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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM LETRAS
ELZA ELIANA LISBÔA MONTANO
A PRESENÇA DO OUTRO: UM VIÉS LINGÜÍSTICO-
DISCURSIVO NA LINGUAGEM JURÍDICA
Porto Alegre
2007
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2
ELZA ELIANA LISBÔA MONTANO
A PRESENÇA DO OUTRO: UM VIÉS LINGÜÍSTICO-
DISCURSIVO NA LINGUAGEM JURÍDICA
Tese de Doutorado em Teorias do Texto e do
Discurso, apresentada como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem no
Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Orientadora: Profa. Dra. Elsa Maria Nitsche Ortiz.
Porto Alegre
2007
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3
AGRADECIMENTOS
Dedico este trabalho à memória do meu filho, o Dudu. Após sua morte, tive de
reaprender a caminhar para dar continuidade à minha vida, a interagir com esse novo eu, e
entre esses novos passos aprendidos, incluo, também, esta pesquisa.
A minha caminhada, como doutoranda desta instituição, está ancorada em muitas
vozes. Vozes, que eu me permito organizar em três compartimentos:
Vozes que fazem parte de mim:
Moni, filha querida, que muito me socorreu nos inúmeros conflitos com o discurso
jurídico, pelas leituras de textos com “olhar jurídico”, pelo companheirismo e, principalmente,
por acreditar neste meu trabalho educacional.
Beto, companheiro de 33 anos de convivência diária, pelo incentivo a esta nova
caminhada profissional.
Mãe, irmã e sogra, mulheres, companheiras do dia-a-dia.
Vozes de reconhecido saber:
Profa.
Dra.
Elsa Maria Nitsche Ortiz
, minha orientadora, pela competência profissional e
comprometimento constante com esta pesquisa. Meu eterno agradecimento pela orientação
recebida durante esses anos e pelo compartilhar de uma parceria em saberes distintos:
acadêmico e não-acadêmico.
Professores do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Letras da UFRGS, pelo meu
amadurecimento intelectual, principalmente, daqueles de quem fui aluna. Em especial à
4
professora Dra. Sabrina de Abreu pelo acolhimento no ano de 2002, e ao professor Dr. Valdir
Flores pelas sugestões pertinentes no momento da defesa desta proposta.
Irene Hack Tavares, amiga de anos, pelas sugestões críticas e oportunas a este
trabalho. A colega Silvana Silva pela iniciativa de querer interagir com esta tese.
Dr. Anderson Marks por me mostrar que, às vezes, a vida precisa ser vivida com mais
leveza.
Vozes que compartilham do meu contexto social e profissional:
Sujeitos que, de uma maneira ou de outra, uns mais e outros menos, colaboraram para
o término deste trabalho.
Sujeitos que trazem consigo um pouco das inquietações do heterônimo Álvaro de
Campos: incertezas sobre algumas certezas inquestionáveis.
5
Omnis scientia a significatione verborum incipit.
(Toda a ciência começa pela significação das palavras).
6
RESUMO
Esta tese é um estudo de enunciação, cujo pressuposto teórico é o dialogismo de
Bakhtin, onde discuto os conceitos de gêneros de discurso, estilo, sujeito do texto. A teoria de
Adam identifica a seqüencialidade desse enunciado; Kerbrat-Orecchioni mostra-me as
categorias possíveis de serem usadas pelo sujeito enunciador, identificando-se mediante sua
subjetividade para que possa ser identificado como sujeito do processo. A metodologia usada
nesta tese é a qualitativa. O corpus analisado é o Voto 81.360, exposto em um contexto, o
Supremo Tribunal Federal (STF), legalmente amparado para isso. O entendimento deste
corpus tipifica o delito de estupro. Dessa leitura, resulta uma jurisprudência determinante para
que esse crime entre no rol dos artigos legais, não permitindo aos presos terem progressão de
regime. A questão de nero é importante para a pesquisa, pois o Código Penal explicita que
o artigo que tipifica o delito de estupro visa a proteger a liberdade sexual dal .íeotefic
7
RESUMÉ
8
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO.........................................................................................................10
1.1 Vozes Construtoras do Diálogo Lingüístico-Discursivo com a Linguagem Jurídi-
ca..........................................................................................................................................14
2 UMA QUESTÃO DE GÊNERO...................................................................................17
2.1 Movimento Social em Busca da Cidadania Plena ...................................................17
2.2 Estupro: uma história difícil de ser contada............................................................23
3 BUSCANDO DIÁLOGO COM AS PALAVRAS DA LEI.........................................26
3.1 Linguagem e Língua....................................................................................................27
3.2 Saussure........................................................................................................................28
3.3 Benveniste.....................................................................................................................30
4 LENDO BAKHTIN........................................................................................................34
4.1 Auto-Reconhecimento: arena para se reconhecer o outro.......................................34
4.2 Sujeitos e seus Discursos .............................................................................................42
4.3 Texto, Gênero do Discurso e Estilo............................................................................47
4.3.1 Texto...........................................................................................................................48
4.3.2 Gênero do Discurso....................................................................................................51
4.3.3 Estilo...........................................................................................................................55
5 INTRODUZINDO O DISCURSO JURÍDICO............................................................58
5.1 Voto: percurso ao acesso à justiça .............................................................................59
5.2 Gadamer: capacidade de ouvir, capacidade de compreender.................................64
6 PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS..............................................................................71
7 PREPARANDO A ANÁLISE........................................................................................73
7.1 Adam: a seqüencialidade do discurso........................................................................74
7.2 Kerbrat-Orecchioni: a subjetividade constrói o sujeito...........................................76
9
8 ANÁLISE ........................................................................................................................81
8.1 Primeiros Passos..........................................................................................................81
8.2 Vozes.............................................................................................................................84
8.3 Voz do Sujeito Enunciador.........................................................................................85
8.3.1 Pronomes Demonstrativos..........................................................................................86
8.3.2 Tempos Verbais..........................................................................................................88
8.3.3 Adjetivos.....................................................................................................................93
8.3.4 Advérbios ...................................................................................................................96
8.4 Vozes dos Pares do Sujeito Enunciador ....................................................................99
8.5 Vozes dos Saberes de Conhecimento .........................................................................101
8.6 Voz Social.....................................................................................................................103
9 CONCLUSÃO.................................................................................................................106
REFERÊNCIAS ................................................................................................................110
ANEXOS ............................................................................................................................117
ANEXO A – VOTO n° 81.360..........................................................................................118
ANEXO B – ACORDAR...................................................................................................138
ANEXO C – AUDIÊNCIA CRIOULA, 17.09.2006........................................................141
ANEXO C1 – AUGUSTO PESTANA, 15.10.2002 .........................................................145
ANEXO D – CÓDIGOS BRASILEIROS........................................................................147
ANEXO E – LAMENTÁVEL DECISÃO.......................................................................150
10
1 APRESENTAÇÃO
A linguagem é a casa do ser. Em sua habitação mora o homem. Os
pensadores e os poetas lhe servem de vigias. (HEIDEGGER, 1967, p. 24).
Tendo a argumentação como eixo desta pesquisa, com enfoque mais restrito a
interpretação e argumentação jurídicas, previamente sabia dos inúmeros olhares acadêmicos
com que este tema tem sido trabalhado e, entre esses olhares, elenco três. O primeiro é o
discurso da retórica greco-romana
1
, visto que, na época clássica, não se falava em
argumentação, somente em lógica e em retórica; o segundo, a hermenêutica jurídica; o
terceiro, as teorias da linguagem, mais especificamente a relação da enunciação. Embora o
objeto desta tese seja a argumentação, a retórica clássica o berço para o avanço dos
enfoques discursivo-semióticos não fará parte das vozes constituintes deste trabalho. A
hermenêutica jurídica, conforme Gadamer, é o escopo necessário para que a compreensão
2
não seja vista somente como reprodutora de comportamentos, já que a sua ação produtiva
possibilita entendimentos novos, concretos, os quais impulsionam a justiça a caminhar o mais
próximo possível do espaço histórico de seus sujeitos sociais, havendo, pois, uma pré-
compreensão desse contexto.
O alicerce teórico deste trabalho é o Dialogismo e a Polifonia do Círculo de Bakhtin,
que postula o dialogismo como a estrutura arquitetônica da linguagem. A noção de
dialogismo perpassa pelas vozes do diálogo, tanto mais que essa alteridade a minha voz em
confronto com o outro, e vice-versa possibilita, também, uma mudança no conceito de
sujeito: esse sujeito deixa-se representar por inúmeras vozes, tornando-se, assim, um sujeito
social, histórico e ideológico. O dialogar com o outro é fundamental, e esse diálogo é feito
pela interação verbal, a célula do sentido do discurso. O estudo da linguagem está imbricado
diretamente no diálogo, que é a unidade real deste estudo.
Quando se fala em argumentação, normalmente, pensa-se em políticos, promotores de
justiça, juízes ou advogados; uma relação muito forte entre o bem-falar, a boa
argumentação, o domínio da gramática com os cursos de Direito e de Ciências Políticas. A
1
Os estudos de Alexy (1997) e de Perelman (2002) estão direcionados a esta teoria.
2 Categoria importante na teoria gademeriana, cujo sentido é a tradição conhecimentos, condutas culturais e
sociais, lugares-comuns ou seja, o senso comum.
11
necessidade em buscar aproximações teóricas com outros pesquisadores que trabalham com a
intertextualidade na semântica da enunciação texto, enunciado, sujeito, palavra dentro do
recorte da subjetividade e intersubjetividade, faz-me dialogar com Saussure e Benveniste,
Adam e Kerbrat-Orecchioni na construção de sentidos na estrutura textual. Na área da ciência
do Direito, busco a hermenêutica de Gadamer. A posição que o sujeito enunciador, aqui, no
caso em estudo, a Sra. ministra, ocupa no Supremo Tribunal Federal, como nero feminino,
não pode ser ignorada no universo jurídico.
Sendo assim, faço um recorte e direciono o meu discurso à questão de gênero,
masculino e feminino, por meio dos estudos feministas de Scott e de Nicholson. Como o
corpus deste trabalho fundamenta a razão pela qual o estupro deve ser tipificado como crime
hediondo, não poderia deixar de pesquisar a sua história nos estudos de Vigarello (1998) e
trazê-lo ao contexto brasileiro.
Logo, não é por acaso que esta pesquisa está tecida com os fios da teoria de Bakhtin
(1986, p. 108), cuja voz afirma:
Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de
um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não a recebem pronta para
ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor,
somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e
começa a operar.
12
pares operadores e interpretadores do Direito
5
em petições processuais ou sentenças. No
entanto, mesmo parecendo um paradoxo para muitos – pelo uso de palavras rebuscadas,
parece não fazer parte do contexto das pessoas que não pertençam ao poder judiciário –, ela é
dialógica, que resulta de um entendimento social, reflexo da ideologia dominante em um
dado momento.
Os estudiosos da língua, como ciência, asseveram, tempos, que todo o discurso tem
um componente específico em sua formação: a presença do outro, claramente apresentada por
marcas gráficas e/ou lingüísticas ou velando-se a olhares menos atentos. O discurso jurídico
não poderia, pois, estar isento desses olhares outros, dessas vozes outras, amalgamando-se ao
olhar e à voz do sujeito enunciador.
Entretanto a expressão discurso jurídico é muito ampla e, assim, para meu estudo atual
esta tese vi-me obrigada a construir arquitetonicamente “andaimes” para, depois, fazer
uma nova leitura do meu corpus. Assim, classifico esse discurso em dois grupos:
a) discurso jurídico legislativo, cuja função primeira é fazer leis;
b) discurso jurídico judiciário, que abriga diferentes seqüências tipológicas
discursivas (ADAM, 1992). Entre elas, discurso de defesa, de acusação, de veredito
e de sentença.
É nesse espaço que faço o recorte: o meu corpus é formado por um voto, o Voto
81.360
6
. Esta decisão foi proferida pela Ministra Ellen Gracie, em 1990, cuja resolução
confirma que estupro é um crime hediondo, ou seja, os sujeitos infratores desse delito não
podem pleitear ao magistrado redução de pena, surgindo, então, uma nova jurisprudência.
Assim, esta tese se propõe a verificar em que medida a escolha de determinados
elementos lingüísticos influenciaram para que o Voto n 81.360, após a sua sentença, fosse
usado como referência a outras decisões, servindo de jurisprudência ao delito ali
mencionado: o estupro. Para verificar tal hipótese, formulo algumas perguntas subjacentes
que nortearão meu itinerário ao longo desta análise:
5 alguns pesquisadores contrários à idéia de incluir a figura do juiz dentro da expressão operadores do
Direito, na área jurídica, pois a sua função não é apenas de ajudar a máquina judiciária a funcionar, mas de
interpretar e aplicar a lei a pessoas físicas e a pessoas jurídicas, julgando e ainda decidindo.
6
A Lei dos Crimes Hediondos declara o art. 213, delito de estupro e sua combinação com o art. 223 em
hediondos, impossibilitando a progressão carcerária. A pena deverá ser cumprida integralmente em regime
fechado.
13
a) Quais vozes podem ser verificadas no voto aqui analisado?
b) Como o sujeito enunciador apresenta sua própria voz?
c) Quais elementos lingüístico-discursivos dão subjetividade a essa voz?
d) Como o sujeito enunciador mostra as diversas vozes formadoras de seu próprio
discurso?
e) Como o uso de tais vozes, mediante tais elementos discursivo-lingüísticos,
influenciou na consolidação da decisão do sujeito enunciador em uma
jurisprudência?
Esta tese está organizada em nove capítulos, assim dividida:
No primeiro capítulo apresento a teoria de Bakhtin, pois é ela que me ampara nas
discussões com o discurso jurídico.
No segundo capítulo, trato da questão de gênero, que o sujeito enunciador do voto é
uma mulher. Além disso, o crime que motivou essa jurisprudência foi o estupro, cujas
mazelas só são calcadas em um corpo feminino.
No terceiro capítulo, revisito os conceitos de linguagem, de fala e de língua, ancorados
nos estudos de Saussure e Benveniste.
No quarto capítulo, está o alicerce que sustenta arquitetonicamente o meu trabalho: o
dialogismo bakhtiniano. Trago categorias relevantes à teoria de Bakhtin: gêneros do discurso,
estilo, texto e a compreensão do eu e do outro, formadores do sujeito dialógico.No quinto
capítulo, trabalho com o discurso jurídico, corpus desta pesquisa. Para isto a voz de Gadamer
é importante, pois segundo ele a compreensão histórica é um meio para se chegar a um fim.
Se o magistrado “intervém praticamente na vida de um sujeito”, é fundamental que haja a
mediação de história e de atualidade, de compreensão em sua decisão, melhor dizendo, que a
sua sentença possa ser mais justa e isenta de arbitrariedades.
No capítulo seis, justifico o uso do método qualitativo a esta pesquisa, para isto
revisito Bogdan e Biklen, teóricos trabalhados na minha dissertação.
No capítulo sete, mostro a construção desta análise. Além da teoria de Bakhtin, recorro
a Adam e a Kerbrat-Orecchioni para trabalhar com as categorias da seqüencialidade do texto e
da subjetividade do sujeito, respectivamente.
14
No oitavo capítulo, trago as vozes que ajudaram a construir esse voto: a voz do
enunciador, as vozes dos pares do sujeito enunciador, a voz dos especialistas de conhecimento
e a voz social.
Finalmente no capítulo nove, apresento a conclusão de um trabalho de cinco anos, cuja
intenção não é encerrar esse estudo de relações de (inter)subjetividade, mas mostrar a
intenção dos estudiosos da língua/sujeito em dialogar com o outro, aqueles que representam
as vozes do discurso legislador e do judiciário.
1.1 Vozes Construtoras do Diálogo Lingüístico-Discursivo com a Linguagem Jurídica
Quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade
no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o
seu mundo interior. (BAKHTIN, 1986, p. 115).
O meu percurso acadêmico, acredito, começou arquitetonicamente no início da década
de 90. Em 1989, saio do colégio Júlio de Castilhos, o Julinho, para ir trabalhar no município
de Canoas, após dezesseis anos como professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.
Por motivo pessoal, entre muitos que a vida apresenta sem que se tenha como modificá-lo,
começo a [ . . . ] ler os indícios do curso do tempo em tudo, começando pela natureza e
terminando pelas regras e idéias humanas [ . . . ] e construo uma nova capacidade de [ . . . ]
ver o tempo, de ler o tempo. (BAKHTIN, 2003, p. 225). Decorrente disso, saio da sala de aula
para coordenar um projeto social, cuja proposta era dar atendimento a dois segmentos da
população canoense: meninos e meninas de rua; e mulheres carentes, moradoras de vilas,
desempregadas e, em muitos casos, analfabetas. Algumas sexualmente agredidas pelos
parceiros e, na maioria das vezes, suas filhas também estupradas por esses mesmos homens.
Por intermédio desse projeto, um número pequeno, mas significativo dessas mulheres
criou coragem para denunciar o agressor. Elas deixaram de silenciar e começaram a denunciar
os seus algozes, principalmente para preservarem as filhas ainda não violentadas. Acredito
que os encontros semanais com aquelas mulheres possibilitaram um fortalecimento na auto-
estima de cada uma, e que a voz advinda dos processos discursivos daquele projeto social
15
tenha corroborado para uma identidade mais forte em suas vidas, tornando-as, dentro do
possível, sujeitos cada vez mais sujeitos
7
.
Em 1993, retorno para Porto Alegre. Aceito o convite do Departamento das
Coordenadorias Regionais de Porto Alegre para assumir a coordenação do Ensino Supletivo
da Penitenciária Madre Pelletier
8
. Naquela época, a diretora da penitenciária, uma socióloga,
pediu a um dos juízes da 2ª Vara de Execuções de Porto Alegre para que a Secretaria de
Educação cumprisse efetivamente seu papel: ter um espaço escolar para as presas daquela
penitenciária
9
e do albergue feminino com professores designados somente para essa
instituição penal. Criou-se um Centro de Ensino Supletivo com quatro professoras: uma
professora de Matemática e Ciências, uma de História e Geografia, uma alfabetizadora e eu. A
princípio, confesso que me senti temerosa em assumir aquele desafio. O que eu sabia de
prisões e de presos era-me repassado pela dia, por filmes e pelos livros, além da pouca
leitura de Freire e de outros teóricos sobre a educação libertadora. Hoje, vejo uma relação
muito estreita entre a teoria freiriana e a de Bakhtin
10
, principalmente quando o método de
Freire (1986, p. 18) afirma que [ . . . ] a leitura do mundo precede a leitura da palavra.
A intuição de estar fazendo a "coisa" certa, a experiência como docente em uma escola
questionadora como o Julinho e a vivência diária com a população pobre de Canoas
ajudaram-me a construir minha caminhada acadêmica. Inicialmente, como mestranda pela
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - FACED/UFRGS,
quando tive acesso à teoria de Freire, cujas leituras me ajudaram a persistir ainda mais na
educação (FREIRE, 1986, p. 1) como um ato de saber, um ato político e um ato estético.
Agora, ao fazer esta tese, reforço a idéia de que a visão de mundo constrói e unifica o
horizonte do homem, o estilo constrói e unifica o seu ambiente. (BAKHTIN, 2003, p. 189).
7 Termo utilizado por Gomes (2003).
8 De 1982 a 1988, o CES/SE do Menino Deus atendeu, ministrou e certificou educacionalmente essas presas;
de 1989 a 1992, essas presas prestaram exame supletivo, estudando por módulos, sem a presença do
professor.
9 Naquela época, a penitenciária localizava-se em um dos pavilhões do Instituto Psiquiátrico Forense, em
virtude do incêndio ocorrido em 1990. Atualmente, ela situa-se na Av. Teresópolis, 2727.
10 Freire (1986, p. 79) afirma que o educador e o educando [ . . . ] se educam em comunhão mediatizados pelo
mundo [ . . .], o que, para mim, estabelece uma relação muito estreita com o dialogismo de Bakhtin, pois
nessa comunhão de saberes, ambos professor e aluno tornam-se sujeitos. É nesse diálogo em que o
educador tem voz e voz ao outro, ao educando que o mundo se transforma; Freire também fala sobre a
importância de a palavra estar contextualizada ao discurso histórico-social do aluno. Segundo Bakhtin
(2003, p. 11), [ . . . ] o posso viver do meu próprio acabamento e do acabamento do acontecimento, nem
agir; para viver preciso ser inacabado, aberto [ . . . ].
16
Mas o corpus desta pesquisa começou, decisivamente, a partir do II Simpósio
Internacional: As Mulheres e a Filosofia
11
, mediante a interlocução com a representante da
ONG Themis
12
, cujo comentário se referia à relevância do parecer da Ministra Ellen Gracie
o Voto nº. 81.360 – à sociedade brasileira, principalmente para nós, mulheres. No entanto, não
posso negar que o percurso realizado até esse seminário teve a imagem de muitas mulheres, as
quais me serviram de espelho como profissionais: enfermeiras, uma médica, muitas mulheres
das inúmeras vilas canoenses, algumas alunas-detentas, Santa Maria Eufrásia Pelletier
13
,
Madre Elisabete
14
, algumas professoras, enfim, mulheres. Simplesmente mulheres.
Afinal, o trabalhar com a linguagem que é uma prática social faz com que haja
uma intervenção na realidade social, e conseqüentemente os sujeitos fazem parte desse
contexto. Recorro mais uma vez a Bakhtin (2003, p. 31), que afirma [ . . . ] eu não estou
quando me contemplo no espelho, estou possuído por uma alma alheia, assim, essas mulheres
preencheram as lacunas deste meu discurso “arquitetônico”, como sujeito menos assujeitado,
servindo-me de instrumento de interação social, progressivamente construída.
11 Oportunidade em que apresentei minha dissertação: Mulheres delinqüentes: uma longa caminhada até a
Casa Rosa (MONTANO, 2000).
12 Themis Assessoria e Estudos Jurídicos de nero é uma instituição de estudos, de pesquisa e de ação,
desde 08.03.1993. Tem como objetivo, tal como a deusa da justiça clássica, a relação atual das mulheres
com o Direito. No período em que lecionei na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, a Themis era uma
parceira forte na ressocialização das presas.
13 Em 1825, a Madre Eufrásia fundou a Instituição das Irmãs de Santa Madalena, cuja intenção era abrigar e
dar socorro moral às desvalidas (prostitutas e mães solteiras) e às menores delinqüentes, chamadas de
penitentes pela sociedade daquela época. Em 1940 foi canonizada e a partir de 1999, como Santa Esperança
de um destino melhor, a padroeira das presas da penitenciária Madre Pelletier.
14 Trabalhou de 1961 até 1977 como diretora; hoje, Sra. Angélica dos Santos. Após quase quatro décadas de
administração religiosa, a administração dessa penitenciária feminina passou definitivamente para o Estado,
ficando sob os cuidados da Superintendência dos Serviços Penitenciários.
17
2 UMA QUESTÃO DE GÊNERO
Ao olharmos para nós mesmos com os olhos do outro, na vida sempre
tornamos a voltar para nós mesmos, e o último acontecimento, espécie de
resumo, realiza-se em nós nas categorias da nossa própria vida.
(BAKHTIN, 2003, p. 14).
Os estudos feministas têm como premissa conceitual de gênero uma construção social:
é a forma social que o homem masculino e feminino aprende qual o papel que deverá
desempenhar ao longo da sua vida como sujeito. É a civilização, a sociedade, que produz a
mulher, por isso muitas dessas pesquisas apontam que a identidade de gênero se estabelece
nos primeiros anos de vida de uma pessoa. Simone de Beauvoir é considerada a precursora
desse movimento, que, ao dizer que não se nasce mulher, tornou o prólogo
15
do seu livro, O
Segundo Sexo, universal. Afirmo, mais uma vez, que esta tese não tem por escopo o estudo de
gênero, mas como duas relevantes vozes desta pesquisa são femininas – o sujeito violentado e
o sujeito enunciador do corpus analisado –, não poderia passar à margem desta categoria.
2.1 Movimento Social em Busca da Cidadania Plena
Apesar de a abordagem desta pesquisa não tratar diretamente da temática mulher, mas,
sim, das vozes que auxiliaram o corpus aqui analisado a se tornar jurisprudência às futuras
sentenças que tratam do mesmo delito, acredito, nestas circunstâncias, ser relevante fazer um
recorte
16
, que gênero está também relacionado com à questão do feminino. Sendo o sujeito
bakhtiniano
17
dialógico e o gênero entendido como participante de processos sociais
sistêmicos, sinalizo, desta maneira, a importância de estudos acadêmicos para a análise da
dicotomia masculino e feminino sob a ótica do Poder Judiciário, mais especificamente, nos
Tribunais Superiores. Neste sentido, em virtude de as mulheres serem minoria naquela classe
15 Não se nasce mulher. Nenhum destino biológico, sociológico ou econômico determina a figura que
representa a figura humana na sociedade: é a civilização como um todo que produz essa criatura, que
intercede entre o homem e eunuco, que se descreve como feminina.
16 Recorro, aqui, ao entendimento de Guimarães (2002, p. 18): [ . . . ] um recorte não tem sentido ou sentidos,
mas constitui efeitos de sentido.
17 Ver p. 42
.
18
profissional, não é sem tempo tratar-se deste assunto uma vez que uma supremacia do
gênero masculino. São raras, inclusive, as mulheres ministras.
Todo enunciado
18
é um elo na cadeia da comunicação discursiva, pois é esse laço que
garante as atitudes responsivas e as ressonâncias dialógicas numa realidade concreta. Assim,
não poderia me furtar de trazer esta categoria gênero que dois sujeitos relacionados a
esta tese fazem parte do contexto feminino. Primeiro, a mulher que foi violentada
sexualmente e que motivou o Ministério Público a entrar com recurso penal na Justiça contra
o seu estuprador; segundo, a mulher na função de Ministra, esta que conseguiu argumentar a
seus pares que o seu ponto de vista considerar o estupro como crime hediondo estava
calcado em vozes que falam por práticas humanas, femininas, em um contexto
contemporâneo.
Segundo Scott (1995, p. 71), gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos [ . . . ], categoria teórica esta que nasce
na sociedade. Essa sociedade tem diferentes níveis e espaços de interação entre o eu e o outro;
além, é claro, de ser governada, muito tempo, por homens, tanto na esfera extradomiciliar,
como na intramuro familiar. Assim, nada mais natural que a mulher tenha sofrido
discriminações relacionadas ao trabalho e à educação, comprovando desse modo uma forma
primária de dar significação às relações de poder [ . . . ], ou seja, o discurso masculino ainda
é voz predominante no atual contexto em que as mulheres têm papéis sociais atuantes,
melhores empregos e, com isso, salários mais altos. Apesar de hoje em dia um continente
muito grande de mulheres serem as provedoras do casal, ela não carrega o estigma de ser
somente a “rainha do lar” como continua, muitas vezes, a supervisionar a casa, os filhos e o
marido, ou seja, acrescentou uma jornada a mais em sua carga horária de trabalho.
Hodiernamente a mitologia, a crença e o dito popular ainda contribuem para manter
esse contexto sócio-histórico e institucional. A idéia do mito comporta quase sempre uma
dimensão moral, normalmente servindo de modelo à conduta humana, enaltecendo e
premiando os bons, os fracos, aqueles que o têm voz. Sendo o mito um elemento formador
do entendimento ideológico, é natural que a sociedade global crie o “Dia das Mães”, e a
18 Ver p. 36.
19
ONU
19
, o “Dia Internacional da Mulher” oito de março –, enaltecendo a função que nós,
mulheres, exercemos: mãe e dona-de-casa, sinônimo de “rainha do lar”. Atualmente esse
estereótipo está cada vez mais longínquo do discurso feminino e masculino. Ser mulher não se
resume só a essas tarefas, já que, atualmente, muitos homens não estão ausentes desses
afazeres domésticos.
Dessa maneira, não é por acaso que a mulher tenha sido preterida em relação ao
homem: a primeira mulher mitológica
20
era apenas uma semideusa, tornando-se deusa
somente após casar-se com Epimetheus, um homem. A mitologia, no entanto, não nega voz
21
instância da enunciação no discurso a essa figura que representa e revela o inconsciente
feminino universal: Pandora. Entre os inúmeros adjetivos dedicados a essa figura mitológica
está o de ser cruel, justa, acolhedora, sábia e curiosa, sendo, por isso, uma mulher cheia de
virtudes e de esperanças. Paradoxalmente, são esses atributos, muitas vezes norteados
somente pelas diferenças biológicas, que excluem as mulheres do mercado de trabalho formal,
empurrando-as ao subemprego.
Sendo assim, por toda essa história de vida feminina, e sem deixar de lado o estudo
científico das diferenças biológicas
22
, ao contrário, enfatizando-as na construção social e
histórica da mulher não se nasce mulher, mas se legitima essa condição
23
–, o estudo
feminista incentivou o desempenho feminino na esfera extramuro familiar. A partir dos anos
sessenta, com o advento da pílula anticoncepcional feminina, a mulher pôde mudar sua
caminhada, teve acesso às deas da sua vida pessoal e profissional. Em princípio, com esses
comprimidos, de certa forma a natalidade deveria ter sido reduzida, mas não foi o que
aconteceu entre as classes mais pobres. E é no contexto de poder optar entre procriar ou não
que são implantadas entidades públicas e ONGs que visam às políticas públicas que orientam
19 A partir do ano de 1975, o Ano Internacional da Mulher é comemorado no dia oito de março.
20 Segundo o Zohar (comentário rabínico dos textos sagrados), Lilith foi a primeira mulher de Adão, mas como
não se submeteu às suas vontades, que tinha sido feita de pó e por isso igual a ele, passou a representar,
como castigo, a força destrutiva (a história conta que ela foi criada com imundície e lodo). Assim nasce Eva
(feita a partir da carne e do sangue de Adão), moldada exatamente como as exigências da sociedade
patriarcal: mulher submissa e voltada para o lar (www.br.geocities.com/tamis-br).
21 Estudiosos da história da violência contra a mulher usam três personagens Filomela (rouxinol), Tereu
(poupa) e Procne (andorinha), representando a tríade mítica para analisar o silêncio que circunda o tema
estupro (ZUWICK, 2002). Para Platão, a mulher era a reencarnação dos homens covardes e injustos.
22 Teoricamente há uma diversidade muito grande de abordagem de gênero. Primeira, usada no sentido
biologicamente dado ao corpo feminino ou masculino; segunda, como referência à personalidade e ao
comportamento, não tendo assim, gênero e sexo, o mesmo sentido.
23 Surge a partir daí a idéia de que a constituição social é elemento fundamental para a construção do caráter
humano.
20
a mulher neste novo recorte de gênero. Entre elas, está o Centro Feminista de Estudos e
Assessoria
24
, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, a Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, a Delegacia de
Polícia de Defesa da Mulher, a ONG Themis, entre outras.
Segundo Nicholson (2000, p. 36), esse novo sentido de mulher capaz de ilustrar o
mapa de semelhanças e diferenças que se cruzam [ . . . ] exige um constante diálogo coletivo
com a sociedade, pois é necessário essa mesma sociedade compreender que o sentido é
encontrado, não pressuposto [ . . . ], e esse ir em direção ao mapa não pode ser uma
transfiguração ingênua, pois esta caminhada sinaliza que a procura em si não é um projeto
político ou de pesquisa que uma intelectual será capaz de executar sozinha em seu gabinete
[ . . . ], que esse diálogo precisa ser realmente dialógico e tenaz, constante, até que se
transforme em uma questão de consciência de gênero.
Tecendo
25
a história da mulher brasileira (como se fosse possível tecer história e
tempo), vejo que este caminho foi percorrido com muita lerdeza e com inúmeras mazelas,
principalmente por parte das ações governamentais, tanto em nível municipal, como estadual
e federal. Exemplo disso é a obrigatoriedade do direito ao voto que foi sancionado em
1932, por um decreto-lei assinado pelo presidente Getúlio Vargas. Aproveitando esta esteira
21
Ao longo do século XX, foi no Poder Judiciário especialmente nos Supremos
Tribunais em que as mulheres tiveram menos oportunidade de atuar, e, mesmo sendo via
concurso público o ingresso a esse quadro funcional, somente há bem pouco tempo, um grupo
muito reduzido de mulheres pode sentenciar nesses Tribunais Superiores, predominantemente
masculinos. Durante muito tempo, a área jurídica foi um local cujos assentos eram
circunscritos aos homens; as mulheres avançaram nessa paragem a partir de 1898, com
Myrthes Gomes de Campos, a primeira mulher a exercer a profissão de advogado
27
no país,
mas somente em 1906, após uma segunda tentativa, pôde associar-se ao Instituto dos
Advogados Brasileiros. A essa recusa, o Relator da época apresentou como justificativa [ . . . ]
não ser um diploma de Bacharel em Direito o único requisito para ser Advogado. Mesmo
porque a mulher casada não poderia advogar sem a licença do marido [ . . . ]. Em 1899, um
representante do Ministério Público Federal denega o pedido de um habeas corpus impetrado
pela advogada Maria Coelho da Silva, com total pertinência ao discurso daquele tempo:
Dotando a mulher de qualidades quase divinas, que são para a humanidade
como reflexos da bondade infinita, o destino providencial reservou-lhe uma
missão augusta, suavizante e civilizadora, que não
22
cultural, étnica e racial. As mulheres, como sujeitos cada vez mais sujeitos, mostraram, por
meio da bandeira Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher, a importância de as
políticas públicas e de as ONGs se sensibilizarem ao comprometimento das necessidades
prementes de saúde, família (filhos), geração de emprego e renda, educação, habitação,
questão agrária, incorporando a perspectiva de gênero a toda política pública, permitindo o
acesso ao poder político e ao trabalho. (FARAH, 2004).
Scott (1995) afirma que é da sociedade que surge a categoria gênero e é na mesma
sociedade que ela cresce e se estabelece. Para essa estudiosa, a compreensão de gênero vai
além da idéia única de diferença entre os sexos, afirmando ser necessário olhar também para
outras quatro dimensões simbólica, organizacional, normativa e subjetiva que interferem
agudamente nas relações sociais, que manifestam, sem dúvida, poder. A história conta,
portanto, que a dificuldade de a mulher assumir o cargo de ministra nos tribunais superiores
não está na questão de competência, mas está exatamente na questão de gênero, que a
maioria dessas mulheres é brasileira, bacharel em Direito e concursada.
Para corroborar com a necessidade de se perceber as quatro dimensões scottianas,
busco novamente Nicholson (2000, p. 35) que diz
[ . . . ]
23
2.2 Estupro
31
: uma história difícil de ser contada
A história do estupro ainda não foi escrita. Mas os dados não faltam. [ . . . ]
E é justamente porque essa suspeita varia com o tempo que pode haver uma
história do estupro: nesta, as mudanças são paralelas às dos sistemas de
opressão exercidos sobre a mulher, a sua permanência, seu refinamento,
seus deslocamentos. (VIGARELLO, 1998, p. 7-9).
Grande parte dos países dispõe de uma relação desigual entre homens e mulheres em
detrimento acentuado do gênero feminino, como sociedade. uma supremacia masculina;
assim, podem-se entender mais facilmente as razões das hierarquias existentes entre os
sujeitos que participam, querendo ou não, de um estupro. Chesnais
32
, ao dizer que o estupro é
o único crime cujo autor se sente inocente e a vítima envergonhada [ . . . ]
33
, maior ênfase
à argumentação sobre o poder do homem e das limitações da mulher como sujeito
34
.
Na maioria das sociedades, inclusive no Brasil, a definição jurídica de estupro reduz-
se à penetração vaginal à força, sem o consentimento da mulher. Nessa linha de conceito, os
pareceres de alguns médicos e a sentença de alguns juízes franceses, no início do séc. XIX, só
admitiam a existência do estupro quando mais de um homem se reunisse para cometer tal
crime, necessariamente armados, pois um homem o teria forças físicas para dominar
uma mulher. Sendo assim, o estupro com um único homem somente poderia efetivar-se com a
permissão da mulher. Para a sociedade daquele tempo, a mulher era fisicamente mais forte
que o homem, tinha mais artimanhas para se defender, uma maneira velada de não acreditar
no discurso dessa mulher violentada, ou melhor:
[ . . . ] a história do estupro se encontra aqui com a história das
representações da consciência, e também, com a das representações da
31 Estupro provém do latim stuprum. Alguns antigos lexicógrafos o conceituam como: a) [ . . . ] -s.m. cópula
forçada com virgem (FONSECA,1848, p. 493); b) [ . . . ] cópula violenta com virgem ou viúva; adultério
com mulher casada (FARIA, E., 1878, p. 1182); c) [ . . . ] atentado contra o pudor de uma mulher. Coito
forçado. Desfloramento de virgem (FIGUEIREDO, 1949, p. 1133).
32 CHESNAIS, J. C. Historie de la violence en Ocident. Paris: Robert Laffont, 1981, p. 145. Apud
VIGARELLO, 1998, p. 36 - 256.
