confia no veículo, no locutor,
seus critérios passam a ser considerados “naturais” e indiscutíveis. Luís Felipe
Miguel chama isso de “violência simbólica originária”, que é o estabelecimento do
que é “importante” no mundo
66
.
Crendo que o discurso jornalístico funciona como “meta-sistema perito” com
relação ao regime e ao Legislativo, entre outros, ele exerce um papel fundamental no
processo de construção de suas imagens. E, respondendo à segunda questão levantada
por Bethania Mariani, reorganizando a história, o discurso jornalístico contribui para a
representação e re-produção de uma ilusão de consensos ou dissensos relativos aos
detentores do poder
67
.
Para a queda de João Goulart, o discurso jornalístico, como “meta-sistema
perito”, de modo geral, produziu um dissenso com relação ao governo. Em seguida,
buscou produzir um consenso com relação à situação que surgia, justificando-a na
salvaguarda da nação e da democracia. A nova situação, em resumo, propiciaria um
futuro melhor para o país.
Portanto, podemos considerar que o discurso jornalístico é um caminho de
difusão, disseminação e institucionalização das práticas discursivas de exercício do
poder. Dissimula os modos como essas práticas se impõem e silencia práticas
antagônicas ou divergentes ao poder político dominante.
Como percebe Bethania Mariani, o discurso jornalístico “vai montando e
reconfigurando leituras da história e da política, na tentativa de explicar/didatizar os
acontecimentos, ou seja, construindo um sentido ‘natural’ para a instabilidade do
presente”
68
. Ele ordena os acontecimentos, produz explicações que encadeiem
65
Ibid. p. 204.
66
Idem. p. 200-201.
67
Cf. MARIANI, Bethania. op. cit., p. 44.
68
Idem., p. 45. Grifo da autora.
22
sentidos ao acontecimento. Isto cria a ilusão de uma relação significativa entre causas
e conseqüências para os fatos ocorridos. Dessa forma, busca envolver, persuadindo o
leitor/ouvinte, visando torná-lo um crente no objeto do saber. Respondendo, enfim, à
terceira questão proposta, o papel do discurso jornalístico ao colocar em circulação
uma determinada imagem é o de contribuir na representação/conformação da “opinião
pública”
69
.
Mas, surgem algumas outras questões que precisam de respostas. A primeira é:
será que as pressões econômicas que a imprensa sofria não viciariam esse seu papel?
Não se pode ignorar que a imprensa sofria tais pressões por parte do governo (através
de publicidade e subsídios, o governo podia premiar ou punir empresas de acordo com
seus interesses) e também indiretamente por parte dos anunciantes privados, visto que
a maior parte de sua receita era oriunda de publicidade
70
. Para Sebastião Geraldo
Breguês,
O controle econômico da liberdade de imprensa, no Brasil, é possível,
pois o jornal depende principalmente de duas fontes de receitas: a venda
em bancas e a publicidade. Na maioria das grandes publicações nacionais,
a primeira é tão pequena que não raramente o custo gráfico da publicação é
superior ao que o leitor paga ao jornaleiro. (...).
71
Não podemos imaginar, porém, a existência de um simples processo pelo qual
os governantes atuavam sobre a imprensa. Na verdade, “tudo é muito mais
complicado que a simples relação de intervenientes ativos esforçando-se para impor
sua influência a sujeitos mais ou menos passivos”
72
. Existem também as influências
próprias da mídia sobre os atores políticos. Não há como desconsiderá-las. A
imprensa não era um mero instrumento nas mãos do governo. Não se pode esquecer
69
Cf. IMBERT, Gérard, citado por MARIANI, Bethania. op. cit., p. 51, nota 21.
70
A dependência econômica dos jornais em relação ao governo se acentuou em função do custoso
processo de modernização dos parques gráficos dos grandes jornais brasileiros. Sobre esse processo
ver: SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966. Ver, também: DUARTE, Celina Rabello. “Imprensa e Redemocratização no Brasil”.
Dados: Revista de Ciências Sociais, vol. 26, n.º 2, 1983, p. 187-189.
71
BREGUÊS, Sebastião Geraldo. “A Imprensa Brasileira Após 64”. Encontros com a Civilização
Brasileira, n.º 2, 1978, p. 156.
72
MIGUEL, Luís Felipe. “O jornalismo como sistema perito”. op. cit., p. 221.
23
de que há interesses corporativos (donos de jornais) em jogo e compromissos com
uma forma determinada de ordem econômica (publicidade e modelo econômico
defendido pela empresa), que, por vezes, vão ao encontro dos interesses e da visão de
mundo das classes dirigentes. É óbvio que parte desse apoio pode ter sido decorrente
do medo
73
. Mas, por vezes, houve um apoio consciente e, noutras vezes, em troca de
favores.
Desse modo, admitindo a grande imprensa brasileira (jornais) como integrante
da elite econômica, dependente da publicidade oriunda das grandes companhias
estrangeiras e do governo, e defensora de um projeto político liberal, era interessante a
ela a substituição da ordem política nacionalista representada por João Goulart pela
liberal representada pelo regime militar. Por isso, ela não se furtou a contribuir na
construção de uma imagem democrática para o regime, ao menos em seu início.
No entanto, há, ainda, outro questionamento que precisa de resposta: como o
jornalismo conseguiria exercer esse papel em um país como o Brasil que, na década
de 1960, ainda exibia um elevado índice de analfabetismo, e onde as tiragens dos
jornais eram pequenas?
74
Tudo isto é verdade, porém, como afirma Anne-Marie
Smith
75
, a influência do jornalismo era comparativamente maior do que o seu número
de leitores, e, apesar de ser um meio de comunicação típico das elites, sua influência
também ia além.
73
Esse temor não se referia exclusivamente a sanções físicas. Havia também, o medo de sanções
econômicas. A título de exemplo, Sebastião Breguês menciona que “(...). O Correio da Manhã, uma
das maiores tradições da imprensa brasileira, não sobreviveu financeiramente, porque, sob a direção
firme de Niomar Moniz Sodré Bittencourt, condenou a política dos governos Castelo Branco e Costa e
Silva. As corporações internacionais reunidas no Council of America decidiram cortar-lhe a
publicidade, alegando que a sua posição contrariava os interesses da livre empresa. (...).” BREGUÊS,
Sebastião Geraldo. op. cit., p 155-156. Grifos do autor.
74
Conforme tabela elaborada por José Marques de Melo e reproduzida por Sebastião Geraldo Breguês,
em 1971 o Brasil teria um número de 5,3 jornais para cada 100 habitantes, enquanto que os índices da
UNESCO propunham um índice de 10 para cada 100. E complementa que os meios de comunicação,
de modo geral, principalmente os impressos, como os jornais, estavam concentrados nos centros
industrializados. Além disso, estariam limitados às camadas da população com poder aquisitivo médio.
Idem., p. 146 e 147.
75
SMITH, Anne-Marie. op. cit., p. 58.
24
Além disso, o jornalismo tem função social e política. Social, na medida em
que, como mediador de opiniões, leva ao governo as demandas da sociedade civil.
Política, porque, além de seu poder discursivo de emitir opiniões, ainda como
mediador de opiniões, in-forma o poder sobre a opinião da sociedade civil e sobre o
realinhamento político-ideológico
76
. Contribui, desse modo, como já foi dito, para a
representação/conformação da opinião pública. Nesse sentido, exerce um “poder
simbólico”.
Por não haver muitos estudos específicos sobre a questão da legitimidade nos
governos militares, balizo-me, em parte, no trabalho de Alfred Stepan
77
sobre o
padrão moderador das relações entre militares e civis e, mais especificamente, na
questão do sucesso dos golpes militares. Segundo Stepan, o êxito ou fracasso da
intervenção militar gira em torno do grau de legitimidade dado pelos civis ao poder
Executivo no seu cargo e aos militares como moderadores
78
. Trazendo este problema
para o foco específico da pesquisa, acredito que esta necessidade de se apresentar
como legítimo diante da sociedade civil não se esgotou com o sucesso da intervenção
militar, e sim foi transferido para a questão da instalação e manutenção de um regime
militar.
Em obras gerais sobre o período, a questão da legitimidade do regime militar é
pouco presente. Thomas Skidmore
79
, por exemplo, denota a existência de alguns
aspectos que podem indicar que o regime se preocupava com a sua legitimação.
Skidmore menciona momentos em que o Executivo submetia ao Legislativo alguns
projetos para que fossem aprovados por este. Exemplos disto são a aprovação, pelo
Congresso, da lei eleitoral após a derrota do candidato do governo na eleição para
prefeitura de São Paulo, em março de 1965; o estabelecimento da censura, quando,
76
Cf. IMBERT, Gérard, op. cit.
77
Cf. STEPAN, Alfred C. op. cit., parte II, cap. 4 e 5.
78
Idem. p. 64.
79
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit..
25
mesmo podendo impor, por decreto-lei, o rigoroso anteprojeto apresentado
inicialmente, após várias emendas, foi aprovada uma versão final um pouco menos
rigorosa; ou, mesmo, o caso do pedido de suspensão da imunidade parlamentar do
deputado Márcio Moreira Alves, em 1968, que acabou por ser negado pelo
Congresso.
Skidmore aponta outros momentos em que se ressalta a busca de legitimidade
por parte do regime militar. Um deles ocorreu quando da pressão de Castelo Branco
pelo acatamento do resultado das eleições de outubro de 1965, nas quais opositores do
regime foram eleitos para os governos de Minas Gerais e da Guanabara. Segundo
Skidmore, “Castelo Branco acreditava firmemente que a legitimidade da Revolução
dependia do acatamento do resultado das eleições legais”
80
. Outros indicativos disto
são as escolhas de José Maria Alkimim para vice-presidente de Castelo Branco e de
Pedro Aleixo para vice-presidente de Costa e Silva. Para o autor, estes gestos foram
feitos com o intuito de conquistar legitimidade junto à classe política
81
. Para
Skidmore, tais fatos eram um reflexo da “propensão dos militares brasileiros para uma
legitimidade formal” e do desejo “de estarem munidos de uma justificativa legal para
a afirmação de sua autoridade arbitrária”
82
.
No trabalho de Georges-Andre Fiechter
83
, embora a análise sobre as questões
da relação Executivo-Legislativo e da necessidade de legitimação por parte do regime
militar, não ocorram de forma direta, vez por outra, vêm à superfície. Ao fazer uma
retrospectiva da evolução política do Brasil
84
, Fiechter analisa o papel do Congresso e
a questão da legitimidade da autoridade do Executivo, com base em trabalho de Celso
Furtado
85
. Segundo a análise feita sobre o período anterior ao golpe militar, Fiechter
80
Idem. p. 99.
81
Id. p. 140.
82
Id. p. 170.
83
FIECHTER, Georges-Andre. O Regime Modernizador do Brasil - 1964-1972. Trad.: Cecília Baeta
Nunes e Nathanael Caixeiro. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1974.
84
Idem. p. 1-51.
85
Les Etats-Unis et l'Amerique Latine. Paris: Calman-Lévy, 1970.
26
conclui que o Congresso brasileiro se constituía em um entrave à ação do Executivo e
à estabilidade e ao desenvolvimento do país. Para manter a legitimidade, o governo
deveria agir dentro dos limites da lei (princípios constitucionais) e corresponder às
esperanças dos que o elegeram. Para cumprir este último tópico, entrava em conflito
com o Congresso, que era controlado por uma elite tradicionalista
86
: “Portanto, o
Presidente está comprometido com dois princípios incompatíveis - o da legitimidade
da autoridade, que se traduz na obediência às regras constitucionais e o da fidelidade
às promessas feitas à base eleitoral que o elegeu mediante sufrágio direto. (...).”
87
Quanto ao período em questão, propriamente, aparecem as questões clássicas de
diálogo, e embate, entre o Executivo e o Legislativo, como nos casos da reforma
política e partidária; os momentos imediatamente anteriores à decretação do AI-2; a
aprovação da Lei de Imprensa e da Constituição de 1967; e as licenças para a cassação
do governador de Goiás, Mauro Borges, e do mandato do deputado Márcio Moreira
Alves.
Apesar do diálogo nestes momentos, Fiechter reconhece que o Legislativo ficou
mais fraco durante o regime militar, e chega a denominar o sistema parlamentar
brasileiro de “artificial” e, portanto, de não ser verdadeiramente representativo
88
, e,
consequentemente, ineficaz para tentativa de estabelecimento de um regime legalista e
mais humano. No entanto, também considera que este enfraquecimento foi fruto da
necessidade que o regime tinha de controlar um sistema econômico irregular onde
predominavam “demagogismos” e “irracionalismos” de políticos tradicionais. Para o
autor, conforme exposto na análise sobre obra de Celso Furtado, o Legislativo anterior
ao golpe era dotado de prerrogativas paralisantes, o que o tornava inadequado aos
objetivos de modernização do Brasil
89
.
86
FIECHTER, Georges-Andre. op. cit., p. 11.
87
Ibidem.
88
Idem., p. 227-228.
89
Id., p. 11.
27
Apesar de Fiechter considerar o Legislativo como ineficiente e como um
obstáculo, creio que a sua preservação pelo regime, mesmo que enfraquecido, pode
constituir-se prova do comprometimento deste com o princípio da legitimidade.
A obra de caráter geral que mais faz referência à questão da busca de
legitimidade pelo regime militar é o trabalho de Maria Helena Moreira Alves
90
.
Objetivando analisar as relações entre o Estado autoritário brasileiro e a oposição,
determinadas pelos mecanismos de dominação social vigentes no Brasil a partir de
1964, Alves afirma a existência da necessidade de legitimação democrática por parte
do regime militar brasileiro.
Para a autora, a legitimação do regime está vinculada aos conceitos de
desenvolvimento econômico e segurança interna da nação contra os seus inimigos. A
busca desses objetivos de desenvolvimento e segurança teria levado ao uso de
mecanismos de controle e da força física. Como resultado, ocorreu uma defasagem
entre a linguagem de legitimação através da democracia e a realidade opressiva. A
crise que resulta dessa contradição acabou por minar, aos poucos, a estabilidade do
Estado, corroendo-lhe a legitimidade.
Alves frisa que a manutenção de certos preceitos democráticos, como a não
adoção do unipartidarismo, optando pela constituição de uma “oposição responsável”,
e a realização de eleições periódicas, são frutos da necessidade de legitimação do
regime
91
. Percebe, no entanto, que este não era um pensamento unânime dentro do
regime e sim uma perspectiva do grupo ligado ao complexo IPES/ESG, que preferia
dialogar com o Congresso a impor-se apenas pela força. Esse grupo acreditaria que a
força, empregada exclusivamente, seria contraproducente como base de um Estado
estável. A autora constata o enfraquecimento progressivo do Legislativo em função
90
ALVES, M.ª Helena M. Estado e Oposição no Brasil, 1964-1984. Petrópolis: Vozes, 1984.
91
Idem. p. 81, nota 6.
28
dos expurgos sofridos e das alterações legais, mas frisa a existência do diálogo e a não
subserviência pura e simples do Congresso ao Executivo.
Essa era a dialética: o governo oferecia concessões limitadas à oposição em
troca de um apoio limitado e de sua legitimidade. Mas permanecia a contradição
entre essa linguagem do diálogo, do consenso, e o aumento progressivo da repressão,
o que reduzia a legitimidade do governo. O Governo buscava o apoio do Congresso,
mas este se negava a referendar certas atitudes arbitrárias, como no caso do pedido de
cassação do deputado Márcio Moreira Alves. Como resultado dessa crise no
relacionamento Executivo x Legislativo, foi decretado o AI-5. Ao empregar mais
uma vez a força física o Estado perdeu a sua legitimidade e se isolou, o que, em
contrapartida, deixou-lhe apenas a alternativa de novos usos da força.
Portanto, a escolha do tema desta dissertação foi motivada, por um lado, pelo
que a presente pesquisa pode contribuir para a reflexão sobre certas peculiaridades do
regime militar no Brasil, até hoje pouco consideradas em nossa historiografia. Por
outro lado, pela convicção de que este trabalho pode lançar alguma luz sobre zonas
obscuras da produção historiográfica que analisa as razões do “sucesso” do regime
militar brasileiro.
Outro fator que leva ao interesse pelo presente objeto é que, conforme análise de
Luís Felipe Miguel
92
sobre a questão da ausência dos meios de comunicação e a
influência política da mídia nos trabalhos de historiadores e cientistas políticos, “os
relatos de nossa história política ignoram, via de regra, a existência da mídia e seu
impacto social”
93
. Concordo com Miguel
94
em que a mídia é a principal difusora do
prestígio e do reconhecimento social nas sociedades contemporâneas, e que, portanto,
seu papel não pode ser ignorado.
92
Cf. MIGUEL, Luís Felipe. “Retratos de uma ausência: a mídia nos relatos da história política do
Brasil”. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 20, n.º 39, 2000, p. 191-199.
93
Idem. p. 192.
94
Id. p. 199.
29
Creio que os dois interesses (busca de legitimidade por parte do regime militar e
a influência política da mídia) caminham juntos neste período da história brasileira,
chegando mesmo a se tornarem interdependentes. A importância da “mídia” (jornais)
como “meta-sistema perito” de um governo, não pode ser desconsiderada quando
estudamos o processo de busca de legitimidade por parte deste, pois é impossível
ignorar o papel crescente que a “mídia” exerceu em nossa sociedade durante o século
XX.
Em suma, a pesquisa que tem por temática o processo de legitimação do regime
militar brasileiro. Especificamente, analisa a questão do tratamento dado pela grande
imprensa brasileira à relação Executivo-Legislativo durante o período compreendido
entre o golpe de 31 de março de 1964 até o momento imediatamente posterior à
edição do Ato Institucional n.º 5, em 13 de dezembro de 1968. Nesse sentido,
entende-se que as questões sobre a importância da legitimidade democrática, da
preservação do Legislativo, da “opinião pública” e do papel da imprensa são pontos
centrais.
Não se pretende, contudo, afirmar que a única forma de legitimação possível é
aquela baseada na preservação de princípios democráticos. Tão pouco se quer afirmar
que esta, em particular a preservação do Legislativo, foi a única e/ou a principal forma
de legitimação buscada pelo regime militar brasileiro. O processo de legitimação é
muito mais complexo, e envolve múltiplos fatores. O que se intenta, é demonstrar
como a legitimação baseada na defesa e preservação de determinados princípios
democráticos, em especial entre 1.º de abril de 1964 e 13 de dezembro de 1968, é
essencial em uma sociedade relativamente complexa como a brasileira dos anos 1960.
Quanto a este corte cronológico, especificamente, ele foi escolhido por marcar o
início do período ditatorial e o momento em que o regime praticamente abdica da
postura política até então adotada: uma mescla de autoritarismo com a preservação de
30
determinados princípios e instituições democráticas. Se, mesmo após essa data, eles
foram preservados, creio, no entanto, que face as restrições impostas, não se possa
falar em legitimação democrática, ao menos até a posse do general Ernesto Geisel
como presidente da República, em 1974. A legitimação, no entanto, não deixou de
ser buscada. Apenas optou-se por um outro tipo.
Tendo por foco os balisadores apresentados, acredita-se que, em face da
estratégia “híbrida” (autoritarismo + legalidade) elaborada pelos grupos que tomaram
o poder em 1964 visando a implantação de um novo sistema de dominação que
reivindicava um perfil democrático, a legitimação do novo regime junto a setores da
sociedade assumiu importância crucial. Desse modo, nas condições do processo de
legitimação desencadeado pelo Executivo militar no período, o Legislativo em
funcionamento serviu para oferecer uma imagem democrática do regime e como
espaço de negociação com setores da sociedade. Além disso, partindo-se do
pressuposto de que o regime militar desenvolveu uma perspectiva de obtenção do
assentimento de segmentos da sociedade brasileira, creio que a imprensa teve um
papel estratégico na construção da imagem democrática do regime dirigida a esses
setores.
Caso as hipóteses apresentadas estiverem corretas, a análise do discurso da
imprensa deverá mostrar que: 1) a democracia era a formação discursiva
predominante não só no discurso jornalístico, mas, principalmente, no imaginário
político e social tanto das camadas médias e alta da sociedade, como também entre os
militares, na década de 1960; 2) O novo regime era apresentado como o mais apto, o
mais legítimo para conduzir o Brasil a uma situação de “normalidade” política,
econômica e social; 3) A preservação do Legislativo era apresentada como um
compromisso democrático do regime e, ao mesmo tempo, como prova de
aceite/participação popular, na medida em que o Legislativo é um órgão
31
representativo do povo e; 4) Que o discurso da imprensa justificava as ações
“saneadoras” do regime militar, como um requisito para a condução do Brasil a um
sistema de democracia adequado às peculiaridades do país.
Para comprovar tais assertivas, ao invés de tentar a análise dos discursos dos
jornais como um todo (matérias, colunas, editoriais, etc.) buscou-se uma seção
específica que pudesse sintetizar os pontos-de-vista dos mesmos. De todas as seções
dos jornais, uma em particular tem por missão explícita a discussão dos principais
temas que envolvem o país: os editoriais. De acordo com José Joaquín Brunner,
“Parafraseando Groethyscen, pode-se dizer que as colunas dos jornais influentes, e
seus editoriais e comentários ‘sérios’, percorrem com o burguês toda a sua vida;
voltam-se a ele como grupo social e procuram iluminar seu mundo.”
95
Ao “iluminar” o “mundo burguês”, o que o editorial está fazendo é expor a sua
opinião. Assim, pode-se considerá-lo um texto claramente opinativo, ao contrário das
reportagens (a maior parte, ao menos), mesmo que isto seja apenas uma ilusão
propagandeada. Ainda que as demais matérias também apresentem opiniões, é o
editorial que sintetiza a orientação seguida pelo jornal.
No caso específico, a opção foi trabalhar com os jornais O Globo, O Estado de
São Paulo e Jornal do Brasil. Em que pesem todas as diferenças editoriais entre eles,
havia uma característica em comum: eram jornais de empresas familiares, já com
uma longa história. Desse modo, a postura adotada era a de serem as vozes de seus
proprietários. Homens estes, profundamente interessados e comprometidos com a
nova ordem que então se instaurava. Por servirem de porta-vozes dos seus
proprietários e por suas próprias características intrínsecas, eles representam uma
síntese da linha editorial que permeia todo o jornal, o que torna a sua análise
95
BRUNNER, José Joaquín. “Agentes e Catequizadores na Formação da Consciência Burguesa”. In:
CHERESKY, Isidoro; CHONCHOL, Jacques (org.s). Crise e Transformação dos Regimes
Autoritários. São Paulo: Editora Unicamp, s.d., p. 87.
32
interessante para um trabalho deste tipo. Creio, portanto, que os editoriais
contribuiriam na missão de forjar uma ilusão de consenso.
É possível, porém, questionar o grau de atenção que o pequeno número de
leitores de jornais dava aos editoriais. Realmente é difícil estabelecer qual é esse
grau, mas não creio que isto inviabilize a análise.
Nos dias atuais, é fato a pouca atenção que os leitores dão a estas seções.
Estender esta conclusão aos anos 1960, no entanto, pode significar um descuido. A
grande repercussão dos editoriais de capa “Basta” e “Fora”, do jornal carioca Correio
da Manhã, publicados respectivamente em 31 de março e 1.º de abril de 1964, leva à
suposição de que lhes era dada uma importância relativamente maior. Além disto, no
caso dos jornais O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil, a supressão, após a edição
do AI-5, dos editoriais referentes à política nacional, no primeiro, e supressão total da
seção, no último, também são indicativos de que o próprio regime dava importância
ao que neles era publicado.
Em complemento, creio que sejam necessários alguns esclarecimentos técnicos
a respeitos das diagramações das seções de editoriais dos jornais em análise.
Normalmente, no Jornal do Brasil esta seção vinha na página n.º 6.
Apresentados em coluna dupla, os editoriais iam do topo ao rodapé da página. À sua
esquerda, em coluna única, vinham impressos os dados comerciais do jornal e a seção
de cartas do leitor. À direita, dois artigos em coluna dupla. Com tipos maiores que os
as demais seções da página, os editoriais ocupavam mais da metade da mesma.
Em geral, o Jornal do Brasil apresentava três editoriais diários: o primeiro,
versando sobre um tema de caráter nacional, o segundo, sobre um de caráter
internacional, e um terceiro, com temática local. Entretanto, esta não era uma regra
inflexível. Em determinado dia, dois ou mais editoriais poderiam abordar temas de
caráter nacional. Em outros, poderiam surgir quatro editoriais, ou mesmo apenas um.
33
Neste caso, a temática era a política nacional e os tipos vinham em tamanho ainda
maior que o habitual.
N’O Estado de São Paulo, sob a denominação de “Notas e Informações”, a
seção de editoriais ocupava quase toda a página n.º 3. Restavam o lado superior
direito, ocupado pelo noticiário das sucursais, e uma fração da parte inferior da
página, onde era exposto o sumário da edição.
A seção era composta por um número variável de matérias, cerca de quatro ou
cinco, às vezes, mais. Versavam sobre temas nacionais, internacionais, locais e
científicos. Dois, ao menos, detinham-se sobre temáticas da política nacional. Porém,
havia uma particularidade gráfica que diferenciava o primeiro editorial, que sempre se
debruçava sobre a conjuntura política nacional, dos demais. Apresentado em coluna
única, com largura maior do que as dos outros editoriais, ele se destacava dentre
todos.
A exceção é O Globo, que não possuía nem projeto gráfico, nem seção, nem
periodicidade quanto à publicação de editoriais. Quando publicados, a diagramação
não seguia nenhum padrão. Em um dia, apresentando um aspecto vertical, poderia vir
em duas longas colunas. No seguinte, apresentava um aspecto horizontal, em várias
pequenas colunas. Quanto à temática, nem sempre eram abordados os temas políticos
centrais. Muitas vezes, em momentos de auge de determinadas crises, O Globo se
dedicava a temáticas locais e/ou paralelas. No entanto, na maioria das vezes, mesmo
que os temas não fossem “centrais”, sua publicação era feita na primeira página, o que
já lhe garantia uma visibilidade maior do que a das demais matérias do jornal.
Além das diferenças de padrão, os discursos dos editoriais não apresentam uma
homogeneidade retórica entre si. Embora os três jornais em questão fossem partícipes
da coligação golpista, as diferenças presentes em seus discursos são exemplares da
heterogeneidade do grupo unido em torno da deposição de João Goulart. Seu
34
auditório era, basicamente, o todo amorfo das camadas médias. A diversidade desse
grupo reflete-se no discurso dos jornais, indicando, enfim, a fragmentação da coalizão
“revolucionária”. Como denota Bethania Mariani, “se a instituição jornalística não
funciona sem leitores, e se ela busca atraí-los como consumidores, há que se
considerar que todo jornal noticia para segmentos determinados da sociedade,
produzindo para uma imagem de leitor suposta a tal segmento.”
96
Logo, é possível
concluir que as divisões de classe em termos dos leitores encontra a sua contraparte
nos jornais, e que os leitores e os jornais de referência partilham de pontos de vista
semelhantes sobre determinados objetos discursivos. Neste sentido, todos noticiavam
para os setores médio e alto da sociedade, mas também refletiam as diferenças de
ponto de vista existentes no interior desses setores. Ainda segundo Bethania,
(...) o “jornal preferido” é aquele cujos sentidos vão ao encontro da
formação discursiva do leitor. (...) Os leitores (...), na relação estabelecida
com o jornal, são “aprendizes” silenciosos – o que não quer dizer passivos –
sendo conduzidos, sem se dar conta, a permanecer em sua posição sócio-
histórica, que é a posição do seu jornal de referência (...).
97
Dessa forma, nos discursos os jornais se auto-representam como porta-vozes da
“Revolução”
98
. Mas, em sua heterogeneidade, tentam impor a sua opinião aos demais
e à população como um todo, simulando uma homogeneidade inexistente, ilusória.
Essas visões, contudo, não são estáticas. Quanto a isto, O Globo pode ser
considerado exceção, já que tende a manter-se ao lado do regime e do governo,
mudando de opinião apenas quando o governo mudava de estratégia. Já os jornais O
Estado de São Paulo e Jornal do Brasil, embora defensores dos ideais “originais” da
96
MARIANI, Bethania. op. cit., p. 57.
97
Idem, p. 94-95. Grifo da autora.
98
Ao longo deste trabalho, o movimento militar de março/abril de 1964 receberá, na maioria das vezes,
a denominação de “Revolução”, “movimento revolucionário”, etc. O uso dos termos não tem nenhum
caráter ideológico. Esta opção deve-se, exclusivamente, ao fato de ser este tipo de denominação a que
predomina ao longo dos editoriais dos jornais analisados. Preferi manter uma única dominação por
considerar que isto torna mais clara a leitura.
35
“Revolução”, ao longo do tempo, tornam-se críticos do modus operandi dos governos
militares
99
. Mas, um elemento é comum a todos: a pretensa defesa da democracia.
Portanto, podemos classificar os jornais, quanto à sua posição com relação ao
regime, em categorias distintas: um jornal “aliado crítico”, o Jornal do Brasil, que,
em geral, apoiava a política econômica do regime, mas criticava os seus “excessos”,
principalmente na área política, como as cassações e as torturas; um “aliado
incondicional”, O Globo, que apoiou totalmente as medidas do governo Castelo
Branco, e, embora tenha apresentado algumas reservas, apoiou também as principais
teses do governo Costa e Silva; e um “aliado decepcionado”, O Estado de São Paulo,
que, embora tenha apoiado o golpe, como simpatizante de uma facção civil afastada
do centro do poder após a instauração do regime, passou a criticar os governos
militares, denotando o caráter arbitrário de algumas de suas medidas, mas que, ao
mesmo tempo, de modo ambíguo, defendia outras tantas que possuíam o mesmo
caráter.
Para desenvolver a análise proposta, optou-se por recortar o período em análise
em quatro fases. A primeira compreende o período entre o golpe militar, em 1.º de
abril de 1964, e os momentos imediatamente posteriores à prorrogação do mandato do
presidente Castelo Branco, em 17 de julho de 1964. A segunda, abrange as discussões
em torno das eleições para o governo de 11 estados, em 3 de outubro de 1965, e a
edição do Ato Institucional nº 2 (AI-2), em 27 de outubro de 1965, se estendendo até
fevereiro de 1966, mês em que foi editado o AI-3
100
. A terceira fase, vai das
discussões em torno da eleição de Costa e Silva, em 3 de outubro de 1966, até os
debates posteriores à promulgação da Constituição, em 24 de janeiro de 1967. A
quarta e última fase engloba a crise produzida em torno do discurso do deputado
99
O processo de mudança de posicionamento dos jornais, que ocorre em paralelo à fragmentação da
coalizão golpista, será analisado ao longo deste e dos próximos capítulos.
100
O AI-3 foi editado em 3 de fevereiro.
36
Márcio Moreira Alves
101
, indo de setembro de 1968 a janeiro de 1969, quando os
jornais, após longo período de mudez provocado pela edição do AI-5, voltaram a
publicar editoriais que versavam sobre a conjuntura política nacional.
Tendo a temática da relação Executivo-Legislativo por objetivo e estes recortes
por base, foram selecionados para a análise 285 editoriais, sendo: 123 do Jornal do
Brasil, 58 d’O Globo e 104 d’O Estado de São Paulo. Após uma pré-análise, estas
matérias foras divididas em três classes: Classe I, referente a editoriais cuja temática
central envolvia a relação Executivo-Legislativo; Classe II, cujos editoriais, embora
não tivessem por temática central a relação entre os dois poderes, abordavam a
questão de modo secundário, e; Classe III, englobando os editoriais que apenas
tangenciavam a questão. Desse modo, obteve-se a seguinte distribuição:
Quadro de Editoriais
Jornal do Brasil O Globo O Estado de São Paulo
I II III Σ I II III Σ I II III Σ
Fase 1
8 10 14 32 4 5 4 13 7 9 5 21
Fase 2
7 3 18 28 7 4 4 15 7 12 7 26
Fase 3
11 20 13 44 2 10 10 22 8 16 17 41
Fase 4
8 4 7 19 1 2 5 8 6 4 6 16
Totais
34 37 52 123 14 21 23 58 28 41 35 104
A análise destes editoriais incorporou algumas preocupações da lingüística e da
semiótica como pontos de referência. Entretanto, não procurou enfocar o texto por
estas perspectivas, mas sim por meio de uma análise de conteúdo. Esta opção foi
adotada não só pelo complexo instrumental necessário para as análises lingüísticas e
semióticas, que requerem um amplo domínio de suas técnicas, mas também porque o
objetivo da lingüística é a língua e a descrição das regras de seu funcionamento
101
Os discursos do deputado foram proferidos em 2 e 3 de setembro de 1968.
37
enquanto, para a análise de conteúdo, o objetivo é a palavra, a prática da língua, sua
mensagem entrevista através ou ao lado da mensagem primeira, o ambiente e o
emissor, os quais estão mais de acordo com os objetivos próprios da pesquisa.
As premissas primeiras de uma análise de conteúdo são as de que a produção do
discurso está sempre relacionada ao ideológico e ao poder e que a língua representa
importante papel no processo de dominação de uma classe sobre outra. Assim,
estando o foco na compreensão do processo de legitimação do regime militar por
meio do tratamento dado pela imprensa à relação Executivo-Legislativo, e da
contribuição dela para a construção da idéia de que a preservação do Legislativo
indicava um compromisso democrático do regime militar, a pesquisa privilegiará a
análise dos discursos de jornais, optando por uma abordagem política com ênfase na
questão do poder. Contudo, há que se fazer algumas considerações:
Da perspectiva de que a história não pode ser reduzida ao texto e de que este,
por sua vez, é portador de um discurso que não é transparente, a análise tentou
relacionar texto e contexto, buscando “os nexos entre as idéias contidas nos discursos,
as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto de determinações extratextuais
que presidem a produção, a circulação e o consumo dos discursos”
102
. Tomou por
base, também, a tese de que, conforme análise de Cardoso e Vainfas sobre a obra do
semiótico Eliseo Verón, “as ‘condições de produção’ de um discurso têm a ver com o
‘ideológico’, com os valores sociais da sociedade que o produz”, e que “as ‘condições
de seu reconhecimento’ dependem do poder, isto é, das instâncias capazes de
legitimar ou não a sua aceitação na sociedade”
103
.
Como já foi dito, a língua natural é um sistema simbólico pelo qual se
exprimem idéias e, estando seu controle sob a tutela do grupo dominante, esta
pesquisa buscará averiguar a contribuição da imprensa por uma ótica das relações de
102
CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo. “História e Análise de textos”. In: ____ (org.s).
Domínios da História - Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 378.
38
dominação, admitindo, assim, as formas discursivas como um elemento de tal
processo.
Funcionando o texto, por sua vez, como um mediador da relação entre o autor e
o seu leitor imaginário (cúmplice ou adversário), sujeitos determinados histórica e
ideologicamente, fixar-se no texto implicaria fixar-se na mediação, perdendo-se a
historicidade e sua significância. Há que se levar em consideração as formações
ideológicas, os interlocutores, o contexto histórico-social, pois são estes os fatores que
produzem o sentido do discurso.
Há várias formas de relação dos leitores com o texto e todas são produto da
relação do discurso com as formações ideológicas. Em conseqüência, há diferentes
tipos de leitura. Nesse sentido, não é possível ler um texto com total independência,
pois esta leitura também é regulada. Ler é considerar o que está implícito, é saber que
o sentido pode ser outro. Por isso, só a referência histórica pode dizer se a leitura
compreende mais ou menos do que devia.
Sendo assim, conforme sustenta Laurence Bardin,
(...) a leitura efetuada pelo analista do conteúdo das comunicações não é, ou
não é unicamente, uma leitura “à letra”, mas antes o realçar de um sentido
que se encontra em segundo plano. Não se trata de atravessar significantes
para atingir significados, à semelhança da decifração normal, mas atingir
através de significantes ou de significados (manipulados), outros
“significados” de natureza psicológica, sociológica, política, histórica,
etc.
104
A produção da linguagem está inserida em uma produção social mais geral,
portanto, não pode ser separada da “produção” da sua sociedade. O discurso é um
objeto histórico-social e “a palavra é um ato social com todas as suas implicações,
conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades, etc.
105
“As formações discursivas são formações componentes das formações ideológicas e
103
Ibidem. Grifos dos autores.
104
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.: Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. Lisboa:
Edições 70, 1977, p. 41.
105
ORLANDI, Eni Pulcinelli. op. cit. p. 17.
39
determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição em uma conjuntura
dadas”
106
.
Por acreditar que há muitas conotações políticas embutidas na dimensão
retórica, e de modo a enriquecer a análise dos discursos, a pesquisa também procurou
buscá-los nessa dimensão. Conforme José Murilo de Carvalho
107
, a natureza retórica
dos discursos exige que se leve em consideração não só a linguagem e o texto, mas
também o autor e seu leitor ou ouvinte. Admite-se que “a retórica não busca apenas
convencer, operação que se faz mediante raciocínios lógicos. Ela pretende persuadir,
mover a vontade, o que exige uma grande variedade de argumentos de natureza não-
lógica”
108
. Assim, a análise tentou observar, também pela retórica, por quais meios se
elaborou o processo de persuasão da “opinião pública”, através do discurso da
imprensa pois, conforme Olivier Reboul, é através dela que se dá a persuasão “que
não se obtém nem pelo dinheiro, nem pela ameaça”
109
.
Uma característica da retórica útil à pesquisa é o aspecto da relação entre os
argumentos e o orador. Um ponto fundamental do processo de persuasão é a
autoridade do orador (pela competência, honestidade, prestígio). Por essa ótica, foi
possível analisar a questão da imprensa como “sistema perito” (digno de confiança) e
“meta-sistema perito” (validador da crença em outros “sistemas perito”).
A questão da imprensa como “sistema perito”, “meta-sistema perito”, também
foi analisada pela ótica do “capital político”, espécie de “capital simbólico”, baseado
na crença e no reconhecimento, no “poder simbólico” dado a ela, pelos leitores. Poder
este que só existe porque quem está sujeito crê que ele existe e o reconhece como
106
Id. p. 18.
107
CARVALHO, José Murilo. op. cit., p. 123-152.
108
Idem. p. 137.
109
REBOUL, Olivier. op. cit., p. XVI.
40
tal
110
; poder de fazer ver e de fazer crer, de produzir e de impor, que só é possível
porque ocupa uma posição no espaço social conferida por este “poder simbólico”
111
.
Ainda quanto à retórica, há que ter em mente, como citado anteriormente, que
um orador se expressa em concordância ou em oposição a outros oradores, a outros
discursos, e para um público. Nesse sentido, uma outra relevante questão levantada
pela retórica é a importância do auditório. É necessário, ao orador, conhecer o seu
auditório para que possa escolher os argumentos, os estilos, a pronunciação adequados
para persuadi-lo. Como a mensagem de legitimação se destinava às camadas médias
e alta da sociedade, e como os jornais em questão têm exatamente esta fração da
sociedade como auditório, a pesquisa buscou verificar como se processou essa
argumentação. No entanto, não se limitou à análise do discurso que apóia
explicitamente as atitudes do governo, mas tamm ao que combate as atitudes
oposicionistas (ao mesmo tempo que se “constrói” uma imagem de legitimidade do
regime, se faz o oposto com relação à oposição). É o argumentum ad personam
(desqualificação do adversário).
112
Também dentro do campo da retórica, procurou-se dar atenção à elocução (o
modo de dizer, o estilo), pois nela encontramos os ornamentos e os instrumentos da
persuasão dos textos. O modo de dizer é, por vezes, mais importante do que o que se
diz.
Podemos concluir que “um discurso é mais retórico quando, para persuadir, alia
seu componente argumentativo a seu componente oratório, a forma ao conteúdo”
113
, e
quando o seu discurso é mais ou menos fechado, excluindo qualquer possibilidade de
réplica.
110
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. op. cit., p. 187-188.
111
Idem. p. 151.
112
CARVALHO, José Murilo. op. cit., p. 138-141.
113
Idem, p. 102.
41
Somando-se os cuidados necessários à análise de conteúdo aos elementos de
natureza retórica, torna-se claro que é preciso recusar a ilusão da transparência do
discurso, afastar-se dos perigos da compreensão espontânea, desconfiar dos
pressupostos, abdicar da ilusão em prol do “construído”, para chegar a deduções
lógicas e justificadas referentes à origem da mensagem. Para tanto, é preciso elaborar
um instrumental metodológico de análise. Porém, creio que não exista um modelo
fechado para tais análises, e sim regras de base que podem ser utilizadas de modo
isolado ou em grupos. Desse modo, as estratégias básicas de análise utilizadas na
pesquisa baseiam-se no método adotado por Laurence Bardin
114
. Contudo, em muitos
aspectos ele foi adaptado, somado às questões retóricas, tornando-se em um “método”
pessoal, de caráter muitas vezes intuitivo, gerado e, em alguns momentos, modificado
no decorrer do próprio processo de análise.
Como método, em princípio, foi feita uma leitura flutuante com o intuito de
tomar contato com os documentos a analisar, conhecer o texto e deixar-se invadir por
impressões e orientações. A seguir, foi elaborado um questionário que somava as
advertências e questões relativas à análise de conteúdo e à retórica. Nesse sentido,
foram feitos, às fontes, os seguintes questionamentos: Quem fala? Contra quem fala?
Por quê fala? Como fala? Há algum espaço para a expressão de uma posição
contrária? Se sim, que espaço é esse? A quem os produtores dos discursos estão se
dirigindo? Os discursos – principalmente os da imprensa – estabelecem,
explicitamente, o seu auditório? Se sim, que auditório é esse? Esse é o auditório real
ou o aparente? Que papel político era imputado a esse auditório, pelos produtores dos
discursos? Como o discurso da imprensa caracterizava o novo regime? Qual a
função que os discursos atribuíam ao novo regime dentro do quadro de crise estrutural
vivido? Qual era, segundo os discursos, o papel do Legislativo dentro no novo quadro
político-institucional adotado? Há distinção entre o papel do Legislativo segundo o
114
Cf. BARDIN, Laurence. op. cit..
42
discurso da imprensa e segundo o regime? De que forma era apresentada a posição do
Legislativo quando dos momentos de conflito com o regime? Como foram
apresentados os expurgos realizados no Legislativo? Quais as justificativas dadas
para estas medidas? Os discursos da imprensa as apoiavam? Qual o papel que o
discurso da imprensa conferia ao seu público leitor dentro da nova realidade
brasileira?
A fase seguinte foi a análise mais profunda dos editoriais, com base no
questionário elaborado, a partir da qual foi realizada uma seleção temática dos
mesmos, e da postura dos editorialistas a cada momento, a cada questão. Dessa
forma, foi possível levantar as atitudes psicológicas aconselhadas ou desaconselhadas.
O passo seguinte foi o de codificar o texto, recortando-o em unidades de registro.
Como a proposição da pesquisa passa pelo estudo de motivações de opiniões, de
atitudes, de valores, de crenças, de tendências, as unidades de registros consideradas
são os “temas-eixo”, ao redor dos quais o discurso se organiza. Tal escolha reside no
fato de seu recorte seguir regras de sentido e não de forma. Assim, a busca foi a de
“descobrir os ‘núcleos de sentido’ que compõem a comunicação e cuja presença, ou
freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico
escolhido”
115
, e também verificar tudo o que o emissor exprime a respeito dos temas
em questão.
Paralelamente à definição das unidades de registro, foram delimitadas as
unidades de contexto – que são fragmentos da mensagem, como, por exemplo, a frase
ou o parágrafo em torno do tema – que, apresentadas ao longo dos capítulos, podem
auxiliar na análise.
Partindo da hipótese de que os novos donos do poder procuraram legitimar o
seu domínio através da defesa democracia e da construção de uma imagem
democrática para o regime, a análise se debruçou, no primeiro capítulo sobre alguns
43
aspectos da retórica dos editoriais dos jornais. O intuito foi o de, sendo os jornais
partícipes desse processo, demonstrar que esta preocupação existia pois a democracia
era a formação discursiva predominante não só no discurso jornalístico, mas,
principalmente, no imaginário político e social, tanto das camadas médias e alta da
sociedade, como também entre os militares, na década de 1960. Desse modo,
apresentando o movimento como restaurador, os novos donos do poder não podiam
abdicar de pregar a defesa da democracia e, tão pouco, de tentar associar a sua
imagem a ela.
Os demais capítulos seguem a divisão em fases anteriormente descrita. A partir
destes recortes foram levantados elementos que indicam a preocupação e a insistência
dos governos Castelo Branco e Costa e Silva (este, até o AI-5) em adotar uma política
híbrida, onde predominavam elementos autoritários associados a resquícios
democráticos. Em particular, procurou-se comprovar a hipótese de que a preservação
e o “diálogo” com o Poder Legislativo, embora enfraquecido e “saneado”, foram
alguns dos elementos principais dessa política. Ao mesmo tempo, procurou-se
ressaltar as divergências no interior da coalizão heterogênea que se uniu para depor o
presidente João Goulart. Ao longo das fases é perceptível como esta coalizão, que
incluía, além de grupos civis, facções militares conflitantes, de uma união inicial em
torno de um objetivo comum, aos poucos foi se fragmentando, demonstrando a
inviabilidade da política adotada. Em paralelo, dentro deste contexto de
fragmentação, tenta-se evidenciar o modo como os jornais, simpatizantes e partícipes
da destituição de Jango, aos poucos foram se tornando opositores da política adotada
pelos governos militares, muito embora continuassem a defender a execução dos
“objetivos revolucionários” originais.
Espera-se que, dentro das particularidades apresentadas, a análise proposta
possa contribuir para a compreensão do processo de legitimação do regime militar.
115
Idem, p. 105.
44
Tem-se a expectativa, também, de que, a partir do instrumental utilizado, seja possível
identificar o lugar que a imprensa ocupou na construção da idéia de que a preservação
do Legislativo, ainda que “saneado” e eventualmente fechado, indicava um
compromisso democrático do regime militar. Espera-se, ainda, conseguir explicar o
itinerário tortuoso dessa construção em que conflitos de toda ordem – no plano da
cultura política, dos interesses governamentais e empresariais etc. – levaram a
imprensa a encontros e desencontros em face dos projetos políticos do Executivo em
relação ao Legislativo. Por fim, objetiva-se verificar as formas de conflito e as
negociações (com o Poder Legislativo) em torno das questões políticas, bem como os
meios pelos quais o governo militar se aproximou da “opinião pública” civil, dando
ênfase, nesse aspecto, ao papel que a imprensa escrita (jornais) desempenhou no
processo e sua influência sobre os demais campos da sociedade.
45
Capítulo I – O discurso da democracia
Se uma ditadura se apresentasse com a violência que lhe é própria,
ela não se sustentaria. Mas o não se apresentar com a sua própria violência
não significa que ela a esteja ocultando em qualquer lugar obscuro. Não.
Ao contrário, o que a ditadura faz é justamente dizer-se cotidianamente
como algo natural, familiar, sem constituir um período de exceção. É essa
normalidade a sua maior violência. Sua violência simbólica. Sem altos
nem baixos. No seu efeito de senso comum, de discurso social estável, e
fato de opinião pública, não de alteração da vida comum.
1
O golpe de 1964 representou uma ruptura do padrão de intervenção dos
militares na política. Em geral, após a ação, os militares repassavam o poder a uma
facção civil diferente da deposta. Contudo, em abril de 1964, esse padrão foi
substituído por um novo, que representava a tomada e o exercício efetivo do poder
pelos militares
2
. Decididos pelo não repasse imediato do poder aos civis, a facção
golpista que assumiu o poder de fato se viu diante da necessidade de legitimar o seu
domínio. O golpe havia contado com o apoio de importantes segmentos da sociedade
civil. No entanto, esta sanção não se estendia a um governo militar. Era preciso
buscá-la, ou melhor, construí-la.
1
INDURSKY, Freda. A Fala dos Quartéis e Outras Vozes. Campinas: Editora da Universidade
Estadual de Campinas, 1997, p. 12.
2
Segundo Alfred Stepan, até 1964, os militares brasileiros teriam adotado um “padrão moderador” de
intervenção na política. Segundo esse padrão, em momentos de crise de legitimidade do Executivo, de
conflito político, caberia aos militares depor o Presidente e repassar o poder para civis de grupos
alternativos. O êxito desta intervenção variaria em função do grau de legitimidade dado pelos civis ao
poder Executivo e aos militares como moderadores. Para Stepan, poderia haver questões internas que
levassem os militares à ação, mas, face à necessidade de preservação da unidade institucional, caberia à
opinião civil da elite os empurrar para tal. Crítico desta análise, Edmundo Campos Coelho vê a
“função moderadora” como um mito. Segundo este autor, menção a esse respeito praticamente inexiste
até 1924, e só teria presença notável a partir de 1945, período onde, justamente, inicia-se a análise de
Stepan. Outro crítico deste modelo interpretativo, Antônio Carlos Peixoto considera que de acordo
com a concepção de Stepan os militares seriam instrumentos nas mãos de grupos externos. Para
Peixoto, a legitimidade da intervenção militar não pode ser um monopólio da opinião civil. Como
elementos ativos no processo político, que interagem com os grupos civis, a legitimidade da
intervenção e o seu sucesso estariam vinculados à amplitude da coligação golpista, que deveria ser
suficiente para poder isolar a facção adversária. Para uma análise do padrão moderador de intervenção
dos militares, ver: STEPAN, Alfred C. Os Militares na Política, op. cit., parte II e III. Para uma crítica
à análise de Stepan, ver: COELHO, Edmundo C. Em Busca da Identidade – O Exército e a Política
na Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976, e PEIXOTO, Antônio Carlos.
“Exército e Política no Brasil: uma crítica dos modelos de interpretação”. In: ROUQUIÉ, Alain
(coord.). Os Partidos Militares no Brasil. Trad.: Octávio Alves Velho. Rio de Janeiro: Record, s.d.,
p. 27-42. Sobre a crítica ao modelo, ver também MORAES, João Q. “Alfred Stepan e o mito
moderador”, Filosofia e Política, n.º 2, inverno de 1985, p. 163-199.
46
Em sociedades relativamente complexas, como a brasileira dos anos 1960, não
há como estabelecerem o domínio exclusivamente pela força. Face a isto, os novos
donos do poder concluíram que precisariam evocar e seguir, ainda que de forma não
usual, determinados valores que fossem importantes para as parcelas da sociedades
que poderiam lhe servir de base de sustentação: as camadas médias e alta da
sociedade. No imaginário desses grupos, a formação discursiva que se apresentava
como núcleo temático era a defesa da democracia. Como reflexo, por ser um tipo de
mídia voltado essencialmente para estas camadas, este tema também era a formação
discursiva predominante no discurso jornalístico.
Os jornais, de modo quase unânime, partilhavam do mesmo ponto de vista
golpista e participaram da derrubada do governo constitucional
3
. É nesse sentido que
creio que a análise de seus discursos, especificamente seus editoriais, pode ser de
grande utilidade para a compreensão do processo de legitimação do regime militar em
sua primeira fase.
As questões a que me proponho responder, portanto, passam pela forma como o
novo sistema de dominação que então se instaurava, contando com o suporte dos
jornais, procurou fundamentar essa sua busca por legitimação baseada na defesa da
democracia. Neste primeiro capítulo, a intenção é fazer uma análise retórica dos
discursos dos editoriais dos jornais, pois, sendo o objetivo do discurso a persuasão, e o
domínio da retórica, justamente, o domínio dos meios para se atingir a persuasão
4
,
esta análise poderá indicar como os jornais participaram desse processo.
Não se pretende aqui, de modo algum, fazer uma análise que consiga abarcar
todos os elementos constitutivos dos discursos dos editoriais. Uma proposta desse
tipo, por si só, justificaria um trabalho particular e exigiria uma profundidade a que
3
Sobre a participação da imprensa no processo de desestabilização e derrubada do governo João
Goulart, ver: STEPAN, Alfred C. op. cit., cap. 5, p. 65-92. Sobre as críticas de cronistas de vários
jornais ao regime militar, ver: ALVIM, Thereza C. O Golpe de 64: a imprensa disse não. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
47
um capítulo, que se propõe introdutório, jamais poderia atingir. O que se intenciona é
levantar alguns aspectos presentes na retórica dos editoriais dos jornais que
demonstrem ser a democracia a formação discursiva predominante não só no discurso
jornalístico, mas, principalmente, no imaginário político e social tanto das camadas
médias e alta da sociedade, como também entre os militares, na década de 1960.
1. A retórica e a democracia
1.1. A simulação de um sujeito coletivo
(...). Nação, tanto quanto povo, designa uma realidade – mas uma
realidade simbólica, construída discursivamente, que existe apenas na
medida em que é capaz de despertar sentimentos de pertencimento. (...).
5
Para que o processo de persuasão ganhe efetividade, o locutor necessita
legitimar a sua função de porta-voz da sociedade. Para isto, ele precisa, como já foi
mencionado, mostrar-se um “sistema-perito”, ou seja, ser digno de fé. Só assim
poderá exercer o seu “poder simbólico” e atingir a sua meta de persuasão.
Porém, para legitimar esta função e atingir o seu objetivo, além de mostrar-se
digno, o locutor tem que construir a sua identificação com o seu auditório. Para isto,
o locutor necessita apresentar-se como um igual, como alguém que comunga dos
mesmos interesses e que só se destaca pela função de porta-voz. Função esta que lhe
foi delegada pelos demais integrantes do grupo a que pertence. Um dos meios de
assim proceder é através da simulação de ausência do locutor e identificação com a
figura de um locutor genérico, que interpreta os fatos na sua “verdadeira dimensão
histórica”. Desse modo, o locutor não se apresenta apenas como narrador, mas como
enunciador universal, que enuncia a voz do saber e a voz da história, logo, como
4
Cf. OSAKABE, Haquira. Argumentação e Discurso Político, op. cit., p. 158.
5
MIGUEL, Luís Felipe. “O campeão da união: o discurso de Fernando Henrique na campanha de
1994”. Comunicação & Política, Rio de Janeiro, vol. V, n.º. 1 janeiro-abril, 1998, p. 68. Grifos do
autor.
48
testemunha privilegiada dos acontecimentos, como porta-voz da história
6
. É isto que
se torna perceptível ao longo das seqüências a seguir
7
:
1. (...). O País enfrentou os perigos de uma guerra civil justamente para
atender aos apelos dessa realidade, ... Fomos à beira da guerra civil porque
a alternativa que nos restava era a do caos sem liberdade. (Jornal do Brasil,
5 de abril de 1964, p. 6, tít.: Autoridade e confiança)
2. Porque a Nação não mais tolera a mistificação janguista nem as
manobras astuciosas dos políticos de campanário. A Nação quer viver em
liberdade, com progresso e justiça social. (...). (Jornal do Brasil, 5 de abril
de 1964, p. 6, tít.: Autoridade e confiança)
3. (...). A revolução foi obra da coletividade brasileira na sua totalidade, e o
que a torna um dos momentos mais altos da nossa História é exatamente o
ela ter sido uma determinação imperativa da consciência nacional. (O
Estado de São Paulo, 14 de abril de 1964, p. 3, tít.: O art. 3º do A.
Institucional e o espírito da Revolução)
4. (...). Somos uma Nação intransigentemente liberal democrática, e foi por
isso que, como Nação, decididamente nos levantamos contra os que a toda
força nos pretendiam arrastar para a órbita das ditaduras de “esquerda”.
(...). (O Estado de São Paulo, 14 de abril de 1964, p. 3, tít.: O art. 3º do A.
Institucional e o espírito da Revolução)
5. (...). O País quer paz e trabalho, com austeridade e seriedade. (Jornal do
Brasil, 7 de abril de 1964, p. 6, tít.: O desejo da Nação)
6. (...). Aceitemos o instrumento excepcional e a dose forte como
necessários ao expurgo dos agentes comunistas e à recuperação político-
administrativa do País. (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O
Ato Institucional)
7. (...) só com a colaboração de todos será vencida esta fase excepcional de
nossa existência como país soberano e voltaremos ao pleno gozo das
garantias constitucionais (...). (O Globo, 11 de abril de 1964, p. 1, tít.: A
Revolução Consolidada)
8. Todos os brasileiros vêem, com esperança e desafogo, chegar à Suprema
Magistratura a figura eminente do General Humberto Castelo Branco (...).
(O Globo, 11 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Revolução Consolidada)
9. Não é estranho à atmosfera de paz, serenidade e confiança hoje reinante
no País, o acerto da Nação ao escolher o marechal
8
Castelo Branco para a
suprema magistratura republicana neste instante ainda delicado da evolução
dos acontecimentos. (...).
(...). Não há dúvida, assim, de que a Nação brasileira atravessou um
momento culminante do seu discernimento ao elegê-lo [Castelo Branco]
6
Cf. ZOPPI-FONTANA, Mónica. Cidadãos Modernos: discurso e representação política. Campinas:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 129.
7
Ao longo de todos os fragmentos dos editoriais contidos neste capítulo, quando não houver nenhuma
menção em contrário, os grifos serão meus.
8
Marechal (cinco estrelas): patente honorífica, extinta no governo Castelo Branco. De acordo com as
normas até então vigentes, ao passarem para a reserva, os generais-de-exército eram promovidos ao
macharelato. Cf. GASPARI, Elio. As Ilusões Armadas: A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Cia
das Letras, 2002, p. 363.
49
para o honroso e delicado posto a que ele ontem ascendeu. (...). (O Estado
de São Paulo, 16 de abril de 1964, p. 3, tít.: A forte personalidade do novo
líder)
10. (...). A Revolução foi feita por todos nós, isto é, pelo povo brasileiro e
pelas suas Forças Armadas. (...). O Brasil desvencilhou-se de uma vez por
todas dos homens que o vinham sufocando, e exige daqui por diante que o
levem a sério. Somos uma Nação amadurecida, que de hoje em diante não
terá contemplações com todo aquele que pretenda fazer dela um
instrumento a serviço dos seus baixos desígnios. (O Estado de São Paulo, 7
de maio de 1964, p. 3, tít.: Politiqueiros, confusionistas e a Revolução)
11. Ficará claro que o Congresso terá aproveitado plenamente a
oportunidade para dar um voto de confiança à Revolução que nos salvou,
há cem dias atrás, de termos tombado na anarquia mais ignóbil, com o
esfacelamento da Pátria. (Jornal do Brasil, 18 de julho de 1964, p. 6, tít.:
Voto de confiança)
12. Domingo, o povo brasileiro de onze Estados – e não apenas da
Guanabara – dará a resposta aos detratores da Nação democrática fora e
dentro do País. (...).
(...). A segurança revolucionária – afirma com plena autoridade o
Presidente da República – não está em perigo, porque o POVO VAI
FALAR. (...). (O Globo, 1 de outubro de 1965, p. 1, tít.: A segurança da
Revolução não estará em perigo porque o Povo vai falar)
13. Tenhamos fé e confiança. O Governo Federal está entregue ao
Marechal Castelo Branco. (O Globo, 5 de outubro de 1965, p. 1, tít.: Fé e
Confiança Revolucionárias)
14. O Brasil, aos dezoito meses do presente Governo, é um país no limiar
da recuperação. (O Globo, 18 de outubro de 1965, edição final, p. 1, tít.: No
Limiar da Recuperação)
15. (...). Nosso povo estava farto do esfacelamento da autoridade e da
hierarquia, acentuado no período presidencial do Sr. Goulart, e não quer
voltar a situações semelhantes. (...). (O Globo, 25 de outubro de 1965,
edição final, p. 1, tít.: A Unidade Revolucionária)
16. Toda a Nação é testemunha dos ingentes esforços que há 18 meses
vinha empregando o Marechal Castelo Branco para conciliar o
funcionamento das instituições com a missão revolucionária de que foi
investido o seu Governo. (...). (O Globo, 28 de outubro de 1965, p. 1, tít.:
O Edito de Brasília)
17. O Ato Institucional agora editado incorporou, com efeito, algumas
medidas que negam e contrariam conquistas universais e que, com
sacrifício, se tinham anexado ao nosso patrimônio político e cultural. Neste
sentido, o novo Ato só é comparável, em nossa História republicana, à carta
autoritária de 1937, que constitui a primeira tentativa, com caráter
permanente, de institucionalizar a proscrição de direitos, liberdades e
garantias individuais, indissociáveis do regime democrático em que a
Nação sempre desejou viver. O que ora vemos é a reinstitucionalização de
alguns princípios que, por negarem a liberdade do cidadão, a opinião
pública supunha definitivamente afastados e condenados. (Jornal do Brasil,
29 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Direito de defesa)
50
18. (...). Com os olhos postos na sua reconstrução democrática, a Nação
está, contudo, disposta a correr todos os riscos e a suportar todos os
sacrifícios: como a hora é de exceção, aceita as medidas de exceção. (...).
(O Estado de São Paulo, 30 de outubro de 1965, p. 3, tít.: Ainda o novo
Ato)
19. Experimenta o País uma sensação de desafogo com a eleição à
Presidência da República do sr. marechal Costa e Silva (...). a coletividade
nacional percebe perfeitamente que uma vontade mais alta entra agora a ter
voz ativa nos negócios da República. (...) espera a comunhão brasileira que
o presidente eleito, (...), use da sua autoridade para evitar que o sr. marechal
Castelo Branco leva a bom termo o seu propósito de impor ao País uma
Carta Constitucional que corresponda muito mais à sua maneira autoritária
de encarar a problemática nacional do que às aspirações democráticas do
nosso povo. (O Estado de São Paulo, 4 de outubro de 1966, p. 3, tít.: A
missão do novo Presidente)
20. (...). Ninguém contesta, por outro lado, que o Governo jamais declarou
o propósito de abrir mão da chamada legalidade revolucionária, da qual
retira os seus instrumentos de força. Mas também estão na memória de
todos as reiteradas afirmações do Presidente da República de que só
voltaria a exercitar os dispositivos cassatórios em circunstâncias extremas
do regime, ao mesmo tempo em que primava por garantir a realização de
eleições livres – as mais livres da história republicana. (Jornal do Brasil,
19 de outubro de 1966, p. 6, tít.: Autoridade do Executivo)
9
21. (...). Já que a ultrapassamos [a crise entre o Executivo e o Legislativo],
não a revolvamos. (...). Repetidas vezes O GLOBO tem insistido na
necessidade de superarmos ressentimentos, sobrepor-nos a equívocos, nesta
árdua hora que só deverá ser iluminada pela inspiração da paz, da harmonia,
da conjugação de esforços e da mobilização de vontades visando à grandeza
da Nação e à felicidade da família brasileira. (O Globo, 21 de outubro de
1966, p. 1, tít.: O Único Imprevisível)
22. (...) O Brasil não quer ser inquietado. Quer trabalhar em paz. (O
Globo, 21 de outubro de 1966, p. 1, tít.: O Único Imprevisível)
Percebe-se, em especial nos trechos por mim grifados, que o discurso
jornalístico está tentando construir uma ilusão de exterioridade, de neutralidade, e, ao
mesmo tempo, de interlocução.
O efeito de imparcialidade dá ao locutor um distanciamento que lhe permite a
emissão de opiniões. Segundo Bethania Mariani, isto ocorre pois o discurso
jornalístico é uma modalidade de “discurso sobre”. Um efeito desse tipo de discurso
seria tornar em objeto aquilo do que se fala. Desse modo, produz-se um
distanciamento, um sentido de imparcialidade do narrador com relação ao objeto.
9
Grifo no original: “as mais livres da história republicana”.
51
Assim ele pode emitir opiniões pois não se “envolveu” com a questão
10
. Essa
“neutralidade” reforça o seu caráter de “sistema perito”, ou seja, digno de fé. Como
tal, cria-se a ilusão de que o discurso jornalístico é onipresente, onisciente, objetivo, o
dono da verdade, que apresenta os fatos “tais como são”. Segundo Mariani, atuando
deste modo, o discurso jornalístico funciona de modo semelhante a um discurso
pedagógico autoritário. Para a analista,
Fazendo crer que apresenta os fatos tais como são, com uma linguagem
isenta de subjetividades, o discurso jornalístico atua à semelhança de um
discurso pedagógico em sua forma mais autoritária. Se no discurso
pedagógico autoritário cabe ao professor fazer a mediação entre o saber
científico e os aprendizes de tal modo que, com base em citações de
autoridade e afirmações categóricas (dentre outras estratégias), os alunos se
vêem diante de verdades incontornáveis – no professor está a verdade –,
sentindo-se, portanto, tolhidos a fazer qualquer questionamento, no discurso
jornalístico mascara-se um apagamento da interpretação em nome de fatos
que falam por si. Trata-se de imprimir a imagem de uma atividade
enunciativa que apenas mediatizaria – ou falaria sobre – da forma mais
literal possível um mundo objetivo. Nesse sentido, entendemos que o
didatismo, mais do que “fraturar” a informatividade dos relatos, atua na
direção de reforçar – enquanto explicação do mundo – a ilusão de
objetividade jornalística. E mais, faz retornar para o leitor a imagem do
aluno tabula rasa, aquele que “sempre precisa de explicações” (...).
11
Assim, o auditório torna-se um “leitor-aluno”, que precisa da explicação
imparcial que o jornal, como “sistema-perito” que “detém” um conhecimento
privilegiado dos fatos, fornece.
Entretanto, o auditório não pode ser apresentado como um sujeito à parte, como
mero ouvinte-passivo. É preciso promovê-lo a um lugar de decisão na estrutura
política. Nesse sentido, no processo discursivo dos jornais, cria-se uma ilusão da
interlocução. Nesse processo, o auditório, representado, no caso específico, pelas
designações “o Brasil”, “o povo”, “a Nação”, “o País”, “todos” e etc., como sustenta
Mónica Zoppi-Fontana, “é definido como sujeito desta prática dialógica, que funciona
10
Cf. MARIANI, Bethania. O PCB e a Imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-
1989), op. cit., p. 60.
11
Idem, p. 61 e 62.
52
como representação simbólica da prática política exercida por esse mesmo sujeito”
12
.
“O Brasil” é que “fez a revolução”, “escolheu Castelo Branco”, “foi à beira da guerra
civil”, “fala através das eleições”, “se levantou contra a esquerda”, etc.
Porém, além da ilusão de interlocução, de um “diálogo entre iguais”, nessa
“retórica do povo em ato”, locutor e auditório tornam-se “um” através de um “sujeito
coletivo”, um “nós inclusivo”, de valor referencial equivalente a o Brasil, os
brasileiros
13
. Esta “união” é personificada nos pronomes “nós”, “nosso(s)”,
“nossa(s)”, “todos”, “ninguém”, nos substantivos “povo”, “brasileiros”, “Brasil”,
“País”, “Nação”, “família”, “coletividade”, “comunhão”, precedidos, ou não, de
artigos definidos, e na conjugação dos verbos na primeira pessoa do plural. Esse “nós
inclusivo”, conforme Mariani, cria uma cumplicidade entre jornal e leitores, que
“partilham”, então, de um mesmo imaginário proposto pelo modo de construção do
discurso jornalístico.
14
Engaja-se, assim, o leitor em uma mesma posição política,
legitimando-se a função dos jornais como “porta-vozes” de “todo o povo”.
Dessa maneira, como forma de representação do sujeito, o “nós” é inclusivo
quanto ao auditório e exclusivo quanto ao locutor. Além disso, ele compreende tanto
os que concordam com o locutor, quanto os que se recusam a concordar,
estabelecendo um saber comum a “todos”. Como sustenta Zoppi-Fontana
15
, o “nós”,
o “povo”, o “todos”, o “ninguém”, o “o” e o “a”, mesmo que indefinidos, envolvem o
leitor, barrando a existência de um diferente, excluem o adversário e dão o valor
referencial de povo unido. O “nós”, o “povo”, o “todos” e etc. passam a ser
identificados com “brasileiros”. Ao mesmo tempo, a identificação do locutor com o
“nós”, o “povo”, transformam-no no conjunto dos brasileiros.
12
ZOPPI-FONTANA, Mónica. op. cit., p. 93. A análise da pesquisadora refere-se à freqüência do
tema “modernização” no discurso do presidente argentino Raúl Alfonsín logo após o fim do regime
militar naquele país. Contudo, crendo que as suas observações possam servir de referência, utilizo-as
para a análise dos discursos dos jornais em questão.
13
Ibidem.
14
MARIANI, Bethania. op. cit., p. 151.
15
ZOPPI-FONTANA, Mónica. op. cit., p. 95.
53
Em síntese, como indica Osakabe,
(...) o ato de argumentar parece estar fundado em três atos distintos que
guardam entre si uma relação aproximada à relação do tipo implicativo: um
ato de promover o ouvinte para um lugar de decisão na estrutura política;
um ato de envolvê-lo de forma tal a anular a possibilidade da crítica; e um
ato de engajar o ouvinte numa mesma posição ou mesma tarefa política.
(...).
16
Contudo, como salienta Zoppi-Fontana
17
, a construção desse “sujeito coletivo”
não é perene, e, com o passar do tempo, surgem vozes dissonantes. As mudanças na
produção do discurso e a perda do consenso inicial, face às medidas do governo
18
,
geram variações no valor referencial do “nós” (divisão entre os “enunciadores”, que
são excluídos do coletivo de identificação). Isto ocorre quando há uma divergência
quanto aos rumos a serem trilhados pelo regime. Desaparece o consenso e surge o
adversário. Já não há o “todos”, “o Brasil”, “os brasileiros”, e o “nós” deve decidir
com qual Brasil se identificar
19
. Isto revela que a construção do “sujeito coletivo” é
sempre precária e ameaçada pelo confronto ideológico. Mostra, ainda, a
vulnerabilidade da ilusão de consenso.
16
OSAKABE, Haquira. op. cit., p. 110.
17
Idem, p. 97.
18
Desde os momentos iniciais do regime já eram evidentes as divisões no interior da coalizão golpista.
A UDN foi contra a indicação e eleição de José Maria Alkmim, membro do PSD mineiro, para vice de
Castelo Branco. Os militares de “linha-dura” pleitearam a prorrogação do artigo 10 do Ato
Institucional – cuja expiração estava prevista para 15 de junho de 1964 –, que permitia ao governo a
cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos, mas não foram atendidos. Por outro lado,
Castelo Branco relutou em cassar os direitos políticos do ex-presidente Juscelino Kubitschek, mas,
cedendo a pressões da “linha-dura”, cassou-o. Do mesmo modo, Castelo foi contra prorrogação do seu
mandato. Mas, pressionado por grupos militares que temiam o não atingimento das metas do regime
no prazo de governo que lhe restava (até 20 de janeiro de 1966) e também um insucesso nas eleições
presidenciais marcadas para novembro de 1965, cedeu. Por sua vez, essa prorrogação gerou críticas de
Carlos Lacerda, governador da Guanabara e um dos líderes civis do golpe, que sonhava chegar à
presidência da República. Com relação à imprensa, um exemplo claro dessas divergências é o caso do
jornal carioca Correio da Manhã. Este jornal que apoiara a deposição de João Goulart, passou a se
opor ao novo regime já em abril de 1964. Para um breve relato sobre as primeiras dissensões no
interior da coalizão golpista e os motivos pelos quais elas ocorreram, ver: SKIDMORE, Thomas.
Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985), op. cit., p. 55-77. Sobre críticas de jornalistas em geral ao
regime, ver: ALVIM, Thereza C. op. cit. Sobre a oposição e críticas de jornalistas especificamente
ligados ao Correio da Manhã, ver: ALVES, Márcio M. Torturas e Torturados. Rio de Janeiro:
Artenova, 1966 e CONY, Carlos H. O Ato e o Fato. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
19
Cf. ZOPPI-FONTANA, Mónica. op. cit., p. 100.
54
Concluindo, de modo geral, o locutor tem a “ilusão discursiva” de ser a fonte do
sentido e de ter o domínio daquilo que diz. Entretanto, como afirma Fiorin
20
, o
discurso é uma criação coletiva, e não individual, porque é a visão de uma classe
vinculada a uma estrutura ideológica determinada e condicionada, em parte, pelo
próprio auditório.
1.2. Valores coletivos
É que nem a capacidade individual dos chefes nem a posse das
armas justificam sua presença no poder. Repitamos aqui algo bem
conhecido: os militares tomaram o poder na qualidade de representantes
da Pátria e em seu nome. Toda a estratégia discursiva de autolegitimação
não é mais que o esforço por apresentar-se como porta-vozes autorizados
da Pátria. Tarefa difícil, já que esta não tem nem Igreja nem Sagradas
Escrituras. (...).
21
O locutor só produz o seu discurso na medida em que pressupõe que o ouvinte
faz uma imagem do referente diversa da que ele faz. Nesse sentido, segundo o
raciocínio de Osakabe,
(...). O ato de argumentar constitui uma espécie de operação que visa fazer
com que o ouvinte não apenas se inteire da imagem que o locutor faz do
referente, mas principalmente que o ouvinte aceite essa imagem. Sob esse
aspecto, esse ato não se confunde com o ato de informar, na medida em que
interessa ao seu agente mais o engajamento do ouvinte em relação à sua
imagem sobre o referente do que a transmissão de determinada mensagem.
(...).
22
Para conseguir esse engajamento, é preciso, então, que o ato de argumentar
parta de suportes que dificultem essa rejeição.
De acordo com a afirmação de Bethania Mariani, anteriormente citada
23
,
embora “aprendiz” silencioso, o auditório não é totalmente passivo em sua relação
com o locutor. Pelo contrário, em certos momentos o locutor se vê forçado a atender
20
FIORIN, José Luiz. O Regime de 1964: Discurso e Ideologia, op. cit., p. 153.
21
SIGAL, Silvia; SANTI, Isabel. “Do discurso no regime autoritário. Um estudo comparativo”. In:
CHERESKY, Isidoro; CHONCHOL, Jacques (org.s). Crise e Transformação dos Regimes
Autoritários, op. cit., p. 188.
55
a determinadas significações que lhe são “impostas” por ele. Necessita, portanto,
conhecê-lo para, “atendendo-o”, persuadi-lo. Face a esta constatação e por ser
voltado para a classe média, o discurso dos jornais em estudo precisou invocar valores
considerados como indiscutíveis, fundamentais e aceitos por ela para poder persuadi-
la, para poder não ser rejeitado. Desse modo, o uso de determinadas significações
permite a formulação/reafirmação de algumas hipóteses. Nesse sentido, a título de
exemplo, destacam-se algumas expressões, por mim grifadas, contidas nas seqüências
discursivas abaixo:
23. (...). A prorrogação do mandato presidencial é um imperativo a que a
política não pode deixar de submeter-se. Os argumentos com que
pretendem combatê-la são irrisórios e não poderão convencer os
verdadeiros patriotas e muito especialmente as Forças Armadas de que a
última palavra deve ser dita aos parlamentares cujo passado e atitudes no
decorrer destes dois anos de anarquia institucional lhes tiram por completo
autoridade para se oporem à vontade nacional. (O Estado de São Paulo, 21
de maio de 1964, p. 3, tít.: A prorrogação do mandato presidencial)
24. (...) que nobreza maior poderíamos desejar num homem público do que
esta de subordinar-se, nas democracias, à vontade popular, desde que
legítima, desde que justa, desde que moral, desde que salvadora? (O Estado
de São Paulo, 3 de julho de 1964, p. 3, tít.: Um imperativo da consciência
revolucionária)
25. (...). Nesta hora, quando o interesse nacional levou o Presidente
Castelo Branco a editar o Ato Institucional n.º 2, queremos deixar registrada
a nossa convicção de que o ideal democrático de nossa gente não será
esquecido e a 15 de março de 1967, quando deixará de vigorar o referido
Ato, o País, inteiramente restaurado, voltará ao pleno e mais perfeito
exercício do regime de sua preferência. (O Globo, 28 de outubro de 1965,
p. 1, tít.: O Edito de Brasília)
26. (...). A herança que a Revolução recebeu consistiu sabidamente no
caos. Os três poderes da República encontravam-se paralisados ou
deformados, ou sofrendo de ambas as moléstias simultaneamente. (...). O
Legislativo, segundo a corrente que hoje tanto procura louvá-lo, era
denominado de “clube de Brasília”, desvinculado das aspirações nacionais
e desprovido de quaisquer condições de eficácia. (...). (O Globo, 8 de
novembro de 1966, p. 6, tít.: A Praga do Radicalismo)
27. (...). Analisado, porém, do ângulo político e dos supremos interesses da
nacionalidade, impõe-se considerar que se as Forças Armadas têm o direito
de serem respeitadas, (...), também é verdade que o precedente da cassação
dos direitos políticos de um deputado federal, com a conseqüência do
mandato eletivo, poderá muito bem afetar no futuro o próprio Congresso
22
OSAKABE, Haquira. op. cit., p. 93-94.
23
Cf. Introdução, nota 97.
56
Nacional, (...). (O Estado de São Paulo, 16 de outubro de 1968, p. 3, tít.: O
STF entre os militares e a Câmara)
28. (...). A verdade é que o discurso do Sr. Márcio Alves não tinha
importância suficiente para agravas as Forças Armadas, cujas honrosas
tradições de fidelidade aos interesses da Pátria pairam muito acima das
provocações isoladas de um representante do povo, ocasionalmente mal
humorado. (...). (Jornal do Brasil, 13 de dezembro de 1968, p. 6, tít.:
Episódio a Encerrar)
A primeira característica a salientar sobre as expressões destacadas nas
seqüências acima é que elas apresentam um caráter impreciso. Os termos “aspirações
nacionais”, “interesse nacional”, “interesses da Pátria”, “supremos interesses da
nacionalidade”, “vontade nacional” e “vontade popular”, não tendo “uma referência
universalmente aceita”, prestam-se a abusos
24
. Todos, contudo, fazem referência a
um fim. Impreciso, por certo, mas inconteste, necessário, pelo ponto de vista dos
jornais, que exige ser cumprido e que não se põe em discussão. Desse modo, os
jornais estão procurando estabelecer um consenso sobre o sentido que é apresentado
aos leitores (a “vontade da Nação”). Como resultado, reforçam o “poder simbólico”
dos dirigentes, contribuindo para a reprodução da dominação.
Estes termos, na realidade, têm sentido de valores morais. Como os discursos
em análise não têm por meta informar, mas persuadir o auditório das imagens
construídas pelos jornais, o uso desses termos mostra-se promissor e, por isso mesmo,
torna-se recorrente. Nesse sentido de persuasão, de modo geral, o fim desejado e
inconteste é associado à nova situação. E, como trata-se de um interesse com caráter
“único”, assim como na simulação do “sujeito coletivo”, elimina-se a existência de
um querer diferente. Ou, de outro modo, a eliminação do “querer diferente” é
fundamental para a instituição da ficção da “vontade geral”, que não é a vontade da
maioria, mas a vontade “de todos”.
Esse caráter unificador, que elimina a possibilidade de existência do diferente é
mais evidente nas significações destacadas nos enunciados a seguir:
57
29. Embora O Globo e outros jornais viessem alertando a opinião pública
para o aceleramento do processo de comunização, que se continuasse por
mais trinta dias, no mesmo ritmo das últimas semanas, certamente
enterraria toda e qualquer possibilidade de recuperação econômica, levando
o País à anarquia e ao desespero, muitos, talvez, não se tivessem dado conta
da gravidade da situação. (O Globo, 3 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Vez do
Congresso)
30. (...). A revolução foi obra da coletividade brasileira na sua totalidade, e
o que a torna um dos momentos mais altos da nossa História é exatamente o
ela ter sido uma determinação imperativa da consciência nacional. (O
Estado de São Paulo, 14 de abril de 1964, p. 3, tít.: O art. 3º do A.
Institucional e o espírito da Revolução)
31. (...) só dificilmente poderia o Congresso, pela sua atual composição,
refletir o pensamento do povo brasileiro em face da nova situação política
nacional. (...) custava-nos admitir a possibilidade de uma razoável
conciliação do pensamento da maioria dos atuais congressistas, não só com
a linha de conduta a ser imposta ao País pela Revolução, mas também com
as próprias aspirações do povo brasileiro. (...). (O Estado de São Paulo, 19
de junho de 1964, p. 3, tít.: O leguleio parlamentar)
32. Já é tempo de falarmos em linhas brasileiras para os problemas
brasileiros. O povo quer ter a segurança de que elegeu o seu primeiro
mandatário, e que a sua vontade não foi escamoteada nos conchavos dos
gabinetes. (Jornal do Brasil, 25 de junho de 1964, p. 6, tít.: A grande
reforma)
33. Experimenta o País uma sensação de desafogo com a eleição à
Presidência da República do sr. marechal Costa e Silva (...). a coletividade
nacional percebe perfeitamente que uma vontade mais alta entra agora a ter
voz ativa nos negócios da República. (...) espera a comunhão brasileira que
o presidente eleito, (...), use da sua autoridade para evitar que o sr. marechal
Castelo Branco leva a bom termo o seu propósito de impor ao País uma
Carta Constitucional que corresponda muito mais à sua maneira autoritária
de encarar a problemática nacional do que às aspirações democráticas do
nosso povo. (O Estado de São Paulo, 4 de outubro de 1966, p. 3, tít.: A
missão do novo Presidente)
34. (...) pode s. exa. [o marechal Costa e Silva] contar não só com o apoio
de toda a opinião pública nacional mas também com a colaboração das
mais experimentadas individualidades políticas do País. (...). (O Estado de
São Paulo, 4 de outubro de 1966, p. 3, tít.: A missão do novo Presidente)
35. (...). Já que a ultrapassamos [a crise entre o Executivo e o Legislativo],
não a revolvamos. (...). Repetidas vezes O GLOBO tem insistido na
necessidade de superarmos ressentimentos, sobrepor-nos a equívocos, nesta
árdua hora que só deverá ser iluminada pela inspiração da paz, da harmonia,
da conjugação de esforços e da mobilização de vontades visando à grandeza
da Nação e à felicidade da família brasileira. (O Globo, 21 de outubro de
1966, p. 1, tít.: O Único Imprevisível)
36. Os novos representantes do povo brasileiro vão ascender ao primeiro
plano legislativo depois que o País tiver completado a fase de reorganização
24
Cf. FREGE, Gottlob. Citado por MARIANI, Bethania. op. cit., p. 110.
58
política, jurídica e institucional. (...). (Jornal do Brasil, 25 de novembro de
1966, p. 6, tít.: Novo Congresso)
37. (...) não temos dúvida de que muitos dos erros que praticou como
presidente do Legislativo ser-lhe-ão perdoados pelo País se conseguir evitar
à comunhão nacional mais essa humilhação que lhe quer infligir o ocupante
do Palácio da Alvorada. (...). (O Estado de São Paulo, 17 de dezembro de
1966, p. 3, tít.: O dever dos democratas)
38. (...). Talvez a opinião pública brasileira não venha a perdoar ao
Presidente Castelo Branco ter deixado de fazer um gesto sequer para livrar
o Brasil da crise que ele mesmo sabia fatal. (Jornal do Brasil, 31 de
outubro de 1968, p. 6, tít.: Um Impasse)
39. A reação – ou a não-reação – popular indica a presença de enorme
receptividade potencial da opinião nacional a decisões grandes que
realmente solucionem os magnos problemas do País. Portanto, não há lugar
para gestos pequenos após o 13 de Dezembro. (...). (O Globo, 4 de janeiro
de 1969, p. 1, tít.: O salto e o atleta)
A análise dos recortes acima sugere que, na tentativa de “seduzir” o seu
auditório, o locutor precisa vinculá-lo a um todo “unicelular”. Por isso, procura-se
criar a imagem de “povo-uno” e “nação-una”. Além do uso do “sujeito coletivo”, esta
imagem também é criada através de termos como “coletividade brasileira”,
“coletividade nacional”, “comunhão brasileira”, “comunhão nacional”, “família
brasileira”, “opinião nacional”, “opinião pública brasileira”, “opinião pública
nacional”, “opinião pública”, “povo”, “povo brasileiro”.
Como afirma Miguel, no seu caso quanto à campanha político-eleitoral de
Fernando Henrique Cardoso em 1994, a idéia mítica de unidade do corpo social como
elemento chave no discurso transforma o “projeto” dos dominantes na expressão da
“vontade nacional”
25
. Portanto, essa identificação exerce caráter determinante na
configuração do poder político, pois, universaliza os interesses de uma classe
específica como se fossem do povo em geral
26
. Desse modo, contribui na
(re)produção do consenso social, reforçando o domínio de uma classe sobre outras.
Contudo, este processo de universalização dos interesses de uma classe não é
simplesmente uma imposição dos dominantes. Como já foi afirmado, o auditório não
25
MIGUEL, Luís Felipe. “O campeão da união...”, op. cit., p. 80.
26
Cf. FIORIN, José Luiz. op. cit., p. 85.
59
é totalmente passivo na sua relação com o locutor. Neste sentido, os “interesses de
uma classe específica”, embora visem reforçar o seu domínio, o seu “poder
simbólico”, para serem aceitos, precisam que o locutor faça referências a significações
consideradas aceitas e assimiladas pelos ouvintes. Como salienta Haquira Osakabe
27
,
o desconhecimento destas significações pode levar o ouvinte a simplesmente recusar o
discurso.
Referências nesse sentido são notadas nas seqüências discursivas abaixo:
40. Para defender a democracia, preservar as instituições e continuar
existindo, as Forças Armadas se encarregaram, com amplo apoio popular e
político, de afastar do Governo aquele que não soubera aproveitar as
esplêndidas oportunidades que lhe havia reservado o destino. (...). (O
Globo, 3 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Vez do Congresso)
41. Mas ninguém se iluda. O simples afastamento do Sr. João Goulart não
resolverá os problemas brasileiros. Nem a revolução triunfante se
destinava, apenas, a depor um Presidente desavisado. Sua missão principal
era devolver ao País as condições de progresso e harmonia social,
desaparecidas em face da orientação demagógica, desleal e subversiva do
Governo demitido. (...). (O Globo, 3 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Vez do
Congresso)
42. (...) o povo sabe perfeitamente o que deseja da revolução: legalidade,
democracia, tranqüilidade para o trabalho, paz de espírito, melhores e
mais justas condições de vida sem nenhum prejuízo de liberdade. (...).
(Jornal do Brasil, 4 de abril de 1964, p. 6, tít.: Decisão urgente)
43. Porque a Nação não mais tolera a mistificação janguista nem as
manobras astuciosas dos políticos de campanário. A Nação quer viver em
liberdade, com progresso e justiça social. (...). (Jornal do Brasil, 5 de abril
de 1964, p. 6, tít.: Autoridade e confiança)
44. (...) Não se esqueça, efetivamente, que a politicagem ora empenhada na
usurpação da vitória é justamente aquela que povoava a copa e a cozinha
dos palácios da Alvorada e das Laranjeiras, extravasando pelas da Granja
do Torto e do Capim Melado, amparando com as suas omissões, com as
suas indefinições, com a imprecisão das suas atitudes, a mais torpe das
traições, que era a elaborada contra a independência nacional e contra a
liberdade do povo brasileiro, destinado pelos conspiradores comunistas a
aumentar o mosaico de nações já incorporadas, em tantos pontos do mundo,
ao desumano e sangrento império vermelho. (O Estado de São Paulo, 7 de
abril de 1964, p. 3, tít.: Vitória decisiva da Nação)
45. É claro que o destino democrático do povo brasileiro não deveria estar
à mercê de tais alternativas [a “Revolução” e a edição do AI]. Mas a este
desfecho fomos impelidos por um Governo que traiu o mandato popular e a
confiança da Nação, arrastando-nos deliberadamente è ilegalidade e à
27
OSAKABE, Haquira. op. cit., p. 67.
60
dissolvência. (...). (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Ato
Institucional)
46. Mas o poder revolucionário ainda se autolimita quando estanca o seu
alcance na fronteira dos direitos individuais. (...). É certo que a Revolução
tem o máximo de poderes, menos o de violentar as franquias e liberdades
do indivíduo como indivíduo, conquistas que não resultam de circunstâncias
de Governo nem constituem privilégios, mas já identificam os próprios
fundamentos da vida civilizada. (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p.
6, tít.: O Ato Institucional)
47. (...). Quanto mais cedo nos convencermos desta triste e dura verdade,
melhor para a Revolução, melhor para a democracia, melhor para o País.
(O Estado de São Paulo, 27 de junho de 1964, p. 3, tít.: A inevitável
conseqüência de um erro)
48. Aprendamos de uma vez por todas que a democracia não é regime
fraco. (...). (Jornal do Brasil, 5 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Força
democrática)
49. É da essência do jogo democrático o revezamento do Poder, através do
qual os grupos políticos aprendem a aceitar como transitórias a derrota e a
vitória. A democracia só se aprimora pela sua prática permanente e
ininterrupta. Mais grave do que qualquer derrota é a quebra da
continuidade no processo político que faz da liberdade de escolha o
princípio de sua força, expressão da maioria a que as minorias devem se
sujeitar. (Jornal do Brasil, 5 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Força
democrática)
50. Deve falar mais alto o patriotismo de todos – civis e militares – para ele
tornar possíveis os compromissos legislativos garantidores da Revolução
Democrática, sem os quais a união com o Povo se tornaria impossível. (O
Globo, 8 de outubro de 1965, p. 1, tít.: O Brasil não voltará à corrupção e à
subversão)
51. Se o Governo pretende apoiar-se na compreensão e na confiança do
povo, terá que agir daqui por diante com os olhos postos no futuro,
rasgando uma idade nova – de desenvolvimento econômico, de
industrialização, de bem-estar e segurança sociais, de saúde pública e de
cultura – para o Brasil. (...). Mas com os poderes ilimitados que agora
dispõe, nada mais pode alegar o Governo que o impeça de empreender a
obra criadora e renovadora reclamada pelo País. (Jornal do Brasil, 28 de
outubro de 1965, p. 6, tít.: Poderes e responsabilidades)
52. O Governo terá que identificar-se com a vocação democrática dos
brasileiros, devolvendo ao povo, no menor prazo possível, os instrumentos
para o correto exercício do sistema democrático de vida, o único que
aceitamos por tradição, formação e convicção. (...). (Jornal do Brasil, 28
de outubro de 1965, p. 6, tít.: Poderes e responsabilidades)
53. (...). Nesta hora, quando o interesse nacional levou o Presidente Castelo
Branco a editar o Ato Institucional n.º 2, queremos deixar registrada a nossa
convicção de que o ideal democrático de nossa gente não será esquecido e
a 15 de março de 1967, quando deixará de vigorar o referido Ato, o País,
inteiramente restaurado, voltará ao pleno e mais perfeito exercício do
regime de sua preferência. (O Globo, 28 de outubro de 1965, p. 1, tít.: O
Edito de Brasília)
61
54. O Ato Institucional agora editado incorporou, com efeito, algumas
medidas que negam e contrariam conquistas universais e que, com
sacrifício, se tinham anexado ao nosso patrimônio político e cultural. Neste
sentido, o novo Ato só é comparável, em nossa História republicana, à carta
autoritária de 1937, que constitui a primeira tentativa, com caráter
permanente, de institucionalizar a proscrição de direitos, liberdades e
garantias individuais, indissociáveis do regime democrático em que a
Nação sempre desejou viver. O que ora vemos é a re-institucionalização de
alguns princípios que, por negarem a liberdade do cidadão, a opinião
pública supunha definitivamente afastados e condenados. (Jornal do Brasil,
29 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Direito de defesa)
55. (...). E a Revolução só será útil e benéfica na medida em que contribuir
para sanear e disciplinar a vida política nacional sem alterar nem banir as
normas tradicionais por que se tem regulado e edificado até aqui o espírito
democrático brasileiro. (O Estado de São Paulo, 29 de outubro de 1965, p.
3, tít.: O novo Ato Institucional)
56. (...). O que agora importa é fortalecer a instituição parlamentar, dando-
lhe não apenas representatividade, mas também eficácia. A presença do
Legislativo é essencial à normalização da vida nacional. (Jornal do Brasil,
17 de fevereiro de 1966, p. 6, tít.: Presença do Legislativo)
57. (...). É natural que o País, que por várias vezes já se creu no caminho
da normalização político-institucional, não se sinta vivendo em estado de
segurança, já que o Governo insiste em mantê-lo num suspense continuado,
que envolve até mesmo as figuras de alguns líderes com altas
responsabilidades na vida pública deste momento. (...). (Jornal do Brasil,
13 de outubro de 1966, p. 6, tít.: Retrocesso)
28
58. (...). O País quer ordem, estabilidade e paz para expandir a sua
economia, fundamento da liberdade e da Justiça Social. Quando o
Governo mostra que quer o debate constitucional, a Oposição não pode
faltar à “entente-cordiale”. Porque, se o fizer, estará faltando é à Nação.
Estará sendo a depositária infiel dos que nela confiaram a luta pelo êxito da
parcela de suas aspirações mais permanentes: o desenvolvimento do País.
(O Globo, 26 de outubro de 1966, p. 1, tít.: Oposição Posta à Prova)
59. Dentro de dez dias o povo brasileiro estará sendo chamado a exercer o
direito de escolha de seus representantes no Congresso Nacional e nas
Assembléias Estaduais. O Governo confere, destarte, ao País a
oportunidade de afirmação da soberania popular. (...). (O Globo, 5 de
novembro de 1966, p. 3, tít.: Consciência em Xeque)
Percebe-se o uso freqüente de termos que fazem referência a princípios tidos
como incontestáveis, naturais. Isto ocorre porque o leitor não é totalmente passivo
nessa relação. Sendo assim, em um processo de persuasão, ao admitir que tais
princípios seriam imprescindíveis ao seu auditório, os locutores, para exercerem a sua
28
Grifo no original: “suspense”.
62
função de “sistema perito”, ou seja, dignos de fé, não poderiam deixar de vincular os
seus discursos, e as ações do governo, a eles. Como afirma Osakabe,
(...) se, do ponto de vista meramente funcional, o ouvinte [ou leitor] parece
ao locutor como entidade passiva e, portanto, dominável e dominada pela
sua palavra, do ponto de vista do fornecimento de um ponto de partida
necessário ao desenvolvimento do discurso, parece que o ouvinte tem uma
função mais decisiva, à medida que o locutor o situa num quadro de
significações a que ele próprio é obrigado a obedecer. (...).
29
Entre as significações fundamentais destacadas, “liberdade de escolha”,
“direitos individuais”, “direitos, liberdades e garantias individuais”, “franquias e
liberdades do indivíduo”, “liberdade”, “liberdade do cidadão”, “liberdade do povo
brasileiro”, “independência nacional”, “legalidade”, “patriotismo”, “soberania
popular”, estão ligados a valores nitidamente “universais” e aceitos como conquistas
da sociedade moderna. Por isso, não poderiam ser ignorados. Outros, como
“desenvolvimento econômico”, “desenvolvimento do País”, “industrialização”, “bem-
estar e segurança sociais”, “saúde pública”, “cultura”, “justiça social”, “progresso”,
“tranqüilidade para o trabalho”, “paz de espírito”, “melhores e mais justas condições
de vida”, “normalização da vida nacional”, “normalização político-institucional da
vida nacional”, “harmonia social”, fazem referência a objetivos que a sociedade
brasileira estaria buscando que, supostamente, não seriam alcançados pelo caminho
adotado até então. No entanto, é a presença dos termos “democracia”, “jogo
democrático”, “regime democrático”, “destino democrático do povo brasileiro”,
“espírito democrático brasileiro”, “ideal democrático de nossa gente”, “vocação
democrática dos brasileiros”, “sistema democrático de vida”, que indica a importância
e a predominância da “democracia” no imaginário social e político do Brasil nos anos
1960.
Em suma, o uso dessas significações representa a tentativa do locutor de
abranger tudo o que o ouvinte pensa dele. Ou, como esclarece Osakabe, “é aquilo que
29
OSAKABE, Haquira. op. cit., p. 71.
63
o locutor pensa que o ouvinte pensa não dele, mas da função que assume perante esse
mesmo ouvinte. Nessa medida ele se ajusta ou se propõe como ajustado a essa
imagem
30
. Para isto, o locutor tenta responder à questão: qual imagem penso que o
ouvinte tem do referente para eu falar dessa forma? A resposta que surge refere-se à
“democracia”. Isto se torna ainda mais claro nos fragmentos abaixo, principalmente
através da transformação da “democracia” em adjetivo de uso recorrente:
60. (...). O que a revolução objetivou foi dar uma resposta democrática aos
problemas e impasses que a conspiração comunista colocava em termos de
atentado à legalidade e à consciência democrática, pacífica e cristã da
Nação brasileira. (...). (Jornal do Brasil, 4 de abril de 1964, p. 6, tít.:
Decisão urgente)
61. (...). Com agudo sentimento de premonição, fenômeno de indiscutível
realidade nas horas de grandes perigos coletivos, sentiu a Nação brasileira o
imperativo disto que se vem denominando, tão sugestivamente, “operação
limpeza”, para desalojar de todas as posições indevida e sub-repticiamente
ocupadas as forças subversivas que, à sombra do governo deposto e com a
sua conivência, já se preparavam para, em obediência aos planos do
comunismo internacional, desferir um golpe mortal na democracia
brasileira e, por conseguinte, em nossa soberania, em nossa independência
e em nossa liberdade. (O Estado de São Paulo, 7 de abril de 1964, p. 3, tít.:
Vitória decisiva da Nação)
62. Ontem a Revolução vitoriosa autolimitou-se, através do Ato
Institucional editado pelo seu Comando Supremo. Mas ao mesmo tempo
assumiu com a consciência democrática do País, e com os objetivos de
interesse nacional que a inspiraram, um compromisso histórico: o de repor
o Brasil, no prazo previsto, sob o pleno império da ordem-constitucional,
através da eminência de poder que o Ato confere ao Executivo. (Jornal do
Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Ato Institucional)
63. (...). Estes fins estão ao nosso alcance graças à autoridade
revolucionária agora constituída, em respeito à vontade democrática da
Nação. (Jornal do Brasil, 15 de abril de 1964, p. 6, tít.: Vitória
Democrática)
64. (...). A Legalidade Revolucionária e Constitucional – o Ato e a Carta
Magna – é o fundamento do Poder Político da Revolução e do Presidente da
República. E sem esse fundamento os inimigos da Revolução Democrática
só poderiam ser eliminados pela força. (O Globo, 8 de outubro de 1965, p.
1, tít.: O Brasil não voltará à corrupção e à subversão)
65. (...). A Nação habituou-se a ver na conduta do Marechal Castelo
Branco a constante preocupação de não ferir de morte o regime
democrático e as garantias individuais. (Jornal do Brasil, 29 de outubro de
1965, p. 6, tít.: Direito de defesa)
30
Idem, p. 83. Grifo do autor.
64
66. (...). Dos numerosos pronunciamentos do Presidente inferia-se o
propósito maior de criar para o Brasil um instrumento de estabilidade
política a longo prazo, plataforma de onde o País marcharia para a
conquista do desenvolvimento econômico, até que os dois termos da
equação nacional se fundissem num modelo exemplar de democracia
representativa. (Jornal do Brasil, 7 de dezembro de 1966, p. 6, tít.:
Processo Revolucionário)
67. Ousaríamos afirmar que o projeto assinala o fim do liberalismo clássico
no Brasil e o início de uma ordem jurídica mais condizente com os tempos
novos, caracterizados em toda parte pelo fortalecimento do Executivo como
o demonstram as instituições vigentes nas principais democracias
ocidentais. (O Globo, 8 de dezembro de 1966, p. 1, tít.: Fim do Falso
Liberalismo)
Segundo Fiorin, “Existem objetos-valor, que adquiriram uma tal envergadura,
no transcurso da história, que as forças da reação não estão em condições de rechaçar
ou difamar sem prejuízo para sua campanha. (...).”
31
Não tendo, pois, como rechaçar
certos “objetos-valor” historicamente positivados, nota-se, que, nas seqüências
destacadas, ocorre a redução da extensão, ou mudança semântica, de alguns deles.
Como efeito, eliminam-se possibilidades de outras interpretações. Por exemplo,
consciência fica limitada a “consciência democrática do País”, “consciência
democrática, pacífica e cristã da Nação brasileira”; “democracia” a “democracia
brasileira”, “democracia representativa”, “democracias ocidentais”; “legalidade” a
“legalidade Revolucionária e Constitucional”, regime a “regime democrático,
“vontade” a “vontade democrática”. Em um discurso que têm por uma das
características a oposição “democracia vs comunismo”
32
, a limitação de “democracia”
ao “cristianismo”, ao “ocidente”, e do “regime” e da “vontade” à democracia, impede
qualquer possibilidade de associá-la ao opositor. Estabelece-se uma impossibilidade
semântica. Além disso, a redução da legalidade à “Revolucionária” demarca um
terreno de possibilidade. Ainda que possa haver outros tipos, apenas um deve ser
seguido: a “Revolucionária”. O termo “Constitucional” restringe ainda mais essa
31
FIORIN, José Luiz. op. cit., p. 127.
32
Esta caraterística do discurso jornalístico será analisada com mais profundidade na seqüência deste
capítulo.
65
possibilidade. Porém, em função de ser, também, um princípio fundamental para o
auditório, pode indicar um limite “desejável” à ação “revolucionária”.
Contudo, o que é mais marcante é a contínua associação à democracia. Quando
não se está falando propriamente da democracia, com as reduções de extensão
consideradas necessárias, ela está sendo usada como adjetivo. O uso desse adjetivo
legitimaria os substantivos.
Percebe-se que, no processo de reordenação da situação, visando a legitimação
do referente, o locutor faz uso constante de termos associados a “valores coletivos”.
De modo geral, todos os “valores” em destaque nas seqüências até aqui mencionadas
têm uma caráter democrático. Na medida em que, além da recorrência, o locutor
insistia em atender a esta imagem “democrática”, reforça-se a tese de que ele a
pressupunha como essencial para o seu auditório. Contudo, essa imagem não era
mera criação de um agente externo, e sim, inerente ao próprio auditório. Por isso, em
sua tentativa de persuadi-lo, os jornais, para serem dignos “sistemas peritos” não
poderiam deixar de vincular os seus discursos a ela. Negar esse pressuposto
inviabilizaria o diálogo, dificultaria o estabelecimento do consenso sobre o sentido do
mundo que o regime queria impor e tornaria mais custoso o reforço do “poder
simbólico” dos dirigentes e, em conseqüência, a própria dominação. É nesse sentido
que o discurso jornalístico do período vinculava os “supremos interesses” do “povo
brasileiro” à preservação de um “regime democrático”, configurado na “Revolução”,
e apresentava os opositores do regime como “inimigos” da “democracia”.
66
1.3. Discurso Bipolar (o Bem vs o Mal)
O Mal é aquilo a partir do que se dispõe o Bem, não o inverso.
33
Como o discurso jornalístico serve à disseminação das práticas discursivas de
exercício do poder, ele trabalha de modo a impor certas dessas práticas, ao mesmo
tempo em que silencia as antagônicas ou divergentes ao poder político dominante. Na
medida em que se positiva, se coloca como a única possível, com a opção da nação, a
figura, a ação de alguém, deduz-se que os seus adversários são exatamente o oposto, o
negativo, o incerto, o inimigo, o outro, o mal. Não há direito à diferença. É o que
podemos perceber nas seqüências abaixo:
68. A verdade, porém é uma só. O Brasil estava sendo destruído, para que,
sobre seus escombros, viesse a erguer-se uma ditadura do tipo cubano. (...).
Para defender a democracia, preservar as instituições e continuar existindo,
as Forças Armadas se encarregaram, com amplo apoio popular e político,
de afastar do Governo aquele que não soubera aproveitar as esplêndidas
oportunidades que lhe havia reservado o destino. (...). (O Globo, 3 de abril
de 1964, p. 1, tít.: A Vez do Congresso)
69. (...). Aqui tivemos uma revolução, destinada a afastar do Governo os
comunistas que o haviam envolvido, a acabar com as práticas de corrupção
que levaram brasileiros a silenciar e até a comprometer-se com a infiltração
vermelha, a restaurar as forças da Nação, combalidas pelos desatinos dos
últimos anos. (O Globo, 4 de abril de 1964, p. 1, tít.: Um Governo que
Honre a Revolução)
70. (...). Não se esqueça, efetivamente, que a politicagem ora empenhada na
usurpação da vitória é justamente aquela que povoava a copa e a cozinha
dos palácios da Alvorada e das Laranjeiras, extravasando pelas da Granja
do Torto e do Capim Melado, amparando com as suas omissões, com as
suas indefinições, com a imprecisão das suas atitudes, a mais torpe das
traições, que era a elaborada contra a independência nacional e contra a
liberdade do povo brasileiro, destinado pelos conspiradores comunistas a
aumentar o mosaico de nações já incorporadas, em tantos pontos do mundo,
ao desumano e sangrento império vermelho. (O Estado de São Paulo, 7 de
abril de 1964, p. 3, tít.: Vitória decisiva da Nação)
71. (...) o JORNAL DO BRASIL mantém sua linha de coerência no
combate ao Governo deposto e no apoio ao movimento civil e militar que o
liquidou, para salvar o Brasil da desintegração, da comunização e da
submissão nacional. (...). (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O
Ato Institucional)
33
BADIOU, Alain, Citado por MARIANI, Bethania. op. cit., p. 84.
67
72. (...). O compromisso solene e dramático dos chefes militares da
Revolução é o de canalizar a soma de poderes que lhes conferiu a vitória na
obra de restauração da ordem constitucional, econômica e financeira do
País, juntamente com as medidas urgentes destinadas “a drenar o bolsão
comunista” infiltrado na cúpula do Governo e na máquina administrativa.
(Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Ato Institucional)
73. Se a Revolução não tivesse obtido a vitória, se os comunistas e seus
aliados houvessem derrotado os democratas, que teria acontecido ao Brasil?
Estaríamos mergulhados num banho de sangue, os pelotões de fuzilamento
não descansariam, a Constituição teria sido abolida, o Congresso fechado e
ninguém mais ouviria falar em liberdades públicas ou privadas. O Ato
Institucional objetiva, precisamente, a impedir que os inimigos da
democracia voltem a dispor de condições para atentar contra a liberdade e o
regime. (O Globo, 11 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Revolução Consolidada)
74. (...) Não foi, com efeito, necessário um tiro sequer, não se exigiu uma
só gota de sangue para que se despovoasse o ambiente nacional dos
energúmenos encarregados de desfechar no Brasil a guerra pela revolução
vermelha. Mansamente se vão higienizando as posições políticas,
quietamente se vão afastando dos cargos administrativos os corruptos e os
corruptores e com o esvaziamento dos pelegos vermelhos no campo
sindical voltam a reinar a calma, a ordem e a reflexão nos meios
trabalhistas. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de abril de 1964, p. 3, tít.: A
forte personalidade do novo líder)
Como se pode perceber, os rituais discursivos que constituem a prática
discursiva jornalística encontram-se submetidos a uma lógica judaico-cristã ocidental
marcada pela oposição Bem vs o Mal
34
.
Nota-se que o Mal é identificável, enquanto que o Bem, não. Na argumentação
é feita a seguinte relação: Mal é tudo o que pertence ao campo do Outro, do contrário,
o que deve ser rejeitado (o comunismo); Bem, tudo aquilo que pertence ao campo do
Mesmo – que inclui o locutor e seu auditório –, é o natural, o indiscutível, o arraigado,
o consenso (tudo que se volta contra o comunismo, a democracia). De acordo com
Mariani, “Estar no campo do Mesmo é estar partilhando, simbolicamente, os valores
do Bem. (...).”
35
O Mal, no entanto, é necessário para a própria construção desse
Bem. Portanto, sem a identificação desse Mal, não teríamos como definir o que é o
Bem. Podemos concluir, desse modo, que a luta da democracia vs comunismo é
34
Essa característica do discurso dos jornais brasileiros foi identificada por Bethania Mariani, op. cit.,
p. 230.
35
Idem, p. 83.
68
caracterizada como a luta do Bem vs o Mal. Não é, pois, uma luta política, mas
moral, na qual o Bem deve vencer e expulsar o Mal.
Como afirma Bethania, no seu caso quanto à construção da imagem dos
comunistas no imaginário dos jornais, o uso de termos ligados à moral ou à religião
fragilizam a discussão política e contribuem na didatização da caracterização que se
pretende fazer. O apagamento da discussão política desencadeia um processo de
despolitização do leitor
36
. Isto resulta em um processo de institucionalização dos
dizeres que devem ser ditos e repetidos. Ou seja, o que os jornais procuram é criar
uma “ilusão de consenso” quanto ao regime e aos opositores, e, assim, reforçar o
“poder simbólico” dos dominantes.
Em resumo, todo o tempo, o discurso jornalístico cotidiano está atravessado por
um já-dito sobre o Bem, um consenso intersubjetivo, onde o Bem – embora só
definido a partir do que é o Mal – é tido como evidente. Contudo, ocorrem mudanças
quanto à definição do que é o Mal, ao longo do tempo.
75. (...). Haveria efetivamente no País ambiente para eleições? E estava a
Revolução preparada para enfrentar uma ampla consulta popular? A
resposta é forçosamente negativa. (...). Os sacrifícios exigidos pela
Revolução ao povo brasileiro teriam por força de impopularizar essa
mesma Revolução. Foi o que o sr. marechal Castelo Branco esqueceu ao
convidar o povo a comparecer às urnas. Sabíamos que, no momento, os
sacrifícios pesariam mais no ânimo das massas do que os benefícios que
apenas principiam a atingi-las. Em que pese s. exa., que insistiu sempre em
encarar os pleitos como atos de âmbito puramente regional, a Revolução
estava em causa. E o veredictum popular não podia ser-lhe favorável. (O
Estado de São Paulo, 5 de outubro de 1965, p. 3, tít.: Eleições realizadas)
76. (...). O mal não está nas instituições e não será mutilando a
Constituição que o sr. marechal Castelo Branco acabará com as crises que
continuam enfraquecendo o seu governo. (...). (O Estado de São Paulo, 26
de outubro de 1965, p. 3, tít.: Empate impossível)
77. (...). O Governo de inspiração revolucionária, ao editar anteontem o seu
Ato Institucional n.º 2, não se limitou a lançar mão de recursos e poderes
excepcionais considerados, de seu ponto-de-vista, indispensáveis a debelar
a crise aguda, que se reabriu nas instituições. O Governo extrapolou da
missão que lhe compete e provocou, a olhos vistos, um retrocesso político
que desmente, senão anula, os objetivos democráticos de seu programa de
36
Id., p. 134.
69
recuperação nacional. (Jornal do Brasil, 29 de outubro de 1965, p. 6, tít.:
Direito de defesa)
78. O Governo revolucionário, que atravessou o seu período mais difícil
sem afetar a liberdade dos jornais, decidiu-se, finalmente, ao apagar das
luzes, por uma iniciativa de caráter antidemocrático e de duvidoso alcance
prático. Se deseja, porém, teimosamente, insistir no erro, assuma então ao
exclusiva responsabilidade e seu ato e decrete o diploma com que procura
ferir um direito fundamental de toda sociedade livre. O Congresso é que
não deve associar-se a essa aventura sinistra e ditatorial, mesmo porque não
há um congresso verdadeiramente livre num regime em que os jornais são
submetidos a medidas de restrição e coerção. (...). (Jornal do Brasil, 7 de
janeiro de 1967, p. 6, tít.: Responsabilidade)
Ainda que as críticas mais incisivas tenham ficado restritas aos discursos do
Jornal do Brasil e d’O Estado de São Paulo, percebe-se que o Mal passa a ser
associado à política do governo. Isto evidencia a fragilidade da coalizão civil-militar
no poder e as oposições internas que então surgiam. Contudo, essa oposição era
restrita ao rumo adotado pelos governos militares. Nunca em oposição aos “ideais
originais” da “Revolução”. Se por um lado “democracia” aparece como formação
discursiva dominante no imaginário e no discurso na década de 1960, por outro lado,
“comunismo” é o antagonista dominante neste mesmo discurso. As críticas à política
dos governos militares não se comparavam, portanto, ao perigo maior representado
pelo comunismo.
1.4. As construções dos sujeitos
Esta quartelada que por aí anda exaltada em bocas antes tão ordeiras
e constitucionalistas, tem vários aspectos curiosos e sórdidos, e um deles é
precisamente o de se intitular “revolução”. Pode-se aceitar a denominação,
tal como se aceita a metamorfose nominal das prostitutas e das dançarinas
de cabaré, onde as Marias Franciscas viram Brigites e as Sebastianas das
Dores viram Marylins.
Chamar a quartelada de revolução não chega a ser, porém, uma
alteração nominal. É uma simples e péssima metáfora.
37
No discurso jornalístico do período em análise, os presidentes militares, o
próprio regime, o Legislativo e os opositores – de modo geral indefinidos – são alguns
70
dos sujeitos privilegiados. Como na presente análise estes são alguns dos
“personagens” centrais
38
, o exame da construção dos sujeitos se deterá
exclusivamente sobre eles.
Um dos aspectos dessa construção é o uso de adjetivações para os sujeitos.
Seguindo o caráter bipolar da argumentação, estas construções também são feitas sob
a lógica do Bem vs o Mal. Por um lado, aos aliados são associadas qualificações
positivas, que fazem referência a “valores coletivos” arraigados na sociedade. Aos
opositores, apenas as qualificações de caráter negativo.
É o que se percebe ao analisar as seqüências discursivas destacadas a seguir.
Primeiro com relação aos opositores do regime. Em um segundo momento, com
relação ao próprio regime, aos presidentes Castelo Branco e Costa e Silva, e, por fim,
ao Legislativo.
79. O Congresso tem, no momento, a maior oportunidade de mostrar ao
País como eram injustas as críticas que lhe fazia o Ex-Presidente, seguido
nelas pela fina flor da agitação subversiva e do peleguismo imoral. Não
deve perder essa chance, pois, em última análise, foi para a sua defesa, para
a defesa do que ele representa, como expressão do regime democrático, que
as Forças Armadas se puseram em marcha, o povo enfrentou a violência e
toda a Nação viveu um período de sofrimento e angústia, finalmente
transformado em dias de luz e esperança. (O Globo, 3 de abril de 1964, p. 1,
tít.: A Vez do Congresso)
80. (...). Aqui tivemos uma revolução, destinada a afastar do Governo os
comunistas que o haviam envolvido, a acabar com as práticas de corrupção
que levaram brasileiros a silenciar e até a comprometer-se com a infiltração
vermelha, a restaurar as forças da Nação, combalidas pelos desatinos dos
últimos anos. (O Globo, 4 de abril de 1964, p. 1, tít.: Um Governo que
Honre a Revolução)
81. A nova situação veio para ficar. Só parcela ressentida do janguismo, os
aproveitadores do comunismo, almejam levar-nos para a política de: após
Jango o dilúvio. Só ao janguismo interessa o fechamento do Congresso,
novamente soberano. (Jornal do Brasil, 7 de abril de 1964, p. 6, tít.: O
desejo da Nação)
82. (...). Aceitemos o instrumento excepcional e a dose forte como
necessários ao expurgo dos agentes comunistas e à recuperação político-
37
CONY, Carlos Heitor. “Da Coisa Provecta”. In: ____. op. cit., p. 98.
38
A construção dos sujeitos “militares” e “Forças Armadas” é também importante. Entretanto, para a
análise que se pretende, com relação aos militares, optei por me fixar apenas na construção dos sujeitos
dos presidentes militares.
71
administrativa do País. (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O
Ato Institucional)
83. A simples inclusão deste artigo [art. 7.º] e respectivos parágrafos no Ato
Institucional está a demonstrar que, desta vez, não consentirão os chefes da
Revolução que a legião dos que atentaram contra a dignidade nacional e
transformaram a vida pública em regime de “gangsters” possa fugir às
sanções da lei. (O Estado de São Paulo, 11 de abril de 1964, p. 3, tít.: O
Ato Institucional)
84. (...) só com a colaboração de todos será vencida esta fase excepcional
de nossa existência como país soberano e voltaremos ao pleno gozo das
garantias constitucionais, que até agora só estavam garantindo os maus
brasileiros, os agitadores e pregoeiros da subversão. (O Globo, 11 de abril
de 1964, p. 1, tít.: A Revolução Consolidada)
85. Se a Revolução não tivesse obtido a vitória, se os comunistas e seus
aliados houvessem derrotado os democratas, que teria acontecido ao Brasil?
Estaríamos mergulhados num banho de sangue, os pelotões de fuzilamento
não descansariam, a Constituição teria sido abolida, o Congresso fechado e
ninguém mais ouviria falar em liberdades públicas ou privadas. O Ato
Institucional objetiva, precisamente, a impedir que os inimigos da
democracia voltem a dispor de condições para atentar contra a liberdade e o
regime. (O Globo, 11 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Revolução Consolidada)
86. Com a sua economia aniquilada pelos atos de pura insensatez que foram
o forte do Governo deposto, atravessando uma séria crise financeira, vendo
seu povo passar as maiores privações pela alta incessante dos preços,
sentindo a necessidade de uma série de providências capazes de corrigir as
desigualdades sociais violentas, para que se inicie uma época de
tranqüilidade e bem-estar social, o Brasil não podia perder tempo com as
estéreis lutas políticas, com os estertores da oligarquia comuno-sindicalista,
com os esperneios dos cúmplices da administração passada. (O Globo, 11
de abril de 1964, p. 1, tít.: A Revolução Consolidada)
87. (...). Não foi, com efeito, necessário um tiro sequer, não se exigiu uma
só gota de sangue para que se despovoasse o ambiente nacional dos
energúmenos encarregados de desfechar no Brasil a guerra pela revolução
vermelha. Mansamente se vão higienizando as posições políticas,
quietamente se vão afastando dos cargos administrativos os corruptos e os
corruptores e com o esvaziamento dos pelegos vermelhos no campo
sindical voltam a reinar a calma, a ordem e a reflexão nos meios
trabalhistas. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de abril de 1964, p. 3, tít.: A
forte personalidade do novo líder)
88. (...). A sobrevivência de um poder que, muitas vezes por omissão e
outras tantas pelo desejo de ajudar o caudilho, não concorreu menos do que
o Executivo para o caos existente antes do 31 de março, além de introduzir
uma cunha perigosa no regime de fato sem o qual não lograria a Revolução
atingir os seus fins, permitiu que o bacharelismo e a má fé dos irredutíveis
inimigos do movimento ponham em discussão a maioria dos atos do poder
constituído. (...). (O Estado de São Paulo, 19 de maio de 1964, p. 3, tít.: O
significado do 31 de março)
89. Demonstrando que o povo pode confiar na autoridade do Governo, e
confiando ao mesmo tempo na lucidez da decisão popular, o Presidente
72
Castelo Branco acrescenta às suas palavras uma mensagem de advertência
aos inimigos da Revolução e aos que se prestam em lhes servir de
instrumento, a troco de vantagens eleitorais. (...). (Jornal do Brasil, 2 de
outubro de 1965, p. 6, tít.: Coesão revolucionária)
90. (...). É a gente incaracterística que não tem talento, patriotismo,
dignidade, cultura, o rebanho dos politiqueiros vindos das antigas bancadas
do PSD e do PTB, a escória humana que a Revolução se propunha
erradicar da vida pública, a massa amorfa dos deputados que são do MDB
apenas porque a entrada no redil da ARENA lhes estava vedada. (...). (O
Estado de São Paulo, 22 de outubro de 1966, p. 3, tít.: A falência do poder
civil)
Em síntese, João Goulart e os opositores do regime são: “agitadores”,
“subversivos”, “comunistas”, “gangsters”, “cúmplices”, “corruptos”, “inimigos”,
“escória”. Verifica-se, portanto, que as adjetivações procuram torná-los ilegítimos.
Isto enquadra-se dentro da lógica de deslegitimação da situação anterior e da
oposição, para legitimar a ação e o subsequente regime militar. Em resumo, a
“corrupção”, a “subversão”, o “comunismo”, a “agitação”, seriam contrários à
“vontade única” da Nação brasileira.
José Luiz Fiorin percebe que este aspecto também se faz presente nos discursos
dos próprios presidentes militares. Para ele,
Quando qualifica os “revolucionários” e os “não-revolucionários”, o
discurso [dos presidentes militares] usa, respectivamente, palavras
conotadas positiva e negativamente. Em relação a seus inimigos, as
qualificações semânticas servem para estigmatizar. Eles são corruptos,
traidores, mercenários, demagogos, etc. Com isso, o que se quer é difamar
o inimigo, para que seus pontos de vista não mereçam sequer exame, pois
eles estão sempre contaminados por interesses subalternos. Com esse
procedimento, pretende-se açular certas parcelas da população, para que
reajam emotivamente contra certas idéias e certas atividades políticas.
Assim, o discurso procura não trabalhar com fatores lógicos, mas
emocionais. O uso de termos emotivamente conotados converte as
afirmações em algo que o leitor ou ouvinte não podem verificar
objetivamente.
39
Ou seja, o que se pretende através do uso das denominações (ou adjetivações) é
a produção de sentidos que procuram constituir o efeito de discurso único,
homogêneo. Nesse processo, gera-se um efeito de ilusão referencial, que contribui
39
FIORIN, José Luiz. op. cit., p. 126-127.
73
para que determinada “coisa” seja associada a uma certa imagem construída. Assim,
tenciona-se garantir, com mais eficácia, o efeito imaginário do real.
Algo semelhante teria ocorrido no Chile. Segundo José Joaquín Brunner, em
sua análise sobre o discurso do jornal chileno El Mercúrio, durante a ditadura do
General Pinochet os críticos da ideologia de mercado – que era apresentada pelo
jornal como a possibilidade democrática – eram caracterizados de “ignorantes”,
“demagogos” e “porta-vozes de interesses feridos pela política de liberdade
impulsionada pelo regime militar” daquele país
40
.
Na medida em que se propõe, conforme Fiorin
41
, que tais críticos são
“inimigos” e que opor-se ao governo é opor-se à nação, os opositores são postos como
não fazendo parte da nação. Não são povo. São anti-povo, anti-Nação, anti-
brasileiros. Desse modo, devem ser combatidos por todos, pela nação, pelo povo,
pois todos são responsáveis pela segurança nacional
42
.
Como dito anteriormente, à oposição não é dado espaço para expor os seus
pontos de vista. Eles sequer são analisados. No discurso sobre o outro não há espaço
para réplicas, polêmicas, confrontos. Eles são desconsiderados e, apenas,
apresentados como opostos aos interesses da nação. Como salienta Bethania Mariani,
no seu caso específico, acerca do discurso jornalístico sobre os comunistas,
(...) o discurso dos comunistas praticamente inexiste na imprensa de
referência. Não havendo lugar para o discurso do Partido, o poder
discursivo dos jornais torna-se mais incisivo: se não há espaço para
confrontos, réplicas ou polêmicas os sentidos da formação discursiva
política dominante se instalam e se disseminam com maior facilidade
43
.
40
Cf. BRUNNER, José Joaquín. “Agentes e Catequizadores na Formação da Consciência Burguesa”,
op. cit., p. 94.
41
FIORIN, José Luiz. op. cit., p. 43.
42
De acordo com a Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra e
tomada como matriz da conduta do regime, o mundo viveria em guerra permanente (contra o
comunismo). Desse modo, a segurança nacional visaria a conquista e defesa dos objetivos nacionais
(integração nacional, soberania, bem-estar e progresso), frente ao comunismo. No entanto, como esta
guerra seria de um tipo novo, “moderno”, exigiria um esforço de todos. Nesse sentido, toda a Nação
seria responsável pela consecução e defesa dos dos objetivos nacionais. Em conseqüência, pela
segurança nacional. Sobre a Doutrina de Segurança Nacional, ver: COMBLIN, P
e
. Joseph. A
Ideologia da Segurança Nacional. O poder militar na América Latina. 3.ª ed. Trad.: A. Veiga
Fialho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
43
MARIANI, Bethania. op. cit., p. 61.
74
O mesmo ocorre quanto à oposição ao regime militar, nos discursos dos jornais.
E não apenas os discursos oposicionistas são desconsiderados. Os próprios opositores
poucas vezes são definidos. Em geral, são apenas mencionados como opositores,
comunistas, subversivos, etc. Este procedimento unifica as diferentes oposições,
tornando-as uma única coisa: o mal a ser combatido. Normalmente, o que ocorre é a
violência da linguagem nas caracterizações dos opositores. Isto é o que se denomina
argumentum ad personam
44
, ou seja, ignora-se o debate das idéias parte-se para a
desqualificação do adversário, para a agressão “pessoal”, ainda que esse adversário
não seja concretamente definido.
Além disto, a caracterização negativa da oposição justifica a repressão,
contribuindo para a legitimação o governo. Como nota Fiorin
45
, nos discursos em
defesa do regime, é a oposição que “radicaliza”, e o governo é obrigado a um fazer
defensivo para “salvar” a democracia. Elimina, pois, a sua responsabilidade sobre a
ação e a põe exclusivamente no outro.
Na análise dos recortes discursivos abaixo, nota-se que, quanto ao “Movimento
Revolucionário”, o processo é o inverso. Com relação ao regime, de início, também
ocorre o mesmo:
91. (...). É nas nascentes mineiras da revolução democrática e progressista
que vamos encontrar a liderança natural agora chamada a desempenhar a
segunda parte de sua missão. (...). (Jornal do Brasil, 4 de abril de 1964, p.
6, tít.: Decisão urgente)
92. Sucederam-se até domingo à noite (...) as manobras arquitetadas por
indivíduos e agrupamentos menos responsáveis da política, para frustrar,
com a eleição para a Presidência da República de um elemento estranho às
aspirações populares, a estupenda vitória democrática que acaba de
assegurar a estabilidade das instituições republicanas no Brasil. (...). (O
Estado de São Paulo, 7 de abril de 1964, p. 3, tít.: Vitória decisiva da
Nação)
93. Figuramos entre os primeiros a propor essa prorrogação, no que
reafirmamos a mesma confiança que, como intérpretes da opinião pública,
44
Ver, sobre esse tipo de argumento: CARVALHO, José Murilo. “História Intelectual no Brasil: a
retórica como chave de leitura”, op. cit., p. 138-141.
45
FIORIN, José Luiz. op. cit., p. 75.
75
depositamos no eminente líder democrático ao lembrarmos o seu nome para
a chefia do governo revolucionário. Então como agora, o que visamos com
a sugestão foi única e exclusivamente a definitiva consolidação da vitória
do Movimento democrático. (...). (O Estado de São Paulo, 3 de julho de
1964, p. 3, tít.: Um imperativo da consciência revolucionária)
94. A Revolução segue um processo que não pode ser cortado ou
interrompido ao se atingir um prazo fatal, fixado anteriormente aos eventos
que modificaram completamente o panorama nacional. A Revolução deve
ter conseqüências definitivas, que implicarão na reformulação de todo o
quadro político, pois a Revolução não pode ser inconseqüente. (O Globo, 16
de julho de 1964, p. 1, tít.: A Prorrogação)
95. Vamos edificar esse FUTURO realizando a síntese das urnas
democráticas. Trazendo o Povo para o fluxo democrático de uma
Revolução Democrática, que confia no Povo, (...). (O Globo, 1 de outubro
de 1965, p. 1, tít.: A segurança da Revolução não estará em perigo porque o
Povo vai falar)
96. (...). O Presidente desfaz, pela base, o equívoco daqueles que
identificam na realização do pleito, e sobretudo na intensidade assumida
pela campanha eleitoral, uma brecha para o enfraquecimento do dispositivo
revolucionário. Ao contrário, a Revolução exercita “uma inequívoca
demonstração de força” chamando às urnas milhões de brasileiros, força
que é ao mesmo tempo de autoridade e de convicção democrática,
conforme os ideais que inspiram o Movimento de 31 de Março. (...). (Jornal
do Brasil, 2 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Coesão revolucionária)
46
97. O Presidente da República vê – e com ele todo o País – que a Revolução
Legislativa, ou seja, a Revolução realizada pelos processos legislativos se
casa com a vontade popular para eliminar os piores inimigos. (...). (O
Globo, 8 de outubro de 1965, p. 1, tít.: O Brasil Não Voltará à Corrupção e
à Subversão!)
98. (...). Homens que jogaram tudo, absolutamente tudo (...) ao engajarem-
se na conspiração patriótica cujo desenlace foi o levante nacional que depôs
o governo comunizante e corrupto do sr. João Goulart não podem
presenciar sem revolta o processo de regressão do País. (...). (O Estado de
São Paulo, 16 de outubro de 1965, p. 3, tít.: Fora da realidade)
99. (...). E o que mais choca a grande maioria dos brasileiros é a certeza de
que a morte da Revolução surge como o preço dessa política, irmã gêmea
daquela que julgava ter sepultado para sempre na jornada histórica do 31
de Março. (O Estado de São Paulo, 23 de outubro de 1965, p. 3, tít.:
Tenente, sim diplomata, não!)
100. (...). Decorridos apenas 18 meses sobre a jornada gloriosa do 31 de
março, viu-se o governo que foi elevado ao poder pelo grande levante
patriótico na contingência de promulgar novo Ato Institucional. (...). (O
Estado de São Paulo, 28 de outubro de 1965, p. 3, tít.: O inevitável
aconteceu)
101. (...) se desde o começo estava s. exa. decidido a por de lado a moral,
que pelo menos o fizesse sem tisnar uma jornada que se conta entre as
46
Grifo no original: “uma inequívoca demonstração de força”.
76
mais belas do civismo brasileiro. (O Estado de São Paulo, 16 de dezembro
de 1966, p. 3, tít.: O chefe do Executivo e a opinião pública)
102. (...). Era por conseguinte apoiado em fatos positivos, ou melhor, numa
experiência de grandes proporções que o magnífico Movimento cívico de 31
de março se julgava em condições de transformar entre nós a face das
coisas. (...). (O Estado de São Paulo, 28 de setembro de 1966, p. 3, tít.: Em
franco retrocesso)
103. O gosto amargo da desordem insuflada e organizada pelo próprio
Governo, naqueles tristes anos em que estivemos à borda do caos, fez com
que o Brasil recebesse de braços abertos a intervenção saneadora dos
militares e compreendesse a adoção das medidas excepcionais, que
interromperam o fluir de nosso processo democrático. (...). (Jornal do
Brasil, 7 de setembro de 1968, p. 6, tít.: Forças Armadas)
A análise dos recortes sugere que o objetivo do uso das adjetivações em
destaque é a legitimação do “movimento revolucionário” e do regime. Constata-se
isto de duas formas: primeiro, ao construir a idéia de que o movimento e o regime
representavam a encarnação da “vontade única” de salvaguarda da Nação e da
democracia contra o perigo do comunismo e da subversão; segundo, a própria
associação de ambos à democracia. Isto ocorre por ser a “democracia” a formação
discursiva predominante no imaginário político. Ao tentar atender a estas imagens, o
discurso jornalístico objetivava a legitimidade não só da ação, mas também da nova
ordem legal. Para serem legítimos, precisavam ser “democráticos” e da “vontade da
Nação”.
Essas características não se faziam presentes apenas no discurso dos jornais.
Eliézer Rizzo de Oliveira nota que também nos discursos do presidente Castelo
Branco ocorre essa associação entre a “vontade da nação”, representada pela
“Revolução”, e a defesa das instituições democráticas. O objetivo seria a busca de
legitimidade. Segundo o autor, nos discursos de Castelo,
(...) a legitimidade se fundamentaria no consenso da nação acerca da sua
própria vontade geral expressa pelos propósitos do movimento de 64 e,
mais diretamente, pelo governo Castelo Branco: a retomada do
desenvolvimento econômico (e a difusão social de seus resultados) e o
aperfeiçoamento das instituições democráticas. (...).
47
47
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969).
Petrópolis: Vozes, 1976, p. 73.
77
Embora a “Revolução” permaneça com a adjetivação positiva, com relação ao
governo militar isto é variável. À medida que se definem os seus rumos, as
caracterizações deste passam a apresentar um caráter negativo, e, as do regime, de
desesperança. É o que se nota nas seqüências a seguir:
104. (...). Não será com articulações e compromissos relacionados com o
trânsito da fórmula da eleição indireta que s. exa. servirá a Revolução
moribunda. (...). (O Estado de São Paulo, 23 de outubro de 1965, p. 3, tít.:
Tenente, sim diplomata, não!)
105. (...). A condenação que essas propostas nos merecem nasce, pelo
contrário, da persuasão em que estamos de que elas não passam de mais
outros paliativos destinados a conservar em banho-maria esta Revolução
meio anêmica, além de sermos (...) visceralmente contrários a modificações
da Constituição. (...). (O Estado de São Paulo, 27 de outubro de 1965, p. 3,
tít.: A crise em marcha)
106. O fato é que, passados dois anos e meio do movimento de 31 de março
de 1964, a chamada Revolução continua a agir na mesma pauta das
punições e continua a sua caça às bruxas. (...). (Jornal do Brasil, 18 de
outubro de 1966, p. 6, tít.: Insegurança Doutrinária)
48
Percebe-se que, embora ocorram mudanças quanto à caracterização da
“Revolução”, isto nunca é feito de modo a denegrir o movimento civil-militar. Esta
alteração revela, em suma, as diferentes visões existentes no interior da coligação
golpista. Grupos insatisfeitos, como são os casos do Jornal do Brasil e d’O Estado de
São Paulo, tendiam a demonstrar, em seus discursos, as suas contrariedades com os
rumos ditados pela facção golpista no poder.
Processo semelhante ocorre quanto à construção da imagem de Castelo Branco.
Primeiro, a sua caracterização é positiva, depois, a fragmentação da coalizão golpista
leva a uma caracterização negativa de sua imagem. As seqüências abaixo, retiradas
de edições dos dois primeiros anos do regime, referem-se ao caráter positivo:
107. (...) Para a árdua tarefa ainda a realizar no sentido da concretização da
vitória democrática, precisamos ter na Presidência da República não só um
homem isento de compromissos partidários, mas também, e principalmente,
um homem sereno sem prejuízo da sua energia, um pulso forte sem prejuízo
do seu equilíbrio, um homem justo sem prejuízo da sua decisão. E esse
homem é como desde o primeiro instante propusemos, o general Castelo
48
Grifo no original: “caça às bruxas”.
78
Branco. (O Estado de São Paulo, 7 de abril de 1964, p. 3, tít.: Vitória
decisiva da Nação)
108. Todos os brasileiros vêem, com esperança e desafogo, chegar à
Suprema Magistratura a figura eminente do General Humberto Castelo
Branco (...). (O Globo, 11 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Revolução
Consolidada)
109. Não é estranho à atmosfera de paz, serenidade e confiança hoje
reinante no País, o acerto da Nação ao escolher o marechal Castelo Branco
para a suprema magistratura republicana neste instante ainda delicado da
evolução dos acontecimentos. Sabia o suficiente, com certeza, o povo
brasileiro desse admirável cidadão e militar, para com tanta segurança, e
com tal unanimidade, apontá-lo para um posto que, por s. exa. exercido,
será de fato, um posto de sacrifícios. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de
abril de 1964, p. 3, tít.: A forte personalidade do novo líder)
110. (...). Mas o que há de mais extraordinário no acerto desta escolha tão
oportuna, são os pormenores que têm vindo à luz sobre a personalidade
desse ilustre membro do Supremo Comando Revolucionário, (...). (O
Estado de São Paulo, 16 de abril de 1964, p. 3, tít.: A forte personalidade
do novo líder)
111. (...). Esse ato prova que o Presidente não teme os testes definitivos e
duros e que é ele, de fato, o mandatário do movimento de março. (...).
(Jornal do Brasil, 5 de junho de 1964, p. 6, tít.: Autoridade)
112. Figuramos entre os primeiros a propor essa prorrogação, no que
reafirmamos a mesma confiança que, como intérpretes da opinião pública,
depositamos no eminente líder democrático ao lembrarmos o seu nome para
a chefia do governo revolucionário. Então como agora, o que visamos com
a sugestão foi única e exclusivamente a definitiva consolidação da vitória
do Movimento democrático. (...). (O Estado de São Paulo, 3 de julho de
1964, p. 3, tít.: Um imperativo da consciência revolucionária)
113. (...). Chegamos, realmente, logo após a satisfação com que
verificamos o acerto da escolha de tão ilustre brasileiro para a chefia do
governo revolucionário, à conclusão de que só dificilmente lograríamos,
com a estrita observância dos limitados prazos fixados no Ato Adicional,
completar as medidas indispensáveis ao seguro retorno do País à
normalidade política. (...). (O Estado de São Paulo, 3 de julho de 1964, p.
3, tít.: Um imperativo da consciência revolucionária)
114. O JORNAL DO BRASIL tem razão especial para saudar a
prorrogação, por um ano, do mandato do Chefe constitucional da
Revolução de 31 de março. (...). (Jornal do Brasil, 18 de julho de 1964, p.
6, tít.: Voto de confiança)
115. O Presidente da República não faz uma afirmação gratuita ou leviana.
Pesa tranqüilamente o valor de sua palavra de guardião da legalidade
revolucionária democrática quando se compromete a dar posse aos eleitos,
(...). (O Globo, 1 de outubro de 1965, p. 1, tít.: A segurança da Revolução
não estará em perigo porque o Povo vai falar)
116. (...). Pelo Poder Executivo fala o digno soldado que o Exército
ofereceu à Nação, para conduzir-lhe os destinos, nesta hora crucial da vida
79
do Brasil. (O Globo, 25 de outubro de 1965, edição final, p. 1, tít.: A
Unidade Revolucionária)
117. (...). A direção quem dá é o Presidente Castelo Branco, expressão
política da Revolução e seu único e autorizado intérprete. (O Globo, 25 de
outubro de 1965, edição final, p. 1, tít.: A Unidade Revolucionária)
Nota-se que a estrutura do discurso compreende uma tentativa de redefinição do
homem público a partir de atribuições do seu espaço privado, de modo a relacionar
certas características da personalidade do presidente e certas funções profissionais
com a solução de problemas. O que se intenta é transformar o capital simbólico do
militar Castelo Branco em capital político para o presidente Castelo Branco. A
missão do “homem isento de compromissos partidários”, do “digno soldado” seria a
de se “sacrificar”, se “sujeitando” ao papel de presidente da República, para salvar a
pátria ofendida e ameaçada. Como “agradecimento”, caberia aos demais membros da
“Nação” se submeterem ao comando do “Chefe revolucionário” e “guardião da
legalidade”.
Em complemento, os discursos constróem uma imagem de “democrata” para
Castelo Branco. Se o presidente é democrata o regime também o é. Contudo, esta
construção não é gratuita. Como dito anteriormente, esta opção é feita a partir da
suposta imagem que os brasileiros possuem de um presidente. Como frisa Freda
Indursky, a construção da imagem do presidente como democrata
(...) representa o desejo de ir ao encontro do imaginário de boa parte da
opinião pública para a qual o presidente deve ser um democrata. Esses
procedimentos indicam a busca de autenticidade para o regime. Sendo o
presidente um democrata, o poder é legítimo porque exercido com base nas
instituições democráticas e emanado da vontade do povo (...).
49
Contudo, assim como ocorre com relação ao regime, esta imagem não é fixa. É
o que se observa no transcorrer da primeira fase do regime, inclusive quanto à figura
de Costa e Silva:
118. Sob esse aspecto, é s. exa. uma individualidade cujas características se
opõem radicalmente àquelas que tornaram o sr. marechal Castelo Branco
49
INDURSKY, Freda. op. cit., p. 56.
80
um adversário formal das figuras que melhor encarnaram o espírito
revolucionário. (...). (O Estado de São Paulo, 2 de outubro de 1966, p. 3,
tít.: O futuro presidente)
119. Já por várias vezes temos abordado esse delicado aspecto do problema
nacional e apontado os prodígios de dialética de que é capaz o
“bacharelismo” quando se trata de justificar perante o público as fantasias
do chefe ocasional do Estado. (...). (O Estado de São Paulo, 9 de outubro
de 1966, p. 3, tít.: A deturpação dos espíritos)
120. (...). O Congresso não desaparecerá por um ato de bravura dos seus
membros, mas, segundo é crença geral, por mais um ucasse de El
Supremo
50
que o fará entrar em recesso, no decorrer do qual outorgará ao
País, à maneira do seu paradigma, o sr. Getúlio Vargas, a “sua”
Constituição. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de outubro de 1966, p. 3,
tít.: Para onde querem arrastar-nos?)
51
121. Quis o acaso que a esses senhores fosse oferecida uma saída honrosa.
Para se tornarem credores do respeito do País, bastava que, desmentindo
todo o seu passado de transigências com o poder, se dispusessem a
responder à violência do Palácio da Alvorada com outra: a dissolução pura
e simples do Parlamento! Assumissem s. exas. a responsabilidade de lançar
um manifesto à Nação, expondo os motivos que os levavam a rasgar os
respectivos diplomas por não se conformarem inclusive com a humilhante
condição de terem de deliberar sob a ameaça – suspensa sobre as cabeças
dos que discordassem do presidente-ditador – de uma cassação eventual de
mandatos e até de suspensão de direitos políticos, e uma grande, uma
imensa lição seria dada às tendências para o despotismo reveladas pelo
chefe da Nação. (...). (O Estado de São Paulo, 20 de setembro de 1966, p.
3, tít.: O Congresso e o Palácio da Alvorada)
122. As coisas à volta do candente problema do restabelecimento da ordem
constitucional no País não variam. Elas estão a depender do que venha a
decidir o homem que, quer queira quer não, desempenha hoje as funções de
simples ditador. (...). (O Estado de São Paulo, 20 de setembro de 1966, p.
3, tít.: O Congresso e o Palácio da Alvorada)
123. (...) não obstante as aparências de falsa constitucionalidade que o sr.
marechal Castelo Branco quis emprestar ao seu governo, nada mais é ele do
que uma modalidade nordestina do caudilhismo sul-americano. (O Estado
de São Paulo, 3 de fevereiro de 1967, p. 3, tít.: Um temperamento de
ditador)
124. (...). Para desilusão dos intelectuais improvisados da “Sorbonne”, a
ARENA, em vez de contribuir para fortalecer o poder pessoal do aspirante
a ditador, acabou por funcionar como instrumento da candidatura do ex-
ministro da Guerra. (...). (O Estado de São Paulo, 7 de fevereiro de 1967,
p. 3, tít.: Horizonte de Esperança)
52
125. O texto constitucional que nos rege, e que é, não o esqueçamos, obra
tanto do primeiro governo saído do Movimento de março de 64 como do
50
Ao denominar Castelo Branco de “El Supremo”, talvez O Estado de São Paulo estivesse tentando
associa-lo à figura de Lopez, pois era dessa forma que ele era chamado pelos paraguaios durante a
grande guerra. Grifo no original.
51
Grifos no original: “El Supremo” e “sua”.
52
Grifo no original: “Sorbonne”.
81
atual ocupante do Palácio do Planalto, não é suficientemente claro para
nos oferecer a chave indiscutível da delicadíssima questão. (...). (O Estado
de São Paulo, 16 de outubro de 1968, p. 3, tít.: O STF entre os militares e a
Câmara)
Na medida em que os procedimentos do governo desviam-se dos interesses de
algumas facções “revolucionárias”, nas quais se enquadra o jornal O Estado de São
Paulo, a caracterização positiva dos presidentes é substituída por uma negativa.
Ocorre uma dissociação da sua imagem com relação à democracia. O presidente já
não é um “democrata”, mas um “adversário” da democracia. Como “meta-sistema
perito”, O Estado de São Paulo reprovava a atuação dos presidentes. No entanto, esta
transformação do presidente em opositor da democracia sugere que esta mantinha o
seu aspecto positivo, continuava a ser o “Bem” a ser preservado.
Quanto ao Legislativo, destacam-se quatro grupos de adjetivações diferentes: 1)
as que o associam ao regime deposto ; 2) as que denotam a sua fraqueza após o golpe;
3) as que salientam o seu caráter “negativo”; e 4) as que o associam à democracia.
Associação do Legislativo ao Regime
Esta primeira imagem é resultado do apoio imediato que os jornais deram ao
movimento civil-militar, e às “esperanças” que eles, como partícipes e/ou
simpatizantes desse movimento, tinham para com os novos donos do poder. É o que
observa nas seqüências discursivas abaixo:
126. O Congresso e suas bancadas partidárias foram legitimados e ainda
estão legitimados por uma vontade revolucionária. Com isso se
transformaram – gostem ou não os bacharéis – em poder revolucionário.
(...). O papel de poder revolucionário conferido ao Congresso está
implícito no fato de haver sido poupado – com o fim de ser um poder a
serviço da Revolução – pela liderança revolucionária. (Jornal do Brasil, 15
de julho de 1964, p. 6, tít.: Congresso da Revolução)
127. No segundo turno, a maioria prorrogacionista deverá ser maior, graças
a um comparecimento maior dos congressistas, para que fique
perfeitamente claro que a agitação eleitoreira e as lealdades partidárias
menores, contrárias ao regime não encontraram guarida válida no
Parlamento da Revolução. (Jornal do Brasil, 18 de julho de 1964, p. 6, tít.:
Voto de confiança)
82
128. Novamente o Congresso é chamado a agir como Congresso da
Revolução, por cima das conveniências puramente partidárias ou de
interesses de facção. (...). (O Globo, 19 de outubro de 1965, p. 1, tít.: As
Medidas Que Faltam)
O Jornal do Brasil e O Globo associam a preservação do Legislativo à
“Revolução”. O Estado de São Paulo, desde o início contrário à preservação de um
Congresso tido como co-responsável pelo “caos” pré-revolucionário, não faz este tipo
de associação. É significativo, também, que a veiculação desta mensagem pelo Jornal
do Brasil esteja restrita aos momentos iniciais do regime.
Percebe-se que essa imagem se insere no quesito universalização dos interesses
de uma classe específica como se fossem do povo em geral. Na medida em que há
uma vontade superior, a “vontade da Nação”, que deve ser respeitada, cabe ao
Legislativo obedecê-la. Se essa vontade é representada pelos objetivos da
“Revolução”, ele deve se submeter a ela, deve estar vinculado a esta vontade. O que
se pretendia com a construção dessa relação era simular um consenso quanto ao
“objetivo original” da “Revolução” de salvar o País de todo o mal que o assombrava.
Se o Legislativo não foi suprimido isto se deveu à legitimação que ele recebeu com a
edição do primeiro Ato Institucional
53
. Assim, caberia a ele cumprir a sua missão
“revolucionária” de colaborar com o novo regime que então se instaurava e, desse
modo, contribuir com a salvaguarda da Nação. Por fim, ajudava a reforçar o domínio
de uma classe sobre outras.
Legislativo Fraco
Esta segunda imagem é fruto de uma análise mais crítica dos jornais, o que
exclui dessas caracterizações os editoriais d’O Globo, já que críticas ao governo, ou
aos seus atos, em seu discurso, eram raríssimas.
129. (...). Eleição indireta, à margem da decisão do povo, e feita por um
Congresso que está reduzido nas suas faculdades constitucionais e na sua
53
O Ato Institucional editado no dia 9 de abril de 1964 estabelecia, em seu parágrafo 5º, que a
“Revolução” não procurava legitimar-se através do Congresso. Pelo contrário, o Legislativo que é
receberia a sua legitimação do Ato Institucional.
83
autenticidade representativa. Seria um faz-de-conta engenhoso, mas nunca
um episódio respeitável da vida democrática do País (...). (Jornal do Brasil,
8 de maio de 1964, p. 6, tít.: Caminhos tortuosos)
130. (...). Diante de um Parlamento diminuído nas suas liberdades por
todas as restrições que lhe impôs o Ato Institucional, e composto de
elementos incompatíveis na sua maneira de ver as coisas e de encarar o
futuro, obterá o Executivo tudo quanto quiser, exceto implantar no País um
regime que seja realmente a resultante daquilo com que sonhava a
Revolução do 31 de março. (O Estado de São Paulo, 20 de junho de 1964,
p. 3, tít.: As emendas à Constituição)
131. (...). Em primeiro lugar, não há quem ignore que o Legislativo está
hoje transformado num poder de fachada, puramente simbólico, sem
prestígio e autoridade para se opor aos desejos do Executivo. (...). (O
Estado de São Paulo, 16 de outubro de 1965, p. 3, tít.: Fora da realidade)
132. (...). Ao superpresidencialismo inscrito no projeto [constitucional]
corresponde um infralegislativo, transformado em mero instrumento
coadjutor ou homologador do processo autoritário de governo. (...).
(Jornal do Brasil, 9 de dezembro de 1966, p. 6, tít.: Desnível de Poderes)
133. A partir de hoje, o Brasil tem um Poder Legislativo mais uma vez
mutilado e não sabe mais quem está à frente do Poder Executivo. (...).
(Jornal do Brasil, 28 de novembro de 1968 p. 6, tít.: Pressões Irresistíveis)
O Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo destacam os limites que a nova
ordem impôs às ações do Legislativo. O Globo, por sua vez, tende a ignorar os
limites que lhe foram impostos. Embora esta imagem de Legislativo fraco possa
contrastar com a imagem de um Legislativo preservado para servir à “Revolução”, o
que ela aponta é a existência de divergências no interior da coalizão golpista quanto
aos caminhos traçados pela facção que efetivamente assumiu o poder.
Essa imagem, no entanto, não mostra uma oposição absoluta ao Legislativo.
Pelo contrário, neste caso, sua caracterização é mais próxima da de “vítima” do que
da de “opositor”. Se os discursos dos jornais, como “meta-sistemas perito” com
relação ao governo e ao Congresso, se propõem a defender a democracia, considerada
típica da índole do brasileiro, e se, nestes casos, suas críticas se voltam para o
governo, o Legislativo, instituição democrática, recebe uma caracterização positiva.
84
Caracterização negativa do Legislativo
Esta imagem está presente apenas no corpus d’O Estado de São Paulo,
conforme pode ser percebido nos recortes a seguir, e também é reflexo da ruptura no
interior da coligação golpista:
134. (...). Na euforia do momento, muitos revolucionários autênticos (...)
não se aperceberam de que no próprio instante em que o chefe do
movimento militar aceitou a sua investidura das mãos do Congresso
espúrio herdado do regime janguista, a Revolução morria. (O Estado de
São Paulo, 9 de outubro de 1965, p. 3, tít.: O caminho a seguir)
135. (...). É cedo ainda para se prever a futura geografia partidária do
Legislativo, mas, precisamente porque a fauna humana não variará,
assistiremos no momento oportuno à repetição das articulações, dos
compromissos indecorosos, das barganhas de toda a espécie que
transformaram o Congresso nos últimos anos em alvo do desprezo da
Nação que nele via e vê apenas um símbolo da corrupção contra a qual ela
se levantou em armas a 31 de março de 64. (...). (O Estado de São Paulo,
30 de outubro de 1965, p. 3, tít.: Ainda o novo Ato)
136. (...) movido pelo desejo de remediar os seus próprios erros pretende s.
exa. praticar um ato que seria ainda mais reprovável do que os anteriores: a
transformação em Constituinte da grotesca amostra do Parlamento de
Brasília. (...). (O Estado de São Paulo, 20 de novembro de 1965, p. 3, tít.:
Idéia infeliz)
137. (...). Foi, assim, ao nosso modo de ver as coisas, um grave erro a
legitimação, pelo governo instituído pela Revolução, de um Congresso
apontado como o mais fiel espelho das deformidades a serem corrigidas.
(...). (O Estado de São Paulo, 12 de dezembro de 1965, p. 3, tít.: O
tartamudear da oposição)
138. (...). O arremedo de Parlamento acampado na Praça dos Três
Poderes continua a ser o que sempre foi e s. exa. nem sequer conseguiu
transformá-lo em dócil instrumento da política do Palácio do Planalto. (...).
(O Estado de São Paulo, 27 de fevereiro de 1966, p. 3, tít.: Espetáculo
lamentável)
139. Eis ao que foi reduzida a vontade popular manifestada por milhões de
brasileiros nas praças públicas de São Paulo, de Belo Horizonte e do Rio de
Janeiro nos últimos dias do memorável mês de março de 64. Pelo menos é
o que se pode presumir da completa incapacidade de um conglomerado de
indivíduos que jamais fizeram jus ao qualificativo de representantes da
Nação. Aliás, não há quem desconheça que somente por um equívoco da
fantasia do sr. marechal Castelo Branco pode esse amontoado de gente
manter-se até hoje sob a denominação de Congresso Nacional, a qual
perdeu todo cabimento após a fuga do sr. João Goulart. (O Estado de São
Paulo, 20 de setembro de 1966, p. 3, tít.: O Congresso e o Palácio da
Alvorada)
140. (...). As razões do divórcio estabelecido entre a Nação e os seus
representantes teóricos são sobejamente conhecidas para que valha a pena
85
insistir nelas. (...). (O Estado de São Paulo, 20 de setembro de 1966, p. 3,
tít.: O Congresso e o Palácio da Alvorada)
141. (...). Dentro desse esquema de satisfação dos seus desígnios, deve s.
exa. estar a esta hora às voltas com mais uma lista de parlamentares e
candidatos a parlamentares que terão os direitos políticos cassados, para
desse modo assegurar a sobrevivência de uma instituição que até mesmo s.
exa. reconheceu ser um fator de perturbação da nova ordem de coisas.
(...). (O Estado de São Paulo, 23 de outubro de 1966, p. 3, tít.:
Continuamos na mesma)
142. (...). E foi assim (...) que entre ver aprovada a Carta pelo Congresso
recém-eleito, na plenitude da sua autoridade política, ou por esse molambo
parlamentar que aí está, não titubeou o governo: escolheu o molambo.
(...). (O Estado de São Paulo, 16 de dezembro de 1966, p. 3, tít.: O chefe do
Executivo e a opinião pública)
A caracterização negativa do Legislativo em exercício pelo jornal O Estado de
São Paulo vai ao encontro da sua postura inicial de contrariedade quanto à
preservação desse poder pelo governo militar. Como “meta-sistema perito” também
representa a tentativa do jornal de caracterizar os supostos adversários do regime ao
mal a ser combatido. Aponta, ainda, a insatisfação da facção golpista à qual o jornal
pertencia com os rumos tomados pelo regime. No entanto, esta contrariedade é
também indicativo da opção do governo em preservá-lo, com vistas a uma legitimação
democrática.
Esta, no entanto, não era uma caracterização restrita ao jornal O Estado de São
Paulo. Como afirma M.ª Antonieta P. Leopoldi, nos anos 1960, “(...) a imagem do
político brasileiro esteve constantemente vinculada a atributos negativos, tais como a
desonestidade e a corrupção. (...).”
54
A construção deste jornal é apenas um reflexo
de uma imagem já existente em parte da sociedade.
Associação do Legislativo à democracia
Esta última imagem evidencia especificamente essa necessidade de legitimação
democrática por parte do regime militar e a colaboração dos jornais na construção da
54
LEOPOLDI, M.ª Antonieta P. “Sobre as Funções do Legislativo (I)”, Revista de Ciência Política,
vol. 6, n.º 2, abril / junho de 1972, p. 122.
86
imagem de que o Legislativo preservado indicava um compromisso democrático do
regime.
143. (...). [O Congresso] Não deve perder essa chance, pois, em última
análise, foi para a sua defesa, para a defesa do que ele representa, como
expressão do regime democrático, que as Forças Armadas se puseram em
marcha, o povo enfrentou a violência e toda a Nação viveu um período de
sofrimento e angústia, finalmente transformado em dias de luz e esperança.
(O Globo, 3 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Vez do Congresso)
144. O movimento revolucionário está cumprindo em todas as horas seu
dever. Importa, que nesta semana, o poder constitucional, o Legislativo,
cumpra o seu dever, elegendo o Presidente da República para atender ao
reclamo, ao clamor geral do País. (Jornal do Brasil, 7 de abril de 1964, p. 6,
tít.: O desejo da Nação)
145. (...). Mas é indiscutível que o Congresso, desprestigiando-se perante o
povo, cria um problema difícil para a Revolução. Não gostamos nem de
pensar nos resultados, sempre possíveis em situações como a que
atravessamos, de manifestações que tais de irresponsabilidade por parte de
uma instituição fundamental do regime que nos esforçamos por preservar e
fortalecer. (O Estado de São Paulo, 19 de junho de 1964, p. 3, tít.: O
leguleio parlamentar)
146. O momento é reconhecidamente de crise para o Legislativo (...). Não
é o caso aqui de analisar tal crise. Sempre é o caso, porém, de recordar aos
próprios legisladores que lhes cabe missão muito importante na recuperação
de uma instituição que é, em certo sentido, a pedra de toque do regime
representativo e democrático. (Jornal do Brasil, 17 de fevereiro de 1966, p.
6, tít.: Presença do Legislativo)
147. (...). De modo que o Parlamento, a mais nobre das instituições do
regime, foi por este processo desfigurado e aviltado, (...). (O Estado de São
Paulo, 28 de setembro de 1966, p. 3, tít.: Duas candidaturas edificantes)
148. Se há fato político que exige dos representantes da soberania popular
o máximo de responsabilidade e lúcida demonstração de espírito de
clarividência, esse não pode ser outro senão o da elaboração do Diploma
Constitucional. (...). (O Globo, 21 de outubro de 1966, p. 1, tít.: O Único
Imprevisível)
149. Tudo que contribuir para melhorar a imagem do Congresso como
instrumento imprescindível da vida democrática deve ser objeto de atenção
dos que ascenderem à representação popular ou a ela forem reconduzidos.
(...). (Jornal do Brasil, 16 de novembro de 1966, p. 6, tít.: Imagem do
Congresso)
150. Em benefício do conceito elevado que deve preservar, como
assembléia representativa da vontade popular, tanto a parcela renovada
como os distinguidos com nova prova de confiança, estão no dever de
preservar a independência do Poder Legislativo, através do novo
comportamento em suas relações com o Executivo. (...). (Jornal do Brasil,
25 de novembro de 1966, p. 6, tít.: Novo Congresso)
151. Cabe aos novos representantes e líderes, nascido da vontade popular,
fugir à rotina das miudezas que compunham as atribuições dos legisladores,
87
para a emancipação de tudo que possa identificá-los com o passado
comprometido, desde a prevalência do interesse pessoal, até as mais
esdrúxulas composições, os jogos espúrios, a fim de que, na estrutura
política reajustada, haja cada vez menos lugar para os vícios e mais espaço
para os capazes e probos. (Jornal do Brasil, 25 de novembro de 1966, p. 6,
tít.: Novo Congresso)
152. (...). Não há como pretender julgar imparcialmente o Congresso desta
legislatura expirante sem ponderar as circunstâncias políticas e históricas
que lhe condicionaram o agitado roteiro. Atingiram-no todos os impactos
da crise herdada da renúncia de Jânio Quadros e levada ao paroxismo por
João Goulart. E apesar de tudo, a instituição resistiu, mantendo-se como
expressão do corpo político nacional, como último reduto do Poder civil.
(Jornal do Brasil, 30 de novembro de 1966, p. 6, tít.: Missão do Congresso)
A constatação que os recortes acima sugerem é a associação do Legislativo à
democracia e da imprescindibilidade de sua preservação. Ainda que surjam críticas
ao seu desempenho ou aos limites a ele impostos pelo Executivo, fica claro que a sua
preservação é, em tese, um indicativo de “sujeição” à democracia.
Apesar destas críticas ao Parlamento em vigor e da constatação dos limites que
lhe foram impostos, percebe-se que há uma tentativa de caracterizar o Legislativo
como representação popular e de descrever a necessidade de sua preservação como
uma característica essencial de uma democracia. Eliézer Rizzo de Oliveira constata
que “A permanência do Congresso como instituição representativa da sociedade junto
ao Estado (o Congresso é ‘o legítimo representante dos ideais e aspirações do nosso
povo’) fornece outro componente da legitimidade revolucionária. (...).”
55
Portanto,
visando uma legitimação “democrática”, o regime precisa manter o Legislativo,
instituição típica das democracias representativas, em funcionamento.
De modo geral, nota-se que a retórica procurou associar a imagem da
“Revolução” e do regime à democracia. Além disso, ainda que a caracterização dos
presidentes tenha variado de uma associação a uma oposição à democracia e, apesar
da permanente dissociação entre opositores e democracia, foi feita uma constante
defesa desta. Mesmo que a prática autoritária negasse as caracterizações
55
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 75.
88
democráticas feitas pelos jornais, ao contrário do que afirmou o cronista e romancista
Carlos Heitor Cony
56
, a retórica empregada pelos jornais “não deve ser vista como
simples forjadora de metáforas, mas principalmente como instrumento de persuasão,
ou seja, a ressonância, nos adeptos ou no público em geral, é basicamente de
adesão.”
57
Portanto, os jornais, ao exercerem o seu papel de “meta-sistemas perito” com
relação à “Revolução”, ao regime, aos opositores deste, aos dois primeiros presidentes
militares e ao Congresso, buscam seduzir a “opinião pública” de modo a torná-la
crente, a produzir uma ilusão de consenso, quanto à “capacidade” administrativa e,
especialmente, “salvadora” do regime. Em contrapartida, buscam produzir um
dissenso quanto aos opositores da “Revolução”. Desse modo, reforçam o “capital
simbólico” dos novos detentores do poder, e contribuem para a reprodução da ordem
social vigente e da dominação.
Em complemento, a análise das caracterizações dos sujeitos presentes nos
discursos dos jornais sugere que a preservação da democracia era tida como um valor
fundamental e apresentava-se como formação discursiva dominante no imaginário
político, em especial para o auditório dos jornais – as camadas médias e alta da
sociedade –, entre os militares e, também, no discurso jornalístico. Portanto, para a
reprodução do domínio, esta questão não poderia ser ignorada.
56
Cf. epígrafe deste tópico, nota 37.
57
AZEVEDO, Luiz Vitor T. “‘A voz do dono’ – Tribuna da Imprensa: análise da ideologia de um
discurso de oposição (1953/1955)”, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 7, n.º 13, set. 1986 /
fev. 1987, p. 69.
89
2. A democracia como princípio
(...) o emprego da categoria “democracia” serve como operador semântico
carregado de teor legitimatório, podendo ser utilizado
contemporaneamente, tendo em vista os mais variados objetivos
ideológicos. (...). Ademais ele, por um lado, alude a uma “imagem
acústica” valorizada na História recente do país e, por outro, entra em
consonância direta (quase sem “interferência”) com o próprio grupo
castelista (...). Cabe assinalar que o signo reforça-se ainda mais com a sua
sacralização: a democracia de oportunidades – que garante o
desenvolvimento com estabilidade (...) – é aquela que é fiel às origens
(passado) e aos destinos (futuro) (...), ganhando a categoria, uma
legitimidade não exaltada em termos intelectuais, mas em termos quase
que propriamente míticos. (...).
58
Quando se fala que a democracia era a formação discursiva dominante no
imaginário político e também nos discursos jornalísticos nos anos 1960, não significa
que se esteja pondo em cheque a estrutura do poder político.
É provável que até os anos 1960 a intelectualidade brasileira não tenha se
sentido atraída pela “democracia formal”
59
e tenha se mostrado cética principalmente
quanto à democracia parlamentar. É possível, ainda, que essa opinião possa ter sido
compartilhada por setores tanto de direita quanto de esquerda, muito em face da
paralisia e impotência do Congresso durante o governo João Goulart. Mas, se não
havia essa atração pela “democracia formal” qual seria, então, a razão do regime
procurar, insistentemente, associar as suas ações à preservação da democracia?
Maria Aparecida de Aquino constata esta intenção do regime. Além disso,
considera que a construção de um regime autoritário cujos dirigentes insistiam por
caracterizá-lo como democrático é, ao mesmo tempo, uma especificidade e uma
58
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. Os Militares e a Democracia: Análise Estrutural da Ideologia do
Pres. Castelo Branco. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 71. Grifos do autor.
59
Segundo Pécault, “Não há dúvida que existe uma tradição liberal no Brasil, concorrente ou
complementar à tradição autoritária. Entretanto, é provável que os intelectuais, em sua maioria tenham
sentido pouca atração pela primeira, e muitas vezes tenham sido motivados pela vontade de organizar a
sociedade pelo alto. O fato de que atualmente todos prestem homenagens à democracia reconquistada
não nos deve fazer esquecer que a maior parte lutou pela ampliação dos espaços democráticos sem por
isso aderir à “democracia formal”; que muitos aprenderam a democracia tendo, sobretudo, de se
resignar a estratégias de racionalidade limitada diante de um regime que se sustentava por meio da
multiplicação das incertezas; e que a adesão democrática se acompanha de concepções profundamente
90
ambigüidade do caso brasileiro. A ambigüidade residiria exatamente na questão de se
procurar manter uma “aparência formal de democracia para encobrir uma prática,
essencialmente autoritária”
60
. Para Aquino, essa necessidade poderia levar à
explicação da ambigüidade e contribuir para explicar a menor intensidade da violência
no caso brasileiro, se comparada à dos demais países americanos. Contudo, Aquino
continua a se perguntar o porquê de tamanha preocupação em manter ao menos uma
aparência de um regime “democrático”. Ao meu ver, ainda que fosse uma
“democracia possível”, essa preocupação em “manter as aparências” tem como fim a
busca de legitimidade pelo regime militar.
Objetivando analisar as relações entre o Estado autoritário brasileiro e a
oposição, determinadas pelos mecanismos de dominação social vigentes no Brasil a
partir de 1964, Maria Helena Moreira Alves
61
afirma que a legitimação do regime está
vinculada aos conceitos de desenvolvimento econômico e segurança interna da nação
contra os seus inimigos
62
. Contudo, também constata a existência da necessidade de
legitimação democrática por parte do regime militar brasileiro.
Concordando com Maria Helena Moreira Alves, e crendo que os jornais
contribuíram nesse processo de legitimação democrática do regime, penso que deva
ser perceptível, através da análise dos seus discursos, que a democracia manteve-se
como formação discursiva dominante no imaginário político daquele período:
153. (...) o povo sabe perfeitamente o que deseja da revolução: legalidade,
democracia, tranqüilidade para o trabalho, paz de espírito, melhores e mais
justas condições de vida sem nenhum prejuízo de liberdade. (...). (Jornal
do Brasil, 4 de abril de 1964, p. 6, tít.: Decisão urgente)
154. Há momentos, porém, (...) em que mesmo as mais odiosas
maquinações não deixam de resultar em benefícios para o País. E foi o que
se deu com estas explosões de cobiça nos arraiais mais aventureiros da
política nacional, cuja virtude consistia em proporcionar a reafirmação das
contraditórias da instituição democrática”. PÉCAULT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil:
entre o povo e a nação. Trad.: M.ª Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990, p. 10-11.
60
AQUINO, Maria Aparecida de. “A especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e
exercício empírico”, op. cit., p. 275.
61
ALVES, M.ª Helena M. Estado e Oposição no Brasil, 1964-1984, op. cit.
62
Idem, p. 27.
91
aspirações democráticas do povo brasileiro. (...). (O Estado de São Paulo, 7
de abril de 1964, p. 3, tít.: Vitória decisiva da Nação)
155. (...). Somos uma Nação intransigentemente liberal democrática, e foi
por isso que, como Nação, decididamente nos levantamos contra os que a
toda força nos pretendiam arrastar para a órbita das ditaduras de
“esquerda”. (...). (O Estado de São Paulo, 14 de abril de 1964, p. 3, tít.: O
art. 3º do A. Institucional e o espírito da Revolução)
156. (...) A mobilização democrática, militar e civil, era inevitável. Tinha de
ser vitoriosa num País esmagadoramente democrático e anticomunista.
(Jornal do Brasil, 15 de abril de 1964, p. 6, tít.: Vitória democrática)
157. (...). Estes fins [do primeiro Governo da nova República] estão ao
nosso alcance graças à autoridade revolucionária agora constituída, em
respeito à vontade democrática da Nação. (Jornal do Brasil, 15 de abril de
1964, p. 6, tít.: Vitória democrática)
158. O Governo terá que identificar-se com a vocação democrática dos
brasileiros, devolvendo ao povo, no menor prazo possível, os instrumentos
para o correto exercício do sistema democrático de vida, o único que
aceitamos por tradição, formação e convicção. (...). (Jornal do Brasil, 28 de
outubro de 1965, p. 6, tít.: Poderes e Responsabilidades)
159. Estaríamos portanto diante de um fato perfeitamente capaz de
transformar de modo decisivo a atmosfera reinante no País e que
representaria uma conquista do mais alto alcance do espírito democrático
nacional sobre as tendências totalitárias do sr. Medeiros da Silva. (...). (O
Estado de São Paulo, 4 de janeiro de 1967, p. 3, tít.: As coisas parecem
modificar-se)
160. (...). Ainda agora, quem devia funcionar na vanguarda do
esclarecimento eram as lideranças, que no entanto continuam a reboque do
alarma, à espera de ordem e autorizações que não dependem de ninguém,
pois é evidente que o país só está comprometido com as suas possibilidades
democráticas. (Jornal do Brasil, 18 de outubro de 1968, p. 6, tít.: Força da
Legalidade)
161. (...). É que, com o correr do tempo e o contato com a realidade, vai s.
exa. [o presidente Costa e Silva] percebendo que governar uma nação de
mais de 80 milhões de habitantes e que acaba de dar, com a vitória de 64 –
que, embora s. exa. a considere como obra das Forças Armadas, se deve ao
próprio esforço da coletividade – uma demonstração viva de fé
democrática, é coisa muito diferente do comando de uma divisão ou de um
exército. (O Estado de São Paulo, 13 de dezembro de 1968, p. 3, tít.:
Instituições em frangalhos)
O que se extrai da análise dos recortes acima é que os discursos dos jornais
constróem a imagem do brasileiro como um democrata que prefere que as regras do
jogo político sigam pelo caminho da democracia. Esta imagem só pode ser construída
a partir da crença de que os princípios democráticos são valores inquestionáveis para a
“opinião pública”, em especial as camadas médias e alta, a quem os discursos eram
92
dirigidos. Invocavam-se valores tradicionalmente imputados a elas, pois elas
constituíam um fator de estabilidade para o regime
63
.
Tendo por inquestionável que parte da população crê na manutenção de
princípios democráticos, supõe-se que a imagem que ela faz de um regime ideal seja a
de um regime com essas características. Nesse sentido, a necessidade de legitimação
democrática por parte do regime militar brasileiro exige a sua
caracterização/associação à democracia. Se a democracia era um objetivo nacional
permanente, típico da “índole democrática do brasileiro”, o Estado precisaria
representar esta índole. Se assim for, passa a ser legítimo; se segue de conformidade
com princípios democráticos, que são da vontade do povo, passa a também derivar
dessa vontade. É o que se verifica nos fragmentos a seguir:
162. Para defender a democracia, preservar as instituições e continuar
existindo, as Forças Armadas se encarregaram, com amplo apoio popular e
político, de afastar do Governo aquele que não soubera aproveitar as
esplêndidas oportunidades que lhe havia reservado o destino. (...). (O
Globo, 3 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Vez do Congresso)
163. Essas novas e mais extensas definições dos anseios do povo brasileiro
calaram fundo no espírito dos legítimos líderes democráticos responsáveis
pela recondução do País ao terreno democrático (...). (O Estado de São
Paulo, 7 de abril de 1964, p. 3, tít.: Vitória decisiva da Nação)
164. (...) [A Revolução] assumiu com a consciência democrática do País, e
com os objetivos de interesse nacional que a inspiraram, um compromisso
histórico: o de repor o Brasil, no prazo previsto, sob o pleno império da
ordem constitucional, através da eminência de poder que o Ato confere ao
Executivo. (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Ato
Institucional)
165. (...) [Com a eleição do Presidente da República pelo Congresso] A
Revolução curva-se ao ritual democrático, num gesto de respeito, primeiro
e sintomático, de sua obediência aos fins que a geraram na fonte. (Jornal do
Brasil, 11 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Presidente)
166. Esperamos que o novo Presidente, os chefes da Revolução e o
Governo que se vai constituir recebam a cooperação de todos os democratas
conscientes, de todos aqueles que sabem que o ideal revolucionário é a
democracia e não põem em dúvida a sinceridade do procedimento que
inspirou a feitura do Ato Adicional. (O Globo, 11 de abril de 1964, p. 1, tít.:
A Revolução Consolidada)
63
Cf. FIORIN, José Luiz. op. cit., p. 122.
93
167. Vem-se revelando até aqui extremamente feliz o movimento
revolucionário destinado a restabelecer no País a normalidade democrática
e a pureza republicana. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de abril de 1964,
p. 3, tít.: A forte personalidade do novo líder)
168. (...). A atitude básica que norteia o Presidente Castelo é de que a
Revolução veio para reintegrar o País na democracia. (...). (Jornal do
Brasil, 5 de junho de 1964, p. 6, tít.: Autoridade)
169. É fácil concluir-se que a primeira lealdade do Congresso é com a
Revolução, com a realização plena de seus objetivos, agindo como deve
agir um dos poderes sustentados, para não dizer recriados, pela Revolução
em sua devoção ao ritual democrático-representativo. (Jornal do Brasil, 16
de julho de 1964, p. 6, tít.: Lealdade à Revolução)
170. (...). De todos os malogros da Revolução, este [a renovação dos
quadros políticos] é positivamente o mais escandaloso, não deixando no
espírito popular espaço para novas esperanças no futuro do regime
democrático. (O Estado de São Paulo, 19 de junho de 1964, p. 3, tít.: O
leguleio parlamentar)
171. Hoje o Congresso da Revolução está, por maioria absoluta, igualmente
consciente de imagem ampla e não sectária da Revolução, da imagem
progressista e não reacionária da Revolução, de seu caráter democrático-
ordenador em oposição aos movimentos de agitação personalista e
caudilhesca. (Jornal do Brasil, 19-20 de julho de 1964, p. 6, tít.: A contra-
revolução)
172. (...). O Presidente desfaz, pela base, o equívoco daqueles que
identificam na realização do pleito (...) uma brecha para o enfraquecimento
do dispositivo revolucionário. Ao contrário, a Revolução exercita “uma
inequívoca demonstração de força” (...), força que é ao mesmo tempo de
autoridade e de convicção democrática, conforme os ideais que inspiraram
o Movimento de 31 de março. (...). (Jornal do Brasil, 2 de outubro de 1965,
p. 6, tít.: Coesão revolucionária)
173. A realização do pleito de domingo último foi o passo decisivo da
Revolução Democrática ao encontro de seus ideais. (...). Pois em 3 de
outubro a Revolução Democrática se uniu ao povo, no ato da votação, e
saiu da união fortalecida pela decisão de que precisa continuar, agora mais
do que nunca, fiel a si mesma – como Revolução Democrática –, a realizar-
se pelos meios e processos adequados, (...). (O Globo, 5 de outubro de
1965, p. 1, tít.: O Brasil Não Voltará à Corrupção e à Subversão)
174. Discordamos desde a primeira hora das primeiras tentativas de
“legalização” do regime; (...) discordamos, numa palavra, da perigosa
ficção de que o País voltará à “normalidade democrática”; (...). (O Estado
de São Paulo, 9 de outubro de 1965, p. 3, tít.: O caminho a seguir)
175. A persistência na alternativa democrática deve ser a palavra de ordem
para que cheguemos a 1966 dentro da identidade do regime. (Jornal do
Brasil, 17-18 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Única alternativa)
176. (...). Não há brasileiro que neste momento seja capaz de desconhecer,
de boa-fé, o enorme esforço que empenha o Presidente Castelo Branco para
resguardar os compromissos que assumiu perante a Nação em favor da
94
preservação do espírito democrático do Movimento de 31 de março. (Jornal
do Brasil, 26 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Etapa final)
177. (...). A Revolução foi feita para que sobretudo se acelerasse a
evolução política da Nação, no sentido, é evidente, liberal-democrático.
(...). (O Estado de São Paulo, 28 de setembro de 1966, p. 3, tít.: Em franco
retrocesso)
178. Referimo-nos há dias às razões do otimismo com que aguardamos a
ascensão do sr. marechal Costa e Silva ao poder e temos a convicção de
que, no referente às qualidades do futuro presidente da República e,
sobretudo, no que diz respeito aos seus pendores democráticos e à sua
rígida formação moral, nada desmentirá, no futuro, as nossas esperanças.
(...). (O Estado de São Paulo, 4 de outubro de 1966, p. 3, tít.: Outra
candidatura edificante)
179. Começam a surgir os desentendimentos quando o debate se concentra
sobres as características da nova Carta e sobre a maneira de conduzir a
revisão. É verdade que até mesmo quando se chega a essa questão crucial
existem – excluídos os quistos extremistas – sólidas coincidências de
opinião a respeito da necessidade de preservação da democracia
representativa e do sistema federalista. (...). (O Globo, 31 de outubro de
1966, edição final, p. 1, tít.: Constituição e Subversão)
180. O principal instituto do Direito Eleitoral, que é o voto popular, dois
anos depois de implantada a Revolução é restituído à Nação, numa prova
inequívoca de que o Movimento de 31 de Março se fez precisa e justamente
para preservar as nossas conquistas democráticas. (...). (O Globo, 5 de
novembro de 1966, p. 3, tít.: Consciência em Xeque)
181. (...). A Revolução de 1964, com uma inevitável tônica autoritária,
comprometeu-se a pôr fim, sem hesitações ditadas pelo medo da
impopularidade, a tantos abusos que deterioraram, na sua substância, a
prática democrática. (Jornal do Brasil, 7 de dezembro de 1966, p. 6, tít.:
Tônica Autoritária)
182. O endereço da nova Carta é um só: preservar os fundamentos
democráticos impedindo que, sobre estes, se erga a anarquia ou a tirania. (O
Globo, 9 de dezembro de 1966, p. 1, tít.: O Endereço da Carta)
183. De qualquer forma, o Congresso se esforça por vencer uma etapa
provisória e caminha para a criação de uma ordem jurídica tanto quanto
possível compatível com o ideal democrático, fundamentalmente
comprometido por estes três anos de exceção. (...). (Jornal do Brasil, 18 de
janeiro de 1967, p. 6, tít.: Indiferença)
184. (...) debates sobre assuntos dessa natureza [sobre liberdade de
expressão] só seriam possíveis em ambiente estritamente democrático, o
que não é, infelizmente, o caso do Brasil a estas horas. Decidiu o governo
federal executar o programa revolucionário de março em regime
pseudodemocrático e dessa forma só logrou até aqui deturpar a democracia
(...). (O Estado de São Paulo, 20 de janeiro de 1967, p. 3, tít.: Uma grande
confusão)
185. A Carta representa a vontade democrática da maioria dos
representantes do povo. Negar-lhe legitimidade exige um passo adiante.
Obriga a negar, por coerência, o caráter democrático dos sistemas políticos
95
estribados na vontade, embora não absoluta, das maiorias. (...). (O Globo,
28 de janeiro de 1967, p. 1, tít.: Revisionismo Farisaico)
186. (...). Desde o dia em que a Junta Militar o empossou na chefia do
Executivo da República já ele [o seu temperamento] se tornava
perfeitamente claro em face da atitude de s. exa. para com os líderes da
Revolução de 31 de Março, os quais deliberadamente afastou do seu
caminho para transformar o movimento democrático que estes haviam
conduzido à vitória numa oportunidade para fazer vingar os seus pontos de
vista pessoais. (...). (O Estado de São Paulo, 3 de fevereiro de 1967, p. 3,
tít.: Um temperamento de ditador)
187. Na opinião do sr. marechal Costa e Silva, achamo-nos, portanto, em
pleno regime democrático, em total contradição com os que sustentam
vivermos sob uma ditadura. (...). (O Estado de São Paulo, 5 de outubro de
1968, p. 3, tít.: Por que ditadura?)
188. (...) está perfeitamente caracterizado um seríssimo problema de ordem
política, o qual é apenas mais um dos aspectos da crise em que estamos
mergulhados desde a instauração de um regime que é absolutamente
incompatível com os ideais democráticos apregoados pelo primeiro governo
constitucional pós-revolucionário. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de
outubro de 1968, p. 3, tít.: O STF entre os militares e a Câmara)
189. É inócuo falar todo dia em democracia, quando não estão em vigor
práticas democráticas nem há exercício convencional da atividade política.