33 Dentre os brasileiros à espera de canonização, encontra-se a catarinense Albertina Berkenbrock, 12 anos, que
preferiu à morte ao estupro. Será beatificada em 20 de outubro vindouro. (Zero Hora, 12.05.07, p. 12).
34 Segundo Zuwick (2002, p. 23), os órgãos de repressão, durante a ditadura militar no Brasil, usavam a
ameaça de estupro para arrancar informações e confissões das mulheres pertencentes aos grupos de
guerrilha. [ . . . ] Os corpos são invadidos como território conquistado. [ . . . ] A responsabilidade e a
identidade dos agressores diluem-se através da ação do grupo.
24
feminilidade. Outro conjunto de razões leva, assim, a mascarar a violência
sexual: as diversas maneiras de recusar à mulher um status de sujeito.
(VIGARELLO, 1998, p. 43).
Dessa maneira, o processo histórico era beneficiado em razão de a mulher, como
sujeito, não expressar uma posição de locutor, ou seja, ela não tinha uma posição responsiva
no sentido da teoria de Bakhtin.
Após essa incursão, ainda que superficial, sobre a historicidade do estupro, faz-se
necessário entender os argumentos que atravessam os discursos político-jurídico-sociais, os
que norteiam a caminhada humana como sujeitos cada vez mais sujeitos de uma sociedade.
A língua é um espaço relevante nesse processo, visto que ela constitui os discursos
desses sujeitos, e segundo Bakhtin (1986, p. 153):
[ . . . ] é importante levar sempre em conta a posição que um discurso a ser
citado ocupa na hierarquia social de valores. Quanto mais forte for o
sentimento de eminência hierárquica na enunciação de outrem, mais
claramente definidas serão as suas fronteiras, e menos acessível será ela à
penetração por tendências exteriores de réplica e comentário [ . . . ].
Fazendo um recorte discursivo no tema estupro, a história das "mulheres de vida fácil"
conta, aqui no Brasil, que até poucas décadas atrás elas ainda eram penalizadas por não serem
"honestas", visto a lei
35
sobre o estupro ter como critério identificador a mulher ser honesta
pelo seu recato, por seus atos de decência, virgem ou não, mas honesta, em oposição à mulher
pública, também chamada de prostituta. Somente a partir do Código Penal de 1940, surgem
mudanças significativas na Consolidação das Leis Penais, tais como:
a) aparece o verbo constranger, no lugar do verbo estuprar;
b) surge a palavra conjunção carnal, substituindo cópula carnal;
c) redução da palavra honesta. Um processo que veio por meio das palavras, seu
entendimento, sua evolução, pois o adjetivo honesta já não tinha mais sentido na
urdidura social, o contexto indicava mudanças que [ . . . ] para todo o homem atento
à marcha da humanidade, prazer em constatar o crescimento da inteligência
que se faz sentir no lento renovar das línguas. (BRÉAL, 1992, p. 169).
35 Ver ANEXO D.
25
Como o momento sociopolítico
36
não era o mesmo, a sociedade brasileira
desenvolveu novos valores, vivenciando outros costumes, mobilizando inclusive os
legisladores a excluírem a palavra honesta
37
da tipificação do crime de estupro, porque essa
lei cominava com mais severidade os crimes efetuados nas mulheres prostitutas. Para Bakhtin
(1986, p. 66), a palavra [ . . . ] revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da
interação viva das forças sociais.
Entre as legislações
38
que o Brasil teve, apenas o Código Filipino não traz grafada a
palavra estupro em suas leis; no Código de 1890, aparece pela primeira vez o significado do
verbo estuprar, o conceito de estupro e a noção de entendimento de violência.
Lingüisticamente o estupro, para ser configurado como crime, precisa do constrangimento, da
violência ou da grave ameaça, pois o que configura o estupro, hoje, é o constrangimento
físico causado por violência física ou grave ameaça consumado por meio do defloramento.
36 Mesmo assim, alguns políticos se utilizam de discursos carregados de ironia e de eufemismo: a) Paulo
Maluf “estupra, mas não mata”; b) Severino Cavalcanti “acidente horrendo”. (Folha de São Paulo,
6.05.2005).
37 Para maior aprofundamento, procurar Soares (2004).
38 Constituições brasileiras: a) Código Filipino, 1603 a 1832; b) Código Criminal do Império do Brasil, 1832 a
1890; c) Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, 1890; d) Código Penal de 1932; e) Código Penal de
1940, vigente, em parte. Leis que alteraram a atual Constituição: a) Lei 6.416/77 reforma profunda no
Código Penal vigente e também no Código de Processo Penal e Lei da Contravenções Penais, tipificando os
crimes contra a disponibilidade sexual; b) Lei 8.072/1999 dispõe sobre os crimes hediondos, entre eles os
crimes contra a liberdade sexual (grifo meu).
26
3 BUSCANDO DIÁLOGO COM AS PALAVRAS DA LEI
Tendo como corpus desta pesquisa um texto do gênero jurídico, objetivo identificar as
vozes que ajudaram a estruturar as práticas dialógicas, mediante argumentos do sujeito
enunciador, não fossem recusados perante os seus pares no Supremo Tribunal Federal. Assim,
o núcleo desta tese é verificar em que medida a escolha de determinados elementos
lingüísticos influenciaram para que o Voto n 81.360, após a sua sentença, fosse usado como
referência a outras decisões, servindo de jurisprudência ao delito aqui mencionado: o
estupro. É bem verdade que o jus novum desse voto teve uma vigência pouca duradoura, no
entanto o seu impacto foi suficiente para transformar ou ao menos polemizar
39
o senso
comum da sociedade brasileira, inclusive nos posicionamentos de alguns membros do Poder
Judiciário
40
, que é por intermédio da linguagem que a interação verbal acontece entre os
sujeitos sociais. Nesse sentido, busco a corroboração de Bakhtin (1986, p. 154):
[ . . . ]
a dizer que, nas formas pelas quais a língua registra as impressões do
discurso de outrem e da personalidade do locutor, os tipos de comunicação
sócio-ideológica em transformação no curso da história manifestam-se com
um relevo especial
.
Adoto a perspectiva bakhtiniana
41
como suporte teórico nesta pesquisa, pois acredito
que a palavra traz consigo as relações sociais, as crenças, as verdades, a história e a cultura do
contexto do sujeito, ou seja, a minha voz tem a cultura de onde vivo; o outro, a história do seu
meio, ou vice-versa, pois a situação social mais imediata e o meio social mais amplo
determinam completamente e, assim por dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da
enunciação. (BAKHTIN, 1981, p. 127). Além disso, o discurso está diretamente imbricado a
estruturas sociais presentes em um dado contexto, pois ele é uma prática social articulada,
39 A mídia interagiu bastante neste caso, mostrando quase que diariamente os diferentes discursos jurídicos
entre os operadores do Direito: juízes, promotores, ONGs.
40 Jornal da Universidade (UFRGS, 05.2007).
41 Mikhail Bakhtin nasceu em Oriel, 1895, e morreu em 1975. Teóricos estrangeiros começam a debruçar-se
em torno das suas obras após os anos sessenta, dentre esses estudiosos está Todorov e Jacqueline A. Revuz.
No Brasil, o estudo bakhtiano começa quase uma década após, com um grupo significativo de pesquisadores
Amorim, Barros, Brait, Faraco principalmente no que se refere aos estudos da enunciação e dos gêneros
do discurso. Amorim (2003) afirma que Bakhtin é o pensador entre monologismo e dialogismo que constitui
cada texto; para Brait (2005, p. 26), o dialogismo como fator constitutivo da linguagem viva e em
movimento, permitindo determinadas ‘ultrapassagens’ que descartam tanto o reducionismo quanto à
transposição.
27
hierarquizada pelas relações que formam a arquitetura social em que se vive, como sujeitos
cada vez mais sujeitos.
Assim, tento aproximar a lingüística – o enunciado e a enunciação – ao discurso
jurídico, possibilitando uma intertextualidade mais dialógica ao discurso do dia-a-dia dos
sujeitos que se utilizam “arquitetonicamente” da língua como ciência, os lingüistas. Dessa
feita, após definido o referencial teórico que sustenta esta pesquisa para ficar didaticamente
mais clara essa aproximação entre a ciência do Direito e a ciência da Lingüística – divido este
quadro teórico em subcapítulos, a saber:
a) linguagem e língua.
b) Saussure.
c) Benveniste.
3.1 Linguagem e Língua
É importante relembrar quão significativa foi a contribuição de Saussure à Lingüística:
conceituações diferentes a cada elemento do tripé linguagem x língua x fala; ao binômio fala
x língua; à dicotomia entre o estudo sincrônico/descritivo do estudo diacrônico/histórico;
além disso, foi precursor do método hipotético-dedutivo, cuja pesquisa possibilitou à
Lingüística ser estudada como ciência pura. Ao afirmar que [ . . . ] o todo vale pelas suas
partes, as partes valem também em virtude de seu lugar no todo, Saussure (1998, p. 149)
posiciona-se dentro dos princípios da teoria estruturalista. Para Benveniste (1995, p. 34),
[ . . . ] não um só lingüista hoje que não lhe deva algo. Não uma teoria geral que
não mencione seu nome.
O estudo de Saussure é fundamental a trabalhos que analisam textos com um olhar
específico à lingüística, pois ele faz uma investigação profunda no estudo da língua. A teoria
saussuriana não me dá respaldo para trabalhar com a relação de signos e da dimensão
histórico-ideológica do sentido, mas, sem dúvida alguma, é um ponto de partida para o estudo
que esta tese tem como escopo: o uso social da linguagem no contexto jurídico.
28
Benveniste (1995) aprofunda o conceito de língua saussuriana, sistema de signos que
expressam idéias, ao afirmar que ela constitui a estrutura modeladora dos outros sistemas de
signos, ou seja, a língua, por ser um ato individual, funciona por meio do discurso. Esse
teórico não nega a afirmativa de Saussure (1998) ao dizer que não existe pensamento fora da
linguagem, mas acrescenta que esse pensamento é configurado pela estrutura dessa mesma
língua. A teoria benvenistiana avança ao propor que a língua abarque os fenômenos da
enunciação, surgindo, assim, o estudo da lingüística enunciativa.
3.2 Saussure
Nunca deixa de ter interesse determinar o tipo gramatical das línguas (quer
sejam historicamente conhecidas ou reconstruídas) e classificá-las de
acordo com os procedimentos que utilizam para a expressão do
pensamento; porém, dessas determinações e dessas classificações nada se
poderá deduzir com certeza fora do domínio propriamente lingüístico
(SAUSSURE, 1998, p. 267).
Busco, primeiramente em Saussure (1998, p. 16-22), o conceito de linguagem: [ . . . ]
tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro, é
multiforme e heteróclita [ . . . ], é o discurso humano, portanto, um fenômeno vivo. Esse
teórico estabelece dois níveis de estudo à linguagem: a língua e a fala. Ambas língua e fala
são consideradas objetos de natureza concreta, visto que a língua é [ . . . ] necessária para
que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos [ . . . ]; a fala, para que a língua se
estabeleça e cresça com ela em uma determinada comunidade (SAUSSURE, 1998, p. 27).
Quanto à língua, [ . . . ] ela não se confunde com a linguagem, é somente uma parte
determinada, essencial dela, indubitavelmente [ . . . ], é homogênea; como ela se constrói na
relação dos membros de uma comunidade, sozinho o indivíduo não consegue modificá-la. Em
oposição à língua, a fala [ . . . ] é um ato individual de vontade e inteligência. Este teórico vê a
fala como um processo individual e efêmero, prioriza a língua por entendê-la como resultado
de um sistema de signos e de regras. Assim, ao preterir aquela por esta, enaltece a importância
do falante ideal. Ratificando o que foi escrito, Saussure assevera (1998, p. 24):
A língua é um sistema de signos que exprimem idéias, e é comparável, por
isso, a escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às
29
formas de polidez, aos sinais militares etc., etc. Ela é apenas o principal
desses sistemas.
Signo, para esse teórico (1998, p. 81), é [ . . . ] combinação do conceito e da imagem
acústica: mas, no uso corrente, esse termo designa geralmente a imagem acústica. É uma
entidade psíquica de duas faces:
a) conceito – significado;
b) imagem acústica composto pelo significante e pelo significado, é arbitrário, é
cultural, porque obedece a uma lógica.
Sendo assim, o signo não necessita demonstração de razão, pois tem em sua essência
uma identidade independente da ordem das coisas, pois [ . . . ] relaciona-se na totalidade com
outros signos, pois a língua é um sistema no qual seus termos são solidários. (FLORES,
1999, p. 31). O signo produz forma, não substância.
A língua é vista como um sistema, e é no interior desse sistema que aparece uma
categoria importante para Saussure o valor de um signo, ou seja, [ . . . ] as relações e as
diferenças entre termos lingüísticos se desenvolvem em duas esferas distintas, cada uma das
quais é geradora de certa ordem de valores. (SAUSSURE, 1998, p. 142). Estas esferas
dividem-se em:
a) ordem sintagmática refere-se ao encadeamento de um elemento lingüístico com
outros elementos de um mesmo enunciado, in praesentia, constituindo as unidades
menores dentro da língua, os sintagmas. Na Língua Portuguesa, essa ordem é
constituída de SVO;
b) ordem paradigmática – refere-se às classes de unidades disponíveis na nossa
memória, não existe uma ordem hierárquica, ela vai-se constituindo de conceitos
que o falante e o ouvinte têm construído como imagem acústica de uma unidade
lingüística.
Retomando o entendimento saussuriano (1998, p. 80), o signo lingüístico [ . . . ] une
não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica [ . . . ], pois para este
teórico os elementos idéias e sons – são responsáveis pelo funcionamento da língua;
portando o signo não é abstração, é tangível. Símbolo, outra categoria estudada por esse
teórico, não é arbitrário, mantém uma relação de sentido com aquilo que representa.
Exemplificando, a justiça que fornece o corpus para esta pesquisa é representada pelo
30
símbolo da balança, pois tem uma relação racional com o seu respectivo significado: julgar
com eqüidade, preservar o direito e deveres de uma comunidade. Para Saussure (1998), os
costumes aceitos por uma comunidade interferem na língua dos seus falantes e,
paradoxalmente, é essa língua que constitui esta mesma comunidade, resultando no
desenvolvimento de línguas especiais, entre elas a língua jurídica e a terminologia científica.
O espaço-temporal, a historicidade, em que esse teórico excluiu o sujeito – aquele que
assume o seu dizer do seu estudo: acredita que a língua (langue) é o elemento da linguagem
que pode ser estudada como ciência, que é construída de signos e de regras. No entanto, a
teoria saussuriana (1998, p. 28) ao assumir essa postura não ceifa o estudo da fala (parole), ao
contrário
[ . . . ] conservar o nome de Lingüística para cada uma dessas disciplinas e
falar duma Lingüística da fala. [ . . . ] não confundi-la com a Lingüística
propriamente dita, aquela cujo único objeto é a língua. [ . . . ] no decurso de
nossas demonstrações, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforçar-no-emos
para jamais transpor os limites que separam os dois domínios.
Saussure deixa como herança aos estudiosos da lingüística, que tem na língua o seu
objeto de estudo, a perspectiva de que a ngua é exclusivamente extralingüística. A língua é
parte social da linguagem, é um sistema de relações. O signo traz como valor lingüístico o
resultado da interação com os demais signos.
3.3 Benveniste
Busco, em um segundo momento, a teoria enunciativa (BENVENISTE, 1989, p. 93)
que destaca a linguagem como sendo um sistema socializado de signos, portanto necessitando
da existência do outro:
A linguagem é para o homem um meio, na verdade, o único meio de atingir
o outro homem, de lhe transmitir e de receber dele uma mensagem.
Conseqüentemente, a linguagem exige e pressupõe o outro. A partir deste
momento, a sociedade é dada com a linguagem.
31
Benveniste conceitua
(1989, p. 33) signo como sendo [ . . . ] uma unidade de base de
todo sistema significante. É inegável que, a partir desse conceito, o signo tenha sentido,
tenha existência quando é usado na língua, pois é ela que representa uma sociedade. Trago as
palavras desse teórico (1989, p. 97):
A língua nasce e se desenvolve no seio da comunidade humana, ela se
elabora pelo mesmo processo que a sociedade, pelo esforço de produzir os
meios de subsistência, de transformar a natureza e de multiplicar os
instrumentos.
A teoria benvenistiana, ancorada na Teoria da Enunciação, dá-me subsídios para
trabalhar com as categorias de sujeitos e da linguagem deste corpus, além das categorias
eu-tu
42
desse teórico. Segundo Benveniste (1995, p. 267), [ . . . ] é preciso entender discurso
na sua mais ampla extensão: toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no
primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o outro. A linguagem não é vista como
um instrumento, porque ela é inseparável do homem e vice-versa [ . . . ] não o vemos
nunca inventando-a [ . . . ], já que ela [ . . . ] está na natureza do homem, que não a
fabricou. (BENVENISTE, 1995, p. 285), Para esse teórico, o homem constitui-se como
sujeito somente na linguagem e pela linguagem, pois é nesse processo que se instaura a
subjetividade e a intersubjetividade, fatores relevantes a teoria benvenistiana.
As primeiras formas lingüísticas identificadoras da subjetividade são os pronomes
pessoais eu-tu que, como pessoas, atribuem sentido às palavras, que é na subjetividade
que o homem se constitui como sujeito. Nessa teoria, esse sujeito tem como ponto de
referência as coordenadas espaços-temporais dos demonstrativos, dos advérbios, dos
adjetivos, enfim, dos termos dêiticos. O eu é definido como pessoa subjetiva, o tu, como
pessoa não subjetiva, e ambos se opõem à terceira pessoa, o ele, que é considerado nesta
teoria uma não pessoa. No entanto, ele é o único a admitir em sua forma um verdadeiro
plural.
A intersubjetividade aparece no momento em que o eu expressa a necessidade do tu e
vice-versa, pois esses dois pronomes sozinhos são signos vazios, tornam-se plenos no
42 Benveniste (1995) questiona a denominação de pessoa verbal à terceira pessoa que não se refere a uma
pessoa determinada como o eu-tu, asseverando, inclusive, que a função que ela exerce é de representar a
“não-pessoa” – sujeito nunca proposto como “pessoa”.
32
momento que um interage com o outro, ou seja, que haja mais de um sujeito em um discurso
para que se possa ver um homem falando no mundo, [ . . . ] um homem falando com outro
homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (BENVENISTE, 1995, p.
285). Assim, é a intersubjetividade que serve de alicerce para que a subjetividade possa
surgir e se manter em uma enunciação, pois é por seu intermédio que a comunicação
lingüística se torna possível.
Outra categoria importante para Benveniste (1989, p. 75) é o agora, porque
possibilita o aparecimento do tempo lingüístico e, por sua vez, a enunciação. Dizendo de
outra maneira, é o aqui que possibilita o fundamento das oposições temporais da língua [ . .
. ], é o que separa o acontecimento da narração do momento do discurso, afirmando que é a
partir desse presente que o homem vai ao encontro do tempo ou o tempo ao encontro dele,
segundo a imagem que anima nossa representação [ . . . ] (1989, p. 75). Ele tem conceitos
diferentes para sentido e referência, evitando discussões inúteis sobre a arbitrariedade do
signo, logo (1989, p. 231):
O sentido de uma frase é sua idéia, o sentido de uma palavra é seu emprego
(sempre na acepção semântica). [ . . . ] Além disso é necessário introduzir
aqui um termo a que foi desnecessário apelar na análise semiótica: aquele
do "referente", independente do sentido, e que é o objeto particular a que a
palavra corresponde no caso concreto da circunstância ou de uso.
A Teoria da Enunciação reforça a idéia de que não se pode deixar de distinguir sentido
de referência, sinalizando que a melhor maneira para se evitar tal possibilidade é se terem
critérios precisos de ordem lingüística e formal. Apesar de divergir das idéias do grupo de
Oxford, a teoria benvenistiana traz o exemplo canônico de Austin (1975): “eu juro”, para
trabalhar com os termos performativo e constativo. Para Benveniste (1995, p. 300),
enunciados performativos são advindos de atos de autoridade, que publicam decisões com
força de lei, visto serem
[ . . . ] enunciados nos quais um verbo declarativo-jussivo na primeira
pessoa do presente se constrói com um dictum, são apresentados pela
construção do verbo com um complemento direto e um termo predicativo,
não comportam verbo declarativo, às vezes é acompanhado do inciso 'pela
presente', o dictum pode ser referido na terceira pessoa.
Assim, o enunciado performativo só existe se for dito por um sujeito, cuja autoridade é
reconhecida no contexto em que vive para torná-lo um ato, caso contrário, nada mais é do que
33
palavras ao vento. Benveniste não partilha com a idéia de que o imperativo seja um enunciado
performativo, não o vê como um tempo verbal, já que não comporta marca temporal e muito
menos referência pessoal, dizendo de outra maneira, o imperativo apenas produz um
comportamento. O enunciado performativo é o ato em si que ele denomina e que denomina o
performador. Portanto, na teoria benvenistiana, eu juro é um ato, um dictum.
Benveniste deixa como proposta teórica que os signos integrantes de um sistema
formal precisam ser reconhecidos e compreendidos pelo locutor e pelo enunciador de um
discurso, para que esses sujeitos possam fazer a sua história. A subjetividade aparece como
questão lingüística a partir dos estudos benvenistianos, e com isso surge um sujeito capaz de
se apropriar de e na sua língua, de compreendê-la e de significá-la. Este teórico diverge de
Saussure (1998): uma necessidade de relação entre o significado e o significante. Esta
concepção, dentro dos estudos lingüísticos, dá início à Teoria da Enunciação.
34
4 LENDO BAKHTIN
Não pode existir um sentido único (um). Por isso, não pode haver o primeiro
nem o último sentido, ele está sempre situado entre os sentidos, é um elo na
cadeia dos sentidos, a única que pode existir realmente em sua totalidade.
(BAKHTIN, 2003, p. 382).
4.1 Auto-Reconhecimento: arena para se reconhecer o outro
Após o avanço da lingüística no entendimento de língua, de fala, de ideologia e de
poder possibilitando ao sujeito marcar a linguagem com a sua subjetividade –, os estudos
lingüísticos de Bakhtin
43
tornaram-se relevantes no processo da comunicação discursiva. No
cotidiano do homem, a presença de fatores culturais e sociais, muitas vezes advinda de um
juízo de valor, que é sempre uma tomada de posição individual na existência global.
Assim, as idéias de Bakhtin servem de impulso aos desenvolvimentos teóricos que têm
como foco os processos discursivos, pois a sua teoria se preocupa com as relações que o
homem o eu interage com outro homem o tu em um enunciado que garante ao falante
a oportunidade de expressar o seu discurso, e ao ouvinte, a oportunidade de se tornar falante,
isto é, que haja espaço à alternância de vozes. Como diz Bakhtin (1997, p. 79):
O supremo princípio arquitetônico do mundo real do ato ético é a oposição
concreta, arquitetonicamente válida, entre o eu e o outro. A vida conhece
dois mundos axiológicos por princípio diferentes, mas relacionados entre si:
o eu e o outro, e em torno a esses dois centros se distribuem e se dispõem
todos os momentos concretos do ser.
A obra de Bakhtin costuma ser dividida em quatro fases de estudos e de pesquisa,
embora essas não sejam estanques:
a) 1918 – 1924, neokantismo e fenomenologia;
b) 1925 – 1929, freudismo, marxismo, formalistas russos e lingüística;
43 Não separo os autores Volochinov e Medvedev de Bakhtin, por acreditar que os discursos desses três
teóricos atravessam de uma obra à outra, formando, dialógica e polifonicamente, a autoria do Círculo de
Bakhtin.
35
c) a partir de 1930 – poética histórica na evolução do romance;
d) 1960 a 1970 filosofia da linguagem e teoria social, é neste último espaço de
tempo que os textos de Bakhtin começam a circular nas faculdades brasileiras de
Letras.
Essas quatro divisões, de uma forma ou outra, investigam o mesmo fenômeno
comunicativo: compreender como o diálogo se realiza e em que circunstâncias esse processo é
possível. A obra perpassa a importância dos gêneros do discurso, orais e escritos, que dispõem
de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo [. . .] (BAKHTIN,
2003, p. 301), ou seja, são as formas típicas que representam os enunciados. Meu olhar
acadêmico repousa na última fase, visto que o objeto desta pesquisa o discurso jurídico
tem como aporte teórico o viés lingüístico-discursivo.
A língua
44
está intimamente interligada ao pensamento e à alma do falante, integra a
vida do homem – do eu e do outro – por meio de enunciados concretos. São esses enunciados,
que se constituem como tais, quando obtêm resposta(s) ao que foi posto, que se
estabelecem em uma relação ideológica entre falantes. E são esses falantes, em diferentes
posições de sujeito mediante as relações de alteridade
45
, em uma determinada interlocução
discursiva que irão me fazer conhecer e compreender as vozes que ajudaram a construir a
interpretação do texto de lei, o meu corpus. Para Bakhtin (1986, p. 35), uma relação
intrínseca de interdependência entre sujeito e sociedade
46
:
[ . . . ] não basta colocar face a face dois ‘homo sapiens’ quaisquer para que
os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam
socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social):
assim um sistema de signos pode configurar-se.
44 Bakhtin muitas vezes usa língua e linguagem com o mesmo sentido em seus textos.
45 Bakhtin (1981) exemplifica essa categoria com o personagem Goliádkin, de Dostoievski. Nesta pesquisa,
relaciono a posição assumida do enunciador com os seus pares no julgamento em questão no Supremo
Tribunal Federal.
46 A sociedade brasileira por seus valores, por seus ideais, por sua ideologia determina o conteúdo do bem
jurídico que está na Constituição e na legislação penal, fazendo, desta maneira, que muitos tipos penais
desapareçam, como o exemplo no Código Filipino, Título LXXXV Dos Mexeriqueiros, por perderem a
importância perante os atuais valores sociais: Por se evitarem os inconvenientes, que dos mexeriqueiros
nascem, mandamos, que se alguma pessoa disser à outra, que outrem disse mal dali, haja a mesma pena, as
si civil, como crime, que mereceria, se ele mesmo lhe dissesse aquellas palavras, que diz, que o outro
terceiro delle disse, posto que queira provar que o outro o disse. (PIERANGELI, 2001, p. 152).
36
Para Bakhtin, a língua é uma realidade concreta, realizada por intermédio da interação
verbal e social dos interlocutores, é a partir da compreensão do diálogo, como troca de
enunciações, que o sentido se torna dialético, já que os sujeitos não recebem a língua pronta
para uso, o que faz com que a linguagem seja constitutiva e não constituída. A criação
lingüística se constitui por meio da língua, e é essa língua, com conteúdos e valores
ideológicos, que tenta ligar arquitetonicamente o sistema de língua, como sistema abstrato, à
realidade social, concreta, do seu sujeito. Diante deste entendimento dialógico a realidade
da linguagem é o fato social da interação verbal, opondo-se à concepção da linguagem como
entidade abstrata , busco o conceito de duas
47
categorias importantes nesta teoria
(BAKHTIN, 1986, p. 12):
a) enunciação produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e,
mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo
representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. Neste ato de
emissão do discurso, sempre uma réplica: seja de concordância, ou de
discordância, que é o resultado, a reação, da interação social entre dois
indivíduos em uma estrutura eminentemente social. O autor, sujeito da
enunciação, pertence a esta categoria;
b) enunciado realiza-se diante de toda uma eleição de um gênero discursivo
determinado. Constitui-se pelos elementos participantes precedentes e sucessivos
da comunicação verbal, isto é, por intermédio das unidades da língua. O enunciado
é uma construção comunicativa, e como tal, pode ser explicado no contexto
extraverbal, pois é o ato discursivo já emitido, pronunciado. É unidade do discurso,
os que dão a vida à língua, tornando-a linguagem (língua em uso)
48
. O locutor,
sujeito do enunciado, compõe esta categoria.
Nesse sentido, a concepção bakhtiniana de linguagem binômio eu/tu, avança em
relação a outros teóricos à medida que incorpora o outro como constitutivo do sujeito, ao
salientar que ela não resulta de sentido produzido por um falante, homogêneo, mas de um
sujeito que divide o seu espaço discursivo com esse outro. Para Bakhtin, a linguagem, além
de compreender os sujeitos e os discursos de uma comunicação efetiva, é um fenômeno social
que se realiza na interação social por meio do enunciado. A linguagem, mediante as palavras,
47 A tradução feita por Paulo Bezerra afirma que Bakhtin não diferencia enunciação de enunciado, inclusive,
utiliza-se da mesma palavra viskázivanie ao discurso de um passado remoto, ao texto filosófico ou à
emissão de um discurso (BAKHTIN, 2003).
48 Cumpre-me enfatizar que me refiro à teoria de Bakhtin.
37
faz com que a percepção sobre o mundo em que se vive se concretize e, apesar de ser
adquirida basicamente nas relações sociais, ela constrói a realidade do entendimento do
sujeito. A linguagem não é privilégio de nenhum grupo social.
Na perspectiva de Bakhtin (1997, p. 110):
[ . . . ] a palavra [slovo] concebida mais amplamente, como um fenômeno da
comunicação cultural, deixa de ser uma coisa centrada em si mesma e não
pode ser compreendida independentemente da situação social em que foi
engendrada.
Nessa construção, a palavra empregada isoladamente, como fenômeno puramente
lingüístico, não pode ser compreendida como [ . . . ] verdadeira, nem falsa, nem atrevida, nem
tímida (BAKHTIN, 1997, p. 113). Não há palavra num discurso que não tenha um falante que
se responsabilize por ela, ou melhor, que assegure a sua presença no enunciado e não a
coisifique. A palavra precisa ter sentido no discurso
49
, que ela está intrinsecamente ligada
aos três momentos que formam o contexto extraverbal da vida:
a) o horizonte espacial compartilhado entre os falantes;
b) o conhecimento e a compreensão comum entre os falantes faz com que o eu e o
outro sejam compartilhados;
c) a valoração compartilhada pelos sujeitos desse contexto, da situação.
Assim, dizendo de outra maneira, sendo a linguagem uma prática social, há uma
relação muito estreita entre a ideologia, a sociedade e a história do sujeito. Sujeito que dialoga
com outros sujeitos.
A palavra, como fenômeno de comunicação cultural (BAKHTIN, 1986, p. 194), é um
fenômeno ideológico por excelência, está em evolução constante, reflete fielmente todas as
mudanças e alterações sociais. O destino da palavra é o da sociedade que fala. O que fica
evidente, neste contexto, é que o eu pode realizar-se na palavra se essa estiver apoiada no
“nós”, ou melhor, no eu e no outro, pois o sentido da palavra é totalmente determinado por
seu contexto. Para a palavra bakhtiniana, a entonação
50
e o gesto são elementos importantes,
49 A tradução de Paulo Bezerra (BAKHTIN, 2003) usa o termo enunciado para palavra como fenômeno social,
e é nesse sentido que uso.
50 Bakhtin usa várias palavras para um mesmo sentido: entonação, tom, acento, tonalidade.
38
pois eles estão impregnados de atitudes sócio-objetivas do processo de interação social
51
. A
entonação está profundamente influenciada por aspectos emotivo-volitivos do sujeito, ela é a
forma sonora da expressão enunciativa, e, por fazer parte da construção da palavra, contribui
significativamente na tipologia estilística do enunciado. A rigor, a entonação é um elemento
formativo do enunciado e, segundo Bakhtin (1997, p. 118):
[ . . . ] sempre se encontra no limite entre o verbal e o extraverbal, entre o
dito e o não dito. Mediante a entonação a palavra se relaciona diretamente
com a vida. Primeiro, na entonação o falante relaciona-se com os ouvintes:
a entonação é social por excelência; depois, em geral, é sensível a qualquer
influência social – favorável ou adversa – em torno do falante.
Para Bakhtin (1988, p. 36), a [ . . . ] palavra é o modo mais puro e sensível de relação
social [ . . . ], e não é por acaso que ela serve de lugar para inscrever o sujeito na história, daí
por que é também um signo neutro: é dialógica, não é apenas um meio de comunicação, é
também uma atividade psíquica. Como a língua não passa à margem de nenhuma sociedade e
nem está imune à ideologia de seu tempo, posso afirmar, como pesquisadora, que ela
contribui para que os gêneros do discurso
52
do diálogo familiar aa pesquisa acadêmica
sejam relacionados aos usos sociais dessa mesma língua, já que o elo em comum entre ambos
é a natureza verbal. Recorro mais uma vez a Bakhtin (1986, p. 147):
A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das
relações sociais estáveis dos falantes. Conforme a língua, conforme a época
ou os grupos sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo
específico, vê-se dominar ora uma forma, ora outra, ora uma variante ora
outra.
Em relação ao entendimento de palavra e de língua, acredito ser importante relembrar
a existência de duas vertentes teóricas, heterogêneas, que se ocupam com o estudo da
linguagem: o monologismo
53
e o dialogismo. O monologismo, cuja base se encontra na
lingüística de Saussure, preconiza que o significado é inerente às palavras, dicotomiza a
langue da parole. Para essa teoria, a língua não se confunde com a linguagem, é somente uma
51 Desde o tempo em que dei aulas às presas, na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, pude perceber que os
advogados que tinham uma melhor retórica e argumentação – a postura altiva, a dicção precisa com
ressonância oral forte e bem articulada induziam à persuasão, à credibilidade, conseguindo assim maior
respeito dos agentes de segurança e, automaticamente, mais clientes por parte das presas. Estudos
(BEHLAU, 2001) mostram que a voz grave, típica masculina, sobressai-se à aguda, feminina, quanto à
credibilidade e ao convencimento do que está sendo proposto.
52 Ver p. 51-52.
53 Para Silvestri e Blanck (1993, p. 63), o monólogo resulta no grau mais baixo da dialogicidade de um
enunciado.
39
parte determinada, essencial dela, indubitavelmente, é homogênea, constrói-se em uma
comunidade, sozinho o indivíduo não consegue modificá-la. Em oposição à língua, a fala é
um ato individual de vontade e inteligência. (SAUSSURE, 1998, p. 23)
Para Bakhtin (2003, p. 324), nessa lingüística não se estudam [ . . . ] as relações entre
os enunciados e nem as relações dos enunciados com a realidade e com a pessoa falante (o
autor) [ . . . ], portanto é o uso da língua que permite ao sujeito participar da vida social e,
muitas vezes, modificá-la.
Na teoria bakhtiniana, a frase considerada fora do fluxo da comunicação verbal é
um exemplo elucidativo de enunciado monológico, pois, no contexto do discurso, há apenas o
falante, um só sujeito, podendo, inclusive, ser reproduzida indeterminadamente. A frase faz
parte da unidade lingüística, trata-se de um dado, de um fato gramatical. O espaço e o tempo
histórico, nesse contexto, não são únicos.
O dialogismo, para muitos pesquisadores, é a célula da teoria bakhtiniana, no entanto,
a parole como uma comunicação discursiva, por não conceber o ato de fala do falante
como um ato individual. Para Bakhtin, a função relevante da linguagem é a comunicação, ou
melhor dizendo, se consegue usar a linguagem por meio do agir-se no mundo social da
ação, do dialogizar. Assim, a partir do conceito de dialogismo aparece a possibilidade de se
relacionar o ato social (escrito e oral) com a responsabilidade ética, porque o discurso interior
e as representações culturais são passíveis de análise como um ato único e irrepetível. Ao
abordar o discurso dialógico, Bakhtin (1997, p. 168) sinaliza que a consciência biparte-se em
vozes independentes e contraditórias: [ . . . ] e uma dessas vozes sempre, independentemente
de nossa vontade ou consciência, funde-se com o ponto de vista, as opiniões e os valores de
classe a que pertencemos.
A obra de Bakhtin apresenta, do ponto de vista lingüístico, duas categorias
54
inúmeras
vezes utilizadas como sinônimos: o dialogismo e a polifonia. Entendo por dialogismo o
resultado de múltiplas vozes sociais, em um determinado momento, decorrentes de discursos,
já que o diálogo é a estrutura clássica de comunicação discursiva, é constitutivo da linguagem.
O sentido participa do diálogo, ele responde às perguntas do outro (BAKHTIN, 2003). Essas
54 Bakhtin muitas vezes usa essas duas categorias com o mesmo sentido.
40
várias vozes, como não poderiam deixar de ser, podem ser produtos de ideologias diferentes,
contrárias, estabelecendo confrontos de ponto de vista, criando, inevitavelmente, tipos
específicos de discursos. E é, nesse cotejo, que muitas vezes nascem e se constroem novas
idéias e novos significados
55
. Bakhtin (1997, p. 168) alarga essa idéia dizendo que
abstratamente, não se podem transcrever as relações dialógicas em relações lógicas; os
diálogos sempre aparecem como orquestra de estilos, gêneros, maneiras, estilos individuais
[ . . . ], em outros termos, aproximação discursiva pressupõe, sempre, um sujeito que fala e
outro sujeito que escuta. Nesse processo, as vozes que coexistem com o falante e com o
ouvinte por fazerem parte da arena desses sujeitos.