(...). (Jornal do Brasil, 31 de outubro de 1968, p. 6, tít.: Um impasse)
190. (...). É dizer que há muita coisa a fazer antes de que o País volte
àquelas tradições democráticas de que nos fala sempre o sr. marechal Costa
e Silva, mas que, no fundo, por temperamento e por formação, s. exa.
repele. (...). (O Estado de São Paulo, 1 de novembro de 1968, p. 3, tít.:
Contribuindo para a solução da crise)
191. (...) a primeira constatação a fazer é esta: os que falam em ditadura
não conseguem provar o que sustentam. Um país onde a imprensa é livre e
onde se vota com plena liberdade é um país democrático. (O Globo, 19 de
novembro de 1968, p. 1, tít.: Análise do pleito)
192. O Governo não ganhará nada, mesmo em caso de vitória. Perderá no
julgamento da opinião pública, perante a qual está em desvantagem. (...).
O sistema democrático igualmente perderá com a vitória do Governo, se,
para fazer funcionar a maioria, se tornar indispensável a cada passo invocar
a precariedade de nosso regime. (...). (Jornal do Brasil, 3 de dezembro de
1968, p. 6, tít.: O impasse)
193. Sem surpresa, sem grandeza e apenas por fraqueza, a Comissão de
Justiça da Câmara votou ontem pela concessão da licença para o Deputado
Márcio Moreira Alves ser processado. Está aberta a porta por onde se
introduzirá na precária vida democrática brasileira o precedente capaz de
aniquilá-la, se persistir o poder de influência do resíduo discricionário
depositado nos alicerces do regime. (Jornal do Brasil, 11 de dezembro de
1968, p. 6, tít.: Plano Inclinado)
194. É preciso que o Governo e o povo compreendam que ontem, em
Brasília, só houve uma vitória: a da democracia brasileira. (Jornal do
Brasil, 13 de dezembro de 1968, p. 6, tít.: Episódio a Encerrar)
96
195. (...). A análise fria, serena e justa dos acontecimentos políticos que
precederam a promulgação do Ato Institucional n.º 5 e das conseqüências
desta medida para o futuro da democracia brasileira, deverá ser feita no
devido tempo. (...). (Jornal do Brasil, 3 de janeiro de 1969, p. 6, tít.:
Normalidade Imprescindível)
Percebe-se que há uma tentativa inicial de associação do regime e de suas ações
à democracia como um todo e, em particular, da “Revolução” à salvação da
democracia. Ao longo do tempo, ocorre uma alteração nesse processo. Embora a
“Revolução” e, principalmente, os seus objetivos, continuem sendo associados à
democracia, a oposição do Jornal do Brasil e, em especial, a d’O Estado de São
Paulo passam a associar os caminhos escolhidos pelo governo militar à oposição à
democracia. Constata-se, portanto, que mesmo quando se “exclui”, do governo, o seu
caráter “democrático”, a democracia continua a ser apresentada como valor
fundamental. Além disso, mesmo a oposição detectada nas seqüências d’O Estado de
São Paulo, que denuncia a “perigosa ficção” legalista de Castelo Branco de querer
fazer retornar, com rapidez, a “normalidade democrática”, denota o apego do
presidente, e de sua facção, à preservação de determinados preceitos democráticos, à
opção “legalista”.
Esta percepção se torna mais clara através da análise que Eurico de Lima
Figueiredo faz dos discursos do presidente Castelo Branco. Ele nota que nestes
discursos há uma presença constante de um “conceito castelista” de democracia.
Segundo o autor,
(...) no discurso em questão [do presidente Castelo Branco] é demasiado
amplo o espaço semântico ocupado pelo conceito castelista relativo à
democracia. Isto é, para Castelo Branco pode-se sempre falar em
democracia, seja em tempos nos quais se registra a vigência da ordem
constitucional, seja em épocas nas quais se verifiquem as crises que
determinam a eclosão dos processos institucionais. Pode-se, também falar
em democracia como valor meta em si mesmo, ou quando se entende que a
democracia pode ser instrumentalizada autoritariamente. (...).
64
64
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 118.
97
Essa aparente contradição faz com que M.ª José de Rezende
65
veja a noção de
democracia utilizada pelo regime como um “lamentável mal-entendido”, que nada
tinha a ver com as noções teóricas clássicas. No entanto, considera o empenho da
ditadura em associar suas ações a um sistema de valores e idéias democráticos como
um dos pilares da sua pretensão de legitimidade. Para a autora,
Desde os primeiros momentos após o golpe de 1964, o regime tentava
conseguir adesão ao seu projeto de organização social insistindo,
arduamente, em que seus desígnios e ações estavam fundados no objetivo
de instaurar o que ele denominava de “verdadeira democracia” no país. As
pressuposições em torno desta democracia perpassaram todo o regime
militar, inclusive nos momentos mais repressores como, por exemplo, de
1968 a 1973.
66
Poderia ser argumentado que as menções à democracia seriam simples retórica,
um “lamentável mal entendido”, como sustenta Rezende, ou uma falsificação que
procurava esconder os verdadeiros objetivos. Entretanto, como afirma Anne-Marie
Smith, “(...). A linha dura, certamente, pode ter manipulado a linguagem por interesse
próprio, mas há indícios de que certos setores militares tinham um respeito genuíno
pelas normas democráticas”
67
Uma ruptura total não seria interessante, visto que tais
normas já estavam incutidas em nossa sociedade. Desse modo, não teriam como
negá-las de modo radical. Para assegurar a adesão, melhor seria preservar instituições
típicas do sistema que dizia querer respeitar, e justificar as suas alterações na
necessidade de modelar um novo regime político livre dos vícios do passado
recente
68
.
Livrar-se desses “vícios” significava uma “democracia aperfeiçoada”. É o que
se nota nos fragmentos abaixo:
196. (...). O que se quis [com a “Revolução”] foi instaurar uma mentalidade
nova para processos de governo e de democracia, protegidos pela
65
REZENDE. M.ª José de. A ditadura militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade (1964-
1984). Tese de Doutorado, USP, 1996, p. 9.
66
Idem, p.1.
67
SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil, op.
cit., p. 47.
68
REZENDE, M.ª José de. op. cit., p. 7.
98
legalidade constitucional e mergulhados nas ansiedades populares. (Jornal
do Brasil, 5 de abril de 1964, p. 6, tít.: Autoridade e confiança)
197. O regime que se instala, sendo um regime de autoridade, é na verdade
o resultado de um compromisso entre a democracia representativa,
ameaçada pela anarquia política, financeira e ideológica, e o imperativo
nacional a exigir ordem e autoridade capaz de criar condições de
normalidade compatível com a própria prática da democracia
representativa. (Jornal do Brasil, 15 de abril de 1964, p. 6, tít.: Vitória
democrática)
198. (...). Elas [as medidas de saneamento das finanças públicas] só poderão
ser tomadas por um Governo com autoridade como este que agora se
instala, livre das pressões do jogo democrático tradicional e armado de
instrumentos constitucionais revolucionários, aptos para acelerar a
transformação estrutural democrática do País. (Jornal do Brasil, 15 de abril
de 1964, p. 6, tít.: Vitória democrática)
199. O Congresso certamente não faltará ao Governo com a colaboração
que mais uma vez lhe é pedida para dar continuidade ao processo
instaurado no País a 1 de abril de 1964 e cujos fins são de essência
democrática, por mais que suas formas transitórias se afastem das linhas
clássicas do regime em estado de normalidade. (...). (Jornal do Brasil, 26 de
outubro de 1965, p. 6, tít.: Etapa Final)
200. (...). Revolucionários que somos, admitimos o recurso a medidas de
exceção uma vez que só os poderes emanados das mesmas podem permitir-
nos a realização dos anseios do Movimento de março, isto é, a construção
de uma sociedade democrática e próspera, imunizada contra os males da
corrupção e as falsas seduções de todas as ideologias subversivas. (...). (O
Estado de São Paulo, 28 de outubro de 1965, p. 3, tít.: O inevitável
aconteceu)
201. (...). A própria edição do Ato Institucional n.º 2 constitui uma prova de
que o governo reconhece viver o País uma situação perfeitamente anormal.
De outro modo, apegado como sempre se mostrou a uma rápida volta à
normalidade democrática, não teria o sr. marechal Castelo Branco agido de
maneira a concentrar em suas mão poderes excepcionais e que puseram fim
à ficção “legalista”. (...). (O Estado de São Paulo, 30 de outubro de 1965, p.
3, tít.: Ainda o novo Ato)
202. (...). É hoje ponto pacífico nos círculos mais respeitáveis e
desvinculados de interesses partidários no mundo democrático o princípio
segundo o qual o regime estruturado pelo sufrágio popular não é
suficientemente livre para dispensar os controles sobre os extremismos. (O
Globo, 31 de outubro de 1966, edição final, p. 1, tít.: Constituição e
Subversão)
203. Salvaguardar a essência democrática mesmo à custa do sacrifício de
certos ritos – confundidos tragicamente pelo chamado “bacharelismo” com
aquela essência – é, em síntese, o que se espera da Revolução. (...). (O
Globo, 6 de dezembro de 1966, p. 1, tít.: A Hora de Castelo)
204. A Revolução foi feita em nome da preservação e do aprimoramento do
sistema democrático, sobre o qual notórias ameaças pesavam até 31 de
março de 1964. O Presidente da República por várias vezes reafirmou esse
objetivo (...). Por isso mesmo, a imagem do Presidente, nos primeiros
99
meses de Governo, foi a de um Chefe de Estado convencional, apenas
investido, a prazo certo, de poderes excepcionais constantes do Ato
Institucional n.º 1, que constituía, de certo modo, um elemento estranho,
ainda que necessário, dentro da paisagem democrática. (...). (Jornal do
Brasil, 8 de dezembro de 1966, p. 6, tít.: Estatuto Revolucionário)
205. A sucessão presidencial há de ser entendida dentro do contexto
revolucionário, que afastou – ou relegou para um futuro sem data marcada
– a hipótese da normalização institucional sob o signo de uma ordem
jurídica democrática. (...). (Jornal do Brasil, 8 de dezembro de 1966, p. 6,
tít.: Estatuto Revolucionário)
206. (...). A Constituição que o Governo propõe há de ser entendida, pois,
como um estatuto revolucionário, que entrega à Revolução todos os
poderes por ela reclamados para sanear, disciplinar e organizar a vida
nacional, em detrimento, ainda que temporário, da ideologia democrática.
(Jornal do Brasil, 8 de dezembro de 1966, p. 6, tít.: Estatuto
Revolucionário)
207. (...).Onde se apontaria, no texto promulgado em janeiro último, a
ruptura com o regime democrático?
Se o fortalecimento do Executivo e o enfraquecimento do federalismo
forem sinais de fascismo, então seria o caso de afirmar-se que o mundo
ocidental marcha para o tipo mussoliniano de governo, pois o que se
observa em toda parte, nas grandes democracias, é a perda contínua do
poder dos Estados em favor da União. (O Globo, 3 de fevereiro de 1967, p.
1, tít.: Teste Constitucional)
208. O gosto amargo da desordem insuflada e organizada pelo próprio
Governo, naqueles tristes anos em que estivemos à borda do caos, fez com
que o Brasil recebesse de braços abertos a intervenção saneadora dos
militares e compreendesse a adoção das medidas excepcionais, que
interromperam o fluir de nosso processo democrático. (...). (Jornal do
Brasil, 7 de setembro de 1968, p. 6, tít.: Forças Armadas)
Apesar da tentativa clara de perpetuar a associação do regime com a
democracia, percebem-se, nos fragmentos citados, indicações de que não se trata de
uma “democracia formal”, e que a concretização da “democracia” fica sujeita a outros
fatores. É um fim maior, um “futuro”, que é democrático, que dita o caminho a
seguir.
As menções, por exemplo, a uma “legalidade” que é “democrática”, mas que,
antes, é “revolucionária”, logo, submetida aos princípios e fins da “Revolução”; ou às
“formas transitórias” do processo instaurado com a “Revolução”, que se afastam das
“linhas clássicas” do regime democrático, mas cujos fins seriam de essência
democrática; ou ainda da admissão do recurso a medidas de exceção para a construção
100
de uma “sociedade democrática e próspera” e a admissão de vivermos um período
anormal que levaria a poderes excepcionais, indicam que a democracia continuava
sendo apresentada como desejada. No entanto, reduzia-se a sua extensão de acordo
com os objetivos dos donos do poder, e fazia-se com que ela fique submetida a outros
fatores que, por sua vez, também são “democráticos”. O que se percebe, contudo, é
que as exceções apresentadas são postas como fruto da missão do regime de salvar a
própria democracia. O fazer do regime é, pois, um fazer defensivo, cujo objetivo é
salvar o país do “comunismo”, da “corrupção” e da “subversão”, associados à
situação anterior à “Revolução”. Como afirma Smith,
(...). O regime sustentava que o propósito do golpe de 1964 fora salvar a
democracia antes que ela fosse aniquilada pelo presidente João Goulart. As
medidas autoritárias das duas décadas subseqüentes foram necessárias para
cumprir essa missão e destinavam-se, de fato, a “aperfeiçoar” a democracia.
Esse “aperfeiçoamento da democracia” tornou-se uma espécie de chavão,
utilizado para justificar cada etapa autoritária. Argumentava-se, ainda, que
o antigo sistema democrático tinha sido precário. Houvera corrupção na
classe política e abuso por parte de gente como Goulart. O regime militar,
por conseguinte, de modo algum se opunha à democracia, em vez disso
trabalhava para aperfeiçoá-la antes de devolver o poder aos cidadãos.
69
Portanto, a democracia deveria propiciar a paz interna, a justiça social e o
fortalecimento da segurança nacional. Mas, as liberdades democráticas não poderiam
se voltar contra a nova ordem. Ou seja, para proteção da “Revolução” poderiam
restringidos direitos e liberdades “segundo os critérios da segurança nacional, sob
garantia da coesão das Forças Armadas”.
70
Contudo, por mais que a prática seja autoritária, como afirma Eurico de Lima
Figueiredo, não se vislumbra, também no discurso do presidente, uma ideologia
tipicamente autoritária. Todavia, sua análise sugere uma relação de dependência na
qual a democracia depende do arbítrio. Segundo Figueiredo, nos discursos de
Castelo,
69
SMITH, Anne-Marie. op. cit., p. 47. Grifo da autora.
70
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 78.
101
(...) a oposição [entre objetivos finais e intermediários] não se verifica em
termos de uma relação contraditória: são os objetivos intermediários que
garantem os finais, assim como estes explicam a necessidade daqueles.
Não custa retomar para esclarecer ainda mais: no discurso castelista os
objetivos finais estão referenciados, por um lado, a “projetos” que se
identificam, em última análise, com a própria recuperação do país (...). Por
outro, eles dizem respeito a metas meio mitificadas, meio fabulosas, porque
situadas no “milênio”, na “terra da promissão”. Por outro lado, os objetivos
intermediários se referem à realização das reformas (que vão levar à
recuperação do país e à democracia, (...)) e dos instrumentos, “meios”, que
as possibilitam: os Atos Institucionais (...), expressão máxima dos
processos institucionais. Vale, neste momento, observar que a oposição em
pauta não está exposta em termos de uma “teoria” que aceita – de modo
explícito – a predominância de uma perspectiva autoritária como e enquanto
tal. Certo, os meios legais que permitirão as reformas, são necessariamente
discricionários, autoritários, aumentando o coeficiente de arbítrio (não
constitucional) da elite do poder; no entanto não encontrei qualquer
substituição (conotada ou denotada) dos ideais democráticos por uma
“doutrina” autoritária. Em conseqüência, os meios (que são autoritários), se
justificam em nome dos objetivos (que o são).
71
Fato semelhante teria ocorrido na Argentina e no Chile. Silvia Sigal e Isabel
Santi, constatam, ao analisar discursos de militares destes dois países durante as
ditaduras iniciadas na década de 1970 (no Chile, em 1973 , e, na Argentina, em 1976),
que a democracia também era o “miolo do problema”. Para as analistas, nestes
discursos, quando se menciona a democracia, ela é caracterizada como “a que se
adapte às necessidades do país”, “estável”, etc.
72
Nota-se, portanto, que, tanto lá como cá, quando se fala em democracia, não
significa que se esteja falando de uma “democracia formal”. Na verdade o que se
pretendia era uma democracia “aperfeiçoada”, “restrita” ou, como denominam
Stepan
73
e Kinzo
74
, uma “democracia tutelada”.
Consciente de que para estabelecer e manter o seu domínio precisava de algo
além da força, precisava de legitimidade, a facção militar “moderada” que
71
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 75-76.
72
SIGAL, Silvia; SANTI, Isabel. op. cit., p. 196.
73
Ver, STEPAN, Alfred C. op. cit., cap. 11.
74
Ver, KINZO, M.ª D’Alva Gil. Oposição e Autoritarismo: Gênese e trajetória do MDB (1966-1979).
São Paulo: Vértice / Editora Revista dos Tribunais, 1988, cap. 1 e cap. 9.
102
predominou nos primeiros anos do regime não tinha, segundo Kinzo,
75
a intenção de
instaurar um regime tipicamente militar-autoritário. Nesse sentido, procurou instalar
um processo de “democracia tutelada”. Esse projeto consistia, basicamente, no
estabelecimento de um regime híbrido que mantinha procedimentos constitucionais
junto com os poderes arbitrários do Executivo. Seu objetivo seria o exercício direto
do poder pelos militares pelo tempo necessário à consolidação das bases de um
sistema político seguro e estável, protegido contra a subversão, a corrupção e o
comunismo, para, só depois, devolver o poder aos civis.
Esse projeto resultou em uma política híbrida que manteve mecanismos da
democracia representativa junto com poderes arbitrários para o Executivo. Em linhas
gerais, esse projeto
76
garantiu poderes excepcionais ao Executivo, porém, o
“constrangeu”
77
a “seguir” as normas democráticas que ele preservou e que dizia
defender; restringiu os poderes do Legislativo e do Judiciário, mas os manteve em
atividade; sustentou eleições para presidente, mas indiretas, e eleições periódicas para
o Legislativo, mas sob controle; conservou, inicialmente, os partidos, mas com
expurgo dos parlamentares indesejáveis; extinguiu-os, por fim, mas elaborou um novo
sistema partidário; preservou, a princípio, a Constituição de 1946, mas impôs-lhe
alterações. Além dessas características, a concretização de tal projeto não excluía
necessariamente a violência, como atestam inúmeros casos de prisões sem culpa
formada, interrogatório sob tortura e mortes de oposicionistas registradas no
período
78
.
75
Idem. p. 218.
76
Síntese do “projeto” de “democracia tutelada, conforme KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 15-16.
77
Para Anne-Marie Smith, “(...). O regime mudou ou menosprezou as leis à vontade, mesmo as que
ele próprio instituíra. Mas apesar de todo esse poder, ele não era onipotente. Era constrangido por
divisões internas, por facções que competiam pelo predomínio. O regime também se via constrangido
por uma extraordinariamente ambivalente porém constante busca de legitimidade. As tentativas por
vezes contraditórias de validar seu sistema de dominação e de justificar sua ocupação do Estado
limitaram até certo ponto o que ele podia fazer”. SMITH, Anne-Marie. op. cit., p. 33.
78
Objetivando eliminar possíveis focos de oposição (política, econômica, psicossocial e militar), foi
elaborado e posto em prática um conjunto de medidas denominado pelos militares de “Operação
Limpeza”. Sob a guarita da tese de defesa da segurança nacional, esta “operação” investigou e
103
A adoção deste projeto foi resultado da conclusão de impossibilidade de um
rompimento absoluto com a situação anterior o que incluía a não erradicação em
definitivo das instituições democrático-representativas. Tal opção inviabilizaria o
projeto de legitimação
79
. Conforme Kinzo, “(...). A constante reiteração do
compromisso da Revolução com o restabelecimento da democracia era, talvez, algo
mais do que um slogan usado na busca de legitimação para a intervenção militar.”
80
Considero que esta reiteração era resultado de padrões de uma cultura política na qual
se firmou a crença na importância da preservação da democracia.
Um primeiro aspecto a esse respeito parte da constatação de que não há governo
que possa se estabelecer exclusivamente através da força. Historicamente, foi isto que
ocorreu
81
. E, mais recentemente, constata-se que, os regimes autoritários, de modo
geral, procuraram associar as suas ações à defesa da democracia. Como afirma
Renato Luís do Couto Neto e Lemos,
No mundo de pós-guerra, o “mercado mundial de idéias” estabeleceu a
legitimidade democrático-representativa como pré-requisito para a
aceitação da dominação política, o que impôs aos regimes não-
democráticos surgidos a partir de então um quadro de “esquizofrenia
ideológica”: praticar o autoritarismo no presente prometendo a democracia
no futuro. (...).
82
expurgou funcionários da burocracia civil e militar, suspendeu mandatos e cassou direitos de políticos,
e praticou atos que atentavam contra às liberdades e os direitos constitucionais. Para uma sucinta e, ao
mesmo tempo, detalhada análise sobre a elaboração e execução da chamada “Operação Limpeza”, ver:
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 56-71. Sobre a política de coerção do regime entre os anos de 1964
e 1974, ver: FIGUEIREDO, Marcus. “A Política de Coação no Brasil pós-64”. In: KLEIN, Lúcia;
FIGUEIREDO, Marcus. Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, op. cit. Para um breve relato dos
primeiros momentos da repressão (grupos alvo, procedimentos e centros de torturas), ver:
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a ..., op. cit., p. 55-58. Sobre relação das denúncias de
torturas ocorridas durante os anos de 1964 e 1965 ver: ALVES, Márcio Moreira. op. cit. Para relatos
de torturas, depoimentos e de mortes sob as mesmas, ver: Brasil: Nunca Mais. 18.ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1986.
79
LAMOUNIER, Bolivar. “O discurso e o processo (da distenção às opções do regime brasileiro)”,
op. cit., p. 92-93.
80
KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 218.
81
“(...) jamais existiu um governo baseado exclusivamente nos meios de violência. Mesmo o mandante
totalitário, cujo maior instrumento de domínio é a tortura, precisa de uma base de poder – a polícia
secreta e sua rede de informantes. (...). Mesmo a mais despótica dominação que conhecemos: o
domínio do senhor sobre os escravos, que sempre o excediam emmero, não repousava em tais meios
superiores de coação, mas numa organização superior de poder – ou seja, na solidariedade organizada
dos senhores.” ARENDT, Hannah. Crises da República. Citado por: REZENDE, M.ª José de. op.
cit., p. 20.
82
LEMOS, Renato Luís do C. Neto. Poder Judiciário e poder militar (1964-1969), mimeo, Rio de
Janeiro, s.d., p. 6. Grifos do autor.
104
Desse modo, no Brasil não poderia ser diferente. A “cultura política” nacional
exigia uma referência democrática. Como denota Ayda Connia de Souza, “Desde a
Independência, a ideologia presente nas elites políticas é a democrática. Porém, é
uma ideologia democrática traduzida para um modelo brasileiro. (...).”
83
Assim,
esses “antecedentes” históricos e culturais serviriam de “barreira” a uma dominação
que se furtasse a fazer referências à democracia, em especial na segunda metade do
século XX. Como afirma Schmitter,
Talvez a mais óbvia barreira a uma nova normalidade [isto é, uma
constitucionalização autoritária] é que muita gente no Brasil (...) continua a
acreditar na democracia pluralista e competitiva. A dominação autoritária
ostensiva; especialmente na variedade fascista, já não encontra apoio numa
ideologia popular, de massas, como ocorreu nos anos trinta. Um
distanciamento manifesto e permanente em relação aos símbolos da
democracia liberal provavelmente exacerbaria a clivagem entre facções
militares, da mesma forma que a resistência por parte dos intelectuais e
certos elementos burgueses.
84
Smith, também constata que determinadas parcelas da sociedade brasileira –
especificamente, as elites e as camadas médias – “exigiam” um “respeito” às normas
democráticas. Segundo a sua análise, “Para esses brasileiros, cujo apoio era essencial
para a estabilidade e o bom êxito do regime e para os quais se destinavam muitas de
suas políticas, era reconfortante a manutenção de certas instituições tradicionais.”
85
Porém, a “pressão” por essa preservação não era algo apenas externo. Para
certos analistas, uma parte dos novos detentores do poder, entre eles grupos militares,
propunham um “respeito” às normas e instituições tradicionais da democracia, ainda
que sob “tutela”. Como salienta Bolivar Lamounier,
(...). Skidmore, por exemplo, escreve que os revolucionários de 1964
“nunca faltaram com seu empenho verbal” e sempre conservaram a
intenção de um eventual retorno à democracia liberal; mas também observa
83
SOUZA, Ayda C. de. “O Estado Autoritário: algumas questões sobre a legitimação”. In: Revista
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, ano XI/XII, 1983/1984, p. 345.
84
SCHMITTER, Philippe C., citado por: LAMOUNIER, Bolivar. “Authoritarian Brazil Revisitado:
O impacto das eleições na abertura política brasileira, 1974-1982”. In: Dados: Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, vol. 29, n.º 3, 1986, p. 290.
85
SMITH, Anne-Marie. op. cit., p. 45.
105
que os próprios militares da “linha dura” evitaram repudiar publicamente
a fé da elite política brasileira nos princípios liberais. (...).
86
Nesse sentido,
Castelo Branco, o primeiro general-presidente, parecia estar bastante
determinado a caminhar nessa direção, ao tentar manter seu governo dentro
da antiga ordem constitucional, e ao reformar amplamente a constituição de
forma a adaptá-la aos “ideais da Revolução” e a garantir sua continuidade
após seu governo. Diversos atos de Castelo Branco revelam, em sua
ambivalência, uma intenção de instituir este sistema político “protegido”
(...).
87
Portanto, como regime autoritário, queria o controle social, mas, também queria
legitimidade. Todavia, a busca de legitimidade é um desafio para toda e qualquer
organização de poder. Assim, no mundo moderno, de forma geral, e para o regime
militar brasileiro, em particular, a manutenção das normas e instituições tradicionais
da democracia apresentava-se como “uma” base potencial de legitimidade. Smith
constata este fato. No entanto, sustenta que isto foi feito com o intuito de “manter a
aparência”. Afirma que,
(...). Na medida em que tais formas constitucionais e procedimentos
jurídicos autênticos conotavam legitimidade política e autoridade
apropriada, pretendia-se que o mesmo aconteceria também com o regime.
Era feito, então, um esforço para manter a aparência de constitucionalidade
e legalidade ou, pelo menos, evitar indícios diretos do contrário. O regime
conservou todos os símbolos das normas constitucionais tradicionais,
embora os utilizasse para seu próprio proveito ou os reduzisse a simbólicas
cortinas de fumaça para suas atividades ilegais. (...).
88
No entanto, a preservação de aspectos democráticos não pode ser vista como
mera formalidade. Concordando com Lamounier
89
, considero que há dilemas em um
processo complexo de legitimação, junto a uma sociedade igualmente complexa,
como a brasileira da década de 1960, que vão muito além das “aparências”.
É lógico que nesse processo de legitimação há um componente simbólico que
contribui na busca do consentimento de determinadas parcelas da sociedade. Mas ele
86
LAMOUNIER, Bolivar. “Authoritarian Brazil Revisitado...”, op. cit., p. 289. Grifos no original.
87
KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit. p. 219. Aspas no original.
88
SMITH, Anne-Marie. op. cit., p. 211.
89
LAMOUNIER, Bolivar. “O discurso e o processo...”, op. cit., p. 93.
106
não é meramente simbólico. É preciso que, ao mesmo tempo, ele assegure a unidade
interna da corporação militar. Mas, cada ação do governo gera discussões e divisões
intestinas. Ao mesmo tempo, cria uma jurisprudência que “limita” a ação militar nos
momentos seguintes, já que, no nível simbólico, especialmente, os militares não
podem romper com os seu próprio discurso. Soma-se a isso o “prestígio”
internacional e histórico da forma democrática de governo. Se o Brasil se associa às
“nações democrático-liberais”, deve agir de acordo com tais princípios
90
.
Em suma, como afirma Lamounier, no Brasil há um legado ideológico e
institucional que, apesar de possuir um caráter autoritário, possui, também,
componentes liberais que impossibilitam uma legitimação em termos duradouros de
um sistema autoritário
91
. Todavia, os fatores autoritários inviabilizavam um retorno
puro e simples à situação pré-64. Como resultado, desencadeou-se um processo
híbrido de dominação política. Como ressalta Lemos,
O hibridismo político produziu uma realidade tão concreta quanto o
regime derrubado. Traços democráticos e ditatoriais se relacionaram numa
nova síntese, adequada à correlação de forças políticas inaugurada em 1964.
Tratando-se de um regime que tentaria adequar uma sociedade portadora de
razoável grau de complexidade econômica e social às conveniências dos
capitais monopolistas internacionais, nem a democracia nem a ditadura
poderiam ser como antes do golpe. A necessidade de eufemismos simboliza
as contradições dentre a nova coalizão no poder. Se, por um lado, a facção
que controlava o governo na primeira fase do regime apelidada
“castelista” ou “autoritária liberal” rejeitava o tipo de democracia vigente
até 1964, por outro não tinha necessariamente um projeto de ditadura à
antiga. Já a extrema-direita do regime as variantes da “linha-dura”
parecia não ter muitos escrúpulos em defender a redução drástica e
duradoura do campo democrático.
92
Estas contradições da coalizão golpista somadas ao “espaço” que essa política
permitiu aos opositores geraram inúmeros conflitos que marcaram todo o processo
híbrido de dominação. No entanto, essas diferenças não encobrem o fato de que havia
uma política governamental baseada na crença de que, para se manter, o regime
90
Conf. síntese de artigo de Juan Linz feito por LAMOUNIER, Bolivar. “Authoritarian Brazil
Revisitado...”, op. cit., p. 294.
91
Idem, p. 314.
107
precisava de legitimidade junto a uma parcela significativa da sociedade e, em busca
disto, tentava associar a sua ação a alguns princípios democráticos. Porém, é
perceptível através da análise dos editoriais que esta preservação não é apresentada
como um retorno a um regime de “plenitude democrática”. Argumento semelhante ao
do projeto de estabelecimento, primeiro, de uma “democracia tutelada”, visando
salvar o país do “perigo” comunista, para, só em um segundo momento, permitir o
retorno a uma “democracia ideal”.
Como dinâmica deste processo de “democracia tutelada”, o regime permitiu a
“sobrevivência” do Legislativo. Em uma relação de custo e benefício, a “facção
castelista” acreditava que o benefício da legitimidade que a preservação de um poder
típico de um sistema democrático-representativo, embora enfraquecido e “saneado”,
seria maior do que o custo das derrotas que ele poderia impor ao governo no plenário.
No entanto, a progressiva intensificação da onda repressiva transformou o Legislativo
no único fórum onde era permitido o debate e a crítica ao regime. Aos poucos,
converteu-se em um obstáculo indesejado. Em resposta, a linha-dura militar passou a
cobrar com ainda mais veemência o endurecimento do regime. Por fim, tendo que
optar pelo lado liberal ou pelo reforço do caráter autoritário do regime, escolheu a
segunda opção. De acordo com Kinzo, Castelo fracassa na tentativa de instaurar a
“democracia tutelada” por, provavelmente, ser um projeto impraticável quando
implantado por atores que recém-tomaram o poder em nome da instituição militar
93
.
Os três jornais em questão foram integrantes da heterogênea frente civil-militar
que derrubou Jango. Procurou-se, neste capítulo, analisar como, através dos seus
discursos, eles, como “meta-sistemas perito”, contribuíram no reforço do “capital
simbólico” do regime e na construção da ilusão de um consenso junto à “opinião
92
LEMOS, Renato Luís do C. Neto. op. cit., p. 8.
93
Id. p. 219.
108
pública”. Assim, buscavam viabilizar a dominação militar. O eixo desse processo foi
a associação da “Revolução” à defesa da “democracia”.
Nos capítulos que se seguem será possível verificar, através da análise destes
discursos, que, aos poucos, as suas opiniões se distanciam entre si e, algumas, com
relação ao regime. Mas, principalmente, se perceberá a opção inicial do regime pela
política de “democracia tutelada” e a contradição gerada entre a linguagem de
legitimação através da democracia e a realidade opressiva. Esta contradição levou a
uma crise que acabou por minar a estabilidade do Estado, corroendo-lhe, aos poucos,
a legitimidade. O modelo de gestão das crises políticas, através das sucessivas
tentativas de redução de espaço político para a ação da oposição, subverteu a função
legitimadora dos princípios democráticos, entre eles o Poder Legislativo, diminuindo
progressivamente a legitimidade do regime.
109
Capítulo II – Os primeiros passos: algo além da força.
No ritual [eleição do Presidente da República] se encerra a fusão
dos poderes. O poder revolucionário legitima o Congresso, como um ato
de força. O Congresso legitima a revolução realizando um ato de direito.
1
Na virada dos anos 1950 para os anos 1960, a sociedade brasileira vivia um
acelerado processo de transformação estrutural
2
. Durante este período ocorreu um
alto índice de crescimento populacional, principalmente na área urbana, gerando
novas reivindicações ao sistema econômico e político. Segundo Stepan,
Na década de 1950 a 1960, a população rural do Brasil subiu de 33
milhões para apenas 39 milhões, enquanto a urbana aumentou mais
rapidamente, de 19 para 32 milhões. Esta nova população urbana, em
rápida expansão, criou toda uma série de exigências em matéria de
transporte, empregos, distribuição de alimentos e moradia. (...).
3
Esta ampliação das cobranças quanto à capacidade distributiva do governo,
como frisa M.ª Helena Moreira Alves, foi fruto, em parte, da própria política de João
Goulart ao, em busca de apoio, permitir “o desenvolvimento de formas de
organização mais profundas e efetivas”
4
. Ao mesmo tempo, no meio rural surgiam
organizações sindicais e ligas camponesas, que também geravam novas demandas
sobre a máquina pública. Mas, naquele período o país enfrentava uma crise
econômica e política o que limitava a capacidade do governo de atender a todas as
demandas.
Economicamente, a queda do Produto Nacional Bruto, o crescimento da
inflação, indicativos de declínio da atividade industrial, a estagnação das exportações
brasileiras, que aumentavam em volume mas diminuíam em valor
5
e os compromissos
para pagamento da dívida externa limitavam a capacidade de investimento por parte
1
Jornal do Brasil, 11 de abril de 1964, p. 6, tít.: “O Presidente”. Grifo meu.
2
A descrição da conjuntura pré-golpe aqui apresentada baseia-se na análise de Alfred Stepan.
STEPAN, Alfred C. Os Militares na Política. op. cit., cap. 6 ao 9, p. 101-154.
3
Idem, p. 102.
4
Cf. ALVES, M.ª Helena M. Estado e Oposição no Brasil, 1964-1984. op. cit., p. 22.
110
do governo. No entanto, a freqüência de greves e de reivindicações por reajustes
salariais continuava a pressionar o governo e intensificava a crise econômica. Diante
da crise, os recursos internacionais necessários à sobrevivência do país deixaram de
fluir, ampliando a pressão sobre a economia brasileira. Conforme Eliézer Rizzo de
Oliveira,
(...) o decréscimo dos indicadores do crescimento econômico e as pressões
externas para que fossem alterados os procedimentos pelos quais o Estado
vinha conduzindo a economia são fatores que caracterizam os aspectos
políticos mais relevantes da crise econômica. Além da redução do ritmo do
crescimento (o produto real, que havia crescido 7% em 1961, tem o índice
2,1% em 1963
6
) e do agravamento da inflação (no mesmo período, ela
passa de 25% para 73%), os organismos financeiros internacionais
colocavam os novos investimentos e empréstimos (que seriam utilizados
para equilibrar as contas externas) na dependência da adoção, pelo governo
brasileiro, de uma política antiinflacionária; esta teria o duplo significado
de conter os níveis salariais (a taxa de exploração da força de trabalho
aumentava, constantemente, em que pese o aumento nominal dos salários)
e, ao nível da sustentação política do governo Goulart, fazer diminuir as
atividades da esquerda, que se postava contrariamente às pressões do FMI.
7
Já politicamente, os aliados da esquerda pressionavam por um radical
aprofundamento do reformismo e do nacionalismo, o que Jango não estaria disposto a
assumir.
Num esforço populista de atendimento às reivindicações e de busca de apoio,
mesmo sem ter de onde extrair recursos, João Goulart aumentou as despesas
governamentais. Não conseguiu atender a todas, e, isolado, acabou optando por
procurar sustentação em setores específicos (setores populares e de esquerda). Esta
opção política inviabilizava a construção de um programa nacional.
Ao mesmo tempo, o governo também tentava estabelecer uma base de apoio no
interior das Forças Armadas. Seus esforços se voltavam para os sargentos, através de
um processo de politização destes, e sobre parte da oficialidade do Exército, por meio
5
Cf. BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República: de 1961 a 1967. 2.ª ed. São Paulo: Alfa-
Omega, 1977, vol. 4, p. 71.
6
Em 1964 haveria o primeiro decréscimo do PNB nos últimos 25 anos. Cf. BASBAUM, Leôncio. op.
cit., p. 70.
111
de promoções feitas com critério político. Estes fatos, somados ao medo do exemplo
cubano de destruição do Exército regular, geraram insatisfações e temores entre os
oficiais militares no que se referia a uma possível quebra da disciplina e da hierarquia,
valores caros à instituição.
A sensação de crise generalizada, o medo pela comunização do país, a falta de
credibilidade dos políticos civis e o temor pela existência das próprias Forças
Armadas reverberavam entre os militares. Estas insatisfações findaram por atenuar as
diferenças existentes no interior da corporação – ao menos quanto à destituição de
Jango. Ainda assim, muitos oficiais só se decidiram pelo apoio ao movimento na
última hora
8
.
Associado a estas questões, o problema sobre a função dos militares no sistema
político, originário da doutrina da ESG
9
, levou-os a vislumbrar a possibilidade de
adotarem um novo papel político. Para Stepan,
A combinação da crescente insegurança institucional das Forças
Armadas e seu crescente sentimento de que nenhum dos partidos ou atores
políticos civis detinham o poder para solucionar a crise econômica,
contribuiu para intensificar a crença de que os antigos limites de ativismo
militar já não eram adequados.
10
Mas a política de João Goulart não afetava apenas parte das Forças Armadas.
Grupos conservadores, que há tempos lutavam para chegar ao poder, temiam por uma
guinada do governo que significasse a frustração desses planos. Em resposta, e tendo
a deposição de João Goulart e a conquista do Estado por objetivo, desenvolveu-se
uma política de desestabilização do governo. A ampla coalizão que se formou foi
7
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969), op.
cit., p. 49.
8
Exemplo deste apoio de última hora é o caso do general Amaury Kruel, comandante do II Exército,
sediado na cidade de São Paulo. Kruel, antes de aderir ao movimento, ainda buscou convencer o
presidente João Goulart a mudar de posição. Se assim o fizesse, o general dizia que ainda poderia
salvar o mandato de Jango. Como não conseguiu mudar a opinião do presidente, disse que nada mais
podia fazer e aderiu ao movimento. Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-
1964). 5.ª ed. Trad.: Ismênia Tunes Dantas (org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 363.
9
A Escola Superior de Guerra, criada em 22 de outubro de 1948 à semelhança do National War
College norte-americano, havia desenvolvido uma doutrina baseada no binômio “segurança e
112
liderada pelo complexo ESG/IPES/IBAD
11
e recebeu apoio do governo dos Estados
Unidos. Além desse apoio, contou com a participação não só de militares, mas
também de amplos setores da sociedade civil, como políticos e empresários, tanto
nacionais como internacionais. Estes setores, assim como os militares, tinham
interesses diversos, mas, também, uniram-se em torno do objetivo comum de destituir
João Goulart. Especificamente sobre a participação dos empresários, Eli Diniz afirma
que,
O empresariado industrial teve uma significativa participação nos
acontecimentos que levaram à queda do governo João Goulart, em 1964.
Apesar da heterogeneidade e da fragmentação das organizações
empresariais, observou-se uma relativa unidade de atuação em face do
sentimento de ameaça que a mobilização popular crescente despertou no
setor, como, aliás, nos demais segmentos das elites dominantes. Ao lado
dos militares, os empresários integraram-se à coalizão conservadora que
conduziu o movimento pela destituição do presidente constitucional. (...).
No jogo das forças contrárias à ordem estabelecida, as articulações entre
setores da elite militar, integrantes da cúpula empresarial e técnicos
governamentais ligados aos interesses privados desempenharam papel
central. Configurou-se uma teia de alianças envolvendo entidades de
classe, institutos de pesquisa, órgãos consultivos e agências tecno-
empresariais. Essa articulação permitiu a formação de um bloco de
interesses voltado para atividades de desestabilização da ordem vigente.
12
Além destes setores, a coalizão obteve o apoio das classe média
13
, que,
conforme M.ª Helena Moreira Alves, estava assustada com as mobilizações de novos
atores políticos e atingida em seus interesses pela inflação. Para a autora,
desenvolvimento”, que questionava o sistema político e o papel dos militares nele. Esta ideologia
começava e encontrar eco no interior da corporação no início dos anos 1960.
10
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 124.
11
O IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, foi uma organização articulada em 1961 e fundada
em 1962 por empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo que mantinham
desconfianças com relação
às atitudes de João Goulart, e encerrou as suas atividades em 29 de março de 1972. Já o IBAD,
Instituto Brasileiro de Ação Democrática, foi uma organização fundada em maio de 1959 com o
objetivo mais específico de combater a propagação do comunismo no Brasil. Era financiado tanto por
empresários brasileiros quanto estrangeiros e intensificou as suas atividades no pleito eleitoral de 1962,
que, ironicamente, foi o motivo do encerramento de suas atividades. Para uma análise sobre a
formação dos dois institutos e sobre todo o processo e grupos que participaram da campanha de
desestabilização do governo João Goulart, ver: DREIFFUS, René Armand. 1964: A Conquista do
Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Trad.: Else Ribeiro Pires Vieira (supervisora).
Petrópolis: Vozes, 1981.
12
DINIZ, Eli. “Empresariado, regime autoritário e modernização capitalista: 1964-85”. op. cit., p.
202-203.
13
Antônio Lavareda considera que, ao contrário do que habitualmente se encontra na literatura sobre o
golpe militar de 1964, nos momentos que antecederam o movimento, Jango não estava desacreditado
junto à população. Tomando por base de análise pesquisas do IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião
113
(...). A rápida organização da classe trabalhadora e do campesinato
assustou as classes mais altas, que nunca antes haviam sido forçadas a
mínimas concessões em questões como salários, condições de trabalho ou
mesmo organização sindical. O exemplo de Cuba aumentou o medo de
uma revolução que derrubasse o sistema, com sérias perdas para o capital
nacional e multinacional.
14
De seu lado, após um período longo de indefinições, que só serviu para isolá-lo,
João Goulart definiu-se pelo apoio da esquerda, mas ela também encontrava-se
fragmentada. Como resultado as forças de centro e as de direita se aproximaram,
fortalecendo a oposição ao governo. De acordo com Carlos Azevedo,
(...) Goulart ia progressiva e rapidamente se isolando, perdendo apoio pelo
centro, que convergia para a direita. E abandonado por parte da esquerda,
que pensava se sustentar na retórica incendiária. Restava o misterioso
“dispositivo sindical-militar” de Goulart, composto por uma suposta
maioria de comandos militares legalistas e fiéis ao presidente e pelos
grandes sindicatos. E também contava com o apoio do PCB, com suas
propostas de alianças reformistas, mas com a voz esvaziada pelo
estilhaçamento de sua militância. Além disso, a direção do partido estava
cegada pela proximidade do poder, subestimando o golpe em marcha.
15
Não se deve concluir, no entanto, que o fracasso de Jango na constituição de
uma base política de sustentação tenha sido simples fruto de sua suposta
incompetência. Em verdade, a crise político-institucional do início dos anos 1960
inviabilizava a formação de uma base de apoio político aos governos.
A Constituição de 1946, impunha restrições institucionais ao poder Executivo.
De acordo com Wanderley Guilherme dos Santos, segundo esta Carta, “(...) a maioria
Pública e Estatística), realizadas entre junho e julho de 1963 e entre 9 e 26 de março de 1964, Lavareda
conclui que esta interpretação está incorreta. De acordo com as pesquisas, em 1963, 76% dos
entrevistados consideravam a atuação de Jango entre ótima, boa, ou regular. Este tendência se
mantinha na análise de sua aceitação por classes sociais. Já março de 1964, em relação a 1963,
apresentaria um crescimento das intenções de voto em Jango (de 37% para 47%). No entanto, as
observações de Lavareda, no que se referem ao mês de março de 1964, abrangem um período que
compreende desde momentos anteriores ao Comício da Central do Brasil até aqueles posteriores à
manifestações “populares” contra Jango, e para justamente no dia do motim dos marinheiros. Creio
que uma pesquisa que compreenda momentos tão díspares e de tamanha influência sobre a “opinião
pública” não pode levar a conclusões precisas. Considero, portanto, que, após a intensificação da
campanha contra João Goulart, ocorrida depois do comício da Central do Brasil, ao menos setores mais
influentes e ativos politicamente das camadas médias e alta apoiaram a deposição de Jango. Cf.
LAVAREDA, Antônio. “Governos, Partidos e Eleições segundo a Opinião Pública: o Brasil de 1989
comparado ao de 1964”, Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 32, n.º 3, 1989, p.
341-362.
14
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 22.
114
das decisões políticas envolvendo a alocação de bens e valores à sociedade deveria ser
tomada mediante consulta ao Congresso.”
16
Desse modo, qualquer intenção
legislativa por parte do presidente precisava da chancela do Congresso. Ainda
segundo Santos,
(...). Em praticamente nenhuma área o Executivo tinha carta branca para
agir. Até mesmo medidas de curto prazo deviam ser autorizadas pelo
Legislativo antes de serem postas em funcionamento, e a implementação de
políticas era acompanhada de perto por desconfiadas comissões do
Congresso.
17
Segundo o autor, este fato teria levado o antecessor de Jango, o presidente Jânio
Quadros, à constatação de que nenhum chefe de Executivo poderia governar o Brasil
com tais restrições por parte do Congresso. Para Jânio, o país precisaria de reformas
institucionais para continuar com elevadas taxas de desenvolvimento econômico.
Como tais medidas teriam que ser aprovadas por um Congresso que considerava
conservador, as reformas jamais sairiam.
Jango teria chegado à conclusão semelhante no que se refere às chamadas
“reformas de base”
18
. Durante o seu governo, propostas que envolvessem questões
centrais, como teriam que passar pelo crivo do Legislativo, foram evitadas. Assim, as
medidas que compunham as “reformas de base” só foram articuladas e enviadas ao
Congresso quando a crise já havia chegado a pontos críticos. Todo esse processo, de
acordo com Wanderley Guilherme dos Santos, teria levado a uma “crise de paralisia
decisória”
19
.
Portanto, sem uma base de apoio que fosse suficiente para sustentar o governo,
tanto João Goulart quanto Jânio Quadros procuraram meios de fazer a balança política
15
AZEVEDO, Carlos. “O pesadelo recorrente”, Caros Amigos – Especial: O Golpe de 64, São Paulo,
n.º 19, março/2004, p. 4. Grifo do autor.
16
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Sessenta e Quatro: anatomia da crise. São Paulo: Vértice,
1986, p. 42.
17
Idem, p. 42-43.
18
As ditas reformas de base consistiam, em linhas gerais, em uma reforma agrária, na nacionalização
de refinarias, na proposta de voto para os analfabetos e na legalização do Partido Comunista
19
Sobre esse processo ver: SANTOS, Wanderley Guilherme dos. op. cit., cap. 3, “O Parlamento
brasileiro e a crise de 1964: a tendência à paralisia”, p. 37-58.
115
pender para o seu lado. No entanto, mantiveram-se dentro de determinados limites
constitucionais. Por fim, fracassaram.
A tentativa de Jango de solucionar a crise política a seu favor teve seu ápice em
13 de março de 1964, no comício da Central do Brasil. Com a proposta das “reformas
de base”, ele pensava mobilizar as massas e a esquerda em seu benefício. Imaginava
contar, também, com uma base militar de apoio suficiente para conter uma possível
tentativa de golpe. Segundo Stepan,
Goulart esperava mobilizar o poder político das massas e exigir as
reformas através de um plebiscito ou de decreto, ou pressionando o
Congresso, ou mesmo fechando-o. Para isso, ele reconhecia implicitamente
sua necessidade não só do apoio passivo das Forças Armadas, mas também
do apoio ativo e agressivo dos principais generais que ele nomeara. A
estratégia, para ser efetiva, exigia que as tropas do Exército dessem
proteção e apoio às manifestações de massa e às greves que Goulart
planejava desencadear por todo o país. Provavelmente também implicaria
que os principais líderes do Exército pressionassem o Congresso a fim de
que esse aprovasse as “reformas de base”. Se o Congresso se recusasse, o
Exército seria o fator fundamental em qualquer tentativa de Goulart para
insistir na realização de um plebiscito nacional para estas reformas. Do
mesmo modo, seria exigido apoio ativo dos três comandantes das Forças
Armadas se Goulart tentasse declarar estado de sítio.
20
No entanto, a mobilização das massas era difusa, a esquerda estava fragmentada
e pouco mobilizada e a força do aparato militar que poderia vir em sua defesa foi
superestimada. A estratégia de Jango não surtiu o efeito desejado. Ele não só não
conseguiu mobilizar as massas em seu favor, como ainda perdeu parte do apoio que
possuía. Além disso, suas ações fizeram com que as diferentes oposições se unissem.
A classe média, por exemplo, temendo que as “reformas de base” atingissem os seus
interesses, foi às ruas na “Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade”
21
para
20
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 141.
21
No dia 19 de março de 1964, dia de São José, padroeiro da família, as ruas do centro da cidade de
São Paulo receberam aproximadamente quinhentas mil pessoas reunidas em resposta ao comício da
Central do Brasil e em protesto contra Jango. Organizada em cinco dias por grupos religiosos
femininos influenciados pelo IPES, a marcha contou, basicamente, com pessoas oriundas das camadas
médias e alta da sociedade paulistana e com políticos oposicionistas. Estrategicamente, os cartazes e os
discursos proferidos durante a manifestação visavam atingir o sentimento religioso do povo. Por fim, a
marcha serviu como um catalisador da “opinião pública” contra Goulart. Para breves análises sobre a
“Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade”, ver: DOMENICI, Thiago. “Marcha Funesta”,
Caros Amigos – Especial: O Golpe de 64, São Paulo, n.º 19, março/2004, p. 7 e FICO, Carlos;
116
protestar contra o comício de 13 de março e contra tudo o mais que ele significava. A
possibilidade de um golpe contra Jango ficava, a cada ação sua, mais provável.
A agitação cresceu, e em 26 de março de 1964 estourou o motim dos
marinheiros
22
. Os marinheiros e fuzileiros navais pretendiam comemorar o
aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB),
mas o ministro da Marinha, Almirante Sílvio Mota, havia ordenado a prisão dos
organizadores. Desacatando a ordem do ministro, os marinheiros refugiaram-se no
Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro.
Durante o movimento os amotinados fizeram reivindicações. Entre elas
constavam o reconhecimento de sua associação pela Marinha; a anistia aos praças
condenados por motivos políticos; a melhoria dos soldos e; a Reforma do
Regulamento Disciplinar da Marinha que determinava, entre outros, o corte de cabelo
dos praças, a anotação em uma caderneta de registros das faltas disciplinares, a
proibição do casamento dos marinheiros antes de dez anos de serviço e o uso de
roupas civis fora do serviço. Além das reivindicações inerentes à categoria, em
discurso realizado durante a manifestação foi defendida a proposta das “reformas de
base” de Jango.
A solução encontrada por João Goulart para por fim ao movimento foi a de
substituir o ministro da Marinha. O novo ministro, Almirante Paulo Mário da Cunha
Rodrigues, decidiu anistiar os revoltosos. Este procedimento não foi bem recebido na
alta hierarquia militar. A rebelião havia ferido um princípio de extremo valor para os
militares: a disciplina.
PRESSOT, Aline Alves. “Com o rosário na mão”, Nossa História, São Paulo, Ano 1, n.º 5, março de
2004, p. 40-43. Para uma análise que contemple, além da “Marcha”, uma estudo da mobilização das
camadas médias e apoio dos movimentos femininos à coalizão contra João Goulart, ver: DREIFUSS,
René Armand. op. cit., cap. VII, p. 281-361.
22
Para uma análise do movimento feito a partir do depoimento dos marinheiros e fuzileiros, ver:
RODRIGUES, Flávio. Vozes do Mar. São Paulo: Cortez, 2004. Para um breve resumo das idéias
contidas neste livro, ver: AMARAL, Marina. “Nós, os marujos”, Caros Amigos – Especial: O Golpe
de 64, São Paulo, n.º 19, março/2004, p. 18-19.
117
Os acontecimentos de março de 1964 reforçaram o sentimento da oposição de
que Jango tentaria uma ação golpista com o intuito de se manter e ampliar o seu
poder. Considerando que João Goulart havia ultrapassado os limites da lei ao
sancionar a indisciplina dos marinheiros, conspiradores civis e militares, defensores
do “legalismo”, decidem-se por depor o Presidente. Ainda que, no fim, a ação
desencadeada pelo General Olympio Mourão Filho tenha sido precipitada a decisão já
estava tomada
23
. Era o início de um processo de militarização dos governos dos
países sul-americanos.
Nesse processo “continental”, é possível encontrar semelhanças entre os casos
do Brasil e do Chile no que se refere à crise que levou à queda dos presidentes João
Goulart e Salvador Allende.
Para Wanderley Guilherme dos Santos
24
, assim como no Brasil, o período pré-
golpe no Chile também for marcado pela fragmentação da esquerda e pela polarização
política com uma radicalização ideológica, tanto de direita quanto de esquerda. Como
conseqüência, nos dois países, o centro se aliou à direita numa coalizão “defensiva” e,
por fim, a radicalização ideológica reduziu o espaço de manobra dos presidentes. Esta
radicalização teria levado a uma paralisia dos dois governos, gerando condições para
que as coalizões golpistas tivessem sucesso.
23
Segundo René A. Dreifuss, o complexo IPES/IBAD/ESG articulou uma ampla rede de apoio entre
civis e militares visando depor João Goulart. Nesse sentido, foi desenvolvido um projeto meticuloso
para a tomada do poder. Dentro desse projeto, o ímpeto golpista de alguns militares deveria ser
controlado. Entre eles estava o general Mourão Filho, que não concordava plenamente com o modus
operandi do IPES. No entanto, as formas de controle adotadas somadas à transferência do general para
o município mineiro de Juiz de Fora inviabilizaram um controle efetivo de Mourão. Em 31 de março
de 1964, o general partiu rumo ao Rio de Janeiro, antecipando em alguns dias o golpe cuidadosamente
planejado e, segundo Dreifuss, marcado para o dia 2 de abril. Visando impedir o fracasso da ação
intempestiva, rapidamente o centro da coalizão golpista apoiou a iniciativa de Mourão. No entanto,
este ato fizera com que o centro da coalizão perdesse o controle absoluto do movimento. Como
resultado, teve que ceder espaço a novos atores que não comungavam dos ideais do grupo IPES/ESG.
Entre estes atores estava o general Costa e Silva, que assumiu o Ministério da Guerra. Sobre a
participação do general Olympio Mourão Filho na coalizão que depôs o presidente João Goulart, ver:
DREIFFUS, René Armand. op. cit., p. 373-396.
24
Cf. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “Autoritarismo e Após: Convergências e Divergências
entre Brasil e Chile”, Dados: Revista de Ciências Sociais. Trad.: Fanny Wrobel, Rio de Janeiro, vol.
25, n.º 2, 1982, p. 151 a 163.
118
Fazendo uma comparação mais ampla, Guillermo O’Donnell
25
destaca outras
semelhanças nos processos de tomada de poder pelos militares na América do Sul dos
anos 1960 e 1970. Para o autor, no Brasil, em 1964, no Chile, em 1973, no Uruguai,
entre 1972 e 1974 e na Argentina, em 1966 e 1976, a classe média, em face da
agitação popular crescente e da situação de crise econômica, opôs-se aos governos
que os golpes derrubaram. De modo também semelhante, os militares, temerosos pela
sobrevivência da instituição militar e cortejados por grupos conservadores de direita,
teriam optado por agir.
Uma última semelhança, para O’Donnell, refere-se às transformações estruturais
ocorridas nestes quatro países. Para o autor, estas nações haviam passado por um
processo de industrialização com crescimento urbano. Este processo gerou novas
demandas sociais. No entanto, este momento coincide com a queda da capacidade
extrativa dos Estados e representa o esgotamento do modelo populista. Estes fatores
teriam contribuído para o enfraquecimento dos governos e para a conseqüente tomada
do poder pelos militares.
Voltando ao caso brasileiro, conquistado o Estado, a preocupação passava a ser
a constituição do novo governo. Diante da descrença de que um governo civil
pudesse solucionar os problemas nacionais, os militares, rompendo com um padrão de
atuação até então repetido nas intervenções militares ocorridas no Brasil
26
, assumiram
o poder e não o repassaram aos civis. Para eles, o Brasil necessitava de uma política
de estabilização e desenvolvimento, objetivos que para serem alcançados
demandariam tempo e poderiam resultar em custos políticos. Não acreditavam que os
25
O’DONNELL, Guillermo. “As Forças Armadas e o Estado Autoritário no Cone Sul da América
Latina”, Dados: Revista de Ciências Sociais, Trad.: M.ª Cecília Galli, Rio de Janeiro, vol. 24, n.º 3,
1981, p. 277 a 304.
26
Ver: nota 2, capítulo 1.
119
políticos civis fossem capazes de impor uma política desde tipo e com estes prazos e
custos
27
.
Por seu lado, as camadas médias e alta da sociedade haviam apoiado o
movimento militar, o que deu certa legitimidade à deposição de João Goulart. Porém,
este apoio não era naturalmente extensivo ao estabelecimento de um governo militar.
Esta sanção era uma necessidade fundamental para o novo regime, e, em busca desse
objetivo, os novos grupos no poder investiram suas forças. No entanto, ao firmar-se a
opção por um governo militar, começaram a surgir críticas ao governo. Para Stepan,
(...) a revolução começou a perder uma parte fundamental do apoio civil
quase imediatamente depois que os militares assumiram as rédeas do
governo. Era um desenvolvimento quase inevitável, porque os objetivos
dos civis e dos militares na articulação do movimento eram bastante
diferentes.
28
Portanto, uma vez no poder, os diferentes grupos que compunham a coalizão
golpista entraram em choque na tentativa de imporem-se uns sobre os outros. Grupos
civis integrantes da coligação golpista não concordavam com o poder nas mãos dos
militares. Ainda segundo Stepan,
(...). O processo de elaboração de uma política e de estabelecimento de um
grupo executivo coerente resultou na relativa exclusão, dos centros do
poder, daqueles líderes de movimento que não aceitavam a orientação
básica do presidente e de seus conselheiros mais próximos. Muitos
daqueles que participaram ativamente na preparação do movimento ou na
execução da revolução, mas que não foram incluídos mais tarde nos
círculos do governo, passaram a fazer oposição firme ao governo e a
criticar prejudicial e efetivamente o governo militar. (...).
29
Além disso, a nova função assumida requeria dos militares um projeto político,
ainda indefinido, e uma forte unidade institucional. Mas, internamente tamm
existiam divergências quanto aos rumos do movimento.
Quais e até que ponto deveriam ser executadas as reformas eram pontos de
desentendimentos entre estes grupos. Entretanto, não havia como excluir
27
Cf. STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 158-159.
28
Idem, p. 159.
29
Id., p. 164.
120
completamente uma facção militar. As novas exigências que a corporação passava a
sofrer requeriam uma unidade institucional consistente. A tentativa de solucionar este
problema através da conciliação entre as diferentes facções foi a opção dos
“moderados” ou “castelistas”, marcou toda a primeira fase do regime e gerou uma
permanente crise de legitimidade no interior do Estado.
Em resumo, os civis partícipes do golpe queriam o poder, a “linha-dura”, ligada
ao princípio de segurança nacional e de combate ao inimigo interno, queria um maior
endurecimento do regime. No entanto, a facção “moderada” que assumiu o poder
acreditava que não conseguiria se impor exclusivamente pelo uso da força. Ciente de
que precisava legitimar o seu domínio junto a uma parcela significativa da sociedade,
escolheu adotar uma política de “democracia tutelada”
30
. Esta política, entre outras
características, baseava-se na preservação de princípios e instituições típicas de
regime democrático-representativos.
Os militares apressaram-se em apresentar o movimento com tendo uma missão
“revolucionária” e “regeneradora”. Para realizá-la, os militares precisavam estruturar
uma nova ordem que mantivesse a unidade institucional e constituísse uma política
com forte apoio interno. Parte desta sua missão, e consenso no interior da corporação,
consistia na necessidade de executar expurgos de militares anti-revolucionários, de
políticos civis e de funcionários da burocracia estatal, supostamente próximos da
ordem política anterior, vista como comunista, corrupta e subversiva. Para realizar
esta tarefa, mantendo-se um “respeito” a instituições e princípios democráticos, urgia
estabelecer uma legislação de emergência que, suspendendo procedimentos legais,
permitisse os expurgos.
Com esse objetivo, em 7 de abril de 1964, o “Supremo Comando
Revolucionário” apresentou ao Legislativo um esboço de uma legislação que lançasse
as bases para a institucionalização do regime e permitisse a execução dos expurgos.
121
Os líderes parlamentares se opuseram ao texto apresentado e contrapropuseram uma
versão própria de uma legislação excepcional, que limitava a possibilidade de
expurgos no legislativo e na burocracia federal
31
. Essa nova versão não agradou ao
“Comando Revolucionário”, e, em 09 de abril de 1964, os três ministros militares
editaram, por conta própria, o Ato Institucional.
O Ato propiciou a desejada centralização do poder nas mãos do Executivo.
Através dele, a “Revolução” afirmava legitimar o Congresso, ao invés deste legitimá-
la; enfraquecia o Legislativo, limitando-o no exercício de suas funções
32
e; fortalecia
o Executivo, facultando-lhe parte das funções antes exclusivas do Parlamento. Além
disto, com ele, o Presidente da República passou a ter o poder de cassar mandatos e de
suprimir direitos políticos
33
, ou seja, fazer o “saneamento político” sonhado.
Este enfraquecimento do Legislativo, entretanto, não desmente o fato de que a
sua preservação foi resultado de uma conclusão sobre a conjuntura. Para o “Supremo
Comando Revolucionário”, a nova ordem que então buscavam institucionalizar
carecia de legitimidade. Desse modo, preservaram certos elementos estruturais
presentes na ordem anterior e de importância fundamental para determinadas parcelas
da sociedade. Mantinham-se, pois, certos princípios democráticos em vigor. Entre
eles, o Poder Legislativo.
Através da análise dos editoriais dos jornais, é possível perceber que, desde o
seu início, essa é uma de suas metas centrais do regime militar. A facção militar que
predominou nos primeiros anos do regime parecia ter consciência de que, para
estabelecer e manter o seu domínio, precisava de algo além da força, precisava de
30
Sobre a política de “democracia tutelada” ver cap. 1, tópico 5.
31
Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 48.
32
Os artigos 3º e 4º definiam prazo para análise de emendas e projetos de lei de origem executiva e a
aprovação destes por decurso de prazo. O artigo 5º proibia o Legislativo de propor projetos que
criassem ou aumentassem despesas públicas. O artigo 6º permitia ao Executivo decretar estado de sítio
antes da apreciação do Congresso Nacional.
33
O artigo 10º permitia a suspensão de direitos políticos por dez anos e a cassação de mandatos
legislativos federal, estaduais e municipais. Os primeiros expurgos ocorreram antes mesmo da posse
de Castelo Branco como Presidente da República.
122
legitimidade. Nesse sentido, procurou preservar o Parlamento e atribuir-lhe um papel
dentro da “Revolução”. Nos editoriais imediatamente posteriores ao golpe surgem as
primeiras discussões sobre qual seria este papel. Neste momento, os jornais,
assumindo a função de “porta-vozes da história” e “meta-sistema perito” com relação
ao novo regime, procuraram forjar uma ilusão de consenso em torno dele,
caracterizando-o como representante da “vontade democrática da nação”. Deve ser
possível, ainda, notar a opção da facção no poder pela “democracia tutelada”. Quanto
ao Parlamento, os editoriais devem associar a sua preservação e as alterações em suas
funções como parte da missão “revolucionária” e “regeneradora” do regime.
209. Ontem a Revolução vitoriosa autolimitou-se, através do Ato
Institucional editado pelo seu Comando Supremo. (...). (Jornal do Brasil,
10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Ato Institucional)
210. (...). Os chefes do movimento armado que derrubou o Governo João
Goulart apresentam-se à opinião pública empunhando a bandeira da
legalidade revolucionária. E em nome dessa legalidade, cujos limites não
estão e nem poderiam estar na Constituição, passam a agir sem perda de
tempo. (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Ato Institucional)
211. (...) o JORNAL DO BRASIL mantém sua linha de coerência no
combate ao Governo deposto e no apoio ao movimento civil e militar que o
liquidou, para salvar o Brasil da desintegração, da comunização e da
submissão nacional. (...). (Jornal do Brasil, 10 de abril de 1964, p. 6, tít.: O
Ato Institucional)
212. O Ato Institucional abre, sem dúvida, perspectivas novas nas relações
entre o Executivo e o Congresso. Perspectivas perseguidas por muitos que
tentaram romper o impasse constitucional que entravava a mecânica do
regime, através de novas normas mais eficientes e atualizadas. (...). (Jornal
do Brasil, 11 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Presidente)
213. Deve o Congresso completar, sem mais tardança, a tarefa iniciada
pelos militares. (...).
(...)
Queremos crer que o Congresso estará bem atento ao que o povo dele
espera neste momento. O povo e as Forças Armadas, cuja atuação, nesta
difícil conjuntura, deve ser prestigiada e apoiada pelo Legislativo. (...). (O
Globo, 3 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Vez do Congresso)
214. (...). Uma revolução visa a mudar um sistema, com a introdução de
nova filosofia de Governo, outro tipo de administração, outro quadro de
dirigentes. Aqui tivemos uma revolução, destinada a afastar do Governo os
comunistas que o haviam envolvido, a acabar com as práticas de corrupção
que levaram brasileiros a silenciar e até a comprometer-se com a infiltração
vermelha, a restaurar as forças da Nação, combalidas pelos desatinos dos
123
últimos anos. (O Globo, 4 de abril de 1964, p. 1, tít.: Um Governo que
Honre a Revolução)
215. Fizemos, ontem, um apelo ao Congresso, hoje devemos adverti-lo.
(...).
Não decepcione, o Congresso, a expectativa nacional. (...). É inadiável a
formação, imediata, de um Governo forte. Queremos que este Governo
forte seja organizado pelo Congresso, para que não se venha a impor um
Governo contra o Congresso. (...). (O Globo, 4 de abril de 1964, p. 1, tít.:
Um Governo que Honre a Revolução)
216. Revolucionariamente, também – porque utilizados os prazos especiais
de tramitação legislativa, previstos nos artigos 3.º e 4.º do Ato Institucional
–, poderá o Governo, em um ou dois meses, obter do Congresso todas as
medidas que considerar convenientes à implantação do bem-estar social, à
melhor distribuição da riqueza nacional e ao fortalecimento da economia
brasileira. (O Globo, 16 de junho de 1964, p. 1, tít.: Com Muita Esperança)
217. Elaborado em poucos dias, para não dizermos em poucas horas, o Ato
Institucional contém todos os elementos de que o futuro governo vai
necessitar para empreender, nas melhores condições, o trabalho de
reconstrução que a extensão dos males causados pelo governo deposto está
a exigir. (...). (O Estado de São Paulo, 11 de abril de 1964, p. 3, tít.: O Ato
Institucional)
218. (...). A Revolução não destruiu o regime instituído em 1946,
decorrendo daí o fato que o Congresso Nacional continua a ser o órgão ao
qual cabe elaborar o orçamento da República. Ora, se fossem mantidos os
poderes que a Constituição conferia aos senadores e deputados para
manipularem à vontade a proposta orçamentária que o governo anualmente
lhes submete, jamais o governo lograria imprimir às finanças nacionais a
férrea disciplina necessária para vencermos a caudal inflacionista. (O
Estado de São Paulo, 11 de abril de 1964, p. 3, tít.: O Ato Institucional)
219. A democracia que, por sua essência, deve ser representativa, não
admite revisão, nem mesmo a simples emenda, da Constituição, por
iniciativa do presidente da República, do chefe do Poder Executivo.
Entretanto, o Ato Institucional vai mais longe, obrigando o Congresso a
votar a emenda proposta pelo presidente da República, dentro do prazo de
trinta dias, em duas sessões das Câmaras reunidas, considerando-a aprovada
pelo voto da maioria absoluta dos membros da Câmara e do Senado, isto é,
por maioria de metade e mais um dos componentes das duas Câmaras que
formam o Congresso Nacional. (...). (O Estado de São Paulo, 14 de abril de
1964, p. 3, tít.: O art. 3º. do A. Institucional e o espírito da Revolução)
220. O fato de o Congresso se ter mantido em plena atividade após a
Revolução vitoriosa de 31 de março não deixa de ser um contra-senso. A
sua própria composição está a dizer-nos que a sua atuação dentro do
movimento que pôs abaixo o sistema político que tinha por principal
sustentáculo a maioria parlamentar que ainda persiste é uma agressão à
lógica das coisas. A Revolução foi feita exatamente para afastar do
governo da República todos os elementos que, em três décadas de poder
discricionário, nada mais fizeram do que reduzir a frangalhos tanto a
administração como a moral públicas. É incompreensível, portanto, que as
forças que serviram o Estado Novo e os governos a quem este delegou
poderes para preservarem o seu espírito na política nacional permaneçam
124
praticamente intocáveis após o advento de um regime que, para se firmar
definitivamente, deveria começar por alijar das posições que ocupam todos
quantos viviam integrados na situação deposta. (...). (O Estado de São
Paulo, 7 de maio de 1964, p. 3, tít.: Politiqueiros, confusionistas e a
Revolução)
Ao longo dos editoriais é possível perceber que há um apoio unânime quanto à
“Revolução”. Dentro da lógica judaico-cristã ocidental, os discursos são moldados
pela oposição Bem vs Mal. Em todos os jornais o movimento militar é apresentado
como tendo sido executado para salvar o país dos males causados pela situação
anterior, associada à subversão, à corrupção, à desordem e ao comunismo. Na
Argentina, em 1976, teria ocorrido algo semelhante.
Caracterizando o Mal como o caos representado pelo governo de Isabelita
Perón, nos discursos dos militares argentinos “O regime é apresentado (...) como um
regime corretivo das estruturas e mentalidades que suscitaram uma democracia
instável e governos demagógicos.”
34
No entanto, de acordo com Isabel Santi e Silvia
Sigal, os militares argentinos não se preocupam em lançar as bases de sua
legitimidade. O caos, por si só, já era a justificativa suficiente, e atraía o apoio, ou a
benevolência, de uma parte considerável da população. Legitimidade óbvia, natural e
fruto das reiteradas intervenções militares pós-30, que teriam estruturado uma
legitimidade política virtual para as Forças Armadas argentinas e teriam construído
um discurso legitimatório que passou a fazer parte da cultura política do país
35
. Para
as autoras,
(...). Um golpe militar na Argentina é um significado da cultura política.
Assim, mais que explicar a urgência de sua intervenção, interessará aos
militares diferenciar o golpe de 1976 dos anteriores, evitar que o código,
historicamente constituído, os considere uma mera repetição.
36
Já no caso chileno, onde, segundo Santi e Sigal, não teriam havido muitas
intervenções militares pois as Forças Armadas seriam mais profissionais e tenderiam a
34
SIGAL, Silvia; SANTI, Isabel. “Do discurso no regime autoritário. Um estudo Comparativo”. op.
cit., p. 197. Grifo no original.
35
Idem, p. 186.
36
Id., p. 207.
125
respeitar a Constituição e as instituições, os militares tiveram a necessidade de
empreender um verdadeiro trabalho de estruturação ideológica. Seu objetivo seria o
de justificar sua intervenção. Assim, tentaram construir a idéia de que a intervenção
constituía uma resposta a um requerimento da sociedade civil
37
. Nesse sentido, os
discursos caracterizavam-se pela denúncia da situação de ilegitimidade e ilegalidade
do governo Allende (violações de regulamentos e instituições democráticas). Os
militares chilenos, ao justificarem a sua presença no Estado em face da ilegitimidade e
ilegalidade do governo Allende, atribuem a si próprios uma legitimidade dentro de um
limite legal, apagando o desacato que fazem ao regime institucional
38
. Portanto,
também são caracterizados com os representantes do Bem que deve combater o Mal.
Já o caso brasileiro, tem componentes semelhantes aos dois casos. Por um lado,
usou uma característica presente nos dois países: a justificativa de intervenção
regeneradora. Por outro lado, como só ocorreu no caso chileno, precisou justificar a
“Revolução” como sendo uma resposta a um chamado da Nação para salvar a pátria.
Porém, a consecução desse objetivo remetia ao uso de instrumentos arbitrários.
Como frisa Eurico de Lima Figueiredo,
Assumindo o poder após forte crise institucional e política, que culminou
com o desmantelamento do governo vigente (e, depois se veria, com a
desarticulação mesmo das forças que sustentavam o antigo regime), os
chefes do Movimento vitorioso justificaram sua ação em termos de uma
lógica eminentemente diádica. Com efeito, por um lado, explicava-se a
Revolução pelo declarado objetivo de “restaurar a ordem interna e o
prestígio internacional do país” (AI-1, Preâmbulo). Por outro, frisava-se
que a sublevação contra o governo deposto expressava uma autêntica
ruptura com o status quo ante (...). O primeiro objetivo, desse modo,
colocava o Movimento como normalizador da legalidade e do próprio
sistema político em vigor. O segundo propunha que tal normalização só
poderia ser atingida através da instituição de adequados instrumentos de
exceção. (...).
39
37
Id., p. 206 e 207.
38
Id., p. 184 e 185.
39
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. Os Militares e a Democracia: análise estrutural da ideologia do
Presidente Castelo Branco. op. cit., p. 20. Grifos no original.
126
Nesse sentido, os editoriais apresentam a edição do Ato Institucional como o
meio necessário e adequado para consecução dos “objetivos revolucionários” de
moralização da vida política e econômica do Brasil. Em face desse objetivo
“nacional” de “restauração da ordem interna”, justificava-se a repressão e a
eliminação dos opositores, considerados o Mal, o inimigo a ser combatido. Conforme
Abdo I. Baaklini,
(...). Sob o pretexto de resguardar a ordem legal e constitucional contra as
maquinações e conspirações de João Goulart e de seus partidários
populistas – papel que os militares tinham assumido desde o período da
Velha República – o regime passou a empreender uma limpeza e a erradicar
do sistema elementos considerados hostis e inimigos da ordem
constitucional. De acordo com essa lógica, nada havia de errado com o
sistema político brasileiro, senão algumas pessoas que ocupavam posições
de responsabilidade e abusavam de seu poder procurando subverter o
sistema e solapar sua base constitucional. O Ato Institucional n.º 1, baixado
pelos militares, tinha o objetivo de promover uma correção imediata,
expurgando-se do Congresso, dos partidos políticos, das Forças Armadas,
da burocracia e dos governos estaduais e municipais aqueles elementos que
ameaçavam o sistema. Esse Ato buscava também alterar a relação de poder
entre o presidente e o Congresso, em favor do primeiro.
40
Portanto, dentro da lógica da “democracia tutelada”, preservam-se as
instituições democráticas. Como salienta Eliézer Rizzo de Oliveira
41
, as instituições
populares são atingidas especialmente em suas lideranças. Naquele momento,
afastaram os líderes partidários, mas mantiveram os Partidos. Em extensão, o
Congresso foi purgado de alguns de seus membros, mas foi mantido em
funcionamento.
Ao mesmo tempo, nos editoriais há a preocupação de caracterizar o Ato como
um limitador da ação do governo e de associá-lo a uma “legalidade revolucionária”.
Isto decorre da necessidade de vincular, para o seu público, a ação e o regime à
preservação de métodos e instituições democráticas. O Legislativo é uma delas, mas é
40
BAAKLINI, Abdo I. O Congresso e o Sistema Político do Brasil. Trad.: Beatriz Lacerda. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 52.
41
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 59. Grifo do autor.
127
justo nesse ponto que surgem as primeiras divergências no interior da coalizão
golpista.
Os jornais O Globo e Jornal do Brasil defendem a preservação do Legislativo,
assim como o diálogo entre ele e o Executivo. Vinculam a sua existência ao regime e
concedem-lhe o papel de partícipe do projeto de recuperação do Brasil, na medida em
que defendem que as alterações a serem feitas na vida e nas instituições brasileiras
deveriam passar pelo seu crivo. Esta intenção de diálogo também transparece nas
afirmativas de que, com a edição do Ato Institucional, surgiam novas perspectivas na
relação entre os poderes. Vislumbrava-se uma relação mais “eficiente”, fruto, na ótica
dos jornais, do estabelecimento de prazo para que o Legislativo analisasse e votasse as
propostas encaminhadas pelo governo, colaborando, assim, com a “recuperação” do
país.
Com respeito à relação Executivo-Legislativo, o Ato Institucional estabelecia,
como já mencionado: 1) Que o Congresso teria um prazo de 30 dias para analisar as
emendas constitucionais de caráter “urgente” propostas pelo Executivo. Para a
aprovação seria necessário apenas o voto da maioria simples, ao contrário da
Constituição de 1946 que estabelecia um mínimo de dois terços do plenário para a
aprovação. Em caso de não votação, os projetos seriam considerados aprovados; 2)
Que somente o Executivo poderia propor projetos de lei que gerassem despesas para
o Estado; 3) Que o presidente poderia declarar e prorrogar o estado de sítio sem prévia
aprovação do Congresso. A única exigência seria o envio de um relatório ao
Parlamento dentro de um prazo de quarenta e oito horas. Além destas alterações, o
Ato suspendia a imunidade parlamentar, dando ao presidente o poder de cassar
mandatos dos membros do Legislativo por dez anos.
Estas medidas de aumento do poder do Executivo foram a forma encontrada
pelo regime para superar o obstáculo que o Congresso representava às suas intenções.
128
“Perspectiva perseguida por muitos que tentaram romper o impasse constitucional que
entravava a mecânica do regime”, como frisa o Jornal do Brasil. Jânio Quadros e
João Goulart foram dois destes “muitos”. Segundo Skidmore,
Este Ato Institucional não foi uma total surpresa, mas apenas a última de
uma série de respostas à crise de autoridade política evidente no Brasil
desde meados da década de 50. O presidente Jânio Quadros, por exemplo,
queixara-se de que lhe faltavam bastantes poderes para lidar com o
Congresso. E citou a irresponsabilidade dos “políticos” como razão de sua
abrupta renúncia após seis meses apenas no governo em 1961. Goulart, que
repetira a queixa de insuficientes poderes presidenciais, chegou até a propor
um estado de sítio em outubro de 1963, e no começo de 1964 apresentou
propostas específicas para fortalecer o Executivo. O Supremo Comando
Revolucionário de 1964 adotou, contudo, uma tática diferente. Não tentou
observar as regras da política democrática, como fizeram seus antecessores,
mas unilateralmente mudou as regras.
42
Contudo, esta alteração na relação entre os poderes não era uma particularidade
do regime militar brasileiro. De acordo com Gustavo Gozzi, as profundas
transformações ocorridas na estrutura do Estado entre fins do século XIX e início do
século XX haviam alterado a relação entre os poderes. No caso específico da relação
Executivo-Legislativo, as transformações representaram um esvaziamento da esfera
legislativa em prol da centralização das decisões nas mãos do Executivo
43
. Como
afirmam Sérgio Abranches e Gláucio Soares, no Estado contemporâneo,
(...). Os Executivos fortes têm tentado incrementar a competência e o
volume de sua ação legislativa, no que têm sido ajudados pela lentidão do
processo legislativo tradicional, pelo localismo acentuado dos
parlamentares e pelas deficiências técnicas dos Legislativos. A baixa
eficiência legislativa dos Congressos é um fenômeno geral. A maioria dos
cientistas políticos e boa parte dos congressistas vêem o Legislativo como
pouco flexível, resistente a mudanças, cuja ação é quase sempre retardada
pelo apego a práticas tradicionais de comportamento político.
44
Portanto, o caso brasileiro não era original. E mais, era, também, influência do
pensamento autoritário brasileiro dos anos 1920 e 1930
45
.
42
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 49. Grifo do autor.
43
Cf. GOZZI, Gustavo. “Estado Contemporâneo”. In: BOBBIO, Norberto et alii. (org.s). Dicionário
de Política. op. cit., p. 401-409.
44
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. “As funções do Legislativo”, op.
cit., p. 74.
45
Azevedo Amaral considerava que as profundas transformações ocorridas no mundo na virada do
século XIX para o XX haviam posto em xeque as instituições liberais. Essa “falência” da democracia
129
O Ato Institucional viera para romper com o “entrave” legislativo. No entanto,
o regime não abdicou de pedir a “colaboração” do Congresso. Mas, a “colaboração”
pedida tinha parâmetros estritamente definidos. Parece que O Globo e o Jornal do
Brasil tinham como indiscutível a autonomia do poder Legislativo, mas, advertiam-no
de que, nas circunstâncias vividas, ele deveria atender aos desígnios do povo
brasileiro, materializados nos objetivos da “Revolução” de recuperação da Nação. Ao
Legislativo caberia a função de organizar um governo forte. Agindo de modo diverso,
poderia ser imposto um governo contra ele. Essa “advertência”, no entanto, não anula
a questão de que a intenção primeira era a de buscar legitimar-se através do “diálogo”
com o Legislativo.
Mesmo O Estado de São Paulo, que se mostra favorável à dissolução do
Parlamento, não apresenta um posicionamento extremamente distante do dos outros
jornais. Se por um lado este jornal defende a dissolução do Congresso, por considerá-
lo ligado e co-responsável pela crise anterior à “Revolução”, por outro, se mostra
contrário à possibilidade de alterações na Constituição por iniciativa do Executivo.
Também não se mostra satisfeito com o estabelecimento de prazos para que o
Legislativo analisasse e votasse as proposições do governo. Se há uma insatisfação
quanto ao Legislativo, esta recai apenas sobre “aquele” que então estava em exercício
e que, sendo um Congresso onde a maioria dos parlamentares pertencia ao PTB e
PSD, segundo este jornal, estaria ligado às suas raízes comuns: “as forças que
serviram o Estado Novo e os governos a quem este delegou poderes”.
liberal e parlamentar teria levado a um descompasso entre o “país político” e o “país real”. Visando
solucionar esta questão, os intelectuais propunham a adequação das instituições à realidade nacional.
Esta adequação se processaria através de uma modernização, de uma reorganização política do Estado
Nacional, identificada com o intervencionismo estatal, autoritarismo e tecnicismo. Para estes
intelectuais, o Estado moderno brasileiro seria, essencialmente, nacional e autoritário. Para uma
análise do pensamento intelectual brasileiro ao longo do século XX, ver: MEDEIROS, Jarbas.
Ideologia Autoritária no Brasil: 1930-1945. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas,
1978; PÉCAULT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a nação. op. cit. e;
VIEIRA, Evaldo. Autoritarismo e Corporativismo no Brasil: Oliveira Vianna & Cia. São Paulo:
Cortez, 1981.
130
Embora apresentando discordâncias com relação à política de “democracia
tutelada” adotada pelo regime, para O Estado de São Paulo a democracia deveria
permanecer, por essência, representativa.
É claro que o Legislativo saiu enfraquecido após a edição do Ato Institucional.
Os jornais não escondem isto. É certo, também, que o “susto” inicial tolheu-lhe os
movimentos. Mas isto não elimina a tese de que, para a nova ordem que então
começava a ser estabelecida, a preservação de certos rituais democráticos – entre os
quais, o estabelecimento de um papel para o Congresso, ainda que a um outro
Congresso – estava inserida no processo de busca de legitimidade. Nesse sentido, os
discursos dos jornais O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo, nos
momentos imediatamente posteriores ao golpe e à edição do primeiro Ato
Institucional, procuraram tornar os seus auditórios em crentes na capacidade do
regime de salvar o país do caos a que a situação deposta o havia conduzido.
Com base na análise acima, pode-se elaborar um quadro de síntese quanto ao
posicionamento dos jornais com relação aos primeiros movimentos do regime militar:
QUADRO DE SÍNTESE 1
JB OG OESP
Ação militar Favorável Favorável Favorável
Edição do A. I. Favorável Favorável Favorável
Concessão de poder
Constituinte ao Executivo
Favorável Favorável Contrário
Preservação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Relativa
Como é possível perceber, e considerando os jornais como representantes dos
vários grupos que se uniram para depor João Goulart, desde os primeiros momentos
do regime há características que os une, mas, também, já existiam divergências
131
internas. A análise sugere, também, que a facção que tomou a frente do movimento
optou pela preservação de preceitos e instituições democráticas.
Entre as características que uniam os discursos destaca-se a caracterização da
“Revolução” como um instrumento para a “regeneração política e moral” do país.
Desse modo, os jornais buscavam estabelecer um consenso quanto ao regime que se
estabelecia. Associando-o à “vontade da Nação”, reforçavam o “poder simbólico”
dos novos dirigentes, contribuindo para a reprodução da dominação.
Com essa meta de “regeneração” e crendo na necessidade de legitimar o seu
domínio, a facção militar que assumiu o poder de fato decidiu-se por uma política de
“democracia tutelada”. Nesse sentido, embora limitando drasticamente o Poder
Legislativo, preservou-o em funcionamento e em “diálogo”. É justamente na opção
por esta política que emerge uma diferença entre os discursos dos jornais. No entanto,
ainda que O Estado de São Paulo esteja defendendo a dissolução do Congresso, ele
continua a defender a Constituição, e se mostra contra qualquer proposição de
alteração na Carta por iniciativa do Executivo.
Mas as divergências apenas começavam a emergir. Prevalecia o consenso
inicial de descrença nos políticos civis. Em função disto, escolhe-se, para assumir a
Presidência da República, um general que trazia consigo a reputação de apolítico:
Humberto de Alencar Castelo Branco.
Como uma primeira tentativa de institucionalizar o mecanismo de transferência
do Poder Executivo, submeteu-se a sua eleição ao referendum do Legislativo. E, em
respeito às normas democráticas, estabeleceu-se que o Presidente teria um mandato
fixo, que cobriria apenas o restante do que caberia a João Goulart. Segundo Alfred
Stepan
46
, a decisão de obedecer às exigências constitucionais de um mandato fixo
para o presidente residia na crença de que isto era necessário para manter certa
imagem de legitimidade democrática.
132
Como a escolha de Castelo Branco estava sendo submetida ao Colégio Eleitoral,
a discussão presente nos editoriais nos remete novamente ao papel que o Legislativo
tinha a executar dentro da nova ordem. Os jornais como “meta-sistemas perito” do
regime e do Legislativo apresentam seus pontos de vista. Contudo, nota-se que a
opção do regime de contar com a colaboração do Legislativo fica mais clara.
221. (...). O povo (...) espera agora, e já sob pesada ansiedade, que o
Congresso faça das urgências do destino do País a sua urgência. O novo
Presidente da República, para governar até 31 de janeiro de 1966, deverá
ser eleito dentro do mínimo de prazo (...). (Jornal do Brasil, 4 de abril de
1964, p. 6, tít.: Decisão urgente)
222. (...) as responsabilidades dos chefes das Forças Armadas que tornaram
viável o triunfo da revolução falam diretamente à sorte e às esperanças do
povo. A intermediação política é fundamental, mas não pode nunca
absorver ou deturpar a diretriz dessas responsabilidades. (Jornal do Brasil,
4 de abril de 1964, p. 6, tít.: Decisão urgente)
223. O movimento revolucionário está cumprindo em todas as horas seu
dever. Importa, que nesta semana, o poder constitucional, o Legislativo,
cumpra o seu dever, elegendo o Presidente da República para atender ao
reclamo, ao clamor geral do País. (Jornal do Brasil, 7 de abril de 1964, p. 6,
tít.: O desejo da Nação)
224. Chegou a oportunidade de o Congresso devolver ao movimento
revolucionário o serviço prestado, dando-lhe o amparo de sua unção
constitucional na forma da eleição imediata de novo Presidente da
República. (Jornal do Brasil, 7 de abril de 1964, p. 6, tít.: O desejo da
Nação)
225. (...). [Com a eleição do Presidente da República] A chefia
revolucionária não será mais um ato de poder. Será o resultado de um
direito com deveres e responsabilidades definidos e limitados na
Constituição e no Ato Institucional promulgado pelos chefes militares.
(Jornal do Brasil, 11 de abril de 1964, p. 6, tít.: O Presidente)
226. A partir da eleição e da posse haverá um poder de direito restaurado
em sua integralidade: Executivo, Congresso e Judiciário. O poder
revolucionário se terá fundido ao poder constitucional e nele se consumido
como fenômeno jurídico. (Jornal do Brasil, 11 de abril de 1964, p. 6, tít.: O
Presidente)
227. De acordo com a Constituição, o Congresso deve eleger, dentro de 30
dias, um Presidente e um Vice-Presidente, que concluirão o período
presidencial. (...). O substituto do Sr. João Goulart tem que ser eleito já
pelos congressistas. (O Globo, 3 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Vez do
Congresso)
228. Aja o Congresso sem perda de tempo, para seu próprio bem. Eleja o
novo Presidente da República, achando quem sirva para esta hora (...) e não
quem possa servir para outubro de 65. Dê ao Brasil a segurança de que a
46
STEPAN, Alfred C. op. cit. p. 159.