O discurso polifônico se caracteriza por abrigar muitas vozes. Em virtude dessas
múltiplas vozes que respondem ao outro, confundem-na com o dialogismo princípio
constitutivo da linguagem e do discurso. Com isso, a teoria bakhtiniana ressalta a importância
de não se ver em um discurso somente o sistema da língua, pois esse sistema não representa o
todo da comunicação verbal. Por se caracterizar pela multiplicidade de vozes e de
consciências, independentes e distintas, que representam pontos de vista acerca do mundo, a
polifonia representa o diálogo estabelecido entre visões de mundo, análogas ou diferentes.
Enfatizo, assim, o aspecto constitutivo da relação do falante com o outro num processo
enunciativo, visto ser impossível compreender o gênero ou o estilo de discurso sem essa
relação (BAKHTIN, 2003, p. 353):
[ . . . ] 'voz da própria vida', 'voz da natureza', 'voz do povo', 'voz de Deus',
etc. Papel da palavra com autoridade, cujo portador, via de regra, não se
perde, e não fica anônimo. Nesse sentido, o discurso é sempre polifônico,
pois em cada palavra vozes, vozes que podem ser infinitamente
longínquas, anônimas, quase despersonalizadas (a voz dos matizes lexicais,
dos estilos, etc.), inapreensíveis, e vozes próximas que soam
simultaneamente.
O dialogismo, aqui analisado, articula discursos e cruza vozes sociais, vozes advindas
de uma multiplicidade de domínios dos saberes. Esses conhecimentos compartilhados, muitas
vezes persuasivos, formam um jogo que promove um suporte para as representações sociais,
cujo objetivo é inserir os sujeitos
56
envolvidos nessa teia de comunicação. Por ser polifônico,
o discurso realiza-se numa cadeia dialógica e contínua. O corpus aqui analisado o texto de
55 O corpus analisado é um exemplo do confronto de entendimento jurídico.
56 No discurso jurídico, há três sujeitos que estruturam a relação processual: o autor, o réu e o juiz.
41
lei: art. 1° da Lei 8.072/90 é um texto
57
em que ecoa “a voz do povo”, principalmente as
que representam as vozes femininas. Busco em Bakhtin (2003, p. 401) o conceito de texto,
conceito que ancora uma das categorias relevantes desta minha pesquisa:
O texto tem vida contatando com outro texto (contexto). no ponto
desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e
prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. [ . . . ] Por trás desse
contato está o contato
entre indivíduos e não entre coisas (no limite). Se
transformarmos o diálogo em um
texto contínuo, isto é, se apagarmos as
divisões das vozes (alternância de sujeitos falantes), o que é extremamen4.17943(e)-ie
possve (a dialtica de eel), o sentido rofndo (17.1594iíninito) deaeparecerá
(ateremoscontra o fndo, oremos um onto moto).
42
jurídico, é analisado do ponto de vista lingüístico. Este estudo analisa o discurso do outro,
cujo objetivo é compreender as vozes que ajudaram a construir a interpretação desse texto de
lei em questão que, segundo Lopes (2004, p. 33):
[ . . . ] operam com definições estipulativas (ou redefinições), mas não
arbitrárias, na medida em que correspondem ou a usos aceitos ou a
estipulações que precisam se tornar aceitáveis pelo respectivo esforço de
justificação.
Bakhtin (2003), ao afirmar que o enunciado sempre traz a voz do outro, corrobora com
a idéia de compreensão em um texto arquitetonicamente construído: marcas de outras
obras, tessituras de outros sujeitos, dizendo de outra maneira, o dado. Esse dado possibilita a
qualquer disciplina das ciências humanas avançar com mais facilidade na realidade do texto a
ser construído através do dado criado
60
. A idéia de compreensão parte do princípio de que
posso falar do reflexo de um reflexo, no sentido do objeto refletido, se eu “tomar”
conhecimento do texto, que o texto bakhtiano é o dado primário de qualquer investigação
que, mediante a interrogação e a conversa, torna-se diálogo núcleo da consciência, da
identidade e da vida social. Sendo assim, é no confronto do diálogo, podendo ser igual ou
diferente ao discurso do outro, na maioria das vezes, surgem as transformações de idéias e de
comportamentos sociais
61
.
4.2 Sujeitos e Seus Discursos
A questão do falante (do homem, do sujeito do discurso, do autor do
enunciado, etc.). A lingüística conhece apenas o sistema da língua e o texto.
Por outro lado, todo enunciado, até uma saudação padronizada, possui uma
determinada forma de autor (e de destinatário). (BAKHTIN, 2003, p. 382).
Toda a concepção dialógica de Bakhtin está ancorada numa relação hierárquica e
valorativa entre a palavra do eu e do outro (polifonia, heteroglossia, paródia e
intertextualidade), que pressupõe uma relação entre dois ou mais discursos. A partir desse
olhar, os estudos lingüísticos mostram que a consciência individual não consegue dar conta
dos fenômenos ideológicos criados por grupos sociais que pensam diferentemente,
60 Aqui relaciono o corpus deste trabalho, ao parecer da Ministra.
61 A jurisprudência aqui analisada é um exemplo de um confronto de interpretação jurídica.
43
constituindo signos ideológicos. A comunicação cotidiana de um grupo social, no
espaçotemporal das leis sociais e das econômicas, estabelece os signos ideológicos dessa
comunidade, enfatizando o enfoque social das diversas ideologias especializadas e
formalizadas, visto que nesse funcionamento [ . . . ] a consciência individual não é o arquiteto
dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos
ideológicos. (BAKHTIN, 1986, p. 36). Surge, desse modo, a concepção da idéia, da
consciência, visto essa interação dialógica ser possível de ser realizada, porque existem os
signos, ou seja, isso justifica o fato de a consciência não existir sem os signos.
A heteroglossia, na teoria bakhtiniana, faz-se presente na linguagem, local em que
acontecem os conflitos sociais. Toda voz é híbrida por natureza, é dialógica, é ideológica, é
viva. A heteroglossia representa os conflitos e as diversidades resultantes dos objetos de
conhecimentos humanos e de pontos de vista do eu e do outro na interação social, ou melhor,
da produção cultural entre sujeitos. Ela representa as distintas matrizes idiomáticas com que
esses sujeitos dialogam na sociedade em que vivem. A palavra, vista dialogicamente, é capaz
de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais
62
. Essa
produção cultural é possível porque a heteroglossia lingüístico-discursiva bakhtiniana
(2003) é consciente da existência de normas que auxiliam o sujeito a construir o seu
enunciado. A heteroglossia colabora na construção de uma identidade dialógica, porque viver
significa participar de um diálogo.
Dessa maneira, eis a razão pela qual Bakhtin se utiliza da denominação arquitetônica
do mundo para denominar a construção do processo dialógico em um diálogo, através do
tempo e do espaço, a alteridade entre o eu e o outro, ou melhor, a certeza de que o eu tem
espaço fecundo para ser construído nesse contexto, acrescentando um olhar relevante não
apenas à forma temporal e espacial, mas também ao sentido. Parafraseando Bakhtin, a
arquitetônica do mundo tem no seu conjunto estrutural a linguagem, o signo e a consciência
os quais servem de escora para sustentar a carga maior que é a sociedade humana. E esse
olhar dialógico sobre a língua faz com que Bakhtin trabalhe com a dicotomia das categorias
oração versus enunciado e tema versus significação.
62 O caráter essencial do art. 222 estava centrado no fato de a mulher ser honesta, aparecendo uma forte
intenção valorativa à lógica de que a prostituta não tinha os mesmos direitos da mulher honesta. A lei
daquela época cominava com mais severidade os crimes efetuados naquelas mulheres. Para maior
aprofundamento, procurar Soares (2004).
44
Primeiramente, busco os conceitos de oração e de enunciado. Para Bakhtin (1992, p.
295), oração é a unidade da língua, é de natureza gramatical, é uma unidade significante da
língua; enunciado, uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos
falantes, uma unidade da comunicação verbal. A oração é dotada de significação, e o
enunciado é dotado de sentido. Percebo que tais concepções não desprezam a gramática, o
léxico e a fonologia
63
, ao contrário, fundamentam com maior rigor o seu objeto de estudo, o
discurso, pois conceituam a língua em sua integridade concreta e viva e não o contrário a
língua obtida pela abstração das relações dialógicas. Essa interpretação subsidia a idéia de que
não se intercambiam orações como se intercambiam palavras e grupos de palavras
(BAKHTIN, 2003, p. 278), ou seja, como unidade da língua, a oração é composta por uma
entonação gramatical, e a entonação expressiva surge no conjunto de um enunciado. A
expressividade, como categoria, está entrecruzada ao tema e aos gêneros do discurso,
constroem “arquitetonicamente” o discurso, que a palavra se revela exatamente no
momento de sua expressão, na sua expressividade.
A segunda categoria para este teórico é o tema e a significação. Tema é o sistema de
signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um
dado momento da evolução (BAKHTIN, 1988, p. 128), apóia-se em uma significação, porque
tem a função de unidade temática da enunciação. A significação é um aparato técnico para a
realização do tema, não existindo uma estabilidade nesse processo, pois a evolução dialética
reflete também na evolução semântica. A significação só é possível se o tema se fizer
presente, porque ele representa o y ou sobre o y de que se fala, ou seja, é a conseqüência da
enunciação. Assim, e por pertencer à parte não-verbal do enunciado, o que não quer dizer que
não receba nenhuma influência histórica dessa interação verbal, o tema não rompe com o
enunciado e nem com os elementos lingüísticos. Sendo de natureza semântica, adapta-se às
condições de um dado momento social.
Se para Bakhtin a palavra é dialógica por natureza, o seu sujeito também não poderia
deixar de sê-lo, visto que esse sujeito interage, por meio da palavra, com o outro em um
contexto qualquer; mas esse processo nem sempre se realiza entre enunciados, podendo
63 Segundo Bakhtin (1986, p. 99), [ . . . ] essas três divisões do sistema da língua formaram-se em função das
duas tarefas atribuídas à lingüística: uma heurística e a outra pedagógica [ . . . ].
45
também ocorrer dentro dos próprios enunciados ou dessas palavras
64
. Nesse sentido, torno a
enfatizar que o sujeito bakhtiniano é ideológico, pois ele não concebe o ser humano excluído
das relações com o outro, essa idéia centraliza-se em um significado, contrapondo-se ou não,
às vozes empregadas no enunciado no dado contexto. Esse enunciado sempre será uma
construção de sentido único, histórico e concreto.
Antes de passar para a conceituação de sujeito na teoria de Bakhtin, acredito ser
necessário esclarecer que a unidade de comunicação utilizada por sujeitos é a dos gêneros do
discurso. Texto, para este teórico (1992, p. 340), é a expressão de uma consciência que reflete
algo. Quando o texto se torna objeto de cognição, podemos falar do reflexo de um reflexo.
Isso explica o porquê da autoconsciência dialogar com a consciência de classe, reflete e
especifica os momentos mais profundos, as experiências tecidas na vida do sujeito
heteroglossia – o eu comigo mesma, o eu com o outro e o outro comigo. E são esses
momentos essenciais basilares”, socialmente construídos pela linguagem, que fazem com
que o sujeito bakhtiniano não seja um simples reprodutor de condutas sociais, mas um
transformador desse meio social em que vive (BAKHTIN, 2003).
E o sujeito, como locutor (BAKHTIN, 1992, p. 92), utiliza-se da língua para atender
as suas necessidades enunciativas concretas, pois se interessa pela “descodificação”
(compreensão) do signo em um dado contexto. São esses signos que servem de mediadores
para o sujeito se relacionar com a realidade. O sujeito da enunciação não é um produto de
discurso verdadeiro, ao contrário, ele cria um efeito de sentido de verdade, a palavra é um elo
imprescindível nessa arena social. Recorro mais uma vez à voz de Bakhtin (1986, p. 113):
Mas como se define o locutor? Com efeito, se a palavra não lhe pertence
totalmente, uma vez que ela se situa numa espécie de zona fronteiriça, cabe-
lhe contudo uma boa metade. Em um determinado momento, o locutor é
incontestavelmente o único dono da palavra, que é então sua propriedade
inalienável.
64 O julgamento do Habeas Corpus em questão foi distribuído, primeiramente, à 1ª Turma do Supremo
Tribunal Federal, e, por proposta da Relatora Ministra Ellen Gracie, remetido ao Tribunal Pleno (Plenário do
Tribunal) para conhecimento e julgamento, visto que ela tinha ciência de que o Ministro Maurício Corrêa
Supremo Tribunal de Justiça (STJ) traria ao Plenário daquela semana, um caso semelhante, discutindo a
questão. Assim, convergiriam os dois julgamentos, pois, conforme havia assegurado o Ministro-Presidente
daquele Tribunal, seria o caso semelhante o primeiro processo a ser chamado (julgamento com preferência).
Em vista disso, acredito ser viável relacionar o sujeito bakhtiano dialógico e ideológico ao sujeito
enunciador do voto analisado.
46
Sendo assim, esse sujeito leva em consideração o ponto de vista do receptor
(BAKHTIN, 1986, p. 113), que tem um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja
atmosfera constrói suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc. Locutor e seu
interlocutor se constituem um frente ao outro, inscrevem-se como sujeitos no processo de
auto-reconhecimento pelo reconhecimento do outro. O sujeito bakhtiano constrói-se com jogo
de reflexividade comunicativa (MARTINS, 1990), cuja primazia se encontra na
intersubjetividade, para depois se encaminhar à subjetividade. A subjetividade, no sentido
polifônico, dá-se na enunciação pelo enunciado, o qual, por sua vez, constitui o fenômeno da
interação social (BAKHTIN, 1992, p. 243) que se molda sempre à forma do enunciado que
pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma, ou seja, este sujeito
constrói-se, também, no exercício da cidadania.
Nesse contexto, o indivíduo ancora-se em três categorias, as quais possibilitam que
esse sujeito seja ideológico:
a) o ser humano não é concebido fora das relações que o ligam com o outro;
b) a sua ideologia está centrada no signo, na linguagem vozes, pontos de vista;
c) a palavra, dialógica por natureza, torna-se a arena, local onde várias vozes ouvem e
são ouvidas.
Assim, o significado das palavras se altera à medida que a sociedade se transforma.
São os conhecimentos entre sujeitos que originam a responsividade, cujo entendimento
perpassa pela compreensão da língua concomitantemente com a compreensão do enunciado.
Segundo Bakhtin (1986, p. 52),
[ . . . ] a aprendizagem da linguagem é já um ato de reflexão sobre a
linguagem: as ações lingüísticas que praticamos nas interações em que nos
envolvemos demandam esta reflexão, pois compreender a fala do outro e
fazer-se compreender pelo outro tem a forma de diálogo: quando
compreendemos o outro, fazemos corresponder à sua palavra uma série de
palavras nossas; quando nos fazemos compreender pelos outros, sabemos
que às nossas palavras eles fazem corresponder uma série de palavras
suas.
A teoria de Bakhtin tem como escopo uma sociedade heterogênea, que compreende
vários grupos de sujeitos que habitam e representam determinados contextos sociais: classe
sociocultural, idade, profissão, religião, etnia, origem geográfica, sexo, etc. Não há apenas um
grupo de sujeitos, mas grupos de sujeitos que interagem dialogicamente com outros grupos
47
sociais, privilegiando uma interação de grupos diversos, em momento simultâneo. O sujeito
bakhtiniano, portanto, está imerso nas tramas sociais e na subjetividade do meio social em que
vive e, muitas vezes, é movido por sua autoconsciência. Esta consciência sempre enunciativa,
constrói-se mediante os processos sociocognitivos apreendidos no contexto social. Essas
práticas simbólicas servem de pano de fundo ao dialogismo dos sujeitos.
O sujeito, ao se expressar por meio do texto, virtual ou não, requer uma resposta, uma
compreensão a esse texto. É nesse processo social que o sujeito bakhtiniano transforma a
realidade, a sua e a do seu grupo histórico-social
65
, transfigurando-se ou sendo transfigurado
por esse contexto. Nessa perspectiva sociocultural, o sujeito bakhtiniano se revela como ser
único, formado no encontro de outras vozes, entre elas, a minha voz e a minha escuta, que
ele não é a fonte do sentido, mas é constituído pelo sentido. (FLORES, 1999, p. 241). Enfim,
um sujeito que, à medida que vai dialogando com os seus pares, com o outro, vai-se
construindo ideologicamente.
Sociedade não homogênea, sujeitos e textos formadores das tramas sociais resultam
em um contexto diversificado, que abarca, histórica e socialmente, todo o material semiótico-
ideológico de uma cultura. (SILVESTRI; BLANCK, 1993, p. 86). A partir da pluralidade de
concepções desse contexto, surgem os gêneros do discurso.
4.3 Texto, Gênero do Discurso e Estilo
Bakhtin traz uma nova concepção de língua aos estudiosos da lingüística, e isso,
evidentemente, faz com que haja um novo olhar para aquele que a utiliza: surge um sujeito
ativo, que interage com o espaço em que atua. Esse sujeito tem um corpo, relaciona-se com o
meio social em que vive, é social, portanto o outro é fundamental nesta construção
“arquitetônica” do diálogo
66
. Assim, a linguagem é o fato social da interação verbal, já que
uma interdependência entre esse sujeito bakhtiniano e o seu contexto. Esses discursos
65 O sujeito do corpus analisado, tornou-se, mediante o seu voto, uma co-participante da construção que
modificou a realidade das mulheres agredidas sexualmente e de seus agressores: estupro tipificado como
crime hediondo.
66 Friedman (2005, p. 77) afirma que todo mundo tem uma necessidade inata de se relacionar com os outros.
Quando surge uma nova forma de as pessoas se ligarem entre si, elas superam qualquer barreira técnica,
aprendem novas linguagens. Temos um desejo inerente de nos conectarmos aos demais.
48
ancoram-se, quase sempre, no texto, que, por sua vez, tem no estilo um elemento de
identificação para classificá-lo quanto ao gênero do discurso.
4.3.1 Texto
O texto, para Bakhtin, deve ser compreendido como a voz de alguém com intenções
e pontos de vista que propõe uma relação ativa, de interação, entre o locutor e o ouvinte;
nesta perspectiva, o meu corpus atende ao conceito textual bakhtiniano, pois a voz do sujeito
enunciador parte do entendimento de que:
[ . . . ] as definições do direito necessitam também de sintaxe, e por isso os
juristas não apenas definem o direito como também alteram a estrutura das
exposições, dando aos conceitos uma ordem diferente da ordem herdada do
período anterior. (LOPES, 2004, p. 32).
Para Saussure (1998), o texto é uma manifestação da língua, a linguagem manifesta-se
antes do texto, ou seja, a função básica do texto é garantir a comunicabilidade da linguagem.
O avanço no estudo dos textos, daquela época para a atual, permite novos olhares ao sistema
lingüístico e, conseqüentemente, do texto. A função única do texto, a comunicativa, avança e
assume também o cargo de gerador de significados. O texto não é mais um transmissor
passivo de significado, mas um fenômeno dinâmico, um criador de sentidos, assim, surge o
interlocutor, o outro, aquele que põe em ação a compreensão do texto (BAKHTIN, 1997).
A Lingüística Textual
67
avança na definição de um texto que em oposição à
Lingüística tradicional (que tinha como unidade superior a oração), acredita ser possível ir
além dos limites da frase –, que reserva um espaço relevante em seus estudos à produção
textual ao seu sujeito e à situação da comunicação. É neste espaço da hermenêutica,
acredito, que o Direito e o Estado possam dialogar entre si, que é no Estado que o Direito,
como Ciência
68
, deve realizar o seu objetivo maior que é a justiça, construindo sujeitos cada
67 A Lingüística Textual teve efetivo avanço na sociedade brasileira a partir dos anos 80, com os estudos de
Koch, Fávero e outros. Atribui-se a Corsériu a origem desse termo; no entanto Weinrich foi um dos
precursores ao usá-lo com o atual entendimento lingüístico.
68 Estudos recentes mostram que os sujeitos possuem um saber específico que os capacita a uma interpretação
mais clara no meio social em que interagem (CIAPUSCIO, 2003). Neste caso, o magistrado pode aproximar
a nossa Constituição ao cidadão e vice-versa.
49
vez mais sujeitos. O novo entendimento (KOCH, 2001, p. 16) tem um novo olhar que se
relaciona [ . . . ] com o processamento sócio-cognitivo de textos escritos e falados.
A mídia, no entanto, sinaliza que a política brasileira ainda persiste em manter o
Direito como deficiente instrumento de controle desta mesma sociedade pelo Estado, pois a
lei é um dos principais artefatos sociais do homem. Essas leis nascem da conduta social e se
institucionalizam.
Tendo em vista a contribuição da Lingüística Textual na análise do texto escrito, e na
análise do corpus desta pesquisa, retomo alguns tópicos da sua história. quase quarenta
anos, Weinrich, um dos precursores dessa ciência, viu o texto como uma atividade verbal
consciente e interacional, visando a atingir a condição de sentido. A linguagem deixou de ser
uma questão instrumental para atingir a condição de sentido; segundo esse teórico, ela não
interpreta da mesma maneira funções de língua com funções de texto. A língua funciona nos
processos comunicativos de uma sociedade, ou seja, nos aspectos lingüísticos, interagindo
com os não-lingüísticos.
Para a Lingüística Textual as estruturas semântico-pragmáticas têm um início e um
fim interligados com o seu contexto social, o que possibilita ver o contexto situacional, o
cultural e o sócio-cognitivo utilizarem-se da língua para estudar o funcionamento do texto
como um evento comunicativo no qual convergem ações lingüísticas, cognitivas e sociais.
(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1997, p. 47). Assim, vêem muito além da materialidade do
texto.
Os estudos mais recentes sobre a categoria de texto
69
indicam novas definições de
textos:
[ . . . ] são lingüística, conceptual e perceptualmente, formas de cognição
social e que seu papel, no contexto da evolução do conhecimento, é o de
constituir-se em ponto de partida e de chegada para ancoragem da
69 Antos e Tietz (apud KOCH, 2001, p. 18) usam a palavra textos no lugar de texto, pois afirmam que, apesar
do conhecimento apresentado em cada texto individual, esse necessita de outros domínios tais como
inferências, saber intertextual, pressuposições para constituir-se como tal. Além disso, afirmam que os
textos fornecem formatos para a arquitetura lingüística (verbal). Para mais detalhes sobre esta obra, ver
próxima nota.
50
Lingüística de Texto no quadro de uma teoria da evolução cultural.
(ANTOS; TIETZ, 1997, apud KOCH, 2001).
70
Nessa esteira de conceitos, parti e ancorei-me teoricamente para analisar o texto de
linguagem jurídica que me serviu de corpus a esta pesquisa, possibilitando-me um diálogo
lingüístico-discursivo mais estreito com outros discursos, dando-me também o olhar
intersubjetivo necessário à interpretação e argumentação do voto amparado no texto de Lei:
art. 1° da Lei n° 8.072/90
71
. Para Bakhtin (1988, p. 106), [ . . . ] todas as palavras e as formas
estão povoadas de intenções.
Retorno à idéia de que tanto o discurso oral
72
quanto o discurso escrito fazem parte do
gênero jurídico. No primeiro, o magistrado faz-se presente em audiências e júris; no segundo,
o texto escrito
73
valida a prática do Direito. Como foi dito anteriormente, um discurso não é
efetivado apenas por uma função, mas por uma predominância de certos elementos e de
sentidos que me autorizam, como lingüista, a categorizar um texto, pois o que faz um texto ser
um texto não é a sua gramaticalidade, mas sua textualidade, cuja importância está em
assegurar a relevância da seqüência dos enunciados em um texto
74
. Assim, um processo
lingüístico produz uma atividade discursiva se houver uma intenção e uma aceitação por
parte do receptor textual (leitor, ouvinte, espectador); além disso, quanto mais específico for o
contexto de comunicação, mais os conceitos se tornam passíveis de terem sentido.
É o meio cultural resultado histórico de forças sociais e políticas que registra a
evolução social do enunciado, pois o sujeito, ao selecionar a linguagem em um texto,
normalmente altera o seu sentido. Para Bakhtin (1997, p. 150):
O homem está rodeado pelo mundo, pela sua habitação, pela natureza, pela
paisagem vive no interior do mundo e nele atua ; ao seu redor
70 ANTOS, Gerd; TIETZ, Heike. (Hrsg.). Die Text als Konstitutiosformen von Wissen Thesen zu einer
evolutionstheoretischen Begrüngung der Textlinguistik Zukunft der Textlinguistik. Traditionen,
Transformationen, Trends. Tübingen: Niemeyer, 1997. (Apud KOCH, 2001, p. 17).
71 A Lei dos Crimes Hediondos declara o art. 213, delito de estupro e sua combinação com o art. 223 em
hediondos, impossibilitando a progressão carcerária. A pena deverá ser cumprida integralmente fechada.
72 Segundo Jubran (2006, p. 21), a Pragmática, a Análise da Conversação e a Lingüística do Texto fornecem os
marcos a visão do texto falado como uma atividade estruturada, que apresenta regularidades próprias de
organização, sustenta a possibilidade de uma abordagem gramatical do texto.
73 O corpus desta pesquisa, o voto, é analisado sob o viés da análise discursiva.
74 Beaugrande e Dressler (1997) lançam mão de sete fatores constitutivos responsáveis pela textualidade de um
discurso no processo interativo: coerência, coesão, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade,
informatividade e intertextualidade.
51
encontram-se as massas fracas do mundo, encontram-se dentro do mundo
exterior e não em uma fronteira.
O texto bakhtiniano está no terreno do enunciado, do dado e do criado, não é,
portanto, um objeto dado, muito menos uma questão fechada. O valor do sentido do texto está
ancorado na dimensão histórico-cultural do tempo e do espaço. E o conceito de texto
perpassado na obra de Bakhtin não poderia ser diferente, pois os seus textos estão
comprometidos com a ética da ação coletiva e em saber como a sociedade dialoga com os
seus sujeitos.
4.3.2 Gêneros do Discurso
Com efeito, falar de gêneros, em Lingüística, pelos menos pretensamente, é
fazer ciência, e com Aristóteles era, declaradamente, fazer arte (com a
poética e com a retórica), ao mesmo tempo que fazer filosofia (no próprio
exercício da dialética). (NEVES, apud GOMES; GOMES, 2006, p. 57).
Bakhtin, ao afirmar que a linguagem é quase sempre adquirida na interação verbal,
ratifica o entendimento de uma das suas categorias mais relevantes todo enunciado
75
é um
elo na cadeia da comunicação discursiva, e esse laço garante às atitudes responsivas e às
ressonâncias dialógicas uma realidade concreta. Esse compreender do eu comigo mesma, do
eu com o outro e do outro comigo, pressupõe um meio social toda a enunciação bakhtiana é
um fazer coletivo , cuja alteridade de sujeitos não cessa de determinar e de controlar as
reações do homem ao longo de toda a sua vida.
O Círculo de Bakhtin entende a linguagem como constitutiva e não-constituída, e para
que ela possa ser construída é necessário estabelecer uma ligação muito estreita entre o
espaço-temporal e a atividade em que o sujeito intervém como sujeito social, que a
linguagem se constitui com essa atividade social. Hodiernamente, em virtude da gama imensa
de enunciados, principalmente após o advento da mídia, é necessário mais cautela ao
classificar-se a produção semiótica do homem como sujeito social. Essas relações são
relevantes, porque, à medida que eu amplio o meu contexto/mundo social, o outro também
75 O mesmo enunciado, dependendo da maneira como a estrutura discursiva é postulada, pode dar lugar a
diversas enunciações. O corpus analisado é um exemplo dessa diversidade.
52
avança nessa interação, surgindo dentro desse contexto, muitas vezes, ações coletivas
representando determinados segmentos sociais
76
.
Como nem todos os contextos são iguais, o homem normatizou o uso da linguagem
mediante significações e apreciações que tivessem sentido aos sujeitos de um determinado
contexto, pois os elementos históricos, sociais e l
53
A abordagem de Bakhtin (2003, p. 88) sobre gêneros
77
do discurso intensifica a
posição responsável do sujeito no acontecimento do existir, que toda enunciação do mesmo
é uma pequena construção ideológica, e o seu ato é em pequena escala, uma criação jurídica
e moral. Dessa maneira, o discurso, como enunciação, possibilita ao coletivo de uma
sociedade, o eu e o outro, conhecer esse sujeito enunciador do respectivo enunciado, e o
contexto social de que faz parte. Evidentemente esse caminho de escolhas feitas pelo sujeito
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua enfim, das palavras, é determinado
peremptoriamente pelas mesmas leis socioeconômicas que organizam, temporal e
geograficamente, uma determinada sociedade.
Dessa maneira, todos esses fenômenos fonético, léxico e gramatical integram o
sistema de uma língua mediante a concepção de gêneros do discurso
78
. A teoria bakhtiniana
sinaliza que a interpretação correta do processo dialógico propicia ao sujeito da interação
verbal uma compreensão metodológica mais clara à questão léxico versus gramática e léxico
versus estilística, cujo rigor teórico resulta da clareza conceitual de duas categorias relevantes
nos estudos do Círculo de Bakhtin: enunciado e gêneros do discurso.
Em meio a essas concepções, possibilita-me dizer que o sujeito aprende a construir
enunciados, quase simultaneamente ao momento em que aprende a falar. A aquisição da
linguagem, nos dias de hoje, não consiste apenas no falar, mas principalmente no falar em
diferentes gêneros, por isso onde estilo, gênero (BAKHTIN, 2003, p. 268). Os gêneros
do discurso, tanto os estilos em geral quanto o individual, organizam os discursos, o meu e o
do outro, na estrutura arquitetônica da teoria.
Assim, a teoria bakhtiniana vê nos gêneros do discurso formas (mais ou menos)
estáveis de enunciados, e os classifica em dois tipos:
a) primário: conhecido também como gênero simples, geralmente fenômenos orais
que expressam a linguagem da vida cotidiana, tais como: reuniões familiares e
sócio-político-culturais. Esse tipo de gênero refere-se à posição responsiva do
enunciado; nele uma relação de alteridade na interação verbal espontânea entre
sujeitos; por isso ele pode integrar os gêneros discursivos secundários. O discurso
primário se relaciona diretamente com a realidade, pois se constitui na
77 Gênero deriva do latim gebos/generis: origem, tronco, semelhanças, família (FARIA, M. C. B., 1995).
78 Teoria contrária a de Chomsky, por exemplo.
54
comunicação discursiva de um contexto. A réplica do diálogo cotidiano e a
correspondência escrita são exemplos deste discurso;
b) secundário: conhecido também como gênero complexo, são fenômenos que
expressam a linguagem da vida na arte e na ciência, transmutando os gêneros
primários em uma comunicação verbal, simulando o diálogo. A escrita, no
discurso secundário, é relativamente mais desenvolvida e organizada. O teatro e a
teoria de um trabalho científico servem de exemplos a este discurso.
Os gêneros do discurso são mutáveis, flexíveis, no entanto isso não impossibilita certa
estrutura arquitetônica estável, já que uma das suas atribuições é favorecer o sujeito a
reconhê-lo para poder dialogar com as esferas sociais que se apresentam no dia-a-dia. Ao
escolher um gênero, o sujeito já tem definido o contexto em que essa ação discursiva será
usada, pois segundo Bakhtin (2003, p. 286):
[ . . . ] os gêneros do discurso são, em comparação com as formas da língua,
muito mais fáceis de combinar, mais ágeis, porém para o indivíduo falante,
não deixam de ter um valor normativo: eles lhe dão dados, não é eles que os
cria.
Este intuito discursivo reforça a certeza de que a alternância de sujeitos falantes,
locutores, ouvintes determina as fronteiras de um enunciado. Além disso, compromissa-se
com os gêneros do discurso, estrutura os dizeres e os saberes dos sujeitos dialógicos, do eu e
do outro, que interagem no mundo, na vida de cada um, como sujeito cada vez mais sujeito.
Compreender os gêneros do discurso é fundamental para empregá-los com competência em
uma interação verbal, que eles são unidades convencionais. Afinal, são os enunciados que
possibilitam a vida a entrar na língua.
Os gêneros do discurso têm como pano de fundo os elementos constitutivos: a) tema
o que é dizível por meio dele; b) estrutura composicional a expressividade, a entonação, a
forma de organização do dito; c) estilo os meios lingüísticos que possibilitam o dizer. Entre
esses três elementos constitutivos do discurso, os dois primeiros tema e oração foram
anteriormente comentados
79
.
4.3.3 Estilo
79 Ver p. 44.
55
O estilo pressupõe uma seleção, enquanto que a seleção promove e
determina a personalidade do falante (sua visão de mundo, seus ideais,
valores, emoções, etc.). (BAKHTIN, 2003, p. 164).
O estilo se faz presente no momento em que um falante realiza uma seleção entre os
meios de expressão lingüísticos a serem usados no seu discurso. Essa seleção só pode ser feita
pelo falante e somente por este mesmo falante no tempo-espaço do seu enunciado.
56
57
possibilitando, dessa maneira, compreender e usar a ngua no contexto social. E nessa
58
5 INTRODUZINDO O DISCURSO JURÍDICO
Com a ajuda da linguagem criam-se e formam-se os sistemas ideológicos, a
ciência, a arte, a moral, o direito, e ao mesmo tempo a linguagem cria e
forma a consciência de cada homem. (SILVESTRI; BLANCK, 1993, p.
242).
O discurso jurídico tem como objeto interpretar textos legais que, muitas vezes, são
formados por palavras constituídas de vaguezas, de ambigüidades, o que não desobriga os
operadores e os interpretadores do direito distanciarem-se da norma culta da Língua
Portuguesa, pois segundo Nascimento (1997, p. 49):
[ . . .] não advogado sem gramática, visto como a intelecção, ou
interpretação de leis, sentenças, acórdãos, contratos, escrituras e
testamentos se reduz à análise do texto à luz da gramática [ . . . ].
Assim, não é mero dito popular a afirmação que um bom advogado é avaliado pelo seu
desempenho lingüístico escrito e falado –, pois o art. 156, do Código de Processo Civil,
determina em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo,
reforçando a idéia que o uso da ngua portuguesa é pressuposto na lide do Direito
81
, o que
não quer dizer rebuscamento vocabular, mas clareza e correção. Nessa mesma esteira, como
os demais gêneros do discurso têm determinadas regras e procedimentos, o discurso jurídico
também passa por esse processo, ou seja, características próprias a essa interação: constitui
juridicamente a sociedade e quem o interpreta é um sujeito histórico, por isso mesmo, com
uma vida anterior [ . . . ] que se cria em estreita dependência com os meios que lhe servem
para expressá-la. (SILVESTRI; BLANCK, 1993, p. 242).
Se interpretar é compreender, somente pela compreensão é possível se interpretar. O
sujeito que julga, o que acusa e o que defende, são integrantes de um mesmo mundo
lingüístico e, por isso mesmo, não podem buscar uma compreensão de um texto legal a partir
de palavras isoladas, senão pelo seu conjunto. O significado da lei não é autônomo, ele vem
de fora e é atribuído pelo intérprete, o que faz com que a hermenêutica auxilie os
interpretadores da lei a fazerem do discurso jurídico um instrumento de transformação social.
81 Reale (apud SABBAG, 2006, p. 20) aconselha três pré-requisitos ao futuro advogado: a) aprender a Língua
Portuguesa; b) pensar o Direito como uma ciência que envolve responsabilidade do advogado por aquilo que
ele diz e defende; c) preparo adequado, conhecimento técnico da matéria.
59
O espaço-tempo de uma sociedade inquestionavelmente traz mudanças aos tipos de
discurso que interagem no seu meio social. O paradigma do discurso jurídico tem sido
constantemente questionado na mídia atual, seja pelo alto salário do Poder Judiciário em
relação aos demais funcionários públicos do Brasil, como também pelo novo discurso e
postura que alguns magistrados estão assumindo perante a sociedade. Assim, não basta o
juiz apenas aplicar as leis estratificadas nos códigos, ele precisa zelar para que o seu
convencimento quanto à licitude ou ilicitude do objeto a ser julgado, esteja em consonância
como o sentimento de justiça predominante no meio social em que viva. A realidade
contemporânea necessita de magistrados que interpretem o Direito mediante uma nova
justiça: decisões com linguagem clara, menos formalismo retórico, maior interação
multidisciplinar, enfim, tornar o Estado democrático mais eficaz.