133
jornada revolucionária não foi em vão. (O Globo, 4 de abril de 1964, p. 1,
tít.: Um Governo que Honre a Revolução)
229. Todos os brasileiros vêem, com esperança e desafogo, chegar à
Suprema Magistratura a figura eminente do General Humberto Castelo
Branco (...). (O Globo, 11 de abril de 1964, p. 1, tít.: A Revolução
Consolidada)
230. Esperamos que, ao examinar essa decisão, não se perca o Congresso
em bizantinismos de hermenêutica, nem se enrede em filigramas
gramaticais na interpretação da lei. Ao Parlamento, que se engrandece
perante a opinião pública pelo seu denodo na gravidade das horas incertas,
cabe agora a responsabilidade suprema de facilitar, em obediência aos
desejos da Nação, uma solução que consista no fortalecimento da vitória
revolucionária, sem a necessidade, com a qual só em último caso o povo se
conformaria, da suspensão da vigência da lei fundamental, com as franquias
características do regime que pretendemos consolidar. Pois precisamos
convencer-nos, todos, de que a estabilidade das instituições depende da
desarticulação, até os últimos redutos, da estrutura apátrida erigida no País
pelos fanáticos e mercenários empenhados em afogar-nos no sangue e na
ignomínia da servidão. E para que esta imensa tarefa se realize dentro da
Constituição, e para que a Constituição prevaleça, para que se salvaguarde
o regime, para que, finalmente, o Brasil continue, é preciso que, em
obediência ao povo brasileiro, se confie sem tardança esta árdua, delicada
missão, ao general Castelo Branco. (O Estado de São Paulo, 7 de abril de
1964, p. 3, tít.: Vitória decisiva da Nação)
A análise das seqüências indica que todos os jornais viam como necessária e
urgente a eleição do novo presidente. O Globo e O Estado de São Paulo se mostram
textualmente favoráveis à escolha de Castelo, e o Jornal do Brasil, embora não
explicite esta vontade, defende as diretrizes então adotadas pelos chefes militares.
Salienta-se que, em todos, é feita a associação da escolha do presidente à “vontade do
povo” e à “normalização da vida constitucional e institucional do país”. Portanto, a
legitimidade se fundamenta na construção da ilusão de um consenso da nação de que
a sua vontade estaria expressa, de modo geral, pelos propósitos da “Revolução” e, em
particular, pela escolha de Castelo Branco como presidente da República.
Desse modo, por mais que alguns analistas vejam a eleição de Castelo pelo
Congresso como uma “fachada”
47
, o mais significativo é que, como frisa Kinzo, “Não
se dispensou, contudo, o processo eleitoral como meio de se legitimar o governo
47
Cf. BAAKLINI, Abdo I. op. cit., p. 72.
134
“revolucionário”.”
48
Esta afirmação é um indicativo de que a legitimação era uma
necessidade. Com esta intenção é que se buscou o referendum do Congresso à eleição
de Castelo.
Todo este processo foi, ainda, como afirma M.ª Helena M. Alves
49
, a primeira
tentativa de institucionalizar o mecanismo de transferência do Poder Executivo. Ao
estabelecer que tal mecanismo deveria contar com a participação do Poder
Legislativo, a facção militar “castelista” também estava tentando impor limites a uma
escalada militarista desejada pela “linha-dura”. Ao mesmo tempo, esse procedimento
atraía o apoio de grupos civis que esperavam que, com a eleição de um militar tido
como apolítico, logo o país retornaria à “normalidade democrática”, que
corresponderia ao retorno do poder aos civis. Como salienta Eliézer Rizzo de
Oliveira,
(...). Tomado como militar apolítico e legalista, ocupante do segundo nível
de autoridade no Ministério do Exército, Castelo Branco parecia oferecer a
garantia do retorno da “normalidade democrática”, após um período de
exceção e expurgo. Assim parecia a vários setores civis, que inclusive
trataram de articular o apoio parlamentar ao primeiro governo. Além disso,
o “namoro” com a UDN ofereceu a Castelo um elemento estratégico em
suas disputas com os “duros”, na medida em que, com apoio parlamentar,
pôde garantir o funcionamento do Congresso, cujo fechamento era uma das
principais reivindicações daquele grupo. (...).
50
Nesse sentido, e se referindo especificamente ao papel do Legislativo, nota-se
que, nessas discussões, os editoriais dos jornais apoiam a opção do regime. Até
mesmo O Estado de São Paulo, que geralmente se mostrara contrário ao Congresso,
elogia o apoio que este dera ao regime nos momentos imediatamente posteriores à
ação militar. Como partidário de uma facção golpista civil “dura”, este jornal
desejava uma definitiva “desarticulação (...) da estrutura apátrida erigida no país pelos
fanáticos e mercenários” ligados ao Estado Novo. Em seqüência, esperava que o
48
KINZO, M.ª D’Alva Gil. Oposição e Autoritarismo: Gênese e trajetória do MDB (1966-1979). op.
cit., p. 16.
49
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 55.
50
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 59-60. Grifos do autor.
135
poder retornasse aos civis realmente comprometidos com os ditos “interesses
nacionais”. Mas como continua Oliveira, esse apoio do Congresso tem um preço:
(...). Os vínculos do “novo Poder Executivo” com o Congresso apresentam
aspectos contraditórios: de um lado, especialmente nas etapas posteriores
se tornará claro que o Executivo não consegue estabelecer pleno controle
sobre o Legislativo; em segundo lugar, parte do Legislativo a decisão final
da prorrogação do mandato de Castelo, cuja posição contrária não teve
força suficiente para impedir que a iniciativa – propugnada pela “linha-
dura” – encontrasse solução no Congresso.
51
Portanto esta opção também gerou um custo para os “castelistas”. Se por um
lado o Congresso se prestou a “referendar” a eleição do presidente, por outro, esta era
uma tentativa de se preservar. Para Eurico de Lima Figueiredo,
(...) o beneplácito legitimador do Movimento era procurado no Congresso
Nacional que, por sua vez, tinha sido eleito de acordo com os princípios
constitucionais em voga no establishment anterior. Isto é: caberia ao
“antigo” Legislativo, indiretamente, eleger o “novo” Presidente da
República que nada mais, nada menos, deveria ser o próprio Chefe
Supremo da Revolução. Tal eleição, evidentemente que proposta como
“livre”, expressava a tentativa da Câmara Federal de, pela barganha, manter
o controle do país pela classe política civil: o preço a ser pago era a
aceitação de um primeiro mandatário que, militar, governasse, apenas por
um período “tampão”. (...).
52
No fim, este período “tampão” se estendeu além do esperado pelos
parlamentares. Além disso, as fortes restrições impostas ao Legislativo, impediam
qualquer possibilidade de que a classe política civil controlasse o país. O limite da
sua liberdade era a “vontade nacional” expressa pelos desígnios “revolucionários”.
Os editoriais dos jornais exprimem isto desde o início do movimento. Quando
da eleição de Castelo, clamam para que o “denodo” do Congresso, “na gravidade das
horas incertas”, novamente, se repita, e, desse modo, atentando para a realização dos
“desejos da Nação”, eleja Castelo Branco como o novo Presidente da República.
Portanto, apesar e em função da “preservação” de um regime e de instituições
constitucionais, o campo de ação do Legislativo é limitado. Em face da política de
“democracia tutelada”, advertem-no de que, para o seu próprio bem e para o
51
Ibidem.
136
fortalecimento da “Revolução”, ele deveria buscar cumprir o seu dever de obediência
às “aspirações populares”, corretamente interpretadas pelo chefes militares. Assim,
apesar de frisarem a necessidade da intermediação política, restringem as opções do
Legislativo à diretriz traçada pelos militares. Apesar deste senão, os jornais não
deixam de expor que para adquirir legitimidade o presidente necessitaria da unção
constitucional do Legislativo. Logo, o Legislativo foi chamado para ratificar a
escolha do presidente militar.
Diante do exposto pode-se elaborar um segundo quadro de síntese:
QUADRO DE SÍNTESE 2
JB OG OESP
Eleição de Castelo Favorável Favorável Favorável
Eleição do presidente pelo
Legislativo
Favorável Favorável Favorável
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Relativa
Nota-se que, durante as discussões sobre a eleição de Castelo, há uma sintonia
entre o posicionamento dos jornais e um consenso quanto às ações do governo. Em
função da predominância da democracia com formação discursiva no imaginário
político e social das camadas médias e alta, todos procuram expor seus argumentos de
modo a apresentar, ao seu público, as práticas do governo como submissas e voltadas
à Constituição e à normalização do Estado de direito, logo, à democracia.
Contudo, esta convergência é momentânea. Apesar de todos se mostrarem
favoráveis ao regime, as divergências quanto aos rumos que ele deveria tomar se
tornam mais presentes, traduzindo a heterogeneidade das forças que uniram contra
João Goulart. A opção da facção que assumiu o poder pela postura de “democracia
tutelada”, com preservação de princípios democráticos, e as divergências em torno
52
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 21-22. Grifos do autor.
137
dela, são mais notáveis a partir das discussões sobre a prorrogação do mandato
presidencial e sobre o fim do prazo para as cassações.
O prazo de pouco mais de um ano e meio que restava a Castelo Branco parecia
ao novo grupo no poder insuficiente para a realização do programa de estabilização
econômica. Além disto, a natureza impopular de muitas das medidas a serem tomadas
poderia levar a derrotas do governo em eleições futuras. Como afirma Skidmore,
Em suas primeiras semanas no poder o governo revolucionário deu-se
conta de que os 18 meses que faltavam para o término do mandato de
Goulart eram um prazo curto demais para que alcançasse suas metas. A
equipe econômica sabia em meados de 1964 que não tinha condições para
debelar a inflação até 20 de janeiro de 1966, quando um novo presidente
deveria assumir o poder. Além disso, as medidas de estabilização
certamente irritariam grande parte da população. Ora, se as eleições
presidenciais fossem realizadas em novembro de 1965, como previsto, os
revolucionários poderiam perder. Precisavam portanto de mais tempo.
53
Desse modo, foi vislumbrada a possibilidade de prorrogação do mandato do
presidente, e foi enviada ao Legislativo uma emenda com tal proposição. Castelo,
acreditando que precisava manter-se dentro de determinados princípios
constitucionais e democráticos, mostrava-se contrário a esta medida, mas, embora
relutante, acabou aceitando-a
54
.
Nas seqüências que discutem esta questão ainda predomina a sintonia de opções
entre as facções do regime, mas começam a se definir as diferenças entre os caminhos
53
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 89-90.
54
Segundo Stepan, Castelo seria “firmemente contrário” à prorrogação do seu mandato. Citando
afirmação do ministro Roberto Campos, diz que o presidente, em função das circunstâncias, seria
“necessariamente autoritário, mas não precisava ser personalista”. STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 159.
De acordo com Skidmore, para Castelo Branco, “comprometido com os princípios de governo legal,
constitucional e democrático”, a prorrogação de seu mandato seria a “essência da ilegalidade”.
Skidmore cita que Castelo havia afirmado que não teria “vocação para ditador”. SKIDMORE,
Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 90. Conforme Georges-André
Fiechter, Castelo pretendia concluir a “obra Revolucionária” até o fim de seu mandato, previsto para 31
de janeiro de 1966. A seguir, repassaria o poder aos civis. Este fato refletiria um traço característico
da personalidade do presidente e que, ao mesmo tempo, devia-se, talvez, à disciplina militar que, no
Brasil, exige uma renovação permanente dos altos quadros militares. FIECHTER, Georges-André. O
Regime Modernizador do Brasil (1964/1972). op. cit., p. 59. Já Eurico de Lima Figueiredo, ao analisar
os discursos de Castelo Branco durante o seu mandato como presidente da República, considera que, ao
contrário dessa “compreensão civilista” do processo político, havia, em verdade, “uma forte crença na
missão tutelar das Forças Armadas na formulação e realização dos ‘destinos nacionais’”.
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 15-16. Grifo do autor.
138
a seguir. A divergência, antes restrita às funções do Legislativo, começa a se referir
também ao modo como o governo agia.
231. Se quisermos ser suficientemente realistas e sensatos, transferindo o
pleito para 3 de outubro de 1966, obteremos muito mais do que a
coincidência dos mandatos. Obteremos sobretudo a coincidência da obra
revolucionária com os seus compromissos de legitimidade e liberdade.
(Jornal do Brasil, 20 de maio de 1964, p. 6, tít.: Decisão realista)
232. O Congresso e suas bancadas partidárias foram legitimados e ainda
estão legitimados por uma vontade revolucionária. Com isso, se
transformaram – gostem ou não os bacharéis – em poder revolucionário. O
papel de poder revolucionário conferido ao Congresso está implícito no fato
de haver sido poupado – com o fim de ser um poder a serviço da Revolução
– pela liderança militar revolucionária. (...).
(...)
Cumpra o Congresso o seu papel revolucionário e vote a coincidência do
mandato, a maioria absoluta, sem eleição indireta, abrindo caminho para as
reformas eleitoral e partidária. (...). (Jornal do Brasil, 15 de julho de 1964,
p. 6, tít.: Congresso da Revolução)
55
233. O Congresso sabe – e o país sabe igualmente com convicção – que o
seu mandato é, hoje, novo e revolucionário. (...).
É fácil concluir-se que a primeira lealdade do Congresso é com a
Revolução, com a realização plena de seus objetivos, agindo como deve
agir um dos poderes sustentados, para não dizer recriados, pela Revolução
em sua devoção ao ritual democrático-representativo.
Repetimos para que fique bem clara a idéia, no momento em que se oferece
ao Congresso, restaurado na soberania de seus mandatos, a oportunidade de
provar sua lealdade primeira para com a Revolução, oportunidade que
deverá ser a primeira e nunca a única e última. (Jornal do Brasil, 16 de
julho de 1964, p. 6, tít.: Lealdade à Revolução)
234. O JORNAL DO BRASIL tem razão especial para saudar a
prorrogação, por um ano, do mandato do Chefe constitucional da
Revolução de 31 de março. Lançou e defendeu a idéia, e agora a vê
vitoriosa pelo voto soberano do Congresso. (Jornal do Brasil, 18 de julho
de 1964, p. 6, tít.: Voto de confiança)
235. São poucas as personalidades políticas de maior expressão que se
pronunciam contra a prorrogação do período do Governo do Marechal
Castelo Branco. Mesmo a veemente oposição do Governador Carlos
Lacerda não tem sido bastante para modificar a predominante convicção de
que será bom, para o País, um prazo mais longo, para a recuperação de suas
finanças e de sua economia, para a normalização da vida administrativa e
elaboração das reformas sem a interferência das injunções eleitorais. (O
Globo, 21 de julho de 1964, p. 1, tít.: As Conveniências do Brasil)
236. Quanto à prorrogação do mandato presidencial, diremos que fomos os
primeiros a achar pouco os dois anos que este governo tem pela frente para
desempenhar as funções que a Revolução lhe cometeu. (...). (O Estado de
São Paulo, 6 de maio de 1964, p. 3, tít.: Para que a Revolução vença)
55
Grifos no original.
139
237. Não nos cansamos de advertir a Nação contra os riscos que faz correr à
Revolução o espírito de bacharelismo que domina o Congresso. E não é
outro o motivo pelo qual desde que se tornou vitorioso o Movimento de 31
de março consideramos um erro, e erro grave, o ter o comando
revolucionário mantido em funcionamento o Parlamento nacional. (...). (O
Estado de São Paulo, 21 de maio de 1964, p. 3, tít.: A prorrogação do
mandato presidencial)
238. (...). Devemos, com efeito, considerar que, pela sua composição, está
longe o Congresso Nacional de refletir o pensamento popular. No tempo
decorrido entre os dias que vivemos e a data das últimas eleições
parlamentares, tão profundas modificações se processaram na opinião
pública, que nos achamos em face deste extraordinário fenômeno: a vitória
de uma Revolução deflagrada por indisfarçável inspiração da imensa
maioria do povo brasileiro, ao passo que a maioria da representação popular
no Congresso até hoje não disfarça sua oposição às linhas diretrizes do
movimento revolucionário. (...). (O Estado de São Paulo, 3 de julho de
1964, p. 3, tít.: Um imperativo da consciência revolucionária)
A análise das seqüências discursivas acima apresenta o apoio dos jornais à
prorrogação do mandato de Castelo. Novamente a defesa dessa tese se baseava na
argumentação de que a prorrogação era necessária para a concretização de um bem
maior, a obra “revolucionária” de restauração política, financeira e moral do País. Os
jornais são unânimes nessa defesa. Conforme Fiechter
56
, tornara-se evidente que as
medidas de reestruturação não poderiam ser concretizadas nos prazos fixados pelo AI-
1. Nesse sentido, opta-se por prorrogar o mandato de Castelo. Os editoriais dos
jornais apoiam esta opção.
Quanto ao Legislativo, O Globo procura deslegitimar qualquer opinião contrária
à iniciativa do regime. Desse modo, tenta demonstrar que a tese da prorrogação teria
um apoio quase total da classe política. Assim, qualquer opinião contrária seria vista
como atípica e incompatível com os ideais “revolucionários” de recuperação nacional.
De modo próximo, o Jornal do Brasil, apesar de declarar a soberania do Parlamento,
frisa que ele teria responsabilidades para com a “Revolução”. Por ter sido poupado
por ela, o Congresso deveria estar, prioritariamente, “a serviço” dela.
56
FIECHTER, Georges-André. op. cit., p. 67.
140
Por sua vez, O Estado de São Paulo voltava a insistir na dissolução do
Congresso. Considerava que a sua manutenção fora um “erro grave” do regime, pois
ele já não refletia o pensamento popular que, por sua vez, era representado pela
“Revolução”. Associado à situação anterior, o Legislativo não teria identificação com
as diretrizes do movimento. Mesmo que tenha sido um “erro” a sua preservação, esta
foi a opção do “Comando Revolucionário” que foi, depois, referendada pelo governo
de Castelo Branco.
Esse distanciamento entre o posicionamento dos jornais se mostra mais claro
nas discussões sobre o fim do prazo das cassações. Os militares “duros” queriam a
prorrogação da vigência do artigo 10. Queriam também a cassação dos direitos
políticos de Juscelino Kubitschek
57
pois viam-no como um polarizador da resistência
oposicionista. Segundo Skidmore, Castelo teria relutado em punir JK pois, dentre
outras razões, ele era presidente de honra do PSD, “de cuja ajuda no Congresso o
chefe revolucionário não poderia prescindir”
58
. Mas, buscando conciliar com os
“duros”, Castelo cedeu e cassou os direitos políticos de Juscelino. Em contrapartida,
conseguiu manter o prazo final do artigo 10 em 15 de junho de 1964.
Os jornais não poderiam ficar alheios a esta discussão. Imbuídos do seu papel
de “meta-sistema perito”, procuram validar ou não a crença no “sistema perito”
governo.
57
Juscelino Kubitschek, embora após a eclosão do movimento tivesse, em um encontro com João
Goulart, tentado contornar a situação, apoiou o golpe. Nos momentos subseqüentes, apoiou, também, a
candidatura e a eleição de Castelo Branco, e o seu partido, o PSD, passou a fazer parte da base de
sustentação do governo militar. No entanto, membros da facção mais dura do regime não concordavam
com a sobrevivência política do ex-presidente e candidato do PSD às eleições presidenciais de 1965.
Em nome dos “interesses da revolução” de “restauração do país”, o general Costa e Silva, Ministro da
Guerra, solicitou, em 3 de junho de 1964, a cassação de Juscelino. Cedendo aos “duros”, em 8 de
junho, Castelo cassa o mandato e os direitos políticos de JK. Em 14 daquele mesmo mês, o ex-
presidente viaja para o exílio na Europa. Sobre o posicionamento político de JK nos momentos que
envolvem o golpe militar e a sua cassação, ver: PANTOJA, Silvia. “Juscelino Kubitschek”. In:
ABREU, Alzira Alves et alii. (coord.s). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 30. 2.ª ed.
rev. e atualiz. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 2970-2971.
58
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 61.
141
239. (...). Quando [o Presidente da República] (...) manifesta-se contra a
prorrogação, além de 15 de junho, das cassações recomendadas pelo Ato
Institucional, deve ser apoiado sem discussões. (...).
(...) a autoridade das decisões revolucionárias é também uma íntima
decorrência da unidade de palavra e de ação, a ser expressa por quem
encarna, no Governo legitimado pela Revolução e pelo voto do Congresso,
a liderança incontrastável. (...). (Jornal do Brasil, 05 de junho de 1964, p.
6, tít.: Autoridade)
240. Excetuados os grupos que parecem julgar que a Revolução se fez
apenas para castigar, e que por isto desejavam a prorrogação do prazo do
Art. 10 do Ato Institucional, no horizonte nacional está brilhando, desde
ontem, um arco-íris de desafogo e otimismo. (O Globo, 16 de junho de
1964, p. 1, tít.: Com Muita Esperança)
241. (...). O Congresso permanece, mas com tais restrições às suas
prerrogativas que seria irrisório supor que ele seja ainda, no verdadeiro
sentido da expressão, um dos poderes da República. E tanto isso é verdade
que a própria oposição ao regime, encarnada no PSD e no PTB, se vem
mantendo cautelosamente em silêncio mas (...) contando já as horas e os
minutos para que chegue o dia 15 de junho, data em que, por precipitação
dos que redigiram o Ato Institucional, cessará, nos termos do § único do art.
10.º daquele diploma, o poder conferido ao presidente da República de
cassar direitos políticos e mandatos legislativos federais, estaduais e
municipais. Não escondem mais os membros das duas agremiações
getulistas a sua impaciência, na espera do dia em que pensam poder iniciar
a obra de dissolução do regime saído da vitória do 31 de Março. (...). E é
por isso mesmo que não nos cansamos de advertir aqueles em cujas mãos a
Nação em armas depositou o poder revolucionário contra o absurdo que
consiste em manter, após a vitória, em pleno funcionamento uma instituição
na qual a maioria nunca deixou de estar perfeitamente de acordo com tudo
quanto se fez de antinacional no regime deposto. (...). (O Estado de São
Paulo, 26 de maio de 1964, p. 3, tít.: O ministro da Guerra em S. Paulo)
242. (...) contrariando o que está na consciência da Nação, o governo
revolucionário pode vir a julgar-se quite com a própria consciência e com o
dever que lhe impôs a Revolução através do arremedo de expurgo que terá
sido levado a cabo até o dia 15 do corrente. (...). (O Estado de São Paulo, 4
de junho de 1964, p. 3, tít.: Os perigos de uma precipitação)
Observa-se que O Globo e o Jornal do Brasil continuavam a apoiar
integralmente a ação do governo. Isto valeria para a extinção do prazo para as
cassações de mandatos e direitos políticos e para a preservação do Legislativo, que,
conforme o Jornal do Brasil, teria legitimado a escolha de Castelo Branco para a
Presidência da República.
O Estado de São Paulo, defendendo a opinião de que deveria ser feito um
saneamento definitivo das instituições políticas do Brasil, prega a prorrogação do final
142
do prazo do artigo 10 e continua a caracterizar o Legislativo como um poder
restringido e a associá-lo ao varguismo
59
. Em função disto, estaria inabilitado a servir
como poder da república, representativo da “vontade popular”. Deveria, portanto, ser
dissolvido.
Elaborando-se um quadro de síntese que contemple as discussões que envolvem
a prorrogação do mandato de Castelo Branco e o fim do prazo para as cassações de
mandatos e direitos políticos, tem-se:
QUADRO DE SÍNTESE 3
JB OG OESP
Prorrogação do mandato Favorável Favorável Favorável
Fim do prazo para
cassações
Favorável Favorável Contrário
Política do Governo Favorável Favorável Critica
Preservação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Inexiste
Percebe-se que há uma sintonia quanto ao objetivo de prosseguimento da “obra
revolucionária”. O distanciamento surge quanto política adotada pelo governo. Em
especial, a preservação do Legislativo em funcionamento e a opção do governo de não
prorrogar o prazo para as cassações. Outra discordância refere-se à relutância do
Presidente da República em aceitar a prorrogação de seu mandato.
59
O Estado de São Paulo foi um obsessivo opositor do varguismo. Em 1930, depois de um discreto
apoio inicial, logo se tornou um crítico do governo de Getúlio Vargas. Em 1932, após a derrota da
“Revolta Constitucionalista” que apoiou, Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal, teve que se
exilar do Brasil. Com o advento do Estado Novo, em 1937, pressionado pela censura, O Estado de São
Paulo limitou a sua atuação política. Durante esse período, Júlio de Mesquita Filho foi preso várias
vezes e acabou tendo que, novamente, deixar o Brasil. Em 1940, o jornal passou a ser administrado por
um grupo ligado à Vargas. A orientação governista do jornal foi mantida até 1945, quando retornou ao
controle da família Mesquita. Todos esses fatos fizeram com que O Estado de São Paulo intensificasse
a sua aversão a Vargas e a seus seguidores. Nesse sentido, se opôs à eleição de Getúlio, em 1950, se
constituindo em forte opositor do seu governo e, depois, também foi contra o governo daqueles que
considerava representantes do getulismo: Juscelino Kubitschek e João Goulart. Cf. LEAL, Carlos
Eduardo e SAUL, Vicente. “O Estado de São Paulo”. In: ABREU, Alzira Alves et alii. (coord.s.). op.
cit., p. 2027-2035.
143
Este é um indicativo da divergência de opiniões quanto aos rumos da
“Revolução” e da divisão do todo unicelular chamado “Brasil”. Na ótica da facção
mais dura do regime, personificada na posição d’O Estado de São Paulo, era
necessário eliminar qualquer possibilidade de oposição
60
. A opção dos “moderados”,
entre eles o próprio Presidente Castelo Branco, se aproximava das opiniões d’O Globo
e do Jornal do Brasil. Para estes, o governo precisava legitimar-se junto a
determinadas parcelas da população. Com esse objetivo, preservava-se o Legislativo
como prova de sua submissão aos rituais democrático-representativos. Ao aprovar a
prorrogação do mandato de Castelo, o Legislativo novamente legitimaria a proposição
do governo. Esta opção atendeu aos desejos do “duros” e de todos aqueles que
consideram o prazo que restava a Castelo insuficiente no que se refere à
implementação das “soluções” para os problemas do país. No entanto, em troca,
Castelo manteve o prazo para o fim das cassações.
A política do governo de Castelo Branco foi marcada por essa tentativa de
conciliação entre democracia e repressão, entre “moderados” e “duros”. De um lado,
buscava-se a manutenção de uma imagem de legitimidade democrática, ainda que
baseada em uma “democracia tutelada”. De outro, a meta de “regeneração” do país,
fundava-se no saneamento político através da eliminação da corrupção e da
subversão, associadas ao comunismo.
Mas a adoção desta política não representa uma tomada de posição unilateral.
Representa mais uma reflexão sobre a conjuntura. Conforme Lúcia Klein,
(...) em certas situações em que ocorreram mudanças substanciais na
estrutura de poder, determinando inclusive o deslocamento de sua sede, a
preservação da forma de dominação típica da estrutura anterior constitui-se
um fator estratégico de grande relevância. Torna-se importante para o novo
60
Segundo Skidmore, os militares da “linha-dura” pretendiam cassar os direitos políticos de cerca de
5.000 “inimigos” da “Revolução”. Porém, prevaleceu a opinião dos “moderados”. Até a expiração do
artigo 10 do AI-1 foram suspensos os direitos políticos e/ou cassados os mandatos eleitorais de 441
pessoas. Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. (1964-1985). op. cit., p. 59-90.
144
esquema de poder divulgar uma imagem que, no seu entender, constitui-se
em valioso instrumento para assegurar a legitimidade.
61
Nesse sentido, no caso brasileiro, a preservação do Legislativo serviria para
legitimar as iniciativas do Executivo, e a do Judiciário contribuiria na implementação
da nova ordem legal. Ainda segundo Klein,
(...) havia razões para crer que, efetuadas as modificações nos quadros
daquelas instituições e assegurada a fidelidade de seus membros ao
movimento revolucionário, existiriam condições efetivas para que o
desempenho de suas respectivas funções se processasse em um clima de
autonomia relativa.
62
Entretanto, conclui Klein
63
, a gradativa ampliação das atribuições do Executivo,
com a absorção de parte das funções até então específicas de outros poderes, e a
consolidação da ordem legal baseada em princípios relacionados à Segurança
Nacional contribuíram para impor obstáculos ao funcionamento das instituições
políticas e jurídicas encarregadas de compor a imagem do novo regime.
Diante da estratégia de preservação da forma de dominação típica da situação
anterior, apesar das alterações impostas com a edição do Ato Institucional, mantém-se
o Legislativo em funcionamento e conserva-se a necessidade de tramitação pelo
Parlamento das emendas à Constituição. Sendo este um ponto essencial da estratégia
do governo em busca da legitimação, e também por ser um ponto de discordância
entre os grupos que apoiaram a deposição de João Goulart, cabe a análise de algumas
seqüências discursivas relacionadas diretamente a esta questão.
243. (...). As reformas que agora poderemos fazer, pela via democrática da
elaboração legislativa e da liderança política do Congresso, vão atender aos
interesses de todas as parcelas nacionais em lugar de servir à divisão e à
intolerância entre os brasileiros. (...) (Jornal do Brasil, 5 de abril de 1964,
p. 6, tít.: Autoridade e confiança)
244. (...). Eleição indireta, à margem da decisão do povo, e feita por um
Congresso que está reduzido nas suas faculdades constitucionais e na sua
autenticidade representativa. Seria um faz-de-conta engenhoso, mas nunca
61
KLEIN, Lúcia. “Brasil pós-64: a nova ordem legal e a redefinição das bases de legitimidade”. op.
cit., p. 29. As conclusões da autora baseiam-se em sua análise da obra: MOREIRA, Adriano, “Los
Fines del Estado. Revista de Estudios Políticos, n.º 161, set./out. de 1968, p. 13 e 14.
62
Idem, p. 30.
63
Ibidem.
145
um episódio respeitável da vida democrática do País (...). (Jornal do Brasil,
8 de maio de 1964, p. 6, tít.: Caminhos tortuosos)
245. O Governo está na posse do pensamento revolucionário e na
responsabilidade de dar encaminhamento aos problemas. Ao Congresso
caberá decidir, pesando as circunstâncias. (...). Se a revolução manteve –
e, mais do que isso, revitalizou – o Congresso como representação do povo
brasileiro, é aí que o assunto será encaminhado. (Jornal do Brasil, 20 de
junho de 1964, p. 6, tít.: Divergência e desunião)
246. Legitimado, em lugar de fechado pelas armas da Democracia, o
Congresso cumpre agora, renovado, seu papel constitucional de poder
constituinte, soberano e independente.
(...)
Querem prova da soberania do Congresso, em sua ação constituinte atual e
facilitada? Ainda a emenda da maioria absoluta: a proposta do Executivo
foi completamente derrotada pelo Congresso. Em seu lugar foi votada a
emenda do Sr. Ulisses Guimarães, do PSD, que, democraticamente,
eliminou o sistema da eleição indireta.
Se não bastasse essa prova, valeria citar o papel constituinte revigorado que
o Ato Institucional deu ao Congresso, com isso ampliando o poder real do
Congresso. (Jornal do Brasil, 21 de julho de 1964, p. 6, tít.: Aliança dos
extremos)
64
247. Agora, o Congresso se afirma no conceito da opinião com seu poder
acrescido. Ele trabalha e ele reforma graças ao ato revolucionário. Produz
a prazos certos, porque assim o exige o interesse do povo. E nisso só há
razão para a grandeza democrática que nos levará a uma normalidade
constitucional melhor, mais eficiente, mais profícua, livre e estável. (Jornal
do Brasil, 21 de julho de 1964, p. 6, tít.: Aliança dos extremos)
248. Aproveite, portanto, o Governo as facilidades que o Ato Institucional
lhe concede para fazer tramitar no Congresso emendas constitucionais e
projetos de lei, a fim de restabelecer, com urgência, a ordem na
administração pública, combater a inflação e promover as reformas de
interesse geral. (O Globo, 7 de maio de 1964, p. 1, tít.: A Autoridade do
Governo)
249. (...) o que é preciso reconhecer (...) é que as proposições formuladas
não estão sendo apresentadas como uma imposição do Executivo ao
Legislativo. O Marechal Castelo Branco tem proclamado (...) que o
Congresso decidirá soberanamente.
Os parlamentares, portanto, (...) devem procurar o denominador comum
capaz de permitir o encontro de soluções para os diversos problemas
levados ao Congresso pelo Presidente da República. (...). (O Globo, 30 de
junho de 1964, p. 1, tít.: Todas as Soluções a Seu Tempo)
250. Deliberar não significa aceitar qualquer projeto de lei ou de emenda
constitucional originário do Executivo. Os parlamentares, aliás, têm
decidido soberanamente quanto às proposições remetidas pelo Chefe da
Nação (...). (O Globo, 21 de julho de 1964, p. 1, tít.: As Conveniências do
Brasil)
251. (...) queremos, no ensejo, externar a nossa esperança no critério do
Congresso Nacional, cujas decisões devem inspirar-se nas razões do
64
Grifos no original.
146
patriotismo e nas conveniências do Brasil. (O Globo, 21 de julho de 1964,
p. 1, tít.: As Conveniências do Brasil)
252. Esta mensagem [de modificação na lei que criou a Eletrobrás], que
definia uma política energética racional, desfigurou-se, na votação a que foi
submetida na Câmara dos Deputados. A Revolução, que não veio apenas
mostrar à Nação a sua face punitiva, mas sobretudo para reorganizar a vida
nacional, a partir de suas infra-estruturas, não se pode conformar com a
derrota que lhe foi imposta pelas forças residuais do “antigo regime”. Há
uma possibilidade de salvação. O Senado, ao apreciar a mensagem do
Executivo, pode restaurá-la. Mobilizando suas forças parlamentares na
Câmara Alta, o Executivo há de desfazer o erro – e mais que o erro, o crime
– cometido pela Câmara. (...). (O Globo, 29 de julho de 1964, p. 1, tít.:
Revolução à Prova)
253. (...). Quanto a nós, já há muito que vimos assinalando esse lamentável
estado de coisas [a confusão sobre o significado do grande movimento] e
não temos dúvida alguma em incluí-lo entre as conseqüências do gesto do
Comando Revolucionário que manteve o Congresso em suas funções após a
vitória do 31 de março. Criou-se com esse ato do poder supremo da
Revolução uma espécie de hibridismo entre duas situações que por
definição se repelem: a gerada pelo Ato Institucional, que praticamente
confere poderes discricionários ao governo de fato saído da queda do
regime chefiado pelo sr. João Goulart e a que decorre da permanência de
um Congresso com poderes quase idênticos aos que lhe dava a Constituição
antes da vitória do movimento revolucionário. (...). A sobrevivência de um
poder que, muitas vezes por omissão e outras tantas pelo desejo de ajudar o
caudilho, não concorreu menos do que o Executivo para o caos existente
antes do 31 de março, além de introduzir uma cunha perigosa no regime de
fato sem o qual não lograria a Revolução atingir os seus fins, permitiu que o
bacharelismo e a má fé dos irredutíveis inimigos do movimento ponham em
discussão a maioria dos atos do poder constituído. (...). (O Estado de São
Paulo, 19 de maio de 1964, p. 3, tít.: O significado do 31 de março)
254. (...) custava-nos admitir a possibilidade de uma razoável conciliação
do pensamento da maioria dos atuais congressistas, não só com a linha de
conduta a ser imposta ao País pela Revolução, mas também com as próprias
aspirações do povo brasileiro. (...). (O Estado de São Paulo, 19 de junho de
1964, p. 3, tít.: O leguleio parlamentar)
255. (...). Diante de um Parlamento diminuído nas suas liberdades por
todas as restrições que lhe impôs o Ato Institucional, e composto de
elementos incompatíveis na sua maneira de ver as coisas e de encarar o
futuro, obterá o Executivo tudo quanto quiser, exceto implantar no País um
regime que seja realmente a resultante daquilo com que sonhava a
Revolução de 31 de março. (O Estado de São Paulo, 20 de junho de 1964,
p. 3, tít.: As emendas à Constituição)
256. Há nos sistemas parlamentares vigentes nas mais sólidas democracias,
circunstâncias que impõem a dissolução das Câmaras, para que novas
consultas eleitorais restabeleçam a legitimidade do Parlamento como
espelho da vontade popular. O nosso sistema é outro: não poderíamos, em
período de normalidade constitucional, lançar mão de idêntico recurso.
Mas, já que os imperativos da preservação do regime democrático nos
arrastaram à revolução, deveríamos ter meditado, pelo menos, na
147
oportunidade daquela providência. (...). Reconheceu o governo
revolucionário esta verdade [de que a maioria dos parlamentares não
esposava e nem refletia os ideais revolucionários] ao limitar a
independência do Congresso e concordaram os congressistas com esta
interpretação, ao aceitarem a sua legitimação pelo novo governo, ao invés
de terem de legitimar a nova situação. O erro consistiu em se haver optado
por uma meia medida, que não deixou de ser humilhante para os
parlamentares e desprestigiosa para o Poder Legislativo. Muito mais certa
seria a dissolução do Congresso, que ressurgiria, fortalecido e prestigiado,
de novas eleições. (O Estado de São Paulo, 27 de junho de 1964, p. 3, tít.:
A inevitável conseqüência de um erro)
A partir da análise das seqüências acima, percebe-se que há um ponto de
consenso: as reformas são do interesse da Nação. Os jornais insistem em passar essa
imagem para o seu público leitor. Os meios de procedê-las é que são divergentes.
Refletindo os diversos interesses existentes no interior da coalizão golpista, as
opiniões sobre as posições do governo difere. De modo geral, O Globo e o Jornal do
Brasil concordavam com a opção adotada pelo governo de que as proposições de
reforma deveriam tramitar pelo Congresso. O Estado de São Paulo discordava.
O posicionamento d’O Globo e do Jornal do Brasil é o de que o meio adequado
para se proceder à aprovação de tais medidas, seria a via democrática do debate
legislativo, liderado pelo Congresso “independente” e “soberano”. É lógico que, de
acordo com a política de “democracia tutelada”, essa independência e essa soberania
eram limitadas. Um desses limites foi o prazo estabelecido pelo Ato Institucional
para análise das proposições executivas. Mas o principal limite à liberdade do
Legislativo seria a “vontade nacional”. Como as proposições, geralmente, “seriam”
de “interesse geral”, e como o governo era posto como o intérprete desse interesse,
como frisa O Globo, as decisões do Legislativo deveriam “inspirar-se nas razões do
patriotismo e nas conveniências do Brasil”. Ou seja, deveriam guiar-se de acordo
com os desígnios “revolucionários”. Dessa forma, as possíveis alterações que o
Congresso poderia fazer às proposições do Executivo não deveriam significar uma
mudança na essência dos ditames estabelecidos pelo regime.
148
Contudo, apesar de defender a preservação do Legislativo e o trâmite das
propostas pelo Congresso, O Globo e o Jornal do Brasil, por vezes, também são
críticos da ação parlamentar.
Quando o Legislativo é posto como parte constituinte de algum processo a ser
estabelecido do qual o jornal discorda, o seu valor é desprezado. É o que ocorre
quando começa-se a mencionar a possibilidade de eleições indiretas para o sucessor
de Castelo. De pronto, o Jornal do Brasil frisa que ele estaria reduzido em suas
faculdade e, logo, não teria como legitimar tal procedimento.
O Globo também critica os parlamentares quando eles se mostram contrários a
uma proposição do Executivo, e, os associa ao “antigo regime”. No entanto, mesmo
neste momento, O Globo não prega a dissolução do Congresso. Se a Câmara dos
Deputados havia reprovado a proposta do Executivo, clama ao Senado que a aprove.
Desse modo, mantém-se apegado à preservação do Legislativo e ao trâmite
parlamentar, sabedor do “poder simbólico” que eles conferiam ao governo.
Esta defesa do trâmite parlamentar não era uma peculiaridade do
posicionamento dos jornais. Ao analisar os discursos do presidente Castelo Branco,
Eliézer Rizzo de Oliveira
65
conclui que a permanência do Congresso como instituição
representativa da sociedade junto ao Estado é um dos componentes da legitimidade
“revolucionária”. Por isso ele foi preservado. Como denota Eurico de Lima
Figueiredo,
(...). Não recusando o diálogo com a “oposição”, pelo menos nos decisivos
momentos iniciais, Castelo Branco ganhou tempo para firmar fortes pontos
de apoio estratégico, principalmente no âmbito das Forças Armadas. Num
momento em que a “Revolução” não dispunha, ainda, como excelsa fonte
legitimatória, dos resultados do desenvolvimento acelerado, estando, ao
contrário, às voltas com uma economia emperrada pela inflação e pela
polarização política, a conciliação – tendo em vista os “objetivos da
Revolução” – foi a estratégia, assim como o diálogo, com os “aliados aqui e
agora”, e o uso da força contra os “inimigos” (ativos e, às vezes,
potenciais), os princípios de suas manobras táticas. (...).
66
65
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 75.
66
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 31. Grifos do autor.
149
Com uma opinião diversa, O Estado de São Paulo argumenta ter sido um erro a
opção do “Comando Revolucionário” e do governo Castelo Branco de buscar
legitimação junto ao Legislativo. Melhor seria dissolvê-lo. Por considerá-lo co-
responsável pelo “caos” do governo João Goulart e por julgar que o pensamento dos
parlamentares diferia do do povo e do da “Revolução”, não seria lógico a sua
manutenção. Dissolvê-lo seria uma questão de preservação do regime democrático.
O que parece ambíguo na tese d’O Estado de São Paulo é a questão da
autonomia do Legislativo. Em um momento ele o considera um poder fraco, sem
liberdade ou independência para se opor aos desígnios do governo, e a sua
preservação como uma medida humilhante e desprestigiosa. Em outro, afirma que ele
teria poderes quase idênticos aos que possuía antes da “Revolução”, e frisa que ele
poderia discutir os atos do governo, o que o tornava um entrave aos objetivos do
regime.
O que se conclui é que, embora realmente enfraquecido, o Legislativo ainda
manteve parte de sua autonomia, e, com o pouco que lhe restava, agia, ainda que
debilmente. Por certo, muitas vezes se sentiu coagido – ainda mais nos momentos
iniciais do regime – e apenas referendou as proposições do Executivo. Mas, não creio
que isto derrube a tese de que os parlamentares se apegaram ao pouco da soberania
que lhes restava, e nem a de que o governo tinha ciência da necessidade da unção
parlamentar para legitimar o seu domínio. Assim como na questão da eleição e da
prorrogação do mandato de Castelo, no caso das emendas constitucionais o
Legislativo era chamado para “ratificar” a aprovação das propostas do governo. Nesta
questão, como as propostas poderiam ser enviadas a qualquer tempo, esta seria uma
legitimação permanente e constante.
150
Como quadro de síntese para esta questão, tem-se:
QUADRO DE SÍNTESE 4
JB OG OESP
Proposições de reforma Favorável Favorável Favorável
Tramitação de emendas
constitucionais pelo
Legislativo
Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Relativa
Nota-se que se mantém a igualdade de opinião quanto aos objetivos do regime.
Quanto à opção política do governo para se atingir tais metas, também é mantido o
quadro anterior: O Globo e o Jornal do Brasil concordam com a posição do governo
de busca de legitimação através do referendum do Congresso; O Estado de São Paulo,
não. O que difere um pouco é a visão deste quanto à autonomia do Legislativo.
Apesar de todas as críticas à sua composição e à sua representatividade, por
considerá-lo um entrave às ações “revolucionárias”, O Estado de São Paulo comprova
a idéia de que o Legislativo manteve certo grau de autonomia.
Conclusão:
Ao longo deste capítulo procurou-se analisar qual a opção política adotada pelo
regime militar em seus primórdios e qual a razão por trás dessa opção. Chega-se à
conclusão que a facção militar “moderada” ou “castelista”, que assumiu o poder de
fato, visando a sua legitimação, adotou um política de “democracia tutelada”. De
acordo com essa política, mecanismos típicos de um sistema político democrático-
representativo foram mantidos. No entanto, esta manutenção não significou uma
eqüidade com relação à situação anterior. Limitados em suas autonomias e funções,
estes mecanismos democráticos ainda sofreram com a repressão, que reduziu a
representatividade que eles possuíam. Foi o que ocorreu com o Poder Legislativo.
151
Ainda assim, creio que esses limites não invalidam a tese de que o regime militar os
preservou visando a legitimação da nova ordem junto a determinadas parcelas da
sociedade para as quais tais mecanismos seriam de fundamental importância. Fechá-
los definitivamente seria impossível.
Como partícipes da coalizão golpista, a análise dos editoriais sugere que os
jornais, como “meta-sistemas perito” do regime, procuraram construir a ilusão de um
consenso sobre as suas ações e, ao mesmo tempo, tentaram promover os leitores a um
lugar de decisão política. Ou seja, segundo os editoriais, tais ações visavam atender à
“vontade da Nação” de “regeneração democrática da Nação”. Esta, contudo, não era
uma particularidade dos jornais. Como destaca Eliézer Rizzo de Oliveira, com
relação ao discursos do presidente Castelo Branco,
Os discursos da primeira etapa evidenciam o esforço ideológico de
legitimação da Revolução enquanto um movimento político eminentemente
cívico de restauração da nacionalidade brasileira. A restauração estaria
referida à renovação de procedimentos políticos internos e externos ao
Brasil. No primeiro caso, a Revolução teria sido realizada para defender o
funcionamento das instituições democráticas, cuja existência se propõe
garantir, e para promover a retomada do desenvolvimento econômico. No
segundo caso, dever-se-ia recuperar a posição do Brasil no mundo
ocidental, que estivera ameaçada pela “política externa independente” que
inclusive se refletira na despreocupação governamental (especialmente no
governo Goulart) com a infiltração comunista. (...).
67
No entanto, a coalizão golpista que depôs João Goulart era heterogênea. Do
consenso inicial quanto à ação militar e à não transferência do poder aos civis, logo se
passou às divergências quanto aos caminhos pelos quais o regime deveria percorrer
em busca da sua meta de “regeneração” do país.
Castelo Branco e os “moderados” tinham uma postura política diferente da
proposta pelos militares de “linha-dura”. Os primeiros defendiam a manutenção de
uma imagem de legitimidade democrática, os últimos, ligados mais a uma perspectiva
de segurança nacional, pregavam o saneamento político associado a uma dura
repressão. A influência da “linha-dura” era grande, e Castelo teve que buscar
152
conciliações. Mas a pressão dos “duros” inviabilizava uma política deste tipo, o que
resultou em um descompasso entre a linguagem de legitimação através da democracia
e a realidade opressiva. Este descompasso afetava a imagem do governo e gerou uma
crise de legitimidade permanente ao longo do regime.
Embora as divergências entre as facções ainda estivessem em uma fase inicial,
já é possível percebê-las nas discussões presentes nos editoriais que circundam os
passos iniciais do regime militar brasileiro. Este fato demonstra a dificuldade na
construção desse “sujeito coletivo” de caráter “unicelular” e de “vontade única”.
Com relação a essa conjuntura é possível elaborar o seguinte quadro de síntese:
QUADRO DE SÍNTESE DO CAPÍTULO
JB OG OESP
Ação Militar Favorável Favorável Favorável
Regime Militar Favorável Favorável Favorável
Política de Castelo Favorável Favorável Crítico
Preservação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Relativa
Com base nos dados acima, conclui-se que do consenso inicial em torno da
ação, da instalação e dos primeiros momentos do regime militar passa-se à
divergências. Se os fins são, em tese, os mesmos, os meios para atingi-los são bem
diversos. Desse modo, o posicionamento d’O Estado de São Paulo é um nítido
exemplo da postura da facção “dura”, embora não militarista do regime. Por outro
lado, os jornais O Globo e Jornal do Brasil defendem as proposições dos “castelistas”
ou “moderados”.
Essas divergências são especialmente claras nas discussões que envolvem o
papel que cabia ao Poder Legislativo dentro da nova ordem. Se a opinião d’O Estado
67
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 72.
153
de São Paulo expressa uma dúvida sobre a viabilidade ou não de sua manutenção, as
divergências quanto ao papel requerido ao Congresso pelo Executivo ressaltam que
esta foi uma posição consciente da facção golpista que assumiu o poder. Esta postura,
no entanto, resultou em uma política híbrida. Segundo Eurico de Lima Figueiredo,
(...). Eleito em 11 de abril de 1964, Castelo Branco será o primeiro Oficial
General a presidir, neste século, um governo essencialmente militar no
Brasil, que, porém, foi eleito pelo Congresso Nacional. Procurará, por
conseguinte, sendo simultaneamente um representante autêntico da
“Revolução”, e um delegado da legalidade, defender a legitimidade e a
preservação do Legislativo, ao mesmo tempo que, na evolução do processo
político que o levou ao poder, justificará o fechamento temporário desta
instituição em nome da preservação da ordem revolucionária. (...).
68
Não só o fechamento temporário, que ocorre em anos posteriores, mas todas as
medidas repressivas adotadas, inclusive a edição do primeiro Ato Institucional, a
eleição indireta de Castelo e a prorrogação de seu mandato, foram apresentadas como
meios para a recondução do Brasil à “normalidade” econômica, financeira, moral e
política, o restabelecimento da “legalidade” e o reforço das instituições democráticas.
No entanto, a realidade opressiva de suspensão de mandatos e direitos políticos se
chocava com essa proposição.
Conforme Maria Helena Moreira Alves,
A contradição entre os declarados objetivos de reforçar a democracia e
restabelecer a legalidade e a necessidade de repressão cada vez maior para
suprimir a dissensão originou a permanente crise de legitimidade que tem
marcado o Estado de Segurança Nacional. A coalizão no poder não
dispunha de um modelo pronto para todas as estruturas do novo Estado;
contava apenas com uma elaborada doutrina, ou ideologia, em que se
baseava seu pensamento político. Os interesses econômicos da aliança de
classes que apoiou o golpe combinaram-se a elementos desta doutrina para
impor ao Estado um caráter autoritário. Mas a efetiva edificação do Estado
de Segurança Nacional resultou de um confronto dialético com a oposição.
Foi um processo contínuo de reformulação de planos e normas e de
expansão da abrangência do poder coercitivo.
69
O objetivo a ser atingido com os expurgos realizados ao longo não só dessa
primeira fase mas de todo o regime era a eliminação de possíveis núcleos de oposição
68
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 26-27.
69
ALVES, M.ª. Helena M. op. cit. p. 52-53.
154
política. O seu resultado foi a transformação da representação política no Poder
Legislativo, que acabou enfraquecido em seu potencial de resistência às iniciativas
legais do Executivo. Somava-se a isto a mudança das regras expressas na
Constituição de 1946 quanto à concessão ao Executivo do poder de propor alterações
à Constituição, e que fixou um prazo máximo para que o Legislativo as analisasse e
votasse. Estes fatores deram ao governo grande margem de manobra para executar as
reformas que considerasse necessárias. Ao Legislativo era permitida uma
“autonomia” que não representasse barreiras aos ideais do regime.
No entanto a centralização do poder nas mãos do Executivo não era uma
particularidade do regime militar. Segundo Eli Diniz, no Brasil, entre as décadas de
1930 e 1970, houve um alto grau de continuidade institucional, “representada pela
tradição centralista do Estado, pelas formas dominantes de articulação Estado-
sociedade, pelo padrão de incorporação de atores estratégicos ao sistema político e
pelo modelo de presidencialismo implantado.”
70
Para o autor,
(...). Paralelamente ao fortalecimento dos mecanismos de centralização do
Estado e de sua capacidade de intervenção na vida econômica e social,
observou-se a concentração do poder decisório no Executivo e o
esvaziamento da arena parlamentar-partidária. (...).
71
Contudo, apesar do fortalecimento do Executivo e do enfraquecimento do
Legislativo, mesmo antes de Castelo Branco assumir a presidência da República nota-
se que havia uma preocupação em mantê-lo em funcionamento para que servisse
como colaborador do regime. Os novos donos do poder tinham ciência de que, para
obter uma legitimidade efetiva, precisavam preservar a forma de dominação típica da
situação anterior. Mas, conforme Klein,
(...). Ao determinar uma diminuição sensível do grau de autonomia das
instituições políticas, alterando ou impedindo o desempenho das funções
que até então lhes eram reservadas, a nova ordem legal concorreu para
70
DINIZ, Eli. op. cit., p. 198.
71
Ibidem.
155
reduzir a capacidade de legitimação das organizações partidárias e do
Legislativo. (...).
72
Entretanto, nunca deixou de buscá-la.
Decerto que com as alterações sofridas o Legislativo perdeu parte de seu poder
de legitimação, mas ainda não o perdera de todo. Esse foi um processo constante e
crescente ao longo de toda a primeira fase do regime.
O processo pelo qual o Legislativo perdeu gradativamente o seu poder de
legitimação é paralelo ao de perda de sua autonomia. Cada vez em que ele perdia
certo grau de autonomia, perdia parte de seu poder de legitimação. Mas, enquanto
teve uma “margem para manobra”, procurou usá-la.
No calor dos primeiros movimentos da nova ordem, que atingiram diretamente a
sua constituição e as suas funções, manteve-se a maior parte do tempo acuado.
Basicamente, assentiu com as proposições do governo. No entanto, procurou, ainda
que timidamente, mostrar que possuía certo grau de autonomia. Com o serenar dos
ânimos, se mostrou mais combativo. De poder necessário à legitimação do regime, o
Congresso começou a tornar-se um obstáculo ao governo.
Esta transformação do Legislativo em obstáculo à ação do governo e a perda
gradual de seu poder de legitimação ficam mais claros nos momentos que envolveram
a edição do Ato Institucional nº.2, a elaboração da Constituição de 1967 e a edição do
Ato Institucional nº.5. Contudo, mesmo nestes momentos, ainda é possível perceber
que o governo tinha ciência de que não conseguiria se manter exclusivamente pela
força, que precisava buscar a legitimação democrática. Por isso, preservou o
Legislativo.
72
KLEIN, Lúcia. op. cit., p. 89-90.
156
Capítulo III – Um longo outubro: o regime endurece
Este – o Congresso da Revolução tem poder legitimador
incontestável em tudo que se trate de matéria constitucional. Denegar tal
poder será negar a Revolução.
1
Em 1965, a política de estabilização econômico-financeira de Roberto de
Oliveira Campos, Ministro do Planejamento e Coordenação Econômica, e Octávio
Gouvêa de Bulhões, Ministro da Fazenda, começava a apresentar resultados. De
acordo com Thomas Skidmore,
(...). Registrava-se forte queda na taxa de crescimento da base monetária e
no nível das despesas públicas, que haviam caído de 12,1 por cento do PIB
em 1963 para 10,5 por centro em 1965. Mas as medidas ortodoxas haviam
gerado recessão no coração industrial de São Paulo em fins de 1964,
embora o crescimento do PIB tivesse subido 2,9 por cento durante todo o
ano. Em 1965 a produção industrial caiu 5 por cento, sinal ameaçador para
uma sociedade atormentada por tanto subemprego e desemprego. Apesar
do declínio da indústria, o PIB subira 2,7 por cento em 1965. Mas os
responsáveis pela formação da opinião pública viviam no Triângulo do
Sudeste (formado por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo), e graças
ao combate que desfecharam contra a depressão industrial nesta região,
suplantaram a crítica oposicionista à política econômica. Ficou também
demonstrado que em vista do aumento demográfico de 2,8 por cento, o
crescimento do PIB per capita foi efetivamente zero em 1964 e 1965. (...).
2
Além desses fatores, em 13 de julho de 1965, o governo fez aprovar a Lei 4.725,
que estendia a política de arrocho salarial do setor público para o setor privado. Com
essa lei, toda a política salarial, pública e privada, passou a ser determinada pelo
Poder Executivo
3
. Em seguida, conforme completa Skidmore
4
, surgiu a possibilidade
de retorno da inflação, resultado do superávit da balança comercial que, propiciando a
entrada de capitais externos, alargou novamente a base monetária, e, também, devido
à compra do excedente da produção cafeeira, que resultou em um crescimento do
déficit público. A recessão, o aumento das tarifas públicas, a pressão inflacionária e
1
O Globo, 16 de dezembro de 1965. p. 6. Grifo meu.
2
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 97.
3
Cf. ALVES, M.ª Helena M. Estado e Oposição no Brasil, 1964-1984. op. cit., p. 82-84.
4
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 98.
157
as cassações de direitos políticos geraram um descontentamento na população, que
passou a manifestar-se contra o Governo. Essas manifestações não eram bem vindas.
Por sua vez, o decréscimo da popularidade
5
do Governo, segundo Alfred
Stepan
6
, fez com que os militares, como instituição, se sentissem cada vez mais
isolados e ameaçados. Isto gerou uma pressão no interior das Forças Armadas sobre o
governo.
Mesmo em face desta conjuntura, o presidente Castelo Branco defendeu que a
data para a realização das eleições para governador de onze estados deveria ser
mantida em 3 de outubro
7
. Mas, diante deste quadro de insatisfação, estes pleitos
eleitorais tornaram-se plebiscitários: ou se dizia sim, ou se dizia não às diretrizes
políticas, econômicas e sociais do regime. Era um risco para a “Revolução”, no
entanto, como afirma Maria Helena Moreira Alves, face à necessidade de legitimação,
o Governo precisava corrê-lo:
O caráter plebiscitário das eleições tornou-se uma das principais
características do Estado de Segurança Nacional no Brasil. Forçado a
promover eleições periódicas dada sua necessidade de legitimação, ele se
vê entretanto dividido por pressões dos setores da linha-dura no sentido de
não permitir que a oposição conquiste qualquer grau efetivo de poder
político de Estado. As eleições transformaram-se assim em momentos de
crise, de conflito interno do Estado, momento em que grupos de oposição
aglutinam-se e manifestam sua discordância política votando contra o
governo.
8
5
M.ª Helena M. Alves menciona uma pesquisa realizada pela empresa de pesquisas MARPLAN, no
estado da Guanabara, e publicada no jornal carioca Correio da Manhã, em maio de 1964, segundo a
qual, 63% dos entrevistados não aprovavam a política do novo governo, 18% não tinha opinião, e
apenas 19% eram favoráveis à política governamental. Cf. Correio da Manhã, 10 de maio de 1964, p.
6. Citado por ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 80-81.
6
STEPAN, Alfred C. Os Militares na Política. op. cit., p. 185.
7
De acordo com M.ª Helena Moreira Alves, diante da proximidade da expiração do Ato Institucional,
prevista para 31 de janeiro de 1966, “o governo encetou uma política de ‘retorno à normalidade’,
acenando com o fim da ‘Operação Limpeza’ e dos IPMS e com uma gradual abertura política. Seriam
restabelecidos a democracia representativa e o equilíbrio entre os três poderes do governo. (...).”
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 80.
8
Idem, p. 81, nota 6.
158
O quadro pré-eleitoral indicava a possibilidade de derrota do Governo nos
principais estados
9
. A justificativa de que o resultado negativo poderia significar um
impedimento ao avanço real da “Revolução” e uma derrota de seus ideais, aliada ao
sentimento de isolamento e de ameaça à instituição, resultaram em uma maior pressão
da “linha-dura”. Os “duros” reivindicavam a não realização dos pleitos e o
estabelecimento de normas que vetassem qualquer tipo de participação politico-
eleitoral dos opositores indesejáveis. Visando eliminar as discordâncias, “Os grupos
conflitantes no interior do Estado negociaram um compromisso: as eleições realizar-
se-iam como programado, mas seria promulgada uma lei para impedir as candidaturas
de políticos indesejáveis. (...).”
10
Como uma das bases da política de Castelo era cercar o seu governo de
legitimidade internacional e nacional, era de fundamental importância manter
determinados princípios democráticos em vigor. Dentre eles, a preservação dos
demais poderes em funcionamento e a realização das eleições previstas para outubro,
acatando os seus resultados. Apesar do debate político ser visto mais como obstáculo
do que como parte inerente ao processo democrático, e por mais que pudessem gerar
pressão da “linha-dura”, esta opção do governo se inseria no processo de retorno
gradual a uma “democracia formal”
11
. Para Stepan,
(...). A despeito da pressão dos oficiais de linha dura por mais expurgos,
Castelo Branco, ao assumir o cargo, desejou que o Congresso se mantivesse
aberto e que os poderes excepcionais estabelecidos pelo Ato Institucional
nº. 1 tivessem limites estritos. A confiança num retorno à democracia era
tão intensa que o governo planejou realizar, em 1965, as eleições diretas
para governador, apesar dos prováveis riscos a que se exporia a revolução.
12
Todavia, na tentativa de conciliar, mantendo as bases de sua política e, ao
mesmo tempo, tentando eliminar os riscos temidos pelos “duros”, Castelo fez incluir
9
Há que se ressaltar que, já em março de 1965, o Governo havia sofrido o primeiro revés eleitoral, com
a vitória do Brigadeiro Faria Lima, candidato do ex-presidente e político cassado, Jânio Quadros, na
eleição para a Prefeitura da cidade de São Paulo.
10
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 85.
11
Conforme discutido no capítulo 1, tópico 2, p. 89-108.
12
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 170.
159
na Lei Eleitoral a exigência de domicílio eleitoral mínimo de quatro anos para os
candidatos aos Governos dos estados e aos cargos legislativos federais e estadual. Em
complemento, fez aprovar a Lei das Inelegibilidades. Esta lei
(...) barrava a candidatura nas eleições vindouras de quaisquer ex-Ministros
que serviram durante a Presidência de Goulart depois do plebiscito de
janeiro de 1968 [sic]
13
. Esta medida destinava-se inequivocamente a limitar
a eficiência da oposição e tornar menos provável que o Governo sofresse
reveses sérios em seu primeiro teste eleitoral importante. A segunda
medida foi um novo Estatuto de Partidos Políticos, que se destinava a ser a
superestrutura para uma reorganização geral da atividade política no Brasil.
Era esta uma medida a longo prazo, que, esperava-se, superaria o fenômeno
da fragmentação partidária e ajudaria a dar ao Brasil a condição que seu
novo governo dizia ser aquela, cuja falta mais se tinha feito sentir desde a
guerra – estabilidade.
14
Segundo Kinzo
15
, a garantia da realização das eleições e a esperança de que isto
indicasse um retorna à “normalidade democrática” fez com que os congressistas
aprovassem a Lei das Inelegibilidades. Por outro lado, Castelo acreditava que, com as
novas normas e com a “seleção” dos candidatos, a “Revolução” conseguiria atingir o
seu objetivo de “normalização” do sistema. Acreditava ainda que, através delas,
seriam assimilados os elementos “recuperáveis” do antigo sistema político. Desse
modo, reduziria o risco eleitoral e aumentaria as chances de vitória dos políticos da
UDN
16
. Por fim, estas normas serviram para eliminar muitos dos desafetos do
Governo dos pleitos estaduais, mas corroeram a legitimidade da “Revolução”.
Conforme ressalta Maria Helena Moreira Alves,
Cabe frisar aqui que estas leis introduziram no Estado de Segurança
Nacional um modelo de gestão da crise política. Passou-se a redigir e
aplicar leis, especialmente eleitorais, para resolver crises políticas
específicas e eliminar candidatos individuais ou focos de oposição, o que
dotou de um certo caráter ad hoc o processo de construção das instituições;
destinadas a enfrentar os problemas do momento, tais medidas integraram-
se entretanto ao quadro legal permanente do Estado. A tendência faz
ressaltar um importante ponto de análise: demonstra que, embora a
Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento tenha efetivamente
13
O plebiscito foi realizado em janeiro de 1963.
14
SKIDMORE, Thomas., Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964). op. cit., p. 376-377.
15
KINZO, M.ª D’Alva Gil. Oposição e Autoritarismo: Gênese e trajetória do MDB (1966-1979). op.
cit., p. 24.
16
FIECHTER, Georges-André. O Regime Modernizador do Brasil (1964-1972). op. cit., p. 111.
160
fornecido as bases para um programa de Estado, não proviu [sic] um
esquema completo de criação de instituições. Os controles instituídos pelo
Estado evoluíram gradualmente, em resposta dialética a iniciativas
potenciais ou reais da oposição. Além disso, este modelo de administração
de crises (especialmente no caso da legislação eleitoral) minou a
legitimidade do novo Estado e contribuiu para sua instabilidade inerente.
Por um lado, o Estado precisava continuar invocando a função legitimadora
das eleições, vinculada à promessa de restabelecimento da democracia, que
era, por sua vez, a justificativa original para a tomada do poder, Por outro
lado, o Estado não podia correr o risco de perder eleições – em qualquer
nível –, pois sua política de repressão transformou as eleições em
plebiscitos. Passou assim a reformular permanentemente a legislação
eleitoral, para garantir que os candidatos indesejáveis seriam eliminados e
que os do partido governamental venceriam sempre. Ao fazê-lo, entretanto,
o Estado subverteu a função legitimadora das eleições, diminuindo assim a
cada enfrentamento eleitoral sua própria legitimidade.
17
A implantação destas medidas não foi suficiente para imobilizar a oposição e,
conforme o previsto, o Governo sofreu importantes derrotas, entre outros, em dois
estados-chave: Guanabara e Minas Gerais, onde, respectivamente, Francisco Negrão
de Lima e Israel Pinheiro, candidatos do PSD e colaboradores do ex-Presidente
Juscelino Kubitschek, foram os vencedores. As condições tornavam-se pouco
favoráveis à política híbrida de Castelo.
Não era com bons olhos que a “linha-dura” via a política de Castelo Branco,
ainda mais com o retorno de JK após 16 meses de exílio voluntário, justamente no
momento da vitória de seus correligionários. Insatisfeitos com os resultados das
eleições, os “duros”
18
passaram a exercer sobre Castelo uma forte pressão para que ele
17
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 87.
18
De acordo com Fiechter, as insatisfações já não ficavam restritas à “linha-dura”. Tratava-se de um
“clamor geral” no interior das Forças Armadas. Cf. FIECHTER, Georges-André. op. cit., p. 114.
Skidmore segue no mesmo sentido ao mencionar que “Oficiais do Primeiro Exército no Rio ficaram
furiosos com os resultados das eleições e muito mais furiosos com Castelo Branco por haver prometido
respeitar o veredicto das urnas. Circularam boatos de que os militares mais exaltados estavam em vias
de depor Castelo Branco para instalar um ‘genuíno’ governo revolucionário. Até os oficiais mais
moderados se achavam profundamente contrariados. Ao que se propalava, dois grupos de oficiais
conspiravam: um, constituído por membros da entourage de Lacerda, queria o golpe para instalar o seu
chefe no poder. Mais ameaçador era o segundo grupo, liderado pelo general Albuquerque Lima. Os
seus membros mais radicais queriam ir até o estádio do Maracanã, onde se fazia a contagem dos votos,
para queimar as cédulas, marchando em seguida para o Palácio Laranjeiras, residência presidencial no
Rio. Todas essas tramas tinham um elemento comum: repúdio dos resultados eleitorais e instalação de
uma ditadura ostensiva.” SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit.,
p. 96.
161
interviesse nos estados em questão, cancelando os resultados dos pleitos e indicando
novos governadores.
Já para Carlos Lacerda, governador da Guanabara e candidato da UDN à
sucessão de Castelo, as eleições tinham um sentido pessoal. Segundo Elio Gaspari, o
resultado das eleições significava que, “em eleição direta, o regime não elegeria seu
candidato à Presidência da República. E havia uma eleição marcada para o ano
seguinte. O resultado de outubro prenunciava a derrota de Carlos Lacerda. (...).”
19
Consciente deste fato, o governador rompeu com o governo.
Mas, “Castelo Branco acreditava firmemente que a legitimidade da Revolução
dependia do acatamento do resultado das eleições legais.”
20
. Entretanto, mais do que
uma crença, o presidente Castelo não podia se furtar a respeitar os resultados das
eleições. À época, o jornalista Carlos Castello Branco afirmava que,
A posse dos eleitos não poderá, todavia, ser objeto de contestação, a não
ser na medida em que se conteste a própria autoridade do Chefe do
Governo. Convocando eleições e indo ao dispensável pronunciamento de
que dará posse aos eleitos, o Marechal Castelo Branco assumiu um risco
19
GASPARI, Elio. Ilusões Armadas – A ditadura envergonhada. op. cit., p. 239. Nos momentos
imediatamente posteriores às eleições de 3 de outubro de 1965, o jornalista Carlos Castello Branco, em
sua coluna diária no Jornal do Brasil, já havia chegado à mesma conclusão de Gaspari. Em nota o
jornalista afirmou:
“Seja qual for o desfecho da crise aberta no sistema revolucionário, com todas as características de
irreversibilidade, o Sr. Carlos Lacerda, que joga ao mesmo tempo a curto e a longo alcances, foi levado
aparentemente a considerar, na base dos resultados eleitorais, que não lhe adianta, como candidato a
Presidente da República, manter qualquer vínculo com o situacionismo federal. Nem política nem
eleitoralmente tal situação lhe renderá qualquer coisa.
Politicamente (...) [sabe ele] que não tem condições de obter apoio de qualquer fração do dispositivo
político federal.
Eleitoralmente, os resultados de 3 de outubro lhe indicaram com clareza, tal como de resto já o
pressentia, que, para ganhar eleição, é preciso estar claramente, distintamente, inequivocamente, do
outro lado da barricada. Os candidatos do Governo estão condenados ao malogro eleitoral e ao repúdio
da opinião pública.” BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, vol. 1., 1977, p. 333. Nota publicada originalmente na coluna do jornalista,
“Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 9 de outubro de 1965.
20
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 99. Segundo Luís
Viana F.º, a não realização das eleições e o não acatamento de seus resultados iria contra a índole de
Castelo Branco. Para Viana, o presidente “(...) se julgava comprometido com as eleições, e aceitava
sacrifícios para as realizar. Sobretudo depois de alguns maliciosamente associarem o adiamento ou
supressão do pleito à idéia de prorrogação ou reeleição do Presidente, irritava-o aventar-se qualquer
hipótese que não fosse a das eleições em 65. Admitir-se o continuísmo não somente o exasperava:
ofendia-o. Parecia considerar injusto o atribuírem-lhe esse pecado. (...).” VIANA F.º, Luís. O
Governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército / Livraria José Olympio, 1975, tomo
II, p. 310.
162
calculado. A sorte do seu governo parece indeclinavelmente ligada à
efetivação dos resultados eleitorais.
21
Face a estes fatores, o presidente decidiu buscar, e conseguiu, uma política de
compromisso junto aos líderes oposicionistas da Guanabara e de Minas Gerais.
Segundo o acordado, ficaria a cargo do Executivo Federal a nomeação dos Secretários
de Segurança dos Estados. Desse modo, o Governo Federal controlaria um forte
efetivo, passível de uso repressivo: as forças policiais dos Estados da federação
22
.
Contudo, o acordo com os governadores eleitos não foi suficiente para os
“duros”, que continuaram a pressionar. A pressão atingiu níveis que poderiam levar à
deflagração de um golpe para destituir Castelo
23
. O Ministro da Guerra, Costa e
Silva, interveio, contornou a situação, evitou o golpe e saiu da crise como herdeiro
natural da cadeira presidencial
24
. A agitação tornara claro que não haveria, dentro de
um breve período, um retorno a um governo civil.
Para solucionar a crise, Castelo teve que ceder, optando por tomar novas
medidas que satisfizessem a “linha-dura”. Porém, ainda tentou fazê-lo de modo a
respeitar os preceitos democrático-liberais, impondo, via Legislativo, as propostas que
visavam fortalecer o Executivo e impedir insucessos eleitorais futuros. Mais uma vez
21
BRANCO, Carlos Castello. op. cit., vol. 1, p. 329. Artigo publicado originalmente na coluna do
jornalista, “Coluna do Castello”, no Jornal do Brasil em 6 de outubro de 1965.
22
Além da nomeação dos Secretários de Segurança dos Estados pelo governo federal, o acordo previa
que o comando das polícias militares ficaria sob controle direto do Exército. Cf. M.ª Helena M. Alves.
op. cit., p. 89.
23
Em 5 de outubro de 1965 Costa e Silva dirigiu-se à Vila Militar, subúrbio da cidade do Rio de
Janeiro, e controlou uma suposta rebelião de alguns oficiais militares com vistas à deposição do
presidente Castelo Branco. Luís Viana F.º cita declaração do coronel Mário Andreazza, militar
próximo de Costa e Silva, na qual ele afirma que, quando o Ministro da Guerra partiu para a Vila
Militar, havia uma “completa identidade” entre os pontos de vista dele, Costa e Silva, com os do
presidente. VIANA F.º, Luís. op. cit., tomo II, p. 334. Já para Elio Gaspari, “nunca houve rebelião.
Deu-se apenas uma insubordinação de uma parte da oficialidade, verbalizada pelos comandantes de
algumas unidades e aplacada por Costa e Silva.” Gaspari afirma que o General Ernesto Geisel viveu
convencido de que a rebelião fora um blefe. GASPARI, Elio. op. cit., p. 259.
24
Sempre exaltando a figura de Costa e Silva, Jayme Portela de Mello procura caracterizá-lo como um
fiel amigo e defensor do presidente Castelo Branco, e sua ascensão a candidato à sucessão de Castelo
como o resultado natural de sua liderança, principalmente naqueles dias de outubro de 1965. Cf.
MELLO, Jayme P. A Revolução e o Governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979, cap. 9 e
10, p. 265-308. A “amizade” entre os dois militares é questionável, mas, como afirma Stepan, pouco se
discute a idéia de que Costa e Silva poderia se impor a Castelo através de um golpe militar. Cf.
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 186. Porém, ainda assim, mesmo Costa e Silva teria preferido a via
“eleitoral” para chegar ao poder.
163
apelava para o referendo do Congresso na tentativa de reforçar ou ao menos manter a
sua legitimidade já desgastada.
A análise dos editoriais dos jornais que circundam a edição do AI-2 apresenta
não apenas a óbvia discussão desses fatos, mas a defesa de posições, ora claramente
favoráveis, ora críticas a determinados elementos da política governamental, embora
nunca contrárias ao regime. Nessas discussões, cujo ápice foi o mês de outubro, mas
que iniciaram-se antes e foram muito além deste mês, deve ser possível notar a
existência da agenda “liberalizante” de Castelo, onde a busca de legitimidade junto a
parcelas significativas da população é um objetivo, onde a manutenção de preceitos
democráticos, como a realização das eleições para governador e o respeito aos seus
resultados, é um dos seus meios, e onde a manutenção do Congresso como “Poder
Legitimador” é um fato.
257. (...). O Governo proclama a necessidade de obter as medidas que
encaminhou ao Congresso, com a finalidade de armar-se a fim de impedir a
caracterização do que poderia ser interpretado como perda do controle das
ações políticas para as lideranças partidárias. (...).
Está no seu direito de pedir as medidas e o faz corretamente, pois quem
pode aprová-las é só o Congresso. Mas está na dependência de os
representantes do povo concederem ou não essas medidas. Desde que o
Governo se dispôs a pleitear do Congresso a aprovação desses recursos é
porque mantém a deliberação de acatar a decisão, qualquer que seja. (...).
(Jornal do Brasil, 22 de outubro de 1965, p. 6, tít.: Hora da razão)
258. (...). O Congresso pode decidir no pleno uso de sua independência.
Não faltará às lideranças partidárias a capacidade de distinguir a realidade
dos fatos da aparência artificial que certos grupos lhe emprestam. (...).
(...). Reforçar o Presidente da República, na emergência nacional, é uma
prova de confiança na ação de um Governo que já mostrou sua
determinação democrática em mais de uma oportunidade. Em outros
momentos o Congresso já confiou na ação do Presidente da República e não
teve de que se arrepender. (Jornal do Brasil, 22 de outubro de 1965, p. 6,
tít.: Hora da razão)
259. O Congresso deverá debater e votar esta semana os projetos que lhe
foram submetidos pelo Presidente da República e que objetivam a defesa e
a continuidade revolucionária. (O Globo, 18 de outubro de 1965, edição
final, p. 1, tít.: No Limiar da Recuperação)
260. O Congresso, atentando para a gravidade da conjuntura, precisa votar,
o quanto antes, as emendas constitucionais e o projeto de lei que lhe foram
submetidos, aprimorando-os quando for o caso, mas respeitando-lhes a
essência, que é a expressão da vontade revolucionária, da qual o Presidente
164
é o único e autorizado intérprete. (O Globo, 18 de outubro de 1965, edição
final, p. 1, tít.: No Limiar da Recuperação)
261. (...). A classe política brasileira está compreendendo os termos reais da
questão que lhe é proposta pelo Presidente da República. E da compreensão
partirá para a cooperação imprescindível ao bom êxito das tarefas
administrativas e políticas comuns aos Poderes da República.
(...). São expressivos os exemplos em que o Congresso se sintonizou com o
Governo Revolucionário, (...).
Não há porque esperar agora outro comportamento da maioria parlamentar
sensível às razões de moderação e de realismo político que inspiram as
medidas governamentais, de um modo geral. Delas se poderá discordar em
detalhes; nunca quanto ao essencial. Pois jamais o Presidente da República
se curva às exigências máximas, procurando sempre, o que é realmente
necessário à segurança o regime. (O Globo, 19 de outubro de 1965, p. 1,
tít.: As Medidas Que Faltam)
262. Agora, considerando necessário fortalecer o dispositivo
revolucionário, para que a Revolução não pereça pela ação conjugada de
seus inimigos – os de ontem e os de hoje –, o Governo pede ao Congresso
que vote determinadas medidas de segurança. Se o Congresso negar ao
Presidente a colaboração pedida, estará descumprindo as obrigações que
contraiu com o Movimento Revolucionário, cujos chefes substituíram o
Poder Executivo, mas mantiveram em funcionamento o Legislativo e o
Judiciário, este intocado, aquele expurgado dos elementos mais
comprometidos com a situação anterior, na suposição de que tanto as
Câmaras quanto os Tribunais não faltariam com seu concurso à
concretização dos ideais de 31 de março.
Negando ao Presidente da República, (...) as providências que S. Ex.ª.
houve por bem solicitar, o Congresso provocaria um impasse. Ou o
Governo impõe revolucionariamente as medidas de segurança que
considera necessárias, ou seria atingido em sua autoridade, de maneira
talvez irremediável. (O Globo, 25 de outubro de 1965, edição final, p. 1,
tít.: A Unidade Revolucionária)
263. Numa Revolução digna desse nome não se pactua com o inimigo, não
se prefere a conciliação ao combate frontal à corrupção e à subversão. O
grande problema que se oferece ao sr. marechal Castelo Branco, nesta hora
sombria, não é de emendas, nem de leis. Enveredando por esse caminho –
fácil até porque o arremedo de Congresso que aí está não tem autoridade
para recusar seja o que for ao Executivo – s. exa. apenas conseguirá destruir
o pouco que ainda resta da base institucional da Nação. (...). (O Estado de
São Paulo, 9 de outubro de 1965, p. 3, tít.: O caminho a seguir)
264. (...) é desconcertante o súbito açodamento do Executivo em defender
uma Revolução que ele próprio se vem encarregando de desmantelar aos
poucos pelos processos mais variados e inclusive através do diálogo
amistoso com partidos que eram o reduto dos corruptos e subversivos. (...).
(O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 1965, p. 3, tít.: O desenrolar da
crise)
265. Qualquer observador pouco familiarizado com a problemática nacional
poderia, através da leitura do noticiário político dos jornais, chegar à
conclusão de que a solução da crise que o País atravessa presentemente
depende das decisões que o Congresso tomará nos próximos dias,
165
aprovando, rejeitando ou modificando as emendas e projetos de lei que o
Executivo acaba de submeter à sua apreciação. A realidade é, porém, bem
outra. Em primeiro lugar, não há quem ignore que o Legislativo está hoje
transformado num poder de fachada, puramente simbólico, sem prestígio e
autoridade para se opor aos desejos do Executivo. Assim, da intensa
movimentação que se observa nas várias comissões que vão estudar os
texto e das articulações que agitam os corredores do Senado e da Câmara
nada resultará a não ser aquilo que o sr. presidente da República se mostre
disposto a aceitar. Entretanto, mais lamentável ainda do que esse caráter de
espetáculo circense em que os intérpretes foram previamente amestrados –
caráter que é a nota dominante do debate em curso – é quanto a nós a
perfeita inutilidade das medidas pleiteadas pelo governo. (...). (O Estado de
São Paulo, 16 de outubro de 1965, p. 3, tít.: Fora da realidade)
256. O Executivo sabemo-lo, tem dúvidas: a sua bela segurança é apenas
de fachada, para impressionar a opinião pública. E a prova disso temo-la
no próprio fato de a idéia de fazer aprovar pelo Congresso os projetos em
discussão haver nascido da convicção de que era necessário dar uma
satisfação aos setores revolucionários e particularmente às Forças Armadas,
tranqüilizando-os quanto aos destinos da Revolução. (...). Podemos afirmar
com absoluta segurança que os textos que neste instante tanto barulho
provocam são uma pálida caricatura da versão original que foi submetida ao
sr. presidente da República. (...). Quis o sr. presidente da República
demonstrar que não era de todo em todo insensível às reivindicações dos
revolucionários autênticos. Mas os resultados da sua boa vontade foram
desastrosos, já que brindou a Nação com os inconcebíveis projetos que
todos conhecem. Das intenções iniciais nada restou, de tal modo os textos
foram desfigurados. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de outubro de 1965,
p. 3, tít.: Fora da realidade)
Ao longo dos editoriais, a argumentação tende a mostrar a necessidade vital que
o regime tinha de fortalecer-se. A distinção que se faz é quanto à forma de se
processar este fortalecimento. Se nos fragmentos dos jornais O Globo e Jornal do
Brasil fica claro que, para que as medidas adquirissem legitimidade, deveriam, antes,
percorrer o caminho democrático e constitucional de tramitação e aprovação pelo
Congresso Nacional, para O Estado de São Paulo as emendas já não correspondiam
às proposições iniciais dos “duros”. E mais ainda, não viam o Legislativo como um
corpo digno a servir aos interesses da “Revolução”.
Percebe-se que os jornais O Globo e Jornal do Brasil estão tentando construir
uma imagem de “independência” para o Legislativo. No entanto, esta independência
não significava uma autonomia irrestrita. Uma posição contrária à aprovação das
medidas demonstraria falta de compreensão da grave conjuntura vivida pelo país. Os
166
parlamentares deveriam, portanto, decidir-se, de modo “realístico”, pela aprovação
das medidas propostas pelo Governo.
O que ocorre é uma tentativa de engessar tanto a postura esperada do
Legislativo, quanto a opinião de seus leitores. Apresenta-se o Legislativo como
independente, mas as opções de posicionamento são reduzidas à escolhida pelo
regime. Isto é justificado na afirmativa de que o governo é digno de confiança, e por
seu objetivo final ser o bem da Nação, que, por sua vez, é materializado na
preservação da própria “Revolução”. Diante das circunstâncias, os parlamentares
deveriam se mostrar sensíveis às razões do governo e cooperar nas tarefas
administrativas e políticas, aprovando as medidas, que eram excepcionais, mas, acima
de tudo, postas como necessárias.
Observa-se, porém, que essa pressão não elimina totalmente a “autonomia” do
Legislativo. Admite-se um certo espaço de manobra, representado na possibilidade de
um abrandamento dos excessos de certas medidas propostas. Abrandamento, sim,
mas preservação da essência das medidas.
Conclui-se, então, que, embora os discursos dos jornais O Globo e Jornal do
Brasil concedam uma autonomia relativa ao Legislativo, existe um bem maior e
consensual – a “vontade revolucionária”, que é apresentada como sendo a “vontade da
nação” – que precisa ser preservado, e é Castelo o “único e autorizado intérprete”
dessa vontade. Negar-se a aprovar as medidas poderia gerar reações negativas ao
próprio Legislativo. Portanto, era a preservação de determinados princípios
democráticos dentro da lógica da “democracia tutelada”. O chamado ao Congresso
para que cumprisse as suas obrigações era associado à situação do país. Permitia-lhe
certa autonomia, mas também indicava que os parlamentares deveriam estar bem
conscientes das reações que poderiam sofrer.
167
Já a posição do jornal O Estado de São Paulo é contrária ao envio das medidas
ao Legislativo. Não pelos objetivos aos quais elas eram associadas, mas pela política
castelista de sujeição à análise do Congresso.
A maior contrariedade quanto às medidas propriamente residia em considerar
que o texto apresentado ao Congresso era uma caricatura do original. O Estado de
São Paulo defendia um projeto mais duro. A maior oposição era quanto ao envio das
medidas para a análise do Legislativo. Considerava este poder inapto a exercer
tamanho papel, em parte, em virtude de sua fraqueza e, em parte, face à sua
associação à situação anterior. Para o jornal, este procedimento do governo estava
vinculado à “ficção” da “legalidade democrática” buscada por Castelo. Contudo, esta
oposição sugere que, em busca da legitimidade, essa foi a opção que o governo
escolheu, o que, para O Estado de São Paulo, teria levado a “Revolução” à morte.
A limitação da ação do Legislativo, perceptível na análise dos editoriais, é
condizente com os ideais do regime. Pregava-se a preservação das instituições
democráticas, mas sob um controle que, em tese, eliminasse, ou, ao menos, reduzisse
bastante a imprevisibilidade social e política. Esta meta, que não é uma
particularidade do caso brasileiro, no entanto, é uma utopia. Como sustenta
Wanderley Guilherme dos Santos,
(...). O sonho mais caro do autoritarismo, de reduzir a imprevisibilidade
social a zero, não pode ser realizado. Dia após dia, novas relações sociais,
novos padrões de comportamento, novos quadros institucionais são criados
– e isto significa que novos locii de poder potencial estão surgindo. (...).
25
Portanto, por mais que o regime estipulasse novas normas, por mais que
buscasse limitar ou mesmo eliminar a ação de seus “inimigos”, outros grupos e
formas de oposição surgiriam. No caso do Legislativo, se lhe foram subtraídas
funções, se lhe foi reduzido o espaço para a ação política, ainda assim a facção
25
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “Autoritarismo e Após: Convergências e Divergências entre
Brasil e Chile”. op. cit., p. 158.
168
oposicionista no parlamento buscou formas de se contrapor aos desígnios do governo.
Por vezes, contando com apoio de parlamentares da base do governo.
Quanto ao posicionamento dos jornais com relação às medidas propostas pelo
governo, à preservação dos princípios democráticos e à imagem do Legislativo, pode-
se elaborar o seguinte quadro de síntese:
QUADRO DE SÍNTESE 1
JB OG OESP
Fortalecimento do Regime Favorável Favorável Favorável
Propostas do governo Favorável Favorável Contrário
Análise pelo Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Inexiste
Como é possível perceber, a única unanimidade presente refere-se à construção
da imagem de que o regime precisa se fortalecer. Nos demais aspectos em questão, o
posicionamento d’O Estado de São Paulo é contrário ao dos outros jornais.
O Jornal do Brasil e O Globo se mostram em sintonia com o governo, e
utilizam-se de seus créditos junto ao público leitor para tentar criar a ilusão de um
consenso quanto à necessidade da aprovação pelo Congresso das medidas propostas
pelo governo. Tentam, ao mesmo tempo, criar a imagem de que os “ideais da nação”
estão representados pelos “ideais revolucionários”.
O Estado de São Paulo, embora se mostre favorável a um fortalecimento do
regime, opõe-se à política de Castelo, principalmente no que se refere à busca do
referendum do Congresso. O Jornal do Brasil e O Globo defendem o trâmite e a
sujeição à análise e à decisão do Legislativo. Embora façam restrições à atuação do
Congresso, os seus pontos de vista sugerem que para que o governo fosse digno de
confiança, ele deveria se submeter ao trâmite democrático de sujeição das medidas à
análise do Parlamento. Desse modo obteria legitimidade. O Estado de São Paulo,
169
por sua vez, tenta associar a imagem do Legislativo à situação deposta – o varguismo
–, e, assim, deslegitimá-lo. Outro argumento usado é o de que ele estaria destituído de
autoridade. Caracterizado como um Legislativo fraco, a análise que faria das medidas
seria apenas simbólica.
Ao negar-se a aprovar as medidas enviadas pelo Executivo, o Legislativo
contrariou a opinião d'O Estado de São Paulo de que lhe faltaria autoridade para se
opor aos desígnios do governo. Se, mesmo assim, as medidas foram impostas, isso
não invalida a tese de que o Legislativo procurou preservar a sua autonomia, e que o
Executivo teria optado, primeiro, por um diálogo, em virtude de sua necessidade de
legitimação.
Esta opção do governo não era uma excentricidade, e sim uma crença da facção
militar no poder. Para Maria Helena Moreira Alves,
Era evidente que o grupo mais esclarecido da ESG/IPES preferia
assegurar a aprovação do Congresso a uma proposta que de outro modo
seria imposta pela força, e portanto à custa da legitimidade do Estado. Mas
o Congresso se recusou a desempenhar o papel que lhe era exigido e forçou
a mão da repressão.
26
Ciente de que a imposição das medidas afetaria a sua legitimidade, primeiro, o
governo tentou a aprovação via Legislativo, mas este se negava a referendar as
medidas que atingiam-lhe a própria carne
27
. O governo então passou a pressionar
26
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 90.
27
Antes de 1964, o sistema partidário brasileiro era formado por treze partidos – seriam quatorze se
considerarmos o Partido Comunista Brasileiro (PCB) que estava na ilegalidade –, mas, às vésperas do
AI-2, oito pequenos partidos já estavam em fase de extinção. Independente disto, mantinham-se os três
principais: O PSD (Partido Social Democrático), o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e a UDN
(União Democrática Nacional). Com o advento do regime militar, a UDN tornou-se o principal partido
de apoio ao governo. No entanto, a UDN, sozinha, não constituía uma base parlamentar capaz de
conceder uma maioria que garantisse a aprovação das proposições governamentais. No intuito de
conseguir esta maioria, no ano de 1965, formou-se o Bloco Parlamentar Renovador. Este bloco,
liderado pela UDN, contava, ainda, com 48 deputados do PSD e 23 do PTB. Naquele ano, o apoio do
Bloco havia garantido ao governo a aprovação de várias medidas controversas, entre elas a Lei das
Inelegibilidades. Todavia, quanto à aprovação das medidas havia uma forte resistência parlamentar e o
Bloco Parlamentar Renovador parecia desativar-se. Embora nem todos os parlamentares fossem
contra, os que apoiavam o governo eram em número insuficiente à constituição da maioria necessária à
aprovação das proposições governamentais. Para uma análise da crise parlamentar ocorrida em
outubro de 1965 ver: KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 21-27. Para uma análise detalhada da
produção legislativa entre os anos de 1959 e 1966, ver: BRIGAGÃO, Clóvis. Poder Legislativo no
Brasil: Análise Política da Produção Legal de 1959 a 1966. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro,
IUPERJ, 1971.
170
fortemente pela aprovação das medidas, mas o Congresso não dava sinais de que
cederia, inclusive porque membros da própria UDN – do grupo pró-Lacerda, que seria
atingido, em suas pretensões eleitorais, pelas medidas – também eram contrários às
suas aprovações
28
.
Diante do indicativo da provável negativa do Congresso em concordar com a
adoção de novas medidas restritivas propostas pelo Governo, a “linha-dura”
intensifica a pressão sobre o governo, agravando a crise no interior do Estado. Em
caso de derrota, havia uma forte possibilidade de um novo golpe. Desta vez, dos
“duros” para tirar Castelo do poder. Luís Viana Filho, procurando enaltecer a imagem
do presidente, afirma que,
(...) criara-se nítida consciência de que, salvo se fizesse alguma coisa para
contrabalançar a derrota, o Presidente poderia cair, caso não lograsse o voto
do Congresso. Abria-se assim a perspectiva de que daí por diante,
enfraquecido, ele se veria forçado a fazer concessões compulsoriamente, o
que significaria a derrocada da Revolução. Contudo, era claro que o
Presidente não permitiria chegar-se a essa situação.
29
Carlos Castello Branco também menciona essa possibilidade. De acordo com o
jornalista, esta hipótese já estaria pressuposta no acordo feito por Costa e Silva para
debelar a “rebelião” na Vila Militar. A nota de sua coluna informa que:
Algumas informações clarearam as origens militares da crise política.
Em fontes adequadas, revelava-se que, na madrugada de 5 para 6 de
outubro, o Ministro da Guerra assumiu compromisso formal com os oficiais
da Vila Militar em torno de dez pontos que o Governo cobriria a seguir.
Entre esses, figuram os projetos que o Presidente encaminhou ao
Congresso. Se os projetos forem rejeitados, desfaz-se automaticamente o
vínculo que prende, num pacto de honra, o Ministro da Guerra à
28
De acordo com argumento exposto pelo jornalista Carlos Castello Branco, o posicionamento de
certos parlamentares seria calculista. Em sua coluna diária, o jornalista afirmou que: “O Deputado
Gilberto Azevedo, depois de contato com militares, revelou a posição de um grupo de deputados
ligados à linha dura: votar contra os projetos para ampliar a crise e abrir caminho para o Ato
Institucional n.º 2, com recesso do Congresso, etc.” BRANCO, Carlos Castello. op. cit., vol. 1, p. 342.
Originalmente publicado na “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 20 de outubro de 1965. Luís
Viana F.º também ressalta esse caráter calculista da “linha-dura”. Porém, o faz ao destacar o
posicionamento da oposição. Segundo Viana, (...) não compreendendo ser o Presidente o anteparo à
ditadura, Amaral Peixoto, Capanema e Vieira de Melo, líderes do PSD, aos quais Juraci Magalhães não
conseguira demover, mostraram-se infensos à emenda constitucional. Involuntariamente, faziam o
jogo da ‘linha-dura’.” VIANA F.º, Luís. op. cit., tomo II, p. 341.
29
VIANA F.º, Luís. op. cit., tomo II, p. 350.
171
oficialidade da Vila Militar, ficando o Governo submetido a uma eventual
manifestação da tropa.
30
Outra ilustrativa passagem desta mesma coluna refere-se especificamente à
pressão dos “duros” sobre o presidente. Segundo ela,
Um homem do Governo explicava que havia um equívoco dos
deputados que atribuíam ao Presidente da República o exercício de uma
pressão sobre o Congresso. E explicou: “Não se está dizendo ao
Congresso: se você não fizer isso, eu te quebro a cara. O que se está
dizendo é: se você não fizer isso, eles nos quebram a cara.”
31
Esta nota reforça o indicado pelo jornal O Globo de que, em caso de negativa do
Congresso ou o governo impunha as medidas “revolucionariamente” ou “seria
atingido em sua autoridade de maneira talvez irremediável”.
Tentando evitar que “nos” quebrassem a cara e que fosse atingido em sua
autoridade, em 27 de outubro, véspera da sessão plenária que analisaria as propostas,
Castelo cede a esta pressão e edita o Ato Institucional nº. 2
32
, que já estava pronto e
preparado para ser promulgado em caso de ser confirmada a negativa
33
. O regime
endurece. No entanto, não fechou o Congresso. Isto sugere que, procurando manter-
se apegado a sua política de “democracia tutelada”, Castelo precisava contar com a
presença do Legislativo. De acordo com nota publica por Carlos Castello Branco,
talvez a única forma de preservá-lo tenha sido a antecipação da edição do Ato.
Segundo a nota:
30
BRANCO, Carlos Castello. op. cit., vol. 1, p. 346. Originalmente publicado na “Coluna do
Castello”, Jornal do Brasil, 23 de outubro de 1965.
31
Idem, p. 347.
32
Thomas Skidmore considera que a edição do AI-2 foi, para o presidente Castelo Branco, um “penoso
compromisso entre seus princípios democrático-liberais e a necessidade que tinha de manter o apoio
dos militares da linha dura. (...)”. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985).
op. cit., p. 103. Já Elio Gaspari defende o ponto de vista de que “(...). O AI-2 mostrou a essência
antidemocrática da moderação castelista. (...)” GASPARI, Elio. op. cit., p. 240
33
Cf. ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 90. É possível notar menções sobre a preparação prévia do
AI-2 nos comentários publicados na “Coluna do Castello” durante o mês de outubro de 1965. Cf.
BRANCO, Carlos Castello. op. cit., vol. 1, p. 326-355. Jayme Portella de Mello, destacando a
colaboração do Ministro da Guerra, Costa e Silva, também menciona a elaboração prévia do AI-2. Cf.
MELLO, Jayme Portella de. op. cit., cap. 10, p. 283-308. Luís Viana F.º, procurando caracterizar a
edição do novo Ato Institucional como uma violência contra a “formação” o os “sentimentos” de
Castelo, relata as discussões sobre a necessidade ou não de tal edição e o alcance de tal ação. VIANA
F.º, Luís. op. cit., tomo II, cap. XV, p. 332-355.
172
Somente com um quorum alto – comparecimento de pelo menos 370
deputados – o Governo arriscaria a aguardar o resultado da votação na
Câmara esta tarde ou amanhã cedo com alguma esperança de ver aprovada
a emenda constitucional que cria dois novos casos de intervenção federal
nos Estados. Se o comparecimento for baixo, o Governo provavelmente
editará antes da sessão do Congresso o Ato de Emergência, pois, se
deixasse para o fazer depois, teria de decretar concomitantemente o
fechamento do Congresso, coisa que não está na linha de intenções do
Presidente Castelo Branco.
34
Justificado na necessidade de salvaguarda da Nação e de proteção contra o
inimigo interno, que a partir de então poderia ser qualquer força oposicionista
35
, o AI-
2 fortaleceu o Executivo, que voltou a ter poderes excepcionais, enfraqueceu o
Legislativo
36
e restringiu a participação política, de uma forma geral.
No que se refere especificamente a esta última, com o AI-2 foram extintos os
partidos existentes e estabelecidas grandes exigências para a constituição de novas
agremiações. O Governo poderia ter abolido o sistema partidário ou instituído o
unipartidarismo, mas, como afirma Kinzo,
(...). Se entre os civis que apoiaram o movimento de 1964 não havia
intenção alguma de passar o controle total do governo para as mãos dos
militares, também não seria fácil para os militares optarem pela
marginalização completa daqueles civis que tão ativamente haviam
participado do golpe; especialmente aqueles – como os udenistas – que
haviam desenvolvido fortes vínculos com os setores militares e eram
considerados capazes de minar a unidade da instituição militar. Estes
fatores, portanto, criaram problemas adicionais para uma alternativa que
fechasse todos os canais de representação.
37
Além disso, como sustenta Maria Helena Moreira Alves, “(...) Não interessava
ao Estado de Segurança Nacional montar um sistema unipartidário. Visando sua
34
BRANCO, Carlos Castello. op. cit., vol. 1, p. 348. Originalmente publicado na “Coluna do
Castello”, Jornal do Brasil, 26 de outubro de 1965.
35
De acordo com o preâmbulo do AI-2, ocorreu uma alteração na definição de “inimigo interno” com
relação ao AI-1. No segundo Ato, “inimigo interno” deixava de ser apenas aqueles associados ao
governo anterior, para se tornar algo mais amplo: todos os que “desafiam a própria ordem
revolucionária”. Ou seja, todo e qualquer membro de quaisquer oposições. Cf. ALVES, M.ª Helena
M. op. cit., p. 91.
36
Dentre as medidas contidas no Ato estavam a possibilidade de por o Congresso em recesso e de,
nestes casos, legislar sobre quaisquer matérias, e a adoção de poderes constituintes, que concediam-lhe
o direito de baixar atos complementares e de legislar por decretos-lei. Estabelecia, ainda, em seu artigo
5º, que o Congresso passava a ter 45 dias para analisar os projetos de origem Executiva. Esse prazo era
ainda reduzido para 30 dias em casos de projetos considerados urgentes. Em caso de não análise, os
projetos seriam considerados aprovados. Concedeu ao Executivo, também, a exclusiva competência
para legislar em casos de questões orçamentárias e de regulamentação das Forças Armadas.
173
própria legitimação, o Estado queria um partido de ‘oposição responsável’, ao qual
caberia oferecer ‘crítica construtiva’ ao governo. (...)”
38
. Portanto, visando a sua
legitimação, instituiu o bipartidarismo
39
. De qualquer modo, o fim dos partidos
políticos serviu para desarticular a oposição, o que ia ao encontro das necessidades do
projeto de dominação do regime.
Além da reformulação partidária, foram instituídas as eleições indiretas para
Presidente e Vice-Presidente da República, a serem realizadas através um Colégio
Eleitoral composto predominantemente por membros do Congresso. Como a votação
seria efetuada em sessão pública e com voto nominal, facilitava-se o controle do
Executivo.
O AI-2 também restabeleceu a possibilidade de cassação de mandatos eleitorais
e de suspensão de direitos políticos por dez anos. Nestes casos, permaneceriam vagas
as cadeiras dos cassados, o que reduzia o quorum mínimo e facilitava a aprovação dos
projetos. Foram, ainda, impostas normas limitando os direitos dos cassados. O
intuito dessas medidas era o de retirar da vida política e/ou das atividades sindicais
todos os considerados indesejáveis.
Contudo, é enganoso considerar que a edição do Ato Institucional n.º 2 seja
apenas uma resposta à crise eleitoral de outubro de 1965
40
. Muitas das medidas
contidas no Ato mantém uma linha de continuidade com a política que já vinha se
definindo ao longo do tempo.
A reorganização partidária, por exemplo, que culminou com a opção pelo
bipartidarismo, “já estava em andamento desde julho de 1965, quando foi aprovada a
37
KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 18.
38
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 94. Grifos da autora.
39
O AI-2, em si, não instituiu o bipartidarismo. O Ato aboliu todos os partidos existentes, mas não
estipulou as normas para a criação de novas agremiações. Somente com o Ato Complementar n.º 4, de
20 de novembro de 1965 é que foram criadas tais regras. Aritmeticamente, seria possível criar três
agremiações, mas, em função das articulações internas, foi instituído o bipartidarismo.
40
Sobre a linha de continuidade do AI-2 com relação a um quadro que já vinha se definindo
anteriormente, ver: LEMOS, Renato Luís do C. Neto e. “Poder Judiciário e poder militar”. op. cit., p.
19 – 21.
174
Lei Orgânica dos Partidos Políticos.”
41
Quanto ao Poder Judiciário, igualmente,
desde o início de 1965 já se cogitava o aumento do número de membros do Supremo
Tribunal Federal de onze para dezesseis
42
. Além desses fatores, as medidas,
anteriores ao Ato, de restrições das candidaturas ao pleito de 1965 inserem-se no
projeto de eliminação dos opositores mais ativos, com vistas à instalação de uma
“democracia” sem pressões, estável
43
. O AI-2 é uma continuação dessa política de
eliminação de possíveis focos de tensão, o que se ajustava ao projeto de dominação.
Contudo, como era de conhecimento da facção militar no poder, com a edição
do AI-2, ao usar mais uma vez a força, o Estado perdeu um pouco mais de sua
legitimidade baseada na preservação de princípios democráticos e continuou em seu
processo de isolamento em relação aos setores médios e alto da sociedade civil. Cada
vez mais, o governo ficava restrito à alternativa de novos usos da força. Entretanto,
esta não era a política idealizada pelos “castelistas”.
Em casos de tomada de poder, a preservação de elementos típicos da forma de
dominação anterior torna-se importante para gerar legitimidade para a nova ordem.
Os militares brasileiros no poder tinham noção desta necessidade. Por isto, nesta
primeira fase do regime, esforçaram-se por manter um certo vínculo com instituições
e procedimentos típicos da situação deposta. São exemplos as eleições para
governadores, em outubro e 1965, e a sujeição das medidas para fortalecimento do
regime à análise do Congresso. Contudo, como menciona Klein,
O fortalecimento das pressões de setores das Forças Armadas contrários
à posse dos candidatos oposicionistas vitoriosos nas eleições para
governador, aliado à resistência do Congresso em aprovar uma legislação
destinada a ampliar as atribuições da justiça militar, configuram uma
situação crítica para o Executivo. Ficava claro que o recurso ao voto
popular não se constituía ainda na forma mais eficaz para sancionar o
regime, tornando-o, dessa forma, mais vulnerável ao apoio da instituição
em nome da qual ascendera ao poder, ou seja, as Forças Armadas. Nessas
condições, a movimentação que então se verificava nos meios militares
41
Idem, p. 19.
42
Id., p. 20 – 21.
43
Id., p. 19 – 20.
175
assumia o aspecto de uma ameaça ás próprias bases do regime. Privado da
legitimação por via eleitoral, de um lado, e frente a frente a uma forte
pressão desencadeada por grupos militares mais radicais, o Executivo cede
e parte para uma tentativa de composição com as diretrizes por eles
propostas.
A edição do Ato Institucional n.º 2, tornando inquestionável a
supremacia do Executivo frente aos demais poderes, vai determinar a
neutralização provisória da controvérsia no interior das Forças Armadas.
Por outro lado, ao decretar a eliminação das organizações político-
partidárias existentes, demonstrou reconhecer a inviabilidade de
desempenharem o papel de legitimadoras da nova ordem.
O compromisso em manter a forma de dominação, ainda que alterados
os centros de poder, sofre um sério revés, mas ainda assim não se rompe: o
regime esboça seus primeiros passos no sentido de estruturar uma nova
ordem política, através da criação de um sistema bipartidário e da
formulação de normas destinadas a reger o seu funcionamento.
44
Apesar do endurecimento, não se pode considerar que a manutenção de
determinados princípios e instituições democráticas após a edição do AI-2 foi mera
farsa. Castelo e os “moderados” tinham consciência de que a sua dominação não se
manteria única e exclusivamente pela força. Exemplo disto é, como denota Lúcia
Klein, a opção pela reestruturação e não pela extinção do sistema partidário, e o
conseqüente estabelecimento de um relacionamento entre o governo e os partidos.
Para a autora,
As modificações instauradas na esfera política, mais especificamente no
sistema partidário e nas funções do Legislativo, deixam clara a intenção do
Governo de conviver com a antiga estrutura partidária. Uma vez definidas
as correntes partidárias situacionista e oposicionista, observa-se uma certa
disposição por parte do Executivo em intensificar seus contatos com os
partidos que o apoiavam, utilizando-se dos canais de comunicação
representados pelas lideranças, e, posteriormente, tornando mais freqüentes
os seus contatos diretos com as cúpulas partidárias. Ao contrário do que
demonstravam seus pronunciamentos, nos quais predominavam o conteúdo
instrumental e a linguagem técnica e impessoal, o relacionamento do
governo Castelo Branco com o sistema partidário parecia indicar a
conscientização de que se fazia necessária a incorporação de uma dimensão
política pelo Executivo.
45
Contudo, a crise de outubro de 1965 deixou o Governo de Castelo diante de um
estorvo de aparência insolúvel: prosseguir em sua política baseada na busca de
44
KLEIN, Lúcia. “Brasil pós-64: a nova ordem legal e a redefinição das bases de legitimidade”. op.
cit., p. 31.
45
Idem, p. 30.
176
legitimação junto a parcelas da população, mediante a preservação de determinados
preceitos democráticos, ao mesmo tempo em que estabelecia normas que reduziam a
participação popular no processo político.
Para o governo, o voto popular mostrava que não era a forma mais eficaz para
sancionar o regime, deixando-o vulnerável às pressões internas. Sem a legitimação
eleitoral e pressionado pelos “duros”, o governo cedeu e editou o AI-2. Tentava,
assim, neutralizar a crise no interior das Forças Armadas e manter o cerne de sua
política. Segundo Skidmore,
(...) O novo Ato era um compromisso entre as exigências dos linhas-
duras e dos moderados. Era também o reconhecimento pelo governo de
que a busca de base política o forçava a manipular os atores políticos mais
plenamente do que os moderados haviam previsto. (...)
46
.
Em suma, em busca da legitimidade, o Governo Castelo mantinha-se apegado a
aspectos de uma democracia formal e sofria derrotas. Para evitá-las, endurecia o
regime, como resultado, perdia ainda mais a sua legitimidade, sem conseguir, no
entanto, eliminar definitivamente as crises internas. De conformidade com Gaspari,
A dinâmica do regime, com suas crises militares, chocava-se com a
conduta do presidente. Nesses choques, todas as vitórias de Castello foram
parciais, enquanto as derrotas foram totais. A maior de suas vitórias foi a
realização de eleições diretas para os governos de doze estados, em 3 de
outubro de 1965. A maior derrota de seu projeto de restauração da ordem
foi a edição do Ato Institucional n.º 2, três semanas depois.
47
Apesar do revés representado pela edição do Ato, o compromisso de manter a
forma de dominação baseada na preservação de princípios e instituições democráticas,
ainda que alterados os centros de poder, não foi rompido. A nova estruturação da
ordem política, particularmente com o estabelecimento do bipartidarismo, de normas
para seu funcionamento e das funções do Legislativo, é indicativa da intenção de
manter esse compromisso e de ainda conviver com a antiga estrutura. Se tais formas
46
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 99-100.
47
GASPARI, Elio. op. cit., p. 254.
177
constitucionais e procedimentos jurídicos tinham legitimidade, o regime também teria.
Conservou-os, pois, para o seu próprio proveito.
Sendo o AI-2 um fato consumado, começa-se a discussão sobre as alterações na
vida política do Brasil e os rumos a seguir. Dentre os temas que mais ganharam
destaque nos editoriais encontra-se o início da discussão sobre a elaboração de uma
nova Constituição. Tema que envolvia diretamente o Legislativo, e remete ao papel
que ele seria capaz de executar com o poder que lhe restava.
257. Compete ao Governo preservar a sua competência para as iniciativas
de alterações institucionais, para assegurar a unidade que dará lastro seguro
à edificação do novo regime. A seu favor pesa inequivocamente a situação
em que se encontra o Congresso Nacional: o poder de decretar o recesso
parlamentar a qualquer momento e o revigoramento das cassações de
direitos políticos e de mandatos populares desarmam deputados e
senadores. Com o Congresso assim submetido à sua vontade, pode o
Executivo partir sem perda de tempo para a ordenação constitucional de
suas iniciativas renovadores, legitimando-as pelas mãos dos representantes
do povo. (Jornal do Brasil, 10 de novembro de 1965, p. 6, tít.: Solução
política)
258. Como todos esses grandes temas não podem ser decididos na área
fechada do Executivo, apesar dos poderes que lhe conferiu o Ato
Institucional n.º 2, resta ao Governo se convencer de que pode e deve
mobilizar o Congresso. E se o favorecer uma visão de descortino político,
poderá se antecipar com realismo ao tempo, deferindo ao Congresso atual a
missão de dar consistência orgânica a todas essas iniciativas, que bem
poderiam constituir o anteprojeto de uma nova Constituição. Ao futuro
Congresso, a ser eleito no ano que vem, por poderes constituintes
expressos, caberia a missão histórica de legitimar as iniciativas em curso.
Não nos iludamos: só a aprovação popular assegurará perenidade à obra
renovadora que se pretende ampla, profunda e definitiva. Sem a aprovação
popular, a Constituição pecará por falta de legitimidade. (...). (Jornal do
Brasil, 10 de novembro de 1965, p. 6, tít.: Solução política)
259. A anunciada consolidação constitucional, ainda que o Governo fuja à
evidência de um Congresso eleito com prévios poderes constituintes, não
dispensará a participação ativa da Câmara. É mais uma responsabilidade
que onera uma Casa mutilada até pela cassação de alguns de seus
representantes. Tais são, todavia, águas passadas. O que agora importa é
fortalecer a instituição parlamentar, dando-lhe não apenas
representatividade, mas também eficácia. A presença do Legislativo é
essencial à normalização da vida nacional. A reforma dos velhos hábitos,
através da modernização das Câmaras, é tarefa imediata, que, acima de
tudo, cabe aos próprios parlamentares. (Jornal do Brasil, 17 de fevereiro de
1966, p. 6, tít.: Presença do Legislativo)
260. (...). Admite-se que o Governo chegue a enviar ao Congresso, para
fins de legitimação, um anteprojeto de Constituição (...). Ao assim
178
proceder, o Governo estaria agindo, coerentemente, com a teoria
revolucionária que reconhece no atual Congresso poderes constitucionais
ampliados – os de uma Assembléia Constituinte (...). (O Globo, 16 de
dezembro de 1965, p. 6, tít.: Poder Legitimador)
261. (...). S. exa. acaba de ter uma prova convincente do que valem as
promessas de colaboração do Congresso herdado do sr. João Goulart; mas
não desiste, como se verifica, de contar com semelhante gente. (O Estado
de São Paulo, 30 de outubro de 1965, p. 3, tít.: Ainda o novo Ato)
262. (...). Citamos a “fórmula” apenas para que os leitores façam uma
idéia, pela amostra, do caos que resultaria inevitavelmente da outorga de
poderes constituintes ao Legislativo herdado da era do sr. João Goulart.
(...). (O Estado de São Paulo, 20 de novembro de 1965, p. 3, tít.: Idéia
infeliz)
263. (...). Cometeu [o governo], logo de início, o erro imperdoável de se
fazer legitimar pelo arremedo de Congresso cuja sobrevivência permitiu. E
depois, a cada impasse surgido ao sabor de uma política de conciliação com
os adversários da véspera, foram-se sucedendo as emendas que
transformaram a Carta de 46 numa colcha de retalhos. (...). (O Estado de
São Paulo, 20 de novembro de 1965, p. 3, tít.: Idéia infeliz)
264. (...). Foi assim, ao nosso modo de ver as coisas, um grave erro a
legitimação, pelo governo instituído pela Revolução, de um Congresso
apontado como o mais fiel espelho das deformidades a serem corrigidas.
Mas erro ainda mais imperdoável foi o representado pelo desejo do governo
federal, de converter esse Congresso, e mais as Assembléias estaduais, em
colunas mestras das reformas a serem empreendidas em nome da
Revolução. (O Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 1966, p. 3, tít.: O
tartamudear da oposição)
A análise das seqüências sugere que o governo mantinha a opção de buscar
legitimação através da preservação e do diálogo com Legislativo. Indicam, ainda, que
os jornais O Globo e Jornal do Brasil defendiam a participação do Legislativo no
processo “revolucionário”. Observa-se que essa opção resulta da predominância da
“democracia” como formação discursiva dominante no imaginário político, e
democracia pressupõe participação popular. Desse modo, sendo o Legislativo o poder
que canaliza as demandas sociais ao governo, sem esse ele, o governo não poderia ser
visto como “democrático”, e não conseguiria legitimar-se. Assim, a sua preservação e
a manutenção de um “diálogo” com o Legislativo, órgão composto por representantes
dos grupos sociais, e a “sujeição” ao seu papel fiscalizador sugerem que a facção no
poder ainda via nele um instrumento de legitimação da sua ação, legitimação da nova
ordem.
179
Contudo, a idéia de preservação e diálogo com o Legislativo continuava não
sendo consensual. Isto reforça a constatação da heterogeneidade política da frente
civil-militar que depôs João Goulart e indica que os jornais já não comungam de uma
mesma visão quanto ao que seria a “vontade da nação”. Embora todos se propunham
a serem os porta-vozes dessa vontade, as diferenças de pontos de vista demonstram
que ela, posta como única, varia conforme os interesses que se pretende defender.
Nota-se, pela análise dos excertos acima, que as divergências giram em torno de
duas questões centrais: a necessidade ou não de elaboração de uma nova Carta e as
condições reais de representatividade do Congresso em exercício para executar as
funções de uma Assembléia Constituinte.
Observa-se que os jornais O Globo e Jornal do Brasil defendem uma opção
política de preservação e diálogo do Executivo com o Legislativo e de necessidade de
elaboração de uma nova Constituição, ainda que o segundo se apresente cético quanto
à soberania do Congresso em exercício em relação ao Executivo. A maior diferença
entre estes jornais está na posição sobre a função do Legislativo em exercício.
Enquanto O Globo considerava que ele poderia ser transformado em uma Assembléia
Constituinte, para o Jornal do Brasil, não era o mais adequado para executar esta
missão, pois, com os expurgos sofridos e com as alterações em suas funções, teria
perdido a sua representatividade e o seu poder de legitimação. Melhor seria que ele
apenas produzisse um anteprojeto constitucional. Ao Congresso seguinte, eleito pelo
povo – dentro das restrições impostas pelo regime – e, assim, reconduzido à plenitude
representativa, caberia a função de Assembléia Constituinte, propriamente dita. Desse
modo, a Constituição teria legitimidade, o que resultaria na conseqüente legitimidade
do regime.
Mais crítica, talvez menos parcial, a posição do Jornal do Brasil reflete de
maneira mais realista a situação a que ficou reduzido o Legislativo após a instauração
180
da ditadura militar em 1964. Segundo M.ª Helena M. Alves
48
, no seu primeiro ano, o
regime militar procurou adotar medidas para eliminar possíveis núcleos de oposição
política, econômica e social. Promoveu expurgos, buscou atrair o capital
internacional e adotou uma política salarial recessiva. A força e a rapidez da
repressão desarticulou o Congresso e outros setores de oposição, o que permitiu ampla
margem de manobra ao Estado.
Com esse espaço, o regime esperava impor não só o projeto de Constituição,
mas todas as medidas que considerasse necessárias e da forma que melhor lhe
conviesse. Na grande maioria das vezes conseguiu, principalmente no momentos
imediatamente posteriores ao golpe, ao AI-2, ao recesso do Congresso em 1966 e ao
AI-5. Mas, após a assimilação desses baques, pelo menos até 1968, o Legislativo
impôs obstáculos à concretização da vontade do regime.
De modo diverso aos demais jornais, as seqüências dos editoriais d’O Estado de
São Paulo procuram deslegitimar o Legislativo em exercício como representante do
povo. Por classificá-lo como um produto da situação anterior, negada pela “vontade
da nação”, consideravam-no incapaz de realizar um trabalho de tanta responsabilidade
e importância, como o de debater e fixar a nova estrutura constitucional do país.
O posicionamento d’O Estado de São Paulo indica que havia um grupo que
considerava o Legislativo uma herança da situação deposta, cujas marcas eram a
corrupção e a subversão, e que, portanto, não poderia servir aos fins
“revolucionários”. Porém, não negava que o recurso ao Legislativo era uma forma do
governo de buscar legitimação. Pelo contrário, sugere que a opção da facção no poder
era a de “se fazer legitimar” pela preservação do Legislativo. Por mais que esta
afirmação do jornal se contraponha ao que fora estabelecido no AI-1, não bastava que
a “Revolução” afirmasse que ela é que legitimava o Congresso, e não o contrário. O
regime precisava da legitimação das instituições democráticas. O fato é que o regime
48
ALVES, M.ª Helena M., op. cit., p. 78-79.
181
precisava da sanção de determinadas parcelas da sociedade, para as quais a
preservação do Legislativo era fundamental. Desse modo, a sua preservação como
instituição representativa dos interesses populares e a sua “participação” no processo
político legitimariam a ação do governo. Mas, como se questiona M.ª José Rezende,
Por que razão a ditadura militar assentava a sua pretensão de
legitimidade na formulação de um suposto ideário de democracia?
Seguindo a perspectiva de que a única legitimidade possível é a
democrática, a questão poderia ser respondida da seguinte forma: o regime
via-se desafiado pela necessidade de justificar todos os seus atos e ações
através da elaboração de um sistema de idéias e valores sobre uma
supositícia democracia, a qual era mostrada como o fundamento de todo
processo alavancado pelas novas condições que se estabeleciam.
49
Independentemente da posição de cada jornal, se favorável ou não à elaboração
de uma nova constituição, e se crédulos ou não na representatividade do Legislativo
em exercício, o que se verifica é que todos sugerem que a opção do Executivo foi de
buscar legitimidade através da preservação e do diálogo com esse poder.
Passando a um segundo quadro de síntese que englobe as discussões acima,
tem-se:
QUADRO DE SÍNTESE 2
JB OG OESP
Nova Constituição Favorável Favorável Contrário
Caráter do Legislativo Enfraquecido Forte Fraco
Participação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Nota-se que há uma clara ruptura no sujeito coletivo “Brasil”, “brasileiros”,
“Nação”, etc. A diferença de pontos de vista quanto aos procedimentos do regime
sugere que já não há o todo unívoco. Nesse momento, os discursos dos jornais
tendem a buscar, cada um, uma associação com um “Brasil” diferente. O Estado de
São Paulo tende a acentuar seu posicionamento contrário ao governo. Por sua vez, o
49
REZENDE, M.ª José. A Ditadura Militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade (1964-
1984). op. cit., p. 26.
182
Jornal do Brasil já questiona a força do Legislativo. No entanto, não deixa de crer
que ele possui uma função: legitimar o regime. O Globo permanece como um aliado
incondicional.
Não é possível negar que houve uma gradativa ampliação das atribuições do
Executivo, que absorveu funções até então específicas do Legislativo
50
. Esta
alteração é apenas um elemento de uma política mais ampla. De acordo com Eli
Diniz
51
, o governo Castelo Branco foi marcado pela desestruturação da ordem
precedente através da desmobilização social, do desmantelamento dos canais de
participação popular, da repressão ao meio sindical, do combate às lideranças mais
expressivas do regime anterior. A questão do enfraquecimento do Legislativo está
inserida nesse processo maior. No entanto, o desmantelamento desses canais de
representação da vontade popular geram efeitos que prejudicam o próprio regime.
Ainda segundo Eli Diniz, ao longo do regime instaurado em 1964,
(...) construiu-se um sistema fortemente concentrador das prerrogativas da
autoridade presidencial, consagrando o desequilíbrio entre um Executivo
sobredimensionado e um Legislativo crescentemente esvaziado em seus
poderes. (...). O isolamento da esfera presidencial, seu fechamento ao
escrutínio público, a falta de espaço institucional para a interferência das
forças políticas e a inoperância dos mecanismos de controles mútuos
gerariam dificuldades adicionais para a articulação entre os poderes e a
comunicação com a sociedade que se diversificava com o avanço da
modernização. (...).
52
Obviamente que a perda de suas funções e de sua representatividade contribuiu
para impor obstáculos ao funcionamento do Poder Legislativo. Mas a opção do
governo leva à conclusão de que o Parlamento ainda tinha funções a cumprir. Em
razão disto, conseguiu manter certa autonomia, conforme é sugerido nas seqüências a
seguir:
50
Especificamente quanto às funções totalmente transferidas do Legislativo para o Executivo temos: a
competência exclusiva para legislar em questões orçamentárias e de regulamentação das Forças
Armadas, e possibilidade de decretação ou prorrogação do “estado de sítio”.
51
DINIZ, Eli. “Empresariado, regime autoritário e modernização capitalista: 1964-85”. op. cit., p.
203.
52
Idem, p. 200.
183
265. (...). Já estão no Congresso a Reforma do Judiciário e a Reforma
Tributária. Outros grandes temas estão maduros para decisões, como o
problema das novas relações entre Executivo e Legislativo, além, da
reforma que pretende conferir ao Congresso maior aptidão técnica e
responsabilidade política de controle do Governo. (...). (Jornal do Brasil, 10
de novembro de 1965, p. 6, tít.: Solução política)
266. O momento é reconhecidamente de crise para o Legislativo, em que
pesem as aparências de prestígio e fortalecimento. Não é o caso aqui de
analisar tal crise. Sempre é o caso, porém, de recordar aos próprios
legisladores que lhes cabe missão muito importante na recuperação de uma
instituição que é, em certo sentido, a pedra de toque do regime
representativo e democrático. (Jornal do Brasil, 17 de fevereiro de 1966, p.
6, tít.: Presença do Legislativo)
267. Negar-se que falta ao Congresso poder legitimador de novo estatuto
constitucional é tese que fascina a primeira vista. Pois o poder legitimador
do Congresso estaria diminuído pela redução da representatividade ou da
soberania do mandato popular, em conseqüência do Ato Institucional
número dois, o qual restabeleceu a possibilidade de cassação de mandatos e
de suspensão de direitos políticos por ato executivo, sem intervenção
judiciária.
É inegável que houve a redução da representatividade ou da soberania do
mandato popular. Contraditar a evidência seria inútil. Inferir-se porém que
o Congresso perdeu seu poder legitimador, será adotar opinião
perigosíssima em suas conseqüências retroativas, presentes e futuras. O
Congresso soberanamente elegeu o Presidente da República, nos termos do
Ato Institucional número um, o mesmo Ato que dava ao Presidente poderes
revolucionários, de cassação e suspensão de direitos políticos. Estava, por
causa disso, diminuído em sua representatividade, mas não o estava em seu
poder legitimador, o qual se originava do próprio fato de a Revolução haver
conferido poderes revolucionários ao Congresso. O poder legitimador do
Congresso passou a ser de caráter revolucionário. (O Globo, 16 de
dezembro de 1965, p. 1, tít.: Poder Legitimador)
268. (...). Cometeu [o governo], logo de início, o erro imperdoável de se
fazer legitimar pelo arremedo de Congresso cuja sobrevivência permitiu.
(...). Mas, movido pelo desejo de remediar os seus próprios erros, pretende
s. exa. praticar um ato que seria ainda mais reprovável do que os anteriores:
a transformação em Constituinte da grotesca amostra de Parlamento de
Brasília. É o que a consciência da Nação repele. (...). (O Estado de São
Paulo, 20 de novembro de 1965, p. 3, tít.: Idéia infeliz)
269. (...). Por incrível que pareça, o sr. marechal Castelo Branco, na sua
obstinação, não percebeu ainda que nada, absolutamente nada, pode
transformar a amalgama de indivíduos que povoam a Câmara e o Senado
num corpo legislativo em condições de funcionar como Poder da
República. (...). O arremedo de Parlamento acampado na Praça dos Três
Poderes continua a ser o que sempre foi e s. exa. nem sequer conseguiu
transformá-lo em dócil instrumento da política do Palácio do Planalto. (O
Estado de São Paulo, 27 de fevereiro de 1966, p. 3, tít.: Espetáculo
lamentável)
184
A análise dos excertos reforça a tese da ruptura do “sujeito coletivo”. Cada
jornal, utilizando o seu “poder simbólico”, tenta seduzir o seu público de que a sua
opinião representa a “vontade única da nação”. Como fica claro que, a partir de fins
de 1965, a coalizão golpista se parte definitivamente, as visões dos jornais se tornam
conflitantes. Já não é mais possível falar no todo uno. Contudo, quando O Estado de
São Paulo defende que esse “outro” é representado pelo próprio governo, continua a
tentar criar a ilusão de que há algo superior – a “consciência da Nação” – que, no
caso, seria oposta às atitudes do governo.
Outra percepção possível a partir da análise dos fragmentos é a de que, embora
enfraquecido, ao menos para um grupo a preservação do Legislativo continuava a ser
fundamental. Reconheciam que ele precisava se “reformar”, inclusive para adquirir
maior “aptidão técnica” e de “controle sobre o governo”. Mas que a preservação de
parte de suas funções era necessária, e proporcionaria legitimidade ao governo.
Mesmo O Estado de São Paulo, que afirma que o corpo de deputados e senadores
compunham um “arremedo de Congresso”, em outro momento, afirma que o governo
não havia conseguido transformá-lo “em dócil instrumento da política do Palácio do
Planalto”. Isto indica que, em função da impossibilidade de uma total ruptura com as
instituições típicas da situação anterior, o Legislativo foi preservado. Durante a
primeira fase do regime, embora o Executivo tenha se fortalecido, o Congresso
manteve certo espaço para manobra, certa parcela de autonomia. Como sustenta
Klein,
O período que se estende de junho de 1964, quando se encerra o prazo
de vigência do Ato Institucional n.º1, até outubro de 1965, quando é
promulgado o AI-2, corresponde de fato à etapa na qual o compromisso da
nova estrutura de poder com a forma de dominação que a antecedeu se
manifesta como um dos traços essenciais do regime. Se, de um lado, a
produção legislativa resulta cada vez mais da iniciativa do Executivo, por
outro lado, o Congresso freqüentemente faz uso de sua prerrogativa de
debatê-la e de propor emendas.
53
53
KLEIN, Lúcia. op. cit., p. 30-31.
185
O resultado desse debate nem sempre era bem visto pelo governo. Embora
defendendo um suposto projeto “democrático”, na verdade, de acordo com Stepan, o
regime via “no debate político mais um obstáculo que uma parte intrínseca do
processo de democracia”.
54
Stepan chega à conclusão de que, para o governo militar,
a “democracia ideal” implicava em “um grau elevado de consenso, pouco conflito
político e uma coletividade informada que fosse imune a apelos demagógicos dos
políticos.”
55
Na tentativa de conseguir este elevado grau de consenso, como não tinha
como persuadir a todos, procurou eliminar, ou ao menos sufocar, arbitrariamente,
qualquer voz dissonante. Mas esta política, típica dos regimes autoritários, ao invés
de estabilizar, torna-os ainda mais instáveis. Como frisa Wanderley Guilherme dos
Santos,
(...) um sistema autoritário não pode ser estável porque, ou se expande
continuamente a fim de controlar as novas áreas relevantes da vida social,
ou aceita relaxamento relativo na medida em que grupos fora da coalizão
dominante adquirem controle de novos lugares de poder.
56
O regime optou pelo controle relativo, mas, as áreas de pressão não se
extinguiam. Precisavam controlá-las pois não podiam permitir que os conflitos
políticos se intensificassem. A saída encontrada foi sempre a intensificação da
repressão. No entanto, como sustenta Santos, a repressão é onerosa. Quanto mais se
usa, mais difícil torna-se usá-la
57
.
Como quadro de síntese sobre estas questões, tem-se:
54
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 170.
55
Idem, nota 15.
56
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “O Século de Michels: Competição Oligopólica, Lógica
Autoritária e Transição na América Latina, Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol.
28, n.º 3, 1985, p. 309.
57
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “Autoritarismo e Após: Convergências e Divergências entre
Brasil e Chile”. op. cit., p. 160.
186
QUADRO DE SÍNTESE 3
JB OG OESP
Preservação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Relativa
Caráter do Legislativo Enfraquecido Forte Fraco
Percebe-se que O Globo continua apenas a referendar a ação do governo, vendo
na preservação do Legislativo um meio de conferir legitimidade ao regime. Já o
Jornal do Brasil, vendo o enfraquecimento do Legislativo e crendo na necessidade de
sua preservação, pede que ele se auto-reformule para continuar em sua missão de
controle do governo. O Estado de São Paulo, por sua vez, considera-o um poder
inútil, e a insistência do governo em se fazer legitimar através dele, um erro.
É fato que entre 1964 e 1968 houve um progressivo fortalecimento do
Executivo paralelo a um enfraquecimento do Legislativo. O AI-2 é um momento que
denota com nitidez essa transferência de força. Ainda assim, o governo precisava de
legitimidade, e, nesse sentido, necessitava que o Legislativo legitimasse as suas ações.
Editado o Ato, foram mantidas determinadas prerrogativas do Congresso. Em
função disto, o Legislativo, que se mostrou combatente ao se negar a referendar o
endurecimento do regime em outubro de 1965, procurou se manter assim nos
momentos posteriores.
Conclusão:
Politicamente, outubro de 1965 não foi um mês de trinta e um dias. Na verdade,
toda a crise, que teve como grandes marcos a eleição do dia 3 e a edição do Ato
Institucional nº. 2, no dia 27 (seu ápice, sem dúvida), iniciou-se bem antes e foi além.
O governo precisava de bases estáveis de legitimidade. Buscava-as nas
camadas médias e alta da sociedade, através da preservação de princípios
187
democrático-liberais. Mas, a preservação desses princípios e a tentativa de
institucionalização do regime resultavam em sua própria autolimitação. É nesse
sentido que, em fins de 1965, Castelo se propunha a seguir uma agenda liberalizante
na qual estava prevista a realização de eleições para governadores em onze estados.
Teria, pois, que acatar os seus resultados.
Essa sua política, contudo, não era bem absorvida “linha-dura”. Acentuam-se
os conflitos já existentes entre as visões antagônicas no interior do regime. De um
lado os “duros”, que privilegiavam a segurança nacional, de outro os “moderados”,
entre eles Castelo, que pregavam um retorno à “normalidade” democrática. É o início
da crise.
Se por um lado Castelo precisava manter a realização das eleições, para tentar
recuperar, ou ao menos preservar, certo grau de legitimidade perdida em face dos
resultados da dura política de estabilização econômico-financeira do seu governo e
das cassações políticas, de outro, precisava controlar a crise interna com a “linha-
dura”. Tentando atingir os dois objetivos ao mesmo tempo, Castelo consegue fazer
aprovar leis que limitavam os possíveis candidatos às eleições. No entanto, esse seu
esforço foi insuficiente. A pressão dos “duros” não deixou de existir e, pelo contrário,
se intensificou após as eleições. Diante da possibilidade da eclosão de uma grave
crise militar, Castelo teria mudado de posição. Segundo Stepan,
Esta mudança de posição do presidente foi resultado, sem dúvida, da sua
própria avaliação de que ele arriscava uma grave crise militar e um
provável golpe se se recusasse a satisfazer as reivindicações dos militares.
Afirmam alguns antigos confidentes de Castelo Branco, que ele temia que
as pressões da linha dura estivessem conduzindo o Brasil para uma ditadura
militar pura e simples. Nestas circunstâncias, Castelo Branco considerou
que melhor seria institucionalizar um governo mais forte, de tal forma que
seu sucessor pudesse governar de maneira mais autoritária, embora ainda
continuasse dentro dos limites da lei. Deu início, pois, à elaboração de uma
nova constituição que aumentou grandemente os poderes do executivo.
58
58
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 186.
188
Com as divergências internas acentuadas em função do resultado do pleito de 3
de outubro de 1965, o regime se viu forçado a optar entre a observância das normas
estabelecidas ou reformular a ordem política em seu próprio favor, ampliando a sua
autonomia e área de interferência. Escolheu a segunda opção.
Contudo, o modo como Castelo administrou a crise reduziu ainda mais a
capacidade de legitimação dos meios usados e a sanção civil aos militares. Era o
preço a pagar pela manutenção do apoio dos militares da “linha-dura” e pelo
acatamento ao resultado das eleições. Por fim, Costa e Silva emergiu como seu
sucessor.
O desenlace dessa momento político leva Stepan
59
à conclusão de que a crise do
AI-2 foi uma crise de sucessão. Partidários de Castelo temiam que seus programas
fossem alterados. Castelo não queria continuísmo e não conseguiu controlar a escolha
de seu sucessor (todos os nomes por ele sugeridos foram recusados). Um motivo de
não ter conseguido o controle foi que a sua política não era partilhada por parte
significativa dos oficiais. Para impor um ponto de vista minoritário, Castelo teria que
se empenhar em uma persuasão política efetiva, mas seu caráter “apolítico”
prejudicou
60
. Além disto, muitos de seus programas eram impopulares, e os militares,
sentindo uma responsabilidade coletiva pelo governo, não podiam bancar este custo
61
.
Como conclui Stepan,
(...). Já que os militares como instituição sentiam que apoiar os programas
de governo de Castello Branco implicava crescentes custos políticos, os
oficiais que estavam fora do governo, usando a pressão de um plebiscito,
sugeriram um novo estilo para o segundo governo da revolução, sob a
liderança do general Costa e Silva.
62
Apesar de toda a oposição interna, Castelo procurou manter-se, todo o tempo,
apegado à observância de preceitos democrático-liberais. Isto era feito pois sabia ser
59
Idem, p. 180.
60
Id., p. 181.
61
Ibidem.
62
Ibid.
189
preciso manter a sua legitimidade. Desse modo, submeteu ao Legislativo as medidas
que visavam fortalecer o Executivo. Conforme Maria Helena Moreira Alves, “(...) O
setor ESG/IPES tinha consciência de que a força, empregada exclusivamente, é
contraproducente como base de um Estado estável. (...)”
63
. Mas o Congresso se
negou a aprovar as medidas, e Castelo optou pela edição do Ato Institucional nº. 2,
que, como ato arbitrário, corroeu-lhe ainda mais a legitimidade. De acordo com Abdo
A. Baaklini,
(...). Para expurgar os grupos de veto inerentes ao sistema presidencialista
sob uma ordem democrática, o regime teve de apelar para medidas
autoritárias. Estas medidas isolaram ainda mais o regime com relação ao
apoio popular e negaram-lhe legitimidade política. Mais uma vez, o
sistema presidencialista falhou em resolver suas debilidades intrínsecas sem
subverter a ordem democrática, que alegava estar tentando salvar e
fortalecer.
64
Em seqüência ao AI-2, Castelo editou quatro atos complementares e o Ato
Institucional nº. 3, em 5 de fevereiro de 1966, que adiou a implementação dos novos
partidos e estabeleceu que os prefeitos das capitais e de outras cidades consideradas
de “segurança nacional” passariam a ser escolhidos pelos governadores dos estados.
Reduziu ainda mais a participação popular.
Apesar da edição do novo Ato Institucional, não foi ainda daquela vez que
ocorreu um rompimento definitivo com a forma de dominação baseada na preservação
de princípios e instituições democráticas. Com o AI-2, o governo visava adquirir um
maior controle sobre o Legislativo. No entanto, não o eliminou. O Governo ainda
precisava dele. Mantinha-se, pois, um dos pilares básicos de um Estado de
democracia representativa e de tradição democrático-liberal. O custo dessa
manutenção foi que, esvaziado em sua função legislativa, o Congresso intensificou a
sua função de fiscalizador das atividades do governo. Isto, no entanto, não ocorreu
imediatamente após a edição do Ato. Somente após se refazer do baque é que o
63
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 95.
64
BAAKLINI, Abdo A. O Congresso e o Sistema Político do Brasil. op. cit., p. 55.
190
Legislativo conseguiu interpor-se a determinadas iniciativas do governo, o que
ocorreu principalmente entre 1967 e 1968, quando ele, gradualmente, se tornou o
único fórum de resistência ao regime. Antes disto, precisava recompor-se. Como
frisa M.ª Helena M. Alves,
(...) a extinção dos partidos políticos e as rígidas exigências para a
constituição de novas formações obrigaram a oposição a concentrar todas as
suas energias na reconstrução das estruturas representativas. Finalmente, a
crescente repressão, associada às novas formas de controle eleitoral,
originou no seio da oposição um debate sobre a eficácia, em tais
circunstâncias, de sua própria organização no âmbito das instituições
legais.
65
Por outro lado, a edição do AI-2 também não conseguiu eliminar a crise vivida.
Apesar dos setores que priorizavam a segurança interna terem saído vencedores
da crise de outubro, isto não solucionou o conflito que ainda teve mais dois momentos
de grande intensidade: fins de 1966 e início de 1967, quando o Congresso foi posto
em recesso até o processo de elaboração, análise e promulgação da Constituição, e
fins de 1968, quando a crise foi “solucionada” de modo radical, com a edição do AI-5.
Com relação à conjuntura que envolve a edição do AI-2, pode-se elaborar o
seguinte quadro de síntese geral:
QUADRO DE SÍNTESE DO CAPÍTULO
JB OG OESP
Preservação do Regime Favorável Favorável Favorável
Política do Governo Favorável Favorável Contrário
Preservação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Relativa Relativa Relativa
Caráter do Legislativo Enfraquecido Forte Fraco
Com base nos dados apresentados é possível perceber que, como membros da
heterogênea força que se uniu para derrubar João Goulart e depois serviu de apoio ao
regime militar, os jornais O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo
191
apresentaram posições diferentes em torno das questões surgidas durante o período
em foco. Era o fim da unidade entre as opiniões dos jornais, na qual, a “vontade
nacional” era associada à “vontade revolucionária”, corporificada no governo Castelo.
A partir daquele momento, cada jornal utilizava-se de seu “poder simbólico” na
tentativa de persuadir o seu público de que era o porta-voz da verdadeira “consciência
da nação”. Era a quebra definitiva da, outrora, coalizão anti-João Goulart. Conforme
Eliézer Rizzo de Oliveira,
(...) a unidade precária que sustentou politicamente o governo Castelo
Branco, no seu início, rompe-se na segunda fase [junho de 1964 a outubro
de 1965, segundo o autor], quando os fatores militares começam a assumir
maior peso na definição dos rumos do regime político. (...). Na realidade, à
transferência do poder político para o âmbito das Forças Armadas
corresponde um processo de centralização das decisões, que não se
configura plenamente senão no Governo Costa e Silva.
66
O fim dessa “unidade precária”, exemplificada na divergência de opiniões entre
os jornais, não encobre, pelo contrário, torna mais clara a percepção de que havia uma
política governamental baseada na crença de que, para se manter, precisava de
legitimidade junto a uma parcela significativa da sociedade. Em busca dessa
legitimação, a associação do regime a alguns princípios das democracias liberais
figurou como elemento central. Por isso preservou o Legislativo. Segundo Baaklini,
(...). Embora o preâmbulo do Ato Institucional n.º 1 afirmasse que o novo
regime não havia recebido sua legitimidade do Congresso nem da
Constituição mas sim do fato de que a revolução havia sido “vitoriosa”, o
regime, por meio de seus diversos atos institucionais, emendas
constitucionais, leis complementares e decretos-lei, buscou legitimar-se
através do Congresso e, consequentemente, através de eleições,
independentemente de quão fraudulentas e pouco democráticas tenham
sido. Esta decisão de manter pelo menos a aparência de que pretendiam
participar do jogo político de acordo com as normas legais e
constitucionais, forçou-os a preocupar-se com a manutenção de apoio
dentro do Congresso. Participar das eleições do Congresso e vencê-las
tornou-se a maior prioridade, pois era o Congresso que teria de ratificar a
escolha do presidente, bem como os projetos de lei do Executivo, os
decretos-leis, as emendas constitucionais e outras medidas promulgadas
pelo regime.
65
ALVES, M.ª Helena. op. cit., p. 94.
66
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969). op.
cit., p. 65.
192
Entretanto, a sobrevivência política exigia que muitas das mudanças e
reestruturações introduzidas pelo regime tratassem de preocupações
políticas imediatas, e não de questões fundamentais. As mudanças
introduzidas com a finalidade de ganhar eleições ou de derrotar um
oponente eclipsaram aquelas destinadas a ocasionar mudanças
fundamentais e foram empreendidas de maneira arbitrária, destruindo assim
a pouca legitimidade de que o regime usufruía. Quanto mais o regime se
preocupava em vencer eleições, mais medidas arbitrárias tomava, menos
apoio político recebia e mais incapacitado ficava para introduzir mudanças
fundamentais duradouras. (...).
67
Ainda assim, o governo Castelo Branco continuou com a sua política híbrida de
“democracia tutelada”. De fato, a medida que a conjuntura intensificava a crise
estrutural do regime, o governo adotava medidas arbitrárias, que corroíam-lhe a
legitimidade. Entretanto, Castelo não deixou de buscar a institucionalização do
regime. As discussões sobre a elaboração de uma nova Constituição logo após a
edição do AI-2 denotam este objetivo. Tal processo, para adquirir legitimidade, e
dentro da política “castelista”, não poderia deixar de contar com a participação do
Congresso. Nesse sentido, em fins de 1967, o governo enviou ao Legislativo um
projeto de Constituição para ser referendado. Contudo, mais uma vez, o Parlamento
não estava disposto a simplesmente referendar as proposições do Executivo.
67
BAAKLINI, Abdo I. op. cit., p. 59-60.
193
Capítulo IV – Fins do primeiro mandato: definindo-se caminhos.
A fim de que possam levar avante um programa que deverá ser
revolucionário, os homens que aceitaram a tarefa de implantar no País os
postulados de março optaram pelo cumprimento da missão não de maneira
inteiramente discricionária, mas em regime de pseudo legalidade. O Poder
Legislativo, por exemplo, seria legitimado, embora sem liberdade nem
dignidade. Sua função seria legitimar, por seu turno, com a aparência de
legalidade democrática, os atos de um governo realmente revolucionário.
E para que as minorias, anti-revolucionárias ou não, deixassem de criar
tropeços ao que se converteu numa simples farsa legalista, toda uma série
de medidas se adotou com o fim de manietá-las.
1
No ano de 1966, o governo de Castelo Branco apresentava mais sucesso
econômico do que político. Economicamente, segundo Skidmore,
(...). O programa brasileiro de estabilização econômica continuava a
receber elogios (e dólares) do governo dos Estados Unidos e das agências
multilaterais com sede em Washington. Em dezembro de 1965, o governo
americano anunciou mais um empréstimo de US$ 150 milhões, e em
fevereiro de 1966 o FMI e os Estados Unidos reiteraram sua confiança com
novos compromissos financeiros. A partir do final de 1965 e começo de
1966 os credores estrangeiros acreditavam que o Brasil estava em vias de
voltar a crescer. Até os russos juntaram-se a essa crença, anunciando a
concessão de um crédito comercial de USS$ 100 milhões no início de
agosto de 1966.
2
Devido ao fortalecimento do poder Executivo conferido pelo AI-2, Campos e
Bulhões puderam adotar medidas econômicas sem medo de conseqüências políticas.
Como resultado, a inflação que em 1965 havia sido de 61 por cento, caíra, em 1966,
para 41 por cento
3
. Embora não atingisse o patamar desejado, esta queda foi tida
como positiva.
Apesar de externamente o Brasil ter readquirido crédito político e econômico,
internamente estes dados não eram traduzidos em adesão ao governo. Em 1966, ainda
podiam ser sentidos os efeitos nefastos da política econômica. Estes efeitos, aliados à
repressão política, alimentavam o descontentamento de setores industriais com
relação ao governo. Skidmore afirma que,
1
O Estado de São Paulo, 6 de janeiro de 1967, p. 3, tít.: “Mais uma colherinha de chá...”.
2
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 116.
3
Ibidem.
194
(...). A combinação de fraca demanda e política monetária apertada,
especialmente após os últimos meses de 1965, associada à menor proteção
contra as importações estrangeiras, levou muitos empreendimentos
brasileiros à beira da falência. E não pode ser negado que por causa de sua
forte dependência de crédito, agora sob rigoroso controle, muitas firmas
locais financeiramente deprimidas foram compradas por empresas
estrangeiras (que tinham acesso ao crédito fornecido por suas matrizes no
exterior). O setor privado sofreu muito, e diversos homens de negócios não
pouparam o governo de violentas críticas.
4
Além dos setores industriais, a crise de fins de 1965 havia reduzido ainda mais o
já declinante apoio civil aos militares no governo. A política econômica recessiva, o
crescente autoritarismo, a redução dos canais de expressão e representação
fortaleciam o sentimento antigoverno em setores da sociedade civil. Entre eles, as
camadas médias, atingidas em seus interesses pela política econômica recessiva, os
estudantes, o operariado, membros da intelectualidade e a Igreja. De acordo com
Stepan, os militares foram transformados em alvos de hostilidade pública
5
. Nesse
ambiente, alguns adversários do regime optaram por atos, por vezes, violentos.
Atentados e manifestações estouraram
6
, e, a cada uma delas, robusteciam-se as teses
daqueles que pleiteavam um regime mais duro. Crescia a fragmentação no interior do
4
Idem, p. 130.
5
Stepan cita, como exemplo desta hostilidade, o fato dos militares hesitarem em usar os seus uniformes
em público. Outro sintoma da queda de popularidade dos militares, levantado pelo autor, seria a
redução no número de candidatos às academias militares. Em 1962 e 1963, o Colégio Militar do Rio
de Janeiro teria enviado, em média, 117 cadetes à academia militar. Em 1965 este número caíra para
81, e, em 1966, chegou a apenas 47. STEPAN, Alfred C. Os Militares na Política. op. cit., p. 187.
6
Exemplo de atentado foi o caso da bomba que estourou no aeroporto de Guararapes, em Recife, em
julho de 1966. Os guerrilheiros que prepararam o atentado esperavam que a bomba explodisse
exatamente na hora em que o ministro da Guerra e então candidato à sucessão presidencial, o general
Costa e Silva, desembarcasse no aeroporto. Em função de um defeito no motor do avião, ocorreu uma
mudança de planos e Costa e Silva resolveu viajar de João Pessoa a Recife de automóvel. A bomba
explodiu matando três pessoas e ferindo nove. Quanto às manifestações ocorridas em 1966, vale
mencionar que a grande maioria foi liderada pelos estudantes. Como exemplo destas manifestações,
vale citar a realização do congresso nacional da UNE (União Nacional dos Estudantes), posta na
ilegalidade mas ainda na ativa, em Belo Horizonte, em julho daquele ano. Vinte estudantes acabaram
presos e mais de cem refugiaram-se em conventos, locais em que a polícia não costumava invadir. As
manifestações estudantis e os confrontos com os policiais continuaram ocorrendo ao longo daquele
ano. Já setores da Igreja Católica, além de proteger os estudantes, protestavam através de manifestos de
seus Bispos. Em julho de 1966, Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, no estado de
Pernambuco, liderou quinze bispos, daquele e de outros estados do nordeste, em um apoio formal a um
manifesto, lançado por três grupos ativistas católicos, que atacava a estrutura social injusta do Brasil.
Para um breve relato dos atentados e manifestações, ver: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a
Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 108-109.
195
regime. Isto era ainda mais preocupante considerando que, logo, Castelo estaria
repassando a presidência da República ao seu sucessor, o general Costa e Silva.
Com a proximidade do final de seu mandato, Castelo Branco se defrontava com
o problema da institucionalização do regime em caráter permanente. A transferência
do poder para o novo presidente da República, com o indicativo de que não havia
garantias de que o seu sucessor seguiria as diretrizes políticas e econômicas de seu
governo, e a expiração do Ato Institucional n.º 2 impulsionavam o governo a uma
solução definitiva desse problema. Se já não bastassem estas questões, o país estava
diante da renovação do Congresso Nacional, o que tornava imperativa a formação de
uma base parlamentar de sustentação ao novo governo. Para tanto, o governo
precisaria de normas pré-determinadas.
Quando do processo sucessório, os partidários de Castelo Branco queriam obter
do candidato oficial o compromisso de dar continuidade às políticas castelistas. De
acordo com Stepan
7
, esse grupo “castelista”, ligado à Escola Superior de Guerra,
defendia posições distintas aos demais oficiais no que se referia às questões de
desenvolvimento político. Seus integrantes sabiam que suas atitudes não eram
amplamente partilhadas pelos militares em conjunto. Face a isto, temiam que, na
sucessão, seus programas fossem alterados.
Castelo Branco havia fracassado na tentativa de controlar a escolha de seu
sucessor. Em parte, isto se deu devido à sua política de liberalismo econômico, que
não era assimilada pela maioria de civis e de oficiais, o que alimentou a
impopularidade do presidente
8
. Como os militares tinham que apoiar os programas
governamentais e isto implicava custos políticos, oficiais de fora do governo
sugeriram um novo estilo para o segundo governo da “Revolução”
9
. Este novo
momento seria liderado por Costa e Silva, considerado mais simpático a um governo
7
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 180.
8
Ibidem.
196
militante e autoritário, menos pró-americano e mais pró-nacionalista. Conforme
Stepan, Costa e Silva não chegava a ser uma figura totalmente identificada com a
facção mais dura dos militares, que o autor denomina de “nacionalistas autoritários” –
até mesmo porque a composição dessas facções era bastante imprecisa. Para Stepan,
ele estava mais para uma ponte entre os “duros” e o grupo ligado a Castelo
10
.
Em fevereiro de 1966, Castelo Branco e Costa e Silva tentaram estabelecer um
acordo. O presidente queria que o seu sucessor se comprometesse a dar continuidade
à política econômica de Campos e Bulhões e também ao processo de “normalização
democrática”. Costa e Silva não garantiu nada, mas seus partidários silenciaram,
permitindo que a campanha por reformas na política do governo prosseguissem
durante o resto do ano
11
. Vislumbrava-se uma mudança de caminho. Se quisesse que
Costa e Silva seguisse a sua linha política, Castelo teria que arrumar um meio de
amarrar as suas ações.
Com relação ao Congresso, Castelo Branco procurou, através da nova estrutura
partidária, reunir uma base parlamentar de apoio ao governo em um único partido,
aglutinando os demais parlamentares em um fraco partido de oposição. No entanto, a
sua estratégia não obteve o êxito imaginado. À medida que o governo adotava
medidas repressivas, que atingiam a autonomia do Legislativo, crescia a oposição
parlamentar. Esta oposição contava com membros da ARENA, o que aumentou a
distância entre o partido e o governo
12
.
9
Idem, p. 181.
10
Id., p. 183. Em sentido próximo, Elio Gaspari afirma que Costa e Silva colocou-se como “estuário
das frustrações de todos aqueles que achavam necessário aprofundar o processo arbitrário e punitivo”,
porém, não o considera um radical. Para Gaspari, Costa e Silva seria um “manipulador da anarquia”.
GASPARI, Elio. Ilusões Armadas – A ditadura envergonhada. op. cit., p. 271.
11
Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, p. 111.
12
Entre os exemplos da oposição da ARENA às intenções do governo, pode-se destacar: a recusa do
presidente da Câmara dos Deputados e membro da ARENA, Adauto Lúcio Cardoso, em reconhecer a
cassação de seis deputados pelo governo, em outubro de 1966, e, indo além, permitindo que os tais
deputados continuassem exercendo as suas funções, e; a união de forças entre ARENA e MDB para
protestar contra o projeto de Constituição enviado pelo governo enviado ao Congresso em dezembro do
mesmo ano, e para exigir o direito dos parlamentares de apresentar emendas ao mesmo. Sobre estas
duas questões, ver: ALVES, M.ª Helena M. Estado e Oposição no Brasil, 1964-1984. op. cit., p. 102.
197
Na tentativa de reverter esse quadro ou de, ao menos, impedir que a sua
credibilidade interna e a sua legitimidade civil continuassem declinando, Castelo
Branco manteve a sua política dual. De um lado, conforme Lúcia Klein
13
, visando a
legitimação permanente e constante do regime, manteve-se apegado a certos
princípios democráticos e chamou o Legislativo para ratificar a “eleição” de Costa e
Silva e as ações do governo. De outro, adotou medidas que negavam tais princípios.
Esta política ia se tornando insustentável. Castelo Branco e o regime precisavam
se definir sobre o rumo a seguir. A opção pelo endurecimento ganhava corpo. Em
contrapartida, redefiniam-se os caminhos dos grupos outrora unidos em prol do
“movimento revolucionário”.
A coalizão que havia se unido para derrubar João Goulart expunha a público as
suas fissuras e as insatisfações com a política de Castelo Branco. Certos grupos
questionavam a política repressiva do governo. Outros, a insistência do presidente em
preservar instituições e grupos teoricamente ligados à situação deposta. Caminhos
opostos se cruzavam e inviabilizavam a diretriz imposta pelo presidente. A pressão
aumentava e seu mandato expirava. Era hora de definir caminhos.
A mudança de opinião do Jornal do Brasil, a radicalização da d’O Estado de
São Paulo e a omissão d’O Globo, notadas nos editoriais que circundam o período
compreendido entre a eleição de Costa e Silva e a promulgação da Constituição de
1967, são indicativos das insatisfações na sociedade e das divergências no interior dos
grupos que, antes, unidos, constituíram a coalizão anti-João Goulart. A principal
divergência é quanto aos caminhos pelos quais o regime deveria seguir. Contudo,
todos, exercendo o papel de “meta-sistema perito” com relação ao governo e ao
Legislativo, procuraram seduzir os seus leitores na tentativa de os levar a concordar
Sobre o protesto da ARENA contra o projeto de Constituição, ver: FIECHTER, Georges-André. O
Regime Modernizador do Brasil – 1964-1972. op. cit., p. 162.
13
KLEIN, Lúcia. “Brasil pós-64: a nova ordem legal e a redefinição das bases de legitimidade”. op.
cit., p. 41-42.
198
com os pontos de vista expostos. Muitas vezes as opiniões eram contrárias às ações
do governo, porém, ainda simpatizantes quanto aos objetivos originais da
“Revolução”.
A 3 de outubro de 1966, Costa e Silva foi eleito, de forma indireta, presidente da
República, e, logo após, em discurso no Congresso, reafirmou que o intuito da
“Revolução” seria estabelecer uma verdadeira democracia no Brasil. A análise dos
editoriais desse período indica que a eleição de Costa e Silva encheu todo o grupo
pró-regime de esperanças. Embora cada facção esperasse algo diferente do novo
governo.
270. Tal como previsto, e na linha das promessas do Governo, cumpriu-se
ontem em Brasília mais uma etapa do calendário eleitoral, com a eleição do
Marechal Costa e Silva à Presidência da República. Não obstante os
protesto do MDB e de outros setores oposicionistas, o Congresso ajustou-se
ao rito excepcional estabelecido e fez a sua parte, através da ampla maioria
da ARENA. Chegou-se, portanto, com características mínimas de
normalidade, a uma fase adiantada do processo de transmissão do poder,
dentro do sistema político implantado com o movimento de março. Já não
há que discutir, nesta altura, se a forma indireta da eleição ou se o fato da
candidatura única constituíram episódios de menor teor democrático. Está
o País diante de um fato consumado (...). Situar o acontecimento de ontem
em termos de controvérsia formalística é pretender fugir à realidade
nacional. Não vimos, com efeito a sufragação de um candidato à
Presidência da República, nos termos das tradições liberais brasileiras.
Houve na verdade um ato preliminar de transferência de responsabilidades
de poder, nos estritos limites de um mesmo sistema de forças, do qual o
Congresso participou para adicionar a substância possível de legitimidade,
nas atuais circunstâncias. Estes condicionamentos, todavia, não bastam
para elidir o fato consumado, nem devem ser de molde a conduzir os
dirigentes políticos e a opinião pública a atitudes imobilistas ou estéreis. O
fato consumado, por mais longe que se encontre das posições ideais, pode
ser um ponto de partida para soluções melhores e normalizadoras. (Jornal
do Brasil, 4 de outubro de 1966, p. 6, tít.: Ponto de Partida)
271. (...) o Presidente Costa e Silva terá de cuidar, prioritariamente, de sua
legitimação política, já que ele se alça ao Poder através de eleições indiretas
e favorecido pela predominante afirmação militar de sua liderança. (Jornal
do Brasil, 19 de janeiro de 1967, p. 6, tít.: Expectativa)
272. (...). O primeiro Governo nascido do movimento de 31 de março
beneficiou-se de um impulso nacional para implantar-se, mas o segundo
terá de conquistar a adesão popular, que o legitimará pela via da
normalização política. (Jornal do Brasil, 19 de janeiro de 1967, p. 6, tít.:
Expectativa)
199
273. Experimenta o País uma sensação de desafogo com a eleição à
Presidência da República do sr. marechal Costa e Silva (...). (O Estado de
São Paulo, 4 de outubro de 1966, p. 3, tít.: A missão do novo Presidente)
Ao longo dos editoriais, é possível perceber que o Jornal do Brasil, embora
fosse crítico do processo de escolha do novo presidente, não questiona o pseudo
caráter democrático da eleição de Costa e Silva. E considera errado que se faça esse
questionamento. Parte da conclusão de que esta era um “fato consumado”, e que,
portanto, deveríamos olhar adiante, em busca de soluções para os nossos problemas.
Essa atitude de resignação demonstra que, até então, o Jornal do Brasil ainda
alimentava a crença de que o objetivo do governo, e do regime como um todo, seria a
normalização político-institucional do Brasil. Mesmo que a eleição indireta de um
militar previamente escolhido representasse um desvio, acreditava que o ponto de
chegada estava mantido. Ainda que esse ponto não fosse claramente definido, “sem
dúvida”, ele seria melhor. Assim como também seria melhor a escolha deste caminho
e não de outro, obscuro, materializado na situação política anterior à “Revolução”.
O que o Jornal do Brasil tenta, portanto, é estabelecer um consenso junto ao seu
público leitor. Promovendo a “opinião pública” para um lugar de decisão política,
sugere que a realização dos ideais “revolucionários” ainda seria a melhor opção para a
normalização da vida nacional.
Com essa compreensão da situação, o Jornal do Brasil considerava que, dentro
das circunstâncias, o Legislativo exercera a função de avalista ao conceder uma
legitimidade possível à eleição. No entanto, isto não era extensivo ao governo Costa e
Silva. Para o jornal, ela ainda deveria ser buscada, e a via para isto seria justamente a
da normalização política.
O Estado de São Paulo – nesse momento um declarado opositor de direita ao
governo Castelo Branco, mas não à “Revolução” – via na eleição de Costa e Silva um
alívio e, ao mesmo tempo, a possibilidade de um retorno aos “princípios
200
revolucionários”, que julgava terem sido abandonados por Castelo. Quando o
resultado lhe satisfazia, não questionava a legitimidade do processo.
O apoio d’O Estado de São Paulo à eleição de Costa e Silva não era exultante,
como foi a sua posição durante a eclosão do “movimento revolucionário”. Mas,
mostrava-se mais otimista com as perspectivas que surgiam com a posse do novo
presidente do que com o governo que findava. Jayme Portella de Mello cita
ilustrativa passagem de um encontro seu com Júlio de Mesquita, proprietário d’O
Estado de São Paulo, na qual há um indicativo desse posicionamento do jornal. Diz
Portella,
(...). Visitei o Dr. Júlio de Mesquita, o homem do O Estado de São Paulo e
pessoa da maior influência nos meios políticos da ex-UDN. Mostrou-se
discreto quanto à candidatura, embora achasse, que era oportuna, pois o
General Costa e Silva reunia grandes qualidades. Disse-me que estava
divulgando notícias favoráveis a ele, em seu jornal. Mas que, eu
informasse ao General costa e Silva, que estava disposto a apoiá-lo, desde
que continuasse a política econômico-financeira em curso, pois a achava
acertada embora descordasse [sic] de outros aspectos do Governo Castello
Branco. (...).
14
O Globo, por sua vez, passava a demonstrar uma nova e peculiar característica,
a partir deste momento. Seus editoriais, que nunca apresentaram uma regularidade e
nem uma diagramação definida
15
, passaram a evitar as grandes crises políticas de
caráter nacional, optando por tratar de temas secundários de caráter local. Quando
chega a se debruçar sobre os temas mais críticos, opta, grande parte das vezes, por
esperar o seu suposto término para afirmar que são momentos passados, e melhor
deixá-los para trás. Mas, no caso da eleição de Costa e Silva, optou, em seus
editoriais, simplesmente por não tocar no assunto.
De modo geral, conclui-se que a opção do governo por procurar a ratificação do
Legislativo à eleição de Costa e Silva enquadra-se na estratégia de busca de
legitimação democrática. É óbvio que isto ocorria dentro de limites claramente
14
MELLO, Jayme Portella de. A Revolução e o Governo Costa e Silva. op. cit., p. 317.
15
Cf. Introdução, p. 33.
201
definidos. Mas fica claro, principalmente pela análise do Jornal do Brasil – que não
se opõe radicalmente ao governo Castelo Branco, mas tão pouco assume uma postura
acrítica –, que, diante das circunstâncias excepcionais, admitia-se a adoção de um rito
igualmente excepcional, desde que, em sua visão, fossem mantidos os objetivos
iniciais, estes sim, de plenitude democrática e, ao mesmo tempo, de correção dos
rumos da nação. Como observa Luís Felipe Miguel,
(...). Durante a ditadura, não se escondeu que a geografia (isto é, a
natureza) indicava um destino, mas que o autoritarismo era necessário para
não deixar o país se perder de seu futuro. O autoritarismo está sempre
presente, de forma menos ou mais velada, nesse tipo de discurso. Afinal, se
há um futuro já traçado, com um destino glorioso como ponto de chegada,
qualquer projeto alternativo está vetado – ou, pior, é traição.
16
Portanto, não obstante as críticas ao processo de escolha do sucessor de Castelo
Branco, nos editoriais mantinha-se uma postura de concordância com relação aos
“objetivos originais da Revolução” e de deslegitimação da situação anterior. Aos
“objetivos revolucionários” era associado o crédito de meios para a condução do país
à normalização institucional e democrática. Isto ocorria face a tais fatores serem de
fundamental importância para os seus leitores.
Com base na análise acima, pode-se elaborar o quadro de síntese abaixo:
QUADRO DE SÍNTESE 1
JB OG OESP
Eleição de Costa e Silva Fato consumado --- Favorável
Regime militar Favorável --- Favorável
Preservação do Legislativo Favorável --- Não menciona
Papel do Legislativo Legitimador --- Não menciona
Como é possível perceber, quanto a esta questão ainda ocorre uma proximidade
entre as opiniões dos jornais. O posicionamento do Jornal do Brasil indica que, além
da “linha-dura”, que pressionava pelo endurecimento do regime, havia um outro
202
grupo que não apoiava totalmente as ações do governo, e, tampouco, desejava o seu
endurecimento. Exemplo disto é a acentuação da distância entre o governo e a
ARENA, ocorrida logo após a eleição de Costa e Silva, quando alguns de seus
membros, entre eles os presidentes da Câmara, Adauto Lúcio Cardoso, e do Senado,
Auro de Moura Andrade, se opuseram à cassação do mandato de seis deputados
federais.
Apesar da esperada vitória com a eleição de Costa e Silva, o governo ainda
temia por um revés nas eleições legislativas marcadas para o dia 15 de novembro, a
exemplo do que havia ocorrido no pleito para os governos estaduais, em outubro de
1965. Em face desse temor, Castelo Branco, apesar de pregar que tais escolhas
deveriam ser do povo, passou a cassar mandatos de parlamentares candidatos à
eleição que, supostamente, poderiam constituir oposição ao governo.
O objetivo desses atos não era só intimidar a oposição nas eleições para o
Congresso. Imaginava, através deles, permitir a aprovação de uma Constituição ao
gosto do governo, impedir débeis tentativas de resistência e reduzir o número de
possíveis opositores. Castelo Branco usava as cassações também porque, para
preservar sua credibilidade junto aos militares em geral, precisava manter sob controle
seus críticos do MDB.
Firmando suas posições e expondo as divergências quanto às ações do governo,
os editoriais dos jornais apresentam opiniões bem diferentes com relação à atitude de
Castelo Branco. Neste caso, examino-as, a princípio, separadamente. Primeiro os
editoriais do Jornal do Brasil:
274. O Presidente da República exprimiu (...) a sua total despreocupação
com o problema da legitimidade do futuro regime (...). Nada deteve o
Chefe do Executivo, que, uma vez escalonados os seus objetivos, marcha
inexoravelmente no sentido de atingi-los, pouco importando as vítimas que,
ainda do seu lado, vão ficando pelo caminho. As cassações de ontem fazem
16
MIGUEL, Luís Felipe. “O campeão da ‘união’. O discurso de Fernando Henrique na campanha de
1994”. op. cit., p. 70.
203
parte de um programa que o Governo entendeu de levar a cabo, tendo em
vista as eleições de 15 de novembro.
Pode-se agora concluir, sem medo de errar ou de especular em falso, que o
Governo só admite realizar as eleições dentro de limitações bem definidas,
que não se conformam com a existência de um futuro Congresso hostil ao
que se convencionou chamar de Revolução. (...). (Jornal do Brasil, 13 de
outubro de 1966, p. 6, tít.: Retrocesso)
275. (...). A hegemonia do Poder Executivo enche a cena e não tem
sentido, diante deste dado, o recurso às prerrogativas do Legislativo ou do
Judiciário. Estamos, de fato, num regime de arbítrio e o Presidente Castelo
Branco acaba de demonstrar, com nitidez e energia, que não alimenta
intenção de encerrar esse regime. Quando o Governo fala, pois, em
continuidade revolucionária exprime a sua disposição de continuar
trilhando o mesmo caminho do arbítrio e do discricionarismo (...). (Jornal
do Brasil, 14 de outubro de 1966, p. 6, tít.: Conflito e Definição)
276. (...). Suas [do Deputado Adauto Cardoso] declarações sóbrias
refletiram, porém, o trauma que sofreu e não deixam dúvida sobre sua
disposição de afirmar as prerrogativas da Casa que preside, as quais se
inserem num contexto de ordem legal que não pode ser indiferente ao
princípio da autonomia dos Poderes da República. O Presidente da Câmara
entende que o Legislativo foi fortemente alcançado pelo ato do Chefe do
Executivo e, diante de suas reiteradas e confiantes promessas anteriores,
procurará agir em conseqüência. (...). (Jornal do Brasil, 14 de outubro de
1966, p. 6, tít.: Conflito e Definição)
277. O Congresso Nacional, pela presidência das duas Câmaras, afinal
solidárias, encontra-se em estado de rebeldia, pois a tanto corresponde a
decisão dos Srs. Adauto Lúcio Cardoso e Auro de Moura Andrade de
submeter os atos cassatórios a exame dos parlamentares. (...).
Como era de esperar, o MDB, pela sua direção nacional, procurou dar
cobertura à atitude do Presidente da Câmara e os próprios cassados
afirmam, com uma ponta de audácia e de desafio, que se consideram ainda
investidos de seus mandatos, que o simples ato do Executivo já não poderia
suprimir. A sair vencedora a nova doutrina, o poder de arbítrio do
Executivo, que se arroga prerrogativas revolucionárias para assim agir,
estaria efetivamente limitado e a autoridade do Presidente da República,
para atos dessa natureza, deixaria de ser incontrastável, como vem sendo
até agora. Dentro da dinâmica própria do processo político, é fácil concluir
que, uma vez vitoriosa essa tese, estaria, ipso facto, estancado o fluxo dito
revolucionário e o País voltaria a orientar-se por um cânon constitucional
que significaria, em pouco tempo, a plenitude da ordem legal restaurada em
termos da Carta de 1946. (Jornal do Brasil, 18 de outubro de 1966, p. 6,
tít.: Insegurança Doutrinária)
278. Do Congresso, desde que mantido dentro do processo revolucionário,
o Governo vem obtendo uma participação permanente e influente nos atos
que balizam a vida político-legislativa do País dos últimos trinta meses. O
mesmo Congresso que aí está, com a diferença apenas dos representantes
cassados pela Revolução, serviu para eleger o Marechal Castelo Branco à
Presidência da República e para acrescentar-lhe tempo de mandato. Esse
mesmo Congresso votou grande massa da legislação revolucionária. E
ainda há poucos dias, elegeu o Marechal Costa e Silva legitimando, mais
uma vez, o processo político instituído pelo Governo. Noutras palavras, o
204
Poder Executivo – embora de índole revolucionária e se utilizando
concomitantemente de instrumentos excepcionais – mantinha com o Poder
Legislativo um modus vivendi de respeito e de muita colaboração. (Jornal
do Brasil, 19 de outubro de 1966, p. 6, tít.: Autoridade do Executivo)
279. A atitude de rebeldia assumida pelo Presidente da Câmara dos
Deputados constituiu, sem dúvida, pela primeira vez, desde abril de 1964,
com toda a nitidez necessária, um conflito de ordem institucional. O Sr.
Adauto Cardoso (...) levantou-se, com os instrumentos a seu alcance, contra
um poder de arbítrio que, invocando a sua natureza revolucionária, decidiu
impor à Nação uma rotina repressora e punitiva que é incompatível com a
existência de uma ordem legal e que posterga, indefinidamente, o momento
de encetar o processo de normalização de nossa vida político-institucional.
(Jornal do Brasil, 21 de outubro de 1966, p. 6, tít.: Círculo de Equívocos)
A análise das seqüências revela que o Jornal do Brasil começa a definir o seu
posicionamento contrário ao governo e, ainda que de modo claudicante, ao regime.
Para este jornal, a ação do governo demonstraria que estávamos, de fato, em um
regime de arbítrio onde o Poder Executivo prevaleceria sobre tudo o mais. Assim,
sempre que necessário, ele faria uso de seus poderes arbitrários para manter-se
hegemônico. Tendo em vista esta meta, o governo teria decidido formar uma base
favorável no Parlamento a ser eleito em 15 de novembro de 1966. Fixo neste
objetivo, estaria despreocupado quanto à necessidade de legitimidade e disposto a
eliminar todos os possíveis obstáculos que encontrasse em seu caminho. Daí, a opção
pelas cassações e suspensões de direitos políticos.
Por crer que o objetivo maior seria a normalização político-institucional, o
Jornal do Brasil se apresenta contrário a esta ação do governo e à tendência ao uso
constantes de poderes arbitrários. Assim, de forma diversa às vezes anteriores, as
críticas do Jornal do Brasil já não ficaram restritas às ações do governo, passando a
abranger, ainda que de modo sutil, o regime e o seu caráter definitivamente tachado
de discricionário.
Tradicionalmente o Jornal do Brasil mantinha uma postura política moderada e
se postava em defesa da legalidade. Alguns momentos da história do jornal, após o
conde Ernesto Pereira Carneiro assumir a sua propriedade, em 1919, e que envolvem
205
atores políticos de alguma forma também atuantes nos anos 1960, são exemplares
desse posicionamento legalista
17
.
O primeiro, em 1950, refere-se à conjuntura política surgida após a vitória de
Getúlio Vargas nas eleições presidenciais. A UDN (União Democrática
Nacionalista), inconformada com a derrota de seu candidato, Eduardo Gomes,
desejava vetar a posse de Vargas. Pretendia, a posteriori, instituir que, para que o
candidato a presidente fosse considerado eleito, deveria necessariamente obter a
maioria absoluta dos votos, o que Vargas não havia conseguido. O Jornal do Brasil,
apesar de ter apoiado a candidatura de Eduardo Gomes, não encampou a tese da UDN
que, por fim, não vingou. Em 1955, quando Juscelino Kubitschek foi eleito
presidente da República, a UDN novamente levantou a bandeira da maioria absoluta
e, outra vez, o Jornal do Brasil, mantendo a postura legalista, foi contra.
Outro momento em que essa postura é notável envolve a questão da posse de
João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. O Jornal do Brasil de novo
defendeu a legalidade, e, consequentemente, a posse de Jango. A seguir, quando do
surgimento da alternativa do parlamentarismo para por fim a crise, encampou a idéia.
Já em 1964, após ter apoiado a derrubada de Jango pelos militares, o Jornal do
Brasil manteve-se apoiando o regime militar. Entretanto, teceu algumas restrições a
certas medidas do governo, entre elas, ao primeiro Ato Institucional, e a algumas
cassações, dentre as quais, a do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Estas restrições
indicam que, já nos momentos iniciais da “Revolução”, o Jornal do Brasil fez as
primeiras críticas ao governo. Todavia, mantinha uma postura de apoio ao regime
militar. Em fins de 1966, porém, as críticas começam a se estender a ele.
17
As referências à história do Jornal do Brasil aqui apresentadas tomam como base o verbete
produzido para o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Cf. FERREIRA, Marieta de M.;
MONTALVÃO, Sérgio. “Jornal do Brasil”. In: ABREU, Alzira Alves et alii. (coord.s). Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 30. op. cit., p. 2866-2875.
206
Ao mesmo tempo, é perceptível nos discursos do Jornal do Brasil a aprovação
da tentativa do Congresso de mostrar sua independência. Ao contrário da ação do
governo, via na atitude do parlamento uma possibilidade de se chegar à meta de
normalização democrática.
Esta reação dos parlamentares sugere a existência ou pelo menos a tentativa do
Legislativo de se postar autônomo com relação ao Executivo. De acordo com Eliézer
Rizzo de Oliveira, no que o autor denomina de terceira fase do governo Castelo –
iniciada após a edição do AI-2 –, os partidos dependem do Executivo, mas “este
controle não é total, na medida em que mesmo setores governistas se reservam uma
relativa autonomia de decisão”
18
. Portanto, com base nessa “relativa autonomia de
decisão”, os parlamentares, como frisa Oliveira, e, consequentemente, o Congresso
Nacional procuraram obstruir certas proposições do regime.
Em resumo, o Jornal do Brasil sustenta que o Legislativo estava procurando
defender a sua autonomia, e se apresenta favorável a essa defesa. Além do mais, não
via razões para o governo atingir o Parlamento, pois considerava que ele, até então,
havia colaborado com o regime, legitimando-o. Atingi-lo levaria à perda da
legitimidade que ele pudesse conferir e à intensificação do conflito entre o Executivo
e o Legislativo.
A definição de democracia para o Jornal do Brasil, portanto, pressupunha a
preservação e a observância das prerrogativas das instituições representativas. Nesse
sentido, defende esta opinião junto ao seu auditório. Em conseqüência, a nova
imagem da “Revolução” que ele começa a elaborar revela um caráter discricionário,
incompatível com os ideais defendidos de normalização institucional.
O Globo, novamente, pouco aborda o problema:
280. (...). A legislação revolucionária estatuiu, com o objetivo de preservar
às instituições, causas que fulminam de inelegibilidade candidatos e
18
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969). op.
cit., p. 69.
207
candidaturas que, a seu critério, não podem merecer o beneplácito do voto
popular. Vários dos candidatos que tiveram nomes impugnados são
indiscutivelmente passíveis desse veto, que se justifica em nome de um
presente incompatível com o edito que regula e disciplina a vida pública do
País. (O Globo, 24 de outubro de 1966, edição final, p. 3, tít.: Impugnações)
281. Situamos acima de qualquer debate a reta intenção democrática do
Governo. Mas em política não basta a intenção; é fundamental levar em
conta a repercussão. No momento existe em meios responsáveis do País
alguma perplexidade resultante da análise da crise recente desencadeada
após a última fornada de cassações de mandatos e suspensões de direitos
políticos. (O Globo, 25 de outubro de 1966, p. 1, tít.: Dissipem-se as
Dúvidas)
Percebe-se que O Globo toca levemente na questão. Não discute a intenção
“democrática” do governo, e, embora se preocupe com a repercussão, vê nas
impugnações de candidatos um meio para a preservação das instituições democráticas.
Partidário incondicional do regime, de modo contrário ao Jornal do Brasil, tenta
associar a atitude governista, de alguma forma, a um fim democrático, na tentativa de
defendê-la e de legitimá-la junto ao seu auditório. Em sentido inverso, procura
deslegitimar os adversários do governo, caracterizando-os como antidemocráticos.
Esta faceta também era perceptível nos discursos do próprio presidente Castelo
Branco. Segundo a análise que Eurico de Lima Figueiredo
19
fez destes discursos, eles
têm um caráter bipolar, onde, a “democracia” é apresentada como a estrada real,
ampla e lógica, e remete a uma nação idealmente positiva. Em contraposição,
“antidemocracia” refere-se a uma sociedade “cativa”, idealmente negativa. A imagem
que Castelo tenta expor de seu governo é identificada, logicamente, aos ideais
positivos.
O Estado de São Paulo tende a por a culpa pela crise instituicional sobre
Castelo Branco e sua política híbrida:
282. (...). Não há quem desconheça que nos colocamos decididamente a
favor dos poderes punitivos outorgados ao chefe da Nação pelo Ato
Institucional n.º 1. (...). Compreenderíamos a medida [cassação dos
deputados], e até a aceitaríamos jubilosos, se ela se destinasse a ser
19
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. Os Militares e a Democracia: análise estrutural da ideologia do
Presidente Castelo Branco. op. cit., p. 72.
208
executada pelo futuro governo. Mas posta em prática pelo sr. marechal
Castelo Branco, uma vez extorquida de deputados e senadores a garantia de
que aprovarão um novo estatuto constitucional contra a vaga promessa de
que as próximas cassações serão as últimas, então, se a tal chegarmos, terá a
Nação experimentado a mais aviltante das capitulações morais. (O Estado
de São Paulo, 25 de setembro de 1966, p. 3, tít.: Até onde iremos?)
283. (...). Tendo salvo das conseqüências da derrota os membros das duas
casas do Legislativo Nacional, supunha-se s. exa. com direito a esperar
deles uma cooperação leal no cumprimento dos seus propósitos. Sucedeu
no entanto que as coisas não se passaram com s. exa. previra e que pouco a
pouco, e à medida que a situação se complicava mercê dos erros de cálculo
com que dera início aos seus planos, mais ousada se foi tornando a oposição
que nunca deixou de lhe mover a maioria parlamentar. Sopitada a princípio
a aversão que a nova ordem de coisas sempre despertou aos deputados e
senadores federais, foi-se ela acentuando a ponto de criar agora ao
Executivo Federal dificuldades intransponíveis. (...). (O Estado de São
Paulo, 28 de setembro de 1966, p. 3, tít.: Em franco retrocesso)
284. (...). Já deixamos claro ontem que, foi a própria decisão do sr.
marechal Castelo Branco de manter aberto o Parlamento após a sua posse
no Executivo revolucionário que veio tornar inatacável a atitude de
independência ora assumida pelo presidente da Câmara dos Deputados,
pois, reconhecida a existência desta e permitido o seu funcionamento, a
conclusão lógica desse fato é que só o Legislativo deveria normalmente
eliminar do seu seio, quando necessário, qualquer dos seus membros e isso
mesmo após o processo regular estabelecido pelo nosso direito público.