5.1 Voto: percurso ao acesso à justiça
Retomando o objetivo desta pesquisa, analisar a linguagem jurídica pelo viés
lingüístico-discursivo, busco a concepção de que tanto o discurso oral quanto o discurso
escrito podem fazer parte do gênero jurídico. Os operadores do Direito utilizam-se do
discurso oral nas audiências sustentação oral nas sessões no Tribunal de Justiça e no
Tribunal do Júri
82
; o discurso escrito, o que valida a prática e garante a efetividade e
implementação do Direito, é expresso pela sentença, o ato de aplicação do direito ao caso
concreto, que pode ser assinada por magistrados, representado nesta pesquisa pelo corpus
do voto. Posteriormente, o decisum sentença (decisão terminativa do juiz de primeiro grau,
o qual sentencia sozinho) ou acórdão (decisão emanada pelo órgão judicial colegiado, dentre
eles: Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Federal, Tribunal Superior de Justiça, Supremo
Tribunal Federal, etc.) – é publicado no Diário Oficial do Estado ou da União, dependendo do
órgão judicial que exalou a decisão, e as partes intimadas da decisão, por exigência do
princípio da publicidade.
82 No Tribunal do Júri, o Conselho de Sentença rgão colegiado, pois há mais de um julgador) é formado por
sete pessoas físicas idôneas, cujo decisum é exteriorizado por meio de sentença fundamenta nas respostas
dadas pelos jurados ao questionário feito pelo Juiz de Direito que preside a respectiva sessão.
60
O voto equivale à fundamentação na sentença, pois é a parte onde o dado prova
coletada ao longo da dilação probatória, como depoimentos, documentos, perícias, etc., faz-se
presente pelas vozes que habitam a sentença, o que subsidiará a decisão judicial. Sendo assim,
a tarefa principal de um voto é manifestar uma posição sobre determinado assunto, por
pessoas devidamente credenciadas, neste caso, os magistrados desembargadores ou
ministros, dependendo do Tribunal a que estão vinculados.
O voto aqui analisado é resultado de um questionamento feito pelo advogado de um
réu ou do Ministério Público, mediante recurso extraordinário (quando é dirigido ao Supremo
Tribunal de Justiça, chama-se especial). A partir desse momento, provocado por um sujeito, o
Supremo Tribunal Federal, colegiado composto por onze ministros, entre eles o sujeito
enunciador deste corpus, discute a constitucionalidade da vedação da progressão de regime
prisional aos crimes hediondos, decidindo pela edição dessa jurisprudência: o estupro é crime
hediondo
83
.
Não um consenso quanto à natureza do termo sentença entre os processualistas,
pois alguns desses estudiosos afirmam que somente o juiz de primeira instância pode
sentenciar (MENDONÇA, 2000). É a decisão do juiz singular, ou seja, decisão de um único
julgador. Aqui, busco apenas o entendimento de que é o juiz o sujeito legalmente autorizado a
pôr fim a um processo, decidindo ou não o seu mérito. Busco em Nassif (2005, p. xxi) o
conceito de sentença:
[ . . . ] a sentença penal é o ato de reduzir a um espaço documentado, estrito,
oficial, praticado por juiz competente, toda a gama de circunstâncias e
emoções visíveis e descritíveis informadas com as garantias constitucionais
do processo, ocorrentes em um fato praticado com necessária intervenção
humana, que a lei traduz como crime, para o efeito de confirmar ou
desconstruir, impondo sanções legais, o estado de inocência do cidadão-
acusado.
Considerada texto ou gênero discursivo, a sentença tem em si constitutivamente a
sociedade em que está inserida e, por isso, é compreendida como qualquer outro texto, pois
juridicamente ela é um continente de verdades. Ou produz verdade ou transforma verdades.
(NASSIF, 2005, p. 193). Essas verdades são compartilhadas entre os sujeitos de uma
sociedade mediante as palavras que, segundo Bakhtin (1988, p. 106):
83 A Lei dos Crimes Hediondos. Ver p. 12.
61
[ . . . ] têm o aroma de uma profissão, de um gênero, de uma corrente, de um
partido, de uma certa obra, de uma pessoa, de uma generalização, de uma
idade, de um dia, de uma hora. Cada palavra tem o aroma do contexto e dos
contextos em que se vivido intensamente a vida desde o ponto de vista
sócia.
Como foi dito anteriormente, um discurso não é efetivado apenas por uma função, mas
por uma predominância de certos elementos e de sentidos que autorizam os lingüistas a
categorizarem um texto. A sentença, independente de ser cível ou penal, é composta por três
partes essenciais (MENDONÇA, 2000):
a) relatório contém a síntese do processo, é aqui que o juiz relata o curso do
processo, verificando a sua regularidade, bem como, quando necessário, pontua as
peculiaridades do caso concreto;
b) fundamentação parte relevante da sentença. É protegida pelo princípio
constitucional da obrigatoriedade da fundamentação da sentença para justificar a
decisão judicial, evitando, assim, a arbitrariedade do juiz
84
. O magistrado só
continuidade a um processo se ele preencher alguns quesitos lógicos, organizar as
especificações e as alegações apresentadas pelas partes componentes do processo.
A fundamentação além de constituir a motivação da sentença, representa a garantia
do homem, como sujeito cada vez mais sujeito, contra eventuais violações de
direito. É aqui que o juiz confronta as questões de direito com as de fato, por meio
da análise das provas e da respectiva interpretação da lei, demonstrando o seu livre
convencimento motivado que o levará à aplicação do dispositivo legal cabível ao
caso julgado. É neste momento que o magistrado traz o lume a jurisprudência e
posições de teóricos que subsidiam esse convencimento, apoiando-o na decisão
tomada. É importante ressaltar, segundo Didier Jr. ([entre 2001 e 2006], p. 8), que
é também nesta oportunidade que [ . . . ] o julgador deverá expor sua decisão e os
motivos por que tais argumentos e provas não o convenceram.
c) dispositivo apresenta a decisão do magistrado. Apesar de a estrutura de uma
sentença ser padronizada, inclusive sujeita a se tornar nula se não apresentar esses
três requisitos essenciais, não impede que o estilo lingüístico de um juiz
85
possa
ser identificado, que uma escolha nos recursos gramaticais, lexicais e
84 Esta obrigatoriedade de cunho constitucional advém da contraposição ao absolutismo reinante por parte do
movimento iluminista, ou seja, protege a garantia fundamental do devido processo legal, neste caso em
especial, o princípio do contraditório e da ampla defesa.
85 Sentença em forma de poesia, não deixando de apresentar os elementos estruturais comunicativas que a
identifique como gênero jurídico. (ANEXO C e ANEXO C1).
62
composicionais expressos no seu enunciado. Nesse requisito da sentença, o juiz,
após argumentação, assume a sua tomada de decisão, sendo que essa interpretação
judicial não pode deixar margens à dúvida
86
, porque necessidade de uma
integração coerente entre a decisão e sua motivação. É a decisão propriamente
dita, final, do processo. Dizendo de outra maneira, é a aplicação do dispositivo
legal cabível ao caso, tendo em vista os argumentos apresentados e a convicção do
magistrado em relação ao fato advindo do processo.
Busco a voz de Bakhtin (1997, p. 95) para ratificar este entendimento:
Para o falante nativo, a palavra não se apresenta como um item no
dicionário, mas como parte das mais diversas enunciações dos locutores A,
B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria
prática lingüística.
O contexto jurídico vive um paradoxo: ou os interpretadores da lei mantêm-se
engessados no texto legal, advinda de um código que não contempla a sociedade brasileira,
ou tentam deixar o papel de simples aplicadores da lei, por intermédio da sentença,
identificando as peculiaridades e interpretando a lei à luz do caso em questão. Nessa situação,
o juiz utiliza-se das regras de hermenêutica para suprir as lacunas e imperfeições contidas na
lei.
A sentença é um documento oficial, é respaldada pelo Estado, tem uma estrutura
textual definida e necessita atender, em seu trâmite, certos procedimentos predeterminados.
Assim, a sentença tem duas funções a cumprir no contexto social. Primeiro, é declarativa, é
aceita pelos litigantes por ter essa função pública, o que não impede que as partes recorram
mais tarde a essa decisão; tem o reconhecimento formal, concreto de um direito assegurado
pela ordem jurídica. Segundo, a sentença possibilita ao magistrado uma interpretação
particular à lei, conforme o seu entendimento no litígio julgado.
Sendo assim, independente do viés de valor que o magistrado for dar a uma sentença,
ela é sempre declaratória. Às vezes, essa interpretação particular à lei faz com que surja a
jurisprudência conjunto de decisões e interpretações feitas pelos Tribunais Superiores,
adaptando as normas às situações de fato. Segundo Lopes (2004, p. 94), a jurisprudência é
86 Sob pena das partes apresentarem o recurso de Embargos de Declaração, a fim de que o magistrado
esclareça eventual omissão, obscuridade ou contradição.
63
uma ciência, saber ou conhecimento do direito, que se presume que está de acordo com a
justiça. É o caso do voto analisado nesta pesquisa.
O voto constitui um gênero textual pouco estudado na área da Lingüística e conhecido
por um público específico
87
. Nessa linha, leitor que não detenha conhecimento desse gênero
escrito tem dificuldade para entender o que subjaz ao discurso jurídico. Como exemplo, o
leitor que desconhece o discurso aqui analisado não poderá interagir na leitura como sendo
um processo de duas mãos – no qual leitor/ouvinte e autor/falante têm o mesmo conhecimento
de mundo. Aqui, apenas uma rua de uma o só, ou seja, de um processo unilateral: o
conhecimento dos operadores e dos interpretadores do Direito, além dos interessados nesse
discurso. Em um primeiro momento, só os leitores com conhecimento jurídico estabeleceriam
relação entre as leis citadas no voto e o que o Estatuto da Criança e do Adolescente ocasionou
ao Código Penal
88
, na lei que se refere ao estupro. Segundo Bakhtin (1997, p. 100), [ . . . ] a
palavra nativa é percebida como um irmão, como uma roupa familiar, ou melhor, como a
atmosfera na qual habitualmente se vive e se respira.
A partir do estudo da hermenêutica, alguns magistrados começam a direcionar as suas
sentenças à fenomenologia social, possibilitando uma interação mais estreita com os sujeitos
desses processos judiciais. Afinal, nenhum texto é neutro, deixa-se aparecer, sempre, dentro
do contexto textual a história do sujeito que a escreve. Recorro mais uma vez à voz de Nassif
(2005, p. 113):
Talvez de tudo dito, resulte um nada, em face da linguagem que, pela
terminologia empregada, renuncia à força informadora do direito pela sua
decisão, inibindo, o que é mais grave a ampla defesa, uma vez que a
ininteligibilidade intimida, constrange, humilha o cidadão, além de cassar-
lhe o direito defensivo pessoal e daí, obstar o direito de acesso à justiça.
Acredito que a teoria gadameriana, cujo objeto de estudo é a hermenêutica,
subsídios para esta pesquisa justamente pelo enfoque de compreensão e da participação
explicativa da pluralidade de vozes e do entendimento de perspectiva, geralmente através do
tempo, do princípio histórico de efeito
89
. Para uma rápida visão do que a hermenêutica
87
Dentre esses cito Virginia Alves (2003) e Ricardo Cavaliere (20003).
88 O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.069, disciplinou a idade que corresponde às crianças e aos
adolescentes, informação importante para o juiz formar a decisão em sua sentença.
89 Penso ser interessante desmistificar a idéia de que só a lingüística possa refletir sobre a linguagem.
64
contribui para os estudos de textos jurídicos, creio ser relevante fazer aqui uma breve
apresentação do pensamento de Gadamer.
5.2 Gadamer: capacidade de ouvir, capacidade de compreender
Ter a capacidade de ouvir é ter a capacidade de compreender. Este é o
verdadeiro tema de minhas reflexões. (GADAMER, 1998, p. 71).
Gadamer (1998) deixa como legado a historicidade da interpretação, do
esclarecimento
90
; a necessidade de uma consciência hermenêutica; a compreensão como
participação de um sentido comunitário, lingüisticamente constituído. Para este teórico (1998,
p. 438), o papel da hermenêutica é explicar o milagre da compreensão, que não é uma
comunhão misteriosa das almas, mas uma participação num sentido comum [ . . . ]. No caso
desta tese, é a leitura sistemática do ordenamento jurídico, e não do texto frio de um artigo
legal isolado.
E é nesta esteira a pressuposição da necessidade de tomar conhecimento de alguma
opinião, a do outro, sem a obrigatoriedade de compartilhá-la que a teoria gademeriana me
deu aporte a esta pesquisa. Ao debruçar-se sobre esta questão, Gadamer percebe que essas
opiniões, a minha e a do outro, possibilitam uma multiplicidade de entendimentos arbitrários,
e para tentar evitar essas multiplicidades de entendimentos, pontua a necessidade de um
elemento padronizado como referência para a alteridade do texto em comum. Assim, afirma
este teórico (1999, p. 405) que a tarefa hermenêutica se converte por si mesma num
questionamento pautado na coisa
91
[ . . . ], ou seja, a constituição de sentido não é fruto de
uma subjetividade isolada e a-histórica
92
, e sua explicação pode ser compreendida
mediante a experiência de mundo - do eu e do tu, as quais advêm dos nossos costumes e das
nossas tradições, possibilitando a hermenêutica fazer jus à historicidade da compreensão.
(GADAMER, 1998, p. 400).
90 Na língua original, o alemão, a palavra grafada é Aufklärung. Optei por usar a expressão esclarecimento,
mantendo assim idêntico elemento morfo-semântico da etimologia latina: extraneus, i.
91 Res (coisa), palavra de origem latina; os romanos atribuíam o nome de res a tudo que existia na natureza.
Como exemplo, cito Res publicae: coisas públicas. Objetos pertencentes ao estado, como escravos, animais,
rios, praças etc. (LUIZ, 2000, p. 264).
92 Levando-se em consideração a gramática tradicional, ter-se-ia de escrever aistória, mas por se tratar de um
neologismo e para evitar que o leigo leia a-is-tó-ria, escolhi grafá-la assim.
65
Gadamer (1998, p. 402) retoma a idéia de que cada texto tem de ser compreendido a
partir de si mesmo, o esclarecimento começa com um conceito prévio que será substituído por
outros mais adequados:
Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo
apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelimeia um sentido do
todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem o
texto o a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um
sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste
precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que
ir sendo constantemente revisado com base no que se conforme se
avança na penetração do sentido.
O social é uma categoria relevante na teoria gadameriana, pois todos nós seres
históricos pertencemos à humanidade histórica, trouxemos conosco a reflexão da família e
da sociedade à qual pertencemos. Em decorrência da construção desse movimento, os
preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser
[ . . . ] (GADAMER, 1998, p. 416). Eles sinalizam a importância de ver a consciência
histórica do homem apenas como um momento novo dentro do que sempre tem sido a
relação humana com o passado [ . . . ] (GADAMER, 1998, p. 424-451), e não como algo que
acaba de ser-lhe agregado, ou melhor, [ . . . ] ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no
saber-se.
Para esse autor, o movimento da compreensão é circular, visto o entendimento partir
do global para o particular do todo à parte, e num girar do individual para o todo. Essa
regra vem da antiga retórica
93
, pois segundo Gadamer (1998, p. 436), a hermenêutica
moderna transferiu da arte de falar para a arte de compreender. A hermenêutica
94
é
compreender-se na história pensar sobre a tradição (cuja compreensão é a mesma do senso
comum); é compreender-se na natureza – pensar sobre a subjetividade.
Esse teórico tem conceitos diferentes para jurista e para historiador jurídico – o
primeiro toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado. A tarefa
93 Muitos estudiosos do Direito afirmam que, apesar dos séculos que separam a era atual da aristotélica, a
retórica ainda tem estreita ligação com a argumentação, fazendo com que seja ainda presente no discurso
jurídico.
94 A hermenêutica advém da mitologia grega herma hermeneuein, cuja palavra deriva do nome Hermes
filho de Zeus e da ninfa Maia; designava os montes de pedra que indicavam caminhos. Segundo Ferreira
(2004, p. 17): Hermes era astuto, objetivava convencer, ao invés de impor sua vontade, era o emissário que
transmitia aos mortais informações, notícias e ordens provenientes dos habitantes do Olímpio, constituindo
o canal de comunicação entre os imortais e os mortais.
66
jurista de esclarecer consiste na concretização da lei em cada caso, ou seja,nc.3015(c)3.74(33 0 0 cm B4262t)-2.1643244]TJE(i)-2.16436o]TJE(d)-0.295585(a19(j)-2.163497(e25q448-Td[(l)--2W n4.16192(t)-2.165584(r)2.805(i)90.2009(c)290.19)-0.1460(p(r)2.805(i)(a)3.74(r)-(s)-1.22997.74(s)-1.2312(ç)-2.16436ã.295585(n)-10.3015.)-10.377929(c)290.19)-Occl cccste ct,d.3015(c)etu t,cs,nce a80439(e)3.74(t)-e ecrneietcrh(u)-0.295585( )-90.1997( )-100.206(c)302.1643.74(s)-1.2312(o)-0.295585(,)-10.1525ncrti
67
se na linguagem e em alguns casos pela interpretação de textos. A discursividade
97
da
compreensão é a formalização consciente da história de fato.
Na hermenêutica gademeriana, nesse processo de conversação perguntas e
respostas –, o relevante é saber fazer a pergunta visando à verdade
98
, mesmo que não haja
resposta, porque o escopo da pergunta é o de abrir e o de manter abertas possibilidades em
que eu e o outro possam experimentar a pretensão das verdades. Gadamer (1998) conceitua
diálogo como sendo o processo de colocar-se no lugar do outro, reconhecendo que essa
circularidade, eu e o tu, evidencia a co-presença do todo e de suas partes.
Compreender-se o outro, na análise hermenêutica, é ir muito além do querer colocar-
se no lugar do outro. É pôr-se de acordo sobre algo, com a coisa. É pela linguagem que o
entendimento sobre a coisa fica acordada entre os interlocutores, havendo um entendimento
discursivo
99
entre a coisa e os seus interlocutores. Os interlocutores de uma conversação
apóiam-se na lingüisticidade para estabelecer um diálogo
100
. Quando essa discursividade não
é a mesma dos falantes entre si, cada discurso procura impor-se ao outro, na tentativa de se
transformar num elo discursivo unificador entre esses interlocutores
101
.
Assim, o processo de compreensão acima descrito torna-se mais fácil quando existe o
devido esclarecimento a respeito deste processo, evitando dar ao dito um sentido mais literal,
que o pensar, o interpretar, é feito mentalmente. Toda conversação pressupõe que seus
interlocutores conheçam a linguagem na qual o discurso é realizado, evitando-se traduções.
Assim, o problema hermenêutico está no correto acordo sobre determinado assunto
lingüisticamente veiculado: os interlocutores desse diálogo precisam ter um mesmo
97 Optei por usar a terminologia discursividade ao invés de lingüisticidade usado por Gadamer já que para
mim o entendimento desse termo é o mesmo do que tenho para discursividade. Em estudos modernos,
língua e linguagem não têm mais o mesmo conceito.
98 Gadamer diferencia o saber moral phronesis, cujo objetivo é encontrar a solução mais adequada à situação
concreta, do momento da episteme do saber teórico. Dizendo de outra maneira, este saber refere-se à
técnica, é um saber aprendido sobre algo; aquele, o saber moral, é ter prudência para não ocorrer uma ação
irrefletida, é um “saber sobre si”. Arrisco-me a dizer que Gadamer prioriza a verdade ao método.
99 Gadamer exemplifica com o caso de uma tradução, em que o tradutor é um facilitador entre duas línguas, pois
precisa ter o cuidado de não alterar o sentido do texto dentro do contexto trabalhado. A coisa traduzida tem
de ser adaptada ao entendimento lingüístico usual entre os novos interlocutores a este processo. Para esse
teórico, a tradução ultrapassa a função de apenas traduzir por traduzir, ela torna a língua estranha em língua
familiar, ou seja, interpreta.
100 A teoria gadameriana atribui ao romantismo alemão o estudo do significado sistemático existente na
discursividade da conversação, o que facilita a compreensão de um diálogo. Afirma que compreender e
interpretar são a mesma coisa.
101 Gadamer (1998) afirma o quão difícil é o diálogo entre duas pessoas que falam línguas diferentes, mesmo
compreendendo o que um e o outro está dizendo, mas não conseguem falar oralmente entre si.
68
entendimento sobre a coisa comentada. É na linguagem que se realiza a própria compreensão,
e esse processo, o compreender, dá-se mediante o esclarecimento. Todo compreender é
esclarecer, por isso os problemas da expressão lingüística passam também pelos problemas da
compreensão.
Gadamer desfaz a possibilidade de se dar o mesmo entendimento hermenêutico entre
duas pessoas, quer se trate de texto escrito ou de conversação. Assevera a existência de uma
conversação hermenêutica, tendo por objetivo a elaboração de uma linguagem comum, igual
a de uma conversação real, cuja função é possibilitar um entendimento lingüístico acordado,
quer entre os seus interlocutores, quer cristalizado pelo senso comum. Dessa maneira, o
entendimento de um texto não pode ser visto apenas por um único olhar, o que me possibilita
questionar, muitas vezes, como o outro pôde compreendê-lo textualmente tão diametralmente
diferente de mim. Dessa forma, a compreensão de um texto traz o entendimento do seu autor
e do seu intérprete, e dos demais outros que permeiam todo o discurso, resultando na sua
forma própria de realização da conversação.
O fenômeno hermenêutico aparece como um caso especial de relação universal entre o
pensar e o falar, podendo também motivar a ocultação da linguagem no pensamento. É no
meio da linguagem, pela consciência da história, de fato, que a relação essencial entre a
discursividade e a compreensão se faz presente, visto que o objeto preferencial de
interpretação, o entendimento, é de natureza lingüística. Daí, a necessidade de remetê-lo aos
estudos lingüístico-discursivos para se estudarem as estratégias argumentativas do discurso
jurídico. Há uma relação muito estreita entre a compreensão e a discursividade.
O texto adquire discursividade interpretativa no momento em que acontece sua escrita
ou sua leitura, a linguagem concretiza-se mediante esse processo. Gadamer conceitua escrita
como auto-estranhamento
102
e assevera que o escopo da compreensão é o entendimento
correto da leitura do texto, cujos falantes – eu e o outro –, sujeitos da enunciação, precisam ter
a mesma tradição histórica lingüística para evitar interpretações equivocadas, permitindo que
a língua funcione como instrumento de comunicação.
102 Este conceito está traduzido em português como auto-alheamento (GADAMER, 2002, p. 569). Optei por
usar a terminologia estranhamento.
69
Gadamer atribui a Schleiermacher
103
o estudo sobre a influência do discurso oral na
problemática hermenêutica, minimizando, assim, a responsabilidade dada à escrita, que até
então era a única trabalhada no fenômeno hermenêutico, embora seja a escrita que permita
que o outro interprete o sentido do texto. Mas a teoria gadameriana continua a priorizar a
palavra escrita à palavra falada, visto que o texto aparece na sua forma “pura” e “isento de
todo o viés
104
psicológico”. Não poderia ser diferente, pois o texto escrito é o escopo da
hermenêutica, embora, segundo Platão, o texto escrito não tenha condições de ajudar aquele
que, voluntariamente ou não, envolve-se em interpretações equivocadas.
No entanto, Gadamer contesta a afirmativa de Platão. Para a teoria gadameriana, não é
somente a palavra falada que tem os encantos do pensar dos sofistas, a escrita também pode
ter o apoio desses e da dialética, visto que, para o teórico, também existe a arte da escrita, a
qual advém da interpretação. Desse modo, pontua a superioridade da escrita em relação à fala.
Para ele, a arte da escrita tem como prioridade ajudar o indivíduo a pensar, a interpretar, uma
vez que a entende como sendo um discurso estranho ao outro/tu, pois o interlocutor necessita
comungar o mesmo entendimento externado pelo enunciador.
Esse teórico enfatiza que os textos não podem ser vistos como resultado da
subjetividade tanto do autor quanto do interlocutor, pois os sujeitos não são livres para
interpretar qualquer texto. Nesse sentido, normas que por si já expressam a literalidade
do texto, impedindo interpretações improcedentes. Exemplificando: o art. 213 do Código
Penal diz: [ . . . ] constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça. Assim, praticando o sujeito tal conduta, o crime consuma-se. normas que exigem
apenas a interpretação do artigo questionado, em outros momentos, é imprescindível recorrer
a mais de um artigo. É necessária uma leitura sistemática da legislação penal para a
compreensão correta do tipo penal - chamado de norma - a ser questionado. Dessa maneira, o
art. 223, caput, do Código Penal torna qualificado o crime de estupro, dispondo que se a
violência resulta lesão corporal de natureza grave, remetendo à leitura do art. e art. da
103 Para este filósofo alemão o indivíduo revela-se na medida em que se expressa, visto que sua idéia de
compreensão é análogo ao ato de fala, assim, o diálogo é um elemento fundamental nesta teoria. A
compreensão dá-se pela interpretação mútua e circular entre a interpretação gramatical e a psicológica de
um discurso, sendo uma tão importante quanto à outra (TESCHE, 2000).
104 Sou de opinião que o viés sociopsicológico é parte constitutiva do texto, conforme alguns teóricos, dentre
eles Adam (1992), Bakhtin (1986 ) e Kerbrat-Orecchioni (1980).
.
70
Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), torna-o hediondo. Exige também a leitura do art.
129, caput, combinado com os parágrafos primeiro e segundo, do Código Penal, que
conceitua a expressão lesão corporal de natureza grave.
Portanto, a teoria gadameriana (GADAMER, 1999, p. 585-643) trabalha com a idéia
de que compreender e interpretar estão imbricados de um modo indissolúvel [ . . . ],
mostrando que a linguagem faz com que o homem seja detentor de “um mundo”. A
humanidade originária da linguagem significa, ao mesmo tempo a discursividade originária
do estar-no-mundo do homem [ . . . ], ou seja, o seu pensamento hermenêutico concebe o
sujeito a partir do ponto de vista de sua constituição lingüística.
Assim, tendo como premissa que aquele que compreende está sempre incluído em um
acontecimento em virtude do qual se faz valer o que tem sentido (GADAMER, 1999, p. 643),
esse teórico não deixa de enxergar na capacidade de compreender a verdadeira arena dessas
reflexões.
71
6 PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS
[ . . . ] a linguagem não é um dom divino nem um presente da natureza. É o
produto da atividade humana coletiva, e reflete em todos os seus elementos
tanto na organização econômica como na sócio-política da sociedade em
que teve origem. (SILVESTRI; BLANCK, 1993, p. 227).
A metodologia utilizada para ancorar o objeto desta pesquisa em que medida a
escolha de determinados elementos lingüísticos influenciou para que o Voto n 81.360, fosse
usado como referência a outras decisões, após a sua sentença, servindo de jurisprudência a
delitos iguais – é a investigação qualitativa, que, segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 291):
[ . . . ] é um método de investigação que procura descrever e analisar
experiências complexas. Partilha semelhanças com os métodos de relações
humanas na medida em que, como parte do processo de recolha dos dados,
devemos escutar corretamente, colocar questões pertinentes e observar
detalhes [ . . . ] compreensão da forma como um conjunto de pessoas, numa
determinada situação, sentido ao que lhes está a acontecer, encoraja
uma compreensão empática dos diferentes pontos de vista.
Acredito que a abordagem qualitativa é o melhor método para estudar processos de
socialização, de estrutura organizacional, de respostas situacionais a contingências cotidianas.
Essa metodologia oportuniza-me, como pesquisadora, a entender o significado que o sujeito
atribui às coisas, aos fenômenos sociais e à sua vida, ou seja, o significado e a
intencionalidade do seu discurso como o sujeito cada vez mais sujeito. Segundo Monteiro
(1991, p. 27), a metodologia qualitativa possui maior probabilidade de gerar conhecimentos
que sejam, ao mesmo tempo, intelectualmente rigorosos e de utilidade para a melhoria do
ensino.
Embora a referência teórica principal desta pesquisa seja o dialogismo de Bakhtin,
precisei estabelecer relações entre esta teoria e outras que trabalhassem o discurso sob o viés
do interdiscurso e do intradiscurso. Entre essas, a hermenêutica de Gadamer, a
seqüencialidade textual da Adam e a subjetividade de Kerbrat-Orecchioni, cujas teorias,
atrevo-me a dizer, têm como célula-mãe a polifonia de Bakhtin. Afinal, a argumentação,
categoria fundamental nesta tese, deve ser construtiva na finalidade, cooperativa em espírito
e socialmente útil. (PENTEADO, 1974, p. 233).
72
Utilizo a abordagem textual-discursiva para interpretar o discurso escrito pelo sujeito
enunciador, cuja análise lingüística é feita por me
73
7 PREPARANDO A ANÁLISE
Como palavra neutra da língua, que não pertence a ninguém; como palavra
do outro pertence aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios;
e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra
numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela se
impregnou de minha expressividade. (BAKHTIN, apud SILVESTRI;
BLANCK, 1993, p. 43).
O texto é uma unidade da linguagem em uso, a sua constituição depende de uma
situação comunicativa e de sujeitos que interajam dentro de uma comunidade particular, de
um modo determinado e com finalidade específica; por isso ele precisa ser coerente. Partindo
desse princípio, os textos estão inseridos em um contexto social. Conseqüentemente, uma
gramática
106
servindo de cimento para que haja a construção arquitetônica de sentido entre os
discursos dos sujeitos dessa enunciação. Por isso, os textos orais e escritos – fazem parte de
um contexto determinado, cujas formas discursivas típicas se cristalizam por certo tempo em
seu respectivo meio social.
Nessa perspectiva, o texto que compõe o meu corpus o Voto 81.360-7/RJ é o
ponto de partida desta pesquisa, e, por isso mesmo, traz consigo o sistema da linguagem. É
por intermédio desse sistema da língua portuguesa que o sujeito seleciona e escolhe os
recursos lingüístico-discursivos a serem usados no seu enunciado, priorizando o contexto
espaço-temporal dessa enunciação. Retomando o objetivo da pesquisa verificar em que
medida a escolha de determinados elementos lingüísticos influenciaram para que o Voto n
81.360, após a sua sentença, fosse usado como referência a outras decisões, servindo de
jurisprudência ao delito ali mencionado: o estupro , busco elementos teóricos lingüístico-
discursivos em Adam e Kerbrat-Orecchioni para a análise desta pesquisa.
106 Segundo Agustini (2004, p. 17), gramática é um instrumento de organização do espaço de enunciação
(brasileiro), em que a língua nacional (correta) mantém uma relação de dominância na divisão (política)
da língua.
74
7.1 Adam: a seqüencialidade do discurso
Adam (1992) dá-me o estofo necessário para trabalhar com a noção de gênero de
discurso, pois sozinha a tipologia textual – objeto empírico e unidade complexa heterogênea –
não consegue responder a todas as questões semânticas que aparecem em um texto que,
segundo este teórico (1992, p. 147), pode ser definido como uma seqüência de proposições
ligadas, que progride em direção de um fim. É a maneira específica de construir as partes que
compõem o texto
107
, que esta teoria o texto como um objeto abstrato, uma estrutura
composta por seqüências, estabelecendo tipos prototípicos que, por sua vez, se centram no
aspecto estrutural dos textos. Sendo assim, não é por acaso que seus estudos apontam um elo
forte com as retóricas clássica e moderna.
Noutras palavras, Adam permite-se pensar em reflexão tipológica sob a idéia da
seqüencialidade global, pois dificilmente um texto é construído somente por um tipo de
seqüência, de uma única regularidade específica. O teórico (1992) assinala que é a
regularidade textual, a predominância de determinada seqüencialidade, denominada por ele de
pragmática textual, que irá classificar um texto como n’. Os seis tipos de seqüencialidade
arrolados nesta teoria são: narrativa, injuntiva-instrucional, descritiva, explicativa, dialogal-
conversacional, argumentativa.
A seqüencialidade argumentativa é parte relevante desta pesquisa, pois é ela que
constitui a motivação de uma decisão judicial, ou seja, é a fundamentação que baliza o
veredicto de um parecer, de uma sentença por parte do magistrado. Esse pesquisador (1992, p.
41) enfatiza a importância da macrossegmentação e da microssegmentação, níveis de
segmentação em uma unidade textual, sendo que esta última corresponde à seqüência
argumentativa do texto:
As diferentes unidades que compõem o texto estão entrelaçadas entre si por
diferentes meios (conectores, elementos anafóricos, substituição léxica,
relação semântica lógica entre acontecimentos), de maneira que compõem
unidades de categoria superior.
107 A tipologia do texto é uma das estratégias para se fazer a articulação entre o conhecimento e o significado,
visto fazer parte da coerência do texto.
75
Embora o senso comum defina texto como uma série de frases, convém relembrar que
uma frase não é uma seqüência de palavras soltas entre si. Um texto não é produzido por uma
sucessão de frases desconexas, faz-se necessária uma transição entre elas entre uma idéia e
outra. Nessa perspectiva, são as seqüências que impulsionam certos mecanismos facilitadores
à composição dos textos, ou melhor, dos gêneros textuais. O texto, como uma unidade
transdisciplinária, é pautado por regras e por relações, e é por essas segmentações e essas
seqüencialidades que Adam e Lorda assim definem texto (1999, p. 62):
A unidade textual que designamos como seqüência apresenta-se, por um
lado, como rede de relações hierárquicas pode decompor-se em partes
(ORAÇÕES) unidas entre si (PROPOSIÇÕES) unidas ao todo que
constituem (SEQÜÊNCIA) e, por outra parte, como uma entidade
relativamente autônoma. Está provida de organização interna própria e
mantém uma relação de dependência/independência com o conjunto mais
amplo do qual faz parte: o TEXTO.
Para Adam (1992), uma relação semântica lógica entre os acontecimentos,
independente de sua extensão, que o texto é composto por diferentes unidades entrelaçadas
entre si. O texto é visto como um todo, cujas frases não são independentes, autônomas, ao
contrário, há uma estreita relação entre cada uma delas.
Bakhtin (1986) afirma que as coerções do sistema lingüístico interagem nas práticas
discursivas, aqui entendidas como componente vivo das atividades de linguagem, pois essas
decorrem da relação entre a vida e a linguagem, ou melhor, dos sujeitos falante/ouvinte–
que interagem em um mesmo contexto social. Nesse sentido, outras vozes teóricas são
trazidas para dentro desta pesquisa, possibilitando-me um olhar mais lingüístico discursivo ao
corpus aqui analisado, que, de uma maneira ou de outra, está associado a uma teoria de valor
contextual, na medida em que dialoga com a intertextualidade de uma sociedade.
Kerbrat-Orecchioni (1980) dá-me aporte teórico para identificar as marcas subjetivas
deixadas pelas unidades lexicais no voto considerado procedente pelo sujeito, que o
componente argumentativo também perpassa pelas unidades subjetivas. Desse modo, o lugar
de onde o enunciador fala é relevante, porque é ele o sujeito que apresenta o seu ponto de
vista em um discurso. Esta teórica reconhece que o dialogismo bakhtiniano serve de base para
o conceito de polifonia permanente diálogo entre os sujeitos de um processo discursivo
como também entre os discursos que operam em uma determinada sociedade.
76
Analisar discursos permite-me, como lingüista, entender as práticas discursivas
produzidas por um determinado grupo de sujeitos que, por intermédio da palavra escrita e
oral, marcam o espaço sócio-cultural em que vivem. Desse modo, o sujeito recorre à ngua
para poder interagir com o outro mediante discurso, o que faz com que apareça a atitude
responsiva ativa do dialogismo bakhtiniano: aceitar x não-aceitar, concordar x não-concordar,
adaptar x não-adaptar.
7.2 Kerbrat-Orecchioni: a subjetividade constrói o sujeito
O estudo de Kerbrat-Orecchioni (1980) tem suas raízes na teoria enunciativa de
Benveniste, isto é, nos estudos sobre subjetividade na linguagem, especificamente na
definição da categoria pessoa. É a partir da apreensão conceitual benvenistiana (1995) sobre a
capacidade do locutor para se propor como sujeito, utilizando-se da subjetividade, que a
pesquisadora introduz a categoria das unidades lexicais aos estudos enunciativos. Define,
assim, unidades lexicais como escolhas lingüísticas feitas pelo enunciador para serem usadas
nos diferentes momentos do seu discurso. Ao optar por esta escolha e não a outra, o sujeito
enunciador marca a sua subjetividade.
As palavras não representam os objetos de uma sociedade, visto a língua não ser capaz
de exprimir, pelas palavras, o conteúdo desses objetos, pois esse processo decorre porque a
produção discursiva organiza o mundo por abstração, em classes de palavras, sobrepondo-se à
base semântica. Sendo assim, as estratégias enunciativas usadas pelo sujeito enunciador em
um discurso têm um papel relevante, pois são elas que dão legitimidade à argumentação de
um enunciado em um determinado contexto
108
.
Kerbrat-Orecchioni (1980) parte da compreensão de que o ponto de vista subjetivo
inscreve o sujeito no discurso, porque, ao usar certos recursos estilísticos e estéticos
escolhas lingüísticas – para uma finalidade, ele está-se caracterizando sujeito do referido
enunciado. Partindo do princípio que são as unidades lexicais que marcam a subjetividade do
sujeito enunciador em um discurso, esta teórica privilegia a categoria dos subjetivemas em sua
108 Esta teórica (1980, p. 35) assevera conceitos iguais para uma seqüência contextual e cotextual: resultam
das relações verbais ou extraverbais.
77
pesquisa. Os subjetivemas são unidades lexicais, com grau maior de subjetividade, que se
fazem presente no momento em que o sujeito se assume como enunciador do seu dizer. A
subjetividade aparece, assim, lingüisticamente por meio dos marcos afetivos, axiológicos e
modalizadores.
Em um primeiro momento, Kerbrat-Orecchioni (1980, p. 178) questiona-se acerca de
quem é esse sujeito enunciador: resultado da linguagem’, produto socialou construído
por uma ideologia’? O sujeito, para ela, é um indivíduo perfeitamente autônomo, consciente e
responsável pelos seus propósitos, pelo seu dizer, pela sua subjetividade.
Esta teoria apresenta dois tipos de reformulações discursivas:
a) objetiva – visa a apagar a presença do enunciador individual em um discurso;
b) subjetiva o enunciador faz-se presente assumindo o seu enunciado,
principalmente pela marca do pronome pessoal eu. Kerbrat-Orecchioni enfatiza, no
entanto, que essas diferenças conceituais não formam uma dicotomia, apenas
marcam uma carga mais ou menos forte de subjetividade no discurso em que
ocorre a interação. Esse processo é mostrado no exemplo canônico desta teoria
(1980, p. 72), que parte de uma compreensão lexical com um dado concreto,
referencial, e termina com uma forte interpretação subjetiva:
Objetivo Subjetivo
Solteiro amarelo pequeno bom
Kerbrat-Orecchioni (1980) afirma que o enunciador pode ser identificado em um
discurso explícito ou implicitamente por intermédio das estratégias lingüísticas, as quais
possibilitam ao sujeito assumir a sua voz como dono daquele dizer. A presença explícita do
eu, os termos apreciativos e avaliadores, os modalizadores, inscrevem o sujeito como produtor
das intenções enunciativas do discurso; os dêiticos e os subjetivemas servem de lugares-
âncoras a esses ditos, a essas falas. Para esta teórica (1980, p. 36), dêiticos são
[ . . . ] unidades lingüísticas cujo o funcionamento semântico-referencial
(seleção da codificação para a interpretação na decodificação), o que
implica considerar certos elementos constitutivos da situação de
comunicação a saber: o papel que cada actante tem no processo de
enunciação; e a situação espaço-temporal do locutor e eventualmente do
alocutário.
78
A categoria dos dêiticos é formada por pronomes pessoais e demonstrativos, pelas
anáforas, pelas marcas de localização espaço-temporal, pelos termos de parentesco; já os
substantivos, os adjetivos, os verbos ocasionalmente subjetivos e os advérbios com caráter
subjetivo formam a categoria dos subjetivemas. É a partir das representações discursivas dos
dêiticos e dos subjetivemas que o sujeito de Kerbrat-Orecchioni (1980) mostra a
impossibilidade de construir um discurso absolutamente objetivo, mesmo quando usa
estratégias objetivas, pois, ao interagir com o outro, com o tu familiar ou com o vós formal,
esse sujeito expõe um grau maior ou menor de subjetividade. Dessa maneira, esse sujeito
constrói-se entre a objetividade e a subjetividade do seu discurso.
Dentre as categorias que formam os dêiticos, recorro teoricamente aos pronomes
pessoais e demonstrativos e às marcas de localização espaço-temporal para justificar o meu
ponto de vista nesta análise. O pronome pessoal é um elemento especificador e identificador
do sujeito actante
109
e para esta teórica é o mais evidente e comum dos dêiticos, pois tem
função interacional e textual em um discurso. O pronome demonstrativo relaciona-se
diretamente ao espaço-temporal do contexto, já que faz referência ao contexto e à situação por
meio da qual o sujeito está interagindo com o outro em um discurso. E finalmente a
localização espaço-temporal é relevante na medida em que a relação entre os interactantes do
discurso não é unilateral, mas dialética, visto o papel do contexto, o aqui e o hoje, ser
fundamental às produções ou interpretações advindas do processo interlocutivo. Kerbrat-
Orecchioni (1996, p 35) conceitua o discurso como uma atividade, ao mesmo tempo,
condicionada
110
(pelo contexto) e transformadora (desse mesmo contexto).
Na categoria dos subjetivemas, trabalho com os advérbios, os adjetivos e os verbos
para identificar as estratégias lingüístico-discursivas usadas pelas vozes que permitiram à
ministra argumentar e ter a sua sentença aprovada perante os seus pares, criando a
jurisprudência aqui analisada.
Os advérbios modalizadores asseguram uma intervenção por parte do sujeito actante
para validar, valorar, restringir ou reformar o seu discurso. Nesta pesquisa, os asseverativos,
por terem uma função atributiva, marcam a inscrição das vozes dos saberes especializados; os
109 Termo usado na teoria de Kerbrat-Orecchioni (1996, p. 8) para referir-se ao sujeito emissor e interactantes
aos demais falantes da mesma interação.
110 Grifos da teórica.
79
delimitadores restringem o discurso jurídico quanto às interpretações possíveis para o voto
sentenciado; os dêonticos asseveram a relevância do dito, de que o estupro deve ser
considerado crime hediondo à sociedade brasileira; os afetivos exprimem reações emotivas ao
que é firmado ou negado no enunciado, neste caso, a ministra expõe as seqüelas psicológicas
e físicas deixadas na vítima após o crime de estupro.
Os adjetivos apresentam conteúdo semântico avaliativo ou juízo de ordem estética
estão pragmaticamente ligados à noção de valor, pois a função deles é qualificar e classificar a
opinião do sujeito actante em um enunciado. São vistos como objetivos e subjetivos, sendo
que os objetivos servem para descrever um enunciado com fraco grau de subjetividade, ou
melhor dizendo, aproximam-se ao máximo possível do conceito referencial da palavra; os
subjetivos indicam a existência da subjetividade enunciativa, na maioria das vezes, trazidos
pelas inúmeras vozes que povoam a história social do sujeito, acrescidos da reação emocional
apresentada pelo sujeito na interação do discurso com o outro. A categoria dos adjetivos está
assim definida (KERBRAT-ORECCHIONI, 1996, p. 84):
Adjetivos
Objetivos Subjetivos
ex.:
afetivos avaliativos
• solteiro/casado ex.: ex.:
• adjetivo de cor • pungente não-axiológicos axiológicos
• masculino/feminino • gracioso • grande • bom
• patético • longe • belo
• quente • bem
• numeroso
Os verbos ocasionalmente subjetivos são aqueles que implicam a evolução de um
enunciado. O sujeito actante utiliza-se das expressões verbais para narrar, comentar e opinar
sobre o seu dito com os demais interactantes do discurso escrito ou falado. Busco nos verbos,
ocasionalmente subjetivos, aqueles que implicam a evolução de um enunciado, as marcas da
subjetividade deixadas pelo sujeito enunciador no voto analisado; dentre eles, elenco os que
atribuem sentimento, avaliação, declaração, e os verbos modalizadores que se constroem com
80
outros verbos para modalizar os enunciados epistêmicos (ligados ao conhecimento) e
deônticos (ligados ao dever).
Desse modo, o lugar de onde o enunciador fala é relevante, porque é ele, o sujeito, que
apresenta o seu ponto de vista em um discurso. Esta teórica reconhece que o dialogismo
bakhtiniano serve de base para o conceito de polifonia permanente diálogo entre os sujeitos
de um processo discursivo como também entre os discursos que operam em uma determinada
sociedade. Feitas essas considerações, passo agora a analisar aquilo que, em meu corpus, são
os alicerces da estrutura argumentativa os elementos lingüístico-discursivos escolhidos
pelo sujeito-enunciador do Voto n 81.360.
81
8 ANÁLISE
8.1. Primeiros Passos
O nosso círculo de experiências é limitado. O nosso espaço vivido no mundo
é pequeno.[ . . . ] Se a nossa atividade essencial como sujeitos é a ação e a
percepção, nós a exercemos dentro de um espaço de vida que nos rodeia
como bolha de sabão e onde encontramos nosso significado biológico e
existencial. (BOSI, 1997, p. 100).
Neste capítulo, dedicar-me-ei a examinar o escopo desta tese, Voto n 81.360
(ANEXO A), e verificar em que medida a escolha de determinados elementos lingüísticos
influenciaram
111
para que ele se tornasse referência a outras decisões, melhor dizendo,
servindo de jurisprudência ao delito ali mencionado: o estupro
112
.
É nesse discurso judicial ou forense
113
–, acusando ou defendendo, que os
operadores do Direito sustentam os seus pontos de vista, utilizando-se principalmente do
argumento nas categorias do justo, do torpe ou da transgressão de leis e de normas, tendo
como auditório o tribunal: o juiz, os advogados de defesa e de acusação
114
, promotores e os
jurados. Sendo assim, os argumentos são importantes para derrubar as idéias contrárias e
provar a adequação ou a inadequação de uma ação ocorrida.
111 Opto em usar a expressão elemento lingüístico-discursivo, por acreditar que essas palavras explicitam
melhor o seu significado para os sujeitos que interagem nas diversas áreas que não sejam o das Letras,
aqui, o Direito. Os estudiosos da área da Lingüística sabem que os conetivos m função muito além do
sintático ligam termos de oração ou entre orações –, mas desempenham funções textuais e discursivas
importantes na polifonia enunciativa; também são sabedores que todos os conectores são marcadores
discursivos, mas nem todos os operadores argumentativos são marcadores do discurso.
112 O crime atentado violento ao pudor (o sexo masculino ao ser violentado) também faz parte da lei que
ampara esse voto.
113 A filosofia aristotélica deixa ao discurso jurídico a contribuição de haver descoberto todas as leis ideais
da argumentação, ou, em outros termos, a de haver revelado todas as condições da conseqüência
legítima. (ARISTÓTELES apud TELLES JÚNIOR, 1999). Esse filósofo, por intermédio dos estudos da
Retórica, afirma que o convencimento de um determinado público tem estreita relação com a
argumentação em um auditório, pois para ele a Retórica é a arte da comunicação, do discurso feito em
público com fins persuasivos. Uma das primeiras escolas de Retórica foi fundada pelo sofista Górgias e
visava, como disciplina escolar, à formação de advogados e de políticos.
114 O assistente de acusação é um profissional contratado pela vítima ou família da vítima para colaborar com
o promotor de justiça designado para tal julgamento. Normalmente, isso ocorre com sujeitos com nível
social elevado.
82
A argumentatividade
115
é um aspecto constitutivo da linguagem humana (THIERRY,
2004)
116
: argumentar implica o envolvimento do sujeito falante em aceitar o ponto de vista do
sujeito ouvinte e vice-versa. Por isso é fundamental que haja laços comuns entre as
subjetividades dos diferentes sujeitos envolvidos nesse diálogo, entre eles, uma linguagem
comum, uma participação responsiva e uma consciência da relatividade da autoridade dos
sujeitos locutor e interlocutor, ou seja, entre o mim eu e o ti outro. Nesta pesquisa, a
presença do outro, por intermédio do argumento de autoridade, serve à argumentação do
corpus, que, uma vez fixado o entendimento jurídico, esse tende a ser reproduzido nas
instâncias inferiores. A interação social, advinda da relação intersubjetiva entre os sujeitos-
ministros presentes na sessão que resultou nessa referida sentença, possibilitou uma nova
leitura ao inciso V. Criada a jurisprudência, uma nova compreensão dialógica e dialética
apresenta-se ao auditório social do Direito.
Comungando com a idéia de que a argumentação está presente no uso da linguagem,
que o sujeito, ao usar a língua, não está apenas exteriorizando um pensamento ou uma
informação, mas está indo além (age, atua sobre o interlocutor em um determinado contexto
sócio-histórico e ideológico), busco na Lingüística da Enunciação tendo como conceito que
a linguagem é um diálogo amplo – o alicerce necessário para analisar o meu corpus.
Como foi dito anteriormente, um discurso não é efet
83
tempos verbais no modo indicativo, que este modo verbal indica certeza
117
, ao
contrário da possibilidade, da dúvida, principalmente pelo subjuntivo, e a ordem, o
conselho, expresso pelo imperativo. Koch (1999, p. 37), na esteira de Weinrich,
divide em dois grupos os tempos verbais no discurso. O primeiro, o mundo
comentado, compõe-se do presente; do pretérito perfeito composto; do futuro do
presente simples e composto; das locuções verbais formadas com esses tempos,
formando assim, o grupo I. O segundo, grupo II, é o do mundo narrado, do texto
visto como um relato e constitui-se do pretérito perfeito simples; do pretérito
imperfeito simples; do pretérito mais-que-perfeito simples; do futuro do pretérito
simples e das locuções verbais formadas com tais tempos.
Antes de começar a análise do corpus desta pesquisa, o Voto 81.360, acredito ser
importante reafirmar que na abordagem interacionista concepção de ngua está na ordem
cognitivo-sócio-histórica dos sujeitos envolvidos lingüisticamente –, enunciação promovida
84
Sendo o precursor do estudo sobre subjetividade, Benveniste (1989) mostrou que
possibilidade de uma maior mobilidade entre os sujeitos envolvidos em uma interação
dialógica. As palavras adquirem sentido no momento do seu uso, o que faz com que haja
uma referência única a elas. Assim, o estudo benvenistiano deixa aos estudiosos da lingüística
a herança de que relação inerente entre o espaço-tempo, o interlocutor e o sujeito de um
objeto construído, melhor dizendo, do discurso. À medida que foi necessário dispor as vozes
presentes nesse voto em grupos para melhor contextualizá-las, a seqüencialidade textual de
Adam (1992) foi relevante à visibilidade dessas vozes. Isso possibilitou a análise das
inúmeras vozes enunciativas que produziram efeitos de sentidos em relação ao discurso como
um todo. Kerbrat-Orecchioni (1980) permite-me identificar o posicionamento assumido pelo
sujeito enunciador na interação dialógica com seus pares do Supremo Tribunal Federal, no
nível do enunciado, por meio dos elementos da materialidade léxico-sintática, os quais
funcionam como indicadores da subjetividade na linguagem.
A conclusão
118
do voto ancora-se nas muitas vozes que, de uma maneira ou de outra,
contribuíram para a mudança de paradigma nas sentenças futuras referentes ao crime de
estupro. Vozes fundamentadas pela inter-relação entre a semântica, a pragmática e a sintaxe,
cuja fundação teórica está arquitetonicamente concretada ao dialogismo de Bakhtin (1986). A
hermenêutica de Gadamer (1999), por meio da reinterpretação como resultado do dizer algo a
alguém sobre alguma coisa, contribui, a meu ver, com o sujeito bakhtiniano. Sujeito que
busca compreender e interpretar dialogicamente o mundo em que vive e, por isso mesmo,
sabe que o cenário em que interage é muitas vezes ambíguo e contraditório.
8.2 Vozes
A linguagem usada no discurso jurídico obedece aos mesmos princípios aplicados no
estudo da Língua Portuguesa, sendo assim, ela não constitui um novo e nem um particular
sistema lingüístico da língua. O que existe são escolhas lingüísticas específicas por parte dos
118 Retomando a lógica de Aristóteles (1999), o exórdio está nos primeiros parágrafos desse voto, é aqui que o
sujeito enunciador apresenta o status quaestionis; o desenvolvimento apresenta-se nas justificativas das
idéias e na matéria probante das inúmeras vozes cientificamente comprovadas; a peroração resulta das vozes
que demonstram, com base científica, a eficácia desse discurso em afirmar que o estupro deve ser
enquadrado como crime hediondo, independente de a vítima não morrer.
85
sujeitos que a usam, fazendo, na maioria das vezes, com que os traços de juridicidade
119
presentes nas decisões jurídicas sejam compreendidos somente pelos sujeitos que têm acesso
a este contexto: magistrados, promotores, defensores públicos, advogados e interessados.
Com isso, poucas são as vozes que compartilham com esses saberes jurídicos, pois o discurso
jurídico traz no seu campo de práticas uma forma, por que não dizer, quase retórica de
organização da linguagem. A compreensão de determinados termos jurídicos
120
evidentemente fica comprometida para os sujeitos leigos que não fazem parte desse contexto,
negando-lhes, muitas vezes, o exercício da cidadania.
Acredito ser importante, ao falar de e sobre subjetividade, buscar os elementos sociais
que compõem o dizer do enunciador, sendo assim, esta análise tem como proposta a
abordagem discursiva que ultrapasse o limite restrito da concepção lingüística, por que não
dizer, tradicional, privilegiando a abordagem lingüística enunciativo-discursiva que se faz
presente no discurso analisado.
Esta análise direciona o olhar às vozes que construíram este voto
121
, que o uso da
voz do outro está estreitamente ligado à argumentação do sujeito enunciador. Assim,
classifico estas vozes em quatro grupos:
a) voz do sujeito enunciador;
b) voz dos pares do sujeito enunciador;
c) voz dos especialistas expressas neste corpus;
d) voz social.
8.3 Voz do Sujeito Enunciador
O enunciador é, neste primeiro momento, o objeto desta análise, pois é ele o sujeito
que assume e mobiliza o Supremo Tribunal Federal a uma nova interpretação para o
posicionamento cristalizado como verdade única. A presença explícita do pronome de
119 Apesar do Decreto-lei 4657/42, art. 3° declarar que ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que
não a conhece, o sujeito, muitas vezes, desconhece seu direito e dever de cidadão.
120 Em uma pesquisa científica sobre terminologia jurídica, 80% da amostra (ambos os sexos, idade e
escolaridade diversas) apresentaram uma compreensão nula ou insatisfatória do discurso jurídico
(PEREIRA, 2001).
121
ANEXO A.
86
primeira pessoa identifica a Ministra Ellen Gracie
122
como sujeito enunciador do enunciado, e
essa subjetividade se expressa por meio dos dêiticos, mais precisamente pelos pronomes
pessoais, que aproxima a interação dialógica entre o enunciador e o interlocutor. Como
exemplos: [ . . . ] e muito melhor do que eu [ . . . ] (linhas 2-3)
123
; [ . . . ] a meu sentir [ . . . ]
(linha 42); [ . . . ] valho-me do concurso [ . . .] (linha 56); [ . . . ] de meu ilustre antecessor [ . .
. ] (linhas 128-129); [ . . . ] pelo muito que me alonguei [ . . . ] (linha 427).
8.3.1 Pronomes Demonstrativos
Os pronomes demonstrativos se reportam aos fatos sobre sujeitos que interagem no
discurso, relacionando-os a uma determinada situação, remetem ao contexto da interação, ou
seja, à enunciação ou ao enunciado. Além disso, substituem os nomes representados por esses
sujeitos, coisas ou estado de coisas em relação aos que foram mencionados ou serão elencados
ao longo do enunciado, podendo ser essa depreciativa ou não (NEVES, 2006). Esses
pronomes ocupam posições que indicam tempo, espaço e o próprio discurso do sujeito como
enunciador ou interlocutor.
O sujeito enunciador também faz uso da locução por isso, aqui utilizada para
introduzir e reforçar os seus argumentos, pois como mostram alguns trechos do enunciado, ela
faz parte 71( )-30.1643(])333]812.16558(e)-6.2659(r7(a)3.74(q)-0.295585(0)-8(e)3.74(i)-2.16558(t)-2.16558(e)3.74(t)5(c)3.74(u)-0..16558(r)2.80561(a643(])333]8)2.80561(o)-0.295585(rg220.278(71( )-30.1-2.16558(n)-0.295585(i)z2.80561(ç)-6.2650.295585(c)3.74(i)-2.16436(o)-0.295585(n)-0.29558l.295585(i)-2.(])3336-0.295585(d)-0.295580.640026(s)-1.2312(s)--30.1643(])333685(e)3.74(t)-2.16436(e0.295585(x)0.295585(t)-22931426.59Tf42.5050.295585(.)-0.14])33368-20.1584(A0.640026(s)-.74244(s5(c)3.74(i)9(a)3.74(m)0.295585(,)-0.14])33368 )-30.1643(])333t)-2.16436(r)2.8043f2.16436(r)2.8043-2.1645(m)-12.4683(e95585(n)-10.3015(c)3.74(l)-2.16436(e1(a)3.74(ç)3.74(ã)3.74(o)-0.29])33368 )-30.10.295585(n)-0..80561(e)-6.2685(r)2.80432(p)-0.298027(r)9.71032(i)-2.16436(z)-6.26346(a643(])333685(e)3.74(t)-2.26346(a)3.74244(m)-21.2312( )26.59Tf-347.005 -200.147792(c)3.74(o)-0.294974(m)[(a)3.74(o)-0.2165713M)-1.52556(i)-2.16558(n)--2.16558(t)-2.1655-2.16558(n)-1(a)3.74(ç)3.74(ã)3.74(o)-10165713M)0.147792(r)2.80561(e0.295585(c)3.74(u)-0.295585(p)--2.16558(e)-6.2659(r)-6.2659(a)3.74(r)-7.165713)-0.295585(o)-0.295585(s)0.295585( )250]TJ/R(o)7.0Tf3.1218)-60.182(d)-0.295584(i)-2.16558(t)-2.16558(o)-so
87
texto: [ . . . ] classificados entre os que merecem especial repúdio [ . . . ] (linha 27); [ . . . ] do
dispositivo nos leva à mesma conclusão [ . . . ] (linha 38); [ . . . ] considerou-se que tais
parágrafos haviam [ . . . ] (linha 119); [ . . . ] Tal revogação se fez [ . . . ] (linha 113); “[ . . . ]
tais parágrafos, na realidade, [ . . . ] (linha 119); [ . . . ] deste Tribunal e ela mesma
124
integrante [ . . . ] (linha 175); [ . . . ] Tais dados vêm[ . . . ] (linha 191); [ . . . ] e crianças
vítimas de tal violência [ . . . ] (linha 478); [ . . . ] tal raciocínio vem [ . . . ] (linha 132). O uso
do pronome demonstrativo tal é bastante significativo neste voto.
O universo do emprego dos pronomes demonstrativos mostra a predominância do
referenciador situacional, conforme exemplos retirados do voto: [ . . . ] adequadamente essa
evolução legislativa [ . . . ] (linha 98); [ . . . ] Esta lei, entre (linhas 102-103); [ . . . ] que
complementa esse esforço [ . . . ] (linha 157); [ . . . ] fundada por esta última [ . . . ] (linhas
172-173); [ . . . ] não ser possível enfrentar esse tema sem [ . . . ] (linha 434); [ . . . ] A esse
propósito, [ . . . ] (linhas 465-466). Comungando com a idéia de Pontes (1972) de que o
conceito de tempo constitui-se metaforicamente a partir das categorias espaciais, não foi
surpresa aparecer apenas um pronome demonstrativo com valor temporal no texto em
questão: [ . . . ] Antes dessa data [ . . . ] (linha 110).
No fragmento [ . . . ] o delito de que estamos tratando é daqueles que [ . . . ] (linha
146), o sujeito caracteriza negativamente o delito analisado. A subjetividade do enunciador
reafirma que o resultado deste delito é tão repugnante, e ao usar lingüisticamente o elemento
discursivo-lingüístico daqueles (de+aqueles, remete a algo que não está no contexto espaço-
temporal dos sujeitos dessa interação dialógica), na função de pronome demonstrativo, ele o
distancia até do seu próprio discurso, ou seja, não se trata deste ou desse delito, mas daqueles,
distantes do denunciador e dos seus pares do Supremo Tribunal Federal.
O enunciador também recorre ao uso de outros determinantes demonstrativos tais
como os pronomes essa, esta, este, combinados com as preposições de e em para ratificar o
comprometimento do argumento com relação ao seu discurso enunciativo. Trago alguns
exemplos: [ . . . ] os níveis desta ocorrência [ . . . ] (linhas 149-150); [ . . . ] vozes que nesta
Casa [ . . . ] (linha 8); [ . . . ] revela a correção desta assertiva [ . . . ] (linhas 25-26); [ . . . ] o
124 A palavra mesmo aparece para reforçar quão importante é a voz da Dra. Dea M. Pereira no voto: ela não é só
Secretária de Serviços Integrados de Saúde do Supremo Tribunal Federal, mas também integrante da
Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde, órgão legislador e
fiscalizador de maior competência no país, nesta área.
88
legislador à efetiva gravidade deste crime [ . . . ] (linhas 31-32); [ . . . ] pelo trabalho nesta
área [ . . . ](linha 167); [ . . . ] na apresentação destas citações.[ . . . ] (linhas 432-433); “[ . . .
] no início deste voto[ . . . ] (linha 439).
8.3.2 Tempos Verbais
Dando continuidade às unidades lexicais que ajudam a expressar a subjetividade do
sujeito enunciador, segundo Kerbrat-Orecchioni (1980), tem-se o verbo, um elemento
lingüístico que situa de imediato a relação temporal, em um discurso dialógico, entre o
enunciador e o interlocutor. O tempo
125
, marcado pelo verbo, salienta a subjetividade do
enunciador que aparece no momento em que ele se propõe a ser o sujeito desse enunciado.
Dessa maneira, o verbo
126
assegura a temporalidade do dito, do dizer e do querer dizer do seu
respectivo enunciador.
Darei maior atenção aos verbos subjetivos, nesta minha análise, porque eles carregam
a ação avaliativa do dizer do sujeito e por meio deles, como elementos lingüístico-discursivos,
o enunciador constrói o seu discurso jurídico. Para a teórica (1980), os verbos subjetivos estão
estruturados em dois eixos fundamentais:
a) fonte da avaliação, em que é o agente do processo, usando verbos ocasionalmente
subjetivos, opõe-se ao sujeito da enunciação, fazendo uso de verbos intrinsicamente
subjetivos;
b) julgamento avaliativo, salienta o eixo bom/mau em oposição a verdadeiro/falso.
Contudo, a autora afirma que nem sempre é prático determinar qual o traço, em cada
um desses eixos, seria conveniente atribuir a este ou àquele item.
125 Para Vilela e Koch (2001), o tempo, como categoria gramatical, é uma categoria realizada exclusivamente
pelo verbo e, como categoria nocional é realizada por lexemas, morfemas e expressões várias. Exemplifico
com o fragmento: [ . . . ] Em 1990, o Congresso Nacional editou uma das legislações mais modernas de
proteção da infância, o conhecido Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº. 8.069, de 13/7/90. [ . . . ].
(linha 101, ANEXO A).
126 O verbo, segundo Garcia ([entre 2001 e 2006]), pode ser dividido em dois grandes grupos lingüísticos: a)
verbos relacionais não podem funcionar como resposta a perguntas com os pró-verbos fazer e acontecer,
entre eles estão os designativos, os afetivos, os comunicativos e os condicionais; b) verbos ativos – podem
funcionar como resposta aos mesmos pró-verbos citados acima. Neste grupo, aparecem os descritivos e os
causuais. O termo pró-verbo foi cunhado por Beaugrande e Dressler (1997).
89
O tempo é simultaneamente objetivo e subjetivo (VILELA; KOCH, 2001). Esse
paradoxo é possível porque o enunciado, como discurso, ocorre no dizer, no texto, enfim,
no diálogo entre os sujeitos. Sendo assim, não se pode substituir um tempo verbal por outro
sem que seja alterado o sentido frásico dessa interação dialógica, visto existirem dados
extralingüísticos que são avaliativos, considerados e escolhidos pelo sujeito no momento em
que expõe o seu ponto de vista ao seu interlocutor.
Nesta pesquisa a categoria verbal do tempo é relevante, que os verbos têm a função
básica de marcar as partes que compõem a estrutura do discurso. A forma verbal, na maior
parte do corpus, está construída no modo indicativo, representando o discurso enunciativo
como fato, mostrando-o como algo concreto, necessário, previsível ou também como aquele
que, em um determinado espaço-temporal, pode se realizar: [ . . . ]Tal raciocínio vem
desenvolvido em excelente artigo publicado na Revista do Tribunal Federal da Região, da
lavra da Dra. Lilian da Costa Tourinho, [ . . . ] (linha 132); [ . . . ] Insistem, alguns
defensores, na tese de que o delito, em sua forma simples, [ . . . ] (linha 89).
A semântica do subjuntivo caracteriza-se em relação ao indicativo e ao imperativo,
define algo não-realizado ou ainda passível de ser realizado. Suas marcas expressam-se por
meio da subjetividade do enunciador, ou seja, pela sua avaliação subjetiva: [ . . . ] e pena de 3
a nove anos de reclusão para o atentado violento ao pudor quando, igualmente, a vítima
fosse menor. [ . . . ] (linha108); [ . . . ] tacitamente revogados pela Lei nº. 8.072/90, antes
mesmo que entrasse em vigor a Lei nº. 8.069/90, que os estabelecera. Não fazia mesmo
qualquer sentido, viesse o agressor de menores a ser beneficiado com apenamento mais
brando, [ . . . ] (linhas 120-121); [ . . . ] as conseqüências de ordem emocional, que, embora
não se possam, por vezes, demonstrar com a mesma clareza e precisão numérica das
moléstias físicas, [ . . . ]. (linha 295).
O tempo presente, em forma simples ou composta, coincide com o momento do
discurso ou resulta parcialmente em simultâneo com ele, podendo não haver um tempo
absoluto, o que faz com que apareça o tempo intemporal. Além de apoiar-se na perspectiva do
dito comentado, de opinião, mostra também a habitualidade de certos valores em
determinados contextos: [ . . . ] Tais dados vêm corroborados pela Profa. Lori Heise, diretora
do Projeto Violência, Saúde e Desenvolvimento do Instituto do Pacífico para a Saúde da
Mulher [. . .] (linha 190); [ . . . ] No entanto, tanto o legislador que atua
sobre a realidade,
90
para transformá-la, quanto o intérprete que complementa esse esforço de aperfeiçoamento da
sociedade necessitam, por doloroso ou repugnante que seja, [ . . . ] (linhas 156 a 158); [ . . . ]
Mas há, ainda, as conseqüências de ordem emocional, que, embora [ . . . ] (linha p. 294).
O tempo pretérito (também simples e composto), em sua forma perfectiva composta,
traz um acontecimento do passado ao texto e com ele o valor constativo ou iterativo que
interage no discurso presente, como mostram os fragmentos analisados: [ . . . ] que, no caso, a
conjunção tem significado inegavelmente aditivo [ . . . ] (linhas 72-73); [ . . . ] onde se referem
os autores que têm abonado idêntico entendimento, a saber: [ . . . ] (linha 134); [ . . . ] sob a
dedicada coordenação da ilustre Desembargadora Shelma Lombardi de Kato, tem promovido
os seminários do projeto Jurisprudência da Igualdade[ . . . ] (linha 469); [ . . . ] Como se
viu, embora inicialmente introduzidos na redação original do Código Penal [ . . . ] (linha
128); [ . . . ] de manifestação perante o Superior Tribunal de Justiça, do eminente Ministro
Félix Fischer, que naquela Corte capitaneia a corrente que prevaleceu em diversos
julgamentos [ . . . ] (linha 14).
O mais-que-perfeito simples sobrepõe-se ao composto, e isso se justifica, acredito, por
se tratar de um texto escrito, cujo cuidado é sempre maior em relação às normas do “bem
escrever”. Trago os poucos exemplos desse verbo: [ . . . ] redação original do Código Penal,
tais parágrafos, na realidade, nunca foram implementados, pois sua aplicação pelo julgador
resultaria em solução aberrante do sistema de proteção ao menor [ . . . ] (linha 120); [ . . . ]
De tudo, é possível concluir que, não fora a expressa inclusão do delito, em sua forma
simples, entre os que o artigo 1º da Lei nº. 8.072/90 reputou hediondos [ . . . ] (linha 437).
O tempo futuro indica fatos posteriores ao momento do enunciado, apresentando
valores atenuadores ou modalizadores de uma ordem ou intenção dada pelo enunciador: [. . . ]
Ao repelir a interpretação que afasta do rol dos crimes hediondos o delito de estupro em sua
forma simples, estará esta Corte dando à lei sua correta inteligência e ademais e,
principalmente [ . . . ] (linha 475); [ . . . ] A esse propósito, nunca será demasiado louvar a
iniciativa pioneira da Associação Internacional de Mulheres Magistrada [ . . . ] (linha 466).
Outro elemento lingüístico-discursivo significativo de que dispõe o sujeito para
argumentar o seu discurso nesse voto são os verbos elocutivos. Apesar de o enunciador ter a
responsabilidade amenizada ao fazer uso dos verbos de elocução no seu dizer, não há omissão
91
na busca de outras vozes para reforçar a construção da sua sentença. Os verbos dicendi têm a
função de introduzir o dito do outro no enunciado do enunciador, nesse caso, a expressão das
vozes dos especialistas, colaboradores científicos importantes no escopo desse voto.
Exemplos a seguir confirmam os discursos: [ . . . ] Diz ainda o Prof. Kaspary: [ . . . ] (linha
74); [ . . . ] assim ementou julgado unânime da Primeira Turma: [ . . . ] (linha 141); [ . . . ] Diz
a já citada Lori Heise: [ . . . ] (linha 376); [ . . . ] Donde concluir-se que, no caso, a conjunção
tem significado inegavelmente aditivo [ . . . ] (linha 72).
As formas progressivas são geralmente operadas por verbos de traço epistêmico,
fazendo com que acontecimentos relacionados ou simultâneos no passado interajam no
discurso atual, dando um sentido de aspecto cursivo ao discurso: [ . . . ] significar que estava
apontando, para inclusão no rol dos delitos considerados hediondos [ . . . ] (linha 86); [ . . . ]
importantes para o exato dimensionamento do problema de que estamos tratando [. . .] (linha
161). Os verbos auxiliares também formam tempos compostos de passado quando construídos
com particípios: [ . . . ] Por isso mesmo, considerou-se que tais parágrafos haviam sido
tacitamente revogados pela Lei nº. 8.072/90 [ . . . ] (linha 119).
O que caracteriza a modalização
127
é o fator subjetividade, é justamente essa
subjetividade que identifica e mostra o sujeito-enunciador de uma determinada interação ao
seu interlocutor e vice-versa. A relação dialógica do eu com o outro faz com que haja uma
única certeza de que e de quem se está falando, pois o uso do verbo modal possibilita mais de
um sentido ao texto, ou seja, mais de uma interpretação.
Os verbos modalizadores não podem predicar sozinhos, por isso atuam com a ajuda de
outros verbos. É por intermédio dos elementos lingüístico-discursivos, nesse caso os verbos,
que o sujeito enunciador interage com o outro, posicionando-se diante de argumentos de
conhecimento ou de crença. Esses verbos indicam duas modalidades
128
, a primeira é
epistêmica relacionada ao conhecimento, ao saber, a questões de opinião e de crença –, e a
segunda é deôntica ligada ao dever, à obrigação, à permissão e à conduta, enfim, a uma
ação.
127 As primeiras modalizações referem-se aos estudos aristotélicos, aparecendo as noções de verdade e/ou
falsidade das proposições.
128 Vilela e Koch (2001, p. 176), na esteira de Palmer, conceitua modalidade como a gramaticalização das
atitudes subjetivas do falante e a sua transposição para o conteúdo dos enunciados.
92
Os verbos de valores modais epistêmicos são predominantes nesse voto, o que por si
só se justificam por se tratar de um texto de opinião e de saber. Primeiramente, busco
exemplos dos verbos que apresentam o enunciado com valores de possibilidade e de
incertezas quanto ao futuro: [ . . . ] seria possível substituir, no texto de Pessoa, o primeiro E
pelas conjunções mas ou porém (adversativas) [ . . . ] (linha 65); [ . . . ] Na língua portuguesa,
a conjunção e
129
tanto pode assumir significado aditivo quanto adversativo [ . . . ] (linha 45);
[ . . . ] O argumento, que à primeira vista pode impressionar, todavia, não se sustenta [ . . . ]
(linha 93); [ . . . ] Mas há, ainda, as conseqüências de ordem emocional, que, embora não se
possam, por vezes, demonstrar com a mesma clareza e precisão numérica das moléstias
físicas, têm também sido estudadas
[ . . . ]
(linhas 494-495).
Em um segundo momento, trago os verbos com sentido deôntico, semanticamente
plenos: [ . . . ] Para compreender adequadamente essa evolução legislativa, é preciso
remontar à redação original do Código Penal, que impunha ao delito de estupro penalidade
de reclusão [ . . . ] (linha 99); [ . . . ] quanto o intérprete que complementa esse esforço de
aperfeiçoamento da sociedade necessitam, por doloroso ou repugnante que seja, ter exato
conhecimento da realidade sobre a qual irão incidir suas intervenções [ . . . ] (linhas 458-
459).
Os verbos subjetivos, que apresentam traços afetivos são significativos neste discurso,
e não poderiam deixar de sê-lo, pois é por intermédio deles que o sujeito enunciador legitima
o seu dizer, a sua opinião, expondo suas certezas e incertezas, questionando suas convicções e
as do mundo social. Busco alguns exemplos: [ . . . ] Creio ser possível afirmar, com base
científica, não haja no rol do Código Penal, [ . . . ] (linha 33); [ . . . ] ( e estão, a meu
sentir, as duas palavras de cuja exata apreensão semântico/estrutural depende a perfeita
interpretação de todo o artigo) [ . . . ] (linha 42); [ . . . ] para trazer dados que acredito
importantes para o exato dimensionamento do problema de que estamos tratando [ . . . ]
(linha 160).