(...). (O Estado de São Paulo, 15 de outubro de 1966, p. 3, tít.: As
cassações e a autonomia do legislativo)
285. (...). Seja como for, dos Poderes existentes aquele que melhor
representa a revolução ainda é o Executivo. E apesar de as distorções
ditadas pelos caprichos do sr. marechal Castelo Branco o terem afastado da
“linha dura” revolucionária, a verdade é que de tudo quanto vem
acontecendo resultou inesperadamente a possibilidade de voltar ao seu leito
natural a corrente vitoriosa. (...). (O Estado de São Paulo, 19 de outubro de
1966, p. 3, tít.: À vista a dissolução do Parlamento)
286. (...). O que parecia ser, de início, apenas uma das muitas crises
provocadas pela falta de sensibilidade política do sr. marechal Castelo
Branco e pela sua tendência para sobrepor a sua vontade ao interesse
nacional acabou por assumir as proporções de um desafio aberto à própria
ordem Revolucionária. O que está em causa deixou de ser a dignidade
pessoal do sr. presidente da Câmara ou o mandato deste ou daquele senhor:
são os fundamentos do regime implantado após a vitória do 31 de março.
(...).
Eis ao que nos levaram as incongruências e os erros do sr. presidente da
República. Tal é a situação criada que, por mais ponderáveis que sejam os
inconvenientes da dissolução do Parlamento – embora teimem em lhe
chamar recesso – a medida extrema parece tornar-se, a cada hora que passa,
a única solução capaz de evitar que a Revolução saia desta lamentável crise
irremediavelmente abalada nas suas bases. Essa é, aliás, a opinião a que,
tudo o indica, chegaram já as Forças Armadas. (O Estado de São Paulo, 20
de outubro de 1966, p. 3, tít.: Agrava-se o conflito)
209
287. Desde o início deste rumoroso caso já nos temos referido inúmeras
vezes às responsabilidades do presidente da República. Elas decorrem,
naturalmente, do erro inicial que foi o de pretender, desde o momento da
sua posse, disfarçar o caráter discricionário do seu governo – governo que
poderia ter sido revolucionário se s. exa. não fosse o primeiro a opor-se a
isso. (O Estado de São Paulo, 25 de outubro de 1966, p. 3, tít.: As
responsabilidades do Congresso)
O Estado de São Paulo, opositor de Castelo Branco, associa a crise entre os
Poderes ao “erro inicial” do governo de tentar disfarçar o seu caráter discricionário,
entre outras formas, mantendo o Legislativo em funcionamento.
Não que O Estado de São Paulo fosse contrário à instituição Poder Legislativo.
Como indica a análise dos editoriais dos momentos imediatamente posteriores ao
golpe militar, sua contrariedade era quanto à preservação do Congresso herdado da
situação anterior, ou seja, segundo o jornal, de um Parlamento de raízes varguistas.
Sua oposição histórica ao ex-presidente Getúlio Vargas era extensiva a tudo e a todos
que pudessem ter alguma relação com ele. Desse modo, um Congresso de maioria
pessedista e petebista, partidos ligados originalmente a Getúlio, não poderia servir aos
interesses “revolucionários” de “reconstrução da nação”. Pelo contrário, a
“Revolução” teria como um dos “objetivos originais”, de acordo com O Estado de
São Paulo, a destruição da ordem varguista. Para a obtenção desses objetivos se
justificaria o uso excepcional de medidas arbitrárias. Não haveria a necessidade de
disfarce porque a “reconstrução da nação” justificaria tal uso. Nesse sentido, desde o
início do regime, pregou o expurgo dos “elementos indesejáveis” do Congresso.
Esta postura está condizente com a análise que M.ª Aparecida Aquino faz deste
jornal. Segundo Aquino
20
, o posicionamento d’O Estado de São Paulo é teoricamente
justificável no liberalismo lockeano. Segundo Locke, deveriam ser respeitados os
direitos naturais do indivíduo, inclusive o de propriedade. Ao governante caberia a
defesa desses direitos. No entanto, ele poderia ser substituído em caso de abuso de
210
mando. Esta teoria, de acordo com Aquino, justificaria o posicionamento do jornal ao
pregar a derrubada de João Goulart. Para O Estado de São Paulo, Jango havia
abusado de seu poder de mando. Deveria, portanto, ser substituído. Em
conseqüência, tudo que remetesse ao ex-presidente e à ordem varguista deveria ser
suprimido. O Legislativo, inclusive.
Simpatizante, mas com reservas, quanto ao futuro governo Costa e Silva, para O
Estado de São Paulo já não era mais a hora de Castelo Branco executar tais medidas.
Não é, porém, um discurso contra a medida, mas contra quem a estava executando.
Para o jornal, tal atitude deveria ficar a critério de Costa e Silva. Naquele momento,
serviria apenas como forma de pressionar o Congresso a aprovar a Constituição. Fato
visto como negativo. Na sua opinião, a maior conseqüência das cassações teria sido a
intensificação da crise entre o Executivo e o Legislativo. Assim, a posição d’O
Estado de São Paulo vai ao encontro das proposições “revolucionárias” de
fortalecimento do Executivo em detrimento dos demais poderes da República. Em
complemento, tenta justificar ao seu auditório o uso das ações arbitrárias na defesa da
“democracia” e da legalidade.
Estas características são igualmente identificáveis nos discursos de Castelo
Branco. Ainda de acordo com Eurico de Lima Figueiredo,
(...) na definição das duas categorias [legalidade e ilegalidade, presentes nos
discursos do presidente] é o poder executivo, o centro do sistema legal. É
ele, na verdade, que estabelece, não só as condições da sua própria
legalidade como provê a (devida) consideração ao Congresso Nacional e
garante o funcionamento da justiça (= Poder Judiciário). Tal colocação
conota uma ruptura com a legalidade do antigo regime, onde o papel do
Executivo não era entendido (pelo menos formalmente) em termos de
predominância. Pode-se supor que a teoria do “executivo forte”,
consubstanciada na constituição de 1967, é elaborada sob sua pessoal
influência (...). O aspecto protetor (tutelador) do Presidente da República
em relação ao sistema político realça-se, ainda mais, quando se tem em
vista uma definição mais liberal do conceito de “democracia política” (...) –
a ilegalidade só pode ser defendida pelas forças das armas. Nesta caso, os
20
AQUINO, M.ª Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício
cotidiano da dominação e da resistência: “O Estado de São Paulo” e “Movimento. Bauru: Editora
Universidade do sagrado Coração, 1999, p. 37-54.
211
próprios militares se transformaram, pode-se inferir, em objetos e agentes
desta ilegalidade. Mas a saída do impasse só poderá ser feita em nome da
própria manutenção da legalidade: o que está errado é o abuso da
ilegalidade (e, portanto, é quem dela “abusa” que deve ser “recusado” como
ilegal) e não o sistema legal (vigente) em si mesmo. Tal interpretação,
inclusive, encontra amparo na famosa carta endereçada por Castelo Branco,
então chefe do Estado Maior do Exército, aos generais e demais militares
subordinados a ele. Neste documento Castelo Branco reafirma que é
preciso que qualquer atitude das Forças Armadas se faça de acordo com a
constituição vigente, “dentro dos limites da lei”. (...).
21
Em outras palavras, as medidas arbitrárias são justificadas na salvaguarda, ou
melhor, na reconstrução da nação. Reconstrução esta que deveria ser centralizada no
poder Executivo, pois só ele teria condições de empreender tal tarefa.
Quanto ao Legislativo, O Estado de São Paulo, crítico da sua preservação, a
princípio, afirmara que, já que o governo o mantivera, teria que respeitar a sua
autonomia e a sua independência. Entretanto, via no recrudescimento da crise um
risco aos fundamentos do regime e, particularmente, ao próximo governo. Diante
deste temor, mesmo tendo estado inicialmente contra a ação do governo, de modo
semelhante ao que aparece nos discursos de Castelo, pregava que o processo
“revolucionário” deveria ser dirigido pelo Executivo. Passou, então, a defender as
cassações afirmando que elas só não caberiam em um regime de normalidade
democrática, o que não seria o nosso caso. Como partidário de um regime mais duro,
defendeu o fechamento do Congresso como única solução para a crise. Portanto,
continuava a se apresentar como opositor do Governo, mas dirigia-se aos seus leitores
defendendo o regime, que, julgava, voltaria ao “leito natural” com o governo Costa e
Silva.
Para O Estado de São Paulo, o governo errara ao não dissolver o Congresso
logo após o golpe, tentando fazer dele um instrumento de seus desígnios. Em
conseqüência, aos poucos, o Congresso teria se tornado um grande entrave.
Estabelecia-se, assim, a crise entre os dois Poderes, que foi potencializada com o ato
21
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 112-113.
212
de rebeldia dos presidentes da Câmara de Deputados e do Senado, que se recusaram a
aceitar a cassação do mandato dos seis deputados. Para O Estado de São Paulo, assim
como para a facção mais dura do regime, seria interessante uma “limpeza” ampla do
país visando este futuro “democrático”. No entanto, embora não tenha optado por
esta medida mais “ampla”, o governo Castelo usou meios arbitrários para atingir esses
mesmos fins. Justificava-os, como sempre, na defesa da nação e da democracia.
Eurico de Lima Figueiredo afirma que na mensagem do presidente Castelo Branco,
[Os] meios (processos institucionais entre os quais os Atos são os mais
vigorosos instrumentos (...)) possibilitam a execução de fins (preservação
da democracia e, em sentido amplo, do próprio Movimento revolucionário
(...). Todavia, meios e fins articulam-se de maneira determinada, isto é,
implicando na “percepção” de uma outra categoria que não está
evidentemente, mas que é apenas dada a observação através de sua
conotação. Exponho melhor: a democracia (categoria expressa na própria
“face” da mensagem) depende, para sua atualização, da capacidade
mediadora do seu contrário, isto é, da não-democracia (os “Atos
Institucionais”). Então, o que se quer dizer, é que a democracia (já
devidamente conceituada com o controle (não exatamente civil) do poder
através de instituições representativas e da manutenção da liberdade
pública, depende, como requisito lógico, da sua própria negação. Ora,
como a democracia, nesta construção ideológica, está definida como meta
do futuro, está conceituada idealmente (...), o discurso “resolve” a oposição
democracia – processos institucionais, ocultando conotativamente, a
definição em aberto, da não-democracia, que apenas pode ser inferida. O
que aparece, mais nitidamente, é uma relação de compatibilidade entre a
vigência de processos institucionais e da democracia num regime que, se já
não é democrático aqui e agora, o será certamente no futuro. Neste
contexto não aflora nunca a relação de contradição nem, o que é mais
importante na arquitetura ideológica do discurso, a relação de dependência:
a democracia depende do arbítrio, dado pelo voluntarismo (necessariamente
autoritário) de uma elite que tem o poder de definir, a priori, as condições
de vigência da sociedade democrática.
22
De modo geral, independentemente do posicionamento com relação ao governo,
a análise dos editoriais dos três jornais indica que, quando é feita a defesa das atitudes
arbitrárias do regime, isto se faz com base na idéia de que elas visariam a salvaguarda
da nação e o estabelecimento de um regime de plenitude democrática em um futuro
luminoso, embora impreciso. Sugere, também, que alguns parlamentares, ainda que
de modo débil, procuraram preservar o pouco de autonomia que o Legislativo ainda
213
possuía. No mais, o governo teria mantido a sua política de preservação do
Congresso e, mesmo diante da crise, teria procurado uma fórmula conciliatória, no
intuito de demover os presidentes da Câmara e do Senado e evitar o recesso.
Fracassou.
A cassação de seis deputados federais, em 12 de outubro de 1966, levou o
conflito entre os dois poderes ao seu clímax até aquele momento. Castelo havia
garantido a Adauto Lúcio Cardoso, presidente da Câmara, e a membros da ARENA,
que não haveria cassações
23
, mas, dando o dito por não-dito, fez uso de seus poderes
arbitrários.
A ARENA rebelou-se, e Adauto Lúcio Cardoso recusou-se a reconhecer as
cassações
24
. Num ato de confronto, convidou os deputados cassados a continuarem a
participar dos trabalhos e a exercerem as suas funções na Câmara, dando-lhes
oportunidade de defesa no plenário. Em resposta, em 20 de outubro de 1966, Castelo
decretou o Ato Complementar n.º 23, colocando o Congresso em recesso até uma
semana após as eleições. Para assegurar o cumprimento da medida, o aviso do
recesso foi levado ao Congresso pela polícia do Exército. Mais uma vez, o governo
fez uso de uma medida autoritária para impor a sua vontade. Todavia, manteve a
retórica da defesa da democracia. Como afirma Maria Helena Moreira Alves,
22
Idem, p. 74-75.
23
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 102. A esse respeito, o jornalista Carlos Castello Branco afirmou
em sua coluna que: “Ainda na véspera, indagado sobre os rumores de que seriam cassados os
Deputados Ranieri Mazzilli, Doutel de Andrade e César Prieto (os dois últimos efetivamente punidos
ontem), o Presidente da Câmara, Sr. Adauto Cardoso, repetiu a afirmativa que vinha fazendo de sua
cátedra presidencial, proclamando, uma vez mais, que não haveria cassação alguma.” BRANCO,
Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. 1, p. 579. Nota publicada originalmente em sua
coluna, “Coluna do Castello”, no Jornal do Brasil, em 13 de outubro de 1966.
24
Para Carlos Castello Branco, a atitude do presidente da Câmara e membro da ARENA, deputado
Adauto Lúcio Cardoso, só encontrou eco na oposição. Segundo o jornalista, “O Deputado Adauto
Cardoso, que procurava encarnar o Poder civil, viu-se isolado desde o princípio dentro do Partido do
Governo. Decepcionou-se, esteve um instante inclinado a renunciar a seu cargo [o que depois acabou
ocorrendo], mas buscou alento na força da instituição debilitada e na convicção íntima, por várias vezes
manifestada, de que a Revolução não pode prescindir do Congresso. Afirmou-se em sua posição,
apesar do apoio unilateral, e por isso oneroso, da oposição, numa tentativa de levantar, mesmo contra a
fraqueza ostensiva de sua área, a ‘supremacia do Poder civil’.” BRANCO, Carlos Castello. Os
Militares no Poder. op. cit., vol. 1, p. 586. Artigo originalmente publicado em sua coluna, “Coluna do
Castello”, no Jornal do Brasil, em 21 de outubro de 1966.
214
A crise [entre os Executivo e o Legislativo] levou a novas lutas internas
no Estado de Segurança Nacional. Os setores de linha-dura insistiram em
novos expurgos, e na punição exemplar dos desobedientes. Pela segunda
vez em sua curta permanência no cargo, Castelo Branco viu-se forçado a
ceder; no dia 20 de outubro de 1966, o Executivo baixou o Ato
Complementar N.º 23, fechando o Congresso Nacional por um mês.
Durante o recesso forçado, o presidente poderia legislar. É significativo
que mais vez o preâmbulo do ato complementar justificasse um gesto de
coerção com a linguagem da democracia:
“Considerando (...) que se constituiu (...) naquela casa do Congresso
Nacional (...) um agrupamento de elementos contra-revolucionários com a
finalidade de tumultuar a paz pública e perturbar o próximo pleito de 15 de
novembro, embora comprometendo o prestígio e a autoridade do próprio
Poder Legislativo, resolve [o Presidente da República] baixar o seguinte ato
complementar.”
25
Como indica a autora, mantendo a política híbrida e diante da necessidade de
preservar a unidade institucional, Castelo Branco se viu forçado, mais uma vez, a
ceder à pressão dos “duros”, pondo o Congresso em recesso, porém não o dissolveu.
Para Luís Viana Filho, Castelo sempre manteve uma política de defesa do Legislativo.
Se naquele momento ele o colocou em recesso, isto teria ocorrido em função do erro
de avaliação de Adauto Lúcio Cardoso quanto às conseqüências do seu ato de
resistência à cassação dos seis deputados solicitada pelo governo
26
. Segundo Viana,
(...). Desde o início da Revolução, Castelo defendera o Congresso
intransigentemente, pois muitos o haviam desejado fechar. Agora, ele
deparava a contingência de colocá-lo em recesso, na forma da legislação.
Era inclusive a maneira de evitar que o agravamento da crise levasse a um
mal maior, a dissolução do Congresso. (...).
27
Apesar de justificar o fechamento temporário do Legislativo como a forma de
preservá-lo, não se esconde o caráter arbitrário da medida. Porém, apesar desta
atitude se chocar com a retórica de preservação de instituições democráticas, ela não
desaparecia. Como se percebe através do fragmento do Ato Complementar n.º 23, a
retórica da defesa de democracia permanecia. Vincular tal ato arbitrário a este fim é
25
ALVES, M.ª Helena. op. cit., p. 103. Citação de fragmento do Ato Complementar n.º 23 extraído do
corpo do texto. As supressões são da própria autora.
26
VIANA F.º, Luís. O Governo Castelo Branco. op. cit., tomo II, p. 467.
27
Idem, p. 466.
215
que se torna cada vez mais difícil. A análise dos editoriais que envolvem esta questão
indicam essa dificuldade.
288. (...). A fórmula do recesso temporário, única via encontrada pelo
Presidente da República para preservar a intangibilidade do poder
revolucionário, está longe de ter dissipado a nuvem de apreensões que
cobriu o País nesta última semana. (...). O decreto do recesso não abre
perspectivas, nem oxigena o ambiente político nacional. No máximo,
encerra fisicamente um episódio, sem impedir-lhe as projeções políticas e
morais, que continuarão fermentando o caldo de cultura do impasse
institucional a que chegamos. (Jornal do Brasil, 21 de outubro de 1966, p.
6, tít.: Círculo de Equívocos)
289. Congresso fechado, ainda que a prazo certo e curto, significa
descaracterização fundamental da nova estrutura democrática que se
pretendeu fundar neste País, dentro de concepções regeneradoras e
reformistas. (...). (Jornal do Brasil, 21 de outubro de 1966, p. 6, tít.:
Círculo de Equívocos)
290. O clima é, pois, de encerramento oficial da crise. Com a mesma mão
do arbítrio o Governo abriu-a e o Governo encerrou-a. A operação militar
que fechou o Congresso refluiu para os quartéis e poderá repetir-se toda vez
que for oportuna – até quando? A técnica do golpe de estado permanente, a
serviço de um maniqueísmo que inspira os intermináveis acessos de
expurgos, dificilmente deixará de contaminar a concepção do novo regime,
(...). O Presidente da República revelou que não se deterá na sua decisão de
recorrer ao arbítrio para purificar o futuro regime democrático, que pode
não estar ainda perfeitamente configurado, mas já tem data marcada para
começar – 15 de março de 1967. Veremos. (Jornal do Brasil, 23-24 de
outubro de 1966, p. 6, tít.: Porta Estreita)
28
291. Depois de decretado o recesso parlamentar, os Presidentes das duas
Casas do Congresso Nacional não se dispuseram, ao que se sabe, a rever a
posição que assumiram, como decorrência das responsabilidades que lhes
tocam e na defesa das prerrogativas do Legislativo.
Quanto ao Sr. Adauto Cardoso, (...), tudo indica que, uma vez terminado o
recesso (...), voltará a insistir na mesma doutrina que justificou o ato
arbitrário do Executivo. O Presidente da Câmara, com efeito, (...), apelará
para o recurso que lhe faculta o Regimento e remeterá a questão das
cassações à consideração do plenário, com vistas a uma homologação que o
Executivo tem na conta de desafio à Revolução. Nesta hipótese, teremos
um segundo lance da mesma crise e nada autoriza supor que o Governo
possa enfrentá-la sem outra vez recorrer ao arbítrio do Ato Institucional n
2. (Jornal do Brasil, 26 de outubro de 1966, p. 6, tít.: Emergência e
Normalidade)
292. Parece amainada a tempestade. Nossos votos são para que a
tranqüilidade seja restituída ao País. Não é só o fato de encontramo-nos às
vésperas de eleições parlamentares que recomenda a restauração de um
clima de ordem nos espíritos, para que a escolha de 15 de novembro se faça
livre das marcas do emocionalismo. (...).
(...)
28
Grifo no original.
216
Porque desejamos sincera e ardentemente que a grave crise que se esboçou
esteja definitivamente superada, poupamo-nos da tentação de esmiuçar-lhe
as origens, acusando pessoas e dimensionando responsabilidades. Já que a
ultrapassamos, não a revolvamos. Uma das maneiras mais eficientes que o
homem tem de não ver fechadas as cicatrizes abertas pela luta política é
justamente esta: esmerilhá-las. (...). (O Globo, 21 de outubro de 1966, p. 1,
tít.: O Único Imprevisível)
293. (...). O tão cantado poder civil, de que o Congresso seria depositário
(...) não passa hoje de uma ficção. A própria indiferença com que a opinião
pública tomou conhecimento do desfecho da “crise” vale por uma
demonstração de que os senhores deputados e senadores se representavam
apenas a si mesmos e aos seus pequeninos interesses, não havendo entre
eles e a sociedade civil o menor vínculo. (...). O País só tinha um
sentimento em relação ao chamado Legislativo: desprezo! (...). A verdade
é que o Congresso inexistia como poder da República. Era um simples
instrumento de manobra que vinha arrastando uma existência precária e
humilhante ao sabor das necessidades da estratégia presidencial. (O Estado
de São Paulo, 22 de outubro de 1966, p. 3, tít.: A falência do poder civil)
294. (...) não representa o ato complementar n.º 23, de maneira nenhuma, a
solução definitiva da gravíssima questão em todos os seus aspectos
políticos e jurídicos, pois está ela pronta a renascer com a virulência própria
de todas as recaídas tão logo finde a quarentena imposta por aquela medida
governamental (...). (O Estado de São Paulo, 23 de outubro de 1966, p. 3,
tít.: Continuamos na mesma)
A análise das seqüências discursivas acima evidencia a oposição do Jornal do
Brasil às opções do governo e a sua descrença quanto aos objetivos de normalização
institucional. Considera que o fechamento do Congresso seria um passo em direção
contrária à realização dessas metas. A opinião do jornal era a de que a colaboração do
Congresso seria indispensável para a normalização política. Entretanto, não via como
isso seria possível naquelas condições. Como o governo havia optado pelo arbítrio –
a crise teria sido iniciada assim, com as cassações, e encerrada do mesmo modo, com
o recesso –, concluía que, sempre que considerasse necessário e sempre que a
resistência do Congresso se transformasse em um obstáculo, o Executivo voltaria a
usar seus poderes discricionários.
A posição do Jornal do Brasil é, portanto, de desânimo. Parecia resignar-se
com o fato de que o governo seguia em direção contrária ao objetivo declarado de
normalização político-institucional. Pior: nada indicava que com a posse de Costa e
Silva as coisas mudariam. Por outro lado, mantinha um discurso de defesa dos
217
princípios democráticos. Nesse sentido, a mensagem do jornal sugere que ele ainda
apresentava a crença na continuidade da resistência do Legislativo. Chegava-se a uma
situação de impasse institucional que não seria solucionada através do fechamento
temporário do Congresso.
O Globo toma a crise entre os Poderes por encerrada com o fechamento do
Congresso. Diante de tão delicada questão, mais uma vez, esquiva-se de discuti-la.
Sustenta que pior seria esmiuçar-lhe as causas. O que era importante é que,
supostamente, o país havia retornado a um clima de paz, indispensável ao
cumprimento racional das eleições legislativas. O resto deveria ser deixado para trás.
A posição d’O Globo é típica de um partidário incondicional. A atitude do
governo não é questionada e, além disto, tenta justificá-la como uma necessidade à
execução de um rito democrático. Mas faz isto de modo breve. Deter-se sobre esta
questão levaria, possivelmente, à negação de tal conclusão, e não era isto que ele
gostaria de passar para o seu auditório. Como “meta-sistema perito” partidário do
governo, precisava firmar a sua eficiência política e administrativa, e não o contrário.
Exemplo da proximidade entre o ponto de vista d’O Globo e o do regime é a
própria nota divulgada pelo presidente Castelo Branco na qual ele justifica a opção
por colocar o Congresso em recesso como uma forma de normalizar a vida deste
Poder. Diz a nota:
A entrada do Congresso Nacional em recesso (...) obedece exclusivamente
à defesa dos objetivos revolucionários em geral e, em particular, à salvaguarda
do papel da Câmara e do Senado. O Governo tudo fez para contornar a
situação criada na Câmara, limitar os seus efeitos, e encontrar uma solução
capaz de normalizar a vida do legislativo. Tomaram os perturbadores a nossa
serena e prolongada atitude conciliatória como fraqueza do Poder Executivo e
desfalecimento revolucionário. Aí vimos, então, que o objetivo não era outro
senão o de somente solapar a ordem e desviar os rumos da própria Revolução.
Não só o Governo viu, mas também a Nação. Não estava havendo sessões na
Câmara. Realizavam-se apenas reuniões de uma parte da oposição, que se
obstina em empolgar o Congresso pelos processos mais condenáveis, que
atingem o próprio decoro do Congresso.
29
29
Citado por: VIANA F.º. Luís. op. cit., p. 467.
218
Reafirmando as suas previsões anteriores, O Estado de São Paulo sustenta que o
recesso do Congresso era inevitável. Diante da crise que ameaçava a sua autoridade,
seria esta a única opção que restaria a Castelo Branco. Portanto, apóia a posição do
governo por ser idêntica à sua, e, de acordo com a sua afirmação, à da “opinião
pública” também.
Contudo, ao mostrar-se favorável àquela tese, O Estado de São Paulo em
nenhum momento parece mudar seu posicionamento de crítica ao governo. Não
acreditava que a opção do recesso temporário solucionasse definitivamente a questão,
face à decisão de fixar prazo para o retorno dos trabalhos legislativos. Sua opinião era
de que a opção adotada seria mais uma prova de que Castelo Branco continuava na
trilha das soluções menos radicais, que o jornal considerava inadequadas. Apesar de
afirmar não ser contrário à instituição Poder Legislativo, e, em tese, concordar com
sua independência, para O Estado de São Paulo o Parlamento brasileiro estava
desvinculado da vontade da sociedade civil e servia, apenas, de instrumento nas mãos
do governo. Desse modo, a solução adequada seria a sua dissolução.
No entanto, a posição d’O Estado de São Paulo indica que, apesar de sua
contrariedade, Castelo Branco insistia na dualidade de sua política: punha o
Congresso em recesso, mas preservava a instituição.
A preservação do Legislativo não era uma atitude gratuita. A legitimidade do
governo estava em franco descenso e suas atitudes arbitrárias não eram bem vistas por
setores da sociedade, inclusive para alguns grupos que tinham apoiado a
“Revolução”
30
. Eliminar de vez o Legislativo só iria acentuar o conflito entre os
Poderes e reduzir ainda mais a sua legitimidade. Além disto, a facção militar no
poder tinha consciência da inviabilidade de assentar o seu domínio exclusivamente no
uso da força. Tal opção não seria capaz de manter a legitimidade do regime e a
219
estabilidade do Estado. Para atingir estes objetivos, era preciso preservar certos
princípios e instituições democráticas. Mas, conforme Maria Helena Moreira Alves
31
,
o uso freqüente de mecanismos de controle político e de força física levou a uma
defasagem entre a linguagem de legitimação através da democracia e a realidade
opressiva. A crise que resultou dessa contradição acabou por minar a estabilidade do
Estado, corroendo-lhe, progressivamente, a legitimidade.
Dentro da lógica da preservação de instituições democráticas, o regime militar
brasileiro manteve o Legislativo em funcionamento, tolerando a sua “autonomia”,
ainda que relegando-o a uma posição secundária e esvaziada, enquanto ele não
perturbou a elite governante. Nos momentos em que ele se apresentou como um
obstáculo às diretrizes governamentais, sua “autonomia” foi atropelada. Ainda assim,
em nenhum momento o regime optou pela eliminação absoluta da instituição.
Quando do recesso do Congresso, em fins de 1966, ocorreu o mesmo. O prazo de
fechamento foi curto, e, logo, ele foi chamado para legitimar a nova Constituição.
Dizer, no entanto, que o Legislativo foi apenas um instrumento a serviço do
Executivo para suprir a sua necessidade de legitimação é errado. Sim, serviu a isto.
O governo acreditava neste fato e, por esta razão, o manteve. Os homens no poder
compartilhavam da crença de que um dos pilares básicos de um Estado de democracia
representativa e de tradição democrático-liberal é o Poder Legislativo, órgão
composto por membros eleitos pelo povo, para tomar decisões em seu nome. Por
isso, não podiam simplesmente eliminá-lo. Precisavam manter este órgão
representativo dos grupos sociais em funcionamento, mesmo que limitado e com suas
atribuições reduzidas, para que estes representantes, ao negociarem/fiscalizarem o
regime, legitimassem a sua ação. Mas, para isto, tiveram que preservar-lhes certa
30
De acordo com o jornalista Carlos Castello Branco, a atitude “romântica” de Adauto Lúcio Cardoso,
ao resistir à cassação dos seis deputados, teria um efeito concreto: “alertar o Governo para o seu
escasso rendimento político”. Cf. BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., p. 594.
31
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 28.
220
margem de manobra, e, com base nela, o Parlamento, ou melhor, alguns
parlamentares, inclusive da base do governo, procuraram resistir.
O governo esperava que, com as cassações, o Congresso se resignasse a
colaborar. Não se supunha que ele, com a pequena margem de manobra que possuía,
apresentasse novos obstáculos à “Revolução”. Mas esta não era a posição dos jornais.
O Estado de São Paulo considerava que, reaberto o Congresso, o conflito
recomeçaria. O Jornal do Brasil também acreditava que o Legislativo voltaria a
resistir. Estas análises sugerem que o governo ainda contava com a legitimidade que
o Legislativo podia lhe conferir, e indicam a crença de que o Parlamento procuraria se
manter ativo.
Em face desta análise, pode-se elaborar um único quadro de síntese que englobe
as discussões sobre a cassação dos mandatos dos deputados federais e o recesso do
Congresso:
QUADRO DE SÍNTESE 2
JB OG OESP
Cassação de Deputados Contrário Favorável Contrário / Favorável
Recesso do Congresso Contrário Favorável Favorável
Regime militar Crítico Favorável Favorável
Preservação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Favorável o menciona Favorável / Contrário
Nota-se que a posição dos jornais fica praticamente definida a partir desse
momento. O Globo mantinha-se fiel à sua opinião e ao governo. O Jornal do Brasil
toma a posição de opositor, a ser acentuada com a opção do governo de, mais uma
vez, ceder aos “duros” e por o Congresso em recesso. O Estado de São Paulo
criticava a insistência de Castelo em preservar determinados princípios democráticos
221
que, em sua opinião, seriam entraves ao estabelecimento da nova ordem, representada
pelo regime e apoiada pelo jornal.
A análise restrita ao quadro poderia levar à suposição de que a posição do
Jornal do Brasil e d’O Estado de São Paulo são semelhantes no que se refere à crença
na resistência do Legislativo ao governo. Mas, na realidade, são pólos absolutamente
opostos. O primeiro acreditava nessa resistência porque queria que ela realmente
existisse, defendia a idéia de que este era o caminho para a normalização democrática.
O segundo, acreditava porque via no Congresso uma força ligada ao atraso. Seriam
os anti-revolucionários querendo destruir a “Revolução”.
Há uma particularidade com relação à opinião d’O Estado de São Paulo: ela
varia. Com o desenrolar dos acontecimentos este jornal revê a sua análise quanto à
cassação dos deputados, e, mesmo sendo um opositor da política de Castelo Branco,
quando tem que se decidir entre o Legislativo e o Executivo, opta por este.
Em síntese, a análise dos editoriais revela a dissolução definitiva do “sujeito
coletivo” que englobava todo “o Brasil” e cuja vontade era representada pelos “ideais
revolucionários”. Ele já não existe. Ou melhor, é diverso. Assim, para uns “a
vontade da nação” pode ser totalmente identificada à “vontade revolucionária”. Para
outros, elas tornam-se antagônicas. Há ainda aqueles que associam aquela aos “ideais
revolucionários originais”, e não aos que o governo Castelo Branco representava.
Como “porta-vozes da história”, cada jornal conta uma “história” diferente para o seu
auditório.
Com o fim do recesso, o protesto de Adauto Lúcio Cardoso foi rejeitado,
cassando-se definitivamente os deputados. Como último ato da crise, Adauto
renunciou à presidência da Câmara. Antes do fim do recesso parlamentar, porém, nas
eleições legislativas, a ARENA conquistou a maioria das cadeiras no Congresso. O
MDB não teve como se sobrepor ao partido oficial.
222
Como a legislatura estava limitada, e sendo o MDB a oposição “oficial”, o
partido não possuía credibilidade nem representatividade junto a vários grupos de
oposição da sociedade civil. Desse modo, esses grupos procuraram marcar posição
através da campanha do voto nulo, liderada por estudantes ligados à Ação Popular e
comprometidos com a luta armada
32
. Diante desta conjuntura, como não podia deixar
de ser, a ARENA venceu as eleições legislativas de 1966, mas, o grande o número de
votos brancos e nulos foi significativo da contrariedade de determinados grupos
sociais quanto aos rumos do regime. Ainda assim, a maioria feita pela ARENA foi
legitimada pelas eleições.
As discussões presentes nos editoriais apontam essa busca do governo de
legitimidade através pleito.
295. (...). As eleições que se vão realizar a 15 de novembro hão de ser
entendidas não propriamente como uma concessão, ou como uma
disposição de normalizar politicamente o País, mas, sim, como uma peça do
esquema revolucionário. (...). (Jornal do Brasil, 14 de outubro de 1966, p.
6, tít.: Conflito e Definição)
296. Vem aí um novo Congresso e com ele se oferece a oportunidade de
melhorar a imagem do Legislativo, cujo funcionamento se ressentiu de
práticas que apenas serviram para diminuir sua importância política e
empanaram o julgamento de sua eficiência. Incumbe ao novo Congresso
restaurar o conceito de prestígio, que lhe deve ser inerente como Poder, e o
sentido alto de vida pública, pelo qual devem pautar-se os representantes do
povo. (Jornal do Brasil, 16 de novembro de 1966, p. 6, tít.: Imagem do
Congresso)
297. Sem embargo das cassações e das impugnações, que reduziram o
caráter democrático do pleito, o povo teve anteontem a ocasião de exercer
um ato de vontade sem desconhecimento de causa, isto é, informado da
natureza do regime e das intenções do Governo. Ao escolher o seu Partido
e o seu candidato, o eleitor fez-se representar desta feita com mandato
muito mais amplo e mais responsável do que seria normal. Só esta
característica bastaria para revestir as eleições legislativas de uma
importância transcendente, por mais que alguns interesses em jogo
procurem amesquinhar-lhe o sentido, dando prioridade à questão da forma
sobre a questão da essência. (Jornal do Brasil, 17 de novembro de 1966, p.
6, tít.: Depois da Eleição)
298. Em benefício do conceito elevado que deve preservar, como
assembléia representativa da vontade popular, tanto a parcela renovada
como os distinguidos com nova prova de confiança, estão no dever de
32
CF. ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 104.
223
preservar a independência do Poder Legislativo, através do novo
comportamento em suas relações com o Executivo. (...). (Jornal do Brasil,
25 de novembro de 1966, p. 6, tít.: Novo Congresso)
299. (...). Atingiram-no [o Congresso] todos os impactos da crise herdada
da renúncia de Jânio Quadros e levada ao paroxismo por João Goulart. E
apesar de tudo, a instituição resistiu, mantendo-se como expressão do corpo
político nacional, como último reduto do Poder Civil. Pressões, cassações,
recesso, cerco militar, campanhas de descrédito – nada conseguiu matar a
entidade democrática, que hoje chega ao fim do itinerário com poderes
reduzidos e desfalcada da algumas dezenas de seus representantes originais,
mas de qualquer maneira, conservando viva a sua substância institucional.
(...). Feita inclusive para resguardar o Poder Legislativo das ameaças de
supressão que sobre ele pairavam, a Revolução de março preferiu a melhor
alternativa quando aceitou a sobrevivência do Congresso e o absorveu
como instrumento de colaboração da nova ordem política instaurada no País
sob compromissos de redemocratização a curto prazo. (...). Não se diga
que ele se limitou a homologar a vontade política e legislativa do Poder
militar instalado: reconheça-se que o Congresso funcionou também como
órgão amortecedor da crise, reduzindo de certa maneira os efeitos
discricionários da atuação governamental e das forças que operavam nas
sombras da Revolução. (Jornal do Brasil, 30 de novembro de 1966, p. 6,
tít.: Missão do Congresso)
300. (...). A aceleração do processo legiferante é impositiva e o próprio
Congresso, para não perder o passo, trata de modernizar-se, em todas as
sociedades democráticas, inclusive limitando a iniciativa parlamentar. (...).
No plano prático, o Congresso sai ganhando, porque se dinamiza e não mais
arca com a responsabilidade de retardar a ação do Estado. Em
compensação, outras funções aguardam um novo conceito de Legislativo,
com novas competências, a começar pelo controle da Administração
Pública, em termos eficazes. (...). (Jornal do Brasil, 4 - 5 de dezembro de
1966, p. 6, tít.: Renovação do Congresso)
301. (...). O novo Congresso não deve a sua legitimação ao movimento de
março (...). Neste sentido, os parlamentares eleitos a 15 de novembro
último se acham estreitamente vinculados ao espírito e às responsabilidades
do mandato popular que receberam (...). (Jornal do Brasil, 2 de fevereiro de
1967, p. 6, tít.: A Travessia)
302. Dentro de dez dias o povo brasileiro estará sendo chamado a exercer o
direito de escolha de seus representantes no Congresso Nacional e nas
Assembléias Estaduais. O Governo confere, destarte, ao País a
oportunidade de afirmação da soberania popular. (...)
(...) A renovação do Poder Legislativo vai operar-se num clima de
expectativa de renovação também de nossa vida pública. Nenhuma escolha
de candidato deverá fugir ao atendimento desse imperativo, para que não se
frustrem as possibilidades de ingressarmos numa fase política de progresso
efetivo. Pesa sobre o Brasil a fatalidade de voltar-se para o futuro. (O
Globo, 5 de novembro de 1966, p. 3, tít.: Consciência em Xeque)
303. (...). E agora, quando o momento se aproxima da reconstituição,
mercê de novo pleito eleitoral, das bancadas parlamentares, só os homens
irremediavelmente ingênuos podem ainda acreditar em melhorias neste
224
campo fundamental do regime democrático. (O Estado de São Paulo, 4 de
outubro de 1966, p. 3, tít.: Outra candidatura edificante)
304. O que está passando no Congresso nos primeiros dias da nova
legislatura é, de resto, um aviso de que muitas e amargas surpresas estão
reservadas ao sr. marechal Castelo Branco. Embora apenas parcial, a
renovação do Parlamento produz os seus primeiros frutos. Velhos e novos
mostram-se aliás igualmente descontentes com “o sistema” existente,
engendrado pelo sr. presidente da República e responsável pelo completo
desprestígio do Legislativo. (...). (O Estado de São Paulo, 2 de fevereiro de
1967, p. 3, tít.: Horizonte de esperança)
Observa-se que, em face do quadro político vivido, para o Jornal do Brasil, as
eleições legislativas não seriam capazes de conduzir à plena normalização política,
como antes se previa. Restringidas, face às prerrogativas assumidas pelo governo,
figurariam apenas como uma peça no esquema de poder, que objetivava perpetuar-se.
Apesar disto, o Jornal do Brasil parece retornar à posição expressada logo após a
eleição de Costa e Silva pelo Congresso, que era próxima da d’O Globo.
As suas críticas ao regime são amenizadas, e seu discurso volta-se para a
análise das perspectivas que surgiam. Assim, não desmerece, de todo, as eleições, e
afirma a sua extrema importância. Denota que o povo conhecia os limites do pleito, a
natureza do regime e as intenções do governo, e que, portanto, havia expressado a sua
vontade consciente da conjuntura que o cercava.
Quanto à preservação do Legislativo, o Jornal do Brasil permanecia firme em
sua defesa. Para ele, o antigo Congresso teria perdido o prestígio através de práticas
que o desonraram, e, resguardado pela “Revolução”, tivera que submeter-se aos seus
desígnios. Contudo, frisa que sua preservação fora a melhor opção, o que se
confirmava pela colaboração, por ele prestada, na instauração da nova ordem política.
Essa colaboração, porém, não significava uma simples homologação das iniciativas
do governo. Para o Jornal do Brasil, o Legislativo conseguira reduzir os efeitos
discricionários dessas iniciativas, e, preservando a sua substância institucional, havia
se mantido como último reduto do poder civil.
225
O Congresso eleito teria uma representatividade maior, já que fora sagrado pela
vontade popular e, não mais, “legitimado” pela “Revolução”, como constava da
redação do AI-1, no caso, com relação ao Congresso vigente em abril de 1964. Seu
papel seria o de restaurar o prestígio perdido pela instituição, de modo a preservar-lhe
a independência, e dotá-la de um novo comportamento em suas relações com o
Executivo. No entanto, apesar de defender as atribuições do Legislativo, expõe que o
aumento do poder do Executivo seria uma lógica do Estado Moderno. Nesse sentido,
o Legislativo precisava se reformar, limitando a iniciativa parlamentar e passando a se
dedicar ao controle da administração pública. Ainda assim, mesmo no exercício
dessas novas funções o Congresso foi submetido a restrições. Para Lúcia Klein,
(...) é inviável o funcionamento efetivo das instituições políticas herdadas
do sistema de dominação anterior na ausência de um quadro normativo que
assegure a especificidade e a autonomia no exercício das funções que lhe
são atribuídas formalmente. A vigência da nova legalidade pressiona, pela
modificação do papel desempenhado por aquelas instituições, não lhes
deixando outra alternativa a não ser a de tentar forjar novos papéis que,
ainda assim, são exercidos a níveis de eficiência que deixam a desejar.
33
Com o desenrolar dos acontecimentos, principalmente com a edição do AI-5, foi
possível perceber os limites impostos ao Congresso no exercício de suas “novas”
funções. Porém, a análise dos editoriais sugere que, tendo como pano de fundo a
renovação do Parlamento e “tocado” pelo “simbolismo” de que eleições representam
o momento máximo de um regime democrático, o Jornal do Brasil parecia voltar a
acreditar que, passado o “surto repressivo”, com a nova legislatura e o novo governo,
o país retornaria ao caminho da normalização político-institucional.
O Globo, por sua vez, amenizado o clima de tensão, já que o recesso era uma
realidade, não se exime de discutir a questão das eleições, embora ainda o faça de
modo esporádico e breve. De qualquer maneira, seu discurso é construído justamente
tentando vincular a realização das eleições legislativas a princípios democráticos, por
sua vez associados ao regime. Por isso, afirma que o pleito marcaria um rompimento
226
com os vícios da vida pública passada. Contudo, para que isto realmente ocorresse, o
povo deveria estar atento à escolha dos seus representantes, que, afinal, exerceriam a
função de elaborar leis e propor soluções aos problemas do Brasil. E esta escolha
“democrática” seria a forma pela qual o governo havia concedido ao País a
oportunidade de firmar a sua soberania popular.
O Estado de São Paulo, opositor obstinado do governo Castelo Branco,
considera que as eleições não conseguiriam realizar o que deveria ser o seu maior
papel: a melhoria da composição política do Legislativo. Portanto, por ter sido
mantida grande parte dos membros do Parlamento anterior, o jornal indicava que iria
se opor ao futuro Legislativo. No entanto, deixa transparecer a crença de que o novo
Congresso Nacional não seria tão passivo em sua relação institucional com o governo,
e, já nos seus primeiros dias, dava mostras de que estaria tentando reaver o seu
prestígio, que fora diminuído por meio do sistema engendrado pelo governo.
De modo geral, é observável na análise dos editoriais que a democracia
continuava como a formação discursiva dominante. Apesar de fazerem associações
“diferentes” (o Jornal do Brasil a associava à preservação do Congresso, O Globo, às
ações do regime e O Estado de São Paulo aos objetivos “originais” da “Revolução”),
em todos há a tentativa de envolver o seu auditório na tese de que a opinião
apresentada e defendida representava a real interpretação do que seria a “democracia
ideal”.
Percebe-se, ainda, pela análise dos editoriais, que havia uma crença por parte do
governo de que a realização das eleições legislativas e a preservação do Legislativo
lhe confeririam legitimidade. A restrição do pleito e das atribuições do Congresso
não eliminariam este fato. As eleições continuavam a ser vinculadas ao preceito
democrático da escolha dos representantes do povo através da sua própria vontade, e o
Congresso, aperfeiçoado em suas funções, deveria representar esta vontade.
33
KLEIN, Lúcia. op. cit., p. 42
227
Percepção semelhante é notável nos discursos do presidente Castelo Branco. De
acordo com Eurico de Lima Figueiredo, um dos objetivos da intervenção militar de
março de 1964, segundo o discurso castelista foi o
(...) aperfeiçoamento das instituições políticas (o que a mensagem conota
aqui é o aspecto a um só tempo conciliador e conservador do movimento
que, ao nível ideológico, não pretendia a ruptura com o sistema legal
vigente, mas o seu “aperfeiçoamento”) (...).
34
Além destas questões, nota-se que o Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo
continuavam a esperar que o Parlamento eleito fosse lutar por uma autonomia maior
em sua relação com o Executivo. Nessa tentativa de reaver o seu prestígio, de firmar
a sua autonomia, surgiriam novos conflitos entre os poderes. O ápice desse conflito
resultaria na edição do AI-5. Apesar de, a cada novo embate com o Executivo, o
Legislativo ser seguidamente atingido pelo arbítrio do governo, creio que isto indica
que ele não serviu de mero instrumento aos interesses dos donos do poder. Na
medida do possível, os parlamentares insatisfeitos com as medidas autoritárias do
regime e com o enfraquecimento do Congresso resistiram. Conforme Sérgio
Abranches e Gláucio Ary Dillon Soares,
Em 1964, criou-se uma espécie de “pacto político”, nem sempre
obedecido de bom grado, segundo o qual a Câmara e o Senado não
impunham obstáculos às iniciativas legislativas do Executivo, aprovando os
projetos que lhes fossem enviados. A oposição sempre o combateu,
contestando a própria legitimidade das iniciativas do Executivo.
Entretanto, a maioria governista aceitou o pacto “como meio de
sobrevivência”, embora um número substancial de deputados situacionistas
se opusesse a ele. O pacto foi imposto por processos coercitivos, por meio
dos quais o governo garantiu a aprovação parlamentar das medidas que
propunha. Além disso, o Executivo outorgou-se o papel de legislador
independente, dispondo, para isso, dos decretos-leis. A oposição sempre
contestou a legitimidade deste procedimento, dizendo-o contrário aos
princípios que estabelecem a competência exclusiva do Legislativo em
matéria propriamente legislativa. (...).
35
Elaborando-se um quadro de síntese que contemple as discussões em torno das
eleições legislativas de 1966, tem-se:
34
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 107.
228
QUADRO DE SÍNTESE 3
JB OG OESP
Eleições Legislativas Favorável Favorável Contrário
Novo Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do novo
Legislativo
Relativa --- Relativa
Percebe-se, a partir da análise do quadro acima, que, enquanto os demais jornais
mantinham o seu posicionamento padrão, o Jornal do Brasil parecia retornar a uma
posição de crítica mais amena ao governo. Isto, no entanto, não perdurou. Tão logo o
governo voltou às práticas discricionárias, através da forma como conduziu o
processo de elaboração da nova Constituição, o Jornal do Brasil tornou a intensificar
as suas críticas.
Além da tentativa de legitimação através das eleições legislativas, havia o
problema da institucionalização permanente do Estado de Segurança Nacional. Em
função disto, com um Congresso Nacional, como um todo, e o partido de oposição,
em particular, intimidados pelas cassações, o governo pôde preparar o terreno para a
redação de uma Constituição autoritária, que visava institucionalizar o Estado de
Segurança Nacional. Para a facção “moderada” dos militares, a necessidade de uma
nova Carta se fazia ainda mais premente diante do fim do mandato de Castelo Branco.
O projeto constitucional elaborado
36
, além de tentar resolver o problema da
institucionalização da “Revolução”, era a forma de Castelo Branco procurar forçar
Costa e Silva a seguir um mínimo das diretrizes políticas e econômicas do primeiro
35
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. As Funções do Legislativo. op. cit.,
p. 78-79.
36
De maneira extremamente sucinta, o projeto de nova Constituição tinha como características
centrais: o estabelecimento da eleição indireta para presidente da República; o aumento do controle
pelo governo federal dos gastos públicos, proibindo o Congresso de criar leis que gerassem ou
aumentassem as despesas propostas pelo governo e; a ampliação dos poderes do governo federal para
apuração das infrações contra a segurança nacional.
229
governo da “Revolução” e, assim, manter o regime no caminho da sua política
dualista. Como sustenta Skidmore,
Embora os castelistas tivessem conseguido um vago compromisso de
Costa e Silva com a continuidade política, a probabilidade de ser cumprido
era muito remota. Por isso dedicaram seus últimos meses no governo a
limitar a liberdade de ação do próximo governo tanto na área política como
na econômica. (...).
37
Para tal, achavam necessário incorporar os Atos Institucionais a uma nova
Constituição. Para Fiechter
38
, Castelo Branco pretendia deixar a seu sucessor uma
estrutura política renovada e um quadro legal novo que o forçasse a seguir as
diretrizes da sua política. Face a esta meta, não se limitou a elaborar uma nova
Constituição. Ele foi além. Conforme salienta o autor,
Castello Branco dedica a isso sua energia durante os últimos meses de
seu Governo que, dando a impressão de verdadeira “febre de arrumações”,
promulga, antes de 15 de março de 1967, cerca de 191 decretos e leis, um
ato institucional e 17 atos complementares. Para reforçar ainda a liberdade
de ação de Costa e Silva, ou para melhor o amarrar, limpa de antemão o
terreno, cassando os direitos políticos de 90 pessoas.
39
Mas, na área legislativa, a maior ambição de Castelo era a promulgação de uma
nova Constituição que amarrasse toda a legislação autoritária ao mesmo tempo que
impusesse alguns limites às ações de Costa e Silva.
Desde abril de 1966, uma comissão vinha elaborando o projeto de uma nova
Constituição. Contudo, o que foi entregue em 25 de agosto não correspondeu aos
desejos de Castelo Branco
40
. Insatisfeito, o presidente da República encarregou
Carlos Medeiros da Silva
41
, seu novo Ministro da Justiça, de elaborar um novo texto,
37
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 118.
38
FIECHTER, Georges-André. op. cit., p. 161.
39
Ibidem. Grifo do autor.
40
Ibid.
41
Carlos Medeiros da Silva havia trabalhado como colaborador dos dois governos de Getúlio Vargas e,
também, do governo Juscelino Kubitschek. Em 1937, durante o “Estado Novo”, e no exercício de
Francisco Campos no Ministério da Justiça, foi designado a trabalhar como assistente jurídico do
Ministério. Em 1950, no segundo governo de Vargas, foi nomeado Consultor-geral da República,
cargo que deixou quando do suicídio de Getúlio. Em 1957, foi nomeado por JK Procurador-geral da
República, mas, contrariado por não ter sido lembrado pelo presidente para uma vaga de ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF), deixou o cargo. Com o golpe militar de 1964, foi incumbido pelo
Comando Supremo da Revolução de elaborar um ato que formalizasse as primeiras transformações
políticas introduzidas pelo regime. Gerava-se o AI-1. Em 1965, com o aumento do número de
230
mais próximo das aspirações da “Revolução”. Tanto o MDB quanto a ARENA
protestaram contra o projeto final. De acordo com o jornalista Carlos Castello
Branco,
As reações negativas ao projeto de Constituição divulgado pelo Governo
não se medem apenas pelos pronunciamentos dos políticos de oposição,
mas pelas restrições dos peritos que começam a examiná-la de um ângulo
desprevenido e sobretudo pelo silêncio das grandes figuras que ornamentam
o Partido do Governo.
O silêncio desses homens está carregado de restrições e representa uma
desaprovação ao próprio espírito do projeto. Objeções circunstanciais,
reservas quanto a pormenores não necessitariam, para exprimirem, desse
pesado fechar de boca que se sucedeu à divulgação do documento tutelar
elaborado em segredo de Estado.
42
Apesar das críticas, em 7 de dezembro de 1966, o governo editou o Ato
Institucional n.º 4, convocando o Congresso a, entre 12 de dezembro de 1966 e 24 de
janeiro de 1967, rejeitar, modificar ou promulgar o novo projeto de Constituição. Até
a sua promulgação, o governo poderia legislar por decretos.
Apesar da restrições à atuação do Congresso, o governo não abdicou da idéia de
buscar, junto a ele, a legitimação da nova Constituição. Conforme observa M.ª
Helena Moreira Alves,
A vitória da ARENA, o fechamento do Congresso e o enfraquecimento
geral da oposição deram ao Estado de Segurança Nacional maior margem
de manobra para formular a nova Constituição. Mas a ratificação do
Congresso ainda era considerada importante para legitimar o documento,
internamente e fora do país. O Ato Institucional N.º 4, baixado a 7 de
dezembro de 1966, reconvocou o Congresso para uma sessão extraordinária
– destinada a discutir e ratificar a Constituição – e estabeleceu as condições
altamente restritivas sob as quais se daria. (...).
43
ministros do STF, conseqüência do AI-2, finalmente foi nomeado ministro daquele tribunal. No
entanto, permaneceu na função por menos de um ano. Em 1967, assumiu o Ministério da Justiça e
Negócios Interiores. No cargo, foi o principal autor do projeto da nova Constituição. Com a posse de
Costa e Silva deixou o Ministério. Contudo, com o afastamento do presidente, recebeu da Junta Militar
a incumbência de redigir a proclamação em que foi anunciada à nação o impedimento do presidente e a
alteração da linha sucessória, com o afastamento de Pedro Aleixo, vice-presidente da República, e a
formalização da Junta Militar no poder. Cf. ABREU, Alzira Alves et alii. (coord.s.). Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 30. op. cit., p. 3666-3667.
42
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. 1, p. 616. Nota originalmente
publicada no Jornal do Brasil, em 10 de dezembro de 1966.
43
ALVES, M.ª Helena Moreira. op. cit., p. 104-105.
231
O governo imaginava que, um Congresso e um partido de oposição intimidados
pelas últimas ações do governo permitiriam a promulgação de uma Constituição
autoritária. Contudo, ainda segundo M.ª Helena M. Alves,
(...) a rápida sucessão de atos complementares e decretos-leis, assim como
as tentativas do governo de limitar a participação do Congresso na redação
da Constituição, ocasionaram antes a rebelião que a aquiescência dos
parlamentares. A própria ARENA juntou forças com a oposição para exigir
o direito de apresentar propostas e emendas à Constituição – exigência
sistematicamente recusada pelo governo. (...).
44
No total, foram propostas 1504 emendas, poucas foram discutidas e um número
ainda menor foi aprovado. A oposição, débil, acabou se resignando às normas
estabelecidas e o Congresso aprovou a Constituição
45
.
A nova Carta forneceu ao Estado os fundamentos de uma ordem política
institucionalizada. Em síntese, ela incorporou muitas das medidas excepcionais
decretadas nos Atos Institucionais e Complementares, tornando “constitucional” o
caráter “revolucionário” dessas medidas. Nela estava expressa a eleição indireta para
presidente, o controle dos gastos públicos pelo Executivo e os amplos poderes do
governo federal para apurar infrações contra a segurança nacional.
Quanto aos Poderes da República, a Constituição veio regulamentar a separação
entre eles, consagrando o reforço dos poderes presidenciais em detrimento dos do
Congresso.
O Legislativo já vinha debilitado pela transferência de suas prerrogativas para o
Executivo e pelas restrições impostas à ordem parlamentar. O que a nova Carta fez
foi institucionalizar essa transferência de grande parte de seu poder para o
Executivo
46
. Conforme Gláucio Ary Dillon Soares e Sérgio Abranches,
44
Idem, p. 102.
45
Na Câmara dos Deputados, o projeto foi aprovado por 223 votos contra 110. No Senado, por 37 a
17. Cf. ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 105.
46
A Constituição de 1967 institucionalizou o prazo de 45 dias para que o Congresso aprovasse os
projetos considerados urgentes, e 60 dias para os demais. Ao fim desses prazos, se não fossem
rejeitados, seriam considerados automaticamente aprovados. Formalizou, ainda, a exclusividade do
Executivo para legislar em matérias envolvendo a segurança nacional e as finanças públicas. Ao
Congresso cabia aprovar ou rejeitar este tipo de legislação. Negava-se a possibilidade de emendá-la.
232
A Constituição promulgada no final do governo Castelo Branco
transformou uma tendência que se esboçava numa situação institucional:
com ela, o Congresso perdeu parte substancial de sua iniciativa legislativa.
As mudanças, no campo da legislação, tiveram como objetivo o
fortalecimento do Executivo, tornando-o o responsável principal e
hegemônico pela elaboração da potica nacional, especialmente no campo
econômico-financeiro. A iniciativa legislativa do governo foi ampliada, os
seus projetos passaram a ter prazos-limites para sua aprovação, instituiu-se
a delegação legislativa, coibiu-se a emenda a projetos governamentais,
institucionalizando-se o decreto-lei. O Congresso, ao contrário, perdeu a
competência na feitura de leis que regulam matéria financeira, criam
cargos, funções ou empregos, aumentam vencimentos ou a despesa pública,
modificam os efetivos das Forças Armadas, dispõem sobre a administração
do Distrito Federal ou dos territórios.
A atuação do Executivo orientou-se para a composição de uma maioria
que afastasse a possibilidade de bloqueio parlamentar por parte da
oposição. A existência de uma ampla maioria governista, aliada às
limitações constitucionais das funções do Legislativo, deixaram o
Executivo absoluto na área legislativa. (...).
47
Apesar dessa absoluta predominância do Executivo, isto não significa que o
Congresso não tenha feito o possível para preservar a sua autonomia durante o
processo “constituinte”. Prova disto é a inclusão, no texto da Constituição, dos
direitos individuais, associativos e políticos
48
. Essa inclusão foi fundamental para os
desdobramentos políticos posteriores. É esclarecedora a análise de Maria Helena
Moreira Alves a esse respeito. De acordo com a autora,
É particularmente significativo, entretanto, que os direitos individuais e
civis tenham sido incluídos na Constituição. Do ponto de vista da Doutrina
de Segurança Nacional, obedecia-se assim aos Objetivos Nacionais
Permanentes, que fixavam garantias individuais como o habeas corpus,
contra invasão de domicílio, o direito de defesa e o julgamento por júri e os
de reunião, associação e expressão. A Constituição sustentava também o
direito dos legisladores à imunidade parlamentar, descartando a cassação
automática de mandatos eleitorais de integrantes de partidos de oposição.
Segundo a Constituição de 1967, qualquer membro do Congresso Nacional
ou das assembléias estaduais só poderia perder seu mandato, ou mesmo ser
47
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 79.
48
Em seu livro, no qual exalta a figura de Castelo Branco, Luís Viana Filho justifica esta inclusão
como um ato benevolente e liberal do presidente. Para ilustrar esta opinião, Viana cita uma afirmação
de Pedro Aleixo, presidente da Comissão Mista do Congresso Nacional que analisou o projeto de
Constituição. Disse Aleixo: “É importante salientar (...) que foi graças à intervenção do Presidente
Castelo Branco que se chegou à conclusão de substituir todos os dispositivos sobre direitos e garantias
da pessoa humana, constantes do Projeto e redigidos pelo ministro Carlos Medeiros, pelos dispositivos
liberais e acordes com a tradição brasileira, que acabaram figurando na Constituição de 67. A redação
dos dispositivos finais foi feita por Afonso Arinos, mas é preciso que não se dêem honras de vitória
sobre o Presidente a quem quer que seja, pois a mim ele declarou indispensável manter-se a tradição.”
Citado por: VIANA F.º, Luís. op. cit., p. 473.
233
processado por crime contra a Segurança Nacional, com permissão do
corpo legislativo ao qual pertencesse. A garantia dos direitos civis e
individuais foi uma vitória para os membros do Congresso Nacional que
haviam lutado por emendas ao projeto original do Executivo. A questão
provocou acalorados debates no plenário, e todos os setores da oposição
pressionaram o Executivo a incluir direitos individuais, associativos e
políticos fundamentais no texto da Constituição. É interessante observar
que, defendendo sua posição, membros da oposição, referiram-se
explicitamente à intenção de alcançar a “democracia” declarada nos
Objetivos Nacionais Permanentes, e que o Estado de Segurança Nacional
alegava defender.
A manutenção de direitos legais fundamentais e da imunidade
parlamentar seria extremamente importante para os desdobramentos
políticos dos anos seguintes. Sua inclusão no texto dotou a oposição de
algum espaço para se organizar politicamente e exigir maior margem de
participação nas decisões de governo, assim como a integral aplicação
desses direitos.
49
As discussões presentes nos editoriais dos jornais nesse momento apresentam a
tentativa de legitimar a institucionalização do regime através da análise do projeto
pelo Legislativo. Além disso, será possível perceber a luta dos parlamentares por
manterem um mínimo de autonomia, o que resultou na inclusão dos direitos
individuais e civis no texto da Constituição. Face ao caráter central e à extensão que
esta questão assumiu no debate político, a análise será feita jornal a jornal. Primeiro,
o Jornal do Brasil:
305. Ao que parece, o Governo prefere submeter o anteprojeto
constitucional ao Congresso e afasta, assim, preliminarmente, a hipótese da
outorga, que seria o recurso extremo, só praticável depois que se
configurasse a absoluta impossibilidade de contar com a colaboração dos
congressistas. Uma vez feita a opção em favor da participação do
Legislativo, o Governo terá de agir em conseqüência. A via parlamentar
oferece vantagens inequívocas, a começar pela legitimação da nova Carta,
que só estará destinada a durar na medida que contar com um mínimo de
consentimento nacional popular, expresso pela votação do Congresso.
(Jornal do Brasil, 13-14 de novembro de 1966, p. 6, tít.: O Congresso e a
Carta)
306. E que dizer do Congresso em final de mandato? Será lícito também ao
Governo obter dele a qualquer custo, a aprovação da nova Carta? A
anormalidade do quadro ainda se tornaria mais chocante, se se desse
preferência a um Congresso parcialmente derrotado e praticamente
desligado das fontes do consentimento popular, de maneira a preterir um
Congresso muito mais representativo em todos os aspectos. (Jornal do
Brasil, 17 de novembro de 1966, p. 6, tít.: Depois da Eleição)
49
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 109-110.
234
307. (...) o Governo submeterá a votação do projeto a prazos e
condicionamentos tão herméticos, que parece pretender apenas disfarçar a
solução preferida da outorga direta pela alternativa suasória da outorga
tácita.
Evidentemente, se assim de fato correrem as coisas, não haverá
correspondência entre o processo da criação constitucional e os propósitos
democráticos anunciados, ou sinceramente desejados, em relação ao último
e talvez maior compromisso revolucionário. (...). (Jornal do Brasil, 4 - 5 de
dezembro de 1966, p. 6, tít.: Prelúdio Constitucional)
308. O anteprojeto de Constituição agora divulgado, longe de reconduzir o
País a uma ordem jurídica consentânea com um período de normalidade
institucional, baseada na responsabilidade dos agentes do Poder, busca,
acima de tudo, configurar um regime em que está patente o sentido da tutela
de um Executivo forte sobre as instituições. (...) à simples leitura do
anteprojeto, a Nação verá confirmada a intenção, que têm os atuais
detentores do Poder, de projetar-se sobre o futuro, com uma Constituição
marcadamente autoritária (...). (Jornal do Brasil, 7 de dezembro de 1966, p.
6, tít.: Tônica Autoritária)
309. Examinando as circunstâncias, para fixar a posição que adotará
durante a votação da futura Constituição, a Oposição está no dever de
decidir à luz da razão, sem se deixar arrastar a posições emocionais. Cabe-
lhe avaliar todas as conseqüências futuras, inclusive a responsabilidade
histórica. Em primeiro lugar, a despeito do elenco de restrições adotadas, a
Oposição não pode esquecer que se trata de oportunidade especial, com
uma convocação do Congresso que lhe confere o poder constituinte. (Jornal
do Brasil, 8 de dezembro de 1966, p. 6, tít.: Dever da Minoria)
310. O projeto constitucional do Governo não se limita a ampliar
consideravelmente a competência e os poderes do Executivo, na pessoa do
Presidente da República. Também reduz drasticamente a iniciativa e as
atribuições do Congresso, atingindo-o no cerne do poder legislativo. O que
disso resultou foi um descompasso desmedido no jogo de relações entre as
duas peças do sistema presidencialista. (...).
Reconheça-se que há nesse tratamento a preocupação adicional e meritória
de corrigir vícios, erros e distorções da vida parlamentar brasileira. (...). O
projeto pretende que os deputados e senadores sejam ágeis na elaboração
legislativa, mas para que o Governo possa extrair melhores proveitos da
própria iniciativa. (...).
É verdade que a doutrina e a experiência democráticas do mundo moderno
tendem a reconhecer nos Parlamentos uma missão bem mais política do que
técnica, (...).
Mas, entre essa realidade nova, que pede ajustamentos de caráter
democrático, e a supressão pura e simples de atributos essenciais do
Congresso, ou dos parlamentares individualmente, vai enorme diferença.
(...). (Jornal do Brasil, 9 de dezembro de 1966, p. 6, tít.: Desnível de
Poderes)
311. O meio político parecer ter compreendido que a Constituição projetada
representa, de fato, o instrumento adequado à fase de transição que deverá
mediar entre o período dominado pelo arbítrio revolucionário e a plena
restauração do regime democrático, só compatível com o estado de direito.
A futura Constituição deverá constituir, assim, um ponto de referência, um
cânon, que delimitará o campo de ação do Estado e submeterá ao império
235
da lei a ação dos governantes, sem que se faça necessário qualquer novo
apelo a medidas de exceção – como sempre foram e continuam a ser os atos
institucionais ou complementares. (Jornal do Brasil, 15 de dezembro de
1966, p. 6, tít.: Projeto a Aprimorar)
312. A esta altura do debate em torno do projeto de Constituição, já é
possível avaliar como teria sido inconveniente não associar o Congresso à
reformulação do regime. A outorga da Constituição impediria, de maneira
ruinosa para o País, o aprimoramento da projetada lei básica, tal como
certamente sucederá, por mais estritas que sejam as normas para a votação
do projeto pelo Congresso. (Jornal do Brasil, 20 de dezembro de 1966, p. 6,
tít.: Diálogo Oportuno)
313. Ao novo Congresso caberá encontrar a solução que corrija o erro de
oportunidade e de filosofia institucional do Governo, sem necessidade de
destruir a nova Constituição ou de retirar dela o que signifique indiscutível
contribuição criadora. Nesse sentido deve ser o seu poder de emendar, de
forma a assegurar características duradouras a tudo que na Constituição
exprima a pressão e o espírito das circunstâncias. (Jornal do Brasil, 8-9 de
janeiro de 1967, p. 6, tít.: Transitoriedade)
314. (...). Longe dos olhos da opinião pública e do interesse nacional, o
Congresso, depois de tantos golpes de que foi vítima e já no fim de sua
sessão legislativa, conduz a tarefa de votar o novo contrato político como
etapa lógica da maneira sigilosa e fechada com que o Executivo elaborou o
seu anteprojeto. (...).
(...). A futura Constituição nasce, assim, marcada pelas contingências do
momento, dispensando o consentimento nacional, como o tem dispensado,
até aqui o próprio Governo revolucionário. (Jornal do Brasil, 18 de janeiro
de 1967, p. 6, tít.: Indiferença)
315. (...). É verdade que o Congresso Nacional vinculou a sua
responsabilidade à empreitada [elaboração de uma nova Constituição], mas
dentro dos precários condicionamentos conhecidos e sob o espectro de uma
alternativa ainda mais desastrada, que seria a da promulgação automática
do projeto original do Governo. O Congresso, portanto, por uma dúzia de
razões, não sacramentou de legítimo consentimento político e popular a
proposta saída da escrivaninha do Ministro da Justiça: no máximo terá
compactuado realisticamente em favor do mal menor (...). (Jornal do
Brasil, 27 de janeiro de 1967, p. 6, tít.: Irrealismo)
A partir da análise das seqüências acima, percebe-se que o Jornal do Brasil
concorda com a necessidade de se formular uma nova Constituição e com a
participação do Legislativo no processo. No entanto, se opõe às características do
anteprojeto e ao prazo que o Congresso teria para analisá-lo. Embora ainda encontre
pontos de concordância com as atitudes do governo, o Jornal do Brasil, cada vez
mais, se mostra um opositor do regime, ao menos dos caminhos seguidos.
236
A princípio, concorda que a elaboração de uma nova Constituição seria o
instrumento adequado à fase de transição entre o arbítrio e a restauração plena do
regime democrático. Frisa, no entanto, que, para isto, deveria contar com a
participação efetiva do Congresso no processo. Mas, a seguir-se o exemplo das
recentes atitudes do governo, acreditava que o que realmente ocorreria seria a outorga
do documento. Agindo assim, para o jornal, o governo estaria abdicando de buscar a
sua legitimação.
Para o Jornal do Brasil, a legitimidade era algo imprescindível à nova
Constituição, e o projeto carecia disto. Considerava que o documento deveria
representar a vontade nacional, e a única forma de aproximá-lo desta, concedendo um
mínimo de legitimidade, seria através da sua sujeição aos ajustes do Congresso. De
preferência, do Congresso recém-eleito, e, por isso, com mais representatividade do
que um Congresso em fim de mandato que, além de tudo, havia sido reduzido em suas
iniciativas e atribuições.
Quando surgem indicativos de que o governo submeteria o projeto à análise do
Parlamento vigente, o Jornal do Brasil, mesmo descrente quanto à efetividade deste
procedimento, saúda a iniciativa. Chega até a afirmar crer na efetiva participação do
Congresso, mas, no fim, não se satisfaz com o resultado, e conclui que o Legislativo
funcionou como mero homologador do processo autoritário do governo, e que o
recurso à sua análise fora usado para substituir a simples outorga. Para o jornal, o
Executivo contava com o “simbolismo” da aprovação da Constituição pelo
Congresso. Conseguiu. Em caso contrário, a promulgaria de qualquer jeito.
Mesmo considerando esta participação como “simbólica”, o Jornal do Brasil
chama o Legislativo à responsabilidade, e afirma que, ainda que seu espaço fosse
pequeno, ele deveria procurar modificar o projeto para melhor. No final, acredita que
ele havia vinculado a sua responsabilidade à Constituição, evitando o pior: a outorga.
237
Isto não significava, porém, que o Legislativo havia sacramentado o legítimo
consentimento popular, no máximo, teria compactuado com o “mal menor”.
Quanto à transferência de funções do Legislativo para o Executivo, para o
Jornal do Brasil, isto o tornaria um poder a serviço do governo. De qualquer modo,
não se mostra um opositor desta medida. Para ele, esta redução das funções do
Legislativo estava de acordo com o processo histórico, e em geral, as alterações
processadas tenderiam a dar-lhe maior eficiência. Ainda assim, acha que o novo
Congresso deveria reivindicar o seu poder de emendar a nova Constituição.
Em suma, o Jornal do Brasil, embora crítico, mantém-se defensor da instituição
Legislativo. Desse modo, procura persuadir os seus leitores quanto à tese de que, para
o governo agir de acordo com o “consentimento nacional”, materializado na
observância dos preceitos típicos de uma democracia, deveria buscar a participação
efetiva do Congresso na formulação de uma nova Constituição.
Já para O Globo, partidário do regime e do governo, as coisas são um tanto
diferentes, como se poder perceber nos recortes a seguir:
316. O presidente da ARENA e líder do Governo na Câmara Alta, Senador
Daniel Krieger, revela-se otimista quanto à possibilidade de prevalecer, no
Congresso, uma “entente-cordiale”, visando à elaboração e votação da nova
Carta Constitucional. Há de ter razões para o seu otimismo, o qual cumpre
louvar, pois demonstra o quanto está o Governo desarmado de espírito e
isento de prevenções. A partir da verificação desse fato, teremos que, se a
“ententecordiale” não se efetivar, a responsabilidade de frustração tão
penosa não caberá ao Executivo e à sua maioria parlamentar. (...)
(...). Surgido o bloqueio oposicionista, que só pode advir de uma atitude
irracional, o País será levado às seguintes alternativas: ou a outorga da
nova Constituição ou a persistência do sistema de atos de exceção
atravessando o novo período presidencial. (...). (O Globo, 26 de outubro de
1966, p. 1, tít.: Oposição Posta à Prova)
317. Entrou em pauta a reforma constitucional. Rejeita assim o Governo o
convite da Oposição para que transfira ao próximo Congresso a tarefa de
estabelecer os lineamentos definitivos do pensamento revolucionário. Os
partidários da “volta à normalidade” (expressão discutível, pois não é fácil
voltar ao que não havia) deveriam aplaudir a decisão presidencial, porque
se o período Costa e Silva tivesse início com a batalha da Carta Magna,
como conciliar tal fermentação – inerente a uma discussão desse porte –
238
com a sonhada “normalidade”? (O Globo, 8 de novembro de 1966, p. 6, tít.:
A Praga do Radicalismo)
50
318. Reduzidas foram as atribuições do Congresso. Mas as
responsabilidades do Legislativo parecem-nos acrescidas. O fato de caber-
lhe a tarefa, como participante do colégio eleitoral, de escolher o Presidente
da República, representa um acréscimo de poder que compensa largamente
as perdas que sofreu no novo texto. (...). (O Globo, 8 de dezembro de 1966,
p. 1, tít.: Fim do Falso Liberalismo)
319. Insistimos no ponto: o debate da nova Carta deve partir não do que se
desejaria que fosse, mas do que é possível fazer. (...). (O Globo, 9 de
dezembro de 1966, p. 1, tít.: O Endereço da Carta)
320. Só os que desconhecem a evolução do Direito Constitucional nas
principais democracias contemporâneas poder estranhar as mudanças
introduzidas pelo anteprojeto nas relações entre o Executivo e o
Legislativo. Segundo um dos mais eminentes publicistas norte-americanos
vivos, o conflito principal no âmbito político não se situa no campo das
medidas legislativas, mas, sim, entre a administração e o Governo. Daí
decorre o papel dominante da Presidência no sistema daquele País. Graças
a essa modificação capital, a tarefa principal da Câmara e do Senado
tornou-se a de investigar, que é, segundo essa mesma autoridade, “mais
importante que os poderes legislativos do Congresso”. (O Globo, 14 de
dezembro de 1966, p. 1, tít.: Permanência da Revolução e Não Revolução
Permanente)
321. Modifique o Congresso o que porventura haja de ambíguo e de
supérfluo no anteprojeto. Mas os lineamentos básicos do texto devem ser
mantidos em nome da vontade da maioria do povo brasileiro que acaba de
proferir a 15 de novembro, nas urnas livres, um voto expressivo de
confiança na Revolução de 31 de Março. (O Globo, 19 de dezembro de
1966, edição final, p. 1, tít.: Advogados da Utopia)
322. Duas manifestações estranhas – com um quê de hipocrisia ingênua –
ocorreram às vésperas da conclusão do trabalho constituinte. A primeira foi
a obstrução decretada pelo MDB. É legítimo esse processo parlamentar.
Mas, no caso, veio colorido com o grotesco dos contrastes berrantes. (...).
Pressionada [a oposição] por minoria vociferante resolveu, ao apagar das
luzes da sessão extraordinária, obstruir os trabalhos, quando os lineamentos
gerais da Carta estavam perfeitamente fixados. A ninguém enganou a
tentativa de mistificar a opinião pública. (O Globo, 25 de janeiro de 1967,
p. 1, tít.: Missão Cumprida)
323. A Carta representa a vontade democrática da maioria dos
representantes do povo. Negar-lhe legitimidade exige um passo adiante.
Obriga a negar, por coerência, o caráter democrático dos sistemas políticos
estribados na vontade, embora não absoluta, das maiorias. (...). (O Globo,
28 de janeiro de 1967, p. 1, tít.: Revisionismo Farisaico)
324. Votada foi a Constituição por esses representantes do povo. O projeto
oficial recebeu 231 emendas, das quais 81 da Oposição e 20 dos “sem
legenda”. Por que negar legitimidade à nova Carta? (O Globo, 28 de
janeiro de 1967, p. 1, tít.: Revisionismo Farisaico)
50
Grifos no original.
239
O Globo, governista, aplaude a iniciativa do governo de elaborar uma nova
Constituição, assim como a sujeição à análise do Congresso vigente. Nos dois casos,
procura seduzir o seu auditório de que tais procedimentos estão de conformidade com
a “vontade nacional” de democratização do País.
Para este jornal, a elaboração de uma nova Constituição era uma imposição da
realidade brasileira, e, embora não considerasse o projeto como o ideal, afirmava ser o
possível dentro da conjuntura nacional. De qualquer maneira, sendo fruto da missão
reformista da “Revolução”, visaria a concretização dos objetivos “revolucionários” de
democratização do país.
Quanto à participação do Legislativo no processo de elaboração da nova
Constituição, O Globo associa-a à “vontade democrática da maioria dos
representantes do povo”, embora não uma maioria absoluta, que, ao contrário da
opinião dos demais jornais, poderia ser encontrada no Congresso vigente. Caberia a
ele colaborar na elaboração e votação da nova Constituição, melhorando o projeto
original, mas mantendo as suas linhas básicas. A não colaboração do Congresso
levaria à outorga da Carta ou à continuidade de edição de atos de exceção. Opor-se ao
“diálogo”, portanto, demonstraria que a oposição não estaria à altura de sua missão
constituinte. Assim, se houvesse fracasso nas discussões, a culpa não seria do
Executivo, que estaria fazendo tudo ao seu alcance com o intuito de democratizar o
país. Portanto, dentro da lógica da “democracia tutelada”, a participação do
Congresso e a democracia deveriam ser restritas em função de um fim maior de
reconstrução nacional. Segundo Eurico de Lima Figueiredo, isto também era
perceptível nos discursos de Castelo Branco. De acordo com a análise de Figueiredo,
nestes discursos, “democracia” estaria relacionada à “recuperação do país”. Para isto,
240
seria preciso tranqüilidade. A tranqüilidade protegeria a ordem “revolucionária
contra os agitadores
51
. Para o autor,
(...). Dentro de tal compreensão, a democracia (e, em sentido mais amplo, a
própria recuperação do país), não deixa de supor a existência de liberdade,
mas o que se propõe é que tal liberdade fique referenciada a outras duas
categorias: à responsabilidade (...) e a “vocação política” da Nação (...).
Estas categorias, então, aparecem relacionadas à oposição entre a
“democracia/exigências fundamentais do Movimento revolucionário (...) x
processos institucionais (...).
52
Diante do preceito de atender às “exigências fundamentais do Movimento
revolucionário”, reduzem-se as atribuições do Legislativo no texto da nova
Constituição. O Globo não nega esta evidência. Contudo, em contrapartida, afirma
que as suas responsabilidades haviam sido acrescidas. Um exemplo seria o poder de
escolher o novo presidente. Além disso, do mesmo modo que o Jornal do Brasil,
estabelece uma conexão entre a perda de funções do Legislativo e o processo
histórico, denotando que, nas modernas democracias, o seu papel mais importante
deveria ser o investigativo e não o legislativo. Ou seja, tanto O Globo quanto o
Jornal do Brasil, apesar de defenderem uma postura política liberal-democrática,
pregavam a reformulação das funções do Congresso. Esta tese residia em que, face à
necessidade de modernização do Brasil, cabia ao Legislativo um papel também
renovado. Como frisam Marieta de M. Ferreira e Sérgio Montalvão, ao destacarem a
opinião de Luís Alberto Bahia
53
, no caso, especificamente sobre o posicionamento do
Jornal do Brasil,
A falência do governo João Goulart e o descrédito em que caíram os
valores liberais tornaram corrente a crença de que a concentração dos
poderes nas mãos do Executivo e a limitação das atribuições do Congresso
representavam um fator de modernização da sociedade brasileira. O jornal
teria justamente encampado essa visão de uma “democracia moderna”,
51
FIGUEIREDO, Eurico de Lima. op. cit., p. 72-73.
52
Idem, p. 73.
53
O jornalista Luís Alberto Ferreira Bahia foi editorialista do Jornal do Brasil entre os anos de 1963 e
1965. Cf. ABREU, Alzira Alves et alii. (coord.s.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós
30. op. cit., p. 453.
241
conciliando assim sua linha tradicional com a nova situação, abandonando
os valores liberais em nome de uma opção tecnocrática.
54
De qualquer forma, apesar de defender a necessidade da existência e
participação do Legislativo com alteração em suas funções, é perceptível nos discurso
d’O Globo que o jornal entende que o governo buscou a legitimação do texto
constitucional junto ao Congresso. No entanto, deixa claro que houve obstáculos
nesse caminho.
O Estado de São Paulo, por sua vez, continua um crítico dos procedimentos
adotados pelo governo Castelo Branco. É o que se verifica nas seqüências abaixo:
325. Entretanto, permanece a Nação à margem dos acontecimentos,
assistindo de fora à evolução do conflito travado entre s. exa. e os membros
do Congresso, a partir do momento em que estes, num tardio gesto de
coragem, se dispuseram a enfrentar o Executivo em defesa daquilo que
entendem – e em tese com razão – ser a dignidade do Legislativo. (...). (O
Estado de São Paulo, 8 de outubro de 1966, p. 3, tít.: O sr. Castelo Branco e
o Congresso)
326. (...) apesar do disfarce de sua oportuna passagem pelo Parlamento, a
nova Constituição será, na verdade, outorgada, isto é, imposta ao País sem o
prévio exame e, praticamente, sem o prévio conhecimento da Nação.
(...) a outorga de uma constituição representa hoje ato eminentemente
ditatorial e, como tal teria breve duração. (...) ato, portanto, atentatório dos
postulados da Revolução, cujo ideal consiste na implantação da democracia
entre nós. (...). (O Estado de São Paulo, 30 de outubro de 1966, p. 3, tít.:
A volta de Hamurabi)
327. Assinalávamos há dias nesta coluna que à medida que iam
transpirando as idéias contidas no projeto de Constituição (...) mais se
radicava na opinião pública a convicção de que esse tão falado texto se acha
eivado de reminiscências fascistas. E (...) acrescentávamos ser inevitável a
abertura de violenta crise entre o sr. marechal Castelo Branco e o
Congresso (...). (O Estado de São Paulo, 12 de novembro de 1966, p. 3, tít.:
A Constituição do sr. Castelo Branco)
328. Tudo quanto aí fica está a demonstrar que não conseguirá de modo
nenhum o sr. presidente da República uma adesão em massa do atual ou do
futuro Congresso à Constituição que pretende impor ao País. O projeto não
agrada a ninguém e contraria todo mundo. (...). (O Estado de São Paulo, 12
de novembro de 1966, p. 3, tít.: A Constituição do sr. Castelo Branco)
329. (...) para justificar o absurdo da atual convocação extraordinária – a
poucos meses da posse do novo presidente e da instalação do futuro
Parlamento – alega que tendo o atual Congresso feito a “legislação
ordinária da Revolução” lhe deve caber também “a elaboração da Lei
Constitucional do Movimento de 31 de março de 64”. Para quem seguiu de
54
FERREIRA, Marieta de M. e MONTALVÃO, Sérgio. op. cit., p. 2871.
242
perto a conduta desses parlamentares nos tempos do sr. João Goulart, a
idéia de identificar com a Revolução esse Congresso que aí está roça pelas
fronteiras da hipocrisia. (O Estado de São Paulo, 8 de dezembro de 1966, p.
3, tít.: A Constituição que nos será imposta)
330. (...). Se as vozes de democratas ilustres (...) se fizerem ouvir – como
se espera – contra o mostrengo imposto pelo Palácio da Alvorada é fora de
dúvida que elas emprestarão uma indiscutível autoridade à deliberação
tomada pelo MDB de se opor até onde lhe for possível à votação do projeto
oficial encaminhado ao Parlamento. (...). Farão os deputados e senadores
do MDB quanto puderem para impedir, na primeira fase, que o projeto seja
aprovado em obediência ao rígido esquema estabelecido pelo Ato
Institucional n.º 4. Mas, caso a aprovação do texto se verifique, mostram-se
dispostos a intervir na discussão do projeto, durante o prazo destinado à
apresentação de emendas. (...). (O Estado de São Paulo, 13 de dezembro
de 1966, p. 3, tít.: A sessão extraordinária do Congresso)
331. (...). A classificação entre as verdadeiras Constituições não lhe cabe
porque não será votado nem promulgado por um Congresso com poderes
constituintes e porque a sua aprovação já está previamente garantida e
regulada pelo Ato Institucional n.º 4 (...). Além do mais, por ser um texto
tramado às escuras pelos íntimos do governo e imposto a um corpo
legislativo que não tem o direito senão teórico de o rejeitar. (O Estado de
São Paulo, 16 de dezembro de 1966, p. 3, tít.: O chefe do Executivo e a
opinião pública)
332. (...) entre ver aprovada a Carta pelo Congresso recém-eleito, na
plenitude da sua autoridade política, ou por esse molambo parlamentar que
aí está, não titubeou o governo: escolheu o molambo. (...). (O Estado de
São Paulo, 16 de dezembro de 1966, p. 3, tít.: O chefe do Executivo e a
opinião pública)
333. A esta altura, já não parece haver dúvida de que os primeiros sinais de
rebeldia do Parlamento contra a atitude ditatorial do sr. marechal Castelo
Branco em relação à reforma constitucional vão assumindo as proporções
de um movimento ao qual pouco falta para se tornar invencível. Apoiado
na opinião pública e no parecer unânime dos juristas, o bloco formado pela
oposição e pelos elementos que, embora pertencendo à ARENA, se
mostram dispostos a formar a seu lado, oferece a cada dia que passa
maiores provas de ousadia. (...). (O Estado de São Paulo, 17 de dezembro
de 1966, p. 3, tít.: O dever dos democratas)
334. Faça-se, contudo, justiça ao Congresso e aos homens que o compõem:
eles apenas fingiram a paternidade desta nova e insólita manifestação
ditatorial, pois a idéia é menos deles do que do Executivo. (...) o Congresso
não podia fugir ao pagamento de mais esta quota da dívida que assumiu ao
ser legitimado pelo atual governo: a de, por seu turno, “legitimar”, com
uma aprovação a galope, esta nova Carta, tão semelhante à “polaca”
estadonovista. (O Estado de São Paulo, 12 de janeiro de 1967, p. 3, tít.:
Confiar, desconfiando)
O Estado de São Paulo se opõe abertamente ao que ele considerava um projeto
com feições “fascistas” “tão semelhante à ‘polaca’ estadonovista”. Novamente, o
243
jornal, em sua eterna oposição a Getúlio Vargas e à sua “herança”, procurava associar
o que via de mal ao ex-presidente. Ainda mais em se tratando de um projeto de
Constituição que contou com a colaboração, ainda que apenas parcial, de Francisco
Campos, autor da Constituição do Estado Novo, a “polaca”, em 1937
55
.
Buscando envolver o seu público na questão, O Estado de São Paulo afirma que
o projeto contrariava a “vontade nacional”, e que, portanto, não contaria com o apoio
do Congresso. Mas, afirmava que a sua aprovação já estava garantida pelo AI-4.
Seria, portanto, outorgado, o que iria contra os ideais de democratização.
Quanto à participação do Legislativo, O Estado de São Paulo vaga entre a
descrença quanto à sua efetividade e a fé em que ele pudesse melhorar o projeto.
Seguindo a regra de ser crítico quanto ao Congresso vigente, acha que seria um
absurdo passar a ele a função de analisar a Constituição. Diante da sua situação com
relação ao Executivo, a remessa a sua análise seria uma fachada, ele não teria, a não
ser teoricamente, como rejeitá-la. Desse modo, esse ritual serviria apenas para
legitimar o governo e a Constituição, dando-lhes aparência de legalidade. Para O
Estado de São Paulo, a análise do projeto deveria caber ao novo Presidente e ao novo
Congresso. Apesar disso, ainda esperava que ele, com o auxílio de “democratas
ilustres” pudesse reverter o caráter fascista da Carta.
Esta sua percepção corrobora a tese de que o Legislativo poderia, com o pouco
espaço que lhe restava, criar obstáculos ao Executivo, o que, de resto, correspondia
aos fatos, como se veria em dezembro de 1968. Segundo a opinião do jornal, ele
contaria com apoio da “opinião pública” nesta tarefa. Mesmo não confiando
plenamente no Congresso, O Estado de São Paulo defendia a idéia de que ele deveria
55
De acordo com Luís Viana Filho, o presidente Castelo Branco havia solicitado a colaboração de
Francisco Campos na redação do projeto de Constituição. No entanto, adoentado, Campos enviara uma
contribuição, por ele próprio, considerada modesta. Chamou-a de “notas à margem do projeto de
Constituição”, composto por treze páginas com proposições de teor autoritário. Cf. VIANA F.º. Luís.
op. cit., p. 456.
244
se opor ao projeto até onde fosse possível e, se a análise se tornasse inevitável, que
procurasse apresentar emendas para modificá-lo.