A expressão modalizadora epistêmica vale dizer usada com certa evidência ao
longo dessa sentença, identifica a decisão do enunciador, o seu dizer. Ela constrói o dito
publique-se e registre-se – palavras freqüentes, no modo imperativo, usadas de maneira
129 Grifo do sujeito enunciador do Voto n° 81.360.
93
polida
130
no discurso jurídico. Mesmo ciente de que sua interpretação é igual ao de outro
colega de sessão, o enunciador sabe que precisa interagir dialogicamente com os demais
pares, pois quer aprovação de sua proposição. Os fragmentos seguintes mostram isto: [ . . . ]
Vale dizer, foi intenção do legislador, ao utilizar-se da conjunção coordenativa aditiva,
significar que são considerados hediondos [ . . . ] (linha 19); [ . . . ] Vale dizer, após o nomen
juris genérico do delito e, entre parênteses, encontra-se o número que o artigo [ . . . ] (linha
40); [ . . . ] em sua forma simples, vale dizer, aquela correspondente ao art. 213 [ . . . ] (linha
90); [ . . . ] penas ainda mais severas, vale dizer, reclusão de seis a dez anos, tanto para o
estupro, quanto para o atentado violento ao pudor [ . . . ] (linha 112). A expressão deve-se ler
também tem uma entonação imperativa: [ . . . ] Deve-se ler: estupro (art. 213 mais a
combinação dele [art. 213] com o art. 223, caput, parágrafo único) [ . . . ] (linha 82).
Assim, a repetição desses elementos lingüístico-discursivos serviu de estratégia na
formação textual do voto, servindo de elo para retomar constantemente ao objeto dessa
sentença: qualificar o estupro como crime hediondo. É a marca da voz do sujeito enunciador.
8.3.3 Adjetivos
O terceiro elemento linguístico-discursivo importante na teoria de Kerbrat-Orecchioni
é o adjetivo
131
, cuja função é atribuir uma determinada qualidade e característica ao sujeito e
ao objeto nomeado. Dessa maneira, os adjetivos reforçam o dizer do enunciador, agrupando-
se em classificadores e qualificadores.
Os primeiros, delimitando o dizer, agem denominativamente, localizam no espaço e no
tempo as vozes de uma interação dialógica, ou seja, mostram com clareza o que o enunciado
pretende dizer ao seu interlocutor. Apresentam caráter não-vago, não se relacionam
diretamente ao valor subjetivo do sujeito enunciador, podendo ser visto nos segmentos: [ . . . ]
e também o delito de atentado violento ao pudor, em suasd[( )-10.121537(d)-0.295585(e)3.142(s)-1.2312(:)-2.16436( )-110.1537(d)-0.295585(e)3.74(l0( )-10.u)-0.295585(t)-2.16436(87-2.16436(c)3.74(a)3.295585(t)-2.9]TJETQ34636115.877 39400 refq8.33333 0 0 8.33333 0 0 cm BT/R19 12 Tf0.99941 0 0 1 464392 741444 31[(,)-0.146571( )-90(e)3.74(-2.16436(n)-0.295585(a)3.74(l)-2.16436(u)-0.295585(s)-2.16436(s)3.74(e)3.74(r)l78]TJ/RQ3467 Tf5.877 39445 refq8.33333 0 0 8.33333 0 0 cm BT/R19 12 Tf0.99941 0 0 1 304.748741444 31[(,)-10.1525(n)-0.295542(o)-0.293142(r)-10.1525(n)-1.2312(o)-0.295542(r)l2.16436( )-10.153525)-0.293142(o)-0.295142(s)-18.774( )250]TJ-301.2887720.76 Td[(d)3.74(r)2..22997(i)-2.16558(m)1.57445(e)3.74(o)-1.22997( )-50815395)-0.295585(e)3.74(d)-0.295585(i)-2.16438(o)-0.295585( )-0.295585(d)-0.295585(o)-0.295585(s)38.22997( )-50815395u ão
94
literal, do dispositivo nos leva à mesma conclusão [ . . . ] (linha 37); [ . . . ] Creio ser possível
afirmar, com base científica, não haja no rol do Código Penal [ . . . ] (linha 33); [ . . . ] Tal
revogação se fez, afinal, de forma expressa, por meio da Lei n°. 9.281/96. Portanto, a
expressão caput, cuja inclusão em qualquer redação legislativa só faz sentido [ . . . ] Como se
viu, embora inicialmente introduzidos na redação original do Código Penal, [ . . . ] (linhas
124, 125, 129); [ . . . ] Apesar da subnotificação e da falta de uniformidade quanto aos
critérios de investigação laboratorial e dos sujeitos estudados puderam os especialistas
apurar que [ . . . ] (linha 269).
Os segundos exprimem opinião ou conhecimento do sujeito enunciador perante os
seus interlocutores e, quase sempre, se apresentam valores asseverativos e avaliativos. Os
adjetivos qualificadores podem mostrar um caráter vago, visto se tratar de uma avaliação
subjetiva. Alguns exemplos de qualificadores: [ . . . ] tenho por irretocável o raciocínio que
colhi, de manifestação perante o Superior Tribunal de Justiça [ . . . ] (linha 2); [ . . . ] Creio
ser possível afirmar, com base científica, não haja no rol do Código Penal, excetuado o
próprio homicídio, outra conduta agressiva que sujeite a respectiva vítima a tamanhas
consequências nefastas e que tanto se prolonguem no tempo [ . . . ] (linha 4); [ . . . ] Mas há,
ainda, as conseqüências de ordem emocional [ . . . ] (linha 8).
O enunciador utiliza-se do adjetivo com valor superlativo para intensificar a relação de
grandeza do poema escolhido para exemplificar e dirimir a dúvida gramatical em questão:
[ . . . ] A última estrofe do belíssimo poema Acordar da cidade de Lisboa”
132
, de Fernando
Pessoa, no heterônimo Álvaro de Campos, nos exemplo de ambas as formas [ . . . ] (linha
47). Sinaliza que o estupro traz o mais alto grau de potencialidade nefasta, físico-emocional,
ao corpo da mulher violentada: [ . . . ] A violação do corpo humano tem, como se viu,
altíssimo potencial de provocar um sem-número de graves moléstias físicas, disfunções
orgânicas e traumas emocionais [ . . . ] (linha 435).
O sujeito, ao ancorar o seu discurso em outras vozes, busca no outro parceiros desse
dizer - saberes reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal para fundamentar sua sentença.
Os adjetivos
133
epistêmicos do dito asseguram a veracidade desse argumento, evitando
132
ANEXO B.
133 Segundo Lapa (1998, p. 122), quando o adjetivo está logo depois do substantivo, tende a conservar o valor
próprio, objetivo, intelectual; quando está antes, tende a perder o próprio valor e a adquirir um sentido
95
dúvidas e valores subjetivos à textualidade do enunciado. Ao nomear especificamente este
outro, faz uso do adjetivo avaliativo, como mostram os fragmentos: [....] de manifestação
perante o Superior Tribunal de Justiça, do eminente Ministro Félix Fischer, que naquela
Corte capitaneia a corrente que prevaleceu em diversos julgamentos [ . . . ] (linha 12); [ . . . ]
Valho-me do concurso do Prof. Adalberto Kaspary
134
, autor renomado de diversos livros de
português jurídico, para afirmar que [ . . . ] (linha 56); [ . . . ] Tal raciocínio vem
desenvolvido em excelente artigo publicado na Revista do Tribunal Federal da 1
a
Região, da
lavra da Dra. Lilian da Costa Tourinho [ . . . ] (linha 137); [ . . . ] Colho subsídio precioso em
precedente da lavra de meu ilustre antecessor, Min. Octavio Gallotti [ . . . ] (linha 138); [ . . .
] Para bem compreender a terminologia técnica, prestou-me preciosa colaboração a Dra.
Dea Márcia Martins Pereira [ . . . ] (linha 173); [ . . . ] A esse propósito, nunca será
demasiado louvar a iniciativa pioneira da Associação Internacional de Mulheres
Magistradas, que, sob a dedicada coordenação da ilustre Desembargadora Shelma Lombardi
de Kato [ . . . ] (linhas 466- 467).
Ainda enfatizando os adjetivos qualificadores do seu dizer, o enunciador utiliza-se de
advérbios ou locuções adverbiais para reforçar com certa freqüência a intensificação
lingüística significativa desse contexto, conforme exemplos: [ . . . ] Em resumo, o Sr.
Ministro-Relator definiu os contornos da controvérsia e, também, e muito melhor do que eu
poderia fazê-lo [ . . . ] (linha 2); [ . . . ] Assim deliberando, mostrou-se o legislador atento à
efetiva gravidade deste crime, raras vezes denunciado, e que produz em suas vítimas tantas
seqüelas, tão graves e de tão extensa duração [ . . . ] (linhas 32-33); [ . . . ] Em 1990, o
Congresso Nacional editou uma das legislações mais modernas de proteção da infância, o
conhecido Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n°. 8.069, de 13/7/90 [ . . . ] (linha 101);
[ . . . ] que veio a prever para os mesmos delitos, penas ainda mais severas, vale dizer,
reclusão de seis a dez anos, tanto para o estupro, quanto para o atentado violento ao pudor.
[ . . . ] (linha 112); [ . . . ] viesse o agressor de menores a ser beneficiado com apenamento
mais brando, invocando-se justamente a legislação concebida para estender maior proteção
à criança e ao adolescente [ . . . ] (linha 122); [ . . . ] O delito de que estamos tratando é
afetivo. O uso do adjetivo anteposto ao nome ou objeto referido produz, em geral, um efeito lingüístico de
maior subjetividade ao dizer do enunciador.
134 O único adjetivo posposto ao substantivo é o que se refere a este sujeito, permitindo-me dizer que talvez se
trate de uma deferência especial ao professor de língua, cuja voz serviu de argumento relevante à sentença
do enunciador.
96
daqueles que, por suas características de aberração e de desrespeito à dignidade humana,
causa tão grande repulsa, [ . . . ] (linha 148).
Kerbrat-Orecchioni (1980) afirma que a posição do adjetivo está diretamente
relacionada com a subjetividade ou a objetividade da linguagem, assim, o enunciador ao
antepor o adjetivo ao substantivo está fazendo uso de um enunciado com maior grau de
subjetividade.
8.3.5 Advérbios
Para dar continuidade às estruturas marcadas de subjetividade encontradas nesse voto,
recorro aos advérbios
135
, pois eles determinam tais como os pronomes demonstrativos
espaço e tempo em um contexto dialógico, visto o tempo ser concebido como um lugar, um
espaço, uma linha em movimento, ou seja, o próprio tempo é espaço (PONTES, 1972).
Kerbrat-Orecchioni (1980) analisa os advérbios quanto à função de espaço, de tempo e de
modalização, e na esteira de Neves (2006)
136
, busco os advérbios modificadores e não-
modificadores em um discurso.
Nesta análise, os advérbios são relevantes à medida que participam como elementos
discursivos-linguísticos com o dito do enunciador, assegurando o deferimento a esse voto
entre seus pares. Ao longo da argumentação do voto, o sujeito delega um espaço lingüístico
privilegiado aos advérbios modalizadores, aos afetivos e aos circunstanciais, já que eles
implicam uma ordenação discursiva, sustentando o seu o dito, o seu dizer e o seu querer dizer.
135Os advérbios, cuja função é modificar elementos intrafrásicos ou extrafrásicos de um enunciado, classificam-
se em duas categorias: a) frásicos - modificam verbos, adjetivos, outros advérbios, substantivos e frases
inteiras. Nesse olhar, o advérbio pode ter a função de tempo, de lugar, de afirmação, de dúvida, de
intensificação, de modo, de negação, de designação, de interrogação, de inclusão e de exclusão. A
modificação adverbial também pode ocorrer fora da frase, por meio dos intrafásicos; b) extrafrásicos -
resultam da intervenção do enunciador por intermédio do dito (advérbios avaliativos e assertivos), do dizer
(advérbios de ordenação discursiva, de analogia, de oposição, de reformulação textual), do querer dizer
(dizem algo sobre o ato ilocutório). (VILELA; KOCH, 2001).
136 Os advérbios, segundo Neves (2006), classificam-se: a) modificadores dividem-se em qualificadores,
intensificadores, modalizadores, delimitadores, deônticos e afetivos; b) não-modificadores agrupam-se em
circunstanciais, inclusão, exclusão e verificação e juntivos.
97
A modalidade
137
, ao se constituir como recurso de expressão de valores, de atitudes e de
sentimentos do enunciador, origina novos usos, inclusive nas intenções comunicativas
envolvidas no discurso do sujeito enunciador.
A escolha dos advérbios e a sua localização hierárquica no voto definem as intenções
do enunciador: assegurar que seu parecer seja aceito pelas demais vozes ministeriais do
Supremo Tribunal Federal. O uso dos advérbios modalizadores garante ao enunciador
mecanismos que validem o seu dizer, diminuindo a possibilidade de o interlocutor pôr em
dúvida a veracidade dos argumentos apresentados. O advérbio de tempo é o responsável pela
expressão de simultaneidade nos discursos entre os sujeitos.
O sujeito enunciador modaliza com certa freqüência o seu discurso mediante advérbios
asseverativos, e, ao fazer uso dos terminados em mente, que colocados no interior do
enunciado e incidindo na categoria verbal e adjetival do mesmo, reforça a força ilocucionária
de assertividade e de certeza do seu dizer. Busco alguns exemplos: [ . . . ] o legislador
delimitou a reprimenda exclusivamente para a forma qualificada. Não o fez relativamente ao
delito de estupro. [ . . . ] (linhas 29-30); [ . . . ] Donde concluir-se que, no caso, a conjunção
tem significado inegavelmente aditivo.[ . . . ] (linha 73); [ . . . ] Para compreender
adequadamente essa evolução legislativa, é preciso remontar à redação original do Código
Penal [ . . . ] (linha 98); [ . . . ] Talvez, por isso, significativamente, o grupo de estudos de
violência contra a mulher da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em
trabalho organizado pelas Profas. Patrícia K. Grossi e Graziela C. Werba, deu ao livro que
recentemente publicou o título “Violências e Gênero - Coisas que a gente não gostaria de
saber. (linhas 151-154).
O advérbio tem seu significado fundido ao de um outro elemento, e desse processo
resulta um todo semanticamente amalgamado, e é nesse contexto que o sujeito aproveita o
tempo e o espaço para nomear as vozes contrárias à sua interpretação. No momento em que o
enunciador escolhe o advérbio expressamente para delimitar o número do processo a que está
137
Ilari (1981) afirma que os advérbios colocados no início de um enunciado têm a função de modalizadores do
discurso; os que estão no meio do texto funcionam como modalizadores sentenciais. Por compartilhar com o
entendimento desse teórico (2006), não estabeleço diferenças entre modalidade e modalizador, nesta tese.
Justifico tal opção por acreditar que sempre um dizer anterior ao do enunciador sobre a argumentação a
que ele se propõe a defender. O eu do sujeito enunciador traz os eus das vozes dos outros que, de uma
maneira ou de outra, interagem no seu discurso.
98
se referindo, evita qualquer mal-entendido posterior, e ao se justificar lança mão de
parêntese
138
, categoria que reforça a subjetividade da voz daquele que fala:
[ . . . ] também
das respeitáveis vozes que nesta Casa se manifestam em sentido contrário, (e refiro
expressamente o Habeas Corpus 78.305, Rei. Min. José Néri da Silveira, in DJ de
8/6/1999, o Habeas Corpus 80.223, Rei. Min. Nelson Jobim, in DJ de 15/8/2000 e o
Habeas Corpus 80.479, Rei. Min. Nelson Jobim, in DJ de 5/12/2000) [ . . . ] (linha 9).
O enunciador também faz uso dos advérbios juntivos para sinalizar novas relações de
interpretação sobre o artigo em análise. Assevera um novo dizer, sem anular o dito das vozes
do outro, apenas se opondo a eles mediante novas informações trazidas por outras vozes não-
jurídicas, de gêneros discursivos das áreas da lingüística e da saúde. Trago alguns fragmentos:
[ . . . ] Entretanto, gostaria de acrescentar ainda algumas considerações. [ . . . ] (linha 4);
[ . . . ] Todavia, é impossível fazer a leitura substituindo o e por mas ou porém [ . . . ] (linha
71); [ . . . ] Todavia, o referido estatuto teve sua vigência protraída por noventa dias (art.
266), entrando em vigor apenas em 13/10/9. [ . . . ] (linha 109); [ . . . ] No entanto, tanto o
legislador que atua sobre a realidade, para transformá-la, quanto o intérprete que
complementa esse esforço de aperfeiçoamento da sociedade [ . . . ] (linha 156); [ . . . ] Apesar
da subnotificação e da falta de uniformidade quanto aos critérios de investigação
laboratorial e dos sujeitos estudados [ . . . ] (linha 269).
Os advérbios quase sempre remetem o sujeito ao momento do seu dizer, e quando isso
não acontece, buscam outro acontecimento para servir de referência a esse dito. É por
intermédio de um advérbio que o sujeito enunciador comunica que sua sentença está dividida
em duas partes, argumentativamente. A primeira refere-se aos danos de contágio, palpáveis,
visíveis no corpo da mulher violentada; a segunda, aos danos psíquicos, aos traumas
emocionais. Ao dizer Até aqui, os danos de contágio (linha 287), o enunciador mostra essa
estrutura composicional, que o tempo gramatical acrescido ao advérbio informa ao
interlocutor o tempo e o espaço do discurso dialógico em que ambos atuam.
A sentença judicial, que faz parte do discurso jurídico, resulta da interação entre a
decisão e a motivação do magistrado a fundamentação perante o processo a ser analisado.
138 Authier-Revuz (1990) utiliza o emprego de aspas e de parênteses como elemento do discurso marcado
(direto e indireto). O ponto de vista dessa teórica não é abordado nesta pesquisa.
99
Apesar de as antigas sentenças sobre este mesmo delito, o estupro, serem contrárias a
considerá-lo como crime hediondo, o enunciador traz outras vozes a esse discurso. A
polifonia das vozes ministeriais que deferiram o arrazoado apresentado pelo sujeito
enunciador dessa proposta, constrói alguns avanços, mesmo que tenha sido pouco tempo, a
estruturas legitimadoras e interpretações cristalizadas do Direito. No próximo subcapítulo, por
intermédio da voz do sujeito enunciador trago as vozes desses ministros.
8.4 Vozes dos Pares do Sujeito Enunciador
O enunciador, ao fundamentar o seu discurso e transformá-lo em jurisprudência, tem
apoio de sete ministros, de um grupo de onze. Inicialmente traz a própria voz acrescida a de
um colega de sessão [ . . . ] e muito melhor do que eu poderia fazê-lo, opôs-lhe o contraponto
o eminente Ministro Carlos Velloso.[ . . . ] (linha 3), colocando-se como dissidentes ao antigo
entendimento à Lei dos Crimes Hediondos: o delito era qualificado como tal, se resultasse
em lesões corporais graves ou morte.
Busca em seu antecessor mais argumentos ao seu próprio ponto de vista:
Colho subsídio precioso em precedente da lavra de meu ilustre antecessor,
Min. Octavio Gallotti, que, a propósito, tratando embora do delito de
atentado violento ao pudor, em tudo assemelhável à hipótese do estupro,
assim ementou julgado unânime da Primeira Turma: “Crime hediondo. A
classificação prevista no art. 1º da Lei nº. 8.072/90 diz respeito tanto à forma
simples do delito tipificado no art. 214, como à qualificada, capitulada no
art. 223, caput e parágrafo único, ambos do Código Penal”. (linhas 239 a
245).
Dessa maneira, o enunciador, ao trazer a voz do outro, posiciona-se contrário à
interpretação baseada apenas na letra fria da lei. A leitura dessa lei não pode ser feita
isoladamente, é a leitura sistêmica que permite enquadrá-la como crime hediondo. O sujeito
enunciador utiliza-se da paráfrase para nomear sujeitos com reconhecido saber na área
jurídica, cuja compreensão sobre o crime estupro vai ao encontro do seu discurso:
Tal raciocínio vem desenvolvido em excelente artigo publicado na Revista
do Tribunal Federal da 1ª Região, da lavra da Dra. Lilian da Costa Tourinho,
onde se referem os autores que têm abonado idêntico entendimento, a saber:
Damásio Evangelista de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete, Antonio Scarance
100
Fernandes, Celso Delmanto, Paulo José da Costa Júnior entre outros [ . . . ].
(linhas 132 a 137).
Mediante a voz de Nelson Hungria
139
, o enunciador justifica a sua análise não de
magistrado, mas também em outras áreas de conhecimento que afetam a mulher violentada:
Na lição do mestre Nelson Hungria, em caso de lesão corporal “não se trata,
como o nomen juris poderia sugerir, prima facie, apenas do mal infligido à
inteireza anatômica da pessoa. Lesão corporal compreende toda e qualquer
ofensa ocasionada à normalidade funcional do corpo ou organismo humano,
seja do ponto de vista anatômico, seja do ponto de vista fisiológico ou
psíquico. Mesmo a desintegração da saúde mental é lesão corporal, pois a
inteligência, a vontade ou a memória dizem com a atividade funcional do
cérebro, que é um dos mais importantes órgãos do corpo. Não se concebe
uma perturbação mental sem um dano à saúde e é inconcebível um dano à
saúde sem um mal corpóreo ou uma alteração do corpo. Quer como alteração
da integridade física, quer como perturbação do equilíbrio funcional do
organismo (saúde), a lesão corporal resulta sempre de uma violência
exercida sobre a pessoa”. (linhas 441 a 452).
Assim, feita a leitura sistemática, o enunciador enriquece e avança nas decisões
proferidas por Hungria. Traz para o seu contexto de trabalho, o texto, vozes de estudiosos que,
mediante pesquisas científicas, demonstram a gravidade dos danos psíquicos, muitas vezes,
mais conduntende e duradouro que os danos físicos no corpo da mulher violentada. Acredito
que aqui esteja o fundamento do mérito do voto do sujeito enunciador deste corpus.
139
Nelson Hungria Hoffbauer é uma referência na área jurídica, participou da elaboração do Código Penal, do
Código de Processo Penal, da Lei das Contravenções Penais e da Lei de Economia Popular. Nasceu em
Minas Gerais, 1891, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1969.
101
8.5 Vozes dos Saberes de Conhecimento
A linguagem é um lugar de ancoragem para os saberes de conhecimento, pois é por
meio dela que os sujeitos cada vez mais sujeitos discriminam, classificam e julgam o mundo
em que vivem. Esses saberes extrapolam a subjetividade do sujeito enunciador até porque o
eu precisa se fazer presente na coletividade, o outro, que dialoga –, pois a construção da voz
do expert tem a razão científica, a ciência, no seu saber (CHARAUDEAU, 2006).
A voz do professor Kaspary (1994) dá início às muitas outras vozes existentes nesse
voto. O enunciador o qualifica como sendo autor renomado de diversos livros de português
jurídico, mostrando que, além de ser professor de Língua Portuguesa, ele se debruça sobre os
estudos do gênero jurídico. Essa referência justifica-se, porque o seu argumento se ancora,
inicialmente, em uma regra gramatical: a conjunção e tem função aditiva na referida lei.
[ . . . ] no dispositivo sob análise, a conjunção e está inquestionavelmente
em sua acepção básica, originária, isto é, aditiva. Até porque a conotação
adversativa desta conjunção se verifica mais em textos literários, subjetivos,
sendo incompatível com o valor denotativo, não-subjetivo, com que as
palavras devem ser empregadas no linguajar jurídico-legal [ . . . ]. (linhas
60-64).
A seqüência textual do voto desenvolve-se mediante as vozes desses especialistas
analisadas anteriormente: a do professor, a dos colegas do Supremo Tribunal Federal e dos
estudiosos da área jurídica. A partir da linha 151, em um segundo momento, aparecem as
vozes dos técnicos em saúde pública.
O voto é praticamente amparado na pesquisa do Coordenador do Serviço de Atenção
Integral à Mulher Sexualmente Vitimada do Centro de Referência da Saúde da Mulher e
Consultor sobre Violência Sexual do International Project Assistence Service IPAS, EUA.
A voz desse técnico afirma que os casos de agressão sexual nem sempre são denunciados aos
órgãos competentes:
[ . . . ]
Algumas condições específicas podem comprometer ainda mais a
notificação destes crimes. Assim, é possível que a agressão sexual ocorrida
dentro das relações de matrimônio ou união consensual esteja entre as mais
ocultadas [ . . . ]. Nos casos de incesto, estes percentuais podem ultrapassar
os 95% em determinadas comunidades [ . . . ] (linhas 200-205).
102
A professora Lori Heise, diretora do Projeto Violência, Saúde e Desenvolvimento do
Instituto do Pacífico para a Saúde da Mulher, ratifica a voz do sujeito anterior, dizendo que
apenas 16% dos casos de estupro são registrados, comparativamente aos 61,5% dos assaltos e
82,5% dos roubos. Segundo ela,
[ . . . ] as estatísticas de delitos são virtualmente inúteis para estimar a
103
EUA determinou que as vítimas de estupro eram nove vezes mais propensas
a cometer tentativas de suicídio e duas vezes mais susceptíveis à depressão
profunda que as mulheres não-vitimadas [ . . . ]. Os estudos de
acompanhamento demonstraram que as sobreviventes de estupro
apresentam maiores índices de transtorno de estresse pós-traumático
prolongado que as vítimas de outros tipos de violência [ . . . ]. Alguns
especialistas consideram que as mulheres vítimas de abuso e agressão
sexual constituem o maior grupo individual com problemas de estresse pós-
traumático e que o estupro é o evento individual com maior probabilidade
de causar estresse pós-traumático (linhas 384-395).
8.6 Voz Social
A voz social é a voz do eu e do outro. A voz de qualquer sujeito é social, independente
da comunidade social em que viva. Dessa maneira, as vozes do sujeito enunciador, dos
ministros do Supremo Tribunal Federal, dos especialistas na área da lingüística e da saúde
presentes neste corpus, são sociais. Elas resultam de um aprendizado cultural e histórico.
Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 76) afirma não ser mais possível, atualmente, descrever
de modo eficaz o que se passa nas trocas comunicativas sem considerar alguns princípios da
polidez, na mediada em que tais princípios exercem pressões muito fortes sobre a produção
dos enunciados. As normas que amparam os comportamentos sociais, o bem comum,
preexistem ao mesmo tempo em que a eles são também atingidos pelos efeitos punitivos e/ou
agraciados na construção da identidade dos sujeitos de um determinado contexto social. A
teórica (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 77) esclarece que o conceito de polidez
lingüística ultrapassa a idéia de boa convivência e etiqueta, pois resulta de todos os aspectos
do discurso que são regidos por regras, cuja função
104
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma voz social desde 1990, pois resulta de
muitas trocas de diálogos com os legisladores brasileiros, com a sociedade em seu todo,
principalmente pela intervenção popular de estudiosos de crianças de rua, de risco e de
ONGs cujo objeto de trabalho é priorizar o bem-estar da criança e do adolescente. O livro
Violências enero - Coisas que a gente não gostaria de saber
140
, ao ser lançado nas
livrarias e no mundo acadêmico, engrossa as vozes sociais interessadas nesse tema.
O Prof. Dr. Drezett Ferreira ao dizer que em nosso meio, acredita-se que a maior parte
das mulheres não registre queixa por constrangimento e medo de humilhação, somados ao
receio da falta de compreensão ou interpretação dúbia do parceiro, familiares, amigos,
vizinhos e autoridades (linhas 214 e 217), junta-se à voz do sujeito enunciador que afirma que
em regra, preferem ocultá-lo e que a sociedade, em geral, prefere relegar a uma
semiconsciência sua ocorrência, os níveis desta ocorrência e o significado e repercussões que
assume para as vítimas deste tipo de violência (linhas 148-151). Vozes que dizem, ‘falam’, o
que o povo brasileiro, como sujeito, sabe: a existência de clínicas que praticam aborto
ilegalmente, inclusive para os decorrentes de estupro.
A voz social advinda de duas professoras, membros do Comitê Latino-Americano e do
Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher e do Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo, alertam aos sujeitos detentores de discursos de autoridade a
importância de intervirem com ações concretas no delito aqui analisado:
[ . . . ] A violência sexual do estupro, enquanto violência de gênero é
fenômeno praticamente universal. Contudo não é inevitável e muito menos
incontrolável. Como demonstram estudos transculturais, as relações entre
os sexos e as políticas dos sexos diferem radicalmente de sociedade para
sociedade, sendo em muito determinadas por complexas configurações de
arranjos econômicos, políticos, domésticos e ideológicos. [ . . . ] a polícia,
o Ministério Público e o Poder Judiciário não se comportam de forma
criativa e ativa em relação a providências que poderiam melhor garantir a
efetividade do processo legal ”. (linhas 456-464).
O enunciador afirma que as vozes acima enfatizam a necessidade de sensibilização
quanto à questão de gênero dos operadores do Direito (linha 464). O sujeito desse voto
mostra sensibilidade a essa questão, trazendo vozes para o interior do seu discurso. Vozes que
ajudam o seu texto a interagir com outros saberes, resultando em leitura obrigatória aos seus
140
ANEXO A.
105
pares de Supremo Tribunal Federal. Ela poderia ter transcrito o dito de outras decisões,
simplesmente isso. Mas deu um passo a favor de outras tantas vozes que não têm poder e nem
autoridade para modificar verdades ditas cristalizadas.
106
9 CONCLUSÃO
A tarefa de tecer considerações finais de um processo de investigação, mesmo não
tendo a intenção de tê-lo como verdade absoluta, é apenas vê-lo como o mais bem adequado
para o momento atual. Foi um longo percurso em leituras, por isso mesmo, tenho a certeza de
que esta pesquisa não se encerra com este trabalho.
Partindo de Bahktin (1999), cujo escopo é o dialogismo entre os sujeitos, observo que
a interação com o outro, em diferentes arenas, não é uma simples troca de idéias, de palavras:
muito pelo contrário, esse outro faz parte da minha essência, e vice-versa. Interagir com
sujeitos que não façam parte do nosso dia-a-dia exige uma interpretação ideológica mais
severa desse compartilhar.
A análise deste voto, do ponto de vista de uma lingüista, mostra-me que o dizer e o
dito do enunciador não estão apenas no argumento do conetivo e
141
, vai além. É na
intersubjetividade com outras vozes, tendo como perspectiva promover novas transformações
sociais, que está a importância da sua responsividade. Embora geralmente as decisões sejam
calcadas em sentenças anteriores, proferidas por juristas mais conceituados
142
, o sujeito
enunciador desse voto assume atitude contrária à analogia em que o filho tem como ídolo o
pai, relatada por Bueno de Carvalho (2002, p. 10):
[ . . . ] e como o saber do pai é expresso em acórdãos, seu continente é um:
transcrever, sempre e sempre, a vontade jurisprudência do seu superior.
Então a melhor sentença, na visão daquele que assume a condição de pai
(ou seja, quer que se lhe agrade) é aquela que mais copia acórdãos os
seus acórdãos preferentemente.
O enunciador deste voto, sabendo que as palavras que compõem a norma jurídica
comportam mais de um significado, busca uma nova interpretação ao seu objeto de pesquisa:
tipificar o crime de estupro como crime hediondo. Persegue um caminho semelhante ao
Bakhtin: parte do objeto como ponto de partida, e mediante o resultado dessa complexidade,
141 [ . . . ] o Ministro Jobim mudou seu posicionamento, [ . . . ] anteriormente havia feito leitura isolada da lei,
e não interpretou corretamente o significado da conjunção e’, que nesse caso significaria adição.
(INFOJUS, 24.08.04, p. 2).
142 ANEXO A.
107
busca a solução desse problema em uma ciência existente, na inexistência dessa ciência,
constrói uma nova ciência.
Acredito que este tenha sido o percurso do voto aqui analisado. Todo texto faz parte de
uma cadeia de textos, porque ele é sempre precedido por outro, e, segundo Kerbrat-
Orecchioni (1980), toda questão é um questionamento ao outro, e, depois dele, virão outros
textos – aqui compreendido como discurso dialógico – os quais a ele responderão. Essa
reflexão requer uma resposta e é por meio dessa resposta, muitas vezes, que os sujeitos de
uma sociedade são atendidos em suas necessidades.
Gadamer (1999) contribui com os sujeitos da comunidade jurídica ao afirmar que a
compreensão de um texto se refere à leitura ou à interpretação dos textos. A história de uma
sociedade é relevante, porque ela é a expressão da tradição cultural desses sujeitos. O referido
teórico afirma que a linguagem é também a manifestação dessa comunidade, visto ser a
palavra que leva os sujeitos à transformação do senso comum, por ele chamado de verdade. A
Hermenêutica Jurídica permite ao magistrado interpretar o ordenamento jurídico, inclusive,
oportuniza-o a dar uma nova interpretação jurídica judiciária a um determinado artigo,
deixado, muitas vezes, com sentido ambíguo, vago, pelo discurso jurídico legislativo.
Esse teórico (1999, p. 485) sinaliza que o magistrado não pode sujeitar-se a que, por
exemplo, os protocolos parlamentares lhe ensinariam com respeito à intenção dos que
elaboraram a lei, e é o que o sujeito enunciador, no Voto n 81.360, faz ao esclarecer o seu
dito aos seus pares do Supremo Tribunal Federal, mediante as vozes de saberes múltiplos e as
vozes do sujeito brasileiro, representando a voz social. Essa decisão permite-me verificar
particularidades de enunciados pertencentes ao nero voto: procedimentos estruturais
padronizados, forma composicional irreproduzível, historicamente individual, único. Muito
além do conetivo e, gramatical, reconhece os valores subjacentes à letra da lei, e nessa
reflexão rigorosa direciona o seu dizer de autoridade, garantindo o bem comum de uma
sociedade.
108
Minha Voz
O discurso jurídico, principalmente a partir das “Diretas já”, com a interpretação
errônea de algumas vozes sobre os Direitos Humanos, volta-se ao debate das questões
políticas. A homologação da Lei 11646/07, que admite a progressão de regime prisional
também para quem tenha praticado o crime de estupro, do mesmo modo é uma questão
política.
A partir de 28/02/06, com o benefício concedido a um pastor evangélico condenado
por atentado violento ao pudor, cujas timas são três crianças, o Supremo Tribunal Federal
deixou de postular a aplicação de lei: preso por crime hediondo merece tratamento
diferenciado do preso comum, abafando algumas vozes que sustentaram a Lei 8.072/90, que
balizou o argumento do corpus aqui analisado. Aparentemente essa decisão deveria beneficiar
somente Oséas de Campos, mas concretamente não foi o que aconteceu, pois esse mesmo
tribunal já beneficiou mais de 200 detentos, de fevereiro a agosto do corrente ano.
A leitura sobre esta mudança jurídica
143
está nas vozes de alguns estudiosos do Direito
que dizem ter relação estreita com a mudança dos novos sujeitos que compõem o atual quadro
de ministros do Supremo Tribunal Federal. Esta lei é institucional desde março de 2007 e
garante ao estuprador redução de pena, ou seja, não precisa cumpri-la integralmente no
regime fechado.
É justo um estuprador, atrevo-me a dizer um sujeito cada vez menos sujeito, ter
redução de pena?
Um estudo relata a redução de 50% a 60% da reincidência de delinqüentes sexuais
mediante uso de métodos cognitivo-comportamentais, mas constata ineficácia quando o
criminoso conhece e administra as regras e estratégias para driblar o profissional que organiza
essas terapias. Esse mesmo estudo narra o trabalho feito pelo Dr. Bernd Wischika
144
, na
Alemanha, mais especificamente no presídio de Lingen, que comprova essa possibilidade de
diminuir a reincidência, embora afirme que esse tratamento demanda tempo e esforço e, creio
143 Ver ANEXO E.
144 TERAPIA contra a Barbárie (2007, p. 85-89).
109
eu, também, muito dinheiro. No entanto, diz ser ingenuidade e, até mesmo, imprudência
acreditar que os presos possam controlar-se sozinhos no retorno à sociedade, sem a ajuda de
terapeutas. Paradoxalmente, a avaliação psicológica não é mais um pré-requisito para o
apenado brasileiro pedir ao magistrado
145
progressão de pena, nos termos da Lei de Execução
Penal. Evidentemente, esse tratamento aos apenados, por enquanto, é inviável no Brasil: não
há dinheiro para educação e saúde.
Não é por acaso que os estupradores têm uma ala para eles nos presídios, os demais
presos não aceitam esse tipo de delito. São vozes de sujeitos que delinqüiram, que estão no
mesmo contexto aglomerado físico presídio –, mas em espaços físicos diferentes por não
interagiram com o mesmo discurso dialógico dos estupradores. A Lei do Talião
146
, parece-me,
é usada com mais rigor para esse delito.