Em resumo, a análise dos editoriais indica que, a transformação da legislação
provisória em um arcabouço institucional em bases permanentes era uma necessidade
para os governantes. Isto ocorre porque a facção militar no poder acreditava ser
indispensável uma legitimidade constitucional. Para Thomas Skidmore, havia uma
“propensão dos militares brasileiros para uma legitimidade formal” e um desejo “de
estarem munidos de uma justificativa legal para a afirmação de sua autoridade
arbitrária”
56
. Já Alfred Stepan
57
afirma que os militares brasileiros seriam os mais
“constitucionais” se comparados aos dos demais países latinos. Esse era um dos
motivos que levava à constante reiteração do compromisso da “Revolução” com o
restabelecimento da democracia – outro motivo seria a própria impossibilidade do
regime se manter exclusivamente pela força. Assim sendo, a “institucionalização da
Revolução” estava dentro da lógica da “democracia tutelada”, que observava certos
princípios democráticos, mas procurava eliminar os riscos de subversão.
Conforme afirma M.ª D’Alva Gil Kinzo,
Castelo Branco, o primeiro general presidente, parecia estar bastante
determinado a caminhar nessa direção, ao tentar manter seu governo dentro
da antiga ordem constitucional, e ao reformar amplamente a constituição de
forma a adaptá-la aos “ideais da Revolução” e a garantir sua continuidade
após seu governo. (...).
58
A análise da autora sugere que a institucionalização da “Revolução” não era
apenas uma questão de princípios do regime. Mais do que isso, era uma tentativa de
Castelo Branco de amarrar os movimentos de Costa e Silva.
Ao analisar a trajetória das ditaduras militares nos países sul-americanos,
Manuel Antonio Garretón insere os processos de institucionalização ocorridos nesses
56
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 170.
57
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 82.
58
KINZO, M.ª D’Alva Gil. Oposição e Autoritarismo: Gênese e trajetória do MDB (1966-1979). op.
cit., p. 219.
245
países em uma fase denominada pelo autor de “transformadora”. Cita como exemplo
o caso da implantação da Constituição chilena
59
. Creio que a Constituição ditatorial
de 1967 seria o exemplo brasileiro.
Outra marca dessa fase, para Garretón, seria a fragmentação da coalizão
golpista. No Brasil, esse processo de fragmentação, que vinha ocorrendo desde de a
instauração do regime, se acentua nesse momento. É o que se observa a partir das
divergências expostas pelas opiniões dos jornais. No entanto, um fator continua
comum: todos permanecem tentando convencer os seus auditórios de que as opiniões
expressas condizem com o “ideal democrático nacional” de “regeneração do país”.
Para O Globo, o governo Castelo Branco representava esse consenso nacional.
Entretanto, o que se observa é que o regime já não contava com o “consentimento”
obtido quando da instauração do regime. Em resposta a esta situação, a
institucionalização da “Revolução”, através da elaboração de uma nova Constituição,
oferecia ao regime uma estabilidade e uma previsibilidade que contribuiriam na
tentativa de preservar e/ou reconquistar a aceitação popular.
Os editoriais, também, não escondem que o Legislativo estava enfraquecido, o
que dificultava a sua resistência aos planos do Governo. Maria Helena Moreira Alves
constata esse enfraquecimento progressivo do Legislativo em função dos expurgos
sofridos e das alterações em suas funções, mas frisa a existência do diálogo e a não
subserviência pura e simples do Congresso ao Executivo. Segundo Alves, o
Congresso não se calou, e, na medida do possível, enfrentou o regime. O clímax
desse conflito teria se iniciado justamente em fins de 1966, com a cassação dos seis
deputados federais, a resistência de parlamentares e o conseqüente fechamento
temporário do Congresso. Esse fechamento e a vitória da ARENA nas eleições
legislativas teriam dado mais força ao governo para elaboração de uma nova
59
GARRETÓN, Manuel Antonio. “Projeto, trajetória e fracasso nas ditaduras do cone sul. Um
balanço”. In: CHERESKY, Isidoro; CHONCHOL, Jacques. (org.s). op. cit., p. 245.
246
Constituição, mas como denota Alves, “(...) a ratificação do Congresso ainda era
considerada importante para legitimar o documento, internamente e fora do país.
(...)”
60
. Daí a necessidade de reconvocá-lo para que ele participasse do processo de
promulgação da nova Constituição.
Ainda assim, creio que os parlamentares insatisfeitos com toda a situação não se
calaram e, mostrando-se combatentes, exerceram pressão para que os direitos
individuais e civis e a manutenção da imunidade parlamentar fossem incluídos na
Constituição de 1967. Estas inserções teriam dotado a oposição de um certo espaço
de manobras.
Como quadro de síntese para esta questão, tem-se:
QUADRO DE SÍNTESE 4
JB OG OESP
Institucionalização da
“Revolução”
Favorável Favorável Favorável
Projeto de Constituição Contrário Favorável Contrário
Regime Militar Contrário Favorável Contrário
Participação do
Legislativo
Favorável Favorável Favorável
Autonomia do Legislativo Restrita Restrita Restrita
O quadro demonstra uma definição do posicionamento dos jornais com relação
ao governo Castelo Branco e, de modo geral, às diretrizes seguidas pelo regime. O
Globo manteve-se, todo o tempo, fiel ao governo, veiculando para o seu público que
todas as ações do regime teriam a finalidade de recondução do país aos rumos da
democracia. O Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo definem o seu
posicionamento em oposição ao governo, embora em sentidos bem diversos.
60
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 104.
247
O Estado de São Paulo, que já era um crítico das ações do governo quase desde
o início do regime, na realidade mantém essa posição com relação à política híbrida
de Castelo Branco, cobrando um maior endurecimento do regime. Já o Jornal do
Brasil apresentava-se crítico do que ele via como, e, na realidade era, o
endurecimento do regime.
Castelo Branco, no entanto, com a promulgação da Constituição, considerava a
sua missão cumprida, e esperava, apesar do aumento do poder do Executivo, que o
Brasil pudesse voltar à “democracia”.
A Constituição de 1967 acabou recebendo esta característica ambígua, típica do
governo Castelo Branco. De um lado, extremamente repressiva, ampliou os poderes
do Executivo. De outro, preservou os direitos individuais, característica típica da
democracia. Segundo Maria Helena Moreira Alves,
(...). Embora fosse pronunciadamente autoritária, a Constituição de 1967
refletia contradições básicas do sistema. Uma parte do texto visava o
controle: assegurar a aplicação das medidas exigidas pela Doutrina da
Segurança Interna para destruir o “inimigo interno”. Outra parte, que a
oposição lograra impor sob a forma da Carta de Direitos, refletia o objetivo
de restaurar a democracia. À medida que a dialética entre Estado e
oposição evoluía para níveis mais altos em 1967 e 1968, esta contradição
básica passou a fomentar a crise institucional que culminou com a
promulgação do Ato Institucional N.º 5.
A crise institucional sobreveio porque os elementos democráticos da
Constituição davam à oposição alguma margem de manobra, graças à qual
podia invocar os altos objetivos democráticos e exigir maior participação
popular nas decisões do governo – negadas por restrições contidas em
outros trechos da Constituição. (...).
61
Foi apegado a esse pequeno espaço, que só existiu face à resistência ao projeto
de Constituição originalmente apresentado, que o Legislativo procurou, nos anos de
1967 e 1968, reaver, ou ao menos preservar, o seu coeficiente de autonomia.
61
Idem, p. 111.
248
Conclusão:
Chegando ao final o mandato do primeiro presidente do regime militar, era a
hora de definir caminhos.
Por meio do exame dos editoriais dos jornais, nota-se que o governo mantinha a
sua política dualista de preservar certos princípios e instituições democráticas, mas, ao
menos tempo, fazia uso de uma política repressiva. É perceptível, porém, que embora
utilizasse da força sempre que considerasse necessário, o governo procurou, antes,
“dialogar” com o Congresso. Nessa dialética entre os dois Poderes, o governo
oferecia concessões limitadas à oposição em troca de um apoio limitado e de sua
legitimidade. Mas permanecia a contradição entre essa linguagem do diálogo, do
consenso, e o aumento progressivo da repressão, o que reduzia a legitimidade do
governo.
Deve ser salientado, entretanto, que a preservação de princípios democrático-
liberais não foi uma particularidade do regime militar brasileiro, tendo ocorrido,
também, em outros regimes militares latino-americanos. De acordo com Isidoro
Cheresky,
(...). A fim de alcançar seus propósitos, estes regimes [autoritários latino-
americanos] procuram o desenvolvimento de um discurso específico de
legitimidade autoritária, e se empenham em articular o exercício de fato do
poder, e os postulados antidemocráticos que o justificam com alguma
ratificação política, de referência democrático-liberal: consulta de 1978 e
plebiscito de 1980 no Chile, diálogo político com os partidos e chamada à
mobilização popular por ocasião da guerra das Malvinas na Argentina,
eleições periódicas e bipartidarismo no Brasil.
62
Contudo, essa preservação consistia, ao mesmo tempo, em uma limitação das
funções desses princípios e instituições democráticos. O que se pretendia era
preservá-los, desde que submetidos a determinadas restrições, de modo que não
obstruíssem a execução dos ideais “revolucionários”. De acordo com Manuel
Antonio Garretón,
249
(...). A utopia a que aspiravam [os novos donos do poder] era a erradicação
da política, ou, ao menos, a constituição de um sistema político de
participação restrita, em que se excluíssem as alternativas de mudança, isto
é, uma ordem autoritária e conservadora. O regime militar não constituía a
meta final, mas a condição histórica necessária, para realizar as
transformações estruturais e institucionais sobre as quais se baseasse a
futura ordem política autoritária, geralmente definida como “nova
democracia”.
63
Nesse sentido, o Legislativo foi cerceado na execução de suas funções
tradicionais. Mas, através da análise dos discursos dos jornais, é perceptível também
que, apesar de todas as violências sofridas durante este período, o Congresso Nacional
procurou, com pequena margem de manobra que possuía, preservar suas
prerrogativas. É certo que o Legislativo perdeu muitas delas. Perdas que, como
frisam os editoriais dos jornais O Globo e Jornal de Brasil, são historicamente
determinadas. Segundo Sérgio Abranches e Gláucio Ary Dillon Soares: “No Estado
moderno, as atividades tradicionais do Legislativo foram substituídas por outras,
consideradas compatíveis com o desenvolvimento acelerado da sociedade.”
64
A
principal tarefa do Legislativo contemporâneo passou a ser a fiscalização das
atividade do governo e da administração cotidiana.
No Brasil, o Legislativo, que vinha há tempos sendo acusado de ineficiência,
não ficou imune a essa transformação. Com ela, alterou-se a relação entre o
Executivo e o Legislativo. No entanto, esse não foi um processo pacífico. O período
que compreende a eleição de Costa e Silva e a promulgação da Constituição de 1967 e
passa pela cassação de seis deputados federais e pelo recesso do Congresso é um dos
momentos críticos desse conflito.
Apesar destas restrições impostas às instituições democráticas, a política
adotada por Castelo Branco não satisfazia nem à “linha-dura” militar, nem àqueles
que pregavam a normalização democrática do país. Os caminhos eram totalmente
62
CHERESKY, Isidoro. “Introdução”. In: CHERESKY, Isidoro; CHONCHOL, Jacques. (org.s). op.
cit., p. 15.
63
GARRETÓN, Manuel Antonio. op. cit., p. 241-242.
250
distintos, e, a cada ação, fortalecia-se a idéia de que o caminho escolhido pelo
governo seria o do endurecimento progressivo do regime.
Essa divergência no interior da coalizão que esteve unida durante o golpe, em
1964, é perceptível através da análise dos editoriais dos jornais publicados entre a
eleição de Costa e Silva e a promulgação da Constituição de 1967. Nota-se que, do
consenso inicial em torno do “movimento revolucionário”, passa-se a duras críticas ao
modus operandi do governo e à quase oposição ao regime. Exceto pela posição do
jornal O Globo, partidário incondicional do regime.
Os jornais que, antes, apresentavam um definição semelhante do que seria a
“vontade nacional”, passam a caracterizá-la de modos diversos. O “sujeito coletivo”,
“o Brasil”, “a nação”, “o país”, etc., que anteriormente englobava o regime e o “povo
brasileiro”, deixa de existir para dar lugar a múltiplos sujeitos. A vontade “unívoca”
fragmenta-se. O que permanece igual no discurso jornalístico é a tentativa dos jornais
de persuadir os seus auditórios de que a opinião expressa nos editoriais tem real
correspondência com a defesa dos “ideais democráticos típicos da nação brasileira”.
Com relação à conjuntura que envolve desde a eleição de Costa e Silva até a
promulgação da Constituição em janeiro de 1967 é possível elaborar o seguinte
quadro de síntese para o capítulo:
QUADRO DE SÍNTESE DO CAPÍTULO
JB OG OESP
Regime militar Crítico Favorável Favorável
Ações do governo Crítico Favorável Crítico
Preservação do Legislativo Favorável Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Favorável Contrário Favorável / Contrário
Resistência do Legislativo Favorável Contrário Favorável / Contrário
64
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 98.
251
Com base nos dados acima, é possível perceber a opção do governo pela
preservação de determinados princípios e instituições democráticas como meio de
buscar legitimação, particularmente, a preservação do Legislativo. Ao mesmo tempo,
indica que a preservação deste Poder não foi uma simples conseqüência da
benevolência do Executivo. Em parte, o governo sabia que não podia abrir mão da
existência e do “diálogo” com o Legislativo. Mas, é impossível ignorar que, com a
pequena margem de manobra que possuía, alguns parlamentares procuraram lutar pela
autonomia do Congresso, e acabaram tornando o Legislativo em um obstáculo a
certos objetivos do regime. Prova desta resistência é o processo de elaboração da
Constituição de 1967. Segundo M.ª D’Alva Gil Kinzo,
(...). Esta Constituição era claramente autoritária e legalizava um Executivo
todo-poderoso. Entretanto, mantinha eleições diretas para os governos
estaduais e algum nível de independência para o Congresso. A este
respeito, deve-se lembrar que o Ato Institucional 2 (AI-2) que havia dado
poderes a Castelo Branco de cassar mandatos e suspender os direitos
políticos de qualquer cidadão expirou ao final de seu governo, tendo a
Constituição de 1967 restabelecido as imunidades parlamentares, que
somente poderiam ser suspensas em casos de processos contra
parlamentares, se o Congresso desse permissão. O caso Márcio Moreira
Alves em 1968 é um exemplo claro das conseqüências do estabelecimento
desta estrutura legal.
65
Essa suposta ambigüidade do governo Castelo Branco, materializada no texto da
Constituição de 1967, na realidade, fazia parte da estratégia da facção no poder para
preservar o regime. Essa preservação depende sempre de um consenso que não é
obtido unicamente pelo medo de sanções ou por benefícios econômicos. Depende da
aceitação de suas normas e procedimentos básicos
66
. A manutenção de determinadas
instituições democrático-representativas, entre elas o Poder Legislativo, é um
requisito para se chegar a essa aceitação. Os militares brasileiros no poder
reconheciam esta necessidade e a adotaram não como uma simples fachada, mas
como uma condição indispensável à continuidade do regime.
65
KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 219.
252
A política dualista de Castelo Branco gerou um conflito entre o Executivo e o
Legislativo, que foi em um crescente durante a primeira fase do regime. Primeiro, em
fins de 1965, a recusa do Congresso em aceitar as propostas de endurecimento
levaram à edição do AI-2. Em um segundo momento, o Legislativo se levantou
contra a cassação de seis de seus membros, o que resultou na decretação do seu
recesso.
Apesar destes desfechos, de acordo com Schmitter, essas ações não faziam parte
de um projeto previamente estruturado. Para o autor, seriam respostas às conjunturas
que surgiam. Segundo Schmitter,
(...) Não há indícios substanciais de que os golpistas de 1964 tenham
previsto ou desejado o desfecho que acabaram por produzir. Eles parecem
sinceramente ter acreditado que estavam dando o primeiro passo no sentido
de demolir, e não de aperfeiçoar, o sistema getulista. Não vejo nenhum
grande desígnio no que eles fizeram nos seis anos seguintes, e sim uma
mera seqüência de respostas reativas e interrelacionadas a crises que iam
emergindo, cada uma das quais reduzindo a probabilidade de qualquer
retorno a um governo civil e democrático (...) Eles chegaram onde estão,
em termos institucionais, ‘pela força das coisas’ e não por um intento
específico.
67
“Por força das coisas” ou não, o fato é que o Legislativo foi seguidamente
atingido pelos atitudes discricionárias da “Revolução”. Mas, apesar disto, com a
pequena margem de manobra obtida com a Constituição de 1967, o Congresso
procurou resistir, o que intensificou o conflito entre os dois Poderes. Como resultado,
em fins de 1968 ocorre o ápice da crise, com a edição do AI-5 e um maior
endurecimento do regime. Esta crise viria a demonstrar a inviabilidade da política
praticada.
66
Ver, sobre esta questão, LAMOUNIER, Bolivar. “O discurso e o processo (da distensão às opções do
regime brasileiro)”. op. cit., p. 88-120.
67
SCHMITTER, Philippe C., citado por: LAMOUNIER, Bolivar. “Authoritarian Brazil Revisitado:
O impacto das eleições na abertura política brasileira, 1974-1982”. op. cit., p. 290.
253
Capítulo V – Dia dos Cegos: o fracasso do sistema híbrido.
Ontem foi o Dia dos Cegos.
1
Na tentativa de legitimar um governo eleito sem a sanção popular, Costa e Silva
tomou posse em 15 de março de 1967 com promessas de liberalização e de
redemocratização do Brasil, com o restabelecimento dos processos político-
representativos. Essa política ficou conhecida como “política do alívio”. Como
pressuposto, a oposição deveria ser chamada a dialogar com o governo, mas, ao
mesmo tempo em que propalava esta política, o governo intensificava a onda
repressiva. Segundo Maria Helena Moreira Alves,
(...). O governo estava pronto a oferecer concessões limitadas à oposição,
em troca de um apoio limitado, e de sua legitimação. (...). O governo
efetivamente acenou a membros do MDB com a possibilidade de
negociação, dando a entender que seria possível promover algumas
modificações na Constituição. Mas simultaneamente ao início deste
diálogo, a Polícia Militar e outros agentes do Aparelho Repressivo lutavam
com manifestantes nas ruas das grandes cidades e davam prosseguimento a
ampla campanha de buscas e detenções nos principais Estados.
A contradição entre a linguagem do consenso e do diálogo e o aumento
da repressão nas ruas anulou a legitimidade que se esperava obter com a
promessa de liberalização. Como a “política de alívio” dependia de um
grau de consenso impossível em condições repressivas, o Estado evoluiu
para uma situação de crise interna e externa. (...).
2
Externamente, cresciam a insatisfação com o governo e o movimento
oposicionista, tanto dentro quanto fora do Congresso. Proliferavam manifestações de
protesto e ataques terroristas. Trabalhadores, estudantes, artistas, intelectuais,
eclesiásticos e políticos ligados à classe média, “espinha dorsal da Revolução de
1
Pequena manchete, em duplo sentido, posta à direita do cabeçalho com o nome Jornal do Brasil, que
fazia referência às comemorações do dia de Santa Luzia e à edição do AI-5. À esquerda veio impressa
a capciosa previsão do tempo que dizia: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável.
O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, em Laranjeiras”.
Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1968, p. 1.
2
ALVES, M.ª Helena M. Estado e Oposição no Brasil, 1964-1984. op. cit., p. 112-113.
254
1964”
3
, insatisfeitos com a política econômica recessiva e a conseqüente queda do
poder aquisitivo dos salários, iam às ruas contra o governo.
Apesar de dispersos entre as diversas facções de esquerda e de operarem na
clandestinidade, os estudantes intensificaram as suas manifestações
4
. A princípio,
elas versavam, basicamente, sobre melhorias no ensino universitário do país e sobre a
livre organização estudantil. Com o tempo, cresceram e atraíram o apoio e a presença
de membros das camadas médias, da igreja, da intelectualidade e do operariado, e
passaram a contestar o regime.
Em 28 de março de 1968, ocorreu um marco nas manifestações estudantis.
Neste dia, em torno do restaurante conhecido como “Calabouço”, na cidade do Rio de
Janeiro, estudantes reivindicavam melhorias na comida e nas instalações do prédio. A
polícia militar reagiu à manifestação de forma desmedida e um tiro atingiu e matou o
estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto. Edson Luís virou um mártir para
os manifestantes e a sua morte atraiu a indignação popular para o regime.
Seu corpo foi velado da Assembléia Legislativa do estado e seu funeral se
tornou uma imensa manifestação de protesto contra a repressão. Na missa de sétimo
dia por sua morte ocorreu outro confronto. Ao sair da igreja da Candelária, no centro
da cidade, a multidão de cerca de trinta mil pessoas presente à missa foi atacada por
um esquadrão da cavalaria da Polícia Militar. Em solidariedade aos estudantes, a
Igreja Católica protestou contra a ação policial.
Com a repressão, o governo visava inibir novas manifestações de protesto. No
entanto, gerou um efeito contrário, já que proliferaram pelo país marchas de
solidariedade. Entre elas, destaca-se a “Passeata dos Cem Mil”, realizada, também,
no centro da cidade do Rio de Janeiro, no dia 25 de junho de 1968.
3
Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 156.
4
A síntese apresentada sobre as manifestações ocorridas em 1968 toma como base as obras:
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 152-156, ALVES, M.ª
255
Essas manifestações em luta pelas liberdades civis pareciam indicar o início do
fim da ditadura militar. No entanto, os donos do poder não estavam dispostos a sair
de cena. Em resposta, no início de julho, o governo proibiu a realização de quaisquer
marchas de protesto. Mesmo assim elas continuaram. O Governo decidiu, então,
intensificar, ainda mais, a repressão.
Em 30 de agosto, a polícia invadiu o campus da Universidade de Brasília e
prendeu estudantes e professores. Desta vez a reação à repressão partiu do Congresso
Nacional, onde uma comissão de inquérito acusou a polícia de violência premeditada.
Em outubro, ocorreu o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, localidade próxima
da cidade de São Paulo. Como a entidade estudantil estava na clandestinidade, o
congresso deveria ser realizado de modo secreto. Cerca de mil estudantes
compareceram. Infelizmente para os estudantes, a polícia também. Como resultado
da ação policial, 920 estudantes foram presos. Este foi um duro golpe para o
movimento estudantil brasileiro
5
.
Artistas e intelectuais juntaram-se aos estudantes nas manifestações. Além
dessa presença, utilizaram-se da arte como forma de protesto. Chico Buarque, Zé
Celso Martinez, entre outros, fizeram da música e do teatro, através de peças como “O
Rei da Vela” e “Roda-Viva”, bandeiras contra o regime. A intenção dos intelectuais e
artistas seria uma resistência pacífica e não a luta armada, ao contrário da opção
tomada por parte da esquerda. Contudo, a repressão a essas manifestações artísticas
nada teve de pacífica. Teatros foram invadidos, artistas foram espancados e
seqüestrados
6
. Em sentido contrário às promessas de liberalização, atacava-se as
livres manifestações do pensamento.
Helena M. op. cit., p. 115-119 e GASPARI, Elio. Ilusões Armadas – A ditadura envergonhada. op.
cit., p. 277–307.
5
Cf. GASPARI, Elio. op. cit., p. 322–325.
6
Idem, p. 299-301.
256
Com relação ao operariado
7
, o regime vinha implementando uma política de
controle dos sindicatos, federações e confederações trabalhistas, através da
proliferação de pequenas organizações sindicais, muitas criados pelo próprio Estado, e
também através de um trabalho de renovação das lideranças sindicais e do
treinamento dos seus líderes. Visava, assim, contar com a colaboração de tais
entidades para com o governo. Essa política não gerou o sucesso esperado, pois, a
“oposição sindical” não deixou de lutar para reaver os cargos perdidos.
A insatisfação dos trabalhadores levou à eclosão de movimentos grevistas. Em
16 de abril de 1968 iniciou-se a primeira greve durante o regime militar.
Metalúrgicos da fábrica Belgo-Mineira, de Contagem, cidade industrial de Minas
Gerais, exigiam reposição salarial. O movimento cresceu com a adesão de outros
trabalhadores da área. Uma comissão dos grevistas, totalmente independente com
relação ao sindicato da categoria, tomou a frente do processo. O governo participou
das negociações entre patrões e empregados, mas não se chegou a um acordo.
Decidiu, então, reprimir. A polícia ocupou a cidade e proibiu manifestações. Por fim,
os trabalhadores obtiveram um abono de dez por cento. Apesar do movimento não ter
terminado da forma que os manifestantes queriam, novos protestos trabalhistas
proliferam pelo país.
Em maio, em um comício organizado pelo PCB, em São Paulo, para comemorar
o Dia do Trabalho, manifestantes ligados à esquerda armada acabaram com o
encontro. Expulsaram os palestrantes, incendiaram o palanque e transformaram o
comício em uma passeata em direção ao centro da cidade, onde alguns dos
participantes destruíram as vidraças de uma agência do Citibank.
Em julho, estourou outra greve. Dessa vez em Osasco, município do Estado de
São Paulo. Contando com a participação e o apoio do sindicato, o movimento foi
7
A síntese apresentada sobre as manifestações ocorridas em 1968 toma como base as obras:
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 156-159, ALVES, M.ª
257
melhor organizado do que o de Contagem. Apesar dessa organização prévia, seu
início acabou sendo antecipado de última hora.
Originalmente a greve estava prevista para ocorrer apenas em novembro. Mas,
uma ação em uma das fábricas da região precipitou o seu início. Contudo, ao
contrário do que ocorrera em Contagem, em Osasco não houve negociação. O
governo interveio de forma dura, prendendo muitos dos envolvidos na greve e dando
um fim ao movimento.
Além do apoio aos estudantes, os eclesiásticos também, a seu modo,
protestaram contra o regime. Um desses meios foi a publicação de um artigo no
jornal carioca, Correio da Manhã, em 21 de julho de 1968. Neste artigo, uma
comissão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) classificou a
ideologia de segurança nacional de doutrina “fascista”. Outro protesto ocorreu em
outubro. Naquele mês, o cardeal-arcebispo de São Paulo e presidente da CNBB, Dom
Agnelo Rossi, se recusou a celebrar a missa de aniversário para o presidente Costa e
Silva, gesto que foi considerado como um insulto pessoal ao presidente
8
.
Pacificamente, a igreja demonstrava a sua insatisfação. No entanto, nem todas as
formas de protesto contra o regime eram pacíficas.
O terrorismo de esquerda também foi uma forma encontrada pelos opositores do
regime para demonstrar a sua insatisfação com a ditadura.
Em janeiro, uma agência bancária em São Paulo foi assaltada por um grupo que
viria a se denominar de Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em fevereiro, um
carro-forte foi assaltado em Mauá. Em março, uma bomba foi jogada contra a
biblioteca do consulado americano em São Paulo
9
. Eram apenas os passos iniciais de
um movimento de resistência armada ao regime. Processo este que se intensificaria
nos anos seguintes.
Helena M. op. cit., p. 119-126 e GASPARI, Elio. op. cit., p. 287-290.
8
Cf. STEPAN, Alfred C. Os Militares na Política. op. cit., p. 187-188.
258
Em resposta às manifestações contrárias ao governo, eclodiu o terrorismo de
direita. De forma independente ao centro do poder, grupos militares passaram a
seqüestrar e torturar possíveis opositores do regime. O governo perdia o controle da
máquina repressora do Estado. Essa perda não passava desapercebida. Quanto a isto,
é ilustrativa a nota do jornalista Carlos Castello Branco. Dizia a nota:
(...) [O quadro político do Brasil] Está aí, no dia-a-dia, ao alcance de todos.
Testemunhas não são mais convocadas para depor. São raptadas. O
Congresso é um clube de baderneiros e aproveitadores, e é preciso quebrar
seus privilégios, a começar pela inviolabilidade do exercício do mandato.
Reitores de universidade, que não se dobram à pressão radical, são levados
para depor horas a fio, madrugada adentro, nos centros de informação.
Quem se detiver frente a uma loja de discos pode ser preso se a música
posta na vitrola for subversiva. A intolerância amedronta, paralisa e abre
IPMs por toda parte.
O Presidente da República nega que tenha alguma coisa a ver com esses
excessos. Mas a verdade é que os excessos são o próprio quadro da vida
brasileira de hoje e o governo nada faz para afirmar sua autoridade e impor
seus próprios critérios à maré montante da repressão e da guerra
revolucionária desencadeada dos gabinetes.
10
Partindo “dos gabinetes”, essa repressão tinha senhores. De acordo com Eliézer
Rizzo de Oliveira,
(...) a repressão aos movimentos estudantis, operários e eclesiásticos, nas
ruas e nas universidades, parece tornar-se relativamente autônoma em
relação a um controle direto do governo, alijando Costa e Silva do grupo
que inicialmente o sustentara ao nível militar: a linha-dura. (...).
11
Relativamente autônomas com relação ao centro de poder, as ações terroristas
de direita proliferaram. Dentre todas, talvez a mais espetacular seria, se tivesse sido
concretizada, a ação que resultou no caso Para-Sar.
Em junho, sob as ordens do Brigadeiro João Paulo Burnier, chefe-de-gabinete
do ministro da Aeronáutica, membros da 1.ª Esquadrilha de Salvamento e Resgate da
FAB, o Para-Sar, foram deslocados, teoricamente, para missões de patrulhamento das
ruas. Na verdade, o que se pretendia era realizar uma série de atentados, que seriam
9
Cf. GASPARI, Elio. op. cit., p. 280-281.
10
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 496. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 13 de outubro de 1968.
11
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969). op.
cit., p. 87.
259
imputados à esquerda, e, a seguir, eliminar opositores e críticos do regime, como, por
exemplo, Carlos Lacerda e Jânio Quadros.
O desvirtuamento das funções originais de salvamento provocou a contrariedade
de um dos membros do Para-Sar, o capitão Sérgio Miranda de Carvalho, apelidado
Sérgio Macaco. O capitão denunciou o brigadeiro. Foi instaurado um inquérito
sigiloso, durante o qual Burnier negou tais intenções. Por fim, de modo fraudulento, o
brigadeiro foi absolvido e o capitão punido com uma transferência para Recife
12
.
Por outro lado, a nova política econômica, então liderada pelo Ministro da
Fazenda Antônio Delfim Netto, não gerou apenas protestos. Ela também apresentou
alguns êxitos.
Se referindo de um modo geral sobre os regimes militares instalados na América
do Sul a partir dos anos 1960, Guillermo O’Donnell
13
esclarece que, entre os êxitos
obtidos com a política recessiva desses regimes estaria a diminuição do déficit da
administração central e das empresas públicas. Contudo, como frisa O’Donnell, isto
teria ocorrido “às custas de acentuar as tendências recessivas e de afastar do acesso a
serviços básicos uma parte considerável da população”
14
. A curto prazo, claramente,
só apareceriam “a melhora da balança de pagamentos, produto de melhores saldos
exportáveis causados pela queda do consumo interno e pela entrada de capital
exterior, atraído pelos elevados rendimentos das também liberadas taxas de juros”
15
.
Apesar disto, essa política recessiva, em especial a partir das mudanças
processadas por Delfim, também beneficiou determinados grupos. De acordo com
M.ª Helena M. Alves,
(...). A nova política econômica visava sobretudo alterar o padrão de
consumo das classes médias superiores para promover o crescimento do
setor de bens duráveis. E, enquanto se atrelavam os níveis salariais à taxa
12
Cf. GASPARI, Elio. op. cit., p. 286-304.
13
O’DONNELL, Guillermo. “As Força Armadas e o Estado Autoritário no Cone Sul da América
Latina”. op. cit., p. 290.
14
Ibidem.
15
Idem, p. 290-291.
260
oficial da inflação, para diminuir os custos de produção, incentivos fiscais
eram concedidos às camadas mais altas da população, para estimular o
investimento.
16
Delfim defendia o estímulo da demanda pelo afrouxamento do crédito. Nesse
sentido, em 1967, o crédito bancário ao setor privado aumentou em 57 por cento, e a
economia cresceu 4,8 por cento, e a inflação ficou em 24 por cento
17
. O ministro
também acenou com uma política de recomposição das perdas que o salário mínimo
havia sofrido. No entanto, o aumento real do salário foi pequeno e efêmero
18
.
Guillermo O’Donnell conclui que as políticas econômicas adotadas pelos
governos militares instalados no cone sul da América Latina, de tipo aberta e
integrada à economia internacional, “favorecem as camadas mais concentradas e
transnacionais da burguesia”, ao mesmo tempo que “encurralam e lançam fora do
mercado numerosas empresas e empobrecem diversos setores médios”
19
. A política
econômica da ditadura militar no Brasil tomou este norte.
Embora grupos como as camadas médias superiores e as camadas mais altas da
sociedade possam ter se beneficiado com a política econômica recessiva adotada pelo
regime, creio que, aos poucos, a classe média mais baixa, principal base de apoio do
golpe, atingida em seus níveis salariais e, em conseqüência, em seus poder aquisitivo,
diminuiu o seu apoio ao governo. Em 1968 teria ocorrido um momento crítico desse
processo de perda de legitimidade junto a setores da sociedade civil. Como afirma
Gaspari,
Para quem olhava a crise de dentro do governo, a questão estudantil e
mesmo o terrorismo eram apenas uma parte do problema. As
manifestações de rua indicavam que o regime perdera o apoio da classe
média e até de uma parcela da elite. Para uma Revolução que se
considerara abençoada pelas Marchas de 1964, a Passeata dos Cem Mil fora
uma excomunhão. (...).
20
Portanto, a insatisfação era geral. Como frisou Carlos Castello Branco,
16
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 113.
17
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 144-145.
18
Em 1968 e 1969, ocorreu o pequeno aumento. Em 1970, recomeçou o declínio. Idem, p. 146-147.
261
(...). Insatisfeita está a opinião pública, apreensivas as classes produtoras,
insubmissos os estudantes, rebelde o clero, desmoralizados os políticos e
frustrados os militares. Todos sentem que algo deve mudar, e mudar antes
que o quadro de equívocos degenere em drama de proporções maiores.
21
Em virtude desse quadro de insatisfação generalizada, o Legislativo, preservado
para oferecer uma imagem de espaço de negociação do governo com a sociedade
civil, catalisava as críticas e transformava-se em um obstáculo às ações
“revolucionárias”. Em resposta ao decréscimo de sua função legisladora, o Congresso
intensificou a sua função fiscalizadora das ações do governo. Crescia a tensão entre o
Executivo e o Legislativo. Rompia-se a base parlamentar de apoio ao governo.
Acreditando na promessa de Costa e Silva de redemocratizar o país,
parlamentares procuraram reforçar os poderes do Congresso, e, assim, obter uma
participação mais efetiva no processo político. Nesse sentido, iniciaram uma
campanha oposicionista que visava revogar leis decretadas ao longo dos primeiros
anos do regime. Esse movimento contou com apoio de membros da ARENA
insatisfeitos com a situação em que se encontrava o Legislativo. Os parlamentares do
partido oficial fizeram um movimento denominado PAREDE (Parlamentares da
Resistência Democrática), em cujos objetivos figuravam o restabelecimento da
autonomia e da independência do Legislativo, o aperfeiçoamento das Leis de
Imprensa e de Segurança Nacional e a revisão dos processos que levaram à prisões
políticas e cassações de mandatos.
22
O jornalista Carlos Castello Branco também
menciona esta cisão no interior do partido do governo. Em nota, afirmou:
A cisão na Arena consolida-se e oficializa-se. O Presidente Costa e
Silva não conta com largo setor do partido para a prática da política
19
O’DONNELL, Guillermo. op. cit., p. 288.
20
GASPARI, Elio. op. cit., p. 309.
21
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 519. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 4 de novembro de 1968.
22
Sobre os objetivos da PAREDE, ver: ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary
D. “As funções do Legislativo”. op. cit., p. 80 a 82.
262
repressiva preconizada pelo Ministério da Justiça e que, no seu entender,
subverte as instituições democráticas.
23
Esta cisão demonstra que um grupo considerável de parlamentares não
concordava que o Legislativo exercesse apenas o papel de instrumento dócil nas mãos
do governo. Apesar de enfraquecidos, buscavam recobrar os poderes originais do
Congresso. Segundo Sérgio Abranches e Gláucio Soares, “Esta reação contra a
legislação castelista não tinha como objetivo simplesmente afastar leis consideradas
autocráticas ou ditatoriais. Havia uma clara consciência da necessidade de revitalizar
o Congresso, recobrando os poderes perdidos.”
24
A idéia de preservar o Legislativo
em busca da construção de uma imagem democrática para o regime estava se
tornando um obstáculo às pretensões “revolucionárias”.
Essa dissidência, entretanto, não ficou restrita à base parlamentar oficial. Dois
expoentes civis do movimento “revolucionário”, Magalhães Pinto e Carlos Lacerda,
logo depois do golpe começaram a se distanciar do movimento.
Lacerda e Magalhães Pinto foram dois dos principais líderes civis da
“Revolução”. Lacerda, então virtual candidato da UDN à sucessão de João Goulart
25
,
utilizou-se de seu jornal, Tribuna da Imprensa, para desferir ataques ao então
presidente
26
. Magalhães Pinto, por sua vez, havia se preparado para resistir a um
possível golpe por parte de Jango. Caso isto viesse a ocorrer, o então governador
mineiro declararia um estado de beligerância e procuraria resistir às forças federais.
Como Jango não deu o suposto golpe, Magalhães Pinto decidiu por dar suporte à ação
militar, que deveria partir de Minas
27
.
No entanto, atingidos, pela permanência do regime militar, em seus objetivos
políticos de chegar à presidência da República, Magalhães Pinto e Carlos Lacerda
23
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 547. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 2 de dezembro de 1968.
24
ABRANCHS, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 82.
25
Sua candidatura só foi homologada na convenção do partido realizada em 8 de novembro de 1966.
26
Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 92.
27
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 146-147 e 150-151.
263
passaram a fazer duras críticas à política do governo. Parte destas críticas se referiam
à relação do Executivo com o Congresso e com o Judiciário e às restrições impostas à
atividade política. Em 1967, essas insatisfações levaram os dois políticos a organizar
a Frente Ampla. Buscando legitimar a Frente junto a políticos e setores sindicais e
trabalhistas, Lacerda e Magalhães Pinto foram buscar o apoio dos ex-presidentes
Juscelino Kubitschek e João Goulart.
A Frente Ampla foi recebida com entusiasmo por amplos setores políticos e pela
opinião pública. Entretanto, foi tida como uma ameaça ao Estado, pois atraía
representantes conservadores da classe média, que haviam apoiado o golpe. Entre os
comandantes de tropa, a Frente gerou a convicção de que ela era uma ameaça a ser
enfrentada com energia
28
.
Em resumo, grupos antagônicos uniam-se no protesto contra o regime militar.
De acordo com a análise de Maria Helena Moreira Alves,
A maturação do modelo econômico e a política repressiva dos governos
pós-1964 propiciaram uma aliança informal de vários setores da oposição,
iniciada em 1967 e transmudada em movimento social de massas em 1968.
Embora se organizassem independentemente, os setores de oposição
uniram-se nas grandes manifestações e passeatas de protesto de 1967-1968.
Três setores principais adquiriram força e coordenação suficientes para
afetar em profundidade as estruturas políticas do país: o movimento
estudantil, o dos trabalhadores e a Frente Ampla. Estes diferentes setores
da oposição manifestavam seus pontos de vista em manifestações de rua,
comícios e passeatas, assim como no Congresso Nacional, através de um
grupo de deputados do MDB eleitos em 1966. Juntos, exerceram
considerável pressão sobre o Estado, provocando um conflito interno sobre
duas políticas alternativas: maior liberalização das diretrizes políticas,
sociais e econômicas ou uma terceira e ainda mais ampla investida
repressiva.
29
A oposição acreditava que as manifestações poderiam abalar as estruturas do
regime militar. Contudo, não avaliaram o risco de uma nova investida repressiva, o
que, por fim, ocorreu. O Estado não poderia tolerar um movimento organizado a
partir das bases. A insatisfação geral e as manifestações contra o governo, aliado à
28
Cf. ALVES, M.ª Helena. op. cit., p. 126-128. Para outra análise sucinta sobre a Frente Ampla ver:
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit.,, p. 148-151.
264
influência da Frente Ampla em setores conservadores e até mesmo militares, levou o
regime a optar por baixar um decreto em início de abril de 1968 proibindo as
atividades da Frente. Segundo M.ª Helena Moreira Alves,
(...) o Estado pretendia assim eliminar por simples decreto um movimento
social, dando com isso novo exemplo das contradições entre o processo de
liberalização e o emprego da repressão para remover da cena política
setores “antagônicos” da oposição. Mesmo tentando absorver pressões dos
setores dedicados à defesa da Segurança Interna, o governo continuava
empenhado em discutir com a oposição uma possível reforma
constitucional, em grande parte sob os auspícios do Vice-Presidente Pedro
Aleixo. A contradição entre os dois processos era direta conseqüência das
diferenças de metas entre setores da coalizão no poder, e das contradições
conceituais da própria Doutrina de Segurança Nacional. Os Objetivos
Nacionais Permanentes referem-se à democracia; as exigências da
Segurança Interna tornam intolerável a dissensão. Não surpreende que o
Estado se visse engolfado em profundo conflito interno. Já havia, no
interior da coalizão, grupos preparando um segundo golpe de Estado para
impor uma terceira onda de repressão – situação que provocaria confronto
entre o Executivo e o Legislativo, com conseqüências em última análise
trágicas.
30
Estes grupos tinham raízes na “linha-dura”.
Desde o início do regime, a política híbrida adotada não satisfazia setores mais
voltados para o conceito de “Segurança Interna”. À predisposição ideológica desses
setores somou-se o receio gerado pelas manifestações de oposição ao governo
ocorridas no ano de 1968.
Os “duros” estavam insatisfeitos com a situação política do país e com a mácula
que as críticas provocavam à imagem das Forças Armadas. Tais críticas apontavam
os militares como únicos responsáveis pela “Revolução”, principalmente pelos efeitos
nefastos da política econômica recessiva e pela repressão. Face a isto, militares da
“linha-dura” aumentaram a pressão sobre o governo. Como afirma o jornalista Carlos
Castello Branco,
Como os militares são aparentemente os responsáveis pela situação que
aí está, a qual decorre das idéias e princípios impostos em seu nome pelos
grupos que ascenderam ao poder, contra eles se volta a prevenção das
correntes populares. A verdade, no entanto, é que eles também não se
29
ALVES, M.ª Helena. op. cit., p. 115.
30
Idem, p. 128.
265
reconhecem no regime que aí está e se apresentam tão descontentes quanto
qualquer outro agrupamento social.
31
Intensificava-se o cisma entre militares “moderados” e a “linha-dura”. Os
“duros” criticavam a “complacência” dos “moderados” com a oposição e, segundo
Skidmore, mostravam-se irritados com a perda progressiva de seu status e a erosão de
seus soldos
32
. As agitações estudantis que ocorriam pelo mundo
33
também trouxeram
temor à “linha-dura” de que, no Brasil, influenciado pelos movimentos externos, o
movimento estudantil se tornasse incontrolável. Exigiam uma ação enérgica e rápida
para o controle da situação.
34
Como resposta, o governo intensificou a onda
repressiva. Em conseqüência, aumentou o seu isolamento com relação à sociedade
civil. Restava-lhe, como base de apoio, quem o sustentou desde o início: as Forças
Armadas.
Mas as pressões internas continuavam. Os “duros”, insatisfeitos também com a
“aproximação” de Costa e Silva com os políticos civis, acusavam-no de ter traído os
ideais apolíticos da “Revolução”. A “linha-dura” pretendia eliminar ao restrições
políticas às realizações “revolucionárias”
35
. Costa e Silva, que vinha mantendo a
diretriz híbrida da política estabelecida pelo primeiro governo da “Revolução”, teve
que enfrentar, assim como Castelo, a contrariedade dos “duros”. Isto significava
definir-se entre os “moderados” e a “linha-dura”, entre a preservação e o respeito a
princípios e instituições democráticas e um endurecimento do regime. Diante da crise
fabricada em torno do discurso do deputado Márcio Moreira Alves, Costa e Silva
escolheu a Segunda opção, escolheu a “linha-dura”.
31
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 519. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 4 de novembro de 1968.
32
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 161.
33
Em Paris, estudantes e trabalhadores se uniram para conseguir concessões do governo – melhores
salários, reorganização universitária. Nos Estados Unidos, os protestos eram contra a guerra do Vietnã.
Outras manifestações também ocorreram em Berlim, na Alemanha Ocidental, e em Tóquio, no Japão.
Cf. SKDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 161.
34
Ibidem.
35
Cf. STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 188.
266
De acordo com Georges-André Fiechter
36
, a realidade social, econômica e
política fez com que a esperança de Costa e Silva de “humanizar” o regime se
desfizesse em 12 meses. Se Costa e Silva tentasse uma abertura, se exporia a um
golpe militar. Se procurasse satisfazer a “linha-dura”, deveria renunciar ao
legalismo e estabelecer uma ditadura de fato. Para o autor, esse jogo se tornou
impossível dentro do contexto de “um sistema parlamentar, muito artificial para ser
verdadeiramente representativo, e de um poder militar muito inexperiente para ser
tolerante”
37
. Para Gaspari,
Capturado pelo processo de anarquia militar desde o alvorecer de sua
candidatura, Costa e Silva, como Castello, governava sob a pressão dos
generais que o garantiram. À diferença de seu antecessor, não fez nenhum
esforço real para fortalecer as instituições republicanas. De março a
setembro de 1968 aplicou à crise o remédio da procrastinação. Nem
reprimiu as manifestações de rua quando elas pareciam uma tempestade
mundial, nem enquadrou o radicalismo do regime quando ele se
criminalizou. Pode-se entender que, por razões ideológicas, e até mesmo
por convicção, Costa e Silva não tivesse soluções a oferecer à esquerda,
mas sua desastrosa contribuição decorreu do fato de ele não ter oferecido
soluções nem sequer à direita.
38
Em suma, em 1968, crescia a oposição ao regime. Este fato foi um resultado
direto da política econômica recessiva e da intensificação da onda repressiva por parte
do governo. Crescia, também, as insatisfações internas com os rumos tomados pelo
governo Costa e Silva. A crise se generalizava, e, apesar dos esforços, a legitimidade
do regime mantinha a tendência de queda. Segundo Sérgio Abranches e Gláucio
Soares,
No fundo, a generalidade da crise revelava a pouca legitimidade do
governo, que a despeito das medidas de exceção e da concentração de
poderes nas suas mãos não tinha conseguido resolver os problema
fundamentais do país: as reformas progressistas prometidas por Castelo
Branco não foram efetuadas, o desemprego aumentou, o ritmo de
crescimento do PNB continuava baixo, os salários reais dos trabalhadores
baixaram violentamente, etc. Acima disso tudo, o clima de repressão, falta
de liberdade e a consciência de que as decisões nacionais não eram tomadas
36
FIECHTER, Georges-André. O Regime Modernizador do Brasil – 1964-1972. op. cit., p. 227.
37
Idem., p. 227-228.
38
GASPARI, Elio. op. cit., p. 315.
267
pela sociedade civil e seus representantes, mas sim por um reduzido número
de militares, alienavam importantes setores da sociedade.
39
Em fins de 1968, a sensação de crise institucional era perceptível nas análises
presentes nos editoriais dos jornais. Observa-se, ainda, a queda do apoio da sociedade
civil ao regime e a busca do Legislativo para reaver os poderes roubados. Além disso,
é possível notar, não só pelo que é relatado, mas principalmente pela opinião dos
editorialistas, a fragmentação existente na base de sustentação do governo.
Divergências surgiam quanto às responsabilidades pela crise, e o governo militar não
era poupado das críticas. Contar com o auxílio da imprensa na tentativa de forjar uma
ilusão de um consenso quanto a uma suposta imagem “democrática” do regime, e,
assim, reforçar o “poder simbólico” dos dirigentes, tornava-se um ideal distante.
335. Nestas últimas semanas, que precederam o Dia da Pátria,
desencadeou-se uma campanha sub-reptícia de detração sistemática das
Forças Armadas. Não faltou até mesmo um movimento organizado que
prega o boicote do povo ao tradicional desfile de Sete de Setembro. Pagam
as Forças Armadas – e particularmente o Exército – um alto preço pelo
exercício do poder por um cidadão saído de suas fileiras. A impopularidade
do Governo, fruto de uma série de medidas drásticas mas indispensáveis na
área econômico-financeira, e de um acervo de erros desnecessários, que
temos sido os primeiros a denunciar, é transferida injustamente para toda a
corporação militar. (Jornal do Brasil, 7 de setembro de 1968, p. 6, tít.:
Forças Armadas)
336. (...). Reclamam deputados e senadores, que não podem fazer muito
em decorrência das limitações que lhe foram impostas pela Constituição.
As limitações são, essencialmente, duas: proibição de desfigurar a proposta
orçamentária e a exigência do prazo de votação dos projetos.
Não é preciso lembrar o que era em passado recente o carnaval de verbas,
em que se mascaravam de boas intenções torpes manobras eleitoreiras. A
conta da festa era debitada ao país. No que respeita aos prazos, é ocioso
lembrar como o Congresso tinha poderes para sumir com leis a ele
submetidas, durante anos a fio. O país que se danasse, quando os políticos
não conseguiam harmonizar, através de barganhas vis, os seus interesses
com as necessidades do Governo. Ainda aí quem pagava era o país. (Jornal
do Brasil, 27 de setembro de 1968, p. 6, tít.: Centro da Democracia)
337. (...). Não se conhece ainda do Congresso o menor gesto para adaptar-
se ao conceito moderno de funcionamento do Legislativo. É ponto pacífico
que fazer leis não é a missão moderna do Legislativo, hoje órgão
eminentemente político. A complexidade técnica das leis transfere hoje ao
Executivo a feitura de seu texto e reserva ao Congresso, corpo político, sua
aprovação e fiscalização do Governo, numa dimensão maior que se tornou
39
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 83.
268
o grande campo de ação dos representantes do povo. (Jornal do Brasil, 27
de setembro de 1968, p. 6, tít.: Centro da Democracia)
338. (...). As raízes da crise atual estão plantadas no terreno árido em que
se edificou o sistema constitucional derivado de 1964. Pelo fato de ter
perdido o apoio popular que a legitimava, a Revolução de 64 não teve a
coragem de institucionalizar-se pela única via adequada, que teria sido a
convocação de uma assembléia constituinte. (Jornal do Brasil, 30 de
setembro de 1968, p. 6, tít.: Tempo de Pensar)
339. Não há como deixar de reconhecer que as representações políticas na
atualidade são apenas uma fachada, que o Governo compõe para salvar
aparências. Por isso nenhum progresso foi feito no sentido de tornar
autêntico o sistema constitucional, capaz de gerar soluções ao invés de
transformar obstáculos em crise. (...).
(...)
Seria um bom começo, por exemplo, devolver aos políticos a missão
política, em lugar de estiolá-la a ponto de fazer com que agitação de rua se
tornasse manifestação de política. (...). (Jornal do Brasil, 30 de setembro
de 1968, p. 6, tít.: Tempo de Pensar)
340. O fato é que se faz urgente encontrar a saída para o impasse que se
fecha, e a única via de acesso às possibilidades democráticas do sistema
está representada pelo exercício da política. (...). (Jornal do Brasil, 31 de
setembro de 1968, p. 6, tít.: Um Impasse)
341. Além de não ter berço político, o candidato recusou, depois de eleito, a
confirmação pela política, através da qual se beneficiaria da legitimidade,
que não decorre apenas de aparência e sim de representatividade. Um
governante eleito sem alternativa pelo Congresso, na vigência de um hiato
constitucional, não pode dispensar impunemente o exercício da política, sob
pena de institucionalizar a crise que está aberta para receber adesões.
(Jornal do Brasil, 31 de setembro de 1968, p. 6, tít.: Um Impasse)
342. Como cortina de fumaça, a subversão lança boatos como o do
fechamento do Congresso. Ora, a verdade histórica documenta
precisamente o contrário: foi a Revolução que evitou a liquidação da
Câmara e do Senado, que já se encontravam no corredor da morte,
condenados em sentença pública pelo brizolismo em avanço galopante. (O
Globo, 8 de outubro de 1968, p. 1, tít.: Um pouco mais de energia)
343. Está em marcha a nova arremetida das forças contra-revolucionárias.
Todos os meios para lograr a divisão entre os protagonistas do 31 de Março
vêm sendo usados.
E de forma conjugada. Já se nota uma certa coordenação nos diversos
ramos subversivos. Observa-se que se forma algo assim como um comando
em vias de unificação.
Os extremistas nos meios estudantis como que se entrosam agora com
“padres de passeata”, os quais, por seu turno, penetram aos poucos na área
sindical. Os setores parlamentares radicais servem de argamassa para essa
fusão, pois difundem algumas palavras de ordem, valendo-se da cobertura
legal de que desfrutam. (O Globo, 8 de outubro de 1968, p. 1, tít.: Um
pouco mais de energia)
344. (...). O Governo precisa definir mais nitidamente os seus rumos, com
menos falatório e mais energia contra os que pretendem sustar o processo
269
democrático, que só se poderá cristalizar quando a prosperidade bater à
porta de um número muito maior de brasileiros. (O Globo, 8 de outubro de
1968, p. 1, tít.: Um pouco mais de energia)
345. (...) os que falam em ditadura não conseguem provar o que sustentam.
Um país onde a imprensa é livre e onde se vota com plena liberdade é um
país democrático.
Toda sorte de torcicolos verbais, de chicanas, de distorções, de jogo de
meias-verdades ou mesmo de inverdades inteiras tem sido utilizada para
exportar a mentira segundo a qual o Brasil, desde 31 de março de 1964,
viveria dentro de uma noite ditatorial. Os fatos, essas coisas teimosas,
desmancham dia a dia essa montagem. O libérrimo pleito de 15 de
novembro é apenas mais um argumento. Mas, com os que desprezam os
fatos, não há como argumentar. (O Globo, 19 de novembro de 1968, p. 1,
tít.: Análise do pleito)
346. Dentro da Revolução formam-se dois partidos: o dos que desejam
levar avante o movimento e o dos revolucionários que trazem no peito um
sentimento de culpa. Estes, mais que os adversários declarados, são os
maiores responsáveis pelas vacilações que tantos danos têm causado ao
País. É preciso que no Poder só permaneçam os primeiros. (O Globo, 26 de
novembro de 1968, p. 1, tít.: Bifurca-se a Revolução?)
347. A nossa posição em relação às Forças Armadas é de todos conhecida e
vem sendo caracterizada nos últimos anos por um esforço constante no
sentido de uma aproximação cada vez maior entre civis e militares. Essa
atitude, de resto, é a resultante de nos haverem os fatos levado à convicção
de que se vinha verificando um enorme progresso no comportamento dos
nossos quadros militares em face dos problemas nacionais e sobretudo uma
tomada de consciência democrática expressa no grande respeito pelas
instituições demonstrado pela maioria dos elementos das 3 Armas. (...).
Com a vitória de 64, porém, e com a conseqüente formação do primeiro
governo discricionários da República, esse estado de coisas principiou,
infelizmente, a modificar-se. E isso porque, como é de todos sabido, tanto
nós como a maioria dos líderes civis da grande campanha fomos
deliberadamente postos à margem dos acontecimentos para que se
acentuasse a tendência militarista que passou a prevalecer com o advento
do governo do sr. marechal Castelo Branco e que se manteve com a subida
ao poder do sr. marechal Costa e Silva. Já na vigência do regime legal
imposto pela Escola chamada Superior de Guerra contra a decidida
oposição de todos os civis qualificados e da esmagadora maioria da Nação,
o rumo imprimido pelo governo da República à política – se é que se pode
usar o termo – nacional, obrigou-nos, muito a contragosto a divergir cada
vez mais dos chefes militares em cujas mãos caiu a direção do Estado
brasileiro. Essa nosso atitude não refletia aliás somente uma opção
individual, pois coincidiu com a profunda desilusão experimentada pela
maioria dos brasileiros ao acentuar-se a natureza vincadamente militarista
da conjuntura. (...). (O Estado de São Paulo, 2 de outubro de 1968, p. 3,
tít.: A conjuntura nacional e as F. Armadas)
348. (...). Tão radicais eram as correções propostas e tão profundas e
generalizadas eram as medidas que para tal se impunham, que ficou desde o
início patente a necessidade, com a vitória de março, da instituição de um
governo provisório dotado de poderes excepcionais para a execução, sem
tropeços legais, da missão que lhe fora delegada com a consciente
270
aprovação da imensa maioria da Nação. Na incompreensão desse
imperativo por parte dos que assumiram a responsabilidade de pôr em
prática o programa revolucionário devem-se procurar as origens de todas as
iniciativas, atos, recuos e hesitações que, debilitando o governo
revolucionário e evidenciando essa fraqueza, deram virtualmente por terra
com todas as aspirações tão calorosa e longamente acalentadas pelo povo
brasileiro. (...). (O Estado de São Paulo, 20 de outubro de 1968, p. 3, tít.: A
Justiça e a Revolução)
349. Com a legitimação do Congresso, continuou o Legislativo tão mau
quanto antes, com a agravante de se haver desfeito o que ainda lhe restava
de prestígio, em face de sua complacência aos atos que lhe reduziram a
independência e a dignidade. (...). (O Estado de São Paulo, 20 de outubro
de 1968, p. 3, tít.: A Justiça e a Revolução)
350. (...). Como admitir o País que as coisas tivessem alcançado um tal
grau de intensidade que o Alto Comando Militar se julgasse na obrigação
de depositar nas mãos de s. exa. a opção entre um novo Ato Institucional
que viesse restabelecer o processo revolucionários, e a decretação do estado
de sítio?
O noticiário que nos transmite essas informações é o primeiro a observar
que, nos meios políticos, o estado de sítio, pela sua natureza transitória, é
medida das menos adequadas para o momento. Restaria, portanto, a edição
de mais um Ato Institucional. Mas, nesse caso, estaríamos praticamente
diante de um golpe de Estado, pois não vemos como se possa, dentro da
Constituição atual, levar a cabo a promulgação desse diploma. Um Ato
Institucional é por definição um fato revolucionário, a que só recorrem os
governos oriundos de golpes de força. Pensar num meio desses, apenas
porque alguns milhares de estudantes resolveram vir às ruas e nelas
implantar a desordem, na execução de um mandato que indubitavelmente
lhes veio de fora, seria a confissão de uma absoluta impotência por parte
daqueles que têm nas suas mãos os destinos do País. Poder-se-ia ainda
juntar à insubordinação estudantil a ação deletéria desencadeada por um
minoria do clero católico. Mesmo assim, não se nos afigura admissível a
edição do quinto Ato Institucional. (...). (O Estado de São Paulo, 30 de
outubro de 1968, p. 3, tít.: Para onde nos levaram?)
351. Se de qualquer forma pudéssemos influir na evolução do problema,
diríamos que uma reforma nos moldes da que propomos ainda não seria o
suficiente. Realizada esta, o que o País desejaria era que anunciasse o sr.
presidente da República o propósito de aconselhar uma revisão, embora
pequena, da atual Constituição, introduzindo nela os elementos necessários
para que, sem prejuízo do que em seu texto existe de louvável em relação à
eficiência administrativa do Estado, adquirisse o Poder Legislativo a
elasticidade que lhe é indispensável e cuja falta lhe impõe uma
subordinação inadmissível ao Executivo. (...). (O Estado de São Paulo, 1
de novembro de 1968, p. 3, tít.: Contribuindo para a solução da crise)
Nota-se, ao longo dos editoriais, que, seguindo a tendência já expressada nos
momentos anteriores, a opinião do Jornal do Brasil vincula-se à do grupo mais
“moderado”. Embora não pareça contrário à idéia original da “Revolução”, mostra-se
271
decepcionado quanto à forma como ela se desenvolveu. Critica principalmente o
processo de institucionalização escolhido pelo primeiro governo militar. Diante da
perda do apoio popular, o regime teria optado por, praticamente, outorgar uma nova
Constituição. Residiria neste erro a origem da crise. Ou seja, como “sistema-perito”,
o Jornal do Brasil precisa mostrar-se ao seu auditório como digno de fé. Para tanto,
mantém-se apegado a princípios democráticos e defende uma saída política com
cumprimento das normas constitucionais como solução para a crise, e não a edição de
um novo Ato Institucional.
Seguindo este mesmo raciocínio, critica os procedimentos políticos escolhidos
por Costa e Silva. Em virtude de sua escolha ter se processado de forma ilegítima,
para o Jornal do Brasil, o presidente deveria ter buscado a sua confirmação pela
política, o que lhe daria legitimidade. No entanto, essa não foi a opção escolhida, não
só no que se refere à legitimação da sua situação, como também na solução do
processo de crise em curso. Logo, o Jornal do Brasil tinha uma posição de que a
legitimação da sociedade civil era imprescindível ao governo. Contudo, apesar das
críticas feitas ao regime, o Jornal do Brasil ainda defendia o que considerava ser a
idéia original da “Revolução”. Apesar de insatisfeito com os caminhos adotados pelo
regime, como “meta-sistema perito” com relação às Forças Armadas, via nas críticas a
elas uma extensão injusta do julgamento negativo que era feito do governo.
Persistindo na linha de defesa de princípios democráticos junto ao seu auditório,
embora crendo que o Legislativo tornara-se apenas uma fachada para salvar a
aparência do governo, defende a sua preservação. Contudo, também se mostra crítico
quanto ao seu posicionamento.
Para o Jornal do Brasil, o governo deveria devolver aos parlamentares a sua
missão política, o que poderia diminuir as agitações das ruas e a politização das
mesmas. Entretanto, como “meta-sistema perito”, propõe que o Congresso faça uma
272
autocrítica para ajustar-se à realidade brasileira. Para o jornal, estando o Legislativo
desprestigiado pelo povo, as limitações que sofrera durante o regime teriam sido
necessárias. Diante desse quadro, a missão moderna do parlamento não seria a de
fazer leis – papel este que caberia ao Executivo –, mas, sim, a de fiscalizar o governo.
De acordo com Roberto Campos
40
, esta tendência, que não era só brasileira, mas
típica das sociedades modernas, é resultado de uma análise da relação custo-benefício
da preservação do Legislativo. Os benefícios seriam a “informação, representação,
legitimação, integração nacional e proteção dos direitos humanos”
41
. Os custos, a
“resistência à mudança social, tendenciosidade inflacionista, impulsos distributivistas,
detrimentosos à acumulação de capitais”
42
. No Brasil, para Campos, a tendência
inflacionista era oriunda da necessidade dos parlamentares de atender a sua “clientela”
regional. Visando conter essa tendência, é que, para Campos, no Brasil pós-64 teria
sido adotada uma política de restrições da capacidade do Legislativo de gerar novas
despesas. Naquela época, segundo Campos,
Em todo o mundo, parece que o papel do Legislativo está sendo
reconsiderado e que está em marcha uma tendência clara de fortalecimento
do Poder Executivo. Crescentemente, o direito de iniciativa dos
Parlamentos está sendo substituído pelo poder de restringir, cujas formas
principais (...) são o poder de votar emendas, o poder de veto e a fixação de
parâmetros para a ação executiva mediante consulta prévia.
43
Desse modo, para combater a inflação a solução seria o fortalecimento do
Executivo, poder que, para Roberto Campos, estaria melhor provido de equipes
capazes de trabalhar com a crescente complexidade técnica das leis e, também, com a
agilidade necessária que as matérias de política fiscal e cambial exigiriam. Ao
Legislativo, cuja praxe seria o debate prolongado, caberia a revisão e as emendas a
40
CAMPOS, Roberto de Oliveira. “O Poder Legislativo e o Desenvolvimento”. op. cit., p. 31-41.
41
Idem, p. 35. Grifos do autor.
42
Ibidem.
43
Idem, p.36.
273
esta legislação
44
. Além disso, teria, ainda, a função de avaliar e criticar a performance
governamental
45
. Ou seja, função fiscalizadora.
Apesar das críticas à ação do Legislativo, percebe-se que o Jornal do Brasil
discordava do projeto político do Executivo com relação àquele poder. Como nítido
exemplo de membro de um grupo que se conscientizou da necessidade de
revitalização do Congresso, continuava a defender o revigoramento do poder
Legislativo.
A opinião do Jornal do Brasil traduz com clareza o hibridismo da política
adotada pelo regime. Tendo sido liderado, em seus primórdios, pela facção militar
“moderada”, grande parte dos desígnios ditados pelo regime contaram com o apoio do
Jornal do Brasil. No entanto, ao sentir a necessidade de ceder aos “duros”, os
governos militares acabaram por desagradar os grupos civis apegados à preservação
dos princípios democráticos. Grupos estes que haviam dado ao regime apoio em seus
momentos iniciais. Entre eles, as camadas médias da sociedade e, no caso específico,
o próprio Jornal do Brasil. Parte-se o “sujeito coletivo”. Para este jornal já não há
uma simetria entre os “interesses revolucionários” e a “vontade única da nação”.
Contar com a ajuda do Jornal do Brasil na construção de uma imagem democrática
para o regime junto à sociedade civil tornava-se difícil.
O Globo, sempre um partidário do regime, defende-o, busca associá-lo à
democracia e procura derrubar as críticas de que o Brasil viveria em um regime
ditatorial. Isto indicava que o regime poderia continuar contando com a ajuda d’O
Globo na dura tarefa de persuadir o seu público leitor sobre uma suposta imagem
democrática para o regime e, assim, conseguir a legitimação da sociedade civil.
Entretanto, também mostrando a existência de diferentes visões no interior do regime,
mencionava a existência de “dois partidos”, e criticava o governo por permitir que a
44
Id., p. 36-37.
45
Id., p. 39
274
“Revolução” fosse posta em risco. Como frisam Carlos Eduardo Leal e Sérgio
Montalvão, embora O Globo tenha se mantido fiel às principais teses do movimento
militar de 1964, ele mostrou “algumas reservas” com relação ao governo Costa e
Silva
46
. Contudo, embora o próprio O Globo estivesse criticando a “indefinição” do
governo, foi sobre as divisões internas que ele lançou a responsabilidade pelas
vacilações que estariam causando “danos” ao país. Portanto, continuou apegado à
lógica de que era o “outro” que radicalizava, era o “outro” que era o “mal” que
deveria ser combatido.
Embora procurassem deslegitimar o movimento oposicionista, os relatos d’O
Globo indicavam, também, a existência de grupos civis insatisfeitos com o regime
militar. Para o jornal, esse movimento seria um indicativo de que a “contra-
revolução”, cujo objetivo seria a divisão dos “protagonistas do 31 de Março”, estaria
em marcha. Preocupado com esta possibilidade, O Globo criticava a indefinição e a
condescendência do governo com os opositores, e pregava o uso de mais energia
contra os “contra-revolucionários”.
Por fim, ao afirmar que o Legislativo fora salvo pela “Revolução”, concordando
com a política do Executivo com relação ao Congresso, deixava transparecer que
considerava a sua preservação como ideal.
Em suma, mesmo que as divergências expostas sugiram a falência do “sujeito
coletivo”, O Globo continuava tentando forjar a ilusão de que a “vontade da nação”
era representada pela “vontade revolucionária”.
Como um partícipe da “grande campanha” que foi “posto à margem dos
acontecimentos” com a instauração do regime militar, O Estado de São Paulo se
mostrava um crente quanto aos objetivos da “Revolução”, mas, ao mesmo tempo, um
46
Cf. LEAL, Carlos Eduardo.; MONTALVÃO, Sérgio. “O Globo”. In: ABREU, Alzira Alves et alii.
(coord.s.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. op. cit., p. 2545.
275
duro crítico dos rumos do governo. Este jornal já não se prestava a contribuir na
construção de uma imagem democrática para o regime.
O posicionamento d’O Estado de São Paulo reforça a idéia de que, em 1968, o
regime perdia parte substancial do apoio que possuía quando da ação golpista. Sua
opinião é próxima à de Carlos Lacerda, um líder “revolucionário” civil que apoiou o
movimento em seu início, mas que, ao ser afastado do centro do poder e atingido em
seus interesses políticos, passou a criticá-lo. Como o objetivo principal de Lacerda
era o de concorrer à presidência da República, ele censurou a prorrogação do mandato
de Castelo e a mudança nas regras sucessórias, medidas que sugeriam que o poder não
retornaria às mãos civis dentro de um prazo breve. O Estado de São Paulo sempre
mostrou-se um correligionário da candidatura do ex-governador da Guanabara e,
nesse sentido, endossou estas suas críticas. A permanência dos militares no poder
passava a ser associada à ditadura.
Como também percebem Carlos Eduardo Leal e Vicente Saul
47
, a militarização
do regime é a linha mestra das críticas d’O Estado de São Paulo ao regime. Contudo,
não se limitam a essa questão. Como desde de abril de 1964 defendeu a instauração
de um regime mais duro que fizesse uma “limpeza” definitiva do meio político, em
fins de 1968, continuavam a existir duras críticas quanto à opção do grupo de
militares que assumiu o poder por não terem instituído um governo provisório
excepcional e forte no início do movimento.
Na verdade, a posição d’O Estado de São Paulo é tão híbrida quanto a do
governo. Por um lado, demonstrava ser favorável a um governo forte. Entretanto,
denunciava na então possível edição de um novo Ato Institucional uma opção pela
força. Ação tipicamente militar.
47
Cf. LEAL, Carlos Eduardo.; SAUL, Vicente. “O Estado de São Paulo”. In: ABREU, Alzira Alves
et alii. (coord.s.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. op. cit., p. 2032.
276
A contrariedade d’O Estado de São Paulo quanto à edição de um novo Ato
como solução para a crise deixa transparecer sua opção pela saída constitucional.
Reforçando este caráter “pseudo-legalista”, apesar de se mostrar sempre um crítico da
preservação do Legislativo, defendia que ele deveria ter uma maior elasticidade,
através de uma pequena reforma constitucional, e, mostrando discordar da política do
regime com relação ao Congresso, não admitia a sua subordinação ao Executivo.
Estes argumentos reforçam a tese de que mesmo para aqueles que defendiam a idéia
de um regime duro e excepcional, como O Estado de São Paulo, a preservação de
princípios e instituições democráticas era fundamental. De qualquer forma, suas
críticas indicam que o governo não poderia mais contar com a sua colaboração na
missão de reforçar o “poder simbólico” do regime.
Com base na análise acima, pode-se elaborar um quadro de síntese quanto ao
posicionamento dos jornais com relação aos momentos de agitação vividos no período
pré AI-5:
QUADRO DE SÍNTESE 1
JB OG OESP
Objetivos da “Revolução” Favorável Favorável Favorável
Regime Militar Crítico Favorável Crítico
Ações do governo Contrário Favorável Contrário
Fortalecimento do
Legislativo
Favorável ------- Favorável
Autonomia do Legislativo Inexiste Relativa Inexiste
É perceptível que as opiniões dos jornais demonstram a fragmentação da
coalizão no poder e a perda do apoio que inicialmente o regime militar obteve. O
Globo afirmava existirem grupos diferentes, O Estado de São Paulo, se dizia à
margem do processo e o Jornal do Brasil se mostrava insatisfeito com os rumos
traçados. Estas divergências indicam que, exceção feita a O Globo, o governo já não
277
podia contar com um apoio amplo destes jornais para que eles construíssem uma
suposta imagem democrática do regime junto aos seus auditórios.
Em graus diferentes, todos demonstram insatisfação com algum ponto da
política adotada pelos governos militares. Na tentativa de conciliar interesses
distintos, principalmente os dos “moderados” e os da “linha-dura”, o regime militar
adotou uma política híbrida. Em 1968, com a intensificação das insatisfações
externas e internas, essa opção deu sinais de esgotamento. O governo teve que optar
por privilegiar um dos grupos.
O momento crítico dessa escolha, que culminou com o fracasso da política
híbrida, ocorreu durante o processo de discussão sobre a licença para a cassação do
deputado Márcio Moreira Alves. De um lado, o Legislativo queria lutar pelo pouco
de autonomia que ainda possuía. De outro, os militares que pregavam o
endurecimento do regime faziam de um fato menor o meio para atingir os seus
objetivos.
Desde o início do governo Costa e Silva, o Legislativo já vinha criando alguns
obstáculos à atividade legiferante do governo. Impedidos de legislar, os congressistas
acentuaram a sua atividade fiscalizadora. Comentado o período entre a posse de
Costa e Silva e a edição do AI-5, Eliézer Rizzo de Oliveira afirma que,
As relações entre o Executivo e o Legislativo são precárias nesta etapa,
posto que o primeiro não consegue estabelecer um controle pleno sequer
sobre os setores arenistas. De outro lado, a oposição parlamentar utiliza
freqüentemente o recurso das Comissões Parlamentares de Inquérito, como
instrumento de controle sobre as atividades governamentais. (...). Ao
mesmo tempo, parlamentares governistas e da oposição compõem uma
frente com a finalidade de impedir a aprovação de certos projetos do
Executivo, de natureza econômica, bem como pleiteiam que o Presidente
abandone a legislação por decreto em matérias daquela natureza. (...).
Ainda com referência à oposição parlamentar e partidária, o MDB se bateu,
durante todo esse primeiro período, pela revogação da legislação da
Segurança Nacional e pelo restabelecimento das eleições diretas, além da
concessão de anistia aos presos políticos e aos cassados.
48
48
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 89.
278
Mas não era apenas através do recurso a CPI’s e do impedimento da aprovação
de certos projetos originários do Executivo que o Congresso exercia a sua função
fiscalizadora. Conforme Gláucio Soares e Sérgio Abranches,
Os parlamentares, desde o momento em que perderam parte de suas
funções legislativas, incrementaram a fiscalização das ações do Executivo,
por meio da convocação de ministros de estado para prestar esclarecimentos
acerca das atividades de seus ministérios e de requerimentos de informação.
Já nos primeiros meses do Governo Costa e Silva, vários ministros
compareceram à Câmara para informar ao Legislativo sobre suas ações.
(...) em 1967-68, anos de enfrentamento entre o Legislativo e o
Executivo, o número de requerimentos de informações sobe bruscamente,
atingindo 3.598 em 1967 e 2.736 em 1968 (...).
49
Além da intensificação da função fiscalizadora do Legislativo, uma parcela de
congressistas, entre eles membros da ARENA, pretendia restabelecer os poderes do
Parlamento e rever a legislação “revolucionária”. As declarações de parlamentares
neste sentido repercutiram fora do Congresso. Com essa repercussão, esperava-se
mobilizar a opinião pública em prol das mudanças e desacreditar o governo diante
delas
50
.
A ameaça à maioria governista aumentou o conflito entre o Executivo e o
Legislativo. Ainda segundo Soares e Abranches, como a base do governo eram as
Forças Armadas, líderes políticos dirigiram seus ataques não ao regime mas a elas,
essencialmente os mais radicais, pois a maioria dos parlamentares não era
antimilitarista.
51
Portanto, com a intensificação da repressão às manifestações de rua ocorridas ao
longo de 1968, o Congresso tornou-se a única esfera onde era possível criticar o
governo. Catalisando e ressoando o clima de inquietação vivido pela sociedade civil,
o Legislativo ampliou o seu papel de denúncia das ações governistas. De acordo com
Abranches e Soares, “O vigor da reação parlamentar indicou claramente que o grupo
político civil considerava terminada a ação revolucionária de 64 com a saída de
49
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 95.
50
Idem, p. 88.
279
Castelo Branco e não pretendia continuar apoiando as medidas de exceção do
Executivo.”
52
Apesar de todas as restrições às atividades do Legislativo, os
parlamentares ainda possuíam o direito à crítica.
Com a expiração do AI-2 e a promulgação da Constituição de 1967 fora
confirmado o direito à imunidade parlamentar. Eliminava-se, assim, a possibilidade
de cassação automática de mandatos eleitorais dos membros do Legislativo tanto na
esfera federal, como também na estadual e municipal. Desse modo, um “parlamentar
só poderia ser processado com a autorização da Casa a que pertencesse; além disso, o
Executivo não podia mais simplesmente cassar mandatos eleitorais”.
53
Protegidos
pela imunidade, os parlamentares insatisfeitos com a situação política da sua casa e do
país faziam duras críticas ao regime militar como um todo. Não contavam com a
forte reação do Executivo. Para Sérgio Abranches e Gláucio Soares,
Um erro de cálculo político não permitiu que os parlamentares
percebessem que o Executivo não suportaria a ação do Legislativo,
exatamente porque sua força derivava, fundamentalmente, do apoio militar
e não da sua legitimidade civil. No interior do Legislativo, ela ameaçava a
maioria governista pela formação de um bloco oposicionista interpartidário
que contou com a adesão de deputados e senadores da Arena; no plano
externo, institucional, gerou uma concorrência entre o Legislativo e o
Executivo, no que se refere à competência legislativa.
Para o Executivo, permitir que o Legislativo assumisse a
responsabilidade integral de legislar, corresponderia à supressão de leis
consideradas indispensáveis pelo governo; a tensão aumentou quando o
Legislativo passou a ser a principal fonte de contestação ao movimento de
março de 64. O Executivo, estreitamente ligado ao grupo militar, não
cogitava de permitir uma reversão do processo que implicaria, em última
análise, no abandono do poder pelos militares.
As declarações presidenciais demonstram que o objetivo nuclear do
governo era consolidar o regime e legitimá-lo. A partir do momento em
que o Legislativo passou a ser o centro nervoso da resistência ao próprio
regime, o conflito entre os dois poderes tornou-se inevitável. O Legislativo
dispunha da tribuna e o Executivo dispunha da tropa. O resultado do
conflito era fácil de prever.
54
51
Id., p. 87.
52
Id., p. 83.
53
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 128.
54
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 89.
280
Foi no clima de intensificação das manifestações populares e da resistência dos
parlamentares e, também, do cisma entre “moderados” e “linhas-duras” que, um caso
mínimo, como o discurso do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB da Guanabara,
nos dias 2 e 3 de setembro de 1968, tornou-se o estopim para ameaças acumuladas.
Valendo-se da imunidade parlamentar, o deputado fez um discurso na Tribuna
do Congresso, instando a população a boicotar a parada de 7 de setembro e as
mulheres a não namorarem militares que se calassem diante da repressão. O discurso
passou despercebido pela imprensa
55
, mas foi utilizado como pretexto pela “linha-
dura”, que pretendia provocar uma grande crise política. Segundo M.ª Helena
Moreira Alves,
A parada militar do Dia da Independência era importante componente
psicológico da estratégia de intimidação. Uma vez por ano, a população
pode ver em exibição todo o equipamento militar pesado. Em 1968, a
população sabia que todo aquele impressionante aparato de força podia
mais provavelmente voltar-se contra ela do que contra um agressor
estrangeiro; a parada teria assim um efeito “dissuasivo”, levando a
população a temer eventuais conseqüências da passagem à ação. Não é
mero acaso ou coincidência que todos os governos militares e totalitários
dêem tanta importância a paradas militares e exibições de armamentos;
trata-se de elemento da estratégia de terror, utilizado como método de
controle político e social. O discurso de Márcio Moreira Alves tocou,
assim, um ponto sensível na estratégia geral de controle social do Estado.
Além disso, os oficiais de linha-dura que já planejavam um segundo golpe
de Estado, que lhes daria mais liberdade na defesa da Segurança Interna,
acharam-no particularmente hostil a seu propósitos. A convocação ao
boicote da parada, conjugada à sugestão de uma “Operação Lisístrata”
56
,
55
Jayme Portella de Mello, então chefe do Gabinete Militar da presidência da República, afirmou que
“O discurso daquele deputado havia sido publicado em toda a imprensa, servindo de manchetes, o que
mais irritou as Forças Armadas, pelo destaque dado.” MELLO, Jayme Portella. A Revolução e o
Governo Costa e Silva. op. cit., p. 586. Elio Gaspari desmente a afirmação de Portella. De acordo
com Gaspari, “Salvo uma pequena nota publicada na Folha de S. Paulo, ninguém ouviu falar no
discurso.” Para Gaspari, a crise que se seguiu foi uma fabricação de Portella. GASPARI, Elio. op. cit.,
p. 316-317. Confirmando a pouca importância imediata dada pelos jornais ao discurso do deputado,
somente no dia 8 de outubro, o jornalista Carlos Castello Branco fez a primeira menção ao pedido de
licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves. Diz a nota: “Um assunto que está sendo
examinado nos bastidores: a possibilidade de ser tentada a suspensão de direitos políticos de alguns
parlamentares através do processo inscrito no artigo 151 da Constituição.” E conclui: “Entre os nomes
citados como envolvidos no assunto figuram os dos deputados Hermano Alves e Márcio Moreira
Alves. Há também um senador mencionado.” BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op.
cit., vol. II, p. 489-490. Nota publicada originalmente em sua coluna, “Coluna do Castello”, no Jornal
do Brasil, em 8 de outubro de 1968.
56
Lisístrata é uma comédia do poeta grego Aristófanes. Na comédia, as mulheres das cidades gregas
envolvidas na Guerra do Peloponeso (Atenas e Esparta), lideradas pela ateniense Lisístrata, decidem
instituir uma greve de sexo até que seus maridos parem a luta e estabeleçam a paz. No final, graças às
mulheres, este objetivo é atingido.
281
podia provocar indignada resposta emocional nos quartéis, preparando
terreno para um generalizado apoio militar à nova demonstração de força.
Que tenha sido esta a intenção fica evidente pelos milhares de cópias do
discurso que os oficiais linha-dura mandaram imprimir e distribuir em todos
os quartéis do país. Os oficiais reagiram com indignação ao que
consideraram grave ofensa a sua honra e dignidade masculina. Assim
preparada a cena, os ministros militares que encabeçavam a conspiração
não perderam tempo: requereram ao Supremo Tribunal Federal julgamento
do Deputado Márcio Moreira Alves, por ter gravemente ofendido a honra e
a dignidade das Forças Armadas.
57
Conforme Alfred Stepan
58
, o discurso do deputado Márcio Moreira Alves gerou
novo ciclo de reivindicações à capitulação presidencial e ao AI-5. Costa e Silva
relutou mas, pressionado pela “linha-dura”, como antes fora Castelo Branco, aprovou
a abertura de processo para a cassação dos direitos políticos dos deputados Márcio
Moreira Alves e Hermano Alves
59
. No entanto, de acordo com a sua política híbrida,
Costa e Silva insistiu que a ratificação das acusações deveria vir do próprio
Congresso. O senador e presidente da ARENA, Daniel Krieger tentou demover Costa
e Silva da idéia do processo. Advertia-o de que a Câmara jamais aprovaria tal pedido
que, de resto, apenas intensificaria a crise entre o Executivo e o Legislativo. Seus
esforços, porém, diante das pressões da “linha-dura”, foram inúteis
60
.
Analistas políticos davam como certa a negativa do Congresso, e percebiam que
Costa e Silva agia pressionado pela “linha-dura” militar. Em nota, Carlos Castello
Branco afirmou:
(...) a licença pedida não será concedida pela Câmara, segundo previsões
gerais. A iniciativa exporá o Congresso ao desgaste de tremenda pressão e
o governo à dificuldade de uma batalha sem perspectiva de êxito. O
próprio governo parece agir, no episódio, sob pressão militar (...).
61
57
ALVES, M.ª Helena M., op. cit., p. 129-130.
58
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 189.
59
A “ofensa” do deputado Hermano Alves ao regime foi a de ter escrito uma série de artigos,
publicados no jornal carioca Correio da Manhã, nos quais fazia duras críticas ao governo.
60
Para um relato das várias tentativas do senador Daniel Krieger de evitar a instauração do processo e,
depois, a licença para a cassação dos deputados, ver: BRANCO, Carlos. Os Militares no Poder. op.
cit., vol. II, p. 489-563 e MELLO, Jayme Portella de. op. cit., p. 585-659.
61
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 491. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 10 de outubro de 1968
282
Jayme Portella de Mello, apesar de sempre procurar caracterizar Costa e Silva
como um senhor absoluto de seu próprio destino, também deixa transparecer a pressão
militar que havia sobre ele. Relatando encontro, em outubro daquele ano, do
presidente com o deputado Djalma Marinho, parlamentar da ARENA que fazia parte
de Comissão de Constituição e Justiça, Portella menciona que Marinho pediu ao
presidente que, em face da tendência de negativa por parte da Comissão, deixasse a
decisão para março de 1969, após o recesso do Congresso. Segundo Portella,
O Presidente disse-lhe que o clima nas Forças Armadas não permitia
retardar a solução do caso. E achava muito difícil conseguir acalmar os
ânimos. A decisão teria de sair ainda naquele mês. O Deputado Djalma
Marinho sugeriu-lhe que fizesse esforço usando a sua liderança para
conseguir adiar a solução. Costa e Silva respondeu que nada mais poderia
fazer diante da situação criada e esperava que os deputados da ARENA
compreendessem a atitude do governo e colaborassem com ele.
62
Os oficiais mais jovens passaram a expressar as suas insatisfações. O ministro
do Interior, general Affonso Augusto de Albuquerque Lima, capitalizou tais
descontentamentos e garantiu que a “Revolução” era irreversível. Garantiu, ainda,
que os militares, por não terem ligações formais com grupos econômicos que
pudessem resistir à reforma, eram os mais qualificados para exercerem pressões ainda
maiores. Assim como em 1965, o conflito evoluiu para uma crise de unidade militar e
de sucessão presidencial. Albuquerque Lima catalisou as frustrações da jovem
oficialidade “dura” e, do mesmo modo que Costa e Silva, em 1965, “manipulou a
anarquia”
63
e emergiu como candidato da “linha-dura”.
Nesse sentido, é ilustrativa uma nota publicada pelo jornalista Carlos Castello
Branco. Novamente, ele nota a pressão dos “duros”. Só que, dessa vez, também
percebe a questão que envolvia a participação do ministro Albuquerque Lima. Disse
o jornalista:
Aumenta a apreensão nos meios políticos. Entre os homens mais
responsáveis da cúpula do Congresso ouve-se a impressão de que é muito
62
MELLO, Jayme Portella de. op. cit., p. 622.
63
Cf. GASPARI, Elio. op. cit., p. 271.
283
grande a exacerbação nas Forças Armadas, onde estariam ganhando corpo
as pressões tendentes ao endurecimento do governo. E colhe-se a
observação de que sintoma de tal realidade consiste no comportamento do
General Albuquerque Lima com seus sucessivos pronunciamentos. O
Ministro do Interior, que se prepara para voltar ao convívio da tropa,
procuraria desde logo criar condições para preencher o vazio de liderança
militar com o objetivo de fixar sua candidatura à Presidência da
República.
64
Albuquerque Lima e os “duros” defendiam, além da irreversibilidade e da
longevidade da “Revolução”, a execução das reformas “revolucionárias”, removendo
os “entraves” políticos
65
. A “linha-dura” dava os derradeiros sinais de insatisfação
com a política de conciliação do presidente.
Contudo, ainda seguindo essa política, o pedido foi encaminhado à Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara, composta por uma maioria de deputados da
ARENA. As primeiras sondagens confirmavam a previsão do senador Daniel
Krieger, indicando que o requerimento não seria aprovado. A ARENA afirmava que
os deputados estariam resguardados pela imunidade parlamentar e que, politicamente,
a medida seria inoportuna. O MDB tinha a mesma posição. A discussão se alongou
durante três meses. Costa e Silva insistia na licença da Câmara dos Deputados
66
. Por
seu lado, diante da hesitação do governo e do ambiente vivido pelo país, os militares
da “linha-dura” pressionavam por uma ação mais enérgica
67
.
64
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 533. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 22 de novembro de
1968.
65
Cf. STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 189 e SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo
(1964-1985). op. cit., p. 166.
66
Jayme Portella de Mello destaca uma passagem que sugere essa insistência de Costa e Silva de,
primeiro, tentar obter a licença através dos meios constitucionais. A passagem refere-se a um encontro
entre o presidente e parlamentares das duas Casas do Legislativo, ocorrido em 29 de novembro de
1968, véspera do recesso do Congresso. Segundo Portella, no encontro, Costa e Silva teria dito aos
parlamentares “que era muito fácil para ele praticar um ato de força para dar solução ao caso Márcio
Alves, mas que havia preferido o caminho constitucional e, no entanto, o seu Partido não compreendeu
e dificultou o trabalho. Mas lembrou-lhes que as Forças Armadas não ficariam atingidas e o agressor
impune. Disse-lhes que havia apelado para a compreensão do Partido, quando do último encontro que
os parlamentares tiveram, por ocasião de seu aniversário e o havia feito através dos seus líderes e, no
entanto, não fora ouvido. Lembrou-lhes que atentassem bem para a atitude a ser tomada, mas que
ainda estava em tempo de ser reconsiderada. Não lhes disse que ia convocar a Câmara, no dia seguinte,
extraordinariamente, para votação do caso em pauta, mas no arroubo da oratória, quase deixou
escapar.” MELLO, Jayme Portella de. op. cit., p. 626-627.
67
Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 162-163.
284
Diante da previsível derrota, e pressionado pela “linha-dura”, Costa e Silva
convocou, extraordinariamente, a Câmara dos Deputados, no início de dezembro, para
alterar a composição da Comissão de Constituição e Justiça, e, enfim, aprovar o
requerimento de suspensão das imunidades dos deputados. O governo forçou e a
direção da ARENA substituiu nove de seus deputados que faziam parte da Comissão.
Acuada, votou para que o caso fosse submetido ao plenário.
No plenário, outros membros da ARENA, além do senador Daniel Krieger, se
manifestaram contra o requerimento, que era visto como um desrespeito à já exígua
autonomia do Legislativo. Segundo Sérgio Abranches e Gláucio Soares,
(...) a votação do pedido para processar o deputado Moreira Alves, feito
pelos ministros militares, representou a tentativa final de emancipação do
Legislativo e o início do enfrentamento com o Executivo. O Legislativo,
lutando para aumentar sua autonomia de ação, não podia conceder a
licença. O Executivo, buscando manter o controle da situação política
nacional, não podia aceitar a negativa. (...).
68
Nos editoriais que fazem referência ao caso Márcio Moreira Alves nota-se a
evolução do conflito entre o Legislativo e o Executivo. Reforça-se, ainda, a tese de
que o regime, ao ceder às pressões da “linha-dura”, já não poderia contar com o apoio
do Jornal do Brasil e d’O Estado de São Paulo na missão de transmitir aos seus
auditórios uma imagem positiva do regime.