É época de mudanças: um número considerável de parlamentares quer um Brasil mais
humano e justo. necessidade de que a sociedade pressione o legislador brasileiro a
atualizar a Constituição Federal. Creio, ainda, que o atual voto aqui analisado, ao de garantir
que o estupro é crime hediondo, poderá ter a mobilização de outras vozes que não pertencem
ao discurso jurídico e ao discurso legislativo a fim de obter empenho e mobilização para
construírem andaimes, arquitetonicamente, com o intuito de diferenciar um beijo lascivo de
um estupro. O crime hediondo diferenciava o modo do cumprimento do delito dentro de um
presídio: vedação à execução progressiva da pena, no entanto, hoje, já não mais privilégio
para os sujeitos que praticam delitos sem serem hediondos todos, sem exceção −, têm
direito a progressão ao regime prisional.
Quem sabe, esta é a hora de sujeitos cada vez mais sujeitos em uma mesma arena,
ressoarem em muitas outras vozes, unindo-se para fazer uso da cidadania de cada um para
pressionar o Poder Legislativo, cuja voz representa o discurso jurídico legislativo, a fim de
postular esta mudança uma lei que penalize com maior rigor crime que os próprios presos
abominam: o delito de estupro diante de sua hediondez.
145 O que não impede ao magistrado a requisitar uma avaliação psicológica, inclusive acompanhada da
avaliação de uma assistente social.
146 Lembro-me que as presas da penitenciária Madre Pelletier agrediam sexualmente as mulheres que
permitiam o estupro, pelo marido ou parceiro, ou agressão física violenta aos filhos.
110
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117
ANEXOS
118
ANEXO A
V O T O n° 81.360
A Senhora Ministra Ellen Gracie: - Em resumo, o Sr. Ministro-Relator
definiu os contornos da controvérsia e, também, e muito melhor do que eu poderia
fazê-lo, opôs-lhe o contra ponto o eminente Ministro Carlos Velloso. Entretanto,
gostaria de acrescentar ainda algumas considerações.
Em que pese alguma vacilação da jurisprudência do STJ
147
quanto ao
tema, de ser o delito de estupro, e também o delito de atentado violento ao pudor,
em suas formas básicas, incluível no rol dos crimes hediondos ou não, e, sem
embargo, também das respeitáveis vozes que nesta Casa se manifestam em sentido
contrário, (e refiro expressamente o Habeas Corpus 78.305, Rel. Min. José Néri
da Silveira, in DJ de 8/6/1999, o Habeas Corpus nº 80.223, Rel. Min. Nelson
Jobim, in DJ de 15/8/2000 e o Habeas Corpus 80.479, Rel. Min. Nelson Jobim, in
DJ de 5/12/2000), tenho por irretocável o raciocínio que colhi, de manifestação
perante o Superior Tribunal de Justiça, do eminente Ministro Félix Fischer, que
naquela Corte capitaneia a corrente que prevaleceu em diversos julgamentos.
A Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, ao relacionar quais os delitos
considerados hediondos, foi expressa ao referir o estupro, apondo-lhe, entre
parênteses, a capitulação legal: art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único. Vale dizer, foi intenção do legislador, ao utilizar-se da conjunção
coordenativa aditiva, significar que são considerados hediondos: (1) o estupro em
sua forma simples, que, na definição legal, corresponde a: constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça; (2) o estupro de que resulte
lesão corporal de natureza grave; e (3) o estupro do qual resulte a morte da vítima.
A análise sistêmica
148
do artigo da Lei 8.072/90 revela a correção
desta assertiva, pelo tratamento dado a outros delitos igualmente classificados entre
os que merecem especial repúdio do corpo social. Assim, na extorsão (art. 158,
parágrafo 2º), no roubo (art. 157, parágrafo 3º, in fine), na epidemia (art. 267,
parágrafo 1º), o legislador delimitou a reprimenda exclusivamente para a forma
qualificada. Não o fez relativamente ao delito de estupro. Assim deliberando,
mostrou-se o legislador atento à efetiva gravidade deste crime, raras vezes
denunciado, e que produz em suas vítimas tantas seqüelas, tão graves e de tão
extensa duração. Creio ser possível afirmar, com base científica, não haja no rol do
Código Penal, excetuado o próprio homicídio, outra conduta agressiva que sujeite a
respectiva vítima a tamanhas conseqüências nefastas e que tanto se prolonguem no
tempo.
Até mesmo a pura análise gramatical, ou literal, do dispositivo nos leva
à mesma conclusão. Compõe-se a redação do inciso como segue: V - estupro (art.
213 e sua combinação com o art. 223, caput, parágrafo único). Vale dizer, após
o nomen juris genérico do delito e, entre parênteses, encontra-se o número que o
147 Quadro 1, ANEXO B, elaborado pela assessoria do Min. Hamilton Carvalhido, do STJ
148 Quadro 2, ANEXO C.
01.
02.
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38.
119
artigo assumiu no corpo do Código Penal. Seguem-se (e estão, a meu sentir, as
duas palavras de cuja exata apreensão semântico/estrutural depende a perfeita
interpretação de todo o artigo e o deslinde da mens legis), a conjunção e e o
pronome sua (combinação etc).
Na língua portuguesa, a conjunção e tanto pode assumir significado
aditivo quanto adversativo.
A última estrofe do belíssimo poema “Acordar da cidade de Lisboa”, de
Fernando Pessoa, no heterônimo Álvaro de Campos, nos exemplo de ambas as
formas. Diz ele:
“Por isso, não te importes com o que penso,
E muito embora o que eu te peça,
Te pareça que não quer dizer nada,
(...)
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também.”
149
Valho-me do concurso do Prof. Adalberto Kaspary, autor renomado de
diversos livros de português jurídico
150
, para afirmar que “na estrofe do poeta, o
primeiro E tem valor adversativo, sendo perfeitamente substituível por uma das
conjunções adversativas propriamente ditas, tais como mas ou porém.”
“Já no dispositivo sob análise, a conjunção e esinquestionávelmente
em sua acepção básica, originária, isto é, aditiva. Até porque a conotação
adversativa desta conjunção se verifica mais em textos literários, subjetivos, sendo
incompatível com o valor denotativo, não-subjetivo, com que as palavras devem ser
empregadas no linguajar jurídico-legal.”
Para efeito da análise de que nos ocupamos, seria possível substituir, no
texto de Pessoa, o primeiro E pelas conjunções mas ou porém (adversativas). O
segundo E, tem nítida conotação aditiva. Dá-me rosas e, mais ainda, e, além delas,
lírios também.
No inciso de que estamos tratando é possível ler: V - estupro (art. 213 e,
mais ainda, sua combinação com ...”; ou “V - estupro (art. 213 e, além dele, sua
combinação com ...”. Todavia, é impossível fazer a leitura substituindo o e por mas
ou porém. Donde concluir-se que, no caso, a conjunção tem significado
inegavelmente aditivo.
Diz ainda o Prof. Kaspary: “De outra parte, a forma pronominal sua
está no dispositivo em apreço, na condição de pronome adjetivo possessivo, na sua
relação originária de posse, pertinência. Sinonimiza com a forma genitiva dele do
149 PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1964, f. 102.
150 KASPARY, A. J. Habeas Verba: português para juristas. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1994. 235p.
KASPARY, A. J. O Verbo na Linguagem Jurídica: acepções e regimes. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1996. 388p.
39.
40.
41.
42.
43.
44.
45.
46.
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120
pronome pessoal reto da terceira pessoa e, na estrutura redacional do dispositivo
(inciso V), refere-se ao termo artigo 213, que o precede.”
Assim, a redação original do inciso V, que é:
“estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput, parágrafo
único)”
Deve-se ler:
“estupro (art. 213 mais a combinação dele
[
art. 213
]
com o art. 223,
caput, parágrafo único).”
Ou seja, o legislador pretendeu - e corretamente redigiu o dispositivo
para tanto - significar que estava apontando, para inclusão no rol dos delitos
considerados hediondos, o estupro, tal como vai descrito no art. 213, mais as suas
formas qualificadas pela lesão corporal de natureza grave e a morte.
Insistem, alguns defensores, na tese de que o delito, em sua forma
simples, vale dizer, aquela correspondente ao art. 213, teria sido retirado do rol dos
crimes hediondos, quando, a partir da edição da Lei 8.930/94, foi eliminada da
redação do art. 1º, inciso V, da Lei nº 8.072/90, a referência ao caput do mesmo art.
213. O argumento, que à primeira vista pode impressionar, todavia, não se sustenta.
A extração da palavra caput da redação do art. 1º, V, corresponde, não a
uma alteração de conteúdo do dispositivo, mas tão-somente, à adaptação de sua
forma às alterações legislativas que se seguiram à redação original da Lei dos
Crimes Hediondos. Para compreender adequadamente essa evolução legislativa, é
preciso remontar à redação original do Código Penal, que impunha ao delito de
estupro penalidade de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos. Em 1990, o Congresso
Nacional editou uma das legislações mais modernas de proteção da infância, o
conhecido Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13/7/90. Esta Lei,
entre tantos outros dispositivos acauteladores dos interesses dos menores, inseriu,
por meio de seu artigo 263, parágrafos únicos aos artigos 213 e 214 do Código
Penal, agravando as penas aplicáveis a tais delitos, quando cometidos contra
menores de 14 anos. Estabeleceu o referido artigo 263 pena de reclusão de 4 a dez
anos para o estupro praticado contra menor e pena de 3 a nove anos de reclusão
para o atentado violento ao pudor quando, igualmente, a vítima fosse menor.
Todavia, o referido estatuto teve sua vigência protraída por noventa dias (art. 266),
entrando em vigor apenas em 13/10/90. Antes dessa data, a saber, em 25/7/90, foi
promulgada, e com vigência imediata, a Lei dos Crimes Hediondos, que veio a
prever para os mesmos delitos, penas ainda mais severas, vale dizer, reclusão de
seis a dez anos, tanto para o estupro, quanto para o atentado violento ao pudor. Em
razão dessa incongruência, os parágrafos introduzidos pela Lei nº 8.069/90, se
porventura aplicados, levariam à situação paradoxal de reprimir-se com menor
severidade as violações praticadas contra menores do que aquelas que fossem
perpetradas contra pessoas adultas, em clara contradição com o espírito inspirador
da norma protetiva da infância. Por isso mesmo, considerou-se que tais parágrafos
haviam sido tacitamente revogados pela Lei 8.072/90, antes mesmo que entrasse
75.
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em vigor a Lei nº 8.069/90, que os estabelecera. Não fazia mesmo qualquer sentido,
viesse o agressor de menores a ser beneficiado com apenamento mais brando,
invocando-se justamente a legislação concebida para estender maior proteção à
criança e ao adolescente. Tal revogação se fez, afinal, de forma expressa, por meio
da Lei 9.281/96. Portanto, a expressão caput, cuja inclusão em qualquer redação
legislativa faz sentido quando existam parágrafos que qualifiquem os
dispositivos inseridos na cabeça do artigo, era, e é, de todo desnecessária, e sua
exclusão não leva à conseqüência pretendida pelos ilustres defensores. Como se
viu, embora inicialmente introduzidos na redação original do Código Penal, tais
parágrafos, na realidade, nunca foram implementados, pois sua aplicação pelo
julgador resultaria em solução aberrante do sistema de proteção ao menor.
Tal raciocínio vem desenvolvido em excelente artigo publicado na
Revista do Tribunal Federal da Região, da lavra da Dra. Lilian da Costa
Tourinho
151
, onde se referem os autores que têm abonado idêntico entendimento, a
saber: Damásio Evangelista de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete, Antonio Scarance
Fernandes, Celso Delmanto, Paulo José da Costa Júnior entre outros, referidos
pelo eminente Ministro Carlos Velloso.
Colho subsídio precioso em precedente da lavra de meu ilustre
antecessor, Min. Octavio Gallotti, que, a propósito, tratando embora do delito de
atentado violento ao pudor, em tudo assemelhável à hipótese do estupro, assim
ementou julgado unânime da Primeira Turma: Crime hediondo. A classificação
151 “[ . . . ] não é necessário fazer uma interpretação ampliativa para se concluir que a Lei dos Crimes
Hediondos abrange, também, os tipos fundamentais dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor [ . .
. ] O emprego da conjunção coordenativa aditiva “e”, que dá a idéia de adição, soma, acrescentamento, não
pode ser, no caso, desconsiderado. Tal conjunção foi empregada não com o intuito de incluir no rol dos
crimes hediondos a forma qualificada dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, mas também a
forma simples dos mesmos, prevista nos arts. 213 e 214 ambos do digo Penal. Em sentido contrário,
sustenta-se que antes do advento da Lei 8.930/94, alterando a redação da Lei dos Crimes Hediondos,
esta fazia menção expressa ao Caput do art. 213 do Código Penal, portanto, a forma simples de estupro.
Argumenta-se que, tendo sido suprimida, posteriormente, pela Lei 8.930/94, a expressão “caput” em
referência, o crime de estupro, na sua forma básica, deixou de ser considerado crime hediondo. Tal
entendimento, contudo está equivocado. Sempre foi desnecessária a referência expressa pela Lei dos
Crimes Hediondos ao caput do art. 213, do Código Penal. [ . . . ] Ademais, a desnecessidade de alusão ao
caput do art. 213, do Código Penal, pela Lei nº 8.072/90, decorre até mesmo do fato de que nunca
vigoraram os parágrafos únicos dos artigos 213 e 214, ambos do Código Penal, introduzidos pelo art. 263,
da Lei 8.069/90, os quais previam um agravamento da pena quando tais crimes fossem perpetrados
contra crianças. Embora promulgada primeiro, a Lei 8.069/90 entrou em vigor após a Lei 8.072/90,
que previu um apenamento ainda maior para os casos de estupro e atentado violento ao pudor. Com efeito,
o entendimento jurisprudencial predominante, inclusive dos nossos Tribunais Superiores, era de que tais
parágrafos tinham sido, tacitamente, revogados pela Lei dos Crimes Hediondos. Seria repugnante aceitar
que esses crimes, quando cometidos contra crianças, fossem apenados com menos severidade do que
quando praticados contra uma mulher adulta. Refoge ao bom senso admitir que uma lei editada com o
intuito de punir mais gravemente o agressor de crianças fosse, pelo mesmo, invocada para lhe reduzir a
pena, beneficiando-o Em junho de 1996, foi publicada a Lei 9.281 revogando expressamente os citados
parágrafos únicos. Não há, assim, como se sustentar que a Lei dos Crimes Hediondos não se aplica aos
crimes de estupro e atentado violento ao pudor nas suas formas fundamentais, ou seja, quando não há lesão
grave ou morte da vítima. Ressalte-se que essa lei, consoante o disposto no seu art. , alterou, inclusive, a
pena cominada para tais crimes, tanto na sua forma simples, quanto na qualificada, numa clara
demonstração de que o legislador incluiu no rol dos crimes hediondos as formas básicas desses crimes.”
(Revista do Tribunal Federal da 1ª Região, junho/2001, p.12/16).
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prevista no art. da Lei 8.072/90 diz respeito tanto à forma simples do delito
tipificado no art. 214, como à qualificada, capitulada no art. 223, caput e
parágrafo único, ambos do Código Penal (Habeas Corpus 74.710, in DJ de
25.04.97.
O delito de que estamos tratando é daqueles que, por suas características
de aberração e de desrespeito à dignidade humana, causa tão grande repulsa, que as
próprias vítimas, em regra, preferem ocultá-lo e que a sociedade, em geral, prefere
relegar a uma semiconsciência sua ocorrência, os níveis desta ocorrência e o
significado e repercussões que assume para as vítimas deste tipo de violência.
Talvez, por isso, significativamente, o grupo de estudos de violência contra a
mulher da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em trabalho
organizado pelas Profas. Patrícia K. Grossi e Graziela C. Werba, deu ao livro que
recentemente publicou o título Violências e Gênero - Coisas que a gente não
gostaria de saber” (EDIPUCRS, Porto Alegre, 2001).
No entanto, tanto o legislador que atua sobre a realidade, para
transformá-la, quanto o intérprete que complementa esse esforço de
aperfeiçoamento da sociedade necessitam, por doloroso ou repugnante que seja, ter
exato conhecimento da realidade sobre a qual irão incidir suas intervenções. Por
isso, peço vênia aos colegas para trazer dados que acredito importantes para o exato
dimensionamento do problema de que estamos tratando. Eles me foram fornecidos
principalmente pelo Grupo de Saúde da Mulher da Secretaria Estadual de Saúde do
Rio Grande do Sul liderado pela Dra. Assuncíon Caputi, pela Profa. Dra. Aida
Santin do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, pelo
Serviço Especializado em Atendimento de Mulheres Vítimas de Violência do
Hospital Pérola Byington de São Paulo, entidade reconhecida internacionalmente
pelo traba95585(í)]TJ272.561 0 T6(e)3d[(g)-0(a)3.74(l)-2.(95á558(a)3.74(l)-2.e.74(i)-2.16558(a02(s)-1.2312(e)3.74244(s)-1.2312(p)-0.295é )-60.182(f)2.80439(0.1702(p)-0.295585(o.1703(e)3.74(d)-0.-2.16436(o)-0.295585(,)-0.146571( )-150.235(e)3.74(n)-0.295585((í)]TJ272.561 0 T)2.8-2.16430.1702(p)-0.295585(o16558(a)3.74( )-190.26(U)1.57564(n)-10.3015(312(s)-80.43(a46.385-2.16436(o)-0.29316430.1702(p0561(e)3.74(p)-0.2999(e)3.74244( )-4436(t)-2.16436(a)3.74(m)34(u)-10.3015(l)-14(d)-0.295585(a)3.(o)-0.295585( )(n)-0.295585(t)-10.3015(e)3.74(r)-0.295585(a)3.74702(q)-0.295585(u)-16430.1702(p05-0.295585n)-0.293142(a)3.74244(l)-2.16436()3.74244(o)-0.293142(n)74(d)-0.2953015(a)3.74(c)3.74()3.74244(i)-2.16436(d46.385-3142(t)-2.13.74( )-60.182(d)-0.295585(e)3. T)2.80561(6(e)3d[(g)õ2(d)-0.295585(e)3. T)2.80561(0.2955855(r)-1.22997(i)-2.16558(a) )-10.15 538.68 566.2( )-200.265(e)-6.2659( )-2174(l)-2.16558( )-140,a) )-10.150.2955855(r)31(q)-0.295585(u)-10.3.74(i)-2P)-4.33117(o)-0.295585(rP)-4.33117(o)-0.295585(r(E)0.64002N[(”)3.74( )-.146571(F9(S)-4.33185(i)-2.16585( )-290.3-2.16436(e)3.74(g)9.7103ó6(a)3.74(m)34 Td[(735 538.68 566.5(e)3.74(r)-0.295585(a(g)9.710335(e)3.74(n)-0.2955u)-0.293142(e17(r)2.80N16.968 0 Td[(”)-10.301õ2(d)-0.295585(e)3. T( )-193.074(s)-1.23)-0.295585(r(E)0.64002 )-20.1584(d)-0.295585(i)-12.1703(g)9.7103(o)-0.2931643.295585(r7.20151(e)3.74(t)-2.16436(e)3.-2.16436(e)3.74(g)9.71030.295585(d)-0.295585(a)-0.27(r)2.80B36( )-200.)3.74244(o)-0.29314266(d)-0.295585(e)3.74-0.295585( )-190.259(S)-4.90.259(S)l)-2.16436(m)-2.46239m)7.543571( )-40.170293.074(3142(t)-2.16436(e)3.742)-6.2659(,)-0.147792( )-25585(e)585(o)-10.3015( )-23(s)-1.2312(l)--20.1596(d)-10.41 0 0 1 134.78 -13.8 Td[(r)2.80561(244( )250]TJ-279.765 -13.8 Td2.16558(a))-0.201.2312( )-105585(e)D)-3.39556(i0.1596(a)3.74(b)25( )-200.265(D )-80.19B)6.657153.74(l)-2.16436(a)436(n)-0.29)-2.16436(ó)-0.29558.16436(v85( )-290.365(d)-0.295585(e)3.74(.74(p)-0.295585995(o)-0.295585(s)-1.558.16436(vr)2.80439(t)-2.16436(4( )-190.26(U)1.57566(d)-0.29ê)3.74(n)-0.29.16436(v5(u)-0.295585(a0.16436o)-0.295585( 015(e)2.115-200.262(C)-3.39556((q)-0.295585(u)-1585(e)3.74( )-290.318(M585(i)-2.16558(z)-6.6(vN16.968 0 Td Td[(o)-0.295585(n)-0.29595(e)3.74(n)-0.295585(s)-1.229912(p)-0.29558595585(/)-2.16436(9)-3.74(s)-1.2312(t)-2.16436 )-80.19Dr)2.80439(a)3.74244()-12.1703(,)-0.146573.74244(c)3.74(r)2.80439(e)3.244(c)3.74244(i)-2.16436(d)2.115-4244(t)-2.16436(o)9.712585(e)-6.26-0.2)-085( )-25585244( )250]TJ-263.075 -13.8 Td[(m)-2.45995(u)-0.295585(-0.2)-0436(n)-0.295585(t)-(a)3.74(p)-85(i)-2.16558(m)-2.4596436(o)9.71276( )250]TJ6558(d)-0.295585(e)-6.2659(r-0.2)-0436(n)-0.295-0.295585(o)-0.295585( )-190.-0.2)39Dr)2.8.1938(K)1.57563.74(b)25( )-200.265(D.-0.2)39S2( )-200.265(d)-0.295585(o)-0.295585( )-( )-150.236(B.22997(i)-2.16558(a) -0.2)39B36( )-200.-2.16436(o)-0.295585(,)-0.146539(t)-2.16436(a)3.74(-0.2)398 12 Tf9.3)2.80439(o)-295585(r)2.80439(e)3.74(f)2.80.43(a7804,)-0.146577(a)3.74(u)-0.29-0.2)39585( )-190.-0.2)39O[(”)3.74( i)-2.16558(g)9.71032(n)-0.2974(i)-2.16436(d)-0.2955585( )-190.-0.2)39.74(r)2.80439( )-10.1525(d)-0.295585(a-0.2)39Dr)2.80439(a)s,crecir Ai804, t
123
essa uma das condições de maior subnotificação e subregistro em todo o mundo.
Nos EUA, calcula-se que apenas 16% dos estupros são comunicados às
autoridades competentes (NATIONAL VICTIM CENTER, CRIME VICTIMS
RESEARCH AND TREATMENT CENTER, 1992).
154
Tais dados vêm corroborados pela Profa. Lori Heise, diretora do Projeto
Violência, Saúde e Desenvolvimento do Instituto do Pacífico para a Saúde da
Mulher, publicado pela Organização Panamericana da Saúde, em 1994. Segundo
ela, “as estatísticas de delitos são virtualmente inúteis para estimar a incidência do
abuso de gênero, devido ao amplo subregistro que existe. De acordo com recentes
enquetes sobre vitimização nos Estados Unidos, somente são denunciados à polícia
2% dos casos de assédio sexual infantil dentro da família, 6% de abuso sexual fora
da família e 5 a 8% de assédio sexual a adultos”.
155
Enquanto isso, diz ela:
“Comparativamente são denunciados 61,5% dos assaltos e 82,5% dos roubos”.
Algumas condições específicas podem comprometer ainda mais a
notificação destes crimes. Assim, é possível que a agressão sexual ocorrida dentro
das relações de matrimônio ou união consensual esteja entre as mais ocultadas
(GRAMS et al., 1997). Nos casos de incesto, estes percentuais podem ultrapassar
os 95% em determinadas comunidades (SÁNCHEZ, 1989; URRERA; SCH,
1993)”.
156
Segundo Tucker et al. (1990), cerca de 96% dos agressores não são
condenados, por falta de provas materiais, muitas vezes exigidas pela justiça.”
Exemplo dessa afirmação pode ser verificado em nosso meio, na cidade de São
Luís, no Maranhão. Entre os anos de 1988 e 1990, mais de 4000 queixas de abuso
sexual foram registradas pelas autoridades policiais. No entanto, cerca de 300
acusados foram levados aos tribunais, e apenas dois efetivamente condenados
(HUMAN RIGHTS WATCH, 1992)”.
157
A atitude da vítima em não denunciar o ocorrido parece estar
relacionada com múltiplos fatores. Em nosso meio, acredita-se que a maior parte
das mulheres não registre queixa por constrangimento e medo de humilhação,
somados ao receio da falta de compreensão ou interpretação dúbia do parceiro,
familiares, amigos, vizinhos e autoridades. Também se deve considerar que,
quando o crime é perpetrado por agressor desconhecido, é comum que ocorram
ameaças à integridade física da vítima ou de algum familiar, caso revele-se o
ocorrido (FERREIRA et al., 1998)”.
158
Apesar de causar grande perplexidade, é fato incontestável que a
agressão sexual durante a infância é, geralmente, perpetrada por pessoas que a
criança conhece e em quem confia. Incapaz de revelar o que lhe ocorre, o processo
154 Ferreira (2000, p. 23).
155 HEISE, L. (Org.); PITANGUY, J.; GERMAIN, A. (Cols.). Violência contra la mujer: la’carga oculta sobre
la salud. Publicação d2.05734(o)-6.33537( )-23(d)-0.29551499(a)-2.05734( )-196.007(,)-3.1666347(a)143.1259(m)8499699(a)-2.05734( )-196.63(M)-3.11397(u)5.7217(j)-11.3345(e)-2.05264(r)-4.55617,. Salud, esarrolo da Organiação danamericaa da Saúud,
15 Ferreira (2000, p. ).
124
pode se prolongar até a idade adulta (WESTCOTT, 1984; TETELBOM et al.,
1991)”.
159
Por todos esses motivos, As estatísticas sobre o abuso sexual são
variadas e quase sempre imprecisas. Porém, quaisquer que sejam os números
observados, todos são assustadores. Considerando-se sua elevada incidência e
prevalência, bem como as conseqüências biológicas, psicológicas e sociais que
determinam, os crimes sexuais adquiriram proporções de um complexo problema
de saúde pública (AIKEN, 1993)”.
160
A violência representa uma das principais causas de morbidade e
mortalidade, principalmente entre a população jovem. Enquanto os homicídios
ocorrem em espaços públicos, atingindo principalmente o sexo masculino, a
agressão sexual atinge preferentemente o sexo feminino, dentro do espaço
doméstico. Estas mulheres são alvo de seqüelas físicas e psicológicas, tornando-se
mais vulneráveis a diversos problemas de saúde (BRASIL, 1999)”.
161
Entre as crianças, o impacto do abuso sexual pode produzir uma
importante condição futura de vulnerabilidade, facilitando uma revitimização na
adolescência ou na vida adulta. Particularmente naquelas envolvidas com formas
severas de violência, observa-se uma menor prevalência de uso de contraceptivos e
de práticas sexuais seguras. Conseqüentemente, durante a adolescência,
apresentam maior risco de gravidez e de contrair uma DST (Doença Sexualmente
Transmissível) (FERGUSSON, HORWOOD, LYNSKEY, 1997; KENNEY et al.,
1998; FLEMING et al., 1999). Nas vítimas adultas, a severidade da agressão
sexual pode diminuir a percepção futura da própria saúde, especialmente a
reprodutiva (ULLMAN; SIEGEL, 1995)”.
162
A aquisição de uma Doença Sexualmente Transmissível, em
decorrência da violência sexual pode implicar severas conseqüências físicas e
emocionais. Atualmente, a principal preocupação entre as vítimas de agressão
sexual é a possibilidade de se infectarem pelo vírus da imunodeficiência humana
(HIV), expressada por 70% das mulheres americanas (NATIONAL VICTIM
CENTER, CRIME VICTIMS RESEARCH AND TREATMENT CENTER, 1992;
GOSTIN et al., 1994)”.
163
Os aspectos clínicos da infecção pelo HIV podem variar
desde sinais e sintomas inespecíficos, como sudorese noturna e emagrecimento,
passando por processos oportunistas comuns na fase sintomática inicial, como
candidíase oral e vaginal, gengivite, úlceras aftosas, diarréia, herpes simples
recorrente, herpes zoster, até a fase em que se instalam as doenças oportunistas. A
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) é a fase da infecção pelo HIV em
que se instalam as doenças que se desenvolvem em decorrência de uma alteração
imunitária do hospedeiro. As doenças oportunistas associadas à AIDS são várias,
159 Ferreira (2000, p. 12).
160 Ferreira (2000, p. 14).
161 Ferreira (2000, p. 14).
162 Ferreira (2000, p. 14).
163 Ferreira (2000, p. 14 e 15).
218.
219.
220.
221.
222.
223.
224.
225.
226.
227.
228.
229.
230.
231.
232.
233.
234.
235.
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237.
238.
239.
240.
241.
249.
250.
251.
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253.
254.
255.
256.
257.
258.
259.
260.
261.
262.
125
podendo ser causadas por vírus, bactérias, protozoários, fungos e certas
neoplasias.
164
Registra-se que entre 28 a 60% das vítimas de violência sexual serão
infectadas por uma DST (JENNY et al., 1990; ROSS; SCOTT; BUSUTTIL, 1991;
BALDACINI et al., 1997)”.
165
Apesar da subnotificação e da falta de uniformidade quanto aos critérios
de investigação laboratorial e dos sujeitos estudados puderam os especialistas
apurar que a taxa de infecção por Neisseria gonorrhoeae pode variar entre 0,8 a
9,6%
166
; entre 1,5 a 26% para Chlamydia trachomatis
167
; de 3,1 a 22% para
Trichomonas vaginalis
168
; de 12 a 50% para vaginose bacteriana
169
; e de até 1,6%
para o Treponema pallidum
170
(FORSTER et al., 1986; ESTREICH; FORSTER;
ROBINSOM, 1990; JENNY et al., 1990; LACEY, 1990; GLASER et al., 1991;
BALDACINI et al., 1997). Seguindo a mesma tendência, a infecção pelo
Papillomavirus humano (HPV) varia entre 2 e 40%
171
(ESTREICH et al., 1990;
JENNY et al., 1990; LACEY, 1990; BALDACINI et al., 1997)”.
172
Para Estreich et
al. (1990), em 3% das vítimas de estupro foi encontrada positividade sorológica
para a hepatite B
173
.
174
Estudando 126 mulheres vítimas de abuso sexual,
Baldacini et al. (1997) encontraram taxa de prevalência de 1,6% para o
Herpesvírus-simples
175
; 1,6% para hepatite B; 0,8% para hepatite C; e 0,8% para
164 Informações fornecidas pela Dra. Dea Márcia Martins Pereira, Secretária de Serviços Integrados de Saúde
deste Tribunal e integrante da Coordenação Nacional DST/AIDS do Ministério da Saúde.
165 Ferreira (2000, p. 15).
166 Aproximadamente 70% dos casos femininos são assintomáticos, não deixando porém de transmitir a
infecção aos parceiros sexuais. O sintoma mais precoce da uretrite causada pela Neisseria Gonorrhoeae é
uma sensação de prurido, seguido por ardência miccional e corrimento.
167 Agente etiológico do linfogranuloma venéreo, doença infecciosa de transmissão exclusivamente sexual
caracterizada pela presença de bubão inguinal, ocorrendo uma disseminação linfática em 70% dos casos.
168 Protozoário que leva a uma cérvicovaginite com corrimento abundante bolhoso e com mau cheiro, prurido
e/ou irritação da vulva.
169 Caracterizada por um desequilíbrio da flora vaginal normal devida a um aumento exagerado de bactérias,
em especial as anaeróbias. Clinicamente, aparece um corrimento vaginal com odor fétido, mais acentuado
após o coito e no período menstrual.
170 Agente etiológico da sífilis, que é uma doença infecciosa sistêmica de evolução crônica sujeita a surtos de
agudização e períodos de latência. A sífilis primária ou cancro duro caracteriza-se pela presença de lesão
rosada ou ulcerada, geralmente única que aparece entre 10 e 90 dias após o contato sexual infectante; essa
lesão é mais comum nos pequenos lábios, paredes vaginais e colo uterino, sempre acompanhada de
adenopatia regional móvel, indolor e múltipla. A sífilis secundária caracteriza-se pela presença de lesões
cutâneo-mucosas não ulceradas, que surgem após 6 a 8 semanas do aparecimento do cancro duro; as lesões
são geralmente acompanhadas de adenopatia generalizada e ocasionalmente artralgias (dor nas
articulações), febrícula, cefaléia e adinamia.
171 Esse vírus leva à doença infecciosa também conhecida como condiloma acuminado, verruga genital ou
crista de galo. A maioria das infecções são i g
126
infecção pelo Citomegalovirus
176
. Pouco se conhece sobre a incidência e
prevalência de Mycoplasma hominis, Ureaplasma urealyticum, e Candida
albicans. Quanto à prevalência de vírus linfotrópicos de células T humanas
(HTLV), tipo I
177
e II
178
, os autores encontraram taxa de 1,6%”.
179
Até aqui, os danos de contágio.
Poucos estudos têm avaliado a prevalência e a importância de danos
genitais (vale dizer, as machucaduras ou ferimentos) entre vítimas que, no momento
do estupro, não haviam iniciado vida sexual.” Ainda assim, “segundo BIGGS et al.
(1998), a ocorrência de traumas genitais foi significantemente maior nessas
mulheres (65,2%) do que naquelas sexualmente ativas no momento da agressão
(25,8%)”.
180
Mas há, ainda, as conseqüências de ordem emocional, que, embora não
se possam, por vezes, demonstrar com a mesma clareza e precisão numérica das
moléstias físicas, têm também sido estudadas, com detalhe, pelos especialistas. Os
primeiros relatos, acerca dos transtornos psicológicos decorrentes do abuso sexual
datam de 1890, através das observações de Freud” (FREUD, 1995; MILLER,
1998). Atualmente, de acordo com a American Psychiatric Association Committee
on Nomenclature and Statistics (1994), a violência sexual associa-se com a
Síndrome da Desordem Pós-Traumática (SDPT), entidade nosológica desenvolvida
após qualquer evento traumático ou extraordinário, dentro da experiência humana.
De acordo com Breslau et al. (1998), cerca de um terço dos casos de SDPT são
relacionados com o abuso sexual.”
181
A SDPT divide-se em duas fases. A primeira, denominada “fase
aguda”, caracteriza-se por processo psíquico de desorganização, durando de
poucos dias a algumas semanas. Os sintomas referidos pela mulher incluem a
angústia, o medo, a ansiedade, a culpa, a vergonha, a humilhação, a autocensura e
a depressão. Podem ocorrer reações somáticas, como: fadiga, tensão, cefaléia,
insônia, corrimento vaginal, pesadelos, anorexia, náuseas e dor abdominal
(BURGESS; HOLMSTRON, 1973). Nesta fase, o evento de uma gravidez
decorrente de estupro intensifica e agrava as conseqüências da SDPT (FERREIRA
et al., 1998)”.
182
Na segunda, chamada de “fase crônica”, desenvolve-se um processo de
reorganização psíquica que pode durar de meses a anos. A vítima passa a
rememorar intensamente a violência, construindo pensamentos estupro-
relacionados (SHIPHERD; BECK, 1999). Podem se estabelecer diversos
176 Semelhante ao herpes.
177 Vírus que infecta os linfócitos T e pode causar uma série de doenças, a principal das quais é conhecida como
leucemia das células T do adulto, normalmente fatal. Também pode causar síndrome de desmielinização
(paresia epástica tropical) paralisia que às vezes vai se manifestar 10 anos após. Também pode causar uvíte
(infecção ocular) e alguns tipos de dermatite.
178 Vírus isolado ou detectado em pacientes com leucemia linfocítica crônica. Causa síndrome de fadiga
crônica, dermatite esfoliativa e distúrbios neurodegenerativos súbitos.
179 Ferreira (2000, p. 15).
180 Ferreira (2000, p. 16).
181 Ferreira (2000, p. 19).
182 Ferreira (2000, p. 19).
282.
283.
284.
285.
286.
287.
288.
289.
290.
291.
292.
293.
294.
295.
296.
297.
298.
299.
300.
301.
302.
303.
304.
305.
306.
307.
308.
309.
310.
311.
312.
313.
314.
315.
316.
127
transtornos da sexualidade, incluindo o vaginismo, a dispareunia
183
, a diminuição
da lubrificação vaginal e a perda da capacidade orgásmica”.
184
Cerca de 40% das mulheres apresentam queixas sexuais após o estupro,
sendo que algumas podem evoluir para quadros mais severos, culminando na
completa aversão ao sexo (BURGESS; HOLMSTRON, 1973; MASTERS;
JOHNSON, 1979; BECKER et al., 1984)”.
185
A fase crônica também se caracteriza pela ocorrência de problemas
como: depressão, bulimia, anorexia nervosa, baixa auto-estima, fobias diversas e
dificuldades de relacionamento interpessoal (HALL et al., 1989; MOSCARELLO,
1990; MACKEY et al., 1992; DANSKY et al., 1997; KULKOSKI; KILIAN, 1997;
THELEN; SHERMAN; BORST, 1998; ROOSA; REINHOLTZ; ANGELINI,
1999)”.
186
A prevalência de idéias suicidas persistentes e de tentativa de suicídio é
elevada nos casos de SDPT, principalmente entre adolescentes abusados durante a
infância. Neste grupo, a tentativa de suicídio alcança até 15% das vítimas
femininas, com percentual semelhante para o sexo masculino (BOWYER;
DALTON, 1997; BRYANT; RANGE, 1997; STHATAM et al., 1998). dados que
sugerem que o risco seja ainda maior para mulheres revitimizadas (CLOITRE;
SCARVALONE; DIFEDE, 1997). Em nosso meio, registro de taxas um pouco
menores, em torno de 10% (FERREIRA et al., 1996)”.
187
Sutherland e Scherl (1970) enfatizam uma fase intermediária na SDPT,
chamada de “ajustamento exterior”, caracterizada pelo esforço da vítima em
negar o ocorrido e retornar às suas atividades normais. As alterações do
comportamento, nesta fase, são variáveis e mostram grande coexistência de
sintomas, geralmente relacionados com a modalidade do abuso (RONA; MOYA,
1989)”.
188
As conseqüências psicológicas da violência sexual tendem a se tornar
mais graves após os sete anos, idade em que a criança, geralmente, passa a
compreender os valores morais e sociais relacionados ao sexo (SÁNCHEZ, 1989).
Qualquer disfunção psicossocial, na infância, pode ser sugestiva de abuso sexual,
variando de acordo com a idade e estágio de desenvolvimento da criança. Em
idades precoces predominam sintomas sicos e comportamentais, como: medo,
encoprese, enurese, irritabilidade e distúrbios do sono e da alimentação. Em
vítimas pré-púberes, destacam-se os distúrbios psicossomáticos e de
comportamento, como: ansiedade, isolacionismo, depressão, sintomas conversivos,
perda de peso e diminuição do rendimento escolar (TETELBOM et al., 1991)”.
189
183 Dor na relação sexual.
184 Ferreira (2000, p. 19).
185 Ferreira (2000, p. 19).
186 Ferreira (2000, p. 19).
187 Ferreira (2000, p. 19).
188 Ferreira (2000, p. 19).
189 Ferreira (2000, p. 19).
317.
318.
319.
320.
321.
322.
323.
324.
325.
326.
327.
328.
329.
330.
331.
332.
333.
334.
335.
336.
337.
338.
339.
340.
341.
342.
343.
344.
345.
346.
347.
348.
349.
350.
351.
355.
128
Na adolescência predominam os distúrbios comportamentais,
psicossomáticos e psiquiátricos: fuga de casa, maior prevalência de uso de drogas,
prostituição, autoflagelação, depressão e sintomas conversivos (TETELBOM et al.,
1991). Alguns distúrbios observados na criança podem estar presentes de forma
exacerbada na adolescente, em função de sua maior autonomia e desenvolvimento
biopsicossocial. Outro aspecto relevante refere-se à revitimização por múltiplos
agressores durante a infância e adolescência. Nestes casos, há indícios de que as
seqüelas psicológicas possam ser ainda mais severas (KELLOGG; HOFFMAN,
1997)”.
190
Nas crianças, as conseqüências psicológicas podem ser classificadas
em quatro categorias. A primeira, denominada ‘recorrente sensação de medo’,
inclui comportamentos de hipervigilância, irritabilidade, ansiedade, hiperatividade
física e sintomas regressivos. A segunda refere-se aos ‘distúrbios da memória’,
onde prevalecem a dissociação, os pesadelos, as mentiras e a desconexão da
realidade. A ‘dificuldade em regular afeto’ comporta fenômenos depressivos,
impulsividade e posturas oposicionais. Por fim, descreve-se a ‘tendência a evitar
relações íntimas’, caracterizada pela dificuldade em confiar no adulto e manter
relações de proximidade física ou emocional (JAMES, 1994)”.
191
Diz a citada Lori Heise: As agressões sexuais podem provocar tanto
lesões físicas como um sério trauma emocional [ . . . ] As sobreviventes do estupro
exibem uma variedade de sintomas induzidos pelo trauma - pesadelos, depressão,
falta de concentração, transtornos do sono e da alimentação e sentimentos de ira,
humilhação e auto-acusação. Além disso, entre 50 e 60% das vítimas experimenta
severos problemas sexuais, incluídos a coitofobia, a frigidez e uma diminuição
de libido (BURNAM et al. 1988; BECKER et al. 1986; BECKER et al. 1982)”.
192
Os efeitos malignos do estupro não surpreendem, considerando-se a
violência física, psicológica ou moral que ele implica (BRESLAU et al. 1991;
Herman, 1992). Um estudo dos EUA determinou que as vítimas de estupro eram
nove vezes mais propensas a cometer tentativas de suicídio e duas vezes mais
susceptíveis à depressão profunda que as mulheres não-vitimadas (KILPATRICK,
1990). Os estudos de acompanhamento demonstraram que as sobreviventes de
estupro apresentam maiores índices de transtorno de estresse pós-traumático
prolongado que as vítimas de outros tipos de violência (NORRIS, 1992) Alguns
especialistas consideram que as mulheres vítimas de abuso e agressão sexual
constituem o maior grupo individual com problemas de estresse pós-traumático e
que o estupro é o evento individual com maior probabilidade de causar estresse
pós-traumático (FOA; OLASOV; STEKETEE, 1987)”.
193
Os estudos de acompanhamento das vítimas demonstram que as
conseqüências traumáticas da violação podem persistir durante muitos anos. Um
estudo de validação da prova de sintomas pós-estupro (Rape Aftermath Symptom
Test - RAST) demonstrou que o instrumento podia distinguir os sintomas das
vítimas de estupro daquelas que não o haviam sofrido até três anos após o evento
190 Ferreira (2000, p. 19).
191 Ferreira (2000, p. 19-20).
192 Heise (1994, p. 27).
193 Heise (1994, p. 28).
356.
357.
358.
359.
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396.
397.
129
(KIRKPATRICK, 1988). De acordo com estudos realizados nos Estados Unidos,
uma de cada quatro mulheres violentadas apresenta sintomas disfuncionais mesmo
depois de quatro a seis anos após o assalto (HANSON, 1990, BURGESS;
HOLMSTROM, 1979). Em nossa mostra, diz a autora, 60% das vítimas de
agressão sexual informaram disfunção sexual três anos depois da agressão
(BECKER et. al. 1986) Inclusive depois de muitos anos, as mulheres que foram
sexualmente assaltadas são significativamente mais propensas a ser qualificadas
dentro de 10 diagnósticos psiquiátricos diferentes, incluindo depressão profunda,
abuso de álcool, transtorno de estresse pós-traumático, abuso de drogas,
transtornos obsessivo-compulsivos, ansiedade generalizada, transtornos da
alimentação, transtorno de personalidade múltipla e síndrome de personalidade
fronteiriça. A taxa de risco relativa a estes diagnósticos em sobreviventes de
estupro e agressão sexual é aproximadamente duas vezes maior (KOSS, 1990)”.
194
A investigação nos EUA demonstrou que em torno de uma quinta parte
das vítimas de abuso sexual infantil apresenta sérios efeitos psicológicos de longo
prazo (BROWNE; FINKELHOR, 1986). Podem incluir respostas dissociadas e
outros indicadores de transtornos de estresse pós-traumático, como excitação
sexual crônica, pesadelos, rememorações recorrentes e insensibilidade emocional.
Burnam e outros (1988), utilizando técnicas variadas, demonstraram que as
mulheres incluídas na enquete da Zona de Capacitação Epidemiológica de Los
Angeles (Los Angeles Epidemiological Catchment Area) que haviam sido
sexualmente abusadas em sua infância eram duas vezes mais propensas que as
mulheres que não haviam sido abusadas (58,6% contra 24,0%) a apresentar ao
menos um diagnóstico psiquiátrico em suas vidas”.
195
A vitimização sexual precoce também pode deixar as mulheres com
menos habilidades para se protegerem, menos seguras de seu valor e de seus
limites pessoais e mais propensas a aceitar a vitimização como parte de seu ser
feminino. Esses efeitos podem aumentar as possibilidades de uma futura
revitimização (KOSS, 1990)”.
196
Peço escusas aos colegas pelo muito que me alonguei na apresentação
destas citações. Trouxe-as, contudo, porque acredito não ser possível enfrentar esse
tema sem recorrer aos dados científicos que busquei carrear. A violação do corpo
humano tem, como se viu, altíssimo potencial de provocar um sem-número de
graves moléstias físicas, disfunções orgânicas e traumas emocionais.
De tudo, é possível concluir que, não fora a expressa inclusão do delito,
em sua forma simples, entre os que o artigo da Lei 8.072/90 reputou
hediondos, como procurei demonstrar no início deste voto, e, ainda assim, seria
viável afirmar que não existe estupro do qual não resulte lesão de natureza grave.
Na lição do mestre Nelson Hungria, em caso de lesão corporal não se
trata, como o nomen juris poderia sugerir, prima facie, apenas do mal infligido à
inteireza anatômica da pessoa. Lesão corporal compreende toda e qualquer ofensa
ocasionada à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do
194 Heise (1994, p. 28).
195 Heise (1994, p. 29).
196 Heise (1994, p. 29).
398.
399.
400.
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439.
440.
130
ponto de vista anatômico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico. Mesmo a
desintegração da saúde mental é lesão corporal, pois a inteligência, a vontade ou a
memória dizem com a atividade funcional do cérebro, que é um dos mais
importantes órgãos do corpo. Não se concebe uma perturbação mental sem um
dano à saúde e é inconcebível um dano à saúde sem um mal corpóreo ou uma
alteração do corpo. Quer como alteração da integridade física, quer como
perturbação do equilíbrio funcional do organismo (saúde), a lesão corporal resulta
sempre de uma violência exercida sobre a pessoa.”
197
Para as Profas. Silvia Pimentel, Ana Lucia P. Schitzmeyer e Valéria
Pandjiarjian, integrantes do Comitê LatinoAmericano e do Caribe para a Defesa dos
Direitos da Mulher - CLADEM e do Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo, A violência sexual do estupro, enquanto violência de
gênero é fenômeno praticamente universal. Contudo não é inevitável e muito menos
incontrolável. Como demonstram estudos transculturais, as relações entre os sexos
e as políticas dos sexos diferem radicalmente de sociedade para sociedade, sendo
em muito determinadas por complexas configurações de arranjos econômicos,
políticos, domésticos e ideológicos. As autoras relembram que a polícia, o
Ministério Público e o Poder Judiciário não se comportam de forma criativa e
ativa em relação a providências que poderiam melhor garantir a efetividade do
processo legale enfatizam a necessidade de sensibilização quanto à questão de
gênero dos operadores do Direito. A esse propósito, nunca será demasiado louvar a
iniciativa pioneira da Associação Internacional de Mulheres Magistradas, que, sob a
dedicada coordenação da ilustre Desembargadora Shelma Lombardi de Kato, tem
promovido os seminários do projeto “Jurisprudência da Igualdade”, nos quais
espaço especial é reservado à divulgação e ênfase na efetiva implementação dos
instrumentos internacionais
198
a que nosso País tem apresentado pronta adesão e
que têm por objetivo a garantia dos direitos da mulher, em sua acepção ampla de
direitos humanos.
Ao repelir a interpretação que afasta do rol dos crimes hediondos o delito
de estupro em sua forma simples, estará esta Corte dando à lei sua correta
inteligência e ademais e, principalmente, sinalizando que o Estado Brasileiro, para
além da simples retórica, estende proteção efetiva às mulheres e crianças vítimas de
tal violência e reprime, com a severidade que a sociedade exige, os seus
perpetradores.
197 Comentários ao Código Penal, vol. V, Rio de Janeiro, Forense, 1953, p. 309. No mesmo sentido, Aníbal
Bruno, em seu Direito Penal, tomo 4º, Rio, Forense, p. 181; José Frederico Marques, em seu Tratado de
Direito Penal, vol. IV, Campinas, Milenium, 1999, p. 229; e Heleno Cláudio Fragoso, em Lições de Direito
Penal, Rio, Forense, 1988, p. 153.
198 (1) Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) (Adotada e aberta à
assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica,
em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992); (2) Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará)
(Adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 6 de junho de 1994 e ratificada
pelo Brasil em 27 de novembro de 1995); (3) Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) (Adotada pela
Resolução n. L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada
pelo Brasil em 20 de setembro de 1990); (4) Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra as mulheres (1979) - CDAW (Adotada pela Resolução n. 34/180 da Assembléia Geral
da Nações Unidas, em 18 de dezembro de 1979 e ratificada pelo Brasil em 1º de fevereiro de 1984).
440.
441.
442.
443.
444.
445.
446.
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468.
474.
475.
476.
477.
478.
131
Por essas razões que acrescento às muito melhor desenvolvidas pelo
ilustre Ministro Carlos Velloso, pedindo vênia ao eminente Relator, denego a
ordem, para manter os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de
Justiça de Santa Catarina.
479.
480.
481.
482.
132
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROCESSO T RELATOR JULGAMENTO PUBLICAÇÃO OBSERVAÇÕES
HC
16.750/RJ
Edson
Vidigal
20/9/2001 22/10/2001 Desnecessidade de resultar
morte ou lesão corporal
grave
RESP
246.479/GO
Felix Fischer
6/9/2001 15/10/2001 Estupro ou atentado
violento ao pudor com
violência real ou grave
ameaça, na forma básica,
são crimes hediondos
RESP
279.434/SC
José
Arnaldo/
Felix Fischer
6/4/2001 1º/10/2001 Estupro ou atentado
violento ao pudor com
violência real ou grave
ameaça, na forma básica,
são crimes hediondos
RESP
279.818/SC
Hamilton
Carvalhido
5/6/2001 24/9/2001 Estupro e atentado
violento ao pudor,
somente quando resultem
morte ou lesões corporais
de natureza grave, são
considerados hediondos.
HC
16.830/SP
Gilson Dipp 21/8/2001 17/9/2001 Inadmite-se progressão de
regime em se tratando de
estupro ou atentado
violento ao pudor com
violência real, na forma
básica.
HC
16.257/SP
Felix Fischer
2/8/2001 10/9/2001 Estupro ou atentado
violento ao pudor com
violência ficta não
constituem crimes
hediondo.
HC
17.195/DF
Vicente Leal 7/8/2001 3/9/2001 Estupro e atentado
violento ao pudor,
somente quando resultem
morte ou lesões corporais
de natureza grave, são
considerados hediondos.
HC
16.782/GO
José Arnaldo
19/6/2001 3/9/2001 Estupro ou atentado
violento ao pudor com
violência ficta não
constituem crimes
hediondo.
Quadro 1
(continua)
133
(conclusão)
PROCESSO T RELATOR JULGAMENTO PUBLICAÇÃO OBSERVAÇÕES
HC
16.710/RJ
Fernando
Gonçalves
19/6/2001 13/8/2001 Estupro e atentado
violento ao pudor,
somente quando resultem
morte ou lesões corporais
de natureza grave, são
considerados hediondos.
HC
15.416/RJ
Gilson Dipp 15/3/2001 23/4/2001 Estupro ou atentado
violento ao pudor com
violência ficta não
constituem crimes
hediondo.
HC
14.044/MG
José Arnaldo
1º/3/2001 2/4/2001 Estupro e atentado
violento ao pudor,
somente quando resultem
morte ou lesões corporais
de natureza grave, são
considerados hediondos.
HC
14.287/DF
José Arnaldo
17/10/2000 20/11/2000 Estupro e atentado
violento ao pudor, mesmo
na sua forma simples, são
considerados hediondos.
Quadro 1
134
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
PROCESSO T RELATOR JULGAMENTO PUBLICAÇÃO OBSERVAÇÕES
HC 80.479/RJ Nelson Jobim 5/12/2000 27/4/2001 Estupro e
atentado
violento ao
pudor, somente
quando resultem
morte ou lesões
corporais de
natureza grave,
são considerados
hediondos.
HC 80223/RJ Nelson Jobim 15/8/2000 13/10/2000 Estupro e
atentado
violento ao
pudor, somente
quando resultem
morte ou lesões
corporais de
natureza grave,
são considerados
hediondos.
HC 78.305/MG Néri da Silveira 8/6/1999 1º/10/99 Atentado
violento ao
pudor, somente
quando resulte
morte ou lesões
corporais de
natureza grave, é
considerado
hediondo.
Quadro 1
135
Texto da Lei 8.072/90 com
a redação que lhe foi dada
pela
Lei nº 8.930/94
Texto do Código Penal
Leitura integrada
Art. 1º São considerados hediondos:
I - homicídio (art. 121),
quando praticado em
atividade típica de grupo de
extermínio, ainda que
cometido por um só agente, e
homicídio qualificado (art.
121, § 2º, I, II, III, IV e V)
Art. 121, § 2º: matar alguém,
I - mediante paga ou promessa de
recompensa, ou por outro motivo torpe;
II - por motivo fútil;
III - com emprego de veneno, fogo,
explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que possa
resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou
mediante di9ssimulação ou outro
recurso que dificulte ou torne
impossível a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a
ocultação, a impunidade ou vantagem
de outro crime; Pena - reclusão, de doze
a trinta anos.
Não o homicídio
simples, mas, apenas
aquele do art. 121, §
II - latrocínio (art. 157, § 3º,
in fine)
Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia,
para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois
de havê-la, por qualquer meio, reduzido
à impossibilidade de resistência:
..............................................................
§ 3º. Se da violência resulta lesão
corporal de natureza grave, a pena é de
reclusão, de sete a quinze anos, além da
multa; se resulta morte, a reclusão é de
vinte a trinta anos, sem prejuízo da
multa.
Não o roubo simples,
mas apenas aquele
que resulte em
morte.
III - extorsão qualificada pela
morte (art. 158, § 2º)
Art. 158. Constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, e com o
intuito de obter para si ou para outrem
indevida vantagem econômica, a fazer,
tolerar que se faça ou deixar de fazer
alguma coisa:
..............................................................
§ 2º. Aplica-se à extorsão praticada
mediante violência o disposto no § 3º do
artigo anterior
Não a forma simples
Quadro 2
(continua)
136
(continuação)
Texto da Lei 8.072/90 com
a redação que lhe foi dada
pela
Lei nº 8.930/94
Texto do Código Penal
Leitura integrada
Art. 1º São considerados hediondos:
IV - extorsão mediante
seqüestro e na forma
qualificada (art. 159, caput e
§§ 1º, 2º e 3º
Art. 159. Seqüestrar pessoa com o fim
de obter, para si ou para outrem,
qualquer vantagem, como condição ou
preço do resgate: Pena - reclusão, de
oito a quinze anos.
§ 1º. Se o seqüestro dura mais de vinte e
quatro horas, se o seqüestrado é menor
de dezoito anos, ou se o crime é
cometido por bando ou quadrilha: Pena
– reclusão de doze a vinte anos.
§ 2º. Se do fato resulta lesão corporal de
natureza grave: Pena – reclusão, de
dezesseis a vinte e quatro anos
§ 3º. Se resulta a morte: Pena – reclusão
de vinte e quatro a trinta anos
Na forma simples e
na qualificada
V – estupro (art. 213 e sua
combinação com o art. 223,
caput, § único)
Art. 213. Constranger a mulher a
conjunção carnal, mediante violência ou
grave ameaça:
Pena – reclusão, de seis a dez anos.
Art. 223. Se da violência resulta lesão
corporal de natureza grave: Pena –
reclusão, de oito a doze anos
Parágrafo único. Se do fato resulta
morte:
Pena – reclusão, de doze a vinte e cinco
anos
Na forma simples e
na qualificada
Quadro 2 (continua)
137
(conclusão)
Texto da Lei 8.072/90 com
a redação que lhe foi dada
pela
Lei nº 8.930/94
Texto do Código Penal
Leitura integrada
Art. 1º São considerados hediondos:
VI - atentado violento ao
pudor (art. 214 e sua
combinação com o art. 223,
caput e § único)
Art. 214. Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se
pratique ato libidinoso diverso da
conjunção carnal:
Pena - reclusão, de seis a dez anos.
Art. 223. Se da violência resulta lesão
corporal de natureza grave: Pena -
reclusão, de oito a doze anos
Parágrafo único. Se do fato resulta
morte:
Pena - reclusão, de doze a vinte e
cinco anos
Na forma simples e
na qualificada
VII - epidemia com
resultado morte (art. 267, §
1º)
Art. 267. Causar epidemia, mediante a
propagação de germes patogênicos:
Pena - reclusão, de dez a quinze anos.
§ 1º. Se do fato resulta morte, a pena é
aplicada em dobro.
Somente na forma
qualificada
Quadro 2
138
ANEXO B
ACORDAR
Álvaro de Campos
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.
Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.
Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a le3.74( )-0S039( )-0.14056(e)3.74(j)-2.16558(a)3.74( )-0.147792(e)T..295558.16558(m)-2.74(s)-1.22997( )-0.147792(s)3.74(l)-2.16436(e)-62997( )-0rque as dougada,
-4.33056(ã)5585(u)-0.29147792(o)-0.295585(4( )-0.147792(9556(o)-0.295585(c-254.31 -13.8 Td[( )-0.147792(S)-4.3)-0.147792(o)-0.294974(8(o)-0.295585( )-0d-0.14056(e)16558(o)-0.295585(,)-0.147792(0.295585(c92(U)1.57503(m)-2.48.16558(m)-2.74(s)-1.22997( )-0.14(m)-2.48.16558(m)-2.16436(a)n)-0.295585(h)3.742(e)3.74(s)-1.22997(p)-0.295585(i)-2.18.16558(m)-2.74(s)-1.25(e)3.74( )-0.147792(v)-074(s)-9792( )-0.14657180439( )-0.146571(a)ã9(ó)-0.29p)-0.295585(r)2.80439(e)3.74( )-0.1.74( )-0.147792(n)-0.295585(.74( 3779)3.74(e)3.7op)-0.295585(i)-2.18.16558(m)5585(e)3.74( )-0.1)-0.146571(a)3.74( )-0.146571(m)-9792( 59(a)3.74(d)-0.295585(r)2.80439(u)-10.3015(g)9.71032(a)3.7TJ248.066 ( )-0.146579(a61 85.0.295585(o)-0.29.146579(a1 85.0.295585(o)-0.29AJ263.676 0 Td[(p)-0.16436(l)-2t)-2.165974(,)-0.147593hp)-0.295585(i)-2.16558(u)-0.295585(s)-1.)3.74(n)-0.295585(t)-2.16558(i)-2.16558(m)-n)-0.29a)3.74( )-0.1479556(o)-0.295585(c-254.31 -13.8 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-1.16436(a)3.74(s)-1.22997(71(o)-0.92(d)-0.295585(o)-0.29P2.80439(u)29)-2.16558(u)1( )-0.146571( )]TJ-254.317792(e)T..29555o8(2.80561(o)-10.3015(,)-0.147593.16558(d)-0.295585(a)3.74(d)-0.295585(e)3.)-2.45995(o)-0.295585(4( )-0.147792(h)-0.2949295585( )-0(e)3.74(e)-62997( )-0r)2.80439 -13.8 Td[(l)-2.16558(a)3.74( )-0.( )-0.146571( 9014-0.147792(R)-( )-0.12312(o)-0.)]TJ258.032 0 Td[(l)-2.16436(i)-( )-0.13.74( )-0.1-4.33053.742(e)3.74(s)-1.22997(p)urs71(o)-0.92(d)-0.295585(o)-0.2992(d)-0.295585(o)-0.29P2.80439(u)(i)-2.16558(u)(c)3.74(o)-0.2955855585(u)(.)-0ç2 t
139
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.
Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...
Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...
Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E llrios também...
Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...
Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.
Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
140
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também.
141
ANEXO C
AUDIÊNCIA CRIOULA, 17.09.2006
Audiência real em processo de usucapião nº. 115/1.04.0000155-0
Autores: João de Deus Duarte Paiva e Neili Marim Paiva
Juiz: Marcelo Malizia Cabral
Promotor: Isnar Oliveira Corrêa
Advogado: Roberto Viríssimo
Servidor: Elbio Machado
Homenagem do Poder Judiciário de Pedro Osório à Semana Farroupilha.
Todos pilchados.
Cenário composto por mesas e bancos rústicos feitos com toras de madeira, na praça,
junto ao pórtico do MTG e da chama crioula.
Sentença e Termo de Audiência publicados em versos rimados, com textos de autoria
de Elbio Altivo de Souza Machado.
Após ouvir os autores da ação, as testemunhas, o Ministério Público e o advogado dos
autores, o Juiz de Direito proferiu a sentença:
142
SENTENÇA EM POESIA
O feito comportaria
Julgamento antecipado
Porquanto os réus citados
Não contestaram o pedido
E ainda tenha se colhido
Toda a prova oral
E a petição inicial
Observou os requisitos
Todos quais estão escritos
No estatuto processual.
A presente ação obteve
Regular tramitação
A correta petição
O imóvel descreveu
E as citações requereu
Que se fizessem pertinentes
E citados pessoalmente
Os confinantes silenciaram
E assim não contestaram
Dentro do prazo corrente.
Do proprietário anterior
Não foi feita citação
Porque o imóvel até então
Não estava registrado
Conforme foi apurado
Com prova documental
Trazida na inicial
Com a pretensão deduzida
E restou inatendida
A citação por edital.
Encerra o presente feito
O direito de propriedade
E tomo como verdade
As alegações do autor
Pois ninguém veio se opor
À sua justa pretensão
Não há nenhuma exceção
Vinda à luz do direito
A que possa negar o pleito
Formulado nesta ação.
Faz mais de quinze anos
Que a família de Seu João
Reside nesse quinhão
Criando filhos e netos
E no calor do afeto
No rancho em que o amor impera
A certeza se prospera
Da justiça ver chegada
A alegria fazer morada
E a angústia virar tapera.
E assim se faz atuante
A Justiça Estadual
Cumprindo o papel social
De bem aplicar as leis
Em terra onde não há reis
Prevalece a sociedade
Buscando a dignidade
E o direito do cidadão
Já diz a Constituição
Que se respeite a igualdade.
Diante de todo o exposto
De acordo com a lei vigente
Julgo procedente
O pedido dos autores da ação
Deferindo usucapião
Do imóvel pleiteado
Ficando aqui declarado
Que são os donos legais
Cumpram-se os atos registrais
Após o trânsito em julgado.
143
Custas pelos requerentes
Com a lei observada
A sentença é publicada
No ato desta audiência
Às partes dando ciência
Ficam aqui intimadas
Após seja registrada
E aguarde o prazo legal
Cumpra-se a Lei Processual
Na forma sacramentada.
Enrodilhemos o laço
Desencilhemos o pingo
Deixemos neste domingo
Esta sincera homenagem
À história e à coragem
Deste povo pampeano
Que como o vento minuano
Cruza os campos com bravura
Sustentando sua cultura
De forma brava e leal
Lutando pelo ideal
De igualdade e respeito
Assina o Juiz de Direito
Marcelo Malizia Cabral.
(Texto de Elbio Altivo de Souza
Machado).
144
TERMO DE AUDIÊNCIA:
Estado do Rio Grande do Sul
Poder Judiciário
Nesta data e neste horário
Realizou-se audiência
Em tão gaúcha querência
De Pedro Osório e Cerrito
Que é município piazito
Há pouco tempo emancipado
Na Região Sul do estado
Neste pampa tão bonito.
Feito o pregão de costume
Compareceu Seu João
Que chegou neste galpão
Com sua esposa Neili
E vieram eles aqui
Com alma e com coração
Na busca da solução
Que entendem ser de direito
Ver atendido seu pleito
Com justiça e prontidão.
Seguindo o que manda a lei
Seu João veio costeado
Por Doutor Advogado
Inscrito na OAB
Que veio lhe defender
Com o seu saber vastíssimo
É um homem ilustríssimo
Na sua comunidade
Um defensor da verdade
Doutor Roberto Viríssimo.
Doutor Isnar Oliveira Corrêa
Digníssimo Promotor
Que veio com seu labor
O Estado representar
Pelo direito zelar
Com firmeza e lealdade
Clareza e sobriedade
Que não lhes podem faltar
E pelo pampa semear
Justiça e igualdade.
Presente o Juiz de Direito
Doutor Marcelo Cabral
Que cumprindo o rito formal
Deu início à audiência
E com sua experiência
Foi perguntando e ouvindo
E o processo instruindo
Com bastante informação
No rumo da decisão
A justiça foi surgindo.
Processo da área cível
Natureza usucapião
Audiência de instrução
E também de julgamento
De acordo com o mandamento
Do código processual
Colheu-se a prova oral
E a instrução foi encerrada
E a sentença prolatada
Cumprindo o ato final.
Aos dezessete de setembro
Por mim o termo é lavrado
E por todos vai assinado
Neste galpão Farroupilha
No alto desta coxilha
Sob este manto sagrado
A bandeira do Estado
Este Rio Grande gigante
O Oficial Ajudante
Elbio Altivo Machado.
(Texto de Elbio Altivo de Souza
Machado).
145
ANEXO C1
AUGUSTO PESTANA, 15.10.2002
Vistos e examinados os autos.
J.J.C. foi denunciado,
“Devereda” é o seu apelido.
É que do alheio se fez amigo
E isso, sem dúvida, é pecado.
Com o minguado fruto do furto,
No silêncio da madrugada,
Em plena e imprópria empreitada,
Pela polícia resultou flagrado.
Consta da peça de acusação,
Que em três galinheiros ingressou
E algumas poedeiras surrupiou,
Assim agindo como ladrão.
Não deveria ter feito isso.
Mas o fato não é preocupante
Por ser deveras insignificante
O produto da sua subtração.
É que muito ele não quis:
Tão-somente a oito penosas,
Na noite fria e silenciosa,
Resumiu-se a sua ação infeliz.
Acredito que de fato é pouco
Quando for feita a comparação
Com tanta fraude e sonegação
Que campeiam soltas pelo país.
Cada galinha furtada,
Por modestos quatro reais,
E nenhum centavo a mais,
Restou sendo avaliada.
E, por terem sido devolvidas,
- Ao meu modesto juízo -,
Parece não haver prejuízo
Aos donos das aves afanadas.
Então, à ação do J.C.,
(Que não poderia ter feito o que fez)
Mas, face ao valor irrisório da “res”,
Impõe-se saída sem previsão legal.
Incide o princípio da insignificância,
Diante da irrelevância social do fato,
Sabido que o Estado e seu aparato
Deve voltar-se à lesão substancial.
A pouca ou nenhuma expressividade
Autoriza essa saída excepcional:
Sem incidir em censura penal,
Ações despidas de reprovabilidade.
Enfim, o delito de cunho bagatelar
Pelo valor de reduzida monta,
Só pode ser levado em conta
Para afastar a sua tipicidade.
Foram oito galinhas, é verdade,
Mas é preciso ter o cuidado,
Para evitar a sabedoria do ditado:
“Só pobre conhece autoridade”.
O que serão oito galinhas,
Perto de tantos escândalos,
De fraudes e ações de vândalos,
Nessa nossa triste realidade?
Na tarefa de aplicar o Direito
É preciso tentar fazer Justiça.
E vou considerar essa premissa
Registrando ao MP, todo respeito.
E também por ter presente
Que já foi punido o “Devereda”
Ao longo de sua vida azeda,
No caso, a denúncia eu REJEITO.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
Augusto Pestana, 15 de outubro de 2002.
Adair Philippsen – Juiz de Direito
147
ANEXO D
CÒDIGOS BRASILEIROS
1) Código Criminal do Império do Brasil
199
Parte III
Dos Crimes Particulares
Titulo II
Dos Crimes Contra a Segurança Individual
Capitulo II
Dos crimes contra a segurança da honra
Secção I
Estupro
Art. 222. Ter copula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.
Penas- de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.
Se a offendida for prostituta.
Penas – de prisão por um mez a dous annos.
2) Código Penal Dos Estados Unidos do Brasil
Decreto 847, de 11 de outubro de 1890
Livro II
Dos Crimes em Especie
Titulo VIII
Dos Crimes Contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje Publico ao
Pudor
Capitulo I
Da violencia carnal
Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:
Pena – de prisão cellular por um a seis annos.
§ 1° Si a estuprada fôr mulher publica ou prostituta:
Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos.
199 Optei por não fazer correções ortográficas; deixando-se de lado, também, as regras de acentuação da Lei
5.765, de 18/12/71 (PIERANGELI, 2001).
148
§ 2 ° - Si o crime fôr praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena se
aumentada da quarta parte.
Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa, com violência, de uma mulher,
seja virgem ou não.
Por violência entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a
mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como
sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e, em geral, os anesthesicos e narcoticos.
3) Código Penal de 1932
Livro II
Dos Crimes em Espécie
Titulo VIII
Dos Crimes Contra a Segurança da Honra e Honestidade das Famílias e do Ultraje ao Pudor.
Capitulo I
Da violencia carnal
Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:
Pena – de prisão cellular por um a seis annos.
§ 1° Si a estuprada fôr mulher publica ou prostituta:
Pena - de prisão cellular por seis mezes a dois annos.
§ 2 ° Si o crime fôr praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena se
augmentada da quarta parte.
Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violencia de uma mulher,
seja virgem ou não.
Por violencia entende-se não o emprego da força physica, como o de meios que
privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e
defender-se como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e
narcóticos.
4) Código Penal de 1940
200
Parte especial
Título VI
Dos Crimes Contra os Costumes
Capítulo I
Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual
Estupro
200 Código ainda vigente, em parte.
149
Art. 213. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência em grave ameaça:
Pena – reclusão, de três a oito anos.
LEI 6.416/77
201
Parte Especial
Título VI
Dos Crimes Contra os Costumes
Capítulo I
Dos Crimes Contra a Disponibilidade Sexual
Estupro
Art. 238. Constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça.
Pena – reclusão, de três a oito anos.
Lei 8.072/1990
202
Parte especial
Título VI
Dos Crimes Contra os Costumes
Capítulo I
Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual
Estupro
Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
201 Reforma profunda no Código Penal vigente e também no digo de Processo Penal e Lei das
Contravenções Penais.
202 Dispõe sobre os crimes hediondos.
150
ANEXO E
LAMENTÁVEL DECISÃO
Cristiano Ledur *
A decisão do STF do dia 23 de fevereiro, concedendo progressão de regime para con-
denados por crimes hediondos, não causa espanto somente por seu teor, mas sim, e princi-
palmente, por ir de encontro à posição sustentada pelo mesmo tribunal ao longo de 15 anos.
Durante esse período, a Corte máxima referendou a constitucionalidade da Lei n.
0
8.072/90,
chamada Lei dos Crimes Hediondos, que, na esteira do que clamava a sociedade e
preconizava a Constituição, elencou uma série de crimes graves e deu a eles tratamento mais
severo. Tal tratamento garantia que alguns delinquentes, pela gravidade de seus crimes, não
pudessem usufruir os mesmos benefícios estendidos aos criminosos comuns. Assim, não se
lhes aplicava o princípio de que todos são iguais perante a lei exata-mente porque a natureza e
consequência de seus crimes era mais grave, tornando-os inequivocamente desiguais.
Não se diz com isso que a Lei dos Crimes Hediondos resolveu o problema da
criminalidade no Brasil Ao contrário, o índice de crimes cresceu na mesma proporção da
miséria e da falta de dignidade suportada por grande parte do povo. Mas era a lei uma garantia
de que pelo menos por mais tempo estupradores, homicidas, autores de latrocínio,
seqíiestradores e traficantes iriam ficar priva dos da liberdade e, conseqíientemente, longe da
sociedade.
Agora não, com a mudança de postura do STF, pode-se exemplificar que um
estuprador voltará às ruas em um ano, um assassino em dois, um autor de latrocínio em três
anos e meio, os sequestradores que matam para garantir que não serão identificados em quatro
e, pasme-se, o traficante de drogas em apenas seis meses. Isso mesmo, meses.
Como dito no início, o que mais surpreende na decisão é que ela representa uma
mudança de postura do Tribunal sem que a lei ou a Constituição tenham sofrido alteração. A
mudança deu-se tão-somente pek nova composição de seus membros, o que é deveras grave,
pois afasta por completo a segurança jurídica necessária em qualquer sistema democrático.
A posição de 15 anos era do tribunal e não de seus membros. A nova decisão, pois,
mostra que o STF interpretou a Constituição de acordo com a posição individualizada de seus
151
componentes, não havendo garantia de que no futuro seja novamente a lei considerada
constitucional. Isso, em suma, é a ruína do sistema jurídico vigente, pois fere de morte
interpretação anterior tomada pelo mesmo Tribunal.
A sociedade está de luto. Hoje não mais sabemos se as rajadas de metralhadoras são
brigas por pontos de drogas ou celebração pelo ocorrido. Devemos estar preparados, em breve
os traficantes estarão prestando serviço comunitário na escola de nossos filhos.
* Promotor de Justiça
Zero Hora, 1º.03.2007.
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