Em virtude da farta discussão que o tema suscitou, e face a gama de questões
levantadas, a análise dos editoriais dos jornais se dará em separado. Primeiro, os do
Jornal do Brasil.
352. (...). Pleitear a degola de dois representantes oposicionistas, um
porque em discurso no recinto da Câmara manifestou-se contra as paradas
militares e outro porque, em artigo de jornal, emitiu conceitos aos quais o
Ministro da Justiça atribui teor provocativo, é querer curar enxaqueca com
bomba de cobalto.
(...)
Só o Ministério da Justiça não procedeu a uma avaliação realista, antes de
pleitear duas cabeças oposicionistas. Ou será que armou o raciocínio
exatamente na base de equacionar uma fórmula para levar o Governo a um
insucesso retumbante? É claro que uma derrota estrondosa, neste momento,
68
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 84.
285
poderia ser propícia a certo resíduo de radicalismo, cujos dividendos só se
tornariam possíveis à base da inviabilidade do processo democrático.
(Jornal do Brasil, 11 de outubro de 1968, p. 6, tít.: Vocação de Errar)
353. (...). A Revolução de 1964, interrompendo, por motivos de inegável
interesse geral, o fluir normal do processo democrático, teve o escrúpulo
legalístico de manter a estrutura constitucional dos poderes da República.
Um Congresso eleito pelo povo em escrutínio direto, passou a sobreviver
em um regime que nasceu de um ato de força, provocado pelos desvarios do
Governo João Goulart. O convívio dos poderes Executivo e Legislativo
dentro desse quadro sempre foi extremamente delicado, de vez que as
fontes de que cada um derivava eram diferentes e freqüentemente
antagônicas. A Constituição de 1967 veio cobrir esse panorama com o
manto da legalidade e atenuar as possibilidades de choques e atritos. Mas
as relações entre os dois poderes continuaram a ser difíceis e nem sempre
tranqüilas. (Jornal do Brasil, 12 de outubro de 1968, p. 6, tít.: Provocação
Indevida)
354. Se censuramos a atitude do Governo ao lançar-se de novo no caminho
da crise constitucional, não podemos deixar de considerar também
lamentável a posição do Deputado Márcio Moreira Alves, que, com um
discurso incendiário e recheado de insultos diretos ao Exército, prestou ao
Brasil o desserviço de uma provocação friamente calculada para
desencadear a reação que agora se verifica. (...). Em tudo isso só tem a
perder o Brasil, que, mais uma vez, vai por à prova a viabilidade da
presente experiência de um regime de Executivo forte com um Legislativo
livre e independente. E é exatamente a liberdade e a independência do
Legislativo que o deputado carioca ameaça com sua provocação
desnecessária. . (Jornal do Brasil, 12 de outubro de 1968, p. 6, tít.:
Provocação Indevida)
355. É totalmente ociosa a especulação aberta em torno de reações militares
ao que irão decidir o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, no que
respeita ao processo de cassação dos direitos políticos do Deputado Márcio
Alves. Todas as hipóteses levantadas para fazer o jogo do alarmismo
significam o desconhecimento elementar de um sentimento que é inerente
às Forças Armadas brasileiras: o compromisso com a legalidade é muito
mais forte do que qualquer resíduo de inconformação que será sempre
episódico e setorial.
Do momento em que o problema teve encaminhamento dentro do
parâmetro da legalidade, ficou evidenciada da parte das Forças Armadas –
que propuseram a questão – a disposição de curvar-se em acatamento ao
que decidirem o Supremo e o Congresso. (...). (Jornal do Brasil, 18 de
outubro de 1968, p. 6, tít.: Força da Legalidade)
356. Se o Governo atual tivesse alguma possibilidade de aprender, veria, no
episódio revoltante da manipulação da Comissão de Justiça, um aviso sério.
O Congresso Nacional e sobretudo a própria Arena estão mostrando ao
Governo por onde passa a linha de fronteira entre o Executivo e o
Legislativo. Por mais que essa linha tenha sido violada anteriormente, o
tempo a refaz – de tal forma tem raízes no espírito brasileiro o respeito pela
democracia. É inútil pensar o Governo que a democracia é uma comenda
bonita que se usa durante uma visita régia. O regime tem força própria. A
interdependência de poderes é uma harmonia exata. Desrespeite-a o
286
Executivo e a República inteira desafina. (Jornal do Brasil, 29 de
novembro de 1968, p. 6, tít.: República Desafinada)
357. Repete o Governo a atitude pirrônica para alcançar uma reabilitação
insuficiente, pois nem a vitória o redimirá perante a opinião pública, que se
arma como um tribunal de julgamento político. E corre um risco
desnecessário que, na melhor das hipóteses, representará aumento de seu
descomunal desgaste. A mobilização total a que se atira a liderança
presidencial, em ação e persuasão indormida, tendo em vista o objetivo
pequeno que pretende atingir, apenas ressalta a sua fraqueza intrínseca.
(Jornal do Brasil, 3 de dezembro de 1968, p. 6, tít.: O Impasse)
358. É realmente de estranhar e temer, não a ameaça de que foram
portadoras as palavras presidenciais, mas o fato de que o Governo fez a um
auditório de parlamentares, que integram a maioria, uma advertência que
não deixa alternativa. Em que situação nos encontramos para o Presidente
da República recorrer à intimidação como argumento último?
(...)
A advertência pode resultar em vitória ocasional, no episódio da concessão
da licença para o processo contra o deputado oposicionista, mas de forma
alguma resolve o problema político do Governo, que é a perda da unidade e
da coesão da maioria que o serve. É possível que o argumento atemorizante
surta efeito uma vez, mas desde que passe a ser norma de liderança perderá
a eficácia e desacreditará esta última razão a que recorre o Presidente da
República. (Jornal do Brasil, 4 de dezembro de 1968, p. 6, tít.: Saída
Política)
359. Sem surpresa, sem grandeza e apenas por fraqueza, a Comissão de
Justiça da Câmara votou ontem pela concessão da licença para o Deputado
Márcio Moreira Alves ser processado. Está aberta a porta por onde se
introduzirá na precária vida democrática brasileira o precedente capaz de
aniquilá-la, se persistir o poder de influência do resíduo discricionário
depositado nos alicerces do regime.
(...)
[O Governo] Arrancou o consentimento, mas não convenceu a opinião
pública senão da existência de contradições agudas, espelho da disputa
movida pelos remanescentes de arbítrio no período constitucional. Não
houve surpresa, confirmou-se a decepção nacional. O pequeno mundo da
Comissão de Justiça funcionou como alçapão de um princípio sagrado, que
é a inviolabilidade do mandato parlamentar, segundo o qual não há crime
de qualquer natureza por palavras ou posições tomadas na tribuna. (Jornal
do Brasil, 11 de dezembro de 1968, p. 6, tít.: Plano Inclinado)
360. A hora não é de cantar vitórias nem chorar derrotas. O desfecho da
longa, desnecessária, despropositada crise política que o Brasil atravessou
durante mais de três meses resultou numa importante reafirmação de nossas
instituições democráticas. Primeiro porque o Governo e as autoridades
militares, por mais que desejassem arrancar da Câmara a licença para
processar o Deputado Márcio Alves, não se desviaram uma só linha dos
processos constitucionais legítimos. Segundo porque, recusando a licença,
a Câmara dos Deputados preservou a prerrogativa, essencial ao regime
democrático, da inviolabilidade do Deputado no exercício de seu mandato.
(Jornal do Brasil, 13 de dezembro de 1968, p. 6, tít.: Episódio a Encerrar)
287
A análise das seqüências continua a indicar que o Jornal do Brasil, mesmo
diante da crise, e das críticas que fazia ao caminho trilhado pelo regime, reafirmava a
defesa dos “objetivos revolucionários”. Isto indica que, como “meta-sistema perito”,
embora negasse a capacidade do governo Costa e Silva em administrar, tentava
persuadir o seu público de que os “objetivos” do “movimento revolucionário” seriam
o caminho para regenerar o Brasil. Outra característica que se mantém é a de que o
Jornal do Brasil, em seus editoriais, continuava a reafirmar o respeito e a defesa da
soberania e da independência das instituições democráticas. Postura igualmente
defendida pelo jornal desde o início do movimento.
A análise que o Jornal do Brasil fazia do episódio levava-o à conclusão de que
o governo não conseguiria a aprovação do Congresso. Mas, consciente da
necessidade de preservação de princípios e instituições democráticas, temia que, em
caso de novas cassações, fosse aberto um precedente que poderia aniquilar a vida
democrática brasileira. Os parlamentares haviam readquirido a imunidade
parlamentar com a Constituição de 1967. Em face disto, punições a seus membros
seriam uma violação do mandato parlamentar, uma decisão contra o princípio da
representação. Para evitar isto, pregava o respeito à decisão do Legislativo. O Jornal
do Brasil acreditava, ainda, que as Forças Armadas e o governo estariam
comprometidos com a legalidade, e que acatariam a decisão do Congresso. Assim, se
reafirmariam as instituições democráticas do Brasil. Porém, fazia a ressalva de que,
se não ocorresse esse respeito, a democracia estaria em risco.
Essa posição de desconfiança com relação a Costa e Silva e de temor de que, em
seu governo, o regime tendesse para o endurecimento, vinha desde a época em que a
sua candidatura fora confirmada. Segundo Marieta de Morais Ferreira e Sérgio
Montalvão, o Jornal do Brasil “considerava Costa e Silva incapaz de conduzir e
288
manipular as lutas entre as diferentes facções, de maneira a impedir o endurecimento
do regime”
69
.
Em defesa de princípios e instituições democráticas, o Jornal do Brasil, mesmo
“afirmando ter” a consciência de que o discurso do deputado Márcio Moreira Alves
era um risco à liberdade e à independência do Legislativo, acreditava que o pedido de
licença para cassação fora um erro. Tendo isto por pressuposto, qualquer que fosse o
resultado representaria uma derrota para o governo diante da opinião pública. De um
lado, o consentimento do Congresso geraria um aumento do desgaste do governo. De
outro, a negativa intensificaria um confronto já existente, ao menos desde a
promulgação da Constituição de 1967, entre o Executivo e o Legislativo, e
representaria a derrota propriamente dita.
Estes argumentos indicam a fragilidade e a falência da política híbrida adotada
pelo governo. A perda da legitimidade civil pelo governo se tornava um fato a cada
dia mais concreto, e o Jornal do Brasil não mais se predispunha a ajudá-lo a
reconstituí-la. Em conseqüência, o governo ficava ainda mais restrito à sua base
militar de apoio, que, por sua vez, se sentia ameaçada pelas manifestações
oposicionistas. Contudo, o discurso governista era o de que tais manifestações
punham em risco não um grupamento no poder, mas a própria democracia brasileira.
A partir deste raciocínio, o governo pregava a punição dos deputados como uma
defesa do regime e um exemplo. Limitando a “democracia” aos “ideais
revolucionários”, permitia-se atentados à ela.
Essa relação entre “democracia” e “autoridade” é notável através da análise que
Eliézer Rizzo de Oliveira faz de discursos proferidos pelo presidente Costa e Silva.
Segundo o autor, um elemento da “filosofia administrativa” do governo deste
presidente
69
FERREIRA, Marieta de Morais.; MONTALVÃO, Sérgio. “Jornal do Brasil”. In: ABREU, Alzira
Alves et alii. (coord.s). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. op. cit., p. 2871.
289
(...) baseia-se nas relações entre ordem e liberdade, questão que recebe um
duplo tratamento: em primeiro lugar, as restrições à liberdade (impostas
pelas necessidades revolucionárias)
“não comprometem, aliás, nenhuma liberdade fundamental, [mesmo que]
intelectuais, escritores, artistas, jornalistas, estudantes clamam, proclamam
e reclamam, todavia, cada qual escreve, diz e brada o que entende, sem
nenhuma interferência do governo.”
Em segundo lugar, é impossível a vida em sociedade sem a preservação
da ordem, pois “a ordem é um dos pressupostos da democracia”. Contudo,
segundo Costa e Silva, os direitos têm sido colocados em posição
primordial em relação aos deveres, numa tentativa (em termos imediatos)
de indispor a juventude contra o governo:
“A conseqüência de tal situação é a necessidade de optarmos entre
anarquia e autoridade. O regime democrático tem de ser conciliado com
essa opção, para que possa ele próprio sobreviver. Nem existe nenhuma
incompatibilidade entre os ideais democráticos e a autoridade em que deve
estar investido qualquer governo digno desse nome.”
70
Questionando-se quanto às razões que teriam levado os membros do governo a
solicitar a punição dos deputados, o Jornal do Brasil deixava no ar uma conclusão
semelhante à que, posteriormente, chegou Maria Helena Moreira Alves
71
. Para o
jornal, a insistência em pedir a licença do Congresso poderia ser parte de uma
estratégia segundo a qual, com a derrota, o governo seria levado ao radicalismo.
Portanto, era a “linha-dura” oportunamente utilizando-se de um fato, a princípio
menor, para forçar o regime a tender para o seu lado. Este fato, somado à tentativa de
intimidação da sua base parlamentar através da substituição de membros da ARENA
na Comissão de Constituição e Justiça, demonstra a falta de sintonia entre o governo e
a sua base. Isto é mais uma evidência da fragmentação da base de apoio do governo e
das divergências internas. Diante de interesses intestinos conflitantes, o governo
deveria optar. Tal opção representaria a ruptura de sua política híbrida.
O Globo, apesar das críticas ao governo, continuava a defender o regime.
361. (...). Na Câmara houve um deputado que classificou o Exército
Nacional de “valhacouto de torturadores”, ao mesmo tempo que pedia aos
pais que não assistissem ao desfile de Sete de Setembro, pois isto seria
70
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 110. Os discursos do presidente Costa e Silva citados pelo
autor foram proferidos na Universidade Federal da Paraíba e publicados no jornal O Estado de São
Paulo em 23 de dezembro de 1967. Grifos do autor.
71
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 129-130.
290
auxiliar os “carrascos, os espancadores, os metralhadores dos seus filhos”.
É demais! (O Globo, 8 de outubro de 1968, p. 1, tít.: Um pouco mais de
energia)
362. A Revolução atravessa neste momento a sua crise maior, pois o que
está em xeque é o próprio sistema revolucionário edificado sobre a Carta de
1967, a qual vem sendo violentamente contestada pela Oposição e,
sutilmente, por parcela do próprio Governo. O 31 de Março estará em vias
de “arquivamento”? Parece. A atmosfera no Olimpo conduz a essa
suposição. (O Globo, 2 de dezembro de 1968, edição final, p. 1, tít.: A crise
é profunda)
363. A atual crise política levantou um problema: o da interdependência
das instituições. Fala-se muito, por estes dias, na “soberania do
Congresso”, na retomada pelo Legislativo de seu papel de poder soberano
etc.
É erro grave utilizar sequer tais expressões de todo inadequadas no
contexto. Nenhuma instituição é soberana. Cada uma FAZ PARTE
72
do
sistema democrático; ajusta-se dentro dele. (...).
O Executivo alega ter sido ferido. E numa região vital de sua anatomia.
Cabe ao Legislativo, no caso, ouvir o outro Poder, o Judiciário, que, pela
Constituição, é o indicado para árbitro dessas disputas. Mas, nas últimas
horas, percebe-se que o Congresso tende a julgar-se fora e acima dos
controles constitucionais, não admitindo qualquer arbitragem, pois se crê,
pelo visto, soberano. (O Globo, 2 de dezembro de 1968, edição final, p. 1,
tít.: A crise é profunda)
364. Que quer o Governo? Não se sabe bem. Requereu à Câmara, dentro
da lei, licença para processar um deputado. Portanto, revelou interesse na
obtenção do “imprimatur” legislativo. Em seguida, as forças governistas
naquela Casa desorganizaram-se, acicatadas pelo conflito interno que, sobre
a matéria, lavra nas antecâmaras do próprio Governo.
Uma parte da ARENA, no momento minoritária, levou a sério o pedido do
Executivo. A outra, tratou de ganhar tempo para, dessa forma, ultrapassar a
crise com a colaboração do calendário, e torpedear maciamente o projeto
presidencial. (...). (O Globo, 2 de dezembro de 1968, edição final, p. 1, tít.:
A crise é profunda)
O Globo, em seus escassos editoriais sobre a questão, mostrava-se, como
sempre, um defensor do regime e um opositor das declarações do deputado Moreira
Alves. Para o jornal, a crise que envolvia o pedido de licença para cassação dos
deputados representava o momento de maior crise para o “31 de Março”, pois
ameaçava a sua sobrevivência. Esta ameaça residia, em parte, na fragmentação da
base governista. O Globo afirmava, textualmente, que as facções no interior do
regime tinham visões diferentes naquele momento. Sabedor de que essas cisões
72
Grifo no original.
291
poderiam levar ao fim do “movimento revolucionário”, O Globo partia em sua defesa.
Apresentado a “morte” da “Revolução” como o “mal” a ser combatido, defendia a
união da base em prol do regime. Todavia, entendia que as divergências existentes já
eram profundas, e que a política de conciliação já não era mais frutífera naquelas
horas.
Além desta fragmentação, nota-se, através da análise dos editoriais d’O Globo,
que o Legislativo procurava dar demonstrações de sua soberania, em sua oposição aos
desígnios do governo. Para defender o regime, o jornal, fazendo uso de seu papel de
“meta-sistema perito” com relação ao Legislativo, afirmava que nenhuma instituição
seria soberana. Todas “fariam parte” do sistema democrático. Portanto, não bastava a
simples defesa da posição do regime, ainda era preciso associá-lo à democracia. É
provável que, face a essa necessidade é que, apesar do apoio incondicional ao regime,
O Globo ainda defendia uma saída “constitucional” para a questão. Esta saída se
daria através do arbítrio do Judiciário.
Percebe-se que, apesar das desconfianças e das críticas ao modo como o
governo Costa e Silva vinha conduzindo a questão, ainda era possível contar com O
Globo na missão de tentar persuadir o seu público de que a relação entre a “vontade
do regime” e a “vontade democrática da nação” era real. Mesmo a quase omissão d’O
Globo é um indicativo neste sentido. Se praticamente não discute a ação arbitrária do
governo, é porque consente com ela. Furtando-se a discuti-la, evitava-se de
apresentar a voz do outro.
O Estado de São Paulo, neste momento, critica a tudo e a todos.
365. Não é preciso uma grande agudeza de raciocínio para que se chegue à
conclusão de que no rumoroso incidente criado por um deputado da
oposição ao ofender as Forças Armadas está perfeitamente caracterizado
um seriíssimo problema de ordem política, o qual é apenas mais um dos
aspectos da crise em que estamos mergulhados desde a instauração de um
regime que é absolutamente incompatível com os ideais democráticos
apregoados pelo primeiro governo constitucional pós-revolucionário. (...).
292
(O Estado de São Paulo, 16 de outubro de 1968, p. 3, tít.: O STF entre os
militares e a Câmara)
366. (...). Analisado, porém, do ângulo político e dos supremos interesses
da nacionalidade, impõe-se considerar que se as Forças Armadas têm o
direito de serem respeitadas, se há uma diferença radical entre crítica e
ofensa, entre censura e incitamento ao ódio popular e ao desrespeito,
também é verdade que o precedente da cassação dos direitos políticos de
um deputado federal, com a conseqüente perda do mandato eletivo, poderá
muito bem afetar no futuro o próprio Congresso Nacional, a própria
representação coletiva, em que reside o fundamento da verdadeira
democracia. (...). (O Estado de São Paulo, 16 de outubro de 1968, p. 3, tít.:
O STF entre os militares e a Câmara)
367. (...). A exacerbação dos ânimos chegou a tal ponto que já ninguém
duvida, nos próprios meios parlamentares, de que a oficialidade militar não
se conformará de maneira alguma com uma decisão judicial que livre o
autor da ofensa da punição que os quartéis julgam dever ser-lhe aplicada.
(O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1968, p. 3, tít.: Os fatos que nos
confirmam)
368. (...) não se vê como possa s. exa. [o presidente Costa e Silva] persistir
na sua tendência para sistematicamente deixar de lado a essência das
questões que o assaltam, na suposição de que, contornando-as, as coisas
acabarão por acomodar-se. Até agora, esse processo pode ter-lhe parecido
eficaz, pois, pelo menos na aparência, tudo quanto tenha conturbado a vida
da Nação não foi de molde a abalar nos seus fundamentos a situação que s.
exa. encabeça. (...). (O Estado de São Paulo, 27 de outubro de 1968, p. 3,
tít.: Horas decisivas)
369. (...). O descontentamento que lavra em todos os escalões das forças de
Terra, Mar e Ar, a exaltação dos ânimos nela reinante, e que muitos supõem
ser apenas a conseqüência do incidente criado pelas injúrias assacadas à
tropa pelo deputado Márcio Moreira Alves, são sinais de que ou o sr.
presidente da República muda radicalmente a sua maneira de agir ou antes
mesmo de que termine o pouco que falta de ano em curso teremos surpresas
das mais sérias. (...). (O Estado de São Paulo, 27 de outubro de 1968, p. 3,
tít.: Horas decisivas)
370. Basta uma análise atenta das reações opostas por s. exa. o sr.
presidente da República às conclusões a que chegaram os seus
companheiros de farda na reunião do Alto Comando das Forças Armadas
para que não nos reste a menor dúvida sobre o fato de, como tantas vezes o
temos afirmado, achar-se o País sob o domínio de um intenso militarismo.
(...).
Levar o triste arremedo de Congresso que nos resta a, além de consentir no
julgamento de um de seus membros, referendar um golpe de Estado sob a
forma de novo Ato Institucional, é demonstrar uma perigosa incompreensão
do que se passa atualmente no seio da coletividade e apressar aquilo que já
está a caminho, isto é, a transformação do que há ainda de democrático nas
instituições vigentes, numa ditadura como as que se implantaram
ultimamente na Argentina e no Peru
73
. Embora possa parecer um paradoxo
73
Em 28 de junho de 1966, o presidente argentino Arturo Illia havia sido derrubado pelos militares, que
assumiram diretamente o poder. O general Juan Carlos Onganía foi nomeado presidente, cargo que
exerceu até 19 de abril de 1970, quando foi destituído por um outro golpe militar. No Peru, em 3 de
293
desejarmos que de uma vez por todas se cumpra a vontade popular dando
feição indiscutivelmente democrática às instituições do País, uma longa
experiência da política nacional nos diz que tudo quanto se fizer no sentido
de atender às solicitações do militarismo será em pura perda, pois que, a
prevalecer o ponto de vista dos chefes das Foças Armadas, não tardará
muito que entremos para o rol das ditaduras latino-americanas.
74
(O Estado
de São Paulo, 1 de novembro de 1968, p. 3, tít.: Contribuindo para a
solução da crise)
371. Não concordamos de modo algum com a atitude assumida pelo
senador Daniel Krieger e com a posição para que parecem encaminhar-se
os membros da Comissão de Constituição e Justiça. Em nossa maneira de
ver e de conceber o que seja, na realidade, uma democracia, repugna-nos
aceitar que um indivíduo, pelo simples fato de se achar investido nas
prerrogativas de representantes da Nação, se torne intangível, pairando
acima das leis do País. (...). As imunidades têm limites e jamais poderão
anular os efeitos dos princípios legais que formam a estrutura do sistema
jurídico-constitucional da comunidade. Desde que um deputado ou senador
pratique um ato que pela Lei o force a responder perante os tribunais da
Nação, não vemos sob que pretexto moralmente aceitável possa o
Parlamento deixar de conceder licença para que a Justiça se manifeste a
respeito. Qualquer outra interpretação exorbita quanto a nós das
prerrogativas de que gozam a Câmara e o Senado, tanto mais que a Lei
apenas exige que o Tribunal competente se pronuncie sobre o ato em cuja
prática o parlamentar em causa tenha incorrido. A concessão da licença, no
caso específico que gerou a atual crise, não é uma condenação nem muito
menos um opróbrio: é apenas o reconhecimento pelo Congresso do direito
que assiste às Forças Armadas de solicitar que os tribunais da República se
pronunciem sobre aquilo que toda a oficialidade se apresenta como
intolerável agravo. (...). (O Estado de São Paulo, 5 de novembro de 1968,
p. 3, tít.: A Câmara e as Forças Armadas)
372. (...). A coragem e a audácia (...) demonstradas pelo senador gaúcho
[Daniel Krieger, presidente da ARENA] sensibilizaram inegavelmente o
conglomerado oficial, onde ninguém desfruta de um prestígio tão maciço
como ele. Ora, sendo ponto quase pacífico que a Comissão de Justiça dará
parecer contrário ao pedido de licença do Supremo Tribunal Federal para
que a representação contra o deputado Márcio Moreira Alves possa ter
andamento, não vemos como um número suficiente de deputados não vote
em plenário de acordo com a corrente encabeçada pelo próprio presidente
da ARENA. O servilismo que sempre caracterizou os chamados
representantes do povo é enorme, mas a situação é também excepcional, e,
dada a exacerbação dos espíritos, tudo nos leva a crer que os senhores
outubro de 1968, um golpe de Estado, com o apoio da esquerda, derrubou o presidente Belaunde Terry
e levou o general Juan Velasco Alvarado ao poder. O general permaneceu no governo até 29 de agosto
de 1975, quando foi substituído pelo general Francisco Morales Bermúdez
74
Desvincular-se das ditaduras latino-americanas era uma preocupação constante dos militares
brasileiros. Em parte, isto se justificava face à necessidade de manutenção de uma imagem externa.
De acordo com M.ª D’Alva Gil Kinzo, “Como afirmou o presidente Castelo Branco em carta
endereçada ao comando das Forças Armadas alertando sobre o perigo da instalação de um regime
ditatorial, o país não podia se expor a um regime que seira condenado pela opinião democrática
internacional (...). Além disso, os fortes laços do Brasil com os Estados Unidos e a participação
(indireta) norte-americana no golpe de 1964 fortaleceram a idéia de que o caso brasileiro não podia ser
confundido com as muitas ditaduras de republiquetas latino-americanas.” KINZO, M.ª D’Alva Gil.
Oposição e Autoritarismo: Gênese e trajetória do MDB (1966-1979). op. cit., p. 17.
294
deputados coloquem desta vez o País perante uma desagradável surpresa.
(O Estado de São Paulo, 5 de novembro de 1968, p. 3, tít.: A Câmara e as
Forças Armadas)
373. Nessas condições, manda a verdade que se diga que tanto estão errados
os que exigem por coação um parecer favorável à concessão da licença para
o julgamento de um deputado como os outros, pois que, afinal de contas,
não é justo que os membros do Poder Legislativo procedam como se
fossem uma casta a quem só caibam privilégios e imunidades, senhora do
direito de agredir a quem quer que seja, sem que as pessoas e até mesmo as
instituições possam tocar-lhe com um dedo. (...). (O Estado de São Paulo,
27 de novembro de 1968, p. 3, tít.: Crise adiada)
374. (...). Deputados e senadores sabem que, em última análise, o
Executivo dispõe de meios para impor a sua vontade discricionária. Mas a
experiência ensinou-lhes também que, não desejando fornecer mais
argumentos aos que insistem em identificar o regime com uma ditadura
militar, o governo permite que o Legislativo mantenha até certo ponto a sua
fachada de Poder autônomo. Daí a repetição constante de farsas como
aquela a que acabamos de assistir. Quando uma exigência do Executivo é
posta em xeque, o Palácio da Alvorada intervém in extremis [substituindo
da Comissão de Constituição e Justiça os membros da ARENA que
votariam contra a licença para processar o deputado Márcio Moreira
Alves]. Mas antes que, mediante uma iniciativa concreta, e por vezes
brutal, fique claro que o Congresso é um poder tutelado, a ARENA mostra
aquilo que é: um saco de gatos! Ao longo de debates intermináveis que
caracterizam outras tantas crises políticas menores insertas na crise geral
que o País atravessa, numerosos parlamentares governistas colaboram com
os da oposição no combate aos projetos do Executivo. (O Estado de São
Paulo, 3 de dezembro de 1968, p. 3, tít.: A Convocação do Congresso)
375. Não temos medo de errar afirmando que a opinião popular, pela sua
unanimidade, condenou a insólita agressão desferida pelo deputado Márcio
Moreira Alves contra as Forças Armadas. (...). Acreditamos, diante disso,
que o eleitorado saberia, no próximo pleito, aplicar a quem desmereceu do
seu mandato a mais cabível das punições, negando-lhe a reeleição.
Entretanto, dividiram-se as opiniões quanto à forma escolhida pelo
situacionismo federal para a condenação do faltoso. Há efetivamente, e não
são poucos, os que discordam da concessão, pela Câmara, de licença para o
julgamento daquele parlamentar. Mas não se veja nessa discordância
nenhum movimento de simpatia pelo criminoso e muito menos nela se veja
nenhum desmaio no apoio de todos nós merecido pelas classes militares.
Ela se explica unicamente pela entrada em jogo de outro elemento, aqui
representado por um dos característicos básicos da instituição fundamental
do regime, que é a independência do Legislativo. (...). (O Estado de São
Paulo, 10 de dezembro de 1968, p. 3, tít.: Muito barulho...)
376. (...). Agora, porém, que são claros os sinais da desagregação
irredutível da maioria parlamentar, como o comprova a estrondosa derrota
sofrida ontem pelo governo, quando mais de 70 deputados da ARENA
votaram contra a concessão de licença para processar o deputado Márcio
Moreira Alves, pergunta-se: que é que poderá resultar de um estado de
coisas que tanto se assemelha ao desmantelamento total do regime que o sr.
presidente da República julgava fosse o mais conveniente aquele
delicadíssimo e frágil arquipélago de grupos sociais a que se referia ainda
295
ontem, cuja integridade, é s. exa. o primeiro a reconhecê-lo, está por um
fio? (O Estado de São Paulo, 13 de dezembro de 1968, p. 3, tít.:
Instituições em frangalhos.)
377. (...). Sob o cansaço das humilhações sofridas, aquilo que s. exa.
supunha ser a maioria parlamentar lembra-se enfim de que pela própria
Constituição que passivamente aceitara lhe assistia o direito de afirmar as
suas prerrogativas, como lhe assistia a autoridade moral suficiente para
discutir as razões com que tanto as Classes Armadas como o Executivo
Nacional pretendiam ditar-lhe a pena a aplicar a um deputado faltoso. (...).
(O Estado de São Paulo, 13 de dezembro de 1968, p. 3, tít.: Instituições em
frangalhos.)
Simpatizante de uma facção civil que foi afastada do centro do poder ao longo
dos primeiros anos do regime, O Estado de São Paulo considerava a questão que
envolve o pedido de licença para processar os deputados como um episódio de uma
crise maior, de regime. Regime, este, que procurava caracterizar para o seu auditório
como incompatível com os ideais democráticos pregados. Na verdade, nesta questão,
O Estado de São Paulo, como “meta-sistema perito”, era um opositor em geral:
opunha-se à atitude do deputado, à iniciativa do governo e ao posicionamento do
Legislativo.
Demonstrando a existência da política híbrida, na medida em que se apresentava
contrário a ela, O Estado de São Paulo afirmava que ela não resistiria por muito
tempo. Jogava sobre essa opção a responsabilidade pela crise vivida pelo país. No
entanto, diante da contrariedade dos militares, o jornal concluía que o governo seria
levado a se definir entre as facções no poder. Na opinião d’O Estado de São Paulo,
em razão da militarização do regime, essa opção levaria à reafirmação da ditadura em
que o Brasil vivia. Ditadura, até então, disfarçada por artifícios como o de manter o
Legislativo em funcionamento para servir de fachada democrática.
Portanto, percebe-se, todo o tempo, como o problema da democracia envolve
esta a questão. Justificou a oposição d’O Estado de São Paulo ao regime e, ao mesmo
tempo, surgiu como uma preocupação do governo em manter este caráter como
fachada. Nota-se, ainda, essa questão, quando o jornal, em seus discursos, afirmou
296
que a Constituição deveria ser respeitada e que, na crise entre o Executivo e o
Legislativo, a decisão caberia ao Judiciário. Concordava que as Forças Armadas
tinham que ser respeitadas, mas, em sua relação ambígua quanto à preservação do
Parlamento, também frisava que a punição do deputado poderia afetar o futuro do
Congresso Nacional, “representação coletiva, em que reside o fundamento da
verdadeira democracia”.
Portanto, para O Estado de São Paulo, a preservação da “democracia” era algo
relevante. Todavia, em seus discursos já não haveria a associação do regime à ela.
Pelo contrário, passava a tentar persuadir o seu público de que o vínculo deveria ser à
ditadura.
Observa-se, em conclusão, através da análise dos editoriais d’O Estado de São
Paulo, que os deputados, de acordo com os poucos poderes que a Constituição lhes
garantia, procuraram preservar a independência do Legislativo na questão. A
constatação de que a Câmara estaria se opondo à licença para cassação e enfrentando
o governo; a contrariedade do próprio líder do governo, senador Daniel Krieger,
quanto ao pleito do Executivo; os obstáculos que o MDB estaria criando na Câmara e
no Senado; a união de parlamentares da ARENA à oposição, impondo derrotas ao
governo; e a necessidade substituição de membros da Comissão de Justiça para que a
licença fosse aprovada, seriam exemplos desta tentativa por parte de congressistas.
Estes atos de independência, e de oposição às diretrizes políticas do governo,
demonstram que o governo já não podia tentar fazer uso da preservação do
Legislativo, nem mesmo como fachada, com vistas à constituição de uma imagem
democrática para o regime. Indicariam, pelo contrário, que, com o pouco espaço de
manobra que tinha, o Legislativo gerava obstáculos às ações do governo.
Elaborando-se um quadro de síntese que contemple as discussões em torno do
pedido de licença para processar os deputados, tem-se:
297
QUADRO DE SÍNTESE 2
JB OG OESP
Discurso do deputado Contrário Contrário Contrário
Pedido de licença para
processar os deputados
Contrário Favorável Crítico
Posicionamento do
Legislativo
Favorável Contrário Crítico
O esfacelamento da coalizão no poder era inegável. O discurso do deputado
Márcio Moreira Alves e o conseqüente pedido de licença para processá-lo
representam apenas a gota d’água que transbordou um copo há muito cheio. O
crescimento das manifestações de rua e o eco que elas tiveram no Congresso Nacional
apenas reforçaram os argumentos dos que sempre pleitearam um regime mais duro.
Na tentativa de demonstrar a sua independência, o Legislativo findou por fazer o
regime forçar a mão da ditadura.
Aos membros do Congresso era fundamental manter a imunidade parlamentar.
Conceder licença para processar os deputados geraria, em conseqüência, uma ameaça
a todos os parlamentares. Ou, como disse Carlos Castello Branco,
O Congresso não tem condições morais de entregar a cabeça de um de
seus membros por questões políticas à represália do poder armado, ainda
que dentro de um ritual presidido pela Constituição. Se o fizesse, estaria
apenas entregando a primeira cabeça, pois outras lhe seriam pedidas e já
não haveria condições de resistir. A ceifa começaria pelo MDB e
terminaria Arena adentro. O Congresso já mutilado politicamente, chegaria
ao extremo do desprestígio.
75
Desse modo, em 12 de dezembro, a Câmara dos Deputados realizou a votação.
Dando o seu último suspiro de autonomia, rejeitou, em plenário, o pedido de licença
para processar o deputado. O pleito foi negado por 216 votos contra a suspensão da
imunidade paramentar, 141 a favor, e 15 abstenções. Como previsto, para tal feito, o
MDB contou com o apoio de parlamentares da ARENA. Esta atitude de alguns
298
deputados do partido do governo representava um desafio à norma de fidelidade
partidária que estipulava a cassação de mandato do parlamentar que não as seguisse.
Essa participação decisiva da ARENA levou Jayme Portella de Mello a concluir que
(...) o Governo tinha sido derrotado, não pela Oposição que era minoritária,
mas pelo seu Partido que dera 76 votos aos adversários, num evidente
propósito de contrariá-lo e de abalá-lo, sem qualquer gesto de consideração
ou atenção aos seus apelos. Eram cerca de 116 deputados que formavam
contra o Governo, sendo que, destes, os 76 que votaram contra, estavam
dispostos a enfrentá-lo, a dizer-lhe que não lhe davam mais apoio; os outros
36 não definiram a sua posição, por comodidade, uns, e por covardia,
outros.
76
Os vencedores achavam que aquele era um momento de glória. Mas, de acordo
com Maria Helena Moreira Alves,
Era, na realidade, um momento de derrota, que liberou os membros do
Aparato Repressivo para a aplicação de seu plano. Documentos
recentemente revelados indicam que o Ato Institucional N.º 5 já estava
pronto em julho de 1968. Ele fora preparado em resposta ao crescente
apoio da classe média às manifestações estudantis e à militância dos
trabalhadores, demonstrada nas greves de Contagem e Osasco. Confirma-
se isto pela rapidez com que agiu o Estado de Segurança Nacional. Menos
de 24 horas depois da votação no Congresso Nacional, o texto do Ato
Institucional N.º 5 foi publicado na imprensa e reiteradamente lido na
televisão e no rádio. Fechava-se o Congresso por tempo indefinido. Em
todo o país, o Exército procedeu a manobras que representavam verdadeira
ocupação. Opositores de todos os matizes ideológicos eram presos aos
milhares.
77
Com a recusa do Congresso em revogar a imunidade de Márcio Moreira Alves,
a “linha-dura” pressionou Costa e Silva a tomar atitudes. Apesar de ter dito que o
Congresso era “intocável” e que suas decisões deveriam ser respeitadas, o presidente
capitulou e o resultado foi a edição do Ato Institucional n.º 5. Assim como ocorrera
com Castelo Branco, Costa e Silva foi incapaz de controlar os “duros”.
No dia 13 de dezembro o presidente Costa e Silva convocou o Conselho de
Segurança Nacional e apresentou o texto do Ato Institucional n.º 5 que, após alguns
acertos, foi promulgado na noite daquele mesmo dia. Em complemento, foi editado o
75
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 493. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 11 de outubro de 1968.
76
MELLO, Jayme Portella de. op. cit., p. 640.
299
Ato Suplementar n.º 38, pondo o Congresso em recesso por tempo indeterminado
78
.
Nos meses subseqüentes foi feita nova “limpeza” no Legislativo e, através de atos e
decretos, ampliou-se o poder do Executivo. Conforme Fiechter, “É o fim da fase
semi-representativa do regime que Castelo Branco tentou elaborar em laboratório,
mas que não resistiu às provas de realidade temporal.”
79
O sistema até então
implantado era híbrido demais e concedia um espaço à oposição que impedia o
controle absoluto por parte do governo. Setores militares não se predispunham a
respeitar esse espaço e, à força, procuraram impor esse controle. De acordo com
Eliézer Rizzo de Oliveira,
(...). A edição de novo Ato Institucional (AI-5) e o fechamento do
Congresso culminam um processo político em que, do ponto de vista das
relações do Executivo com o Legislativo, nem mesmo os setores
governistas na Câmara e no Senado estavam sob pleno controle. De fato,
não apenas na votação do “caso Márcio Moreira Alves” um número
expressivo de arenistas se colocou contra a orientação governamental
(houve mesmo um movimento para que deputados arenistas abandonassem
as comissões técnicas em represália à liderança governista, que afastara
nove parlamentares da Comissão de Justiça que haviam se manifestado
contra a licença), mas também em várias outras atividades nas Comissões
Parlamentares de Inquérito e na votação de projetos (alguns de autoria do
governo) aos quais o Executivo atribuía grande importância. (...). Quanto
às CPIs, elas foram talvez o principal instrumento de luta do Legislativo
para preservar o controle sobre certas áreas de decisão. Por outro lado, o
Congresso é o palco privilegiado de expressão dos conflitos sociais, o que,
por sua vez, é um elemento agravante nas suas relações com o Executivo.
As pressões canalizadas pelos diversos setores oposicionistas se
cristalizaram na organização (já referida) de várias CPIs (...).
80
O Congresso foi punido pela ação da Câmara dos Deputados. Mas, de acordo
com Carlos Castello Branco, “A Câmara, em tudo isso, só teve um consolo, o de cair
77
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 130-131.
78
Era a primeira vez, desde 1937, e a quinta, na história do Brasil, que o Congresso era fechado por
tempo indeterminado. Cf. GASPARI, Elio. op. cit., p. 340. De acordo com Jayme Portella de Mello,
no dia 12 de dezembro de 1968, em um rascunho feito pelo presidente durante o vôo que o levou de
Belo Horizonte ao Rio de Janeiro não constava o recesso do Congresso. Somente horas mais tarde, já
no palácio das Laranjeiras, é que, em outra nota, pôde ser lida tal menção. Cf. MELLO, Jayme Portella
de. op. cit., p. 638-642.
79
FIECHTER, Georges-André. op. cit., p. 237.
80
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. op. cit., p. 96-97.
300
lutando, manifestando-se na plenitude de sua soberania. A festa do Congresso não
durou, porém, mais de 24 horas.”
81
Não havia outra alternativa para o Legislativo.
O AI-5 reiterava disposições dos dois primeiros Atos. Entretanto, não
estipulava prazo para sua vigência, e punha como permanentes os controles e a
suspensão das garantias constitucionais. Quanto ao Legislativo, o Ato estipulava que
o Executivo poderia: fechar o Congresso Nacional e as Assembléias Estaduais e
Municipais; cassar mandatos eletivos de membros do Legislativo, nos níveis federal,
estadual e municipal, e, também, de prefeitos e governadores e; suspender direitos
políticos por 10 anos. Reinstituiu, ainda, o “Estatuto dos Cassados”. Além destas
normas, com a edição do Ato o governo poderia decretar o estado de sítio sem os
impedimentos previstos na Constituição de 1967, poderia legislar por decretos-leis e
baixar outros atos institucionais ou complementares. O Ato suspendeu, ainda, a
garantia de habeas corpus para crimes considerados de segurança nacional e proibiu a
apreciação pelo Judiciário de recursos impetrados contra medidas baseadas no próprio
AI-5.
Durante a vigência do Ato (até 1979), a cassação de políticos eleitos alterou
profundamente a constituição do poder Legislativo. Porém, a “limpeza” não ficou
limitada à área política. Como prova da existência das dissidências no interior do
regime, os expurgos atingiram, mais uma vez, as próprias Forças Armadas. O
objetivo era controlar a dissensão interna e eliminar os principais focos de oposição,
até mesmo entre os militares.
O AI-5 abriu caminho para o descontrolado uso do Aparato Repressivo por
parte do Estado de Segurança Nacional. Restringiu profundamente o Legislativo e o
Judiciário. Como resultado, o poder foi totalmente centralizado no Executivo. Todo
este poder, contudo, isolou-o.
81
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 563. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 14 de dezembro de
301
Após a edição do AI-5, os jornais passaram alguns dias sem publicar editoriais
sobre política nacional. Em seu retorno, foram genéricos. Não podia ser diferente.
378. De novo, erros nos levaram a um estado de coisas que provocou nova
quebra de continuidade de um processo, que é o único capaz de assegurar a
plena revitalização da democracia brasileira. Dia a dia vimos alertando a
opinião pública para os perigos de uma radicalização de atitudes que só
poderia dar no que deu.
(...). A análise fria, serena e justa dos acontecimentos políticos que
precederam a promulgação do Ato Institucional n.º 5 e das conseqüências
desta medida para o futuro da democracia brasileira, deverá ser feita no
devido tempo. Há que esperar que se assente a poeira da explosão de
paixões levadas ao paroxismo e que se aplaque a fúria das indignações
desencadeadas. (Jornal do Brasil, 3 de janeiro de 1969, p. 6, tít.:
Normalidade Imprescindível)
379. Aos poucos o país, ainda atordoado, vai se dando conta de que o Ato
Institucional n.º 5 foi uma nova Revolução, de repercussões tão amplas
quanto as do movimento de 1964 e de conseqüências talvez mais profundas.
Pelo que se deduz de seu próprio contexto, das medidas punitivas já
adotadas e das que vêm sendo repetidamente anunciadas, vamos ter em
vários setores da vida nacional a Revolução que em 1964 não se completou.
(Jornal do Brasil, 7 de janeiro de 1969, p. 6, tít.: Autocrítica)
380. É de esperar que a classe política e os parlamentares estejam fazendo
neste momento, no silêncio da tribuna parlamentar calada pelo recesso
forçado, a sua autocrítica sob a ameaça de um iminente expurgo. (...).
(Jornal do Brasil, 7 de janeiro de 1969, p. 6, tít.: Autocrítica)
381. (...). É óbvio que Senado e Câmara fracassaram. Continuaram com o
velho joguinho, com a tática de “tolerar” a Revolução, olhos fitos numa
“normalização” que representaria – como sempre aqui registramos – o
retorno ao caos pré-revolucionário (caos aquele rendoso para tantos
políticos).
(...) na órbita do Executivo praticaram-se também não poucos erros
políticos e, sobretudo, não pequenas omissões – aqueles e estas em parte
geraram ou estimularam os desacertos do Congresso. Diante de questões
básicas registraram-se vacilações da liderança governamental – não apenas
lideranças situacionistas no Congresso. (O Globo, 4 de janeiro de 1969, p.
1, tít.: O salto e o atleta)
382. A reação – ou não-reação – popular indica a presença de enorme
receptividade potencial da opinião nacional a decisões grandes que
realmente solucionem os magnos problemas do País. Portanto, não há lugar
para gestos pequenos após o 13 de Dezembro. (...).
O Governo está condenado a não errar. Perdeu esse direito. Um erro agora
será como que a pena de morte sem o benefício do indulto. O Ato 5 foi a
última instância. A trincheira derradeira. Não se pode afirmar ainda se terá
sido um erro ou um acerto. Isso depende do uso que dele fizerem. Por isso,
é prematuro apoiá-lo ou condená-lo (embora algumas providências na
órbita econômico-financeira hajam sido felizes). Poderá ser um bem para o
1968.
302
Brasil como poderá representar a maldição suprema. (...). (O Globo, 4 de
janeiro de 1969, p. 1, tít.: O salto e o atleta)
383. Os brasileiros aceitam, como transição, como mal necessário, uma fase
de reajuste. (...). (O Globo, 25 de janeiro de 1969, p. 1, tít.: União e
trabalho)
A análise das seqüências discursivas acima evidencia que o Jornal do Brasil
continuava partidário dos “objetivos originais” da “Revolução” de “revitalizar a
democracia”. Exatamente por manter esta posição ao longo do tempo, vinha, com
freqüência, criticando os rumos do regime que, de acordo com a opinião do jornal,
estaria se afastando daqueles “objetivos”. Não que o Jornal do Brasil fosse um
paladino defensor da democracia. Defendia a preservação de princípios democráticos,
mas, por vezes, também defendeu os limites que lhes eram impostos. Em resumo,
este jornal mantinha uma posição talvez menos parcial que os demais jornais
analisados. Havia criticado a situação anterior à instauração do regime militar, e,
depois, criticou por muitas vezes a posição dos parlamentares. No entanto, apesar de
apoiar o novo regime, sua postura nunca foi acrítica. Se na instauração do regime foi
um simpatizante ativo que procurou forjar junto ao seu auditório a ilusão de um
consenso quanto à ação militar, com o tempo, teceu críticas aos rumos tomados.
Contudo, diante da nova conjuntura vivida pelo país a partir do AI-5, tinha
ciência de que não teria mais como fazer qualquer tipo de crítica. É nesse sentido
que, após um longo tempo sem publicar nenhum editorial
82
, em seu retorno, as críticas
foram feitas de forma não muito bem definida. A responsabilidade quanto à edição do
novo Ato foi imputada a erros oriundos da radicalização, e a análise das
conseqüências do AI-5 foi deixada para o tempo em que os ânimos estivessem
serenados.
82
Com a edição do AI-5, a coluna de editoriais do Jornal do Brasil deixou de ser publicada. Entre os
dias 14 de dezembro de 1968 e 3 de janeiro de 1969, nenhum editorial foi publicado. No dia 14 de
dezembro de 1968, especificamente, a coluna de editoriais foi substituída por fotos de dois atletas: uma
do judoca Anton Geesink, sob o título: “Tarefa Hercúlea”, e com o dizer: “Anton Geesink, para ser
campeão mundial, estudou judô desde pequenininho”; e outra do cavaleiro Nélson Pessoa. Esta sob o
303
Além da permanência do apoio do Jornal do Brasil aos “objetivos originais” da
“Revolução”, outro fator que se mantinha presente era o da democracia como um
ideal. Isto mostra que, mesmo com o endurecimento do regime, ela permaneceu no
centro do discurso e como formação discursiva predominante no imaginário do
auditório do jornal. Nesse sentido, a retórica da democracia deveria ser mantida.
Todavia, o vínculo entre as ações do governo e a democracia, pelo Jornal do Brasil,
tornava-se improvável.
O Globo, em seus habitualmente raros editoriais, de modo geral, aplaude a
edição do AI-5. Como partidário do regime, não negava que o Ato representava uma
excepcionalidade, porém, procurava construir a idéia de que o povo brasileiro o
compreendia e o aceitava como uma fase de reajuste. Fazia, contudo, ressalvas,
afirmando que a sua edição poderia significar um passo à frente ou um retrocesso, e
que, a partir dele, o governo não poderia mais errar.
Desse modo, embora partidário do regime, O Globo não deixava de apresentar
críticas, mesmo que apenas pontuais, ao governo Costa e Silva. Principalmente por
suas atitudes às vésperas da edição do AI-5. É lógico, porém, que a maior carga
crítica recaia sobre a oposição e sobre os deputados da ARENA, o “outro”, o “mal”,
que se negou a referendar o pedido do Executivo. Isto comprova, ao mesmo tempo, a
tese de que, em fins de 1968, a coalizão no poder estava em franco processo de
fragmentação, e que o governo titubeava em decidir a que facção agradar. Contudo,
este fracionamento não foi algo que ocorreu apenas em 1968. O ano em questão foi
apenas um momento limite de um processo que tem origem na própria constituição da
coligação heterogênea que se uniu para derrubar o presidente João Goulart. Diante
desse fato, tanto Castelo Branco quanto Costa e Silva tiveram que optar por uma
política que, devido a pressões, ora cedia aos “moderados”, ora fazia concessões aos
título: “Um ginete de classe”, e com o dizer: “O cavaleiro Nelson Pessoa logra êxito invulgar ao saltar
com brilho os obstáculo que se lhe antepõem”.
304
“duros”. No entanto, este caminho tornava-se inviável. Era chegado o momento de
optar mais claramente por um dos lados.
O Estado de São Paulo, embora não tenha suprimido por completo a seção
destinada aos editoriais, deixou de publicar os que se destinavam a questões de caráter
político-nacional. Isto era fácil perceber face ao fato de que tais editoriais
habitualmente eram os primeiros e contavam com um padrão gráfico diverso do dos
demais
83
. Este padrão desapareceu junto com os editoriais sobre política nacional.
Quando retornaram, O Estado de São Paulo, ciente da impossibilidade de criticar as
ações do governo, simplesmente se exime de discuti-las.
Em face desta análise, pode-se elaborar o seguinte quadro de síntese para o
período imediatamente posterior à edição do AI-5:
QUADRO DE SÍNTESE 3
JB OG OESP
Edição do AI-5 Não se posiciona Favorável -----------
Poder Legislativo Crítico Crítico -----------
Uma conclusão a que se pode chegar é a de que, grupos, instituições, pessoas,
de origem civil e militar, em determinado momento, formaram uma coligação
heterogênea, unida em torno de um objetivo comum: destituir o presidente João
Goulart. Mas, as diversas facções dessa coligação tinham interesses e concepções
distintas e, muitas vezes, conflitantes. Essa heterogeneidade se materializou na
política do governo. A facção militar “moderada” que assumiu o poder se viu, em
diversas horas, obrigada a ceder às pressões da “linha-dura”. Mesmo Costa e Silva
não podendo ser considerado um “moderado”, manteve tal política.
De acordo com essa política híbrida e em busca de legitimação junto à
sociedade civil, ao Legislativo, apesar de extremamente enfraquecido, foi permitido
83
Estes editoriais eram apresentados em coluna única com uma largura maior do que os demais.
305
um pequeno grau de autonomia. Em 1968, as agitações de rua ecoaram no Congresso
Nacional, onde a força desses movimentos repercutiu e um grupo de parlamentares
passou a tentar recobrar os seus poderes, tornando o Parlamento em um obstáculo às
iniciativas do Executivo. Isto provava que mesmo um Congresso saneado e
enfraquecido era incapaz de dar aos militares o apoio necessário. Por fim, a
intensificação das pressões legislativas levou ao aumento da repressão e à edição do
AI-5. Nenhuma crítica ao regime era mais permitida. Nem no Congresso, nem na
imprensa. Era a falência da política híbrida. De acordo com Abdo I. Baaklini,
Após 1964 o regime autoritário tentou controlar tanto o Congresso
quanto a burocracia, apenas para descobrir que tal objetivo não poderia ser
alcançado dentro das normas legais e constitucionais. Em um certo sentido,
o regime autoritário passou a maior parte de seu tempo tentando alcançar
este objetivo ilusório. O regime alcançou sucesso temporário, mas através
de medidas não-democráticas, arbitrárias e freqüentemente coercitivas,
desprovidas de constitucionalidade e de apoio público. Isto prova uma vez
mais que os problemas intrínsecos do sistema presidencialista no Brasil não
podem ser eliminados de forma democrática. As medidas autoritárias e
arbitrárias podem alcançar um alívio temporário, mas apenas a um alto
custo em termos de legitimidade e aceitação política.
84
No entanto, antes da opção pela força o governo investiu mais de três meses em
negociações com o Congresso para conseguir autorização para punir o deputado
Márcio Moreira Alves. Isto indica a que ponto o governo chegou na insistência em
manter o Legislativo aberto antes de ceder às pressões da extrema-direita do regime.
Conforme Renato Lemos,
(...) a cronologia dos acontecimentos [pré edição do AI-5] é indicativa da
importância que o grupo dirigente ainda atribuía à preservação das
estruturas democráticas. Mesmo dispondo de poderosos instrumentos de
coação, o governo manteve por três meses desgastantes negociações com o
Congresso até que fosse recusada a licença para processar o deputado.
Naturalmente, este foi um tempo de negociações também com a linha-dura,
que, com a vitória política representada pela decretação do AI-5, iniciou
uma nova fase na história do regime militar brasileiro.
85
Nova fase, sim, mas com um mesmo problema para o regime: como legitimar o
seu domínio?
84
BAAKLINI, Abdo I. O Congresso e o Sistema Político do Brasil. op. cit., p. 58.
306
Conclusão:
Em 1968, a política híbrida de “democracia tutelada”, que mesclava um
autoritarismo congênito a resquícios de legalidade democrática, apresentou claros
sinais de desgaste. Segundo Lúcia Klein,
(...) parece existir uma incompatibilidade entre a nova legalidade que
emerge a partir da instauração do processo revolucionário e a legitimidade
típica do regime anterior, uma vez que a nova ordem legal age no sentido
de restringir a legitimidade conferida pelas instituições políticas que haviam
sido mantidas. (...).
86
Durante o período em que essa política foi dominante, os donos do poder
acreditavam que os resultados que, teoricamente, seriam obtidos (“modernização” e
“desenvolvimento”) justificariam o uso das medidas arbitrárias. Segundo José
Eduardo Faria,
(...). Acreditava-se, no âmbito do sistema de poder, que a consecução do
progresso legitimaria a posteriori uma retração temporária nas liberdades
públicas, compensada quer com a promessa de um futuro progresso
material e de bem-estar social, quer com a ênfase a um privatismo
exacerbado na orientação dos indivíduos para o sucesso de sua carreira
profissional, para a elevação de seu padrão de consumo e para a ampliação
de suas oportunidades de lazer.
87
No entanto, como também frisa Faria, a concessão de benefícios sociais para
compensar as restrições à cidadania não produzia uma lealdade duradoura, gerando
novas reivindicações
88
. Além disso, esses benefícios não eram extensivos a todos os
grupos sociais. Portanto, junto com a inviabilidade da manutenção da política híbrida,
em 1968, os movimentos contrários aos governos militares e as contradições
existentes no interior do regime e da coalizão no poder se tornavam mais nítidos.
Com a posse de Costa e Silva e a entrada em vigor da nova Constituição
revigorou-se, ao menos parcialmente, a discussão política no Congresso. Em 1968, o
85
LEMOS, Renato Luís do C. Neto e. “Poder Judiciário e poder militar”. op. cit., p. 25.
86
KLEIN, Lúcia. “Brasil pós-64: a nova ordem legal e a redefinição das bases de legitimidade”. op.
cit., p. 42.
87
FARIA, José Eduardo. “A crise constitucional e a restauração da legitimidade”. Revista de Ciência
Política. Rio de Janeiro, vol. 28, n.º 2, maio / agosto de 1985, p. 34.
307
aumento das manifestações de grupos sociais em protesto contra o governo e a
conseqüente intensificação da repressão fizeram com que o Congresso Nacional se
tornasse o único fórum livre para crítica ao regime. Somado a isto, membros do
Legislativo buscavam reaver os poderes que lhe haviam sido tomados. Por seu lado, a
“linha-dura” apresentava a sua insatisfação com o contexto político. Além dos sinais
de desgaste dados pela política híbrida, a heterogeneidade da coalizão no poder
expunha as suas diferenças.
Os grupos unidos em torno da deposição de João Goulart tinham visões e
aspirações antagônicas quanto ao que se daria depois. Segundo Kinzo
89
, os grupos
civis que participaram do movimento civil-militar concordavam com o
estabelecimento de um governo militar por um breve período. Esperava-se que os
militares fizessem o “saneamento” do meio político, trabalho de custo elevado, e, a
seguir, devolvessem o poder aos civis. A UDN e seus membros, que há tempos
sonhavam com o poder, consideravam que a “Revolução” seria o meio para realizá-lo.
No entanto, de acordo com a análise de Kinzo,
(...). Se entre os civis que apoiaram o movimento de 1964 não havia
intenção alguma de passar o controle total do governo para as mãos dos
militares, também não seria fácil para os militares optarem pela
marginalização completa daqueles civis que tão ativamente haviam
participado do golpe; especialmente aqueles – como os udenistas – que
haviam desenvolvido fortes vínculos com os setores militares e eram
considerados capazes de minar a unidade da instituição militar. Estes
fatores, portanto, criaram problemas adicionais para uma alternativa que
fechasse todos os canais de representação.
90
O AI-5, assim como os outros momentos de ápice da crise do regime, é produto
desse conflito de interesses entre as facções da coalizão golpista, principalmente no
interior das Forças Armadas. Mas, ao mesmo tempo, era uma tentativa de manter a
necessária unidade militar. Ainda conforme Kinzo
91
, este conflito entre a “linha-
88
Idem, p. 52.
89
KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 17-18.
90
Idem, p. 18.
91
Id., p. 220.
308
dura” e os “moderados” esteve sempre presente e foi uma fonte permanente de
instabilidade. O AI-2, com a imposição da candidatura de Costa e Silva, e o AI-5 são
resultados deste embate, e eram, em última instância, segundo Kinzo, “destinados a
preservar a unidade militar”
92
.
Por outro lado, nesse momento, conforme Lúcia Klein
93
, parece se romper o
compromisso com a forma de dominação do período anterior e até com a ordem
política que instaurou o bipartidarismo e promulgou a Constituição de 1967. Essa
ordem política era, sem dúvida, autoritária. No entanto, manteve eleições diretas para
os governos estaduais, e permitiu que o Legislativo, embora saneado e enfraquecido,
permanecesse em funcionamento. A promulgação de Constituição de 1967
institucionalizou o fortalecimento do Executivo. Contudo, o poder que o presidente
da República tinha de cassar mandatos e suspender direitos políticos havia se
extinguido junto com o AI-2. Assim, somente uma licença do Congresso poderia dar
permissão para o Executivo processar um parlamentar. A oposição tenderia a usar o
espaço que a política híbrida do regime lhe permitia. Contando com o apoio de
congressistas da ARENA, o MDB fez isso, ao lutar pelo uso das prerrogativas que
restavam ao Congresso
94
.
As pressões internas e externas, de acordo com Kinzo,
(...) foram fontes de instabilidade para o governo e dificultaram a
institucionalização do regime. Ambas se influenciaram mutuamente na
medida em que empurravam o governo em direções opostas: forças
internas ao sistema, mais particularmente a linha dura militar, pressionavam
o governo para reforçar o lado autoritário do regime, enquanto que forças
externas, ou seja, os setores políticos civis, tentavam tornar efetivo o lado
liberal.
95
Em fins de 1968, o regime já não podia conciliar estes dois sentidos distintos.
Optou por um deles. Como resultado dessa opção, editou o AI-5, pondo o Congresso
92
Ibidem.
93
KLEIN, Lúcia. op. cit., p. 33.
94
KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 220.
95
Ibidem.
309
em recesso, dessa vez por tempo indeterminado, e ampliando os poderes do
Executivo.
Por fim, ainda conforme Kinzo,
(...) a primeira tentativa para estabelecer este tipo de “democracia tutelada”
realmente resultou numa guinada em direção a uma situação claramente
militar-autoritária após 1968, e acabou por manter o domínio militar por
quase vinte e um anos no Brasil. Entretanto, o projeto original de moldar o
sistema político brasileiro em uma democracia restrita não foi abandonado,
sendo, na verdade, retomado com a ascensão de Geisel ao poder em 1974.
(...).
96
De acordo com Lamounier, Geisel, ligado ao grupo “castelista” e preocupado
com o isolamento do governo com relação à sociedade, procurou executar uma
política de “normalização” institucional através da recuperação do calendário
eleitoral
97
. Dentro da política de distensão “gradual e segura”, pela qual, segundo
Lamounier, se tentava “projetar no tempo a então vigente estratificação do poder
político-institucional”
98
, a abertura via eleições só foi possível pois os partidos
estariam lutando pelo controle de um Legislativo esvaziado em suas funções e
prerrogativas
99
.
Com relação à conjuntura que envolve a edição do AI-5 é possível elaborar o
seguinte quadro de síntese para o capítulo:
QUADRO DE SÍNTESE DO CAPÍTULO
JB OG OESP
Ações do governo Contrário Favorável Contrário
Autonomia do Legislativo Inexiste ------ Inexiste
Posicionamento do
Legislativo
Favorável Contrário Crítico
96
Idem, p. 220-221.
97
LAMOUNIER, Bolivar. “‘Authoritarian Brazil’ revisitado: o impacto das eleições na abertura
política brasileira, 1974-1982”. op. cit., p. 297.
98
Idem, p. 314.
99
Id., p. 314-315.
310
Com base nos dados acima, é possível perceber que, exceção feita a O Globo,
que, em linhas gerais, sempre assentia com a política do governo, os editoriais d’O
Estado de São Paulo e do Jornal do Brasil são exemplos da desintegração da base de
apoio ao governo e do desencontro que ocorreu, naquele momento, entre o discurso da
imprensa e os interesses do regime. Já não era simples contar com o apoio dos
jornais, no objetivo de passar uma imagem democrática do regime a determinados
setores da sociedade. Não, ao menos, diante da cessão às pressões da “linha-dura” e
da conseqüente e progressiva supressão da autonomia que ainda restava ao
Legislativo. O regime, temporariamente, abdicava da legitimação democrática. E a
imprensa, a partir da edição do AI-5, teve que emudecer diante do autoritarismo
“revolucionário”. Mas, mesmo sendo mudo, ainda se podia escutar as atrocidades
emanadas dos porões da ditadura, e incomodava ouvir e não poder falar. Além de
mudo, era preciso ser surdo. Ainda assim, restariam os olhos a ver todo o horror que
se passava. Para sobreviver, só mesmo sendo mudo, surdo e cego.
A fragmentação da coalizão civil-militar no poder, por sua vez, ameaçava a
unidade da corporação militar. Esta unidade é extremamente importante para a
corporação, e, na tentativa de mantê-la, os militares empregam grandes esforços.
Segundo Alfred Stepan
100
, a preocupação dos militares com a unidade e a
unanimidade leva a um auto-isolamento progressivo do regime militar.
Considerando a crítica como algo prejudicial à unidade da corporação, o
governo militar não tolera o debate natural para construir e manter coligações com
civis. Em resposta, reprime-as, o que gera críticas ainda mais agudas. Por sua vez, os
militares adotam uma repressão ainda mais violenta. Esta dialética constante entre
crítica e aumento da repressão leva ao progressivo isolamento dos militares e, em
conseqüência, do regime, que ficava ainda mais dependente dos militares. Foi isto
100
STEPAN, Alfred C. op. cit., p. 190.
311
que ocorreu ao longo da primeira fase do regime e teve como cume a edição do AI-5,
em dezembro de 1968.
Naquele momento, o aumento da repressão em resposta às críticas feitas, muitas
através dos jornais, isolaram o governo da sociedade civil. Parlamentares da oposição
e alguns membros do partido do governo engrossaram o coro de insatisfeitos. Ficava
claro que o regime já não contava com legitimidade junto à sociedade civil, e a
imprensa, em particular. Pior: o Legislativo, preservado para manter uma imagem
democrática para o regime, tornara-se um obstáculo. Resultado: isolado, o governo
ampliou ainda mais a onda repressiva, eliminando qualquer voz de insatisfação, fosse
ela oriunda da sociedade civil e/ou do Congresso Nacional. O Legislativo, casa de
representação da sociedade brasileira, tornou-se um ente praticamente decorativo.
De acordo com Gláucio Ary Dillon Soares e Sérgio Abranches,
O AI-5 (e a hegemonia indiscutível do Executivo que ele representou)
agregou a última das restrições à competência propriamente legislativa do
Congresso. O Legislativo passou a rejeitar, maciçamente, os projetos de
sua própria iniciativa configurando, assim, uma espécie de suicídio em
matéria de feitura de leis. (...). Concretizou-se, assim, a transferência total
da competência legislativa para o Executivo, após uma série de
transformações, como segue:
a) uma tendência histórica geral, ao crescimento das iniciativas
legislativas do Executivo;
b) a partir de 1964, um aumento na taxa de aprovações dos projetos de
origem executiva: o Legislativo não pode mais opor-se ao Executivo;
c) a partir de 1964, o início da capacidade do Executivo de legislar
autonomamente, através de decretos-leis;
d) a partir de 1967, o Legislativo vê restringido o conteúdo das suas
iniciativas legislativas: não pode criar despesas, etc., e
e) a partir de fins de 1968, o Legislativo fica, virtualmente, impedido de
legislar, sendo forçado a rejeitar suas próprias iniciativas. Os projetos
aprovados são aqueles que o Executivo apresenta através do Legislativo.
101
Optando pela “linha-dura”, o regime não abdicava, mas punha em reserva a
intenção original de buscar legitimidade junto à sociedade civil. Legitimidade esta
que se pretendia conseguir por meio da construção de uma imagem democrática para
o regime. Nesse processo, deveria preservar o Legislativo em funcionamento como
101
ABRANCHES, Sérgio Henrique H.; SOARES, Gláucio Ary D. op. cit., p. 95. Grifo do autor.
312
espaço de diálogo junto à sociedade civil. Mas essa intenção resultou em uma política
contraditória. Segundo Maria Helena Moreira Alves,
(...) a crise entre o Executivo e o Legislativo que terminou com o
fechamento do Congresso Nacional por período indeterminado mais uma
vez lançou luz sobre a contradição entre o uso da linguagem da democracia
e a prática da repressão por parte do Estado. Forçado a utilizar suas últimas
fontes de poder – a força física –, o Estado sofreu nova perda de
legitimidade. A perda de legitimidade e seu crescente isolamento, por sua
vez, só lhe deixavam a alternativa de continuar a escalada no emprego da
força.
102
Mas, mesmo perdendo parte substancial de sua legitimidade junto à sociedade
civil, nem após o AI-5, o Estado deixou de buscá-la
103
. De acordo com Thomas
Skidmore,
Em virtude desta rápida modificação do cenário político e da propensão
dos militares brasileiros para a legitimidade formal, era inevitável uma nova
Constituição. Durante a primeira metade de 1969 o próprio presidente
trabalhou numa versão preliminar, em grande parte esboçada pelo vice-
presidente Pedro Aleixo. Em fins de agosto o esboço do projeto estava
virtualmente terminado.
Por que essa mania por mais uma Constituição? É que nela refletia-se o
desejo contínuo dos revolucionários, até dos militares da linha dura, de
estarem munidos de uma justificativa legal para a afirmação de sua
autoridade arbitrária. Agora, contudo, havia gritante contradição entre o
compromisso com o constitucionalismo e a vontade de mandar, porquanto a
mais importante autojustificação do governo, o AI-5, não tinha prazo para
expirar. E, além do mais, dava ao presidente poder para suspender
indefinidamente o habeas-corpus. Pela primeira vez, desde o golpe de
1964, não havia data marcada para o retorno ao império da lei.
104
Apesar dessa “gritante contradição” o Estado não desistiu de procurar
estabelecer um vínculo entre o regime e a democracia. Exemplo disto é, ainda, a
situação do Legislativo. As dificuldades quanto à estruturação e regulamentação de
suas funções se agravaram a partir de 1969. Contudo, o regime não deixou de pleitear
a chancela do Congresso para os seus atos arbitrários, como sugere a questão que
envolve a sucessão de Costa e Silva.
102
ALVES, M.ª Helena M. op. cit., p. 136.
103
De acordo com M.ª D’Alva Gil Kinzo, a adoção de um regime híbrido que, por mais que fosse
autoritário, mantinha certos procedimentos típicos da democracia, também visava preservar uma
imagem do país no exterior. Cf. KINZO, M.ª D’Alva Gil. op. cit., p. 217-218.
104
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). op. cit., p. 170-171.
313
Com o impedimento do presidente, em fins de 1969, deveria assumir o seu vice,
Pedro Aleixo, parlamentar udenista que foi líder da bancada governista na Câmara
durante os governos de Jânio Quadros e de Castelo Branco e que, em janeiro de 1966,
assumiu o Ministério da Educação no mesmo governo Castelo
105
. Mas a Junta Militar
que assumiu o poder provisoriamente descartou essa possibilidade. Ao invés de
empossar Aleixo, decretou uma emenda que restringiu ainda mais os já escassos
poderes do Legislativo, que estava em recesso a dez meses, e o reconvocou para
legitimar a eleição do general Emílio Garrastazu Médici como novo presidente da
República. Em 14 de dezembro de 1968, o jornalista Carlos Castello Branco já havia
levantado a hipótese de que o Congresso só seria reconvocado quando da escolha do
sucessor de Costa e Silva. Disse, então, o jornalista:
(...). A possibilidade, mantida pelo presidente, de convocar o Congresso
sem compromisso de data indica que só para resolver uma crise eventual ele
o fará. Mais provavelmente, contudo, Câmara e Senado só voltarão a se
reunir para constituir o Colégio Eleitoral que, no tempo próprio ou no
momento designado pela Revolução, formalizará a escolha do sucessor do
Presidente Costa e Silva.
106
Por mais que, em função da análise feita da conjuntura, o regime tenha optado,
em dezembro de 1968, por usar óculos escuros, tal qual Costa e Silva, com relação à
necessidade de legitimação junto à sociedade civil, não poderia ignorá-la para sempre.
As lentes escuras não encobriam o fato de que os donos do poder precisavam
legitimar o seu domínio. Se se tornava difícil buscar uma legitimação “democrática”,
procuraram outras formas de chegar a ela, mas não desistiram, e nem podiam, de
buscá-la.
Segundo Bolivar Lamounier, durante o ano de 1968, o regime militar brasileiro
encontrava-se na segunda das três fases do processo de legitimação pelas quais
105
Idem, p. 140.
106
BRANCO, Carlos Castello. Os Militares no Poder. op. cit., vol. II, p. 562. Nota publicada
originalmente na coluna do jornalista, “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 14 de dezembro de
1968.
314
passou
107
. Esta fase, compreendida entre os anos de 1967 e 1974, teria por
fundamento o crescimento econômico. Durante ela, o governo estaria procurando
compensar a sua ilegitimidade política através de êxitos econômicos. Contudo,
segundo Lamounier, seria um equívoco colocar o problema político na dependência
de taxas de crescimento econômico. Primeiro, justamente em função da legitimidade
política servir de uma reserva de apoio que pode ser invocada em momentos de
dificuldade econômica, “a fim de facilitar a aceitação e/ou realocação de
sacrifícios”
108
. Depois, em virtude de que, mesmo em momentos de prosperidade, as
comparações de ganho entre os grupos podem gerar insatisfações. Essas insatisfações
levariam à corrosão das bases de sustentação
109
. Com o aumento do desequilíbrio
entre acumulação e eqüidade, provocado pela política econômica recessiva, ocorre um
desgaste do regime com amplos setores da sociedade, o que, acaba isolando-o de
modo irreversível.
110
Portanto, mesmo buscando uma legitimação com base em aspectos econômicos,
o regime não podia cegar os olhos a uma legitimação política. Legitimação esta que,
no caso de uma sociedade complexa como a brasileira, onde a “democracia” era a
formação discursiva predominante, tanto no imaginário social quanto no político,
precisava, de alguma forma, associar os seus feitos a ela.
107
De acordo com Bolivar Lamounier, a primeira fase do processo de legitimação do regime militar
englobava o período compreendido entre os anos de 1964 e 1966. Seu fundamento seria a negação do
período anterior. Na terceira, compreendida no período pós-1974, estaria vinculada à normalização
institucional. ver: LAMOUNIER, Bolivar. “O discurso e o processo (da distensão às opções do
regime brasileiro)”. op. cit., p. 100-109.
108
Idem, p. 104.
109
Id., p. 105-106.
110
DINIZ, Eli. “Empresariado, regime autoritário e modernização capitalista: 1964-85”. op. cit., p.
218.
315
Conclusão
As análises acerca do regime militar brasileiro têm notado o esforço dos
militares no poder por associar a sua imagem à defesa da democracia. Contudo,
poucas têm se debruçado especificamente sobre a questão da legitimação do regime.
As análises são ainda mais raras quando dizem respeito à especificidade de
preservação do Legislativo e à influência política da imprensa no período.
Além disto, estas visões não têm permitido perceber a complexidade do
processo de legitimação do regime militar no Brasil e nem esclarecer a insistência dos
militares em buscar uma legitimação democrática para o estabelecimento e
manutenção do seu domínio. Em complemento, os trabalhos que se detém sobre o
papel da mídia durante o regime militar, tendem a privilegiar o período pós-1968, em
que a censura foi a principal marca da relação do regime com a imprensa. Estes
trabalhos inclinam-se a relegar os encontros e desencontros entre regime e imprensa,
no período 1964-1968, a um segundo plano.
Por isso, a opção por trabalhar com a questão da legitimidade do regime militar
brasileiro entre os anos de 1964 e 1968. Por isso, também, a escolha por proceder esta
análise através dos editoriais de jornais da grande imprensa, que permitem, além do
mais, captar quais elementos o regime utilizou na tentativa de obter o assentimento de
segmentos significativos da sociedade ao seu domínio.
Se há méritos na pesquisa, estes residem, essencialmente, no fato dela ter
demonstrado que a legitimação democrática não era uma mera farsa, e sim, uma
necessidade.
Primeiro, a escolha de se trabalhar com o tema da legitimação do regime militar
brasileiro contribuiu para demonstrar a tese de que no Estado contemporâneo a
legitimação do domínio não pode ser baseada unicamente na crença na legalidade e na
316
observância das leis. Há a necessidade de se estabelecer um consenso que depende de
fatores sublegais, depende do consenso. Além disto, permitiu, também, reforçar a
tese de que, mesmo regimes autoritários detentores do monopólio do uso da força,
como é o caso do regime militar brasileiro, precisam legitimar o seu domínio. Desse
modo, conclui-se que, no Estado contemporâneo, é o consentimento e não a força a
base da ordem social. É ele que legitima a dominação de uma classe sobre outras.
Além desta questão, ao se tentar verificar a importância da democracia, foi
possível apontar, através da análise dos editoriais, que ela era a formação discursiva
predominante não só no discurso jornalístico, mas no imaginário político e social das
camadas média e alta da sociedade, entre os políticos, e entre os grupos militares no
poder entre os anos de 1964 e 1968.
Foi possível, ainda, trabalhar com a idéia de que a facção militar “moderada”
que de fato assumiu o poder buscou o assentimento das camadas médias e alta da
sociedade ao seu “projeto” de dominação. Tendo por base que a “índole do
brasileiro” era democrática, essa busca de legitimação esteve fundada na
reivindicação de um perfil democrático para o regime.
Contudo, também foi possível demonstrar que esta caracterização não foi
simples retórica. A prática do regime, por vezes, ao menos em princípio, seguiu
determinadas normas democráticas, objeto de um relativo respeito da parte de grupos
militares significativos. Por ser relativo, esse respeito não resultava em uma
“democracia formal”. Submetida ao “objetivo revolucionário” maior de
fortalecimento da segurança nacional, a “democracia” teve sua dimensão limitada.
Por isso, quando o resultado da observância às normas e preceitos democráticos não
correspondia aos interesses do regime, optava-se pela solução autoritária. Quanto ao
Legislativo, propriamente, percebe-se que, para cada ação repressiva do governo
houve, antes, uma tentativa de “diálogo” com este poder.
317
Face a estas considerações, e à necessidade de legitimação do seu domínio, a
facção militar no poder procurou estabelecer uma política híbrida de “democracia
tutelada”, na qual uma prática essencialmente autoritária era mesclada com a
preservação de princípios e instituições típicas das democracias-liberais.
Em complemento a hipótese anterior, foi possível comprovar que com a
preservação do Legislativo o regime visava reivindicar uma imagem de
aceite/participação popular com relação ao governo.
Sendo a democracia a formação discursiva predominante no imaginário político
e social, e também no discurso jornalístico, a preservação e o “diálogo” com um dos
pilares de um Estado de democracia representativa e de tradição democrático-liberal,
órgão que tem por missão canalizar as demandas sociais e levá-las ao governo, seria
uma prova desse assentimento. Sua preservação era, portanto, fundamental para que o
regime pudesse reivindicar uma imagem democrática e, assim, legitimar a sua ação.
Foi possível perceber, entretanto, que essa relação entre o Executivo e o Legislativo
foi marcada por conflitos.
Em virtude da necessidade de reivindicar um perfil democrático, os novos donos
do poder não só mantiveram o Legislativo em funcionamento, como tiverem que lhe
permitir uma autonomia relativa. Face a política híbrida adotada, e a este pequeno
espaço, quando da emergência de questões políticas, o Executivo foi forçado a
“negociar” com o Congresso Nacional. Surgiram conflitos nesse processo e
parlamentares fizeram uso de sua autonomia barrando, por vezes, as pretensões do
regime. Estes fatos, entretanto, sugerem que a primeira idéia foi sempre a de tentar
contar com a “colaboração” do Legislativo.
Poder-se-ia argumentar que tais “intermediações” ocorreram por simples
formalidade. Em verdade, nos momentos iniciais do regime, talvez ainda atordoados
por toda a situação, os parlamentares não tiveram como se opor aos desígnios do
318
Executivo. Mas, em momentos subseqüentes, com a ajuda de membros do partido
oficial, a oposição impôs derrotas que levaram o governo a optar pelo endurecimento
do regime.
É óbvio que o Legislativo foi progressivamente enfraquecido. No entanto, a
lógica da “democracia tutelada” impelia o governo a permitir, ainda que mínimo, um
certo grau de autonomia ao Congresso. Portanto, não se pode dizer que ele foi um
mero instrumento do qual o Executivo se utilizou para suprir a sua necessidade de
legitimação. Com o pequeno espaço que possuía, o Parlamento gerou obstáculos às
pretensões do regime. Enquanto estes “obstáculos” não punham em risco o grupo no
poder, sua “autonomia” foi “respeitada”, mas, sempre que representou uma barreira
mais forte aos interesses do regime, ela foi ignorada.
Em resumo, o que se percebe é que consciente da necessidade de legitimação
democrática, o regime sempre procurou, primeiro, a sanção do Congresso para as suas
ações. Quando o Congresso, se dispôs a “dialogar”, o governo permitiu-lhe certa
“autonomia”, como no caso da elaboração da Constituição autoritária de 1967.
Quando este se negava a concedê-la, como nos casos do AI-2, da cassação dos seis
deputados em 1966, ou na questão da licença para processar o deputado Márcio
Moreira Alves, o governo se impôs arbitrária e unilateralmente.
Por fim, através da análise dos editoriais foi possível comprovar o importante
papel da imprensa na construção da imagem democrática do regime dirigida aos
setores médios e alto da sociedade.
Como foi dito, para legitimar o seu domínio, o regime precisava construir para
si, junto às camadas médias e alta, uma imagem democrática. Como não possuía uma
instituição oficial que executasse esta missão, teve que buscar outros meios. A grande
imprensa, por sua vez, de modo geral, e os jornais O Estado de São Paulo, O Globo e
Jornal do Brasil, em particular, foi partidária do processo de desestabilização e golpe
319
contra João Goulart. Além disso, o seu discurso era voltado justamente para estes
grupos. Em função disto, concluía-se que, através da imprensa, o regime poderia
tentar atingir o seu objetivo de construção de uma imagem democrática.
Assim como os militares, os jornais O Estado de São Paulo, O Globo e Jornal
do Brasil pareciam acreditar que, para o seu público leitor, as camadas médias e alta,
a defesa da democracia e a preservação de princípios e instituições associados a ela
eram de fundamental importância. Nesse sentido, exercendo os seus papéis de
“sistemas perito”, ou seja, ao imporem à sociedade os seus critérios de seleção e
hierarquização das informações, e de “meta-sistemas perito” com relação ao governo,
foram capazes de representar e reproduzir uma ilusão de consenso com relação ao
regime militar. Esse consenso girou em torno da justificativa de que o golpe e o
regime foram executados, e eram os meios mais adequados, para a salvaguarda da
nação e da democracia. Justificavam-se, desta forma, as ações arbitrárias do regime.
Nesse mesmo sentido, procurou-se transmitir a idéia de que a preservação do
Legislativo, ainda que “saneado” e eventualmente fechado, indicava um compromisso
democrático do regime militar.
Resumindo as estratégias usadas, é possível dizer que os jornais em questão
utilizaram-se da construção de um “sujeito coletivo” (“o Brasil”, “o povo”, “a Nação”,
“o País”) para criar esta uma ilusão de interlocução, de cumplicidade, de identificação
com seu público leitor. Desse modo, locutor e leitor passaram a constituir um povo
“unido”, e a “partilhar” de um mesmo imaginário favorável ao regime. Ao mesmo
tempo, esta estratégia, procurou anular a crítica e impedir a existência do adversário.
O que não fazia parte do “povo unido”, não existia ou deveria ser eliminado. Desse
modo, universalizaram os interesses de uma classe específica como se fossem do
“povo”, permitindo que a memória oficial desta mesma classe pudesse ser aceita
como sendo de todos.
320
Seguindo a “norma” de universalização dos interesses de uma classe e de
“anulação” do adversário, os discursos dos jornais apresentaram como característica a
oposição entre o “Bem” e o “Mal”, onde este referia-se ao “contrário”, ao “inimigo”,
caracterizado, essencialmente, como o “comunismo”. E “Bem”, tudo o que pertencia
ao campo do “mesmo”, o que se opunha ao comunismo, em suma, a democracia.
Portanto, é um discurso de democracia versus comunismo, onde não há qualquer
possibilidade de associar o opositor aos princípios “democráticos”. Como resultado
desta caracterização, o regime, como expressão da “vontade única” e “democrática”
da nação, teria por missão salvaguardá-la do perigo representado pelo comunismo.
Dito de outro modo, o discurso jornalístico em análise, ao dissimular os modos
como a práticas discursivas de exercício do poder se impuseram, e ao silenciar
práticas antagônicas e/ou divergentes ao poder político dominante, funcionou como
caminho de difusão, disseminação e institucionalização dessas mesmas práticas.
Isto, no entanto, não significa que estes jornais tenham servido de mero objeto
manipulável nas mãos dos novos donos do poder. Como membros da elite econômica
e defensores do projeto político liberal, a nova ordem lhes parecia, ao menos em seu
início, interessante. Por isso, contribuíram para a construção de uma imagem
democrática para o regime.
Ao longo do tempo, em face das diferentes concepções políticas e aos rumos
adotados pelo governo, isto muda. Estes fatores, além de fazerem com que as
posições dos jornais se afastem entre si, levam o Jornal do Brasil e O Estado de São
Paulo a se distanciarem em relação ao governo. De uma unanimidade em torno do
golpe e do regime nos primeiros momentos, ainda que com algumas discordâncias
com relação à política adotada, passam a uma franca oposição às suas ações. No
entanto, mantiveram, ainda, alguma esperança quanto aos “ideais originais da
Revolução”. Além disto, estes dois jornais, assim como O Globo, preservaram, como
321
traço comum, a defesa da democracia, embora, para cada um deles, democracia possa
ter sido caracterizada de modo diferente.
Em resumo, o que se constatou com a análise é que toda a primeira fase do
regime foi marcada pela tentativa dos governos militares de conciliação entre os
interesses dos “moderados” e dos “duros”. De um lado, seguindo a linha política dos
“moderados”, buscava bases estáveis de legitimidade junto às camadas médias e alta
da sociedade. Nesse sentido, o governo preservou princípios democrático-liberais.
Contudo, assim procedendo, o Executivo teve que “obedecer” aos “limites” que estes
princípios estabeleciam à sua ação. Por sua vez, esta política não agradava os
“duros”, que, então, pressionavam por um maior endurecimento do regime. Portanto,
estes elementos são, por essência, conflitantes. Harmonizá-los era algo improvável.
Face às disputas internas e à necessidade de manter a unidade militar, os governos
militares optaram por ceder à “linha-dura”.
A contradição gerada entre a linguagem da legitimação através da democracia e
a realidade repressiva, com as progressivas restrições impostas às instituições e
princípios democráticos, minou, aos poucos, a legitimidade do regime. Evidenciava-
se, assim, que a manutenção da política híbrida se tornava impraticável. Em 1968,
isto ficou claro. Em conseqüência, demonstravam-se as contradições existentes no
interior do Estado.
Portanto, esta política foi, ao mesmo tempo, conseqüência da heterogeneidade
da coalizão no poder e causa de sua fragmentação. Na busca de conciliar interesses
díspares, os governos militares perderam, progressivamente, muitos dos partidários
originais do regime. Entre eles, os jornais O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil.
A oposição, por sua vez, fez uso do espaço que esta política lhe permitia, causando
problemas ao governo. Em resposta, a “linha-dura” pressionava. A tentativa de
322
conciliar, com sucessivas cessões aos “duros”, gerou uma gradual perda de sua
legitimidade junto às parcelas da sociedade que lhe interessavam .
Em conclusão, o Estado viveu, durante todo este período, em uma permanente
crise de legitimidade. Entretanto, apesar de em dezembro de 1968 o regime ter
optado pelo seu endurecimento e por ignorar a necessidade de legitimação
democrática junto às camadas médias e alta da sociedade, esta opção não foi
descartada por completo. E nem podia. Em uma sociedade relativamente complexa,
como era a brasileira dos anos 1960 e 1970, a busca por legitimidade, mesmo para um
regime autoritário, não poderia ser uma pura farsa. Era, na realidade, uma
necessidade.
O objetivo desta pesquisa foi, pois, o de contribuir para uma compreensão mais
ampla de uma especificidade do regime militar no Brasil, até hoje pouco considerada
em nossa historiografia. Ou seja, o processo de legitimação baseado na preservação
de princípios e instituições democráticas, entre os quais, o Poder Legislativo em
funcionamento e em “diálogo” com o Executivo.
Por outro lado, esta pesquisa procurou conferir um nova dimensão à produção
historiográfica que analisa as razões do “sucesso” do regime militar brasileiro. Foi
meta, também, analisar a influência política da mídia, especificamente de jornais da
chamada “grande imprensa”. É necessário, porém, que se enfatizem as suas
limitações.
A legitimação baseada na preservação de princípios democráticos não é a única
e/ou a principal forma de legitimação. Nem o regime militar brasileiro buscou
legitimar-se exclusivamente com base em tais princípios. Tão pouco a preservação do
Legislativo é o único modo de se buscar essa legitimação “democrática”. A
complexidade do processo de legitimação envolve outros fatores, além dos analisados
nesse trabalho.
323
Há que ficar claro, portanto, que em nenhum momento se pretendeu esgotar o
tema. Os limites aos quais uma pesquisa deste tipo se impõe não permitem tal feito.
Existe uma gama de outras fontes, como os anais do Senado Federal e os da Câmara
de Deputados, ou outros jornais, ou mesmo diversas sessões e/ou abordagens e
métodos sobre o material trabalhado ou outros materiais, e outras características, que
não a preservação do Legislativo, que permitiriam uma análise mais profunda e, por
certo, enriquecedora da busca de legitimação democrática por parte do regime militar
brasileiro. Há, ainda, a possibilidade de se analisar se tal preocupação cabe ou não no
período pós-1968. De minha parte, creio que sim. Principalmente a partir do governo
Geisel e do processo de abertura política.
O que se pretendeu, foi demonstrar como a legitimação baseada na defesa e
preservação de determinados princípios democráticos é essencial em uma sociedade
relativamente complexa como a brasileira dos anos 1960, em especial, entre 1.º de
abril de 1964 e 13 de dezembro de 1968.
Por fim, em se tratando da recuperação da memória de um período tão recente e
marcante da nossa história, e ultimamente tão revisitado, considero que seja
fundamental que não percamos de vista que mesmo um regime arbitrário pode
reivindicar um perfil democrático. Ainda mais em um país como o Brasil que, hoje,
às vésperas de comemorar cento e quinze anos da Proclamação da República, teve tão
pouco tempo de democracia de fato. Mesmo que um novo golpe militar, e uma
posterior ditadura, sejam possibilidades remotas, é preciso que se procure diferenciar
um discurso que supostamente se apresente como defensor da democracia de outro
democrático de fato. Caso contrário, corremos o risco de acabar por legitimar,
travestido de democrático, um governo autoritário.
324
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